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DEFINIÇÃO DE PESSOA E HUMANIZAÇÃO

A Problemática do Aborto

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Rafael ULIANO

DEFINIÇÃO DE PESSOA E HUMANIZAÇÃO

A PROBLEMÁTICA DO ABORTO

III Impressão 11/2014

Humanitas Vivens Ltda

Uma Instituição a serviço da Vida!

Sarandi (PR) 2009

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Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda

EDITOR:

Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS

CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Ms. José Aparecido PEREIRA

Prof. Ms. Fábio Inácio PEREIRA

Prof. Ms. Leomar Antônio MONTAGNA

REVISÃO GERAL:

André Luis Sena dos SANTOS

Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS

Paulo Cezar FERREIRA

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Agnaldo Jorge MARTINS

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Uliano, Rafael

U39d Definição de pessoa e humanização: a

problemática do aborto. [recurso eletrônico] /

Rafael Uliano -- Sarandi, Pr :

Humanitas Vivens,2009. 75p.

ISBN: 978-85-61837-10-5

Modo de acesso:

<www.humanitasvivens.com.br>.

1. Pessoa - Humanização. 2. Vida. 3.

Aborto.

CDD 21. ed. 241.6976

Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331 O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, é de

responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o ponto de

vista da Editora, seus representantes e editores. Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por

qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou

banco de dados sem permissão escrita do Autor e da

Editora Humanitas Vivens Ltda.

Praça Ipiranga, 255 B, CEP: 87111-005, Sarandi - PR

www.humanitasvivens.com.br – [email protected]

Fone: (44) 3042-2233

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho de modo especial a meus pais

Adelmo e Valéria, a meus formadores, colegas e amigos.

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“[...], o ser humano mais infeliz, mais feroz, mais

inimigo de Deus e das crianças, é aquele que tem a louca

coragem de matar o próprio filho no ventre materno.

Nem as cobras fazem isto!”

Prof. Felipe Aquino.

“O respeito aos indefesos e à vida frágil é

expressão de verdadeira cultura e humanidade.”

Cardeal Geraldo Magella Agnelo, pela CNBB.

“A audácia dos maus se alimenta da covardia e da

omissão dos bons.”

Papa Leão XIII.

“Não podendo convencer-me, como biólogo, que o

ovo, o embrião ou o feto são menos corpo humano que a

criança nascida ou ancião, devo a todos o mesmo

respeito ético, absoluto, pela vida humana que neles se

manifesta”.

Prof. Daniel Serrão.

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Sumário

1 INTRODUÇÃO ................................................................................

2 PESSOA E HUMANIZAÇÃO ........................................................

2.1 DEFINIÇÃO ................................................................................

2.2 ELABORAÇÕES HISTÓRICAS DO

CONCEITO DE PESSOA ...........................................................

2.2.1 Filosofia Grega ..............................................................

2.2.2 Cristianismo ....................................................................

2.2.3 A Contribuição de Kant ................................................ 2.3 DIALÉTICA ENTRE

SAGRADO E PROFANO .........................................................

3 O PROBLEMA DECORRENTE DA DEFINIÇÃO

DE PESSOA E HUMANIZAÇÃO

E A REFLEXÃO ACERCA DE SUA

JUSTIFICAÇÃO MORAL ............................................................

3.1 VIA ESSENCIALISTA OU VITALISTA ...................................

3.1.1 Perspectiva Metafísico-Personalista ....................................

3.1.2 Perspectiva Teológica .................................................... 3.2 VIA PRAGMÁTICA .................................................................

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE

A ORIGEM DA VIDA HUMANA ............................................

4.1 QUANDO INICIA A VIDA HUMANA? .....................................

4.1.1 A Tendência Biológica ....................................................

4.1.2 A Tendência Filosófica ....................................................

5 ABORDAGEM FILOSÓFICA DOS

ARGUMENTOS E PERSPECTIVAS SOBRE

O PROBLEMA ÉTICO DO ABORTO ......................................

5.1 UMA DEFESA DO ABORTO:

JUDITH JARVIS THOMSON ....................................................

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5.2 RESTAURAÇÃO DA CREDIBILIDADE

DO ARGUMENTO PRÓ-VIDA:

STHEPHEN D. SCHWARZ ....................................................

5.2.1 A Primeira Refutação ....................................................

5.2.2 A Segunda Refutação ....................................................

5.2.3 A Terceira Refutação .................................................... 5.3 OS FETOS NÃO TÊM DIREITO À VIDA:

MICHAEL TOOLEY ..............................................................

5.4 CRÍTICA ÀS PERSPECTIVAS

DE THOMSON E TOOLEY:

HARRY GENSLER ...................................................................

6 CONCLUSÃO ...............................................................................

REFERÊNCIAS ................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

A bioética, ramo da ética que investiga os problemas

que derivam especificamente da prática médica e biológica,

é controversa. Discute os limites das intervenções e

experiências, aceitáveis ou não, no que diz respeito à pessoa

humana, à vida.

O aborto direto, procurado como um fim ou como um

meio, bem como a cooperação formal para esse ato, é

considerado falta grave pela Igreja Católica e também por

outras Igrejas. Vê-se, pois, que a luta pela defesa da vida é

constante.

A Constituição Federal do Brasil protege a vida. Toda

e qualquer agressão ao feto, em quase todas as hipóteses, é

passível de ser penalizada. A vida do embrião, portanto, está

protegida constitucionalmente.

Como o que é proibido parece ser sempre também o

que é mais cobiçado, o que se pode observar no cenário

brasileiro atualmente é um grande número de abortos,

realizados clandestinamente em “clínicas” ou mesmo em

casa por pessoas altamente despreparadas, sem

conhecimento algum de medicina.

Esse grave e controverso problema – e também crime

– faz parte da atualidade e com certeza deve ser tratado com

muita seriedade. Daqui deriva a necessidade de um estudo

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de qualidade quanto ao início da vida humana, bem como a

respeito das vias para a justificação moral de qualquer

atitude a favor ou contra a prática do aborto.

A pesquisa elaborada, que agora segue em forma de

texto, não tem a pretensão de abordar o tema com

ineditismo.

Quando se trata de questões relativas à vida correta,

somente coisas erradas podem ser realmente novas.

Ainda assim, aquilo que as pessoas já sabem precisa

ser repensado de tempos em tempos, já que as

condições reais da vida se transformam, assim como

os conceitos de que dispomos para nossa

autocompreensão. 1

A proposta é colocar o tema “em evidência”, de

maneira científica, no desejo de uma valorização maior da

vida.

1 SPAEMANN, Robert. Felicidade e benevolência: ensaio sobre

ética. São Paulo: Loyola, 1996, p. 9.

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2 PESSOA E HUMANIZAÇÃO

2.1 DEFINIÇÃO

Aventurar-se a definir os termos pessoa e

humanização é uma tarefa altamente arriscada; afinal de

contas, além da delicadeza da questão em si mesma, trata-se

de abrir caminho também a profundas discordâncias.

O campo da bioética é por essência conflitante, dado

que o alvo que se tem em mira é sempre a vida. Sabemos

que todos os questionamentos que põem em jogo a vida nos

causam inquietação.

Nesta reflexão, queremos situar-nos desde o ponto de

vista metafísico, esforçando-nos por valorizar a dignidade

da pessoa humana e, relacionado com ela, tratar do

problema do aborto.

Assim, pois, antes de tudo, falemos da dignidade da

pessoa humana.

Segundo Sgreccia,2 “a pessoa é unidade de espírito e

corpo”.

2 SGRECCIA, Elio. Manual de bioética I: fundamentos e ética

biomédica. São Paulo: Loyola, 1996, p. 113.

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Para melhor compreender esta realidade, é importante

alargar um pouco mais este campo, buscando compreender

como a “espiritualidade” do ser humano está em íntima

unidade com a sua “corporeidade”, criando-se, assim, a base

para a humanização.

A humanização se dá na conciliação da dimensão

espiritual com a corpórea. O ponto central da humanização

do homem consiste primeiramente no fato de ele existir e

depois na capacidade intrínseca de não estar sujeito ao

determinismo do mundo.

Com isso, pode-se dizer que, sendo unidade de

espírito e corpo, pessoa é cada ser humano observado desde

a ótica de sua individualidade. A isso se somam também

propriedades que se atribuem exclusivamente à espécie

humana, como a consciência de si, a racionalidade, a

capacidade de agir de maneira determinada...

Relação que interliga os fenômenos de forma tão rigorosa que, em

dado momento, cada fenômeno é completamente condicionado pelos

que o precedem e acompanham; ele mesmo, em seguida, condiciona

com o mesmo rigor os que lhe sucedem.

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2.2 ELABORAÇÕES HISTÓRICAS DO

CONCEITO DE PESSOA

“A idéia de que os indivíduos e grupos humanos

podem ser reduzidos a um conceito ou categoria geral, que a

todos engloba, é de elaboração recente na História”.3 Há

muitos anos já se fala em pessoa, entretanto, de modo

sistemático, trata-se de uma reflexão recente. Consideremos,

pois, as diferentes elaborações históricas do conceito de

pessoa humana.

2.2.1 Filosofia Grega

“O elemento comum que une todos os seres humanos

no mesmo gênero seria a natureza (physis), como princípio

universal de organização do cosmo”. 4

Com Aristóteles, o mundo sensível não é posto de

lado, como fora feito por Platão. De fato, o estagirita

sustentou a possibilidade de discernir em cada ser

humano, [...] um elemento comum a todos os

indivíduos; [este elemento] corresponde à função

própria do homem no mundo, consistente em viver

3 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no

mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 453. 4 ibid. Antonomásia de Aristóteles.

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segundo a excelência (aretê) da sua condição animal

capaz de agir racionalmente. 5

Já para os sofistas e os estóicos, o que une “todos os

seres humanos no mesmo gênero seria a natureza (physis),

como princípio universal do cosmos”. 6

Segundo o pensamento de Sócrates, a profundeza do

ser humano está na alma, não no corpo, nem mesmo na

união do corpo e da alma, pois o homem serve-se de seu

corpo como de um simples instrumento.

2.2.2 Cristianismo

Dentro de uma concepção cristã do mundo, sabe-se

que não é pleonasmo a expressão pessoa humana. De fato:

No primeiro concílio ecumênico, reunido em Nicéia

em 325, cuidou-se de decidir sobre [...] duas

interpretações antagônicas da identidade de Jesus: a

que o apresentava como possuidor de uma natureza

exclusivamente divina (daí o nome de monofisitas

atribuído aos partidários dessa crença: physis =

natureza), e a doutrina ariana, segundo a qual Jesus

fora efetivamente gerado pelo Pai, não tendo,

portanto, uma natureza consubstancial a este. Os

padres conciliares estabeleceram, como dogma de fé,

que a hypóstasis de Jesus Cristo apresentava uma

5 ibid. 6 ibid.

