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1 Declaração Universal dos Direitos do Homem 1 Preâmbulo CONSIDERANDO que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, CONSIDERANDO que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade, CONSIDERANDO ser essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, CONSIDERANDO ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, CONSIDERANDO que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, CONSIDERANDO que os Estados Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do homem e a observância desses direitos e liberdades, 1 ALENCAR, Chico (org). Direitos mais humanos. Rio de Janeiro: Garamond, 1998. 104p.;

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Page 1: Declaracao universal dos direitos do homem - CEAP · Universal dos Direitos do Homem" como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que

1

Declaração Universal dos Direitos do Homem1

Preâmbulo

CONSIDERANDO que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os

membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento

da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

CONSIDERANDO que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem

resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que

o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de

crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade,

CONSIDERANDO ser essencial que os direitos do homem sejam

protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como

último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,

CONSIDERANDO ser essencial promover o desenvolvimento de relações

amistosas entre as nações,

CONSIDERANDO que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta,

sua fé nos direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso

social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

CONSIDERANDO que os Estados Membros se comprometeram a

promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos

direitos e liberdades fundamentais do homem e a observância desses direitos e

liberdades,

1 ALENCAR, Chico (org). Direitos mais humanos. Rio de Janeiro: Garamond, 1998. 104p.;

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CONSIDERANDO que uma compreensão comum desses direitos e

liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse

compromisso,

A Assembléia Geral das Nações Unidas proclama a presente "Declaração

Universal dos Direitos do Homem" como o ideal comum a ser atingido por todos os

povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da

sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem, através do

ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,

pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por

assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto

entre os povos dos próprios Estados Membros quanto entre os povos dos

territórios sob sua jurisdição.

Artigo 1

Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de

razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de

fraternidade.

Artigo 2

I. Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades

estabelecidos nesta declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça,

cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional

ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição.

II. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica

ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de

um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a

qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 3

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Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de

escravos estão proibidos em todas as suas formas.

Artigo 5

Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano

ou degradante.

Artigo 6

Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa

perante a lei.

Artigo 7

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual

proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação

que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8

Todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio

efetivo contra os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam

reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo 9

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10

Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por

parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e

deveres ou sobre o fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

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Artigo 11

I. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser considerado

inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em

julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias

necessárias à sua defesa.

II. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento,

não constituam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não

será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era

aplicável ao ato delituoso.

Artigo 12

Ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, sua família, seu lar ou

sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo homem tem

direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo 13

I. Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das

fronteiras de cada Estado.

II.Todo homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este

regressar.

Artigo 14

I. Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo

em outros países.

lI. Este direito não pode ser invocado em casos de perseguição legitimamente

motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e

princípios das Nações Unidas.

Artigo 15

I. Todo homem tem direito a uma nacionalidade.

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lI. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade nem do direito de

mudar de nacionalidade.

Artigo 16

I. Os homens e mulheres maiores de idade, sem qualquer restrição de raça,

nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma

família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua

dissolução.

II. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos

nubentes.

III. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à

proteção da sociedade e do Estado.

Artigo 17

I. Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.

II. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo 18

Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este

direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de

manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela

observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

Artigo 19

Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a

liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir

informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.

Artigo 20

I. Todo homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.

II. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

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Artigo 21

I. Todo homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente

ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.

II. Todo homem tem igual direito de acesso ao serviço público de seu país.

lII. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será

expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto

secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Artigo 22

Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à

realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com

a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e

culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua

personalidade.

Artigo 23

I. Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições

justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

II. Todo homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual

trabalho.

lII. Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória,

que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a

dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de

proteção social.

IV Todo homem tem o direito de organizar sindicatos e neles ingressar para

proteção de seus interesses.

Artigo 24

Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das

horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

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Artigo 25

I Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua

família saúde e bem-estar, incluindo alimentação, vestuário, habitação, cuidados

médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de

desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios

de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

lI. A maternidade e a infância asseguram o direito a cuidados e assistência

especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da

mesma proteção social.

Artigo 26

I. Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos

graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A

instrução técnica profissional será acessível a todos, bem como a instrução

superior, esta baseada no mérito.

lI. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da

personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e

pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a

tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e

coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

llI. Os pais têm prioridade de direito na escolha do tipo de instrução que será

ministrado a seus filhos.

Artigo 27

I. Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da

comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de

seus benefícios.

II.Todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais

decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja

autor.

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Artigo 28

Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e

liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente

realizados.

Artigo 29

I. Todo homem tem deveres para com a comunidade na qual o livre e pleno

desenvolvimento de sua personalidade é possível.

II. No exercício de seus direitos e liberdades, todo homem estará sujeito apenas

às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o

devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de

satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma

sociedade democrática.

lII. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos

contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo 30

Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o

reconhecimento, a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer

qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer

direitos e liberdades aqui estabelecidos.

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Para Humanizar o Bicho2

Chico Alencar ∗

"Gente é pra brilhar. Este é o meu lema, e o do Sol também. "

(Maiakovski)

Nem sempre existiu a terra

Contemplar um céu estrelado é muito difícil na cidade grande, com seu

clarão artificial e seus apelos para que olhemos a telinha de TV e as vitrines. Mas

é um bom exercício, que o povo do interior tem mais possibilidades de fazer. A

imensidão impressiona, o infinito estelar comove. E o que é a nossa nave, o

planeta Terra, dentro disso tudo? Quase nada... Um satélite do Sol, um pedacinho

esfriado dele, que faz parte do seu sistema há aproximadamente cinco bilhões de

anos. Sistema solar que, com seus dez planetinhas, é incalculavelmente menor

que outros que existem na Via-Láctea. A jovem Terra, no Universo de 15 bilhões

de anos, entre galáxias que continuam em expansão, em meio a trilhões de

estrelas, é quase nada...

Um quase nada que, para nós, únicos seres conhecidos que contam a sua

própria história e, de uns tempos para cá, cozinham seus próprios alimentos, é

tudo: a Terra é nossa morada! Foi na Terra que a vida conhecida surgiu há quatro

bilhões de anos. Foi na Terra que os dinossauros passearam, gigantescos e

devoradores, há 130 milhões de anos. Foi aqui que nasceu, provavelmente há

dois milhões de anos, este ser contraditório e perguntador: o ser humano. Nós.

Claro que pode haver vida e seres mais inteligentes e menos brigões que

nós pelo Infinito afora. "Nenhuma certeza escapa às nossas dúvidas", lembra frei

2 ALENCAR, C (org.). Para humanizar o bicho homem In:Direitos mais humanos. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p.17-44. ∗ Chico Alencar, autor de diversos livros, é professor da Faculdade de Educação da UFRJ e deputado estadual no Rio de Janeiro pelo PT.

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Betto. Mas há uma convicção forte, quase inquestionável: para quem está vivo, o

que mais conta é a sua vida, o seu tempo de existência, o seu ser-no-mundo. E

nós somos os seres humanos do planeta Terra.

A nós, leitores e escritores deste livro, foi dado viver a maior parte de

nossas vidas naquilo que se convencionou chamar de segunda metade do século

XX. Nem sempre existiu a Terra, nem sempre existiu o Universo, nem sempre

existiu sequer a noção de tempo, mas o que conta é que agora existem, pois nós

existimos: nós da Terra, no Universo, nesta época.

