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Declaração Universal dos Direitos do Homem1
Preâmbulo
CONSIDERANDO que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento
da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
CONSIDERANDO que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem
resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que
o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de
crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade,
CONSIDERANDO ser essencial que os direitos do homem sejam
protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como
último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,
CONSIDERANDO ser essencial promover o desenvolvimento de relações
amistosas entre as nações,
CONSIDERANDO que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta,
sua fé nos direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso
social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
CONSIDERANDO que os Estados Membros se comprometeram a
promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos
direitos e liberdades fundamentais do homem e a observância desses direitos e
liberdades,
1 ALENCAR, Chico (org). Direitos mais humanos. Rio de Janeiro: Garamond, 1998. 104p.;
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CONSIDERANDO que uma compreensão comum desses direitos e
liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse
compromisso,
A Assembléia Geral das Nações Unidas proclama a presente "Declaração
Universal dos Direitos do Homem" como o ideal comum a ser atingido por todos os
povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da
sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem, através do
ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,
pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por
assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto
entre os povos dos próprios Estados Membros quanto entre os povos dos
territórios sob sua jurisdição.
Artigo 1
Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de
razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade.
Artigo 2
I. Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça,
cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional
ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição.
II. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica
ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de
um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a
qualquer outra limitação de soberania.
Artigo 3
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Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo 4
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de
escravos estão proibidos em todas as suas formas.
Artigo 5
Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano
ou degradante.
Artigo 6
Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa
perante a lei.
Artigo 7
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual
proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação
que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Artigo 8
Todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio
efetivo contra os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam
reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo 9
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo 10
Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por
parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e
deveres ou sobre o fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
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Artigo 11
I. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser considerado
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em
julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias
necessárias à sua defesa.
II. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento,
não constituam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não
será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era
aplicável ao ato delituoso.
Artigo 12
Ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, sua família, seu lar ou
sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo homem tem
direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Artigo 13
I. Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das
fronteiras de cada Estado.
II.Todo homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este
regressar.
Artigo 14
I. Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo
em outros países.
lI. Este direito não pode ser invocado em casos de perseguição legitimamente
motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e
princípios das Nações Unidas.
Artigo 15
I. Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
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lI. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade nem do direito de
mudar de nacionalidade.
Artigo 16
I. Os homens e mulheres maiores de idade, sem qualquer restrição de raça,
nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma
família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua
dissolução.
II. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos
nubentes.
III. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à
proteção da sociedade e do Estado.
Artigo 17
I. Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
II. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Artigo 18
Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este
direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela
observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Artigo 19
Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a
liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.
Artigo 20
I. Todo homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.
II. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
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Artigo 21
I. Todo homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente
ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
II. Todo homem tem igual direito de acesso ao serviço público de seu país.
lII. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será
expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto
secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.
Artigo 22
Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à
realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com
a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e
culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua
personalidade.
Artigo 23
I. Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições
justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
II. Todo homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual
trabalho.
lII. Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória,
que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a
dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de
proteção social.
IV Todo homem tem o direito de organizar sindicatos e neles ingressar para
proteção de seus interesses.
Artigo 24
Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das
horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
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Artigo 25
I Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua
família saúde e bem-estar, incluindo alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios
de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
lI. A maternidade e a infância asseguram o direito a cuidados e assistência
especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da
mesma proteção social.
Artigo 26
I. Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos
graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A
instrução técnica profissional será acessível a todos, bem como a instrução
superior, esta baseada no mérito.
lI. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e
pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e
coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
llI. Os pais têm prioridade de direito na escolha do tipo de instrução que será
ministrado a seus filhos.
Artigo 27
I. Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de
seus benefícios.
II.Todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais
decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja
autor.
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Artigo 28
Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e
liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente
realizados.
Artigo 29
I. Todo homem tem deveres para com a comunidade na qual o livre e pleno
desenvolvimento de sua personalidade é possível.
II. No exercício de seus direitos e liberdades, todo homem estará sujeito apenas
às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o
devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de
satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma
sociedade democrática.
lII. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos
contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Artigo 30
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o
reconhecimento, a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer
qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer
direitos e liberdades aqui estabelecidos.
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Para Humanizar o Bicho2
Chico Alencar ∗
"Gente é pra brilhar. Este é o meu lema, e o do Sol também. "
(Maiakovski)
Nem sempre existiu a terra
Contemplar um céu estrelado é muito difícil na cidade grande, com seu
clarão artificial e seus apelos para que olhemos a telinha de TV e as vitrines. Mas
é um bom exercício, que o povo do interior tem mais possibilidades de fazer. A
imensidão impressiona, o infinito estelar comove. E o que é a nossa nave, o
planeta Terra, dentro disso tudo? Quase nada... Um satélite do Sol, um pedacinho
esfriado dele, que faz parte do seu sistema há aproximadamente cinco bilhões de
anos. Sistema solar que, com seus dez planetinhas, é incalculavelmente menor
que outros que existem na Via-Láctea. A jovem Terra, no Universo de 15 bilhões
de anos, entre galáxias que continuam em expansão, em meio a trilhões de
estrelas, é quase nada...
Um quase nada que, para nós, únicos seres conhecidos que contam a sua
própria história e, de uns tempos para cá, cozinham seus próprios alimentos, é
tudo: a Terra é nossa morada! Foi na Terra que a vida conhecida surgiu há quatro
bilhões de anos. Foi na Terra que os dinossauros passearam, gigantescos e
devoradores, há 130 milhões de anos. Foi aqui que nasceu, provavelmente há
dois milhões de anos, este ser contraditório e perguntador: o ser humano. Nós.
Claro que pode haver vida e seres mais inteligentes e menos brigões que
nós pelo Infinito afora. "Nenhuma certeza escapa às nossas dúvidas", lembra frei
2 ALENCAR, C (org.). Para humanizar o bicho homem In:Direitos mais humanos. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p.17-44. ∗ Chico Alencar, autor de diversos livros, é professor da Faculdade de Educação da UFRJ e deputado estadual no Rio de Janeiro pelo PT.
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Betto. Mas há uma convicção forte, quase inquestionável: para quem está vivo, o
que mais conta é a sua vida, o seu tempo de existência, o seu ser-no-mundo. E
nós somos os seres humanos do planeta Terra.
A nós, leitores e escritores deste livro, foi dado viver a maior parte de
nossas vidas naquilo que se convencionou chamar de segunda metade do século
XX. Nem sempre existiu a Terra, nem sempre existiu o Universo, nem sempre
existiu sequer a noção de tempo, mas o que conta é que agora existem, pois nós
existimos: nós da Terra, no Universo, nesta época.
Nós, humanos e tão matéria, tão cósmicos. Nós, compostos de carne, osso,
energia e sentimentos que contêm os mesmíssimos elementos físico-químicos
que formam o Universo inteiro. Nós, que perseguimos a explicação de nossa
origem, que estudamos a formação do mundo, que temos a obsessão do
conhecimento. Nós, seres humanos com autoconsciência, carregados de memória
ancestral, atômica, animal, vegetal e mineral. Nós, que nos diferenciamos dos
moluscos, das abelhas e dos cães não por sermos feitos de outra matéria - não
somos! -, nem por desenvolvermos técnicas - outros animais também têm suas
habilidades! -, mas por buscarmos significados, por construirmos culturas, por
ritualizarmos a morte, por desejarmos o absoluto. Nós, os seres mais complexos
da criação conhecida até agora, somos seres éticos: temos idéia de pertencimento
(sabemos que fazemos parte da sociedade humana) e sentimo-nos, de alguma
maneira, responsáveis por um destino comum das gentes. Estabelecemos
princípios, fazemos declarações - mesmo que os contrariemos logo depois.