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dupla natureza, humana e divina, numa única pessoa

(prósopon), vale dizer, numa só aparência. 7

O cristianismo constituiu-se num fator importante na

gênese e desenvolvimento da noção e valorização do

homem como pessoa. O conceito de pessoa tem uma origem

pré-cristã, mas foi o cristianismo que lhe deu seu caráter

específico, ou seja, foi através dele que a palavra pessoa

alcançou seu traço característico com referência à

singularidade da individualidade humana. Desde a forma de

vivência religiosa do cristão em relação com Deus, até às

formulações teológicas sobre a Trindade, o cristianismo

ofereceu um campo propício para o desenvolvimento do

conceito metafísico e axiológico da pessoa humana.8 É o

que também Joseph Ratzinger-Bento XVI afirma:

O conceito de pessoa e a idéia em que se funda são

produtos da teologia cristã; em outras palavras, essa

noção se originou inicialmente do debate do

pensamento humano com os dados da fé cristã,

entrando na história do espírito por este caminho.

Logo, para falar com Gilson, no conceito de pessoa,

temos uma daquelas contribuições ao pensamento

humano que a fé cristã possibilitou e realizou; que

não se originaram simplesmente do filosofar do

homem mesmo, mas do debate da filosofia com os

dados prévios da fé e principalmente da Sagrada

Escritura. Mais exatamente, o conceito de pessoa se

7 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no

mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 456-

457. 8 VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida: Santuário, 1981,

v.2.

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originou de duas perguntas que desde o início se

impuseram ao pensamento cristão como questões

centrais, a saber: Quem é Deus (o Deus que

encontramos na Bíblia)? Quem é Cristo? Para a

solução desses dois problemas básicos, que com o

início do pensamento imediato surgiram na fé, a

reflexão empregou a palavra prósopon, que até então

era filosoficamente irrelevante ou absolutamente

ausente, dando-lhe assim um novo sentido e abrindo

uma nova dimensão do pensamento humano. 9

Boécio também teve participação na elaboração do

conceito de pessoa. Abrindo novamente a polêmica do

concílio ecumênico de Nicéia, afirmava:10 “diz-se

propriamente pessoa a substância individual de natureza

racional”. Essa idéia foi também adotada por Santo Tomás

de Aquino na Summa Theologica. A partir desta concepção

medieval de pessoa, deu-se início à elaboração do princípio

da igualdade entre os seres humanos, dando origem, na

modernidade, aos direitos humanos.

Segundo afirma o Catecismo da Igreja Católica, a

pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao

mesmo tempo corporal e espiritual. O corpo do homem é

corpo humano precisamente porque é animado pela alma

espiritual. A alma não é produzida pelos pais e é imortal: ela

9 JOSEPH RATZINGER-BENTO XVI, 2007, p. 177-178. 10 BOÉCIO apud COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito,

moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das

Letras, 2006, p. 457.

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não perece quando se separa do corpo no momento da morte

deste, e se unirá novamente ao corpo na ressurreição final. 11

2.2.3 A Contribuição de Kant

O homem é tido como um valor absoluto (não

relativo) e um fim (não um meio, do qual esta ou aquela

vontade possa servir-se conforme seus caprichos). Este é o

resumo de toda a elaboração teórica do conceito de pessoa

dentro da filosofia kantiana.

Kant12 assim se expressa: “Age de maneira que

sempre tomes a humanidade, tanto em tua pessoa como na

de qualquer outro, como fim e nunca como puro meio”.

Desse modo, pessoas são entes racionais, marcados pela sua

própria natureza, com fins em si mesmos. Os entes que

dependem da vontade da natureza, que são irracionais,

possuidores de valor relativo (que se pode substituir), são

denominados coisas. Se pessoa fosse tida como meio,

estaríamos limitando o livre-arbítrio. A pessoa possui

dignidade, as coisas um preço. 13

11 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (C. I. C.). Edição Típica

Vaticana. São Paulo: Loyola, 2000, n. 362-363. 12 KANT apud VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida

(SP): Santuário, 1981, v.2, p. 92. 13 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no

mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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Além dessas linhas de pensamento que predominam

desde os gregos até Kant, percebe-se também que o Direito,

refletindo sobre essas idéias, ajudou muito na elaboração do

conceito de pessoa, bem como a Filosofia e a Teologia. Se

se ignora a busca da compreensão da realidade, torna-se

difícil pensar pessoa, assim como se torna inviável pensar

humano, sem o auxílio da ciência.

2.3 DIALÉTICA ENTRE SAGRADO E

PROFANO

Por se tratar do estudo do aborto, problema

relacionado com a dignidade da pessoa humana, será

interessante tratar da dialética entre o sagrado e o profano.

Vidal14 declara que “a estrutura da instância ética da

pessoa não [é] simples, mas complexa. Por isso, [...] o

estudo de seus problemas morais não [pode] ser uma

metodologia simples, mas complexa”. Assim sendo, talvez a

capacidade e o conhecimento humano de que se dispõe não

sejam suficientes para uma busca tão complexa sobre o

assunto abordado. Entretanto, a dialética é o meio mais

viável para tanto, pois a mesma mantém a “riqueza da

complexidade, [...] ao mesmo tempo [que traz] a clareza da

unidade [entre cada uma das polaridades da dialética]”. 15 14 VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida: Santuário,

1981, v.2, p. 106. 15 ibid.

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Vale ressaltar que existem outras estruturas éticas

que poderiam ser apontadas juntamente com a dialética

entre sagrado e profano.

Todo o cuidado proposto pela religião a respeito da

dignidade da pessoa não ocorre por mera exigência

dogmática ou por qualquer tipo de imposição a fim de

manter a Sagrada Tradição. Como a consciência do ser

humano é “elástica”, faz-se necessário manter a moderação,

pois se assim não se fizer, tudo vai se tornando comum e

indiferente perante a virtude da preservação da dignidade da

pessoa humana.

Não só dentro da religião, mas também no contexto

da sociedade em geral, nota-se a existência desse modelo de

preservação da vida, que é o que garante de maneira mais

vasta a vida humana, evitando violar os direitos humanos.

Entretanto, diante de toda a realidade que o horizonte

nos oferece, Sebastian,16 afirma que:

Nada e ninguém no mundo tem um valor sagrado no

sentido de estar isento das leis da natureza e da

racionalidade... Tudo o que há no mundo está aberto

à exploração do homem e submetido ao seu domínio.

Não há deuses. Estamos a sós dentro do nosso

mundo. A presença do Deus verdadeiro é a presença

Apesar de várias religiões se manifestarem sobre o assunto, aqui

faremos referência específica à religião cristã, tal como a professa a

Igreja Católica. 16 SEBASTIAN (1970) apud VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes.

Aparecida: Santuário, 1981, v.2, p. 113.

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de um Deus ausente, um Deus que nos deixa carregar

o peso e a responsabilidade de nossa vida no mundo,

um Deus que quer que vivamos no mundo sem Ele e

isto em ação de graças e como glória sua.

Estas palavras, que poderiam dar oportunidade a

algum mal-entendido, devem ser compreendidas em sua

exatidão. O que Sebastian quer deixar claro é que a pessoa

humana não pode ser considerada como uma realidade

puramente “sagrada”, pois se assim fosse, seria contraditório

falar de responsabilidades, racionalidade do ser humano,

nem mesmo da validade de um pensamento antropocêntrico

– o que é próprio do pensamento cristão. 17

No âmbito da profanidade da pessoa, fica clara a total

aversão a toda e qualquer manipulação técnica e objetivação

científica do ser humano, pois:

Sempre que nos enfrentamos com o mundo da pessoa

humana, topamos com o “mistério”, um mistério que

não pode ser escamoteado, já que se volta sempre

contra quem o “profana”. [...] A compreensão da

pessoa como fim (e não como meio) e como valor

absoluto (não como valor relativo) impede-nos de

considerar o homem como uma realidade puramente

“profana”. 18

17 VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida: Santuário,

1981, v.2, p. 113. 18 ibid., p. 114.

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Não se podendo formular uma ética da pessoa a partir

de uma total sacralização do ser humano, nem mesmo de

uma incondicional profanidade, faz-se necessária uma

síntese entre essas duas tensões.

Segundo Vidal,19 a modernização da moral cristã,

funda a secularização da pessoa humana. Desse modo, o

grande questionamento que se faz é o modo de como

entender a relação entre secularidade e ética cristã da

pessoa.

Parece-nos que o postulado de uma ‘moral cristã

secular’ pode ser banalizado e convertido numa

moda passageira para a apresentação da dimensão

ética cristã. Nesse sentido, a secularidade em relação

com a moral cristã não significaria outra coisa que a

‘modernização’ desta, tanto no modo de falar como

nos conteúdos. Seria a aplicação do

‘desenvolvimentismo’ no campo moral. Não seria

demais dizer que não entendemos neste nível a

relação entre secularidade e ética cristã. 20

Diante dessa reflexão, conclui-se que a moral da

pessoa humana deve ser compreendida a partir da idéia da

responsabilidade pessoal, pois assim, pode-se formular uma

moral da pessoa humana como valor absoluto dentro da

atual situação secularizada. 21

19 ibid. 20 VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida: Santuário,

1981, v.2, p. 115. 21 ibid.

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Disto deriva que o estudo da problemática do aborto e

a metodologia de estudos acerca da pessoa humana, não

devem atingir os extremos opostos. Faz-se necessário

permanecer num equilíbrio dialético entre sagrado e

profano, de modo a evitar uma queda por uma “ladeira

escorregadia”.

Trata-se de um raciocínio levado indevidamente ao extremo. Um

simples empurrão por sobre esta “ladeira escorregadia” seria

suficiente para que se perca totalmente o controle.

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3 O PROBLEMA DECORRENTE DA

DEFINIÇÃO DE PESSOA E HUMANIZAÇÃO E

A REFLEXÃO ACERCA DE SUA

JUSTIFICAÇÃO MORAL

Diante da definição dos termos pessoa e

humanização, bem como de toda a discussão do início da

vida humana, surgem reflexões filosóficas envolvendo a

pessoa humana. Uma dessas questões é a do aborto, atitude

que visa à destruição da vida humana. Por isso, reafirme-se

aqui desde já que a vida humana possui “caráter sagrado e

inviolável, no qual se reflete a própria inviolabilidade do

Criador”.22

A história da formação da problemática do aborto

mostra que a extensão e a crescente aceitação da

prática do aborto no final do século XX no mundo

ocidental é uma situação artificialmente provocada

pelo trabalho de entre uma e duas dezenas de

entidades de âmbito internacional. O trabalho que

estas entidades desenvolvem iniciou-se há

aproximadamente 200 anos atrás, na virada do

século XVIII para o século XIX, tendo sido

desenvolvido, durante cerca de 150 anos, por grupos

marginalizados dentro da sociedade sem uma linha

de atuação claramente definida. Após o término da

22 PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995, p.

107.

