democratização do acesso à justiça: a justiça itinerante fluvial...

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1 Democratização do acesso à Justiça: A Justiça Itinerante Fluvial do Amapá, no Rio Amazonas Leslie S. Ferraz i Há mais de oito anos, tenho viajado pelo país coletando dados para pesquisas empíricas e, sem nenhuma dúvida, a experiência mais concreta de democratização do acesso que tive a oportunidade de conhecer foi a Justiça Itinerante. Este mecanismo tem um potencial incrível para suplantar, a um só tempo, os óbices culturais, psicológicos, territoriais e econômicos, típicos da população brasileira – que, além de viver com escassos recursos num país de dimensão continental, tem baixíssima auto-estima e parco conhecimento dos seus direitos e da forma de lutar por eles. Nesse contexto, merece especial destaque a Justiça Fluvial do Tribunal amapaense. Com o barco “Tribuna: a Justiça vem a bordo”, doado pela Fundação Banco do Brasil, desde 1996, a Justiça alcança a população ribeirinha do arquipélago do Bailique, praticamente isolada da capital Macapá, à qual pertence. O “Tribuna” – construção típica da região amazônica – tem dois andares e capacidade para 70 pessoas. A tripulação dorme em redes que, durante o dia, dão lugar a mesas, cadeiras, impressoras e computadores portáteis, vertendo o barco em um Tribunal flutuante. Barco “Tribuna: a Justiça vem a bordo”, 2011.

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Democratização do acesso à Justiça:

A Justiça Itinerante Fluvial do Amapá, no Rio Amazonas

Leslie S. Ferrazi

Há mais de oito anos, tenho viajado pelo país coletando dados para pesquisas

empíricas e, sem nenhuma dúvida, a experiência mais concreta de democratização do

acesso que tive a oportunidade de conhecer foi a Justiça Itinerante.

Este mecanismo tem um potencial incrível para suplantar, a um só tempo, os

óbices culturais, psicológicos, territoriais e econômicos, típicos da população brasileira

– que, além de viver com escassos recursos num país de dimensão continental, tem

baixíssima auto-estima e parco conhecimento dos seus direitos e da forma de lutar por

eles.

Nesse contexto, merece especial destaque a Justiça Fluvial do Tribunal

amapaense. Com o barco “Tribuna: a Justiça vem a bordo”, doado pela Fundação Banco

do Brasil, desde 1996, a Justiça alcança a população ribeirinha do arquipélago do

Bailique, praticamente isolada da capital Macapá, à qual pertence.

O “Tribuna” – construção típica da região amazônica – tem dois andares e

capacidade para 70 pessoas. A tripulação dorme em redes que, durante o dia, dão lugar a

mesas, cadeiras, impressoras e computadores portáteis, vertendo o barco em um

Tribunal flutuante.

Barco “Tribuna: a Justiça vem a bordo”, 2011.

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A 64ª Jornada (junho de 2005)

O Bailique

Na minha primeira visita ao Bailique, em junho de 2005, encontrei uma

comunidade extremamente carente, com vilarejos precariamente estruturados: casas

muito simples, algumas sem móveis ou até mesmo paredes, famílias numerosas e

ausência de serviços essenciais, como energia elétrica, saneamento básico, assistência

médica e policiamento.

O transporte até a capital era feito, não raro, em canoas – pois ainda não havia a

linha regular de barco. Com isso, casos médicos de urgência nem sempre acabavam

bem. Havendo complicações decorrentes do parto, na melhor das hipóteses, as mulheres

davam à luz nas pequenas embarcações, cortando o cordão umbilical com seus próprios

dentes.

Contudo, há muitos relatos de avós que criam seus netos por terem perdido as

filhas, que não chegaram a tempo de serem socorridas em Macapá. Histórias de crianças

mortas por picadas de cobras também são comuns – não se chega à capital a tempo de

aplicar o soro antiofídico.

