delacampagne - a filosofia politica

13
A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO 167 10. A SOCIEDADE CONTRA o ESTADO Vamos sonhar: A partir do momento que se impóe a necessidade de urna nova "or- dem internacional", coroada pela instauracao de um direito "cosnm político", o principio de "soberanía" nacional deixa de ser um dogma da teoría política. Ao mesmo tempo, o poder do Estado sobre os cidadáos deixa de ser ilimitado: pelo contrario, fica contido por todo tipo de coac.óe,s "supraestatais". Pederíamos ir mais longe? Nao poderíamos sonhar com urna "sociedade civil" que, promo vendo enfim sua revanche sobre o Estado, conseguisse auto-organi- zar-se de tal modo que o papel dessa instituicao coercitiva e centraliza dora, o Estado, seria reduzido a zero — ou pelo menos a pouca coisa, u um papel verdadeiramente "mínimo" (tomando-se "mínimo" em um sentido mais radical ainda do que quería Nozick)? Vemos que a questao que surge aqui é a questao da "anarquía". Ha muito tempo, a anarquía caminha ao lado do sonrio. Do desejo. D;i utopia. A utopia anarquista é o sonho de urna sociedade fraterna e feliz, na qual os homens, vivendo livres enfim, chegariam ao pleno floresci- mento de suas potencialidades. £ o sonho de um fim ou de um "aléin" da política. Essa utopia irresistível nao morre: muitos sao aqueles que, de um modo ou de outro, Ihe permitiram atravessar os séculos, dos cínicos gregos a Cornelius Castoriadis, passando pelo cura Meslier, Fourier, Proudhon, Bakunin, Guy Debord e Noam Chomsky. Entretanto, apesar do respeito que se deve a esses espirites audaci osos, nao creio que a anarquia seja possível. 166 Nunca se chegará, em urna comunidade humana dada, a eliminar completamente as re^óes de poder. E isso nao por alguma razao psi- cológica ou biológica, como pseudo-intelectuais afírmam as vezes, po- rém, mais certamente, porque sempre haverá, em toda comunidade, desigualdades económicas assim como divisóes sociais. Ja sendo formas de violencia, essas desigualdades e divisóes ali- mentam, por sua simples existencia, um estado de guerra permanente no seio do corpo social. Ora, para que esse corpo se mantenha vivo, a guerra deve ser canalizada. E a única maneira de canalizar a violencia é recorrer á violencia, fazé-la voltar-se contra si mesma. Essa é, precisa- mente, a funcao das relances de poder. Ou seja, do "político" em geral. É a instancia política que deve organizar as outras instancias, que deve regular—pela violencia — a violencia imánente a toda comunida- de humana. É a ela que cabe arbitrar os conflitos resultantes das desi- gualdades económicas ou das divisóes sociais. É por isso que o Estado se arroga o "monopolio da violencia legítima" (Max Weber), dedicando um cuidado especial para fazer esquecer suas verdadeiras origens isto é, para produzir (pelo mito ou pela flecho) a ilusáo de que o poder "legí- timo" nao seria, justamente, a expressáo de urna violencia. Assim, nunca existirá urna sociedade totalmente "anárquica", libe- rada do poder, livre da opressáo. A anarquia absoluta é a utopia abso- luta. Como indica o seu nome (ou topos, em lugar algum), ela nunca existirá. Toda sociedade real, se quer perdurar, é obrigada a dispor de um órgáo de poder específico e de leis cuja eficacia conjunta permite dar, ao estado de guerra social, a aparéncia tranquilizadora e desejável da paz. De todo modo, esse órgao de poder nao é necessariamente obriga- do a assumir a forma do Estado-na<páo, coercitivo e centralizador tal corno o conhecemos ha alguns séculos. Ele poderia muito bem revestir-se de outras formas inclusive formas inéditas, em que ainda nao pensamos. Além do Estado, o poder continua. A política também. Isso nao significa que nao tenhamos nada melhor a fazer do que nos entregarmos á utopia como alguém se entrega aos decretos do destino ou da Providencia divina.

Upload: coronel-melmac

Post on 21-Jun-2015

207 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

Page 1: Delacampagne - A Filosofia Politica

A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO 167

10. A SOCIEDADE CONTRA o ESTADO

Vamos sonhar:A partir do momento que se impóe a necessidade de urna nova "or-

dem internacional", coroada pela instauracao de um direito "cosnmpolítico", o principio de "soberanía" nacional deixa de ser um dogmada teoría política.

Ao mesmo tempo, o poder do Estado sobre os cidadáos deixa deser ilimitado: pelo contrario, fica contido por todo tipo de coac.óe,s"supraestatais".

Pederíamos ir mais longe?Nao poderíamos sonhar com urna "sociedade civil" que, promo

vendo enfim sua revanche sobre o Estado, conseguisse auto-organi-zar-se de tal modo que o papel dessa instituicao coercitiva e centralizadora, o Estado, seria reduzido a zero — ou pelo menos a pouca coisa, uum papel verdadeiramente "mínimo" (tomando-se "mínimo" em umsentido mais radical ainda do que quería Nozick)?

Vemos que a questao que surge aqui é a questao da "anarquía".

Ha muito tempo, a anarquía caminha ao lado do sonrio. Do desejo. D;iutopia.

A utopia anarquista é o sonho de urna sociedade fraterna e feliz, naqual os homens, vivendo livres enfim, chegariam ao pleno floresci-mento de suas potencialidades. £ o sonho de um fim ou de um "aléin"da política.

Essa utopia irresistível nao morre: muitos sao aqueles que, de ummodo ou de outro, Ihe permitiram atravessar os séculos, dos cínicosgregos a Cornelius Castoriadis, passando pelo cura Meslier, Fourier,Proudhon, Bakunin, Guy Debord e Noam Chomsky.

Entretanto, apesar do respeito que se deve a esses espirites audaciosos, nao creio que a anarquia seja possível.

166

Nunca se chegará, em urna comunidade humana dada, a eliminarcompletamente as re^óes de poder. E isso nao por alguma razao psi-cológica ou biológica, como pseudo-intelectuais afírmam as vezes, po-rém, mais certamente, porque sempre haverá, em toda comunidade,desigualdades económicas assim como divisóes sociais.

Ja sendo formas de violencia, essas desigualdades e divisóes ali-mentam, por sua simples existencia, um estado de guerra permanenteno seio do corpo social. Ora, para que esse corpo se mantenha vivo, aguerra deve ser canalizada. E a única maneira de canalizar a violencia érecorrer á violencia, fazé-la voltar-se contra si mesma. Essa é, precisa-mente, a funcao das relances de poder. Ou seja, do "político" em geral.

É a instancia política que deve organizar as outras instancias, quedeve regular—pela violencia — a violencia imánente a toda comunida-de humana. É a ela que cabe arbitrar os conflitos resultantes das desi-gualdades económicas ou das divisóes sociais. É por isso que o Estado searroga o "monopolio da violencia legítima" (Max Weber), dedicandoum cuidado especial para fazer esquecer suas verdadeiras origens — istoé, para produzir (pelo mito ou pela flecho) a ilusáo de que o poder "legí-timo" nao seria, justamente, a expressáo de urna violencia.

Assim, nunca existirá urna sociedade totalmente "anárquica", libe-rada do poder, livre da opressáo. A anarquia absoluta é a utopia abso-luta. Como indica o seu nome (ou topos, em lugar algum), ela nuncaexistirá.

Toda sociedade real, se quer perdurar, é obrigada a dispor de umórgáo de poder específico e de leis — cuja eficacia conjunta permitedar, ao estado de guerra social, a aparéncia tranquilizadora e desejávelda paz.