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Segunda Guerra Mundial, quando o problema

demográfico foi levantado através da ONU, estes

grupos conseguiram atrelar suas idéias sobre

planejamento familiar e aborto à problemática do

controle populacional. A partir deste momento

deixaram de ser vistos como grupos marginais,

ganharam respeitabilidade, financiamento e o

controle quase total das instituições de pesquisa e das

agências governamentais do primeiro mundo e das

Nações Unidas que se dedicam ao estudo e às

atividades com problemas populacionais. [...] A

história mostra [...] que, embora a Igreja Católica

seja vista [...] como a única entidade que se

manifesta contra os métodos artificiais de controle da

natalidade, isto não foi sempre assim. Até a Segunda

Guerra Mundial a maioria dos países civilizados

adotavam também esta posição. Nos Estados Unidos,

desde o fim do século XIX, quando a influência

católica naquele país era insignificante, a divulgação

de métodos artificiais para a prevenção da gravidez,

mesmo que partisse da iniciativa de um médico, era

considerada crime passível de prisão. 23

Percebe-se, assim, como a expansão da sociedade

civilizada e a necessidade quase urgente de um controle de

natalidade e planejamento familiar, levou à prática do

aborto. Entretanto, caso se perder o controle da mesma,

pode-se estar no princípio de um problema que acarretará

23“Uma reflexão sobre a história da formação da problemática do

aborto”

Disponível em

<http//:www.accio.com.br/nazare/1946/hstrab2.htm>. Acesso em 02

ago. 2007.

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29

“conseqüências pelo menos tão graves quanto as que

haveria, se ocorresse a perda do controle sobre a produção e

o uso do arsenal de armas nucleares.” 24

Segundo Pessini e Barchifontaine,25 a conceituação

clássica do aborto consiste na expulsão ou extração de toda

e qualquer parte da placenta ou das membranas, sem um

feto identificável, ou com um recém-nascido vivo ou morto

que pese menos de quinhentos gramas. No caso de não

identificação do peso, pode ser utilizada uma estimativa da

duração da gestação de menos de vinte semanas completas,

contando desde o primeiro dia do último período menstrual

normal.

O aborto pode ocorrer naturalmente, não dependendo

da vontade da gestante ou de qualquer vontade humana. É o

chamado aborto espontâneo, que ocorre por distúrbio do

organismo materno ou do próprio embrião, bem como por

algum acidente sofrido pela mãe durante a gravidez.

É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar

reveste para a mãe um caráter dramático e doloroso:

a decisão de se desfazer do fruto concebido não é

tomada por razões puramente egoístas ou de

comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar

alguns bens importantes como a própria saúde ou um

nível de vida digno para os outros membros da

família. Às vezes, temem-se para o nascituro

condições de existência tais que levam a pensar que

seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras

razões semelhantes, por mais graves e dramáticas 24 ibid. 25 PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P. Problemas atuais de

Bioética. São Paulo: Loyola, 1991.

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que sejam, nunca podem justificar a spressão

deliberada de um ser humano inocente. 26

Entretanto, também ocorre o aborto voluntário, ou

seja, o aborto provocado, doloso, que sofre intervenção

externa, tendo por objetivo a morte do feto. Sobre esta ação,

o papa João Paulo II, assim declarou:

[...] a Igreja aponta este crime [aborto voluntário]

como um dos mais graves e perigosos, incitando,

deste modo, quem o comete a ingressar

diligentemente pelo caminho da conversão. Na

Igreja, de fato, a finalidade da pena de excomunhão é

tornar plenamente consciente da gravidade de um

determinado pecado e, conseqüentemente, favorecer

a adequada conversão e penitência. 27

As causas do aborto provocado costumam ser

chamadas de “indicações”. Pessini28 subdivide-as em:

a) indicação eugênica, quando o aborto é provocado

para livrar-se de um feto com problemas físicos;

b) indicação médica ou terapêutica, se a causa for pôr

fora de perigo a vida ou saúde da mãe;

c) indicação social, quando se interrompe a gravidez

para não arcar com a carga social e econômica que

comporta;

26 PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995, p.

117. 27 ibid., p. 124-125. 28 op. cit.

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d) indicação ética, quando com a interrupção da

gravidez se pretende atenuar um erro moral ou eliminar uma

desonra social.

No intuito de discernir com prudência entre a

aceitação ou não da prática do abortamento, dispõe-se de

duas vias de justificação moral, dado que “no âmbito da

bioética normativa, o ponto questionável não é o do limite

ético, mas o das razões que justificam as regras, os juízos

morais”. 29

Faz-se necessário o auxílio dessas vias de justificação

moral, pois o elemento crítico de um debate bioético é

sempre indicar aquilo que é lícito ou ilícito, ou seja, ir em

busca da razão que justifique ser lícito ou não. Como relata

de maneira extraordinária Silva30, o questionamento que

intriga a vida moral e a reflexão ética é a busca de

fundamentos nos quais se define se um juízo moral, de fato,

é lícito ou ilícito, honesto ou desonesto, obrigatório ou

proibido. A vida moral é um apelo sucessivo à realização do

valor como qualidade positiva, ou seja, é algo que vem para

humanizar a pessoa e consequentemente a sociedade.

No sentido de buscar a vida e a autonomia da pessoa,

estabelecendo-as como valores fundamentais, é que se

dispõe de tais vias – tidas como seguras – que logicamente

levarão a posições diferentes. São elas: a via essencialista ou

vitalista e a via pragmática.

29 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 39. 30 ibid.

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32

3.1 VIA ESSENCIALISTA OU VITALISTA

Os adeptos desta corrente de pensamento, como é o

caso da Igreja Católica, bem como dos movimentos pró-vida

e demais grupos sociais que são contra a prática do aborto,

partem da idéia de que o discurso bioético precisa estar

fundamentado em valores básicos essenciais e absolutos.

Isso quer dizer que o fundamento dessa via não tem como

pano de fundo o utilitarismo, mas sim, a obediência do ciclo

natural da vida e a sacralidade da mesma.

Sendo as razões que justificam as regras, e não as

regras em si, quanto ao ponto questionável da bioética,

deve-se afirmar que parece evidente ser a via essencialista a

mais adequada como linha de pensamento, haja vista que

esta possui embasamento na natureza humana, ao amparar a

idéia do nascimento, crescimento e morte natural da pessoa.

Assim, se o aborto vier a acontecer de maneira espontânea,

nada se oporia a essa linha de pensamento que defende a

vida, a essência do ser humano, pois em condições naturais,

seria algo comum, devido a vários aspectos biológicos da

gestante ou do próprio feto.

Jean-François Malherbe31 diz que “não se pode fazer

bioética seriamente se não se apoiar sobre um fundamento

antropológico”. Desse modo, a bioética procura entender a

pessoa em sua globalidade, para assim ter base segura na

No sentido daquilo que constitui a natureza de um ser. 31 MALHERBE apud SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão

da justificação moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 42.

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definição do comportamento moral verdadeiramente

humano. Sendo a pessoa o ponto de referência para concluir

se certos atos são lícitos ou ilícitos, a dignidade humana

deve ser levada sempre em consideração. Dignidade supõe

necessariamente respeito, daí o firme propósito da via

essencialista, que é o respeito para com a pessoa humana.

Mas, como definir o momento inicial da vida

humana? Dentre as várias posições existentes que tentam

dar conta de uma explicação plausível para o início da vida

humana, destacam-se as duas grandes tendências apontadas

por Silva,32 a biológica e a filosófica, bem como a

concepção filosófica de Bergson sobre a vida. Elas serão

objeto de atenção no próximo capítulo.

A via essencialista tem como base a compreensão de

pessoa dentro de uma visão muito ampla, integral, bem

maior do que a sugerida pelo método científico, onde a

análise é feita “em partes”. Isso se dá pelo fato de que nesta

ótica, o natural e o moral estão estritamente ligados. A

importância dessa globalidade está em que essa via de

justificação moral busca a essência fundamental do

comportamento moral humano, apresentando e focando a

vida num todo e não em partes, o que torna difícil afirmar

que a vida tenha um ponto que se possa denominar como o

“início da vida”. O adepto da via essencialista acredita na

possibilidade de chegar à essência da realidade humana.

Trata-se de uma via segura pelo motivo da base do ser

humano ser entendida a partir dele mesmo. Isso proporciona

firmeza ao critério. Segundo Silva, o critério é firme:

32 ibid.

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[...] porque se apresenta substancial. E o que é

substancial subsiste em si. E o que está em si, assim o

é por que está em posse de suas propriedades

específicas. Logo, o que está apropriado de si, só

pode ser e agir segundo a sua natureza. Nesse sentido,

natureza é princípio de ser e de operação.33

A pessoa, manifestando-se sempre como ser humano,

logicamente deverá agir segundo a sua natureza humana.

Desse modo, parece que se está fazendo uma justificativa

moral apropriada, tendo em vista que “[...] a ordem natural é

o fundamento inconcusso da ordem moral”. 34

O adepto da corrente essencialista ou vitalista sempre

se coloca do lado oposto das escolhas e posições morais que

possam vir a colocar em risco a vida humana em seu ciclo

natural, desde a concepção até seu fim natural. A encíclica

do papa João Paulo II, Evangelium Vitae,35 afirma que “a

morte direta e voluntária de um ser humano inocente é

sempre gravemente imoral”. Aceitando-se o aborto, estar-

se-á adentrando numa profunda crise do sentido moral,

“afinal, é ao princípio de sacralidade que está implícita a

idéia de intocabilidade da vida humana”. 36

Em suma, o vitalista abraça a convicção até aqui

apresentada, amparado, é claro, pelos argumentos

teológicos, filosóficos e morais que defendem a vida.

33 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 45. 34 ibid. 35 PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995, p.

113. 36 op. cit., p. 57.

