deixem a ortografia em paz

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Jaime Pinsky – “Deixem a ortografia em paz” maio 12, 2014 Deixem a ortografia em paz Publicado originalmente no jornal Correio Braziliense em 09/05/2014 por Jaime Pinsky Do Senado, duas notícias, uma boa e outra má. A boa: parece que temos senadores preocupados com o ensino de português. A má: querem alterar outra vez nossa ortografia, agora radicalmente, com a esperança de que, com isso, alunos possam obter melhores resultados na aprendizagem da língua. Criaram até uma comissão, com o objetivo de aplicar o acordo ortográfico (o mesmo que, na prática, já está em vigor), e para fazer com que “se escreva como se fala”. Além de não ser boa, a ideia é impraticável. Fico curioso a respeito de como vai se escrever, por exemplo, aquilo que na ortografia atual é denominada Estação das Barcas (lá na Praça Mauá, no Rio de Janeiro). Para “fazer justiça” à pronúncia, deveríamos grafar “Ijtação daj Barcaj” ou Ixtação dax Barcax”? Fora do Rio, talvez “Istação”, ou ainda “Stação”, como muita gente fala, já que poucos dizem “estação”, além dos curitibanos…

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Page 1: Deixem a Ortografia Em Paz

Jaime Pinsky – “Deixem a ortografia em paz”

maio 12, 2014

Deixem a ortografia em paz

Publicado originalmente no jornal Correio Braziliense em 09/05/2014por Jaime Pinsky

 Do Senado, duas notícias, uma boa e outra má. A boa: parece que temos senadores preocupados com o ensino de português. A má: querem alterar outra vez nossa ortografia, agora radicalmente, com a esperança de que, com isso, alunos possam obter melhores resultados na aprendizagem da língua. Criaram até uma comissão, com o objetivo de aplicar o acordo ortográfico (o mesmo que, na prática, já está em vigor), e para fazer com que “se escreva como se fala”. Além de não ser boa, a ideia é impraticável. Fico curioso a respeito de como vai se escrever, por exemplo, aquilo que na ortografia atual é denominada Estação das Barcas (lá na Praça Mauá, no Rio de Janeiro). Para “fazer justiça” à pronúncia, deveríamos grafar “Ijtação daj Barcaj” ou Ixtação dax Barcax”? Fora do Rio, talvez “Istação”, ou ainda “Stação”, como muita gente fala, já que poucos dizem “estação”, além dos curitibanos…

E como redigir o quarto mês do ano? “Abriu”, como dizem muitos brasileiros, “abril”, como diriam alguns gaúchos, ou “abrir”, como parte dos paulistas, mineiros, paranaenses e outros pronunciam? Cabe ao leitor pensar em outros exemplos.

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Pesquisas excelentes, feitas por linguistas sérios (Thais Cristófaro, Ataliba Castilho, Stella Maris Bortoni, entre muitos outros) têm mostrado enorme variação linguística até no chamado português culto. Qual seria, pois, o ponto de partida oral, para sua suposta reprodução em texto escrito? Obrigar todos a pronunciar as palavras de uma só maneira, ou ter uma infinidade de representações gráficas para diferentes expressões fonéticas?

Mas isso não é tudo. Como costuma lembrar Carlos Alberto Faraco, a língua escrita não é mero reflexo da língua falada: ambas constituem meios autônomos de manifestação do saber linguístico. A ortografia é uma representação abstrata e convencional da língua. E é fundamental que o sistema ortográfico seja estável e que, independentemente da variação na fala, haja uma única representação gráfica por palavra. Do contrário, não teríamos como reconhecer palavras que fossem escritas em outro tempo (ou até em outro espaço). Seria o caos.

As línguas, patrimônios culturais da humanidade, possuem história. Elas resultam de práticas sociais que as moldaram para que aqui chegassem do jeito que são. São fatores fonológicos, morfológicos, etimológicos e de tradição cultural que fizeram com que nossa língua seja grafada do jeito que é. Línguas também têm parentesco, e nossa origem latina comum permite que possamos ler com relativa facilidade (mesmo que não falemos) outras línguas como o espanhol, o francês e o italiano. Mesmo o inglês, graças ao enorme contingente de palavras de origem latina, fica mais acessível a partir de grafias semelhantes. Arrancar as raízes de nossa ortografia seria romper com importantes aspectos de nossa identidade histórica.

Temos ainda o aspecto prático, talvez o mais relevante de todos. Quando foi imposto o último acordo ortográfico (que, absurdamente, teve sua implantação oficial postergada), toda a indústria editorial movimentou-se para preparar novas edições de todo o seu acervo. Dezenas de milhares de títulos sofreram as mudanças exigidas pelo MEC e outros órgãos governamentais e privados. Gramáticas e dicionários foram refeitos; tratados foram revisados; livros infantis, alterados; manuais, reeditados. Uma nova reforma seria desastrosa, não só para as editoras, mas também para os governos, que teriam que substituir todas as bibliotecas novamente. Trata-se de muito dinheiro jogado fora, possivelmente levando à falência muitas casas editoriais importantes, promovendo gasto desnecessário de verbas públicas, tornando obsoletos bilhões de livros escolares e universitários.

E há, ainda, o aspecto da exclusão social. Quando uma reforma ortográfica é implantada, grande parte dos adultos se torna analfabeta, já que eles nem sempre conseguem reter e utilizar as novas regras inventadas por capricho de meia dúzia de “sábios”, ou de desavisados.

A preocupação é com a qualidade do ensino? Busquem-se soluções adequadas, fazendo com que excelentes pesquisas realizadas por importantes grupos de especialistas possam chegar até as escolas brasileiras, por meio de amplo programa nacional de qualificação de professores do ensino fundamental. Se houver, de fato, intenção de melhorar o ensino no Brasil, está cheio de gente boa pronta para ajudar.

