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Debate O Brincar e a Linguagem Realização Atualidades em Educação De Vygotsky a Morin: Entre Dois Fundamentos da Educação Inclusiva ISSN 0103-7668 INFORMATIVO TÉCNICO CIENTÍFICO DO INES Nº 22 DEZ/2004 Auguste Renoir (1841-1919) Jean, o filho do artista, desenhando, 1901 óleo sobre tela 45,1 x 54,5 cm

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Debate

O Brincar ea Linguagem

Realização

Atualidades em Educação

De Vygotsky a Morin:Entre Dois Fundamentosda Educação Inclusiva

ISSN

0103-7

668

INFORMATIVO

TÉCNICO

CIENTÍFICO

DO INES

Nº 22

DEZ/2004

Auguste Renoir(1841-1919)Jean, o filho do artista,desenhando, 1901óleo sobre tela45,1 x 54,5 cm

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• Os textos deverão vir digitados no programa Word for Windows;• Os artigos deverão ter título e trechos do texto em destaque (olhos);• Formatação: papel tamanho A4, com margem superior e inferior com

4,5 cm; margem direita e esquerda com 3,0 cm;• Cada matéria deve ter no máximo 6 páginas; cada página com 30 linhas;• Corpo do texto: digitação na fonte Times New Roman, tamanho de 11

pontos e entrelinha de corpo 12; justificado; título em negrito, alinhado àesquerda e separado do corpo do texto com 2 espaços;

• Referências bibliográficas, citações e notas: devem ser observadas as normasda ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) em vigor;

• Enfatizamos que as referências bibliográficas devem ser colocadas nofinal do texto e na utilização de notas deve ser tomado, como padrão, ouso do rodapé.

Os interessados em enviar artigos para a revista Espaçodevem seguir o seguinte padrão editorial

Normas para publicação naRevista Espaço

CARACTERIZAÇÃO DAS SEÇÕESDA REVISTA ESPAÇO

Espaço AbertoArtigos de relevância teórica pertinentes àárea da surdez

DebateTema previamente escolhido, a ser discutidopor diversos autores

Atualidades em EducaçãoArtigos de relevância teórica pertinentesà área da Educação

Reflexões sobre a práticaDiscussões e relatos de experiências deprofissionais sobre sua prática

Produção AcadêmicaReferência de dissertação de mestrado e tesesde doutoramento na área da surdez realizadasem instituições nacionais e/ou internacionais

Resenhas de livrosApresentação de resumos de obras

Material técnico-pedagógicoDivulgação de materiais produzidos

Visitando o acervo do INESApresentação de material de relevânciahistórica constante no acervo do INES

Envio de artigos:Os trabalhos submetidos à apreciação devemser acompanhados de carta do autor autori-zando a publicação.Todo texto aprovado passará por revisão daComissão Editorial.Cada texto deverá portar identificação do(s)autor(es) com respectivo(s) endereço(s) físico(s)e, para divulgação, o(s) endereço(s) eletrônico(s).A reprodução de material de outros periódi-cos deverá ser acompanhada de menção dafonte, dependente ainda da autorização doeditor.

Resumo:Todos os artigos submetidos em português ouespanhol deverão ter resumo no idioma origi-nal e em inglês, com um mínimo de 100 pala-vras e no máximo 200 palavras. Os artigossubmetidos em inglês deverão vir acompanha-dos de resumo em português, além do abstractem inglês. Em ambos os casos, deverão cons-tar palavras-chave.

Referências Bibliográficas:Serão baseadas na NBR-6023 da ABNT/2002,ordenadas alfabeticamente pelo sobrenomedo autor. Nas referências bibliográficas commais de três autores, citar o primeiro autorseguido de et al. A exatidão das referênciasbibliográficas é de responsabilidade dosautores.

Comissão Editorial

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INES

Informativo Técnico-Científico Espaço, INES – Rio de Janeiro, n. 22 p. 1, julho/dezembro 2004

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Espaço: informativo técnico-científico do INES.nº 22 (julho-dezembro 2004) - Rio de Janeiro: INES, 2004.v.SemestralISSN 0103/7668

1. Surdos - Educação - Periódicos. I. Instituto Nacional deEducação de Surdos (Brasil). II. Título: Informativo técni-co-científico do INES

E/73

94-0100

CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

SUMÁRIO

CDD-371.92CDU-376.33

Comissão Editorial:Comissão Editorial:Comissão Editorial:Comissão Editorial:Comissão Editorial:Rua das Laranjeiras, 232/3º andarCEP 22240–001 Rio de Janeiro/RJ – BrasilFax: (21) 2285-7990e-mail: [email protected]

Interessados em remeter artigos para publicação,bem como leitores que desejarem enviar suges-tões e/ou considerações sobre os artigos aquipublicados, deverão dirigir suas correspondên-cias para o INES, no endereço abaixo:

2 Editorial

89 Resenhas de Livros

Agenda92

DDDDDissertações e tesesissertações e tesesissertações e tesesissertações e tesesissertações e tesesproduzidas na área daproduzidas na área daproduzidas na área daproduzidas na área daproduzidas na área dasurdezsurdezsurdezsurdezsurdez

86 Produção Acadêmica

91 Material

Técnico-Pedagógico

85 Visitando o acervo

do INES

48La Inclusión desdeLa Inclusión desdeLa Inclusión desdeLa Inclusión desdeLa Inclusión desdeel Juegoel Juegoel Juegoel Juegoel JuegoMaría Regina Öfele

20A Construção de umaA Construção de umaA Construção de umaA Construção de umaA Construção de umaIdentidade Cultural deIdentidade Cultural deIdentidade Cultural deIdentidade Cultural deIdentidade Cultural deSurdos em Parceria comSurdos em Parceria comSurdos em Parceria comSurdos em Parceria comSurdos em Parceria comPais OuvintesPais OuvintesPais OuvintesPais OuvintesPais OuvintesCláudia Bisol

59Reflexões sobre aReflexões sobre aReflexões sobre aReflexões sobre aReflexões sobre aQuebra de ParadigmasQuebra de ParadigmasQuebra de ParadigmasQuebra de ParadigmasQuebra de Paradigmasnas Ciências Humanasnas Ciências Humanasnas Ciências Humanasnas Ciências Humanasnas Ciências Humanas-----SociaisSociaisSociaisSociaisSociais

Leila Dupret

53 Atualidades em

EducaçãoDe Vygotsky a Morin:De Vygotsky a Morin:De Vygotsky a Morin:De Vygotsky a Morin:De Vygotsky a Morin:Entre Dois FundamentosEntre Dois FundamentosEntre Dois FundamentosEntre Dois FundamentosEntre Dois Fundamentosda Educação Inclusivada Educação Inclusivada Educação Inclusivada Educação Inclusivada Educação InclusivaLuiz Antônio Gomes Senna

65 Reflexões sobre a

prática

Proposta de umaProposta de umaProposta de umaProposta de umaProposta de umaFonoaudiologia InseridaFonoaudiologia InseridaFonoaudiologia InseridaFonoaudiologia InseridaFonoaudiologia Inseridano Bilingüismo e Baseadano Bilingüismo e Baseadano Bilingüismo e Baseadano Bilingüismo e Baseadano Bilingüismo e Baseadano Sociointeracionismono Sociointeracionismono Sociointeracionismono Sociointeracionismono Sociointeracionismo

Márcia Goldfeld

73A Dança na Educação dosA Dança na Educação dosA Dança na Educação dosA Dança na Educação dosA Dança na Educação dosSurdos: um caminho para aSurdos: um caminho para aSurdos: um caminho para aSurdos: um caminho para aSurdos: um caminho para ainclusãoinclusãoinclusãoinclusãoinclusão

Tatiane Resende Nunes de Souza

3 Espaço Aberto

Estrangeiros emEstrangeiros emEstrangeiros emEstrangeiros emEstrangeiros emsua Própria Culturasua Própria Culturasua Própria Culturasua Própria Culturasua Própria Cultura

Carlos Eduardo Klimick Pereira

Debate

O Brincar e a LinguagemO Brincar e a LinguagemO Brincar e a LinguagemO Brincar e a LinguagemO Brincar e a LinguagemTisuko Morchida Kishimoto

28

A Formação deA Formação deA Formação deA Formação deA Formação deProfessores, a EducaçãoProfessores, a EducaçãoProfessores, a EducaçãoProfessores, a EducaçãoProfessores, a EducaçãoInclusiva e o Lúdico:Inclusiva e o Lúdico:Inclusiva e o Lúdico:Inclusiva e o Lúdico:Inclusiva e o Lúdico:a construção de novosa construção de novosa construção de novosa construção de novosa construção de novoslaços sociaislaços sociaislaços sociaislaços sociaislaços sociais

Leny Magalhães Mrech

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Informativo Técnico-Científico Espaço, INES – Rio de Janeiro, n. 22 p. 2, julho/dezembro 2004

esta publicação da Espaço podemos dizer que subjaz um fiocondutor tecendo, a cada artigo, ramificações que comportam, na

atualidade, importantes questões também inerentes à educação desurdos. Artigos alojados na seção Espaço Aberto voltam a tratar da idéiade existir uma identidade cultural da pessoa surda e alguns de seusdesdobramentos, idéia esta onde podemos encontrar o apelo e, porque não dizer, um eco da tendência atual de buscarmos um “outromodo de olhar”, a partir do qual potencialidades da pessoa surdasejam a tônica maior, sobretudo no que tange à importância da línguade sinais como algo inerente ao seu desenvolvimento e/ou à emergênciade tais potencialidades. Os artigos apresentados na seção Debate trazemtambém em seus bojos a necessidade imperiosa de um “outro olhar”,agora rumo ao jogo, ao brincar e ao lúdico, enfatizando “novas”concepções sobre interações entre jogo, infância e educação, conformenos aponta a Dra. Tisuko Morchida Kishimoto. Já o caráter transgressordo lúdico, o qual poderá minimizar, de maneira ampla, as diferenças, éenfatizado pela Dra. Maria Regina Öfele, que em seu artigo se detémnas imensas possibilidades do jogo enquanto instrumento de inclusãosocial. Ainda nesse mesmo sentido, o texto da Dra. Leny MagalhãesMrech focaliza a relação entre a formação de professores, a educaçãoinclusiva e o lúdico. Na seção Atualidades em Educação, e ainda naesteira daquele mesmo “outro olhar”, o autor Luiz Antonio Gomes Sennae a autora Dra. Leila Dupret discutem em seus artigos a transposiçãodos dogmas que a cultura científica definira como sendo “verdadesabsolutas” e que, ao longo dos tempos, vieram balizando nossas práticaseducativas. Ambos os textos sugerem uma construção do conhecimentoacadêmico-científico que possibilite o diálogo com as diferençasculturais. Seguindo idêntico rastro, artigos alocados na seção ReflexõesSobre a Prática retomam a questão do lúdico, tanto no espaço terapêuticoquanto no escolar, gravitando essencialmente em torno de um “repensar”atuações fonoaudiológicas e educativas, visando acentuar possibilidadesde ambas as práxis propiciarem a emergência de potencialidades dapessoa surda. Por seu turno, na seção Visitando o Acervo do INES, emque nosso curso de LIBRAS constitui o cerne, há que se destacar queeste curso se configura como acervo nascente que porta em si mesmo aesperança de uma maior abrangência na visibilidade de especificidadesda pessoa surda. Ou seja, um curso que se constitui por uma(com)vivência pautada na compreensão da inelutável diversidadesociocultural que enforma toda e qualquer sociedade humana. Comtudo isto, desejamos então a vocês – leitores e leitoras – que bemaproveitem a presente publicação da Espaço, na qual, ao invés deconclusões definitivas, acreditamos terem sido descortinadas, mais umavez, aberturas para novas e sempre férteis reflexões pertinentes à áreaa que se destina.

ISSN 0103-7668

GOVERNO DO BRASILPRESIDENTE DA REPÚBLICA

Luiz Inácio Lula da Silva

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃOTarso Genro

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO ESPECIALCláudia Pereira Dutra

INSTITUTO NACIONAL DE EDUCAÇÃODE SURDOS

Stny Basilio Fernandes dos Santos

DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTOHUMANO, CIENTÍFICO E

TECNOLÓGICONadia Maria Postigo

ESPAÇO é o informativo técnico-científico deEducação Especial para profissionais da área

da surdez. Os trabalhos publicados noInformativo técnico-científico ESPAÇO podemser reproduzidos desde que citados o autor e

a fonte. Os trabalhos assinados são deresponsabilidade exclusiva

dos autores.

DIVISÃO DE ESTUDOS E PESQUISASLeila de Campos Dantas Maciel

EDIÇÃOInstituto Nacional de Educação

de Surdos – INESRio de Janeiro – Brasil

COMISSÃO EDITORIALProfª Ms. Carmen B. Capitoni - INES

Profª Drª Elizabeth Macedo - UERJMestrando Marcelo M. Costa Lima - INES

Profª Especialista Marilda P. de Oliveira - INESProfª Ms. Marta Ciccone - INES

Profª Drª Mônica Pereira dos Santos - UFRJ

COMISSÃO EXECUTIVACarmen B. Capitoni - INES

Marcelo M. Costa Lima - INESMarilda P. de Oliveira - INES

Marta Ciccone - INES

PARECERISTASDr. Eduardo Jorge C. da Silva - IFF

Profª Drª Iduina Chaves - UFFProfª Drª M. Cristina C. Pereira Yoshioka - PUCSP

PROGRAMAÇÃO VISUALI Graficci

IMPRESSÃOGráfica Rio Branco

TIRAGEM5.000 exemplares

Pedidos de remessa deverãoser encaminhados para:

Instituto Nacional deInstituto Nacional deInstituto Nacional deInstituto Nacional deInstituto Nacional deEducação de SurdosEducação de SurdosEducação de SurdosEducação de SurdosEducação de Surdos

Rua das Laranjeiras, nº 232/3º andarRio de Janeiro – RJ – Brasil CEP: 22240-001

Telefax: (21) 2285-7284/2285-7546 r. 111

E-mail: [email protected]@ines.org.br

NN

EDITORIAL ○ ○ ○ ○ ○ ○

Comissão editorial

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Informativo Técnico-Científico Espaço, INES – Rio de Janeiro, n. 22 p. 3, julho/dezembro 2004

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ESPAÇO ABERTO

Resumo

Em função do meu interessede buscar em obras literárias umaponte entre surdos e ouvintes,também através de histórias inte-rativas (livro-jogo e RPG) igual-mente ambientadas em produ-ções literárias, proponho um es-tudo sobre estrangeiros em suaprópria cultura baseado em umaobra escolhida: Capitães da Areia,de Jorge Amado. Os capitães daareia são tratados nessa obra como“crianças que são e não são crian-ças ao mesmo tempo”, que per-tencem e não pertencem à socie-dade. Vivem num ambiente mar-ginal misto, entre o infantil e oadulto. Desse ponto de vista, ascategorias de “neo-marrano” e“pós-marrano” criadas pelo pen-sador francês Edgar Morin sãoigualmente trazidas para este es-tudo, por também se referirem a“estrangeiros que não são estran-geiros”.

Palavras-chave: surdez; bilin-güismo; cultura; estrangeiro;“neo-marrano”.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

I intend to stablish arelationship with my proposal tosearch a bridge through writtingbetween deaf and non-deafpeople through interactive stories(RPG) that have literary works assetting. Therefore I propose a studyof foreigner within his own culturein one of the chosen literary works:Capitães da Areia, of Jorge Ama-do. The “capitães da areia”(captains of the sand) are treatedin the book as “childeren who areand are not children at the sametime”, that belong and don’tbelong to society. They live in amixed marginal environmentbetween the child and the adult.The categories of “neo-marrano”and “post-marrano” created by the

French philosopher Edgar Morinare then used for this study, forthey also refer to “foreigners thatare not foreigners”.

Key wordsKey wordsKey wordsKey wordsKey words: deaf; bilinguism;culture; foreign; “neo-marrano”.

1. Uma breve introdução

Vi ontem um bichoNa imundície do pátioCatando comida entre os detritosQuando achava alguma coisa,Não examinava nem cheirava:Engolia com voracidade.O bicho não era um cão,Não era um gato,Não era um rato.O bicho, meu Deus,era um homem.

(O BICHO: Manuel Bandeira –Estrela da Vida Inteira)

Estrangeirosem sua própria

culturaCarlos Eduardo Klimick Pereira*Carlos Eduardo Klimick Pereira*Carlos Eduardo Klimick Pereira*Carlos Eduardo Klimick Pereira*Carlos Eduardo Klimick Pereira*

*Mestre em Design/PUC-Rio. Doutorando em Literatura Brasileira/[email protected] realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico – CNPq – Brasil.Material recebido e selecionado em setembro de 2004.

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Informativo Técnico-Científico Espaço, INES – Rio de Janeiro, n. 22 p. 4, julho/dezembro 2004

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○

ESPAÇO ABERTO

O surdo pode ser visto comoum estrangeiro dentro de sua pró-pria cultura, por não ter comoprimeira língua o português oral,predominante em nosso país,sem mesmo ter acesso direto a elepara o aprender com facilidadecomo segunda língua. Nessa área,e dentro da atual visão bilíngüe,autores como Ronice M. Qua-dros, Eulália Fernandes, LorenaKoslowski, Carlos Skliar e MauraC. Lopes defendem a posição deque a uma língua de sinais dosnossos surdos corresponde umacultura e, da mesma forma, creioque podemos falar de uma cultu-ra carioca dentro da cultura bra-sileira. Em comunidades surdas,é freqüente a defesa desse pontocomo forma de identidade grupal.

Interessado em encontrar umaponte de cunho literário entre sur-dos e ouvintes, inclusive através dehistórias interativas (livro-jogo eRPG), trago então, para o presenteartigo, a idéia de existirem estran-geiros em sua própria cultura, idéia

esta presente na obra Capitães daAreia, de Jorge Amado.

Nessa obra, os capitães da areiasão abordados como “crianças quesão e não são crianças, ao mesmotempo” em que pertencem e nãopertencem à sociedade. Personi-ficam sujeitos que amam a cidadede Salvador, têm inveja de crian-ças “normais”, anseiam por cari-nho e por serem aceitos, masnutrem uma raiva, um ressenti-mento de uma sociedade que ospersegue. Vivem num ambientemarginal misto, entre o infantil eo adulto.

2. Língua surda, cultura surda.

Estrangeiro?

Minha pesquisa de mestradoem Design Didático se constituiuna criação de histórias interativaspara auxiliar crianças surdas a ad-quirir linguagem: língua brasilei-ra de sinais (LIBRAS); língua por-tuguesa escrita e oral. O ambien-te da pesquisa foi o Instituto Na-

cional de Educação de Surdos(INES), no Rio de Janeiro, ondeme deparei com informações so-bre correntes ligadas à educaçãode surdos.

O ensino de surdos tem his-toricamente dois grandes pólos:o oralismo e o gestualismo. Nooralismo restrito, a linguagem oralé a única aceita, sendo conside-rada exclusiva. Esta corrente vê osurdo como sendo uma pessoaigual a qualquer outra, apenascom uma deficiência física: asurdez. O objetivo é fazer comque adquira a linguagem oral omais rapidamente possível, atra-vés de exercícios e da leitura la-bial, tornando-se um membro ati-vo da sociedade ouvinte. Dentrodesta filosofia, a comunicação porlíngua de sinais é proibida naeducação de surdos.

A corrente gestualista tem umavisão oposta: considera que o uni-verso dos surdos é eminentemen-te visual, sendo, portanto, a lin-guagem gestual a sua natural. Estacorrente, que raramente é prati-cada em sua versão radical, pro-põe disponibilizar ao surdo, des-de a mais tenra infância, uma for-ma de comunicação de modali-dade viso-manual que lhe é facil-mente acessível.

Tal escolha se justifica pelanecessidade de colocar a criança,logo nos primeiros anos de vida,dentro de um contexto comuni-cativo rico e estimulante. Consi-dera-se que, desde cedo, é preci-so disponibilizar para a criançasurda um meio de comunicaçãoeficaz para que ela possa ter umdesenvolvimento igual ao dequalquer criança. Esta corrente vêa surdez como diferença, e nãocomo deficiência.

O surdo pode ser visto como um estrangeirodentro de sua própria cultura, por não ter

como primeira língua o português oral,predominante em nosso país, sem mesmo

ter acesso direto a ele para o aprender comfacilidade como segunda língua.

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Informativo Técnico-Científico Espaço, INES – Rio de Janeiro, n. 22 p. 5, julho/dezembro 2004

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ESPAÇO ABERTO

É importante ressaltar que nãohá uma língua de sinais padrãointernacional e que, além disso,qualquer uma é independente daslínguas orais. Por exemplo: a LI-BRAS (Língua Brasileira de Sinais)é diferente da língua de sinais por-tuguesa, a língua de sinais ameri-cana é diferente da inglesa.

No ano de 1880 se realizou oCongresso Mundial de Surdos, emMilão, o qual reuniu educadoresde surdos da Europa e dos EUA.O objetivo do Congresso era esta-belecer critérios internacionais,científicos, para a educação desurdos. Neste Congresso, no qualos adultos surdos não tiveram voz,se definiu a corrente que, pordécadas, seria padrão para a edu-cação de surdos: a oralista. A lin-guagem de sinais foi proibida eestigmatizada, e o domínio da lín-gua oral pelo surdo passou a seruma condição sine qua non parasua aceitação dentro de uma soci-edade majoritariamente ouvinte.

Durante quase 100 anos exis-tiu então o chamado “impériooralista”, e foi somente em 1971,no Congresso Mundial de Sur-dos, em Paris, que as línguas desinais passaram a ser valorizadas.

No ano de 1975, por ocasião doCongresso seguinte, realizado emWashington, já era evidente aconscientização de que quase umséculo de oralismo dominantenão havia servido como soluçãopara a educação dos surdos. Aconstatação de que eram sub-edu-cados com o enfoque oralistapuro e de que a aquisição da lín-gua oral deixava muito a desejar,além da realidade da comunica-ção gestual nunca ter deixado deexistir entre os surdos, tudo istofazia com que uma nova época seiniciasse dentro do processoeducativo, na área.

Os trabalhos de DanielleBouvet, em Paris, publicados em1981, e as pesquisas realizadas naSuécia e Dinamarca, na mesmaépoca, introduziram o enfoquebilíngüe na educação do indiví-duo surdo.1

Oliver Sacks, que em seu livroVendo Vozes traz um histórico daeducação de surdos, descreve suasprincipais correntes e faz uma crí-tica clara aos quase cem anos deoralismo:

Nada disso teria importância seo oralismo funcionasse. Mas o

efeito, infelizmente, foi contrá-rio ao desejado – pagou-se umpreço intolerável pela aqui-sição da fala. (...) O oralismo ea supressão da língua de sinaisacarretaram uma deterioraçãomarcante no aproveitamentoeducacional das crianças surdase na instrução dos surdos emgeral. (SACKS, 1998: 41)

Sacks afirma que nessa situa-ção as crianças surdas sofrem doisproblemas. Primeiro, são menosexpostas ao que chama de apren-dizado “incidental”, que se dáfora da escola – por exemplo,conversas entre outras pessoas navida cotidiana, televisão, cinemaetc. Segundo, gasta-se tanto tem-po ensinando-as a falar, com anosde aulas individuais intensivas,que sobra pouco para lhes trans-mitir informações, cultura, habi-lidades complexas etc. Conse-qüentemente, essas crianças aca-bam tendo um nível de aprendi-zagem acadêmica muito baixocomparado ao de crianças ouvin-tes com idade equivalente. Aoconcluírem o Ensino Médio, porexemplo, surdos norte-america-nos de dezoito anos teriam um

1Adaptado de Koslowski (2000). Lorena Koslowksi é Doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade de Sorbonne, França; Professora Titular da PUC/PR.

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Informativo Técnico-Científico Espaço, INES – Rio de Janeiro, n. 22 p. 6, julho/dezembro 2004

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ESPAÇO ABERTO

nível médio de leitura correspon-dente ao de um aluno do quartoano do Ensino Fundamental.

A proposta de educação bilín-güe parte do reconhecimento deque o surdo está exposto a duaslínguas na sociedade em que vive:a língua oral dos ouvintes e a lín-gua de sinais dos surdos (no casodo Brasil, o Português e a LI-BRAS2). Dentro desta realidade, sepropõe que a pessoa surda apren-da primeiro a LIBRAS e depois alíngua escrita e oral dos ouvin-tes. Ficam aqui pressupostas duaspremissas: uma, de que a Línguade Sinais usada pela comunida-de surda é uma língua verdadei-ra, com itens lexicais, morfologia,sintaxe e semântica; outra, de quea criança surda exposta à línguade sinais a adquire da mesma for-ma natural e espontânea com queuma criança ouvinte adquire a lín-gua oral (KOSLOWSKI, 2000).

Sabemos que a língua de si-nais foi por muito tempo questi-onada pelos oralistas, que a con-sideravam uma pantomima, capazde apenas passar alguns significa-dos e sem ser uma língua verda-deira. Hoje, porém, há os queapontam até mesmo uma respos-

ta neurológica para o fato de seususuários surdos serem falantescompetentes. Estudos analisadospor Sacks (1998) e Quadros (1997)demonstram que, quando sofremlesões no hemisfério direito docérebro, pessoas surdas perdemnoções espaciais, como a pers-pectiva, por vezes negligencian-do todo o lado esquerdo do es-paço ao seu redor, mas não per-dem a capacidade de se comuni-car na língua de sinais. Já quandoas lesões sofridas são no hemisfé-rio esquerdo do cérebro, elasapresentam uma incapacidade deusar a língua de sinais similar àda afasia da fala encontrada emouvintes com lesões semelhantes.Essas pessoas surdas ainda conse-guem usar capacidades visual-es-paciais não-lingüísticas, comogestos cotidianos que todos usa-mos (encolher os ombros, acenarem despedida etc.), mas a línguade sinais está perdida para elas, oque demonstra a separação entreessas duas formas de expressão.Sacks conclui, portanto, que a lín-gua de sinais nos surdos é pro-cessada no mesmo hemisférioque a língua oral nos ouvintes.

Quadros (1997) aponta tam-

bém para a convencionalidade daslínguas de sinais, ao descrevercomo o possível aspecto icônicodos sinais originais se perde como tempo. Dá como exemplos ossinais em LIBRAS para PAI e MÃE,que são feitos com a junção dedois sinais: “homem” e “bênção”para o sinal de PAI, e “mulher” e“bênção” para o sinal de MÃE. Parasurdos adultos, atualmente, épossível perceber a motivaçãoicônica destes sinais no antigohábito das crianças pedirem bên-ção aos pais lhes beijando asmãos, enquanto para as criançasurbanas de hoje em dia esta situ-ação normalmente não é obser-vada em seu contexto sociolin-güístico. Portanto, os sinais sãoadquiridos de forma convencio-nal, sem associação com os fatosque lhes deram origem.

Por seu turno, Skliar (1997)cita inúmeras pesquisas queavalizam o status das línguas desinais como línguas naturais es-truturalmente diferentes das lín-guas orais.3 Conforme faz ver,

2 LIBRAS: Língua Brasileira de Sinais. Linguagem dos surdos em que cada sinal é composto por gesto/s realizado/s com uma ou as duas mãos e aos quais,

na maioria das vezes, correspondem palavras (como “casa”, “homem”, “entrar” etc).3Durante meu mestrado, entrevistei o professor Marcos V. P., que perdeu a audição quando criança e leciona LIBRAS. Esta condição, na opinião de

fonoaudiólogas consultadas, o tornava um excelente intérprete entre deficientes auditivos e ouvintes, porque ele conhecia os dois mundos. Marcos me disse

que o universo dos surdos é eminentemente visual e espacial: ao se contar uma história por gestos, se deve atentar para isso. Gestos buscam reproduzir

emoções, figuras e movimentos, como por exemplo a palavra “andar”, que, em LIBRAS, ao se referir a um homem andando, é diferente de “andar” para

um cão, pois o homem anda sobre duas pernas e o cão sobre quatro. Além disto, se ao começar sua história você representa algo à sua esquerda, uma

casa, por exemplo, ao continuar você não pode se confundir e colocar este algo à sua direita.

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“(...) a língua oral e a Línguade Sinais constituem dois ca-nais diferentes, mas igualmen-te eficientes para a transmis-são e a recepção da capacida-de da linguagem; são, de fato,mecanismos semióticos equi-valentes. Deste modo, a lin-guagem deve ser definida in-dependentemente da modali-dade na qual se expressa ou érecebida. (p. 127)

Skliar (1997) aproveita pararessaltar que a proposta dobilingüismo não é a de isolar acriança surda numa comunidadede surdos, em que só se use a lín-gua de sinais; a língua do ouvin-te, pelo menos em sua versão es-crita, é igualmente importante.Apenas, o autor considera neces-sário primeiro a criança adquirirfluência na língua de sinais (a qualinclusive servirá de ponte para aleitura e a escrita), para depoisaprender a língua dos ouvintes.

Lopes (1997) também adotauma postura bilíngüe em seu tra-balho, considerando o uso da lín-gua de sinais como elementomediador vital entre o surdo e omeio social em que vive, lhe per-mitindo desenvolver capacidadesde interpretação e estruturas men-tais mais elaboradas. Em sua de-fesa do bilingüismo, ressalta a li-gação entre o meio social e ascondições de produção da lin-

guagem, destacando as dificulda-des de uma criança surda em umambiente ouvinte em que é for-çada a adquirir o português oral,sem nem ao menos entender di-reito o que está acontecendo. ALIBRAS seria importante para es-tabelecer rapidamente um canalcom a criança surda, para que elapossa se comunicar, questionar eser questionada, se desenvolven-do de forma sadia. Só depois, epara se integrar melhor com omundo ouvinte, uma necessáriaaprendizagem do português orallhe pode ser franqueada atravésda LIBRAS. Lopes observa que seessa criança aprende palavras emportuguês em um consultório,dificilmente passará do significa-do de dicionário destas, apren-dendo uma língua morta. Para aautora, é preferível que aprendaa elaborar frases em LIBRAS doque repetir palavras desconexasem português: “Dominar uma lín-gua é saber jogar com ela, pro-duzindo conhecimentos novos”(p. 101).

Uma outra questão trabalhadapelo bilingüismo é a da “culturasurda”. Existe uma corrente bilín-güe que assume uma ligação dire-ta entre linguagem e cultura, ouseja, a uma linguagem de surdoscorresponde uma cultura, como édefendido por Fernandes (2002):

Uma proposta de educaçãocom bilingüismo exige aceitar-mos, em princípio, que o sur-do é portador de característi-cas culturais próprias. A meuver, aceitarmos esta realidadesem preconceitos é o mesmoque aceitarmos que um baianotem traços culturais diferentesdos de um carioca e este, di-ferentes de um catarinense,por exemplo, sem deixarmos,todos, de sermos brasileiros,ou ainda aceitarmos que japo-neses, italianos e alemães, porexemplo, compartilhem traçosculturais pela proximidade ounecessidade social, como ve-mos no Brasil em relação aosbairros ou colônias de imi-grantes. Creio que esta situa-ção nos aproxima da questãodas características culturais dacomunidade do deficienteauditivo. Não se trata de bus-car semelhanças com a condi-ção ou status de estrangeiroao surdo e ao ouvinte, mas depercebermos o esforço decompreensão, participação etransformação das expressõesculturais presentes nas duascomunidades. Afirmamos essanossa posição, pois, por mui-to tempo, se negou que o sur-

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do fosse portador de caracte-rísticas culturais próprias,como se isso fosse excluí-lo denossa sociedade. Pelo contrá-rio, estas características refle-tem a história e a realidadedessa comunidade. O respeitoàs diferenças é o primeiro pas-so do processo do respeito àeducação com bilingüismo.

Realmente, a questão da cul-tura surda tem crescido bastante,havendo inclusive um movimen-to de valorização desta dentro dacomunidade surda. Os surdosmais radicais chegam a ser contraa oralização, exigindo versõeslegendadas em LIBRAS para todosos vídeos, visando valorizar sualíngua materna, em oposição àlíngua oral, que seria a línguamaterna dos ouvintes. Ou seja, há,felizmente, diálogo, e mesmo taisradicais aceitam o aprendizado doportuguês em sua versão escrita,visto que até os ouvintes têm queser alfabetizados.

Dentre outros estudiosos doassunto, da sua parte Quadros(1997: 32) defende a idéia de queuma cultura surda se origina naprópria situação sociolingüísticaem que se inserem surdos, e afir-ma: “o bilingüismo para surdosdeve estar baseado no respeitopela diferença, na aceitação dacultura e língua da comunidade

surda e na abertura de espaçospara surdos adultos.”

Já Eulália Fernandes se recusaa trabalhar com o conceito de “es-trangeiro” no que se refere aossurdos, postulando que a atribui-ção de características culturaispróprias a essa comunidade nãoa exclui da sociedade brasileira.Por sinal, a busca por uma iden-tidade surda dentro deste gruposocial minoritário é perfeitamen-te compreensível dentro dopensamento de Hans UlrichGumbrecht (1999: 121), que asso-cia o uso do conceito de identi-dade à nostalgia ou ao ressenti-mento: “é interessante e impor-tante que o século XIX confirmaplenamente que a preocupaçãocom a produção de identidade éuma coisa dos coletivismos repri-midos.”

Da minha parte, vejo aqui apossibilidade de trazer à baila oconceito de “estrangeiro dentrode sua própria cultura”. A língua

é um importante fator de defini-ção identitária, e penso que nãoter como primeira língua o por-tuguês oral constitui uma diferen-ça do surdo em relação aos de-mais brasileiros que não pode serignorada. Apagar essa diferençaparece ser exatamente um dospilares do oralismo, conformecolocado por Quadros (1997: 23):

Aqui no Brasil é muito comumpessoas surdas casarem comoutras pessoas surdas. Normal-mente, as razões levantadaspelos casais surdos é o fato deambos pertencerem à mesmacomunidade, além da questãode usarem uma mesma língua.O relato de pessoas surdas quecasaram com pessoas não-sur-das é igualmente interessante.Com muita freqüência, essaspessoas já estão divorciadas ecriticam a relação com pesso-as não-surdas por não havercomunicação e tolerância do

... a questão da cultura surda tem crescidobastante, havendo inclusive um movimentode valorização desta dentro da comunidade

surda. Os surdos mais radicais chegam aser contra a oralização, exigindo versões

legendadas em LIBRAS para todos osvídeos, visando valorizar sua língua

materna, em oposição à língua oral, queseria a língua materna dos ouvintes.

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parceiro não-surdo nas parti-cipações sociais que envolvempessoas surdas. A propostaoralista simplesmente descon-sidera essas questões relacio-nadas à cultura e sociedadesurda.

Isto posto, sobre a questão deexistirem estrangeiros na própriacultura me parece então cabívelcolocar também em discussão acategoria de neo-marrano cunha-da por Edgar Morin em relação àcomunidade judaica, que tambémtraz características culturais própri-as dentro de culturas nacionais.

