democracia_cooperativa
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Democracia Cooperativa
Escritos Polticos Escolhidos de John Dewey
Augusto de Franco e Thamy Pogrebinschi (Editores)
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Democracia CooperativaEscritos Polticos Escolhidos de John Dewey (1927-1939)
Democracia Cooperativa: Escritos Polticos Escolhidos de John Dewey (1927-
1939)
2008, Conferncia Mundial sobre o Desenvolvimento de Cidades
Traduo: Traduzca.
Edio: Augusto de Franco e Thamy Pogrebinschi (2008).
Seleo de textos: Augusto de Franco (com base na seleo feita por Larry A.Hickman e Thomas M. Alexander, em The Essential Dewey, vol. 1: Pragmatism,
Education, Democracy. Bloomington: Indiana University Press, 1998).
Reviso Cientfica: Thamy Pogrebinschi
The idea of democracy is a wider and fuller ideathan can be exemplified in the State even at its best.
To be realized it must affect all modes of human association...
John Dewey (1927) in The public and its problems.
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A D V E R T N C I A
Infelizmente os editores no podem se responsabilizar pela traduo dos presentes
escritos polticos escolhidos de John Dewey. Circunstncias particularmentedesfavorveis, decorrentes, entre outros fatores, da falta de tempo e de recursos,impediram tanto uma reviso tcnica, quanto uma reviso literria do materialtraduzido. O mximo que pde ser feito foi uma reviso cientfica (por ThamyPogrebinschi), com o objetivo de escoimar absurdos que pudessem levar ainterpretaes muito equivocadas do pensamento do autor. O presente volumedeve ser considerado, portanto, como uma verso preliminar em certo sentidoexperimental dos Escritos Polticos Escolhidos de John Dewey, que agora tiveramque vir luz de qualquer maneira, face ao imperativo imposto pelo compromissodo seu lanamento durante a Conferncia Mundial sobre Desenvolvimento deCidades (Porto Alegre, 13 a 16 de fevereiro de 2008). Os editores se comprometem,entretanto, a preparar uma nova verso deste livro, com certeza revista do pontode vista tcnico e literrio e, talvez, aumentada para o que gostariam de contarcom a contribuio dos leitores , se possvel ainda neste ano de 2008.
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Prefcio
John Dewey (1859-1952), o chamado filsofo da Amrica, acabou ficando maisconhecido no Brasil como filsofo da educao. At agora seus escritos polticos sobretudo os publicados entre 1927 e 1939 so praticamente desconhecidos entrens. Nenhum deles foi traduzido e publicado no Brasil. Ou seja, ficamos oitentaanos sem conhecer as importantssimas (e avanadssimas) idias de John Deweycomo, vamos dizer, filsofo da democracia.
Assim, por ocasio da Conferncia Mundial sobre Desenvolvimento de Cidades,como coordenador do comit cientfico do evento, resolvi propor aos seusorganizadores a realizao de um grande painel sobre as idias de John Deweysobre a democracia, que permanecem ignoradas, em especial (e curiosamente), poraqueles que se dedicam a refletir sobre a democracia participativa e aexperimentar formas inovadoras de participao democrtica na gesto dascidades (um dos temas-eixo do encontro). Minha proposta contemplava tambm olanamento durante a realizao do referido painel de uma pequena coletneados escritos polticos de John Dewey.
A tarefa, entretanto, era maior do que supnhamos. Em primeiro lugar pelasimensas dificuldades de traduo (conforme foi explicado na advertncia que abrea presente edio). Em segundo lugar pela exigidade do tempo. Para ser lanadona conferncia, o livro deveria ficar pronto em prazo recorde.
No teramos conseguido cumpri-la sem o auxlio da professora ThamyPogrebinschi, que pegando a tarefa na undcima hora trabalhou arduamente,
pro bono, para fazer a reviso cientfica da traduo, dividindo comigo asresponsabilidades pela edio da presente obra. E que, alm de tudo, ainda sedisps a escrever o interessante posfcio que qualifica esta modesta tentativa de
divulgar as idias polticas de Dewey no Brasil.Boa leitura a todos. E para os que esto iniciando agora a leitura de Dewey,recomendo que comecem pelos dois ltimos artigos reunidos aqui: A democracia radical (1937) e Democracia criativa: a tarefa diante de ns (1939).
Conferncia Mundial sobre o Desenvolvimento de Cidades
Porto Alegre, vero de 2008
Augusto de Francowww.augustodefranco.com.br
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Sumrio
Prefcio
Introduo, por Augusto de Franco
Em busca do pblico (1927)
Em busca da grande comunidade (1927)
A idia filosfica inclusiva (1928)
Liberalismo renascente (1935)
A democracia radical (1937)
Democracia criativa: a tarefa diante de ns (1939)
Posfcio: Uma outra fundao para a democracia, por Thamy Pogrebinschi
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Introduo
Por Augusto de Franco
The fundamental principle of democracyis that the ends of freedom and individuality for all
can be attained only by means that accord with those ends...[but] There is no opposition in standing
for liberal democratic meanscombined with ends that are socially radical.
John Dewey (1937) in Democracy is radical.
Bastaria a citao acima para justificar o esforo de editar uma coletnea deescritos polticos de John Dewey, cujas idias a meu ver constituem uma vacinacontra as iniciativas de autocratizar a democracia, tanto aquelas claramenteditatoriais ou protoditatoriais, quanto as que pretendem usar a democracia contraa democracia, parasitando-a para substantiva e objetivamente restringi-la nopresente em nome de um reino de liberdade para todos a ser conquistado nofuturo. Dewey implacvel com esses projetos autocratizantes: o princpio
fundamental da democracia que os fins de liberdade e individualidade paratodos apenas podem ser obtidos por meios que estejam de acordo com essesobjetivos... [mas] No h oposio na defesa de meios democrticos liberaiscombinados com fins que so socialmente radicais.
Para quem apreendeu, como Dewey, a essncia da idia de democracia, deveriaser bvio que s se pode alcanar a democracia praticando democracia. No possvel tomar um atalho autocrtico para uma sociedade democrtica. Ademocracia , como ele diz, simultaneamente, meio e fim, constituindo-se,portanto, como alternativa de presente e no apenas como modelo utpico de
futura sociedade ideal. Assim, no se pode chegar a uma sociedade democrtica ano ser por meio do exerccio da democracia.Repisar tais constataes um reconhecimento tardio a John Dewey. Como eleescreveu, no artigo A democracia radical (1937): a democracia significa no sos fins que at mesmo as ditaduras agora afirmam ser seus fins, segurana para osindivduos e oportunidade para seu desenvolvimento pessoal. Significa tambmuma nfase precpua nos meios pelos quais esses fins devem ser cumpridos. Osmeios aos quais ela se dedica so as atividades voluntrias dos indivduos aoinvs da coero; so assentimento e consentimento ao invs de violncia; so a
fora da organizao inteligente versus aquela da organizao imposta de fora e de
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cima. O princpio fundamental da democracia que os fins de liberdade e individualidadepara todos apenas podem ser obtidos por meios que estejam de acordo com esses objetivos.
Sim, preciso repetir. Dewey deveria ser lido e relido todos os dias pelosdemocratas hoje confrontados com renovadas tentativas de usar a democracia
(como fim) contra a democracia (como meio). O que espanta a clareza dessesenhor de quase 80 anos e h 70 anos diante de uma questo que se arrasta semsoluo terica e prtica at os dias de hoje. Por que John Dewey pde ter tamanhaclareza? A meu juzo, por duas razes pelo menos: em primeiro lugar porque eleestava realmente convertido democracia como idia (ou seja, a democracia nosentido forte do conceito) e, em segundo lugar, porque ele vivia um momentohistrico em que a democracia estava sendo usada instrumentalmente paralegitimar a autocracia (tanto direita, com o nacional-socialismo alemo, quanto esquerda, com o bolchevismo da III Internacional ainda em expanso).
Tudo indica que vivemos agora um momento semelhante. No estamos naiminncia de uma guerra generalizada (como estava Dewey em 1937, na ante-salada segunda grande guerra mundial) e no existem ameaas totalitrias globaisequivalentes ao nazismo e ao comunismo. No entanto, a perverso da polticapromovida pelos diversos populismos (remanescentes ou reflorescentes,sobretudo na Amrica Latina) constitui uma ameaa serissima democracia ques pode ser plenamente percebida por quem est convencido como Deweyestava da necessidade da radicalizao da democracia. Infelizmente tanto osliberais quanto os socialdemocratas de hoje no esto convencidos disso. Cremque basta se posicionar (e ainda por cima timidamente) na defesa das regras
formais do sistema representativo, com suas instituies e procedimentoslimitados ao voto secreto, s eleies peridicas, alternncia de poder, aosdireitos civis e liberdade de organizao poltica e, enfim, ao chamado Estado dedireito e ao imprio da lei. Parodiando Tayllerand, parecem no ter esquecidonada e tambm no ter aprendido nada com o sculo passado. Mas enquanto elescochilam, vai avanando o uso da democracia contra a democracia com o fito demanter no poder, por longo prazo, grupos privados que proclamam o idealdemocrtico como cobertura para enfrear o processo de democratizao dassociedades que parasitam.
No discurso Democracia criativa: a tarefa que temos pela frente (1939), em quelanou sua derradeira contribuio s bases de uma nova teoria normativa dademocracia que poderamos chamar de democracia cooperativa, John Deweydeixou claro que estava tomando o conceito em seu sentido forte. A democracia,para ele, no se refere nem apenas, nem principalmente ao funcionamento dasinstituies polticas, mas um modo de vida baseado em uma aposta naspossibilidades da natureza humana, no homem comum, como ele diz, nasatitudes que os seres humanos revelam em suas mtuas relaes, em todos osacontecimentos da vida cotidiana. Segundo Dewey, a democracia uma apostagenerosa na capacidade de todas as pessoas para dirigir sua prpria vida, livre de
toda coero e imposio por parte dos demais, sempre que estejam dadas asdevidas condies.