Jaime Pinsky é historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros

http://www.editoracontexto.com.br/blog/jaime-pinsky-deixem-a-ortografia-em-paz/

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Maria Helena de Moura Neves – Em defesa de uma gramática que funcione

out 24, 2013

por Luciana Christante

Uma das principais linguistas do país, pesquisadora da Unesp de Araraquara critica o ensino atual e defende que a disciplina é fascinante

Para a maioria das pessoas alfabetizadas no Brasil, gramática é sinônimo de

decoreba. Maria Helena de Moura Neves, uma das mais respeitadas

linguistas do país, concorda: “Isso que se ensina na escola é ‘gramatiquice’”.

Antes não houvesse, segundo ela, porque cria um bloqueio nos alunos e

impede que se veja sua real beleza. Para a professora aposentada da

Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara, gramática é algo

fascinante, é a vida da língua. E nada tem de rígida como fazem parecer os

manuais que quase ninguém abre. “Quando digo que esta é minha

especialidade, sempre preciso fazer um parêntese para explicar que não fico o

dia todo procurando sujeito, verbo e predicado”, diz, bem-humorada.

Page 4: Deixem a Ortografia Em Paz

Se gramática não é apenas um conjunto de regras

tediosas que servem para classificar mecanicamente palavras, locuções e

orações, o que é afinal? “É aquilo que arranja e arquiteta a produção de

sentidos. É a língua no seu funcionamento. A maior parte do que se decora nas

aulas de gramática não é verdade, porque não é assim que a linguagem

funciona”, afirma.

Maria Helena é uma gramática funcionalista – vertente na qual o que importa é

a função, determinada pelo uso, das formas linguísticas. Em vez de se pautar

pelo que prescrevem os manuais e julgar o que é certo ou errado, ela usa uma

abordagem científica para analisar a gramática viva.

Boa parte de seu trabalho é baseado num corpus, uma base de dados

informatizada que reúne diversos tipos de textos (jornalísticos, didáticos,

ficcionais, oratórios etc.) publicados no Brasil desde o século 19. Um trabalho

que foi desenvolvido por ela e seu colega Francisco da Silva Borba. Iniciado

nos anos 1980 e atualizado periodicamente, o corpus é uma gigantesca

amostra do português real – contém hoje cerca de 200 milhões de palavras

(leia reportagem em Unesp Ciência, 1ª edição).

Page 5: Deixem a Ortografia Em Paz

Contrastar regra e realidade é uma das principais linhas de trabalho da

pesquisadora, o que rendeu dois livros: Guia de uso do português (Editora

Unesp, 2000) e Gramática de usos do português (Editora Unesp, 2003) – dois

catataus, um com 800 e o outro com mais de mil páginas. Para mostrar que a

riqueza e o dinamismo da língua não cabem em manuais engessados, ela cita

o caso do “mas”.

Segundo a norma gramatical, “mas” é uma conjunção adversativa, ou seja,

serve somente para ligar duas orações contrárias. Na prática, porém, ela

aparece conectando também frases que vão na mesma direção. “Comprei esse

livro, mas em São Paulo”, exemplifica a autora em sua sala no câmpus de

Araraquara. Outro exemplo, desta vez literário, vem do conto O búfalo, de

Clarice Lispector, cuja primeira frase é “Mas era primavera.”. “Ninguém pode

dizer que Clarice não sabia gramática”, ironiza.

É nesse terreno escorregadio da linguagem, em que as palavras deslizam para

conferir ao texto diferentes efeitos de sentido, que a linguista transita com

desenvoltura e gostaria de ver os alunos mergulhados. Esse é o caminho,

segundo ela, para reconhecer as características objetivas, persuasivas ou

poéticas de um texto, o que é muito mais importante do que saber se   o sujeito

é composto ou oculto. “Desse modo, o aluno cria gatilhos mentais, de forma

que quando quer falar ou escrever para produzir tal sentido, ele aciona esse

processamento.” Em vez de ficar tateando a superfície das palavras, o aluno

deveria ser levado a penetrar no texto, defende.

Page 6: Deixem a Ortografia Em Paz

As críticas ao ensino formal de gramática partem de

alguém que conhece bem a realidade da educação brasileira. Antes de concluir

a graduação em Letras, aos   39 anos, Maria Helena foi professora de português

em escola pública, no ensino   fundamental e médio, durante quase duas

décadas. Essa bagagem a levou, vários anos mais tarde, a investigar os

descaminhos do ensino básico da disciplina. Em A gramática – história, teoria e

análise, ensino (Editora Unesp, 2001), Maria Helena traça um diagnóstico

desanimador: “100% dos professores entrevistados afirmam ensinar gramática.

Uma conclusão muito grave que se tira dos resultados da pesquisa, porém, é

que os professores confessam que seu trabalho (…) ‘não serve para nada’”.

Mudar isso é função da universidade, avalia. “O ponto crítico é a formação

dos professores”, diz. “Eles têm de sair da faculdade com a noção de que a

linguagem é operacionalizável no uso, que ela é nosso instrumento de reflexão.

É curioso que, justamente na aula que trabalha a linguagem, não exista espaço

para reflexão.” Essa é a mensagem que ela passa quando participa de cursos

dirigidos a educadores e nas palestras que dá pelo Brasil, quase sempre diante

de auditórios lotados.

Page 7: Deixem a Ortografia Em Paz

Mas diagnosticar o problema e apontar caminhos para mudança não é o

suficiente para a pesquisadora. Seu trabalho ajuda a entender também as

raízes históricas que explicam o anacronismo do ensino contemporâneo da

disciplina.

Raízes gregas

A gramática, como estudo da língua, surgiu na Grécia Antiga, com caráter

explicitamente normativo (o termo grego grammatiké significa “a arte de ler e

escrever”). O primeiro manual conhecido data do século 1º a.C. e foi produzido

na biblioteca de Alexandria. Por essa época, a civilização  grega já estava

ruindo, como resultado de um longo período de invasões bárbaras. Assim, a

normatização foi uma resposta à necessidade de preservar a língua e a cultura.

