aristoteles - arte e música

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ARISTÓTELES: ARTE, PÁTHOS E ÉTHOS ARISTÓTELES (384 a.C.-322 a.C.) Ao retomar o pensamento platônico 1 e pitagórico à luz de certa influência hedonística, Aristóteles considera que a música demonstra um caráter de racionalidade matemática superior que engloba toda a harmonia, como imagem direta das relações numéricas que reinam no universo. Em A Política, o capítulo sobre a música é apresentado no Livro V, que é dedicado à educação. Para Aristóteles a música representa, acima de tudo, um prazer; o que significa que representa o ócio e se opõe ao trabalho e à atividade. A sua utilidade na educação dos jovens está apenas em que mesmo para o repouso são necessários conhecimento e prática. Se a música é útil como ocupação do tempo livre, para os momentos de ócio, por este motivo é considerada como sendo uma disciplina liberal e nobre. Assim, o filósofo peripatético 2 distingue entre a escuta e a execução musicais: a primeira é uma atividade não manual e digna de um homem livre; a segunda é um trabalho manual e não pode ser útil para a educação liberal 3 . 1 Segundo Plutarco, Aristóteles teria tomado parte de sua concepção sobre a música do diálogo Timeu, de Platão. 2 Ao retornar a Atenas, após ter sido o preceptor de Alexandre, O Grande, na Macedônia, Aristóteles e se vê destituído do Liceu, local onde ensinava; por essa razão, passou a dar suas aulas ao ar livre. A denominação ‘peripatético’ (do verbo peritatéō = passear, perambular) vem do hábito do filósofo de ensinar a seus discípulos enquanto caminhavam pelas ruas da cidade. Daí vêm também os termos ‘esoterismo’, com o sentido original de “estudo profundo para iniciados, através de caminhadas à tardinha”, e ‘exoterismo’, que tem sentido de “iniciação por meio de caminhadas pela manhã”. 3 É interessante notar como essa distinção entre música prática e música teórica, em Platão, e entre escutar música e tocar música, em Aristóteles, permaneceu ao longo dos tempos nas diversas concepções de música. Por exemplo, na Renascença, os nobres dedicavam-se à fruição musical, enquanto seus súditos se dedicavam a tocar;

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Ao retomar o pensamento platônico1 e pitagórico à luz de certainfluência hedonística, Aristóteles considera que a música demonstra umcaráter de racionalidade matemática superior que engloba toda aharmonia, como imagem direta das relações numéricas que reinam nouniverso.

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Page 1: Aristoteles - Arte e Música

ARISTÓTELES: ARTE, PÁTHOS E ÉTHOS

ARISTÓTELES (384 a.C.-322 a.C.)

Ao retomar o pensamento platônico1 e pitagórico à luz de certa

influência hedonística, Aristóteles considera que a música demonstra um

caráter de racionalidade matemática superior que engloba toda a

harmonia, como imagem direta das relações numéricas que reinam no

universo. Em A Política, o capítulo sobre a música é apresentado no

Livro V, que é dedicado à educação.

Para Aristóteles a música representa, acima de tudo, um prazer; o

que significa que representa o ócio e se opõe ao trabalho e à atividade.

A sua utilidade na educação dos jovens está apenas em que mesmo

para o repouso são necessários conhecimento e prática. Se a música é

útil como ocupação do tempo livre, para os momentos de ócio, por este

motivo é considerada como sendo uma disciplina liberal e nobre. Assim,

o filósofo peripatético2 distingue entre a escuta e a execução musicais: a

primeira é uma atividade não manual e digna de um homem livre; a

segunda é um trabalho manual e não pode ser útil para a educação

liberal3.

1 Segundo Plutarco, Aristóteles teria tomado parte de sua concepção sobre a música do diálogo Timeu, de Platão. 2 Ao retornar a Atenas, após ter sido o preceptor de Alexandre, O Grande, na Macedônia, Aristóteles e se vê destituído do Liceu, local onde ensinava; por essa razão, passou a dar suas aulas ao ar livre. A denominação ‘peripatético’ (do verbo peritatéō = passear, perambular) vem do hábito do filósofo de ensinar a seus discípulos enquanto caminhavam pelas ruas da cidade. Daí vêm também os termos ‘esoterismo’, com o sentido original de “estudo profundo para iniciados, através de caminhadas à tardinha”, e ‘exoterismo’, que tem sentido de “iniciação por meio de caminhadas pela manhã”. 3 É interessante notar como essa distinção entre música prática e música teórica, em Platão, e entre escutar música e tocar música, em Aristóteles, permaneceu ao longo dos tempos nas diversas concepções de música. Por exemplo, na Renascença, os nobres dedicavam-se à fruição musical, enquanto seus súditos se dedicavam a tocar;

Page 2: Aristoteles - Arte e Música

2

Aristóteles busca critérios mais objetivos para a avaliação da

música: se a música é útil como matéria educativa, deve-se buscar

estabelecer porque é educativa, como deve ser ensinada, em que nível

deve ser aprendida (profissional ou amador), se é suficiente escutá-la,

quais são as melodias, os modos, os ritmos que são educativos ou não,

etc. Assim, executar música é somente um momento inicial preparatório

de uma atividade mais elevada que é saber realizar o juízo sobre a

música (saber julgá-la com a faculdade do juízo). O problema é que não

se pode ser bom juiz daquilo que não se sabe fazer. Assim, a prática

musical é necessária ao cidadão livre, porém deve se restringir a não

alcançar o virtuosismo. Aristóteles considera que instrumentos como a

flauta ou a cítara são extremamente difíceis, por isso deveriam ser

deixados aos músicos profissionais, que seriam homens vulgares

dedicados às atividades manuais. É importante lembrar que tanto Platão

quanto Aristóteles dedicam seus escritos para a formação educativa do

cidadão, isto é, os homens de posse e principalmente aqueles que

seriam os futuros dirigentes da sociedade (Aristóteles foi preceptor de

Alexandre, o Grande).