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Dentro da visão vitalista, a vida é sagrada. Este é um

princípio supremo, inviolável pelos homens, de maneira que

os demais princípios, normas e regras devem ser-lhe

subordinados. Se assim não fosse, por ter uma consciência

“elástica”, o ser humano expandiria cada vez mais a idéia de

passar por cima de certos princípios, normas e regras,

tornando-os comuns e banais, de modo que a “gravidade [do

aborto, por exemplo] vai-se obscurecendo progressivamente

em muitas consciências”. 37

É importante ressaltar e mostrar o caminho pelo qual

se chega à justificação moral da via essencialista, tida como

verdadeira, incondicional e fundamental. Para tanto, Daniel

Callahan,38 identificou cinco critérios que comprovam a

sacralidade da vida humana:

a) sobrevivência da espécie humana;

b) preservação das linhas familiares;

c) o direito de os seres humanos terem proteção de

seus companheiros;

d) respeito por escolhas pessoais e autodeterminação;

e) inviolabilidade corporal.

É lógico que esses critérios só são aplicáveis em sua

totalidade aos seres humanos – não aos animais: daí a

valorização da vida humana.

Dispomos de duas perspectivas que fundamentam a

via essencialista, através da qual “[...] o percurso que se

37 op. cit., p. 115.

38 CALLAHAN apud PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P.

Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Loyola, 1991, p. 23-24.

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realiza pode chegar à compreensão do valor com

fundamento na realidade metafísica”. 39

3.1.1 Perspectiva Metafísico-Personalista

O ponto de partida para a reflexão desde este ângulo é

a pessoa. Esta possui justificação de teor absoluto, pois:

[...] com relação à pessoa, o corpo é co-essencial, é

sua encarnação primeira, o fundamento único no

qual e por meio do qual a pessoa se realiza e entra no

tempo e no espaço, se expressa e se manifesta,

constrói e exprime os demais valores, inclusive a

liberdade, a socialidade e até o próprio projeto

futuro.40

Nota-se aqui como o valor da pessoa, ligado

intimamente ao respeito do corpo, é posto como princípio de

tudo, transcendendo a tudo, sendo anterior a qualquer outro

valor ou direito que possa existir. O vitalista não coloca o

conceito de “transcendência” ligado a Deus, mas como uma

verdade metafísica, de transcendência da pessoa, dada a

superioridade do ser humano em relação aos seres infra-

humanos.

39 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 58. 40 SGRECCIA, Elio. Manual de bioética I: fundamentos e ética

biomédica. São Paulo: Loyola, 1996, p. 157.

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Essa reflexão encontra base na propriedade mais

específica do ser humano, que é sua natureza espiritual,

destacando-o como o único ser vivo dotado de razão.

Silva esclarece a questão afirmando que:

‘Des-cobrir’ a realidade do espírito, a natureza

racional da pessoa é vê-la a partir de dentro, da

riqueza de sua essência única e distinta em relação a

todos os outros seres vivos. O que é mais importante

ainda é o fato de que a ‘des-coberta’ a partir da

interioridade faz emergir verdades que ampliam a

compreensão do princípio da vida humana. 41

Na ótica vitalista, através da perspectiva metafísico-

personalista, observa-se a existência de um duplo

fundamento: o respeito absoluto à vida humana, apresentada

como sagrada, e a dignidade da pessoa. Estes fundamentos

não serão aqui analisados em detalhe; serão apenas

apresentados estruturalmente.

3.1.2 Perspectiva Teológica

Este ponto de vista possui rumo semelhante ao

metafísico-personalista, entretanto, distancia-se dele ao

41 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 61.

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atribuir a Deus a propriedade da vida. Trata-se de uma

compreensão teândrica, onde o divino transparece no

humano.

Sendo a vida no mundo a manifestação da presença

de Deus, este é posto como fonte da vida do ser humano.

Esse modelo de reflexão alicerça com segurança as

verdades afirmadas na Encíclica Evangelium Vitae, de que a

vida humana é sempre um bem, um dom, é sagrada e

inviolável. Essas verdades, segundo Silva,42 podem ser

sistematizadas assim:

a) a vida humana é sempre um bem – Se comparada

à vida de qualquer outro ser vivo, damo-nos conta da

grande diferença, frente à originalidade de

manifestação da presença de Deus. No Concílio

Vaticano II recordou-se que “pela sua encarnação,

ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada

homem”.43 Também Santo Irineu44 evidencia que “a

glória de Deus é o homem vivo”. A dignidade

humana, que tanto é afirmada e prezada pela

perspectiva teológica, tem sua raiz na íntima ligação

existente da pessoa com o seu Criador. É Deus quem

proporciona este bem inestimável. O ser humano

possui e exala essência divina. Logo, se este se

assemelha Àquele, só pode ser também um bem

inestimável;

42 ibid. 43 COMPENDIO DO VAT II, Gaudium et spes. 10. ed., Petrópolis:

Vozes, 1976, n. 22. 44 IRINEU apud PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo:

Paulinas, 1995, p. 68.

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b) a vida humana é um dom – Só se pode afirmar essa

verdade da vida como dom, se for compreendida à luz

da relação com Deus. De acordo com esta visão, a

condição primeira que se estabelece é a de que a vida

é uma oferta divina. Deus a oferece ao ser humano de

forma gratuita, como autêntico dom. Este gesto é

expressão da bondade divina, pelo qual Ele comunica

algo de si mesmo à sua criatura, confiando a ela um

bem de valor incomensurável;

c) a vida humana é sagrada – Baseando-se nas

verdades de que a vida é sempre um bem inestimável

e um dom, pode-se, pois, intuir que a sacralidade da

vida tem seu fundamento em Deus e na sua ação

criadora. “A vida humana é sagrada porque, desde a

sua origem, supõem ‘a ação criadora de Deus’ e

mantém-se para sempre numa relação especial com o

Criador, seu único fim”.45 É clara a preocupação do

papa João Paulo II, na encíclica Evangelium Vitae,

em destacar que o sentido de sacralidade, revertido à

sua fonte mais genuína, indica que a origem da vida

humana provém de Deus. Ele, dando vida ao homem,

não lhe permite domínio “absoluto, mas ministerial

[da mesma]”.46 Assim cabe ao ser humano

administrar o dom da vida, que é recebido de Deus,

fazendo emergir deste, toda a riqueza e

potencialidades inerentes, não se dispondo do direito

de abreviá-la ou tolhê-la;

d) a vida humana é inviolável – “Da sacralidade da

vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as

45 PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995, n.

53. 46 ibid, n. 52.

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origens no coração do homem, na sua consciência”.47

O caráter inviolável pelo qual se molda a sacralidade

da vida é reflexo da inviolabilidade de Deus. Este

critério é o limite máximo. Nenhum outro critério no

âmbito humano tem consistência para justificar sua

violação.

Diante do núcleo de pensamento da encíclica sobre a

sacralidade da vida humana, até aqui abordado, surgem

alguns contrapontos, se assim se podem chamar, que

colocam em questionamento algumas das afirmações

apresentadas.

Dentro da própria Teologia Moral se afirma que “a

dignidade e o valor da vida se justificam em si e não só a

partir de sua origem em Deus”.48 Este, detendo o senhorio

absoluto da vida e fazendo do homem um mero

administrador, faz com que este perca ou pelo menos reduza

sua autonomia de protagonista de sua própria vida.

Azpitarte49 ressalta que:

Alguns setores cristãos pensam que a soberania de

Deus pode ser perfeitamente harmonizável com a

autonomia do homem para decidir sobre a sua

própria vida e acreditam que a interpretação

comumente dada ao senhorio de Deus sobre a vida é

uma alternativa aceitável, mas questionável.

47 ibid, n. 40. 48 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 75. 49 AZPITARTE apud ibid., p. 76.

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Diante dos conflitos que por ventura possam aparecer,

dos riscos que se podem encontrar, bem como das ameaças

a essas justificações, as duas vias mantém-se como que

intransponíveis, sendo prescritas de modo inflexível,

incondicional, não comportando nenhum tipo de exceção.

Nada tem forças para violar um princípio. Ser vitalista é

estar à serviço da vida. Entretanto, a integridade da vida é

mais importante que a realidade física. Por isso, a citada

incondicionalidade perde o caráter de inflexibilidade,

quando, por exemplo, se busca preservar a vida física da

gestante, num todo ou por um bem moral superior. Aí está o

ponto frágil que se nota na argumentação acerca da

“incondicionalidade” do princípio de sacralidade da vida. 50

3.2 VIA PRAGMÁTICA

Dotada de característica utilitarista, a via pragmática,

como do próprio nome se deduz, adota uma postura tal em

relação às decisões a serem tomadas diante de certas

deliberações de cunho moral que sempre convergem para o

mais prático. Trata-se de descobrir a solução boa ou mais

adequada perante um problema moral concreto, deixando de

lado o caráter ontológico, como sugere a via essencialista.

A via pragmática, segundo Silva,51 está mais voltada

para os fatos da vida das pessoas e instituições. Confrontada 50 ibid. 51 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

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com a outra via, nota-se imediatamente a tensão entre o

plano ideal-normativo e prático-situacional da moral.

Essencialista e pragmática são duas vias que desde as bases

apresentam divergências bastante grandes. Entretanto,

qualquer posicionamento moral deve ser desprovido de

“lacunas” que possam deixar imprecisão, ambigüidade,

impressão.

Desse modo, partindo de duas vias de justificação

moral (essencialista e pragmática), tem-se aberto, no ponto

de chegada da reflexão, um leque de três perspectivas (de

defesa, de oposição e de admissão de exceção). De modo a

evitar tais “lacunas”, a via essencialista diz resolver a crise

da reflexão ética atual fazendo um retorno à convicção

ontológica, ou seja, colocando um princípio que firme

metafisicamente a justificação moral. “Pela via

essencialista, é possível chegar ao ‘ponto sólido’, como

elemento imutável, sobre o qual se fundam a objetividade e

a universalidade dos valores e das normas”. 52

Para os adeptos da via pragmática, ao contrário, os

impasses devem ser resolvidos a partir de medidas e

soluções práticas. Buscar solução num ideal seria estar

caminhando em busca da solução do problema pelo lado

oposto. O pragmático procura sempre a aproximação com a

realidade, daí tantos serem adeptos desse modo de pensar.

Pela via pragmática não existe um ponto invariável, valores

imutáveis, mas sim flexibilidade, de modo que se disponha

do “máximo de prazer ou felicidade em detrimento do

mínimo de dor ou sofrimento”, como indica a divisa

utilitarista.

52 ibid., p. 50.

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Para a reflexão dessa via de justificação moral não

existe algo que seja bom ou ruim, e sim uma avaliação

prática; buscam-se benefícios e utilidade.

