dejalma cremonsese - a difícil construção da cidadania no brasil
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7/29/2019 Dejalma Cremonsese - A difcil construo da cidadania no Brasil
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A DIFCIL CONSTRUO DA CIDADANIA NO BRASIL
CREMONESE, Dejalma. Introduo ao pensamento poltico: das origens ao debate atual. Iju: Universidade Regional do Noroeste doEstado do Rio Grande do Sul, 2008.
Falar na construo da cidadania no Brasil tocar num ponto nevrlgico da nossa
histria. Passados mais de 500 anos da chegada dos portugueses por estas paragens,
percebe-se que a consolidao da cidadania ainda um desafio para todos os brasileiros.
Muito se tem discutido na academia e fora dela, o jargo da cidadania est na moda nas
instituies polticas e na opinio pblica, mas, concretamente, um conceito ainda a ser
construdo.
Aps a ditadura militar (1964-1985), pensava-se que, finalmente, os ares dademocracia e da cidadania iriam pairar no cenrio poltico-social nacional. No entanto, a
democracia polirquica, descrita pelo cientista poltico Robert Dahl (2001) (eleies livres,
partidos polticos consolidados, Congresso Nacional autnomo), no garantiu avanos
significativos e a democracia social (igualdade tnica, emprego, sade, lazer, moradia...)
ainda utopia para milhes. Prevalece apenas uma democracia eleitoral sobre a democracia
social (cidad). Por essa razo, as instituies polticas e os polticos tm passado por um
alto descrdito junto opinio pblica do pas. Da mesma forma, a cidadania incipientenum pas onde predominam a excluso social e econmica, a desigualdade social e a
violncia difusa.
Frente a essa situao, pergunta-se: Quais os principais obstculos para a
construo da cidadania brasileira? A difcil construo da cidadania no Brasil est ligada
exclusivamente ao peso do passado (herana maldita), ou outras variveis podem
influenciar essa realidade? A cidadania est meramente ligada conquista de direitos
sociais, civis e polticos? Como se deram as conquistas desses direitos no Brasil,
comparadas com outros pases? Procurar responder a algumas dessas questes o objetivo
maior deste captulo. Para tanto, recorremos fundamentao terica de autores das
Cincias Sociais, reconhecidos estudiosos do tema.
A origem do conceito cidadania no contexto histrico-cultural e poltico provm
dos gregos, especificamente, por volta do ano 380 a.C. (perodo do pogeu daquela
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civilizao). Embora a cidadania fosse limitada a uma parcela social minoritria, pode-se
afirmar que, tanto a democracia quanto a cidadania grega, no deixam de ser conquistas
inditas e avanos significativos para a Histria Ocidental.1 No entanto, a evoluo e a real
consolidao da cidadania d-se na Modernidade.2 Junto com a cidadania moderna nascem
os direitos naturais (vida, propriedade, liberdade) do homem liberal burgus, garantidos
pelas consecutivas Declaraes de Direitos elaboradas a partir das revolues liberais na
Inglaterra (Revoluo Gloriosa, 1688-89), Estados Unidos (emancipao poltica, 1776) e
Frana (Revoluo Francesa, 1789).3
Este texto est dividido em quatro sees. A primeira trata da ausncia de direitos
e de poder pblico no Brasil colonial. A conquista lusitana, o latifndio, a monocultura de
exportao, o analfabetismo e a escravido so pesos negativos do passado que ainda
determinam a vida social, econmica e poltica do Brasil. A segunda seo apresenta os
dois fatos histricos mais relevantes do Brasil do sculo XIX, a Independncia e a
Repblica, considerando a quase nulidade da participao de grande parte do povo neste
processo. A terceira seo discute os vcios institucionais e culturais da poltica brasileira.
Males como o patrimonialismo, coronelismo, populismo, sero discutidos a partir de alguns
clssicos das Cincias Sociais do Brasil. Por fim, descreve-se que, diferentemente de outros
pases, os direitos sociais emergem no Brasil em regimes polticos ditatoriais, que excluem
inexoravelmente os direitos polticos e civis.4
11.1. Brasil colonial: ausncia de direitos e de poder pblico
Inicialmente, preciso afirmar que, no Brasil, a construo da cidadania no
seguiu a lgica da trajetria inglesa. Houve no Brasil, segundo Jos Murilo de Carvalho
1 No entanto, o objetivo deste artigo no tratar deste ponto, sendo que o mesmo tem sido suficientementetratado por renomados tericos como Minogui (1998), Coulanges (s/d), Aquino (1998), Barker (1978), Kitto(1970), entre outros.2 Sobre a evoluo do conceito cidadania na modernidade conferir o trabalho Domingues (2001).3 Da mesma forma, no nos convm tratar aqui deste assunto. Pode-se aprofundar este tpico com osseguintes autores: Saes (2000), Moiss (2005) e Marshall (1967).4 Para esta seo foram utilizados argumentos dos seguintes autores: Vianna (1955, 1956), Holanda (2000)Faoro (2001), Leal (1975), Prado Jnior (1994) e, principalmente, Carvalho (1996, 1997, 2000, 2000A.2002).
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(2002), pelo menos duas diferenas importantes: a primeira refere-se maior nfase em um
dos direitos, o social, em relao aos outros; a segunda refere-se alterao na seqncia
em que os direitos foram adquiridos: entre ns o social precedeu os outros (p. 12).
Uma das razes fundamentais das dificuldades da construo da cidadania est
ligada, como nos diz Carvalho, ao peso do passado, mais especificamente ao perodo
colonial (1500-1822), quando os portugueses tinham construdo um enorme pas dotado
de unidade territorial, lingstica, cultural e religiosa. Mas tinham deixado uma populao
analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiria, um
Estado Absolutista (p. 18). Em suma, foram 322 anos sem poder pblico, sem Estado, sem
nao e cidadania.