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Doze anos antes, em O pblico e seus problemas (1927), ele j tinha deixadoclaro que existe uma distino entre a democracia como uma idia de vida social ea democracia poltica como um sistema de governo. A idia argumentava ele permanece estril e vazia sempre que no se encarne nas relaes humanas. Porm
na discusso h que distingu-las. A idia de democracia uma idia mais ampla emais completa do que se possa exemplificar no Estado, ainda no melhor dos casos.Para que se realize, deve afetar todos os modos de associao humana, a famlia, aescola, a indstria, a religio. Inclusive no que se refere s medidas polticas, asinstituies governamentais no so seno um mecanismo para proporcionar aessa idia canais de atuao efetiva.
Essa democracia, no sentido forte do conceito, na base da sociedade e nocotidiano do cidado, s pode ser experimentada, pelo menos em escala maisampla, no interior de regimes formalmente democrticos.
Isso no significa, portanto, que a democracia como sistema de governo sejamenos importante que a democracia em seu sentido forte, como modo-de-vida, porquanto a condio para que a democracia em seu sentido forte possase realizar a existncia da democracia em seu sentido de regime poltico ouforma de administrao do Estado. Onde no existe um sistema representativofuncionando, em geral tambm no h prticas realmente participativas, na baseda sociedade e no cotidiano do cidado, que possam ser consideradas comodemocrticas. Em outras palavras, a chamada democracia liberal pelo menos nostempos que correm condio para o exerccio de formas inovadoras de
democracia radical.
Para Dewey, no h nada mais radical do que insistir na articulao de mtodosdemocrticos que sirvam como meios para efetuar mudanas sociais radicais.Radicalizar (no sentido de democratizar) a democracia realiz-la no sentidoforte do conceito. Neste sentido, a democracia deve ser tomada como o valorprincipal da vida pblica e tudo qualquer evento, qualquer proposta deve seravaliado, medido e pesado, do ponto de vista da democracia.
Assim, s possvel democratizar (mais, e cada vez mais) a democracia enquanto
existir essa (reconhecidamente imperfeita e insuficiente) democracia formal, comsuas instituies e procedimentos limitados. possvel, sim, radicalizar ademocracia, mas tal possibilidade existe na exata medida em que tais instituies eprocedimentos da democracia liberal no forem pervertidos e degenerados pelaprtica da poltica como uma continuao da guerra por outros meios (achamada frmula inversa e leniniana de Clausewitz).
Em suma, no se pode usar mtodos autocrticos para atingir fins democrticos e contra essa falsa alternativa do ponto de vista da democracia que Dewey seinsurgia. mais ou menos como se preparar para a guerra para atingir a paz:
parece bvio que se algum se prepara a guerra ter mais chances de praticar aguerra, na medida em que se organiza para tal; da mesma forma, se algum se
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organiza autocraticamente estar produzindo autocracia, ou seja, menos-democracia e no mais-democracia. Mal comparando, essa histria se assemelhaquele mito, difundido pelas esquerdas, segundo o qual, na transio socialistapara o comunismo, trata-se de reforar o poder de Estado (como meio) para atingiro objetivo da sua extino (como fim) como se fosse possvel algum enfraquecer
alguma coisa fortalecendo-a.
Todavia, Dewey vai mais alm. No basta resistir e se insurgir contra a autocracia.Radicalizar a democracia, realizar o contedo radical da idia de democracia,exige participao voluntria e prtica cooperativa. Para ele, a democracia no um ensinar, mas um deixar aprender. uma aposta de que os seres humanoscomuns podem, sim, aprender a se autoconduzir mesmo que no possuamnenhuma cincia ou tcnica especfica quando imersos em ambientes quefavoream ao exerccio coletivo dessa educao democrtica. Ora, esses ambientesso os ambientes comunitrios, constitudos pela prtica cooperativa das pessoas
que se conectam umas as outras e atuam coletivamente em prol de objetivoscomuns.
Sim, se Dewey, como vimos, no encarava a democracia como mera forma delegitimao institucional, ele tambm no tinha uma viso procedimental dademocracia, nem a encarava apenas como as regras do jogo. Para ele, esse modode vida que um meio e simultaneamente um fim, o nico capaz de promover aconverso de inimizade em amizade poltica: tratar os que discordam de ns pormuito grave que seja a discrepncia como pessoas com as quais podemosaprender e, neste sentido, como amigos. Ora, isso algo capaz de surpreender
quem aprendeu a rezar pela cartilha do realismo de Carl Schmitt (em O Conceitodo Poltico, escrito poucos anos antes da ltima conferncia de Dewey de 1939).
Sim, a democracia para Dewey era, como ele mesmo afirma, uma espcie de fdemocrtica na paz, aquela f que confia na possibilidade de dirimir as disputas,as controvrsias e os conflitos como empreendimentos cooperativos nos quaiscada uma das partes aprende dando outra a possibilidade de expressar-se, emlugar de consider-la como um inimigo a derrotar e suprimir pela fora.O juzo de Dewey, de que cooperar, deixando que as diferenas possam ganharlivre expresso, algo inerente ao modo de vida democrtico, por isso que a
democracia a crena de que inclusive quando as necessidades, os fins ou asconseqncias diferem de indivduo para indivduo, o hbito da cooperaoamistosa hbito que no exclui a rivalidade e a competio, como no esporte por si uma valiosa contribuio vida, estabelece uma ruptura com as concepesadversariais de democracia que contaminaram as prticas totalitrias ouautoritrias, sejam provenientes da direita ou da esquerda.
Todavia, o que parece mais relevante no discurso de Dewey sua visoantecipatria da rede social. Quando ele diz que todo modo de vida carente dedemocracia limita os contatos, os intercmbios, as comunicaes e as interaes
que estabilizam, ampliam e enriquecem a experincia e que o propsito dademocracia e ser sempre a criao de uma experincia mais livre e mais
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humana, na qual todos participemos e para a qual todos contribuamos, estantevendo as relaes entre a democracia (como modo de vida comunitrio) e adinmica de redes sociais distribudas. Est dizendo que o poder (autocrtico) ageobstruindo fluxos ou colocando obstculos livre fluio, separando e excluindonodos da rede social. E com isso, ao mesmo tempo, est indicando o que devemos
fazer para nos livrar da dominao desse tipo de poder.
Nos termos de hoje poderamos dizer que uma democracia radicalizada (que ,assim, segundo Dewey, sempre uma democracia cooperativa), exige um padro deorganizao em rede. E poder ser tanto mais cooperativa quanto maior for aconectividade dessa rede e quanto mais ela apresentar uma topologia distribuda(ou quanto menos centralizada ou descentralizada ela for).
Isso significa que a democracia em seu sentido forte no um projeto destinadoao Estado-nao, s suas formas de administrao poltica (tal como at hoje as
conhecemos), e sim sociedade mesmo, ou melhor, s comunidades que seformam por livre pactuao entre iguais, caracterizadas por mltiplas relaeshorizontais entre seus membros. E que, portanto, no se pode pretender substituiros procedimentos e as regras dos sistemas polticos democrticos representativosformais pelas inovaes polticas inspiradas por concepes democrticas radicais.
Por outro lado, a emergncia de inovaes polticas na base da sociedade e nocotidiano dos cidados, inspiradas por concepes radicais de democraciacooperativa, pode exercer uma influncia sobre o sistema poltico, de fora paradentro e de baixo para cima, capaz de mudar a estrutura e o funcionamento dos
regimes democrticos formais. Ou seja, por essa via, a democracia no sentidoforte acaba democratizando a democracia no sentido formal, mas noexatamente para tomar seu lugar e sim para democratizar cada vez mais a polticaque se pratica no mbito do Estado e das suas relaes com a sociedade.Em todo caso, o caminho mais democracia na sociedade, mais participaocooperativa dos cidados, o que, obviamente, s vivel na dimenso local (e sobregimes polticos que no probam nem restrinjam seriamente tal experimentaoinovadora: da a necessidade da democracia liberal).
Para Dewey, a democracia (como idia, na sua acepo forte) local, no sentido
de que a democracia um projeto comunitrio; ou, como ele prprio escreveu, emO pblico e seus problemas (1927), a democracia h de comear em casa, e sua casa a comunidade vicinal.
A formao democrtica da vontade poltica no pode se dar apenas por meio daafirmao da liberdade do indivduo perante o Estado, mas envolve um processosocial. A atividade poltica dos cidados no pode se restringir ao controle regularsobre o aparato estatal (com o fito de assegurar que o Estado garanta as liberdadesindividuais).
A liberdade do indivduo depende de relaes comunicativas (cada cidado spode atingir autonomia pessoal em associao com outros), mas o indivduo s
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atinge liberdade quando atua comunitariamente para resolver um problemacoletivo, o que exige necessariamente cooperao (voluntria). H portanto,uma conexo interna entre liberdade, democracia e cooperao. Isso evoca umoutro conceito (deweyano) de esfera pblica, como instncia em que a sociedadetenta, experimentalmente, explorar, processar e resolver seus problemas de
coordenao da ao social. Assim, somente a experincia de participarvoluntria e cooperativamente em grupos para resolver problemas e aproveitaroportunidades, que pode apontar para o indivduo a necessidade de um espaopblico democrtico. O indivduo como participante ativo de empreendimentoscomunitrios tendo conscincia da responsabilidade compartilhada e dacooperao o agente poltico democrtico (no sentido forte do conceito).
A concepo de esfera pblica democrtica como meio pelo qual a sociedade tentaprocessar e resolver seus problemas (como Dewey j havia proposto no final dadcada de 1920), permite a descoberta de uma conexo intrnseca entre
democracia e desenvolvimento, apenas sugerida implicitamente por ele e seuscomentadores quando perceberam a existncia de um nexo conotativo entredemocracia e cooperao *.
Dewey elabora uma idia normativa de democracia como um ideal social. Sequisermos inferir conseqncias dessa concepo, devemos explorar a conexoentre esse seu conceito de democrtico-social e o papel regulador da rede socialno estabelecimento do que atualmente se chama, segundo uma viso sistmica, desustentabilidade (ou desenvolvimento).