Em 2005, a ausência de comércio estruturado era evidente, resumindo-se

basicamente ao Varejão Pantoja, um pequeno mercadinho de produtos alimentícios, e a

loja de roupas “Nathália fashion”.

Comércio da Vila Progresso: Nathália Fashion e Varejão Pantoja

Neste contexto de abandono, a vinda do barco Tribuna era muito aguardada

pelos moradores – que queriam exercer o seu direito a “um dia na Justiça”. As

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demandas mais comuns envolviam briga de vizinhos, guarda de filhos, cobrança e ações

possessórias. As pensões alimentícias eram fixadas em valores baixos – em média, R$

50,00 mensais. Em virtude das dificuldades financeiras locais, contudo, grande parte das

ações de cobrança e execução acabava extinta por inexistência de bens dos devedores.

Lembro-me de acompanhar uma diligência em uma casa habitada por uma

família com seis crianças. Havia apenas panelas e redes. As crianças enfileiradas nos

fitavam com olhos assustados e famintos. Nada a ser penhorado.

Famílias extremamente pobres: ações extintas por falta de bens do devedor

O projeto

Se, de um lado, a população era extremamente carente, o projeto – que, naquela

oportunidade, vinha sendo coordenado há quase dez anos pela Dra. Sueli Pini –

funcionava de forma muito satisfatória.

A equipe de 54 pessoas – integrada por promotor, defensores públicos,

servidores da Justiça e do INSS, membros da POLITEC (expedição de documentos de

identidade), da CAESA (tratamento de água) e da TELEMAR (telefonia), médicos,

dentistas, enfermeiros, contadores de histórias (projeto “Mala Mágica”), psicólogos,

técnico do IMAP para vistorias e perícias agrárias, policiais militares, bombeiros,

membros do Exército, do INSS, psicólogo e outros profissionais – era extremamente

coesa, articulada e motivada pela magistrada.

O movimento no barco era constante – além da busca pelos serviços de Justiça,

as pessoas se reuniam em torno da Corte Itinerante em busca de serviços médicos,

odontológicos, psicológicos, do kit de desinfecção da água e até mesmo para pedir

comida e dinheiro. Naquela jornada, foram realizados 3.285 atendimentos médico-

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odontológicos – correspondentes a quase metade da população do arquipélago, então

estimada em 7.000 habitantes.

Audiência e atendimento psicológico no barco Tribuna

Seu Manoel, de quase 70 anos, trabalhara a vida toda na pesca e na roça, e não

tinha nenhum documento. Procurou a Justiça para receber sua aposentadoria. Com base

no testemunho e na perícia (feita pelo médico que integrava a equipe), além da análise

das mãos do trabalhador, a juíza proferiu imediatamente a sentença de assento tardio,

determinando a expedição dos documentos necessários.

Como a equipe da POLITEC integrava a 64ª Jornada, Seu Manoel terminou a

manhã com a documentação em ordem. Seu pedido de aposentadoria ficou agendado

para a próxima visita da Justiça Itinerante, que contemplaria a esfera federal.

Em virtude do movimento das águas – Bailique significa o baile das ilhas –, não

são raros os casos de conflitos possessórios decorrentes de aluvião. Por esta razão, um

agrimensor do IMAP acompanhava a equipe. Se não houvesse acordo, a demanda era

imediatamente julgada, com base na perícia produzida por ele.

A citação “por voadeira” é a mais eficiente possível: num bote motorizado, a

oficiala de justiça vai até os igarapés e conduz as partes ao barco-Tribunal para a

audiência, ou as intima a comparecer no dia seguinte. O único requisito é conhecer seus

apelidos, já que os nomes constantes nos documentos raramente são utilizados pelos

ribeirinhos.