Assim, pois, a partir da reflexão até aqui exposta:

Os que denominamos de ‘pragmáticos’ interpretam o

valor da vida [...] [entendendo] que a noção de

sacralidade da vida é um princípio abstrato,

indeterminado, que não responde de modo

satisfatório às questões bioéticas concretas. É vago e

dogmatista demais para se extrair dele regras

práticas com o intento de iluminar as questões

cruciais que assolam, principalmente, o setor

biomédico. 53

O modelo pragmático, ao contrário do essencialista,

não peca pela falta de realismo. Esse coloca a ação

conforme as circunstâncias práticas, o que faz abrir um

conjunto diversificado de idéias, de critérios valorativos, em

que a qualidade da ação pode ser avaliada ou medida com

base nos objetivos e fins, nas conseqüências, no cálculo dos

custos, dos benefícios, das vantagens ou desvantagens, do

aumento da felicidade, como sugere Silva.54 Não existe uma

verdade moral universal tida como norma para todos. A

justificação moral não se limita à aplicação incondicional de

um princípio ou de uma simples norma.

53 ibid., p. 91. 54 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

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A reflexão ética deve sempre levar em conta a

complexidade da realidade, por isso a perspectiva em

discussão procura sintetizar o maior grau de realismo em

relação às conseqüências, aos fins, aos interesses, aos

valores que estão em jogo na circunstância concreta. A

fortiori, o papel do juízo moral é orientar a prática.

Viver com qualidade é a questão fundamental através

da qual se entende a reflexão voltada para a ação prática. A

vida, portanto, seria um valor relativo, em que se coloca em

cena a questão da “qualidade de vida”.

Dentre as tendências que assumem o princípio da

“qualidade de vida” vale ressaltar aquela que aparece em

contraposição ao conceito de “sacralidade da vida”. Esta

afirma que a vida só é sagrada quando possui qualidade.

Entretanto, tal consideração aparenta ser simplista e

relativista, pois não se assenta num fundamento de verdade,

numa base sólida, num ponto imutável. Seria mais viável

dizer que são dois princípios que se complementam, ao

invés de se oporem entre si; como ressaltavam os antigos,

“in medio virtus”.

Do latim: “A virtude está no equilíbrio”.

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4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ORIGEM DA

VIDA HUMANA

Este capítulo tem por finalidade apresentar os estudos

e discussões acerca da origem da vida humana. Não se trata

de incluir na consciência do leitor uma posição, e sim, a

partir da explanação dos pontos de vista, que o leitor –

consciente de sua origem e embasado em seus fundamentos

morais, recebidos desde o berço – possa reafirmar sua

posição ou mesmo acrescentar a ela alguma idéia nova.

4.1 QUANDO INICIA A VIDA HUMANA?

Os tratados de medicina continuam afirmando que o

início da vida humana acontece no momento da união do

óvulo e do espermatozóide. Mesmo grandes defensores do

direito da mulher ao aborto concordam com esta afirmativa.

Por exemplo, Peter Singer, interrogado sobre o início da

vida humana, respondeu que não tinha dúvidas de que esta

começasse no momento da concepção. É importante

esclarecer desde o princípio que não há possibilidade de

dúvida quanto ao início da vida humana. 55

55 “Não há possibilidade de dúvida quanto ao início da vida

humana”

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No caso de afirmar que o início da vida não ocorre no

instante da fecundação, a grande problemática está em

definir cientificamente quando, então, inicia a vida humana,

bem como em dizer o que se é antes de se ter vida. Se a vida

não iniciar no instante da fecundação, o que seria aquele

zigoto? Adubo para o acaso produzir vida? Lixo humano

para ser jogado fora? Os próprios abortistas confessam que

não sabem o tempo verdadeiro e, por isso, não são unânimes

na discussão da linha divisória entre o humano e o não-

humano. Os donos da verdade não encontram sua própria

verdade e não cedem, diante do princípio universal da

consciência humana, o direito da dúvida à vida.

Tem-se a impressão de que os pragmáticos pensam

como os vitalistas, entretanto, alguns variam o tempo para o

início da vida, de acordo com os interesses casuísticos do

momento.

As características indeléveis de cada ser humano

estão presentes em potência já na fecundação. 56

Disponível em

http://www.presbiteros.com.br/Moral/Bio%E9tica/N%E3o%20h%E1

%20possibilidade%20de%20d%FAvida%20quanto%20ao%20in%ED

cio%20da%20vida%20humana.htm>. Acesso em 02 set. 2007.

“Potência” significa a própria estrutura do ser, sendo já aquilo que se

revelará mais tarde; é a parte do ser que já é em si, mas ainda não se

atualizou, porque depende do tempo, de circunstâncias, motivações,

maturidade, esforço, vontade. 56 “Somos, desde a concepção”

Disponível em

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47

A embriologia moderna pode afirmar com segurança

que o processo evolutivo embriológico é um processo

contínuo, que vai desde o momento da concepção até

o momento do nascimento, e prossegue depois deste.

Por isso, o feto deve ser considerado geneticamente

autônomo, único e irrepetível. Daqui a ignorância

daqueles que põem no mesmo plano a extração dum

tumor, dum fibroma e o aborto. 57

Diante das discussões acerca da origem da vida

humana deparamo-nos com algumas clássicas visões que

focam o assunto:

4.1.1 A Tendência Biológica

Possui três grupos, ao redor dos quais, giram opiniões

de cunho biológico.

a) A fecundação: os partidários deste critério

afirmam que desde a concepção existe um ser

humano, “[...] que necessita apenas de crescimento e

http://www.presbiteros.com.br/Moral/Bio%E9tica/SOMOSDESDE.ht

m>. Acesso em 02 set. 2007). 57 LEJEUNE apud AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Aborto?...

Nunca!... 40 razões. Lorena: Cléofas, 2005, p. 11.

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48

desenvolvimento para explicitar-se”.58 Por se tratar

de um complemento cromossômico das células

germinativas, masculina e feminina, do ponto de vista

genético, este novo ser difere-se dos pais. Dessa

forma, a dependência biológica da mãe, por parte do

novo indivíduo, “não afeta sua autonomia

genética”.59 Assim, conclui-se que no momento da

fecundação começa uma nova vida que requer tempo

para desenvolver cada uma de suas habilidades,

capacidades e disposições.

b) A nidação: são duas as razões que esta teoria

apresenta. A principal é o dado da ciência de que,

antes do zigoto abrigar-se no útero (processo de

implantação), poderá ocorrer a divisão do óvulo

fecundado, originando gêmeos univitelinos

(monozigóticos idênticos), ou ainda poderá ocorrer

aquilo que a ciência chama de “quimerismo”,

quando ocorre a fusão de dois embriões em um único.

Um segundo dado, decorre da observação de que

muitos embriões são abortados espontaneamente

antes de estar concluída a implantação. A nidação

também aponta para a individualização, ou seja,

depois que ocorre a implantação do zigoto no útero,

ele não é mais capaz de se dividir ou se unir,

tornando-se verdadeiramente único. 60

58 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 83. 59 ibid., p. 84. 60 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

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49

c) A formação do córtex cerebral: não aceitando

o momento da fecundação, nem o momento da

implantação, os adeptos deste critério afirmam que a

formação do córtex cerebral é que proporciona a

vida ao ser humano. Os autores dessa visão afirmam

que “é o cérebro o órgão mais especificamente

humano, pois, centrado nele, é que se desenvolve o

psiquismo humano”. 61

Uma pessoa poder ser considerada morta quando o

cérebro deixa de funcionar de modo irreversível. Um

cérebro que, observado nas devidas condições, não

dá qualquer sinal elétrico, é um cérebro morto: a

pessoa já deixou de existir. 62

Observa-se que, na visão biológica, é propriamente a

área do desenvolvimento biológico que serve de parâmetro

para definir se existe ou não vida.

4.1.2 A Tendência Filosófica

A partir desta tendência, a reflexão que se segue leva

a crer que “o ser humano é muito mais que suas estruturas

biológicas e, portanto, não pode ser definido pela existência

de tais estruturas”.63 Com essa afirmação, sustenta-se uma

idéia contrária aos pontos expostos anteriormente. Se a

61 ibid., p. 86. 62 AZPITARTE apud SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão

da justificação moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 86. 63 FERNANDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São

Paulo: Paulinas, 2000. 2000, p. 53.

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50

solução para a problemática do estatuto humano do embrião

fosse reduzida aos problemas biológicos, estaria sendo

discutido um problema amplo e crítico dentro de uma visão

muito limitada.

Toda a discussão da questão de pessoa e

humanização, exposta no primeiro capítulo deste trabalho

comprova que “o ser humano é muito mais que suas

estruturas biológicas e, portanto, não pode ser definido pela

existência de tais estruturas”.64 É importante levar em conta

que o ser humano é modelado pelo ambiente sociocultural

que o rodeia. São as relações inter-humanas que colaboram

diretamente no processo de formação da humanização e

personalização do indivíduo.

A visão filosófica foca mais a centralidade de sua

reflexão dentro da visão antropológica, social e cultural.

Silva65 afirma essa idéia dizendo que “desde a concepção já

existe vida humana, porém é uma vida que necessariamente

passa pelo processo de humanização”. No conceito de

humanização, faz-se uma distinção clara entre vida humana

e vida humanizada. Reforçando-se a idéia já anteriormente

exposta, a humanização do ser humano se dá em sua relação

com o outro.

É notório que toda a problemática está em aplicar o

conceito de pessoa ao embrião, o que não é uma questão

64 FERNANDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São

Paulo: Paulinas, 2000. 2000, p. 53. 65 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação

moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 87.

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51

antropológica, mas deve também envolver a discussão sobre

o estatuto jurídico da vida humana.

O pensador francês Henri-Louis Bergson, que se opôs

ao racionalismo, enfatizando a força criadora do espírito,

expõem também em sua filosofia a problemática da vida.

Bergson é um vitalista. Admite um impulso da vida (elã

vital) que perpassa o ser humano e que quer elevá-lo à vida

divina. Sendo o ser humano o veículo por excelência através

do qual esse impulso pode desenvolver-se plenamente e

fazer com que retorne ao centro dinâmico, interromper esse

impulso, destruindo o corpo humano, seria cortar pela raiz o

próprio movimento criativo de Deus. 66

O conhecimento científico tem uma visão de vida

diferente da visão bergsoniana. A ciência não admite o

impulso da vida a que se alude. Para ela, o ser humano é

uma máquina em que a física e a química seriam a chave

dos processos biológicos, ou seja, não se levaria em conta o

elemento interno: o impulso da vida que cria a alma e a

matéria num movimento concomitante.

A visão filosófica da vida apresentada por Bergson

chama a atenção por não analisar o ser humano “em partes”

delimitadas, como a ciência faz; mas, filosoficamente, lança

um olhar integral, mostrando que não se pode dizer que há

um momento específico em que a vida é infundida no ser

humano.

