deixem a ortografia em paz
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Jaime Pinsky – “Deixem a ortografia em paz”
maio 12, 2014
Deixem a ortografia em paz
Publicado originalmente no jornal Correio Braziliense em 09/05/2014por Jaime Pinsky
Do Senado, duas notícias, uma boa e outra má. A boa: parece que temos senadores preocupados com o ensino de português. A má: querem alterar outra vez nossa ortografia, agora radicalmente, com a esperança de que, com isso, alunos possam obter melhores resultados na aprendizagem da língua. Criaram até uma comissão, com o objetivo de aplicar o acordo ortográfico (o mesmo que, na prática, já está em vigor), e para fazer com que “se escreva como se fala”. Além de não ser boa, a ideia é impraticável. Fico curioso a respeito de como vai se escrever, por exemplo, aquilo que na ortografia atual é denominada Estação das Barcas (lá na Praça Mauá, no Rio de Janeiro). Para “fazer justiça” à pronúncia, deveríamos grafar “Ijtação daj Barcaj” ou Ixtação dax Barcax”? Fora do Rio, talvez “Istação”, ou ainda “Stação”, como muita gente fala, já que poucos dizem “estação”, além dos curitibanos…
E como redigir o quarto mês do ano? “Abriu”, como dizem muitos brasileiros, “abril”, como diriam alguns gaúchos, ou “abrir”, como parte dos paulistas, mineiros, paranaenses e outros pronunciam? Cabe ao leitor pensar em outros exemplos.
Pesquisas excelentes, feitas por linguistas sérios (Thais Cristófaro, Ataliba Castilho, Stella Maris Bortoni, entre muitos outros) têm mostrado enorme variação linguística até no chamado português culto. Qual seria, pois, o ponto de partida oral, para sua suposta reprodução em texto escrito? Obrigar todos a pronunciar as palavras de uma só maneira, ou ter uma infinidade de representações gráficas para diferentes expressões fonéticas?
Mas isso não é tudo. Como costuma lembrar Carlos Alberto Faraco, a língua escrita não é mero reflexo da língua falada: ambas constituem meios autônomos de manifestação do saber linguístico. A ortografia é uma representação abstrata e convencional da língua. E é fundamental que o sistema ortográfico seja estável e que, independentemente da variação na fala, haja uma única representação gráfica por palavra. Do contrário, não teríamos como reconhecer palavras que fossem escritas em outro tempo (ou até em outro espaço). Seria o caos.
As línguas, patrimônios culturais da humanidade, possuem história. Elas resultam de práticas sociais que as moldaram para que aqui chegassem do jeito que são. São fatores fonológicos, morfológicos, etimológicos e de tradição cultural que fizeram com que nossa língua seja grafada do jeito que é. Línguas também têm parentesco, e nossa origem latina comum permite que possamos ler com relativa facilidade (mesmo que não falemos) outras línguas como o espanhol, o francês e o italiano. Mesmo o inglês, graças ao enorme contingente de palavras de origem latina, fica mais acessível a partir de grafias semelhantes. Arrancar as raízes de nossa ortografia seria romper com importantes aspectos de nossa identidade histórica.
Temos ainda o aspecto prático, talvez o mais relevante de todos. Quando foi imposto o último acordo ortográfico (que, absurdamente, teve sua implantação oficial postergada), toda a indústria editorial movimentou-se para preparar novas edições de todo o seu acervo. Dezenas de milhares de títulos sofreram as mudanças exigidas pelo MEC e outros órgãos governamentais e privados. Gramáticas e dicionários foram refeitos; tratados foram revisados; livros infantis, alterados; manuais, reeditados. Uma nova reforma seria desastrosa, não só para as editoras, mas também para os governos, que teriam que substituir todas as bibliotecas novamente. Trata-se de muito dinheiro jogado fora, possivelmente levando à falência muitas casas editoriais importantes, promovendo gasto desnecessário de verbas públicas, tornando obsoletos bilhões de livros escolares e universitários.
E há, ainda, o aspecto da exclusão social. Quando uma reforma ortográfica é implantada, grande parte dos adultos se torna analfabeta, já que eles nem sempre conseguem reter e utilizar as novas regras inventadas por capricho de meia dúzia de “sábios”, ou de desavisados.
A preocupação é com a qualidade do ensino? Busquem-se soluções adequadas, fazendo com que excelentes pesquisas realizadas por importantes grupos de especialistas possam chegar até as escolas brasileiras, por meio de amplo programa nacional de qualificação de professores do ensino fundamental. Se houver, de fato, intenção de melhorar o ensino no Brasil, está cheio de gente boa pronta para ajudar.
Jaime Pinsky é historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros
http://www.editoracontexto.com.br/blog/jaime-pinsky-deixem-a-ortografia-em-paz/
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Maria Helena de Moura Neves – Em defesa de uma gramática que funcione
out 24, 2013
por Luciana Christante
Uma das principais linguistas do país, pesquisadora da Unesp de Araraquara critica o ensino atual e defende que a disciplina é fascinante
Para a maioria das pessoas alfabetizadas no Brasil, gramática é sinônimo de
decoreba. Maria Helena de Moura Neves, uma das mais respeitadas
linguistas do país, concorda: “Isso que se ensina na escola é ‘gramatiquice’”.
Antes não houvesse, segundo ela, porque cria um bloqueio nos alunos e
impede que se veja sua real beleza. Para a professora aposentada da
Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara, gramática é algo
fascinante, é a vida da língua. E nada tem de rígida como fazem parecer os
manuais que quase ninguém abre. “Quando digo que esta é minha
especialidade, sempre preciso fazer um parêntese para explicar que não fico o
dia todo procurando sujeito, verbo e predicado”, diz, bem-humorada.