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Citação “por voadeira”: o método mais efetivo de garantir o comparecimento das partes

Naquela oportunidade, como sempre ocorria em todas as Jornadas, vários líderes

comunitários e moradores procuraram a Dra. Sueli para apresentar suas reivindicações –

sempre registradas para a tomada de providências concretas, como inclusão de outros

povoados no roteiro da Justiça Itinerante, apuração da ausência de professores em

escolas públicas, disponibilização de médico ginecologista nas próximas jornadas, entre

outras.

O papel da juíza Sueli Pini na construção e consolidação do projeto é crucial.

Durante o período em que esteve na sua coordenação, foi extremamente atuante: ela

passava horas conversando com os ribeirinhos em suas casas, escolas, associação de

moradores, e, principalmente, nas ruas dos povoados. Com isso, conhecia praticamente

todos os habitantes não apenas por seus nomes, mas por sua história pessoal.

É que, na grande maioria dos casos, era a responsável por seus assentos,

casamentos, separações, guardas de filhos, pensão alimentícia, problemas com vizinhos

e violência doméstica, aposentadoria, e todas as demais histórias daqueles seres

humanos que, pouco a pouco, iam se tornando cidadãos.

Também chama atenção o tempo e a disponibilidade da juíza a cada uma das

pessoas que a procuravam, sempre apontando uma solução efetiva para seu problema.

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Famílias de povoados mais distantes remam por várias horas para chegar ao barco Tribuna

Em 2005, a Justiça Itinerante tinha uma agenda anual pré-definida, cujas datas

eram amplamente divulgadas aos ribeirinhos (inclusive por intermédio da rádio

comunitária), garantindo sua participação efetiva no projeto. Todos aguardavam

ansiosos pelo barco Tribuna. Muitos deles iam com suas famílias ao encontro do

“Tribuna” de canoa, chegando a remar por até oito horas para ter seu dia na Corte.

Já naquela época, o barco não era capaz de se aproximar do povoado de

Livramento, em razão da baixa profundidade do rio naquela região. Isso não era

empecilho: na 64ª Jornada, a equipe e os equipamentos foram transportados em

inúmeras viagens de “voadeiras”, e um pequeno Tribunal foi montado no pequeno

vilarejo.

Além disso, foram instalados consultórios improvisados, que forneciam serviços

médicos e odontológicos aos moradores da região – com uma procura bastante

significativa.

Diante da impossibilidade de deslocamento do barco, o Tribunal itinerante é instalado em Livramento

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Serviços de saúde e odontologia: grande procura por parte dos ribeirinhos

No tocante ao aspecto cultural, o projeto também contemplava a “Mala Mágica”,

um baú cheio de livros infantis com contadores de histórias que divertiam crianças e

adultos, despertando seu interesse pela leitura. Nesta itinerância, o projeto contabilizou

200 participantes.

Além disso, filmes infantis foram exibidos em lençóis que faziam as vezes da

grande tela. Para muitas crianças, esta foi a primeira sessão de cinema de suas vidas.

Projetos culturais: “Mala Mágica” e exibição de filmes infantis

Destoava do ambiente precário a Escola-bosque (situada na Vila Progresso), um

colégio exemplar, com excelente estrutura, acesso via satélite à internet, salas de aulas

em formato de ocas indígenas e inserção, na grade curricular, de disciplinas com ênfase

na preservação ambiental.

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Escola-Bosque: ênfase em preservação ambiental

Em síntese, a visita de junho de 2005 apontou, de um lado, uma comunidade que

começava a despertar para seus direitos, mas ainda muito pobre e pouco estruturada e,

de outro, um projeto muito consistente, liderado por uma juíza extremamente dedicada a

incluir os ribeirinhos no sistema de Justiça.

Meses depois, para meu espanto, fui informada que a juíza Sueli Pini foi

destituída da coordenação do barco Tribuna – entregue à Diretoria do Fórum – sem

nenhuma justificativa ou motivação. Aquela havia sido sua última jornada como

coordenadora do projeto.