“Naquelas circunstâncias, fazia todo sentido fazer uma gramática

normativa, mas hoje não. Por inércia e falta de compreensão, continuamos

reproduzindo esse modelo”, afirma a pesquisadora.

Foi por causa da Grécia Antiga que Maria Helena

entrou para a academia. Em 1967, a então Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras de Araraquara (depois encampada pela Unesp) criou a graduação em

Letras Português-Grego. Com os três filhos já praticamente criados, ela não

Page 8: Deixem a Ortografia Em Paz

resistiu e prestou o vestibular. Depois de duas especializações (em Linguística

e Grego), também em Araraquara, partiu direto para o doutorado em Filosofia

na USP, que cursou com a licenciatura em Alemão na Unesp – para poder ler a

literatura da área, na época majoritariamente germânica.

A tese deu origem ao livro A vertente grega da gramática, de 1987

(reeditado pela Editora Unesp em 2004). “É uma obra notável em que ela faz

um estudo muito aprofundado da filosofia grega para desvelar as bases

teóricas e o contexto que cercam o aparecimento da gramática”, afirma José

Luiz Fiorin, professor aposentado de Linguística da USP e colega de Maria

Helena dos tempos de especialização.

Aposentada desde 1987, mas sem nunca ter deixado de trabalhar, a rotina

atual da pesquisadora deixaria muitos jovens com olheiras profundas.

Dormindo cerca de quatro horas por dia, ela dá aula nos cursos de pós-

graduação da Unesp em Araraquara e da Universidade Presbiteriana

Mackenzie, em São Paulo. É coordenadora do grupo de pesquisa em

gramática de usos do CNPq e assessora do órgão na concessão de bolsas na

área de Linguística. Autora de mais de 20 livros, está prestes a começar a

trabalhar num novo dicionário de usos do português, coordenado por Francisco

da Silva Borba, com quem já produziu três outras obras semelhantes.

“Ao conhecê-la na seleção para a especialização em Linguística, em 1975,

descobri o que era ser o segundo da classe”, recorda Fiorin. Ele destaca ainda

que Maria Helena é a primeira mulher autora de uma gramática no Brasil. Ser a

primeira, aliás, é algo a que ela está acostumada desde cedo. A vaga de

professora na rede pública, que assumiu com 18 anos, foi um prêmio recebido

por ter sido a melhor aluna de sua turma de Magistério. Seu fascínio pela

Page 9: Deixem a Ortografia Em Paz

gramática, porém, é anterior. Ainda menina, costumava abrir sobre a mesa

três edições de Os lusíadas para compará-las.

Com uma legião de fãs no país, a pesquisadora protagonizou um evento

atípico em agosto de 2008, em Araraquara. Seus ex-orientandos e colegas

organizaram um congresso para homenageá-la. Foram três dias de

programação com a fina nata da Linguística brasileira apresentando e

debatendo diversas vertentes da pesquisa em gramática, não só a

funcionalista. “Queríamos demonstrar nossa admiração por suas inestimáveis

contribuições à Linguística, pela sua atuação generosa e exemplar na

formação de novos pesquisadores, pela afetividade que partilha com todos que

dela se acercam”, diz a organizadora do evento, Marize Mattos Dall’Aglio

Hattnher, ex-aluna e hoje professora da Unesp em São José do Rio Preto. Sua

obra é reconhecida inclusive por colegas de universidades portuguesas, que

frequentemente a convidam para participar em eventos além-mar.

Maria Helena confessa que é do tipo de orientadora que “pega no colo”, mas

exige dedicação. Alunos de iniciação científica ela só aceita se puderem passar

quatro horas diárias na sua casa. “Quando eles terminam o trabalho, já estão

com o projeto de mestrado pronto”, orgulha-se. Os orientandos de mestrado e

doutorado sempre somam  dez, “que é o máximo permitido pela Capes”,

justifica. Nesse ritmo, ela já formou cerca de meia centena de pesquisadores e

não pretende parar tão cedo.

 

Modismos e acordo ortográfico

Page 10: Deixem a Ortografia Em Paz

Para alguém que entende a língua como um sistema dinâmico e

indeterminado, fenômenos atuais como o excesso de estrangeirismos e

gerundismos não são exatamente um problema, ainda que muitos os vejam

como atentados ao bom português. Sobre a invasão de palavras de origem

inglesa no vocabulário, Maria Helena relativiza lembrando que, quando o

francês ditava a moda, condenavam-se os galicismos. Já em relação ao

gerundismo, a pesquisadora vê o fenômeno como resultado do surgimento dos

call centers. “Construindo a frase com gerúndio você minimiza uma ordem, dilui

a ação no tempo. Fica mais polido. O problema é que acabou criando um calo,

mas também não precisa abolir.”

A língua tem mecanismos de defesa, segundo ela. Como exemplo, cita os

estrangeirismos usados como estratégia de marketing que a população

geralmente ignora. Apesar do que ditam algumas vitrines, ninguém diz “Eu vou

a uma sale” ou “Comprei esta blusa com 50% off”. “Não adianta fazer lei, quem

vai dizer o que fica é o povo.” Ela também não teme pela extinção da literatura

diante da avalanche de livros de autoajuda que, para ela, não valem como

leitura. “A literatura coloca o leitor numa situação de interlocução. Ele vai

imaginar, sentir, se enlevar, se elevar. A autoajuda tem outra função, que é

resolver problemas.” Para a linguista, a boa literatura nunca vai acabar.

Outro tema candente para o qual a pesquisadora vem sendo muito requisitada

é o acordo ortográfico, que ela julga necessário, embora critique a forma como

foi implementado. “Vivemos num mundo globalizado, então é importante que

Brasil e Portugal escrevam da mesma forma.” Por outro lado, diz, houve uma

série de equívocos de interpretação do acordo, que acarretaram diversos

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problemas ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, o Volp, elaborado

pela Academia Brasileira de Letras. Segundo ela, é por isso que o acordo tem

gerado tanta confusão, principalmente no caso da hifenização.  “Vão ter de

consertar o Volp”, decreta.