Proclamamos o bem, diferenciamos em cada momento da história. Somos
históricos!
Contemple um céu estrelado. Você vai se sentir pequenino debaixo daquela
imensidão. Namore as estrelas - a lua ainda é dos namorados. Viaje. Imagine-se,
como Caetano Veloso, numa "interestelar canoa". Sinta aquela infinita harmonia. E
cresça com ela: saiba-se parte desse todo, partícula inteiramente integrada na
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sinfonia universal. Redescubra a beleza de ser gente agora, cujo destino final é
reintegrar-se nesse cosmos alucinado (isto é, cheio de luz), que os místicos
chamam de Deus. Contemple um céu estrelado e entenda, com sereno orgulho,
que é a sua condição humana que permite esta atitude, esta maneira original de
perceber o vasto mundo. Per ardua ad astra, diz um antigo provérbio romano. É o
desafio: arduamente, chegaremos até as estrelas. Para isso, não há outro
caminho: conhecermo-nos cada vez mais.
Nem sempre existiram Nações
E mesmo assim a gente, às vezes, se emociona com o Hino Nacional
Brasileiro, até quando ele não é executado antes de uma final de Copa do Mundo
de futebol... A Nação nos parece eterna, um bem maior que nós e que nos
ultrapassa de longe. Uma construção simbolizada em bandeira e cores, que não
teve início nem terá fim. Na verdade, a coisa não é bem assim.
Os Estados Nacionais - 190 até o fechamento da edição deste livro - são
uma criação do mercantilismo capitalista. Uma novidade dos chamados Tempos
Modernos, que já nos parecem tão antigos. Antes -lá se vão 600, 800, mil anos -,
na velha Europa, eram os feudos, as cidades comerciais, os particularismos
regionais, os reinos sem reis absolutos e governos fortes. A formação dos Estados
modernos, que materializam a idéia de Nação, se inicia por volta do século XIII,
principalmente na Espanha, na França e na Inglaterra. Mas o processo de lutas e
novas dominações contra os interesses localistas vai até o século XV Só a partir
daí podemos falar em nações consolidadas: ''A idéia de Estado atravessará os
tempos, estando presente no período absolutista, nas Revoluções Burguesas dos
séculos XVIII, XIX e XX, nas Revoluções Socialistas dos séculos XIX e XX e nas
Lutas de Libertação Nacional do século atual (Argélia, Vietnã e Angola, por
exemplo)", informa o historiador Carlos Guilherme Mota.1
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Claro que a inexistência das nações, tal como a entendemos hoje, não tinha
nada a ver com o generoso sonho de um governo mundial cooperativo, de um
mundo sem fronteiras. O beatle John Lennon não pensava em regresso ao século
X quando compôs, em 1971, a belíssima canção imagine, que nos pede:
Imagine there’s no countries
It isn't bard to do
Nothing to kill or die for
(...)
Imagine all the people
Living life in peace...
(…)
Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or bunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world
O sonho de Lennon não é o do paraíso perdido e sim daquele a ser
conquistado. Horizonte utópico, necessário. Imaginar um mundo sem países,
fronteiras e exércitos nacionais exige a compreensão dos mecanismos do nosso
mundo atual, com suas nações distintas e que tantas vezes se estranham. Implica
também entender o que é o ser humano atual, que tanto causa estranheza.
Aliás, a própria noção de ser humano que nos rege vem de 500, 600 anos
atrás. O Renascimento, que marca o início dos Tempos Modernos, cria uma nova
mentalidade, um novo conceito de ser humano. Ousados pensadores e artistas
rompem as proibições de uma cultura supersticiosa e preconceituosa e afirmam “o
homem como centro de todas as coisas e modelo do mundo", como disse
Leonardo da Vinci, cujos traços ilustram este livro. Ele é o personagem mais
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completo daqueles novos tempos, da nova humanidade européia que ia sendo
gestada. Curiosíssimo e insolente, fez estudos de pintura, escultura, arquitetura,
urbanismo, armas de guerra, cartografia, mecânica, física, ótica e até mesmo de
aeronáutica! Não ficou só nos estudos e pesquisas: criou, pintou, modelou,
projetou, agiu, inovou.
Leonardo da Vinci "humanizou" a cultura de seu tempo. Deu os contornos
de um ser humano que começava - apenas começava! - a ter noção do tempo e
de si mesmo. Uma noção ainda limitada, num mundo essencialmente rural,
camponês, sem conforto, sem delicadeza, sem eletricidade, sem relógios... Mas
uma sociedade repleta de ânsia de conhecer, de buscar, de superar as enormes
adversidades para a sobrevivência do bicho humano no planeta. Um homem
prático, que aprendia fazendo: ''A experiência é a mestra das coisas", disse ele,
em 1508. Os Estados Nacionais impulsionaram esse "antropocentrismo", em
substituição ao "teocentrismo" medieval. Um novo homem nasceu.
Nem sempre existiram Direitos
A noção de Direitos Humanos está totalmente ligada ao contexto de cada
época. Quando não havia escrita e a fala humana ainda se estruturava com sons
guturais, primais, os "direitos humanos" eram inexistentes como conceito e como
prática: a luta pela sobrevivência era bruta, dura, e favorecia os mais fortes. E
assim foi, durante séculos.
O princípio cristão do amor ao próximo, nesse processo, representou uma
revolução cultural, uma radical novidade (o que não impediu que seu arauto
terminasse condenado à morte, e morte na cruz, a mais terrível!). Mas a idéia mais
elaborada, doutrinária, dos seres humanos como iguais e, portanto, com os
mesmos direitos, é um resultado da luta da burguesia contra o obscurantismo dos
senhores feudal e da aristocracia absolutista. Já na Declaração de Independência
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Norte-Americana, de 1776, os seres humanos eram considerados "naturalmente
iguais, livres e independentes". Uma novidade!
Estas idéias novas, afirmativas de direitos e de um original entendimento do
humano, foram elaboradas teoricamente com mais detalhes pela Declaração dos
Direitos do Homem e do cidadão, da Revolução Francesa, lançada em 26 de
agosto de l789. Em síntese, ela reafirma que "todos os homens são iguais perante
a lei" e que "a lei deve proteger a liberdade pública e individual contra a opressão
daqueles que governam" - o que o Absolutismo considerava impensável!
Com uma visão relativista da História bastante interessante, a Declaração
pioneira também mencionava a transitoriedade das leis, assegurando ao povo "o
direito de rever, de reformar e de mudar a sua Constituição", além de afirmar que
"uma geração não pode sujeitar as gerações seguintes às suas leis". Como isso
precisa ser entendido por aqueles que ainda consideram imutáveis a lei, os
costumes e a moral! Tudo muda de acordo com a mudança da concepção de ser
humano. Os valores de uma época podem não valer para outra, bem como a
moda, os hábitos alimentares etc.