Nós, humanos e tão matéria, tão cósmicos. Nós, compostos de carne, osso,

energia e sentimentos que contêm os mesmíssimos elementos físico-químicos

que formam o Universo inteiro. Nós, que perseguimos a explicação de nossa

origem, que estudamos a formação do mundo, que temos a obsessão do

conhecimento. Nós, seres humanos com autoconsciência, carregados de memória

ancestral, atômica, animal, vegetal e mineral. Nós, que nos diferenciamos dos

moluscos, das abelhas e dos cães não por sermos feitos de outra matéria - não

somos! -, nem por desenvolvermos técnicas - outros animais também têm suas

habilidades! -, mas por buscarmos significados, por construirmos culturas, por

ritualizarmos a morte, por desejarmos o absoluto. Nós, os seres mais complexos

da criação conhecida até agora, somos seres éticos: temos idéia de pertencimento

(sabemos que fazemos parte da sociedade humana) e sentimo-nos, de alguma

maneira, responsáveis por um destino comum das gentes. Estabelecemos

princípios, fazemos declarações - mesmo que os contrariemos logo depois.

Proclamamos o bem, diferenciamos em cada momento da história. Somos

históricos!

Contemple um céu estrelado. Você vai se sentir pequenino debaixo daquela

imensidão. Namore as estrelas - a lua ainda é dos namorados. Viaje. Imagine-se,

como Caetano Veloso, numa "interestelar canoa". Sinta aquela infinita harmonia. E

cresça com ela: saiba-se parte desse todo, partícula inteiramente integrada na

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sinfonia universal. Redescubra a beleza de ser gente agora, cujo destino final é

reintegrar-se nesse cosmos alucinado (isto é, cheio de luz), que os místicos

chamam de Deus. Contemple um céu estrelado e entenda, com sereno orgulho,

que é a sua condição humana que permite esta atitude, esta maneira original de

perceber o vasto mundo. Per ardua ad astra, diz um antigo provérbio romano. É o

desafio: arduamente, chegaremos até as estrelas. Para isso, não há outro

caminho: conhecermo-nos cada vez mais.

Nem sempre existiram Nações

E mesmo assim a gente, às vezes, se emociona com o Hino Nacional

Brasileiro, até quando ele não é executado antes de uma final de Copa do Mundo

de futebol... A Nação nos parece eterna, um bem maior que nós e que nos

ultrapassa de longe. Uma construção simbolizada em bandeira e cores, que não

teve início nem terá fim. Na verdade, a coisa não é bem assim.

Os Estados Nacionais - 190 até o fechamento da edição deste livro - são

uma criação do mercantilismo capitalista. Uma novidade dos chamados Tempos

Modernos, que já nos parecem tão antigos. Antes -lá se vão 600, 800, mil anos -,

na velha Europa, eram os feudos, as cidades comerciais, os particularismos

regionais, os reinos sem reis absolutos e governos fortes. A formação dos Estados

modernos, que materializam a idéia de Nação, se inicia por volta do século XIII,

principalmente na Espanha, na França e na Inglaterra. Mas o processo de lutas e

novas dominações contra os interesses localistas vai até o século XV Só a partir

daí podemos falar em nações consolidadas: ''A idéia de Estado atravessará os

tempos, estando presente no período absolutista, nas Revoluções Burguesas dos

séculos XVIII, XIX e XX, nas Revoluções Socialistas dos séculos XIX e XX e nas

Lutas de Libertação Nacional do século atual (Argélia, Vietnã e Angola, por

exemplo)", informa o historiador Carlos Guilherme Mota.1

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Claro que a inexistência das nações, tal como a entendemos hoje, não tinha

nada a ver com o generoso sonho de um governo mundial cooperativo, de um

mundo sem fronteiras. O beatle John Lennon não pensava em regresso ao século

X quando compôs, em 1971, a belíssima canção imagine, que nos pede:

Imagine there’s no countries

It isn't bard to do

Nothing to kill or die for

(...)

Imagine all the people

Living life in peace...

(…)

Imagine no possessions

I wonder if you can

No need for greed or bunger

A brotherhood of man

Imagine all the people

Sharing all the world

O sonho de Lennon não é o do paraíso perdido e sim daquele a ser

conquistado. Horizonte utópico, necessário. Imaginar um mundo sem países,

fronteiras e exércitos nacionais exige a compreensão dos mecanismos do nosso

mundo atual, com suas nações distintas e que tantas vezes se estranham. Implica

também entender o que é o ser humano atual, que tanto causa estranheza.

Aliás, a própria noção de ser humano que nos rege vem de 500, 600 anos

atrás. O Renascimento, que marca o início dos Tempos Modernos, cria uma nova

mentalidade, um novo conceito de ser humano. Ousados pensadores e artistas

rompem as proibições de uma cultura supersticiosa e preconceituosa e afirmam “o

homem como centro de todas as coisas e modelo do mundo", como disse

Leonardo da Vinci, cujos traços ilustram este livro. Ele é o personagem mais

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completo daqueles novos tempos, da nova humanidade européia que ia sendo

gestada. Curiosíssimo e insolente, fez estudos de pintura, escultura, arquitetura,

urbanismo, armas de guerra, cartografia, mecânica, física, ótica e até mesmo de

aeronáutica! Não ficou só nos estudos e pesquisas: criou, pintou, modelou,

projetou, agiu, inovou.

Leonardo da Vinci "humanizou" a cultura de seu tempo. Deu os contornos

de um ser humano que começava - apenas começava! - a ter noção do tempo e

de si mesmo. Uma noção ainda limitada, num mundo essencialmente rural,

camponês, sem conforto, sem delicadeza, sem eletricidade, sem relógios... Mas

uma sociedade repleta de ânsia de conhecer, de buscar, de superar as enormes

adversidades para a sobrevivência do bicho humano no planeta. Um homem

prático, que aprendia fazendo: ''A experiência é a mestra das coisas", disse ele,

em 1508. Os Estados Nacionais impulsionaram esse "antropocentrismo", em

substituição ao "teocentrismo" medieval. Um novo homem nasceu.

Nem sempre existiram Direitos

A noção de Direitos Humanos está totalmente ligada ao contexto de cada

época. Quando não havia escrita e a fala humana ainda se estruturava com sons

guturais, primais, os "direitos humanos" eram inexistentes como conceito e como

prática: a luta pela sobrevivência era bruta, dura, e favorecia os mais fortes. E

assim foi, durante séculos.

O princípio cristão do amor ao próximo, nesse processo, representou uma

revolução cultural, uma radical novidade (o que não impediu que seu arauto

terminasse condenado à morte, e morte na cruz, a mais terrível!). Mas a idéia mais

elaborada, doutrinária, dos seres humanos como iguais e, portanto, com os

mesmos direitos, é um resultado da luta da burguesia contra o obscurantismo dos

senhores feudal e da aristocracia absolutista. Já na Declaração de Independência

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Norte-Americana, de 1776, os seres humanos eram considerados "naturalmente

iguais, livres e independentes". Uma novidade!

Estas idéias novas, afirmativas de direitos e de um original entendimento do

humano, foram elaboradas teoricamente com mais detalhes pela Declaração dos

Direitos do Homem e do cidadão, da Revolução Francesa, lançada em 26 de

agosto de l789. Em síntese, ela reafirma que "todos os homens são iguais perante

a lei" e que "a lei deve proteger a liberdade pública e individual contra a opressão

daqueles que governam" - o que o Absolutismo considerava impensável!