O que dizem sobre Maria Helena

Francisco da Silva Borba

prof. aposentado da Unesp em Araraquara

Além de ser muito inteligente, ela tem uma determinação e uma disciplina incríveis. A agilidade

mental dela é invejável. Vive o trabalho com muita intensidade e está sempre disposta a

aprender com seus alunos. Escreve com clareza e simplicidade. É a pesquisadora mais

produtiva que conheço. É dela a melhor gramática que existe atualmente, pois reflete

exatamente como a língua funciona. Sua contribuição para a Linguística brasileira é inegável.

José Luiz Fiorin

professor aposentado da USP

Sua obra apresenta não apenas extensão máxima como uma qualidade de mais alto grau.

Profunda conhecedora da tradição gramatical, ela tem plena noção do preceituário normativista

dos nossos compêndios gramaticais. Conhece muito bem, por sua minuciosa pesquisa, como

estão sendo distribuídas as diferentes formas no uso vivo da língua. Sua carreira é de uma

notável coerência. Conhecê-la e ser seu amigo foi um dos maiores privilégios que a vida

acadêmica me ofereceu.

Marize Mattos  Dall’Aglio Hattnher

professora da Unesp em S. José do Rio Preto

Ser orientada por ela é ter a experiência de aprender com a clareza de seu raciocínio; é

encontrar o encantamento a cada nova pergunta que deriva de uma pesquisa; é aprender a

pensar com autonomia; é ter a certeza de uma companhia atenta, de uma instrução segura.

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Gramática para nosso tempomaio 21, 2012

Gustavo Fonseca – Estado de Minas (12/05/2012)

Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo: uma forma apaixonada de apresentar a vitalidade da cultura

 

Em meados dos anos 1980, alguns dos mais destacados linguistas e

gramáticos brasileiros publicaram livros em que questionavam boa parte das

bases teóricas das gramáticas tradicionais. Entre eles, o professor de

linguística da Faculdade de Letras da UFMG Mário Alberto Perini sintetizou

parcela significativa da discussão no hoje clássico Para uma nova gramática do

português (1985), obra com poucas dezenas de páginas e uma agenda de longo

prazo a ser desenvolvida por especialistas da área tendo em vista a construção

de um arcabouço conceitual mais sólido que o apresentado nos compêndios

utilizados nas escolas nacionais para o estudo da língua portuguesa.

Dez anos mais tarde, Perini publica sua Gramática descritiva do português, na

qual avança em determinadas questões, mas deixa em aberto ou a aprofundar

inúmeras outras, que ele mesmo se comprometia a voltar a discutir. Promessa

Page 13: Deixem a Ortografia Em Paz

feita, promessa cumprida: em 2010 o professor Perini lançou outro marco nesta

jornada iniciada há mais de 25 anos, sua Gramática do português brasileiro.

Em ambos os livros, estabelece-se como público-alvo a comunidade

acadêmica de letras e os professores de língua portuguesa dos níveis

fundamental e médio. Assim, ainda que reconheça a necessidade de levar as

novas ideias gramaticais às escolas brasileiras, Perini deixa essa etapa para

um segundo momento.

Como o colega mineiro, o ex-professor titular da USP e assessor linguístico do

Museu da Língua Portuguesa Ataliba de Castilho, autor da Nova gramática do

português brasileiro, também publicada em 2010, destina sua obra aos

especialistas. No entanto, diferentemente de Perini, Ataliba de Castilho

apressou-se em disponibilizar aos professores dos níveis fundamental e médio

e seus alunos material baseado em sua nova abordagem da gramática. O

resultado dessa iniciativa é o recém-lançado Pequena gramática do português

brasileiro, escrita em parceria com Vanda Maria Elias.

No livro, os autores propõem uma maneira ativa de estudar o português. Os

exemplos e exercícios não vêm apenas do cânone, mas também de crônicas,

quadrinhos, notícias de jornais e mensagens trocadas em redes sociais,

estimulando o aluno a formular suas próprias perguntas. A Pequena

gramática. segue a premissa de que uma língua só existe a partir de seu uso,

mostrando que o português é uma língua viva, que vai muito além de fórmulas.

É um livro rigoroso, mas que não se esconde nas prescrições e indicações

normativas. E, sobretudo, feito por quem gosta do português e quer despertar o

mesmo interesse nos alunos e professores.

Page 14: Deixem a Ortografia Em Paz

Todos esses pontos são indiscutivelmente relevantes, assim como as

perguntas e respostas elaboradas pelo professor Perini em suas obras. No

entanto, mais importante ainda talvez seja a divulgação feita pelos dois

professores da gramática como campo de estudos em constante evolução,

algo surpreendente a muitos leigos e a boa parcela dos acadêmicos de letras,

como bem resumido no divertido Sofrendo a gramática, publicado por Perini em

1997: “Contrariando a crença popular, existe muita coisa desconhecida em

gramática; e, correspondentemente, faz-se grande quantidade de pesquisa

nessa área, descobrem-se novos fatos, controem-se novas teorias”. E conclui,

cutucando o método de ensino praticado no país: “A gramática não é nada

daquilo que nos impingem na escola. É uma disciplina ocupada, como as

demais disciplinas científicas, em estudar um aspecto do mundo, a saber, a

estrutura e o funcionamento das línguas. Entendida desse jeito, não só se torna

muito mais interessante, como abre a possibilidade de pesquisa. Há o que

descobrir em gramática, e muito”.