Esse trabalho de articulao entre democracia e sustentabilidade (oudesenvolvimento) vem sendo feito por alguns tericos do capital social (ou dasredes sociais) a partir da dcada de 1990. Capital social um recurso para odesenvolvimento aventado recentemente para explicar por que certos conjuntoshumanos conseguem criar ambientes favorveis boa governana, prosperidadeeconmica e expanso de uma cultura cvica capaz de melhorar suas condiesde convivncia social. Como tais ambientes so ambientes sociais cooperativos,capital social , fundamentalmente, cooperao ampliada socialmente. Ora, redesocial (distribuda) um meio pelo qual (ou no qual) a cooperao pode se ampliarsocialmente (inclusive, em certas circunstncias especiais, convertendo competio
em cooperao). A democracia que casa com a idia de capital social ademocracia cooperativa ou comunitria. Logo, a democracia pode ento ser vistacomo uma espcie de metabolismo prprio de redes sociais (e ser umademocracia democratizada na razo direta do grau de distribuio dessas redes).Pelo que se pode inferir das tendncias atuais, essa a democracia radical desejvel e possvel e no o retorno s concepes assemblestas, sovietistas,conselhistas, praticadas como arte da guerra, segundo as quais caberia a umdestacamento organizado, um partido de interveno, acarrear gente paravencer os inimigos de classe e para acumular foras em prol da tomada (legal ouilegal) do poder e instaurar o paraso na Terra depois de ter conquistado
hegemonia sobre (ou destrudo) as elites supostamente responsveis por todo omal que assola a humanidade.
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Dewey no concordaria com esse ponto de vista. Para ele, como vimos, umaprtica democrtica radicalizada tomando-se a democracia no sentido forte doconceito deveria ser, necessariamente, cooperativa. Com efeito, no livro O pblicoe seus problemas, ele escreveu que vista como uma idia, a democracia no uma
alternativa a outros princpios da vida associativa. a prpria idia de vidacomunitria.
O fato que o esforo de Dewey para buscar uma nova noo de pblicodesemboca no comunitrio. No importa o que se diga para tentar reinterpretar asidias deweyanas luz de qualquer viso particular hodierna centrada nalegitimao ou na negao dos sistemas representativos aambarcados peloEstado. Acrescente-se que no se trata daquele grande e talvez demasiadamentevago conceito de comunidade dos alemes (com o qual, alis, j trabalhavaAlthusius, desde o dealbar do sculo 17) da grande comunidade e sim da
pequena comunidade mesmo (em termos socioterritoriais e no necessariamentegeogrfico-populacionais), quer dizer, da vizinhana, da comunidade local. Paraele, o desenvolvimento e o fortalecimento da compreenso e do juzo pessoaismediante uma riqueza intelectual acumulada e transmitida na comunidade s sepode conseguir no seio das relaes pessoais da comunidade local. por isso queele afirma que no existe limite livre expanso dos dotes intelectuais pessoaisque podem fluir da inteligncia social quando essa circula de boca a boca nacomunicao da comunidade local.
Sim, Dewey percebeu que toda democracia local, no sentido de que a democracia
um projeto comunitrio. Ele no tinha, como bvio, as palavras atuais paradescrever o que pensava, mas farejou os conceitos como se ouvisse ecos dofuturo de rede comunitria e de rede social distribuda, antevendo talvez osprocessos de disseminao viral que s podem se efetivar pelos meios prpriosde redes P2P (peer-to-peer).
claro que essas ltimas inferncias j so por minha conta e tm a ver com meutrabalho atual sobre as relaes dentre desenvolvimento, redes sociais edemocracia. Que o leitor julgue por si mesmo se so vlidas no contexto dopensamento de John Dewey, depois de examinar esta breve coletnea de seus
escritos polticos sobre o conceito de pblico e sobre a idia de democracia.
NOTA(*) Cf., por exemplo, Honneth, Axel (1998).Democracia como cooperao reflexiva. JohnDewey e a teoria democrtica hoje, (publicado originalmente em Political Theory, v. 26,dezembro 1998) traduzido na coletnea: Souza, Jess (org.) (2001). Democracia hoje: novosdesafios para a teoria democrtica contempornea. Braslia: Editora Universidade deBraslia, 2001.
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Em busca do pblico (1927)
Se algum desejar perceber a distncia que pode haver entre os fatos e o
significado dos fatos, permitam que esse algum entre no campo da discusso
social. Muitas pessoas parecem supor que os fatos carregam em si o seu
significado, na sua prpria face. Acumule bastante fatos e a interpretao deles
est diante de voc. Acredita-se que o desenvolvimento da cincia fsica confirme
a idia. Mas o poder dos fatos fsicos de coagir a crena no reside nos simplesfenmenos. Ele provm do mtodo, da tcnica de pesquisa e clculo. Ningum
jamais forado apenas pelo acmulo dos fatos a aceitar uma teoria especfica sobre
seu significado, contanto que se mantenha intacta alguma outra doutrina pela qual
se possa organiz-los. Somente quando se permite livre curso aos fatos para a
sugesto de novos pontos de vista que alguma converso significativa da
convico quanto ao significado possvel. Tire da cincia fsica seu aparato
laboratorial e a sua tcnica matemtica e a imaginao humana poderia fluir sem
controle em suas teorias de interpretao mesmo se supusermos que os fatos
brutos permanecem os mesmos.
De qualquer maneira, a filosofia social exibe uma lacuna imensa entre fatos e
doutrinas. Compare, por exemplo, os fatos da poltica com as teorias existentes
sobre a natureza do Estado. Se os investigadores se limitarem aos fenmenos
observados, ao comportamento de reis, presidentes, legisladores, juzes, xerifes,assessores e de todos os outros agentes pblicos, certamente no difcil chegar a
um consenso razovel. Contraste este acordo com as diferenas que existem
quanto fundao, natureza, funes e justificao do Estado e observe o
desacordo aparentemente irremedivel. Se for requerida no uma enumerao dos
fatos, mas uma definio do Estado, mergulha-se em controvrsia, em uma
mistura de clamores contraditrios. De acordo com uma tradio, que alega
derivar-se de Aristteles, o Estado vida associada e harmonizada elevada suamais alta potncia: o Estado , simultaneamente, a base do arco social e o arco na
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sua totalidade. De acordo com outra concepo, o Estado apenas uma de muitas
instituies sociais, tendo uma funo limitada, porm importante, de rbitro no
conflito entre outras unidades sociais. Cada grupo surge e percebe um interesse
humano positivo: a igreja, os valores religiosos; as associaes, sindicatos e
corporaes, os interesses econmicos materiais, e assim por diante. O Estado, no
entanto, no tem um interesse prprio; o seu propsito formal, como o do
regente da orquestra, que no toca instrumento algum e no faz msica, mas que
serve para manter os outros participantes, os quais produzem msica, em
unssono uns com os outros. H ainda uma terceira concepo, que toma o Estado
como opresso organizada, simultaneamente uma excrescncia social, um parasita
e um tirano. Uma quarta concepo diz que o Estado um instrumento meiocanhestro, feito para impedir que as pessoas disputem muito umas com as outras.
A confuso aumenta quando adentramos as subdivises dessas diferentes
concepes e os fundamentos oferecidos para elas. Em uma filosofia, o Estado o
pice e a completude da associao humana e manifesta a maior realizao de
todas as capacidades distintivamente humanas. Esta concepo teve uma certa
pertinncia quando foi formulada pela primeira vez. Ela se desenvolveu na antiga
cidade-Estado, onde ser um homem completamente livre e ser um cidado que
participa do teatro, dos esportes, da religio e do governo da comunidade eram
coisas equivalentes. Mas esta concepo persiste e aplicada ao Estado de hoje.
Outra viso combina o Estado e a Igreja (ou, como uma viso variante, subordina-
o ligeiramente segunda) como o brao secular de Deus mantendo a ordem
externa e o decoro entre os homens. Uma teoria moderna idealiza o Estado e suas
atividades, tomando emprestado as concepes de razo e vontade,engrandecendo-as at que o Estado aparea como a manifestao objetificada de
uma vontade e razo que transcendem muito os desejos e objetivos que podem ser
encontrados entre os indivduos ou grupos de indivduos.
No estamos preocupados, no entanto, em escrever uma enciclopdia ou uma
histria das doutrinas polticas. Ento interrompemos essas ilustraes arbitrrias
da proposio de que pouco conhecimento geral foi descoberto entre os
fenmenos factuais do comportamento poltico e a interpretao do significadodesses fenmenos. Uma sada para o impasse destinar toda essa questo de
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significado e interpretao filosofia poltica, concebida como algo distinto da
cincia poltica. Pode-se, ento, ressaltar que a especulao ftil uma companhia
de toda filosofia. A moral livrar-se de todas as doutrinas desse tipo e agarrar-se
aos fatos comprovadamente averiguados.
A soluo proposta simples e atraente. Mas no possvel empreg-la. Os fatos
polticos no esto fora do desejo e julgamento humanos. Mude a estimativa dos
homens quanto ao valor das agncias e formas polticas existentes e as ltimas
mudam mais ou menos. As diferentes teorias que marcam a filosofia poltica no
crescem externamente aos fatos que elas visam interpretar: elas so amplificaes
de fatores selecionados entre esses fatos. Hbitos humanos modificveis e
alterveis sustentam e geram os fenmenos polticos. Esses hbitos no sointeiramente formados por um propsito racional e por uma escolha deliberada
longe disso mas eles so mais ou menos receptivos a eles. Grupos de homens
esto constantemente envolvidos em atacar e tentar mudar alguns hbitos
polticos, enquanto outros grupos de homens esto ativamente apoiando e
justificando-os. mero fingimento, ento, supor que podemos nos agarrar ao de
facto, e no levantar em alguns pontos a questo do de jure: a questo do por qual
direito, a questo da legitimidade. E tal questo tem uma forma de crescer at se
tornar uma questo sobre a natureza do prprio Estado. A alternativa diante de
ns no a cincia factualmente limitada, de um lado, e a especulao
descontrolada, de outro. A escolha entre ataque e defesa cegos e irracionais, de
um lado, e o criticismo distintivo que emprega um mtodo inteligente e um
critrio consciente, do outro.