Com uma visão relativista da História bastante interessante, a Declaração

pioneira também mencionava a transitoriedade das leis, assegurando ao povo "o

direito de rever, de reformar e de mudar a sua Constituição", além de afirmar que

"uma geração não pode sujeitar as gerações seguintes às suas leis". Como isso

precisa ser entendido por aqueles que ainda consideram imutáveis a lei, os

costumes e a moral! Tudo muda de acordo com a mudança da concepção de ser

humano. Os valores de uma época podem não valer para outra, bem como a

moda, os hábitos alimentares etc.

Por outro lado, é inegável que, em determinados momentos, a Humanidade

avança. Não linearmente, não positivamente, mas entre altos e baixos, impulsos

progressistas e recuos (como a Constituição francesa de 1800, da qual foi

eliminada a Declaração de Direitos). A história dos seres humanos é, assim, a

história de uma luta: barbárie x humanização. Os Direitos Humanos burgueses

cumpriram o seu papel humanista, por mais que o Código Napoleônico tivesse

como centro de suas preocupações a propriedade, com cerca de 800 artigos

falando da propriedade privada e apenas sete tratando de proteção (mínima) a

quem trabalha nela.

A caminhada do ser humano no planeta é ainda errática e marcada pela

estupidez. Civilizamo-nos muito pouco, ainda. Mas essa pedra bruta, feroz,

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esperta o suficiente para sobreviver em meio a feras mais fortes que ela e a

intempéries de todo tipo, mesmo ainda utilizando apenas 5% de sua capacidade

cerebral e intuitiva, vai seguindo sua viagem.

O bicho homem, com visão infinitamente menor do que as águias,

plasticidade corporal tacanha se comparada à dos felinos, olfato ridículo em

relação ao dos cães, operosidade e organização mínimas diante das abelhas e

formigas, resistência física sofrível cotejada com a de qualquer animal selvagem,

(des) integração com a natureza que deixaria os insetos espantados, está aí,

aparentemente soberano, já saindo do planeta para os espaços siderais. E

estabelecendo regras de convívio social, padrões de comportamento, limites - nem

sempre respeitados - ao seu desejo de poder e mando. O Direito, pouco a pouco,

vai deixando de ser um privilégio dos poderosos, dos influentes, dos bem armados

e bem-falantes. Vai deixando de ser exclusivo de pouco.

A irracionalidade ainda predomina, mas vozes proféticas, desde há muito,

vão se levantando para denunciá-Ia. E para reafirmar que a dimensão política, isto

é, do interesse social, da qual se originam todos os direitos (da Lei de Talião do

"olho por olho" às Tábuas da Lei, do Código de Hamurabi à Constituição Brasileira

de 1988), é parte constitutiva e irrenunciável do ser humano. Tanto quanto sua

integração à natureza, da qual somos parte, e sua busca mística, pois também

desejamos - só nós, seres humanos! - religar Terra e Céu, imanente e

transcendente, finitude e eternidade. Somos seres políticos, ecológicos e

religiosos. Mahatma Gandhi (1869-1948), líder da independência da Índia, resumiu

isto de forma admirável: "Para ver o universal e imanente Espírito da Verdade face

a face é preciso ser capaz de amar a mais ínfima das criaturas como se ama a si

próprio. E um homem que a isso aspira não pode ser omisso em nenhum aspecto

da vida. Daí por que minha devoção á verdade conduziu-me ao campo da política.

(...) Aqueles que dizem que a religião nada tem a ver com a política não sabem o

que a religião significa”.

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A Humanidade ainda engatinha. E seu processo civilizatório é contraditório:

desenvolve a tecnologia de armas e submete povos inteiros. A África perdeu,

entre escravizados e mortos, cerca de 70 milhões de pessoas, do século XV ao

XIX. Sociedades inteiras das Américas foram exterminadas: incas, astecas, maias,

tupis... A ferro e fogo, representantes de povos com maior domínio de técnicas

destruíam civilizações, a ponto de um religioso da época, frei Domingo de São

Tomás, dizer: "Não é prata o que se envia à Espanha, é suor e sangue dos índios!

Dos três milhões de índios que, por estimativa, supõe-se viviam no litoral brasileiro

à época da conquista portuguesa, restaram hoje 300 mil. As duas guerras

mundiais do século que finda, mesmo tendo sido basicamente européias,

deixaram um saldo aterrorizante de mais de 65 milhões de mortos, 14 milhões dos

quais dizimados em campos de concentração! A Segunda Guerra, depois dos

cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki, deixou a certeza de que, havendo

uma terceira, o planeta, autodestruído, não viverá a quarta guerra mundial. O day

after da próxima conflagração mundial será o fim da Terra. Apesar dessa estúpida

possibilidade, as potências ainda armazenam forças nucleares capazes de

destruir o planetinha três vezes! Século XX: perseguições, torturas, golpes,

regimes de opressão. Miséria de muitos: segundo a ONU, em 1997, o mundo tinha

840 milhões de famintos e um bilhão de desempregados. Falta de trabalho, de

saúde e de habitação - tudo isso convive com admiráveis inventos da era do

cinema, do avião, da TV, dos satélites, da computação. Século de paradoxos:

tratados de paz em meio a muitas guerras; produção recorde de objetos e número

recorde de despossuídos; biotecnologia, clonagem e epidemias...

Enfim, a Declaração.

Que nasceu em 10 de dezembro de 1948. Madura, nem velha nem criança,

a Declaração Universal dos Direitos Humanos é filha da Organização das Nações

Unidas. A ONU surgiu em função das reconhecidas Limitações da antiga Liga das

Nações, criada em 1919, após a Primeira Grande Guerra. Em plena Segunda

Guerra, no primeiro dia do ano de 1942, EUA, URSS, Inglaterra e China

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assinaram a Declaração das Nações Unidas, ratificada depois por outros 22

países. A luta contra o eixo nazi-fascista unia povos e governos socialistas e

capitalistas. Outras declarações e conferências, como a do Atlântico e a de Ialta,

foram gestando a nova organização mundial. Finalmente, de abril a junho de 1945,

representantes do governo de 50 nações reuniram-se numa assembléia em São

Francisco (EUA): em 26 de junho de 1945 foi lançada a Carta das Nações Unidas,

criando a ONU.

A bela sede da ONU, em Nova Iorque, é considerada território mundial,

internacional. Num hipotético ataque atômico contra os EUA (repetindo-se o crime

que os EUA fizeram no Japão, quando a Segunda Grande Guerra estava no fim),

o espaço onde está a ONU não poderia ser atingido...

Ali reúne-se a Assembléia-Geral, composta por representantes de todos os

países membros, o Conselho de Segurança e o Secretariado permanente, cuja

figura central é o secretário geral. Ali também trabalha o Conselho Econômico e

Social, qual estão vinculados organismos especiais da ONU, tão importantes

quanto um tanto esvaziados nos anos 90: a UNESCO (Organização das Nações

Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) e o UNICEF (Fundo Mundial de

Assistência à Infância), ambos sediados em Paris, França; a FAO (Organização

para a Alimentação e Agricultura), com sede em Roma, na Itália; a OMS

(Organização Mundial da Saúde), a OIT (Organização Internacional do Trabalho),

o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), a ONUID (Organização das

Nações para o Desenvolvimento Industrial), a CDH (comissão dos Direitos

Humanos), todos com sede em Genebra, Suíça; a AlE (Agência Internacional de

Energia Atômica), em Viena, capital da Áustria, e a CEPAL (Comissão Econômica

para a América Latina), com sede em Santiago do Chile.