Por outro lado, é inegável que, em determinados momentos, a Humanidade
avança. Não linearmente, não positivamente, mas entre altos e baixos, impulsos
progressistas e recuos (como a Constituição francesa de 1800, da qual foi
eliminada a Declaração de Direitos). A história dos seres humanos é, assim, a
história de uma luta: barbárie x humanização. Os Direitos Humanos burgueses
cumpriram o seu papel humanista, por mais que o Código Napoleônico tivesse
como centro de suas preocupações a propriedade, com cerca de 800 artigos
falando da propriedade privada e apenas sete tratando de proteção (mínima) a
quem trabalha nela.
A caminhada do ser humano no planeta é ainda errática e marcada pela
estupidez. Civilizamo-nos muito pouco, ainda. Mas essa pedra bruta, feroz,
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esperta o suficiente para sobreviver em meio a feras mais fortes que ela e a
intempéries de todo tipo, mesmo ainda utilizando apenas 5% de sua capacidade
cerebral e intuitiva, vai seguindo sua viagem.
O bicho homem, com visão infinitamente menor do que as águias,
plasticidade corporal tacanha se comparada à dos felinos, olfato ridículo em
relação ao dos cães, operosidade e organização mínimas diante das abelhas e
formigas, resistência física sofrível cotejada com a de qualquer animal selvagem,
(des) integração com a natureza que deixaria os insetos espantados, está aí,
aparentemente soberano, já saindo do planeta para os espaços siderais. E
estabelecendo regras de convívio social, padrões de comportamento, limites - nem
sempre respeitados - ao seu desejo de poder e mando. O Direito, pouco a pouco,
vai deixando de ser um privilégio dos poderosos, dos influentes, dos bem armados
e bem-falantes. Vai deixando de ser exclusivo de pouco.
A irracionalidade ainda predomina, mas vozes proféticas, desde há muito,
vão se levantando para denunciá-Ia. E para reafirmar que a dimensão política, isto
é, do interesse social, da qual se originam todos os direitos (da Lei de Talião do
"olho por olho" às Tábuas da Lei, do Código de Hamurabi à Constituição Brasileira
de 1988), é parte constitutiva e irrenunciável do ser humano. Tanto quanto sua
integração à natureza, da qual somos parte, e sua busca mística, pois também
desejamos - só nós, seres humanos! - religar Terra e Céu, imanente e
transcendente, finitude e eternidade. Somos seres políticos, ecológicos e
religiosos. Mahatma Gandhi (1869-1948), líder da independência da Índia, resumiu
isto de forma admirável: "Para ver o universal e imanente Espírito da Verdade face
a face é preciso ser capaz de amar a mais ínfima das criaturas como se ama a si
próprio. E um homem que a isso aspira não pode ser omisso em nenhum aspecto
da vida. Daí por que minha devoção á verdade conduziu-me ao campo da política.
(...) Aqueles que dizem que a religião nada tem a ver com a política não sabem o
que a religião significa”.
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A Humanidade ainda engatinha. E seu processo civilizatório é contraditório:
desenvolve a tecnologia de armas e submete povos inteiros. A África perdeu,
entre escravizados e mortos, cerca de 70 milhões de pessoas, do século XV ao
XIX. Sociedades inteiras das Américas foram exterminadas: incas, astecas, maias,
tupis... A ferro e fogo, representantes de povos com maior domínio de técnicas
destruíam civilizações, a ponto de um religioso da época, frei Domingo de São
Tomás, dizer: "Não é prata o que se envia à Espanha, é suor e sangue dos índios!
Dos três milhões de índios que, por estimativa, supõe-se viviam no litoral brasileiro
à época da conquista portuguesa, restaram hoje 300 mil. As duas guerras
mundiais do século que finda, mesmo tendo sido basicamente européias,
deixaram um saldo aterrorizante de mais de 65 milhões de mortos, 14 milhões dos
quais dizimados em campos de concentração! A Segunda Guerra, depois dos
cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki, deixou a certeza de que, havendo
uma terceira, o planeta, autodestruído, não viverá a quarta guerra mundial. O day
after da próxima conflagração mundial será o fim da Terra. Apesar dessa estúpida
possibilidade, as potências ainda armazenam forças nucleares capazes de
destruir o planetinha três vezes! Século XX: perseguições, torturas, golpes,
regimes de opressão. Miséria de muitos: segundo a ONU, em 1997, o mundo tinha
840 milhões de famintos e um bilhão de desempregados. Falta de trabalho, de
saúde e de habitação - tudo isso convive com admiráveis inventos da era do
cinema, do avião, da TV, dos satélites, da computação. Século de paradoxos:
tratados de paz em meio a muitas guerras; produção recorde de objetos e número
recorde de despossuídos; biotecnologia, clonagem e epidemias...
Enfim, a Declaração.
Que nasceu em 10 de dezembro de 1948. Madura, nem velha nem criança,
a Declaração Universal dos Direitos Humanos é filha da Organização das Nações
Unidas. A ONU surgiu em função das reconhecidas Limitações da antiga Liga das
Nações, criada em 1919, após a Primeira Grande Guerra. Em plena Segunda
Guerra, no primeiro dia do ano de 1942, EUA, URSS, Inglaterra e China
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assinaram a Declaração das Nações Unidas, ratificada depois por outros 22
países. A luta contra o eixo nazi-fascista unia povos e governos socialistas e
capitalistas. Outras declarações e conferências, como a do Atlântico e a de Ialta,
foram gestando a nova organização mundial. Finalmente, de abril a junho de 1945,
representantes do governo de 50 nações reuniram-se numa assembléia em São
Francisco (EUA): em 26 de junho de 1945 foi lançada a Carta das Nações Unidas,
criando a ONU.
A bela sede da ONU, em Nova Iorque, é considerada território mundial,
internacional. Num hipotético ataque atômico contra os EUA (repetindo-se o crime
que os EUA fizeram no Japão, quando a Segunda Grande Guerra estava no fim),
o espaço onde está a ONU não poderia ser atingido...
Ali reúne-se a Assembléia-Geral, composta por representantes de todos os
países membros, o Conselho de Segurança e o Secretariado permanente, cuja
figura central é o secretário geral. Ali também trabalha o Conselho Econômico e
Social, qual estão vinculados organismos especiais da ONU, tão importantes
quanto um tanto esvaziados nos anos 90: a UNESCO (Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) e o UNICEF (Fundo Mundial de
Assistência à Infância), ambos sediados em Paris, França; a FAO (Organização
para a Alimentação e Agricultura), com sede em Roma, na Itália; a OMS
(Organização Mundial da Saúde), a OIT (Organização Internacional do Trabalho),
o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), a ONUID (Organização das
Nações para o Desenvolvimento Industrial), a CDH (comissão dos Direitos
Humanos), todos com sede em Genebra, Suíça; a AlE (Agência Internacional de
Energia Atômica), em Viena, capital da Áustria, e a CEPAL (Comissão Econômica
para a América Latina), com sede em Santiago do Chile.