O prestgio das cincias matemticas e fsicas enorme, o que apropriado. Mas adiferena entre os fatos que so o que so independentemente do desejo e
empenho humanos e os fatos que so at certo ponto o que so por causa do
interesse e objetivo humanos e que alteram com modificaes os ltimos no
pode ser descartada por nenhuma metodologia. Quanto mais sinceramente
apelamos aos fatos, maior a importncia da distino entre fatos que
condicionam a atividade humana e fatos que so condicionados pela atividade
humana. Quando ignorarmos essa diferena a cincia social se tornapseudocincia. As idias polticas de Jefferson e Hamilton no so meramente
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teorias que residem na mente humana, remotas dos fatos do comportamento
poltico norte-americano. Elas so expresses de fases e fatores escolhidos entre
esses fatos, mas elas so algo mais: a saber, so foras que moldaram esses fatos e
que ainda lutam para mold-los no futuro de uma ou de outra forma. H mais do
que uma diferena especulativa entre uma teoria do Estado que o considera como
um instrumento ao proteger os indivduos nos direitos que eles j tm e uma que
concebe a sua funo como sendo a de efetuar uma distribuio mais eqitativa
dos direitos entre os indivduos. Pois as teorias so mantidas e aplicadas pelos
legisladores no congresso e pelos juzes no tribunal e fazem uma diferena nos
prprios fatos subseqentes.
No tenho dvida de que a influncia prtica das filosofias polticas de Aristteles,dos esticos, de Santo Toms, Locke, Rousseau, Kant e Hegel tenha sido
freqentemente exagerada em comparao com a influncia das circunstncias.
Mas uma medida devida de eficcia no pode ser negada a elas nos termos que s
vezes so alegados; a eficcia no pode ser negada com o pretexto de que as idias
no tm potncia. Pois as idias pertencem a seres humanos que tm corpos, e no
h separao entre as estruturas e processos da parte do corpo que nutre as idias
e a parte do corpo que realiza aes. Crebro e msculos trabalham juntos, e o
crebro dos homens um dado muito mais importante para a cincia social do que
seu sistema muscular e seus rgos sensoriais.
No nossa inteno entrar em uma discusso sobre filosofias polticas. O
conceito de Estado, como a maior parte dos conceitos que so introduzidos por
O, muito rgido e vinculado a controvrsias para poder ser usado
prontamente. um conceito que pode ser abordado mais facilmente por ummovimento de flanco do que por um ataque frontal. No momento em que
pronunciamos as palavras O Estado, uma srie de fantasmas intelectuais surge
para obscurecer nossa viso. Sem pretendermos e sem notarmos, a noo de O
Estado nos leva imperceptivelmente a uma considerao da relao lgica de
vrias idias umas com as outras, e longe dos fatos da atividade humana.
melhor, se possvel, comear por aqui e ver se no somos levados, assim, a uma
idia de algo que acabar por implicar as marcas e sinais que caracterizam ocomportamento poltico.
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No h nada novo nesse mtodo de abordagem. Mas muito depende do que ns
selecionamos para comear e se selecionamos nosso ponto de partida a fim de
dizer no final o que o Estado deve ser ou o que ele . Se estamos muito
preocupados com o primeiro, h uma probabilidade de que tenhamos
inadvertidamente tratado os fatos selecionados a fim de resultar em um ponto
predeterminado. A fase da ao humana a partir da qual no deveramos comear
aquela qual se atribui um poder causativo direto. No devemos procurar por
foras formadoras do Estado. Se procurarmos, provavelmente nos envolveremos
na mitologia. Explicar a origem do Estado afirmando que o homem um animal
poltico viajar em um crculo verbal. como atribuir a religio a um instinto
religioso, a famlia a uma afeco matrimonial e parental, e a linguagem a um domnatural que impele os homens fala. Tais teorias meramente reduplicam em uma
suposta fora causal os efeitos a serem considerados. Elas so como a potncia
notria do pio de fazer os homens dormirem devido ao seu poder sonfero.
O aviso no dirigido contra um espantalho. A tentativa de derivar o Estado, ou
qualquer outra instituio social, de dados estritamente psicolgicos
pertinente. O apelo a um instinto gregrio para explicar os arranjos sociais o
exemplo notvel da falcia preguiosa. Os homens no correm juntos e no se
unem em uma massa maior como fazem as gotas de mercrio e, se fizessem, o
resultado no seria um Estado nem qualquer modo de associao humana. Os
instintos, sejam chamados de gregarismo, afinidade, senso de dependncia mtua
ou dominao, por um lado, e degradao e sujeio, por outro, na melhor das
hipteses esclarece tudo em geral e nada em particular. E, na pior, o instinto e o
dom natural supostamente apelados como sendo eles mesmos as foras causaisrepresentam tendncias fisiolgicas previamente moldadas como hbitos de ao e
expectativa por meio das prprias condies sociais que eles supostamente
explicam. Homens que viveram em bandos desenvolvem um vnculo com a horda
qual eles se acostumaram; as crianas que forosamente viveram em
dependncia crescem com hbitos de dependncia e sujeio. O complexo de
inferioridade socialmente adquirido, e o instinto de exibio e domnio
apenas a sua outra face. H rgos estruturais que se manifestam fisiologicamenteem vocalizaes como os rgos de um pssaro induzem ao canto. Mas o latido
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dos ces e o canto dos pssaros so suficientes para provar que essas tendncias
nativas no geram linguagem. Para ser convertida em linguagem, a vocalizao
nativa requer transformao por condies extrnsecas, tanto orgnicas quanto
extra-orgnicas ou ambientais: note bem, formao, no apenas estimulao. O
choro de um beb pode, sem dvida, ser descrito em termos puramente orgnicos,
mas o choro se torna um substantivo ou verbo apenas por suas conseqncias no
comportamento responsivo dos outros. Esse comportamento responsivo toma a
forma de educao e cuidados, eles prprios dependentes da tradio, costume e
padres sociais. Por que no postular um instinto de infanticdio bem como um
de orientao e instruo? Ou um instinto de expor as meninas e cuidar dos
meninos?Podemos, no entanto, tomar o argumento de uma forma menos mitolgica do que
encontrada no atual apelo aos instintos sociais de um tipo ou de outro. As
atividades dos animais, como a dos minerais e das plantas, so correlacionadas
com a sua estrutura. Os quadrpedes correm, os vermes rastejam, os peixes
nadam, os pssaros voam. Eles so feitos assim; a natureza do animal. Ns no
ganhamos nada inserindo instintos de correr, rastejar, nadar e voar entre a
estrutura e a ao. Mas as condies estritamente orgnicas que levam os homens
a se unirem, reunirem, congregarem e combinarem so exatamente aquelas que
levam outros animais a se unirem em enxames, matilhas e bandos. Ao descrever o
que comum em junes e consolidaes humanas e em outras junes e
consolidaes animais, deixamos de abordar o que distintivamente humano nas
associaes humanas. Essas condies e aes estruturais podem ser sine qua nons
das sociedades humanas; mas tambm o so as atraes e repulses que soexibidas em coisas inanimadas. A fsica e a qumica, bem como a zoologia, podem
nos informar sobre algumas das condies sem as quais os seres humanos no se
associariam. Mas elas no nos fornecem as condies suficientes de vida em
comunidade e das formas que ela toma.
Devemos, em todo o caso, comear pelas aes realizadas, no pelas causas
hipotticas dessas aes, e considerar suas conseqncias. Tambm devemos
introduzir a inteligncia, ou a observao das conseqncias como conseqncias,isto , em conexo com as aes das quais elas decorrem. J que devemos
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introduzi-la melhor fazer isso conscientemente do que faz-la entrar s
escondidas de uma forma que engane no apenas o oficial alfandegrio o leitor
mas a ns mesmos tambm. Tomamos ento nosso ponto de partida do fato
objetivo que as aes humanas tm conseqncias sobre os outros, que algumas
dessas conseqncias so percebidas e que a percepo delas leva a um esforo
posterior para controlar a ao a fim de garantir algumas conseqncias e evitar
outras. Seguindo essa pista, somos levados a notar que as conseqncias so de
dois tipos, aquelas que afetam as pessoas diretamente envolvidas em uma
transao e aquelas que afetam outras alm daquelas diretamente envolvidas.
Nessa distino encontramos o germe da distino entre o privado e o pblico.
Quando conseqncias indiretas so reconhecidas e h um esforo para regul-las,algo que se assemelha a um Estado ganha existncia. Quando as conseqncias de
uma ao so restringidas, ou quando se acredita que sejam restringidas,
principalmente s pessoas diretamente envolvidas nela, a transao privada.
Quando A e B mantm uma conversa juntos, a ao uma trans-ao: ambos esto
envolvidos nela; seus resultados passam, por assim dizer, de um para o outro. Um
ou outro ou ambos podem ser ajudados ou prejudicados assim. Mas,
presumivelmente, as conseqncias de vantagem e dano no se estendem alm de
A e B; a atividade reside entre eles; privada. No entanto, se for constatado que as
conseqncias da conversa se estendem alm dos dois diretamente envolvidos,
que elas afetam o bem-estar de muitos outros, a ao adquire uma condio
pblica, quer a conversa seja realizada por um rei e seu primeiro-ministro ou por
Catilina e um companheiro conspirador ou por comerciantes planejando
monopolizar um mercado.Assim, a distino entre privado e pblico de modo algum equivalente
distino entre individual e social, mesmo se supusermos que a segunda distino
tem um significado definido. Muitas aes privadas so sociais; suas
conseqncias contribuem para o bem-estar da comunidade ou afetam sua
situao e expectativas. No sentido amplo qualquer transao deliberadamente
realizada entre duas ou mais pessoas social por natureza. uma forma de
comportamento associado e suas conseqncias podem influenciar associaesadicionais. Um homem pode ajudar outros, mesmo na comunidade em geral, a
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fazer um negcio privado. At certo ponto verdade, como Adam Smith afirmou,
que a nossa mesa do caf da manh mais bem provida pelo resultado
convergente das atividades de agricultores, merceeiros e aougueiros realizando
negcios privados visando lucro privado do que seria se fssemos servidos com
base em filantropia ou esprito pblico. As comunidades tm sido abastecidas com
obras de arte e descobertas cientficas por causa do prazer pessoal encontrado por
pessoas privadas em envolverem-se nessas atividades. H filantropos privados
que agem para que pessoas carentes ou para que a comunidade como um todo se
beneficie com fundos doados para bibliotecas, hospitais e instituies de ensino.
