definicao filosofia aristoteles olavo de carvalho

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8/22/2019 Definicao Filosofia Aristoteles Olavo de Carvalho http://slidepdf.com/reader/full/definicao-filosofia-aristoteles-olavo-de-carvalho 1/9  1 ARISTÓTELES EM NOVA PERSPECTIVA – Olavo de Carvalho  Estou cada vez mais convicto de que a ciência antropo-social necessita articular-se com a ciência da natureza, e de que esta articulação requer uma reorganização da estrutura mesma do saber. Edgar Morin A unidade sistêmica do saber Para o filósofo Olavo de Carvalho, há embutida nas obras de Aristóteles uma idéia medular que escapou à percepção de quase todos os seus leitores e comentaristas, exceto Avicena (1037 DC) e São Tomás de Aquino (1036 DC) que, no entanto, limitaram-se apenas a mencioná-la, conservando assim a vaga noção de que havia uma estrutura de fundo que integrava e unia o conhecimento sensível e o conhecimento racional , abarcando, num mesmo território, todas as suas quatro obras sobre o discurso humano, que são 1  a Poética; :  a Retórica;  os Tópicos, seu tratado de dialética;  as  Analíticas I e II, seus dois tratados de lógica.   Ademais, quando vistas em conjunto, essas quatro obras já parecem constituir nada mais nada menos do que variantes de uma ciência única. Se assim for, poderíamos conceber o discurso humano como uma potência única que se expressa de quatro maneiras diversas: ou poeticamente, ou retoricamente ou dialeticamente ou logicamente, sendo estas as quatro expressões possíveis da inteligência humana. As “quatro ciências do discurso” tratariam então de quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra, influenciar tanto a própria mente quanto a alheia. Mas quando o autor deste livro defende a idéia de que há uma unidade que perpassa por todas essas quatro obras, ele está querendo dizer muito mais: ele está querendo dizer que estes quatro discursos estão profundamente articulados entre si, se necessitando mutuamente, sendo todos igualmente necessários à perfeição do conhecimento, tendo, cada um, uma função a cumprir na realização deste objetivo. Haveria, portanto, entre eles , não uma diferença propriamente estética como concebemos atualmente e, sim, uma diferença funcional, que revelaria o peso e o valor de cada um destes discursos na obtenção do conhecimento. Estas quatro ciências não podem ser concebidas separadas pois, tomadas isoladamente, acabam perdendo completamente o seu sentido – o que corresponde exatamente à esquizofrenia que hoje se tornou o estado normal da nossa cultura. O que definiria e diferenciaria estas quatro ciências não seria o caráter formal ou estético típico de cada discurso mas, sim, o fato de revelarem quatro possíveis atitudes humanas através da palavra, ou seja, quatro motivos humanos para falar e ouvir. Afinal, o homem discursa para:  abrir a imaginação à imensidade do possível , sendo esta a função do discurso poético;  tomar alguma resolução prática, sendo esta a função do discurso retórico;  examinar criticamente a base das crenças que fundamentaram as resoluções tomadas , sendo esta a função do discurso dialético;  explorar as conseqüências e prolongamentos de juízos já admitidos como absolutamente verdadeiros, construindo com eles o edifício de um saber certo e verdadeiro , sendo esta a função do discurso lógico. Sendo assim, um discurso seria qualificado como poético, retórico, dialético ou lógico não por sua mera estrutura interna mas, sim, pelo objetivo a que tende em seu conjunto, pelo propósito humano que visa realizar. Por isso é 1 Há também duas obras introdutórias sobre a linguagem e o pensamento em geral: Categorias e Da  Interpretação .

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ARISTÓTELES EM NOVA PERSPECTIVA – Olavo de Carvalho

 Estou cada vez mais convicto de que a ciência antropo-social necessita articular-se com a ciência da natureza, e de que esta

articulação requer uma reorganização da estrutura mesma do saber.