Aristóteles se posiciona com relação às duas linhas de pensamento

musical predominantes na Grécia antiga: de um lado, os pitagóricos,

para quem a música estaria em relação direta e orgânica com a alma

através da harmonia do cosmo (através das relações numéricas

encontradas na série harmônica e suas afinidades com as esferas

celestes); de outro lado, a teoria de Damon, para quem a relação entre

a música e a alma se daria por meio da mimese (imitação das paixões,

no caso da música). Com base nessas teorias, Aristóteles considera que

certas melodias, certos ritmos, certas harmonias imitam a virtude,

outras imitam os vícios; nesse sentido, a música tem um poder

na teoria musical renascentista, também existia a distinção entre ‘música prática’ e ‘música teórica’, sendo esta considerada superior.

Page 3: Aristoteles - Arte e Música

3

educativo quando empregada com prudência e sabedoria, por meio do

conhecimento dos seus efeitos sobre a alma humana. Apesar de não

descartar a teoria pitagórica, de fundo metafísico, seu sólido realismo o

coloca mais próximo das teorias de Damon. O pitagorismo é avaliado

com certo distanciamento, como uma hipótese vaga, por Aristóteles.

Para Aristóteles, toda a harmonia corresponde a um determinado

estado psicológico, isto é, um éthos, um modo de ser, um caráter, um

conjunto de hábitos. Para o autor, todas as harmonias são possíveis

porque dependem do seu emprego em um momento oportuno. O que

importa na escolha deste ou daquele ritmo ou modo escalar é o efeito

que se quer causar no público. Assim, se ligam as três obras em que o

autor trata do assunto (A Política, Livro V; Retórica, Livro II; Poética,

Livro I).

Arte é imitação e suscita sentimentos, por isso é educativa sempre

que o artista pode desenvolver oportunamente a verdade de imitar e de

influenciar sobre o estado de ânimo dos cidadãos. O benefício moral que

pode advir para o homem através da música passa através do

mecanismo da catarse, que é a purificação da alma através dos

sentimentos despertos pela tragédia e pela comédia. Para Aristóteles, ao

contrário de Platão, não há harmonias ou ritmos danosos do ponto de

vista ético; a música é uma medicina para a alma mesmo quando imita

as paixões ou emoções que geram dor e tormento, porque podem ser

úteis para liberá-las ou purificá-las.

Isso é possível porque Aristóteles percebe certa pluralidade de fins

propiciados pela música. Para o filósofo, não há apenas um único uso da

música, mas diversos (são três as qualidades benéficas da música:

educação, catarse e repouso) e é daí que vem a possibilidade de

empregar todas as harmonias, visto que estas três funções não são

separadas, mas se interligam umas às outras. A aceitação do prazer

como fator possível para a função ética da música abre o campo para as

Page 4: Aristoteles - Arte e Música

4

especulações mais variadas sobre música nas gerações posteriores a

Aristóteles. Poderia ser dito, segundo Fubini4, que é com Aristóteles que

nasce aquilo a que os modernos chamarão de estética da música; o

autor considera que há, em Aristóteles, uma perspectiva estético-

hedonista que percorre todo o fio do pensamento musical posterior a

ele.

Nos Problemas5, Aristóteles aborda as inter-relações entre

melodia, ritmo e harmonia, com relação às qualidades morais: “nas

melodias, há uma possibilidade natural de imitação dos costumes,

devido evidentemente ao fato de que a natureza da harmonia é

variada”6. Para o autor, a audição é o único sentido que pode perceber

qualidades providas de éthos. O movimento sonoro é que permite isso,

pois o movimento em si já está carregado de caráter ético, porém os

sabores e as cores não têm essa qualidade, pois estão fixos no espaço.

A afinidade entre o mundo dos sons, o mundo das emoções (medo,

piedade, etc.) e o mundo do éthos é de natureza formal e indireta. O

que os liga é o movimento comum a ambos os mundos em que se funda

a qualidade mimética da música; no movimento, entendido como

caráter fundamental da música, se encontra também a origem do prazer

gerado por ela.

O movimento na música implica também a idéia de ordem, de

medida e harmonia, no sentido pitagórico. Aristóteles retoma este

conceito de movimento de origem pitagórica, porém evitando todo o

caráter metafísico, para interpretá-lo em sentido exclusivamente

psicológico e formal. Nossa alma sente prazer com relação ao

4 FUBINI, Enrico. L’estetica musicale dall’antichità al Settecento. Torino: Einaudi, 1976, p. 43-58. 5 Problemas é uma obra apócrifa, por isso, os especialistas costumam denominar o autor como Pseudo Aristóteles. 6 ARISTÓTELES, A política. São Paulo: Atena, 1963.

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5

movimento ordenado porque a ordem está de acordo com a natureza e

a música encarna e reproduz nos modos mais diversos, através de seus

ritmos e das suas harmonias, a ordem natural. Assim, a metafísica

pitagórica, o moralismo platônico e o hedonismo musical contemporâneo

se entrelaçam no pensamento aristotélico, mesmo que a tendência mais

acentuada esteja nos aspectos psicológicos e empíricos do fato musical,

despojando-o daquela superestrutura metafísica que as especulações da

tradição pitagórica haviam construído.

***

Passagens do Livro V de A Política sobre música e outras artes:

Sobre o caráter anti-utilitário: p. 202 §2

Sobre o desenvolvimento do espírito e do corpo p. 204 §2

Sobre os três aspectos (educação, catarse, ócio) p. 206 §1

Sobre o prazer: p. 206

Sobre a mimese das paixões: p. 207 §5 em diante – “Nada imita

melhor os verdadeiros sentimentos da alma do que o ritmo e a melodia”

(p. 208 §1)

Sobre os afetos dos modos: p. 209 §1

Sobre “é difícil ser bom juiz numa arte que não se pratique”: p.

210 §1

Refutação de Platão: p. 210 §3 e adiante;

Diferentes status de música (prática e teórica): p. 211 §4

Sobre os instrumentos que não devem participar da educação dos

jovens (flautas e cítaras): p. 211 §5

Crítica à perfeição na execução musical (virtuosismo): cap. VII p.