Em suma, aes privadas podem ser socialmente valiosas tanto pelas
conseqncias indiretas como pela inteno direta.No h, portanto, nenhuma conexo necessria entre o carter privado de uma
ao e seu carter no-social ou anti-social. O pblico, alm disso, no pode ser
identificado com o socialmente til. Uma das atividades mais regulares da
comunidade politicamente organizada tem sido guerrear. At mesmo o mais
belicoso dos militaristas dificilmente afirmar que todas as guerras foram
socialmente teis ou negar que algumas foram to destrutivas dos valores sociais
que teria sido infinitamente melhor se elas no tivessem sido travadas. O
argumento para a no-equivalncia do pblico e do social, em qualquer sentido
louvvel de social, no se baseia somente no caso da guerra. No h ningum,
suponho, to apaixonado pela ao poltica a ponto de afirmar que ela nunca
tenha sido mope, tola e prejudicial. H tambm aqueles que afirmam que a
presuno sempre de que o prejuzo social resultar de agentes do pblico
fazendo qualquer coisa que poderia ser feita por pessoas em sua condio privada.H muitos mais que afirmam que algumas atividades pblicas especiais so
prejudiciais sociedade, sejam elas protecionismo, uma tarifa protecionista ou o
significado ampliado dado Doutrina Monroe. De fato, toda controvrsia poltica
sria gira em torno da questo de se uma determinada ao poltica socialmente
benfica ou prejudicial.
Assim como o comportamento no anti-social ou no-social porque foi realizado
privadamente, ele no necessariamente valioso socialmente porque foi realizadoem nome do pblico por agentes pblicos. O argumento no nos levou muito
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longe, mas pelo menos ele nos desaconselhou a identificar a comunidade e seus
interesses com o Estado ou com a comunidade politicamente organizada. E a
diferenciao nos pode tornar dispostos a olhar com mais aprovao a proposta j
apresentada: isto , que o limite entre privado e pblico deve ser fixado com base
na extenso e no escopo das conseqncias das aes que so to importantes a de
modo a precisarem de controle, seja por inibio ou por promoo. Distinguimos
prdios privados e pblicos, escolas privadas e pblicas, vias privadas e rodovias
pblicas, bens privados e fundos pblicos, pessoas particulares e agentes pblicos.
a nossa tese que nessa distino ns encontramos a chave da natureza e da
funo do Estado. No sem importncia que etimologicamente privado
definido em oposio a oficial, uma pessoa particular sendo uma pessoa privadada posio pblica. O pblico consiste em todos aqueles que so afetados pelas
conseqncias indiretas das transaes a tal ponto que se considera necessrio ter
essas conseqncias tratadas sistematicamente. Os agentes pblicos so aqueles
que cuidam dos interesses assim afetados e os protegem. Como aqueles que so
indiretamente afetados no so participantes diretos das transaes em questo,
necessrio que certas pessoas sejam reservadas para represent-los e para
providenciar para que seus interesses sejam conservados e protegidos. Os prdios,
propriedades, fundos e outros recursos fsicos envolvidos na execuo dessa
funo so res publica, coisa pblica. O pblico, enquanto organizado por meio de
agentes pblicos e agncias materiais para cuidar das vastas e contnuas
conseqncias indiretas das transaes entre as pessoas, o Populus.
lugar-comum que as agncias legais para proteo das pessoas e das
propriedades dos membros de uma comunidade e reparao das ofensas que elassofrem nem sempre existiram. As instituies jurdicas originam-se de um perodo
antigo no qual o direito auto-ajuda era costume. Se uma pessoa fosse
prejudicada, dependia estritamente dela o que fazer para acertar as contas. Lesar o
outro e exigir uma pena por uma leso recebida eram transaes privadas. Elas
diziam respeito queles diretamente envolvidos e no eram da conta de mais
ningum. Mas a parte lesada obtinha prontamente a ajuda de amigos e parentes e
o agressor fazia o mesmo. Portanto, as conseqncias da disputa nopermaneciam limitadas queles imediatamente envolvidos. As hostilidades se
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seguiam e a rixa sangrenta poderia implicar grandes nmeros e perdurar por
geraes. O reconhecimento dessa vasta e duradoura disputa e o dano causado
por ela a famlias inteiras trouxeram um pblico existncia. A transao deixou
de envolver apenas as partes imediatas dela. Aqueles indiretamente afetados
formaram um pblico que tomou providncias para conservar os interesses
instituindo um acordo e outros meios de pacificao para localizar o problema.
Os fatos so simples e familiares. Mas eles parecem apresentar em forma
embrionria os traos que definem um Estado, suas reparties e seus oficiais. O
exemplo ilustra o que se queria dizer quando foi dito que uma falcia tentar
determinar a natureza do Estado em termos de fatores causais diretos. O seu
ponto essencial tem a ver com as vastas e duradouras conseqncias docomportamento, que como todo comportamento decorre, em ltima anlise, de
seres humanos individuais. O reconhecimento das conseqncias ms trouxe
tona um interesse comum que exigia, para sua manuteno, certas medidas e
regras, assim como a seleo de certas pessoas como seus guardies, intrpretes e,
se necessrio, seus executores.
Se a perspectiva apresentada estiver de alguma forma na direo certa, ela explica
a lacuna j mencionada entre os fatos da ao poltica e as teorias do Estado. Os
homens tm procurado no lugar errado. Eles buscaram a chave da natureza do
Estado no campo das agncias, naquele dos autores dos feitos ou em alguma
vontade ou propsito por trs dos feitos. Eles tentaram explicar o Estado em
termos de autoria. Basicamente, todas as escolhas deliberadas provm de algum
em particular; as aes so realizadas por algum, e todos os arranjos e planos so
feitos por algum no sentido mais concreto de algum. Algum Fulano e Beltranofiguram em qualquer transao. No devemos, portanto, encontrar o pblico se o
procurarmos no lado dos originadores de aes voluntrias. Um certo John Smith
e seus congneres decidem se devem ou no cultivar trigo e quanto, onde e como
investir o dinheiro, que estradas construir e percorrer, se devem guerrear e, em
caso positivo, como, que leis promulgar e quais obedecer e desobedecer. A
alternativa real s aes deliberadas dos indivduos no a ao do pblico; so
aes rotineiras, impulsivas e outras irrefletidas tambm realizadas porindivduos.
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Os seres humanos individuais podem perder a sua identidade em uma turba, em
uma conveno poltica, em uma sociedade por aes ou nas urnas. Mas isso no
significa que uma certa agncia coletiva misteriosa esteja tomando as decises,
mas que algumas poucas pessoas que sabem o que esto fazendo esto se
aproveitando da fora em massa para conduzir a turba a seu modo, chefiar uma
mquina poltica e administrar os negcios de um empreendimento corporativo.
Quando o pblico ou o Estado est envolvido em fazer planos sociais como
promulgar leis, fazer cumprir um contrato, conferir uma licena, ele ainda age
atravs de pessoas concretas. As pessoas so agora oficiais, representantes de um
pblico e do interesse compartilhado. A diferena importante. Mas no uma
diferena entre simples seres humanos e uma vontade impessoal coletiva. entrepessoas em seu carter privado e em seu carter oficial ou representativo. A
qualidade apresentada no autoria, mas autoridade, a autoridade das
conseqncias reconhecidas de controlar o comportamento que gera e evita
resultados vastos e duradouros de prosperidade e misria. Os funcionrios
pblicos so de fato agentes pblicos, mas agentes no sentido de fatores fazendo o
negcio de outros ao garantir e prevenir conseqncias que dizem respeito a eles.
Quando procuramos no lugar errado, naturalmente no encontramos o que
estamos procurando. No entanto, o pior disso que ao procurar no lugar errado,
por foras causais em vez de conseqncias, o resultado da busca se torna
arbitrrio. No h controle sobre isso. A interpretao flui desenfreadamente.
Da a variedade de teorias conflitantes e a falta de consenso de opinio. Poderia-se
argumentar a priori que o conflito contnuo de teorias sobre o Estado a prpria
prova de que o problema tem sido erroneamente colocado. Pois, como observamosanteriormente, os principais fatos da ao poltica, embora os fenmenos variem
imensamente com a diversidade de tempo e lugar, no esto ocultos mesmo
quando so complexos. Eles so fatos do comportamento humano acessveis
observao humana. A existncia de uma multido de teorias contraditrias do
Estado, o que to desnorteante do ponto de vista das prprias teorias,
prontamente explicvel assim que vemos que todas as teorias, apesar de suas
divergncias umas com as outras, se originam da raiz de um erro compartilhado:
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considerar o agenciamento causal como o cerne do problema, ao invs das
conseqncias.
Considerando essa atitude e postulado, alguns homens em algum momento
encontraro o agenciamento causal em um esforo metafsico atribudo natureza;
e o Estado ser ento explicado em termos de uma essncia do homem
realizando-se em um fim da Sociedade aperfeioada. Outros, influenciados por
outras pr-concepes e outros desejos, encontraro o autor requerido na vontade
de Deus reproduzindo atravs do veculo da humanidade decada tal imagem de
ordem e justia divina conforme o material corrompido permitir. Outros procuram
isso em um encontro das vontades dos indivduos que se renem e por contrato
ou promessa mtua de lealdades trazem um Estado existncia. No obstanteoutros encontram isso em uma vontade autnoma e transcendente personificada
em todos os homens como um universal dentro dos seus seres particulares, uma
vontade que por sua natureza interna ordena o estabelecimento de condies
externas nas quais possvel que a vontade expresse externamente a sua
liberdade. Outros encontram isso no fato de que a mente ou razo ou um
atributo da realidade ou a prpria realidade, enquanto eles se compadecem de que
a diferena e pluralidade das mentes, a individualidade, uma iluso atribuvel ao
sentido ou meramente uma aparncia em contraste com a realidade monstica da
razo. Quando vrias opinies provm de um erro comum e compartilhado, uma
to boa quanto a outra, e os acidentes da educao, temperamento, interesse de
classe e as circunstncias dominantes da poca decidem qual adotada. A razo
s entra em cena para encontrar justificativa para a opinio que foi adotada, ao
invs de analisar o comportamento humano com respeito s suas conseqncias emoldar a poltica de acordo com elas. uma velha estria que a filosofia natural
progrediu constantemente s depois de uma revoluo intelectual. Isso consistiu
em abandonar a busca por causas e foras e voltar-se para a anlise do que est
acontecendo e de como isso acontece. A filosofia poltica ainda precisa, em grande
medida, levar a srio essa lio.