Se gramática não é apenas um conjunto de regras
tediosas que servem para classificar mecanicamente palavras, locuções e
orações, o que é afinal? “É aquilo que arranja e arquiteta a produção de
sentidos. É a língua no seu funcionamento. A maior parte do que se decora nas
aulas de gramática não é verdade, porque não é assim que a linguagem
funciona”, afirma.
Maria Helena é uma gramática funcionalista – vertente na qual o que importa é
a função, determinada pelo uso, das formas linguísticas. Em vez de se pautar
pelo que prescrevem os manuais e julgar o que é certo ou errado, ela usa uma
abordagem científica para analisar a gramática viva.
Boa parte de seu trabalho é baseado num corpus, uma base de dados
informatizada que reúne diversos tipos de textos (jornalísticos, didáticos,
ficcionais, oratórios etc.) publicados no Brasil desde o século 19. Um trabalho
que foi desenvolvido por ela e seu colega Francisco da Silva Borba. Iniciado
nos anos 1980 e atualizado periodicamente, o corpus é uma gigantesca
amostra do português real – contém hoje cerca de 200 milhões de palavras
(leia reportagem em Unesp Ciência, 1ª edição).
Contrastar regra e realidade é uma das principais linhas de trabalho da
pesquisadora, o que rendeu dois livros: Guia de uso do português (Editora
Unesp, 2000) e Gramática de usos do português (Editora Unesp, 2003) – dois
catataus, um com 800 e o outro com mais de mil páginas. Para mostrar que a
riqueza e o dinamismo da língua não cabem em manuais engessados, ela cita
o caso do “mas”.
Segundo a norma gramatical, “mas” é uma conjunção adversativa, ou seja,
serve somente para ligar duas orações contrárias. Na prática, porém, ela
aparece conectando também frases que vão na mesma direção. “Comprei esse
livro, mas em São Paulo”, exemplifica a autora em sua sala no câmpus de
Araraquara. Outro exemplo, desta vez literário, vem do conto O búfalo, de
Clarice Lispector, cuja primeira frase é “Mas era primavera.”. “Ninguém pode
dizer que Clarice não sabia gramática”, ironiza.
É nesse terreno escorregadio da linguagem, em que as palavras deslizam para
conferir ao texto diferentes efeitos de sentido, que a linguista transita com
desenvoltura e gostaria de ver os alunos mergulhados. Esse é o caminho,
segundo ela, para reconhecer as características objetivas, persuasivas ou
poéticas de um texto, o que é muito mais importante do que saber se o sujeito
é composto ou oculto. “Desse modo, o aluno cria gatilhos mentais, de forma
que quando quer falar ou escrever para produzir tal sentido, ele aciona esse
processamento.” Em vez de ficar tateando a superfície das palavras, o aluno
deveria ser levado a penetrar no texto, defende.
As críticas ao ensino formal de gramática partem de
alguém que conhece bem a realidade da educação brasileira. Antes de concluir
a graduação em Letras, aos 39 anos, Maria Helena foi professora de português
em escola pública, no ensino fundamental e médio, durante quase duas
décadas. Essa bagagem a levou, vários anos mais tarde, a investigar os
descaminhos do ensino básico da disciplina. Em A gramática – história, teoria e
análise, ensino (Editora Unesp, 2001), Maria Helena traça um diagnóstico
desanimador: “100% dos professores entrevistados afirmam ensinar gramática.
Uma conclusão muito grave que se tira dos resultados da pesquisa, porém, é
que os professores confessam que seu trabalho (…) ‘não serve para nada’”.
Mudar isso é função da universidade, avalia. “O ponto crítico é a formação
dos professores”, diz. “Eles têm de sair da faculdade com a noção de que a
linguagem é operacionalizável no uso, que ela é nosso instrumento de reflexão.
É curioso que, justamente na aula que trabalha a linguagem, não exista espaço
para reflexão.” Essa é a mensagem que ela passa quando participa de cursos
dirigidos a educadores e nas palestras que dá pelo Brasil, quase sempre diante
de auditórios lotados.
Mas diagnosticar o problema e apontar caminhos para mudança não é o
suficiente para a pesquisadora. Seu trabalho ajuda a entender também as
raízes históricas que explicam o anacronismo do ensino contemporâneo da
disciplina.
Raízes gregas
A gramática, como estudo da língua, surgiu na Grécia Antiga, com caráter
explicitamente normativo (o termo grego grammatiké significa “a arte de ler e
escrever”). O primeiro manual conhecido data do século 1º a.C. e foi produzido
na biblioteca de Alexandria. Por essa época, a civilização grega já estava
ruindo, como resultado de um longo período de invasões bárbaras. Assim, a
normatização foi uma resposta à necessidade de preservar a língua e a cultura.
“Naquelas circunstâncias, fazia todo sentido fazer uma gramática
normativa, mas hoje não. Por inércia e falta de compreensão, continuamos
reproduzindo esse modelo”, afirma a pesquisadora.
Foi por causa da Grécia Antiga que Maria Helena
entrou para a academia. Em 1967, a então Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Araraquara (depois encampada pela Unesp) criou a graduação em
Letras Português-Grego. Com os três filhos já praticamente criados, ela não
resistiu e prestou o vestibular. Depois de duas especializações (em Linguística
e Grego), também em Araraquara, partiu direto para o doutorado em Filosofia
na USP, que cursou com a licenciatura em Alemão na Unesp – para poder ler a
literatura da área, na época majoritariamente germânica.