Nesse aspecto, a Pequena gramática do português brasileiro contribui e muito para

a mudança de atitude a respeito do estudo da língua portuguesa nas escolas

brasileiras. Em relação às aulas de português, aliás, Perini se põe ao lado dos

alunos contra as tediosas e infrutíferas lições – mas também apoia os

professores, igualmente vítimas das limitações das gramáticas tradicionais,

como ressalta em muitos de seus livros. No mesmo Sofrendo a gramática,

expõe de forma clara o que se passa nos colégios país afora: “O aluno de

terceiro ano primário já está estudando as classes de palavras e a análise

sintática – e não sabe. Ao chegar ao terceiro colegial, continua estudando a

análise sintática e as classes de palavras – e continua não sabendo. Um

Page 15: Deixem a Ortografia Em Paz

professor de português, mesmo que de colegial, não pode entrar na sala

esperando que os alunos dominem a análise sintática, ou que possam

distinguir uma preposição de um advérbio, sob pena de graves decepções. E

eles estudam esse assunto há oito anos, às vezes mais! Decididamente,

alguma coisa está muito errada”.

Novamente desmentindo as correntes dominantes no país, Mário Perini e

Ataliba de Castilho não veem numa suposta preguiça ou desinteresse dos

estudantes, ou mesmo na desmotivação ou no despreparo dos professores, a

raiz do entrave à aprendizagem gramatical. Para eles, na verdade, a origem do

problema é o fato de as próprias gramáticas tradicionais apresentarem graves

inconsistências teóricas, o que leva os alunos a se desinteressar pelo tema e

os professores a repetir como dogmas os ensinamentos dos mestres do

passado.

A fim de resolver toda a situação, cabe aos linguistas e gramáticos a

construção de uma disciplina mais bem estruturada e coerente. A tarefa, claro,

demanda tempo e o esforço de inúmeros especialistas. Nesse cenário, as

publicações de Mário Perini e de Ataliba de Castilho têm o papel ímpar de

manter aceso o debate. E a Pequena gramática do português brasileiro o mérito de

dar um passo à frente na construção de material didático mais propício ao

aprendizado da língua portuguesa.

Ataliba T. de Castilho – “Nova Gramática do português brasileiro” na Revista Épocaabr il 20, 2010

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“Menas”, por favor!Em confronto com as regras da norma culta, duas gramáticas e uma exposição defendem o modo brasileiro de falar

Mariana Shirai

A gente vamos falar errado menas vezes. Por mais estranheza que provoque

hoje, essa frase poderá ser considerada uma maneira culta de usar a língua…

no ano de 2210. Nem estaremos nos comunicando em português, mas sim em

língua brasileira. Essas são algumas projeções feitas pelo linguista Ataliba

Teixeira de Castilho, professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e

estudioso da área há mais de cinco décadas. “Acho que em 200 anos teremos

uma língua brasileira, totalmente diferente do português europeu e do africano”,

diz ele. “Só não posso garantir, porque a linguística não é uma ciência do

futuro, mas do presente e do passado.”

Castilho é autor de uma das duas gramáticas do português do Brasil que

acabam de chegar às livrarias. Os livros, somados a uma exposição em São

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Paulo sobre as diferentes maneiras de falar do brasileiro, são uma tentativa de

valorizar os desvios da norma culta praticados no país. Eles questionam a ideia

de que haja uma maneira certa e outra errada de falar.

O futuro imaginado por Castilho pode parecer nada “haver”, mas se baseia em

teorias fundamentadas. O professor esteve entre os acadêmicos que iniciaram

o estudo da linguística (ciência que trata da linguagem verbal humana) no

Brasil, na década de 70. De lá para cá, participou da criação de relevantes

trabalhos da área, como a Gramática do português falado, primeiro estudo do

gênero entre as línguas romanas, Para a história do português brasileiro e A

linguagem falada culta na cidade de São Paulo. Ele se apoiou no conhecimento

acumulado para escrever a recém-lançada Nova gramática do português

brasileiro (Contexto, 768 páginas, R$ 69,90).

A obra não é o tipo de gramática com a qual estamos

acostumados. “Não estou preocupado com o certo ou o

errado”, afirma Castilho (leia a entrevista). “Fiz um retrato

da língua como ela é falada no Brasil, com suas

variedades.” Isso quer dizer que o livro não deve ser

usado como uma referência de como falar ou escrever

dentro da norma culta – o conjunto de regras usadas

pelos falantes cultos, descritas em gramáticas tradicionais. Ele mapeia os

diferentes jeitos de usar a língua, incluindo aí formas que seriam consideradas

erros pelos mais conservadores. Castilho analisa expressões como “ni mim”,

“ta falano no telefone” e “quem que chegou?” a partir da constatação de que

são fenômenos da língua, deixando as regras de lado.

Também na trilha de identificar uma língua brasileira, o professor da

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Mario Alberto Perini acaba de

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lançar Gramática do português brasileiro (Parábola Editorial, 368 páginas, R$ 50).

Mais concisa, a obra é a adaptação de outra gramática dele, a Modern

portuguese: a reference grammar, escrita com o intuito de ensinar estrangeiros a

falar o português brasileiro. “O português do Brasil (e não o europeu) é usado por

190 milhões de pessoas, é a oitava língua mais falada no mundo”, diz. “O fato

de ele nunca ter sido organizado em forma de gramática é uma situação

anômala, que mexe com nossos brios.”

Castilho concorda. “O futuro da língua portuguesa repousa no Brasil.” O

lançamento das duas gramáticas é também relevante para o momento atual do

país. “Tudo na linguagem é uma questão política. O país está numa fase

interessantíssima.” Tentativas de unificar a língua, como o recente Acordo

Ortográfico da Língua Portuguesa, podem ser vistas como um movimento

oposto ao natural distanciamento e dominância do português falado no Brasil

em relação às variantes europeias e africanas.

As iniciativas que valorizam o falar brasileiro não estão apenas nos livros. Em

São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa apresenta, até 27 de junho, a

exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo, com curadoria de Castilho

e do professor de cursinho Eduardo Calbucci. É a primeira exposição do museu

– um dos mais visitados do país – que trata da língua portuguesa. As outras

mostras abordaram a obra de escritores, como Guimarães Rosa e Clarice

Lispector.