A 95ª Jornada (agosto de 2011)

Seis anos depois, em agosto de 2011, retornei ao projeto de Justiça Fluvial no

Rio Amazonas, desta vez para iniciar uma pesquisa sobre a Justiça Itinerante no Brasil.

À primeira vista, a transformação do Bailique é surpreendente, sobretudo na

principal comunidade, a Vila Progresso, que passou a fazer jus ao nome: pontes e píer

cimentados, posto de saúde, telefone público, agência dos correios, inúmeras lojas de

roupas, farmácia, açougue, loja de móveis, grande mercado de alimentos e

eletrodomésticos e até terminal bancário (Nossa Caixa).

Há também um complexo esportivo, com quadras e trilhas para caminhadas,

além de ter sido instituída a linha de barco diária a Macapá – embora o preço da

passagem, de R$ 35,00 por trecho, ainda seja proibitivo para a maioria dos habitantes do

arquipélago.

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Vila Progresso em agosto de 2011: desenvolvimento e economia aquecida

A evidente melhora financeira da Vila Progresso certamente guarda relação com

os programas de transferência de renda do governo – como bolsa-família, bolsa-pesca e

bolsa-escola.

Não podemos esquecer, contudo, que, antes da Justiça Itinerante, a grande

maioria população do Bailique não tinha sequer registro de nascimento.

O trabalho de mais de uma década de promoção efetiva do acesso à Justiça, com

regularização documental dos habitantes – agora aptos a receber os benefícios – e,

sobretudo, de conscientização de seus direitos, tem importância crucial no

desenvolvimento do povoado.

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O projeto

Se, de um lado, a Vila apresenta melhoras visíveis, a Justiça Itinerante sucumbe

a olhos vistos.

A despeito das seis viagens programadas para 2011, o projeto foi suspenso pelo

Tribunal de Justiça no início do mês de abril, sob a alegação de falta de verbas. As

reportagens noticiadas na imprensa sinalizam que pode haver motivação política na

decisão, já que há uma clara tensão entre Tribunal e governo motivada pelas verbas

destinadas à Justiça1.

A itinerância fluvial foi parcialmente reativada em agosto de 2011: os serviços

essenciais (como saúde, odontologia, emissão de documentos, cultura, educação e

tratamento de água), que sempre acompanharam a Justiça, foram suprimidos do projeto

– sempre sob o argumento da escassez orçamentária.

Os ribeirinhos lamentam a supressão dos serviços agregados, além da ausência

de informações sobre as próximas jornadas, o alargamento da sua periodicidade e a

incerteza quanto à própria manutenção do projeto.

Dona Maria do Carmo aguardou por meses a vinda do barco Tribuna. Como a

Justiça não veio, juntou suas economias e foi a Macapá pedir sua aposentadoria – foram

R$ 70,00 gastos nos dois trechos do barco de linha e R$ 50,00 com alimentação. Tudo

em vão. O INSS exigiu que retornasse com duas testemunhas para conceder-lhe o

benefício – o que representaria um custo de, no mínimo, R$ 360,00. Dona Maria do

Carmo acabou renunciando ao seu direito.

A demora da Justiça também pode agravar situações banais, que acabam

tomando maiores proporções. Um exemplo: há um mal-estar entre alguns moradores do

Bailique e os assentados que chegam para morar nos vilarejos. O estranhamento inicial

virou provocação diária, que evoluiu para ofensas pessoais, que, por fim, culminou em

uma séria luta corporal envolvendo (e ferindo) várias pessoas, que poderia ter sido

evitada se houvesse uma intervenção anterior.

O caso da Dona Maranhense é mais trágico: ela atribui a morte de seu marido à

ausência da Justiça. Segundo ela, em virtude da demora na solução de uma demanda

possessória com seu vizinho, cujos gados destruíam a plantação da família, seu marido

entrou em depressão profunda e acabou cometendo suicídio.

1 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ZVmbthDmM7k. Acesso em: 30 ago 2011.