11.1.1 A conquista da terra brasilis
J no princpio da histria do Brasil, as contradies apareceram. Primeiro, pode-
se dizer que o Brasil no foi descoberto, conforme comumente menciona-se, mas, sim,
conquistado pelos europeus (portugueses). O encontro dessas duas culturas (a europia
versus a dos povos nativos das Amricas) foi o confronto trgico de duas foras em que
uma pereceu necessariamente, um encontro pouco amigvel entre duas civilizaes: umaconsiderada desenvolvida, por conhecer certas tecnologias (a irrigao, o ferro e o
cavalo) versus a nativa (desconhecida e, por isso mesmo, considerada brbara). Os
nativos viviam ensimesmados com a natureza, com uma religio diferente do cristianismo
europeu. Suas crenas eram mescladas com os elementos da natureza: a lua, o sol, as
estrelas. At mesmo a palavra ndio foi o nome dado pelos europeus ao se confrontarem
com o "outro" e quem deu o nome, no caso, acabou se apossando, ficando dono. 5
Bem antes de o europeu chegar a estas terras, o ndio tinha suas normas morais eseus ritos religiosos. Ele respeitava a si prprio e aos outros, me-terra, s guas e
natureza como um todo. Os espanhis e, mais tarde, os portugueses chegaram, impuseram
sua fora e conquistaram com a violncia (armas) e a ideologia (religio): em uma das
5 Sobre o encobrimento do outro, conferir Dussel (1993).
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mos, com a cruz do Cristo europeu, simbolizando o poder da Igreja; na outra, a espada
para a conquista. O resultado foi o extermnio, pela guerra, escravido e doena (sfilis,
varola, gripe), de milhes de ndios.6 Grande parte da populao indgena foi dizimada
rapidamente pelo homem civilizado. Calcula-se que havia no Brasil, na poca da
descoberta, cerca de 4 milhes de ndios. Em 1823, restavam menos de 1 milho
(CARVALHO, 2002, p. 20). Atualmente a demografia indgena, depois de ter sido
reduzido drasticamente, tem crescido de forma significativa nos ltimos anos. Segundo o
censo de 2000, do IBGE, 734 mil pessoas (0,4% dos brasileiros) se auto-identificaram
como indgenas, um crescimento absoluto de 440 mil indivduos em relao ao censo de
1991, quando apenas 294 mil pessoas (0,2% dos brasileiros) se diziam indgenas. 7
Outra caracterstica do perodo colonial est ligada conotao comercial. O
Brasil serviu produo de monocultura para resolver o problema da demanda europia,
fornecendo a cana-de-acar. Isto exigia largas extenses de terras e mo-de-obra escrava
dos negros africanos. No Brasil, se configurou o latifndio monocultor e exportador de base
escravista. Outros ciclos de explorao se sucederam no Brasil, como o da minerao (sc.
XVIII), do gado, da borracha, do caf..., servindo assim, por muito tempo, apenas como
fornecedor de matrias-primas metrpole (Portugal).8
11.1.2. A escravido
No perodo colonial, a cidadania foi negada quase totalidade da populao;
porm, os mais afetados foram os escravos negros provenientes do continente africano.
6 Callage Neto (2002, p.29) argumenta que as sociedades Ibricas (Espanha e Portugal) foram marcadas pelohibridismo do absolutismo autoritrio contra-reformista catlico, o despotismo corporativo muulmano dos
sculos que o precederam na Pennsula Ibrica e um incipiente liberalismo que se gerava com a presenajudaica nos marcos da Revoluo Mercantil.7 Para maiores informaes sobre a situao do indgena na sociedade brasileira atual, consultar relatrio doIBGE intitulado: Uma anlise dos indgenas com base nos resultados da mostra dos censos demogrficos .Este estudo est disponvel emhttp://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tendencia_demografica/indigenas/indigenas.pdf. Acessoem junho de 2005.8 Para esclarecer este tema, fundamental a leitura de Raymundo Faoro (2001). Principalmente o captulo IVO Brasil at o governo Geral.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tendencia_demografica/indigenas/indigenas.pdfhttp://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tendencia_demografica/indigenas/indigenas.pdf -
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Para Carvalho (2002), o fator mais negativo para a cidadania foi a escravido (p. 19). Foi
por volta de 1550 que os escravos comearam a ser importados. Essa prtica continuou at
1850, 28 anos aps a Independncia. Calcula-se que at 1822 tenham sido introduzidos na
colnia cerca de 3 milhes de escravos. Na poca da Independncia, numa populao de
cerca de 5 milhes, incluindo 800 mil ndios, havia mais de 1 milho de escravos (Idem, p.
19). importante destacar que em todas as classes sociais desse perodo havia escravos.9
Depois de mais de 300 anos, o Brasil chegou abolio da escravido, mais por
presso externa do que por um amadurecimento da conscincia social da populao. Neste
sentido, a abolio da escravido no Brasil, no dia 13 de maio de 1888, foi um grande
engodo, uma farsa. O Brasil foi o ltimo pas de tradio crist ocidental a abolir a
escravido, sendo que essa apenas ocorreu, no pelo amadurecimento da conscincia do
povo brasileiro, mas da prpria elite pressionada pelos interesses econmicos
internacionais. A Inglaterra, essencialmente por interesses comerciais, exigiu, em 1850, o
trmino do comrcio negreiro, institudo com a Lei Eusbio de Queiroz, que se constituiu
num passo importante para a abolio - que s viria a acontecer 38 anos depois.
