de santa catarina, brasil, a cerca de 4900 anos cal bp, e ... · rhizophora, avicennia e...

16
103 Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009. Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e considerações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III Rita Scheel-Ybert * Gina Faraco Bianchini * Paulo De Blasis ** RITA SCHEEL-YBERT, R.; BIANCHINI, G.F.; DE BLASIS. P. Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e considerações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada- III. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009. Resumo: Fragmentos carbonizados de lenho de Avicennia sp, espécie típica e exclusiva do ecossistema de mangue, foram encontrados em sedimentos arqueológicos datados em cerca de 4900 anos BP no sambaqui Encantada-III, município de Jaguaruna, Estado de Santa Catarina. Este sítio se localiza ligeiramente ao sul do limite atual de distribuição do mangue, cujo desaparecimento desta região está provavelmente associado à variação do nível relativo do mar. Estes resultados corroboram a estreita associação entre grupos sambaquieiros e o manguezal e apresentam evidências diretas da ocorrência deste tipo de vegetação na própria área de implantação do sítio, assim como do uso de madeira de mangue como combustível em sambaquis desta região. Além disso, os dados antracológicos apontam para a existência de dois períodos de ocupação no sítio, provavelmente de curta duração, sem evidências de atividades cotidianas, sendo o primeiro associado a populações sambaquieiras e o segundo, possivelmente, a populações Je ou Guarani, que ocuparam a área posteriormente. Palavras-chave: Sambaquis – Antracologia – Mangue – Paleoambiente – Holoceno – Litoral sul brasileiro. nhecida de longa data. Conchas de ostras, pinças de caranguejos e restos de aves associa- das a este ambiente estão presentes na maioria dos sítios estudados até o momento, sendo (*) Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Antropologia. <[email protected]>; <[email protected]> (**) Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo. <[email protected]> Introdução associação de populações sambaquieiras com o ambiente de mangue é reco- A

Upload: dinhnhi

Post on 08-Dec-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

103

Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sulde Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e considerações

sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III

Rita Scheel-Ybert *Gina Faraco Bianchini *

Paulo De Blasis **

RITA SCHEEL-YBERT, R.; BIANCHINI, G.F.; DE BLASIS. P. Registro de mangue emum sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de4900 anos cal BP, e considerações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

Resumo: Fragmentos carbonizados de lenho de Avicennia sp, espécie típicae exclusiva do ecossistema de mangue, foram encontrados em sedimentosarqueológicos datados em cerca de 4900 anos BP no sambaqui Encantada-III,município de Jaguaruna, Estado de Santa Catarina. Este sítio se localiza ligeiramenteao sul do limite atual de distribuição do mangue, cujo desaparecimento desta regiãoestá provavelmente associado à variação do nível relativo do mar. Estes resultadoscorroboram a estreita associação entre grupos sambaquieiros e o manguezal eapresentam evidências diretas da ocorrência deste tipo de vegetação na própriaárea de implantação do sítio, assim como do uso de madeira de mangue comocombustível em sambaquis desta região. Além disso, os dados antracológicosapontam para a existência de dois períodos de ocupação no sítio, provavelmentede curta duração, sem evidências de atividades cotidianas, sendo o primeiroassociado a populações sambaquieiras e o segundo, possivelmente, a populaçõesJe ou Guarani, que ocuparam a área posteriormente.

Palavras-chave: Sambaquis – Antracologia – Mangue – Paleoambiente –Holoceno – Litoral sul brasileiro.

nhecida de longa data. Conchas de ostras,pinças de caranguejos e restos de aves associa-das a este ambiente estão presentes na maioriados sítios estudados até o momento, sendo

(*) Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.Departamento de Antropologia. <[email protected]>;<[email protected]>

(**) Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade deSão Paulo. <[email protected]>

Introdução

associação de populações sambaquieirascom o ambiente de mangue é reco-A

Page 2: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

104

Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, econsiderações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

frequentes em sambaquis de diversas partes dacosta brasileira e de diversos períodos detempo. A importância deste ambiente comoprovedor de recursos alimentares abundantes,concentrados e de fácil obtenção fez dele umelemento privilegiado no modo de vidasambaquieiro.

Reconstituições paleoambientais baseadasna antracologia realizadas em diversos sambaquisdo sudeste do Estado do Rio de Janeirocomprovaram que o mangue fazia parte doambiente no qual viviam estas populações, quese instalavam preferencialmente no ecossistemade restinga, mas tendo sempre à proximidademanguezais e florestas costeiras (Scheel-Ybert1999, 2000, 2001; Scheel-Ybert et al. 2003;Scheel-Ybert & Dias 2007).