Dois anos e meio após a criação da ONU, sua Assembléia Geral proclamou

a Declaração Universal dos Direitos do Homem, “como o ideal comum a ser

atingido por todos os povos e todas as nações”. Entendemos bem: Direitos do

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Homem, aqui, são também os da Mulher, embora a palavra só apareça duas

vezes na Declaração: Direitos dos Seres Humanos, todos! Mas a cultura

predominantemente masculinista – aquela mesma que ainda faz do macho

ocidental, branco e rico o símbolo maior de poder na espécie humana – manteve

esta já tradicional generalização de homem como representante de homens e

mulheres...

Entendamos bem outra coisa, no caso positiva: a Declaração foi um bonito

esforço para colocar ideais generosos e solidários, de certa forma permanentes,

acima dos conflitos e das divergências que jogavam o mundo, após os sangrentos

conflitos da guerra, na "paz armada".

A Declaração nasce quando o mundo está mergulhando em outra guerra,

chamada "fria", marcada pela bipolaridade das duas superpotências, EUA e

URSS. Em seu extraordinário livro A era dos extremos,2 o historiador Eric

Hobsbawn explica que "gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas

nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer

momento e devastar a humanidade. Na verdade, mesmo os que não acreditavam

que qualquer um dos lados pretendia atacar o outro achavam difícil não ser

pessimistas, pois a Lei de Murphy é uma das mais poderosas generalizações

sobre as questões humanas: se algo pode dar errado, mais cedo ou mais tarde vai

dar. À medida que o tempo passava, mais e mais coisas podiam dar errado,

política e tecnologicamente, nom confronto nuclear permanente baseado na

suposição de que só o medo da ‘destruição mútua inevitável’ impediria um lado ou

outro de dar o sempre pronto sinal para o planejado suicídio da civilização. Não

aconteceu, mas por cerca de quarenta anos pareceu uma possibilidade diária."

Os Direitos Humanos contemporâneos foram reescritos nesse clima tenso,

denso, sectário. Daí sua importância e grandeza, daí sua pouca repercussão

prática. Daí também o apelo, no preâmbulo da própria Declaração, para que “cada

individuo e cada órgão da sociedade se esforcem, através do ensino e da

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educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades e pela adoção de

medida progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu

reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos

dos próprios Estados Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua

jurisdição."

A Declaração, com um preâmbulo de sete "considerandos" e seus 30

artigos, é um documento histórico, uma carta de intenções pelo “advento de um

mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da

liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade”. A Declaração é também

uma denúncia de tudo o que, ao longo de milênios, a humanidade deixou de fazer.

É palavra em papel impresso (invenções tipicamente humanas): pode transformar,

comover e mover. Mas pode ficar letra morta, como tem ficado em tantos lugares.

Vale o que está escrito?

Se valesse mesmo, a Humanidade certamente estaria melhor. No

preâmbulo da Declaração está escrito que todo ser humano é digno e, portanto,

merecedor da liberdade, da justiça e da paz. Que o desprezo à dignidade dos

seres humanos resultou em atos bárbaros, que "ultrajaram a consciência da

Humanidade". Que, sendo desrespeitados em seus direitos e sem leis para

proteger a coletividade, os seres humanos são levados, "como último recurso, à

rebelião contra a tirania e a opressão". O direito à rebelião, portanto, é

reconhecido, como filósofos e teólogos de outras épocas já o tinham feito. A paz

não é inação, acomodação, simples ausência de guerra: é fruto da justiça.

A Declaração também reconhece a primazia dos povos sobre os governos,

da sociedade sopre o Estado, ao destacar que “a compreensão comum dos

direitos e liberdades é da mais alta importância para o seu pleno cumprimento" e

ao exigir dos Estados Membros, em cooperação com a ONU, a observância dos

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direitos, que não se dará sem a promoção do progresso social e de melhores

condições de vida para todos.

Está no papel; na vida real, dados da própria ONU mostram outra realidade:

em 1994, os 20% mais ricos detinham 86% de tudo o que era produzido no

mundo, com uma renda 78 vezes superior à dos 20% mais pobres. O UNICEF, em

dezembro de 1997, alertou para o fato de que 55% das mortes de crianças até

cinco anos de idade, no chamado Terceiro Mundo, resultavam da desnutrição. As

estatísticas são frias? Faça um incômodo mas salutar exercício: pegue um jornal

do dia. Veja as manchetes da primeira página. De dez notícias, a metade,

provavelmente, informará, direta ou lateralmente, sobre desrespeito aos Direitos

Humanos. Crise social caindo sobre os mais fracos, violências de todo o tipo,

artimanhas políticas antidemocráticas, corrupção, ódios religiosos, xenofobia,

discriminação, prepotência, necessidades extremas...

Embora universal no nome e em diversos princípios, a Declaração é

histórica, temporal, datada. E por isso, nesta virada de século, já insuficiente em

vários aspectos.

Uma boa leitura é sempre crítica, complementadora, imaginativa. Qualquer

leitura, de qualquer texto, é feita com os "óculos" da atualidade. Por isso, é preciso

conhecer os Direitos Humanos não como um dogma, como um conjunto de artigos

prontos e acabados, definitivos. A Declaração cinqüentenária é muito boa, merece

ser lida, conhecida, vivida e cumprida, mas tem lacunas - resultantes da época em

que foi escrita, de sua temporalidade. Por isso, celebrar e valorizar a Declaração

Universal dos Direitos Humanos - atualizemos o título original, para ficar mais

abrangente - é entender que ela precisa ser acrescida, complementada,

aperfeiçoada. Além de cumprida, é óbvio.

Relembrando os revolucionários franceses do século XVIII, não queiramos

impor valores de uma época a gerações vindouras... Façamos a decantação,

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empunhando a bandeira do que há de atual e necessário e afirmando novos

direitos, novos valores, que atendam a novas e urgentes demandas e

necessidades. Para que o que está escrito valha, de verdade, clamemos por mais

e melhores direitos, por um ser humano mais humano.

A Declaração tem lacunas

(a) Ela não trata - por não existir na época, ao menos com a evidência e a

terminologia de agora - da questão ecológica. Não afirma, por isso, o direito a

viver num mundo equilibrado, auto-sustentável, respeitoso em relação a todas as

formas de vida. Um mundo em que todos, a começar pelas crianças, tenham

consciência de que uma tonelada de papel (este mesmo do livro que você lê)

representa 25 árvores adultas abatidas e que uma tonelada de latinhas de cerveja

representa 12 toneladas de bauxita extraídas da terra. Recursos esgotáveis, como

esgotável é até a capacidade de inventar novas fontes de energia! A consciência

ecológica leva à tomada de atitudes, para que o planeta não pereça. A

Declaração, quando escrita, não se referia a um mundo como o de hoje. Redigida

há 50 anos, ela não poderia perceber que, nos últimos 30, uma França inteira de

floresta amazônica - a maior e mais rica do globo - seria abatida por motos serras,

queimadas e garimpos. Nem que Brasil, China e Indonésia bateriam recordes

mundiais de extermínio de aves e mamíferos. Nem que a camada de ozônio seria

paulatinamente afetada por compostos artificiais e gases-estufa. Nem que solos

de diversos continentes, explorados predatoriamente e sem cobertura arbórea,

tornar-se-iam impróprios até para a agricultura e o pastoreio, minados pela erosão

e pela desertificação. Nem que as águas de oceanos, rios e lagos - a terra é,

sobretudo, água, com os oceanos ocupando 75% da superfície do planeta -

ficariam doentes, contaminados por eles e efluentes. Por isso, impõe-se hoje

afirmar o direito à biodiversidade planetária!