Dois anos e meio após a criação da ONU, sua Assembléia Geral proclamou
a Declaração Universal dos Direitos do Homem, “como o ideal comum a ser
atingido por todos os povos e todas as nações”. Entendemos bem: Direitos do
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Homem, aqui, são também os da Mulher, embora a palavra só apareça duas
vezes na Declaração: Direitos dos Seres Humanos, todos! Mas a cultura
predominantemente masculinista – aquela mesma que ainda faz do macho
ocidental, branco e rico o símbolo maior de poder na espécie humana – manteve
esta já tradicional generalização de homem como representante de homens e
mulheres...
Entendamos bem outra coisa, no caso positiva: a Declaração foi um bonito
esforço para colocar ideais generosos e solidários, de certa forma permanentes,
acima dos conflitos e das divergências que jogavam o mundo, após os sangrentos
conflitos da guerra, na "paz armada".
A Declaração nasce quando o mundo está mergulhando em outra guerra,
chamada "fria", marcada pela bipolaridade das duas superpotências, EUA e
URSS. Em seu extraordinário livro A era dos extremos,2 o historiador Eric
Hobsbawn explica que "gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas
nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer
momento e devastar a humanidade. Na verdade, mesmo os que não acreditavam
que qualquer um dos lados pretendia atacar o outro achavam difícil não ser
pessimistas, pois a Lei de Murphy é uma das mais poderosas generalizações
sobre as questões humanas: se algo pode dar errado, mais cedo ou mais tarde vai
dar. À medida que o tempo passava, mais e mais coisas podiam dar errado,
política e tecnologicamente, nom confronto nuclear permanente baseado na
suposição de que só o medo da ‘destruição mútua inevitável’ impediria um lado ou
outro de dar o sempre pronto sinal para o planejado suicídio da civilização. Não
aconteceu, mas por cerca de quarenta anos pareceu uma possibilidade diária."
Os Direitos Humanos contemporâneos foram reescritos nesse clima tenso,
denso, sectário. Daí sua importância e grandeza, daí sua pouca repercussão
prática. Daí também o apelo, no preâmbulo da própria Declaração, para que “cada
individuo e cada órgão da sociedade se esforcem, através do ensino e da
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educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades e pela adoção de
medida progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu
reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos
dos próprios Estados Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua
jurisdição."
A Declaração, com um preâmbulo de sete "considerandos" e seus 30
artigos, é um documento histórico, uma carta de intenções pelo “advento de um
mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade”. A Declaração é também
uma denúncia de tudo o que, ao longo de milênios, a humanidade deixou de fazer.
É palavra em papel impresso (invenções tipicamente humanas): pode transformar,
comover e mover. Mas pode ficar letra morta, como tem ficado em tantos lugares.
Vale o que está escrito?
Se valesse mesmo, a Humanidade certamente estaria melhor. No
preâmbulo da Declaração está escrito que todo ser humano é digno e, portanto,
merecedor da liberdade, da justiça e da paz. Que o desprezo à dignidade dos
seres humanos resultou em atos bárbaros, que "ultrajaram a consciência da
Humanidade". Que, sendo desrespeitados em seus direitos e sem leis para
proteger a coletividade, os seres humanos são levados, "como último recurso, à
rebelião contra a tirania e a opressão". O direito à rebelião, portanto, é
reconhecido, como filósofos e teólogos de outras épocas já o tinham feito. A paz
não é inação, acomodação, simples ausência de guerra: é fruto da justiça.
A Declaração também reconhece a primazia dos povos sobre os governos,
da sociedade sopre o Estado, ao destacar que “a compreensão comum dos
direitos e liberdades é da mais alta importância para o seu pleno cumprimento" e
ao exigir dos Estados Membros, em cooperação com a ONU, a observância dos
20
direitos, que não se dará sem a promoção do progresso social e de melhores
condições de vida para todos.
Está no papel; na vida real, dados da própria ONU mostram outra realidade:
em 1994, os 20% mais ricos detinham 86% de tudo o que era produzido no
mundo, com uma renda 78 vezes superior à dos 20% mais pobres. O UNICEF, em
dezembro de 1997, alertou para o fato de que 55% das mortes de crianças até
cinco anos de idade, no chamado Terceiro Mundo, resultavam da desnutrição. As
estatísticas são frias? Faça um incômodo mas salutar exercício: pegue um jornal
do dia. Veja as manchetes da primeira página. De dez notícias, a metade,
provavelmente, informará, direta ou lateralmente, sobre desrespeito aos Direitos
Humanos. Crise social caindo sobre os mais fracos, violências de todo o tipo,
artimanhas políticas antidemocráticas, corrupção, ódios religiosos, xenofobia,
discriminação, prepotência, necessidades extremas...
Embora universal no nome e em diversos princípios, a Declaração é
histórica, temporal, datada. E por isso, nesta virada de século, já insuficiente em
vários aspectos.
Uma boa leitura é sempre crítica, complementadora, imaginativa. Qualquer
leitura, de qualquer texto, é feita com os "óculos" da atualidade. Por isso, é preciso
conhecer os Direitos Humanos não como um dogma, como um conjunto de artigos
prontos e acabados, definitivos. A Declaração cinqüentenária é muito boa, merece
ser lida, conhecida, vivida e cumprida, mas tem lacunas - resultantes da época em
que foi escrita, de sua temporalidade. Por isso, celebrar e valorizar a Declaração
Universal dos Direitos Humanos - atualizemos o título original, para ficar mais
abrangente - é entender que ela precisa ser acrescida, complementada,
aperfeiçoada. Além de cumprida, é óbvio.
Relembrando os revolucionários franceses do século XVIII, não queiramos
impor valores de uma época a gerações vindouras... Façamos a decantação,
21
empunhando a bandeira do que há de atual e necessário e afirmando novos
direitos, novos valores, que atendam a novas e urgentes demandas e
necessidades. Para que o que está escrito valha, de verdade, clamemos por mais
e melhores direitos, por um ser humano mais humano.
A Declaração tem lacunas
(a) Ela não trata - por não existir na época, ao menos com a evidência e a
terminologia de agora - da questão ecológica. Não afirma, por isso, o direito a
viver num mundo equilibrado, auto-sustentável, respeitoso em relação a todas as
formas de vida. Um mundo em que todos, a começar pelas crianças, tenham
consciência de que uma tonelada de papel (este mesmo do livro que você lê)
representa 25 árvores adultas abatidas e que uma tonelada de latinhas de cerveja
representa 12 toneladas de bauxita extraídas da terra. Recursos esgotáveis, como
esgotável é até a capacidade de inventar novas fontes de energia! A consciência
ecológica leva à tomada de atitudes, para que o planeta não pereça. A
Declaração, quando escrita, não se referia a um mundo como o de hoje. Redigida
há 50 anos, ela não poderia perceber que, nos últimos 30, uma França inteira de
floresta amazônica - a maior e mais rica do globo - seria abatida por motos serras,
queimadas e garimpos. Nem que Brasil, China e Indonésia bateriam recordes
mundiais de extermínio de aves e mamíferos. Nem que a camada de ozônio seria
paulatinamente afetada por compostos artificiais e gases-estufa. Nem que solos
de diversos continentes, explorados predatoriamente e sem cobertura arbórea,
tornar-se-iam impróprios até para a agricultura e o pastoreio, minados pela erosão
e pela desertificação. Nem que as águas de oceanos, rios e lagos - a terra é,
sobretudo, água, com os oceanos ocupando 75% da superfície do planeta -
ficariam doentes, contaminados por eles e efluentes. Por isso, impõe-se hoje
afirmar o direito à biodiversidade planetária!