De todo modo, esse órgao de poder nao é necessariamente obriga-do a assumir a forma do Estado-na<páo, coercitivo e centralizador talcorno o conhecemos ha alguns séculos.

Ele poderia muito bem revestir-se de outras formas — inclusiveformas inéditas, em que ainda nao pensamos.

Além do Estado, o poder continua. A política também.Isso nao significa que nao tenhamos nada melhor a fazer do que

nos entregarmos á utopia — como alguém se entrega aos decretos dodestino ou da Providencia divina.

Page 2: Delacampagne - A Filosofia Politica

168 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO 169

Porém, mais pragmáticamente, isso significa que a "auto-instiiuicao" da sociedade (como dizia Castoriadis) nunca está concluida, líinsuma, nao é proibido sonhar.

E, como nao ha sonho que nao se alimente de alguma lemhraitv*da realidade, ou da nostalgia de alguma "infancia" perdida, desojo,para concluir este percurso, deter-me um instante naquilo que é, ciuminha opiniáo, o mais fascinante "sonho" do Ocidente moderno: a leoria da "sociedade primitiva" como "sociedade contra o Estado".

Em outras palavras, como sociedade que conseguiu, se nao atíngir o estado "ideal" de anarquía, pelos menos aproximar-se o irunspossível dele.

SELVAGENS SEM DEUS NEM SENHOR

Essa teoría tem urna origem histórica precisa. Ela remonta ao "deseo-brimento" do Novo Mundo.

Efetivamente, foi no rastro de urna conquista colonial que os euro-peus viram surgir a sua frente, pela primeira vez, "selvagens" — nocaso, indios. Convencidos do preconceito de que sua própria civiliza-cao so podía ser a melhor, comecaram por avaliar as culturas que en-contravam pela medida daquela na qual tinham nascido. E o que osimpressionou logo de saída (nesse ponto, todas as dedara9&es dos pri-meiros "cronistas" concordam) nao foi tanto o fato de que os indiosandavam ñus, ignoravam a escrita ou nao dispunham da tecnologíaeuropéia. Foi principalmente o fato de que pareciam viver "sem fe,sem lei, sem reí". Ou seja, "sem Deus nem senhor".

Essa observa9áo foi tao repetida, a partir do século XVI, que mereceatencáo, embora seja manifestamente errónea.

Os indios, por exemplo, nao eram "sem fe". Cada urna de suas so-ciedades possuía o seu próprio corpus de mitos e rituais, seu própriosistema religioso. Mas esses sistemas nao se pareciam com aquelesexistentes na Europa. Nao eram controlados por urna casta de "pa-dres" fácilmente identificáveis. Nao se encarnavam em lugares de cul-to visíveis por todos. Enfim, nao exerciam nenhum poder díreto sobrea moral individual ou social. Isso bastou para induzir em erro os cro-nistas. E fazer com que eles acreditassem na ausencia de religiáo, quan-

do nao encontravam os traeos que, para eles, desenhavam o rostofamiliar desta.

Tarnbém, vindo de Estados em plena for9a, de monarquías absolu-tas em que o peso da centralizacáo se fazia sentir cada vez mais, so po-diam se surpreender ao dcscobrir sociedades que, aparentemente,viviam sem regras nem hierarquia. Sem rei nem lei? Talvez nao. Mas ofato é que as sociedades indígenas tradicionais nem sempre tém chefe"permanente". E que, quando tém, este nao parece dispor de nenhumpoder coercitivo sobre o grupo, de nenhuma capacidade de fazer vio-lencia contra seus "súditos".

Estranha "ausencia", na verdade. Entretanto, essas sociedades —pelo menos quando se respeita sua independencia—nao parecem mi-nadas pela desordem ou arruinadas pelo caos. Montaigne e La Boétie(que recolheram, no porto de Bordeaux, todo tipo de historias sobreos indios), e depois Diderot e Rousseau, quando estudaram esse para-doxo, so puderam resolvé-lo traduzindo-o em urna fantasía: o "bomselvagem". Os indios seriam, por natureza, tao virtuosos que nao te-riam necessidade de senhor? Viveriam sob o reinado da graca? A Amé-rica seria (como ainda disse Whitman) o paraíso terrestre?

Essa fantasia, como sabemos, durou até o século XIX. Depois, a an-tropología incipiente a encerrou em nome de urna explicacao mais"positiva", menos romántica. Nao, os indios nao sao nem melhoresnem piores do que os outros homens. Sao homens, simplesmente.Mas homens socialmente imperfeitos, politicamente inacabados. Emsuma, "primitivos".

O que esse termo quer dizer, na pena dos "eruditos", é claro. Os"primitivos" pertencem ao estágio mais antigo do desenvolvimento dahumanidade. Tanto na ordem política como na ordem da técnica, fal-ta-lhes todo tipo de invencóes que nos sao familiares. Essa falta é o sín-toma de seu atraso no caminho da evolucáo. O sentido dessa evolucáo,em contrapartida, é evidente. A medida que evoluem, as sociedadesdevem se dotar de um Estado. O Estado é o símbolo do progresso, aúnica forma política que convém a povos que alcancaram a maturida-de. Os que o ignoram ainda estao a espera desse "tornar-se adulto",prisioneiros de urna "infancia" prolongada demais. Urna infancia áqual a conquista — justamente — deve por um termo definitivo.

Page 3: Delacampagne - A Filosofia Politica

170 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOIE

Favorecido, na segunda metade do sáculo XIX, pelo triunfo do evo-lucionismo, esse novo mito de aparéncia científica acarreta duas con-seqüéncias importantes para a describo dos "primitivos".

Primeira conseqüéncia: suas sociedades sao doravante qualificadasde sociedades "sem historia", pois se desenrolam, como se acredita,em um tempo imóvel.

Segunda conseqüéncia: para explicar esse imobilismo, é precisoimaginar alguma imperfeÍ9áo congénita ou algum atraso constitutivodo espirito "primitivo". Forjado por Lucien Lévy-Bruhl por volta de1900, o conceito de "mentalidade prelógica" permite dar a esse "atra-so" intelectual urna formulacáo de acordó com os cánones da psicolo-gía da época.

Essa constni9áo teórica tem sua coeréncia. Mas é claro que elacumpre, antes de tudo, urna funcáo ideológica. É claro que serve ape-nas para tranquilizar a consciéncia de urna antropología colonial pre-ocupada em legitimar, por pseudo-argumentos, a expansao "branca"(e até "etnocida", para retomar a expressao de Robert Jaulin).

Com o fim da coloniza9§o e seu questionamento a partir da II Guer-ra Mundial, as fraquezas dessa construcao nao tardam a aparecer.

Por urn lado, o olhar antropológico se sofistica. Estudando maisseriamente as sociedades primitivas (expressao impropria, mas que éconservada por comodidade), os ocidentais descobrem que estas seorganizam em torno de estruturas políticas mais complexas do queimaginavam. Sua descricáo se torna objeto de urna disciplina autóno-ma, a antropología política. Esta, depois das pesquisas pioneiras deW.C. MacLeod (1924) e R.H. Lowie (1927) sobre a origem do Estado,toma impulso com a publicacao simultánea, em 1940, de tres obrasmagnas. As duas primeiras, Os Nuer e O sistema político dos Anuak —referentes a duas etnias vizinhas da África Oriental — sao de E.E.Evans-Pritchard. A terceira, Os sistemas políticos africanos, é um livrocoletivo dirigido por E.E. Evans-Pritchard e Meyer Fortes, e prefacia-do por A.R. Radcliffe-Brown.' Todas as tres abrem caminho para urnaserie de trabalhos (cada vez mais numerosos, ao longo das décadas se-guintes) que nos oferecem enfim urna imagem confiável e detalhadadaquilo que se poderia chamar de política dos primitivos.