(b) A Declaração, como você pode ler no texto de Graciela Rodríguez,

também não destaca com a ênfase necessária o direito das mulheres, vítimas de

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secular e específica opressão. Em 1988: no quadragésimo aniversário da

Declaração, o jornal inglês The Economist denunciou: "Hoje as mulheres formam

1/3 da força de trabalho formal do mundo (e a maior parte da força de trabalho não

formal) e, no entanto, recebem 1/10 do rendimento mundial. Elas são donas de

menos de 1% das propriedades do mundo. Como no apartheid, o sistema mantém

as coisas assim. Quando às mulheres médicas tornaram-se bastante numerosas

na Rússia pós-revolucionária, o status da própria profissão foi rebaixado. Quando

são mulheres que executam a tarefa, o trabalho desce para um gueto de baixa

remuneração."

À luz da luta feminista do nosso século, pela afirmação de direitos

equivalentes aos dos homens - que garantiu para as mulheres a conquista do

voto, do trabalho não doméstico e até da escolha do vestuário -, uma nova

geração de direitos nasceu mas ainda precisa ser embalada para se consolidar.

Gerda Lerner, citada por Rosalind Miles em sua interessante História do mundo

pela mulher,3 resume a novidade: "Sabemos agora que o homem não é a medida

do que é humano, mas que os homens e as mulheres o são. Os homens não são

o centro do mundo, mas os homens e as mulheres o são. Tal visão transformará a

consciência tão decisivamente quanto o fez a descoberta de Copérnico de que a

terra não é o centro do universo!" Em outras palavras, o direito da mulher de ser

mulher, reconhecida em sua humana dignidade, exige que o homem se repense, e

que seja um novo homem.

(c) A Declaração não previu que o desenvolvimento capitalista chegasse à

sua atual etapa de globalização (isto é, globalitarismo) e de capitais voláteis,

especulativos, que entram e saem de diferentes países quase sem controle,

gerando instabilidade permanente nas economias periféricas. Talvez fosse o caso

de se afirmar, agora, o direito das nações de regulamentarem os investimentos

externos e de se protegerem contra a especulação internacional, que fragiliza e

subordina economias nacionais. Não é admissível que de 250 a 300 grupos

privados transnacionais, com negócios que vão do setor produtivo industrial ao

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setor financeiro, passando pela publicidade e pelas comunicações, sejam, na

verdade, o verdadeiro governo (não muito invisível) do mundo, hegemonizando

governos e nações, estimulando “guerras fiscais”, derrubando restrições

alfandegárias, impondo seus interesses particulares. A Declaração,

marcadamente humanista e sociopolítica, não imaginou o neoliberalismo deste fim

de século, com sua desistoricização do tempo, com sua despolitização da vida,

com seu messianismo consumista, com a entronização da economia de mercado

como uma "fatalidade" natural, irreversível, fora da qual não há possibilidades.

Com um laissez faire que significa exclusão.

(d) Daí deriva outro problema: a introdução acelerada e sem critério das

novas tecnologias, liquidando postos de trabalho e até gerando uma nova

categoria, a dos "inempregáveis". São aqueles que, com precária escolaridade,

ficarão cada vez mais à margem da dinâmica produtiva, sem oportunidades de

trabalho. Para a frieza dos economistas do Banco Mundial, eles são apenas a

massa sobrante, o contingente excedente. Seres incômodos e, quem sabe,

elimináveis...

Mais de um século após as lutas de Chicago, marco do Primeiro de Maio,

Dia Internacional do Trabalhador, e às vésperas do terceiro milênio, cabe uma

reflexão sobre as novas realidades do mundo do trabalho. Sem dúvida a

polarização do sesquicentenário Manifesto Comunista de 1848, que dividia as

sociedades entre burgueses e proletários, não dá mais conta da estrutura social

contemporânea, que pluraliza as atividades econômicas e as relações de

produção, inclusive dentro das unidades fabris. A automação, a informática e a

robótica - desenvolvimento das forças produtivas - alteram posições e interesses

de grupos e classes sociais. A desmaterialização da produção é um fato em todas

as grandes cidades do mundo, nos países centrais ou periféricos. O que antes

exigia a mão-de-obra de cem pode ser feito por dez... Tudo isso é novo e

embaralha interesses, imaginários, aspirações. O mundo do trabalho é diverso.

Mas o grave é que há parcelas crescentes que ficam fora desse universo. Um

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projeto democrático de novos direitos precisa reverter uma lógica econômica que

condena milhões, especialmente os jovens, à inutilidade...

Por outro lado, o fim do século traz tristes permanências: o poder político é,

cada vez mais, caudatário do poder econômico. As tais forças de mercado, tão

exaltadas, são as velhas forças motrizes do capitalismo liberal, que querem um

Estado fraco para que as grandes corporações transnacionais continuem ditando

regras e rumos. Daí se definir a nova (e velha) divisão internacional da produção e

dos negócios como globaritarismo. O que há de novo nessa ordem mundial?

Nada contra a revolução tecnológica e científica. Tudo o que serve para

aliviar as canseiras do labor humano é bem-vindo. Mas a sofisticação técnica não

é, em si, um bem ou um mal. Depende de sua forma de apropriação e do que ela

gera. Novas tecnologias que não são horizontalizadas, isto é, não servem

democraticamente a todos os povos e nações, apenas otimizam os mecanismos

de dominação de uns (ricos) sobre outros (pobres). Cibernética e realidades

virtuais que gerem desemprego massivo não são progresso e sim avanço rumo à

barbárie. O êmulo do lucro, fio condutor do atual desenvolvimento, é

desumanizante e põe em risco o planeta. É desrespeitador dos Direitos Humanos.

Claro, o fordismo está em declínio e os sindicatos que se restringirem à luta

corporativa, exclusivamente salarial, perderão espaço. Os pleitos e demandas

populares vão além do ambiente de trabalho, sobretudo quando ter vínculo

empregatício, absurdamente, virou quase um privilégio. Reivindicações por

equipamentos coletivos e públicos de educação, lazer, saúde e saneamento, além

do direito social à moradia e ao transporte, têm também tudo a ver com as classes

trabalhadoras. Lutas solidárias pela revisão do modelo econômico, para que ele

incorpore os "inempregáveis", inclusive à custa da redução dos ganhos do capital,

são imprescindíveis. Recuperação da capacidade financiadora e social do Estado,

redução da jornada, preservação de antigos direitos trabalhistas, envolvimento

com questões ecológicas e da cidadania precisam estar na agenda dos

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trabalhadores do Brasil e do mundo. Novos Direitos, mais humanos, para o século

que chega!