Por isso, a data mais significativa para celebrar a histria do povo negro, sua
cultura, seu anseio por liberdade e sua verdadeira participao na sociedade, centra-se no
dia 20 de Novembro, data da morte de Zumbi, martirizado em 1695 sob as foras
expedicionrias do bandeirante Domingos Jorge Velho. Zumbi, que significa a fora do
esprito presente, foi o principal lder da resistncia da comunidade de Palmares. Esse
quilombo foi a mais importante organizao de resistncia do povo negro no pas, sendo,
dentre vrios, aquele que ocupou a maior extenso de terra e o maior tempo de existncia
(1600-1695). Por volta de 1654, o quilombo dos Palmares (regio acidentada e de difcil
acesso no interior de Alagoas), era composto por muitas aldeias onde os negros viviam em
liberdade. Eis o nome de algumas comunidades: Macaco, na Serra da Barriga, com 8 mil
habitantes; Amaro, no noroeste de Serinham, com 5 mil habitantes; Sucupira, 80 km deMacaco; Zumbi, a noroeste de Porto Calvo, e o Senga, 20 km de Macaco. A populao
total de Palmares, na poca, atingiu mais de 20 mil habitantes, o que representava 15% da
populao do Brasil.
9 Sobre o tema da questo racial no Brasil, conferir o trabalho de Fernandes (1972).
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Pela utilizao da mo-de-obra escrava nas colnias, foi possvel a formao e o
desenvolvimento dos Estados Nacionais na Europa e a construo das cidades. Alm disso,
realizou-se a Revoluo Industrial na Inglaterra, devido importao de negros africanos,
que eram mestres ferreiros, marceneiros e carpinteiros, o que propiciou o acmulo de
riqueza gerador do capitalismo. O sistema capitalista soube tirar proveito dessa situao, na
conquista, na pirataria, no saque e na explorao. Huberman (1986, p. 160) descreve que a
acumulao de riquezas deveu-se ao trabalho e ao sofrimento do negro, como se suas
mos tivessem construdo as docas e fabricado as mquinas a vapor.10
O escravo africano, alm de sofrer a dominao econmica e religiosa, foi
excludo, igualmente, do pensamento filosfico europeu. Foi considerado povo a-histrico,
irracional, brbaro, fechado em si mesmo, no tendo condies de ascender ao esprito
universal. Hegel, no incio do sculo XIX, escreveu a obra Filosofia da histria universal,
onde percebe-se a ideologia racista, superficial e eurocntrica do filsofo alemo em
relao frica. Pginas preconceituosas, que maculam a histria da filosofia mundial.
A situao do negro, hoje, continua sendo de marginalizao e excluso. Por isso,
h a necessidade de medidas no apenas afirmativas, mas, tambm, transformativas na
emancipao da etnia negra no pas.11 H muito que fazer para que a verdadeira abolio da
escravido acontea, principalmente na questo da educao, acesso ao trabalho e renda.
Dados demonstram que o analfabetismo ainda maior entre os negros: segundo dados do
IBGE, em 1999, a taxa de analfabetismo das pessoas com 15 anos de idade ou mais era de
8,3% para brancos e de 21% para pretos e a mdia de anos de estudo das pessoas com 10
anos de idade ou mais de quase 6 anos para os brancos e cerca de 3 anos e meio para os
negros.
10Segundo o socilogo Florestan Fernandes (1978, p.9), os negros e os mulatos foram os que tiveram o piorponto de partida na transio da ordem escravocrata competitiva. Isso significa afirmar que as condiesestruturais dos negros e mulatos foram inferiores em relao aos brancos, causando marginalidades edesigualdades na sociedade brasileira.11 Nancy Fraser (2001) analisa as estratgias, chamadas, por ela, de afirmao ou de transformao. Paravencer os dilemas entre redistribuio e reconhecimento, podem-se adotar medidas afirmativas outransformativas. As medidas afirmativas tm por objetivo a correo de resultados indesejados sem mexer naestrutura que os forma. J os remdios transformativos tm por fim a correo dos resultados indesejadosmediante a reestruturao da estrutura que os produz (MATOS, 2004).
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Na questo do acesso ao trabalho, as diferenas so expressivas: 6% de brancos
com 10 anos de idade ou mais aparecem nas estatsticas da categoria de trabalhador
domstico, enquanto os pardos chegam a 8,4% e os pretos a 14,6%. Por outro lado, na
categoria empregadores encontram-se 5,7% dos brancos, 2,1% dos pardos e apenas 1,1%
dos pretos. Quanto ao rendimento mensal familiar per capita e distribuio das famlias
por classes, os dados indicam que 20% das famlias cujo chefe de cor branca tinham
rendimento de at 1 salrio mnimo contra 28,6% dos chefes das famlias pretas e 27,7%
das pardas (IBGE, 1999). Segundo ainda os dados do IBGE, em 1999, a populao branca
que trabalhava tinha rendimento mdio de cinco salrios mnimos. Pretos e pardos
alcanavam menos que a metade disso: dois salrios. Essas informaes confirmam a
existncia e a manuteno de uma significativa desigualdade de renda entre brancos, pretos
e pardos na sociedade brasileira.12
11.1.3. O analfabetismo
Outra marca registrada do perodo colonial foi o analfabetismo. A maioria da
populao, segundo Carvalho (2002) era analfabeta: em 1872, meio sculo aps a
Independncia, apenas 16% da populao era alfabetizada.Apenas a elite brasileira da poca era portadora do conhecimento, enquanto o
analfabetismo predominava nas classes mais pobres: quase toda a elite possua estudos
superiores, o que acontecia com pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados num
mar de analfabetos (CARVALHO, 2000A, p. 55). Entre os letrados, principalmente, era
comum a formao jurdica feita em Portugal: primeiro em Coimbra e, depois, em Lisboa.
Alm disso, Portugal proibiu o Brasil de abrir universidades em seu territrio; em
contrapartida, a Espanha permitiu, desde o incio, a criao de universidades em suas
colnias (p. 16).
12 Alm desses dados, podem-se encontrar outras estatsticas sobre desigualdades raciais na publicaoSntese deIndicadores - 2000, editada tambm pelo IBGE.