Edgar Morin, filósofo francêsde origem judaica, coloca quecom Israel se restabeleceu a tríadepovo-nação-religião. Aos olhos detodos (judeus e não-judeus), ojudeu se define por adesão à re-ligião e a Israel, e os dirigentesde comunidades judaicas buscamenvolver qualquer identidade ju-daica nesta tríade, o que cria umproblema para judeus que nãoquerem se definir dessa forma.Conforme faz ver o autor:

Há, a partir de então, umabipolaridade no campo cober-to pela palavra judeu. Em umpólo, esta palavra é o substan-tivo que define seu ser porpertencer ao povo e à religiãoda Bíblia, e por sua relaçãoumbilical com o Estado-naçãode Israel. No outro pólo, apalavra é um adjetivo paradefinir uma das qualidades,um dos traços de identidade.Entre os dois pólos, há todauma gama de posições inter-mediárias. (MORIN, 2002: 140)

Pois bem, Morin se posicionacomo secularizado e crítico emrelação ao Estado de Israel, sedefinindo então como “neo-marrano”: aquele que traz em simúltiplas comunidades e umadupla diferença. No caso, ele nãose identifica com a tríade “religiãomosaica-povo judeu-Estado deIsrael”, pauta suas bases filosófi-cas na tradição européia ociden-tal e abraça a filosofia democráti-ca ateniense em vez das Tábuasda Lei, sem, contudo, sentir-seplenamente integrado, enraiza-do, na cultura francesa. Diz Morin(2002: 111/119): “eis, portanto,minha identidade nebulosa: eraum judeu não-judeu e um não-

judeu judeu”, e segue observan-do que os judeus que estão nessasua situação são híbridos, mesti-ços sem nome que não são nemmesmo reconhecidos como tais,“trazendo em si uma dupla iden-tidade dilacerante e eventualmen-te criadora.” E foi em relação aeste grupo que o autor cunhou otermo “neo-marrano”.4

Entendo, então, que podemosexpandir a categoria de “neo-marrano” para outros grupos quetambém portam características dedupla diferença e integram múl-tiplas comunidades, particular-mente quando, oprimidos, bus-cam escapar de uma identidadeque lhes tenta ser imposta. Aorelatar sua experiência na resis-tência francesa durante a II Guer-ra Mundial, o próprio Morin(2002: 143) coloca que não é ne-cessário ser descendente dos mar-ranos para assumir uma duplaidentidade e seu pensamento trazum claro posicionamento ao ladodos vencidos e oprimidos:

Assim, rompo com o povo elei-to, mas continuo no povo mal-dito. A condição imposta pelogentio ao judeu é para mimuma experiência irredutível.(...) E sinto que um quase-ins-tinto me empurra em direçãoao humilhado, ao índio, aonegro, ao palestino.

4“Os marranos são os judeus espanhóis convertidos que conservaram por mais ou menos tempo sua identidade judáica, no interior de sua identidade

espanhola. Mas, o termo marrano conota uma conversão pelo medo: “Designei-me “neo-marrano” e acho que os judeus secularizados são de fato neo-

marranos” (MORIN, 2002: 136).

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Agora, observemos a palavra“surdo” pelo seu aspecto de ad-jetivo. Tomemos essa palavracomo um traço que pode tantosignificar “deficiência” como “di-ferença”, e pertencer tanto à iden-tidade social quanto à pessoal5

(GUMBRECHT, 1999), e lhe acres-centemos a dupla identidade sur-do-e-brasileiro, marcada estaidentidade também por uma pri-meira língua, a LIBRAS, estrutu-ralmente diferente da primeiralíngua dos demais brasileiros.Essa constelação de fatos não po-derá fazer com que o nosso sur-do se sinta como um estrangeirono Brasil? Fora da comunidade desurdos, ele freqüentemente nãoconsegue se comunicar com os“ouvintes”, a menos que aprendaa “ler lábios” e falar a língua de-les, os quais, na grande maioriadas vezes, o vêem como “defici-ente físico”, alguém que usa aque-la “estranha língua de gestos” ecom quem só conseguem conver-sar por escrito. Programas de te-levisão lhes são de difícil acom-panhamento, telefones comunslhes são inúteis, só os “telefonespara surdos”, embora traços cul-turais comuns aos demais brasi-leiros estejam presentes em suaprópria língua, como vimos maisacima, por exemplo, nos sinais emLIBRAS para PAI e MÃE.

Em outras palavras, pensoque, neste entre-lugar de umacultura surda em processo deauto-definição e a cultura brasi-leira da qual faz parte, o surdo-brasileiro que resiste à identida-de de “deficiente físico” talvezpossa ser visto como um neo-marrano: marcado por uma du-pla identidade6, mas podendopertencer a várias comunidadesnão somente pela oralizaçãocomo também pelo portuguêsescrito, que é comum a surdos eouvintes.

Entretanto, poderiam me per-guntar: como trabalhar esta cate-goria de um estrangeiro em suaprópria cultura no nosso país?Clifford Geertz (1978) afirma que“o homem é um animal amarra-do a teias de significados que elemesmo teceu, e assumo a culturacomo sendo essas teias e a suaanálise; portanto, não como umaciência experimental em busca deleis, mas como uma ciênciainterpretativa à procura de signi-ficado.” Um possível caminho,então, é procurar idéias na litera-tura brasileira, buscando gruposde brasileiros que também foramtratados como estranhos, estran-geiros em seu próprio país, opri-

midos, resistindo a uma identida-de que lhes era imposta. A litera-tura nacional faz parte dopatrimônio cultural de brasileirossurdos e ouvintes, expressa na lín-gua que lhes é comum, o portu-guês escrito, e Roland Barthes(1977: 18) nos incentiva em nos-sa busca ao dizer:

A literatura assume muitos sa-beres. Num romance comoRobinson Crusoé, há um saberhistórico, geográfico, social(colonial), técnico, botânico,antropológico (Robinson passada natureza à cultura). Se, pornão sei que excesso de socia-lismo ou de barbárie, todas asnossas disciplinas devessemser expulsas do ensino, excetouma, é a disciplina literária quedeveria ser salva, pois todas asciências estão presentes nomonumento literário. É nessesentido que se pode dizer quea literatura, quaisquer que se-jam as escolas em nome dasquais ela se declara, é absolu-tamente, categoricamente re-alista: ela é a realidade, isto é,o próprio fulgor do real.

5 “Em resumo: identidade social é uma descrição, identidade pessoal é uma narrativa” (GUMBRECHT, 1999:119).6 “A exposição de crianças surdas à cultura surda transmite a idéia de que a surdez é uma diferença, e não uma deficiência” (KOSLOWSKI, 2000: 51).

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3. Capitães da Areia,clandestinos do asfalto

Na obra Capitães da Areia, deJorge Amado, publicada original-mente em 1937, somos apresen-tados a um grupo de meninosque vivem nas ruas de Salvadorpraticando roubos, golpes e fur-tos para sobreviver, e que, comotêm seu refúgio no areal do cais,são chamados de Capitães daAreia. Ao longo do livro, são pordiversas vezes qualificados comocrianças estranhas, crianças quesão e não são crianças, ao mesmotempo em que são e não são ho-mens. A sociedade os rejeita, ten-tando lhes impor identidadescomo de “ladrões” ou de “crian-ças normais” através de uma soci-alização forçada. Apesar de ama-rem a cidade, são estigmatizados7,tendo sua identidade de criançasrejeitada por não se adequaremao padrão de crianças comuns, ecarregam então um ressentimen-to em relação a uma sociedadeque vêem como indiferente, no

melhor dos casos, ou, mais habi-tualmente, opressora.

Tal dupla identidade dessascrianças é apresentada ao longoda obra através de diversos recur-sos, como narração do autor, pen-samentos dos personagens, diá-logos entre personagens e maté-rias em jornais fictícios.

O livro abre com a simulaçãode uma série de notícias e decla-rações no “Jornal da Tarde” so-bre os Capitães da Areia classifi-cados como “meninos assaltantese ladrões que infestam nossa urbe”(AMADO, 2002: 3), crianças que,devido ao desprezo dos pais porsua educação, se entregaram auma vida criminosa, conclamandouma ação do Estado para as cap-turar e socializar através dos ins-titutos de reforma. As professorase pesquisadoras Irene e IrmaRizzini observam que esta era umaprática comum na Era Vargas,amparada em uma política deinternação dos menores onde “in-tervir junto à infância tornou-seuma questão de defesa nacional”8

(RIZZINI e RIZZINI, 2004:33).De fato, o modelo policial de

apreensão e identificação de me-

nores foi consolidado e legitima-do na ditadura Vargas e, em 1937,surge a delegacia de menores noDistrito Federal. Resultado de umainiciativa do “famoso” chefe depolícia Filinto Müller e do juiz demenores Sabóia Lima, cabia a umadas polícias mais repressoras queo País já conheceu apreender osmenores nas ruas, investigar suascondições morais e materiais e asde seus responsáveis, e os abrigaraté que o Juízo indicasse o localdefinitivo para internação (RIZZINIe RIZZINI, 2004: 66).

Em dado ponto, o narradorapresenta os Capitães da Areiacomo crianças estranhas, pobrese oprimidas9, mas que ainda as-sim amam sua cidade, mesmo aconhecendo bem: “Vestidos defarrapos, sujos, semi-esfomeados,agressivos, soltando palavrões efumando pontas de cigarro,eram, em verdade, os donos dacidade, os que a conheciam to-talmente, os que totalmente aamavam, os seus poetas” (AMADO,2002: 21)10.

Esta identidade dos Capitãesda Areia como crianças “diferen-tes”, “crianças que são homens”,

7 “Os estigmatizados seriam aqueles que têm pelo menos um componente de sua identidade que não é aceitável por sua sociedade” (GUMBRECHT,

1999:123).8Trago esta referência apenas para realçar a representação dos meus “estrangeiros em sua terra” na cultura contemporânea.9“Estranhas coisas entraram para o trapiche. Não mais estranhas, porém, que aqueles meninos, moleques de todas as cores e de idades as mais variadas,

desde os 9 aos 16 anos, que à noite se estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte dormiam, indiferentes ao vento que circundava o casarão

uivando...” (AMADO, 2002: 20).10Aqui, o poeta poderia dizer: o bicho, meu Deus, era uma criança.

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também aparece nos pensamen-tos do personagem “Padre JoséPedro”, um personagem bom ehumilde, de muita fé e poucoestudo, que busca ajudar os me-ninos como pode, sem ter oapoio da Igreja e do Estado:

Fazia concessões, sim, fazia.Senão, como tratar com os Ca-pitães da Areia? Não eram cri-anças iguais às outras... Sabi-am tudo, até os segredos dosexo. Eram como homens, sebem fossem crianças... Não erapossível tratá-los como aos me-ninos que vão ao colégio dosjesuítas fazer a primeira comu-nhão. Aqueles têm mãe, pai,irmãs, padres confessores eroupas e comida, têm tudo...(AMADO, 2002: 146)

Proponho, pois, que o concei-to de neo-marrano, inauguradopor Morin, pode ser aplicado àsituação dos Capitães da Areia,meninos-homens, crianças quenão são crianças, homens que nãosão homens, oprimidos por umasociedade que lhes impõe a iden-tidade social de “ladrões”, bus-cando os reformar à força paraque possam assumir a identidadesocial por ela definida como “cri-ança”, dentro de um modelo ne-cessário que as transforme em“homens de bem”, como é colo-cado pela personagem do Dire-tor de Reformatório de Menores,ao responder no jornal à queixa

da mãe de um dos menores quelá esteve: “Elas os criam na rua,na pândega, e como eles aqui sãosubmetidos a uma vida exemplar,elas são as primeiras a reclamar,quando deviam beijar as mãosdaqueles que estão fazendo dosseus filhos homens de bem” (AMA-DO, 2002: 13). Em seus pensa-mentos, “Pedro Bala”, o líder dogrupo, traduz bem a dupla iden-tidade dilacerante dos Capitães daAreia, quando um dos compa-nheiros, crescido, vai embora:

“Pedro sorriu. Era outro queia. Não seriam meninos todavida... Bem sabia que eles nun-ca tinham parecido crianças.Desde pequenos, na arriscadavida da rua, os Capitães daAreia eram como homens,eram iguais a homens. Todadiferença estava no tamanho.No mais eram iguais: amavame derrubavam negras no arealdesde cedo, furtavam para vi-ver como ladrões da cidade.Quando eram presos apanha-vam surras como os homens.(...) Quando outras crianças sóse preocupavam com brincar,estudar livros para aprender aler, eles se viam envolvidosem acontecimentos que só oshomens sabiam resolver. Sem-

pre tinham sido como ho-mens, na sua vida de misériae aventura, nunca tinham sidoperfeitamente crianças. Porqueo que faz a criança é o ambi-ente de casa, pai, mãe, nenhu-ma responsabilidade. Nuncaeles tiveram pai e mãe na vidade rua. E tiveram sempre quecuidar de si mesmos, foramsempre os responsáveis por si.Tinham sido sempre iguais ahomens.” (p. 231)

Na história, um exemplo mar-cante desta tensão identitáriaacontece quando o “Padre JoséPedro” acompanha os Capitães daAreia até um carrossel, onde elesobservam as crianças “normais”enquanto esperam a noite parapoderem se divertir também. Nes-te momento, o padre é interpe-lado por uma senhora velha, ma-gra e vestida com roupas caras:

– Boa tarde, dona Margarida.Mas, a viúva Margarida Santosassestou novamente o lorgnonde ouro.– O senhor não se envergo-nha de estar nesse meio, pa-dre? Um sacerdote do Senhor?Um homem de responsabilida-de no meio desta gentalha...– São crianças, senhora.A velha olhou superiora e fez

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um gesto de desprezo com aboca. O padre continuou:– Cristo disse: Deixai vir amim as criancinhas...– Criancinhas...Criancinhas...-cuspiu a velha.– Ai de quem faça mal a umacriança, falou o Senhor – e opadre José Pedro elevou a vozacima do desprezo da velha.– Isso não são crianças, são la-drões. Velhacos, ladrões. Issonão são crianças. São capazesaté de ser dos Capitães daAreia... Ladrões – repetiu comnojo.(...)A velha se afastou com um arde grande superioridade, nãosem dizer antes para o padreJosé Pedro:– Assim o senhor não vai lon-ge, padre. Tenha mais cuida-do com as suas relações.Pedro Bala ria cada vez mais, e opadre também riu, se bem quese sentisse triste pela velha, pelaincompreensão da velha. Mas ocarrossel girava com as criançasbem vestidas e aos poucos osolhos dos Capitães da Areia sevoltaram para ele e estavam chei-os de desejo de andar nos cava-los, de girar com as luzes. Eramcrianças, sim – pensou o padre.(AMADO, 2002)

Essas questões estão presentesna trajetória de alguns dos per-sonagens apresentados no livro:quando a personagem “Dora” apa-rece, a primeira menina a entrarpara os Capitães da Areia, a duplaidentidade “meninos/homens”dos demais é novamente ten-sionada. Trazida com seu irmãomenor pelos personagens “Profes-sor” e “João Grande” para se abri-gar durante a noite, “Dora” é ini-cialmente ameaçada pelos outrosCapitães da Areia que, se vendocomo “homens” e criminosos, aquerem violentar como “mulher”.Defendida primeiro por “Profes-sor” e “João Grande” e depois por“Pedro Bala”, ela acaba sendo acei-ta pelo grupo sem ser molestada.Aos poucos, sua presença faz comque a identidade “criança” aflorenos demais Capitães da Areia, sen-do uma mãezinha para os meno-res e mais tristes e uma irmã paraos outros. Ela é amada por “Pro-fessor” e por “Pedro Bala”, se tor-nando noiva e “esposa” do segun-do, mas impulsionando a ambospara a vida adulta. “Professor”,que gostava de ler, contar histó-rias para o grupo e tinha grandetalento para o desenho, deixa osCapitães da Areia para se tornarum pintor no Rio de Janeiro eseus quadros assombrarão o Bra-sil ao contar a história daquelasvidas miseráveis e de outras pes-soas que lutam e sofrem. “PedroBala”, o líder responsável e bom

para os companheiros, encontraseu caminho nos movimentos gre-vistas.

“Dora” se integra ao grupo, oacompanhando em suas ações,aprendendo suas técnicas, se va-lendo de sua agilidade, passan-do a amar a cidade antes vistacomo inimiga. Inicialmente resis-tente à idéia, “Pedro Bala” a ad-mira por sua coragem. Em umaluta contra um grupo rival, “Dora”participa lutando ao lado de seusirmãos, participando do triunfoda vitória e sendo reconhecidapelos demais: “Falavam na cora-gem de Dora, que brigara igual aum menino. Igual a um homem,dizia João Grande. Era como umairmã, exatamente igual a umairmã...” (AMADO, 2002: 184).

Quando “Dora” e “Pedro Bala”são capturados pela polícia, ela éenviada para um orfanato religi-oso para ser educada, local onde,em apenas um mês, mataram suasaúde e alegria. Resgatada por“Pedro Bala”, que fugira do Re-formatório, ela está ardendo emfebre e morre após a primeira eúnica noite de amor dos dois.

“Sem Pernas”, um meninocoxo, com grande ódio no cora-ção por ter sido espancado e hu-milhado pela polícia, é mais umexemplo marcante da dupla iden-tidade dilacerante dos Capitães daAreia. Ele anseia por se vingar dasociedade, dos ricos que respon-sabiliza por sua sorte, mas também

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anseia por um carinho materno,por um afago. Quando tem essachance, ao ser carinhosamenteacolhido por um casal que se pro-põe a adotá-lo, inicialmente seassusta por temer perder suaidentidade e assim ficar sem seuódio11, depois aceita o amor de“D. Ester”, tendo por fim de aabandonar por lealdade aos Ca-pitães da Areia. “Sem Pernas” ter-mina morrendo, ao se jogar doalto da Praça do Palácio para nãoser capturado pela polícia. Nãodeixará que o peguem, não toca-rão a mão no seu corpo. “SemPernas” os odeia como odeia atodo mundo, porque nunca pôdereceber carinho. No dia em queo teve foi obrigado a abandonarporque a vida já o tinha marcadodemais. Nunca tivera uma alegriade criança. Fizera-se homem an-tes dos dez anos para lutar pelamais miserável das vidas: a vidade criança abandonada. Nuncaconseguira amar ninguém, a nãoser um cachorro que o segue.Quando os corações das demaiscrianças ainda estavam puros desentimentos, o de “Sem-Pernas”já estava cheio de ódio. Odiava acidade, a vida, os homens: “Ama-va unicamente o seu ódio, senti-mento que o fazia forte e corajo-so apesar do defeito físico” (AMA-DO, 2002: 238).

“Dora” e “Sem-Pernas” nãoconseguiram superar a tensão em

que viviam. A primeira morreu pornão conseguir aceitar a identida-de social de “boa menina” quelhe tentariam impor no orfanato,o segundo se matou para não terde suportar receber novamente aidentidade de “criminoso” dadapelos policiais. Ambos à margemda sociedade, estrangeiros, neo-marranos na tensão dilaceranteentre “criança” e “adulto” que nãopode ser apagada pela força, maspode trazer uma força criadoracomo a presente nos desenhos efuturos quadros do “Professor”.

Os personagens “Gato” e “Boa-Vida” seguem o caminho espera-do para eles: se tornam “malan-dros”, assumem identidades mar-ginais de certa forma aceitas nasociedade, deixando no passadosua tensão menino-adulto.

4. Somente ponderações

Sendo o português escrito alíngua comum de brasileiros sur-dos e ouvintes, e particularmenteinteressado em histórias interati-vas, especialmente o role playinggame (RPG) como um meio degerar narrativas (KLIMICK, 2003),resolvi buscar no entorno deobras da literatura brasileira oambiente para histórias a seremcriadas por alunos, mestres e jo-gadores, em escolas públicas com-partilhadas por surdos e ouvin-tes. No momento, escolhi a obra

Capitães da Areia, de Jorge Ama-do, por seu tema envolver a desi-gualdade social e os meninos derua. Imagino poder aproximaresta situação à do surdo brasilei-ro, que pode se sentir como um“estrangeiro em sua própria cul-tura”, à margem da sociedade,como ocorre com os Capitães daAreia, meninos que também vivemà margem da sociedade, numarealidade diferente das demaiscrianças, estranha, estrangeirapara as pessoas da sociedade emgeral, que as tentam tratar comoladrões, ou crianças “normais”.Apropriei-me da categoria de neo-marrano, cunhada por EdgarMorin para judeus que não sedefinem numa identidade basea-da na fé judaica e lealdade abso-luta ao Estado de Israel, judeusnão-judeus e não-judeus judeus.Ampliei então essa categoria, queresiste à tentativa de imposiçãode uma identidade pela socieda-de e se sustenta em uma duplaidentidade dilacerante, porqueacredito que a possamos trans-plantar para surdos que são e nãosão brasileiros como nós, por te-rem no atual horizonte dobilingüismo uma primeira línguaestruturalmente diferente da dosdemais também brasileiros, en-quanto igualmente resistem àidentidade de deficiente físico. Apartir dessas idéias, me vejo in-clusive induzido a aventar ainda

11“Porque se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver.” (Amado, 2002: 114).

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um outro questionamento: pode-rá uma tensão semelhante surgirna inclusão de alunos surdos noensino regular?

Sabemos que o objetivo dainclusão é eliminar preconceitos,aumentar a diversidade, facilitara integração das pessoas com ne-cessidades especiais na socieda-de brasileira, metas com as quaisconcordo plenamente. Contudo,como mencionado mais acima, odesenvolvimento cognitivo dacriança surda pede um ambienteem que a Língua de Sinais estejapresente desde cedo. O contatocom colegas surdos da mesma fai-xa etária e surdos adultos é im-portante para que obtenha fluên-cia em LIBRAS e perceba a pró-pria surdez como diferença, emvez de deficiência. Experiênciasbem sucedidas na Venezuela e naSuécia têm o processo de ensi-no/aprendizagem sendo feito em

língua de sinais nas escolas parasurdos. Skliar, Lopes e Sacks res-saltam a importância da criançasurda aprender primeiro a línguade sinais para depois compreen-der a importância de adquirir alíngua ouvinte.

Ao ser entrevistada a este res-peito, durante o meu mestrado,uma professora de Educação In-fantil da área me disse que a ex-periência demonstrou ser maisfácil para as crianças surdas aten-derem a solicitações feitas em LI-BRAS. De fato, um ambientesociolingüístico rico, com a lín-gua de sinais tão presente quan-to possível no cotidiano da cri-ança, é muito importante para seudesenvolvimento cognitivo.

Considerado também estereferencial, me permito entãoquestionar medidas de inclusãode deficientes auditivos que im-pliquem apenas na colocação de

um intérprete de LIBRAS ao ladodo professor, para lhes passar osconteúdos dados na aula e usarrepresentações gráficas para intro-duzir conceitos novos, conformeapresentado na matéria “Inclusãoque Funciona”, na revista NovaEscola (GUIMARÃES, 2003). Se-gundo relato de um professor darede regular, durante o II Sim-pósio de RPG & Educação, emSão Paulo, em 2003, estes tam-bém eram os recursos previstospara incluir alunos surdos em suaescola.12 Serão tais medidas sufi-cientes para estimular o desen-volvimento cognitivo da criança?Como fica sua interação comadultos surdos? E a interação comos colegas de classe? Eles apren-derão LIBRAS para se comunica-rem com o colega surdo? Conse-guirá o aluno surdo “captar” con-versas dos colegas para ter o“aprendizado incidental” tão im-portante para Sacks (1998)? E aquestão da cultura surda? E seesse aluno surdo for filho de pais

12Previstos porque até então, março de 2003, já haviam recebido o aluno surdo, mas não o intérprete. O relato foi feito em conversa informal, após minha

participação em uma mesa-redonda.

Sabemos que o objetivo da inclusão éeliminar preconceitos, aumentar a

diversidade, facilitar a integração daspessoas com necessidades especiais na

sociedade brasileira, metas com as quaisconcordo plenamente. Contudo, como

mencionado mais acima, o desenvolvimentocognitivo da criança surda pede um

ambiente em que a Língua de Sinais estejapresente desde cedo.

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ouvintes? A inclusão levará tudoisso em conta?

Por outro lado, creio que nãopodemos cair em um tipo de ar-madilha temida por Vygotsky: a deque os surdos comporiam uma co-munidade ativa, mas isolada daouvinte. A cultura surda no Brasil,como colocado por Fernandes, fazparte da cultura brasileira. A par-te no todo e o todo na parte,unidade e diversidade como pos-tulados por Morin (2000: 57):

Os que vêem a diversidade dasculturas tendem a minimizarou a ocultar a unidade huma-na; os que vêem a unidadehumana tendem a considerarcomo secundária a diversida-de das culturas. Ao contrário,é apropriado conceber a uni-dade que assegure e favoreçaa diversidade, a diversidadeque se inscreve na unidade.

Com relação à oralização ounão dos surdos, podemos estardiante de um paradoxo similar aopontuado por Vygotsky. O movi-mento de interação pressupunhaalgum tipo de treinamento dodeficiente para permitir sua par-ticipação no processo educativocomum, e a inclusão social podeser, ou não, um avanço nesta di-reção. Ao mesmo tempo, podeser desejável, ou não, para aque-les que lutaram décadas para se-rem vistos como diferentes “sur-dos” em vez de “deficientes audi-tivos”.

Como vimos, Edgar Morin nos

apresenta o conceito de pós-marrano, relativo a uma poli-identidade consciente, onde otermo judeu é adjetivo, e nãosubstantivo, reclamando sua he-rança judaico-cristã-greco-latina,da cultura européia, e não maisse definindo como desenraizado,mas como polienraizado. Diz oautor: “Esta característica é com-plexa, híbrida, subdeterminada,polideterminada, comportandonela mesma conflitos, antagonis-mos e também, eventualmente,fecundidade. Assumo-a quandome digo, cada vez mais resoluta-mente, não mais neo-marrano,mas pós-marrano” (MORIN, 2002:145). Esse homem pós-marranosuperou então o conflito de suadupla identidade, assumindouma poliidentidade consciente, eme vejo tentado a imaginar se osurdo brasileiro não portará taiscaracterísticas também como ad-

jetivos, como traços identitáriosde um ser polienraizado, partici-pante de diversas comunidadesdiscursivas dentro da sociedadebrasileira. E penso em culturasque formam a cultura, onde oconflito de ser e não ser pode serresolvido de forma dialógica,integradora e, talvez, fértil.

No romance Capitães daAreia, vemos ser possível pensarque os personagens “Pedro Bala”e “Professor” carregam em suavida adulta o traço identitário daprópria infância neo-marrana, naspoliidentidades pós-marranas queescolheram de militante proletá-rio e pintor engajado, respecti-vamente: “Não se vive inutilmen-te uma infância entre os Capitãesda Areia. Mesmo quando depoisse vai ser um artista e não um la-drão, assassino ou malandro.”(AMADO, 2002: 218).

Seja como for, me arrisco a

O movimento de interação pressupunhaalgum tipo de treinamento do deficiente

para permitir sua participação no processoeducativo comum, e a inclusão social podeser, ou não, um avanço nesta direção. Ao

mesmo tempo, pode ser desejável, ou não,para aqueles que lutaram décadas para

serem vistos como diferentes: “surdos” emvez de “deficientes auditivos”.

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pensar que uma possível soluçãopara os problemas da inclusão desurdos talvez seja privilegiar es-colas e classes especiais para aeducação infantil, de forma a ga-rantir um ambiente sociolingüís-tico rico que estimule o desen-volvimento cognitivo de surdosmenores. A inclusão poderia co-meçar no Ensino Fundamental de

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forma parcial. A criança surda te-ria algumas aulas em turmas es-peciais e outras em turmas regu-lares, buscando, desta forma, ob-ter a diversidade e diluição depreconceitos oriundos do conta-to entre surdos e ouvintes, semprejudicar o desenvolvimentolingüístico dos primeiros. Esta si-tuação ideal provavelmente esta-

ria longe da nossa realidade e ficaaqui apenas como mais uma idéiaporque, a exemplo de um trajetode tipo neo-marrano para pós-marrano, creio que o inter-rela-cionamento entre surdos e ouvin-tes é importante para diminuirpreconceitos e integrar, a ambosos grupos, na grande sociedadebrasileira.

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Resumo

Crianças surdas filhas de paisouvintes enfrentam um desafiomuito grande para construir umaidentidade surda e uma visão dasurdez que não esteja situada ex-clusivamente na deficiência. Aomesmo tempo, os pais precisamelaborar a frustração, a raiva, odesapontamento, e realizar o lutodo filho imaginário. Muitos paisnão conseguem se comunicar einteragir com a criança, que aca-ba vivenciando uma espécie demarginalidade cultural dentro desua própria família. O presentetrabalho centra-se nas dificulda-des enfrentadas pelos pais ouvin-tes, discutindo-se alguns aspectosobservados no processo de cons-trução de uma identidade cultu-

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ral. Argumenta-se que os profissi-onais da saúde e educação envol-vidos com a surdez devem estaratentos e criar estratégias paraque os pais possam construir oquanto antes um ambiente fami-liar favorável para o desenvolvi-mento de seu filho surdo, queposteriormente encontrará nacomunidade e cultura surda osuporte necessário para inserir-seem grupos sociais cada vez maisamplos. São relatadas três estra-tégias que visam facilitar a cons-trução de uma identidade cultu-ral de surdos de parceira com paisouvintes: a criação de referênciasculturais significativas, o trabalhocom grupos de pais e o suportepsicoterápico.

Palavras-chave: surdez; paisouvintes; identidade surda.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Deaf children of hearingparents face a very big challengein building a deaf identity and aperspective on deafness that is notsolely situated in deficiency. Atthe same time, parents have todeal with frustration, anger,disappointment, and deal withthe loss of their imaginary child.Most parents are not able tocommunicate and interact withthe child, who then experiences akind of cultural marginalitywithin his/her own family. Thiswork centers on the difficultiesthat hearing parents face. Some ofthe main cognitive, emotional,and social aspects observed in theprocess of constructing a culturalidentity of hearing parents arediscussed. It is argued that healthand education professionalsinvolved with deafness must beattentive and create strategies sothat parents may build, as earlyas possible, a familial environmentfavorable to the development oftheir deaf child. Later the childwill find in the deaf communityand culture the necessary supportto engage himself/herself in widersocial groups. Three strategies thataim to facilitate the constructionof a cultural identity of hearingparents are reported: the creationof significant cultural references,the work with groups of parents,and psychotherapy support..

Key words: deafness; hearingparents; deaf identity.

A Construção deuma IdentidadeCultural de Surdosem Parceria comPais Ouvintes

Cláudia BisolCláudia BisolCláudia BisolCláudia BisolCláudia Bisol*****

*Psicóloga; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pelaUFRGS; Doutoranda em Psicologia pela UFRGS e docente doCurso de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul – [email protected] recebido em setembro de 2004 e selecionado emoutubro de 2004.

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Considerações iniciais

Em Gênesis 1, 26-27, lê-se:“Então Deus disse: ‘Façamos ohomem à nossa imagem e seme-lhança. (...) E Deus criou o ho-mem à sua imagem; à imagem deDeus ele o criou; e os criou ho-mem e mulher.” Tomando estafrase como um relato, um discur-so que faz referência à questão daorigem do ser humano, portantoda paternidade e da filiação, te-mos um indício de algo que sepassa entre criador e criatura: aimagem e a semelhança. O ho-mem não imagina a si mesmo semreferência a algo, construindopara si a referência em seu cria-dor e, por sua vez, re-apresentaao criador sua própria imagem.Na criatura, o criador enxerga-senão como num espelho, igual,refletido, mas enxerga seus pró-prios traços naquilo que ela car-rega de semelhante.

O que tais considerações nosdizem sobre pais e filhos? No mí-nimo, que a semelhança e, porconseqüência, a diferença fazemquestão. Há manifestações corri-queiras que podem ilustrar isso:

“tem o gênio do pai”, ou “tem osolhos da mãe”, ou ainda, “não seipor quem puxou, com toda estateimosia”. Exemplos simples as-sim representam a tentativa de li-gar a criatura ao criador, inscre-vendo a criança num sistema fa-miliar, determinando sua origem,vinculando-a ora a um, ora a ou-tro genitor. A semelhança parecedar suporte para os vínculosafetivos frente ao estranho e des-conhecido que se apresenta. Po-rém, em torno das diferenças te-remos a possibilidade da indivi-duação e a demarcação de zonasde conflito, que serão toleradasou não de acordo com a formacomo cada família se configura.

Um bebê se desenvolverá,pois, em um espaço marcado pelasemelhança e pela diferença deseus pais. Essa é uma tarefa quecaberá a cada um, em seu proces-so de individuação, e que trazconsigo o trabalho simultâneo

dos pais de elaborarem o estra-nho em seu próprio filho. Doesporte preferido ao estilo devestir, do tipo de música à esco-lha dos amigos, dos traços depersonalidade aos comportamen-tos, da profissão à escolha dosparceiros e orientação sexual, di-ferenças concretas ancoram asperdas narcísicas causadas pelaquebra das referências de identi-ficação do filho imaginário ao fi-lho real (MANNONI, 1985). A ela-boração ou não desses conflitosvai marcar estreitamentos ou afas-tamentos no convívio familiar quefazem parte do desenvolvimentode qualquer ser humano.

Quando a criança é (muito)diferente

Já ao nascer, uma criança po-derá apresentar uma marca cons-titutiva que a coloca num lugarde diferença: uma marca em seu

Um bebê se desenvolverá, pois, em umespaço marcado pela semelhança e peladiferença de seus pais. Essa é uma tarefa

que caberá a cada um, em seu processo deindividuação, e que traz consigo o trabalho

simultâneo dos pais de elaborarem oestranho em seu próprio filho.

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organismo. É possível tambémque uma marca orgânica de dife-rença apareça mais tarde, seja poruma interferência no desenvolvi-mento causada por doença ouacidente, ou mesmo por diagnós-tico tardio. No momento em queuma marca orgânica de diferençafaz-se presente, e toda vez em queé atualizada (quando uma crian-ça é comparada com os colegasna escola, por exemplo, ou dian-te do olhar insistente de estra-nhos na rua), assistimos a umaquebra, a uma ruptura violenta dacontinuidade esperada entre ospais e os filhos. Ao invés destaruptura dar-se paulatinamente,oferecendo tanto aos pais quan-to à criança a possibilidade deexercitarem-se num jogo de se-melhanças e diferenças, experi-mentando espaços de aproxima-ção e afastamento, sem que rom-pam-se totalmente os vínculos, oque aparece é uma queda: a cri-ança não consegue ocupar o lu-gar que os pais imaginavam queocuparia. Meira (1996) fala deuma falha relativa à impossibili-dade que os pais vivenciam de en-contrarem em seu filho a realiza-ção de seus ideais.

Nesses termos, o nascimentode uma criança surda marca umadiferença para aqueles que sãoouvintes. Isso não acontecequando um bebê nasce surdo eseus pais são surdos, pois suaconstituição é semelhante à deseus pais. Vemos muitos casaissurdos ficarem felizes com o nas-cimento de um filho surdo, oque é bastante compreensível sepensarmos que este bebê está,sim, respondendo ao bebê ima-ginado pelos pais. Os pais ale-gram-se porque este filho surdoparticipará facilmente de sua cul-tura, terá uma maneira semelhan-te à deles de ser, entender omundo e comunicar-se. Por ou-tro lado, é igualmente compre-ensível a dificuldade de pais ou-vintes ao depararem-se com umfilho surdo. Aqui, o filho passa arepresentar muito mais a dife-rença, o estranho que se concre-tiza e pode ser sentido como algodesconhecido e ameaçador. Nãoé novidade que tememos o quedesconhecemos. Para ouvintes,que nunca tiveram contato com

ela, a surdez é desconhecida.Como comunicar-se com estebebê? O que ele entende, ou nãoentende? Que mistérios escon-dem-se no seu silêncio, na au-sência de palavras, nas vocaliza-ções confusas, ou nos gritos dealegria ou de tristeza? Glickman(1996) afirma que pais ouvintesque nunca tiveram acesso a ummodelo de surdez enquanto di-ferença cultural e nunca conhe-ceram surdos adultos culturalmen-te bem-sucedidos, ao depararem-se com a surdez de um filho en-frentam uma descoberta compre-ensivelmente devastadora.