66 HABITZREUTER, Valdemar. Mística em Bergson: intuição da

força criadora, 2007. Monografia (Bacharelado em Filosofia) –

Curso de Filosofia, Centro Universitário de Brusque.

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Assim, pode-se dar por esclarecido que a vida, para

Bergson, é oriunda de um centro dinâmico de ininterrupta

criatividade. Trata-se de um movimento evolutivo que

almeja transpor patamares de consciência cada vez mais

elevados.

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53

5 ABORDAGEM FILOSÓFICA DOS

ARGUMENTOS E PERSPECTIVAS SOBRE O

PROBLEMA ÉTICO DO ABORTO

Após a reflexão em torno da definição filosófica de

pessoa e humanização, de uma reflexão acerca de sua

justificação moral, bem como das considerações acerca da

origem da vida humana, pode-se avançar no trabalho

refletindo sobre os argumentos favoráveis e contrários ao

aborto.

Neste capítulo procurar-se-á fazer uma abordagem

estritamente filosófica das visões vitalista (pró-vida) e

pragmática (pró-escolha). Os autores que serão

mencionados defendem uma posição ética que apela

unicamente à racionalidade, deixando de lado qualquer

convicção religiosa, doutrina feminista ou posição

parlamentar de uma nação, de modo a proporcionar uma

percepção clara da dialética gerada pelo problema ético do

aborto.

Trata-se de um diversificado grupo de autores: alguns

apóiam o aborto, outros são contrários a esta prática.

Apesar das divergências [...], não deixa de existir

uma demarcação clara entre os defensores das

“Dialética”, pois se trata de desenvolver a problemática do aborto a

partir de processos de oposições (a favor e contra o abortamento).

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posições pró-vida e pró-escolha. Os primeiros

pensam que, logo no primeiro trimestre da gravidez,

o aborto é profundamente errado, pelo menos na

grande maioria dos casos. Os segundos advogam a

permissividade geral do aborto, e, mesmo que

considerem errado matar deliberadamente o feto

numa fase avançada da gravidez, isso levá-los-á a

reprovar apenas uma pequena parte dos abortos

efetivamente realizados. 67

O problema ético e o problema político sobre a

proibição do aborto não podem ser confundidos, pois neste

caso, se estaria fugindo do foco da discussão.

O problema ético é o fundamental, o que significa

que podemos investigá-lo sem atender ao problema

político, mas não fazer o inverso. A resposta correta

ao problema político depende crucialmente da

resposta correta ao problema ético. 68

A prioridade na discussão deve ser sempre o

problema ético. O aborto não pode ser descriminalizado,

como alguns afirmam, por um motivo de injustiça social,

quando pessoas de melhores condições econômicas dispõem

de meios para praticar o aborto, nos países em que há

liberdade para isso. Se assim fosse, muitos outros crimes

também cairiam nessa “ladeira escorregadia”, ou seja,

estariam sendo justificados a partir de um “argumento de

67 GALVÃO, Pedro. A ética do aborto. Lisboa, Portugal: Dinalivro,

2005, p. 10. 68 ibid., p. 12. cf. p. 18

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55

derrapagem”. Discutir essa questão é altamente complicado,

pois:

No debate sobre a questão do aborto, nem só os que

defendem a sua descriminalização incorrem no erro

de fugir ao problema ético. De um modo geral, quem

sustenta que a lei deve proibir o aborto também se

limita a pressupor que a sua perspectiva ética é a

correta, abordando o assunto como se a simples

referência à ‘humanidade’ do feto a tornasse evidente

e dispensasse qualquer clarificação ou justificação. 69

É notória a discussão que se faz em torno da

humanidade do feto ou mesmo ainda do concepto, para

a discussão da liberação ou não do aborto. É diversificada a

visão dos autores sobre esse ponto crucial da bioética, como

se verá pelos argumentos propostos.

69 GALVÃO, Pedro. A ética do aborto. Lisboa, Portugal: Dinalivro,

2005, p. 14. Para a embriologia, corresponde ao organismo humano em

desenvolvimento, no período que vai da nona semana de gestação ao

nascimento. A obstetrícia afirma ser um conjunto de formações que compõem

um ovo fertilizado em qualquer fase de seu desenvolvimento, desde a

fertilização até o parto.

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5.1 UMA DEFESA DO ABORTO – JUDITH

JARVIS THOMSON

De início, Judith Jarvis Thomson, apesar de não

compartilhar com a idéia, ressalta que grande parte dos

argumentos desfavoráveis ao aborto origina-se do

pressuposto básico de que no momento da fecundação o

concepto já possui vida humana. A oposição a esta

afirmação apóia-se no fato análogo ao desenvolvimento de

um carvalho, por exemplo, que se dá a partir de uma

semente, mas nem por isso as sementes o são em ato, apenas

em potência, para usar aqui a linguagem aristotélica.

Percebe-se a oposição entre o que é de fato e o que poderia

ter sido ou o que pode vir a ser no futuro. Compreende-se

assim que Thomson não considera o concepto como pessoa

humana desde o momento da fecundação.

Para suscitar a reflexão em torno do assunto,

Thomson apresenta a seguinte situação:

De manhã [o leitor] acorda e descobre que está numa

cama adjacente à de um violinista inconsciente – um

violinista inconsciente famoso. Descobriu-se que ele

sofre de uma doença renal fatal. A Sociedade dos

Melômanos investigou todos os registros médicos

disponíveis e descobriu que só o leitor possui o tipo

de sangue apropriado para ajudar. Por esta razão, os

Melômanos raptaram-no, e na noite passada o

sistema circulatório do violinista foi ligado ao seu, de

maneira a que os seus rins possam ser usados para

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57

purificar o sangue de ambos. O diretor do hospital

diz-lhe agora: ‘Olhe, lamento que a Sociedade dos

Melômanos lhe tenha feito isto – nunca o teríamos

permitido se estivéssemos a par do caso. Mas eles

puseram-no nesta situação e o violinista está ligado a

si. Caso se desligasse, matá-lo-ia. Mas não se

importe, pois isto dura apenas nove meses. Depois ele

ficará curado e será seguro desligá-lo de si’. 70

Este exemplo coloca em questão o direito à vida.

Todas as pessoas possuem esse direito. Sendo os violinistas

também pessoas, usufruirão desta prerrogativa para que

também disponham do mesmo direito. Entretanto, parece

inconcebível ser obrigado a permanecer em tal situação, por

mais que se tenha consciência de que todos possuem direito

absoluto à vida.

Transpondo a situação anteriormente elucidada para a

situação de uma gestação, por exemplo, Thomson pergunta-

se sobre a possibilidade de abrir-se uma exceção para a

gravidez resultante de estupro. Entretanto, ele mesmo já dá

resposta a este questionamento dizendo que “as pessoas que

se opõem ao aborto [...] não abrem uma exceção para os

casos de violação”.71 Certamente este exemplo do violinista

é uma tentativa de convencer que, pelo menos nos casos de

violência sexual, seja admissível o abortamento. De fato,

alguns:

70 THOMSON, Judith Jarvis. A ética do aborto: perspectivas e

argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,

p. 27. 71 ibid., p. 28.

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não abririam uma exceção [nem] para os casos em

que, miraculosamente, a gravidez se prolongasse por

nove anos ou mesmo pelo resto da vida da mãe.

Alguns nem sequer abririam uma exceção para os

casos em que a continuação da gravidez

provavelmente encurtaria a vida da mãe; há quem

pense que o aborto é impermissível mesmo para

salvar a vida da mãe. 72

Diante de uma situação extrema, quando uma mulher

grávida descobre que tem um problema cardíaco grave que

provocará sua morte, caso não interrompa a gravidez,

Thomson apresenta um dos argumentos que estimulam a

reflexão acerca da admissão ou não do aborto. Este leva em

conta o fato de que “fazer o aborto seria matar diretamente a

criança, ao passo que nada fazer não seria matar a mãe –

seria apenas deixá-la morrer”. 73 Entretanto, a posição em

questão, para a autora, é que não haverá um assassinato, se a

mulher abortar tendo em vista o desejo de salvar sua vida,

não concordando também com o fato dessa mesma mulher

ter que esperar de uma maneira cruel sua morte, pois a ela

estaria “condenada”..

Para Thomson,74 “uma mulher pode seguramente

defender sua vida da ameaça colocada pelo nascituro,

mesmo que fazê-lo implique a sua morte”. Neste caso, a

vida da mãe está, de certo modo, em jogo. Entretanto,

quando isso não acontece, o argumento “toda a gente tem o

72 ibid., p. 28-29. 73 ibid., p. 29. 74 THOMSON, Judith Jarvis. A ética do aborto: perspectivas e

argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,

p. 33.

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59

direito à vida, por isso, a pessoa nascitura tem o direito à

vida”, possui muito mais força. Aqui entraria em questão

toda uma discussão sobre o “direito à vida”, que mereceria

um longo e detalhado exame, existindo diversas

perspectivas.

Analogamente à questão do abortamento, o fato de o

citado violinista precisar continuar a utilizar-se dos rins do

leitor, mostra que o primeiro não possui o direito de exigir

que o segundo continue a deixá-lo usar seus rins. Ninguém

possui o direito de usar os rins do outro, a não ser que este

tenha concedido este direito a alguém. Thomson defende

que “o direito à vida não garante o direito a começar a usar,

ou o direito de continuar a usar, o corpo de outra pessoa,

mesmo que seja preciso usá-lo para assegurar a própria

vida”. 75

Ainda analogamente à questão do abortamento, se o

“leitor” se desliga do “violinista”, após descobrir que terá

que ficar acamado durante nove meses ou nove anos por

causa do mesmo, parece que não será injusta a atitude de

desligar-se dele, tanto mais que não houve permissão para

isso. A autora, com esse modo de pensar, deseja dizer que

num caso de estupro, por exemplo, a mãe teria o direito de

praticar o aborto, pois a mesma não deu direito a um homem

de violentá-la sexualmente. Tanto o leitor quanto a mãe,

neste caso, estariam indo contra o direito do violinista ou do

bebê, isto é, de viverem, todavia, não estariam agindo

injustamente. 76

Conforme ilustração anteriormente citada. 75 ibid., p. 37. 76 ibid.