A tese deu origem ao livro A vertente grega da gramática, de 1987
(reeditado pela Editora Unesp em 2004). “É uma obra notável em que ela faz
um estudo muito aprofundado da filosofia grega para desvelar as bases
teóricas e o contexto que cercam o aparecimento da gramática”, afirma José
Luiz Fiorin, professor aposentado de Linguística da USP e colega de Maria
Helena dos tempos de especialização.
Aposentada desde 1987, mas sem nunca ter deixado de trabalhar, a rotina
atual da pesquisadora deixaria muitos jovens com olheiras profundas.
Dormindo cerca de quatro horas por dia, ela dá aula nos cursos de pós-
graduação da Unesp em Araraquara e da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, em São Paulo. É coordenadora do grupo de pesquisa em
gramática de usos do CNPq e assessora do órgão na concessão de bolsas na
área de Linguística. Autora de mais de 20 livros, está prestes a começar a
trabalhar num novo dicionário de usos do português, coordenado por Francisco
da Silva Borba, com quem já produziu três outras obras semelhantes.
“Ao conhecê-la na seleção para a especialização em Linguística, em 1975,
descobri o que era ser o segundo da classe”, recorda Fiorin. Ele destaca ainda
que Maria Helena é a primeira mulher autora de uma gramática no Brasil. Ser a
primeira, aliás, é algo a que ela está acostumada desde cedo. A vaga de
professora na rede pública, que assumiu com 18 anos, foi um prêmio recebido
por ter sido a melhor aluna de sua turma de Magistério. Seu fascínio pela
gramática, porém, é anterior. Ainda menina, costumava abrir sobre a mesa
três edições de Os lusíadas para compará-las.
Com uma legião de fãs no país, a pesquisadora protagonizou um evento
atípico em agosto de 2008, em Araraquara. Seus ex-orientandos e colegas
organizaram um congresso para homenageá-la. Foram três dias de
programação com a fina nata da Linguística brasileira apresentando e
debatendo diversas vertentes da pesquisa em gramática, não só a
funcionalista. “Queríamos demonstrar nossa admiração por suas inestimáveis
contribuições à Linguística, pela sua atuação generosa e exemplar na
formação de novos pesquisadores, pela afetividade que partilha com todos que
dela se acercam”, diz a organizadora do evento, Marize Mattos Dall’Aglio
Hattnher, ex-aluna e hoje professora da Unesp em São José do Rio Preto. Sua
obra é reconhecida inclusive por colegas de universidades portuguesas, que
frequentemente a convidam para participar em eventos além-mar.
Maria Helena confessa que é do tipo de orientadora que “pega no colo”, mas
exige dedicação. Alunos de iniciação científica ela só aceita se puderem passar
quatro horas diárias na sua casa. “Quando eles terminam o trabalho, já estão
com o projeto de mestrado pronto”, orgulha-se. Os orientandos de mestrado e
doutorado sempre somam dez, “que é o máximo permitido pela Capes”,
justifica. Nesse ritmo, ela já formou cerca de meia centena de pesquisadores e
não pretende parar tão cedo.
Modismos e acordo ortográfico
Para alguém que entende a língua como um sistema dinâmico e
indeterminado, fenômenos atuais como o excesso de estrangeirismos e
gerundismos não são exatamente um problema, ainda que muitos os vejam
como atentados ao bom português. Sobre a invasão de palavras de origem
inglesa no vocabulário, Maria Helena relativiza lembrando que, quando o
francês ditava a moda, condenavam-se os galicismos. Já em relação ao
gerundismo, a pesquisadora vê o fenômeno como resultado do surgimento dos
call centers. “Construindo a frase com gerúndio você minimiza uma ordem, dilui
a ação no tempo. Fica mais polido. O problema é que acabou criando um calo,
mas também não precisa abolir.”
A língua tem mecanismos de defesa, segundo ela. Como exemplo, cita os
estrangeirismos usados como estratégia de marketing que a população
geralmente ignora. Apesar do que ditam algumas vitrines, ninguém diz “Eu vou
a uma sale” ou “Comprei esta blusa com 50% off”. “Não adianta fazer lei, quem
vai dizer o que fica é o povo.” Ela também não teme pela extinção da literatura
diante da avalanche de livros de autoajuda que, para ela, não valem como
leitura. “A literatura coloca o leitor numa situação de interlocução. Ele vai
imaginar, sentir, se enlevar, se elevar. A autoajuda tem outra função, que é
resolver problemas.” Para a linguista, a boa literatura nunca vai acabar.
Outro tema candente para o qual a pesquisadora vem sendo muito requisitada
é o acordo ortográfico, que ela julga necessário, embora critique a forma como
foi implementado. “Vivemos num mundo globalizado, então é importante que
Brasil e Portugal escrevam da mesma forma.” Por outro lado, diz, houve uma
série de equívocos de interpretação do acordo, que acarretaram diversos
problemas ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, o Volp, elaborado
pela Academia Brasileira de Letras. Segundo ela, é por isso que o acordo tem
gerado tanta confusão, principalmente no caso da hifenização. “Vão ter de
consertar o Volp”, decreta.
O que dizem sobre Maria Helena
Francisco da Silva Borba
prof. aposentado da Unesp em Araraquara
Além de ser muito inteligente, ela tem uma determinação e uma disciplina incríveis. A agilidade
mental dela é invejável. Vive o trabalho com muita intensidade e está sempre disposta a
aprender com seus alunos. Escreve com clareza e simplicidade. É a pesquisadora mais
produtiva que conheço. É dela a melhor gramática que existe atualmente, pois reflete
exatamente como a língua funciona. Sua contribuição para a Linguística brasileira é inegável.
José Luiz Fiorin
professor aposentado da USP
Sua obra apresenta não apenas extensão máxima como uma qualidade de mais alto grau.