(b) A Declaração, como você pode ler no texto de Graciela Rodríguez,
também não destaca com a ênfase necessária o direito das mulheres, vítimas de
22
secular e específica opressão. Em 1988: no quadragésimo aniversário da
Declaração, o jornal inglês The Economist denunciou: "Hoje as mulheres formam
1/3 da força de trabalho formal do mundo (e a maior parte da força de trabalho não
formal) e, no entanto, recebem 1/10 do rendimento mundial. Elas são donas de
menos de 1% das propriedades do mundo. Como no apartheid, o sistema mantém
as coisas assim. Quando às mulheres médicas tornaram-se bastante numerosas
na Rússia pós-revolucionária, o status da própria profissão foi rebaixado. Quando
são mulheres que executam a tarefa, o trabalho desce para um gueto de baixa
remuneração."
À luz da luta feminista do nosso século, pela afirmação de direitos
equivalentes aos dos homens - que garantiu para as mulheres a conquista do
voto, do trabalho não doméstico e até da escolha do vestuário -, uma nova
geração de direitos nasceu mas ainda precisa ser embalada para se consolidar.
Gerda Lerner, citada por Rosalind Miles em sua interessante História do mundo
pela mulher,3 resume a novidade: "Sabemos agora que o homem não é a medida
do que é humano, mas que os homens e as mulheres o são. Os homens não são
o centro do mundo, mas os homens e as mulheres o são. Tal visão transformará a
consciência tão decisivamente quanto o fez a descoberta de Copérnico de que a
terra não é o centro do universo!" Em outras palavras, o direito da mulher de ser
mulher, reconhecida em sua humana dignidade, exige que o homem se repense, e
que seja um novo homem.
(c) A Declaração não previu que o desenvolvimento capitalista chegasse à
sua atual etapa de globalização (isto é, globalitarismo) e de capitais voláteis,
especulativos, que entram e saem de diferentes países quase sem controle,
gerando instabilidade permanente nas economias periféricas. Talvez fosse o caso
de se afirmar, agora, o direito das nações de regulamentarem os investimentos
externos e de se protegerem contra a especulação internacional, que fragiliza e
subordina economias nacionais. Não é admissível que de 250 a 300 grupos
privados transnacionais, com negócios que vão do setor produtivo industrial ao
23
setor financeiro, passando pela publicidade e pelas comunicações, sejam, na
verdade, o verdadeiro governo (não muito invisível) do mundo, hegemonizando
governos e nações, estimulando “guerras fiscais”, derrubando restrições
alfandegárias, impondo seus interesses particulares. A Declaração,
marcadamente humanista e sociopolítica, não imaginou o neoliberalismo deste fim
de século, com sua desistoricização do tempo, com sua despolitização da vida,
com seu messianismo consumista, com a entronização da economia de mercado
como uma "fatalidade" natural, irreversível, fora da qual não há possibilidades.
Com um laissez faire que significa exclusão.
(d) Daí deriva outro problema: a introdução acelerada e sem critério das
novas tecnologias, liquidando postos de trabalho e até gerando uma nova
categoria, a dos "inempregáveis". São aqueles que, com precária escolaridade,
ficarão cada vez mais à margem da dinâmica produtiva, sem oportunidades de
trabalho. Para a frieza dos economistas do Banco Mundial, eles são apenas a
massa sobrante, o contingente excedente. Seres incômodos e, quem sabe,
elimináveis...
Mais de um século após as lutas de Chicago, marco do Primeiro de Maio,
Dia Internacional do Trabalhador, e às vésperas do terceiro milênio, cabe uma
reflexão sobre as novas realidades do mundo do trabalho. Sem dúvida a
polarização do sesquicentenário Manifesto Comunista de 1848, que dividia as
sociedades entre burgueses e proletários, não dá mais conta da estrutura social
contemporânea, que pluraliza as atividades econômicas e as relações de
produção, inclusive dentro das unidades fabris. A automação, a informática e a
robótica - desenvolvimento das forças produtivas - alteram posições e interesses
de grupos e classes sociais. A desmaterialização da produção é um fato em todas
as grandes cidades do mundo, nos países centrais ou periféricos. O que antes
exigia a mão-de-obra de cem pode ser feito por dez... Tudo isso é novo e
embaralha interesses, imaginários, aspirações. O mundo do trabalho é diverso.
Mas o grave é que há parcelas crescentes que ficam fora desse universo. Um
24
projeto democrático de novos direitos precisa reverter uma lógica econômica que
condena milhões, especialmente os jovens, à inutilidade...
Por outro lado, o fim do século traz tristes permanências: o poder político é,
cada vez mais, caudatário do poder econômico. As tais forças de mercado, tão
exaltadas, são as velhas forças motrizes do capitalismo liberal, que querem um
Estado fraco para que as grandes corporações transnacionais continuem ditando
regras e rumos. Daí se definir a nova (e velha) divisão internacional da produção e
dos negócios como globaritarismo. O que há de novo nessa ordem mundial?
Nada contra a revolução tecnológica e científica. Tudo o que serve para
aliviar as canseiras do labor humano é bem-vindo. Mas a sofisticação técnica não
é, em si, um bem ou um mal. Depende de sua forma de apropriação e do que ela
gera. Novas tecnologias que não são horizontalizadas, isto é, não servem
democraticamente a todos os povos e nações, apenas otimizam os mecanismos
de dominação de uns (ricos) sobre outros (pobres). Cibernética e realidades
virtuais que gerem desemprego massivo não são progresso e sim avanço rumo à
barbárie. O êmulo do lucro, fio condutor do atual desenvolvimento, é
desumanizante e põe em risco o planeta. É desrespeitador dos Direitos Humanos.
Claro, o fordismo está em declínio e os sindicatos que se restringirem à luta
corporativa, exclusivamente salarial, perderão espaço. Os pleitos e demandas
populares vão além do ambiente de trabalho, sobretudo quando ter vínculo
empregatício, absurdamente, virou quase um privilégio. Reivindicações por
equipamentos coletivos e públicos de educação, lazer, saúde e saneamento, além
do direito social à moradia e ao transporte, têm também tudo a ver com as classes
trabalhadoras. Lutas solidárias pela revisão do modelo econômico, para que ele
incorpore os "inempregáveis", inclusive à custa da redução dos ganhos do capital,
são imprescindíveis. Recuperação da capacidade financiadora e social do Estado,
redução da jornada, preservação de antigos direitos trabalhistas, envolvimento
com questões ecológicas e da cidadania precisam estar na agenda dos
25
trabalhadores do Brasil e do mundo. Novos Direitos, mais humanos, para o século
que chega!
O trabalho, e não o capital é portador dos maiores valores civilizatórios. E o
trabalhador - da terra, das fábricas, dos serviços públicos, dos escritórios, dos
laboratórios, dos veículos, das instituições de ensino, dos hospitais, dos centros
espaciais – continua sendo uma figura central. Só ele, numa perspectiva solidária,
coletiva e moderna, pode reorientar a globalização consumista e excludente. E,
ainda uma vez recolocar o horizonte utópico de um mundo alicerçado em festa,
trabalho e pão, indicado na Declaração.