A falha em notar que o problema perceber as conseqncias da ao humana de
um modo completo e distinto (incluindo negligncia e inao) e instituir medidase meios de dar importncia a essas conseqncias no se restringe produo de
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teorias conflitantes e irreconciliveis do Estado. Esta falha tambm teve o efeito de
deturpar as vises daqueles que, at certo ponto, perceberam a verdade.
Afirmamos que todas as escolhas e planos deliberados so por fim o trabalho de
simples seres humanos. Concluses completamente falsas foram tiradas dessa
observao. Pensando ainda em termos de foras causais, tirou-se desse fato a
concluso de que o Estado, o pblico, uma fico, uma mscara para desejos
privados de poder e cargos. No s o Estado, mas a prpria sociedade foi
pulverizada em um agregado de desejos e vontades no-relacionadas. Como
conseqncia lgica, o Estado concebido ou como pura opresso, nascido do
poder arbitrrio e sustentado pela fraude, ou como um agrupamento das foras de
homens ss em uma fora massiva que pessoas sozinhas so incapazes de resistir,sendo o agrupamento uma medida de desespero, j que sua nica alternativa o
conflito de todos contra todos que gera uma vida desamparada e bruta. Assim, o
Estado aparece como um monstro a ser destrudo ou como um Leviat a ser
apreciado. Em suma, sob a influncia da principal falcia de que o problema do
Estado refere-se foras causais, o individualismo foi gerado como um ismo,
como uma filosofia.
Embora a doutrina seja falsa, ela parte de um fato. Necessidades, escolhas e
objetivos tm seu lcus em seres isolados: o comportamento que manifesta desejo,
inteno e determinao decorre deles em sua singularidade. Mas somente a
preguia intelectual nos leva a concluir que uma vez que a forma de pensamento e
deciso individual, o seu contedo, o seu tema, tambm algo puramente
pessoal. Mesmo se a conscincia fosse a matria inteiramente privada que a
tradio individualista na filosofia e na psicologia supe que ela seja, ainda seriaverdade que a conscincia de objetos, no de si mesma. A associao no sentido
de conexo e combinao uma lei de tudo que se sabe existir. Coisas singulares
agem, mas elas agem juntas. Nada foi descoberto que aja em isolamento total. A
ao de todas as coisas se d junto com a ao de outras coisas. O junto com
de tal modo que o comportamento de cada um modificado pela sua conexo com
os outros. H rvores que apenas podem crescer em uma floresta. As sementes de
muitas plantas apenas podem germinar com sucesso e se desenvolver sobcondies fornecidas pela presena de outras plantas. A reproduo da mesma
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espcie depende das atividades de insetos que causam a fertilizao. O ciclo de
vida de uma clula animal condicionado conexo com o que as outras clulas
esto fazendo. Os eltrons, tomos e molculas exemplificam a onipresena do
comportamento conjunto.
No h mistrio sobre o fato da associao, de uma ao interconectada que afeta a
atividade de elementos singulares. No h sentido em perguntar como os
indivduos se tornam associados. Eles existem e operam em associao. Se h
algum mistrio sobre esse assunto, o mistrio de que o universo seja o tipo de
universo que . Tal mistrio no poderia ser explicado sem ir para fora do
universo. E se algum fosse a uma fonte externa para elucid-lo, algum lgico,
sem um saque excessivo contra a sua ingenuidade, observaria que o estranho teriaque estar conectado ao universo a fim de explicar qualquer coisa nele. Ainda
estaramos exatamente onde comeamos, com o fato da conexo como um fato a
ser aceito.
H, no entanto, uma questo inteligvel sobre a associao humana: no a
questo de como indivduos ou seres singulares se tornam conectados, mas como
eles se tornam conectados exatamente daquelas maneiras que do s comunidades
humanas traos to diferentes daqueles que marcam conjuntos de eltrons, unies
de rvores nas floretas, enxames de insetos, bandos de ovelhas e constelaes de
estrelas. Quando consideramos a diferena, imediatamente nos deparamos com o
fato de que as conseqncias da ao conjunta adquirem um novo valor quando
so observadas. Pois a observao dos efeitos da ao conectada fora os homens a
refletirem sobre a prpria conexo; ela a torna um objeto de ateno e interesse.
Cada um age, na medida em que a conexo conhecida, em vista da conexo. Osindivduos ainda pensam, desejam e propem, mas o que eles pensam nas
conseqncias do seu comportamento sobre o dos outros e no dos outros sobre
eles mesmos.
Todo ser humano nasce um beb. imaturo, desamparado, dependente das
atividades dos outros. Que muitos desses seres dependentes sobrevivam prova
de que outros, de alguma forma, cuidam deles. Seres maduros e mais bem
preparados esto cientes das conseqncias de suas aes sobre as aes dos maisnovos. Eles no apenas agem conjuntamente com eles, mas agem naquele tipo
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especial de associao que manifesta interesse nas conseqncias da sua conduta
sobre a vida e crescimento dos jovens.
A existncia fisiolgica continuada dos jovens apenas uma fase do interesse nas
conseqncias da associao. Os adultos esto igualmente preocupados em agir
para que os imaturos aprendam a pensar, sentir, desejar e habitualmente se
comportem de certas formas. No a menor das conseqncias que so buscadas
que os jovens devem eles mesmos aprender a julgar, propor e escolher do ponto
de vista do comportamento associado e suas conseqncias. Na verdade,
freqentemente esse interesse toma a forma de esforos para fazer com que os
jovens acreditem e planejem assim como os adultos fazem. S este exemplo j
suficiente para mostrar que embora seres singulares na sua singularidade pensem,queiram e decidam, o que eles pensam e aquilo pelo que se esforam, o contedo
de suas crenas e intenes, algo dado pela associao. Assim, o homem no
meramente associado de facto, mas ele se torna um animal social na construo de
suas idias, sentimentos e comportamento deliberado. O que ele acredita, espera e
almeja o resultado da associao e do intercurso. A nica coisa que traz
obscuridade e mistrio na influncia da associao sobre o que pessoas individuais
querem e pelo que agem o esforo para descobrir foras causais supostas,
especiais, originais, formadoras da sociedade, sejam elas instintos, acordos de
vontade, razo pessoal ou imanente, universal, prtica, ou uma essncia e
natureza social, interior, metafsica. Essas coisas no explicam, pois so mais
misteriosas do que os fatos que so evocadas para explicar. Os planetas em uma
constelao formariam uma comunidade se eles fossem cientes das conexes das
atividades de cada um com as dos outros e se pudessem usar esse conhecimentopara dirigir o comportamento.
Fizemos uma digresso da considerao do Estado para o tpico mais amplo da
sociedade. No entanto, o excurso nos permite distinguir o Estado de outras formas
de vida social. H uma antiga tradio que considera o Estado e a sociedade
completamente organizada como sendo a mesma coisa. Dizem que o Estado a
realizao completa e inclusiva de todas as instituies sociais. Quaisquer valores
que resultem de todo e qualquer arranjo social so reunidos e tomados comotrabalho do Estado. A contrapartida desse mtodo aquele anarquismo filosfico
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que rene todos os males que resultam de todas as formas de agrupamento
humano e os atribui en masse ao Estado, cuja eliminao ento traria um milnio
de organizao fraternal voluntria. Que o Estado seja para alguns uma divindade
e para outros um demnio outra evidncia dos defeitos das premissas das quais
a discusso parte. Uma teoria to indiscriminada quanto a outra.
H, no entanto, um critrio definido pelo qual demarcar o pblico organizado de
outras formas de vida em comunidade. As amizades, por exemplo, so formas
no-polticas de associao. Elas so caracterizadas por um sentido ntimo e sutil
dos frutos do intercurso. Elas contribuem para a experincia com alguns de seus
valores mais preciosos. Somente as exigncias de uma teoria preconcebida
confundiriam com o Estado a textura de amizades e vnculos, os quais so oprincipal lao em qualquer comunidade, ou insistiriam que o primeiro depende da
segunda para existir. Os homens tambm se agrupam para investigao cientfica,
para culto religioso, produo artstica e diverso, para o esporte, para dar e
receber instruo, para empreendimentos industriais e comerciais. Em cada caso
uma ao combinada ou conjunta, que cresceu a partir de condies naturais,
isto , biolgicas, e da vizinhana local, resulta em produzir conseqncias
distintivas isto , conseqncias que diferem em espcie daquelas do
comportamento isolado.
Quando essas conseqncias so intelectual e emocionalmente percebidas, um
interesse compartilhado gerado e a natureza do comportamento interconectado
por meio disso transformada. Cada forma de associao tem sua prpria
qualidade e valor peculiar, e nenhuma pessoa de posse de seus sentidos confunde
uma com a outra. A caracterstica do pblico como um Estado decorre do fato deque todos os modos de comportamento associado podem ter conseqncias vastas
e duradouras que envolvam outros alm daqueles diretamente envolvidos neles.
Quando essas conseqncias so por sua vez percebidas em pensamento e
sentimento, o reconhecimento delas reage para refazer as condies das quais elas
surgiram. Deve-se cuidar das conseqncias e se prestar ateno a elas. Essa
superviso e regulao no podem ser efetuadas pelos prprios agrupamentos
primrios. Pois a essncia das conseqncias que do existncia a um pblico ofato de que elas se expandem alm daqueles diretamente envolvidos em produzi-
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amplie dessa forma o escopo do Estado a ponto de levar a tal concluso
meramente o torna um nome para a totalidade de todos os tipos de associaes.
No momento em que tomamos a palavra de forma to indefinidamente assim,
imediatamente necessrio distinguir, dentro dela, o Estado em seu usual sentido
poltico e jurdico. Por outro lado, se somos tentados a eliminar ou desconsiderar o
Estado, podemos pensar em Pricles, Alexandre, Jlio e Augusto Csar, Elizabeth,
Cromwell, Richelieu, Napoleo, Bismarck e centenas de nomes desse tipo. Supe-
se que eles tenham tido uma vida privada, mas quo insignificantemente ela
importa em comparao com a ao deles como representantes de um Estado!