Edgar Morin

A unidade sistêmica do saber 

Para o filósofo Olavo de Carvalho, há embutida nas obras de Aristóteles uma idéia medular que escapou àpercepção de quase todos os seus leitores e comentaristas, exceto Avicena (1037 DC) e São Tomás de Aquino(1036 DC) que, no entanto, limitaram-se apenas a mencioná-la, conservando assim a vaga noção de que haviauma estrutura de fundo que integrava e unia o conhecimento sensível e o conhecimento racional, abarcando,num mesmo território, todas as suas quatro obras sobre o discurso humano, que são1

•  aPoética;

:

•  aRetórica;

•  os Tópicos, seu tratado de dialética;

•  as Analíticas I e II, seus dois tratados de lógica.  Ademais, quando vistas em conjunto, essas quatro obras já parecem constituir nada mais nada menos do quevariantes de uma ciência única. Se assim for, poderíamos conceber o discurso humano como uma potênciaúnica que se expressa de quatro maneiras diversas: ou poeticamente, ou retoricamente ou dialeticamente oulogicamente, sendo estas as quatro expressões possíveis da inteligência humana. As “quatro ciências dodiscurso” tratariam então de quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra, influenciar tanto a própriamente quanto a alheia.

Mas quando o autor deste livro defende a idéia de que há uma unidade que perpassa por todas essas quatroobras, ele está querendo dizer muito mais: ele está querendo dizer que estes quatro discursos estãoprofundamente articulados entre si, se necessitando mutuamente, sendo todos igualmente necessários àperfeição do conhecimento, tendo, cada um, uma função a cumprir na realização deste objetivo. Haveria,

portanto, entre eles, não uma diferença propriamente estética como concebemos atualmente e, sim, umadiferença funcional, que revelaria o peso e o valor de cada um destes discursos na obtenção do conhecimento.

Estas quatro ciências não podem ser concebidas separadas pois, tomadas isoladamente, acabam perdendocompletamente o seu sentido – o que corresponde exatamente à esquizofrenia que hoje se tornou o estadonormal da nossa cultura. O que definiria e diferenciaria estas quatro ciências não seria o caráter formal ouestético típico de cada discurso mas, sim, o fato de revelarem quatro possíveis atitudes humanas através dapalavra, ou seja, quatro motivos humanos para falar e ouvir. Afinal, o homem discursa para:

•  abrir a imaginação à imensidade do possível, sendo esta a função do discurso poético;

•  tomar alguma resolução prática, sendo esta a função do discurso retórico;

•  examinar criticamente a base das crenças que fundamentaram as resoluções tomadas, sendo esta a função

do discurso dialético;•  explorar as conseqüências e prolongamentos de juízos já admitidos como absolutamente verdadeiros,

construindo com eles o edifício de um saber certo e verdadeiro, sendo esta a função do discurso lógico.

Sendo assim, um discurso seria qualificado como poético, retórico, dialético ou lógico não por sua mera estruturainterna mas, sim, pelo objetivo a que tende em seu conjunto, pelo propósito humano que visa realizar. Por isso é

1 Há também duas obras introdutórias sobre a linguagem e o pensamento em geral: Categorias e Da

 Interpretação.

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que estes quatro discursos são distinguíveis porém não isoláveis, podendo ser estudados até isoladamente,desde que não se perca a noção orgânica que os iguala e os une.

 Ademais, esta unidade, este caráter orgânico do conhecimento, é a tese principal da gnoseologia de Aristóteles. A unidade do processo cognitivo é um resultado ou expressão da unidade do homem mesmo. A gnoseologia de Aristóteles provém da sua antropologia, da sua concepção do homem como o animal racional. Animalidade eracionalidade estão fundidas nele de modo essencial e inseparável. A descrição do processo cognitivo, dadapelo filósofo, não é nada mais que a narrativa da passagem do conhecimento animal, ou puramente sensível, aoconhecimento racional – ou propriamente humano. Este processo corresponde a uma mutação que não faz outracoisa senão revelar, na forma final adquirida por um ser em sua evolução, uma essência que, presente desde aorigem, dirigia ocultamente essa evolução.

Quando Aristóteles define o homem como animal racional, ele não quer dizer que todos os homens sejamracionais efetivamente e em tudo. Ao contrário: o homem é definido pela potência da razão, justamente namedida em que nele essa potência busca efetivar-se e pode fazê-lo. Desse modo, a história da gênese doconhecimento humano não é outra coisa senão a história da passagem da razão humana do estado de potênciapara o de ato. Do conhecimento sensível e deste para o racional não existe corte nem ruptura – mas, sim,somente a progressiva efetivação da potência racional que já está embutida nas sensações mesmas. Por isso,cada ente material tem, na sua forma sensível, a expressão do seu princípio interno de organização, que

constitui o seu aspecto inteligível. Por uma sucessão de depurações abstrativas, o conhecimento consiste emcaptar então o inteligível no sensível. Deste modo, a razão não surge de repente e desde fora, sobrepondo-se àimaginação e às sensações, mas já está de algum modo embutida, imbricada e agente nas sensitividade e,depois, na imaginação. O homem não é, pois, racional somente quando raciocina mas também, implicitamente,quando percebe e imagina. Ele não poderia humanizar-se se já não fosse humano desde o início.