O trabalho, e não o capital é portador dos maiores valores civilizatórios. E o

trabalhador - da terra, das fábricas, dos serviços públicos, dos escritórios, dos

laboratórios, dos veículos, das instituições de ensino, dos hospitais, dos centros

espaciais – continua sendo uma figura central. Só ele, numa perspectiva solidária,

coletiva e moderna, pode reorientar a globalização consumista e excludente. E,

ainda uma vez recolocar o horizonte utópico de um mundo alicerçado em festa,

trabalho e pão, indicado na Declaração.

É certo que, no artigo 23, a Declaração fala do "direito ao trabalho, à livre

escolha do emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção

contra o desemprego". Mas talvez fosse o caso de afirmar um direito novo,

exigência social provocada pela chamada terceira revolução tecnológica e

industrial de nossa era: o direito à primazia do trabalho sobre a introdução de

novas técnicas, quando estas gerarem desemprego. Ou, como alternativa, o

direito à redução da jornada, sem redução de salário, sempre que novas

tecnologias forem implementadas. Para o trabalhador, isto significará mais horas

de descanso, de lazer, de aperfeiçoamento intelectual. Por que não?

(e) No tempo da padronização cultural, dos modelos "universais" de

consumo, do "compro, logo existo", é fundamental assegurar também o direito á

diversidade cultural, o direito á diferença. A Declaração, redigida antes da

massificação da televisão como veículo de informação, limita-se ao direito à

fruição dos bens culturais. Hoje impõe-se garantir o direito à diversidade das

culturas, ameaçadas pela imposição da ideologia do pensamento único, sue

coloca o cliente no lugar da pessoa, o consumidor (inclusive de bens culturais) no

lugar do criador. A cultura televisiva, que tudo pode, embaralha os tempos e

deifica o presente, entroniza o aqui e agora, o imediato, o palpável como valor

imaginário absoluto. O poder da mídia parece supremo e incontrolável pela

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sociedade. As tradições populares, as culturas locais, os patrimônios regionais vão

perdendo espaço e respeito. E a belíssima construção simbólica das etnias

nativas, dos povos conquistados, dos deserdados deste chão, dos condenados da

terra, dos dispersos nas diásporas da História vai sendo descaracterizada,

abafada, "folclorizada", quando muito guardada em prédios de celebração do que

se foi... Os valores, os conhecimentos, a visão de mundo que não são

contemporâneos, urbanos, "tecno", são descartados. Como que a cumprir a

profecia maia de Chilam-Balam, gravada no Museu de Antropologia dos Povos

Pré-Colombianos da Cidade do México-Tenochtitlán:

Toda luna. Todo año.

Todo dia, todo viento camina

y pasa también.

También toda sangre

Ilega aI lugar de su quietud.

A preservação e a vivificação das inquietas culturas de povos subjugados é

um direito e um dever da Humanidade. Com essa pluralidade temos muito a

aprender, pelos milênios afora. Aprender, sobretudo, a respeitar as diferenças e

varrer de vez os etnocentrismos.

Velhos Direitos, antigas omissões

A Declaração, nos cinco primeiros artigos afirma a igualdade e a liberdade

dos seres humanos. Todos somos iguais, sem exceções! Todos temos o direito de

viver. E ninguém pode ser escravo de ninguém. Ninguém pode castigar

cruelmente ou torturar ninguém. Isso tudo pode nos parecer o óbvio, mas cabe

lembrar que, quando a Declaração foi assinada, alguns países - como o Brasil-

tinham proibido a escravidão há pouco mais de meio século. E quem pode afirmar

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que hoje, no limiar do terceiro milênio, não há escravidões, torturas, tratamentos

desumanos, desigualdades?

O artigo 6 é central, e D. Pedro Casaldáliga, profeta, místico e poeta, pastor

da gente altiva e modesta do coração do Brasil, diz c tudo sobre ele neste livro.

Todo ser humano é... pessoa! Todos têm o direito de tornar-se pessoas, assim

como a massa precisa virar povo. Ser pessoa é fazer a diferença, integrar-se sem

diluir-se, afirmar-se. Ninguém melhor que o grande filósofo francês Emmanuel

Mounier, criador do pensamento personalista (não confundir com individualista),

estruturado à época da Declaração, para definir a pessoa: "Não existem pedras,

árvores, animais e pessoas, sendo, estas, árvores que andam ou animais mais

astutos. A pessoa não é o mais maravilhoso objeto do mundo, objeto que

conhecemos de fora, como todos os outros. É a única realidade que conhecemos

e que, simultaneamente, construímos de dentro." É ainda Mounier que, ao propor

a construção de uma sociedade de pessoas, indica um caminho a ser percorrido:

"O primeiro ato da pessoa deve ser, pois, a criação com outros de uma sociedade

de pessoas, cujas estruturas, costumes, sentimentos e até instituições estejam

marcados pela sua natureza de pessoas. Sociedade que apenas começamos a

entrever (...) e que funda-se numa série de atos originais: (..) sair para fora de nós

próprios (...) compreender (...) assumir o destino, os desgostos e as alegrias dos

outros (...) dar (...) ser fiel.” 4

Do artigo 7 ao 11 afirma-se o primado da Justiça. Visando superar a

parcialidade concreta desta, que só tem olhos vendados nas estátuas. Como disse

o escritor Fernando Sabino: "Dura lex, sed lex: a lei é dura mas é lei. Para os

ricos, porém, é dura lex, sed latex: a lei é dura, mas estica." A lei, perante a qual

todos são iguais, segundo a Declaração, é instrumento de proteção contra os

desmandos, e os tribunais devem julgar os casos de violação. As arbitrariedades

nas detenções, prisões e exílios são condenadas. Inscreve-se ali um dos

princípios mais famosos do direito: "Todo acusado de ato delituoso tem o direito

de ser considerado inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de

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acordo com a lei", garantida a sua defesa. Na prática, costuma acontecer o

contrário: as condenações, algumas fatais, precedem os julgamentos. A pena de

morte sumária, por exemplo, que a lei não autoriza, é pratica corriqueira de

"esquadrões" em muitos países.

Não deixa de ser curioso que, na época da sofisticação técnica da

espionagem, da escuta telefônica não autorizada, das gravações clandestinas e

das calúnias e injúrias corriqueiras, o artigo l2 garanta a privacidade de cada um e

condene os ataques à honra e à reputação.

"O mundo é a nossa casa", dizem os artigos 13 e 14, ao assegurar o direito

de ir e vir dentro de cada país e de um país para outro, estabelecendo também a

acolhida do asilo para quem sofre perseguição política, que já era praticada aqui e

ali antes de 1948.

Exemplo conhecido foi Leon Trotsky, revolucionário russo, que sobreviveu

por mais três anos à perseguição stalinista graças ao asilo que o governo

mexicano lhe deu, no final da década de 30. Lá, longe de sua pátria, poucos dias

antes de seu assassinato, em 1940, ele continuava pensando grande, sendo

internacionalista: "Natália abriu a janela e o ar entrou forte em nossa casa. Vi a

verde hera tomando o muro, sob um céu muito azul. O sol, generoso, espalhava

sua justa claridade, iluminando tudo. A vida é bela! Que as futuras gerações a

limpem de todo mal e toda opressão e toda violência. E possam gozá-Ia

plenamente."