É certo que, no artigo 23, a Declaração fala do "direito ao trabalho, à livre
escolha do emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção
contra o desemprego". Mas talvez fosse o caso de afirmar um direito novo,
exigência social provocada pela chamada terceira revolução tecnológica e
industrial de nossa era: o direito à primazia do trabalho sobre a introdução de
novas técnicas, quando estas gerarem desemprego. Ou, como alternativa, o
direito à redução da jornada, sem redução de salário, sempre que novas
tecnologias forem implementadas. Para o trabalhador, isto significará mais horas
de descanso, de lazer, de aperfeiçoamento intelectual. Por que não?
(e) No tempo da padronização cultural, dos modelos "universais" de
consumo, do "compro, logo existo", é fundamental assegurar também o direito á
diversidade cultural, o direito á diferença. A Declaração, redigida antes da
massificação da televisão como veículo de informação, limita-se ao direito à
fruição dos bens culturais. Hoje impõe-se garantir o direito à diversidade das
culturas, ameaçadas pela imposição da ideologia do pensamento único, sue
coloca o cliente no lugar da pessoa, o consumidor (inclusive de bens culturais) no
lugar do criador. A cultura televisiva, que tudo pode, embaralha os tempos e
deifica o presente, entroniza o aqui e agora, o imediato, o palpável como valor
imaginário absoluto. O poder da mídia parece supremo e incontrolável pela
26
sociedade. As tradições populares, as culturas locais, os patrimônios regionais vão
perdendo espaço e respeito. E a belíssima construção simbólica das etnias
nativas, dos povos conquistados, dos deserdados deste chão, dos condenados da
terra, dos dispersos nas diásporas da História vai sendo descaracterizada,
abafada, "folclorizada", quando muito guardada em prédios de celebração do que
se foi... Os valores, os conhecimentos, a visão de mundo que não são
contemporâneos, urbanos, "tecno", são descartados. Como que a cumprir a
profecia maia de Chilam-Balam, gravada no Museu de Antropologia dos Povos
Pré-Colombianos da Cidade do México-Tenochtitlán:
Toda luna. Todo año.
Todo dia, todo viento camina
y pasa también.
También toda sangre
Ilega aI lugar de su quietud.
A preservação e a vivificação das inquietas culturas de povos subjugados é
um direito e um dever da Humanidade. Com essa pluralidade temos muito a
aprender, pelos milênios afora. Aprender, sobretudo, a respeitar as diferenças e
varrer de vez os etnocentrismos.
Velhos Direitos, antigas omissões
A Declaração, nos cinco primeiros artigos afirma a igualdade e a liberdade
dos seres humanos. Todos somos iguais, sem exceções! Todos temos o direito de
viver. E ninguém pode ser escravo de ninguém. Ninguém pode castigar
cruelmente ou torturar ninguém. Isso tudo pode nos parecer o óbvio, mas cabe
lembrar que, quando a Declaração foi assinada, alguns países - como o Brasil-
tinham proibido a escravidão há pouco mais de meio século. E quem pode afirmar
27
que hoje, no limiar do terceiro milênio, não há escravidões, torturas, tratamentos
desumanos, desigualdades?
O artigo 6 é central, e D. Pedro Casaldáliga, profeta, místico e poeta, pastor
da gente altiva e modesta do coração do Brasil, diz c tudo sobre ele neste livro.
Todo ser humano é... pessoa! Todos têm o direito de tornar-se pessoas, assim
como a massa precisa virar povo. Ser pessoa é fazer a diferença, integrar-se sem
diluir-se, afirmar-se. Ninguém melhor que o grande filósofo francês Emmanuel
Mounier, criador do pensamento personalista (não confundir com individualista),
estruturado à época da Declaração, para definir a pessoa: "Não existem pedras,
árvores, animais e pessoas, sendo, estas, árvores que andam ou animais mais
astutos. A pessoa não é o mais maravilhoso objeto do mundo, objeto que
conhecemos de fora, como todos os outros. É a única realidade que conhecemos
e que, simultaneamente, construímos de dentro." É ainda Mounier que, ao propor
a construção de uma sociedade de pessoas, indica um caminho a ser percorrido:
"O primeiro ato da pessoa deve ser, pois, a criação com outros de uma sociedade
de pessoas, cujas estruturas, costumes, sentimentos e até instituições estejam
marcados pela sua natureza de pessoas. Sociedade que apenas começamos a
entrever (...) e que funda-se numa série de atos originais: (..) sair para fora de nós
próprios (...) compreender (...) assumir o destino, os desgostos e as alegrias dos
outros (...) dar (...) ser fiel.” 4
Do artigo 7 ao 11 afirma-se o primado da Justiça. Visando superar a
parcialidade concreta desta, que só tem olhos vendados nas estátuas. Como disse
o escritor Fernando Sabino: "Dura lex, sed lex: a lei é dura mas é lei. Para os
ricos, porém, é dura lex, sed latex: a lei é dura, mas estica." A lei, perante a qual
todos são iguais, segundo a Declaração, é instrumento de proteção contra os
desmandos, e os tribunais devem julgar os casos de violação. As arbitrariedades
nas detenções, prisões e exílios são condenadas. Inscreve-se ali um dos
princípios mais famosos do direito: "Todo acusado de ato delituoso tem o direito
de ser considerado inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de
28
acordo com a lei", garantida a sua defesa. Na prática, costuma acontecer o
contrário: as condenações, algumas fatais, precedem os julgamentos. A pena de
morte sumária, por exemplo, que a lei não autoriza, é pratica corriqueira de
"esquadrões" em muitos países.
Não deixa de ser curioso que, na época da sofisticação técnica da
espionagem, da escuta telefônica não autorizada, das gravações clandestinas e
das calúnias e injúrias corriqueiras, o artigo l2 garanta a privacidade de cada um e
condene os ataques à honra e à reputação.
"O mundo é a nossa casa", dizem os artigos 13 e 14, ao assegurar o direito
de ir e vir dentro de cada país e de um país para outro, estabelecendo também a
acolhida do asilo para quem sofre perseguição política, que já era praticada aqui e
ali antes de 1948.
Exemplo conhecido foi Leon Trotsky, revolucionário russo, que sobreviveu
por mais três anos à perseguição stalinista graças ao asilo que o governo
mexicano lhe deu, no final da década de 30. Lá, longe de sua pátria, poucos dias
antes de seu assassinato, em 1940, ele continuava pensando grande, sendo
internacionalista: "Natália abriu a janela e o ar entrou forte em nossa casa. Vi a
verde hera tomando o muro, sob um céu muito azul. O sol, generoso, espalhava
sua justa claridade, iluminando tudo. A vida é bela! Que as futuras gerações a
limpem de todo mal e toda opressão e toda violência. E possam gozá-Ia
plenamente."
Trotsky era um combatente, um resistente. Mas o exílio, para a maioria, é
desterro de sofrimento, saudade, dor. Como disse uma vítima da perseguição do
regime militar brasileiro (1964- 1984) - que entra na História por ter desrespeitado
inúmeras vezes os Direitos Humanos -, "ser obrigado a viver fora do seu país é
ficar como uma árvore arrancada do chão, com as raízes para o alto".