O conhecimento seria então como uma árvore: lança suas raízes no solo das sensações e se elevagradativamente através da imaginação, da vontade e do pensamento até a certeza apodítica. Por isso, temos deadmitir que a vida do conhecimento humano não pode cortar jamais suas raízes e encerrar-se num sistemademonstrativo, sem que este sistema, no mesmo ato, esteja condenado a não abranger senão os planos maisgerais e abstratos da esfera das coisas conhecidas e que, deste modo, deixe de ser conhecimento efetivo parase tornar apenas fórmula de um conhecimento possível, a efetivar-se, justamente, no retorno às coisassingulares que os sentidos nos oferecem. Para Olavo de Carvalho, o sábio - no sentido aristotélico - não é

aquele que se elevou ao céu das essências platônicas mas aquele que, retornando das alturas, sabe ir re-conhecendo, na variedade das coisas sensíveis que se lhe apresentam no espaço e no tempo, o princípio deunidade que nelas se insinua, trazendo do céu aquela recordação da luz da unidade que é precisamentefronesis: guiamento do homem na investigação científica como na vida ativa.

 Ademais, esta unidade última jamais pode ser atingida no domínio das realizações, e permanece sempre comoum ideal orientador que só aparece como tal antes do começo e depois do fim. No entanto, é um ideal que nãopode ser realizado e nem mesmo abandonado, dado que é justamente a imagem de um conhecimento comoeste que move, inspira e determinava a construção e conquista de saberes possíveis.

Vemos, assim, que a teoria levantada por Olavo de Carvalho procura resgatar o espírito sistêmico e ecológico doaristotelismo, num tempo em que a cultura universal busca ansiosamente resgatar o sentido sistêmico e unitáriodo saber e a integração do conhecimento numa visão ecológica – ou ecocósmica – do ser vivente. Afinal, se a

 Astrologia pressupõe uma relação entre a estrutura celeste e terrestre, quem sabe esta teoria sobre a obraaristotélica venha demonstrar, de maneira até então inimaginável, que há, sim, uma analogia estrutural entre anatureza cósmica e a natureza da inteligência humana.

O conjunto da obra Aristotélica reflete todas as etapas pelas quais se vai construindo o próprio conhecimento, oedifício do saber – e uma afirmativa como esta implica numa profunda revisão da nossa concepção dalinguagem e da cultura em geral, em especial porque revela que a unidade do saber não pode realizar-seinteiramente no nível do discurso sem que este discurso se insira no mundo sensível, na vida biológica e nocontexto social. O discurso, desse modo, não formaria um mundo separado da realidade visto que faz parte do

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próprio esforço natural e biológico do ser humano para elevar-se e alcançar o universal que o abarca.

Observações como esta podem se constituir numa chave para a atual busca de um saber interdisciplinar, setornando pois uma pedra fundamental para a concepção de uma cultura e educação globais e integradas, nasquais se depositam atualmente as grandes esperanças da humanidade.

a evolução do conhecimento individual

Segundo Aristóteles, todo conhecimento humano tem origem nas sensações. Se os cinco sentidos não nosinformassem do que se passa no mundo, não teríamos conhecimento nenhum. Mas se alguns sabem mais doque os outros, a diferença não deve ser buscada nas sensações e, sim, em alguma função que neles tenha umdesenvolvimento decisivamente superior. Esta função é a memória. O homem é o animal que tem a memóriamais rica e diferenciada, e por isto sabe mais do que os outros animais.

Mas a memória não é um mero registro passivo pois ela combina e funde as imagens também, criando novospadrões, atuando assim como uma verdadeira faculdade imaginativa. Aliás, Memória e Imaginação são umaúnica e mesma faculdade, denominada Fantasia, que realiza estas duas operações diversas.