SEM ERROA exposição Menas exibe desvios da norma culta, abordados nas obras de Castilho e PeriniOs 420 metros quadrados do 1o andar da instituição foram cobertos por

instalações multimídias, jogos interativos e vídeos que tratam exatamente dos

desvios da norma padrão praticados pelo brasileiro na fala, na escrita cotidiana,

Page 19: Deixem a Ortografia Em Paz

na literatura e na música. “Queremos mostrar que o bom falante é aquele que

sabe escolher a variedade linguística de acordo com a situação”, afirma

Calbucci.

A exposição aborda com sucesso a ideia de que não há maneira errada de

usar a língua. Logo no início, o visitante depara com frases como “Se alguém

usou uma palavra, ela existe” e “A língua varia no tempo e no espaço”. Visitada

principalmente por grupos de crianças em fase escolar, a exposição pode ser

um problema, caso não haja orientação correta. Mesmo que sem intenção, ela

valoriza os desvios em detrimento da norma culta. “Não é uma boa iniciativa”,

diz o professor Evanildo Bechara, o mais importante gramático do Brasil. “É

como dizer: ‘Se todo mundo está usando o crack, por que eu não vou usar?’.

Se o aluno aprende a língua que ele já sabe, ou a escola está errada, ou o

aluno não precisa da escola.”

O mérito da exposição e das gramáticas de Ataliba e de Perini está em divulgar

uma ideia simples e ainda pouco compreendida: a língua está em constante

mutação. Por isso, não deve ser avaliada apenas a partir da norma culta. O

que hoje é visto como erro pode ser abraçado pelo padrão amanhã.

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“Nova gramática do português brasileiro” – Ataliba T. de Castilho na Época

abr 20, 2010

Ataliba T. de Castilho: A língua sem PhotoshopO linguista conta como fez sua gramática registrando a fala espontânea

Redação Época

ÉPOCA – Como foi feita a pesquisa que deu origem a sua

gramática?

Ataliba de Castilho – Fui acumulando esse

conhecimento durante meus 50 anos de magistério. Li

toda a produção brasileira dos últimos 30 anos sobre o

assunto, boa parte dela com minha participação. Estava

na hora de colocar tudo isso na forma de gramática, um

tipo de texto que as pessoas já sabem do que se trata. O livro é o resultado da

leitura e da interpretação desses trabalhos.

ÉPOCA – Na prática, como ela deve ser usada?

Castilho – É para o estudo nos cursos de letras e também para o ensino médio.

A novidade desse texto é que ele convida as pessoas a pensar. O estilo normal

das gramáticas é como o de Moisés quando faz revelações ao povo. Quis fazer

um texto mais argumentativo. Exponho dados, faço análises sobre eles e

depois questiono o leitor: “Que tal analisar esse fato de outro jeito?”.

ÉPOCA – Quais são as diferenças entre sua gramática e as gramáticas comuns?

Castilho – É uma questão de ênfase. O gramático visa a ensinar as pessoas a

evitar o erro, a praticar o português correto. A minha não é desse tipo. Retrato

o português do Brasil, é um registro de como se fala aqui. Não estou

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preocupado com o certo ou o errado. Quero mostrar como a língua é, com suas

variedades. É a língua sem o Photoshop, que se distancia da norma padrão.

ÉPOCA – Essa não é uma questão mais política do que linguística?

Castilho – Tudo na linguagem é política. O futuro da língua portuguesa repousa

no Brasil. Os estrangeiros querem aprender o português do Brasil, porque é

conosco que eles fazem comércio.

ÉPOCA – De que maneira usar a gramática no ensino médio se ela se distancia da

norma culta?

Castilho – Quero um novo modo de fazer gramática e de fazer ciência no

Brasil. Desde que comecei a lecionar, aos 22 anos, esse é meu desejo. O

ensino de hoje se fundamenta no certo e no errado. Mas isso não tem dado

resultado. A avaliação de que “menas” está errado é algo de hoje, não

necessariamente de amanhã. Na sala de aula, é preciso que se reflita sobre a

língua, e não ensinar o português – isso o aluno já sabe. Se o aluno que

domina a variante popular voltar para o ambiente familiar falando a norma

culta, haverá uma ruptura da identidade linguística. Ao expor as possibilidades

de fala, explicando onde e quando se deve usar cada uma, o aluno vai ser um

bilíngue em sua própria língua.

Meu pai era lavrador e minha mãe professora primária. Até os 6 anos morei na

roça. Meu avô tinha uma fazenda e mandou contruir uma escola onde minha

mãe trabalhava. De tempos em tempos vinha um inspetor escolar para saber

se o ensino estava sendo passado de maneira correta. E ela falava “nós

faremos isso no próximo semestre”, “nós fizemos tal”. Eu eu pensava, o que é

isso? No dia-a-dia falávamos “a gente”, e não nós. Naquele momento, minha

mãe falava de um modo tão estranho que eu achava que ela não era mais da

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nossa família. Ela não era doida, falava com o inspetor na língua do inpetor.

Mas ali na roça, para falar com a família, a língua era outra.

ÉPOCA – Um dia teremos uma língua brasileira?

Castilho – Acho que sim, inevitavelmente. Eu diria que em 200 anos, muito

mais pelo afastamento do português europeu do que pelo afastamento do

português brasileiro. No século XVIII, os portugueses ingressaram num novo

ritmo de pronúncia das palavras. Passaram a engolir as vogais muito mais do

que aqui. Eles se afastam cada vez mais, e ninguém sabe a razão disso.

ÉPOCA – A internet muda a língua?

Castilho – A escrita vai se marcar pelas propriedades do meio. Isso não é

espantoso. Quando Gutenberg inventou a imprensa de tipos móveis, no século

XVI, a tecnologia da escrita mudou radicalmente. Desapareceu o escriba, a

pessoa treinada na grafia manual. Agora vem outra mudança, com a rapidez

das abreviaturas. Não adianta olhar com receio. O lado vantajoso é que os

jovens estão escrevendo muito mais.