Essa concepo de Estado no implica nenhuma crena quanto propriedade ou
justeza de qualquer ato poltico, medida ou sistema especfico. As observaes dasconseqncias so, pelo menos, to sujeitas a erro e iluso quanto a percepo dos
objetos naturais. Julgamentos sobre o que fazer para regul-las e como faz-lo so
to falveis quanto outros planos. Os erros se acumulam e se consolidam em leis e
mtodos de administrao que so mais prejudiciais do que as conseqncias que
eles originalmente pretendiam controlar. E como toda a histria poltica mostra, o
poder e o prestgio que acompanham o comando de um cargo oficial tornam o
governo algo a ser compreendido e explorado em seu prprio interesse. O poder
para governar distribudo por acidente de nascimento ou pela posse de
qualidades que habilitam uma pessoa a obter um cargo oficial, mas que so
bastante irrelevantes para a execuo de suas funes representativas. Mas a
necessidade que provoca a organizao do pblico por meio de governantes e
agncias de governo persiste e at certo ponto encarnada no fato poltico. Tal
progresso, como registrado pela teoria poltica, depende do surgimento luminosode alguma idia na massa de irrelevncias que o obscurece e atravanca. Assim
uma reconstruo ocorre, fornecendo funo rgos mais adequados ao seu
cumprimento. O progresso no constante e contnuo. O retrocesso to
peridico quanto o avano. A indstria e as invenes da tecnologia, por exemplo,
criam meios que alteram as formas de comportamento associado e que mudam
radicalmente a quantidade, o carter e o lugar de impacto das suas conseqncias
indiretas.
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Essas mudanas so extrnsecas s formas polticas que, uma vez estabelecidas,
persistem com sua prpria fora. O novo pblico que gerado permanece
longamente disforme e desorganizado, uma vez que ele no pode usar os
agenciamentos polticos herdados. Os ltimos, se elaborados e bem
institucionalizados, obstruem a organizao do novo pblico. Elas impedem o
desenvolvimento de novas formas de Estado que poderiam crescer rapidamente se
a vida social fosse mais fluida, menos precipitada em moldes polticos e jurdicos
estabelecidos. Para se formar, o pblico precisa romper com as formas polticas
existentes. Isso difcil de fazer porque essas prprias formas so o meio usual
para se instituir mudanas. O pblico que gerou as formas polticas est se
findando, mas o poder e a avidez de posse permanece nas mos dos oficiais einstituies constitudas por esse pblico em vias de morte. por isso que a
mudana de forma dos Estados to freqentemente realizada apenas por meio
de revoluo. A criao de mecanismos polticos e jurdicos adequadamente
flexveis e responsivos esteve, at agora, alm da capacidade do homem. Uma
poca na qual as necessidades de um novo pblico em formao forem frustradas
pelas formas estabelecidas de Estado uma poca em que h crescente descrdito
e desconsiderao do Estado. Apatia geral, negligncia e desprezo encontram
expresso no recurso a vrios atalhos para a ao direta. E a ao direta tomada
por muitos outros interesses do que aqueles que empregam a ao direta como
um slogan, com freqncia mais energicamente por interesses de classe arraigados
que professam a maior reverncia pela lei e ordem estabelecida do Estado
existente. Por sua prpria natureza, um Estado sempre algo a ser escrutinado,
investigado e examinado. Quase sempre, assim que sua forma estabilizada, eleprecisa ser refeito.
Assim, o problema de descobrir o Estado no um problema para investigadores
tericos envolvidos unicamente em estudar instituies que j existem. um
problema prtico de seres humanos vivendo em associao uns com os outros, da
humanidade genericamente. um problema complexo. Ele exige poder para
perceber e reconhecer as conseqncias do comportamento dos indivduos unidos
em grupos e para localiz-las em sua fonte e origem. Isso envolve a seleo depessoas para servir como representantes dos interesses criados por essas
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conseqncias percebidas e para definir as funes que devero possuir e
empregar. Isso exige a instituio de um governo tal que aqueles que tm a
reputao e o poder que acompanham o exerccio dessas funes devem empreg-
las para o pblico e no utiliz-las para seu prprio benefcio privado. No de se
admirar, portanto, que os Estados tenham sido muitos, no somente em nmero,
mas em tipo e espcie. Pois existiram inmeras formas de atividade conjunta com
conseqncias correspondentemente diversas. O poder para detectar as
conseqncias tem variado especialmente com os instrumentos de conhecimento
disponveis. Governantes tm sido escolhidos com base em toda sorte de
fundamentos diferentes. Suas funes tm variado e tambm variaram sua
vontade e zelo de representar os interesses comuns. Somente as exigncias de umafilosofia rgida podem nos levar a supor que h uma nica forma ou idia de O
Estado que esses Estados histricos multiformes realizaram em vrios graus de
perfeio. A nica afirmao que pode ser feita puramente formal: o Estado a
organizao do pblico realizada atravs de agentes pblicos para a proteo dos
interesses compartilhados por seus membros. Mas o que o pblico pode ser, o que
os agentes pblicos so, quo adequadamente eles cumprem sua funo, so
coisas que temos que recorrer histria para descobrir.
No entanto, nossa concepo fornece um critrio para determinar quo bom um
determinado Estado : isto , o grau de organizao do pblico que atingido, e o
grau no qual seus oficiais so constitudos para cumprir sua funo de cuidar dos
interesses pblicos. Mas no h uma regra a priori que possa ser estabelecida que
assegure pelo seu cumprimento a criao de um bom Estado. O mesmo pblico
no existe em dois momentos ou lugares. As condies tornam diferentes asconseqncias da ao associada e do conhecimento delas. Alm disso, os meios
pelos quais um pblico pode induzir o governo a servir seus interesses variam.
Apenas formalmente podemos dizer como o melhor Estado seria. Concretamente,
em organizao e estrutura real e concreta, no h nenhuma forma de Estado que
possamos dizer ser a melhor: pelo menos no at que a histria tenha terminado e
se possa pesquisar todas as suas variadas formas. A formao dos Estados deve
ser um processo experimental. O processo experimental deve continuar comdiversos graus de cegueira e acidente, e ao custo dos procedimentos
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desregulamentados de tentativa e erro, de tatear e tentear, sem clareza quanto ao
que os homens esto em busca e sem conhecimento claro do que seja um bom
Estado mesmo quando ele for alcanado. Ou ele pode continuar mais
inteligentemente, orientado pelo conhecimento das condies que devem ser
atendidas. Mas ainda experimental. E como as condies da ao, da
investigao e do conhecimento esto sempre mudando, o experimento deve ser
sempre reexperimentado; o Estado deve ser sempre redescoberto. Exceto, mais
uma vez, na afirmao formal das condies a serem atendidas, no temos idia
do que a histria ainda pode produzir. No funo da filosofia e cincia polticas
determinar como o Estado em geral deve ser ou precisa ser. O que elas podem
fazer ajudar na criao de mtodos para que a experimentao possa continuarmenos cegamente, menos merc de acidentes, mais inteligentemente, de modo
que os homens possam aprender com seus erros e se beneficiar com seus xitos. A
crena na fixidez poltica, na santidade de alguma forma de Estado consagrado
pelos esforos de nossos antepassados e santificado pela tradio, um dos
obstculos no caminho da mudana ordenada e direcionada; um convite
revolta e revoluo.
Uma vez que o argumento caminhou de um lado para outro, ele agora conduzir
clareza para resumir suas etapas. A ao conjunta, combinada e associada uma
caracterstica universal do comportamento das coisas. Tal ao tem resultados.
Alguns dos resultados da ao coletiva humana so percebidos, isto , so
observados de algumas formas que so levadas em considerao. Ento surgem
propsitos, planos, medidas e meios para garantir as conseqncias que so
apreciadas e eliminar aquelas que so consideradas ruins. Assim, a percepo geraum interesse comum; isto , aqueles afetados pelas conseqncias esto
necessariamente envolvidos na conduta de todos aqueles que com eles
compartilham a produo dos resultados. s vezes as conseqncias so limitadas
queles que compartilham diretamente a transao que as produz. Em outros
casos, elas se estendem muito alm daqueles imediatamente envolvidos em
produzi-las. Assim, dois tipos de interesses e de medidas de regulao das aes
so gerados em vista das conseqncias. No primeiro, interesse e controle solimitados queles diretamente envolvidos; no segundo, eles se estendem queles
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que no compartilham diretamente a realizao das aes. Se, ento, o interesse
constitudo por serem afetados pelas aes em questo tiver alguma influncia
prtica, o controle sobre as aes que as produz deve ocorrer por algum meio
indireto.
At agora as afirmaes, alega-se, propem questes de fato real e verificvel.
Agora segue a hiptese. Aqueles indireta e seriamente afetados por bem ou por
mal formam um grupo suficientemente distinto para exigir reconhecimento e um
nome. O nome escolhido O Pblico. Esse pblico organizado e tornado efetivo
por meio de representantes que, como guardies do costume, como legisladores,
como membros do executivo, juzes, etc. cuidam de seus interesses especiais por
mtodos destinados a regular as aes conjuntas dos indivduos e grupos. Ento, eat certo ponto, a associao acrescenta a ela mesma organizao poltica e algo
que pode vir a ser governo passa a existir: o pblico um estado poltico.
A confirmao direta da hiptese encontrada na exposio das sries de fatos
observveis e verificveis. Estes constituem condies que so suficientes para
explicar, acredita-se, os fenmenos caractersticos da vida poltica ou da atividade
do Estado. Se explicam, desnecessrio procurar outra explicao. Para concluir,
duas restries devem ser acrescentadas. A explicao que acaba de ser dada tem a
inteno de ser genrica; conseqentemente, ela esquemtica e omite muitas
condies diferenciais, algumas das quais recebem ateno em captulos
posteriores. O outro ponto que na parte negativa do argumento, o ataque s
teorias que explicariam o Estado por meio de foras causais e agncias especiais,
no h a negao de relaes causais ou conexes entre os prprios fenmenos.