29
"Meu país é meu, é nosso, nasceu comigo ou o escolhi", garante o artigo
15, do direito à nacionalidade e do direito a mudar de nacionalidade. Um princípio
planetário, generoso, solidário. O direito a ser cidadão do mundo e, para ser
universal, saber "cantar a sua aldeia".
O artigo 16 pode parecer estranho a um jovem de hoje, ao garantir o
matrimônio e a livre escolha do parceiro. Mas, se ele começar a indagar junto aos
mais velhos de sua família, vai descobrir que houve um tempo, não muito remoto,
em que os casamentos eram acertados à revelia dos noivos, obedecendo a
interesses econômicos e de "linhagem". A literatura e o cinema estão repletos
desses absurdos, aceitos passivamente por muitos ao longo dos séculos.
O artigo 17 é um dos mais discutidos, por simplesmente afirmar o direito à
propriedade, sem sequer destacar a sua função social. Se a propriedade é um
bem absoluto, porque não estendê-Ia a todos? A Declaração, aqui, revive o
espírito de sua antepassada revolução burguesa e defende a propriedade privada
como se esta fosse um "direito natural" do ser humano. Não é. E também - como
países, hinos e fronteiras - nem sempre existiu. É Célebre a história
"rousseauniana" que diz que o primeiro homem que cercou um terreno e
encontrou gente tola a ponto de acreditar que, com isso, ele tinha virado seu
proprietário criou a desigualdade e a sociedade de classes. E foi por não terem
arrancado as cercas daquele bem comum, de todos, que se começou a matar,
guerrear, infelicitar o gênero humano.
O artigo 18 clama pela liberdade de crença e de mudar de crença. Nenhum
culto (que não fira outros direitos expressos na Declaração) será proibido.
O artigo 19 é continuação do anterior, confirmando a liberdade de opinião e
expressão, que tanto incomoda as ditaduras de todas as épocas e estilos. Nestes
nossos tempos de monopólio da informação e das poderosíssimas redes, que
formam gostos, derrubam governos, ditam moda, determinam sonhos e
30
manipulam vontades, vale destacar o direito de "sem interferências (...) receber e
transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de
fronteiras". Façamos valer! Os movimentos pela democratização dos meios de
comunicação, que vão do controle social da programação das televisões às rádios
comunitárias, atualizam esse direito.
Artigo 20 e 21: a afirmação da democracia política. O direito à organização
e à participação nas decisões de governo, ainda tão pouco praticado. O direito aos
serviços públicos, que não podem ser para poucos. A cultura política ocidental não
é a da participação: é a da delegação, daqueles a quem incumbo de me
representar, e a da reivindicação, ainda assim episódica, pontual. Daí a crise da
cidadania, a debilidade da representação política, a descrença crescente nas
instituições, a falência de um estado que se perdeu da realização do bem comum.
Daí a proeminência do privado sobre o público. Daí a degeneração crescente dos
serviços, que, segundo a ótica empresarial atual, só funcionam terceirizados,
privatizados...
A soberania popular, expressa em eleições livres e periódicas, está
afirmada na Declaração, mas é insuficiente se concebida apenas como exercício
do sufrágio, do voto. Os abusos do poder econômico nos processos eleitorais, a
política como espetáculo e marketing e a constante indução à apatia são as
marcas deste fim de século. Constituir o Poder Público é oxigená-Ia por meio da
escolha dos seus ocupantes. É, assim, fortalecê-Io. Mas a onda do fim dos anos
90 é outra: Estado mínimo. "O Estado ineficiente de nada serve, melhor extingui-
Ia", diz-se. Nenhuma inspiração anarquista aqui: apenas o velho liberalismo, puro
e duro. Inimigo dos desvalidos, dos "sobrantes", daqueles que, "por não serem
competentes, não deviam se estabelecer". Daqueles que, mais que todos,
precisam de governos comprometidos com a escola e a saúde públicas, com o
saneamento básico, com a produção de bens essenciais. "Os pobres não deviam
nascer"... Governar seria gerenciar, articular os interesses particulares, organizar
as "classes produtivas". Este ambiente pode ser uma sementeira para novos
31
regimes totalitários, cuja ojeriza certamente orientou os redatores destes artigos
da Declaração. Ainda ecoavam, em 1948, os gritos das vítimas do Holocausto.
O artigo 22 coloca, muito oportunamente, o Estado a serviço da sociedade,
ao garantir a todo ser humano o direito à segurança e à realização econômica,
social e cultural. É para isso mesmo que existem os governos: para garantir a
plena realização humana. A vida concreta e as políticas elitistas mostram o
inverso. Dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento publicados em
novembro de 1998 revelam que a concentração da renda na América Latina
permanece absurda e injusta, diretamente relacionada com as oportunidades
educacionais e culturais, conforme noticiou o Jornal do Brasil (16/11/98):
A desigualdade na América Latina
(Participação na renda per capita)
País 10% mais pobres da
população
10% mais ricos da
população
Argentina 1,5% 35,9%
Bolívia 1,5% 42,1%
Brasil 0,8% 47%
Chile 1,3% 45,8%
Costa Rica 1,4% 34,2%
Equador 0,6% 44%
EI Salvador 1% 39,4%
México 1,1% 44,4%
Panamá 0,6% 42,7%
paraguai 0,7% 46,5%
Peru 1,5% 35,4%
Uruguai 1,8% 32,3%
Venezuela 1,6% 35,8%
32
A América Latina tem a pior distribuição de renda do planeta devido
principalmente à precariedade de seu sistema educacional. Em comparação com
os Estados Unidos, onde os 10% mais bem pagos da população têm uma renda
per capita em média 60% maior do que os outros 90%, na América Latina os 10%
mais bem pagos ganham 160% a mais que a renda per capita do resto. Enquanto
os 5% de latino-americanos mais ricos ganham cerca de 25% da renda, na Ásia
essa fatia da população ganha 16% e nos países industrializados, 13% (cf JB,
16/4/98)
O artigo 23, como já foi mencionado anteriormente, trata daquilo que seus
redatores nem suspeitavam que viria ser a angústia deste fim de século: o
trabalho. Trabalho que é direito, trabalhadores que têm direitos. Trabalho, aliás,
que não é só o dito produtivo, aquele que gera mercadorias e está estabelecido
em contrato. O trabalho não pago - uma refeição que se prepara, uma flauta
tocada ao vento, uma casa que se arruma, um jardim que se cuida - também
move o mundo, anima, toca, alimenta, faz viver. E, muitas vezes, nem os
sindicatos de trabalhadores percebem isso... Mas os valores do trabalho, agora,
qualquer que seja, parecem estar em questão. A derrubada de direitos trabalhistas
é, segundo alguns, a vingança do capital contra o trabalho após a derrocada do
"mundo socialista", que obrigara o capitalismo a reformar-se, fazer concessões,
reconhecer minimamente o valor do proletariado. Se não fossem cínicos, se
tivessem um acesso de sinceridade, dirigentes de muitos países signatários da
Declaração proporiam, na Assembléia Geral da ONU, a eliminação do artigo 23...