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Tal contraste pode ser percebido, entre Espanha e Portugal, no que se refere ao
nmero de matrculas: Calculou-se que at o final do perodo colonial umas 150.000
pessoas tinham-se formado nas universidades da Amrica Espanhola. S a Universidade do
Mxico formou 39.367 estudantes at a independncia. Em vivo contraste, apenas 1.242
estudantes brasileiros matricularam-se em Coimbra entre 1772 e 1872, quadro esse que
ser revertido apenas aps a chegada da famlia real ao Brasil, em 1808 (p. 62). No final do
sculo XVIII, somente 16,85% da populao brasileira entre 6 e 15 anos freqentava a
escola (p. 70). notvel, de imediato, a formao de bacharis em Direito desde o incio de
nossa histria. Somente em 1879 houve uma reforma que o dividiu em Cincias Jurdicas e
Cincias Sociais: A reforma de 1879 dividiu o curso em Cincias Jurdicas e Cincias
Sociais, as primeiras para formar magistrados e advogados, as segundas diplomatas,
administradores e polticos (p. 76).
importante mencionar ainda que somente os advogados e mdicos receberam o
ttulo de doutores, que podia referir-se tanto a mdicos como a doutores em direito (p.
90). Os cargos polticos ocupados na esfera estatal pertenciam elite, principalmente aos
proprietrios rurais. Essa mesma elite circulava pelo pas e por postos no Judicirio,
Legislativo e Executivo, buscando assegurar vantagens pessoais. Como conclui Carvalho
(2002, p. 129), a burocracia foi a vocao da elite imperial brasileira.
11.2. A Independncia e a Repblica no Brasil: participao incipiente
Inicialmente, preciso afirmar que os dois fatos histricos de maior relevncia do
Brasil no sculo XIX, a Independncia e a Repblica, respectivamente, ocorreram sem a
real participao da maioria da populao. Ao contrrio, a elite portuguesa, aliada elite
nacional, tomou as decises polticas necessrias para a manuteno dos seus prpriosinteresses. O objetivo desta seo demonstrar tais acontecimentos.
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11.2.1. Um Estado sem nao
Acredita-se que a construo da cidadania esteja ligada essencialmente
construo de uma nao e de um Estado. Isto , tem a ver com a formao de uma
identidade entre as pessoas (tradio, religio, lngua, costumes), com a construo de uma
nacionalidade ou, sob o aspecto jurdico, na formao de um Estado. Assim, o sentimento
de pertencer a uma nao um indicativo importante para tal construo. Sentir-se parte de
uma nao e de um Estado condio fundamental para a construo da cidadania: Isto
quer dizer que a construo da cidadania tem a ver com a relao das pessoas com o Estado
e com a nao. As pessoas se tornavam cidads medida que passavam a se sentir parte de
uma nao e de um Estado (CARVALHO, 2002, p. 12).
No Brasil, como veremos, o Estado precedeu a formao da nao. A formao do
Estado deu-se exclusivamente pela vontade da elite portuguesa, que aceitou e negociou
com a Inglaterra e com a elite brasileira a independncia do pas: Graas
intermediao da Inglaterra, Portugal aceitou a independncia do Brasil mediante o
pagamento de uma indenizao de 2 milhes de libras esterlinas (p. 27).
A relao de dependncia da colnia com Portugal no permitiu formar uma
identidade prpria, nem edificar uma nao propriamente dita. A primeira manifestao de
nossa nacionalidade ocorreu, segundo Carvalho (2000A), apenas em 1865, na Guerra do
Paraguai. A luta contra o inimigo externo, a formao de uma liderana poltica (chefe
inspirador), o culto ao smbolo nacional (a Bandeira) e a unio dos voluntrios de todo o
Brasil possibilitaram o advento de um sentimento comum: o orgulho e a criao da primeira
idia de identidade nacional: no vejo conscincia nacional no Brasil antes da Guerra do
Paraguai (p. 11). Os principais fatos polticos do Brasil ocorreram para atender interesses
individuais, ou de pequenos grupos hegemnicos. Assim foi na Independncia, como nos
diz Costa (1981): as coisas vo simplesmente acontecendo: no jogo das circunstncias edas vontades individuais, no entrechoque de interesses pessoais, de paixes mesquinhas e
de sonhos de liberdade, faz-se a independncia do pas (p. 65). importante afirmar que a
notcia da emancipao poltica do Brasil s chegou a lugares mais distantes aps trs
meses do fato ocorrido.
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O poder poltico concentrou-se nas mos dos proprietrios. A vinda da famlia real
para o Brasil, em 1808, no passou de uma manobra (abertura dos portos) para beneficiar
os ingleses e franceses. Alguns anos mais tarde, as condies se mostravam favorveis para
a independncia do Brasil, o que veio a ocorrer em 7 de setembro de 1822; porm, revelia
do povo.13
Em sua obra A construo da ordem (1996), Jos Murilo de Carvalho trata,
igualmente, entre outras questes, do processo de colonizao, do Brasil Imperial e da elite
poltica. O autor apresenta, logo na introduo, a diferena entre a evoluo das colnias
espanhola e portuguesa na Amrica. Para ele, a diferena bsica que os territrios
espanhis fragmentaram-se politicamente, tornando-se Estados independentes, ao passo que
os portugueses concentraram-se. Enquanto os espanhis passaram por perodos anrquicos
(instabilidade e rebelies), os portugueses no recorreram a essas formas violentas. O
domnio poltico portugus sobre a colnia foi intenso, sendo que os capites-gerais eram
nomeados diretamente pela Coroa e a ela respondiam (p. 12).
Deste modo, o Brasil herdou, na construo de seu Estado, a burocratizao do
Estado moderno, conforme fora descrito por Max Weber: A ordem legal, a burocracia, a
jurisdio compulsria sobre um territrio e a monopolizao do uso legtimo da fora so
caractersticas essenciais do Estado moderno. O Estado moderno utilizou quatro
mecanismos: a burocratizao, o monoplio da fora, a criao de legitimidade e a
homogeneizao da populao dos sditos (WEBER Apud CARVALHO, 2000A, p. 23).