O manguezal é um ecossistema costeiro, detransição entre os ambientes terrestre e mari-nho, sujeito ao regime de marés. Pode serdefinido como uma floresta de árvores xerófilasadaptadas a um substrato lamoso constante-mente úmido, pouco oxigenado, com forte taxade salinidade e periodicamente inundado(Schaeffer-Novelli et al. 2000). Ocorre emregiões costeiras abrigadas e apresenta condi-ções propícias para alimentação, proteção ereprodução de muitas espécies animais, sendojustamente isto o que o torna tão importantepara diversas populações humanas.

Atualmente, os manguezais se distribuemessencialmente na zona intertropical. Até aexpansão da ocupação pós-colonial, estavegetação ocupava uma grande extensão dascostas brasileiras, assim como as margens dediversas lagunas e rios litorâneos. Nas costasorientais da América, sua área de ocorrência seestende das ilhas Bermudas (32º25’ de latitudenorte) a Laguna, no Estado de Santa Catarina(28º30’ de latitude sul) (Schaeffer-Novelli et al.2000). Devido às condições extremamenterestritivas deste ambiente, o número deespécies bem adaptadas é reduzido. As princi-pais espécies de mangue pertencem aos gênerosRhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorremtambém espécies associadas, como Hibiscuspernambucensis, Conocarpus erectus, Caesalpiniabonduc, Annona glabra, Dalbergia ecastophyla,entre várias outras plantas lenhosas e herbáceas

(Silveira 1937), além de macro e micro-algas,todas adaptadas a flutuações de salinidade.Apesar da diversidade florística limitada, osmanguezais brasileiros apresentam uma grandediversidade estrutural, de formas de crescimen-to e de padrões de distribuição de espécies(Schaeffer-Novelli et al. 1990).

As espécies do gênero Avicennia são as maistolerantes à salinidade, Rhizophora é o gêneromenos tolerante e Laguncularia se situa entre osdois extremos (Cintrón-Molero & Schaeffer-Novelli 1992). Um mangue com forte predomi-nância de Avicennia indica um ambiente árido,isto é, de salinidade muito elevada (Blasco1987).

Cinco condições básicas são postuladaspara a ocorrência de manguezais, embora nemtodas precisem necessariamente ser atendidas:(1) temperaturas tropicais; (2) costas livres daação de vagas e marés violentas; (3) presença deágua salgada, assim como de uma fonte de águadoce; (4) solos hidromorfos anóxicos, fino-particulados (substrato frouxo constituído porsilte e argila fina, rico em matéria orgânica); (5)larga amplitude de marés (Walsh 1974).

Além da presença de fontes de água salgadae de água doce, o clima é o principal fatorlimitante à ocorrência deste ecossistema. Estavegetação depende de temperaturas médiassempre acima de 20 ºC; média das temperatu-ras mínimas superior a 15 ºC; amplitudetérmica anual menor que 5 ºC; e precipitaçãoacima de 1500 mm/ano, sem períodos prolon-gados de seca. Os manguezais apresentamgrande adaptabilidade quanto ao tipo de solo,taxa de salinidade e amplitude das marés,podendo inclusive tolerar uma pluviosidadeinferior a 1500 mm anuais. No entanto, calor eluminosidade são fundamentais, o que inviabilizasua ocorrência fora da zona intertropical.

Área de estudo

A área de estudo, inserida no quadro doprojeto “Sambaquis e Paisagem: modelando ainter-relação entre processos culturais e naturaisno litoral sul de Santa Catarina”, coordenadopor Paulo De Blasis (MAE-USP), abrange parte

Page 3: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

105

Rita Scheel-YbertGina Faraco Bianchini

Paulo De Blasis

dos municípios de Jaguaruna, Laguna eTubarão, no entorno das Lagunas do Camachoe Garopaba do Sul, região que apresentapotencial arqueológico significativo em funçãodo grande número de sítios aí instalados (DeBlasis et al. 1998, 2007). A área, bastanteaplainada, configurava uma antiga baía ampla eaberta à época do máximo transgressivo que,desde então, vem sendo progressivamenteassoreada, resultando na paisagem lagunar queaparece na Figura 1.

O foco deste projeto é o estudo dospadrões de ocupação pré-colonial da região aolongo do Holoceno e sua relação com adinâmica da paisagem no litoral sul de SantaCatarina. O presente artigo se refere à análisede amostras provenientes de um sambaqui depequeno porte denominado Encantada-III(também conhecido como Juventus), situado nalocalidade de Garopaba do Sul, município deJaguaruna (28º37’37"S, 48º54’52"W) (Fig. 1).