Profunda conhecedora da tradição gramatical, ela tem plena noção do preceituário normativista
dos nossos compêndios gramaticais. Conhece muito bem, por sua minuciosa pesquisa, como
estão sendo distribuídas as diferentes formas no uso vivo da língua. Sua carreira é de uma
notável coerência. Conhecê-la e ser seu amigo foi um dos maiores privilégios que a vida
acadêmica me ofereceu.
Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher
professora da Unesp em S. José do Rio Preto
Ser orientada por ela é ter a experiência de aprender com a clareza de seu raciocínio; é
encontrar o encantamento a cada nova pergunta que deriva de uma pesquisa; é aprender a
pensar com autonomia; é ter a certeza de uma companhia atenta, de uma instrução segura.
Gramática para nosso tempomaio 21, 2012
Gustavo Fonseca – Estado de Minas (12/05/2012)
Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo: uma forma apaixonada de apresentar a vitalidade da cultura
Em meados dos anos 1980, alguns dos mais destacados linguistas e
gramáticos brasileiros publicaram livros em que questionavam boa parte das
bases teóricas das gramáticas tradicionais. Entre eles, o professor de
linguística da Faculdade de Letras da UFMG Mário Alberto Perini sintetizou
parcela significativa da discussão no hoje clássico Para uma nova gramática do
português (1985), obra com poucas dezenas de páginas e uma agenda de longo
prazo a ser desenvolvida por especialistas da área tendo em vista a construção
de um arcabouço conceitual mais sólido que o apresentado nos compêndios
utilizados nas escolas nacionais para o estudo da língua portuguesa.
Dez anos mais tarde, Perini publica sua Gramática descritiva do português, na
qual avança em determinadas questões, mas deixa em aberto ou a aprofundar
inúmeras outras, que ele mesmo se comprometia a voltar a discutir. Promessa
feita, promessa cumprida: em 2010 o professor Perini lançou outro marco nesta
jornada iniciada há mais de 25 anos, sua Gramática do português brasileiro.
Em ambos os livros, estabelece-se como público-alvo a comunidade
acadêmica de letras e os professores de língua portuguesa dos níveis
fundamental e médio. Assim, ainda que reconheça a necessidade de levar as
novas ideias gramaticais às escolas brasileiras, Perini deixa essa etapa para
um segundo momento.
Como o colega mineiro, o ex-professor titular da USP e assessor linguístico do
Museu da Língua Portuguesa Ataliba de Castilho, autor da Nova gramática do
português brasileiro, também publicada em 2010, destina sua obra aos
especialistas. No entanto, diferentemente de Perini, Ataliba de Castilho
apressou-se em disponibilizar aos professores dos níveis fundamental e médio
e seus alunos material baseado em sua nova abordagem da gramática. O
resultado dessa iniciativa é o recém-lançado Pequena gramática do português
brasileiro, escrita em parceria com Vanda Maria Elias.
No livro, os autores propõem uma maneira ativa de estudar o português. Os
exemplos e exercícios não vêm apenas do cânone, mas também de crônicas,
quadrinhos, notícias de jornais e mensagens trocadas em redes sociais,
estimulando o aluno a formular suas próprias perguntas. A Pequena
gramática. segue a premissa de que uma língua só existe a partir de seu uso,
mostrando que o português é uma língua viva, que vai muito além de fórmulas.
É um livro rigoroso, mas que não se esconde nas prescrições e indicações
normativas. E, sobretudo, feito por quem gosta do português e quer despertar o
mesmo interesse nos alunos e professores.
Todos esses pontos são indiscutivelmente relevantes, assim como as
perguntas e respostas elaboradas pelo professor Perini em suas obras. No
entanto, mais importante ainda talvez seja a divulgação feita pelos dois
professores da gramática como campo de estudos em constante evolução,
algo surpreendente a muitos leigos e a boa parcela dos acadêmicos de letras,
como bem resumido no divertido Sofrendo a gramática, publicado por Perini em
1997: “Contrariando a crença popular, existe muita coisa desconhecida em
gramática; e, correspondentemente, faz-se grande quantidade de pesquisa
nessa área, descobrem-se novos fatos, controem-se novas teorias”. E conclui,
cutucando o método de ensino praticado no país: “A gramática não é nada
daquilo que nos impingem na escola. É uma disciplina ocupada, como as
demais disciplinas científicas, em estudar um aspecto do mundo, a saber, a
estrutura e o funcionamento das línguas. Entendida desse jeito, não só se torna
muito mais interessante, como abre a possibilidade de pesquisa. Há o que
descobrir em gramática, e muito”.
Nesse aspecto, a Pequena gramática do português brasileiro contribui e muito para
a mudança de atitude a respeito do estudo da língua portuguesa nas escolas
brasileiras. Em relação às aulas de português, aliás, Perini se põe ao lado dos
alunos contra as tediosas e infrutíferas lições – mas também apoia os
professores, igualmente vítimas das limitações das gramáticas tradicionais,
como ressalta em muitos de seus livros. No mesmo Sofrendo a gramática,
expõe de forma clara o que se passa nos colégios país afora: “O aluno de
terceiro ano primário já está estudando as classes de palavras e a análise
sintática – e não sabe. Ao chegar ao terceiro colegial, continua estudando a
análise sintática e as classes de palavras – e continua não sabendo. Um
professor de português, mesmo que de colegial, não pode entrar na sala
esperando que os alunos dominem a análise sintática, ou que possam
distinguir uma preposição de um advérbio, sob pena de graves decepções. E
eles estudam esse assunto há oito anos, às vezes mais! Decididamente,
alguma coisa está muito errada”.