No perodo imperial, existiam dois partidos polticos com ideologias semelhantes:
o Conservador e o Liberal. O primeiro defendia os interesses da burguesia reacionria
proveniente dessa mesma classe, dos donos das terras e senhores de escravos (domnio
agrrio); enquanto o segundo defendia os interesses da burguesia progressista, representada
pelos comerciantes (domnio urbano) (p. 182). Diz Carvalho que, at 1837, no se pode
falar em partido poltico no Brasil, existindo apenas a maonaria.
13 Caio Prado Jnior procurou entender o pas sob o enfoque da interpretao marxista, com o materialismohistrico tendo servido de fundamento terico para explicar o Brasil. J Srgio Buarque de Holanda faz suaanlise em Razes do Brasil, partindo da Economia e da sociedade, de Max Weber. Celso Furtado, NestorDuarte e Raymundo Faoro herdam a vertente do patrimonialismo de Weber. Para Faoro, a formao doEstado portugus est na origem do Brasil, que , essencialmente, estadocntrico, centralizado no poder daautoridade, pois dela a distribuio do mesmo.
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No perodo colonial, assim como na Repblica Velha (1890-1930), a grande
maioria da populao ficou excluda dos direitos civis e polticos, com um reduzido
sentimento de nacionalidade. Isso no significa que no houve resistncia por parte de
alguns grupos oposicionistas (abolicionistas, separatistas, monarquistas, anti-republicanos,
luta pela terra...). Foram muitas as formas de luta, no entanto, todos os movimentos foram
duramente reprimidos e aniquilados pelo poder central: a Balaiada no Maranho e a
Cabanagem no Par (a mais violenta, que vitimou 30 mil pessoas), a Farroupilha no Rio
Grande do Sul, alm de Canudos na Bahia, o Contestado em Santa Catarina e a Revolta da
Vacina no Rio de Janeiro, so alguns exemplos de revoltas localizadas.
11.2.2. Uma Repblica sem povo
Assim como a emancipao poltica (Independncia), a Proclamao da Repblica
brasileira apresentou caractersticas sui generis ao ser instituda, haja vista o seu carter
golpista e elitista. O povo, por sua vez, no s no participou como foi tomado de surpresa
com a proclamao do novo regime. A frase de Aristides Lobo bastante elucidativa, neste
sentido: O povo assistiu quilo bestializado, atnito, surpreso, sem conhecer o que
significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada militar (LOBO,Apud CARONE, 1969, p. 289). Sobre o carter golpista da Proclamao da Repblica,
assim tambm se expressou Murilo de Carvalho (2002): Alm disso, o ato da proclamao
em si foi feito de surpresa e comandado pelos militares que tinham entrado em contato com
os conspiradores civis poucos dias antes da data marcada para o incio do movimento (p.
80)
O processo eleitoral (participao poltica) da populao durante os perodos
imperial e republicano foi insignificante. De 1822 at 1881, votavam apenas 13% da
populao livre. Em 1881, privou-se o analfabeto de votar. De 1881 at 1930 - fim da
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Primeira Repblica -, os votantes no passaram de 5,6% da populao. Foram cinqenta
anos de governo, imperial e republicano, sem povo.14
Assim, at o final da Repblica Velha (1930), a participao poltica popular foi
restrita. No havia propriamente um povo politicamente organizado, nem mesmo um
sentimento nacional consolidado. Os grandes acontecimentos na arena poltica eram
protagonizados pela elite, cabendo ao povo o papel de mero coadjuvante, assistindo a tudo
sem entender muito bem o que se passava.15
11.3. Os vcios das instituies e da cultura poltica brasileira
Outro aspecto da vida poltica brasileira que marcou no apenas o perodo
colonial e republicano, mas, de certa forma, nossa histria poltica atual, est ligado aos
males ou vcios, como o patrimonialismo, o coronelismo, o clientelismo, o populismo e
o personalismo das nossas instituies e lideranas polticas. 16 Por exemplo, segundo
DaMatta (2000), o populismo est vivo, no apenas no Brasil, assim como em toda a
Amrica Latina. As lideranas polticas carregam consigo, alm do personalismo, uma boa
dose do elemento messinico,17 que tem suas longnquas razes histricas no sebastianismo
portugus. Vive-se ainda esperando que algum heri sagrado, ou um salvador da ptriadesa do Olimpo e resolva os problemas da populao. Como bem afirma Renato Janine
Ribeiro (2000, p. 66), as pessoas carregam a expectativa messinica no surgimento de
14 Quanto participao poltica dos brasileiros no processo eleitoral, tem-se os seguintes dados: em 1950 16%; 196018%; 197024%; 198647%; 1989 - 49%; 199851% (CARVALHO, 2000A, p.17).15 Nos anos de 1920 e 1930, boa parte da intelectualidade, como Alberto Torres, Francisco Campos, OliveiraVianna e Azevedo Amaral, defendia o fortalecimento do Estado para fazer as mudanas sociais necessrias.Para Alberto Torres, a sociedade brasileira era desarticulada, no tinha centro de referncia, no tinha
propsito comum. Cabia ao Estado organiz-la e fornecer-lhe esse propsito (Apud CARVALHO, 2002,p.93).16 O tema do clientelismo e do personalismo tambm discutido pelo antroplogo Roberto DaMatta (2000, p.94): O Brasil, at hoje, combina clientelismo com liberalismo e personalismo com lealdade ideolgica.Investigao de opinio realizada nos ltimos vinte anos na Amrica Latina tem mostrado que mais de 60%dos eleitores, na hora de escolher seu candidato, levam em considerao muito mais a pessoa do candidato eno o partido ao qual pertence (Apud BAQUERO, 2004, p. 156).17 Entende-se por messianismo a esperana da salvao coletiva posta nas mos dos indivduos vistos comodotados de dons especiais.