No caso, pais e bebê estarãoexpostos a um intenso sofrimen-to psíquico, e justamente em ummomento da vida da criança noqual é necessário muito investi-mento e envolvimento emocio-nal. Para que tarefas normais re-lacionadas com o desenvolvimen-to infantil possam ocorrer a con-tento, a família vê-se arrastada porum turbilhão de fatos e de afli-ções. Freqüentemente, pode-seobservar:

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ESPAÇO ABERTO

...o nascimento de uma criança surda marcauma diferença para aqueles que são

ouvintes. Isso não acontece quando umbebê nasce surdo e seus pais são surdos,

pois sua constituição é semelhante àde seus pais.

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a) A negação da surdez: os paisinsistem em que a criança res-ponde ao ser chamada, obe-dece às solicitações feitas, estáentendendo tudo o que sepassa ao seu redor. Muitas ve-zes não conseguem distinguirqual a forma de comunicaçãoque está operando e atribuemos resultados à audição. Porexemplo, chamam a criança eao mesmo tempo gesticulam,a criança responde ao gesto eaos movimentos da boca, masos pais atribuem sua respostaao chamado verbal. Instaura-se um “como se”: os pais agem“como se” a criança estivessecompreendendo o que se pas-sa ao seu redor, “como se” elafosse ouvinte. Não conectam-se com a diferença que existeentre eles e o filho, retardan-do sua introdução à Língua deSinais e comprometendo odesenvolvimento global dacriança, pois ela vê-se sem aferramenta – uma língua – quelhe permita pensar a si pró-pria e conectar-se ao mundoque a cerca.

b) Resistência à Língua de Sinais:inicialmente, a Língua de Si-nais tende a ser vista por mui-tos ouvintes como um teatro,uma mímica, pois requer umaexpressão corporal que expõea pessoa ao olhar do outro eparece impossível de ser ad-quirida. É uma língua estran-geira a ser apreendida, deco-dificada, memorizada, interi-orizada para comunicar-secom o próprio filho, e que asociedade, como um todo,desconhece. Os pais precisamsubstituir sua própria línguamaterna pela língua de umgrupo que é, para eles, total-mente desconhecido.

c) Tentativas de reparação: inicia-se uma maratona em médicose fonoaudiólogos, exames, tes-tes, numa busca incessante porum diagnóstico melhor, porum “milagre”. O entorno fami-liar também torna-se fonte ex-tra de tensão: a cobrança deparentes e vizinhos, que sem-pre têm algum caso semelhan-te para relatar e algum especi-alista novo e fantástico paraindicar. A investigação em bus-ca de próteses e implantescocleares, os recursos econô-micos despendidos (muitasvezes, recursos inexistentes),também somam-se nesse pro-cesso desgastante que podedurar muitos anos. A surdez évista essencialmente como umafalha a ser corrigida ou expos-ta o menos possível.

d) Crises familiares: não é inco-mum que este contexto de-sencadeie uma crise no ca-sal parental. A maneira comocada um, pai e mãe, conseguetolerar as frustrações e pres-sões, associada com a neces-sária elaboração de um novomodo de ser pai e de ser mãe,mas com os significados in-conscientes desencadeadospelo nascimento desta crian-ça em especial, determinam anecessidade de reorganizaçãofamiliar. Não é incomum a cri-ança surda ficar “a cargo” deum dos pais, geralmente amãe. A interação com avós, tiose primos ouvintes tambémcostuma ser bastante reduzida.

Glickman (1996) descreve asdiferenças que podem ser obser-vadas no processo de construçãoda identidade surda para uma cri-ança nascida numa família surda eoutra nascida em uma família ou-vinte. No primeiro caso, a surdezé inicialmente sentida pela crian-ça como uma maneira normal dedescrever a si mesma, enquantoque no segundo caso a criançaacaba introjetando as noções queos ouvintes têm sobre a surdez, ouseja, noções associadas à doença,à incapacidade, à deficiência.

Portanto, o desafio que a cri-ança surda nascida numa famíliaouvinte enfrenta é muito grande.Glickman (1996) sugere uma te-oria para o desenvolvimento deuma identidade cultural do sur-do que aponta para este proces-

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so: de culturalmente marginal –uma estrangeira em sua própriafamília, passando pela imersãono mundo surdo até atingir fi-nalmente o estágio bicultural,que para o autor significa a pos-sibilidade de desenvolver seu po-tencial, circulando com certoconforto tanto no mundo surdocomo no ouvinte e tendo desen-volvido um sentido profundo epessoal do que significa ser sur-do. Complementando esta auto-ra, pode-se pensar que trata-se deum processo complexo a serexperienciado ao longo do cicloda vida, sendo que cada novo mo-mento exigirá a elaboração ereelaboração de referenciais so-ciais, culturais e da própria iden-tidade, mas dependerá do modocomo foi articulado no interiordas relações familiares mais pri-mitivas.

É praticamente um consensoentre autores atuais a importân-cia da inserção da criança surdana comunidade surda (GLICKMAN,1996; SOLÉ, 1998; GÓES, 1999).A comunidade constitui o grupo

social que oferece possibilidadespara o desenvolvimento e conso-lidação da linguagem, oferecen-do recursos para que a criança seconstitua como pessoa. Winnicottafirma que:

“O desenvolvimento emocio-nal ocorre na criança se se pro-vêem condições suficiente-mente boas, vindo o impulsopara o desenvolvimento dedentro da própria criança. Asforças no sentido da vida, daintegração da personalidade eda independência são tremen-damente fortes, e com condi-ções suficientemente boas acriança progride; quando ascondições não são suficiente-mente boas essas forças ficamcontidas dentro da criança ede uma forma ou de outra ten-dem a destruí-la”. (1983: 63)

Ao mesmo tempo que ofereceum suporte lingüístico, a comu-nidade surda funciona como su-porte para uma identificação ima-ginária que possibilitará ao surdo

construir uma idéia de si próprioem relação aos outros surdos eaos ouvintes: “ser surdo torna-se,então, marca constitutiva da sub-jetividade” (SOLÉ, 1998: 23). Emrelação aos pais ouvintes, o su-jeito encontrava-se marcado peladiferença. Na comunidade surda,encontra acolhimento pela seme-lhança. Na adolescência, esse pro-cesso torna-se muito visível. É nogrupo de amigos que o adoles-cente encontrará os referenciaisculturais e sociais que permitirãoque construa uma imagem positi-va de si mesmo, sendo esta valo-rização essencial para que passe acircular ativamente na sociedade,desenvolvendo seus potenciais.Segundo Solé, “o adolescentesurdo que não convive em comu-nidade surda, ao buscar suporteimaginário entre iguais, encontraapenas diferenças que lhe impos-sibilitam constituir uma identida-de” (1998: 23).

Todo este processo pressupõeum período inicial no qual estãoem cena os pais ouvintes e a cri-ança. Seu estruturante significa-do central de entrada na comu-nidade surda está mais que justi-ficado, mas isto se dá na esteiradas relações iniciais que a criançateve na própria família. Os paisouvintes poderão ou não ser osuporte que a criança necessita noperíodo mais inicial de seu de-senvolvimento.

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ESPAÇO ABERTO

Seu estruturante significado central deentrada na comunidade surda está maisque justificado, mas isto se dá na esteira

das relações iniciais que a criança teve naprópria família. Os pais ouvintes poderão ounão ser o suporte que a criança necessita no

período mais inicial de seudesenvolvimento.

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Construção de uma

identidade parental

Diante do enorme desafio queenfrentam os pais ouvintes, cabeaos profissionais que trabalhamcom estas famílias desenvolverestratégias de ajuda e suporte,esperando contribuir para a cons-trução de um ambiente familiarfavorável e capaz de assistir à cri-ança surda em suas necessidades.Quando pais ouvintes sentem-seapoiados e respeitados, e quandoconseguem construir novos signi-ficados para a experiência que es-tão vivenciando, eles tornam-semais capazes de dar o suporte queo filho surdo necessita.

Podemos pensar, então, numavia de mão dupla. Assim como acriança surda tem dificuldade emidentificar-se com os pais ouvin-tes, também pais ouvintes têmdificuldade de identificarem-secom o próprio filho. Essa criançaestá na situação de ser uma estran-geira em sua família. Seus paissentem-se estrangeiros ao entrarem contato com a comunidade

surda, têm dificuldade de apre-ender e partilhar elementos cul-turais que são para eles totalmen-te novos.

A seguir, vejamos alguns as-pectos que podem ser observadosneste processo e que dizem res-peito às áreas cognitiva, emocio-nal e social. Inicialmente, trata-seda possibilidade de construir no-vos conceitos e representações demundo, ampliando o referencialcognitivo pré-existente. Nas pala-vras de uma mãe ouvinte em umareunião na escola do filho surdo:“Eu achava que tinha um jeito sóde viver e de falar. Quando co-nheci a escola e os outros surdos,aprendi que há muitos jeitos di-ferentes de poder falar, viver,pensar”. De fato, uma aproxima-ção gradual e progressiva dos paiscom a cultura e a comunidadesurda permite que o conceito ini-cial de surdez enquanto deficiên-cia possa aos poucos ser substitu-ído. Quando os pais internalizamum conceito relacionado à dife-rença cultural, mais do que à de-ficiência, podem passar a ofere-

cer este conceito ao filho. Obser-va-se uma mudança na tônica dascomparações, por exemplo. Ou-vem-se relatos do tipo: “Agora euvejo que ele aprende mais rápi-do que meu outro filho que é ou-vinte”.

Há situações mais complexas,quando os pais apresentam difi-culdades cognitivas e baixos ní-veis de escolarização. Nesses ca-sos, observa-se pouco acesso àinformação e pouca capacidadecrítica, o que os torna mais vul-neráveis a promessas milagrosas,ou até mais influenciáveis na horade tomar decisões. Não é raroesses pais cederem a pressões deparentes e amigos para colocaremseus filhos em escolas regulares,para que aprendam a falar com asoutras crianças, acreditando quese os colocarem com surdos asurdez vai piorar, ou a criança ja-mais será capaz de comunicar-secom ouvintes. Também é mais di-fícil para eles compreender osexames, os procedimentos adota-dos e os recursos disponíveis.

Tudo isso indica, pois, a ne-cessidade de um verdadeiro tra-balho de educação voltado aospais. O ensino da Língua de Si-nais é um dos aspectos a seremcontemplados, talvez o mais im-portante, porém sozinho é umaferramenta que não se sustenta.Um número muito grande de paisouvintes desiste dos cursos de

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ESPAÇO ABERTO

Quando pais ouvintes sentem-se apoiadose respeitados, e quando conseguemconstruir novos significados para a

experiência que estão vivenciando, elestornam-se mais capazes de dar o suporte

que o filho surdo necessita.

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Língua de Sinais e utiliza apenassinais rudimentares, caseiros,quando os utilizam. Não chegama compreender a importância daaquisição da língua e por isso nãoconseguem priorizar seu apren-dizado e utilização.

Há uma crise a ser inevitavel-mente vivida, porque não pode-mos subestimar a angústia da mãee do pai. Há momentos, inclusi-ve, em que ela é maior do que ado filho, pela ausência de diálo-go, pela solidão que pode levarpais e mães a quadros de depres-são, embora aos olhos dos outrospareçam estar suportando tudomuito bem (MANNONI, 1985).Pais que são capazes de conecta-rem-se com o impacto internoque a surdez do filho gera pode-rão reconstruir os laços com o fi-lho real, pois enfrentarão as an-gústias, os medos, as culpas, oluto pelo filho concebido imagi-nariamente e que não nasceu.Esse filho estranho, diferente,poderá ser aos poucos conheci-do. Em meio à diferença, surgirátambém lugar para o que podehaver de semelhante, tornando ainscrição dessa criança possível,ou seja, tornando possível afiliação, e este movimento facili-tará a inserção mais ampla na fa-mília que inclui avós, tios, primos,e que também funcionam comosuporte.

Os recursos sociais disponíveisaos surdos e seus familiares vari-am muito de país para país e tam-

bém de região para região. A exis-tência de escolas, sociedades,afiliações, sistemas de apoio parainserção no mercado de trabalhosão suportes que promovem oreconhecimento mais rápido daspossibilidades que as pessoas sur-das têm de inserirem-se em mei-os sociais importantes. Escola, tra-balho, lazer são conquistas quepermitem uma vida digna. Visua-lizar isso para o filho é inseri-loem possibilidades concretas derealização social.

A construção de umaidentidade surda de parceria

com pais ouvintes

Os processos cognitivos, emo-cionais e sociais anteriormentedescritos podem ser facilitados oupromovidos através de ações de-senvolvidas pelos profissionais dasaúde e da educação. A forma co-mo isto é feito pode variar mui-to, dependendo de cada contex-to e do estágio de desenvolvimen-to social da região e do país.

Em países desenvolvidos, porexemplo, observa-se um investi-mento grande na criação de refe-rências culturais que tenham sen-tido e relevância tanto para Sur-dos como para ouvintes que con-vivem com o universo da culturasurda. Ao encontrar elementos nouniverso cultural, a construção de

novos significados em torno dasurdez é facilitada, pois torna-seviável recolher do social os ins-trumentos para lutar contra as fra-turas narcísicas e oferecer ao fi-lho possibilidades positivas e re-ais de identificação. As criançasprecisam encontrar em seus paissignificantes que as situem e, porsua vez, os pais também precisamencontrar significantes na cultu-ra que os situem e situem seus fi-lhos (MEIRA, 1996). Portanto, aprodução cultural nesta área, atra-vés do incentivo à publicação delivros, vídeos, ambientes virtuaisde aprendizagem, grupos de tea-tro etc., não pode ter sua impor-tância subestimada, tendo em vistaas possibilidades que oferece desituar referenciais identitáriospara os surdos e suas famílias.

A realização de grupos de paisouvintes também é um recursoimportante, sejam eles grupos deapoio, terapêuticos, reflexivo-in-formativos, ou de qualquer mo-dalidade que se julgue adequa-da. Os grupos permitem a refle-xão e a reconstrução de concei-tos, a troca de experiências evivências afetivas enriquecedoras.A este respeito, talvez seja aindanecessário compreender melhoros diferentes momentos pelosquais passam os pais nesse pro-cesso de construção de uma iden-tidade de pais ouvintes. Seriaimportante que mais estudos fos-sem realizados sobre os efeitos dasurdez de um filho em diferen-

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tes configurações familiares, parapodermos realizar intervençõesmais eficazes. Sobre o assunto,MANNONI (1985) afirma que cadamãe (e também o pai) viverá emseu estilo próprio o drama realcolocado pelo seu filho, o querelaciona-se com suas experiên-cias vividas anteriormente, dasquais saiu marcada de um mododeterminado.

A terceira estratégia de inter-venção, amplamente conhecida,é o suporte psicoterápico para ospais, ou para um destes, na mo-dalidade que for mais convenien-te ou disponível. Não são pou-cos os casos nos quais observamosum quadro de fragilidade psíqui-ca em um ou ambos os progeni-tores, que praticamente inviabilizaqualquer suporte ao filho. Sãosituações onde provavelmenteteríamos um desenvolvimento

emocional comprometido da cri-ança, independente da surdez oude qualquer outra situação poten-cialmente fragilizadora. A surdezapresenta-se como uma marca amais, que às vezes até serve deescudo ou anteparo para questõesmais graves, passando a ser retra-tada como a grande vilã, a causapara todas as dificuldades de-monstradas, de forma que poucoconseguimos se trabalhamos ex-clusivamente com a criança.Tampouco a inserção na comu-nidade surda mostra-se suficien-te, pois falhas de estruturaçãopsíquica provocarão situações econflitos difíceis de resolver. Nes-tes casos, não é raro que o qua-dro que se apresenta coloquequestões que estão muito além doque pode ser oferecido na esco-la, ou pela comunidade surdaapenas.

Referências Bibliográficas

GLICKMAN, N.S. The development of culturally deaf identities. In: GLICKMAN,N.S.; HARVEY, M.A.(Eds). Culturally affirmative psychotherapy with deaf persons. New Jersey: Lawrence ErlbaumAssociates, 1996.

GÓES, M.C.R. Linguagem, surdez e educação. Campinas: Autores Associados, 1999.

MANNONI, M.. A criança retardada e a mãe. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

MEIRA, A.M.G. Quando o ideal falha. Escritos da Criança, Centro Lydia Coriat de Porto Alegre., 4,p. 67-69, 1996 .

SOLÉ, M.C.P. A surdez enquanto marca constitutiva. Espaço: Informativo Técnico-Científico doInstituto Nacional de Educação de Surdos, 8, p. 17-23, 1998 .

WINNICOTT, D.W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvol-vimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

Finalizando

Há uma obra muito conheci-da de William Shakespeare, inti-tulada “Bem está o que bem aca-ba”. Ao falarmos do desenvolvi-mento infantil, no entanto, nos-sa preocupação necessariamentevoltar-se-á para o começo: para oinício das relações familiares epara a inserção da criança nessemeio. Quanto mais cedo pais ou-vintes puderem iniciar o proces-so de elaboração de suas angústi-as, o seu luto e a ressignificaçãodo filho surdo, mais cedo ofere-cerão à sua criança condições queela necessita para desenvolver-sebem. E quanto antes os profissio-nais da saúde e da educação pu-derem oferecer a tais pais o su-porte que eles necessitam, maischances estaremos oferecendo aessas famílias. Ao falarmos de se-res humanos, temos que dizer queentão, provavelmente, “bem esta-rá o que bem começar”.

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Resumo

As relações entre o brincar e alinguagem são estabelecidas a par-tir da perspectiva de Jerome SeymourBruner. Para o autor, o letramentodecorre de linguagens que inclu-em o movimento, o gráfico e osimbólico. O psicólogo e educa-dor, com base na lingüística, apon-ta aspectos biológicos da aquisiçãoda línguagem e a relevância dosprocessos interativos entre a cri-ança e o adulto, em que o brincaré a estratégia privilegiada.

Palavras-chave: jogos intera-tivos; linguagem; andaimes; edu-cação infantil; letramento.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

The relations between play andlanguage are established throughthe perspective of Jerome SeymourBruner. To the author, the literacyoccurs by languages that includethe movement, the graphic and thesymbolic. The psychologist andeducator, supported by linguistic

mentions the biological aspects oflanguage acquisition and therelevance of interactives processesby the child and the adult inwhich the play is the privilegedstrategy.

Key words: Key words: Key words: Key words: Key words: interactive play –language; scaffolding; childhoodeducation; literacy.

A linguagem tem múltiplasmanifestações. Como letramento,representa “os usos e práticas so-ciais de leitura e escrita em de-terminado grupo social, não amera aquisição da tecnologia doler e do escrever”, entendidacomo alfabetização (SOARES,1988, p. 21)1. Da mesma forma,pode representar a leitura domundo em várias perspectivas:motora, gráfica e simbólica.

Se o brincar é uma forma decomunicação de pessoas quecompartilham de uma mesma cul-tura (BATESON, 1977), possorepresentá-lo por meio de lingua-gens, como a gestual (enativa), agráfica (icônica) e a simbólica (sim-

bólica) (BRUNER, GOODNOW eAUSTIN, 1956).

O texto pretende analisar asrelações entre o brincar e a lin-guagem, como prática social devalorização das linguagens ex-pressivas e da narrativa, visando auma determinada concepção decriança e de educação infantil.

No passado, a aquisição da es-crita vista como alfabetização sus-tentava o debate em torno demétodos como o global, o silábi-co ou o fonético. Pesquisas sobrea psicogênese da escrita, da rele-vância de contextos sem pressãoe dos interesses da criança, focama importância e a emergência doletramento.

O Brincar e aLinguagem Profª. Drª. TisukoProfª. Drª. TisukoProfª. Drª. TisukoProfª. Drª. TisukoProfª. Drª. Tisuko

Morchida Kishimoto*Morchida Kishimoto*Morchida Kishimoto*Morchida Kishimoto*Morchida Kishimoto*

*Professora Titular daFaculdade de Educaçãoda Universidade de SãoPaulo – USPtmkishim @ usp.brMaterial recebido em julho eselecionado em agosto de2004.

1Em países europeus e de língua inglesa, o termo literacia emergente é utilizado para denominar o letramento.

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DEBATE

Natureza do brincar2

O brincar é polissêmico. Cadacultura tem concepções próprias,conforme seus usos.

As principais característicasdo jogo são sintetizadas porFromberg (1987, p. 36): simbolis-mo: representa a realidade e ati-tudes; significação: relaciona,substitui ou expressa experiênci-as; atividade: a criança faz coisas;voluntário ou intrinsecamentemotivado: incorpora motivos einteresses; regrado: sujeito a re-gras implícitas ou explícitas, eepisódico: metas desenvolvidasespontaneamente.3 Posta essaconfiguração, surgem as funçõesdo jogo: educativas, terapêuticas,culturais, entre outras, que vari-am conforme os campos do co-nhecimento, os contextos cultu-rais e os objetivos dos usuários.

O simbolismo, como principalcaracterística do jogo, é incorpo-rado pela maioria das teorias. Aodistinguir entre a realidade e a fan-tasia, a criança expressa significa-dos com base em sua experiênciae conduz a atividade imagináriamotivada por ato voluntário. Aoexpressar seus motivos, utilizaregras implícitas ou episódicasque mudam ao sabor de seus in-teresses, do que decorre a in-certeza da atividade lúdica. As re-gras externas são postas pelo con-texto social. Tais características são

facilmente encontradas nos jogosde faz-de-conta.

Os jogos de movimento, de-nominados ‘de exercício’ ou dedomínio sensório-motor, porPiaget, incorporam o prazer darepetição do movimento e a açãoiniciada e mantida pela criançacomo principais características.Jogos de construção, simbólicos,motores, verbais, de exterior, in-terior, sócio-dramáticos, espor-tivos, entre outros, mostram a di-versidade de modalidades de jo-gos. Embora sendo todos jogos,a especificidade de cada um de-pende dos elementos que os com-põem. É o que Wittgenstein(1975) denomina ‘família’ dosjogos e suas ramificações. A diver-sidade dos jogos remete, ainda,para a variedade de suas signifi-cações, que mudam conforme ocontexto e a cultura.

Pedagogias da

infância e o jogo

Teorias racionalistas e posi-tivistas propõem o jogo didático,sem incluir o contexto cultural, adiversidade das pessoas e suasexperiências. Hoje, no âmbito dasCiências Sociais, defende-se aimportância do jogo interativo,do jogo iniciado e mantido pelacriança.

Bruner (1996) destaca a emer-gência de uma Psicologia Cultu-ral, ou mesmo Psicologia Popu-lar, calcada nas experiências in-

tuitivas das pessoas, ou de umconjunto de ciências pensando aeducação. Assim como a lingüís-tica estabelece relações entre alinguagem e o jogo, a antropolo-gia estuda o ser humano e suasconcepções de jogo, hoje tam-bém objeto de estudo das ciênci-as da educação.

Nos anos 90 do século passa-do, na era da qualidade na edu-cação infantil (DAHLBERG, MOSSe PENCE, 1999) e, especialmen-te, de estudos das ciências do cé-rebro (SHONKOFF e MEISELS,2000) sobre os efeitos do estresseno desenvolvimento da criança,surge a preocupação com a inser-ção do brincar nas Pedagogias daInfância. A intenção de educar pormeio da brincadeira leva a peda-gogia a valorizar ambientes sempressão e com envolvimento dacriança. Pedagogias como as deFroebel, Dewey, Decroly, Freinet,e outras, como a do Japão, dospaíses escandinavos, do High-Scope, do Spectrum, do Norte daItália, da abordagem de projetos,de Katz, entre outras, contêm con-cepções inovadoras sobre o brin-car e a educação porque partemda intencionalidade e atividadeda criança.

2Os termos brincar, jogo e brincadeira serão utilizados como sinônimos.3Sobre a questão ver Kishimoto (1996, 1998).

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A pedagogia da infância tratade concepções, práticas sobre ainfância e formas de gestão deinstituições infantis. Pedagogiascomo a de Froebel (1896), inse-rem, desde o século XIX, brinca-deiras interativas de mães comcrianças pequenas para desenvol-ver a imaginação e a linguagem.4

Froebel já percebera a capaci-dade instintiva do ser humanopara a linguagem, apontando ocaráter inato de representações,como a palavra e o desenho, bemantes de Chomsky e os lingüistasatuais.

Para Froebel, a criança não éum ser fragmentado. A naturezaglobal e integral do pensamentoinfantil é caracterizada por suasrelações com as emoções, o atovoluntário, o movimento e a per-cepção. Froebel vê a interfaceentre o biológico e o social naconstrução da linguagem oral eemergência da matemática. Quan-do cuida de seu bebê, a mãe can-ta e nomeia os movimentos quefaz com os braços e pernas da cri-ança. Nessas ações integradas en-tre o cuidado e a educação, a mãeoferece a oportunidade para oaprendizado da língua e de ou-tros significados. Entretanto, aconstrução da linguagem depen-de da auto-atividade da criança edo suporte do adulto em proces-so interativo, no seio da cultura,

que possibilita o nomear situaçõese objetos de atenção da criança.

Quando a mãe canta, ritmandoos movimentos, introduz as basespara a emergência da matemática(FROEBEL, 1896, p. 80, 81). Aoperceber como a criança apren-de intuitivamente os números, fa-zendo espontaneamente classifi-cações, juntando objetos, Froebelaproxima-se das concepçõespiagetianas de construção do nú-mero. “Por longo tempo a crian-ça não consegue dizer os nume-rais, que em si são vazios e semsignificados” (FROEBEL 1896, p.83). Assim, Froebel questiona prá-ticas de memorização de núme-ros e postula a natureza global dacriança, que não aprende de for-ma fragmentada, mas no contex-to de seu interesse e ação.

Vygotsky (1988, 1987) apontao jogo como a atividade simbóli-ca mais importante da idade in-fantil, que possibilita a expressãoda situação imaginária, fruto deexperiências adquiridas pela cri-

ança no contexto social. Ao ver acriança como ser ativo e criativoe ao situar a responsabilidade doadulto na zona de desenvolvi-mento proximal (ZDP), Vygotskyelimina a dicotomia jogo e edu-cação. É pela observação da cri-ança que brinca que se pode com-preender seus interesses e ofere-cer apoio para sua educação. Alinguagem não se presta apenas àcomunicação entre as pessoas,como quer Piaget, mas especial-mente para auxiliar o desenvol-vimento do pensamento.

Bruner (1983b), influenciadopor psicólogos e lingüistas comoVygotsky, Chomsky e Miller, in-vestiga as relações entre o jogo ea linguagem. Observando animais,percebe que o aumento do perí-odo de infância ocasiona domi-nância do brincar nos grandesmacacos e hominídeos, preparapara a vida social e cultural e cons-titui a cultura humana. Brincadei-ras como peekaboopeekaboopeekaboopeekaboopeekaboo (esconde-es-conde) só existem onde há

Ao perceber como a criança aprende intuitivamente os números, fazendo

espontaneamente classificações, juntandoobjetos, Froebel aproxima-se das

concepções piagetianas deconstrução do número.

4Mais informações em Kishimoto (1998).

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linguagem.Tais jogos são a pri-meira ocasião para o uso sistemá-tico da linguagem pela criança. Éa oportunidade para explorarcomo fazer coisas com palavras.

O jogo, conforme Bruner(1983b, p. 46), tem formato idea-lizado e fechado. Idealizado, por-que de início é constitutivo eautocontido. Tem a ver com apermanência do objeto, que écoordenada pela criança ou pelamãe. O peekaboopeekaboopeekaboopeekaboopeekaboo consiste emuma seqüência de ações: prepa-ração, desaparecimento e reapa-recimento do objeto e restabe-lecimento da comunicação. Ge-ralmente, a mãe repete a brin-cadeira até que a criança tome ainiciativa e assuma o lugar deagente.

Há mudanças ou ritualizaçõesde papéis no esconde-esconde,com um eixo: agente-ação – ob-jeto-sinalização para o encadea-mento da seqüência. Aqui, o jogotem por efeito atrair a atenção dacriança para a comunicação em sie para a estrutura dos atos nosquais se baseia a comunicação, ouseja, o pensamento.

A espécie humana utiliza ojogo para desenvolver a lingua-gem e suas formas de uso (regras),ou seja, a gramática. Bruner vê ojogo de linguagem dissociado doresultado, do uso instrumental. Ocaráter lúdico regula o saber-fa-zer, que é marcado pela flexibili-dade, frivolidade e afetividade5,à semelhança das característicasapontadas por Caillois (1967),Huizinga (1951), Brougère (1995),Henriot (1989), Bateson (1977),Kishimoto (1996), como imaginá-rio, regras, flexibilidade de con-duta, frivolidade, improdutivida-de e intencionalidade.

No lúdico, os segmentos deconduta são convertidos a finsnão-utilitários, sobretudo para si-nalização, substituição, variaçãoetc. Nos rituais de jogo, criançasinteragem com mães: escondem,acham objetos, vêem figuras delivros, tampam ou destampamcom as mãos as imagens, abrem oufecham o livro e olham para asmães toda vez que repetem a ação.

Na brincadeira de esconde-es-conde, Bruner (1983, p. 75; 117),observando a seqüência de pas-sos, verifica que a criança aos 6/7meses presta atenção aos objetospara pegá-los e, de onze a trezemeses emerge a conduta doapontar. A partir de um ano e dois

meses, a criança começa a verba-lizar nomes. Isso implica enten-der que a gramática é um conjun-to de regras que emana da ativi-dade da criança e da mãe, codifi-cada segundo a cultura de umacomunidade lingüística.

A linguagem é um instrumen-to essencial para constituição dopensamento e das relações sociais.Bruner se opõe à visão piagetianade linguagem como sistema len-to que não faz senão relatar o pen-samento, um tipo de sintoma. Alinguagem, quando usada comorepresentação e como ferramen-ta de reflexão, possibilita a toma-da de consciência, a iniciativa, acomunicação e as relações soci-ais. O adulto propõe degraus nocontexto da interação social paraque a criança possa continuar suaação livre e exploratória(BRUNER, 1983 a, p. 283).

A consciência está relacionadacom a zona de desenvolvimentoproximal, por se tratar de ferra-menta particular para a aprendi-zagem assistida. Se o adulto assis-te a aprendizagem da criança demodo sistemático, esta ajuda a si

5Mais informações em Bruner (1976 e 1986), Bruner et al. (1978) e Kishimoto (1998).

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mesma, tomando consciência desua própria atividade. Os sistemasde signos disponíveis para a cri-ança, em particular a linguagem,são essenciais para a tomada deconsciência. A criança depende,no início, da consciência do ou-tro para se tornar capaz de repre-sentar suas próprias ações comajuda de um sistema de signos.

O desenvolvimento da cons-ciência da criança é impossívelsem o emprego da linguagem nocontexto interpessoal. É este osentido que Vygotsky dá à pala-vra egocêntrico. Para Bruner(1983a, p.290-291), a fala ego-cêntrica da criança pode ser to-mada em dois sentidos: para acomunicação, ou para orientar opensamento. A linguagem é umaferramenta plurifuncional quetransforma as ações da criança e afaz participar da vida intelectuale social que a cerca.

Ao considerar a narrativa co-mo a forma natural da linguageminfantil, McEwan e Egan (1995)reconhecem o mérito de Brunerao utilizar o termo andaime(scaffolding), como metáfora paraa construção da narrativa pela cri-ança. Esta noção aparece primei-ramente no estudo da díade mãe-criança, de Ninio e Bruner (1978),denominado The Achievementand Antecedents of Labelling. Emsituações de brincadeiras livres,no período de oito meses a umano e seis meses, a criança, namanipulação de livros ilustrados,

em diálogo com a mãe começa aatividade de nomear. A pesquisamostra que a ”linguagem é apren-dida, não ensinada”, estruturasinatas possibilitam a aquisição doléxico da criança por meio de suaauto-atividade no seio de cultu-ras. Na verdade, há razões paraacreditar em mais de uma formade pedagogia das mães, e possi-velmente muitas rotas na aquisi-ção da linguagem.

Quando a criança aponta ounomeia, a mãe a compreende,porque dispõe de um saber quea criança ainda não tem comple-tamente, ou que tem apenas emsentido primitivo. Para auxiliarnesse processo, a mãe usa o “diá-logo por andaimes” (NINIO eBRUNER, 1978, p.3), que surge noato de nomear, nas primeirasinterações, quando a mãe respon-de seletiva e imitativamente aosgestos e verbalização da criança,e esta à mãe.

As primeiras formas de “diálo-gos” observadas no estudo mos-tram condutas orientadas paracoisas, objetos que passam dasmãos da mãe para a criança e des-ta para a mãe, na forma de jogo,

com características de diálogo:papéis, turnos de pegar, iniciar eresponder. Na leitura de um li-vro, há quatro elementos estrutu-rantes no jogo: 1 atenção vocativa;2 pergunta; 3 nome e 4 feedback(NINIO e BRUNER, 1978, p. 6).

Mãe: Olha! (atenção vocativa)Criança: (toca pintura)Mãe: O que é aquilo? (pergunta)Criança: (verbaliza e sorri)Mãe: Sim, são coelhos (feed-back e nome)Criança: (verbaliza, sorri eolha para a mãe)Mãe: (sorri) Sim, coelhos (feed-back e nome)Criança: (verbaliza, sorri)Mãe: Sim (sorri, feedback)

Em diálogo com a mãe: “Olha”,ouvir a pergunta “O que é isto?ouvir o nome: coelhos e, em se-guida, o feedback, a criança ini-cia o processo de leitura.

Bruner comenta o forte papelda tutoria no desenvolvimento doletramento em interação com a cri-ança. Mostra o poderoso conceitode ZDP, por meio do qual o adul-to ajuda a criança a adquirir com-petência de mais alto nível. Em

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Bruner comenta o forte papel da tutoria nodesenvolvimento do letramento em

interação com a criança. Mostra o poderosoconceito de ZDP, por meio do qual o adultoajuda a criança a adquirir competência de

mais alto nível.

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Actual Minds, Possible Words (1986)e no prólogo à obra The CollectedWorks of L. S. Vygotsky (1987),Bruner reconhece a importânciadesse conceito de ZDP e, no mar-xismo, a sua origem social.

O desenvolvimento da lin-guagem infantil se faz pelo jogo.Nos jogos verbais, os bebês com-binam palavras, sons e gestos; naslalações, que são os primórdiosde uso de regras, chegam à com-preensão da linguagem. São atosde significação que só se mani-festam em uma cultura, em con-tatos interativos. No processo nar-rativo, característico da criançapequena, o brincar aparece coma nomeação de brinquedos (bo-neca, carrinho), de suas caracte-rísticas (chora, corre), de cons-trução de frases (sapato é da bo-neca, carrinho é do nenê) ou deexpressão de seu ponto de vista(nenê não chora, carrinho feio).O brinquedo está presente no de-senvolvimento da narrativa dacriança.

O brincar está presente em pres-supostos de várias pedagogias.

Penn Green Centre, institui-ção infantil inglesa, em Corby,

considerada de alta qualidade,assume como pressupostos:

1. Os pais são os melhores edu-cadores das crianças, portan-to, é preciso envolvê-los natarefa da educação infantil;

2. É preciso conhecer cada cri-ança e seus interesses para daro suporte necessário ao seudesenvolvimento e aprendiza-gem – o que torna prioritáriaa formação contínua e a doprofessor pesquisador;

3. A prática reflexiva é instrumen-to importante do professor; e

4. As atividades do brincar são uti-lizadas para averiguar os inte-resses das crianças (WHALLEY,2001, p. 1-10).

Considerando o impacto da prá-tica reflexiva na formação de pro-fessores, a relevância do trabalhoconjunto com os pais, na perspectivaecológica de Bronfenbrenner (1996),Penn Green Centre destaca olúdico como objeto de atençãoda escola e da família, como pon-to de partida para a educação. Ascrianças circulam livremente emambientes planejados, brincam,

exploram, perguntam, recebemsuporte dos adultos e são por elesobservados (pais e profissionais).Reuniões sistemáticas entre paise equipe de educadores para adiscussão das situações de apren-dizagem e desenvolvimento dacriança evidenciam ações integra-das entre o equipamento infantile a família.

