de volta à escola

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C M Y K C M Y K A-20 A-20 Editora: Ana Paula Macedo // [email protected] 3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155 “N unca é tarde para recomeçar.” O dita- do pode ser antigo, mas nunca esteve tão atual. É cada vez mais comum en- contrar pessoas que já passaram dos 50 anos de volta às salas de aula. Muito mais do que aprender, esse público busca realização pes- soal e o prazer de vencer novos desafios. E, de acordo com os médicos, os benefícios vão mes- mo além do conhecimento. Estudar nessa idade pode evitar a depressão, ajudar na inserção so- cial e auxiliar na prevenção de doenças degene- rativas. Para Marcelo de Faveri, secretário-geral da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia do Distrito Federal, é muito importante manter nessa idade a sensação de que ainda há coisas a aprender. “Em muitos casos, depois que os filhos estão criados, a família já não exige tanta dedica- ção e as pessoas tendem a se sentir sozinhas. A ocorrência de doenças afetivas, como solidão e depressão, se tornam comuns”, diz. Ele afirma que manter-se ativo também ajuda a prevenir outros problemas mais graves. “Existem estudos que comprovam que a atividade intelectual difi- culta o desenvolvimento de doenças degenerati- vas como o mal de Alzheimer.” Depois de trabalhar durante mais de 10 anos em um restaurante, Elaine Kraskine Dalmolin, 59 anos, resolveu que era hora de dar uma guina- da na própria vida. “Eu passava o dia todo em ca- sa, engordei. Um dia parei e pensei: não quero terminar minha vida dentro de casa, com a barri- ga no fogão.” Elaine decidiu ingressar em um curso superior e iniciou sua jornada. Primeiro, refez o ensino médio, que já havia completado na juventude. Quando chegou a hora de escolher o curso, resolveu reavivar a paixão antiga pelas li- nhas e carretéis e optou por design de moda. Ela conta que o início não foi fácil. “Eu fica- va com muita vergonha quando não conseguia entender algo ou não sabia o que significava algum termo, mas, com o tempo, você vai fa- zendo amizades e vê que é besteira ter medo de perguntar”, garante ela, dizendo que nunca sentiu preconceito por ser uma das mais ve- lhas da turma. Se antes temia chegar à terceira idade acomodada, Elaine hoje coleciona pla- nos. Quando se formar, pretende abrir sua própria grife, voltada para pessoas com mais de 50 anos. “Quero usar o que aprendo aqui DE VOLTA à escola É cada vez mais comum a presença de pessoas com mais de 50 anos em salas de aula. Mais do que capacitação profissional, elas querem se realizar pessoalmente e fugir da monotonia O curso de design de moda despertou em Elaine a vontade de ter a própria grife de roupas Fátima decidiu fazer um curso supletivo há sete anos. Depois de concluir os ensinos fundamental e médio, passou no vestibular e já tem planos de cursar uma pós-graduação para fazer roupas para pessoas da minha ida- de. Para que elas também possam se sentir mais bonitas”, completa. Vitória A história de Elaine se torna cada vez mais co- mum à medida que cresce a oferta de cursos su- periores em instituições particulares. Um exem- plo desse fenômeno é a própria turma em que ela estuda, onde estão matriculadas outras pes- soas que decidiram voltar a aprender depois de um tempo afastadas das salas de aula. Casos de Eloiza Santos, 59 anos, e Fátima Borges, 56, que também acreditam não existir idade certa para obter um diploma. A caminhada de Fátima foi ainda mais longa que a das colegas, pois, na juventude, ela não te- ve a oportunidade de concluir nem mesmo o en- sino fundamental. Em 2002, depois de proble- mas de saúde, decidiu que era hora de investir em si mesma, e se matriculou em um supletivo. Pouco a pouco, foi avançando nas séries. “Cada matéria que eu ia concluindo era uma vitória e um incentivo para eu continuar”, conta. Depois de concluir o ensino médio, ela percebeu que poderia ir muito além do que imaginava até en- tão. “Eu achava que terminar o segundo grau se- ria muito. Hoje, estou na faculdade e já penso em pós-graduação”, planeja. O ingresso no ensino superior não foi fácil. Mesmo depois de aprovada no primeiro vestibu- lar, não conseguiu se matricular por questões fi- nanceiras. “Meus filhos estavam na faculdade e eu tive de pensar primeiro neles”, lembra. No ano passado, motivada pelo desconto de 50% na mensalidade dado a alunos com mais de 50 anos oferecido pelo centro universitário onde estuda, Fátima viu que era a hora de realizar seu sonho. “Nunca mais tive problemas de saúde. Agora, me sinto mais realizada, mais feliz” comemora. Já a história de Eloiza Santos é um pouco dife- rente. Em 1987, ela se graduou em Ciências Con- tábeis, trabalhava fora e tinha uma vida indepen- dente. Aos 37 anos, teve o primeiro de dois filhos e decidiu largar o emprego para se dedicar à fa- mília. Agora, com 59 anos, resolveu retomar os estudos, em busca de motivação. “Não me arre- pendo da escolha que fiz. Aqui, eu me distraio, não fico presa em casa”, conta. “Eu me dediquei à minha família, mas, quando meus filhos cresce- ram, eu vi que era hora de voltar à ativa.” Convivência Segundo a especialista em educação Maria Regina Lemos, pesquisadora do Núcleo de Estu- dos do Idoso da Universidade de Brasília (UnB), a convivência com os alunos mais jovens é posi- tiva não só para os idosos. Para ela, os mais jo- vens também são beneficiados. “Acho que ocorre uma troca bastante justa. O jovem tem mais faci- lidade em determinados assuntos, como infor- mática. Entretanto, o idoso pode contribuir mui- to com experiência de vida.” Ela assegura que, nas aulas, a dinâmica preci- sa ser a mesma para todos, independentemente da idade. “Se você adotar uma didática diferente para os alunos mais velhos, eles podem se sentir incapazes, que é exatamente o oposto do que buscam nas aulas. Eles são bastante conscientes, e quando embarcam nesses projetos sabem o que espera por eles”, afirma. Para o médico Marcelo de Faveri, apesar de muitos benefícios, é preciso tomar alguns cuida- dos. Para ele, os alunos mais velhos estão expos- tos a um nível de cobrança tão grande quanto os mais novos. “Além disso, eventualmente é possí- vel que eles sejam vítimas de alguma forma de preconceito, por serem menos íntimos de algu- mas tecnologias. É preciso ter bastante cons- ciência disso para que o estresse não piore a qua- lidade de vida dessas pessoas”, ressalta. Outro ponto importante destacado por Fa- veri, é que não deve haver pressão. “Nos jovens, existe uma certa cobrança para que os conhe- cimentos adquiridos sejam úteis ao mercado de trabalho. No caso do idoso, isso não pode existir, já que o mercado ainda não está prepa- rado para absorver mão de obra nessa faixa”, completa. E na maior parte das vezes, o foco desse público não está mesmo na questão pro- fissional. “Nessa idade, dificilmente se inicia uma nova carreira. Em geral, o que se busca é a realização pessoal e o sentimento de utilidade”, avalia Maria Regina. Valério Ayres/Esp. CB/D.A Press Paulo H. Carvalho/CB/D.A Press Saber viver 20 CORREIO BRAZILIENSE Brasília, terça-feira, 18 de agosto de 2009