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algum pai da ptria que as livrar do desamparo. preciso parar de esperar por um
milagre sobrenatural: a questo brasileira a necessidade da laicizao (p. 80). DaMatta,
igualmente, trata da esperana messinica da sociedade brasileira ao afirmar que espera-se
um salvador da ptria (p. 104).18
Depende-se sempre de um lder: J que somos incapazes de construir nossa
grandeza, quem sabe se um novo Dom Sebastio no o pode fazer por ns ( CARVALHO,
2000A, p. 24). Este autor insiste na herana lusitana, que achou terreno frtil por estas
paragens para crescer e proliferar: o exemplo mais evidente foi, e continua sendo, a
promiscuidade entre o pblico e o privado; assim, corrupo, clientelismo e
patrimonialismo parecem se perpetuar na terra brasilis.19
A anlise de Caio Prado Jnior evidencia, da mesma forma, alguns vcios da
poltica brasileira, como o clientelismo e a dependncia da metrpole.20
No perodo colonial, cerca de 60% da populao ainda vivia no litoral, mas, aos
poucos, houve uma migrao para o interior (ciclo da minerao); esta, porm, com a
decadncia desse modelo econmico, volta-se para o litoral novamente. A economia, no
perodo colonial, era baseada na monocultura junto com o trabalho escravo. A colnia
apenas devia fornecer matria-prima metrpole, deixando a maioria da populao
brasileira com os parcos excedentes. Quanto organizao social do Brasil, era constituda
18 Srgio Buarque de Holanda, em Razes do Brasil(2000), tratou, igualmente, das origens da sociedade e dacultura poltica brasileira, vendo nelas a continuidade da herana das naes ibricas (Espanha e Portugal),que priorizavam uma cultura personalista (responsabilidade individual) onde imperavam os vnculos pessoaisnas relaes sociais e polticas, deixando os interesses coletivos em um segundo plano. Buarque de Holandatratou, ainda, da repulsa ao trabalho, em que o cio mais importante do que o negcio. E da promiscuidadeentre o pblico e o privado na vida poltica do pas.19O Estado portugus delegou poderes da metrpole, preferiram manter a vinculao patrimonial a rebelar-se [...]. O patrimonialismo tambm no sofreu contestao no momento da independncia, graas naturezado processo de transio (CARVALHO, In: CORDEIRO e COUTO, 2000, p.24). Da mesma forma, p araRaymundo Faoro (2001), o patrimonialismo um dos principais eixos da cultura poltica brasileira. Com a
implantao do capitalismo, surgiu um Estado de natureza patrimonial, cuja estrutura estamental gerou umaelite dissociada da nao: o patronato poltico brasileiro, que atua levando em conta os interesses particularesdo estamento burocrtico ou dos donos do poder. O sistema patrimonial coloca os empregados em uma rede
patriarcal na qual eles representam a extenso da casa do soberano. Para Faoro, essa estrutura poltica e socialtem permanecido na poltica brasileira desde o Estado Novo (BAQUERO, 2006). Sobre o clientelismo,conferir o trabalho de Andrade (2005).20 Caio Prado Jnior (1907-1990), em sua obra Formao do Brasil contemporneo (1994), discorreu acercado povoamento do Brasil, do Tratado de Tordesilhas e do Tratado de Madri. No Norte, segundo o autor,
prevaleceu a cultura do cacau e da Companhia de Jesus; em So Paulo, o bandeirantismo. Refletiu ainda sobrea aliana entre Espanha e Portugal.
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de escravos (totalmente excludos) e mulatos (com possibilidade de ascender socialmente
atravs da Igreja). Caio Prado Jnior buscou explicitar, igualmente, a base material do
Brasil, evidenciando os pecados capitais do pas: latifndio, monocultura, af fiscal da
metrpole, trabalho braal/desqualificao e escravido.Na Evoluo poltica do Brasil (1993), Prado Jnior tratou da colnia e do
processo de ocupao da terra atravs das capitanias: para ele, um ensaio de feudalismo
que no deu certo. No Imprio, estimulou-se a agricultura e a pecuria, mas acabou
prevalecendo o clientelismo poltico atravs da doao de sesmarias. O clientelismo no foi
uma prtica recorrente apenas do Brasil Colonial. Encontramos tal vcio em diferentes
momentos do cenrio poltico, evidenciado, inclusive nas ltimas eleies gerais (2006).
Esse fenmeno mais amplo e atravessa toda a histria poltica do pas. um tipo de
relao que envolve a concesso de benefcios pblicos entre atores polticos. O
clientelismo aumentou com o fim do coronelismo, quando a relao passa a ser diretamente
entre polticos e setores da populao, sem a intermediao do coronel, que perdeu sua
capacidade de controlar os votos da populao. Na vigncia do coronelismo, o controle do
cargo pblico era visto como importante instrumento de dominao e no como simples
empreguismo. O emprego pblico ir adquirir importncia como fonte de renda nas
relaes clientelistas (CARVALHO, 1997).
A questo do coronelismo, outra caracterstica da poltica brasileira, foi tratada
por Victor Nunes Leal, na obra Coronelismo, enxada e voto, publicada em 1948. Na
concepo de Leal, o coronelismo visto como um sistema poltico, uma complexa rede de
relaes que vai desde o coronel at o Presidente da Repblica, envolvendo compromissos
recprocos. Leal se expressa da seguinte forma: o que procurei examinar foi, sobretudo, o
sistema. O coronel entrou na anlise por ser parte do sistema, mas o que mais me
preocupava era o sistema, a estrutura e as maneiras pelas quais as relaes de poder se
desenvolviam na Primeira Repblica, a partir do municpio (LEAL, Apud CARVALHO,1997).