Novamente desmentindo as correntes dominantes no país, Mário Perini e
Ataliba de Castilho não veem numa suposta preguiça ou desinteresse dos
estudantes, ou mesmo na desmotivação ou no despreparo dos professores, a
raiz do entrave à aprendizagem gramatical. Para eles, na verdade, a origem do
problema é o fato de as próprias gramáticas tradicionais apresentarem graves
inconsistências teóricas, o que leva os alunos a se desinteressar pelo tema e
os professores a repetir como dogmas os ensinamentos dos mestres do
passado.
A fim de resolver toda a situação, cabe aos linguistas e gramáticos a
construção de uma disciplina mais bem estruturada e coerente. A tarefa, claro,
demanda tempo e o esforço de inúmeros especialistas. Nesse cenário, as
publicações de Mário Perini e de Ataliba de Castilho têm o papel ímpar de
manter aceso o debate. E a Pequena gramática do português brasileiro o mérito de
dar um passo à frente na construção de material didático mais propício ao
aprendizado da língua portuguesa.
Ataliba T. de Castilho – “Nova Gramática do português brasileiro” na Revista Épocaabr il 20, 2010
“Menas”, por favor!Em confronto com as regras da norma culta, duas gramáticas e uma exposição defendem o modo brasileiro de falar
Mariana Shirai
A gente vamos falar errado menas vezes. Por mais estranheza que provoque
hoje, essa frase poderá ser considerada uma maneira culta de usar a língua…
no ano de 2210. Nem estaremos nos comunicando em português, mas sim em
língua brasileira. Essas são algumas projeções feitas pelo linguista Ataliba
Teixeira de Castilho, professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e
estudioso da área há mais de cinco décadas. “Acho que em 200 anos teremos
uma língua brasileira, totalmente diferente do português europeu e do africano”,
diz ele. “Só não posso garantir, porque a linguística não é uma ciência do
futuro, mas do presente e do passado.”
Castilho é autor de uma das duas gramáticas do português do Brasil que
acabam de chegar às livrarias. Os livros, somados a uma exposição em São
Paulo sobre as diferentes maneiras de falar do brasileiro, são uma tentativa de
valorizar os desvios da norma culta praticados no país. Eles questionam a ideia
de que haja uma maneira certa e outra errada de falar.
O futuro imaginado por Castilho pode parecer nada “haver”, mas se baseia em
teorias fundamentadas. O professor esteve entre os acadêmicos que iniciaram
o estudo da linguística (ciência que trata da linguagem verbal humana) no
Brasil, na década de 70. De lá para cá, participou da criação de relevantes
trabalhos da área, como a Gramática do português falado, primeiro estudo do
gênero entre as línguas romanas, Para a história do português brasileiro e A
linguagem falada culta na cidade de São Paulo. Ele se apoiou no conhecimento
acumulado para escrever a recém-lançada Nova gramática do português
brasileiro (Contexto, 768 páginas, R$ 69,90).
A obra não é o tipo de gramática com a qual estamos
acostumados. “Não estou preocupado com o certo ou o
errado”, afirma Castilho (leia a entrevista). “Fiz um retrato
da língua como ela é falada no Brasil, com suas
variedades.” Isso quer dizer que o livro não deve ser
usado como uma referência de como falar ou escrever
dentro da norma culta – o conjunto de regras usadas
pelos falantes cultos, descritas em gramáticas tradicionais. Ele mapeia os
diferentes jeitos de usar a língua, incluindo aí formas que seriam consideradas
erros pelos mais conservadores. Castilho analisa expressões como “ni mim”,
“ta falano no telefone” e “quem que chegou?” a partir da constatação de que
são fenômenos da língua, deixando as regras de lado.
Também na trilha de identificar uma língua brasileira, o professor da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Mario Alberto Perini acaba de
lançar Gramática do português brasileiro (Parábola Editorial, 368 páginas, R$ 50).
Mais concisa, a obra é a adaptação de outra gramática dele, a Modern
portuguese: a reference grammar, escrita com o intuito de ensinar estrangeiros a
falar o português brasileiro. “O português do Brasil (e não o europeu) é usado por
190 milhões de pessoas, é a oitava língua mais falada no mundo”, diz. “O fato
de ele nunca ter sido organizado em forma de gramática é uma situação
anômala, que mexe com nossos brios.”
Castilho concorda. “O futuro da língua portuguesa repousa no Brasil.” O
lançamento das duas gramáticas é também relevante para o momento atual do
país. “Tudo na linguagem é uma questão política. O país está numa fase
interessantíssima.” Tentativas de unificar a língua, como o recente Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa, podem ser vistas como um movimento
oposto ao natural distanciamento e dominância do português falado no Brasil
em relação às variantes europeias e africanas.
As iniciativas que valorizam o falar brasileiro não estão apenas nos livros. Em
São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa apresenta, até 27 de junho, a
exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo, com curadoria de Castilho
e do professor de cursinho Eduardo Calbucci. É a primeira exposição do museu
– um dos mais visitados do país – que trata da língua portuguesa. As outras
mostras abordaram a obra de escritores, como Guimarães Rosa e Clarice
Lispector.
SEM ERROA exposição Menas exibe desvios da norma culta, abordados nas obras de Castilho e PeriniOs 420 metros quadrados do 1o andar da instituição foram cobertos por
instalações multimídias, jogos interativos e vídeos que tratam exatamente dos
desvios da norma padrão praticados pelo brasileiro na fala, na escrita cotidiana,
na literatura e na música. “Queremos mostrar que o bom falante é aquele que
sabe escolher a variedade linguística de acordo com a situação”, afirma
Calbucci.