212 §1

Refutação a Platão (modos admitidos e gêneros): p.213 §2

Sobre a diversidade de utilidades da música: p. 214 §4

Page 6: Aristoteles - Arte e Música

6

Sobre a catarse (purificação): p. 214 §6

Sobre o modo dórico: p. 215 §8 (refutação de Platão); p. 216 §10

Sobre o modo frígio e a invenção do ditirambo, uso da flauta nos

rituais dionisíacos: p. 215 §9

Sobre o modo lídio: p. 217

***

RETÓRICA: II. DAS PAIXÕES

O estudo das paixões por Aristóteles, no segundo livro de sua

Retórica, tem o intuito de instruir seus discípulos na arte da eloqüência

para que possam debater e superar os grandes oradores da época, os

sofistas. No primeiro livro, o pensador demonstra com que argumentos

se deve persuadir e dissuadir, louvar e censurar, acusar e defender-se,

quais são as opiniões que podem servir de base para a demonstração

dos fatos e quais seriam prejudiciais e fáceis de serem refutadas.

Porém, “visto que a retórica tem como fim um julgamento [...], é

necessário não só atentar para o discurso, a fim de que ele seja

demonstrativo e digno de fé, mas também se pôr a si próprio e ao juiz

em certas disposições” (ARISTÓTELES, 2000, p. 3). Assim, o filósofo

realiza o estudo das grandes paixões humanas, para demonstrar aos

seus discípulos como provocá-las, nos momentos adequados, em seus

ouvintes e interlocutores, a fim de convencê-los de seus argumentos. É

nesse sentido que Aristóteles redige o segundo volume da Retórica.

O orador deve ser considerado credível. “Três são, portanto, as

causas de que os oradores sejam tomados por si dignos de crédito, pois

são de igual número as que dão origem à nossa confiança” (ibid., p. 5).

Assim, o orador, para conquistar a confiança dos ouvintes, precisa

demonstrar prudência, virtude e benevolência. Para Aristóteles, “as

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7

paixões são todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas

pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são seguidos de tristeza e

prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões

análogas, assim como seus contrários” (ibid). O pensador considera que

se devem distinguir três pontos de vista na análise de cada paixão: qual

a disposição, com relação a quem e por quais motivos as pessoas

exprimem cada uma de suas paixões. “De fato, se conhecêssemos

apenas um ou dois desses pontos de vista, mas não todos, seria

impossível inspirar a cólera; o mesmo acontece com as outras paixões”

(ibid.)

As quatorze paixões elencadas por Aristóteles são as seguintes:

Cólera: a cólera é “o desejo, acompanhado de tristeza, de vingar-

se ostensivamente de um manifesto desprezo por algo que diz respeito

a determinada pessoa ou a algum dos seus, quando esse desprezo não

é merecido” 7. Com relação aos três aspectos analisados por Aristóteles

(disposição, relação e motivo), a pessoa encolerizada apresenta-se com

a disposição de vingar-se, “é agradável, com efeito, pensar que se

obterá o que se deseja; ora ninguém deseja para si o que lhe parece

impossível; assim, então, o encolerizado deseja o que lhe é possível

[...], pois certo prazer acompanha [a ira]” 8; o encolerizado se volta

contra um indivíduo em particular, nunca contra a humanidade em

geral; a cólera pode ser motivada pela experimentação de desgosto.

Para Aristóteles, três são as espécies de desprezo: o desdém, a

difamação e o ultraje.

As outras paixões são: Calma; Amor; Ódio; Temor; Confiança;

Vergonha; Impudência; Favor; Compaixão; Indignação; Inveja;

Emulação; Desprezo.

7 ARISTÓTELES. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 7. 8 Ibid.

Page 8: Aristoteles - Arte e Música

8

POÉTICA

Os conceitos mais importantes presentes na poética de Aristóteles,

são os seguintes:

• mímēsis – termo grego que significa imitação; esse termo é

geralmente associado à imitação da natureza, nas artes visuais

(pintura e escultura), porém, foi amplamente empregado por

Aristóteles para significar imitação de vozes e gestos, através

de pantomimas, na tragédia, como também a imitação com

sentido moral, isto é, imitação dos vícios e das virtudes, assim

como a imitação das paixões através da música;

• kátharsis – termo grego que significa purificação do corpo ou da

alma através da purgação dos males e pela satisfação de

necessidades morais; Aristóteles emprega esse vocábulo com o

sentido de produzir o alívio da alma, através de um

procedimento que engloba a produção de afeições mistas de

piedade e terror, no espectador;

• peripéteia – vocábulo grego que significa peripécia, aventura ou

imprevisto; Aristóteles utiliza essa palavra para designar as

mudanças súbitas ou imprevistas de um estado a outro, no

decorrer da narrativa, em que ocorrem revelações inesperadas;

• stásimon (estásimo) – é o termo grego que designa as

participações do coro, na tragédia, entre os episódios da

narrativa, com a função de comentar os atos dos personagens,

aconselhando-os;

• eikos – vocábulo grego que significa verossimilhança; para

Aristóteles, o princípio da verossimilhança é mais importante

para a arte do que a verdade; assim como o mito é mais

importante do que a História – o mito é universal, ao passo que

a história é particular (Poétique, p. 46).

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9

Os dois critérios artísticos mais importantes para Aristóteles, na

análise da tragédia, são a verossimilhança e a necessidade. Segundo o

princípio da verossimilhança, o espectador passa a crer na veracidade

dos acontecimentos; conforme o princípio da necessidade, é importante

que cada parte isolada da cena esteja tão bem concatenada com o todo

e com as outras partes da tragédia, que se perceba cada uma delas

como necessária à ação. A verossimilhança e a necessidade são geradas

através do reconhecimento, que é a identificação do espectador com o

personagem e consigo mesmo, alcançada através da compaixão ou

piedade, e da peripécia, que é a incorporação de encadeamentos

imprevistos no decorrer da ação, com o propósito de produzir

sentimentos de terror.