O artigo 24 é o contraponto do anterior: reitera o direito ao repouso e ao
lazer. Outras conquistas dos trabalhadores do mundo que agora, com o fantasma
do subemprego e do desemprego, estão ameaçadas. Este artigo nos exorta a
lembrar o adágio popular que diz que "os melhores médicos do mundo são os
doutores dieta, repouso e alegra”.
33
O artigo 25 é o do bem estar. A afirmação do necessário à vida digna:
alimentação, vestuário, habitação, saúde para todos. Cuidados na infância, na
velhice e na doença. Obviedades que, na prática, são carências em muitos países.
É o artigo do paradoxo: ninguém pode negar que todos devem ter esses direitos,
ninguém pode negar que muitos, hoje, ainda não os têm.
Herbert de Souza (1935-1997), o sociólogo da cidadania, denunciou o
descaso dos governos em relação à epidemia da AIDS, um dos grandes males
deste fim de século: "A AIDS apareceu como doença do Primeiro Mundo e de
pessoas ricas. Sem dúvida, isso explica a quantidade de investimentos no campo
de pesquisas - mesmo insuficiente -, o grande interesse da mídia. Com o tempo,
percebemos que a AIDS era uma epidemia mundial, do Primeiro e do Terceiro
Mundos, sendo, mesmo, uma verdadeira tragédia em certos países da África. A
doença tornou-se mundial, ligada, principalmente, à pobreza. Mas o tratamento da
AIDS requer uma enorme atenção médica e custa caro. (...) Só que a falta de
prevenção e o preconceito custam muito mais”. 5
O artigo 26 exalta a instrução gratuita “ao menos nos graus elementares e
fundamentais". Uma educação para a cidadania, para a tolerância, para a
amizade, para a paz. Uma educação que não será ministrada à revelia dos pais.
Uma educação que também capacite profissionalmente. O artigo 26 nos faz
indagar: quantos analfabetos das próprias línguas nacionais ainda há no mundo?
Quantos se evadem das escolas porque estas se evadiram de suas vidas, presas
a um ensino formal, inútil, adestrador, castrador?
O artigo 27 é daqueles que precisam ser atualizados, como já
mencionamos: entende a cultura como fruição, como produto. Ela é mais: é
criação. Todos somos artistas! E os bens culturais e científicos não são
propriedade exclusiva de pessoas e grupos: são patrimônio coletivo da
humanidade.
34
“Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”? Pois, se o artigo
28 fosse cumprido, as coisas iriam melhor: ali está dito que todos temos direito a
ver os Direitos Humanos "plenamente realizados". E isto virá através do coletivo,
de um reordenamento social e internacional inspirado na Declaração. Novo
ordenamento que exige o compromisso de construção de cada um de nós. O
poeta explica:
Uma parte de mim
É todo mundo.
Outra parte é ninguém:
Fundo sem fundo.
Uma parte de mim
Almoça e janta:
Outra parte
Se espanta.
Traduzir uma parte
Na outra parte,
Que é uma questão
De vida ou morte,
Será arte?
(Ferreira Gullar)
O artigo 29, já de despedida, continua na linha da responsabilidade geral:
lembra que ninguém vivendo em sociedade tem apenas direitos: ressalta que
"todo homem tem deveres para com a comunidade", deve reconhecer os direitos
dos outros e não contrariar "os objetivos e princípios da Nações Unidas".
Finalmente, o artigo 30, que fecha a Declaração, alerta para o fato de que
tudo é interpretável, isto é, há diferentes leituras para um mesmo texto, de acordo
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com os interesses de quem lê e os contextos. Por isso, o documento conclui
afirmando que nenhuma interpretação autoriza “qualquer Estado, grupo ou
pessoa" a agir para destruir os Direitos Humanos e as liberdades ali estabelecidas.
Imagine
Um mundo que respeitasse plena e integralmente a Declaração Universal
dos Direitos Humanos. Um mundo onde os seis bilhões de seres humanos que
vivem hoje no planeta tivessem consciência desses Direitos. Um mundo onde os
Direitos, sempre atualizados, sempre em progressiva reelaboração, norteassem o
cotidiano de pessoas, povos governos. No Reino de Tonga, na Oceania e nos
Estados Unidos da América do Norte. Na República da Quirquísia, na Ásia e no
Reino Unido da Grã-Bretanha. No Sultanato de Brunei, na República Popular da
China, em Botsuana e no Brasil. Seria um mundo melhor para se viver.
No limiar do novo século, cabe acrescentar à antiga Declaração urna nova
afirmação de propósitos, que poderia ser a seguinte:
Queremos construir, desde já, uma sociedade onde as relações
sociais sejam de cooperarão e não de competição; onde a cultura
seja a da solidariedade e não a do individualismo; onde o interesse
público ganhe rosto e supere a onipotência aparente das forras de
mercado; onde a diversidade humana planetária seja respeitada e
se contraponha à uniformizarão consumista; onde haja crescente
comunhão dos seres humanos com a natureza, da qual fazemos
parte, e não uma relação predatória; onde a paz se traduza na
destruição das armas e suas fábricas, desativadas, sejam
substituídas por áreas reflorestadas ou ajardinadas, que abafem
para sempre o pesadelo atômico; onde o outro seja aquele que tem
algo a dizer e não um objeto de manipularão dos mais influentes;
onde o trabalho seja direito de realização pessoal e coletiva, e não
mero emprego, privilégio de poucos; onde a política, graças
informação democrática, esteja capilarizada e a cidadania seja
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horizontal; onde, enfim, o processo de socializarão progressiva
faça recuar a atual hegemonia do privado e do individualismo.
Mas não basta a generosa manifestação. É preciso agir, assumir a palavra,
que é vã se não se traduz em obras. Como dizia Herbert de Souza, o Betinho (ele
de novo!), "não há boa solução que não comece por mim". O desafio é, no dia-a-
dia do trabalho, da escola, da família e da vizinhança, praticar os novos e antigos
Direitos Humanos, redes cobrindo a dimensão política da nossa existência.
Humanizando-nos mais e mais. Inscrevendo-os no coração e na mente dos povos
dos 53 países da África, dos 47 da Ásia, dos 45 da Europa, dos 35 das Américas,
dos 13 da Oceania. Sendo portadores da esperança que se constrói: forjando uma
nova sociedade, sem Estado totalitário e partido único, com governo ativo,
decisivo e, sobretudo, povo se organizando e participando. Sociedade que
combine espaços econômicos coletivos com iniciativas particulares. Onde o poder
público seja regulador, evitando monopólios, mas também seja controlado por
uma esfera pública, fiscalizadora. Sociedade que empurre o Estado a impleentar
políticas para as maiorias e que, assim, vá superando as chagas da miséria, da
exclusão, da perda de sentido da existência. Sociedade de pessoas reais, plurais.
"Gente espelho de estrelas,
reflexo do esplendor.
Se as estrelas são tantas,
só mesmo amor!"
(Caetano Veloso)
Notas I. História Moderna e Contemporânea, Editora Moderna, S. Paulo, 1986.
2. Companhia das Letras, S. Paulo, 1998.
3. Casa Maria Editorial, Rio de Janeiro, 1989.
4. O Personalismo, Moraes Editores, Lisboa, 1970.
5. Revoluções da minha gerarão, Editora Moderna, S. Paulo, 1996.