O processo é o seguinte: a simples imagem retida na memória, que reproduz esquematicamente um ente ou um

fato, o filósofo chama-a fantasma. Ã media que os fantasmas se acumulam na memória, esta passa a reagir criativamente, recombinando essas imagens, esquematizando-as, selecionando-as e simplificando-as, de modoque a multiplicidade de fantasmas parecidos uns com os outros pode se condensar numa imagem única. Aimaginação organiza os conteúdos da memória, alinhando batalhões de fantasmas em imagens sintéticas, ouesquemas, que designam as coisas espécie por espécie – e não unidade por unidade. Deste modo, parareconhecer a idéia de vaca, não é necessário recordar todas as vacas que já se viu, tornando inclusive inviável otrabalho da inteligência; no entanto, se produz, pela imaginação, uma só imagem esquemática de vaca queindica todas as vacas, ou seja: a espécie vaca. Esta imagem prototípica indica a “essência” da espécie vaca, queabarca sinteticamente todas as vacas. Não por coincidência, a palavra grega eidos, que Aristóteles emprega,significa ao mesmo tempo “essência” e “imagem”; e, em latim, a palavra species significa indiferentemente“espécie”ou “imagem”. É pois a imaginação que faz a ponte entre o conhecimento sensorial e o pensamentológico.

O pensamento lógico consiste, essencialmente, de coerência entre esquemas. Ele é uma vasta estruturação derelações de contiguidade, sucessão, pertinência, oposição, semelhança, diferença, escalaridade hierárquica eetc. Como poderia realizar estas operações diretamente sobre a variedade inesgotável dos dados sensíveis? Seestes não estivessem previamente selecionados, resumidos e simplificados na memória e imaginação, seriapreciso a força de um pensamento divino para conter numa moldura lógica toda a multiplicidade inabarcável doque nos chega pelos sentidos. Mas o pensamento lógico não opera direto sobre o percebido e, sim, somentesobre a parte selecionada e simplificada que se deposita e permanece na memória, sob a forma de esquemasou espécies.

É assim que se torna possível a conquista suprema do pensamento lógico: o conceito. O conceito abarca numasó operação mental não somente espécies por entes, mas espécies de relações entre entes, e espécies deespécies, isto é, gêneros. E de gênero em gênero pode ir subindo, para abarcar as relações mais gerais euniversais até conceber as relações meramente possíveis e as gradações de possibilidade que hierarquizam erelacionam as possibilidades entre si.

Mas o conceito é nada mais que um esquema puramente verbal que simplifica ainda mais o esquema sensívelcom que a memória por sua vez resumia toda uma espécie de seres. Isto quer dizer que o pensamento só agedesde um certo nível de generalidade para cima. Daí a importância estratégica da imaginação: para opensamento, só existe o genérico; para as sensações, somente o particular – mas para a imaginação só existe aespécie, que é simultaneamente genérica e singular. Por isso, sem a mediação imaginativa, essas duasfaculdades cognitivas estariam separadas por um abismo.

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Quando, pela mediação imaginativa, o que foi a nós apresentado pelos sentidos se torna representação, imagemrepetida de mim para mim mesmo, então e só então torna-se possível pensar . É por isso que Hugo de São Vítor chama esta faculdade de imaginatio mediatrix: imaginação mediadora. Séculos mais tarde, Benedetto Croceconfessaria: “se o homem não fosse animal fantástico, não seria também animal lógico”. Nas cosmologiasgregas e medievais, a imaginação ou fantasia foi tida com o análogo, no microcosmo humano, do que é a Almado Mundo na escala cósmica: através Dela os arquétipos eternos contidos na Razão Divina ou Logos descem e

se tornam seres reais viventes.Vemos assim que, segundo Aristóteles, o conhecimento se constitui de uma série de filtragens, seleções eestruturações progressivas que começam nos sentidos diante da experiência e culminam na estruturaçãoracional do conhecimento. Esta, por sua vez, organiza racionalmente a ação, possibilitando uma nova forma deexperiência. Cada faculdade que , na escalada cognitiva, vai entrando em ação, opera uma nova seleção entre oacidental e o essencial, e insere os conhecimentos obtidos numa estrutura cada vez mais ampla, coesa efuncional. O conhecimento não vem da experiência, nem da razão: vem da estruturação racional da experiênciadepositada na memória e depurada pela imaginação; estruturação essa que se molda, de um lado, naconstituição do homem enquanto ser biológico e, de outro, nos princípios ontológicos universais captadosintuitivamente e diversamente refletidos nas formas dos quatro discursos.