A exposição aborda com sucesso a ideia de que não há maneira errada de
usar a língua. Logo no início, o visitante depara com frases como “Se alguém
usou uma palavra, ela existe” e “A língua varia no tempo e no espaço”. Visitada
principalmente por grupos de crianças em fase escolar, a exposição pode ser
um problema, caso não haja orientação correta. Mesmo que sem intenção, ela
valoriza os desvios em detrimento da norma culta. “Não é uma boa iniciativa”,
diz o professor Evanildo Bechara, o mais importante gramático do Brasil. “É
como dizer: ‘Se todo mundo está usando o crack, por que eu não vou usar?’.
Se o aluno aprende a língua que ele já sabe, ou a escola está errada, ou o
aluno não precisa da escola.”
O mérito da exposição e das gramáticas de Ataliba e de Perini está em divulgar
uma ideia simples e ainda pouco compreendida: a língua está em constante
mutação. Por isso, não deve ser avaliada apenas a partir da norma culta. O
que hoje é visto como erro pode ser abraçado pelo padrão amanhã.
4 Comentários
“Nova gramática do português brasileiro” – Ataliba T. de Castilho na Época
abr 20, 2010
Ataliba T. de Castilho: A língua sem PhotoshopO linguista conta como fez sua gramática registrando a fala espontânea
Redação Época
ÉPOCA – Como foi feita a pesquisa que deu origem a sua
gramática?
Ataliba de Castilho – Fui acumulando esse
conhecimento durante meus 50 anos de magistério. Li
toda a produção brasileira dos últimos 30 anos sobre o
assunto, boa parte dela com minha participação. Estava
na hora de colocar tudo isso na forma de gramática, um
tipo de texto que as pessoas já sabem do que se trata. O livro é o resultado da
leitura e da interpretação desses trabalhos.
ÉPOCA – Na prática, como ela deve ser usada?
Castilho – É para o estudo nos cursos de letras e também para o ensino médio.
A novidade desse texto é que ele convida as pessoas a pensar. O estilo normal
das gramáticas é como o de Moisés quando faz revelações ao povo. Quis fazer
um texto mais argumentativo. Exponho dados, faço análises sobre eles e
depois questiono o leitor: “Que tal analisar esse fato de outro jeito?”.
ÉPOCA – Quais são as diferenças entre sua gramática e as gramáticas comuns?
Castilho – É uma questão de ênfase. O gramático visa a ensinar as pessoas a
evitar o erro, a praticar o português correto. A minha não é desse tipo. Retrato
o português do Brasil, é um registro de como se fala aqui. Não estou
preocupado com o certo ou o errado. Quero mostrar como a língua é, com suas
variedades. É a língua sem o Photoshop, que se distancia da norma padrão.
ÉPOCA – Essa não é uma questão mais política do que linguística?
Castilho – Tudo na linguagem é política. O futuro da língua portuguesa repousa
no Brasil. Os estrangeiros querem aprender o português do Brasil, porque é
conosco que eles fazem comércio.
ÉPOCA – De que maneira usar a gramática no ensino médio se ela se distancia da
norma culta?
Castilho – Quero um novo modo de fazer gramática e de fazer ciência no
Brasil. Desde que comecei a lecionar, aos 22 anos, esse é meu desejo. O
ensino de hoje se fundamenta no certo e no errado. Mas isso não tem dado
resultado. A avaliação de que “menas” está errado é algo de hoje, não
necessariamente de amanhã. Na sala de aula, é preciso que se reflita sobre a
língua, e não ensinar o português – isso o aluno já sabe. Se o aluno que
domina a variante popular voltar para o ambiente familiar falando a norma
culta, haverá uma ruptura da identidade linguística. Ao expor as possibilidades
de fala, explicando onde e quando se deve usar cada uma, o aluno vai ser um
bilíngue em sua própria língua.
Meu pai era lavrador e minha mãe professora primária. Até os 6 anos morei na
roça. Meu avô tinha uma fazenda e mandou contruir uma escola onde minha
mãe trabalhava. De tempos em tempos vinha um inspetor escolar para saber
se o ensino estava sendo passado de maneira correta. E ela falava “nós
faremos isso no próximo semestre”, “nós fizemos tal”. Eu eu pensava, o que é
isso? No dia-a-dia falávamos “a gente”, e não nós. Naquele momento, minha
mãe falava de um modo tão estranho que eu achava que ela não era mais da
nossa família. Ela não era doida, falava com o inspetor na língua do inpetor.
Mas ali na roça, para falar com a família, a língua era outra.
ÉPOCA – Um dia teremos uma língua brasileira?
Castilho – Acho que sim, inevitavelmente. Eu diria que em 200 anos, muito
mais pelo afastamento do português europeu do que pelo afastamento do
português brasileiro. No século XVIII, os portugueses ingressaram num novo
ritmo de pronúncia das palavras. Passaram a engolir as vogais muito mais do
que aqui. Eles se afastam cada vez mais, e ninguém sabe a razão disso.
ÉPOCA – A internet muda a língua?
Castilho – A escrita vai se marcar pelas propriedades do meio. Isso não é
espantoso. Quando Gutenberg inventou a imprensa de tipos móveis, no século
XVI, a tecnologia da escrita mudou radicalmente. Desapareceu o escriba, a
pessoa treinada na grafia manual. Agora vem outra mudança, com a rapidez
das abreviaturas. Não adianta olhar com receio. O lado vantajoso é que os
jovens estão escrevendo muito mais.
ÉPOCA – Não é uma contradição fazer uma gramática que não é para referência?