Destaco, para análise, o epi-sódio em que uma criança, explo-rando coisas que amarram, enro-lou-se em fitas e disse à professo-ra: “Sou um pingüim”. A profes-sora imediatamente foi buscar umlivro sobre pingüins e iniciouuma conversa sobre a temática,dando suporte à ação iniciadapela criança. No final da semana,a mãe levou a filha ao zoológicopara ver o pingüim. No entenderde Bronfenbrenner (1996), osdois ambientes (microssistemas dafamília e da escola) geram estímu-los ricos que auxiliam a criançana construção de esquemas, comoo de amarrar, no desenvolvimen-to da linguagem, levando o adul-to a refletir sobre sua prática (me-sossistemas).

No Japão, a reforma curriculardos jardins de infância dos anos90 do século passado introduziuo brincar como instrumento paraa exploração do ambiente edu-cativo (KISHIMOTO, 1995, 1997).Lá observei um grupo de crian-ças que tentava construir um ci-nema. Pediram à professora para

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ajudar a cercar, com plástico, umcanto da sala, e aí colocaram oretroprojetor. A professora dis-ponibilizou inúmeros livros comdesenhos de objetos para proje-tar, fáceis de construir. Após aconstrução das imagens para pro-jeção, uma criança sentou-se nochão para fazer um cartaz com otítulo: cinema, com o suporte doadulto. No Japão, a política edu-cacional proíbe atividades siste-máticas de ensino de escrita e cál-culo, mas valoriza o letramento,que vai aparecendo, de forma in-dividual, calcada na experiênciasignificativa, vivida pela criança nacondução de projetos, em conta-to com pares e adultos. É o queVygotsky argumenta: a construçãodo conhecimento ocorre, primei-ro, no plano social e, depois, noindividual. A escrita que está nocontexto social, ou seja, na salade atividades, nos nomes e livros,nas áreas de faz-de-conta, nas ta-

buletas, nos cartazes, no lar e nasociedade, vai sendo construídapela criança de forma individuale pessoal. Os processos não sãoiguais. Portanto, não se pode uti-lizar estratégias iguais para todasas crianças.

Como o brincar de faz-de-con-ta pode contribuir para o letra-mento? As Pedagogias (Freinet,High-Scope, na Itália, no Norte daEuropa, no Japão, entre outras)que possibilitam à criança escolheráreas para brincar ou para desen-volver projetos, facilitam a com-preensão dos códigos escritos eseus significados (letramento).Carregadas de intencionalidade,de envolvimento, com um fluxo,uma energia, criam um clima pro-pício para o conhecimento domundo. O brincar de fazer livros,bilhetes, cartas, tabuletas ou carta-zes, fazer entrevistas e organizarportfólios ou jornais são formas deletramento e de escrita infantil.

A estratégia adotada peloHigh-Scope – planejar, executare avaliar – dá as condições paraque a narrativa da criança fiquecarregada de significado, mas épreciso distinguir narrativas, fru-to da ação de brincar, e outras,dirigidas pelo professor. O brin-car é uma ação episódica, cujorumo depende do sujeito quebrinca, e não pode ficar atreladoa objetivos externos.6 Na área defaz-de-conta da casa há, nas estan-tes, produtos de limpeza ou ali-mentícios, com rótulos conhe-cidos pelas crianças, para que,brincando, tenham um ambientecom letramento.

O letramento ocorre em dife-rentes momentos, não só ao brin-car. Quando do acolhimento decrianças de 3 anos em uma uni-dade infantil em Braga, Portugal,a professora escreve em uma car-tolina as narrativas de pelo me-nos 4 a 5 crianças. Surgem inte-ressantes diálogos de crianças le-vantando hipóteses sobre a escri-ta de seus nomes e de seus cole-gas. Tais folhas são utilizadas li-vremente pelas crianças para ex-pressar, no desenho, a mesmahistória contada no início do aco-lhimento. Com o desenvolvimen-to do letramento, começam a di-ferenciar letras e números de

A estratégia adotada pelo High-Scope –planejar, executar e avaliar – dá as

condições para que a narrativa da criançafique carregada de significado, mas é

preciso distinguir narrativas, fruto da açãode brincar, e outras, dirigidas pelo professor.

6Ver a respeito Kishimoto (2002).

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outros objetos ou situações.No Colégio Pedro V, de Braga,

Portugal, os quadros de registrosde freqüência ou do clima servemcomo modelos para as crianças de4 a 5 anos construírem torres comblocos de construção, comparan-do “quantas” ( altura da torre) vi-eram ou deixaram de vir à unida-de infantil ou “quantos” dias hou-ve de sol ou de chuva. É a emer-gência da linguagem matemática,que oferece outra forma de com-preensão do mundo pela expres-são tridimensional.

A construção de noções mate-máticas só é significativa quandopassa pela experiência da crian-ça. As situações de brincadeiraspotencializam a construção de sig-nificações e noções, como den-tro e fora, grande e pequeno, emações como entrar e sair de cai-xas. As dimensões podem sercompreendidas com mediçõesfeitas com o próprio corpo, mem-bros (pés, braços, mãos, dedos),ou com objetos, como pedaçosde madeira.

O Colégio Pedro V construiuuma pedagogia da infância que in-tegra a abordagem de projetos deKatz e Chard (1999) em seu cotidi-ano (OLIVEIRA-FORMOSINHO eKISHIMOTO, 2002). As criançasdessa instituição infantil brincamcom o teatro de sombras chinês,e de fazer, pisar e medir suas som-bras. Levantam hipóteses sobre oque acontece com as sombras edão significados para suas ações.Constroem objetos e os ilumi-nam, criando sombras. Utilizamlinguagens diversas para expres-sar o conhecimento da realidadee suas narrativas, cheias de deta-lhes, mostram a riqueza dos gê-neros de linguagem, antecipan-do a escrita. Observando as som-bras produzidas pelo sol, lua oufogo, ou pelo farol do carro oulanterna, o professor e as crian-ças criam uma nova categoria –sombras – produzida pela natu-reza (luz natural) e pelo homem(luz artificial). Assim, na acepçãode Vygotsky, contribui-se para de-senvolver funções psíquicas supe-

riores, quando observações con-cretas experimentadas no brincardão suporte para novas categori-as abstratas que englobam fatosobservados por cada criança.

No Laboratório de Brinquedose Materiais Pedagógicos da Facul-dade de Educação da Universida-de de São Paulo, as crianças brin-cam em estruturas com água eexploram objetos que afundam,que têm furos, represam água,usando placas móveis, transpor-tam água de um lugar para outro,com diferentes suportes. Nesseprocesso, as crianças elaboram ecomentam suas hipóteses, obser-vam e relacionam, desenham ou“escrevem” suas experiências.Observar suas ações e efeitos eexpressá-los por meio de lingua-gens está na base de uma educa-ção que considera a criança ativae capaz de construção do conhe-cimento. Brincando com água ascrianças desenvolvem, de formaintegrada, a linguagem, a mate-mática, as ciências, a compreen-são do ambiente, expressam suacriatividade e as relações sociaise pessoais. Integrar ações repre-senta a forma natural de aprendi-zagem da criança pequena, quedispõe de um pensamento quenão fragmenta percepções, rela-ções e seus interesses.

Experiência conduzida porLenira Haddad nas escolas infan-tis do Município de Ubatuba, SãoPaulo, no início dos anos 1990,

A construção de noções matemáticas só ésignificativa quando passa pela

experiência da criança. As situações debrincadeiras potencializam a construção designificações e noções, como dentro e fora,grande e pequeno, em ações como entrar e

sair de caixas.

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mostra como as crianças explora-vam as trilhas nas matas e pesqui-savam os seres marinhos, naspraias. Esse processo aparecianas falas das crianças, nos registrosgráficos e nas formas tridimen-sionais nas salas e paredes. Taisambientes de aprendizagem resul-tam de ações intencionais do adul-to que prevê uma variedade de es-tímulos para a construção da cul-tura infantil e atos de significação.

A introdução do brincar naspedagogias da infância tem lon-ga história. Froebel (1924), em1840, introduziu nos jardins deinfância dons e ocupações, comatividades orientadas pela jardi-neira, brinquedos e jogos, comoatividades livres, iniciadas pelacriança. Freinet (1998) propõeuma ponte entre o brincar e o tra-balho, em suas oficinas e ativida-des fora da escola. Dewey (1926)estabelece a relação entre o brin-car e o aprender, ao introduziráreas de faz-de-conta e projetosna sala de atividades para que acriança possa trazer os temas dasociedade. Se hoje ensinam-se asoperações matemáticas por meio

da dança – a linguagem do movi-mento, – Froebel (1896) e outrosanunciam como as poesias e mú-sicas ritmadas, em situações debrincadeiras, contribuem paraemergência do letramento. É nosombros de filósofos gigantes, co-mo Froebel e Dewey, ou psicólo-gos como Piaget, Vygotsky e Bruner,que continuamos a postular os di-reitos da criança ao brincar.

Leavers (2000) aponta um flu-xo na ação, um envolvimento,quando o sujeito está interessa-do em algo significativo. No brin-car, o envolvimento é intenso, acriança não se distrai, despendeenergia, um clima propício paraaprendizagem. Aqui convém uti-lizar a zona de desenvolvimentoproximal. Não se trata de dar umaaula, mas de aproveitar o interes-se da criança e organizar o espa-ço e materiais para que possaavançar em sua exploração. Pascale Bertram (1999) reiteram a inte-gração entre o brincar e a açãoeducativa com o suporte do adul-to nos centros infantis.

As crianças que desenvolvemprojetos de seu interesse gostam

de identificá-los. É neste momen-to que se compreende que oscódigos da escrita são atos de sig-nificação (letramento). A comuni-cação e a socialização de situaçõessignificativas são naturais em con-textos em que se respeita a crian-ça. O saber-dizer depende do sa-ber-fazer, e o saber-escrever, dosaber interiorizado (BRUNER,1983). Quando gesticulam, dese-nham, falam ou escrevem o quevivenciaram, as crianças expres-sam significados enativos, icô-nicos e simbólicos. É esse o pro-cesso que leva ao letramento. Asformas de representação do mun-do, de Bruner, auxiliam a com-preensão do processo deletramento da criança.

Nesse processo, a cultura doadulto e da sociedade é codifica-da e passa a fazer parte do uni-verso infantil. Na obra Escola eCultura, Bruner (1996) mostracomo as histórias infantis, narra-das pelos adultos e, depois, pe-las crianças, passam a ser os “tex-tos” expressos na forma sonora,gráfica ou simbólica.

No Colégio Pedro V, as crian-ças, ouvindo as notícias do Ira-que, interessaram-se pela guerra,depois, pela paz. Pesquisaram osignificado da paz. Entrevistarampais, transeuntes e funcionáriose descobriram a pomba comoícone da paz, relacionaram figu-ras religiosas, como São Francis-co, que lutaram pela preservação

Quando gesticulam, desenham, falam ouescrevem o que vivenciaram, as crianças

expressam significados enativos, icônicos esimbólicos. É esse o processo que leva ao

letramento. As formas de representação domundo, de Bruner, auxiliam a compreensão

do processo de letramento da criança.

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da natureza, e compreenderamque flores e árvores também sig-nificam paz. Multiplicaram-se asfalas, os desenhos e os textos in-dividuais e coletivos do projetoda paz, que personalizaram a salade atividades, evidenciando o le-tramento.

No âmbito da linguagem, par-lendas, trava-línguas e brincadei-ras de formar palavras e criar tex-tos expressam a sonoridade dassílabas e o saber-fazer necessáriopara a compreensão das regras erecriação dos textos.

A estética está presente na so-noridade e ocupação dos espaços.A organização de portfólios sobrebrincadeiras tradicionais, envol-vendo a criança, pais, professo-res e a comunidade, contribui pa-ra o letramento. Brincar, dese-nhar e escrever as brincadeirasque conhece ou que pesquisousão formas de estimular o letra-mento. Brincar de registrar suashistórias, redigir bilhetes, cons-truir livros, mapas de tempos e

de presença, denominar seusprojetos, consultar livros e pre-encher fichas de empréstimo delivros são exemplos de situaçõesque valorizam a emergência dalinguagem.

O brincar com sons, com mú-sica, com gestos, tão significativose agradáveis para a criança, é pou-co utilizado pelas instituições in-fantis, certamente por razões re-lacionadas à formação e à culturadocente (KISHIMOTO, 2000,2003).

Quando se trata do brinquedoe do brincar, imediatamente sepensa no brinquedo industrializa-do e na dificuldade de obtê-lo.Entretanto, pode-se brincar como próprio corpo, com os materi-ais naturais, com os sons emitidospelos objetos, com a sucata indus-trial e natural, e também com osbrinquedos industrializados.

No Japão, um país rico, semproblemas financeiros para adqui-rir materiais, verifiquei que se uti-lizava sucata, como caixas grandes

e pequenas de papelão, para osprojetos das crianças. Situação si-milar encontrei em Braga, Portu-gal, em uma escola particular, on-de os professores utilizavam pe-dras dos rios e das calçadas para ascrianças pintarem, pedaços de vi-dros doados pelas vidraçarias comosuporte para maravilhosas pintu-ras; pedaços de madeira, tambémdoados pelas marcenarias, para aspinturas e produção de blocos;caixas de sapato ou de camisas,como blocos de construção.

Nos jardins de infância do Ja-pão, as crianças utilizam no seudia-a-dia terra e água para fazerrios, montanhas, barragens, so-bem em árvores, escalam monta-nhas, cavam a neve acumulada,derretem a neve, enfim, explo-ram, levantam hipóteses, apren-dem e se desenvolvem. Mas paraisso é preciso que os professorestenham concepção sobre a crian-ça como ser ativo e construtor deconhecimento, que saibam comodar suporte no momento adequa-do e tenham condições paraobservá-la e acompanhá-la emseus projetos, além de uma estru-tura que possibilite tais atividades(KISHIMOTO, 1998). No Brasil, ariqueza dos discursos é acompa-nhada da pobreza de práticas ede pouco uso de materiais emuma natureza tão generosa.

Aprender pela experiência,pelo fazer, pela indução e, de-pois, caminhar para a dedução, éo que Bruner sugere em seu cur-

Quando se trata do brinquedo e do brincar,imediatamente se pensa no brinquedo

industrializado e na dificuldade de obtê-lo.Entretanto, pode-se brincar com o própriocorpo, com os materiais naturais, com ossons emitidos pelos objetos, com a sucata

industrial e natural, e também com osbrinquedos industrializados.

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Quando afirma que a criançapode aprender qualquer coisa,desde que adequada à sua formade compreender o mundo,Bruner mostra as três formas derepresentar o mundo: enativo,icônico e simbólico. A criançapode expressar a velocidade noplano motor, correndo; desenhar

pessoas correndo e mostrar quemganhou, ou utilizar a fórmula e/t,como uma linguagem lógico-ma-temática da velocidade (o espaçopercorrido em determinado tem-po). O currículo em espiral repre-senta, de forma figurada, o per-curso que a criança faz para apro-fundar as concepções nas diferen-tes formas de representação.

Se o letramento é, também,uma prática social de uso da es-crita, é fundamental a definiçãode projetos pedagógicos de in-

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clusão do brincar na educaçãoinfantil. Em ambientes sem pres-são, as crianças definem seus in-teresses e buscam objetos de co-nhecimento, e tais experiênciastransformam-se em atos de signi-ficação. Em síntese, o caminhopara a emergência do letramentorequer experiências que subsidi-em o fazer, que criem as condi-ções para o falar, para a expres-são gráfica e a simbólica. Tal ca-minho só pode ser construído poratos de significação.

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Resumo

Este artigo investiga possíveisarticulações entre a formação deprofessores, a educação inclusivae o lúdico. Inicialmente exami-naremos as transformações havidasno contexto educacional a partirdo modelo trazido pela cultura demassa midiática. Em seguida des-tacaremos de que maneira esteprocesso tem afetado o processode transmissão de saber nos pro-cessos de formação continuada deprofessores para a educação inclu-siva. Por último, aprofundaremosalguns aspectos das discussões re-lativas ao uso do lúdico nos pro-cessos de formação continuada de

professores no âmbito da educa-ção inclusiva. Todas as discussõesterão como pano de fundo a ver-tente psicanalítica de orientaçãofreudiana e lacaniana.

Palavras-chave: ensino regu-lar; educação especial; educaçãoinclusiva; formação continuada deprofessores; cultura de massa mi-diática; o lúdico; psicanálise.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

This article inquires possiblelinks among the teaching degree,the inclusive education and theludo. First, we’ll see the trans-formations that appeared in theeducational subject as a whole

beginning with the modelintroduced by the mass mediaculture. Next, we’ll stand out howthis culture has affected thekowledge diffusion related to thecontinuing teaching degree and itsrelationship with the inclusiveeducation. At last, we’ll stand outwith all those teachers dedicatedto the inclusive education. All thematters here concerned shall haveas background the psycho-analitical orientation according toFreud and Lacan.

Key words: Key words: Key words: Key words: Key words: regular teaching,special education; inclusiveeducation; continuing teachingdegree; mass media culture; ludo;psychoanalysis.

Introdução

Há dois anos atrás a RevistaIntegração (2002) deu destaquea algumas reflexões a respeito daformação de professores, o lúdicoe a educação inclusiva. Um dostextos chamou-me especialmen-te a atenção por sua profundida-de: uma entrevista do professorCarlos Roberto Jamil Cury desta-cando a necessidade de se repen-sar a formação de professores apartir de novos parâmetros onde

A Formação deProfessores, a EducaçãoInclusiva e o Lúdico:

Leny Magalhães Mrech*Leny Magalhães Mrech*Leny Magalhães Mrech*Leny Magalhães Mrech*Leny Magalhães Mrech*

a construção de novos laços sociais

*Professora Livre-Docente da Faculdade de Educação daUniversidade de São Paulo. Psicológa, Psicanalista ePsicopedagoga. Coordenadora geral do Núcleo de Pesquisade Psicanálise e Educação da Faculdade de Educação daUniversidade de São Paulo e do Núcleo de Pesquisa dePsicanálise e Educação do Instituto da Psicanálise Lacaniana(IPLA). Coordenadora geral da Coleção Psicopedagogia ePsicanálise para a Editora Vozes, Coordenadora geral daColeção de Educação Inclusiva para a Editora Vozes e daColeção de Psicanálise e Transmissão para a EditoraAvercamp. Consultora de assuntos de Psicanálise e EducaçãoInclusiva.

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DEBATE

fossem privilegiados a descons-trução de mentalidades formadasna base da hierarquia (superior/inferior;normal/anormal) e aconstrução de uma nova cultura(democrática, igualitária e dife-renciadora).

Ele destacou a necessidade deuma concepção mais ampla e in-tegrada em relação à formaçãogeral de todos os professores, àformação de especialistas em edu-cação especial e à formação doprofessor dos professores. Umcaminho que, segundo o autor,tenderia a ser bastante árduo e di-fícil na construção da verdadeiraeducação inclusiva. Um caminhoque exigiria um cuidado extremopara se afastar de vertentes redu-toras e reprodutoras de um pas-sado que não existe mais.

Mudanças no social,

mudanças na cultura

Na entrevista, o professor Cury(2002) destacava a necessidade demudanças futuras nos contextossociais relativos à educação e àcultura:

Nossa herança é hierárquica enossas leis apontam a exigên-cia de uma nova cultura. Sãoas duas margens de um rioque pretendem ser ligadaspor uma ponte. Os três âmbi-tos estão no meio do cami-nho. É o momento mais difí-cil, pois tanto pode haver re-gressão (caminho mais fácilde não construir uma novaponte) como avanço (educa-ção de qualidade e que éinclusiva).(p.7)

Ocorre que tais mudanças, pa-ra alguns cientistas sociais con-temporâneos como AnthonyGiddens, Ulrich Beck e Scott Lash(1997), já se encontram em ple-no andamento:

Os indivíduos são construídosatravés de uma interação dis-cursiva complexa que é muitomais aberta do que supunha omodelo funcionalista de pa-péis sociais. Ao contrário, ofato é que as instituições es-tão se tornando irreais em seusprogramas e fundações, e porisso dependentes dos indiví-duos. (p.28)

Elas dizem respeito, sobretu-do, a modificações nos agentesestratégicos de mudança. No pas-sado havia a crença que a socie-dade moldaria as instituições so-ciais e, em decorrência, os indi-víduos. Contudo, recentementea concepção inversa tornou-semais verdadeira. É o sujeito, enão mais as instituições e a pró-pria sociedade, que ocupa um lu-gar de destaque na cultura atu-al. “Por um lado, está se desen-volvendo um vazio político dasinstituições; por outro, umrenascimento não institucionaldo político. O sujeito individualretorna às instituições da socie-dade” ( GIDDENS, BECK e LASH,1997).

Com isso, passamos de umavertente sociocêntrica com ênfa-se na cultura e nas instituiçõespara uma outra mais centrada nosujeito, a partir de seu processode individualização. “O objetoclássico das ciências sociais, da fi-losofia do direito à sociologia,dissolve-se.(...).O ator é cada vezmenos social e está muito maisdirigido por um ideal de si mes-mo, apesar desse ideal só existirem situações sociais” (TOURAINEE KHOSROKHAVAR, 2004:9).

O que acabou trazendo mu-danças bastante significativas emrelação ao processo de formaçãode professores. Mudanças relati-vas ao esgarçamento dos laçossociais voltados para a hierarquia,o poder e o saber.

Neste século XXI o mundo éoutro. A globalização desregu-larizou a ordem social. O paifoi relativizado, os países seuniram em comunidades se-toriais (Europa, Ásia, Américado Norte, América do Sul), aeconomia não respeita fron-teiras. O jovem criado nos ide-ais de escolha, realização eganho da era industrial encon-tra os cacos da indústria. Ondehavia chaminé de fábrica apon-tando o céu surge a telinhavitual, jogo de múltipla esco-lha. (...) Ocorreu uma revolu-ção: as máquinas que assegu-ravam o amanhã partiram.(...)(FORBES, 2003:23)

Por tudo isso, não dá mais paraprivilegiarmos apenas o circuitotradicional das chamadas políticaspúblicas em sua vertente socio-cêntrica e institucional. Torna-senecessário também incluir os no-vos agentes da cultura: os sujei-tos que dela participam e que in-troduzem caminhos nunca an-tes trilhados.

As soluções que serviam hátrinta anos já não valem mais.É necessário reinventar a clí-nica, a pedagogia e a justiça.E tanto melhor se pudermosaprender desses mesmos ado-lescentes, que sofrem direta-mente em seu corpo a espe-tacular mudança de para-digma pela qual estamos pas-sando – da era industrial paraa era da informação –, as so-luções inusitadas que eles es-tão encontrando para viver emuma época sem padrão, que

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chamamos em psicanálise dea época do Outro não exis-te. (FORBES, 2003:24)

Mudanças no processo deformação de professores

Quais são as principais mu-danças havidas no processo deformação de professores? Pri-meiramente, é preciso destacarque o professor atual vive ummomento em que ele não quermais ficar à margem. Ele querparticipar como dinamizador es-tratégico do seu próprio proces-so de formação.

Em segundo lugar, pela pró-pria massa de saberes produzidospela sociedade contemporânea,não existe mais interesse emacumulá-los, fazendo com que osprofessores passem a recortá-lospara se pautar por vertentes maispráticas e direcionadas para suasnecessidades imediatas.

Em terceiro lugar, o papel doprofessor como agente exclusi-vo de transmissão da cultura tam-bém se modificou. Pois, seja noâmbito do ensino regular ou nocircuito especializado, ele não émais o único agente transmissorde saberes, da cultura. É semprepossível se encontrar novas fon-tes em outros locais além do cir-cuito educacional estrito. Asmídias eletrônicas e televisivassão um forte exemplo deste pro-cesso.

Em quarto lugar, o própriosaber passou a ser visto com ou-tros olhos. Ele se banalizou, setransformando em mais um pro-duto da nossa cultura. Um pro-duto que pode ser vendido emqualquer lugar.

Em quinto lugar, os saberesorientados – saberes específicos– também estão passando portransformações drásticas, o quetem redundado na sua banaliza-ção. A cada dia é possível se ou-vir novos especialistas falando arespeito de como as pessoas de-vem proceder nos mais diferen-tes contextos. Uma gama suficien-temente ampla para abarcar des-de os conselhos médicos, psico-lógicos e jurídicos, até as práticasde ginástica corretiva. Dos con-selhos da nutricionista às dicasdos economistas.

Em sexto lugar, a internet tempropiciado novas formas de se fa-zer pesquisa, novas formas de setecer trabalhos especializados.Trabalhos que fazem parte de umnovo modelo de investigaçãodos principais problemas da hu-manidade.

Por tudo isso, o modelo pau-tado na hierarquia de saber verti-calizada vem perdendo o seu im-pacto, vem perdendo o seu pres-tígio. O que se necessita são no-vos lugares e novas práticas nacultura, novos lugares e novaspráticas na educação. Lugaresonde se possa ter acesso ao sa-ber de forma mais produtiva eprofunda. Onde haja a democra-tização do ensino e do saber emsentido amplo, onde as relaçõesde ensino e aprendizagem nãose apresentem de maneiraverticalizada.

A formação de professores pas-sa a ocupar, então, um lugar no-vo, um lugar estratégico, não im-plicando mais em uma simplesatualização de conteúdos, dire-cionados pelas pesquisas mais re-centes. Pois os professores dese-

jam mais. Eles desejam redimen-sionar as suas práticas em funçãodas mudanças havidas nos con-textos escolares. Porque passa-mos de uma vertente pautada nosprocessos de escolarização for-mais e na transmissão pura e sim-ples do saber para uma outra maisdirecionada para a cultura, a ci-vilização e o sujeito. Um proces-so que se encontra atrelado,como revelou o psicanalista JackyBeillerot (1985)1 à criação da so-ciedade pedagógica que, por suavez, é um dos produtos mais ime-diatos do surgimento das novastecnologias.

Mudanças nos contextosescolares e para-escolares

Vive-se a época da ampliaçãodos contextos escolares. Estesnão se encontram mais referidosapenas às agências formais deeducação, possibilitando umareconfiguração do espectro daprópria atuação do professor noâmbito do ensino regular, daeducação especial e da educaçãoinclusiva.

O campo de trabalho do pro-fessor mudou, e agora se esten-de a toda a cultura. Pensar na for-mação de professores, portanto,como alerta Cury, diz respeito aum trabalho muito maior. “Agoraé a vez da massa crítica presenteem nossas universidades, via pro-jetos pedagógicos, levantar o arcoda ponte formando novas gera-ções sob nova cultura, a culturado igual e do diverso”(2002:7).

O que muda quando as mídiaseletrônicas atingem a educação,o processo de transmissão de sa-beres e o processo de formaçãode professores? O que muda quan-do o processo de globalizaçãoatinge a cultura, a educação?Muda-se a própria maneira de

1Falecido em setembro de 2004 em Paris.

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DEBATEensinar, a própria maneira de sefazer cultura, a própria maneirade se formar professores.

A educação inclusiva, os

novos tempos e o processo

de formação de professores

Qual o papel da educação in-clusiva nestes novos tempos? Elapassa a ser convocada para ser ocimento estratégico destas mu-danças ocorridas na sociedade, nacultura, na educação. Não se en-contrando mais referida apenas aoâmbito educacional, abarcandotambém o esporte inclusivo, a saú-de inclusiva, o transporte inclu-sivo, etc. Uma relação que abran-ge em seu contexto mais amplo arelação do sujeito com o mundo,a natureza e os animais.

Alguns ainda hoje se vêemtentados a considerar a edu-cação apenas como uma pre-paração para a vida assim cha-mada ativa, e portanto apilotá-la a favor da corrente,isto é, a partir das demandas edas capacidades do mercadode trabalho. Mas será que sepode ainda falar, neste caso,de idéias sobre a educação?Certamente não, pois destemodo não se levam absoluta-mente em conta as demandasdos educandos que se preo-cupam com a sua personalida-de, com sua vida e seus proje-tos pessoais, com suas relaçõescom os pais e os colegas. Nãose pode também falar de edu-cação quando se reduz o in-divíduo às funções sociais queele deve assumir. (TOURAINE,2003: 318)

Dessa forma, a educação demaneira geral e a educação inclu-siva de forma mais específica têmse irmanado para tecerem as no-vas bases de práticas e encaminha-mentos recentes trazidos pela

cultura contemporânea. Elas con-vocam o sujeito a fazer parte decircuitos maiores. Vertentes queintroduzem os saberes em outrasbases. Um processo de transmis-são de conhecimento e saber maisinclusivo, agora trazendo: o cor-po, o afeto, as relações, o cog-nitivo, as ações do sujeito frenteà natureza e aos animais. Umaeducação inclusiva com inúmerossentidos, conexões e contextos.

Alain Touraine, em entrevistasa Khosrokhavar, destaca que, paradar os próximos passos, é neces-sário sair de perspectivas redu-cionistas que costumam concebero processo de inclusão/exclusãodo sujeito a partir de duas ver-tentes: integração e desintegra-ção. “Não creio que possamos ana-lisar a situação apenas por meiodos termos in e out, no sentidodo centro-periferia. (...) Não po-demos situar uma pessoa apenasem termos de integração e desin-tegração” (TOURAINE e KHOS-ROKHAVAR, 2004: 139).

A própria profundidade dadinâmica proposta pela educaçãoinclusiva não pode mais se pau-tar por uma leitura de estar in-cluído ou não incluído. Porque,devido ao próprio elenco de in-clusões a serem feitas, tais proces-sos se desdobram em múltiplasfrentes e em diferentes contextos.

O professor como efêmero

Mas, qual o impacto destesprocessos em relação à formaçãode professores? No passado, osformadores visavam formar os pro-fessores dentro de uma concep-ção idealizada pautada no alunoideal, na escola ideal, no profes-sor ideal. Privilegiava-se, sobretu-

do, o sentido, a significação. Acrença é que seria possível signi-ficar tudo, saber tudo, a partir deum modelo universalista.

O objetivo maior da educaçãoatual é que o processo de forma-ção de professores seja eficaz.Espera-se que professor, aluno,escola, cultura, sociedade sejameficientes.O modelo que subjaz atudo isso é o da qualidade total.Ou seja, estamos vivendo umaépoca onde não basta formar pro-fessores, é preciso que eles sejamformados de maneira eficiente.

O modelo que sustenta talperspectiva é o do mercado desaber. Um sistema de produção,antes aplicado à indústria, quehoje pode ser encontrado tam-bém nos circuitos educativos eculturais.

A formação artesanal de ho-mens, pela produção em sé-rie de técnicos. Os seresmaquínicos resultantes dessaprodução/formação são,como um eletrodoméstico,inseparáveis dos seus manu-ais de funcionamento: “comopesquisar”, “como ensinar”(...) Máquinas, além de ape-nas se prestarem ao uso deoutrem, não são divididas porum inconsciente”. (BACHA,2002:13, grifo da autora)

Como destaca Bacha (2002), osprofessores são convocados a ocu-par posições cada vez mais efica-zes e, por outro lado, se constatao quão efêmero tem se tornadoo seu trabalho e aquilo que elesensinam. Com isto queremos di-zer que o efêmero da culturamidiática, apontado por GillesLipovetsky, também vem atingin-

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do o trabalho do professor, e, emdecorrência, também o processode formação de formadores.

Toda a cultura mass-midiáticatornou-se uma formidável má-quina comandada pela lei darenovação acelerada, do suces-so efêmero, da sedução, dadiferença marginal. A uma in-dústria cultural que se organi-za sob o princípio soberano danovidade corresponde um con-sumo excepcionalmente instá-vel; mais que em toda partereina aí a inconstância e aimprevisibilidade dos gostos;nos anos 1950, o tempo mé-dio de exploração de um lon-ga-metragem era de cinco anos,agora é de um ano.(LIPOVETSKY, 1989:2005)

Ao se fazer uma análise daspolíticas públicas apresentadas noensino regular, na educação es-pecial e na própria educação in-clusiva, constata-se que todas elasapresentam uma característica co-mum: são efêmeras e a cada mo-mento se transformam. O quepermanece é apenas o próprioprocesso de formação de profes-sores. Revelando o próprio efê-mero da cultura atual, o próprioefêmero com que é tratada a for-mação de professores, a formaçãodos formadores.

A pergunta que fica: Será queos professores estão sendo con-siderados como sujeitos pelas atu-ais políticas públicas de formaçãode professores? A resposta é, ameu ver, negativa. O que temosvisto é um destaque dado ao co-nhecimento prévio, e não ao su-jeito. Pois, no contato com osprofessores, se utilizam apostilas,cadernos de estudo, parâmetros

curriculares, guias de ação,cartilhas para professores, etc.Materiais que acabam privilegian-do o conhecimento prévio, e nãoaquilo que os professores estãovivenciando no momento. Emsuma, materiais que não contem-plam as dificuldades enfrentadaspelos professores em seu cotidi-ano escolar.

Mas, por que isto acontece?Porque os formadores acreditamter uma resposta prévia: eles acre-ditam que possuiriam o saber maisadequado que os professores ne-cessitariam.

Mas, será que isto é verdade?Será que com nossas ações queprivilegiam o saber, e não o pro-fessor como sujeito, nós não aca-bamos introduzindo as mesmaspráticas excludentes que tentamoscriticar?

Neste sentido, penso que se-ria muito importante tomarmosum certo cuidado ao encaminhar-mos determinadas discussões. Istoporque existe uma singularidadeno processo de formação de pro-fessores que precisa ser captura-da, que precisa ser considerada.Uma singularidade que não seresolve no uso de categorias ge-rais ou generalizantes.

A formação de professores nãopode ser uma linha de montagemonde excluímos os produtos im-perfeitos e inadequados, paraperpetuarmos aqueles que consi-deramos os mais perfeitos e adap-tados aos usos sociais, como des-taca Bacha (2002). Por quê? Por-que esta é uma prática não inclu-siva. Porque esta é uma práticaque repete em ato o próprio pro-cesso que sempre criticamos, poisexclui as diferenças e as singula-ridades de cada professor. Porqueexclui exatamente aqueles que

apresentam maiores problemas.Aqueles que deveriam ser con-templados em primeiro planopelo nosso processo de formaçãoe atualização.

A formação dos formadores

e o processo de criação

da cultura

A psicanálise revela que oseducadores costumam apresentarum grande sonho: o de contro-lar a prática dos demais educado-res e os rumos da própria educa-ção. Freud, no entanto, semprepartiu da perspectiva inversa, aorevelar que educar, psicanalisar egovernar são profissões impossí-veis. Não porque não se possaeducar, psicanalisar e governar;mas porque nunca este processose dá como nós costumamos pre-ver, nós costumamos planejar. Hásempre algo que falta, algo queescapa. Algo da ordem do incons-ciente que nos convoca para no-vas leituras, novos contextos enovas práticas.

Formar professores não étransformá-los em seres adaptadosà cultura e à sociedade. Formarprofessores é desenvolver o seupotencial criativo frente à cultu-ra, frente à educação. Pois o pro-fessor é um agente criador porexcelência da cultura e da educa-ção. Educar é uma tarefa que selança para o futuro, e não umatarefa que repete apenas o patri-mônio da humanidade. Educar éda ordem da criação, e não da re-petição.

Quando o formador se colocana posição daquele que detém osaber que os professores necessi-tam, ele acaba transmitindo o quejá se sabe, formando o professorde fora para dentro. O resultadoé a dependência do professor emrelação ao formador.