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Os moradores foram unânimes em solicitar (a) maior periodicidade da vinda do

barco; (b) informação prévia sobre as datas da itinerância; (c) a manutenção da mesma

juíza (no caso, a Dra. Sueli Pini) em todas as visitas do “Tribuna”.

Eles afirmam que a troca de juízes “complica os casos, pois é preciso contar tudo

de novo”. É curioso perceber que, mesmo após um longo afastamento do projeto, a Dra.

Sueli Pini ainda é reconhecida pela população do Bailique como sua “legítima juíza” –

“ela já conhece a gente, e faz tudo por nós”.

De outra sorte, a juíza responsável pela última jornada, Maria de Lourdes

Mundim, embora bastante interessada (“encantou-se” com o projeto no curso

preparatório para juízes), mostrou um distanciamento da população e,

consequentemente, de suas reais necessidades.

Juíza substituta, empossada na itinerância há menos de um ano, não tem o hábito

de andar pelo povoado e aproximar-se dos ribeirinhos como fazia sua antecessora. Nesta

jornada, haveria uma audiência pública conduzida pelo Ministério Público, da qual ela

não participaria.

Também relata que a população não fora informada sobre esta jornada – fato

confirmado pelos moradores do Bailique, os quais se disseram “surpresos” com a

chegada do “Tribuna” – e solicitou em seu relatório que o Tribunal noticiasse a

comunidade nas próximas vezes. Em sentido diverso, observo que, em 2005, a própria

coordenação do projeto se encarregava de informar previamente a escala anual da

itinerância aos moradores, fazendo uso da rádio comunitária local.

A exemplo dos moradores entrevistados, a juíza Maria de Lourdes também

destacou a enorme procura pelos serviços agregados e a decepção por não terem

integrado a 95ª jornada – com especial destaque para o INSS, muito solicitado pelos

ribeirinhos.

Por fim, a comunidade de Livramento, como em 2005, continua inacessível ao

barco Tribuna, em razão da pouca profundidade do rio naquele trecho. Contudo, se

naquele ano, o “Tribunal” foi transportado à vila em inúmeras viagens de bote

motorizado, a nova coordenação optou por suspender o atendimento ao vilarejo,

alegando dificuldade de acesso.

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O Bailique

A despeito do evidente progresso econômico, uma conversa mais demorada com

os ribeirinhos e uma caminhada fora do centro principal da Vila Progresso evidencia os

muitos problemas enfrentados pelo Bailique – daí a necessidade dos representantes da

Justiça circularem pelo local.

O posto de saúde, embora conte com boas instalações, não tem médicos e

medicamentos disponíveis, sendo conduzido por enfermeiras desmotivadas.

Apenas o acesso principal da Vila Progresso foi pavimentado – nos demais

trechos e em todas as demais vilas, ainda existem pontes de madeira que dificultam a

locomoção, e, sem a manutenção adequada, muitas vezes quebram com a passagem dos

pedestres.

O restante do povoado ainda tem pontes de madeira para a locomoção – muitas delas em mal estado

Os líderes comunitários tinham muitas reivindicações reprimidas, alegando

distanciamento da Justiça. Pediram uma reunião com a Dra. Sueli, para que pudessem

ser orientados a respeito de suas demandas.

Entre questões pontuais, um assunto complicado, que já havia sido relatado

pelos moradores de Bailique e pela própria juíza Maria de Lourdes, foi trazido à tona.

Se o barco de linha melhorou a conexão com a capital Macapá, de outro lado, trouxe um

grave problema: a entrada de drogas no arquipélago, por não haver qualquer tipo de

fiscalização na embarcação.

Com as drogas, “brigas de gangues” e violência se instauraram no Bailique,

mudando completamente a realidade da região. A Dra. Sueli Pini constatou que a

localidade necessita, com urgência, de uma delegacia de polícia.