Isso obviamente suposto em cada ponto. No pode haver conseqncias emedidas para regulamentar o modo e a qualidade da ocorrncia deles sem o nexo
causal. O que negado um apelo a foras especiais fora da srie de fenmenos
conectados observveis. Tais poderes causais no so diferentes em espcie das
foras ocultas das quais a cincia fsica teve que se emancipar. Na melhor das
hipteses, eles so apenas fases dos prprios fenmenos relacionados que so
ento empregados para explicar os fatos. O que necessrio para conduzir e
realizar uma investigao social frutfera um mtodo que proceda com base nas
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inter-relaes das aes observveis e de seus resultados. Este o cerne do mtodo
que propomos seguir.
Excertos de O pblico e seus problemas (1927). Cf. Hickman, Larry A. &Alexander, Thomas. The Essential Dewey, vol. 1: Pragmatism, Education, Democracy.Bloomington: Indiana University Press, 1998: pp. 281-292. A meno, contida nolivro acima, obra de Dewey [LW 2: 238-258] se refere ao volume e s pginas dasLater Works: 1925-1953 in Boydston, Jo Ann (ed.). The Collected Works of JohnDewey, 1882-1953. Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois UniversityPress, 1969-1991.
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Em busca da grande comunidade (1927)
J tivemos a oportunidade de nos referir, de passagem, distino entre
democracia como uma idia social e democracia poltica como um sistema de
governo. As duas esto, claro, conectadas. A idia permanece infecunda e vazia,
exceto quando ela encarnada nas relaes humanas. No entanto, na discusso
elas devem ser distinguidas. A idia de democracia uma idia mais ampla e mais
plena que pode ser exemplificada no Estado. Para ser percebida ela deve afetartodas as formas de associao humana, a famlia, a escola, a indstria, a religio. E
mesmo no que diz respeito s organizaes polticas, as instituies
governamentais so apenas um mecanismo para garantir a uma idia canais de
operao efetiva. Dificilmente adiantar dizer que as crticas ao mecanismo
poltico deixam aquele que acredita na idia intocado. Pois, at onde elas so
justificadas e ningum que acredite na idia sinceramente pode negar que
muitas dessas crticas so muito bem fundamentadas elas o levam a se
movimentar para que a idia possa encontrar um mecanismo mais adequado por
meio do qual operar. O que aquele que tem f na idia insiste, no entanto, que a
mesma e seus rgos e estruturas externas no sejam identificados. Ns objetamos
a suposio comum dos inimigos do governo democrtico existente de que as
acusaes contra ele dizem respeito s aspiraes e idias sociais e morais que
subjazem s formas polticas. O velho ditado que a cura para os males dademocracia mais democracia no adequado se ele significa que os males
podem ser remediados introduzindo-se mais mecanismos do mesmo tipo daquele
que j existe, ou refinando e aperfeioando esse mecanismo. Mas a expresso
tambm pode indicar a necessidade de voltar prpria idia, de esclarecer e
aprofundar nossa compreenso sobre ela e de empregar nossa percepo do seu
significado para criticar e refazer suas manifestaes polticas.
Limitando-nos, por enquanto, democracia poltica, devemos, em todo o caso,renovar nosso protesto contra a suposio de que a idia tenha, ela mesma,
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produzido as prticas governamentais que existem nos Estados democrticos:
sufrgio universal, representantes eleitos, regra da maioria e assim por diante. A
idia influenciou o movimento poltico concreto, mas ela no o causou. A transio
do governo familiar e dinstico apoiado pela lealdade da tradio para o governo
popular foi principalmente resultado das descobertas e invenes tecnolgicas que
efetuaram uma mudana nos costumes por meio dos quais os homens se juntaram
uns aos outros. No foi devido s doutrinas dos doutrinrios. As formas s quais
estamos acostumados nos governos democrticos representam o efeito cumulativo
de uma multitude de eventos, no-premeditados no que dizia respeito aos efeitos
polticos, e tendo conseqncias imprevisveis. No h nenhuma santidade no
sufrgio universal, nas eleies peridicas, na regra da maioria, no governo degabinete ou congressual. Essas coisas so mecanismos desenvolvidos na direo
da corrente, na qual cada onda envolvia, no momento da sua impulso, um
mnimo de afastamento dos costumes e do direito antecedentes. Os mecanismos
serviam a um propsito; mas o propsito era, em vez disso, o de atender s
necessidades existentes que tinham se tornado intensas demais para serem
ignoradas, em vez do propsito de promover a idia democrtica. Apesar de todos
os defeitos, eles serviram bem ao seu prprio propsito.
Olhando para trs, com a ajuda que a experincia ex posto facto pode dar, seria
difcil para o mais sbio inventar projetos que, em tais circunstncias, teriam
atendido melhor s necessidades. Nesse olhar retrospectivo, possvel, no
entanto, ver como as formulaes doutrinrias que os acompanharam eram
inadequadas, unilaterais e inegavelmente errneas. De fato, elas no eram mais do
que gritos de guerra polticos adotados para ajudar a realizar alguma agitaoimediata ou justificar alguma forma determinada de organizao poltica prtica
lutando por reconhecimento, embora fossem declaradas como sendo verdades
absolutas da natureza humana ou de moral. As doutrinas serviram a uma
determinada necessidade pragmtica local. Mas com freqncia a sua prpria
adaptao s circunstncias imediatas as incapacitavam, pragmaticamente, a
atender necessidades mais duradouras e vastas. Elas viveram para obstruir o
terreno poltico, impedindo o progresso, sobretudo porque elas erampronunciadas e consideradas no como hipteses para conduo da
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experimentao social, mas como verdades finais, dogmas. No de admirar que
elas precisem urgentemente de reviso e destituio.
No entanto, a corrente se estabeleceu firmemente em uma direo: rumo s formas
democrticas. Que o governo existe para servir sua comunidade e que esse
propsito no pode ser alcanado a menos que a prpria comunidade compartilhe
a escolha de seus governantes e a determinao de suas polticas consistem em
depsitos de fatos deixados, at onde podemos ver, permanentemente como
resultado das doutrinas e formas, por mais transitria que sejam as ltimas. As
formas no so a totalidade da idia democrtica, mas elas a expressam em sua
fase poltica. A crena nesse aspecto poltico no uma f mstica como a f em
alguma providncia governante que cuida das crianas, dos bbados e de outrosincapazes de se ajudarem. Ela marca uma concluso bem atestada a partir de fatos
histricos. Temos todos os motivos para pensar que sejam quais forem as
mudanas que possam ocorrer no mecanismo democrtico existente, elas sero de
modo a tornar o interesse do pblico um guia e critrio mais supremo da
atividade governamental e a habilitar o pblico a formar e manifestar seus
objetivos ainda mais imperativamente. Nesse sentido, a cura para os males da
democracia mais democracia. A principal dificuldade, como vimos, descobrir
os meios pelos quais um pblico disperso, inconstante e mltiplo possa se
reconhecer de forma a definir e expressar seus interesses. Essa descoberta deve
necessariamente preceder qualquer mudana fundamental no mecanismo. No
estamos preocupados, portanto, em dar conselhos sobre melhorias aconselhveis
nas formas polticas da democracia. Muitas foram sugeridas. No nenhuma
depreciao do seu valor relativo dizer que a considerao dessas mudanas no ,atualmente, algo de fundamental importncia. O problema mais profundo; , em
primeira instncia, um problema intelectual: a busca das condies sob as quais a
Grande Sociedade pode se tornar a Grande Comunidade. Quando essas condies
passarem a existir elas faro as suas prprias formas. At que ocorram, um tanto
intil considerar que mecanismo poltico convir a elas.
Na busca das condies sob as quais o pblico amorfo agora existente possa
funcionar democraticamente, podemos partir de uma declarao da natureza daidia democrtica em seu sentido social genrico (1). Do ponto de vista do
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indivduo, ela consiste em ter uma parte responsvel de acordo com a capacidade
de formar e dirigir as atividades dos grupos aos quais se pertence e em participar
conforme a necessidade dos valores que os grupos sustentam. Do ponto de vista
dos grupos, isso exige a liberao das potencialidades dos membros de um grupo
em harmonia com os interesses e bens que so comuns. Como todo indivduo
um membro de muitos grupos, essa especificao no pode ser satisfeita exceto
quando grupos diferentes interagem flexvel e plenamente junto com outros
grupos. Um membro de um bando de ladres pode expressar seus poderes de
uma forma consoante ao pertencimento quele grupo e ser dirigido pelo interesse
comum aos seus membros. Mas ele somente faz isso custa de represso das suas
potencialidades que somente podem ser percebidas atravs da associao a outrosgrupos. O bando de ladres no pode interagir flexivelmente com outros grupos;
ele apenas pode agir se isolando. Ele deve impedir a operao de todos os
interesses exceto aqueles que o circunscrevem no seu isolamento. Mas um bom
cidado acha a sua conduta como membro de um grupo poltico enriquecedora e
enriquecida pela sua participao na vida familiar, em associaes industriais,
cientficas e artsticas. H uma troca livre: a plenitude da personalidade integrada
, portanto, possvel de ser alcanada, uma vez que as aes e reaes de
diferentes grupos se reforam mutuamente e seus valores se adaptam.
Considerada como uma idia, a democracia no uma alternativa a outros
princpios de vida associada. Ela a idia da prpria vida em comunidade. um
ideal no nico sentido inteligvel de um ideal: isto , a tendncia e movimento de
uma coisa que existe levada ao seu limite final, vista como concluda,
aperfeioada. Como as coisas no alcanam tal realizao mas so, na realidade,distradas e interferidas, a democracia, nesse sentido, no um fato e nunca ser.
Mas nem nesse sentido h ou jamais houve qualquer coisa que seja uma
comunidade em sua dimenso plena, uma comunidade no combinada por
elementos estrangeiros. A idia ou o ideal de uma comunidade apresenta, no
entanto, fases reais de vida associada na medida que elas so libertadas de
elementos restritivos e perturbadores e so contempladas como tendo atingido seu
limite de desenvolvimento. Onde quer que haja atividade conjunta cujasconseqncias sejam percebidas como boas por todas as pessoas singulares que
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participam dela, e quando a percepo do bem for tamanha a ponto de promover
um desejo e esforo enrgico para mant-lo justamente porque ele um bem
compartilhado por todos, h, em certa medida, uma comunidad