Por outro lado, desde o fim dos anos 30, antropólogos mais atentosao seu "objeto", menos imbuidos de preconceitos ou mais abertos á

A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO 171

crítica anücolonialista, questionam o duplo mito das sociedades "semhistoria" e da "mentalidade prelógica". Um papel determinante é en-táo o de Claude Lévi-Strauss. Das Estruturas elementares de parentesco(1949) aos quatro volumes de Mitológicas, publicados vinte anos de-pois, passando pelo texto decisivo de O pensamento selvagem (1962),Lévi-Strauss nao cessa de explicar que a mentalidade primitiva, capazde elaborar as construcóes intelectuais mais sofisticadas, nao merecede forma alguma o qualificativo de "prelógica".

Alias, nao existe urna mentalidade própria dos primitivos. No má-ximo, pode-se dizer que seu pensamento, sem ignorar as regras da ló-gica universal, também funciona, em certas circunstancias, segundooutros esquemas — associativos ou participativos — cujo vestigio seencentra, no Ocidente, em atividades como a criacáo artística ou o ar-tesanato. O pensamento dos selvagens nao é portante diferente donosso por natureza.

Trata-se simplesmente de um "pensamento selvagem" adaptado aum ambiente particular e a urna escolha específica de vida.

Paralelamente, Lévi-Strauss mostra que essa escolha de vida nao im-plica absolutamente urna recusa da historia em geral. Como todas as so-ciedades, as dos primitivos estáo inseridas na historia — urna historiapouco conhecida, mas cuja Iembran9a sobrevive na tradÍ9áo oral. Emcontrapartida, elas desconfiam do processo "cumulativo" — aumentode riqueza ou de popula9ao — que amea9aria o equilibrio precario so-bre o qual se fundam. Em resumo, se essas sociedades tendem a afastarde si o espectro de urna historia "quente" (semelhante á que conduz oOcidente), é porque elas optaram por urna historia "fria", mais de acor-dó com a idéia que tém das condÍ9óes de sua sobrevivencia.

Lévi-Strauss introduz assim, na antropología, urna revolu9ao cujasimplicases filosóficas nos levam de volta, paradoxalmente, a Montaig-ne e Rousseau. Sem idealizar os "selvagens" (como prova o tom pessi-mista de Tristes trópicos), ele os reabilita. Estabelece que seu pensamentoe seu modo de existencia devem ser apreciados por si mesmos, e naocomo formas inferiores dos nossos. Condenando o etnocentrismo, pro-clama a igual dignidade das culturas (Rafa e historia, 1952).

Mas abstém-se de tirar dessa afirma9áo as conseqüéncias que seimpóem no campo propriamente político.

Esse passo suplementar será dado por Fierre Clastres.

Page 4: Delacampagne - A Filosofia Politica

172 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE

CHEFES BEM DIFERENTES

Nem comunista (embota tenha lido Marx atentamente), nem an.irquista (no sentido estrilo), Fierre Clastres (1934-77) se senté, toclavn,bem mais próximo da córrante "libertaria" (no sentido francés do u-imo) que do marxismo. Durante seus anos de estudo, freqüenta ",S<u ialismo ou barbarie", movimento criado em 1949 por Claude Ldbrt i*Cornelius Castoriadis. Depois, viaja para a América do Sul. Al^mi*meses antes de sua morte, funda com Lefort, Castoriadis e alguns outros urna nova revista, cujo título soa como urna palavra de ordem: /,/'bre (1977-80).

Clastres é pois um intelectual "engajado". Mas, se suas simpalúispolíticas nao podem ser ignoradas, elas nao o impedem de ser, princ ipálmente, um pesquisador de campo. De 1963 a 1974, permanecenmilitas vezes entre os indios: Guaraní, Guayaki e Chulupi no Paraguai,Guaraní no Brasil, lanomami na Venezuela — "a derradeira sociedad*'primitiva livre, na América do Sul certamente, e talvez também m>mundo", escreve ele, nao sem algum romantismo, em 1971.1 Além disso, é um leitor atento dos cronistas da conquista, assim como de Mon-taigne e de La Boétie — os dois primeiros filósofos a se interessarempela concepcáo "selvagem" da liberdade.

A sodedade contra o Estado, a obra magna de Clastres, data de 1974.Trata-se de urna colecáo de artigos, dos quais o primeiro, "Copérnico oos selvagens" (1969), aprésenla a revolucáo "copernicana" que o autordeseja importar para a sua própria disciplina, a antropología política.Esta, segundo seu modo de pensar, nem sempre escapa ao etnocentris-mo denunciado por Lévi-Strauss (a quem Clastres presta urna homena-gem explícita). Se a antropología quiser se livrar do etnocentrismo, devemudar de método. Para compreender as sociedades primitivas, quere-mos sempre remeté-las a nos, como se fóssemos o centro do mundo.Pelo contrario, devemos remeter-nos a elas, e perguntar por que nosafastamos a tal ponto do modelo que elas nos oferecem.

Efetivamente, essas sociedades sao, de certa maneira, exemplares.Sao sociedades sem Estado. As únicas ou as últimas sociedades sem Es-tado atestadas pela historia. Mais aínda, longe de serem assim por aca-so ou por efeito de algum retardo, elas so sao sem Estado porque saocontra o Estado. Em outras palavras, porque desenvolvem urna es-

A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO 173

tratégia deliberada para prevenir a dimínuicao das liberdades indivi-duáis, que a emergencia de um poder estatal (isto é, ao mesmo tempocoercitivo e centralizado) nao deixaria de provocar.

Nao se trata, é claro, de atribuir aos indios a misteriosa premonicaode um futuro que, evidentemente, eles ignoravam. Mas trata-se de in-vestigar o método com o qual eles se dedicaram, durante sáculos, a su-focar em suas' próprias sociedades toda tendencia á concentracao —ñas máos de um so ou de alguns — do poder político.

Vamos observar o funcionamento da chefia indígena. Primeiro, ochefe, nos casos em que este existe, nem sempre é fácil de identificar.Nem seus ornamentos, nem seu habitat, nem seu modo de vida o dis-tinguem dos outros. Nada é mais notável do que a semelhanca dascondi^oes no interior da sociedade primitiva. Mas o chefe nao é des-provido de todo privilegio. O principal daqueles que acompanham oseu cargo, freqüentemente hereditario, é a poliginia (quando a socie-dade á qual ele pertence é monógama), ou a faculdade de ter mais es-posas do que o resto dos homens (quando estes ja praticam apoliginia).

Em contrapartida, o chefe tem deveres. Por um lado, está sujeito áobrigacao de dar presentes a todos aqueles que, em sua comunidade,os solicitam. Por outro lado, é obrigado a pronunciar ritualmente, naaurora e no crepúsculo, longos discursos que ninguém escuta e cujaúnica funcáo é lembrar aos outros as virtudes dos ancestrais — parti-cularmente, o gosto destes pelo bom entendimento. Mas esses discur-sos tranquilizadores nao dao ao chefe um verdadeiro poder dearbitragem judiciária. Alias, ele nao dispóe de nenhum poder "coerci-tivo" propriamente dito. Nao se trata, para ele, de impor suas decisóesao restante da sociedade. Caso se arriscasse a isso, caso fizesse a impru-dencia de "brincar de chefe", ele se exporia a ser destituido. E até, emalguns casos, a ser morto.

Como observa Clastres, os traeos estruturais da chefia indígena asituam fora do espaco da cultura, fundado na regra da troca recíproca.A poliginia rompe o círculo da troca das muiheres. A obrigacao de darpresentes rompe o círculo da troca dos bens. Os longos discursos rom-pem o círculo da troca de palavras. Como efeito dessa tríplice ruptura,o chefe é lancado para o lado da natureza, assimilado as forcas queameacam a sobrevivencia da sociedade. Assimila^ao que, por sua vez,

Page 5: Delacampagne - A Filosofia Politica

A FILOSOFÍA POLÍTICA HOIE A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO 175

;

:

confirma que os indígenas véem na chefía um perigo potencial para ogrupo.