É fundamental, nos dias dehoje, que o professor possa criar,

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DEBATE

se formando de dentro para fora.Que ele mesmo possa comandaro seu processo a partir das suasescolhas e necessidades. Um cir-cuito que se encontra estreitamen-te articulado às mudanças sociaisque apontamos anteriormente. Daía necessidade de se conceber oprocesso de formação dos profes-sores não mais como o circuito detransmissão de práticas consagra-das, atreladas ao ensino universi-tário, mas como um processo vin-culado à criação dos professorescomo agentes da cultura.

O objetivo a alcançar é umacombinação, a mais elaboradapossível, dos projetos profissi-onais e das motivações pesso-ais e culturais – o que impõeque se reconheça a pluralidadede funções da escola. Ela nãotem somente uma função deinstrução, tem também umafunção de educação, que con-siste ao mesmo tempo encora-jar a diversidade cultural entreos alunos e favorecer as ativi-dades através das quais se for-ma e se afirma a sua personali-dade individual. (TOURAINE,2003: 326)

E aí é preciso retornarmos ànossa reflexão a respeito do pro-cesso de formação de professo-res relativo à educação inclusiva.Porque ela apresenta uma enor-me inversão. Ao contrário do quemuitos acreditam, não são os pro-fessores universitários, as secreta-rias de educação etc. que detêmos novos saberes. São professo-res que se encontram na linha defrente das escolas. São eles quevivenciam situações que os espe-cialistas ainda levarão décadaspara decodificar, devido ao seuineditismo.

São eles que necessitam ser es-cutados pelos formadores. Enão o oposto. São os professo-res, e não os formadores, que tra-

zem os novos rumos da educa-ção inclusiva em suas mãos. Sãoeles os verdadeiros agentes estra-tégicos da cultura, da educação.São eles os verdadeiros agentesda educação inclusiva em seu cir-cuito mais estrito.

Por isso, penso que seria ne-cessária a introdução de novasmodalidades de trabalho com osprofessores com os quais estamostrabalhando. Modalidades maispróximas, cuidadosas e respeito-sas em relação aos problemas queeles vêm enfrentando. Modalida-des que atendam às suas espe-cificidades enquanto sujeitos par-ticipantes da cultura.

O lúdico e o processo de

formação de professores

Durante muito tempo fasci-nou-me o interesse que os pro-fessores costumavam apresentarpela troca de experiências, o cha-mado relato do professor a ou-tros professores. Passei a inves-tigá-lo para descobrir o que haviaali de tão importante para eles.Constatei que havia um encontrocom o vivo da educação e com oseducadores em toda a sua singu-laridade.

Eram momentos em que osprofessores relaxavam e pareci-am refletir a respeito do que ha-via acontecido com eles a partirde sua própria prática. Momen-tos em que os professores se per-cebiam tecendo os rumos de seuspróprios processos. Momentosem que os professores nomea-vam o que haviam sentido, pen-sado, vivido, etc. Momentos quetraziam uma característica dife-rencial em relação aos demaisprocessos: eram alegres, jocosos,vivos, etc. Momentos em que osprofessores se permitiam olharde fora e ver o que haviam feito,o que haviam pensado, o quehaviam sentido.

Eram momentos de um lúdicoem ato. Um lúdico em sentidoamplo. Toda a atividade emergen-te é lúdica, exerce-se por si mes-ma antes de poder integrar-se emum projeto de ação mais extensoque a subordine e transforme emmeio (DANTAS,1998:113).

Os relatos de professores se apre-sentavam associados a estes momen-tos do surgimento de uma ativida-de espontânea, de uma atividadenão-planejada. Eles tendiam a seapresentar sob a forma de peque-nas narrações, representações grá-ficas sob as formas mais diversas,dramatizações, música, canto,dança, expressões corporais, etc.Em suma, uma miríade de formasde atuação que revelava os mo-mentos em que o professor atuade uma maneira não-planejada,mas que acaba ocasionando efei-tos na sua prática.

Tais momentos apresentavamuma característica em comum:nivelavam todos os participantes.Ali ninguém se sentia a mais ou amenos do que o outro. Todos sesentiam fazendo parte de um con-texto maior. Todos se sentiamaprendizes. Eram momentosonde ninguém tinha a resposta.Todos se encontravam em busca.

Lembrei-me, então, de um tex-to clássico de Huizinga(1996),onde ele falava que, no passado,a melhor forma de transmissão dacultura se dava a partir das trocasde experiências, dos contatos nãoprogramados e das festas sazonais.Ali eram tecidos os novos conhe-cimentos, fazendo com que, pa-ralelamente, os participantes deuma dada sociedade estreitassemos seus laços.

Para Lauand, tal perspectivapode ser encontrada há muitosséculos na educação, pois Tomásde Aquino já nomeava experiên-

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cias bastante parecidas em relaçãoa essa forma de trabalho. Elas di-ziam respeito ao:

1. Jogo dos adultos2. Uso do humor e jovialidade

em situações de convivência3. O lúdico como um agente de

estruturação de novas relaçõessociais

Com isso, pode-se dizer que,de alguma forma, de longa data,a palavra jogar tem sido associa-da em educação aos jogos verbais,bem como ao lúdico em seu con-texto estrito através dos circuitosde ação.

A meu ver, as trocas de expe-riências dos professores unem es-tas duas vertentes anteriormentetrabalhadas isoladamente. De umlado, elas propiciam aos profes-sores a atualização a partir doscontextos verbais e, de outro, elasapresentam novas frentes de ação,novas frentes de trabalho. Elasrefletem aquilo que a psicanálisenomeia de “atos”2, relativos a cer-tos momentos significativos navida de uma pessoa, de um pro-fessor. Momentos onde o sujeitose sente um agente transformadorda cultura, e não um simplesrepetidor dos modelos que lheforam ensinados.

Traremos apenas alguns exem-plos destes processos quevivenciamos em nosso trabalhocom os professores:

Professora Maria: Contou queela fazia uso de histórias infantiscom os alunos da primeira sériedo ensino fundamental para tra-balhar a questão da inclusão.Talidéia surgiu depois dela consta-

tar que os meninos costumavamestigmatizar as meninas feias daclasse. Eles não queriam se rela-cionar com elas. Ela resolveu,então, trabalhar com os contos defada, introduzindo a história doPatinho Feio. Os alunos analisa-ram inicialmente a história e de-pois fizeram uma dramatização,aprofundando as discussões decomo o Patinho Feio poderia sesentir diante daqueles que o ex-cluíam. Gradativamente ela foipercebendo que as relações entreos alunos passou a sofrer umasérie de modificações drásticas,fazendo com que eles ficassemmais cuidadosos para não mago-arem os colegas.

Professora Joana: Ela relatouque se sentia muito preocupadacom o consumismo de seus alu-nos no ensino médio. Resolveu,então, trabalhar com eles fazen-do uma análise de como osanúncios eram criados, de quemaneira os produtos chegavamaté as mídias televisivas. No fi-nal do trabalho ela relatou queos alunos passaram a apresentarum olhar mais crítico. Alguns,inclusive, passaram a se interes-sar pelos efeitos das campanhasem diferentes públicos, outros pelamaneira como os produtos sãoproduzidos na sociedade atual,outros ainda pelos efeitos doconsumismo nas populações maispobres, etc.

Professora Francisca: Que pen-sar a inclusão diz respeito a umprocesso amplo. Não dá para di-zer que os professores incluem osalunos. Ela disse que, às vezes,são os alunos que incluem os pro-fessores. E passou a relatar o se-

guinte caso. Houve um período dasua vida em que ela estava mui-to infeliz. Havia se separado domarido. Ela não conseguia disfar-çar a tristeza quando ia para oseu trabalho. Um dia, uma de suasalunas do ensino fundamentalpercebeu o seu processo e veio con-versar com ela. A menina queriasaber o que estava se passandocom ela. Perguntou se podia aju-dar. A professora disse que não eque ela é que teria que enfrentara situação sozinha. No dia se-guinte a aluna trouxe uma músi-ca para ela que falava que elanão estava só, que as suas doresum dia iriam acabar, que erapara ela confiar que daria tudocerto. Desde esse dia a professorafalou que a sua vida mudou. Eladisse que conseguiu forças parasuperar os seus problemas. Em umdado momento ela passou a to-car a música que a menina ha-via tocado anteriormente. Foi ummomento em que toda a sala fi-cou irmanada pelo mesmo senti-mento da professora.

Professora Estela:Disse quequando começou os seus estudosa respeito da educação inclusivanão gostava dos conteúdos queela estava aprendendo. Pareciaalgo muito distanciado dela. Nes-ta época, se sentia, segundo suaspróprias palavras, vivenciandosuas aventuras no país das difi-culdades. Porém, um dia ficou co-nhecendo um menininho comSíndrome de Down e percebeu queele era uma criança como as de-mais, só um pouco mais lento.Este menino acabou por conquis-tá-la, fazendo-a perceber o quan-to o medo anteriormente domina-va a sua prática, o quanto elahavia se deixado levar pelo pre-conceito.

2Para Lacan, o conceito de ato aparece não apenas no contexto da clínica psicanalítica. Ele ocorre também fora dela. Contudo, é apenas através da análiseque o sujeito adquire uma dimensão maior de seus atos.

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DEBATE

Poderíamos nos estender emrelação a estes relatos. Mas pensoque alguns deles são suficiente-mente significativos para demons-trar que não só o professor pensae repensa continuamente a suaprática, como o faz de maneirabastante profunda e atenta.

Por tudo isso, penso que se-ria de extrema utilidade que osformadores introduzissem novaspráticas mais direcionadas parauma escuta mais detalhada dosprofessores, e não apenas se pau-tassem pela preparação de mate-riais prévios, como cartilhas,parâmetros, diretrizes, guias deação, etc.

Considerações finais

A educação inclusiva não sur-giu como um produto das polí-ticas públicas. Ela é um produ-to dos movimentos desencade-ados pelos sujeitos ao desejaremtransformar a cultura e a educa-ção.

Pensar nas políticas públicasno mundo atual significa dar con-seqüência a uma ação dos sujei-tos, e não a uma ação das institui-ções, que geralmente se dire-cionam para a sua própria perpe-tuação.

A formação de professores pas-

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VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

sa por um momento de transfor-mação radical. Uma saída dosmodelos prévios para o seu redi-mensionamento mais voltado paraas necessidades de cada sujeito,de cada professor em sua singu-laridade, em seu contexto de tra-balho.

E, nesse caso, mais uma vezpenso que um alerta é essencial:o de nós não deixarmos para trásos professores que não se encai-xam em nossos esquemas, emnossas propostas de educação in-clusiva. Pois, dessa maneira, nósestaríamos retornando às práticasexcludentes que de longa data es-tamos criticando.

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DEBATE

Resumen

La inclusión y exclusión es unconcepto muy utilizado en lasociología especialmente. En laactualidad, frente a tantassituaciones discriminatorias ennuestra sociedad latinoameri-cana, se impone el trabajo enrelación a la inclusión social. Eljuego es un fenómeno inherenteal ser humano en todas las fran-jas etáreas e independiente delorigen étnico, social, cultural. Eljuego va más allá de todafrontera que imponga la socie-dad y por lo tanto es propuestoen este artículo como un espaciodesde donde se puede promoverla inclusión social. Para ello esnecesario crear estrategias des-de donde todos los niños puedanintegrarse como pares, apor-tando cada uno de ellos sus ha-bilidades lúdicas, y donde las di-ferencias enriquezcan el procesode juego.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Inclusion basedInclusion basedInclusion basedInclusion basedInclusion basedon the playon the playon the playon the playon the play

The concepts of inclusion andexclusion are very widely used,especially in sociology. Today, inview of so many discriminatorysituations in our Latin Americansociety, it is essential to focus onworking for social inclusion. Theplay is a phenomenon inherent tohuman beings at all ages,regardless of their ethnic, social,or cultural backgrounds. Theplay breaks any barrier set up bysociety and, therefore, this articlepresents it as a space which canhelp foster social inclusion. Forthat purpose, it is necessary todevise strategies based on whichevery child can become integratedas a peer and contribute with theirplay skills in order to enrich theplaying process with theirdifferences.

El término inclusión vienesiendo utilizado en el campo dela sociología, frecuentemente,aunque no en forma exclusiva, enrelación a la inclusión y/oexclusión social. Continuando enesta línea, podríamos pensarmuchas formas de inclusión oexclusión que vivimos casi coti-dianamente en nuestras socieda-des: pobreza, discapacidad, enfer-mos de VIH, pueblos indígenas,grupos afrodescendientes, y, ennuestro país en particular (Argen-tina) aquellos grupos sociales pro-venientes de algunos paísesvecinos, como ser Bolivia, Perú yParaguay sobre todo. Si focaliza-mos en los microsistemas, toman-do la teoría ecológica deBronfenbrenner, podremostambién diferenciar diferentesformas y estilos, menores quizá,de exclusión social. En el ámbitoáulico, con frecuencia se observanexclusiones basadas en argumen-tos arbitrarios, preconceptos yprejuicios que están lejos de fa-vorecer una educación democrá-tica y armoniosa. Si comparamoslos diferentes mesosistemas,incluyendo en ellos las diferen-tes escuelas que existen ennuestro país, es fácilmentededucible el aislamiento quepromueven unas de otras,incluyéndose en franjas casi pa-ralelas sin conexión. Por un ladoestán aquellas escuelas a las queasisten niños de familias de unconsiderable poder económico ysocial, recibiendo una educaciónde un alto nivel académico con

La Inclusióndesde el Juego

María Regina Öfele* María Regina Öfele* María Regina Öfele* María Regina Öfele* María Regina Öfele*

*Licenciada en Psicopedagogía. Maestría en Psicología Educacional. Doctor of Philosophy conespecialización en Psicología Educacional. Atualmente, dirige el Instituto de Investigación yFormación en Juego (Buenos Aires – Argentina) y se desempeña como profesora en laUniversidad Católica [email protected] recebido e selecionado em novembro de 2004.

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diferentes posibilidades de adqui-rir numerosas herramientas a travésde las más diversas oportunidades.Por otro lado están aquellas escuelas,generalmente públicas aunquetambién hay algunas privadas en lasmismas condiciones, a las queasisten los niños provenientes desituaciones socioeconómicas des-favorecidas y marginadas, a los quela escuela ofrece, si, un cierto nivelacadémico, pero limitado muchasveces por falta de materialesdidácticos, recursos humanos, ydonde los niños tampoco accedena otras herramientas ni tienen enmuchísimos casos los elementosbásicos para poder asistir a laescuela.

Continuando con el meso-sistema escuela, también po-dríamos analizar la relación o vín-culo que se establece entre aquellaspara niños “normales” y aquellaspara niños “diferenciales”,estableciendo una clara dife-renciación y separación entre unasy otras. En la Ciudad de BuenosAires, ya se ha comenzado a trabajaren la inclusión de niños condificultades de diferentes tipos enescuelas comunes. En relación aesto hay diferentes estilos, desdeel niño que tiene un profesionalespecializado y lo acompaña en suproceso de aprendizaje escolar,adaptándole las diferentesactividades, y aquellos que notienen un profesional asignadopara todo el tiempo. Estos niñospodrían lograr un mayorsentimiento de inclusión,dependiendo esto del profesionala cargo y de los docentes y lainstitución en la que está.

Podríamos seguir enumeran-do numerosos ejemplos deexclusión social, donde lejos deintegrar y de incluir unos conotros, cada vez se percibe mayor

exclusión, las brechas entre unosy otros se abren cada vez más: es-tar dentro o fuera del sistema consus terribles y caóticas conse-cuencias. En este sentido, lo quese nos plantea por un lado esdelinear políticas públicas, polí-ticas educativas y de otras áreaspara poder ir erradicando de apoco estas diferencias o, por lomenos, ir achicando brechas. Peroen lo cotidiano, en los ámbitoslaborales más acotados, ¿qué es loque se puede hacer? Para ello nosremitimos al juego y al jugar comoun espacio posible de inicio deeste camino.

El juego y el jugar

Es sabido que cuando dos omás niños se encuentran, aúnproveniendo de diferentes naci-onalidades, experiencias, nivelessociales, idiomas, luego de uncorto período de reconocimientocomienzan a jugar juntos, claroestá, si las condiciones externasestán dadas. Estas escenas soncomunes de observar en aero-puertos, en hoteles, en lugares derecreación y de veraneo, dondeniños que no se han conocidopreviamente pueden integrarseespontáneamente en un juego sinla necesidad siquiera de un adul-

to que coordine, proponga o di-rija la actividad. En el juego secaen todo tipo de barreras y setransgreden también normas eindicaciones. Al jugar en muchosjuegos las diferencias etáreas noson obstáculos sino enrique-cimiento, y se establecen nuevoscódigos de convivencia, porqueel juego debe continuar y no sepueden perder jugadores gratui-tamente. En consecuencia, el quemejor conoce el juego ayuda alque no lo conoce tanto, el quees más hábil en un aspecto es si-tuado en un área de la cancha dejuego o asume un rol determina-do, y así las diferencias no marcanla exclusión, sino promuevenprecisamente la inclusión de to-dos en el juego. En el campolúdico también se da muchas vecesla situación en la que aquel niñoque tiene bajo rendimiento esco-lar puede mostrar otras habilida-des y, por lo tanto, invertir muchassituaciones que en el ámbito realparecerían imposibles.

En el jugar no se miran las di-ferencias sociales y menos aún laseconómicas, sino las habilidadeslúdicas, y se aprovechan las capa-cidades de cada uno en funcióndel juego. En este sentido, en eljuego prevalecen aquellas desi-gualdades o diferencias, pero con

En el campo lúdico también se da muchasveces la situación en la que aquel niño que

tiene bajo rendimiento escolar puedemostrar otras habilidades y, por lo tanto,

invertir muchas situaciones que en elámbito real parecerían imposibles.

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DEBATE

miras a enriquecer, sostener ymantener vivo el juego. Por estarazón también, en muchas opor-tunidades se reacomodan lasreglas o se implementan cambiosestratégicos entre y con losjugadores, como para que no seinterrumpa el juego. En el juego,lo que vale es saber jugar enprimer lugar. Y aún en el caso quese desconozcan las reglas, elmodo de jugar o algún otro as-pecto, se lo incorpora al nuevojugador y se le van explicando lasreglas lentamente.

Es cierto que también po-dremos observar muchas vecesque algún niño queda fuera deljuego, no se lo admite, o aúndentro del juego se desarrollanestrategias para marginarlo. Estoscasos en su mayoría remiten aniños que tienen dificultades pararespetar las reglas de juego enforma constante y periódica y sonpercibidos por los demás niñoscomo “aguafiestas”, que arruinande alguna manera el juego y porlo tanto no son bien recibidos porlos demás. En estos casos, laexclusión no es de alguna manerapor un rasgo externo, sino porun tema relativo al juego o jugaren sí mismo. Se lo excluye porno aceptar las normas del juegoen cuestión.

El juego permite la transfor-mación, habilita las más diversasmodalidades de comunicación yde intercambio, promueve laexpresión de numerosos pers-onajes con sus correspondientesaptitudes y características. El cam-po lúdico es abierto a múltiplesposibilidades, a los más variadosjugadores, aunque cerrado sobretodo a la intervención adulta enel caso del juego infantil, ex-cepto en aquellas situaciones don-de expresamente se los incluye oinvita a participar. En este senti-do, creemos que el juego es unespacio propicio para promovery habilitar la inclusión social.

Juego, jugar e inclusión

¿Por qué pensar el juego comoespacio de inclusión social? Eljuego es un ámbito en el que to-dos se pueden integrar, indepen-dientemente de la franja etárea,del género, de la condiciónsocioeconómica, de su origenétnico, de los aprendizajes pre-vios, de las posibilidades físicas.Si bien para determinados juegosse requieren habilidades particu-lares que no siempre todos losque quieren participar pueden,generalmente dichas diferenciasse van superando y compensan-

do por los mismos niños con elobjetivo de mantener y sostenerel juego, más allá de estasdificultades. Prácticamente todoslos teóricos coinciden en afirmarque el juego forma parte deldesarrollo normal de un niño,presentándolo ya sea comolenguaje expresivo, como vía decomunicación, como medio paraexplorar el mundo que lo rodea.Sea desde una mirada o desdeotra, el juego siempre es ligado alas edades infantiles en primerlugar. Luego vendrán las diferen-cias en las interpretaciones decada situación lúdica, pero no estema de este trabajo.

En consecuencia, es fácilmentepensable el ámbito lúdico comoespacio de inclusión, en dondepuedan integrarse niños de dife-rentes orígenes, de característicasdiversas, de diferentes franjasetáreas y pudieran compartir unmismo objetivo y fin: el juego yel jugar. En relación a esto valela pena mencionar algunosejemplos que se hubieran dadoquizás no intencionalmente, perodonde esta inclusión se pudo irlogrando. Una de ellas es en unaescuela estatal de la Ciudad deBuenos Aires, a la que concurrenniños de una clase socioculturalmuy desfavorecida. Una de las ca-racterísticas de esta escuela es quepor grado hay al menos un niñorepitente por primera o hasta porsegunda vez, y los rendimientosescolares de algunos de ellosestán muy limitados por lascondiciones sociales en las quese desarrollan. Hace ya algunosaños la escuela ha organizado unencuentro de juego con unaescuela diferencial de la zona,invitando a los niños discapaci-tados a jugar durante toda unajornada escolar con los alumnos.En dicho evento se han integra-

...es fácilmente pensable el ámbito lúdicocomo espacio de inclusión, en donde

puedan integrarse niños de diferentesorígenes, de características diversas, de

diferentes franjas etáreas y pudierancompartir un mismo objetivo y fin:

el juego y el jugar.

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do a todos los niños en diferen-tes actividades lúdicas. Lasmaestras han observado cómoaquellos niños marginados desdelo escolar por su bajo rendi-miento han podido integrarse eincluirse al jugar con aquellosniños de la escuela diferencial ysentirse valorados desde otro as-pecto de su persona. En el juego,de alguna manera, se han inverti-do los roles estáticos que sedaban en la vida real, pudiendomostrar otras capacidades. A suvez, los niños de la escuela dife-rencial pudieron integrarse en eljuego con niños de la escuelacomún sin ser discriminados.

Otra experiencia es una ob-servación realizada en el marcode una investigación1 en relacióna los videojuegos y los niños dela calle en la Ciudad de BuenosAires. Dicha observación registróa niños de la calle jugando video-juegos con empresarios que ensu horario de almuerzo asistentodos los días a los locales devideojuegos para distraerse.Espontáneamente, empresarios yniños de la calle juegan en red,compartiendo e incluyéndose enun espacio lúdico donde las di-ferencias etáreas y las de su nivelsocial pierden total relevancia,compitiendo juntos como pares.

Estos dos ejemplos de situ-aciones lúdicas de inclusión nofueron programadas con tal fin,mucho menos en el segundocaso. Pero en ambos casos pode-mos detectar esta posibilidad deacercar distancias, de lograrsentimientos de inclusión a par-tir de compartir un espaciolúdico. La posibilidad de jugarcon otro a quien quizá fuera deesa circunstancia uno no sehubiera acercado o solamente

para discriminarlo, o para pedirleuna limosna, o para echarlo, per-mite que ambos se conozcan des-de otros aspectos más profundosde su persona y poder compartirdesde allí otro espacio y, por quéno, construir un camino diferen-te en un futuro. Si tenemos encuenta que el juego se mueve enel plano simbólico, que el juegoes metáfora, y consideramos porotra parte que el ser humano esun ser simbólico independien-temente en qué ámbito se muevay de qué condición social pro-venga, el símbolo, la metáfora, endefinitiva el juego será por tantoun espacio de intercambio y deexpresión de la que todospueden formar parte, siendo queel juego es un espacio sinfronteras y un espacio de creación.

Por lo tanto, sería importantecrear nuevas estrategias deinclusión desde el juego. Lasmismas no deberían ser forzadasy dirigidas desde afuera, aunquepodría haber una primer instanciaen donde haya mayor direcciónexterna. Pero las estrategiasdeberían permitir, por ejemplo,

el acceso irrestricto y libre a dife-rentes niños, posibilitando laparticipación y la inclusión detodos los que deseen participar.Para ello, es importante obviamen-te pensar estrategias que favo-rezcan la expresión de diferen-tes habilidades y que permitan lainclusión desde diversos ángulos,sin que esto lleve a otra segre-gación.

En este sentido se deberíanplanificar estrategias desde laspolíticas públicas, los espaciosurbanos y no urbanos, los centrosde recreación, las institucioneseducativas. Se deberían promoverespacios e instancias en dondehaya una participación paralela,y no, como se ve en muchas situ-aciones actuales, donde “losniños más pudientes donan susjuguetes usados y gastados y conlos que ya no juegan a los niñosque no pueden comprarlos”. Es-tas instancias no favorecen lainclusión social, sino más biencontribuyen a la exclusión,manteniendo a cada franja sepa-rada: los que pueden y los queno pueden, los que tienen y los

Si tenemos en cuenta que el juego se mueveen el plano simbólico, que el juego es metá-fora y consideramos por otra parte que el ser

humano es un ser simbólicoindependientemente en qué ámbito se

mueva y de qué condición social provenga,el símbolo, la metáfora, en definitiva el juegoserá por tanto un espacio de intercambio y

de expresión de la que todos pueden formarparte, siendo que el juego es un espacio sin

fronteras y un espacio de creación.

1Comunicación personal de la Dra. Tatiana Merlo Flores.

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DEBATE

que no tienen. Para promover unaverdadera inclusión se deberálograr que todos se sientan partede un mismo sistema, de unmismo tejido, de una misma tra-ma, y a la cual cada uno puedeaportar algo en función de suexperiencia, de sus posibilidadesy habilidades. Inclusión desde eljuego, porque todos puedenjugar por igual un mismo juegoy compartir un mismo escenariolúdico. En un juego donde to-dos puedan participar como pa-res, cada uno desde su diferen-cia enriquecerá el proceso. Deesta manera también se estáofreciendo un espacio paradesarrollar aspectos resilientesen los niños. Aceptar y sentirseaceptado y respetado por losdemás en el juego a partir desus propias eleccionespromueve el desarrollo de laautoestima y el respeto por símismo (ÖFELE, 2004).

Valdría la pena reflexionar

sobre algunas prácticas nominadascomo “solidarias” en institucioneseducativas, aunque no exclusiva-mente en éstas. En estas prácticas,las escuelas con una población deun nivel socioeconómico más aco-modado organizan en ocasioneseventos recreativos o recolecciónde juguetes para los niños deescuelas más desfavorecidas. Enmuchas de estas actividades, másque inclusión se sigue promo-viendo la separación y exclusión,siendo unos que entregan, quedan, que “donan”, y los otros quereciben, que aceptan y que nodeben cuestionar tampoco2. Eneste sentido no hay posibilidadde inclusión desde el juego, eljuego es organizado y dirigidodesde alguien otro que a su vezno tiene en cuenta las habilida-des lúdicas de otro sector. Enmuchas ocasiones vemos en-tonces propuestas lúdicas queresponden a intereses de un gru-po y no de otro, con el sub-

siguiente fracaso de integracióne inclusión. En la organización deestos eventos lúdicos sería funda-mental conocer y observar previ-amente las características y los es-tilos de juego de todos los niños,para poder pensar propuestasacordes a las necesidades,partiendo de la importancia pre-via de la observación del juegopara conocer a los niños (ÖFELE,2004). Partiendo de la hipótesisque las características lúdicas decada grupo y sector pueden tenerdiferencias, es necesario conocerpreviamente estas diferencias paraimplementar estrategias en las quetodos se puedan incluir, apor-tando y enriqueciendo el juegosin que se favorezca o se pro-mueva un solo grupo. Esto im-plica también un delicadoequilibrio y toma de conciencia.

“Es justamente por la vía deljuego como el sujeto hace suentrada en el mundo de los sím-bolos y por lo tanto su entradaen el plano de lo humano”(TIRA-DO GALLEGO, 1998). Si tenemosen cuenta por lo tanto el juegocomo una de las actividades quenos humaniza, vale la pena pen-sar estrategias para promover lainclusión social desde el juego ycon ello favorecer un acerca-miento entre sistemas que aíslany divergen y traen consecuenciasdeshumanizantes.

Referencias Bibliográficas

ÖFELE, María Regina. Miradas lúdicas. Buenos Aires: Dunken, 2004.

TIRADO GALLEGO, Marta Inés. El juego y el arte de ser... humano. Medellín: Universidad deAntioquia, Facultad de Educación, 1998.

2No quisiera con esto desvalorizar estas prácticas ni minimizarlas. Pero sí considero que, en términos de inclusión social, no favorecen muchas veces la misma.

Para promover una verdadera inclusión sedeberá lograr que todos se sientan parte deun mismo sistema, de un mismo tejido, de

una misma trama, y a la cual cada unopuede aportar algo en función de suexperiencia, de sus posibilidades y

habilidades.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

Resumo

A educação inclusiva contem-porânea é, sem dúvida, um dosmaiores desafios apresentados àsciências humanas desde os pri-meiros momentos da era da es-trutura e dos modelos mentais.Este artigo analisa algumas con-tribuições de Lev Vygotsky e Ed-gar Morin para a necessidade desuperação do conceito clássicoideal de cognição e, conseqüen-temente, para a introdução deindivíduos singulares nas práticasescolares, tendo em conta, cen-tralmente, o papel da diversida-de cultural no desenvolvimentodo conhecimento e sistemas com-plexos como princípio alternati-vo para a organização de mode-los de significado e verdade.

Palavras-chave: educação in-clusiva; cognição humana; mode-los mentais; sistemas complexos.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Contemporary inclusiveeducation is no doubt one of thebiggest challenges presented tohuman sciences since the very firstmoments of the age of structureand mental modeling. This articleanalyzes some contributions of LevVygotsky and Edgar Morin to thenecessary overcoming of classicideal concept of cognition and,consequently, to the introductionof singular individuals into schoolpractices, taking into account,centrally, the role of culturaldiversity in knowledge developmentand complex frameworks asalternative modeling principle formeaning and truth.

Key words: inclusive education;human cognition; mental models;complex systems.

Já se passaram dez anos desde

que, na década de 1990, a educa-ção recebia as primeiras orienta-ções no sentido de que se orga-nizasse para atender a imensademanda pela inclusão de sujei-tos marginados culturais no inte-rior das práticas de escolarização.Tomada como princípio político,a educação inclusiva formou-sedesde então como um corpo am-bíguo, ora apreciado pelo cará-ter humanista com que se defen-diam os interesses dos sujeitos atéentão banidos do espaço públi-co, ora execrado pelo desconfor-to que provocaria na ordem vi-gente do cotidiano da educaçãoformal, ora pelo desarranjo dasrelações de poder entre classessociais que caracterizaram e ain-da caracterizam a sociedade mo-derna. Em que pese a demandainstitucional pela inclusão ter sidorazoavelmente suprida através deinstrumentos legais e regimen-tais, a escola ainda encontra se-veras dificuldades para justificara presença e a permanência dos

De Vygotsky a Morin:entre dois fundamentosda educação inclusivaLuiz Antonio Gomes Senna*Luiz Antonio Gomes Senna*Luiz Antonio Gomes Senna*Luiz Antonio Gomes Senna*Luiz Antonio Gomes Senna*

*Programa de Pós-Graduação em Educação/UERJ.Material recebido e selecionado em outubro de 2004.

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incluídos na educação formal,disto resultando que os alunossupostamente beneficiados pelainclusão escolar ainda amargam afrustração de não serem reconhe-cidos – pelos outros e por si mes-mos – como sujeitos dignos dacondição de alunos.

Não há, todavia, como impu-tar à escola a responsabilidadepela atual dificuldade de se darcorpo de fato à educação inclusi-va, uma vez que, como sujeitossociais acima de tudo, os profes-sores reagem segundo orienta-ções seculares que determinam arazão de ser e os modos da edu-cação formal. A solução para oproblema da inclusão escolar nãoreside no tensionamento das re-lações entre escola e sociedade,tendo-se por parâmetro a infun-dada crença de que os professo-res sejam sujeitos adversos às prá-ticas de inclusão. Não é tampoucopossível buscar solução em fórmu-las metodológicas que ofereçamcertas condições mais adequadaspara o ensino de tudo aquilo quese consagrou como necessário erecorrente na experiência curri-cular da educação formal, semque se leve em conta o fato deque a materialidade socioculturale cognitiva dos sujeitos incluídosnão necessariamente legitime al-guma necessidade nos conteúdosformais do ensino. É, portanto,

inócua uma discussão sobre edu-cação inclusiva que tome por pres-suposto algum tipo de inabilida-de, ou desinteresse, do professo-rado quanto à adoção de práticasde adaptação do ensino formal,pois é impossível provocar adap-tações que incorporem os exclu-ídos sem que se provoque umaverdadeira ruptura com certasbases da educação, que estão si-tuadas muito além da sala deaula e da própria escola.

Em paralelo à questão políti-ca imediatamente associada aosindicadores internacionais de in-clusão social, existe uma outraesfera de poder público cuja in-tervenção política sobre as práti-cas de educação formal se faz demodo direto: a cultura científica.A sociedade moderna instituiu-seatravés da crença dogmática sobrea Razão científica e nela se baseoupara se instituir como uma uni-dade cultural, em detrimento dosdemais segmentos humanos, osquais, por força de imposiçõessociais ou de outros dogmas não

baseados na Razão moderna, fo-ram mantidos à distância. O sen-tido social da escola – tal como aconcebemos ainda hoje – estáfortemente associado, tanto aodogma da Razão, quanto ao prin-cípio do banimento, ambos soli-dariamente agregados comoícones de uma cultura que nãotolera as diferenças e se senteameaçada por elas. Ainda é mui-to forte em nosso imaginário oprincípio sintetizado no dito po-pular em que se declara ser preci-so ir à escola para ser gente navida, aludindo-se, assim, aos nãoescolarizados como não-gentes,como sujeitos desprovidos deRazão, como os outros.

Movida pelo fascínio da Razão,a cultura científica desenhariapara si um modelo humano base-ado integralmente na figura deum sujeito mítico, idealizadocomo a própria energia da cria-ção, a mais pura e sublime figuraentre as produzidas por Deus,cuja energia lhe era imposta comoum dom inato. O inatismo – em

Movida pelo fascínio da Razão, a culturacientífica desenharia para si um modelo

humano baseado integralmente na figurade um sujeito mítico, idealizado como a

própria energia da criação, a mais pura esublime figura entre as produzidas por

Deus, cuja energia lhe era imposta comoum dom inato.

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muito responsável pelo dogma-tismo que se viria a formar noconceito de homem moderno –imputaria à Razão um caráter in-dividual e atemporal, ambas ca-racterísticas que justificariam asbases de uma ciência que se auto-intitularia universal, não por for-ça de uma generalidade entre oshomens, mas sim por condição deuma estrutura de conhecimentoque se colheria na origem onto-lógica de todas as coisas. Tama-nho racionalismo, todavia, escon-deu por trás de si uma profundaincoerência, já que se tomou porreconhecer verdadeiro somenteo conhecimento que se produzis-se por certos sujeitos sociais,edificados que fossem à imageme semelhança de valores sociaisrigidamente prescritos pela or-dem cultural da sociedade mo-derna. Aos outros, legou-se a de-bilidade e a escravidão.

Ainda que supostamente pró-prio da natureza humana, o co-nhecimento inato – responsávelpor toda a revelação do mundo –permaneceu exclusivo de unspoucos que dele pudessem dis-por com eloqüência pública, naforma como nos definiu Foucault,pois que os outros humanos nãoeram reconhecidos como sujeitoscapazes de construir verdadesconfiáveis. Foi deste modo, en-tão, que a verdade do conheci-mento passa a ser tratada comoverdadeiro dogma social, algo

que revelaria, não uma crençapropriamente, mas o estado depertencimento a um grupo soci-almente autorizado a produzirconhecimentos de forma legítimae irrefutável. Assim sendo, a fa-mosa expressão de Descartes,“Penso, logo existo”, com a qualeste define a máxima racionalistade que a existência de todas ascoisas é produto da Razão, podetambém ser interpretada comomarco de uma posição frente àdefinição de quem se elege, ounão, como sujeito da sociedademoderna.