ÉPOCA – Não é uma contradição fazer uma gramática que não é para referência?

Castilho – É um trabalho paradoxal, eu tenho consciência disso. É uma

gramática, mas não é normativa. É descritiva, mas é reflexiva também. Eu dou

a minha opinião, mas provoco quem lê a dar a sua. É um lance meio calvinista,

eu tenho uma formação protestante presbiteriana. Nela, se você quiser falar

com Deus, não precisa de um despachante, de um pastor, de um padre ou de

um imagem. Você fala diretamente com Ele. É o mesmo para os muçulmanos.

Eu trouxe isso para a gramática. Se você precisar saber o português, estuda

você mesmo. Com ela, você terá uma orientação: o que está na minha

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gramática é o que o povo das letras pensou sobre o assunto nestes anos

todos.

ÉPOCA – Quais são as outras diferenças entre a sua gramática e as normativas?

Castilho – Ela começa pelo texto, e não pela sentença. Houve um grande

avanço nos últimos anos no estudo do texto. E quando você conversa, você

está produzindo um texto. Se eu começar pela sentença, estou começando

pela metade. As gramáticas tratam do som, da palavra e da sentença. Mas a

língua não é só som, palavra e sentença. É muito mais complicado do que isso,

procurei enfrentar essa complexidade natural das letras. Isso está governando

o nosso modo de produzir sentenças e de escolher as palavras e de produzir

os sons.

ÉPOCA – Por que o português do Brasil se distanciou tanto da sua origem?

Castilho – O português que os portugueses trouxeram para cá com toda

certeza é esse que falamos hoje. Conservamos o ritmo espaçado, o chamado

português médio, última fase do português arcaico. Os portugueses vieram

para cá em 1932 e começaram a colonizar o Brasil por São Vicente, depois

vieram para Santo André, São Paulo e aí vieram os bandeirantes, espalhando

a língua por aí. Os colonos do Brasil falavam muito como nós falamos. Os

portugueses mudaram do XVIII para frente, tomaram outro rumo. Nós

mudamos também.

ÉPOCA – A unificação do Acordo Ortográfico não vai um pouco contra o que o

senhor estuda?

Castilho – Seria se a gente desconsiderasse as variantes. Ela admitiu as duas

grafias, foi uma coisa equilibrada. Se você pensar bem, quanto menos sinais

tiver, não é melhor?

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(via Época)http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI134039-15220,00-MENAS+POR+FAVOR.html

Mente aberta

15/04/2010 - 14:41

“Menas”, por favor!Em confronto com as regras da norma culta, duas gramáticas e uma exposição defendem o modo brasileiro de falar

MARIANA SHIRAI

FALE EM BRASILEIRO

O linguista Ataliba Teixeira de Castilho com uma prova de sua gramática do português falado no Brasil

A gente vamos falar errado menas vezes. Por mais estranheza que provoque

hoje, essa frase poderá ser considerada uma maneira culta de usar a língua...

no ano de 2210. Nem estaremos nos comunicando em português, mas sim em

língua brasileira. Essas são algumas projeções feitas pelo linguista Ataliba

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Teixeira de Castilho, professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e

estudioso da área há mais de cinco décadas. “Acho que em 200 anos teremos

uma língua brasileira, totalmente diferente do português europeu e do africano”,

diz ele. “Só não posso garantir, porque a linguística não é uma ciência do

futuro, mas do presente e do passado.”

Castilho é autor de uma das duas gramáticas do português do Brasil que

acabam de chegar às livrarias. Os livros, somados a uma exposição em São

Paulo sobre as diferentes maneiras de falar do brasileiro, são uma tentativa de

valorizar os desvios da norma culta praticados no país. Eles questionam a ideia

de que haja uma maneira certa e outra errada de falar.

O futuro imaginado por Castilho pode parecer nada “haver”, mas se baseia em

teorias fundamentadas. O professor esteve entre os acadêmicos que iniciaram

o estudo da linguística (ciência que trata da linguagem verbal humana) no

Brasil, na década de 70. De lá para cá, participou da criação de relevantes

trabalhos da área, como a Gramática do português

falado, primeiro estudo do gênero entre as línguas

romanas, Para a história do português brasileiro e A

linguagem falada culta na cidade de São Paulo. Ele se

apoiou no conhecimento acumulado para escrever a

recém-lançada Nova gramática do português

brasileiro (Contexto, 768 páginas, R$ 69,90).

A obra não é o tipo de gramática com a qual estamos

acostumados. “Não estou preocupado com o certo ou o

errado”, afirma Castilho (leia a entrevista). “Fiz um

retrato da língua como ela é falada no Brasil, com suas

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variedades.” Isso quer dizer que o livro não deve ser usado como uma

referência de como falar ou escrever dentro da norma culta – o conjunto de

regras usadas pelos falantes cultos, descritas em gramáticas tradicionais. Ele

mapeia os diferentes jeitos de usar a língua, incluindo aí formas que seriam

consideradas erros pelos mais conservadores. Castilho analisa expressões

como “ni mim”, “ta falano no telefone” e “quem que chegou?” a partir da

constatação de que são fenômenos da língua, deixando as regras de lado.

Também na trilha de identificar uma língua brasileira, o professor da

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Mario Alberto Perini acaba de

lançar Gramática do português brasileiro (Parábola Editorial, 368 páginas, R$

50). Mais concisa, a obra é a adaptação de outra gramática dele, a Modern

portuguese: a reference grammar, escrita com o intuito de ensinar estrangeiros

a falar o português brasileiro. “O português do Brasil (e não o europeu) é usado

por 190 milhões de pessoas, é a oitava língua mais falada no mundo”, diz. “O

fato de ele nunca ter sido organizado em forma de gramática é uma situação

anômala, que mexe com nossos brios.”