Como neutralizar esse perigo?A estrategia indígena é dupla. Consiste, por um lado, em atribuir

ao chefe apenas um poder insignificante: o de falar no vazio. E, por ou-tro lado, em dar á sociedade inteira o verdadeiro poder: o de tomar,coletivamente, as decisóes que empenham o futuro do grupo. Estas,longamente discutidas, devem ser objeto de um consenso tao ampioquanto possível antes de serem postas em prática. Com isso, o aspectoabertamente "coercitivo" do poder é, se nao esvaziado (como Clastres,um tanto apressadamente, tende a dizer), pelo menos amenizado. Ochefe nao goza de nenhum poder desse tipo. Quanto aos outros mem-bros do grupo, se obedecen! a urna coercáo (a decisao coletiva), naotém a impressao de que esta Ihes é imposta por unía pessoa ou institui-cao "central" exterior a eles.

As sociedades indígenas nao sao pois "anárquicas", rigorosamentefalando. Se o seu funcionamento tende a tornar impossível o surgi-mento de um órgao de tipo "estatal", se elas "aliviam" ao máximo opeso psicológico das relacóes de poder, nao as ignoram totalmente.

Também nao estáo a salvo da violencia política — como prova aimportancia que assume, em sua existencia cotidiana, o fenómeno daguerra.

FUNC;AO DA GUERRA PRIMITIVA

A guerra entre grupos vizinhos é um efeito extremamente comum en-tre os indígenas. Dos cronistas da idade clássica até os antropólogosmodernos, todos os observadores enfatizaram isso. Nem sempre con-seguiram elucidar a significacáo de tal prática, nern compreender porque ela nao resultava, como se poderia temer, na constituicao de im-perios ou de castas político-militares.

Para esse enigma, Clastres propoe urna explicacao interessante,que prolonga, confirmando-a, a sua tese sobre a ausencia de Estadocomo recusa do Estado. Dois de seus textos de 1977 merecem ser lidoscom atencao a respeito desse ponto: "Arqueología da violencia" e"Infelicidade do guerreiro selvagem".3

Clastres comeca observando que a antropología, até entao, se limi-tou a propor tres interpretacóes da guerra primitiva: "naturalista","economista" ou "intercambista".

A primeira (defendida pelo pré-historiador André Leroi-Gourhan)vé na guerra urna simples variante da caca, isto é, um comportamentode origem biológica, motivado pela procura de urna presa comestível:hipótese negada pelo fato de que a guerra entre indígenas nao tem porfim a antropofagia.

A segunda interpretacao (em geral, a dos marxistas) amplia a pri-meira, assimilando a guerra a urna atividade de pilhagem provocadapelo subdesenvolvimento das forcas produtivas ñas sociedades primi-tivas: tese refutada pelos trabalhos de Marshall Sahlins, estabelecendode maneira definitiva que essas sociedades, longe de víverem na mise-ria, gozam, pelo contrario, de urna certa abundancia, pelo menos emmateria alimentar.4

Quanto á terceira interpretacao (a de Lévi-Strauss, da qual Clastresse afasta, sublinhando, com razao, a incapacidade do estruturalismopara pensar a historia, a violencia, o confuto, em suma a especificidadeda instancia política), consiste em inserir a guerra no ciclo eterno dastrocas sociais, feito de aliancas e de rupturas alternadas — o que equi-vale, em suma, a dissolver a dimensao institucional que é a sua ñas so-ciedades indígenas.

Porque reduzem o sentido da guerra a fatores externos (de ordembiológica, económica ou sociológica), essas tres explicacóes sao insufi-cientes. Rejeitando-as em bloco, Clastres encara a guerra como ela é:um fenómeno propriamente político. E procura seu significado emseus efeítos.

Ora, o principal efeito da guerra entre sociedades indígenas nao é aconquista, mas, ao contrario, a fragmentacao. .Os confrontes, aliasbreves, que as opóem a intervalos regulares, permitem a essas socieda-des permanecerem independentes entre si. A hostilidade que se dedi-cara mutuamente mantém entre elas urna distancia salutar. Gracas aessa distancia, cada urna délas preserva seu modo de vida autárquico, elogo sua autonomía política. Nesse estado de guerra generalizada, naoha vencedor nem vencido definitivos. Existem apenas grupos que sebatem para nao ter que submeter-se a seus vizinhos. Longe de resultarna constituicao de imperios, a guerra é apenas um modo de prevé-

Page 6: Delacampagne - A Filosofia Politica

176 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOIE

nir-se contra o Estado. Urna estrategia, em outras palavras, a servicode urna escolha política.

Resta o problema dos guerreiros. O sucesso de suas armas nao po-deria Ibes dar a vontade, quando retornam a seu lugar, de estabelecerseu poder sobre o grupo cuja existencia acabam de salvar?

Tudo tende a demonstrar que esse risco é cuidadosamente evitado.Primeiro, constatamos que os guerreiros vencedores retomam, depoisda batalha, o curso de sua existencia anterior, sem gozar de nenhumavantagem material. Sua única recompensa é o prestigio que adquiri-ram na a^áo. Além disso, esse prestigio nao é destinado a durar, quan-do nao é imediatamente posto a prova em urna nova exped¡9aomilitar. Na hierarquia dos valores indígenas, nao ha louros conquista-dos urna vez por todas: a bravura é urna virtude que deve ser provadaincessantemente. Essa necessidade de urna tensao permanente obrigaos jovens guerreiros a lancar-se em aventuras sempre mais audaciosas,em que acabam inevitavelmente encontrando a morte. Morrer jovemem combate: esse é o destino "infeliz" dos guerreiros selvagens. Issosignifica que estes pensam em outra coisa, que nao é o poder político.E que seus bandos turbulentos nao tém nenhuma chance de se trans-formaren! em castas dominantes.

Fierre Clastres estava nesse ponto de suas reflexóes quando, de ma-neira acidental, também foi colhido pela morte.

Restou sua obra teórica, de urna importancia considerável para aantropología e para a filosofía política.

Depois de Clastres, as sociedades indígenas nao podem mais ser es-tudadas sem que se leve em conta os dispositivos complexos pelosquais estas procuram impedir toda centraliza9áo do poder coercitivo,esforcando-se em salvaguardar, por outras vías, suas próprias estrutu-ras tradicionais. Assim, depois de Clastres, nao é mais possível con-fundir "poder" e "Estado" — e afirmar que o primeiro se reduznecessariamente ao segundo.

Mas também nao se pode mais fazer da sociedade primitiva a en-carna9§o de urna "Arcadia feliz".

Ou seja, de urna "anarquía" tranquila, na qual ninguém seria obri-gado a obedecer, e da qual a violencia teria sido expulsa para sempre.

A SOCIEfJADE CONTRA O ESTADO J?7

UMA OUTRA INFANCIA: A ÁFRICA

Poder-se-ia objetar que o campo das sociedades indígenas, suportedas análises precedentes, nao esgota o espaco das sociedades primiti-vas em geral; que aquilo que é verdadeiro para os povos da Amazoniapoderla nao o ser em outros continentes.

Essa objecáo legítima tem urna resposta nos trabalhos dos antro-pólogos africanistas. Trabalhos que, no conjunto, confirmam as hipó-tese de Clastres — com ainda mais credibilidade porque foramelaborados de modo completamente independente deste.