Quando a tragédia é bem sucedida em realizar todos os estágios

descritos acima, alcança a função mais importante da arte, que seria a

catarse; esta é a purificação do espírito do espectador através da

purgação de suas paixões, especialmente dos sentimentos de terror ou

de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico.

Além disso, a tragédia se constitui de três momentos principais: a

peripécia, o reconhecimento e o patético. O estado patético (do grego

pathētikós) significa a capacidade de comover, ou seja, produzir

diversos movimentos internos, na alma, pois esta é sensível às

influências exteriores. Este estado é alcançado através de estímulos aos

sentimentos de piedade e terror, produzindo afeições como a ternura, a

alegria ou a melancolia. Trata-se, portanto, de produzir movimentos

anímicos que se opõem ao estado de passividade ou permanência.

Nesse sentido, o pensamento aristotélico se afasta de Platão, pois, para

este filosofo, o estado ideal seria a perenidade.

Aristóteles ainda distingue três tipos de poesia:

Page 10: Aristoteles - Arte e Música

10

1. Ditirambo – está na origem da poesia lírica, derivada dos rituais

dionisíacos, em que os versos são cantados com acompanhamento de

flautas e danças processuais; daí surgem os primeiros elementos da

tragédia ática, pois dá origem ao coro e ao corifeu, o solista que conduz

e dialoga com o coro (que chegou a mais de 50 cantores, no período

áureo da tragédia); quanto à estrutura, o ditirambo era composto por

estrofes irregulares, quanto à métrica e ao número de versos, cuja

função era glorificar os prazeres do corpo, através de cantos delirantes;

2. Epopéia – são os poemas épicos, geralmente em prosa, cuja

narrativa exalta os feitos memoráveis de heróis e figuras míticas; a

epopéia geralmente trata de personagens múltiplos, como ocorre na

Ilíada de Homero (Aquiles, Agamenon, Ulisses, Heitor, Ájax, etc.),

através de narrativas que combinam homens e deuses em guerras

extraordinárias, com atos gloriosos que provocam maravilhamento e

admiração no espectador, devido à grandiosidade dos fatos narrados;

3. Tragédia – são as peças encenadas que combinam estruturas

líricas e dramáticas, com vários personagens mascarados em cena, o

coro e o corifeu; essas encenações tratam de antigas figuras ilustres da

sociedade grega, geralmente famílias nobres que tiveram sua história

marcada por algum acontecimento trágico, o que ocorre nas tragédias

célebres como Édipo, Antígona e Electra, de Sófocles.

Page 11: Aristoteles - Arte e Música

11

APRESENTAÇÃO DE CONCEITOS POR ARISTÓTELES

MIMESE

Este termo foi inicialmente utilizado pelos pitagóricos, sendo

originalmente aplicado à música e à dança. Sua aplicação às artes

cênicas provavelmente deve-se a Aristóteles, para quem a arte deveria

se dedicar à criação e à transposição da narrativa em figuras da

realidade, porém não apenas cópia ou imitação desta. Com isso, o

filósofo peripatético pretende o primado da ação sobre o personagem,

sendo que a mimese pode significar tanto o objeto reproduzido quanto o

objeto que resulta da imitação (verbo: ‘mimesthai’).

Para Platão, a tragédia se limita à imitação e deve, portanto, ser

banida da república, pois entende a mimese em sentido negativo, como

um imitação da imitação, isto é, um imitação de segunda categoria.

Aristóteles, ao contrário, entende a tragédia como personagens em

ação, por isso, propõe a unidade de ação em vários aspectos da

tragédia, sendo que a epopéia, que é pura narração, pode ser construída

ple multiplicidade de ação. Isso deriva de necessidades práticas, pois ao

narrar uma história, é possível fazer com que vários personagens

apareçam em diferentes lugares, o que seria impossível na encenação9.

O entendimento da mimese em sentido positivo leva à imitação

como o fundamento da atividade artística, o que perdurou desde os

antigos gregos até o século XIX. Para Aristóteles,

“parece, de modo geral, darem origem à poesia duas causas, ambas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir primeiros conhecimentos por meio da imitação – todos têm prazer em imitar. [...] Outra razão é que

9 Note-se o esforço que os diretores de ópera do século XVII fizeram para superar essa limitação de Aristóteles ao inventarem máquinas e equipamentos que permitiam ações simultâneas e personagens atuando em diferentes níveis, no palco.

Page 12: Aristoteles - Arte e Música

12

aprender é sumamente agradável não só aos filósofos, mas igualmente aos demais homens [...]. Se a vista das imagens proporciona prazer é porque acontece a quem as contempla, aprender a identificar cada original [...]. Por serem naturais em nós a tendência para a imitação, a melodia e o ritmo – que os metros são parte dos ritmos é fato evidente – primitivamente, os mais bem dotados para eles, progredindo a pouco e pouco, fizeram nascer de suas improvisações a poesia”.10

A mimese pode ser de pessoas – a imitação do caráter humano:

vício ou virtude (ambos são úteis à arte); na imitação dos caracteres, o

personagem pode ser melhor do que a realidade, semelhante à

realidade, ou pior do que a realidade. Assim, não é o metro que faz a

poesia, mas seu assunto (p. 27, §3).

Como a imitação pode ocorrer em qualquer arte, a música, mesmo

instrumental, pode imitar ou representar o caráter melhor, semelhante

ou pior do que realmente é. Para Aristóteles a diferença da poesia para

outros textos não estaria na métrica (versificação) ou na rima, mas na

sua capacidade diferenciada de representação e imitação dos caracteres.

Conforme foi mencionado, os principais critérios de Aristóteles pra

a avaliação da tragédia são a verossimilhança, a necessidade e a

unidade orgânica, sendo que o princípio da conveniência é um conceito

de Horácio atribuído a Aristóteles.

Para o filósofo, estas são as artes miméticas: tragédia, música,

dança, escultura e pintura.

10 ARISTÓTELES. Poética. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira (org.). A poética clássica: Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 21-22.