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Reunião da Dra. Sueli Pini com os líderes comunitários

Neste encontro, ela iniciou também um projeto de capacitação de líderes

comunitários em técnicas de conciliação, para que eles mesmos possam solucionar os

problemas locais de forma amigável, rápida e barata.

Se a escola-bosque ainda funciona de maneira exemplar, o mesmo não pode ser

dito do hotel-escola. O hotel – totalmente auto-sustentável, construído sem a derrubada

de uma única árvore – serviria para capacitar os alunos da escola-bosque para que

trabalhassem no empreendimento, impulsionando o turismo da região.

Contudo, por questões políticas, o novo governo decidiu suspender o projeto

(concebido na gestão anterior, Capiberibe) e, atualmente, o prédio – que seria um

enorme fator de desenvolvimento do turismo local e de capacitação dos alunos da

escola-bosque – encontra-se em ruínas. Uma sugestão é que o prédio seja transformado

em um hospital.

Escola-bosque: “a natureza nos oferece o mais rico material didático”

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Hotel da Escola-bosque: abandonado por brigas políticas

O poder político também minou outro importante projeto dos moradores locais:

a rádio comunitária do Bailique. Em seu lugar, foi criada uma rádio, controlada,

conforme informado pelos moradores, por uma “importante autoridade” da região. A

programação da nova rádio não é produzida localmente; segundo seu operador, “ela

vem pronta de Macapá”. A voz dos ribeirinhos parece ter sido calada mais uma vez.

Rádio do Bailique: programação elaborada em Macapá

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A alegada falta de verbas

Como visto anteriormente, a alegação do Tribunal para suspender a Justiça

Itinerante em abril deste ano e, em agosto, banir os serviços agregados do projeto, é de

limitação orçamentária.

Para analisar esta questão com propriedade, fizemos um levantamento dos custos

anuais do barco Tribuna, que incluem 09 jornadas, com 50 pessoas em cada viagem

além das despesas com manutenção do barco e pagamento de sua tripulação.

Os números detalhados, apresentados no Anexo I, apontam que um custo anual

total de R$ 276.500,00.

A título comparativo, calculamos o custo anual de um assessor (cargo

comissionado) do Tribunal de Justiça do Amapá que atua em segundo grau: R$

144.757,20.

Isso significa que toda a estrutura da Justiça Itinerante, incluindo os serviços

agregados de tratamento de água, serviços médicos e odontológicos, educação e cultura

custa menos do que dois assessores do Tribunal.

E mais: tomando como referência os 4.782 atendimentos realizados na 64ª

Jornada (vide dados detalhados no anexo I), em 09 jornadas, teríamos uma estimativa de

43.038 atendimentos ao ano – ao custo unitário de apenas R$ 6,42.

Em tempo: o Tribunal de Justiça já havia tentado suspender o projeto da Justiça

Itinerante, alegando falta de verbas. A juíza Sueli Pini conseguiu firmar uma parceria

com a Justiça Federal para partilhar as despesas de manutenção do barco, duplamente

vantajosa: o projeto continuou a funcionar e a população passou a contar também com a

proteção na esfera federal.

Assim, se considerarmos que as despesas da Justiça Estadual podem ser

partilhadas com a Justiça Federal, esse custo pode ser ainda menor.

Custo total de um assessor do Tribunal R$ 144.757,20

Custo total da Justiça Itinerante Fluvial R$ 276.500,00

Número estimado de atendimentos anuais

(09 jornadas)

43.038 atendimentos

População atual estimada 10.000 habitantes

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Conclusões e sugestões

A Justiça do Amapá sofreu um duro golpe com a falta de investimentos no

projeto de Itinerância Fluvial.

Em 2005, o último projeto coordenado pela juíza Sueli Pini (que havia ficado à

sua frente por quase dez anos), realizou 4.782 atendimentos – equivalente a mais da

metade da população do Bailique que, à época, era estimada em 7.000 habitantes. Em

2011, o projeto, suspenso e retomado de forma precária, atendeu a 577 pessoas (vide

quadro abaixo).