Não se observaria mudançasubstantiva quanto à posição dosexcluídos da cultura científicanem mesmo quando, no séculoXIX, os antagonistas do inatismotrouxeram à tona as teses deter-ministas de que resultaram opositivismo e o behaviorismo. Ain-da que se deslocasse momentane-amente o centro da atenção parafora das discussões clássicas sobreo inatismo, apresentando-se comodefensores de um experien-

cialismo que teria por pressupos-to a absoluta incapacidade huma-na de produzir conhecimentospor atitude cognoscente, os de-terministas somente asseverarama prerrogativa cultural da socie-dade moderna sobre os outroshomens, imputando-lhes, atravésdas mais variadas formas de vio-lência, seus padrões de compor-tamento e seu saber hegemônico.Contudo, talvez por reação à for-ça avassaladora dos deterministasno século XIX, bem como peloevidente sinal de decadência so-cial, diversos movimentos come-çaram a surgir na sociedade comoum todo e, ainda que de formamais contida, na comunidade ci-entífica, na busca por espaço parao reconhecimento do direito àvida e à voz na sociedade.

A primeira grande contribui-ção que viria a introduzir mudan-ças realmente significativas na or-dem científica moderna foi-nostrazida por Lev Vygotsky, sobmotivação das orientações temá-ticas da literatura de Karl Marx.

Não se observaria mudança substantivaquanto à posição dos excluídos da culturacientífica nem mesmo quando, no século

XIX, os antagonistas do inatismo trouxeramà tona as teses deterministas de que

resultaram o positivismo e o behaviorismo.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

Nas primeiras décadas do séculoXX, em meio a um turbilhão demovimentos outros, particular-mente na esfera das artes e nointerior dos movimentos operá-rios, tendo por marco a Revolu-ção Russa, em 1917, Vygotsky pro-poria as bases de uma revoluçãogeral da cultura científica, ao or-ganizar o primeiro modelomental não orientado segundo osprincípios da individualidade e dauniversalidade.

Advogado e lingüista, Vygotskyfaz introduzir nos estudos sobrea epistemologia do conhecimen-to um viés pragmático que influ-enciaria a criação de toda umaescola, desde Wittgenstein, seucontemporâneo, a Habermas, to-dos tendo como princípio o fatode que as dinâmicas sócio-interacionais (jogos comunicati-vos, segundo Wittgenstein, e atoscomunicativos, segundo Habermas)propriamente determinam, nãosomente estruturas, mas todo osistema de valores em torno dosquais a verdade se constrói. Osócio-interacionismo pioneira-mente defendido por Vygotsky

desloca a discussão relativa aoconhecimento da naturezaontológica dos objetos mentaispara a sua natureza conceitual,determinada a partir de suas rela-ções diversas com os sujeitos queos vivem e os representam. Aindaque não desprezando a naturezalógico-essencial das representa-ções mentais, o modelo mentalproposto centraliza justamente anatureza pragmática e vivente dasrepresentações, vindo, então, adefinir a produção de conheci-mento como dinâmica e determi-nada pelo intercâmbio de concei-tos, que nada mais são do querepresentações com valor cultu-ral determinado, local e temporal.

O modelo mental de Vygotskyaponta, portanto, para uma jane-la até então desprezada na cultu-ra científica, à medida que paraalém dela encontrar-se-iam todosos sujeitos banidos da sociedademoderna, não mais tomadoscomo débeis alienados, mas simcomo sujeitos de seus própriosconceitos de mundo. Abria-se,assim, uma nova era de possibili-dades para a Modernidade, tanto

menos próxima de uma verdadeuniversal quanto mais próxima deum Homem universalmente aco-lhido e reconhecido como sujei-to cognoscente.

O mecanismo mental descritoem seu modelo epistemológiconão difere em muito do análogoproposto em Piaget no que serefere às dinâmicas de funciona-mento, mas guarda especificida-des outras que a cultura científi-ca tentou desprezar por longotempo. Segundo Vygotsky, a men-te humana é um sistema de valo-res, e não de categorias atômicas;é um sistema que deriva e inter-preta conceitos de mundo, nãodedicado, portanto, ao ajuiza-mento lógico e essencial das re-ferências de mundo. O princípiode equilibração, também presen-te em Piaget, é adotado no mo-delo de Vygotsky para explicar omovimento de incorporação denovos conceitos possíveis a umconceito prévio, de modo queresulta necessariamente do con-fronto entre dois ou mais valorespragmáticos distintos relativos aum único objeto ou contexto.Neste sentido, apresentam-se osestágios de desenvolvimento dedeterminado conceito como “zo-nas de desenvolvimento”, dentreas quais a “zona de desenvolvi-mento proximal” explica o pro-cesso através do qual dois sujei-tos buscam mutuamente compre-ender os sentidos que dão corpoaos respectivos conceitos que cadaqual emprega para ajuizar deter-minado objeto ou contexto demundo.

O impacto do modelo mentaldefendido por Vygotsky frente aomodelo de sujeito social da cul-tura científica é enorme, justa-mente pelo fato de que o desen-

O impacto do modelo mental defendido porVygotsky frente ao modelo de sujeito socialda cultura científica é enorme, justamente

pelo fato de que o desenvolvimentoproximal não opera, em tese, sobre a prer-rogativa de algum conceito com relação ao

outro no processo de interação.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

volvimento proximal não opera,em tese, sobre a prerrogativa dealgum conceito com relação aooutro no processo de interação.Ao contrário, defende-se justa-mente o oposto, ou seja, o prin-cípio de que todo conhecimentoresulta da aproximação entre doisconceitos, da qual resulta um ter-ceiro conceito que é a síntese dosanteriores. Em termos concretos,isto significa apresentar à socie-dade moderna a tese de que in-cluir os “outros” implica, propri-amente, incluir novos conheci-mentos, novas perspectivas demundo.

Interrompido por sua morte epelo incômodo que sua tese pro-vocou pelos quatro cantos domundo, Vygotsky deixou por he-rança à cultura científica o desa-fio de se consolidar o estudo do

desenvolvimento proximal e,com ele, dar-se prosseguimentoao processo de inclusão dos ex-cluídos sociais, sujeitos ao pre-conceito da ignorância científica.Passar-se-iam várias décadas atéque se retomassem as questõesteóricas necessárias à consolida-ção dos estudos iniciais sobre odesenvolvimento proximal. A fimde que se pudesse garantir aodesenvolvimento proximal umvalor reconhecido na cultura ci-entífica, deste modo assegurandovoz e eloqüência aos sujeitos emaproximação, teve-se de esperaraté que as bases da ciência mo-derna viessem a ser objeto de dis-cussões apuradas e que o concei-to dogmático de verdade fosseposto à prova.

Neste sentido, há que se assi-nalar que a continuidade do pro-

jeto de inclusão social iniciadoem Vygotsky ganharia novo fôle-go com as contribuições de cadaum dos estudos que, no séculoXX, apresentaram críticas ao mo-delo científico de produção deverdades. Afinal, que verdade?Em seus quatro volumes de OMétodo, Edgar Morin reúne osmais diversos argumentos em fa-vor, sobretudo, da desdog-matização do conceito científicode verdade, instaurando a dúvi-da quanto à possibilidade de ha-ver verdade possível a partir dejuízos produzidos desde umolhar individual e supostamenteuniversal para os fatos de mun-do. Morin defende a concepçãode mente como um fenômenocomplexo, permeado por variá-veis contextuais e historicamen-te determinadas, cuja naturezacolide frontalmente com a possi-bilidade de juízos a priori. Mes-mo que não abordando a ques-tão do desenvolvimento pro-ximal, Morin aproxima-nos doproblema observado por Vygotskyà medida que pluraliza as verda-des possíveis e fragiliza a hege-monia de uma concepção de va-lores centrada em um único sis-tema de valores, a-contextual epragmaticamente amorfo, já quebanido da vida conceitual.

O percurso atual da educaçãoinclusiva não pode desprezar ofato de que a situação dos incluí-dos nos sistemas de escolarização

Interrompido por sua morte e pelo incômodoque sua tese provocou pelos quatro cantosdo mundo, Vygotsky deixou por herança àcultura científica o desafio de se consolidaro estudo do desenvolvimento proximal e,

com ele, dar-se prosseguimento ao processode inclusão dos excluídos sociais, sujeitos ao

preconceito da ignorância científica.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

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formal está diretamente vinculadaao processo de ruptura com osdogmas com que a cultura cientí-fica definiu – para si e para a esco-la – o conceito de verdade. Entre-tanto, se, por um lado, Vygotsky

prenunciou um espaço de desen-volvimento em que as pluralidadespodem interagir, por outro, osagentes de inclusão escolar neces-sitam reorientar suas práticas, nãopara novas metodologias de ensi-

no, mas sim para novas meto-dologias de produção de conhe-cimento acadêmico-científico, es-tas sim determinantes de uma ver-dadeira possibilidade de diálogocom as diferenças culturais.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

Resumo

Este artigo pretende trazer

para o debate acadêmico uma

possível “quebra de paradigma”

no âmbito das ciências humanas-

sociais, a partir do entrelaçamen-

to das considerações tecidas por

Lev Vygotsky e Paulo Freire, em

psicologia e educação, respecti-

vamente, sobre o desenvolvimen-

to humano.

O foco principal, delimitado

como campo para o estudo e re-

conhecimento imediato de nos-

sa discussão teórica no cotidiano

social, refere-se às práticas exer-

cidas com o surdo e as práticas

por este realizadas.

Palavras-chaves: paradigma;

unidade-complexa; desenvolvi-

mento humano.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

This article intends to bring for

the academic debate a possible

“paradigm break” in the extent of

the social sciences, starting from

the interlacement of the

considerations woven by Lev

Vygotsky and Paulo Freire, in

psychology and education,

respectively, on the human

development.

The main focus delimited as

field for the study and immediate

recognition of our theoretical

discussion in the daily social refers

to the practices exercised with

the deaf and the pratices by them

accomplished.

Key-WordsKey-WordsKey-WordsKey-WordsKey-Words: paradigm; unit-

complex; human development.

Introdução

Desde o final do século pas-

sado, muito tem-se falado em

paradigma. Esta palavra quase

mágica passou a ser encontrada

em vários discursos acadêmicos,

em diferentes campos científicos

e, principalmente, nas áreas de

estudos humanos-sociais. Entre-

tanto, como tudo que passa a ser

usado de modo indiscriminado

acaba por perder seu valor espe-

cífico porque se banaliza, tam-

bém com os conceitos científicos

assim acontece. Desse modo, o

significante paradigma foi obten-

do uma gama diversificada de sig-

nificados, a ponto de ter que ser

definido a cada momento em que

é utilizado.

De toda maneira, e sem que-

rer colocar em discussão qualquer

conceituação mais detalhada ou

aprimorada, pretendemos lançar

mão da definição de paradigma

conforme sugerida por Thomas

Reflexões sobre a Quebrade Paradigmas nasCiências Humanas-SociaisLeila DupretLeila DupretLeila DupretLeila DupretLeila Dupret*****

*Pós-Doutora em Psicologia;Profª Adj. da Universidade Estácio de Sá/RJ e dasFaculdades Integradas Maria Thereza/RJ.Material recebido em maio e selecionado em agosto de 2004.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

Khun (1976) em seu livro A Es-

trutura das Revoluções Científi-

cas. Isto é, um modelo teórico-

práxico, o qual acompanha o ci-

entista que faz a própria ciência,

tendo implicados seus valores

morais e posturas éticas, além das

visões de mundo, filosofias de

vida e concepções individuais.

Admitindo-se a idéia do alu-

dido autor, percebe-se que não é

fácil compreender e mesmo acei-

tar que o “modelo” adotado ini-

cialmente pelo cientista não pos-

sa mais dar conta de seus estudos

e/ou investigações. Exatamente

neste momento, ocorrem tentati-

vas de aproximações dos fenôme-

nos referentes aos enquadres que

legitimem concepções já conso-

lidadas, enquanto o caminho to-

mado pelo cientista aponta para

outras necessidades, das quais ele

não pode mais se furtar a consi-

derar. É aí que desponta a que-

bra do paradigma, ou seja, a rup-

tura do modelo anteriormente

considerado, sem ainda existir

um outro que possa ser eleito

como possível para responder

indagações que surgiram no de-

correr da própria investigação e

que não foram respondidas pelo

modelo adotado até então. Insta-

la-se uma verdadeira crise no cam-

po científico!

Daí em diante, uma busca efeti-

va de outro modelo se faz necessá-

ria, e a inquietação do cientista não

é aplacada enquanto este não con-

segue descobrir como dar continui-

dade a seus estudos. Obviamente,

tal situação pode ser detectada em

todos os campos da ciência; então,

consideramos importante deixar

clara a delimitação da área de estu-

dos para que se possa, minimamen-

te, conjugar teoria com respectiva

prática. Nesse sentido, é na con-

fluência da psicologia com a edu-

cação, a partir de configurações que

se apresentam entrelaçadas, advin-

das da teoria psicológica de Lev

Vygotsky (1987, 1988, 1989) e da

proposição educativa de Paulo

Freire (1975, 1996), que estaremos

discutindo uma possível “quebra de

paradigma” na concepção de de-

senvolvimento humano, tendo

como alvo específico o surdo.

O encontro de Vygotsky

com Freire

No âmbito da psicologia, a

proposta de Vygotsky pode ser

entendida como uma das que su-

gere outra maneira de olhar a

construção subjetiva. Isso ocorre

porque as metodologias utilizadas

pelas distintas abordagens psico-

lógicas, ora priorizando o ambi-

ente e os conteúdos adquiridos,

ora as características inatas; ora

priorizando manifestações resul-

tantes do funcionamento incons-

ciente, ora expressões conscien-

tes regidas pelo intelecto, enfim,

uma gama de fios condutores do

pensamento acerca das diversas

expressões do comportamento

do homem, levaram-no a refletir

sobre a importância da unidade

complexa, constituinte do ser

humano entendendo-a como o

principal alicerce para a discus-

são do desenvolvimento. Sua pro-

posição promove o debate sobre

a impossibilidade de seccionar o

ser humano, enfatizando qualquer

parte que o constitua em detri-

mento de outra; além disso, con-

vida o psicólogo a rever seus con-

ceitos sobre a interferência cul-

tural na própria subjetividade.

Assim, em sua proposta,

Vygotsky apresenta uma possível

quebra de paradigma, visivelmen-

Admitindo-se a idéia do aludido autor,percebe-se que não é fácil compreender emesmo aceitar que o “modelo” adotado

inicialmente pelo cientista não possa maisdar conta de seus estudos e/ou

investigações.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

te relacionada a, pelo menos, três

considerações distintas das tradi-

cionais no âmbito da psicologia:

a questão do método pelo qual

são abordados os fenômenos psi-

cológicos; o modelo das relações

dos sujeitos com o “mundo”; e

os fundamentos da pedologia

como essenciais ao desenvolvi-

mento humano.

No que se refere ao método,

os três princípios básicos que sus-

tentam a prática do psicólogo es-

tariam traduzidos em: preocupar-

se com o processo, e não apenas

com o produto; explicar o fenô-

meno, além de descrevê-lo; estar

consciente de que existem com-

portamentos fossilizados, isto é,

manifestações automatizadas,

“cristalizadas”, que são realizadas

de maneira mecânica e que se

configuram como definitivas.

Quanto ao sujeito e sua inser-

ção no “mundo”, esse psicólogo

estaria se relacionando com ou-

tros sujeitos, os quais interferiri-

am no próprio desenvolvimento

um do outro (ressaltando, então,

a importância da ação do sujeito

no processo de desenvolvimen-

to) e com objetos, que estariam

disponíveis na cultura, podendo,

inclusive, ser transformados em

verdadeiros instrumentos psico-

lógicos. Assim, o modelo sujeito

– objeto admitido tradicional-

mente como científico, passa a

compartilhar este lugar com o

modelo sujeito – sujeito, ado-

tando o mesmo rigor para estu-

do e análise dos procedimentos

na ciência psicológica. Dito de

outro modo, lança-se mão do

conceito de zona de desenvolvi-

mento proximal como recurso

teórico-práxico para trabalhar e

compreender cientificamente o

desenvolvimento humano.

No que diz respeito aos fun-

damentos da pedologia, entendi-

da como o estudo do desenvol-

vimento que se dá na infância e

permanece ao longo da vida do

indivíduo, o aparato orgânico, o

psíquico propriamente dito e o

antropológico configuram uma

“rede interativa” em que não é

possível destacar qualquer campo

como prioritário no estudo do

sujeito. Em outras palavras, a cons-

trução subjetiva está constituída

pelo entrelaçamento de existen-

ciais humanos que são interferen-

tes, mas não determinantes no

desenvolvimento.

No campo da educação, a pro-

posta de Paulo Freire pode ser

entendida como uma das que su-

gere outro modo de ver o proces-

so de aprender. Isto porque as

metodologias comumente utiliza-

das nas práticas pedagógicas, sus-

tentadas pelo distanciamento en-

tre educador e educando, o pri-

meiro como mantenedor do status

quo do saber-poder e entusiasta do

exercício de ensinar alimentado

pelo fosso da cátedra, levaram o

autor a refletir sobre a necessida-

de de aprender a lidar com o edu-

cando, entendendo seu código de

linguagem. Para Freire, este é o

principal ponto de partida para o

estabelecimento do diálogo, elo

essencial do processo de comuni-

cação. Sua proposição convoca o

educador a se dar conta de seu

próprio processo de aprender

como fundamental para deflagrar

o interesse do educando em cons-

truir o conhecimento. Ademais,

... a construção subjetiva está constituídapelo entrelaçamento de existenciais

humanos que são interferentes, mas nãodeterminantes no desenvolvimento.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

favorece valorizar as experiências

como fonte de saber.

Assim, a proposta de Freire

apresenta uma possível quebra de

paradigma relacionada a, pelo

menos, três considerações distin-

tas das tradicionais em educação:

o método utilizado pelo educa-

dor; o modelo da relação educa-

dor-educando; e os fundamentos

da prática educativa.

No que se refere ao método

pedagógico, utilizar o cotidiano

do aluno como recurso para a

transmissão de informação favo-

rece o reconhecimento de tal re-

alidade como importante de ser

considerada, permitindo a coexis-

tência da diferença de “univer-

sos”. Em uma palavra, isto signifi-

ca a riqueza da diversidade em

seu leque de alternativas, propor-

cionando subsídios para o proces-

so de aprender.

Quanto à relação educador-

educando, a díade ensino-apren-

dizagem, que admite a configu-

ração tradicional secular na qual

“quem sabe ensina, quem não

sabe aprende”, enfocando o ato

de ensinar como o fundamental,

cede espaço à dinâmica não mais

linear em que o educador, de-

monstrando seu aprendizado a

partir das contribuições dos edu-

candos, rompe com a oposição

saber versus não saber, dando lu-

gar à relação aprender a apren-

der, aprendendo, mudando com-

pletamente o modelo teórico-

práxico até então adotado como

referência padrão.

No que diz respeito aos fun-

damentos da prática educativa

baseada nos princípios da educa-

ção libertadora, de suma impor-

tância para a construção da cida-

dania, esta prática proporciona

reflexões no sentido de viabilizar

o aprendizado a partir da partici-

pação do educando. que deixa de

ser um mero depositário de in-

formações para ser autor de seu

próprio conhecimento.

O surdo como foco

contemporâneo de estudos

Os pressupostos teóricos ad-

mitidos neste artigo, quer em psi-

cologia, quer em educação, per-

mitem vislumbrar a ultrapassagem

dos distintos limites disciplinares

pertencentes a cada uma destas

áreas, para circunscreverem um

novo campo, o qual está para além

delas próprias pois advém do

entrelaçamento de ambas, onde

nem uma nem outra é prioritária

ou dominante, posto que estão

em interação.

Partindo-se do pressuposto de

que é a interação o ponto signifi-

cativo para serem investigados os

fenômenos, considera-se que em

seu processo de desenvolvimen-

to o sujeito interage com sujei-

tos e objetos. Essa rede interativa

corresponde à relação entre o

desenvolvimento e o aprendiza-

do, suas interferências mútuas,

suas referências recíprocas.

Assim, o conceito de zona de

desenvolvimento proximal defini-

do por Vygotsky possibilita per-

... prática educativa baseada nos princípiosda educação libertadora, de sumaimportância para a construção da

cidadania, proporciona reflexões no sentidode viabilizar o aprendizado a partir da

participação do educando, que deixa de serum mero depositário de informações para

ser autor de seu próprio conhecimento.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

ceber o “espaço possível” da

interação dos sujeitos no proces-

so de desenvolvimento do ser

humano, permitindo pensar a

dinâmica do aprendizado na am-

plitude de seu cotidiano social.

Por sua vez, o conceito de edu-

cação libertadora definido por

Paulo Freire permite reconhecer

o movimento do processo de

aprender, possibilitando refletir

sobre metodologias educativas

que valorizem a experiência vivi-

da por quem aprende.

A partir do referencial supra

mencionado, passamos a compre-

ender a importância de buscar-

mos alternativas para a investiga-

ção e análise que levem em conta

as características da população

estudada e, em nosso caso, ele-

gemos o surdo como o sujeito

alvo de reflexões acerca dos para-

digmas e suas possíveis quebras.

Nessa perspectiva, partir da reali-

dade do surdo para oferecer-lhe

a chance de compreender a exis-

tência de seu próprio universo e

o do ouvinte é colocar em práti-

ca a proposta de Paulo Freire em

seu sentido educativo mais am-

plo. Por outro lado, entender que

as pessoas, ao serem estimuladas

em suas potencialidades a partir

de suas relações interpessoais,

podem fazer aflorar capacidades

que dispensam o julgamento ou

a classificação de suas limitações

antecipadamente, é colocar em

prática a proposta de Vygotsky no

que se refere à compreensão do

desenvolvimento humano em

toda a sua extensão.

Então, investigar cientifica-

mente sobre o surdo exigiria le-

var em conta os recursos necessá-

rios à sua especificidade: não

ouvir. Deste modo, lançar mão da

língua de sinais como prioritária

na comunicação de tal população

é essencial, pois viabiliza o com-

partilhar de informações decodi-

ficadas socialmente.

Nesse sentido, em se tratando

do surdo, a quebra de paradigma

estaria referida ao distanciamento

do modelo ouvinte, pois tentar

explicar seu processo de desen-

volvimento pelos padrões dos

ouvintes é não reconhecer as sin-

gularidades que pertencem a am-

bos. Ou seja, é não respeitar as

especificidades que marcam as

diferenças humanas. Desse modo,

as explicações para o processo de

desenvolvimento romperiam com

os critérios estabelecidos como

únicas referências.

Em termos operacionais, a

aplicabilidade desta maneira de

entender o surdo pressupõe,

pelo menos, dois caminhos a se-

rem seguidos: um deles é utilizar

uma linguagem possível para sua

comunicação, no intuito de fazê-

lo construtor da história indivi-

dual e coletiva e, a um só tempo,

integrando-se socialmente, inter-

ferindo e sendo interferido pela

cultura, comum a todos. Cabe

ressaltar que o significado da pa-

lavra integrar refere-se a tornar

inteiro, o que, por um lado, exi-

ge que o surdo seja visto como

um sujeito em sua complexida-

de, e não em secções ou em par-

... tentar explicar seu processo dedesenvolvimento pelos padrões dos ouvintes

é não reconhecer as singularidades quepertencem a ambos. Ou seja, é não

respeitar as especificidades que marcam asdiferenças humanas.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ATUALIDADES EMEDUCAÇÃO

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MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação. São Paulo: Cortez, 2000.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

VYGOTSKY, L. S. Formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicossuperiores. São Paulo: Martins Fontes, 1988

VYGOTSKY, L. S. Fundamentos de defectología. Obras completas. Tomo cinco. Cuidad de LaHabana: Editorial Pueblo y educación, 1989.

... locais especializados para surdos,como escolas e universidades, por exemplo

... devem poder adentrar no lugar dachance, da oportunidade de serem explora-das suas capacidades e competências, do

acreditar em suas possibilidades de realiza-ção, onde o investimento está voltado, efeti-

vamente, para o seu desenvolvimento eengajamento social.

tes, ou ainda no que o caracteri-

za como “defeituoso”. Por outro,

desfaz a antiga idéia integra-

cionista, a qual caracterizava um

modelo sociopolítico ultrapassa-

do para as necessidades emergen-

tes na pós-modernidade.

O outro caminho diz respeito

aos locais especializados para sur-

dos, como escolas e universida-

des, por exemplo. Parafraseando

Vygotsky, os surdos não devem

parecer como possuidores de

algo que os separa sistematicamen-

te dos ouvintes, fechando-se em

um mundo onde tudo está adap-

tado de maneira a criar uma at-

mosfera de isolamento, configu-

rando verdadeiros guetos. Ao con-

trário, devem poder adentrar no

lugar da chance, da oportunida-

de da exploração de suas capaci-

dades e competências, do acre-

ditar em suas possibilidades de re-

alização, onde o investimento está

voltado, efetivamente, para seu

efetivo desenvolvimento e

engajamento social.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

Resumo

Apoiado no embasamento te-órico sociointeracionista, o obje-tivo deste artigo é refletir acercado papel do fonoaudiólogo naeducação bilíngüe de crianças sur-das. Após uma breve revisão bi-bliográfica sobre atuações defonoaudiólogos que comparti-lham a visão da linguagem comoconstitutiva do sujeito, é tambémdescrito o trabalho realizado noAmbulatório de Surdez da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiroenfocando a brincadeira comoinstrumento de avaliação e medi-adora das relações infantis.

Palavras-chave: surdez; lin-guagem; fonoaudiologia; lingua-gem de sinais.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

This article aims to reflectabout the role of the speech andhearing therapists on deafchildren bilingual education and

based on a sociointeracionismapproach. After a short literaturereview of the speech and hearingtherapists who conduct their workfocused on language as thesubject constitution, this articledescribes the program developedat the Deaf Study Department(Ambulatório da Surdez) of Uni-versidade Federal of Rio de Janei-ro. This program focuses child’splay as an important evaluationand mediation skill of the infantrelations.

Key Words:Key Words:Key Words:Key Words:Key Words: deafness; language;rehabilitation; audiology; signlanguage

Pesquisas e práticas relaciona-das com a educação bilíngüe parasurdos vêm crescendo bastantenas últimas décadas. A fonoau-diologia, no entanto, parece umpouco afastada das discussões so-bre o papel do fonoaudiólogo,dentre outros, como facilitadordo aprendizado da língua por-tuguesa na modalidade oral pe-las crianças surdas, possibilitan-do que usem este idioma. Dire-trizes e estratégias que norteiamesse trabalho, que se baseiam emconcepções de linguagem, deaquisição de linguagem, de su-jeito, de sociedade, e que par-tem de diferentes concepções,levarão fonoaudiólogos a produ-zir diferentes práticas. Dessa for-ma, toda inserção em uma das trêsfilosofias educacionais para sur-dos (oralismo, comunicação to-tal e bilingüismo) produzirá en-tão diferentes possibilidades emrelação ao processo de orali-zação na área.

Sobre umaFonoaudiologiaInserida noBilingüismo eBaseada noSociointeracionismo

Marcia GoldfeldMarcia GoldfeldMarcia GoldfeldMarcia GoldfeldMarcia Goldfeld*****

*Fonoaudióloga (UNESA); Especialista em Lingüística Aplica-da (UERJ); Mestre em Psicologia Clínica (PUC-Rio); Doutoraem Distúrbios da Comunicação Humana (UNIFESP); ProfessoraAdjunta da UFRJ; Coordenadora do Ambulatório de Surdez daUFRJ; Professora Adjunta do Mestrado Profissionalizante emFonoaudiologia da [email protected] recebido em agosto eselecionado em outubro de 2004.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

Independente da filosofiaeducacional na qual estejam in-seridos de fato, fonoaudiólogospodem trabalhar, por exemplo,na oralização de crianças surdas,ou seja, no ensino e aprendiza-do da língua portuguesa em suamodalidade oral. Como sabemos,porém, o conceito de oralizaçãonão se iguala (nem se parece) como conceito de oralismo, que serefere a uma filosofia educacionalcom pressupostos definidos,como o não reconhecimento daslínguas de sinais, a busca pela “nor-malização” das crianças surdas atra-vés do aprendizado da língua orale a tentativa de acabar com o “mun-do dos surdos” (PERDONCINI eCOUTO-LENZI, 1996).

Também por existirem dife-rentes concepções sobre desen-volvimento infantil, socializaçãoe escolarização, é então bastanteimportante não confundir os taisconceitos de oralização eoralismo.

Afora essa necessária distinção,Santana (1997), por exemplo, cri-tica as três aludidas filosofias edu-cacionais para surdos. Ela escla-

rece sua visão de linguagemcomo sendo constitutiva do su-jeito e ressalta a impossibilidadede separação entre o exterior e alinguagem, já que é através da lin-guagem que o real (inacessível)se transforma em realidade. Ouseja, apenas através e na lingua-gem é possível que a criançaaprenda, se desenvolva e se trans-forme em sujeito da própria fala.Assim, a proposta de Santana comrelação à aquisição de linguagempelas crianças surdas é a de que ofonoaudiólogo utilize uma línguasinalizada repleta de sentidos ins-taurados pelo Outro. A autoraconsidera o uso do português si-nalizado concomitante à oralidadecomo “uma possibilidade de aces-so ao simbólico, quer dizer, umapossibilidade de inserção nolingüístico e de constituição dopróprio sujeito” (p:124).

Diferentemente, Andrade(1997) procurou nos estudos so-bre aquisição da língua de sinaisnovos questionamentos em tornoda aquisição da linguagem. Apósanalisar tais estudos, a autora cri-tica o apagamento das Condições

de Produção1 dos dados lingüís-ticos colhidos por pesquisadoresdas línguas de sinais.

É verdade que grande partedos estudos sobre o uso educaci-onal dessas línguas são baseadosno inatismo e privilegiam oaprendizado da sintaxe da língua.Não nos é possível, no entanto,esquecer de aspectos sócio-histó-ricos que integram as Condiçõesde Produção das falas de surdos.Estas falas carregam a marca deindivíduos que sofreram e sofremmuitos preconceitos. Assim comotoda minoria, os surdos se uni-ram para sobreviver e atualmenteestão conhecendo e fazendo va-ler seus direitos de cidadania. Asdificuldades que lhes são impos-tas precisam ser olhadas de fren-te para que se criem condiçõesde as modificar, de forma que afonoaudiologia precisa estarinserida neste contexto maior queenvolve também surdos.

A um só tempo, Andrade(1997) propõe reflexões sobre anoção de interação, sujeito e lin-guagem, acentuando a importân-cia de se perceber tal interaçãocomo território em que irãoemergir matrizes de significações.

Da minha parte, consideroque os estudos de Bakhtin (1990)também podem ajudar bastante ase pensar as questões de língua elinguagem. Bakhtin fala sobre acultura e a história, ressaltandoque o homem só pode ser cons-tituído no âmbito sócio-histórico.Isto significa dizer que apenasinserido em uma cultura, marcadaesta pela história, é que o homemdesenvolve sua humanidade. Sig-nifica dizer que a linguagem cons-

Ela esclarece sua visão de linguagem comosendo constitutiva do sujeito e ressalta a

impossibilidade de separação entre o exte-rior e a linguagem, já que é através da lin-

guagem que o real (inacessível) setransforma em realidade.

1 Condições de Produção é um conceito utilizado pela Análise do Discurso e se refere aos elementos envolvidos em situações discursivas: os interlocutores,

o contexto mais amplo e a história individual (dos interlocutores) e da sociedade à qual pertencem, além do sistema lingüístico em si.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

titui a materialidade da cultura eda história e, como tal, permite,por um lado, a formação da cons-ciência de cada indivíduo e, poroutro, a construção de socieda-des. Segundo Bakhtin, consciên-cia e ideologia formam uma rela-ção dialética indissolúvel, sendoa materialidade de ambas a pró-pria linguagem, donde se concluique sem linguagem não existenem a consciência (o sujeito) nema ideologia (o social).

Conceitos de interação e dematriz de significações são, por-tanto, importantes para reflexões,na área. Significações criadas nocontexto discursivo não são “co-ladas” em significantes específi-cos, mas dependem também deum aparato lingüístico. Bakhtinnos lembra da materialidade dalíngua e do fato desta ser baseadaem regras lingüísticas. Logo, nãopodemos pensar que, apenas porconviver e ser falada por sua fa-mília, uma criança surda está seconstituindo enquanto sujeitofalante. Um contato com o siste-ma lingüístico socialmente parti-lhado é necessário, e nele estãocontidos valores e conceitos ine-rentes à cultura dos usuários querepresenta. Então, quando pen-samos em interação envolvendo

crianças surdas, precisamos pen-sar também no sistema lingüísticoque será utilizado; somente a lín-gua de sinais é capaz de suprirtodas as necessidades comunica-tivas de crianças surdas e, comoconseqüência, esta é a única lín-gua que pode funcionar comoreguladora do comportamentodestas crianças.

Com efeito, qualquer línguade sinais não deve ser percebidasó por sua função comunicativa.É importante perceber a determi-nação da linguagem no compor-tamento infantil e o quanto cadalíngua de sinais auxilia a criançasurda na estruturação de suas fun-ções mentais e na regulação doseu comportamento, conformeVygotsky (1989a, 1989b) ressaltaem sua teoria.

Na mesma esfera, fica entãotambém interessante assinalar queLacerda (1998) faz uma análise daprática fonoaudiológica frente adiferentes concepções de lingua-gem. A autora inicia seu artigocriticando a fonoaudiologia pornão explicitar as concepções delinguagem que embasam seu tra-balho e pontua duas teorias delinguagem que implicitamentenorteiam a maioria dos trabalhoscom crianças surdas. Como faz

ver, uma dessas teorias é a docomportamentalismo, que vislum-bra a linguagem como um com-portamento humano qualquer,devendo ser aprendida por imi-tação de modelos e pelo contatono meio social com indivíduosfalantes, bastando à criança copi-ar a linguagem dos outros e ofonoaudiólogo inserido nesta li-nha trabalha com treinamento erepetição de estímulos. A criançaproduz os sons do meio ambien-te por imitação e reforços (posi-tivos e negativos). O conhecimen-to de língua se dá através daaprendizagem de vocabulário eestruturas frasais, ou seja, na prá-tica se utiliza uma língua fragmen-tada, partindo do ensino de pe-quenas partes (sílabas, palavras)com o objetivo de se chegar apartes maiores (frases). O foco deatenção está direcionado para aestrutura da língua.

Ainda como faz notar Lacerda,uma segunda teoria de linguagemem que a fonoaudiologia se ba-seia no trabalho com surdos é ado inatismo de Noam Chomsky.Essa outra teoria considera a sin-taxe o principal nível lingüístico,e é este o nível enfocado no tra-balho com crianças surdas. Partin-do da crença de que todo serhumano possui um dispositivo deaquisição da linguagem, osfonoaudiólogos que seguem oinatismo acreditam que basta ofe-recer o input lingüístico corretopara que a língua (ou o conheci-mento gramatical) seja desenvol-vida pela criança. Assim, a gramá-tica é ensinada seguindo uma hi-

Partindo da crença de que todo ser humanopossui um dispositivo de aquisição da

linguagem, os fonoaudiólogos que seguem oinatismo acreditam que basta oferecer o

input lingüístico correto para que a língua(ou o conhecimento gramatical) seja

desenvolvida pela criança.