O autor tratou da relao entre o poder local e o poder nacional, na qual o
coronelismo estava inserido. Para ele, o coronelismo surge dentro de um contexto histrico
especfico, incrustado na conjuntura poltica e econmica do Brasil no perodo da
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Repblica Velha (1889-1930). No mbito poltico, cria-se o federalismo, que fora
implantado em substituio ao centralismo imperial. A partir do federalismo, criou-se um
novo ator poltico com amplos poderes, o Presidente de Estado. No mbito econmico,
segundo Leal, vivia-se a decadncia dos fazendeiros, que tambm comentada por
Carvalho:
esta decadncia acarretava enfraquecimento do poder poltico dos coronis emface de seus dependentes e rivais. A manuteno desse poder passava, ento, aexigir a presena do Estado, que expandia sua influncia na proporo em quediminua a dos donos de terra. O coronelismo era fruto de alterao na relao deforas entre os proprietrios rurais e o governo e significava o fortalecimento do
poder do Estado antes que o predomnio do coronel.21
Fica explcito, a partir das consideraes de Leal, que o coronelismo foi um
sistema poltico nacional baseado na troca de favores entre o governo central e os
detentores do poder local. As relaes entre o poder local (coronis) e o governo podem ser
descritas como um caminho de duas vias, ou seja, um necessitava do outro para sobreviver:
O governo estadual garantia, para baixo, o poder do coronel sobre seusdependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos pblicos,desde o delegado de polcia at a professora primria. O coronel hipoteca seuapoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores doseu apoio ao presidente da Repblica em troca do reconhecimento deste seudomnio no Estado. O coronelismo a fase de processo mais longo derelacionamento entre os fazendeiros e o governo (LEAL, Apud CARVALHO,1997).
Leal (1975) seguiu a definio de Baslio de Magalhes para explicar a origem do
conceito de coronelismo no Brasil:
o tratamento de um coronel comeou desde logo a ser dado pelos sertanejos atodo e qualquer chefe poltico, a todo e qualquer potentado, at hoje recebem
popularmente o tratamento de coronis os que tm em mos o basto de
21 O artigo de Carvalho (1997) tambm encontra-se disponvel em http://www.scielo.br/scielo. Acesso em 10de maro de 2005.
http://www.scielo.br/scielohttp://www.scielo.br/scielo -
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comando da poltica edilcia ou os chefes de partidos de maior influncia nacomuna, isto , os mandes dos corrilhos de campanrio (p. 20-21).
Leal acredita que o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto e a
desorganizao dos servios pblicos locais sejam caractersticas prprias do coronelismo.Junto ao coronel est ligado o voto de cabresto e a capangagem (p. 23).
Os trabalhadores rurais, desprovidos de qualquer estrutura que lhes possibilitasse
mudana de vida, eram dependentes do coronel: completamente analfabeto, ou quase, sem
assistncia mdica, no lendo jornais, nem revistas, nas quais se limita a ver as figuras, o
trabalhador rural, a no ser em casos espordicos, tem o patro na conta de benfeitor. E
dele, na verdade, que recebe os nicos favores que sua obscura existncia conhece (p. 25).
A troca de favores era a essncia do compromisso coronelista, que consistia em apoiar oscandidatos do oficialismo nas eleies estaduais e federais: enquanto que, da parte da
situao estadual, vinha carta branca ao chefe local governista (de preferncia o lder da
faco local majoritria) em todos os assuntos relativos ao municpio, inclusive na
nomeao de funcionrios estaduais do lugar (p. 50).
Ao concluir esta seo, percebe-se que muitos outros vcios permanecem na
vida poltica brasileira. So necessrias, alm da participao dos setores organizados da
sociedade civil e do olhar crtico e imparcial da mdia, outras formas de controle eresponsabilizao dos atos administrativos das pessoas que ocupam cargos pblicos. Trata-
se aqui de inserir o conceito de accountability, que quer dizer autoridades politicamente
responsveis, autoridades que podem ser responsabilizadas pelos seus atos, que devem
prestar contas dos seus atos. O accountability (controle democrtico) pode ser vertical
(relao governantes e governados) e horizontal: quando poderes externos podem punir o
prprio governo. Atravs da autonomia dos poderes, autoridades estatais podem controlar o
prprio poder, que podem empreender aes que vo desde o controle rotineiro at sanes
legais ou inclusive impeachment, conforme o caso.22
22Ver estudos de Marenco dos Santos (2003) e ODonnell (1998).
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11.4. Os direitos sociais emergem quando os direitos civis e polticos fenecem
A partir dos anos 20 inicia, paulatinamente, uma nova era na histria poltica
nacional. Os tempos agora so outros, influncias internas, como o processo crescente deurbanizao, industrializao, aumento do operariado, criao do Partido Comunista e a
Semana de Arte Moderna, bem como influncias externas, a crise da Bolsa de Valores de
Nova Iorque, acabam modificando as relaes econmicas e polticas no Brasil. Assim, na
dcada de 1930 o Brasil v emergir, gradativamente, os direitos sociais: A partir desta
data, houve acelerao das mudanas sociais e polticas, a histria comeou a andar mais
rpido (p. 87), principalmente com a criao do Ministrio do Trabalho, Indstria e
Comrcio e a Consolidao das Leis do Trabalho em 1943.23 Fica evidente que, no Brasil,
os direitos sociais no foram conquistados, mas, sim, conseqncia de concesses de
governos centralizadores e autoritrios. Os sindicatos foram atrelados ao Estado de
aspirao fascista. Em termos polticos tivemos retrocesso, pois em 1937 Vargas instaura
uma ditadura apoiada pelos militares instituindo o Estado Novo, que s termina em 1945.
Logo aps esse perodo, o pas passou pela primeira experincia democrtica (1945 at
1964), tendo como principal caracterstica poltica o populismo e o nacionalismo.
No entanto, depois da breve experincia democrtica, os Brasil entrou, do ponto
de vista dos direitos civis e polticos, nos anos mais sombrios da sua histria, o da ditadura
militar. Houve perseguio, cassao dos direitos polticos, tortura e assassinatos das
principais lideranas polticas, sociais e religiosas. Os Atos Institucionais (AIs) deram a
tnica do governo. O AI 1, de 1964, cassou os direitos polticos. O AI 2, de 1965, aboliu a
eleio direta para a Presidncia da Repblica, dissolveu os partidos polticos criados a
partir de 1945 e estabeleceu um sistema de dois partidos. J o AI 5, de 1968, foi
considerado o mais radical de todos, o que mais fundo atingiu direitos polticos e civis. O
Congresso foi fechado, passando o presidente, general Costa e Silva, a governarditatorialmente. Foi suspenso o habeas corpuspara crimes contra a segurana nacional (p.