Além dos números, os dados qualitativos também mostram uma queda no

rendimento do projeto. As duas visitas realizadas in loco na Justiça Itinerante Fluvial do

Amapá em diferentes períodos (2005 e 2011) permitem tecer as seguintes conclusões:

1. O projeto Justiça Itinerante Fluvial do Tribunal de Justiça do Amapá tem um

papel decisivo na democratização do acesso à Justiça, sendo um mecanismo

altamente capaz de transpor os obstáculos territoriais, financeiros e culturais

enfrentados pelas populações ribeirinhas;

2. A Justiça Itinerante é programa decisivo para o desenvolvimento econômico,

social e cultural da região do Bailique;

3. A periodicidade do projeto não pode ser reduzida, sob pena de, além de

deixar uma demanda reprimida, agravar os conflitos existentes;

4. É recomendável que a Justiça Federal e o INSS continuem atuando no

projeto, de modo a reduzir os custos de manutenção do barco e atender à

enorme demanda da população local por serviços desta esfera;

5. A mudança no perfil do Bailique, com a introdução de novas questões como

tráfico de drogas e brigas de gangues, reclama por um reforço no

policiamento, justificando a criação de uma delegacia de polícia local;

6. Os serviços agregados – como emissão de documentos, médicos, contadores

de histórias, tratadores de água, psicólogos, dentistas, etc – desempenham

uma função muito relevante no projeto, potencializando seus resultados e,

por esta razão, não devem ser suprimidos;

7. O afastamento, sem qualquer explicação plausível, de uma juíza experiente e

conhecedora da região, e sua substituição por juízes recém-empossados

comprometeu o rendimento do projeto, que, por suas peculiaridades, reclama

por um magistrado ativo.

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8. É imperioso que o juiz da itinerância percorra o povoado e se aproxime da

população. A população relata que, enquanto a juíza antecessora caminhava

pelas vilas para ouvir a comunidade, os atuais representantes da Justiça

ficam confinados aos limites do barco.

9. Sob a alegação de dificuldade de acesso, localidades foram banidas da escala

do barco Tribuna. O problema pode ser solucionado com a transferência da

equipe e dos equipamentos para os vilarejos inacessíveis – justamente os que

mais precisam dos serviços de Justiça e saúde.

10. O hotel-escola, totalmente destruído pelo abandono, poderia acolher um

hospital para a região.

11. A alegada ausência de verbas para suspensão do projeto não merece guarida,

já que nove jornadas anuais, capazes de atender cerca de 45.000 pessoas,

custam menos do que dois servidores do Tribunal.

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ANEXO I - Quadro comparativo – 64ª e 95ª Jornadas

1. Localidades atendidas/escala:

Ano 64ª Jornada 95ª Jornada

Localidades

atendidas

Vila Progresso, Livramento (via voadeira), Itamatatuba e

Raimundo do Paraíso

Vila Progresso e

Itamatatuba

2. Serviços disponíveis:

Ano 64ª Jornada 95ª Jornada

Serviços 1. Juízo comum (infância e juventude, criminal,

cível, família)

2. JEC

3. JEF

4. Ministério Público

5. Defensoria Pública

6. Justiça eleitoral

7. Psicólogo

8. Serviço social

9. POLITEC

10. TERRAP

11. Delegacia regional do trabalho

12. SEMSA e SESA (médicos e dentistas)

13. CAESA (kit de tratamento água)

14. SEED – Projeto de leitura “Mala Mágica”

15. ACAMAP (prevenção câncer de mama)

16. Polícia Militar

17. Exército

18. Corpo de bombeiros

1. Juízo comum

(infância e

juventude, criminal,

cível, família)