As sociedades africanas tradicionais apresentam urna grande di-versidade de estruturas políticas. Nelas, encontram-se alguns Estadosorganizados, formas estatais embrionarias, e também muitas socieda-des cujo funcionamento lembra o das sociedades indígenas.

No seu trabalho sobre os Nuer do Sudao, Evans-Pritchard ja obser-vara que esse povo parecía ignorar até a figura do "líder". "No paísNuer", escreveu ele, "nenhuma pessoa, nenhum conselho é investidodas fun^óes legislativa, judiciária e executiva".5

Comentando esse texto, Lúe de Heusch esclarece que urna triboNuer "se compóe de varios segmentos territoriais, encaixados segun-do o modelo de segmentacao por linhagem. Cada territorio é associa-do a um cía 'dominante', que nao detém nenhum privilegio político:seus ancestrais se definem simplesmente como os primeiros habitan-tes do lugar, o que confere a seus descendentes um certo prestigio". Econclui: "Esse enraizamento primeiro fornece o principio estruturalde urna organizacao política ferrenhamente democrática."'

Os sucessores de Evans-Pritchard encontrara urna situacao seme-Ihante entre outros povos africanos. Lúe de Heusch, por exemplo, es-tudando nos anos 50 os Tétela do Kasai, constata que existe realmenteentre eles urna forma de chefia "sagrada", mas que os responsáveis poresse cargo ritual nao intervém na regulamentacao da ordem pública. Aseparacáo das duas esferas, religiosa e política, é completa. Ele acres-centa: "comparável, mutatis mutandis, a que opóe o chefe amazónicoao xama."7

É verdade que a realeza sacra (que Frazer fora o primeiro a descre-ver, sob o nome de realeza "divina", no fim do século XIX) pode assu-mir, em certas sociedades africanas, urna fun9áo política maisafirmada, como se constituísse apenas urna forma de transicao para o

Page 7: Delacampagne - A Filosofia Politica

178 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOIE

Estado, Entretanto, mesmo nesse caso, o rei sagrado está longe de serum chefe todo-poderoso.

Analisando o status deste entre os Mundang de Léré (Chade),Alfred Adler nota que múltiplos dispositivos simbólicos se opoem aque ele goze de um verdadeiro poder coercitivo — como se os Mun-dang, conscientes de possuir um embriao de instituto estatal, achas-sem necessário fazer tudo para impedi-la de tornar-se um fator dedivisáo social."

Ao mesmo tempo, Adler e outros africanistas, refletindo sobre suaexperiencia de campo, chegam a conclusóes próximas das de Clastresa respeito da guerra. Na África, dizem eles, como entre os indígenas, osincessantes conflitos armados entre grupos vizinhos nao tém outra fi-nalidade senao permitir-lhes conservar, ao mesmo tempo, sua inde-pendencia política e sua auto-suficiéncia económica. Assim, tambémesses conflitos fazem parte de urna estrategia que visa prevenir o surgi-mento de Estados fortes. Constituem o preco a pagar pela salvaguardade urna certa concepcao de existencia.

Sao inúmeros os exemplos desse género. Todos provam que podere violencia andam juntos. E que nenhuma sociedade pode escapar aseu dominio — mesmo que a forma "Estado" seja apenas urna das fi-guras possíveis do poder, e nao sua encarnacáo necessária.

De todo modo, apesar das defesas erguidas contra ele, o Estado"coercitivo", em um sentido próximo do sentido moderno, acabou seimpondo em certas sociedades africanas tradicionais séculos antes dacoloniza9ao. Do mesmo modo, no continente amerindio, dois gran-des imperios pelos menos — os dos incas e o dos aztecas — prospera-ram durante muito tempo antes da conquista. Deve-se concluir queseu surgimento se devesse a um processo inevitável? E que é precisovoltar ao velho esquema etnocéntrico que faz do Estado o termo "der-radeiro" ou "superior" de urna evolucáo "natural"?

Nao, pois nenhuma lógica simples comanda a génese do Estado.Quando esta ocorre, é sempre — tanto quanto se saiba — por efeito decausas múltiplas, singulares e acidentais. Clastres pode esbocar apenasa an alise dessa génese, na qual vía a acao de falores demográficos (cres-cimento brutal da populacáo vivendo em um territorio dado) ou cul-turáis (tomada do poder político por um chefe religioso, gracas,notadamente, a urna "migra9áo" coletiva de tipo messiánico provoca-

A SOCIEDADE CONTRA o ESTADO 179

da por urna catástrofe natural ou ecológica). Poderíamos acrescentaros fatores de ordem económica. Clastres os recusava, pois, sendo céli-co em relacáo á antropología marxista, nao acreditava possível aplicaras sociedades primitivas esquemas que privilegiassem a nocáo de"producáo". Para ele, era o nascimento do Estado que devia explicar onascimento das classes sociais, e nao o contrario.

Sem dúvida, seria conveniente flexibilizar esse ponto de vista. Quan-do, no "Crescente Fértil", tres mil anos antes de nossa era, surgem osprimeiros Estados históricamente conhecidos, seu nascimento, na Su-méria como no Egito faraónico, parece ligado a urna transformacáoeconómica. Efetivamente, so o desenvolvimento de urna agriculturaprodutora de excedentes capazes de alimentar a casta burocráticapode ter permitido o surgimento dessa casta. Seja como for, essa pró-pria transformacáo nao tinha nada de urna fatalidade. E nao constku-iu, provavelmente, por si so; a única "causa" do Estado.

O Estado nao é portante o produto de urna necessidade transcendenteá historia.

Nascido do acaso, ele so existe á maneira de urna contingencia. Épor isso que, também, ele é capaz, um día, de desaparecer — embora,com toda a evidencia, esse dia nao seja amanha.

Pode-se imaginar, no futuro longínquo, um mundo sem Estado,Em contrapartida, nao se pode imaginar um mundo sem política

— um mundo preservado de toda violencia, desprovido de toda cslrutura de poder.

As sociedades primitivas, como acabamos de ver, nao erain absolu-tamente paraísos desse tipo. Como, entáo, as sociedades "modernas"poderiam tornar-se paraísos, ao passo que se trata de sociedades ticgrandes dimensóes, dotadas de escrita e caracterizadas por um.t e-.lMlificacao (económica e social) complexa? E, mesmo que unw ut i . i s t iu l rclimática, ecológica ou nuclear acabasse destruindo, acidcnlalmoiili ' ,essa complexidade, nao seria verossímil que os sobreviven!es 11,10 \><-\, com isso, nem o gosto pelo poder, nem pela políüc.ií

Aceitar esta última hipótese nao equivale a confundir r í s l ; u l < » < • | >• « í ítica. A política é inevitável. O Estado nao. Ele é apenas a face <.-< > i i l i i i > ' , n tte assumída, hoje, pela política. E, se ele é um mal, um nuil un r.-..mumas sempre uní mal, esse mal é apenas "provisoriamente" nei i",viiit«.

Page 8: Delacampagne - A Filosofia Politica

180 A FIIOSOHA POLÍTICA HOIE

"Provisoriamente". Ou seja, durante mais alguns séculos. Mas cer-tamente nao "para sempre".

Vamos confiar na capacidade de "auto-instituicao" das sociedadeshumanas. Nao apenas por "espirito de utopia". Mas porque está nanatureza das coisas que tuda mude. E que talvez um dia acabaremostentando escapar, por nos mesmos, a essa "servidao voluntaria", naqual La Boétie, em um célebre Discurso escrito ha mais de quatro sécu-los, ja nos acusava — nao sem razáo — de nos comprazermos.*

ll.QUEMTEM RAZÁO?