Page 13: Aristoteles - Arte e Música

13

CATARSE11

(Katharsis, p. 40 §3)

No Livro V de A Política, a catarse aparece associada à música.

Aristóteles apresenta uma espécie de valorização da metáfora,

pois considera a poesia como meio de compreender o mundo em sua

totalidade (objetividade), daí o entendimento do poema lírico (de

caráter subjetivo) como de menor importância12.

São reconhecidos três tipos de canto, conforme sua função

dramática: o canto de ensino, o canto de ação e o canto de entusiasmo.

Nesse sentido, o coro é entendido como um dos atores da tragédia, que

pontua as cenas e comenta a ação, sendo que as intervenções do coro

deveriam ser resguardadas para as passagens líricas da narrativa. De

qualquer maneira, os comentários do coro e os pareceres de prudência

por parte do corifeu estavam caindo em desuso, na época do filósofo.

Aristóteles identifica alguns elementos como essenciais ao poema

trágico, que são o encadeamento da história, a caracterização dos

personagens e a identificação do espectador com a ação. Quando a

narrativa alcança sua unidade pela confluência desses três aspectos, a

surpresa gerada pelo encadeamento de movimentos imprevistos da

ação (peripéteia) é entendida como sendo o melhor meio de produzir as

paixões de medo e piedade, o que vai levar ao estado catártico. Este

11 Houaiss: “na religião, medicina e filosofia da Antigüidade grega, libertação, expulsão ou purgação daquilo que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por esta razão, o corrompe; no orfismo e no pitagorismo, período de purificação por que a alma desencarnada deve passar até que, apagadas as marcas dos crimes cometidos em sua última existência material, possa ter acesso a uma realidade superior ou reencarnar em um novo corpo; no platonismo, libertação da alma em relação ao corpo por meio da renúncia aos prazeres, desejos e paixões, iniciada ainda em vida mas só completada com a morte; no aristotelismo, descarga de desordens emocionais ou afetos desmedidos a partir da experiência estética oferecida pelo teatro, música e poesia; purificação do espírito do espectador através da purgação de suas paixões, especialmente dos sentimentos de terror ou de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico”. 12 Platão, por sua vez, valoriza o critério oposto, pois o poema lírico, subjetivo, é menos enganador do que a imitação de situações exteriores.

Page 14: Aristoteles - Arte e Música

14

estado de alma é mais fortemente alcançado quando a viravolta da ação

e o reconhecimento de uma situação ainda ignorada são combinados,

simultaneamente,. Diz o filósofo: “o mais belo reconhecimento é o que

se dá ao mesmo tempo em que uma peripécia, como aconteceu no

Édipo”.

A comoção trágica seria alcançada por meio do encadeamento dos

atos dramáticos e a surpresa final. A teoria poética de Aristóteles é

centrada na composição do poema (como poíēsis). Assim, as partes

mais importantes da tragédia seriam a peripécia (movimento

inesperado), a identificação e o páthos. Este é atingido através da

valorização do desconhecimento de um fato, por parte dos personagens,

o que demarca o ponto culminante da ação na passagem da ignorância

ao conhecimento de um fato que se torna crucial para a narrativa que

segue. O estado patético é o terror alcançado pela identificação

entendida como estremecimento por si mesmo (identificação com o eu),

e pela a piedade, isto é, o estremecimento por outrem (identificação

com o outro). Assim, é possível realizar a tragédia como uma epopéia

de eventos patéticos (páthos).

A comédia, ao contrário, seria uma epopéia dos personagens

(éthikè), em que a excelência do éthos13 estaria acima de todos os

outros elementos. Considera-se que a comédia seria o assunto central

do segundo volume da Poética, de Aristóteles. Esse texto, porém,

jamais foi encontrado. De qualquer forma, o Tratado Coisliniano, que

certamente data do século VI d.C., apresenta uma sinopse daquilo que

13 Houaiss: “conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, idéias ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região; parte da retórica clássica voltada para o estudo dos costumes sociais; conjunto de valores que permeiam e influenciam uma determinada manifestação (obra, teoria, escola etc.) artística, científica ou filosófica”.

Page 15: Aristoteles - Arte e Música

15

se imagina tenha sido o Livro II da Poética. Nesse tratado, encontram-

se as seguintes concepções:

“Da produção literária, uma parte é não mimética, outra parte é mimética.

A literatura não mimética reparte-se em investigativa e educativa, e esta(s) em didática e especulativa.

Já a literatura mimética reparte-se, de um lado, em narrativa, de outro, em dramática, isto é, que se exprime por ações, a qual se divide ainda em comédia, tragédia, mímica e sátira.

A Tragédia afasta as afecções da alma relativas ao medo por meio de compaixão e terror, e [que] almeja estabelecer uma proporção do medo; tem como mãe a dor.

A Comédia é uma imitação de uma ação risível e desprovida de grandeza , acabada, separada em cada uma das partes no tocante aos formatos; representada por atores e também por meio de narrativa, consumando pelo prazer e pelo riso a purgação destas afecções; tem como mãe o riso”. 14

Conforme as anotações contidas no Tratado Coisliniano, o riso

pode ser produzido pela narrativa falada ou pelo encadeamento de

ações, sendo que há diversos métodos para produzir o estado cômico.

Entre eles estão as diversas figuras de retórica, na narrativa, e as

diferentes espécies de ação, tais como a assimilação de gestos ou

hábitos comumente conhecidos, a quebra de expectativa com relação ao

encadeamento dos fatos, o uso de danças grotescas e a desarticulação

do discurso de um personagem, que se torna incompreensível ou

incoerente. Com isso, “o bufão busca escarnecer da alma e do corpo”15,

sendo que os personagens típicos das comédias seriam os os

iconoclastas, os irônicos e os fanfarrões.

14 ANÔNIMO. Tratado Coisliniano: epítome do Livro II da Poética de Aristóteles. Trad.: Grupo de Pesquisa Projeto OUSIA, coord. Prof. Dr. Fernando Santoro. 15 Ibid.