Castilho – É um trabalho paradoxal, eu tenho consciência disso. É uma
gramática, mas não é normativa. É descritiva, mas é reflexiva também. Eu dou
a minha opinião, mas provoco quem lê a dar a sua. É um lance meio calvinista,
eu tenho uma formação protestante presbiteriana. Nela, se você quiser falar
com Deus, não precisa de um despachante, de um pastor, de um padre ou de
um imagem. Você fala diretamente com Ele. É o mesmo para os muçulmanos.
Eu trouxe isso para a gramática. Se você precisar saber o português, estuda
você mesmo. Com ela, você terá uma orientação: o que está na minha
gramática é o que o povo das letras pensou sobre o assunto nestes anos
todos.
ÉPOCA – Quais são as outras diferenças entre a sua gramática e as normativas?
Castilho – Ela começa pelo texto, e não pela sentença. Houve um grande
avanço nos últimos anos no estudo do texto. E quando você conversa, você
está produzindo um texto. Se eu começar pela sentença, estou começando
pela metade. As gramáticas tratam do som, da palavra e da sentença. Mas a
língua não é só som, palavra e sentença. É muito mais complicado do que isso,
procurei enfrentar essa complexidade natural das letras. Isso está governando
o nosso modo de produzir sentenças e de escolher as palavras e de produzir
os sons.
ÉPOCA – Por que o português do Brasil se distanciou tanto da sua origem?
Castilho – O português que os portugueses trouxeram para cá com toda
certeza é esse que falamos hoje. Conservamos o ritmo espaçado, o chamado
português médio, última fase do português arcaico. Os portugueses vieram
para cá em 1932 e começaram a colonizar o Brasil por São Vicente, depois
vieram para Santo André, São Paulo e aí vieram os bandeirantes, espalhando
a língua por aí. Os colonos do Brasil falavam muito como nós falamos. Os
portugueses mudaram do XVIII para frente, tomaram outro rumo. Nós
mudamos também.
ÉPOCA – A unificação do Acordo Ortográfico não vai um pouco contra o que o
senhor estuda?
Castilho – Seria se a gente desconsiderasse as variantes. Ela admitiu as duas
grafias, foi uma coisa equilibrada. Se você pensar bem, quanto menos sinais
tiver, não é melhor?
(via Época)http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI134039-15220,00-MENAS+POR+FAVOR.html
Mente aberta
15/04/2010 - 14:41
“Menas”, por favor!Em confronto com as regras da norma culta, duas gramáticas e uma exposição defendem o modo brasileiro de falar
MARIANA SHIRAI
FALE EM BRASILEIRO
O linguista Ataliba Teixeira de Castilho com uma prova de sua gramática do português falado no Brasil
A gente vamos falar errado menas vezes. Por mais estranheza que provoque
hoje, essa frase poderá ser considerada uma maneira culta de usar a língua...
no ano de 2210. Nem estaremos nos comunicando em português, mas sim em
língua brasileira. Essas são algumas projeções feitas pelo linguista Ataliba
Teixeira de Castilho, professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e
estudioso da área há mais de cinco décadas. “Acho que em 200 anos teremos
uma língua brasileira, totalmente diferente do português europeu e do africano”,
diz ele. “Só não posso garantir, porque a linguística não é uma ciência do
futuro, mas do presente e do passado.”
Castilho é autor de uma das duas gramáticas do português do Brasil que
acabam de chegar às livrarias. Os livros, somados a uma exposição em São
Paulo sobre as diferentes maneiras de falar do brasileiro, são uma tentativa de
valorizar os desvios da norma culta praticados no país. Eles questionam a ideia
de que haja uma maneira certa e outra errada de falar.
O futuro imaginado por Castilho pode parecer nada “haver”, mas se baseia em
teorias fundamentadas. O professor esteve entre os acadêmicos que iniciaram
o estudo da linguística (ciência que trata da linguagem verbal humana) no
Brasil, na década de 70. De lá para cá, participou da criação de relevantes
trabalhos da área, como a Gramática do português
falado, primeiro estudo do gênero entre as línguas
romanas, Para a história do português brasileiro e A
linguagem falada culta na cidade de São Paulo. Ele se
apoiou no conhecimento acumulado para escrever a
recém-lançada Nova gramática do português
brasileiro (Contexto, 768 páginas, R$ 69,90).
A obra não é o tipo de gramática com a qual estamos
acostumados. “Não estou preocupado com o certo ou o
errado”, afirma Castilho (leia a entrevista). “Fiz um
retrato da língua como ela é falada no Brasil, com suas
variedades.” Isso quer dizer que o livro não deve ser usado como uma
referência de como falar ou escrever dentro da norma culta – o conjunto de
regras usadas pelos falantes cultos, descritas em gramáticas tradicionais. Ele
mapeia os diferentes jeitos de usar a língua, incluindo aí formas que seriam
consideradas erros pelos mais conservadores. Castilho analisa expressões
como “ni mim”, “ta falano no telefone” e “quem que chegou?” a partir da
constatação de que são fenômenos da língua, deixando as regras de lado.
Também na trilha de identificar uma língua brasileira, o professor da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Mario Alberto Perini acaba de
lançar Gramática do português brasileiro (Parábola Editorial, 368 páginas, R$
50). Mais concisa, a obra é a adaptação de outra gramática dele, a Modern
portuguese: a reference grammar, escrita com o intuito de ensinar estrangeiros
a falar o português brasileiro. “O português do Brasil (e não o europeu) é usado
por 190 milhões de pessoas, é a oitava língua mais falada no mundo”, diz. “O
fato de ele nunca ter sido organizado em forma de gramática é uma situação
anômala, que mexe com nossos brios.”