"Se dependesse de mim, meu caro, as coisas nao seriam assim!""As coisas nSo seriam assim": ou seja, elas mudariam.Mudar. Influenciar o curso das coisas. É isso, evidentemente, que

está em jogo na diferen9a — capital — entre "gestao" e "política".Mas a mudanca é possível? E, em caso afirmativo, através de que

caminhos?Sao essas, como vimos neste livro, algumas das interrogacóes que

habitam, ha mais de 25 séculos, a consciéncia ocidental. Mas tam-bém vimos que as respostas que ela Ihes da variam consideravelmen-te de um filósofo para outro. Alguns apostam que nada mudará,outros que tudo deve mudar. Outros aínda que nada é seguro, nemem um sentido nem em outro, e que, por conseguinte, algo pode mu-dar. Ou aínda: que qualquer coisa (ou quase isso) pode acontecer (derepente).

Quem tem razao?E, principalmente, estamos certos de que as perguntas que faz a fi-

losofía política tém um sentido? Sao essas as boas perguntas, bem for-muladas, legítimas, até necessárias?

Por exemplo, podemos, ao fim do nosso percurso, situar clara-mente o campo que essas perguntas delimitam, o campo da "filosofíapolítica", em relacáo a outros campos do pensamento, de modo a esta-belecer definitivamente sua objetividade e seu rigor?

Vamos ser sinceros: nao temos nenhuma certeza.

AS PREOCUPAgOES DA FILOSOFÍA

Para comecar, será que deveríamos tentar caracterizar a filosofía polí-tica por sua dupla oposicao á "ciencia" política, por um lado, e as "ide-ologías" políticas, por outro?

181

Page 9: Delacampagne - A Filosofia Politica

182 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE

Diríamos, por exemplo, que estas sao pseudo-teorias a servido demovimentos determinados; que a "ciencia" política é urna ciencia so-cial entre outras, preocupada em estudar com imparcialidade a rea-lidade desses movimentos, assim como das "ideologias" que os acom-panham; ao passo que a fun^áo da filosofía política seria refletir, nao sosobre aquilo que é, mas também sobre aquilo que deveria ser?

Porém, na prática, essas fronteiras (úteis mas difíceis de balizar)sao incessantemente transgredidas. Vamos dizer sem rodeios: acercada política, reino da acao pura, universo da contingencia, nao poderlaexistir "ciencia", a nao ser puramente descritiva. Mas nenhum especi-alista em "ciencia" política se contenta com simples descricóes. Comisso, a "ciencia" em questao faz uso constantemente, como as "ideolo-gias" políticas, de nocóes filosóficas mais ou menos benrcompreendi-das. Alias, a recíproca é verdadeira: muitas vezes, a filosofía política,sem saber ou confessar, também toma empréstimos a "ciencia" e as"ideologias" políticas.

Tentaríamos distinguir urna filosofía que fosse "política" de outraque nao o fosse? Afirmaríamos — como aqueles que querem minimi-zar a importancia do engajamento nacional-socialista de Heidegger —que existem neste, como em todo filósofo, textos "políticos" e textos"apolíticos"?

Afirmar a existencia de tal "divisáo"seria presuncoso. Seria neces-sário ter urna idéia excessivamente simples, ou até simplista, daquiloque é um "texto", um texto "filosófico" em particular, para acreditarque se pode assim cortar o fio de um discurso, dividi-lo em "fatias" ecolar sobre urnas ou outras "rótulos" previamente feitos.

Proporíamos, mais modestamente ainda, que se apreendesse a fi-losofía política a partir daquilo que a distingue dessa outra "discipli-na" que se chama filosofía moral?

Esta, todavía, nao é mais fácil de delimitar do que aquela. E, se umconsenso suficientemente ampio reinou, de Platáo a Tomás de Aqui-no, para fazer da filosofía política urna simples "aplicacáo" da filosofíamoral aos problemas da cidade, esse consenso, definitivamente que-brado por Maquiavel, deu lugar, a partir de entáo, á idéia inversa, se-gundo a qual urna "diferenca" importante separaría esses dois"ramos" da filosofía — e o problema de saber em que consistiría a "di-ferenca" em questao ainda é objeto, infelizmente, de ásperos debates.

QUEM TEM RAZAO? 183

Para uns, a moral trata de acoes individuáis ou privadas ("é graveengañar o cónjuge?"); a política, de acoes públicas ou coletivas ("deve-nios ou nao derrubar Milosevic pela forca?"). Para outros, os juízosmoráis, sendo a priori, tém um valor absoluto ("a mentira é, em si,odiosa"), enquanto os juízos políticos, de ordem puramente empírica,so poderiam ter um valor relativo ( "o regime parlamentar é o menosmau entre aqueles que conhecemos").

Mais recentemente, surgiu urna tendencia a relativizar esse génerode oposicao — em suma, urna tendencia a "confundir" a fronteira en-tre moral e política. O fato é que muitos de nossos juízos políticos re-sultara de urna deliberacáo ao mesmo tempo racional e moral —como quando dizemos, desejando acabar com a "banaliza9áo" daShoah, que "o nazismo nao é um mal da mesma natureza que o comu-nismo, mas um mal absoluto". Urna grande parte da reílexao an-glo-saxónica atual (mas também da de Habermas, que reata com Kantsobre esse ponto) gira assim em torno da intuicáo, clara embora pou-co demonstrável, segundo a qual o territorio da política seria "delimi-tado", por todos os lados, pelo da moral, e so disporia, logo, de urnaautonomía parcial.1 Intuicáo que, entre outras coisas, inspira a buscade urna "nova ordem mundial".

Urna única certeza emerge dessas controversias. Se a política nao é amesma coisa que a moral, e mesmo que a primeira tenha tendencia a li-bertar-se da tutela da segunda, ela nao poderia Ihe escapar totalmente epara sempre. Pode-se dizer a mesma coisa em termos mais cínicos, semrecorrer ao "transcendental" kantiano: ja que nenhum príncipe, ne-nhum Estado pode estar certo de subtrair-se indefinidamente a reptovacáo suscitada por seus crimes, é do interesse do príncipe ou do Estadonao se comportaren) de maneira sistemáticamente imoral. O medo tíocastigo, infelizmente, continua sendo o ¿ome9O da sabedoria.

Além dessa constatacáo (que o próprio Maquiavel aprovaria), cadafilósofo tende a conceber as relacóes entre moral e política de ummodo que pertence apenas a ele. Vimos neste livro múltiplos exentpíos desse fato.

Seria possível, enfim, definir a filosofía política pela possc de ¡un "t. i upus" de temas ou de problemas que Ihe seria próprio, ou pela JH.ISM- ilt*um "método" que Ihe seria específico?

Page 10: Delacampagne - A Filosofia Politica

184 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE

Temo que, mais urna ve¿, nao se trate de nada disso.Temas e problemas variaram extremamente ao longo do tempo.

No século XVIII, a nocáo que provocou as mais vivas controversias foia de "liberdade". No século seguinte, a "igualdade". No inicio do sécu-lo XX, a "revolucao". Nos anos 70, a "justica". Amanha, será a "su-pranacionalidade". Embora essas transformacóes se expliquem cultu-ralmente, seria extravagante atribuir-lhes um significado providenci-al. A sucessao dos grandes debates que marcaram o desenvolvimentoda filosofía política apenas reflete as metamorfoses da nossa socieda-de, as mutacoes que incidiram sobre nossas "preocupacóes" — e atésobre nossas "modas" intelectuais. A menos que sejamos completa-mente hegelianos, nao afirmaremos que essas mutacoes expressamoutra coisa a nao ser a própria contingencia da nossa historia.

Quanto a saber se a filosofía política disporia de um método privi-legiado para produzir enunciados "verdadeiros", é melhor renunciar aesse sonho.