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Correio Braziliense - Saber Viver - 18/08/2009

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Page 1: De Volta à Escola

C M Y K C M YK

A-20A-20

EEddiittoorraa:: Ana Paula Macedo // [email protected]

3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155

“Nunca é tarde para recomeçar.” O dita-do pode ser antigo, mas nunca estevetão atual. É cada vez mais comum en-contrar pessoas que já passaram dos

50 anos de volta às salas de aula. Muito mais doque aprender, esse público busca realização pes-soal e o prazer de vencer novos desafios. E, deacordo com os médicos, os benefícios vão mes-mo além do conhecimento. Estudar nessa idadepode evitar a depressão, ajudar na inserção so-cial e auxiliar na prevenção de doenças degene-rativas.

Para Marcelo de Faveri, secretário-geral daSociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologiado Distrito Federal, é muito importante manternessa idade a sensação de que ainda há coisas aaprender. “Em muitos casos, depois que os filhosestão criados, a família já não exige tanta dedica-ção e as pessoas tendem a se sentir sozinhas. Aocorrência de doenças afetivas, como solidão edepressão, se tornam comuns”, diz. Ele afirmaque manter-se ativo também ajuda a preveniroutros problemas mais graves. “Existem estudosque comprovam que a atividade intelectual difi-culta o desenvolvimento de doenças degenerati-vas como o mal de Alzheimer.”

Depois de trabalhar durante mais de 10 anosem um restaurante, Elaine Kraskine Dalmolin,59 anos, resolveu que era hora de dar uma guina-da na própria vida. “Eu passava o dia todo em ca-sa, engordei. Um dia parei e pensei: não queroterminar minha vida dentro de casa, com a barri-ga no fogão.” Elaine decidiu ingressar em umcurso superior e iniciou sua jornada. Primeiro,refez o ensino médio, que já havia completadona juventude. Quando chegou a hora de escolhero curso, resolveu reavivar a paixão antiga pelas li-nhas e carretéis e optou por design de moda.

Ela conta que o início não foi fácil. “Eu fica-va com muita vergonha quando não conseguiaentender algo ou não sabia o que significavaalgum termo, mas, com o tempo, você vai fa-zendo amizades e vê que é besteira ter medode perguntar”, garante ela, dizendo que nuncasentiu preconceito por ser uma das mais ve-lhas da turma. Se antes temia chegar à terceiraidade acomodada, Elaine hoje coleciona pla-nos. Quando se formar, pretende abrir suaprópria grife, voltada para pessoas com maisde 50 anos. “Quero usar o que aprendo aqui

DE VOLTA à escola

É cada vez mais comum a presença de pessoas com mais de 50 anos em salas de aula. Maisdo que capacitação profissional, elas querem se realizar pessoalmente e fugir da monotonia

O curso de design de moda despertou em Elaine a vontade de ter a própria grife de roupas

Fátima decidiu fazer um curso supletivo há sete anos. Depois de concluir os ensinos fundamental e médio, passou no vestibular e já tem planos de cursar uma pós-graduação

para fazer roupas para pessoas da minha ida-de. Para que elas também possam se sentirmais bonitas”, completa.