Castilho concorda. “O futuro da língua portuguesa repousa no Brasil.” O
lançamento das duas gramáticas é também relevante para o momento atual do
país. “Tudo na linguagem é uma questão política. O país está numa fase
interessantíssima.” Tentativas de unificar a língua, como o recente Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa, podem ser vistas como um movimento
oposto ao natural distanciamento e dominância do português falado no Brasil
em relação às variantes europeias e africanas.
As iniciativas que valorizam o falar brasileiro não estão apenas nos livros. Em
São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa apresenta, até 27 de junho, a
exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo, com curadoria de
Castilho e do professor de cursinho Eduardo Calbucci. É a primeira exposição
do museu – um dos mais visitados do país – que trata da língua portuguesa. As
outras mostras abordaram a obra de escritores, como Guimarães Rosa e
Clarice Lispector.
SEM ERRO
A exposição Menas exibe desvios da norma culta, abordados nas obras de Castilho e Perini
Os 420 metros quadrados do 1o andar da instituição foram cobertos por
instalações multimídias, jogos interativos e vídeos que tratam exatamente dos
desvios da norma padrão praticados pelo brasileiro na fala, na escrita cotidiana,
na literatura e na música. “Queremos mostrar que o bom falante é aquele que
sabe escolher a variedade linguística de acordo com a situação”, afirma
Calbucci.
A exposição aborda com sucesso a ideia de que não há maneira errada de
usar a língua. Logo no início, o visitante depara com frases como “Se alguém
usou uma palavra, ela existe” e “A língua varia no tempo e no espaço”. Visitada
principalmente por grupos de crianças em fase escolar, a exposição pode ser
um problema, caso não haja orientação correta. Mesmo que sem intenção, ela
valoriza os desvios em detrimento da norma culta. “Não é uma boa iniciativa”,
diz o professor Evanildo Bechara, o mais importante gramático do Brasil. “É
como dizer: ‘Se todo mundo está usando o crack, por que eu não vou usar?’.
Se o aluno aprende a língua que ele já sabe, ou a escola está errada, ou o
aluno não precisa da escola.”
O mérito da exposição e das gramáticas de Ataliba e de Perini está em divulgar
uma ideia simples e ainda pouco compreendida: a língua está em constante
mutação. Por isso, não deve ser avaliada apenas a partir da norma culta. O
que hoje é visto como erro pode ser abraçado pelo padrão amanhã.
Muito bom!
Também fico muito satisfeito por ver que os avanços nos estudos da linguagem
estão sendo divulgados por uma revista de âmbito nacional e que, dados os
comentários, está criando polêmica. Acho que é a partir da discussão e do
embate de ideias cotidianos que podemos mudar nosso ponto de vista. Se
pusermos em pauta esse assunto num almoço de família, na sala de espera do
consultório, na sala de aula, podemos refletir sobre nossas posturas. Achei que
Mariana Shirai soube expor bem as ideias das novas gramáticas, mas gostaria
de comentar duas imprecisões: no final do 4º parágrafo, diz-se que as regras
são deixadas de lado. Na verdade, o que Castilho e Perini fazem é evidenciar
outras regras seguidas pelos falantes do português, aquelas que não são as da
norma padrão. Ninguém usa a língua de forma aleatória. Seguimos regras o
tempo todo, mesmo que elas não estejam de acordo com aquilo que é definido
como correto. Shirai também coloca que o Acordo Ortográfico é uma tentativa
de unificar a língua. Acredito que seja uma questão batida, mas talvez haja
necessidade de reiterar: não se unifica a língua pela ortografia. Continuaremos
com as mesmas variedades, as mesmas diferenças de léxico, pronúncia,
sintaxe. O Acordo convenciona somente que, a partir de agora, vamos marcar
essas diferenças de formas iguais na escrita. Nada além disso. Recorro à
máxima: Não se unifica a língua por decreto. Finalmente, concordo com o
colega Pablo: o comentário de Bechara é absurdamente infeliz. A comparação
das variedades não-prestigiadas com o crack é de um mau gosto extremo. O
gramático transfere todos os traços negativos da droga para as variedades
linguísticas usadas no Brasil. E ainda erra ao supor que se defende o não
ensino da norma padrão. O fato é que o ensino baseado exclusivamente na
norma mostra-se ineficaz há quase 4 décadas. Já não passou da hora de
mudar?
As pessoas precisam saber que há uma ciência da linguagem
Fico muito contente ao ver reportagens que divulgam o conhecimento científico
produzido pela linguística. Infelizmente, o público em geral, até pela forma
como a língua é abordada na escola, não consegue se comportar diante de
afirmações da linguística da mesma forma que se comporta diante de
afirmações de físicos, por exemplo. Se um físico afirma que há uma planeta ou
estrela "assim ou assado", ou que há N dimensões no espaço, as pessoas
aceitam como fato dado. O mesmo, infelizmente, não se aplica à linguística,
por ignorância ou preconceito, como acusa inclusive a reação do gramático
Evanildo Bechara, numa comparação mais do que infeliz, mostrando que
tampouco ele compreende a questão. Finalmente, um ponto merece destaque.
A reportagem se equivocou, ao final, sobre a idéia central de Ataliba de
Castilho. Não é a norma culta que está "em constante mutação". A norma culta
é uma norma, não uma língua. Língua é aquilo que as pessoas de fato utilizam
no dia-a-dia, que o linguista deve observar, descrever e explicar. Ela muda,
sempre. A normal culta é apenas uma decisão arbitrária sobre a forma padrão
que todo brasileiro deve aprender na escola e que deve ser utilizada na escrita
de documentos oficiais. Tanto é arbitrária, que poderia ser inclusive uma língua
diferente, como ocorre por exemplo no Paraguai e em alguns outros países,
cuja língua oficial é o espanhol, mas a falada é o guarani ou outras. Como bem
diz Ataliba, é uma questão política.