Page 16: Aristoteles - Arte e Música

16

O “enredo cômico é aquele que tem sua construção com ações em

torno do risível”16, sendo que os aspectos da comédia são a sucessão de

acontecimentos, a caracterização dos personagens, a elaboração

grotesca do pensamento, o modo de expressão vulgar por parte dos

personagens, o canto com caráter burlesco e o espetáculo que se

desdobra em situações inesperadas e que tendem ao riso.

Ainda, no Tratado Coisliniano, são definidas as partes da comédia

como sendo quatro: o prólogo, a intervenção do coro, o episódio e o

êxodo, os quais são explicados da seguinte maneira:

“1) Prólogo é uma parte da comédia que vai até a entrada do coro; 2) Intervenção coral é o canto cantado pelo coro, quando tem tamanho suficiente. 3) Episódio é o que fica entre dois cantos corais. 4) Êxodo é o que é falado no fim pelo coro”

O termo comédia tem sua origem no vocábulo kômos, que era a

festa dos gregos, com canto e dança, em homenagem a Dionísio. Nesse

sentido, a palavra kômodoi faz referência aos comediantes, isto é, aos

atores que participavam do kômos. Havia também os cantores de

kômoi, os quais improvisavam cantos religiosos em louvor ao deus.

Esses rituais eram levados em forma de uma espécie de bacanal17, com

procissões regadas a vinho e dança. Dessas manifestações populares

vem o termo comédia. Segundo Aristóteles, os dóricos teriam sido os

criadores da comédia, pois se trata de uma palavra dórica: “se a palavra

é dórica, a coisa que ela representa também o é”.

16 Ibid. 17 O termo ‘bacanal’ vem desses rituais em homenagem a Dionísio, deus cujo nome latino é Baco.

Page 17: Aristoteles - Arte e Música

17

PASSAGENS DA POÉTICA

Diferenciação da imitação: número / natureza

O que torna uma tragédia superior às outras não são os bons

trechos isolados, mas o todo bem realizado: o encadeamento do todo, a

conexão das partes e o equilíbrio das relações entre as partes e o todo.

“Além disso, os mais importantes meios de fascinação das tragédias são as partes da fábula, isto é, as peripécias [movimentos imprevistos] e os reconhecimentos [identificações do espectador com o personagem, com o outro e consigo mesmo]. Mais uma prova é que os que empreendem poetar logram exatidão na fala e nos caracteres antes de a conseguirem no arranjo das ações, como quase todos os autores primitivos” 18.

No Capítulo VII, o filósofo considera que o belo não é nem grande

demais, nem pequeno demais, deve ter a extensão que possa

facilmente ser retida na memória ou ser captada em um único olhar.

“Definidos os componentes, passemos ao problema do arranjo das ações, pois esse é o fator primeiro e mais importante da tragédia.

Assentamos que a tragédia é a imitação duma ação acabada e inteira, de alguma extensão, pois pode uma coisa ser inteira sem ter extensão. Inteiro é o que tem começo, meio e fim. Começo é aquilo que, de per si, não se segue necessariamente a outra coisa, mas após o quê, por natureza existe ou se produz outra coisa; fim, pelo contrário, é aquilo que, de per si e por natureza, vem após outra coisa, quer necessária, quer ordinariamente, mas após o quê não há nada mais; meio o que de si vem após outra coisa e após o quê outra coisa vem.

As fábulas bem constituídas não devem começar num ponto ao acaso, nem acabar num ponto ao acaso, mas utilizar-se das fórmulas referidas.

Outrossim, a beleza, quer num animal, quer em qualquer coisa composta de partes, sobre ter ordenadas estas, precisa

18 ARISTÓTELES. Poética. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira (org.). A poética clássica: Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 26.

Page 18: Aristoteles - Arte e Música

18

ter determinada extensão, não uma qualquer; o belo reside na extensão e na ordem, [...]. assim como as coisas compostas e os animais precisam ter um tamanho tal que possibilite aos olhos abrangê-los inteiros, assim também é mister que as fábulas tenham uma extensão que a memória possas abranger inteira. O limite de extensão com respeito aos concursos e à percepção da platéia não é matéria de arte [...]. Quanto ao limite conforme a natureza mesma da ação, sempre quanto mais longa a fábula até onde o consinta a clareza do todo, tanto mais bela graças à amplidão; contudo, para dar uma definição simples, a duração deve permitir aos fatos suceder-se, dentro da verossimilhança ou da necessidade, passando do infortúnio à ventura, ou da ventura ao infortúnio, esse o limite de extensão conveniente”. 19

No Capítulo VIII aparece a concepção de unidade de ação, o que

não significa um único ato, mas indica que as partes devem ser

encadeadas de forma necessária, isto é, qualquer parte que falte

prejudica o todo, pois “com efeito, aquilo cuja presença ou ausência não

traz alteração sensível não faz parte nenhuma do todo” 20.

No Capítulo IX está eslcarecida a diferença entre a história, que se

atém ao particular, e a poesia, que se atém ao universal. “O poeta deve

ser poeta de histórias mais do que poeta de versos. [...] Os maus

poetas são guiados pela sua própria natureza, os bons poetas são

guiados pela natureza de seus personagens e suas ações”21.

Aristóteles distingue três tipos de narrativa: as histórias

episódicas, que são aquelas em que o que acontece não passe de fatos

episódicos que se seguem uns aos outros, sem razão de necessidade ou

verossimilhança; as histórias simples são aquelas que seguem o curso

dos eventos conforme os princípios de necessidade e verossimilhança,

porém sem reconhecimento (identificação) nem peripécia (imprevisto);

19 Ibid., p. 26-27. 20 Ibid., p. 28. 21

Page 19: Aristoteles - Arte e Música

19

e as histórias complexas são aquelas que produzem expectativa por

meio de verossimilhança e necessidade, com reconhecimento e/ou

peripécia

Este último tipo é o objetivo da mimese, visto que a ação é levada

a cabo por eventos que suscitam temor e piedade, sendo que estes

sentimentos nascem sobretudo quando os eventos se seguem uns aos

outros segundo o princípio da verossimilhança e da necessidade e são

conduzidos no sentido contrário ao da nossa expectativa. Para

Aristóteles, as histórias deste gênero são as mais belas.