162), houve cassaes de mandatos, suspenso de direitos polticos de deputados e
23 Diferentes autores que tratam do tema da Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT) so unnimes emafirmar que essa legislao foi, em grande parte, copiada da Carta del Lavoro adotada pelo regime fascistaitaliano.
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vereadores, alm da demisso sumria de funcionrios pblicos, censura imprensa e a
instituio da pena de morte por fuzilamento.
No que se refere aos direitos sociais, percebe-se que houve uma sensvel melhora
na poca dos militares. Foram criados o Instituto Nacional de Previdncia Social (INPS),
Fundo de Assistncia ao Trabalhador Rural (Funrural), Fundo de Garantia do Tempo de
Servio (FGTS), Banco Nacional de Habitao (BNH) e, em 1974, o Ministrio da
Previdncia e Assistncia Social (p. 172).
Aos poucos, porm, o perodo da ditadura militar d sinais de esgotamento e os
ares de novos tempos comeam a soprar no cenrio poltico do Brasil. Depois da presso
poltica da oposio, da opinio pblica, de intelectuais, artistas e da populao em geral, os
militares deixam o poder, de forma negociada, no ano de 1985. Novos partidos foram
criados e a nova Constituio Federal foi promulgada em 1988. Essa Constituio, apesar
da resistncia de alguns setores conservadores da sociedade (como o Centro deputados
que defendiam as grandes propriedades rurais), foi considerada a Constituio mais liberal
de todas. O presidente da Constituinte, Ulisses Guimares, na poca a designou como a
Constituio Cidad.
No entanto, apesar dos avanos polticos, os direitos civis e sociais so deficientes
desde 1985. H precariedade na questo da segurana e no acesso Justia, alm das altas
taxas de homicdios: A taxa nacional de homicdios por 100 mil habitantes passou de 13
em 1980 para 23 em 1995, quando de 8,2 nos Estados Unidos (p. 212). O Judicirio no
cumpre seu papel: alm da morosidade nos trmites e decises, h, tambm, um nmero
reduzido de defensores pblicos.
Deu-se no Brasil, diferentemente de outros pases, a lgica inversa: primeiro os
direitos sociais, depois os polticos e civis. Como bem argumenta Carvalho: Aqui primeiro
vieram os direitos sociais, implantados em perodo de supresso dos direitos polticos e de
reduo dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos
polticos, de maneira tambm bizarra. A maior expanso do direito do voto deu-se em outro
perodo ditatorial, em que os rgos de representao poltica foram transformados em pea
decorativa do regime (p. 220). Alm disso, os direitos civis continuam inacessveis:
Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequncia de Marshall, continuam
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inacessveis maioria da populao. A pirmide dos direitos foi colocada de cabea para
baixo (p. 220).24
Este captulo procurou apresentar argumentos que comprovam a difcil construo
da cidadania no pas. Como sabemos o conceito cidadania sempre esteve e ainda est ligado
conquista de direitos, tanto civis (individuais), quanto polticos e sociais. Percebe-se isso
na histria das civilizaes clssicas (greco-romanas); durante a modernidade (conquistas
da sociedade liberal burguesa); e, especificamente, o caso aqui exposto (experincia do
Brasil).
Tem-se conscincia de que o captulo poderia ter avanado, principalmente, no
debate terico atual da questo da cidadania global e da cidadania cosmopolita. No entanto,
optou-se em responder quais os principais obstculos para a construo da cidadania
brasileira. Pensa-se que, em outra oportunidade, sejam contempladas tais questes.
Constatou-se que o latifndio agroexportador do perodo colonial, bem como o
escravismo e o analfabetismo, marcaram negativamente nossas origens e, at hoje,
dificultam avanos no mbito poltico-social e econmico. Alm dessas, outras razes
foram e continuam sendo entraves para a consolidao das instituies polticas, que
impedem os avanos necessrios para uma cidadania plena. Na ordem poltica,
permanecem ainda algumas mazelas histricas como o patrimonialismo (promiscuidade
entre o pblico e o privado), o personalismo (messianismo), o coronelismo com sua nova
roupagem, o clientelismo, alm da corrupo, entre outros...
Percebeu-se tambm que as conquistas dos direitos no Brasil, comparadas com as
de outros pases, deram-se de maneira tardia e inversa. Somente em 1824, mais de 320 anos
aps a chegada dos portugueses, surgiram os primeiros direitos civis e polticos (antes disso
estvamos submetidos lei da Coroa portuguesa). Aos poucos surgiram os direitos sociais,
mas, exatamente no momento em que os direitos civis e polticos estavam sendo negados,
no perodo da ditadura de Vargas (1937-45) e na ditadura militar (1964-1985).
24 No entendimento de Jos Murilo de Carvalho, a ordem de institucionalizao clssica dos direitos decidadania com base em Marshall (civis, polticos e sociais) no obedeceu mesma lgica seqencial noBrasil.
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Por fim, haveremos de concordar com Benevides (1994, 2000), ao afirmar que, no
intuito de reverter a realidade poltico-social excludente, ou de uma cidadania passiva ou
sem povo, necessrio recorrer defesa de mecanismos institucionais, como o referendo,
o plebiscito e a iniciativa popular para a construo do que a autora chama de uma
cidadania ativa ou democracia semidireta: Assim, discuto a participao poltica, atravs
de canais institucionais, no sentido mais abrangente: a eleio, a votao (o referendo e
plebiscito) e a apresentao de projetos de leis ou de polticas pblicas (iniciativa popular):
Como defendo a complementaridade entre representao e participao direta, adoto, em
decorrncia, a expresso democracia semidireta (p. 10) Embora com grandes
dificuldades, possvel reverter o processo atravs da educao poltica entendida como
educao para a cidadania ativa e plena.