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erarquia de complexidade. O ob-jetivo é fazer com que a criançachegue à dedução das equivalen-tes regras gramaticais.

Lacerda afirma que, na prática,métodos comportamentalistas einatistas não se diferenciam muitoao se concentrarem no trabalho deestimulação auditiva e na aprendi-zagem de vocabulário e regras sin-táticas. Segue insistindo que, pormuito tempo, a fonoaudiologianão se deteve nas questões de lin-guagem, se atendo ao desenvolvi-mento de técnicas ligadas àmetalinguagem com o objetivo sem-pre de corrigir, de reabilitar.

Atualmente, a partir da cons-cientização de insucessos na prá-tica e do avanço das teorias de lin-guagem (no sentido de a consi-derar como constitutiva do sujei-to, se preocupando com a inte-ração, focalizando as práticasenunciativas e discursivas), afonoaudiologia passa a procuraroutras abordagens que não o trei-namento da fala, considerando osprocessos de interlocução comoalgo histórica e culturalmentecontextualizado.

A grande questão que então secoloca é: como trabalhar com osurdo com esta outra perspectivade linguagem? A saída apontadapor Lacerda (1998:38) são pressu-postos do bilingüismo para o sur-do, ou seja, uma visão da Libras(Língua Brasileira de Sinais) como“língua estruturada, natural, quepode levá-lo a um desenvolvimen-to pleno e à sua constituição en-quanto sujeito, acenando comuma saída justa e honesta para o

trabalho com as pessoas surdas”.Realmente, oferecendo o mais

precocemente possível a língua desinais para a criança surda, obilingüismo tem condições de ga-rantir um desenvolvimento rico epleno de linguagem, propiciandoo desenvolvimento global da cri-ança. Todavia, e como segue res-saltando Lacerda (1998:39),

incorporar este modo de agirà prática clínica exige mudan-ças que não se fazem de ma-neira fácil. É preciso descobrirum novo modo de atuar, nãodescrito, ainda por construir,que contemple as necessida-des aqui expostas. Baseado nosconhecimentos teóricos de-senvolvidos, o cotidiano dotrabalho fonoaudiológicopode gerar situações que fa-voreçam a elaboração de no-vos conhecimentos.

Como podemos então cons-truir este novo fazer fonoaudio-lógico?

Se as visões de linguagem uti-lizadas nas metodologias deoralização tradicionais (inatismoe behaviorismo) não provocamdiferenças significativas no fazerfonoaudiológico e todas termi-nam por trabalhar apenas per-

cepções (seja só a audição, outambém a visão e as sensaçõestáteis-cinestésicas) e fragmentosda língua, como devemos entãoconstruir um processo deoralização de crianças surdas deforma diferente?

Ofertada por Lacerda, vimosque uma primeira resposta se re-laciona com a inserção do fono-audiólogo em programas bilín-gües. É preciso assegurar à crian-ça surda a interação com falantesda língua de sinais para garantir-mos que seu processo de aquisi-ção desta língua seja efetivadotanto para a comunicação quantopara a formação de funções men-tais superiores e regulação docomportamento.

Como faz ver Santana (1997),contudo, o simples uso de umalíngua sinalizada pelo fonoau-diólogo não é o mais adequado.O ideal é que a criança surda possaestar em contato com surdos fa-lantes da Libras. O papel dofonoaudiólogo será o da ora-lização de menores que já esta-rão em processo de aquisição daLibras, ou seja, a língua portugue-sa na modalidade oral será a se-gunda língua (L2).

E a questão continua... Comocolocar em prática estes ideais?Como a criança surda pode ter

E a questão continua... Como colocar emprática estes ideais? Como a criança surda

pode ter acesso a falantes da Libras secerca de noventa por cento delas são filhas

de pais ouvintes?

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acesso a falantes da Libras se cer-ca de noventa por cento delas sãofilhas de pais ouvintes?

É preciso que haja uma gran-de reformulação no processo edu-cacional do surdo e, aqui, a esco-la desempenha papel essencial.Apenas na escola, começando pelaeducação infantil e o mais cedopossível, a criança surda pode terum ambiente adequado ao seudesenvolvimento e o fonoaudió-logo pode trabalhar com menoresque já utilizam a Libras para a co-municação, formação de funçõesmentais superiores e auto-regu-lação do comportamento, o queainda não corresponde à realida-de brasileira.

O Ambulatório de Surdez doCurso de Fonoaudiologia da Uni-versidade Federal do Rio de Ja-neiro, coordenado por esta au-tora, vem tentando construir umaprática que seja compatível comos ideais do bilingüismo e dosociointeracionismo.2

Esse Ambulatório conta comuma equipe interdisciplinar(professora surda, professora-in-térprete, psicóloga-intérprete,professora de educação física-in-térprete, alunos do curso defonoaudiologia efonoaudiólogas), mas não temuma escola. Funciona em umhospital da Universidade, ondese encontram todos os ambula-tórios do Curso de Fonoaudio-logia (gagueira, transtornos deaquisição da linguagem, distúrbi-os de motricidade oral, voz etc.).

Enquanto tentamos obter re-cursos para a estruturação de umafutura escola, oferecemos várias

atividades para as crianças e suasfamílias. Os menores surdos (emtorno de trinta) freqüentam oambulatório três vezes por sema-na, permanecendo lá um total decinco horas semanais.

As atividades oferecidas são:

• atendimento fonoaudiológicoem sessões individuais, duasvezes por semana e durantequarenta minutos cada;

• atividades pedagógicas em lín-gua de sinais em pequenosgrupos de crianças, com a pro-fessora-surda e a professora-intérprete, duas vezes por se-mana e durante quarenta mi-nutos cada;

• aulas de educação física em lín-gua de sinais com todo o gru-po de crianças, uma vez porsemana e durante duas horas;

• atividades pedagógicas em lín-gua de sinais com todo o gru-po de crianças, uma vez porsemana e durante uma hora emeia.Com ajuda de uma psicóloga-

intérprete, os pais recebem:

• apoio psicológico em grupo,uma vez por semana, duranteuma hora e meia;

• aulas de língua de sinais coma professora-surda, duranteuma hora semanal.

Em todas as atividades, são va-lorizadas: a qualidade de inte-ração entre todos os participan-tes; a necessidade de uma comu-nicação eficaz através do uso deuma língua; a importância da aqui-sição da língua de sinais comoprimeira língua da criança surda;a importância do diálogo entremãe-ouvinte e filho-surdo; a ne-cessidade de um desenvolvimen-to infantil saudável; a linguagemcomo mediadora das demais áre-as do desenvolvimento (emoção,cognição e socialização); e a brin-cadeira como principal atividadeda infância.

A equipe desse Ambulatórioacredita que o que possibilita umdesenvolvimento infantil saudávelpara a criança surda é o acesso àlíngua de sinais através da inte-ração com falantes deste idiomaem situações prazerosas, princi-palmente situações de jogos ebrincadeiras.

Em relação ao trabalho fono-audiológico em si, e levando emconsideração que as crianças jáestão em processo de aquisição

2A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ – concede bolsas de apoio técnico que viabilizam esse projeto bilíngüe do

Ambulatório de Surdez da UFRJ.

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da linguagem através da Libras, oprimeiro objetivo é a adaptaçãode próteses auditivas.

O Curso de Fonoaudiologiada UFRJ possui também um Am-bulatório de Audiologia Clínicaonde são oferecidos exames au-ditivos necessários para o diag-nóstico da surdez, para a indica-ção de próteses auditivas e parao acompanhamento sistemáticodas crianças com diagnóstico desurdez, ou seja, audiometria com-portamental, audiometria tonal,audiometria de campo livre,BERA, imitanciometria, emissõesoto-acústicas e ganho funcionalde prótese. Nossas crianças surdassão então avaliadas auditivamentee recebem a indicação de próteses(a Universidade não as fornece eas famílias tentam doações emoutras instituições; temos, no en-tanto, algumas parcerias para faci-litar tal processo). Em nosso Am-bulatório de Surdez é realizada aadaptação da prótese e o trabalhode significação de sons.

A adaptação da prótese aliadaao processo de significação dos

sons, com certeza, ajuda o traba-lho de estimulação da linguagemem língua portuguesa, já que acriança pode se apoiar na própriaaudição, além da leitura orofacial,para interagir com o adulto. Aocontrário da fonoaudiologia tra-dicional, na estimulação da lin-guagem não se parte do ensinode fragmentos de língua, e simdo contexto comunicativo, sen-do as crianças incentivadas a usara língua portuguesa (nível prag-mático) na modalidade oral. Oprincipal contexto utilizado é oda mencionada brincadeira.

A partir do estudo da brinca-deira realizado por Vygotsky(1989a), Leontiev (1988) e tambémautores atuais como Kishimoto(1994, 1996), classifiquei tais brin-cadeiras nos seguintes grupos:

1. psicomotoras (desde o nasci-mento)

2. construtivas (a partir de 1 ano)

3. plásticas (a partir de 1 ano)

4. projetivas

4.1 Imitação de situaçõesvivenciadas (em torno de1 ano):

– início da separação sig-nificado/ objeto, cenasisoladas.

4.2 faz-de-conta (a partir de2 anos e meio):

– separação significado/objeto, presença de situ-ação imaginária e de his-tória com seqüência, pos-sibilidade de brincar jun-to e não apenas “ao lado”.

4.3 Devaneio

– brincadeira imagináriarealizada apenas atravésda fala interior, sem ne-cessidade de brinquedosou da exteriorização dafala.

5. Jogos com regras (regras sim-ples a partir de 3 anos e maiscomplexas a partir de 6 anos).

O tipo de brincadeira utiliza-do pela criança se relaciona tam-bém com o grau de complexida-de, e por isto foi demarcada aidade aproximada com a qual éesperado que as brincadeiras co-mecem a ser usadas pelas crian-ças de modo geral.

As crianças surdas, mesmoaquelas que não recebem a esti-mulação lingüística necessária,aparentemente agem como as cri-anças ouvintes nas brincadeiraspsicomotoras, construtivas e deimitação de situações vivenciadas.Digo aparentemente, pois crian-ças que não interagem natural-mente em uma língua já come-çam a se constituir de forma dife-rente daquelas que podem se co-municar e interagir através de um

Ao contrário da fonoaudiologia tradicional,na estimulação da linguagem não se parte

do ensino de fragmentos de língua, e sim docontexto comunicativo, sendo as criançasincentivadas a usar a língua portuguesa

(nível pragmático) na modalidade oral. Oprincipal contexto utilizado é o da

mencionada brincadeira.

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idioma comum em seu país, des-de que nasceram.

Pesquisas realizadas por estaautora (Goldfeld, 2000) e outroscomo Silva (2002) e Góes (s.d.)mostram a dificuldade das crian-ças surdas de entrarem no faz-de-conta, já que esta brincadeira éeminentemente lingüística. A di-ficuldade é percebida também nosjogos com regras e no simbolis-mo das brincadeiras plásticas.

O primeiro objetivo do Ambu-latório em pauta é, pois, tentarevitar diferenças no desenvolvi-mento das brincadeiras, o que sóé possível através da aquisição delinguagem. Lidamos com a se-guinte questão dialética: Criançasadquirem linguagem brincando einteragindo com adultos, e paradesenvolver a brincadeira é ne-cessária a aquisição da linguagem,ou seja, para brincar é necessáriodialogar e para dialogar é neces-

sário brincar. Nesses termos, oAmbulatório procura garantir tan-to a aquisição de linguagem quan-to o desenvolvimento das brinca-deiras nas atividades pedagógicas,orientados pelos professores fa-lantes da nossa língua de sinais.No atendimento fonoaudiológicoé também criado um ambiente debrincadeiras onde a linguagem évista em suas funções comunica-tiva e cognitiva.

No processo de aquisição dalinguagem, as crianças são in-centivadas a utilizar, a princí-pio, funções comunicativas maissimples como especular, cha-mar, pedir, nomear e responder(respostas tipo sim/não), e de-pois funções comunicativas maiscomplexas como responder(resposta tipo narrativa), per-guntar (perguntas tipo sim/não), questionar, argumentar,entre outras.

Nosso primeiro objetivo noaprendizado da língua portugue-sa não é a articulação de fonemasnem a correção gramatical, e simo uso da língua, de forma que,com relação ao nível semântico,a principal preocupação seja coma aquisição de conceitos.Vygotsky (1989b) mostra que aaquisição de conceitos espontâ-neos é realizada pela criança atra-vés da interação com o adulto, eque o conceito é a unidade mí-nima tanto da linguagem quantodo pensamento. Sob tal ótica,essa aquisição é essencial paratodo o desenvolvimento infantil(cognitivo, emocional e social),só podendo ser realizada atravésde situações de real interação.Assim, será também na brincadei-ra que a criança poderá adquirirconceitos e construir um sistemaconceitual hierárquico para maistarde, em idade escolar, chegara adquirir conceitos científicos.

Mantida essa perspectiva, atra-vés do uso da prótese auditiva,do processo de significação dossons, do contexto de brincadei-ras e da interação adulto/ crian-ça, onde o adulto utiliza a línguaportuguesa na modalidade oral,na fonoaudiologia se tem comoobjetivo que a criança possa tam-bém usar esta língua, construirconceitos e desenvolver brinca-deiras. O que propicia essas cons-truções é a qualidade de interaçãocriança/ adulto e a escolha de ati-vidades (brincadeiras) adequadasem sessões de atendimentofonoaudiológico.

No processo de aquisição da linguagem,as crianças são incentivadas a utilizar, aprincípio, funções comunicativas maissimples como especular, chamar, pedir,

nomear e responder (respostas tipo sim/não), e depois funções comunicativas maiscomplexas como responder (resposta tiponarrativa), perguntar (perguntas tipo sim/não), questionar, argumentar, entre outras.

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Referências Bibliográficas

ANDRADE, L. Língua de sinais e aquisição de linguagem. In: LIER-DE VITTO, M. Fonoaudiologia:no sentido da linguagem. São Paulo: Cortez, 1997.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1989.

GÓES, M. C. R. O brincar de crianças surdas: examinando a linguagem no jogo imaginário, [s.d.].Disponível em: <http//www.educacaoonline.pro.br> Acesso em: 22 mar. 2004.

GOLDFELD, M. O brincar na relação entre mães ouvintes e filhos surdos. Tese de Doutorado.São Paulo, UNIFESP, 2000.

KISHIMOTO, M. O jogo e a educação infantil. São Paulo: Livraria Pioneira, 1994.

KISHIMOTO, M. (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 1996.

LACERDA, C. A prática fonoaudiológica frente às diferentes concepções de linguagem. Espaço,Informativo Técnico-Científico do INES, n. 10, 1998, p.54-62.

LEONTIEV, A. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In: VYGOTSKY, L. Linguagem,desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1988.

PERDONCINI, G.: COUTO-LENZI, A. Audição é o futuro da criança surda. Rio de Janeiro: AIPEDA, 1996.

SANTANA, C. Abalando o discurso “metodológico”... tocando questões teóricas. In: LIER-DE VITTO,M. Fonoaudiologia: no sentido da linguagem. São Paulo: Cortez, 1997.

SILVA, D. Como brincam as crianças surdas. São Paulo: Plexus, 2002.

VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989a.

______. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989b.

Quando a criança se torna ca-paz de utilizar a narrativa, incen-tivamos as correções fonético/fonológicas e gramaticais e a am-pliação do nível semântico, pro-curando inserir temas mais abstra-tos não relacionados ao contextoimediato da brincadeira.

De fato, na busca por umafonoaudiologia inserida no bilin-güismo com referencial teóricosociointeracionista, consideramos

que a brincadeira, com seu pró-prio desenvolvimento, e mais aqualidade de interação entre acriança e seu terapeuta, podemser utilizadas como fio condutorda terapia, na área. Em relação aosníveis lingüísticos, apesar da com-preensão de a aquisição da lin-guagem depender da integraçãode todos os níveis, estes têm sidopriorizados na seguinte ordem:semântico-pragmático, morfossin-

tático e fonético/fonológico. Istonão significa que seja trabalhadoapenas um nível de cada vez, aocontrário, o objetivo é a inte-gração de todos. O que deve serressaltado é apenas um olhar maiscuidadoso para determinado ní-vel lingüístico nas diferentes eta-pas de aquisição da língua portu-guesa em sua modalidade oral.

Enfim, quaisquer das ativida-des realizadas em nosso atendi-mento fonoaudiológico só fazemsentido quando percebidas den-tro de um contexto maior de edu-cação bilíngüe, a acrescentar quecada criança tem seu planejamen-to próprio, ligadas tais caracteri-zações à forma como é percebi-do o processo de aquisição da lin-guagem, de modo geral, não re-fletindo o atendimento de todasas nossas crianças.

Quando a criança se torna capaz de utilizar anarrativa, incentivamos as correções

fonético/fonológicas e gramaticais e aampliação do nível semântico, procurando

inserir temas mais abstratos não relacionadosao contexto imediato da brincadeira.

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Resumo

O presente trabalho temcomo finalidade refletir sobrecomo a dança pode atuar posi-tivamente no processo de inclu-são de surdos, no sentido nãoapenas da proximidade física,mas também de garantir a“interação, assimilação e aceita-ção” (Pereira, 1980), benefician-do-os particularmente no que serefere à socialização, dado quea dança “envolve a vivência deritos, valores e a compreensãoda produção humana” (Goulart,2002); e possibilitando uma par-ticipação plena em atividadessociais e o conseqüente exercí-cio de sua cidadania. O objetivocentral é defender a idéia de quea dança pode auxiliar no pro-cesso de inclusão dos surdos,trazendo benefícios na áreapsicomotora e no modo do in-divíduo ver a si mesmo e de per-ceber o outro, o que influenciasua vida social. Para tanto, alémde pesquisa bibliográfica foramfeitas observações de campo emduas instituições que utilizam adança como prática educativa

com os surdos: a Associação deAssistência à Criança Surda(AACS) e o Instituto Nacional deEducação de Surdos (INES).

Palavras-chave: surdez; dan-ça; inclusão.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

This paper intends to makepeople reflect about how dancemay act positively in the processof deaf people inclusion, not onlyhelping them to get physicallycloser to the others, but alsoassuring their “interaction,assimilation and acceptance”

(Pereira, 1980), bringing socia-lization benefits through dance,which “involves experiencingrites, values and humanproduction understanding”(Goulart, 2002). This leads to aneffective participation in socialactivities and the consequentexercise of their citizenship. Themain goal of this work isdefending that dance can helpincluding deaf people, improvingtheir psychomotor habilities, andthe way the individual perceiveshimself and the others,influencing his social life. Thestudy was based on a vastbibliography, in addition to fieldresearch in two institutions thatuse dance as an educationalpractice tool: the Deaf ChildAssistance Association (AACS)and the National Institute of DeafEducation (INES).

Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: deafness; dance;inclusion.

. . .A Dança naEducação deSurdos: umcaminho paraa inclusão*

TTTTTatiane Rezendeatiane Rezendeatiane Rezendeatiane Rezendeatiane RezendeNunes de SouzaNunes de SouzaNunes de SouzaNunes de SouzaNunes de Souza

*Objetivando monografia de término de graduação do cursode Pedagogia da UFRJ, este texto integra pesquisa cadastradana DIESP/INES.Orientadora: Profª Dra. Mônica Pereira dos [email protected] recebido em setembro e selecionadoem novembro de 2004.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

Introdução

O trabalho aqui relatado con-siste em um estudo exploratóriosobre a relevância da dança comofacilitador da inclusão de pesso-as surdas, realizado em duas ins-tituições: na Associação de Assis-tência à Criança Surda (AACS) eno Instituto Nacional de Educa-ção de Surdos (INES).

Para tanto, realizou-se umapesquisa bibliográfica apropriadasobre o tema e utilizaram-se ins-trumentos para coletas de dadosem campo, tais como: observa-ções diretas; entrevistas não-estruturadas; conversas naturaise questionários.

O objetivo central consistiu emsaber de que forma a dança po-deria auxiliar no processo de in-clusão dos surdos. Para tanto, asseguintes questões de estudo fo-ram organizadas:

1) Como a dança é trabalhadacom os surdos?

2) Quais os benefícios, assimcomo as mudanças, que elapromove?

3) Como e por que essas mudan-ças se efetivam, quais os pro-cessos que estão implícitos?

4) Que tipos de interação elapromove?

Como a surdez é uma condi-ção que afeta principalmente acomunicação do indivíduo, jáque, ao não ouvir, torna-se com-plicado apreender o modelolingüístico utilizado pelos sereshumanos ouvintes (a fala), a dan-ça pode representar um modo deampliação das possibilidades ex-pressivas dos surdos, já que sebaseia em um outro tipo de lin-guagem: a corporal.

Neste contexto, a dança podeampliar a comunicação, pois ape-sar de estar dentro da linguagemcorporal, esta também faz partedos hábitos sociais dos ouvintes,diferentemente da Libras, línguanatural dos indivíduos surdos. Adança está nas boîtes, nas festas,no teatro e em muitos locais quepermitem a interação.

Este estudo é relevante paraa área educacional, pois a dan-ça, além de ser uma forma delazer (essencial para o desenvol-vimento de todos os indiví-duos), é também uma forma deexpressão; e os surdos, como ci-dadãos, têm o direito de parti-cipar dessa atividade e usufruirde seus benefícios.

As comunidades surdas

Apesar dos avanços obtidos nomovimento pela inclusão de pes-

soas com deficiências nos maisvariados aspectos da vida huma-na, ainda percebe-se um bompercentual de segregação.

A segregação dos surdos nachamada “comunidade surda” éum dos pontos que o estudo bus-ca superar através do exame dosaspectos da atividade de dança.Assim, primeiramente faz-se ne-cessário compreender como epor que os indivíduos surdosagrupam-se dessa maneira.

De um modo geral, os sereshumanos formam grupos basea-dos nos parentescos, aptidões,religiões; enfim, em afinidades.No caso dos surdos, eles muitasvezes formam a chamada comu-nidade surda, baseados no fato deutilizarem a Libras.

De acordo com Teske (1998:148):

A comunidade surda é umcomplexo de relações e inter-ligações sociais que diferem deoutras comunidades onde exis-te a possibilidade de comuni-cação oral, pois as pessoas sur-das necessitam da língua desinais e das experiências visu-ais para realizar uma comuni-cação satisfatória com outraspessoas.Cabe ressaltar que os ouvintes

que sabem utilizar a Libras também

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Os surdos mostram-se otimistas frente aofato de ouvintes quererem aprender “sua”

língua. Tal fato demonstra que essascomunidades se formam não apenas pelo

fator físico “surdez”, mas pelo fatorlingüístico, essencial em uma relação.

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

são aceitos nesse espaço. Os sur-dos mostram-se otimistas frente aofato de ouvintes quererem apren-der “sua” língua. Tal fato demons-tra que essas comunidades se for-mam não apenas pelo fator físico“surdez”, mas pelo fator lin-güístico, essencial em uma relação.

É possível dizer que não exis-te somente uma comunidade sur-da, mas várias comunidades “sur-das”, bem como existem váriascomunidades “ouvintes”, já quehá uma grande variedade de ca-racterísticas que influenciam nes-se agrupamento, tais como: clas-se social, religião, lazer, etc. Narealidade, o que existe são algu-mas “especificidades culturais”.

Nesse sentido, a dança é umtipo de atividade que pode “rom-per” com uma dicotomia entrecomunidades surdas X comunida-des ouvintes, por ser fundamen-tada em uma vontade comum, quepode ser inerente a ambos os gru-pos; e na qual o diálogo se dá atra-vés do corpo e do movimento.

Inclusão

Devido à dificuldade na utili-zação da língua oral, a comunica-ção dos surdos fica severamenteafetada, e com isto eles acabam

sendo segregados, ficando à par-te dos acontecimentos sociais.

Em contraposição a este fatoestá a política da inclusão, queconsiste em oferecer oportunida-des de vida iguais a todos e, nocaso dos deficientes, dando aces-so ao mundo físico e das relaçõessociais. É possível afirmar que“historicamente, o movimentopela inclusão pode ser conside-rado como parte de uma série demovimentos em favor da garantiada igualdade dos direitos sociaisde participação, de acesso e per-manência nos vários bens e servi-ços sociais, incluindo a educação”(SANTOS, 1999/2000: 1).

De acordo com a Declaraçãode Salamanca: “Inclusão e parti-cipação são essenciais à dignida-de humana e ao gozo e exercíciodos direitos humanos” (apudSANTOS, 1999/2000: 6). Dessa for-ma, a inclusão é vista como umresgate da cidadania, a luta pelaemancipação e o direito à parti-cipação na sociedade.

Cabe ressaltar que, do pontode vista aqui defendido, prioriza-se também a prática da reabilita-ção, vista como “um processo so-cial que visa à integração do indi-víduo na sociedade” (FERNANDES,1990: 51). Apesar da autora refe-

rir-se à integração, a reabilitaçãotambém é necessária para a inclu-são, não no sentido de tentar“normalizar” o portador de defi-ciência, fazendo-o passar por pro-cessos que são muitas vezes do-lorosos, mas com o intuito deproporcionar-lhe oportunidadesde desenvolver-se de modo inte-gral, aprendendo a lidar com suaprópria deficiência, colocando aênfase sobre suas capacidades.

Fernandes (idem) comentaque “o surdo só será considera-do reabilitado se puder alcançaro estado de convivência e automa-nutenção no meio social dos ou-vintes”. Mais do que isso, pensa-se que tal fato só ocorrerá se esteconseguir realmente se sentir par-te do grupo social.

A dança mostra-se uma práticainclusiva, pois tem permitido amuitos indivíduos surdos entra-rem em contato com os ouvintes,aproveitando-se integralmentedessa atividade.

Linguagem

A linguagem é um sistema sim-bólico tipicamente humano, sen-do uma das mais importantesaquisições deste grupo. De acor-do com Vygotsky, a linguagempossui duas funções essenciais: ade “intercâmbio cultural”, ouseja, de poder comunicar-se comos outros componentes do gru-po social; e a de “pensamentogeneralizante”, que se refere àcapacidade de conceituar (OLI-VEIRA, 1992: 27).

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Quanto ao primeiro aspecto,é fácil perceber que, por nãoparticipar da linguagem usualdos ouvintes, a linguagem oral,muitas vezes o surdo fica de forada interação social. “O significa-do social da surdez está, portan-to, intimamente ligado à ausên-cia da linguagem comum aomeio cultural em que vive oD.A.1” (FERNANDES, 1990: 50).

A segunda função determina-da por Vygotsky é a do “pensa-mento generalizante”. Para a com-preensão dessa forma de pensa-mento, primeiro é preciso salien-tar que, para o autor, pensamen-to e linguagem começam a desen-volver-se de modo independen-te e a partir de um determinadomomento é que se encontram.

É ao encontro entre pensa-mento e linguagem que se reme-te o interesse deste trabalho. Es-ses dois processos passam a serelacionar devido à inserção doindivíduo em um grupo cultural.Assim, forma-se um novo tipo defuncionamento psicológico, ondea linguagem torna-se racional e opensamento, verbal, mediadopelos significados constituídosatravés da linguagem. É nessemomento que surge o chamado“discurso interior”, um dialetopessoal responsável pelo pensa-mento verbal.

O pensamento verbal passa aser predominante no funciona-

mento psicológico humano, po-rém, a linguagem sem pensamen-to e o pensamento sem lingua-gem continuam co-existindo (OLI-VEIRA, 1997).

A surdez costuma afetar algu-mas operações mentais, principal-mente as relacionadas aos proces-sos simbólico-verbais. Sabe-se quemesmo os surdos conseguem de-senvolver uma linguagem, aindaque espontaneamente, geralmen-te baseada em gestos. Porém, estanão é suficiente no que diz res-peito a suprir as necessidades psi-cológicas de utilização de um có-digo simbólico-verbal, o que podeafetar, por exemplo, a capacidadede memória (Fernandes, 1990).Através da linguagem é possívelchegar a novas formas de atenção,imaginação, ação e pensamento.

Em contrapartida, alguns pro-cessos perceptivo-visuais desen-volvem-se mais em surdos doque em ouvintes, de acordo comsuas necessidades, podendo tra-zer benefícios nos aspectos psi-cológicos com funções de alerta

e defesa. (Myklebust apudFERNANDES, 1990).

Desse modo, conforme obser-vam Luria e Yudovich (apudFERNANDES, 1990: 43):

O surdo a quem não se ensi-nou a falar indica objetos ouações com um gesto e é inca-paz de abstrair a qualidade oua ação do próprio objeto, in-capaz de formar conceitos abs-tratos, de sistematizar os fe-nômenos do mundo exteriorcom a ajuda de sinais abstra-tos proporcionados pela lin-guagem e que não são nor-mais à experiência visual ad-quirida praticamente.

Nesse sentido, cabe destacarque a dança, traduzindo-se em umalinguagem que utiliza os fatoresperceptivo-visuais e gestuais, écapaz de trabalhar com emoçõese sentimentos, integrantes da ca-tegoria abstrata, podendo trazerbenefícios aos surdos também nes-se aspecto.

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

... a dança, traduzindo-se em uma lingua-gem que utiliza os fatores perceptivo-visuaise gestuais, é capaz de trabalhar com emo-ções e sentimentos, integrantes da catego-ria abstrata, podendo trazer benefícios aos

surdos também nesse aspecto.

1D.A.: deficiente auditivo.

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A linguagem corporal

Quando utilizamos gestos,expressões faciais, movimentos,etc., estamos utilizando a lingua-gem corporal.

Muitos estudiosos buscamcompreender o que pode estarsendo dito através do corpo. As-sim, estudam desde a postura eos movimentos até as expressõesfaciais. Acredita-se inclusive, queatravés da “leitura corporal” é pos-sível descobrir se uma pessoa estámentindo.

Tal fato ocorre porque as emo-ções encontram-se relacionadas àsexpressões corporais. O corpopossui um sistema interligado denervos e músculos que refletemo estado emocional do indivíduo(MORGAN, 1989).

Todas as pessoas exprimem suasemoções, porém a aprendizagempode modificar a forma de expri-mi-las. Assim, cada cultura tem umaforma de expressar sua emoção, ecada pessoa, o seu jeito.

Nesse sentido, o aprendizadoda dança pode acarretar ummodo original do indivíduo po-der expressar-se e também comu-nicar-se, já que “a expressão cor-poral permite projetar a essên-cia criadora do corpo” (MORGAN,1989: 87).

A dança

A dança é um ato de encontroconsigo mesmo e com o mundoque nos rodeia. A dança despertaemoções, transforma o indivíduoe proporciona bem-estar.

Tendo como instrumento seupróprio corpo, o homem pode

comunicar a sua história, sua cul-tura e seu estado emocional atra-vés da dança. Além disso, comoas demais atividades artísticas,nasceu de uma necessidade do serhumano de se expressar (COSTA,1998: 19).

Um dos primeiros indíciosque se tem dessa prática consistenas figuras que representam ho-mens dançando, encontradas nascavernas de Lascaux. Além disso,em escritas traduzidas de povosextintos, há indícios da existên-cia da dança como parte de ceri-mônias religiosas (FARO, 1986).

Fora o caráter religioso, a dan-ça também serviu a muitos outrosfins, como expressar emoções ecomunicar fatos. O homem pri-mitivo dançava em todas as ocasi-ões, pois esta era uma ação espon-tânea, que fazia parte do seu dia-a-dia (COSTA, 1998).

Como exemplo dessas mani-festações, é possível citar as dan-ças fúnebres ainda existentes noEgito, praticadas pelos parentesda pessoa falecida; a Dança daChuva, praticada pelos índiosnorte-americanos; as danças guer-reiras, que eram executadas pe-los soldados romanos; a Dança doVentre, que tem como intençãopropiciar a fertilidade; e a DançaFlamenca, que expressa a histó-ria de luta de um povo persegui-do; entre outras.

A dança traduz a cultura de umpovo, e diferencia-se de acordocom o contexto vivido. Na atuali-dade, a dança continua a fazerparte dos ritos sociais, embora talfato passe muitas vezes desperce-bido. Ela está nos teatros, comoforma de manifestação artística;nas festas, onde serve como ummeio para a descontração; nas

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

Todas as pessoas exprimem suas emoções,porém a aprendizagem pode modificar aforma de exprimi-las. Assim, cada cultura

tem uma forma de expressar sua emoção, ecada pessoa, o seu jeito.

A dança é um ato de encontro consigomesmo e com o mundo que nos rodeia. Adança desperta emoções, transforma o

indivíduo e proporciona bem-estar.

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boîtes, onde serve como um ins-trumento de sedução e conquis-ta; e em muitos outros lugares,podendo inclusive ser utilizadacomo uma forma de terapia.

Apesar de muitas vezes apare-cer relacionada ao caráter técni-co, a dança surgiu a partir de umaprática espontânea, de uma for-ma de expressão criada pelo serhumano.

Assim, o objetivo da dançacomo prática educativa é resgatara expressão, trabalhar o ser comoum todo, estimular a cooperação,de modo prazeroso, sabendo-seque “toda a evolução da dançamostra que esta sempre se apre-sentou envolvida no processoensino/aprendizagem, abrangen-do sempre habilidades como per-ceber, sentir, conhecer, estrutu-rar, criar, tomar decisões, enfim,avaliar” (NANNI, 2002: 90).

Além de que, “a consciênciado próprio corpo, a elaboraçãodo raciocínio e o poder de deci-são característicos da atividade dedançar contribuem significativa-mente para o processo educacio-nal” (ALMEIDA, 2000: 61). Isto sig-nifica que as habilidades desen-volvidas através da dança influen-ciarão na vida e na aprendizagemcomo um todo.

Benefícios da dança

A dança pode promover mui-tos benefícios ao desenvolvimen-

to humano em seus aspectospsicomotores2, tais como:

· a conscientização corporal· a construção espaço-temporal· a estruturação rítmica· o desenvolvimento da latera-

lidade.

Consciência corporal

É possível definir como cons-ciência a capacidade humana queconsiste em reconhecer suas pró-prias necessidades vitais e buscara melhor forma de supri-las.

Faz parte do processo de cons-cientização corporal:

o esquema corporal comorepresentação mental que oindivíduo tem do próprio cor-po, de cada parte que o forma,e de suas possibilidades. Cons-trói-se através das experiênci-as, do contato do corpo com omeio, da percepção e das sen-sações (ROSADAS, 1989).

Cabe destacar que é fator fun-damental na formação da perso-nalidade, já que o indivíduo pas-sará a perceber os elementos queo cercam a partir da imagem quetem de si.

Construção espaço-temporal

Pode-se dizer que esta temgrande relação com a consciên-cia corporal, já que só é possívelperceber o meio a partir de seu

corpo. Assim, a orientação espa-cial consiste em saber que o seucorpo pode movimentar-se emrelação aos objetos que fazemparte de seu espaço.

A dança trabalha efetivamentea noção de espaço, não apenasatravés dos movimentos (desloca-mentos), mas também da “racio-nalização que se faz acerca da tra-jetória (distância, direção, velo-cidade, altura, etc.)” (NANNI,2002: 102).

A orientação temporal con-siste na capacidade de o indiví-duo situar-se, em razão: da su-cessão de acontecimentos (an-tes, depois...), dos ciclos (me-ses, anos, semanas,...), da dura-ção dos intervalos (longo oucurto, cadência, ritmo) (MEUERe STAES, 1989).

A ação de dançar estimula obom desenvolvimento dessaestruturação, através do movimen-to, enfocando a velocidade, o rit-mo, as seqüências (ordenação), aduração, etc.

Meuer e Staes (1989:15) afir-mam que “as noções temporais sãomuito abstratas, muitas vezes bemdifíceis de serem adquiridas pornossas crianças” e os surdos, tam-bém podem apresentar semelhan-te dificuldade. Dessa forma, a pro-posta da dança pode facilitar essetipo de aprendizado por torná-lo uma experiência “concreta”,isto é, que pode ser vivida e sen-tida pelo corpo.