Os quatro discursos aristotélicos

Todo discurso é movimento, é transcurso de uma proposição a outra. Tem um termo inicial e um termo final:premissas e conclusão, com um desenvolvimento no meio.

Premissa é aquilo que é tomado como já sabido ou já admitido e que, deste modo, fica aquém do discurso. Hápremissas explícitas e implícitas: as primeiras são mencionadas no início ou no corpo do discurso; as segundasnão são declaradas, de propósito ou não. O emissor pode ter certas crenças tão arraigadas e habituais que, sempensar nelas, as toma inadvertidamente como premissas mas, a isto, chamamos de pressupostos.

O propósito de todo discurso é suscitar uma modificação no interlocutor, por tênue e passageira que seja,mudando sua opinião. À aceitação, pelo interlocutor, da modificação proposta, denomina-se credibilidade, sendoa credibilidade inicial a disposição prévia de acompanhar um discurso, aceitando ao menos provisoriamente as

suas premissas, e a credibilidade final, a plena aceitação da modificação proposta. A credibilidade inicial exige aaceitação ao menos provisória das premissas – ela mesma é uma premissa. A credibilidade final consiste naaceitação das conclusões, bem como, mesmo que implicitamente, das conseqüências que delas possamdecorrer.

Desse modo, um discurso é considerado eficaz quando alcança a credibilidade final, passando por algumasescalas ou etapas. Um discurso malogrado, ao contrário, é aquele que, partindo da credibilidade inicial, nãochega à credibilidade final.

O grau máximo de credibilidade é aquele que se atribui ao absolutamente certo e verdadeiro. No entanto, ominimamente crível – pólo inferior da nossa escala – não corresponde ao falso e isto porque o falso não éminimamente crível mas, sim, incrível, impossível, estando portanto fora e abaixo da escala de credibilidade.Portanto, se o grau máximo cabe ao absolutamente verdadeiro, o grau mínimo corresponde ao minimamenteverdadeiro – que é o meramente possível.

Desse modo, do possível ao certo se dão e se desenvolvem as várias etapas do discurso, através do qual oconhecimento é construído. Afinal, o que determina o início e o fim de um discurso é justamente o desejo dainteligência em alcançar uma certeza máxima ou a inconveniência de contentar-se com uma certeza mínima. Noentanto, a certeza máxima nem sempre é possível, e a certeza mínima nem sempre basta para os finsdesejados. Desta constatação, surgem os quatro tipo dos discursos baseados em seus respectivos níveis decredibilidade:

1)  o Poético, tendo como nível de credibilidade opossível; 

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2)  o Retórico, tendo como nível de credibilidade o verossímil;

3)  o Dialético, tendo como nível de credibilidade o provável;

4)  o Lógico, tendo como nível de credibilidade o certo. 

Discurso Poético

propósito

Parte do gosto ou dos hábitos mentais e imaginativos do público e, jogando com as possibilidadesque aí se encontram, procura criar uma aparência, um simulacro, levando o público a aceitar provisoriamente como verdadeiro, por livre consentimento, algo que se admitiu de antemão ser apenas uma ficção ou uma convenção.

Tem por objeto o possível (dínatos), dirigindo-se sobretudo à imaginação, que capta aquilo que elamesma presume (eikástikos = presumível; eikasia = imagem, representação)

nível decredibilidade

Tem credibilidade pela sua magia: faz o ouvinte participar de um mundo de percepções, evocações,sentimentos, de modo que, não existindo hiato entre o poeta e o seu público, a comunhão – espirituale contemplativa – de vivências “e como se a própria vida falasse”. Ademais, uma das condiçõesbásicas para a apreciação da poesia é a suspension of disbelief: suspensão da dúvida, da exigênciacrítica realista. O ouvinte ou leitor da obra poética coloca provisoriamente entre parênteses o juízocrítico, de modo a poder participar mais diretamente da vivência contemplativa que lhe é proposta.

 Absorve, pois, a alma inteira do ouvinte, deixando nela uma marca profunda que se integre na suapersonalidade.

 Aqui, a credibilidade assume a forma de uma participação consentida numa vivência contemplativaproposta pelo poeta. O efeito mágico dessa participação requer também, como condição preliminar,a comunidade de língua e de linguagem entre o poeta e ouvinte, tendo um domínio equivalente dovocabulário. No entanto, deve-se frisar que a comunhão de vivências referida acima é espiritual econtemplativa e não diretamente sensorial e emotiva – o que se compreende tão logo se percebaque os 4 discursos se dirigem ao espírito, ao homem enquanto sujeito cognoscente e nãodiretamente enquanto existente.