A política é, por excelencia, o assunto sobre o qual os homens nun-ca estaráo de acordó. Talvez porque a finalidade última de toda discus-sao política (ao contrario, por exemplo, de urna discussao sobre osméritos comparados do vinho bordeaux e do vinho bourgogne) sejachegar a um acordó, gracas a (ou a partir de) concessóes recíprocas. E"fazer concessóes" é urna coisa que os homens detestam.

De qualquer forma, os que querem se arriscar a navegar ñas aguasrevoltas da filosofía política deverao se resignar a fazé-lo sem mapanem bússola. Urna teoría política que nos parece "verdadeira", assimcomo observa corretamente Will Kymlicka no seu livro As teorías dajustifa: urna introdufao (1990), é apenas, na melhor das hipóteses,urna teoría "que concorda com as nossas conviccóes mais bem estabe-lecidas [our considered convictions], e que contribuí para esclare-cé-las".2 Em resumo, vocé terá razáo se concordar comigo se defenderos mesmos "valores" que eu.

Certamente, esse nao é um criterio muito racional. Mas talvez sejanecessário contentar-se com ele, enquanto nao se encontrar outro me-lhor.

Isso significa que, decididamente, a filosofía política é indefmível?Que nao tem lugar próprio? Que seu discurso nao tem motivo, suasconclusóes nao tem interesse?

QUEM TEM RAZAO? IH",

Nada disso. Porque, felizmente, a filosofía política teñí inimij'.tm, I<;a existencia desses inimigos, de um deles particularmente, me pau'u-largamente suficiente para justificar sua existencia.

Qual é entao esse "adversario" contra o qual teremos que hitar rcontra o qual a filosofía política, e so ela, nos daría os meios apropría-dos para combater?

Todos ja adivinharam que se trata do "economismo".

As PRETENSÓES DA ECONOMÍA

Curiosamente, quando falamos de "mudar" a sociedade, é com a tvonomia que nos chocamos.

"O que vocé faz com as realidades económicas?" Essa é a prinioiniobjecáo (e a última, pois ela basta para destruir tudo) que nunca se c loixa de fazer aos que querem transformar o mundo. Como se a CH unomia fosse o "real" que resiste aos "sonhos" dos filósofos, o avesso"serio" do seu "blablablá", o "rochedo" contra o qual estariam <Jr%!inadas a naufragar as frágeis embarcacoes dos "utopistas".

Mais curiosamente ainda, esse discurso "economista" posMii,como }ano, urna dupla face.

Ele é proferido, por um lado, pelos partidarios do capitali.suu» l i l » rral e, por outro, pelos últimos marxistas "ortodoxos".

Para seus acólitos, a vitória do capitalismo possui um s ign i f j i ,»!> • i | u ise teológico. Ela faz do capitalismo o único sistema e c o n n m i < » > « < «u. • i > <vel. Que ele esteja longe de garantir a felicidade universal, < | i i t ' < - > > r \\\.\< > idefinicao o pleno emprego, que o seu ritmo de crescinictilu ( l i m i M u tconstantemente, que va da "crise" a "quebra": nada disso in i | ' i u i < i «¡ 'os economistas "liberáis", o capitalismo se tornou um finí CIM • i

Tornando-se"mundial" pelo desaparecimento do blot o '<> nii ¡ .imposto na Europa pelas instituÍ9óes comunitarias, la vi »in t > l. >resto do planeta pelos acordos do GATT, o "livro i iH' i i . i i lu rt»Mdoravante o ponto de referencia de toda acáo. Á es< |u r i« l , »« f» i l l<reita, se ha urna tese que todos os partidos se acreditan) i >h ntomar em coro, é a idéia segundo a qual os governos i l t - v » H DIde se "imiscuir" nos fluxos económicos. Sabemos no .|in ¡I i >no Ocidente (onde nao se discute mais política, nías , t | > « H >veis "mercados" financeiros, que fazem tremer o n u n u f < > '

Page 11: Delacampagne - A Filosofia Politica

186 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE QUEM TEM RAZAO? 187

países em via de desenvolvimento (onde as populacóes pagam, cotidi-anamente, pelos erros de análise do FMI e do Banco Mundial).

Para os últimos "marxistas", o momento histórico que atravessa-mos pode, evidentemente, ser decifrado de maneira diferente. O fatode que o capitalismo, tornando-se mundial, nao possa impedir nem astormentas financeiras, nem a recessao, nem o desemprego faz pensarque ele está, finalmente, condenado a morrer: a "crise", necessaria-mente, acarretará a "revolucáo" (fórmula que, note-se, esquematizaconsideravelmente o auténtico pensamento de Marx, que era muitomenos "determinista", e muito mais sensível ao "político", do que emgeral se acredita).

Pouco importa, nesse estágio, a incerteza na qual se encontrara osdefensores de um marxismo "científico" sobre a natureza exata (Capi-talismo de Estado? Cogestao? Socialismo moderado?) do regime econó-mico que deveria substituir o capitalismo liberal. O importante éadmitir (como aínda fazem, na Europa, os partidos de extrema esquer-da) que urna transformado é simultáneamente possível e necessária —em virtude das próprias leis da economía, que exigem que as "contradi-^oes" sejam resolvidas de maneira "dialética". Axioma de que resultaque a mudanca política acabará se fazendo, mas que será o efeito e nao acausa das muta^óes económicas. Em resumo, que a esperanca continua,mesmo que nao seja possível queimar etapas, nem, por enquanto, fazeroutra coisa senao conviver com o sistema tal como ele é — esperandopacientemente que ele decida autodestruir-se.

É contra esse duplo "economismo", dos liberáis e dos marxistas,que é necessário insurgir-se.

Efetivamente, ao contrario do que acreditam uns e outros, nao é depretensas "leis" da historia, da economía ou do "mercado" que deve-mos esperar a salvacao.

A historia nao tem leis. O "mercado" também nao. A economía é,por excelencia, urna falsa ciencia. Do capitalismo, como do Estado,pode-se dizer, com razáo, que ele existe; mas nada prova que ele devadurar eternamente — como também nada prova, atualmente, que eledeva desaparecer, nem que ele possa ser substituido por urna organiza-cao da producáo que nao resulte, sob urna forma diferente, na recria-cao dos "pobres" e dos "ricos".

Em suma, o futuro nao caira do céu.

Ele será o que os homens, coletivamente, faráo dele.Será o resultado de seus atos políticos.Tanto é verdade que a política nao é nada mais, afinal, do que nina

especie de "antieconomia". E a razáo de ser da filosofía política, pelomenos ha dois séculos, nao é nada mais senao a necessidade de ajudara política a afirmar-se contra o economismo.

AS VICISSITUDES DA POLÍTICA

Mas, pergunta-se cada vez mais, a política ainda tem futuro? Ela naoestá, em todos os sentidos do termo, "acabada", "superada" por novasformas de conflitos e de comprometimentos nos quais a democracia,no sentido clássico do termo, nao se reconhece mais?'

Essa preocupacao é compreensível. De fato, graves suspeitas pesamsobre a política. E nao sao so os políticos que as suscitara, porque o ni-vel de sua moralidade caiu muito, ou porque seus discursos soam fal-so, ou porque suas manobras esteréis nao interessam a mais ninguém.

Nao é apenas a democracia que nos decepciona, porque o processoemancipador lanzado pelo Século das Luzes nos da hoje a impressSode estar totalmente em pane.