VitóriaA história de Elaine se torna cada vez mais co-

mum à medida que cresce a oferta de cursos su-periores em instituições particulares. Um exem-plo desse fenômeno é a própria turma em queela estuda, onde estão matriculadas outras pes-soas que decidiram voltar a aprender depois deum tempo afastadas das salas de aula. Casos deEloiza Santos, 59 anos, e Fátima Borges, 56, quetambém acreditam não existir idade certa paraobter um diploma.

A caminhada de Fátima foi ainda mais longaque a das colegas, pois, na juventude, ela não te-ve a oportunidade de concluir nem mesmo o en-sino fundamental. Em 2002, depois de proble-mas de saúde, decidiu que era hora de investirem si mesma, e se matriculou em um supletivo.Pouco a pouco, foi avançando nas séries. “Cada

matéria que eu ia concluindo era uma vitória eum incentivo para eu continuar”, conta. Depoisde concluir o ensino médio, ela percebeu quepoderia ir muito além do que imaginava até en-tão. “Eu achava que terminar o segundo grau se-ria muito. Hoje, estou na faculdade e já penso empós-graduação”, planeja.

O ingresso no ensino superior não foi fácil.Mesmo depois de aprovada no primeiro vestibu-lar, não conseguiu se matricular por questões fi-nanceiras. “Meus filhos estavam na faculdade eeu tive de pensar primeiro neles”, lembra. No anopassado, motivada pelo desconto de 50% namensalidade dado a alunos com mais de 50 anosoferecido pelo centro universitário onde estuda,Fátima viu que era a hora de realizar seu sonho.“Nunca mais tive problemas de saúde. Agora, mesinto mais realizada, mais feliz” comemora.

Já a história de Eloiza Santos é um pouco dife-rente. Em 1987, ela se graduou em Ciências Con-tábeis, trabalhava fora e tinha uma vida indepen-dente. Aos 37 anos, teve o primeiro de dois filhose decidiu largar o emprego para se dedicar à fa-

mília. Agora, com 59 anos, resolveu retomar osestudos, em busca de motivação. “Não me arre-pendo da escolha que fiz. Aqui, eu me distraio,não fico presa em casa”, conta. “Eu me dediquei àminha família, mas, quando meus filhos cresce-ram, eu vi que era hora de voltar à ativa.”

ConvivênciaSegundo a especialista em educação Maria

Regina Lemos, pesquisadora do Núcleo de Estu-dos do Idoso da Universidade de Brasília (UnB),a convivência com os alunos mais jovens é posi-tiva não só para os idosos. Para ela, os mais jo-vens também são beneficiados. “Acho que ocorreuma troca bastante justa. O jovem tem mais faci-lidade em determinados assuntos, como infor-mática. Entretanto, o idoso pode contribuir mui-to com experiência de vida.”

Ela assegura que, nas aulas, a dinâmica preci-sa ser a mesma para todos, independentementeda idade. “Se você adotar uma didática diferentepara os alunos mais velhos, eles podem se sentirincapazes, que é exatamente o oposto do quebuscam nas aulas. Eles são bastante conscientes,e quando embarcam nesses projetos sabem oque espera por eles”, afirma.

Para o médico Marcelo de Faveri, apesar demuitos benefícios, é preciso tomar alguns cuida-dos. Para ele, os alunos mais velhos estão expos-tos a um nível de cobrança tão grande quanto osmais novos. “Além disso, eventualmente é possí-vel que eles sejam vítimas de alguma forma depreconceito, por serem menos íntimos de algu-mas tecnologias. É preciso ter bastante cons-ciência disso para que o estresse não piore a qua-lidade de vida dessas pessoas”, ressalta.

Outro ponto importante destacado por Fa-veri, é que não deve haver pressão. “Nos jovens,existe uma certa cobrança para que os conhe-cimentos adquiridos sejam úteis ao mercadode trabalho. No caso do idoso, isso não podeexistir, já que o mercado ainda não está prepa-rado para absorver mão de obra nessa faixa”,completa. E na maior parte das vezes, o focodesse público não está mesmo na questão pro-fissional. “Nessa idade, dificilmente se iniciauma nova carreira. Em geral, o que se busca é arealização pessoal e o sentimento de utilidade”,avalia Maria Regina.

Valério Ayres/Esp. CB/D.A Press

Paulo H. Carvalho/CB/D.A Press

Saber viver20 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, terça-feira, 18 de agosto de 2009