Este discurso é aquele que, pela sua estranheza, rompe o estado de banalidade e tédio. Mas há doistipos de estranhamento: mágico e intelectual. O segundo cria entre nós e a obra poética umadistância crítica, que enfraquece ou anula a experiência poética; o primeiro, em contrapartida,confere à linguagem poética uma auréola de prestígio e de autoridade oraculares, com a qual elapode subir à esfera do que a estética romântica denominava o sublime, para além do simplesmentebelo. A diferença é que uma dessas formar de estranhamento vem acompanhada de um sentimentode rejeição, de inconformidade, ao passo que a outra produz o fascínio e a participação.

Tal discurso pode ter tantas interpretações quanto se queira, sem que isto prejudique em nada o seuefeito, que às vezes é tanto mais profundo quanto mais variadas as interpretações.

resultado Produz uma impressão 

disposiçãopsicológica do

ouvinte

 Afrouxar sua exigência de verossimilhança, admitindo que não é verossímil que tudo sempreaconteça de maneira verossímil. Admitindo um critério de verossimilhança mais flexível, o indivíduoadmite que as desventuras da personagem podem ter acontecido a ele mesmo ou a qualquer outrohomem, revelando que estas são possibilidades humanas permanentes. Aqui, a imaginação toma asrédeas da mente, levando-a ao mundo do possível num vôo do qual não se espera que decorranenhuma consequência prática imediata.

sua ciência estuda os meios pelos quais o discurso poético abre à imaginação o reino do possível.

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Discurso Retórico

propósito

Parte de convicções atuais do público, sem elas verdadeiras ou falsas, e procura levar a platéia auma conclusão verossímil.

Tem por objeto o verossímil (pithános) e por meta a produção de uma crença firme (pístis) quesupõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência da vontade; e o homem influencia avontade de um outro homem por meio da persuasão (peitho), que é uma ação psicológica fundadanas crenças comuns

nível decredibilidade

Visa essencialmente persuadir alguém a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. Todo discursoretórico contém, de maneira mais ou menos explícita, um comando ou um apelo. Ele tenciona queesse apelo seja atendido, esse comando obedecido, contentando-se em influenciar o ouvinte duranteum determinado período de tempo e para os fins de uma determinada decisão ou ação em particular.

Por isso, emite sempre uma ordem ou pedido que, mesmo implícito, será sempre concreto edeterminado – motivo pelo qual tem de ser de inteligibilidade literal e imediata, unívoco. Afinal,palavras obscuras podem fascinar ou comover – mas não podem transmitir uma ordem precisa edeterminada.

Sua credibilidade consiste em fazer o ouvinte querer alguma coisa ou rejeitá-la. Este efeito se obtémpor uma identificação, ao menos aparente e momentânea, da vontade do ouvinte com a vontade doorador. Este faz o ouvinte sentir que a proposta contida no discurso coincide, em última instância,com a vontade íntima do próprio ouvinte. Este discurso apela ao sentimento de liberdade do ouvinte,ao seu impulso de decidir, de agir por si mesmo, de afirmar sua vontade. Por isto a Retórica antigaconsiderava importante que o orador captasse primeiro as inclinações do auditório, para poder fazer a ponte entre essas inclinações e o objetivo desejado. No entanto, a retórica verdadeira se baseiasempre na autêntica vontade do auditório, procurando apenas orientá-la ou transformá-lasuavemente, sem forças mudanças nem muito menos ludibriar o auditório. Afinal, o retórico sabe quea vontade, em última análise, não pode ser persuadida senão a fazer precisamente o que quer, e queno máximo é possível trocar uma vontade superficial e momentânea por outra mais profunda, já

latente no coração do auditório. Nesse sentido, a retórica apela para o que exista de melhor na almado ouvinte, e tem por isso uma função moral e política, como exercício da decisão responsável.

resultado produz umadecisão 

disposiçãopsicológica do

ouvinte

chegar a formular uma sentença. Aliás, na retórica antiga, o ouvinte era chamado de juiz. Este é,portanto, consultado como autoridade: tem o poder de decidir, sendo a sua vontade quem ouve e

 julga o discurso para, decidindo, criar uma situação no reino dos fatos.