Castilho concorda. “O futuro da língua portuguesa repousa no Brasil.” O

lançamento das duas gramáticas é também relevante para o momento atual do

país. “Tudo na linguagem é uma questão política. O país está numa fase

interessantíssima.” Tentativas de unificar a língua, como o recente Acordo

Ortográfico da Língua Portuguesa, podem ser vistas como um movimento

oposto ao natural distanciamento e dominância do português falado no Brasil

em relação às variantes europeias e africanas.

As iniciativas que valorizam o falar brasileiro não estão apenas nos livros. Em

São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa apresenta, até 27 de junho, a

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exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo, com curadoria de

Castilho e do professor de cursinho Eduardo Calbucci. É a primeira exposição

do museu – um dos mais visitados do país – que trata da língua portuguesa. As

outras mostras abordaram a obra de escritores, como Guimarães Rosa e

Clarice Lispector.

SEM ERRO

A exposição Menas exibe desvios da norma culta, abordados nas obras de Castilho e Perini

Os 420 metros quadrados do 1o andar da instituição foram cobertos por

instalações multimídias, jogos interativos e vídeos que tratam exatamente dos

desvios da norma padrão praticados pelo brasileiro na fala, na escrita cotidiana,

na literatura e na música. “Queremos mostrar que o bom falante é aquele que

sabe escolher a variedade linguística de acordo com a situação”, afirma

Calbucci.

A exposição aborda com sucesso a ideia de que não há maneira errada de

usar a língua. Logo no início, o visitante depara com frases como “Se alguém

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usou uma palavra, ela existe” e “A língua varia no tempo e no espaço”. Visitada

principalmente por grupos de crianças em fase escolar, a exposição pode ser

um problema, caso não haja orientação correta. Mesmo que sem intenção, ela

valoriza os desvios em detrimento da norma culta. “Não é uma boa iniciativa”,

diz o professor Evanildo Bechara, o mais importante gramático do Brasil. “É

como dizer: ‘Se todo mundo está usando o crack, por que eu não vou usar?’.

Se o aluno aprende a língua que ele já sabe, ou a escola está errada, ou o

aluno não precisa da escola.”

O mérito da exposição e das gramáticas de Ataliba e de Perini está em divulgar

uma ideia simples e ainda pouco compreendida: a língua está em constante

mutação. Por isso, não deve ser avaliada apenas a partir da norma culta. O

que hoje é visto como erro pode ser abraçado pelo padrão amanhã.

Muito bom!

Também fico muito satisfeito por ver que os avanços nos estudos da linguagem

estão sendo divulgados por uma revista de âmbito nacional e que, dados os

comentários, está criando polêmica. Acho que é a partir da discussão e do

embate de ideias cotidianos que podemos mudar nosso ponto de vista. Se

pusermos em pauta esse assunto num almoço de família, na sala de espera do

consultório, na sala de aula, podemos refletir sobre nossas posturas. Achei que

Mariana Shirai soube expor bem as ideias das novas gramáticas, mas gostaria

de comentar duas imprecisões: no final do 4º parágrafo, diz-se que as regras

são deixadas de lado. Na verdade, o que Castilho e Perini fazem é evidenciar

outras regras seguidas pelos falantes do português, aquelas que não são as da

norma padrão. Ninguém usa a língua de forma aleatória. Seguimos regras o

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tempo todo, mesmo que elas não estejam de acordo com aquilo que é definido

como correto. Shirai também coloca que o Acordo Ortográfico é uma tentativa

de unificar a língua. Acredito que seja uma questão batida, mas talvez haja

necessidade de reiterar: não se unifica a língua pela ortografia. Continuaremos

com as mesmas variedades, as mesmas diferenças de léxico, pronúncia,

sintaxe. O Acordo convenciona somente que, a partir de agora, vamos marcar

essas diferenças de formas iguais na escrita. Nada além disso. Recorro à

máxima: Não se unifica a língua por decreto. Finalmente, concordo com o

colega Pablo: o comentário de Bechara é absurdamente infeliz. A comparação

das variedades não-prestigiadas com o crack é de um mau gosto extremo. O

gramático transfere todos os traços negativos da droga para as variedades

linguísticas usadas no Brasil. E ainda erra ao supor que se defende o não

ensino da norma padrão. O fato é que o ensino baseado exclusivamente na

norma mostra-se ineficaz há quase 4 décadas. Já não passou da hora de

mudar? 

As pessoas precisam saber que há uma ciência da linguagem

Fico muito contente ao ver reportagens que divulgam o conhecimento científico

produzido pela linguística. Infelizmente, o público em geral, até pela forma

como a língua é abordada na escola, não consegue se comportar diante de

afirmações da linguística da mesma forma que se comporta diante de

afirmações de físicos, por exemplo. Se um físico afirma que há uma planeta ou

estrela "assim ou assado", ou que há N dimensões no espaço, as pessoas

aceitam como fato dado. O mesmo, infelizmente, não se aplica à linguística,

por ignorância ou preconceito, como acusa inclusive a reação do gramático

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Evanildo Bechara, numa comparação mais do que infeliz, mostrando que

tampouco ele compreende a questão. Finalmente, um ponto merece destaque.

A reportagem se equivocou, ao final, sobre a idéia central de Ataliba de

Castilho. Não é a norma culta que está "em constante mutação". A norma culta

é uma norma, não uma língua. Língua é aquilo que as pessoas de fato utilizam

no dia-a-dia, que o linguista deve observar, descrever e explicar. Ela muda,

sempre. A normal culta é apenas uma decisão arbitrária sobre a forma padrão

que todo brasileiro deve aprender na escola e que deve ser utilizada na escrita

de documentos oficiais. Tanto é arbitrária, que poderia ser inclusive uma língua

diferente, como ocorre por exemplo no Paraguai e em alguns outros países,

cuja língua oficial é o espanhol, mas a falada é o guarani ou outras. Como bem

diz Ataliba, é uma questão política.