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

2De acordo com Meur e Staes (1989), a psicomotricidade consiste na relação existente entre motricidade, mente e afetividade, com o intuito de permitir

uma abordagem global do indivíduo.

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Estruturação rítmica

A estruturação do ritmo é de-finida como “a coordenaçãomotora e a integração funcionalde todas as forças estruturantes,tanto corporais, como psíquicase espirituais” (Turbino, 1975apud ROSADAS, 1989: 167). Fa-zem parte da noção de ritmo, alémdos conceitos já mencionados: aordenação, a sucessão e aalternância (MEUER e STAES,1989). O ritmo é importante parao ser humano porque permite aharmonia dos movimentos.

O ritmo faz parte da vida, estános batimentos cardíacos do serhumano, na sua respiração, noseu cotidiano. Na dança, ele podeser trabalhado a partir do indivi-dual, para se chegar ao ritmo co-letivo (quando o trabalho for fei-to em grupo). Segundo Nanni(2002:163), “num grupo, asincronia dos movimentos daspessoas indica interação – se umdeles é rejeitado, seu movimen-to tem outro ritmo”. Percebe-sedesse modo que o ritmo faz par-

te também das relações interpes-soais; e no caso dos surdos, o tra-balho rítmico mostra-se imprescin-dível, já que pode permitir umamelhor inclusão no meio socialdo qual faz parte.

Lateralidade

Corresponde à dominânciaem força e precisão de um ladodo corpo em relação ao outro.Isto ocorre porque os hemisféri-os cerebrais possuem funções dis-tintas. Porém, apesar dos dadosneurológicos, a lateralidade tam-bém sofre influência dos hábitossociais (MEUER e STAES, 1989).

Seu bom desenvolvimento éimportante para a coordenaçãomotora e o equilíbrio. Para Cos-

ta, “a lateralização constitui umelemento importante da adapta-ção psicomotora” (apud ROSA-DAS, 1989: 155).

O que se pode perceber naprática é que os surdos, em espe-cial, costumam demonstrar umacerta dificuldade nesse aspecto,não desenvolvendo integralmen-te sua dominância lateral. Issoprovavelmente ocorre quandosua deficiência é do tipo central,causada no sistema nervoso.

Uma forma de estimular o bomdesenvolvimento nesses casos éatravés de atividades que envol-vam o movimento de forma es-pontânea. Nesse caso, a dançamostra-se como uma boa suges-tão, já que envolve a participaçãocriativa do indivíduo.

Psicomotricidade e afeto

A dança, como atividade cor-poral que é, trabalha de modolúdico com as emoções e mostra-se um meio efetivo na elaboraçãodo “eu”, no resgate da auto-esti-ma e da auto-realização. Para umamelhor compreensão da influên-cia da dança na afetividade e for-mação da personalidade, cabeconhecer:

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

A dança, como atividade corporal que é,trabalha de modo lúdico com as emoções emostra-se um meio efetivo na elaboraçãodo “eu”, no resgate da auto-estima e da

auto-realização.

O ritmo faz parte da vida, está nosbatimentos cardíacos do ser humano, na

sua respiração, no seu cotidiano. Na dança,ele pode ser trabalhado a partir do

individual, para se chegar ao ritmo coletivo

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a) O jogo simbólico: Nanni (2002:66) sugere que “ao simbolizar,o homem recria o espaço men-tal e torna-o objeto conscienteatravés do jogo simbólico”,sendo este “a manifestação daexpressão simbólica no qual ohomem se expressa, se reali-za, estabelecendo seus limitesatravés da pele”. De acordocom tal definição, é possívelincluir a dança como uma dasformas de realização dessejogo, já que através dela esti-mula-se a percepção dos limi-tes mencionados, abrindo ca-minho para a expressãoemocional espontânea atravésda linguagem corporal.Na dança, o ser humano re-

elabora suas experiências, seussentimentos, seus afetos, indoao encontro de si mesmo e dooutro através da comunicaçãonão-verbal. Para os surdos, podeser uma forma significativa deampliar a sua compreensão domundo, de expressar-se e deconcretizar uma forma deinteração e comunicação com osoutros indivíduos, sendo estessurdos ou ouvintes.

b) A pulsão do movimento: Deacordo com Freud (apudNANNI, 2002), o esquema psi-cológico do ser humano seconstitui a partir da satisfaçãode suas necessidades fisioló-gicas, gerando o prazer. Como

o sistema tônico (sensitivo emotor) é um dos responsáveispelo contato com o mundo,diz-se que existe um prazer nomovimento, na ação.

Entende-se em Nanni (2002)que a pulsão do movimento estárelacionada à pulsão de vida, istoé, com a busca da satisfação dasnecessidades e do prazer. Nessesentido, a autora afirma que “talcomo na oralidade, analidade,sexualidade, há também na motri-cidade o aspecto da libido – umprazer de movimento, um prazerde agir existe” (p. 54)3.

Assim sendo, acredita-se que“o homem necessita de um mun-do de movimento para manter-seorgânica e emocionalmente sa-dio” (p. 10), sendo a dança uminstrumento nesse processo.

A dança na educação

dos surdos

O trabalho de dança foi pes-quisado de duas formas: atravésda investigação teórica e da ob-servação na prática. Quanto àteoria, receberam destaque os se-guintes autores: Fortes e Lago,Fux e Almeida.

Fortes e Lago (1990) relatamo projeto que desenvolveram noCDEDA (Centro de Dança e Estu-do do Deficiente Auditivo, cria-do em 1987), no qual utilizaramo Método Perdoncini, baseado na

estimulação auditiva. Segundo asmesmas, “a criança sente a neces-sidade de perceber a música atra-vés da sua audição para poderdançar, tornando a atividade agra-dável e motivante” (p. 40).

Fux (1982) alega que os sur-dos não podem ouvir a música damesma forma que as pessoas ou-vintes, já que estes escutam as fra-ses musicais. Porém, os surdospodem sentir a cadência e o rit-mo, que não são audíveis, e sim,perceptíveis. Segundo a autora:

a música é uma coisa viva e nãofica no receptáculo auditivoapenas, mas penetra em todoo corpo. Podemos escutá-lacom o calcanhar, com o ven-tre, com uma mão, participarcom todo o corpo (p. 45).

Desse modo, é possível vi-venciar a música através dos mo-vimentos corporais.

Apesar de também ter desen-volvido um trabalho envolvendomúsica e ritmo, no momento ini-cial de sua prática com deficien-tes auditivos Fux trabalhava ape-nas com o silêncio. Para esta,mesmo no silêncio existe um rit-mo interno. Isto quer dizer queo ritmo está em todas as coisas,inclusive no próprio ser humano,fazendo parte de sua respiração,batimentos cardíacos, do seumodo de andar, de comer, etc.

Almeida (2000) também relatasua experiência com surdos, e tra-balha o ritmo interno através dapercepção dos batimentos cardía-cos próprios e também dos demaiscompanheiros. O autor afirma que:

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

3Não foi objetivo do trabalho estender-se acerca da teoria freudiana. Para maiores detalhes, ler RAPPAPORT (1981).

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ao identificar os diferentes rit-mos cardíacos e suas altera-ções, o aluno compreende suapessoalidade rítmica, que par-tiu da constatação interocep-tiva (sensações internas) paraa proprioceptiva (percepçãodo próprio corpo) e extero-ceptiva (sensações de si, doespaço e do outro pelo con-tato). (p.51)

Nesse sentido, a propriocep-ção é importante, porque quem“domina suas reações tem um ali-cerce sólido para viver e interagirmelhor em seu meio” (p. 51).

O autor enfatiza ainda a im-portância da música, já que ossurdos são capazes de perceberos sons. Segundo o mesmo, écomum que as pessoas, sem co-nhecer muito bem a deficiênciaauditiva, desconheçam o poten-cial dos seus portadores, achan-do que não podem aproveitar-seda relação com a música e dandoa esta papel secundário; tal fatoprejudica o trabalho de dança, jáque passa a constituir-se apenasem movimentos corporais, semrelação com o ritmo.

Tanto Fux (1982) quantoAlmeida (2000) defendem a dan-ça como prática inclusiva, isto é,que permita o contato entre sur-dos e ouvintes. Nesse sentido, aprimeira alega que um grupo mis-to (ouvintes e surdos) facilita odesenvolvimento da capacidadecompreensiva dos surdos, já queestes têm a oportunidade de per-ceber visualmente as possibilida-des de movimentos, passando abuscá-los dentro de si mesmos.Nesse contexto, a comparação ea imitação são entendidas de for-ma positiva.

Na prática, os trabalhos observa-dos se davam a partir da estimula-ção auditiva, sendo que no INEStambém se utilizava a vibração.

A AACS trabalha a partir dooralismo, utilizando o MétodoPerdoncini. Dessa forma, o traba-lho de dança realizado nesta ins-tituição é baseado na estimulaçãoauditiva. Há efetivamente duasprofissionais envolvidas com o tra-balho: uma professora de educa-ção física e uma fonoaudióloga.

Cabe mencionar que existe umgrupo de dança, que aprendecoreografias e participa de algu-mas apresentações, quando con-vidados. Sendo assim, nem todosos alunos participam deste gru-po, mas todos têm um trabalhode estimulação auditiva, ritmo, eaprendem coreografias relativas àprópria escola (festa junina, etc.).É como se passassem por um es-tágio de preparação antes de in-gressarem no grupo. No geral, ascoreografias são baseadas naestimulação auditiva, na percep-ção das mudanças da música.

Esse trabalho é muito demo-rado e exaustivo, porém pode tra-zer muitos benefícios para o in-divíduo surdo. Um exemplo é aampliação da atenção e da con-centração, já que precisam acom-panhar a dança.

A proposta de dança tambémajuda a desenvolver valorescomo, por exemplo, a responsa-bilidade. No início, quando iamparticipar de algum evento, osalunos deixavam as roupas larga-

das. Atualmente, cada um cuidado que é seu; guarda e dobra asroupas. Além disso, passaram a termais disciplina quanto ao horá-rio e exigem o mesmo dos pais.

Para participar do grupo dedança exige-se do aluno discipli-na, isto é, somente participamaqueles que têm um bom com-portamento em sala de aula e nosteatros onde se apresentam.

Os alunos também passaram aajudar-se mutuamente e sabemquando o colega tem dificulda-de, ou ainda não aprendeu a co-reografia. Nesse sentido, houveuma coreografia que os própriosalunos escolheram dançar e foi-lhes ensinada pelos alunos maisantigos que conheciam a dança.Tal experiência foi benéfica, poispermitiu um espaço de troca mai-or entre eles e também uma rela-tiva autonomia.

Outra questão interessante éque estão aprendendo a lidar como fracasso. Os alunos não conse-guiam lidar com as dificuldades,com as suas limitações. Atualmen-te, aceitam ser corrigidos, pois sa-bem que com esforço podem me-lhorar. Além disso, as correçõesnão são feitas de maneira rígida;ao contrário, busca-se elogiar aomáximo o desempenho deles.

Durante o período de obser-vação pude notar que alguns alu-nos demonstravam dificuldadesna coordenação motora. Segun-do a fonoaudióloga, tal fato temmais a ver com a causa da surdezdo que com o seu grau. Tem-se

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como exemplo a meningite, quepode afetar áreas do cérebro re-lacionadas à motricidade.

Através das observações, é pos-sível notar a “evolução” do alunona dança, isto é, as mudanças ebenefícios que esta gerou. Umadas características percebidas foio fato de que atualmente os alu-nos conseguem dar continuida-de à dança após o erro, fato quenão ocorria antes.

Ao se comparar os ex-alunos dainstituição que ainda integram ogrupo de dança e os alunos atuais,que estão há menos tempo no gru-po, pôde-se constatar que os pri-meiros possuem uma facilidade vi-sivelmente maior para aprender asnovas coreografias que os demais.Tal fato implicaria em uma série dealterações provocadas pela dança,como: a ampliação da capacidademotora (e, conseqüentemente, daconsciência corporal e espacial) eda compreensão (abrangendo aatenção e a abstração).

No INES, apesar de a institui-ção atuar a partir de uma visãobilingüista, a professora de dança(dança de salão) utiliza o MétodoPerdoncini, pois foi o que fez par-te de sua formação. Assim como ainstituição anterior, busca trabalhara partir dos estímulos sonoros,porém também abre espaço para apercepção da vibração.

Seu projeto chama-se “Dan-çando o silêncio”, baseado naobra de Fux; mas trabalha com adança de salão. A proposta de tra-balho é bastante interessante, já

que lida com ritmos do cotidia-no, como o “Forró”, e outros me-nos conhecidos, como o “Zouck”,permitindo uma gama ampla deconhecimentos.

A dança de salão foi escolhi-da, pois permite uma interaçãoentre surdos e ouvintes sem serbaseada na competitividade, masna cooperação, já que precisamser parceiros para dançar bem.

Em relação aos pais, atravésdos questionários estes se mostra-ram satisfeitos quanto ao trabalhorealizado:

Acho legal, porque mistura ascrianças: os grandes e os pe-quenos, e também porque elesnão dão trabalho para a pro-fessora. Ela não reclama debagunça. Todos participam eela sempre está dançando jun-to com eles, faz teatro, assistea filme, tudo.

Outro aspecto destacado nosquestionários relaciona-se aos “pas-seios”. Segundo uma das mães, aprática da dança é importante “por-que o INES leva os alunos no Car-naval, pro forró, etc. Agora tam-bém vão na escola de jungu”. 4

Conclusões

O presente texto teve comoobjetivo apresentar o estudoexploratório realizado acercada prática de dança com surdos.Tal trabalho surgiu da possibi-lidade de se encontrar umanova forma de expressão paraos indivíduos deste grupo, etambém por ter sido observadauma forte aceitação desta práti-ca pelos surdos. Para a realiza-ção deste estudo, conformeobservado na introdução, algu-mas questões norteadoras foramorganizadas. Passaremos, a se-guir, a tecer nossas considera-ções finais sobre o estudo, res-pondendo perguntas.

A primeira pergunta tratou deinvestigar como a dança é traba-lhada com os surdos.

O que se pôde concluir é queem todas as obras analisadas (parteteórica), o trabalho de dança comsurdos obedecia a dois princípios:trabalhar o ritmo interno, com todaa subjetividade do indivíduo, ex-plorando sensações, expressão ecriatividade; e fazer a estimulaçãoauditiva, permitindo ao surdo per-ceber a presença desta, assim como

4Referindo-se ao Jongo.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

as mudanças que sofre, aproveitan-do-se desta relação.

Na prática, todo trabalho ob-servado também utilizava aestimulação auditiva. Porém, nota-se que a parte subjetiva da dança(sentimentos, emoção, expressão,significado) poderia ser melhorexplorada, dando aos alunos aoportunidade de criação.

A importância deste enfoqueé que estimula a abstração a partirda experiência. Para tanto, faz-senecessário ter em mente qual oreal objetivo da dança: se para aapresentação artística, ou com finsterapêuticos (ou ainda, se ambos).

Na segunda pergunta, procu-ramos saber quais os benefícios,assim como as mudanças, que adança poderia promover na vidados surdos.

De acordo com as observaçõese com os questionários respondi-dos, o que se pôde concluir é queos alunos que integram o grupode dança melhoram seu desempe-nho escolar, ficam mais atentos,responsáveis, disciplinados, comu-nicativos e menos tímidos. No ge-ral, o que se percebe é umamelhoria comportamental, que

facilita o processo de socialização.A terceira pergunta preocupou-

se em saber como e por que essasmudanças se efetivam, quais os pro-cessos que estariam ali implícitos.

A dança influencia no desen-volvimento psicomotor. Dessemodo, ao se melhorar o aspectoafetivo e motor, permite-se queo indivíduo desempenhe melhoralgumas tarefas como, por exem-plo, a escrita (que necessita dehabilidades como coordenaçãomotora, noção espacial, lateralida-de), proporcionando-lhe maiorautonomia e auto-estima, o queaumenta a vontade de interagir.

Além disso, a atividade de

dança trabalha intrinsecamen-

te com aspectos como: atenção,concentração, disciplina, auto-

superação e cooperação, que

são necessários para se ter umaboa vida social.

Por fim, na quarta perguntaindagamos que tipos de interaçãoa dança promove, e descobrimosque ela permite um maior conta-to consigo mesmo, a partir damaior conscientização corporal; etambém com os outros indivídu-os, seja por meio da imitação, dadança em conjunto, da coopera-ção, da parceria.

No geral, foi possível perce-ber e confirmar, através de con-versas, que os surdos realmentegostam de dançar, e que tal fatopode aproximá-los dos ouvintesa partir do momento em que com-partilham uma experiência emcomum. De acordo com o relatode um indivíduo surdo:

Danço muito bem essa tipo fes-ta 15 anos danso (sic) mto bemcom as meninas até dançocomo formatura danço mtobem sabe como aprendi sóolhando e percebendo outrada pessoa como dança me sen-to igual e dái (sic) aprendi eh(sic) simples.5

Nesse contexto, a dança podeagir como um agente inclusivo, jáque “a linguagem encerrada no

5“Danço muito bem em festa de 15 anos com as meninas. Danço muito bem até em formatura. Sabe como aprendi? Só olhando e percebendo como a

outra pessoa dança. Me sinto igual, e daí, aprendi. É simples” (tradução feita por mim).

... os alunos que integram o grupo de dançamelhoram seu desempenho escolar, ficammais atentos, responsáveis, disciplinados,

comunicativos e menos tímidos.

... a atividade de dança trabalhaintrinsecamente com aspectos como:

atenção, concentração, disciplina,auto-superação e cooperação, que são

necessários para se ter uma boa vida social.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○

REFLEXÕES SOBREA PRÁTICA

corpo é um longo caminho deencontros, e é uma ponte de co-municação para integrar o ser vivo,descobrir o seu mundo interno emelhorá-lo”. (FUX, 1982: 82).

Apesar de ter conseguido res-ponder as questões propostas, ain-da se tem muito o que estudar acer-

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ca do assunto, já que não existeuma formulação metodológica con-creta, e os profissionais que atuamna área trabalham a partir da expe-rimentação. Além disso, a dança éum tema muito abrangente, e po-de favorecer não apenas aos sur-dos, mas a todas as pessoas.

De qualquer modo, o estudomostrou-se importante, pois trou-xe à tona os benefícios proporci-onados pela dança, nem semprereconhecidos pelos demais pro-fissionais, e também exemplos demanifestações culturais dos quaiseste ato faz parte, comprovandoque a sua prática pode auxiliar osindivíduos surdos a se incluíremnos ritos sociais.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ VISITANDO OACERVO DO INES

A partir do ano 2000, sob a responsabilidade daDivisão de Formação e Capacitação de Recursos Hu-manos (DFCRH) do Departamento de Desenvol-vimento Humano Científico e Tecnológico(DDHCT), o INES passou a oferecer à comunidadee familiares de surdos o Curso de Língua Brasileirade Sinais – LIBRAS.

Coerente com sua missão de assegurar o desen-volvimento global da pessoa surda, sua plena soci-alização e respeito às diferenças, não poderia estainstituição centenária desconhecer os movimentosde efetivação e implementação das diretrizes go-vernamentais para uma escola inclusiva.

Mister era, portanto, que um maior número depessoas, educadores ou não, se apropriassem des-te modo de comunicação das comunidades surdas.

Ministrados por profissionais surdos que possu-

Curso de LIBRASEliane Silva de Souza Martins*Eliane Silva de Souza Martins*Eliane Silva de Souza Martins*Eliane Silva de Souza Martins*Eliane Silva de Souza Martins*

*Professora do INES lotadana DFCRH/DDHCT/INES

em habilitação para atuar como instrutores de Li-bras, o curso já certificou 2.527 pessoas.

Oriundos dos mais diferentes segmentos da soci-edade tornam-se estes alunos divulgadores, junto assuas comunidades, da importância dessa língua.

A cada semestre, já é nossa tradição a abertura denovas turmas. No primeiro ano de sua implantação,atendemos 18 turmas, contemplando 124 alunos.

Atualmente, apenas neste 2o semestre de 2004estamos atendendo 32 turmas, com a expectativade certificação para 358 alunos.

O curso de LIBRAS já se constitui patrimônio doINES, a primeira escola para surdos do Brasil. EsseCurso consolida a garantia, à comunidade surda,do acesso às mesmas oportunidades de inclusãosocial, em uma sociedade que se prepara para oacolhimento, respeito e trato da diversidade.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○PRODUÇÃOACADÊMICA

Resumo

Pensando a surdez em uma perspectivasocioantropológica que entende o indivíduo sur-do a partir de sua relação visual com o mundo, esua constituição como sujeito discursivo em umalíngua visual-gestual, esse trabalho investigou, pormeio de uma pesquisa interpretativista de baseetnográfica, em contexto de instrução formal deaprendizagem, um grupo de surdos adultos comhabilidades mínimas de linguagem, em processode aquisição tardia da Língua Brasileira de Sinais.A situação de surdos adultos que não apresentamcompetência em nenhuma língua ainda não foiestudada e, portanto, a presente pesquisa traz umacontribuição pioneira para o debate acadêmicona área da surdez. Tomando por base a concep-ção sociointeracional e dialógica de linguagem eo discurso como prática social, esta investigação

analisou aulas conduzidas em língua de sinais poruma professora surda falante nativa da LínguaBrasileira de Sinais. Após retratar as dificuldadesde comunicação e interação que caracterizavam asituação inicial, foi discutido o engajamento dis-cursivo dos aprendizes surdos adultos nas inte-rações em sala de aula e seu processo de tomadade consciência de que o mundo pode ser narra-do em sinais. Os aprendizes surdos adultos pas-saram a perceber a língua de sinais como sistemasimbólico que se constrói nas interações sociaise as possibilidades de, a partir da compreensão einterpretação de informações dos outros, produ-zir enunciados próprios e ampliar sua inserçãono mundo social.

Palavras-chave: surdos adultos; habilidades mí-nimas de linguagem; aquisição tardia de línguade sinais; aula conduzida em língua de sinais; pro-fessora surda.

Aquisição Tardia deLíngua de Sinais porSurdos Adultos:construindo possibilidades designificação e inserção no mundo social*

Vera Regina LoureiroVera Regina LoureiroVera Regina LoureiroVera Regina LoureiroVera Regina Loureiro

*Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar emLingüística Aplicada, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio do Janeiro – UFRJ –para obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada. Junho de 2004. Orientadora: AliceMaria da Fonseca Freire.verareginaloureiro @ hotmail.com

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ PRODUÇÃOACADÊMICA

Com a Palavra os Surdos:o que eles têm a dizersobre a escola regular?*

Amélia Rota BorgesAmélia Rota BorgesAmélia Rota BorgesAmélia Rota BorgesAmélia Rota Borges

*Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pelotas/RGS. Departamento: Educação.Orientadora: Magda F. [email protected]

Resumo

O presente estudo teve como objetivo investi-gar as percepções de alunos surdos que freqüen-tam a rede regular de ensino da cidade de Pelotas(RS) a respeito de suas experiências de inclusão.Para a realização da investigação, foram entrevista-dos nove alunos surdos – de um possível total devinte e oito - que aceitaram o convite para dela par-ticipar. As entrevistas com esses alunos foram reali-zadas em grupo. Colheram-se também dados jun-tos a seus pais/responsáveis (por meio de questio-nário) a respeito do processo de escolarização dosalunos e suas avaliações sobre os mesmos. Dentreos principais achados desta investigação, pôde-severificar que a escolha da escola regular é uma ne-cessidade para todos estes alunos, uma vez que asescolas especiais da cidade não oferecem ensinode nível médio. Os alunos que preferem a escolaregular, em detrimento da escola especial, argu-mentam que a primeira oferece um ensino de me-lhor qualidade do que a escola de surdos. Os queprefeririam estudar em escola especial pensam queesta oferece maior possibilidade de comunicaçãodo que encontram na escola regular. Para muitosalunos que integraram o grupo pesquisado, a esco-la de surdos constituiu-se, até então, no único lu-

gar em que realmente conseguiram se comunicaradequadamente, uma vez que até dentro da pró-pria família não existe o compartilhar de um códi-go lingüístico que lhes permita uma interaçãosatisfatória com ouvintes. Além disso, os alunosapontaram uma série de adequações que a escolaregular deverá sofrer para atender efetivamentesuas necessidades. Dentre elas, destacaram: a ne-cessidade de intérpretes - não apenas na sala deaula, como em todos os espaços da escola - deforma a facilitar a comunicação e o acesso dos sur-dos a todos os serviços que lhes são oferecidos; adivulgação da LIBRAS para a comunidade escolar,de forma a proporcionar um maior conhecimentosobre quem é o sujeito surdo e como ele se comu-nica, buscando uma maior aproximação entre sur-dos e ouvintes; a utilização de metodologias deensino diferenciadas, que levem em conta as ne-cessidades educativas especiais dos alunos surdos,como, por exemplo, o trabalho com recursos vi-suais. O trabalho ainda sugeriu que não existe umainclusão plena desses alunos na escola regular, emque pese toda a dificuldade envolvida no proces-so inclusivo. Para que isso mude, a escola deverátransformar-se de maneira mais ampla e adequar-se às necessidades educativas específicas dessesalunos.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○PRODUÇÃOACADÊMICA

Resumo

As dificuldades lingüísticas peculiares à maioriadas pessoas surdas constituem um dos principaisobstáculos à construção de conhecimento nas maisvariadas áreas do saber. Consciente dessa dificul-dade, e na tentativa de garantir a construção deconhecimento matemático, utilizei esquemas queresumissem de forma organizada e visual asinformações contidas nos textos de problemas, afim de facilitar o acesso dos alunos a esses dados,bem como a organização de seu raciocínio lógico.Para investigar a ação dos esquemas, realizei umestudo de caso baseado na visão antropológica dasurdez, na visão sociointeracional de aprendizageme na visão de matemática como instrumento decidadania. A análise mostra que a proposta, quesurgiu de forma intuitiva, revelou-se de grandeutilidade como instrumento de mediação entre otexto dos problemas e os alunos surdos, não sócomo estratégia de leitura, mas também como formade categorizar os dados do problema, facilitando oraciocínio dos alunos. Além disso, melhorou a suaauto-estima, na medida em que lhes possibilitouuma atitude de autonomia diante de uma atividadetradicionalmente difícil para eles.

Palavras-chave: mediação; leitura; categorização;esquemas; resolução de problemas matemáticos.

Resumo

O estudo teve como objetivo descrever e analisara visão dos professores de ensino regular a respeitoda inclusão da criança deficiente auditiva em classecomum das escolas da rede de ensino estadual,municipal e particular. Participaram, respondendoa um questionário, professores de educação infantile de primeiras séries do ensino fundamental (1ª a4ª série), selecionados aleatoriamente e perfazendoum total de 196, sendo 73 da rede estadual, 54 daparticular e 69 da municipal. Realizou-se a inter-venção no ensino fundamental, buscando tambémsubsídios que relacionassem a formação de profes-sores e a inclusão escolar da criança deficienteauditiva. Dos 196 (15,4% do universo) professoresquestionados, 83,16% (163) são a favor da inclusãoda criança deficiente auditiva no ensino regular. Amaioria, 56,63% (111), é formada em curso superior,sendo 55,85% (62) destes formados em Pedagogia.Dos professores participantes, 81,62% (160) sentem-se despreparados para atuar com a criança deficienteauditiva, apesar de 45,91% (90) já ter atuado comas mesmas. Concluiu-se que os cursos de formaçãode professores não os preparam devidamente parao exercício do magistério, conforme as exigênciasimpostas pelo movimento de inclusão escolar, mas,mesmo assim, a maioria dos professores é a favorda inclusão da criança deficiente auditiva no ensinoregular, desde que sejam tomadas providências parasua real efetivação.

Palavras-chave: deficiência auditiva; inclusão;educação; integração.

Maria Dolores Martins da Cunha CoutinhoMaria Dolores Martins da Cunha CoutinhoMaria Dolores Martins da Cunha CoutinhoMaria Dolores Martins da Cunha CoutinhoMaria Dolores Martins da Cunha Coutinho

A Mediação de Esquemasna Resolução deProblemas de Matemáticapor Estudantes Surdos:um estudo de caso*

Maria José Monteiro Benjamin BuffaMaria José Monteiro Benjamin BuffaMaria José Monteiro Benjamin BuffaMaria José Monteiro Benjamin BuffaMaria José Monteiro Benjamin Buffa

A Inclusão da CriançaDeficiente Auditiva noEnsino Regular: umavisão do professor declasse comum*

*Dissertação de Mestrado: UFRJ 2003.Departamento de Lingüística Aplicada:Área de Concentração – Interação e Discurso.Orientadora: Alice Maria da Fonseca [email protected]

*Dissertação de Mestrado. Área: Distúrbiosda Comunicação Humana. Hospital deReabilitação de Anomalias Craniofaciais daUniversidade de São Paulo – Bauru – 2002.Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria CecíliaBevilacqua.

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Esta obra é composta por palestras proferidas

pelo autor e decorrentes discussões ocorridas na

Universidade de Brasília, no ano de 1996. Com o

fito de eliminar inadequações e inserir novas

descobertas, Chomsky aponta modificações em

assertivas teóricas iniciais divulgadas em 1965, ano

da publicação de seu livro intitulado Aspects of the

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ RESENHASDE LIVROS

LINGUAGEM E MENTE-PENSAMENTOS ATUAIS

SOBRE ANTIGOSPROBLEMAS Theory of Syntax. Para tal, é mantida a tese de haver

um componente da mente humana próprio da

linguagem, o qual interage com outros sistemas

igualmente mentais. O livro inclui entre seus focos

principais: a proposta de um aparato teórico

interessado em seqüências bem formadas nas línguas

– e só elas – aparato este a ser exclusivamente

inserido em uma perspectiva que relacione

linguagem e mente. No que diz respeito ao “uso da

língua”, o autor nos convida à análise de algumas

palavras isoladas em frases, para as quais aponta

curiosos significados, e então conclui em favor da

idéia de Hume de que apenas atribuímos

identidades fictícias às coisas, estabelecidas estas

identidades por intermédio de nossos enten-

dimentos mentais. Segundo seus próprios dizeres:

“Os sistemas dentro dos quais a faculdade de

linguagem se encaixa têm de ser capazes de ‘ler’ as

expressões da língua e usá-las como ‘instruções’

para o pensamento e a ação”. O leitor irá poder

verificar que a variação teórica centralmente pon-

tuada neste livro se refere à troca de um modelo

de regras (por exemplo, regras responsáveis pela

hierarquia e a ordem linear de palavras em enun-

ciados), visão esta substituída pela de um modelo

de princípios e parâmetros. A esse propósito,

Chomsky faz ver que, em seu programa de pesquisa

atual (conforme ele mesmo enfatiza: um programa,

e não uma teoria), a primeira versão dessa nova

tendência foi a teoria de Princípios-e-Parâmetros,

sendo o minimalismo uma continuação desta

tendência. Avran Noam Chomsky é atualmente

professor do Instituto Tecnológico de Massachussetts

– USA – e um importante lingüista e ativista político

de nossos tempos.

Noam ChomskyNoam ChomskyNoam ChomskyNoam ChomskyNoam ChomskyBrasília: UnB

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○RESENHASDE LIVROS

Assinada por V. N. Volochinov, a primeira

publicação deste livro ocorreu na Rússia, no ano de

1929. Ainda são um pouco obscuras as razões que

terão induzido Bakhtin a utilizar o nome de um de

seus discípulos e amigos como responsável por sua

elaboração. Por um lado, se sabe que, no início da

década de 1930 e como ocorreria com tantos outros,

Volochinov se tornaria vítima de expurgos stalinistas

então impetrados em seu país. Por outro lado, pontos

comuns com outras produções de Bakhtin – como

sua obra sobre Rabelais e a cultura popular, ou A

Poética de Dostoievsky – constituem fatos que

também levaram seus estudiosos à conclusão de o

presente livro ser de sua própria autoria. Em uma

célebre entrevista publicada no Pravda, em 1950,

Stalin exortava a Lingüística, então oficial, para que

repudiasse uma natureza “superestrutural” da

linguagem humana, enquanto ele mesmo deslizava,

contudo, para uma concepção igualmente

mecanicista: a da língua como instrumento de

comunicação. Vinte anos antes, já a obra Marxismo e

Filosofia da Linguagem de Bakhtin (Volochinov)

abordava relações entre linguagem e ideologia de

um modo que suplantou tais ortodoxias. Em seu

transcorrer, de fato o presente livro abre críticas

contra conservadorismos inerentes a posicionamentos

formalistas, além de incluir outras tantas dirigidas a

premissas de Saussure (na década de 1970, o caráter

estruturalista destas premissas já estaria sendo

amplamente criticado também no Ocidente).

Diferentemente, Bakhtin trata o signo lingüístico

como território de embates entre classes, sobre a

alteridade que lhe é constitutiva, sobre sua natureza

ideológica, sobre o dinamismo peculiar das

significações e sobre diferentes tipos de discurso.

Inaugura, enfim, abordagens em torno do que

atualmente se conhece como processo a partir do

qual (e no qual) emerge toda e qualquer enunciação.

O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) nasceu em Orial

e estudou na Universidade de Odessa e de São

Petesburgo, tendo se diplomado em História e

Filosofia. Trabalhou como professor e participou de

um pequeno círculo de intelectuais freqüentado,

dentre outros, por Marc Chagall, por P. N. Medviédev

e por V. N. Volochinov.

MARXISMO E FILOSOFIA DALINGUAGEM

Mikhail Bakhtin (Volochinov)Mikhail Bakhtin (Volochinov)Mikhail Bakhtin (Volochinov)Mikhail Bakhtin (Volochinov)Mikhail Bakhtin (Volochinov)São Paulo: HUCITEC

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MATERIALTÉCNICO-PEDAGÓGICO

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

O Instituto Nacional de Educação de Surdos –INES – órgão do Ministério da Educação, tem comomissão institucional a produção, o desenvolvimentoe a divulgação de conhecimentos científicos e tecno-lógicos no campo da surdez. No contínuo cumpri-mento dessa meta, o INES lança esses dois vídeoscompostos por Clássicos da Literatura Mundial em

Língua Brasileira de Sinais, mais uma vez buscandoenriquecer recursos didáticos a serem utilizados naárea. Idealizados e estruturados por uma equipede professores ouvintes e instrutores e monitoressurdos, tais vídeos objetivam atender não só asnecessidades de professores, como também, eprincipalmente, as de alunos surdos.

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IV Jornada Internacional de FonoaudiologiaIV Encontro Cearense de FonoaudiologiaII Encontro Intersindical de Fonoaudiologia

Período: 7 a 9 de abril de 2005Local: Fortaleza – CEInformações: (85) 3226-2143, (85) 3241-3541

20º Encontro Internacional de Audiologia

Período: 21 a 24 de abril de 2005Local: PUC-SPInformações: (11) 3672-0140

58ª Reunião Anual da SBPCDo Sertão Olhando O MarCultura & Ciência

Período: 17 a 22 de julho de 2005Local: Universidade Estadual do Ceará – UECEInformações: www.sbpcnet.org.br

6º Congresso Regional de Educação “Educação e Saúde:Multidisciplinaridade na Formação do Professor”

Período: 28 a 30 de julho de 2005Local: Centro Universitário da Fundação de Ensino

Octávio Bastos -São João da Boa Vista – SPInformações: (19) 3634-3200

www.feob.br

XXV Congresso Latino-Americano de Sociologia

Período: 26 a 29 de agosto de 2005Local: Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRS

Porto Alegre – RSInformações: (51) 3316-6890

Fax: (51) 3316-7306