sua ciência estuda os meios pelos quais o discurso retórico induz a vontade do sujeito a admitir uma crença

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Discurso Dialético2 

propósito

Parte de premissas que podem ser incertas, mas que são aceitas sob determinadas circunstâncias epor um público mais ou menos homogêneo e conhecedor do assunto, isto é, parte de premissasprováveis. Admitindo várias linhas de desenvolvimento possíveis para tais premissas, o discursodialético compara e confronta esses desenvolvimentos, excluindo-os ou combinando-os também

segundo as regras da coerência lógica.Tem por objeto a probabilidade maior ou menor de uma crença ou tese, não segundo sua meraconcordância com as crenças comuns, mas submetendo-as à prova, mediante ensaios e tentativasde transpassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias transversas, buscando averdade entre os erros e os erros entre as verdades (diá = através de; duplicidade, divisão). Servepara vislumbrar os princípios que fundamentariam definitivamente esta crença ou tese visto que, peloconfronto das hipóteses contraditórias, acabaria levando o sujeito a uma espécie de iluminaçãointuitiva que poria em evidência estes princípios. Segundo Éric Weil, é uma logica inventionis, oulógica da descoberta: o verdadeiro método científico, do qual a lógica formal é apenas umcomplemento e um meio de verificação. Por isso, ela tem uma tripla função: 1) é uma lógica doprovável ou do razoável; 2) é uma prática pedagógica, um treinamento do espírito para a discussãocientífica; 3) é o método para encontrar os princípios fundadores de qualquer ciência nova.

nível decredibilidade

Pretende convencer por meios racionais, independentemente da vontade do ouvinte e ou mesmocontra ela. Exige que o ouvinte confie no seu próprio poder de raciocínio e nas premissas geralmenteadmitidas, isto é, que admita a arbitragem da razão e algumas premissas em comum com o orador,tiradas das crenças correntes do meio social e cultural. Ademais, o rumo do discurso será controladopelo próprio ouvinte, sempre pronto a rejeitar as conclusões que lhe pareçam escapar da seqüêncialógica.

Sua credibilidade depende, portanto, de 2 fatores: 1) o ouvinte tem de se comprometer a seguir alógica do argumento e a aceitar como verdadeiras as conclusões que não possa refutar logicamente;2) é preciso encontrar um terreno comum de onde tirar as premissas. Essa credibilidade depende,enfim, do grau de cultura do ouvinte e da sua honestidade intelectual. Este discurso se dirige a umouvinte racional e razoável, que aceite submeter sua vontade à razão, e que possua alguns

conhecimentos em comum com o orador. Seu sucesso depende de que encontre um ouvinte nessascondições.

resultado produz umaanálise 

disposiçãopsicológica do

ouvinte

chegar a uma conclusão que idealmente deva ser admitida como razoável por ambas as partes emcontenda. Para tal, o impulso de decidir deve ser adiado indefinidamente, até mesmo reprimido,refreando o desejo de vencer, dispondo-se humildemente a mudar de opinião se os argumentos doadversário forem mais razoáveis. Por isso, este discurso não defende um partido mas investiga umahipótese. Ele visa a aproximação da verdade que poderá ser lenta, progressiva, difícil, tortuosa, nemsempre obtendo resultados satisfatórios. Mas esta investigação só é possível quando ambos osparticipantes do diálogo conhecem e admitem os princípios básicos com fundamento nos quais aquestão será julgada, e quando ambos concordam em ater-se honestamente às regras da

demonstração dialética. A atitude, aqui, é de isenção e, se preciso, de resignação autocrítica. Aristóteles adverte que não se deve tecer argumentos desta natureza com quem desconheça osseus princípios pois, do contrário, ficará exposto a objeções puramente retóricas, prostituindo afilosofia.

sua ciência estuda os meios pelos quais o discurso dialético averigua a razoabilidade das crenças admitidas

2 é também chamado de peirástica ( peirá = prova, experiência, de onde deriva peirasmos = tentação; empirismoe também peirates = pirata, símbolo da aventura sem rumo predeterminado)

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Discurso Lógico

propósito

Parte de premissas tidas como absolutamente certas, ou universalmente aceitas, e procede numdesenvolvimento rigoroso segundo as leis formais do pensamento, a lógica silogística, para alcançar conclusões absolutamente certas ou universalmente obrigantes.