No Capítulo XI aparecem as definições de ‘peripécia’,

‘reconhecimento’ e ‘patético’:

“Peripécia é uma viravolta das ações em sentido contrário [...], segundo a verossimilhança ou necessidade [...]. O reconhecimento, como a palavra mesma indica, é a mudança do desconhecimento ao conhecimento, ou à amizade, ou ao ódio, das pessoas marcadas para a ventura ou desdita. O mais belo reconhecimento é o que se dá ao mesmo tempo que um peripécia, como aconteceu no Édipo. [...] Nesse passo se verificam duas partes da fábula, a peripécia e o reconhecimento; mas há uma terceira, o patético. [...] O patético consiste numa ação que produz destruição ou sofrimento, como mortes em cena, dores cruciantes, ferimentos e ocorrências desse gênero”.22

O conceito de verossimilhança aparece no Capítulo XVIII: “é

verossímil que aconteça muitas coisas inverossímeis”23. Aristóteles

considera preferível que a narrativa apresente cenas improváveis no

mundo real, porém que são verossímeis segundo o encadeamento

dramático, do que a realização de cenas possíveis, na realidade, mas

que se tornam inverossímeis no decurso da ação.

22 Ibid., p. 30. 23 Ibid., p. 40.

Page 20: Aristoteles - Arte e Música

20

No Capítulo XX, a expressão é considerada como o fruto da

organização e do bom encadeamento das partes do discurso, do

particular ao geral, isto é, do insignificante, isto é, sem significado, ao

significativo, aquilo que tem significado e porta algum conceito.

No Capítulo XXII, está a distinção dos tipos de linguagem:

“A excelência da linguagem consiste em ser clara, sem ser chã. A mais clara é regida em termos correntes, mas é chã [...]. Nobre e distinta do vulgar é a que emprega termos surpreendentes. Entendo por surpreendentes o termo raro, a metáfora, o alongamento e tudo o que foge ao trivial. Mas, quando toda a composição se faz em termos tais, resulta um enigma, ou um barbarismo; a linguagem feita de metáforas dá em enigma; a de termos raros, em barbarismo [...]. É necessário, portanto, como que fundir esses processos; tirarão à linguagem o caráter vulgar e chão, por exemplo, a metáfora, o adorno e demais espécies referidas; o termo corrente, doutro lado, lhe dará clareza”.24

No Capítulo XXV aparece nova discussão sobre a verossimilhança;

o filósofo peripatético considera que é preferível o impossível verossímil

do que o possível inverossímil. O tema principal deve ter somente

elementos racionais, pois os elementos irracionais devem ficar de fora

do eixo principal da narrativa. “De um modo geral, o impossível se deve

reportar ao efeito poético, à melhoria, ou à opinião comum. Do ângulo

da poesia, um impossível convincente é preferível a um possível que não

convença”25.

O Capítulo XXVI conclui o primeiro livro da Poética, dedicado à

tragédia, e aponta para o segundo, no qual será abordada a comédia.

Na passagem seguinte, aparece uma discussão sobre a tragédia e a

epopéia:

24 Ibid., p. 43-44. 25 Ibid., p. 50.

Page 21: Aristoteles - Arte e Música

21

“Pode alguém ficar em dúvida sobre qual a melhor imitação, se a épica, se a trágica. Com efeito, se a menos vulgar é a melhor e tal é a que visa a um público melhor, é por demais evidente ser vulgar a que imita tendo em vista a multidão. Por sinal, os atores cuidam que a platéia não compreende sem que eles aumentem a carga e por isso se desmancham em gesticulação: por exemplo, os flauteiros ordinários, que se contorcem para sugerir o lançamento do disco e arrastam o corifeu quando tocam a Cila.

Tal é, portanto, a tragédia, quais julgavam os atores de antanho aos que os sucederam, [...] A mesma relação existente entre os atores se verifica entre toda sua arte e a epopéia. Esta, de fato, alegam, destina-se a espectadores distintos, que dispensam a representação, enquanto a tragédia é para uma platéia somenos. E, se é ordinária, evidentemente será inferior”.26

LEITURAS DA POÉTICA DE ARISTÓTELES:

É interessante notar como Aristóteles apresenta uma perspectiva

positiva com relação à história da civilização grega, pois entende que a

produção mais nova é necessariamente melhor do que a mais antiga;

princípio oposto aos valores de Platão, para quem o novo seria uma

degeneração do tradicional, pois este estaria mais próximo das idéias

originais. Para este pensador, o mundo sublunar, este da realidade

concreta e das aparências que obscurecem o entendimento das

essências verdadeiras, é imperfeito e tende naturalmente à corrupção.

A história da Poética, e dos textos de Aristóteles em geral, está

marcada pela sua preservação no mundo árabe. Após ter sido

esquecida, a Poética voltou a interessar desde Averróis, no século XII.

Entretanto, até o século XV os autores mais estudados sobre o assunto

ainda eram Platão e Horácio.

26 Ibid., p. 51.

Page 22: Aristoteles - Arte e Música

22

A primeira tradução do texto de Aristóteles para o latim foi

efetuada em 1498, sendo que a tradução que serviu de base para os

estudos posteriores é de 1536. Na segunda metade do século XVI, as

leituras da Poética aristotélica se multiplicaram e serviram de referência

teórica na maior parte dos debates sobre arte e dramaturgia. Na

Renascença, contudo, os humanistas leram a Poética de Aristóteles pelo

prisma horaciano, chegando incorporar diversas apropriações da Arte

Poética de Horácio nos textos de Aristóteles.

Em sua Arte Poética, Horácio apresenta formulações de ordem

moral-retórica, o que é bastante diferente de Aristóteles, que dá

primazia às formulações de caráter técnico e formal sobre o fazer

poético.

O problema de fundo nesses textos sobre poética levadas ao longo

dos séculos XVI e XVII sempre foi a discussão sobre a função da arte, se

a arte deve ter uma função puramente estética ou se deve ter função

ética e educativa. Assim, a função da arte seria agradar ou educar?