2. JEC

3. Ministério Público

4. Defensoria Pública

5. Justiça eleitoral

6. Serviço social

7. Polícia militar

8. Corpo de bombeiros

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19

3. Número de atendimentos – Justiça Itinerante Fluvial

Natureza 64ª Jornada 95ª Jornada

Ações ajuizadas 34 27

Audiências 49 51

Despachos 148 109

Sentenças 45 28

Atendimentos MP 38 78

Atendimentos defensoria 27 47

Cartório 75 25

JEFs 41 00

Eleitoral 85 78

TOTAL (Justiça) 542 443

Psicólogo

(visitas, atendimentos e

palestras)

68 00

Serviço social

(pareceres, visitas,

aconselhamentos,

palestras)

134 134

Politec (RG) 35 00

DRT 68 00

TERRAP 04 00

Médicos e dentistas 3.285 00

CAESA 390 00

Mala mágica 200 00

ACAMAP (visitas e

palestras educativas sobre

câncer de mama)

56

00

TOTAL (agregados) 4240 134

TOTAL de pessoas

atendidas pelo projeto 4782 577

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Gráfico 1: Total de atendimentos

4. Custo anual da Justiça Itinerante

DESPESAS ANUAIS

Natureza

Manutenção e tripulação anual

Combustível (diesel, gasolina e lubrificante)

Alimentação para 50 pessoas

Diárias de 07 servidores (R$ 500,00 cada)

Despesa total para 09 jornadas com

manutenção e tripulação

DESPESAS ANUAIS

Vencimento 13

R$ 10.884,00 R$

A autora é bacharel, Mestre e Doutora em Dirde Florença, Itália, e Fordham University, em Nova Iorque. Professora de pósFGV). Pesquisadora, desenvolvExecução Fiscal, decisão monocráticaMinistério da Justiça, PNUD, Fundação Ford, FGVpesquisas sobre a Justiça Itinerante ([email protected].

0

500

1000

1500

2000

2500

3000

3500

4000

4500

5000

Justiça

otal de atendimentos da Justiça itinerante – 64ª e 95ª Jornadas

Custo anual da Justiça Itinerante

ESPESAS ANUAIS – Barco Tribuna – 09 jornadas anuais

Valor unitário Valor

anual – ME Martins - R$ 110.000,00

el (diesel, gasolina e lubrificante) R$ 8.000,00 R$ 72.000,00

Alimentação para 50 pessoas por 06 dias R$ 7.000,00 R$ 63.000,00

(R$ 500,00 cada) R$ 3.500,00 R$ 31.500,00

Despesa total para 09 jornadas com

manutenção e tripulação - R$ 276.500,00

ESPESAS ANUAIS – Assessor Jurídico – CDSJ2

3º salário Férias C

$ 10.884,00 R$ 3.265,20 R$

Mestre e Doutora em Direito pela USP. Foi pesquisadora visitante nas universidades de Florença, Itália, e Fordham University, em Nova Iorque. Professora de pós-graduação (UNIT,

desenvolveu, entre outras, pesquisas sobre Juizados Especiais, Tutecisão monocrática e Acesso à Justiça nas favelas cariocas, com

Ministério da Justiça, PNUD, Fundação Ford, FGV, Tribunais de Justiça e IPEA. Atualmente, desenvolve pesquisas sobre a Justiça Itinerante (SRJ-MJ) e Juizados Especiais Federais (IPEA).

Justiça Demais serviços Total de

atendimentos

20

64ª e 95ª Jornadas

anuais

Valor anual - 09

jornadas

R$ 110.000,00

R$ 72.000,00

R$ 63.000,00

R$ 31.500,00

R$ 276.500,00

Custo anual

$ 144.757,20

esquisadora visitante nas universidades graduação (UNIT, PUC e

, entre outras, pesquisas sobre Juizados Especiais, Tutela Coletiva, Acesso à Justiça nas favelas cariocas, com o CEBEPEJ,

. Atualmente, desenvolve speciais Federais (IPEA). Email:

2005

2011