Tem por objeto a veracidade das conclusões, sempre partindo das premissas admitidas comoindiscutivelmente certas e chegando, pelo encadeamento silogístico, à demonstração certa (apodêixis = prova indestrutível). Serve para facilitar a verificação dos conhecimentos já adquiridos,confrontando-os com os princípios que os fundamentam, para ver se não os contradizem.

nível decredibilidade

Sua credibilidade depende de 2 coisas: que o ouvinte seja capaz de acompanhar passo a passo umraciocínio lógico cerrado, sem perder o fio, e que ele esteja ciente da veracidade absoluta daspremissas. A primeira condição depende do treino lógico especializado. A Segunda só se realiza emdois casos: 1) quando se trata de premissas muito gerais, que ninguém possa negar em sãconsciência; 2) quando o discurso se dirige a um público científico, informado, apto a tomar comoabsolutas certas premissas específicas. Por isso, este discurso só pode funcionar quando trata deverdades muito gerais para um público geral ou de verdades específicas para um público muito

especializado.Vale aqui a advertência de Alberto Magno: “afeitos à vulgaridade e à ignorância, lhes parece triste eárida a certeza filosófica, seja porque, não tendo estudado, não são capazes de entender tallinguagem, ignorando a eficácia do aparato silogístico, seja pela limitação ou falta de razão ou deengenho. Com efeito, uma verdade que se obtenha com certeza por via silogística é de tal condiçãoque não pode facilmente alcançá-la aquele que não estude, e está totalmente incapacitado para elaaquele que seja de visão curta”.

Ou da de Clemente de Alexandria: “o dado lógico proveniente das demonstrações produz, na almadaquele que bem seguiu a cadeia demonstrativa, uma fé tão vigorosa que ela não lhe permite sequer imaginar que o objeto demonstrado possa ser diferente do que é, e o subtrai à influência das dúvidasque querem se insinuar em nosso espírito para nos enganar”.

resultado produz umademonstração e, quiçá, uma confirmação 

disposiçãopsicológica do

ouvinte

demonstrar, de maneira linear, o quanto uma conclusão é certa, partindo de premissas admitidascomo absolutamente verídicas e procedendo rigorosamente à dedução silogística. Este discursocorresponde ao monólogo do mestre: ao discípulo cabe apenas receber e admitir a verdade. Casofalhe a demonstração, o assunto volta à discussão dialética.

sua ciênciaestuda os meios da demonstração apodíctica, isto é, os meios pelos quais o discurso lógicodemonstra uma certeza inabalável.

Vemos, assim, que de discurso em discurso, há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível:

1) 

da ilimitada abertura do mundo das possibilidades passamos2)  à esfera mais restrita das crenças subscritas pelo senso comum;

3)  porém, destas crenças, só umas poucas sobrevivem aos rigores da triagem dialética;

4)  e, destas, menos ainda são as que podem ser admitidas pela ciência com absolutamente certas e funcionar,no fim, como premissas de raciocínios cientificamente válidos.

 A esfera própria de cada uma das quatro ciências é portanto delimitada pela contiguidade da antecedente e dasubsequente. Dispostas em círculos concêntricos, elas formam o mapeamento completo das comunicações

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8/22/2019 Definicao Filosofia Aristoteles Olavo de Carvalho

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entre os homens civilizados, a esfera do saber racional possível. Por isso, se as quatro ciências do discurso sãoinseparáveis, é porque há entre elas uma escala de credibilidade crescente que corresponde aos graus pelosquais o homem ascende das percepções sensíveis ao saber racional apodíctico, de modo que cada uma preparao terreno para a seguinte. Não poderia mesmo ser de outro modo: afinal, como poderia a coletividade chegar àcerteza científica sem o concurso preliminar e sucessivo da imaginação poética, da vontade organizadora que seexpressa na retórica e da triagem dialética empreendida pela discussão filosófica?

Estrutura geral dos quatro discursos aristotélicos 

princípios

gerais

osfrutos

n

e

x

o os

vários

ramos

+

p

r  oo tronco 

v

a

s as

raízes 

evidência

LÓGICA certeza 

 percepção finaldistinta, conclusão

inabalável

razãociência

 probabilidade comparação dassemelhanças e

diferenças

 pensamento filosofia

DIALÉTICA

RETÓRICAverossimilhança afirmação da visão

 pessoal sentimento ação social,

POÉTICA possibilidade  percepção inicial

confusa

intuição, imaginação simbologia: poesia , mito