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60

Diante dessa situação, admitamos que existam casos

em que seria indecente recusar “emprestar” os rins durante

uma hora, mesmo no caso em que uma pessoa tivesse sido

raptada para isso, levando em conta que não havia

equipamentos disponíveis para efetuar a hemodiálise. Isso

ocorre da mesma forma com a gravidez. Mesmo que esta

perdure nove meses ou apenas uma hora, seria indelicado da

parte da mulher praticar o aborto. Entretanto Thomson77

esclarece que:

[...] mesmo que admitamos um caso no qual uma

mulher que engravidou por ter sido violada deve

permitir que a pessoa nascitura use o seu corpo

durante uma hora, não podendo concluir que o

nascituro tem direito ao seu corpo – devemos antes

concluir que, caso a mulher se recuse a permitir-lhe

que use o seu corpo, estará a ser egoísta, insensível e

indecente, mas não injusta.

Como se vê, a perspectiva apresentada por Thomson

não desemboca num “sim” geral, nem em um “não” geral.

Respeita-se a opinião e o desejo de abortar por iniciativa de

uma mulher que foi violentada sexualmente ou deseja salvar

sua vida, entretanto é recusada a idéia de uma mulher

abortar apenas para evitar incômodos da gravidez.

O argumento fundamental de Thomson é o de que, tal

como qualquer pessoa poderia se desligar do violinista,

também a mulher pode desligar-se do feto. O aborto 77 THOMSON, Judith Jarvis. A ética do aborto: perspectivas e

argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,

p. 43.

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61

consiste em pôr fim à ligação existente entre a mulher e o

feto.

A discussão em torno da questão do aborto no artigo

de Thomson encerra-se com a afirmação de que “um aborto

realizado na fase inicial da gravidez não consiste

seguramente em matar uma pessoa”. 78

5.2 RESTAURAÇÃO DA CREDIBILIDADE DO

ARGUMENTO PRÓ-VIDA - STHEPHEN D.

SCHWARZ

A argumentação elaborada por Schwarz tem o

objetivo de restaurar a credibilidade do argumento pró-vida,

que fora de certa maneira desconsiderado por Thomson

quando ela argumenta a favor da inexistência do dever de

sustentar a vida.

Schwarz sustenta que os dois casos – o do violinista

ligado à pessoa e o da criança ligada à sua mãe – são radical

e essencialmente diferentes, basicamente por três razões

diferentes.

78 ibid., p. 49.

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62

5.2.1 A Primeira Refutação

Assim como Thomson afirma que “há alturas em que

podemos desligar-nos de outras pessoas, mesmo que isso

resulte na sua morte”,79 Schwarz também o concede. Essa

asserção é assim ilustrada por Schwarz:

Imagine um nadador-salvador que tenta reanimar um

banhista que está entre a vida e a morte. Ele continua

a tentar durante muito tempo, mas a vítima não reage

nem morre. Permanece à beira da morte. Num certo

momento, o nadador-salvador acaba por desistir –

ele não pode continuar indefinidamente. E a vítima

morre. Suponha que o nadador-salvador se esforçou

durante um período de tempo considerável e que

agora se justifica ele desistir. Suponha também que o

seu esforço sustentou a vida da vítima, apesar de ela

estar quase morta. [...]. Deste modo, também não

seria errado, pelo menos na maioria das condições,

Thomson desligar-se do violinista: ela poderia

recusar o seu apoio, não teria de sustentar a sua

vida. 80

A questão é que se considera plausível recusar apoio

vital à pessoa, entretanto, matá-la seria inadmissível.

79 SCHWARZ, Stephen D.. A ética do aborto: perspectivas e

argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,

p. 54. 80 ibid., p. 54.

Page 63: DEFINIÇÃO DE PESSOA E HUMANIZAÇÃO · Papa Leão XIII. “Não podendo convencer-me, como biólogo, que o ovo, o embrião ou o feto são menos corpo humano que a criança nascida

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De início, Thomson garante força ao seu argumento

que tenta justificar o aborto, apresentando-o como um

simples ato de retirada do apoio vital. Contudo, Schwarz

ressalta que abortar é também primariamente um ato de

matar. Desse modo pode-se concluir que “mesmo que [o

aborto] fosse justificável enquanto exemplo de ‘retirar o

apoio vital’, não é justificável porque também constitui um

exemplo de ‘matar’”.81 Ainda que se tenha outra intenção ao

fazer-se o aborto, o que se pode concluir é que se estará

matando alguém. O apoio vital não pode ser retirado

mediante o ato de matar.

[...] mesmo que a criança não tenha o direito positivo

de receber apoio vital da sua mãe, tem o direito

negativo de não ser morta. Um mendigo pode não ter

o direito positivo de ser alimentado e acolhido por

mim; eu posso não lhe dar esse apoio. Contudo, ele

tem seguramente o direito negativo de não ser

assassinado por mim. Podemos dizer o mesmo da

criança. 82

O fato de o aborto ser primeiramente o ato de matar

uma pessoa torna-o errado, apesar de poder não ser

considerado assim, se analisado sob outra ótica relacionada

à recusa de se dar apoio vital. Entretanto, esta opção de

recusa não parece plausível num primeiro momento, pois, se

a única maneira de exercer o direito de retirar o apoio vital é

matando uma pessoa, então este direito não pode ser

exercido. A vida possui precedência absoluta sobre qualquer

outro direito.

81 ibid., p. 55. 82 ibid., p. 57.

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5.2.2 A Segunda Refutação

Voltando ao exemplo ilustrativo do nadador-salvador

e do violinista, pondera-se o fato de sua desistência da até

então insistência em reanimar a vítima ou de permanecer

ligada a ela. Entretanto, no caso do aborto, trata-se do laço

biológico existente entre pais e filhos, que cria a obrigação

destes cuidarem deles, bem como zelarem pelos direitos que

acompanham os que eles geraram e fizeram existir. Segundo

Schwarz:

a pessoa que está presa ao violinista não tem o dever

de sustentar a sua vida, [...], já que ele é um estranho

que mantém consigo uma relação extremamente

artificial. [...], mas temos a obrigação de sustentar os

nossos próprios filhos. 83

De maneira muito especial, a mulher grávida tem o

dever de deixar seu filho viver no único lugar onde no

momento específico da gestação ele está protegido, sendo

alimentado e desenvolvendo-se – o útero. O dever de

sustentar os filhos, bem como a vida de cada um, impede

que a mãe se desligue dele. Assim, a mulher deve sustentar

a vida de seu filho, pois é mãe dele. A pessoa ligada ao

violinista, pelo contrário, não tem o dever de sustentar sua

vida, já que não é mãe dele, não o está gerando, a não ser

que queira ser generosa.

83 SCHWARZ, Stephen D.. A ética do aborto: perspectivas e

argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,

p. 59.

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65

Mesmo diante de um estupro, parece ser razoável que

a mulher ainda tenha que sustentar a vida da criança, haja

vista que esta é absolutamente inocente e possui o direito

absoluto de viver. “A criança é real e inocente, e tem a

mesma preciosidade e dignidade que todos nós”.84 Deste

modo, fica clara a posição contra o aborto, elaborada por

Schwarz, a partir da defesa deste, elaborada por Thomson.

5.2.3 A Terceira Refutação

É sustentada por Thomson a idéia de que o feto

aparece como um intruso, diante do direito da mulher

controlar seu corpo. Entretanto Schwarz frisa que “a criança

não é um intruso. Ela está precisamente onde deve estar, no

lugar apropriado para a primeira fase da sua vida”. 85

Se o feto fosse um intruso, isso justificaria sua

remoção do útero da mulher, como também é justo remover

um assaltante dentro de casa. Mas essa remoção não se pode

dar através do ato de matar. Por isso, o aborto é condenado,

pois consiste em matar. Teria alguém coragem de fazer isso

com um intruso? Salvo no caso de um ladrão, quando se

estaria agindo em legítima defesa.

Um outro raciocínio que se pode fazer em torno da

questão do aborto é a acusação de o feto ter uma relação

84 ibid., p. 60. 85 SCHWARZ, Stephen D.. A ética do aborto: perspectivas e

argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,

p. 65.

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parasitária com a mulher. Trata-se de uma distorção de

idéias, dado que um parasito é essencialmente estranho, e o

feto, a criança que vai nascer não é um estranho, é filho da

mulher que a concebeu, que possui seu sangue. O feto está

no local apropriado para o seu desenvolvimento.

5.3 OS FETOS NÃO TÊM DIREITO À VIDA –

MICHAEL TOOLEY

A problemática exposta por Tooley é a de que o

aborto geralmente é tido como uma prática que pressupõem

o direito à vida aos fetos humanos e bebês. Diante deste

paradigma, o autor procura mostrar o princípio moral básico

que apresenta as condições necessárias para que exista esse

direito.

É notório o fato de que toda a discussão dessa

problemática do aborto está intimamente relacionada com o

termo pessoa. Tanto é verdade, que a questão básica em

foco é a interrogação sobre quando é que um membro da

espécie homo sapiens é uma pessoa. Que propriedades,

predicados, características deve possuir uma coisa para ser

pessoa, para ter direito à vida? Tooley assim se posiciona,

Michael Tooley prefere evitar o termo “humano”, e usar em seu

lugar a expressão “membro da espécie Homo sapiens”, de modo que

seja interpretada mais naturalmente como algo que se refere a um

certo tipo de organismo biológico caracterizado em termos

fisiológicos.

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diante de tamanhos questionamentos: “[...] julgo ser

possível indicar um princípio moral muito plausível que diz

respeito à questão das condições necessárias para algo ter

direito à vida”. 86

O argumento básico da tese de Tooley é o fato de se

dispor da “condição da consciência de si”:

um organismo possui um forte direito à vida somente

se possui o conceito de um eu enquanto sujeito

contínuo de experiências e de outros estados mentais,

e acredita que ele próprio é uma entidade contínua

desse gênero.87

Portanto, faz-se necessária a consciência de si,

segundo Tooley, pois:

ter o direito à vida pressupõe a capacidade de

desejarmos continuar a existir enquanto sujeitos de

experiências e de outros estados mentais. [...]. Por

isso, uma entidade que careça desta consciência de si

enquanto sujeito contínuo de estados mentais não

possui direito à vida. 88

Muito ligado à visão filosófica,89 Tooley acusa os

defensores da corrente conservadora (que dentre outros

aspectos é contra o aborto) de quererem demarcar estágios

86 SCHWARZ, Stephen D.. A ética do aborto: perspectivas e

argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,

p. 78. 87 ibid. 88 ibid., p. 84. 89 cf. p. 33-35.

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no processo de desenvolvimento, a partir dos quais

supostamente seria errado cometer o abortamento. De

acordo com ele, nenhum dos cinco estágios apontados pelos

conservadores (1. concepção; 2. aquisição da forma

humana; 3. aquisição da capacidade de realizar movimentos;

4. viabilidade; 5. nascimento) são admissíveis para indicar

algum princípio moral básico, “[...] nenhum desses traços de

separação pode ser defendido através de princípios morais

básicos plausíveis”. 90

Como síntese que permeia o pensamento de Tooley,

pode-se afirmar que sua conclusão é a de que os fetos não

gozam do direito à vida, já que este atributo é dado apenas

aos indivíduos conscientes de si. Logo, para o autor em

discussão, os recém-nascidos, que por acaso não possuírem

consciência de si, também não possuem direito à vida.