Trotsky era um combatente, um resistente. Mas o exílio, para a maioria, é

desterro de sofrimento, saudade, dor. Como disse uma vítima da perseguição do

regime militar brasileiro (1964- 1984) - que entra na História por ter desrespeitado

inúmeras vezes os Direitos Humanos -, "ser obrigado a viver fora do seu país é

ficar como uma árvore arrancada do chão, com as raízes para o alto".

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"Meu país é meu, é nosso, nasceu comigo ou o escolhi", garante o artigo

15, do direito à nacionalidade e do direito a mudar de nacionalidade. Um princípio

planetário, generoso, solidário. O direito a ser cidadão do mundo e, para ser

universal, saber "cantar a sua aldeia".

O artigo 16 pode parecer estranho a um jovem de hoje, ao garantir o

matrimônio e a livre escolha do parceiro. Mas, se ele começar a indagar junto aos

mais velhos de sua família, vai descobrir que houve um tempo, não muito remoto,

em que os casamentos eram acertados à revelia dos noivos, obedecendo a

interesses econômicos e de "linhagem". A literatura e o cinema estão repletos

desses absurdos, aceitos passivamente por muitos ao longo dos séculos.

O artigo 17 é um dos mais discutidos, por simplesmente afirmar o direito à

propriedade, sem sequer destacar a sua função social. Se a propriedade é um

bem absoluto, porque não estendê-Ia a todos? A Declaração, aqui, revive o

espírito de sua antepassada revolução burguesa e defende a propriedade privada

como se esta fosse um "direito natural" do ser humano. Não é. E também - como

países, hinos e fronteiras - nem sempre existiu. É Célebre a história

"rousseauniana" que diz que o primeiro homem que cercou um terreno e

encontrou gente tola a ponto de acreditar que, com isso, ele tinha virado seu

proprietário criou a desigualdade e a sociedade de classes. E foi por não terem

arrancado as cercas daquele bem comum, de todos, que se começou a matar,

guerrear, infelicitar o gênero humano.

O artigo 18 clama pela liberdade de crença e de mudar de crença. Nenhum

culto (que não fira outros direitos expressos na Declaração) será proibido.

O artigo 19 é continuação do anterior, confirmando a liberdade de opinião e

expressão, que tanto incomoda as ditaduras de todas as épocas e estilos. Nestes

nossos tempos de monopólio da informação e das poderosíssimas redes, que

formam gostos, derrubam governos, ditam moda, determinam sonhos e

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manipulam vontades, vale destacar o direito de "sem interferências (...) receber e

transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de

fronteiras". Façamos valer! Os movimentos pela democratização dos meios de

comunicação, que vão do controle social da programação das televisões às rádios

comunitárias, atualizam esse direito.

Artigo 20 e 21: a afirmação da democracia política. O direito à organização

e à participação nas decisões de governo, ainda tão pouco praticado. O direito aos

serviços públicos, que não podem ser para poucos. A cultura política ocidental não

é a da participação: é a da delegação, daqueles a quem incumbo de me

representar, e a da reivindicação, ainda assim episódica, pontual. Daí a crise da

cidadania, a debilidade da representação política, a descrença crescente nas

instituições, a falência de um estado que se perdeu da realização do bem comum.

Daí a proeminência do privado sobre o público. Daí a degeneração crescente dos

serviços, que, segundo a ótica empresarial atual, só funcionam terceirizados,

privatizados...

A soberania popular, expressa em eleições livres e periódicas, está

afirmada na Declaração, mas é insuficiente se concebida apenas como exercício

do sufrágio, do voto. Os abusos do poder econômico nos processos eleitorais, a

política como espetáculo e marketing e a constante indução à apatia são as

marcas deste fim de século. Constituir o Poder Público é oxigená-Ia por meio da

escolha dos seus ocupantes. É, assim, fortalecê-Io. Mas a onda do fim dos anos

90 é outra: Estado mínimo. "O Estado ineficiente de nada serve, melhor extingui-

Ia", diz-se. Nenhuma inspiração anarquista aqui: apenas o velho liberalismo, puro

e duro. Inimigo dos desvalidos, dos "sobrantes", daqueles que, "por não serem

competentes, não deviam se estabelecer". Daqueles que, mais que todos,

precisam de governos comprometidos com a escola e a saúde públicas, com o

saneamento básico, com a produção de bens essenciais. "Os pobres não deviam

nascer"... Governar seria gerenciar, articular os interesses particulares, organizar

as "classes produtivas". Este ambiente pode ser uma sementeira para novos

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regimes totalitários, cuja ojeriza certamente orientou os redatores destes artigos

da Declaração. Ainda ecoavam, em 1948, os gritos das vítimas do Holocausto.

O artigo 22 coloca, muito oportunamente, o Estado a serviço da sociedade,

ao garantir a todo ser humano o direito à segurança e à realização econômica,

social e cultural. É para isso mesmo que existem os governos: para garantir a

plena realização humana. A vida concreta e as políticas elitistas mostram o

inverso. Dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento publicados em

novembro de 1998 revelam que a concentração da renda na América Latina

permanece absurda e injusta, diretamente relacionada com as oportunidades

educacionais e culturais, conforme noticiou o Jornal do Brasil (16/11/98):

A desigualdade na América Latina

(Participação na renda per capita)

País 10% mais pobres da

população

10% mais ricos da

população

Argentina 1,5% 35,9%

Bolívia 1,5% 42,1%

Brasil 0,8% 47%

Chile 1,3% 45,8%

Costa Rica 1,4% 34,2%

Equador 0,6% 44%

EI Salvador 1% 39,4%

México 1,1% 44,4%

Panamá 0,6% 42,7%

paraguai 0,7% 46,5%

Peru 1,5% 35,4%

Uruguai 1,8% 32,3%

Venezuela 1,6% 35,8%

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A América Latina tem a pior distribuição de renda do planeta devido

principalmente à precariedade de seu sistema educacional. Em comparação com

os Estados Unidos, onde os 10% mais bem pagos da população têm uma renda

per capita em média 60% maior do que os outros 90%, na América Latina os 10%

mais bem pagos ganham 160% a mais que a renda per capita do resto. Enquanto

os 5% de latino-americanos mais ricos ganham cerca de 25% da renda, na Ásia

essa fatia da população ganha 16% e nos países industrializados, 13% (cf JB,

16/4/98)

O artigo 23, como já foi mencionado anteriormente, trata daquilo que seus

redatores nem suspeitavam que viria ser a angústia deste fim de século: o

trabalho. Trabalho que é direito, trabalhadores que têm direitos. Trabalho, aliás,

que não é só o dito produtivo, aquele que gera mercadorias e está estabelecido

em contrato. O trabalho não pago - uma refeição que se prepara, uma flauta

tocada ao vento, uma casa que se arruma, um jardim que se cuida - também

move o mundo, anima, toca, alimenta, faz viver. E, muitas vezes, nem os

sindicatos de trabalhadores percebem isso... Mas os valores do trabalho, agora,

qualquer que seja, parecem estar em questão. A derrubada de direitos trabalhistas

é, segundo alguns, a vingança do capital contra o trabalho após a derrocada do

"mundo socialista", que obrigara o capitalismo a reformar-se, fazer concessões,

reconhecer minimamente o valor do proletariado. Se não fossem cínicos, se

tivessem um acesso de sinceridade, dirigentes de muitos países signatários da

Declaração proporiam, na Assembléia Geral da ONU, a eliminação do artigo 23...