Todos esses pontos de vista são centrados no espectador (aístēsis) e

desviam dos problemas colocados por Aristóteles, que estão centrados

na criação (poíēsis).

Dessas discussões sobre as funções da arte e, mais

especificamente, sobre as funções da música na estrutura dramática,

surgem as primeiras tentativas dos poetas-cantores que participavam

dos círculos humanistas florentinos, como Giulio Caccini e Jacopo Peri,

de reproduzir a função da música na tragédia grega, especialmente a

partir da leitura da Poética de Aristóteles.

Esse movimento, que iniciou na Camerata Fiornetina, se espalhou

pelas cidades mais ricas da Itália, como Veneza e Nápoles. Logo,

estariam sendo encenadas peças dramático-musicais em vários centros

italianos, às quais se denominavam drama per musica (Orfeo ed

Eurídice, de Peri), favola in musica (L’Orfeo, de Monteverdi) e,

Page 23: Aristoteles - Arte e Música

23

posteriormente, passaram a ser chamadas simplesmente de opera.

Tem-se, aí o nascimento de um dos gêneros mais importantes da

música barroca, a ópera.

Outro fator interessante de perceber é a presença dos conceitos

aristotélicos sobre o drama, a tragédia e a arte poética nas várias

querelas entre os antigos e os modernos, que foram travadas nos

séculos XVI e XVII entre partidários da preservação dos valores e

técnicas da arte antiga e os partidários das renovações realizadas pela

nova arte.

Na Querela dos Antigos e dos Modernos, na Itália, a Poética de

Aristóteles foi o fundamento dos argumentos de ambos os lados. Para os

“antigos”, o modelo deveria ser tomado da obra dos clássicos, em grego

e latim; para os “modernos”, o modelo deveria ser tomado das obras

modernas, em vernáculo (italiano), desde Dante, Petrarca, Bocaccio e os

contemporâneos. O centro das discussões girou em torno da Divina

Comédia, de Dante. No campo musical, houve a grande discussão entre

Giovanni Maria Artusi e Claudio Monteverdi, sendo o primeiro partidário

da prima prattica ou stile antico e o segundo praticante e defensor da

seconda prattica ou stile moderno.

Sobre os músicos que escreviam conforme os valores da seconda

prattica, dizia Artusi:

“Tais compositores, na minha opinião, não têm nada além de fumaça em suas cabeças, se estão tão impressionados com eles mesmos ao ponto de pensarem que podem corromper, abolir e destruir intencionalmente as boas e velhas regras que nos foram passadas por tantos teóricos e excelentes músicos, que são os mesmos dos quais esses músicos modernos aprenderam a agrupar, de uma maneira estranha, algumas notas. Mas você sabe o que geralmente acontece com peças como essas? Como diz Horácio:

‘É o grande pinheiro que normalmente é chacoalhado pelos ventos: Altas torres caem com imenso estrondo;

Page 24: Aristoteles - Arte e Música

24

Raios atingem o pico da montanha’.

No fim das contas, como têm falta de base sólida, essas peças são desgastadas pelo tempo e desmoronam, e aqueles que as ergueram se tornam alvo de chacota”. 27

Também na dramaturgia francesa do século XVII, as querelas

entre os antigos e os modernos foram ferozmente travadas. Segundo

Magnien, “o conhecimento que os críticos e escritores da época clássica

da literatura francesa [séc. XVII] terão da Poética é quase sempre

indireta: a primeira tradução francesa, de Norville, não será publicada

antes de 1671, em um momento em que a norma clássica já se havia

imposto há muito tempo”28. Isso sugere que, diferentemente dos

italianos, os franceses discutiam a Poética com base em referências e

não a partir da leitura direta do texto.

Na Alemanha do século XVIII, Johann Joachim Winckelmann,

embasado nas leituras de Aristóteles e Scaliger, propôs a substituição

da imitação da natureza pela imitação das obras de arte pelas obras de

arte, o que fez mudar completamente o ponto de vista com relação ao

objetivo das discussões sobre arte, pois não se estava mais

problematizando a mímēsis como imitação da natureza, mas a poíēsis

com base em modelos de ‘como fazer’, o que deslocou a ênfase da

imitação (mímēsis) para a técnica (tékhnē), na segunda metade do

século.

Dessas discussões, nasceu a estética como campo de

conhecimento, com o ensaio Estética: a lógica da arte e do poema,

escrito por Alexander Baumgarten em 1750. Este texto foi discutido por

Kant, Hegel e Nietzsche, entre tantos outros.

27 ARTUSI, Giovanni Maria. La Seconda Prattica. In: WEISS, Piero; TARUSKIN, Richard (org.). Music in the western world, a history in documents, p. 171. 28 MAGNIEN, Michel. Introduction [à la Poétique]. In: ARISTOTE, Poétique. Paris: Librairie Générale Française, 1990, p. 61-62.

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25

Desde sua redescoberta, na Renascença italiana, até os dias de

hoje, a Poética e a Retórica de Aristóteles têm sido amplamente

estudadas e discutidas nos meios acadêmicos e continuam servindo de

fonte para debates e para a criação artística, dada a sempiterna

atualidade dos problemas levantados pelo filósofo peripatético.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANÔNIMO. Tratado Coisliniano: epítome do Livro II da Poética de Aristóteles. Trad.: Grupo de Pesquisa Projeto OUSIA, coord. Prof. Dr. Fernando Santoro.

ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Atena, 1963.

___________. Poética. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira (org.). A poética clássica: Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 17-52.

___________. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

ARTUSI, Giovanni Maria. La Seconda Prattica. In: WEISS, Piero; TARUSKIN, Richard (org.). Music in the western world, a history in documents, p. 171.

FUBINI, Enrico. L’estetica musicale dall’antichità al Settecento. Torino: Einaudi, 1976.

MAGNIEN, Michel. Introduction [à la Poétique]. In: ARISTOTE, Poétique. Paris: Librairie Générale Française, 1990.