5.4 CRÍTICA ÀS PERSPECTIVAS DE

THOMSON E TOOLEY – HARRY GENSLER

O objetivo de Gensler é ressaltar a questão da

consciência, a partir da Regra de Ouro apontada por Kant.

Esta pode ser compreendida a partir do seguinte exemplo:

Se é consistente e pensa que nada haveria de errado

em alguém fazer A a X, então pensa que nada haveria 90 TOOLEY, Michael. A ética do aborto: perspectivas e

argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,

p. 85.

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de errado em alguém fazer-lhe A em circunstâncias

similares.

Se é consistente e pensa que nada haveria de errado

em alguém fazer-lhe A em circunstâncias similares,

então admite a idéia de alguém fazer-lhe A em

circunstâncias similares.

Logo, se é consistente e pensa que nada haveria de

errado em fazer A a X, então admite a idéia de

alguém lhe fazer A em circunstâncias similares. (RO

[Regra de Ouro]). 91

Segundo Gensler, o aborto é um ato errado. Kant

auxilia muito na interpretação dessa visão quando propõe a

máxima “não faças aos outros o que não quiseres que façam

a ti”. Desse modo, se uma pessoa pensa que nada haveria de

errado num certo ato, mas não admite a sua realização, de

modo a sofrer suas conseqüências, ela estaria sendo

inconsistente. Para ilustrar: “se penso que nada haveria de

errado em roubar João, mas não admito (ou aprovo) a idéia

de alguém me roubar em circunstâncias similares, então [...]

estou a ser inconsistente”. 92

Análoga à questão do assalto é a do aborto. Quereria

talvez uma mãe que pensa em abortar, conseqüentemente

tirando a vida do feto, ter sido abortada por sua mãe?

Gensler propõe que, “se uma mulher grávida está prestes a

fazer algo de prejudicial para o feto [...], parece apropriado

que ela pergunte a si própria: ‘como reagiria [eu] à idéia de

91 GENSLER, Harry. A ética do aborto: perspectivas e argumentos.

In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005, p. 115. 92 ibid., p. 115-116.

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a minha mãe ter feito a mesma coisa enquanto estava

grávida de mim?’” 93

Supõe-se que a maior parte das pessoas não admite ou

aprova a idéia de morrer por causa da prática de um

hipotético aborto praticado por sua mãe. Logo, a maior parte

das pessoas, na medida em que assumir uma posição

consistente, não irá continuar a pensar que é permissível

praticar o aborto.

Colocando em evidência alguns argumentos a favor

do aborto, tal como o adotado pelos utilitaristas que

afirmam poder justificar matar um ser humano inocente

sempre que fazer isso fosse prazeroso, Gensler afirma que

“isto é verdadeiramente bizarro”. 94

A crítica dirigida a Michael Tooley está ligada ao fato

de que este admite que os fetos humanos não gozam do

direito à vida. Todavia, concomitantemente, afirma que só

os seres humanos racionais, que possuem consciência de si,

é que gozam deste direito. Logo, o aborto seria algo correto

de se praticar, sem quaisquer problemas de ordem moral,

biológica ou emocional.

A apreciação feita a partir do argumento de Judith

Jarvis Thomson também resulta em algo negativo, por isso

também é refutada por Gensler. Thomson enfatiza que:

93 ibid., p. 119-120.

94 GENSLER, Harry. A ética do aborto: perspectivas e argumentos.

In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005, p. 109.

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uma mulher que engravida com a intenção de ter uma

criança está a aceitar voluntariamente uma

obrigação para com ela. No entanto, se a gravidez

for acidental [...], então a mulher não assumiu

qualquer obrigação especial, e, se a continuação da

gravidez implica um grande custo pessoal, então a

mulher não tem a obrigação de continuar grávida. 95

Gensler refuta essa argumentação quando afirma que

“nem todas as obrigações especiais para com os outros são

‘voluntariamente assumidas’”.96 A gestante sempre deve

assumir a obrigação de proporcionar ao feto que ele tenha a

possibilidade de nascer, desenvolver-se, crescer, passar

pelos processos de aprendizagem, maturação e evolução,

garantindo o direito aos pais, de gozarem do dever de seu

filho cuidar dos mesmos em suas necessidades especiais

durante a vida.

Como remate da discussão acerca dos argumentos

contra o aborto elaborados por Gensler, pode-se destacar a

seguinte posição:

Defendo que, na maior parte das ocasiões, o pró-

abortista descobrirá que é realmente inconsistente –

ele apóia certos princípios morais para o tratamento

dos outros que não gostaria que fossem observados

em ações que o afetassem. 97

Nota-se o desejo de Gensler em deixar manifesta a

idéia de que o ser humano será incoerente, caso não condene 95 ibid., p. 113. 96 ibid., p. 113-114. 97 ibid., p. 124.

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a grande maioria dos abortos, a não ser que se tenham

desejos particulares bizarros.

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6 CONCLUSÃO

Após a procura dos mais diversos materiais

disponíveis sobre a questão do aborto, chega-se ao término

desta gratificante pesquisa, com um bom entendimento

sobre as questões explicitadas no trabalho e também sobre

as que permeiam a reflexão sobre pessoa e humanização e a

problemática do aborto.

É notório o difícil consenso dentro do campo da

bioética. As opiniões são tão divergentes que, se as pessoas

que discutem o assunto, não possuírem clara e distintamente

sua posição quanto à justificação moral a que aderem,

acabam por “migrar” facilmente de uma posição para outra.

Dessa forma, percebe-se a necessidade de ampliar

ainda mais o debate bioético, de modo que este ultrapasse o

âmbito universitário. É de fundamental importância pensar

mais, analisar melhor, ponderar outros pontos, para que,

diante do mistério da Vida se erre o menos possível.

Em 2002, o programa de governo do candidato Lula

previa a prática de abortos pelo SUS. Em um dos cadernos

temáticos do programa, dizia-se claramente que “agora, o

governo vai mais além: pretende mudar a lei, para permitir o

aborto. E essa meta é prioritária”.98 Sendo 75% católica a

98 AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Aborto?... Nunca!... 40

razões. Lorena: Cléofas, 2005, p. 7.

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população do Brasil, e bem mais do que isso, cristã, essa

imensa maioria não teria o direito e dever de exigir que as

leis do país estivessem mais de acordo com o Evangelho

que a maioria segue?

Diante de toda a reflexão feita neste trabalho,

aprofundando vários pontos de vista, pode-se concluir que é

inadmissível permitir que um laicismo pernicioso pretenda

eliminar Deus e o sagrado da sociedade. A Constituição

Federal99, no artigo 5º, estabelece que “todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida [...]”. Como

pretender violar o desenvolvimento natural da pessoa

humana que as leis do país reafirmam?

Nos países em que o aborto é permitido, o número de

casos vem aumentando, fazendo com que cresça também o

número de mulheres que carregam problemas psicológicos e

traumatismos graves pelo fato de terem tomado a infeliz

decisão de abortar.

Os cientistas mais objetivos e livres de ideologias ou

preconceitos afirmam categoricamente que a vida tem início

com a fecundação e prossegue até a morte. O nascimento é

somente o começo de uma nova etapa. Outras se sucederão,

tais como a puberdade, a idade adulta, a velhice.

Se hoje se pretende dar à mãe o direito de matar

legalmente seu filho não nascido, por ser um estorvo para

ela, amanhã se deverá dar ao filho o direito, também legal, 99 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República

Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed.

São Paulo: Saraiva, 2005.

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de matar sua mãe que se tornou um peso para ele. Tudo isso,

evidentemente, é um grande absurdo: a vida humana deve

ser sempre protegida, desde o ventre da mãe até o último

suspiro.

Desse modo, adotar um posicionamento, ou tentar

convencer um interlocutor a respeito de uma ou outra

posição, dependerá de vários fatores, dentre os quais, as

convicções religiosas e as perspectivas éticas por este

adotadas.

O importante para o momento presente é dispor de

meios que levem a uma reflexão embasada das justificações

morais. Este foi justamente o objetivo perseguido neste

trabalho. Já alcançado, um novo horizonte se abre para

posteriores discussões. Ou seja: “O resto nasce aqui”. 100

100 NIETZSCHE, F. O Anticristo. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.

110.

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REFERÊNCIAS

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40 razões. Lorena: Cléofas, 2005.

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Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de

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HABITZREUTER, Valdemar. Mística em Bergson:

intuição da força criadora, 2007. Monografia

(Bacharelado em Filosofia) – Curso de Filosofia, Centro

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JOSEPH RATZINGER – BENTO XVI. Dogma e Anúncio.

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PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas,

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PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P. Problemas atuais

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THOMSON, Judith Jarvis. A ética do aborto: perspectivas

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Acesso em 02 set. 2007.

“Somos, desde a concepção”

Disponível em

<http://www.presbiteros.com.br/Moral/Bio%E9tica/SOMO

SDESDE.htm>. Acesso em 02 set. 2007.

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A bioética discute questões relativas a pontos lícitos ou ilícitos,

morais ou imorais, permitidos ou proibidos no campo da

“manipulação” da vida humana. O presente estudo procura definir

filosoficamente o que é pessoa e humanização, dado que se trata de

conceitos que levantam uma série de problemáticas, entre elas, a do

aborto. Nesse contexto, há a preocupação de apresentar o valor e a

dignidade da pessoa e debater um problema muito presente na

sociedade. Com o intuito de tornar mais sólidos os fundamentos da

questão de modo a manter atualizada a definição anteriormente

mencionada de “pessoa”, serão expostas as concepções históricas

do conceito “pessoa” para os gregos, para os cristãos e também a

partir de Kant, bem como a dialética existente entre o sagrado e o

profano que gira em torno deste termo. Quanto à problemática do

aborto, duas são as vias para sua justificação moral: uma se

fundamenta em valores básicos essenciais e absolutos (essencialista

ou vitalista); a outra é de cunho utilitarista (pragmática). É também

necessária a abertura para discutir a origem da vida, a fim de dispor

dos meios mínimos para a discussão sobre a permissibilidade ou

não do aborto. Com o objetivo de despertar ainda mais a reflexão a

respeito do assunto, serão apresentados alguns argumentos e

algumas perspectivas em relação ao problema ético do aborto.

PALAVRAS-CHAVE: pessoa, humanização, vida, aborto.