É a própria acáo política que parece ter-se tornado va.O que se chamava outrora de "militantismo" é agora percrlüilu

como arcaico, ou mesmo "fora de moda". Os jovens, preocupados muísuas dificuldades parainserir-se no mundo, nao acreditam ruáis na | H. ,sibilidade de transformá-lo. Seus antecessores se abrigam confuí l . ivr )mente no casulo de seu conforto individual. Quem ainda íic>|tn ni . i i ,reunióes do partido ou do sindicato? Quem distribui panf lc i t» - , «t|.icartazes, vai as manifestacóes? Nem as grandes pesquisas dci lui .u . i . ¡zem mais sucesso. O absenteísmo nao para de crescer. "I-a/ci « >\n>-Essa é a grande pergunta, no bojo da qual prosperan! os p a n u l » ' , « i .trema direita w— que, mesmo quando apenas repetem uní a n i i | M t ! imentarismo desgastado, aparecem algumas vezes t:onn> m u l i i H . . ^(para nao dizer os únicos) a fazer aínda, "verdadeiramenir". \»<\\ii< t

É preciso mudar tudo isso.Como?Nao deixando de lembrar (como ja faziam, ñas pcgíida> « I . A » . <

teles, Hannah Arendt e Leo Strauss) que o homeni r, a u M ; < ( * <•>• |*í

Page 12: Delacampagne - A Filosofia Politica

188 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE QUEM TEM RAZÁO? 189

"animal político" (zóonpolitikon). E que, por isso, a acao política con-tinua sendo, apesar das vicissitudes que a acompanham, urna das for-mas mais elevadas da atividade humana — ou pelo menos urna dasmais dignas de interesse.

Tese que, por sua vez, pode ser entendida de diversas maneiras, se-gundo se pense naqueles que fazem da política a sua profissao, ou en-tao nos "simples" cidadáos.

Os "profissionais" da política atravessam urna crise de identidade.Por um lado, sentem-se cada vez mais obrigados a obedecer as

pressóes que exercem sobre eles os "lobbies" (no sentido americanodo termo). Representando grandes interesses privados, quer se tratede interesses económicos (deste ou daquele grupo de empresas) ou deinteresses "categoriais" de todo género (da superestrutura "tecnocrá-tica" que, de fato, controla o país, ou das diferentes "comunidades" re-gionais, religiosas etc. que o compóem), esses "lobbies" se enfrentamconstantemente. Mas tém um traco comum: cada um deles tende,abertamente, a confiscar para seu proveito o "interesse geral". Ou seja,a dominar o poder público, a fiín de dirigi-lo para o sentido que Iheconvém.

Por outro lado, os políticos estáo cada vez mais preocupados comsua imagem (pelo menos ñas situacóes em que dependem do sufragiouniversal). Ora, essa imagem é forjada pela mídia, que vive, por suavez, sob a tirania do "índice de audiencia", que os leva a invadir, cadadia mais, a vida privada dos homens públicos. A política é apenas, nes-sas condicóes, urna forma de "espetáculo" (como anunciou, ja em1967, Guy Debord) e o político um simples ator em um "video game".O que ele faz tém muito menos importancia do que aquilo que os te-lespectadores acreditam que ele fez. E mais aínda porque as "crencas"destes nao se refletem sementé, de lempos em tempos, nos resultadoseleitorais, mas, de modo permanente, nos das "pesquisas" — que do-minam, doravante, a vida pública.

Assim, encurralado entre "lobbies" e mídia, o político "profíssio-nal", condenado a suportar o peso de urna fadiga sobre-humana, témcada vez mais tendencia a cruzar os bracos, ou a "surfar" na onda, sa-bendo que isso nao durará para sempre.

Evidentemente, nao é assim que ele retomará o controle da situacáo.

Entretanto, nada está perdido, pois, a cada vez que aparece um po-lítico "atípico", aparentemente indiferente á tirania das "pesquisas" eá dos "peritos", esse homem atrai para si, durante alguns momentos,multidóes entusiásticas. Nao é isso urna prova de que bastaría umpouco de personalidade, ou de caráter, para inverter essa tendencia?

Em suma, nao bastaría "querer" para impor á mídia e aos "lobbies"outras regras de jogo?

Em um contexto diferente, e com palavras que eram suas, no fun-do Maquiavel nao dizia outra coisa: é preciso agir. E o seu desejo foiouvido, pois, tres séculos depois de sua morte, completou-se a unida-de italiana.

É verdade que os tempos mudaram. Hoje ou amanha, nada acontece-rá, enquanto os "simples" cidadaos nao expressarem, primeiro, o seudesejo de mudan9a.

Pelo voto, é claro. Mas também por outros tipos de acáo, clássicos(greve, desobediencia civil etc.) ou a serem inventados.

Isso nao é fácil, porque o "simples" cidadáo, no seu "modesto" ni-vel, parece ainda mais convencido do que o político "profissional" dainutilidade de toda acáo.

Assim, para fazer com que o cidadáo mudasse de opiniáo, seria ne-cessário comecar por redefinir a cidadania.

Redefinir a cidadania significa:• primeiro, repetir que esta nao é um "brinquedo", mas urna dimen-sao fundamental, provavelmente a dimensáo mais fundamental, maisintensa da existencia humana, na medida em que "viver" quer dizer,antes de tudo, "viver junto", "viver com", compartilhar o espado deurna "cidade" comum;• depois, mostrar a realidade dos progressos conquistados, nos últi-mos cinqüenta anos, no campo político (defesa dos direitos individu-áis, repressao dos crimes de Estado, moralizacao das relacóesinternacionais etc.), progressos que nao teriam sido possíveis sem aformidável pressáo exercida pela opiniáo pública dos países livres;• enfim, enfatizar que as vicissitudes inerentes a toda acao políticanao devem nos desanimar de prosseguir a nossa a^ao, nem fazer-nospreferir á felicidade das geracóes futuras (pelas quais somos responsá-veis) o nosso conforto presente.

Page 13: Delacampagne - A Filosofia Politica

190 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE

Na verdade, o que é o nosso "conforto presente" senao um outronome ou um outro rosto para esse gosto masoquista pela morte, essefatalismo desiludido que nos domina as vezes — essa "servidáo volun-taria", á qual nos é, decididamente, tao difícil de escapar?4 EPÍLOGO

Volto, pela última vez, á pergunta feita no capítulo precedente: quemtem razao? Seria o filósofo que afirma que tudo poderia ser diferente,ou o político que afirma o contrario?

Minha resposta é: o cidadáo, é claro. Porque so ele sabe, com umsaber incontestável, o que deveria, o que poderia mudar. E so ele podefazer com que, finalmente, "as coisas sejam diferentes".

Entretanto, eu nao desejaria que esse apelo a urna renovacáo da"cidadania" fosse ouvido, no contexto atual, como um convite banal avoltar aos valores "republicanos" — os do "melhor regime" aristotéli-co (politeia), ou os da República romana, que ainda celebravam, doismil anos depois, os "pais fundadores" da na^áo americana, reunidosem torno de "Publius", o autor imaginario dos Federalist Papers.

Sem negar a parte de saudade desses lempos idos que todo elogioda "cidadania" comporta, nem contestar que o amor pela "coisa pú-blica" seja urna louvável "virtude", eu preferiría entretanto que se ou-visse outra coisa.

Primeiramente, um apelo á "amizade".Virtude cardinal para Sócrates, Platao, Aristóteles, La Boétie, Pier-

re Clastres e Michael Sandel, virtude "filosófica" por excelencia, aphi-lia é também urna virtude política. Ela é o laco que deveria unir"cidadáos" preocupados em manter entre si, apesar de suas divergen-cias, urna especie de "conversacáo" permanente. Em outros termos, éporque o amigo deve se preocupar com o "bem" do seu amigo que osamigos devem se preocupar, juntos, em fazer progredir o seu "bem"comum—e até em "conspirar", quando for preciso, ou seja, quando ointeresse da cidade exigir.

Depois, um apelo á "imaginacao". Mais do que nunca, o espiritocívico deve abandonar aos seus velhos esquemas a fím de estar prontoa acolher o que está para chegar — e que, por sorte, ainda nao tem

191