O artigo 24 é o contraponto do anterior: reitera o direito ao repouso e ao

lazer. Outras conquistas dos trabalhadores do mundo que agora, com o fantasma

do subemprego e do desemprego, estão ameaçadas. Este artigo nos exorta a

lembrar o adágio popular que diz que "os melhores médicos do mundo são os

doutores dieta, repouso e alegra”.

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O artigo 25 é o do bem estar. A afirmação do necessário à vida digna:

alimentação, vestuário, habitação, saúde para todos. Cuidados na infância, na

velhice e na doença. Obviedades que, na prática, são carências em muitos países.

É o artigo do paradoxo: ninguém pode negar que todos devem ter esses direitos,

ninguém pode negar que muitos, hoje, ainda não os têm.

Herbert de Souza (1935-1997), o sociólogo da cidadania, denunciou o

descaso dos governos em relação à epidemia da AIDS, um dos grandes males

deste fim de século: "A AIDS apareceu como doença do Primeiro Mundo e de

pessoas ricas. Sem dúvida, isso explica a quantidade de investimentos no campo

de pesquisas - mesmo insuficiente -, o grande interesse da mídia. Com o tempo,

percebemos que a AIDS era uma epidemia mundial, do Primeiro e do Terceiro

Mundos, sendo, mesmo, uma verdadeira tragédia em certos países da África. A

doença tornou-se mundial, ligada, principalmente, à pobreza. Mas o tratamento da

AIDS requer uma enorme atenção médica e custa caro. (...) Só que a falta de

prevenção e o preconceito custam muito mais”. 5

O artigo 26 exalta a instrução gratuita “ao menos nos graus elementares e

fundamentais". Uma educação para a cidadania, para a tolerância, para a

amizade, para a paz. Uma educação que não será ministrada à revelia dos pais.

Uma educação que também capacite profissionalmente. O artigo 26 nos faz

indagar: quantos analfabetos das próprias línguas nacionais ainda há no mundo?

Quantos se evadem das escolas porque estas se evadiram de suas vidas, presas

a um ensino formal, inútil, adestrador, castrador?

O artigo 27 é daqueles que precisam ser atualizados, como já

mencionamos: entende a cultura como fruição, como produto. Ela é mais: é

criação. Todos somos artistas! E os bens culturais e científicos não são

propriedade exclusiva de pessoas e grupos: são patrimônio coletivo da

humanidade.

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“Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”? Pois, se o artigo

28 fosse cumprido, as coisas iriam melhor: ali está dito que todos temos direito a

ver os Direitos Humanos "plenamente realizados". E isto virá através do coletivo,

de um reordenamento social e internacional inspirado na Declaração. Novo

ordenamento que exige o compromisso de construção de cada um de nós. O

poeta explica:

Uma parte de mim

É todo mundo.

Outra parte é ninguém:

Fundo sem fundo.

Uma parte de mim

Almoça e janta:

Outra parte

Se espanta.

Traduzir uma parte

Na outra parte,

Que é uma questão

De vida ou morte,

Será arte?

(Ferreira Gullar)

O artigo 29, já de despedida, continua na linha da responsabilidade geral:

lembra que ninguém vivendo em sociedade tem apenas direitos: ressalta que

"todo homem tem deveres para com a comunidade", deve reconhecer os direitos

dos outros e não contrariar "os objetivos e princípios da Nações Unidas".

Finalmente, o artigo 30, que fecha a Declaração, alerta para o fato de que

tudo é interpretável, isto é, há diferentes leituras para um mesmo texto, de acordo

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com os interesses de quem lê e os contextos. Por isso, o documento conclui

afirmando que nenhuma interpretação autoriza “qualquer Estado, grupo ou

pessoa" a agir para destruir os Direitos Humanos e as liberdades ali estabelecidas.

Imagine

Um mundo que respeitasse plena e integralmente a Declaração Universal

dos Direitos Humanos. Um mundo onde os seis bilhões de seres humanos que

vivem hoje no planeta tivessem consciência desses Direitos. Um mundo onde os

Direitos, sempre atualizados, sempre em progressiva reelaboração, norteassem o

cotidiano de pessoas, povos governos. No Reino de Tonga, na Oceania e nos

Estados Unidos da América do Norte. Na República da Quirquísia, na Ásia e no

Reino Unido da Grã-Bretanha. No Sultanato de Brunei, na República Popular da

China, em Botsuana e no Brasil. Seria um mundo melhor para se viver.

No limiar do novo século, cabe acrescentar à antiga Declaração urna nova

afirmação de propósitos, que poderia ser a seguinte:

Queremos construir, desde já, uma sociedade onde as relações

sociais sejam de cooperarão e não de competição; onde a cultura

seja a da solidariedade e não a do individualismo; onde o interesse

público ganhe rosto e supere a onipotência aparente das forras de

mercado; onde a diversidade humana planetária seja respeitada e

se contraponha à uniformizarão consumista; onde haja crescente

comunhão dos seres humanos com a natureza, da qual fazemos

parte, e não uma relação predatória; onde a paz se traduza na

destruição das armas e suas fábricas, desativadas, sejam

substituídas por áreas reflorestadas ou ajardinadas, que abafem

para sempre o pesadelo atômico; onde o outro seja aquele que tem

algo a dizer e não um objeto de manipularão dos mais influentes;

onde o trabalho seja direito de realização pessoal e coletiva, e não

mero emprego, privilégio de poucos; onde a política, graças

informação democrática, esteja capilarizada e a cidadania seja

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horizontal; onde, enfim, o processo de socializarão progressiva

faça recuar a atual hegemonia do privado e do individualismo.

Mas não basta a generosa manifestação. É preciso agir, assumir a palavra,

que é vã se não se traduz em obras. Como dizia Herbert de Souza, o Betinho (ele

de novo!), "não há boa solução que não comece por mim". O desafio é, no dia-a-

dia do trabalho, da escola, da família e da vizinhança, praticar os novos e antigos

Direitos Humanos, redes cobrindo a dimensão política da nossa existência.

Humanizando-nos mais e mais. Inscrevendo-os no coração e na mente dos povos

dos 53 países da África, dos 47 da Ásia, dos 45 da Europa, dos 35 das Américas,

dos 13 da Oceania. Sendo portadores da esperança que se constrói: forjando uma

nova sociedade, sem Estado totalitário e partido único, com governo ativo,

decisivo e, sobretudo, povo se organizando e participando. Sociedade que

combine espaços econômicos coletivos com iniciativas particulares. Onde o poder

público seja regulador, evitando monopólios, mas também seja controlado por

uma esfera pública, fiscalizadora. Sociedade que empurre o Estado a impleentar

políticas para as maiorias e que, assim, vá superando as chagas da miséria, da

exclusão, da perda de sentido da existência. Sociedade de pessoas reais, plurais.

"Gente espelho de estrelas,

reflexo do esplendor.

Se as estrelas são tantas,

só mesmo amor!"

(Caetano Veloso)

Notas I. História Moderna e Contemporânea, Editora Moderna, S. Paulo, 1986.

2. Companhia das Letras, S. Paulo, 1998.

3. Casa Maria Editorial, Rio de Janeiro, 1989.

4. O Personalismo, Moraes Editores, Lisboa, 1970.

5. Revoluções da minha gerarão, Editora Moderna, S. Paulo, 1996.