O clima atual da região, que sofre influên-cia marítima e está condicionado ao relevolocal, é do tipo Cfa-Subtropical, mesotérmicoúmido com verão quente (IBGE 2002). Astemperaturas médias máximas dos meses maisquentes (dezembro a março) são acima de25 ºC. A temperatura média mínima dosmeses mais frios fica em torno de 13 ºC. Aprecipitação média anual é de 1450 mm; osmaiores índices de precipitação ocorrem emmarço e setembro, chegando próximo a 150mm. A umidade relativa média anual é de82%, com valores próximos de 85% no mêsde setembro. A estação seca vai de outubro ajaneiro, quando diminuem os índices deprecipitação e aumenta a evaporação total(SDM 2002).

A vegetação da área de estudo estáatualmente bastante degradada, com forteinf luência de formações secundárias devida àatividade antrópica. A vegetação primitiva secaracteriza pela presença de duas associaçõesvegetais principais que se distinguem florísticae fitossociologicamente, distribuindo-se deacordo com um gradiente altitudinal: aRestinga, sobre a planície costeira, e a FlorestaAtlântica, em áreas de topografia mais acentu-ada (Klein 1978).

Material e métodos

O sambaqui Encantada-III é um sítiopequeno, medindo 34 metros de comprimentopor 15 metros de largura e 2 metros de altura(Fig. 2). Localiza-se às margens de uma áreainundável, distante cerca de 1400 m do mar e850 m da lagoa Garopaba do Sul, em uma zonade confluência do sistema de barra-barreiracom formações dunares estabilizadas (Giannini1993, 1998, 2002; Giannini et al. 2005, 2007).

Sua configuração estratigráfica se caracteri-za por uma estreita camada de sedimentoconchífero enegrecido, com no máximo 40 cmde espessura no topo, diluindo-se paulatina-mente em direção à periferia rebaixada do sítio(Fig. 3). Esta camada se encontra assentadasobre o que se considerou, em um primeiromomento, uma duna. No entanto, a morfologia,estruturação interna e modo de ocorrênciadesta “duna” não correspondem àquelas defeições eólicas conhecidas na região, o queindica que ela própria é uma estrutura construída,tal qual a camada que a recobre (Giannini et al.,em preparação). Esta estrutura estratigráfica,vista com surpresa neste sítio, onde foi detecta-da pela primeira vez, revelou-se um padrãobastante comum, ocorrendo em diversos outrossambaquis de pequenas proporções identifica-dos na região nos últimos anos.

As amostras antracológicas analisadasforam coletadas a partir de um perfil de 200x 50 cm escavado na parte mais alta do sítioem 2003 (Fig. 3). A camada que recapeia osítio é constituída por uma matriz escuraargilo-arenosa com conchas geralmentebastante fragmentadas, quase que exclusiva-mente de Anomalocardia brasiliensis, com umaforte pátina escura vinda do sedimento.Observamos raríssimos exemplares de Lucinapectinata, inteiros ou fragmentados, e rarasoutras espécies de bivalves, além de algunsgastrópodes. Nesta camada foram encontra-dos muito poucos ossos de peixe (algunsqueimados), um único fragmento ósseo defauna terrestre e carvões. Raríssimos são osartefatos líticos (apenas algumas lascasbastante diminutas foram coletadas) e umaúnica ponta óssea foi encontrada.

Page 4: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

106

Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, econsiderações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

Fig. 1. Localização da área de estudo. Acima, área de pesquisa no sul catarinense, comdestaque para o sambaqui Encantada-III (Juventus) e os outros sítios citados no texto.Os demais sambaquis cadastrados na área são representados por triângulos. Cada qua-drado das coordenadas UTM tem 10 km de lado. Abaixo, imagem de satélite evidencian-do aspectos físicos da área de implantação do sítio.

Page 5: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

107

Rita Scheel-YbertGina Faraco Bianchini

Paulo De Blasis

Entre 30 e 40 cm de profundidade, nacamada de contato entre o sedimentoescuro e a areia branca da camadasubjacente, ocorre em alguns locais umamaior concentração de conchas deAnomalocardia brasiliensis, neste caso sempreinteiras, formando uma espécie de “piso”(Fig. 4).

A amostragem antracológica foi feitasegundo níveis artificiais de 10 cm de espessurae o material coletado foi submetido à flotaçãodurante o trabalho de campo, resgatando-se oscarvões para análise antracológica.

No laboratório, cada fragmento de carvãofoi quebrado manualmente segundo os trêsplanos fundamentais da madeira, e em seguida

Fig. 2. Aspecto do sambaqui Encantada-III (Juventus) e de sua área de implantação (Foto: PauloDe Blasis).

Fig. 3. Aspecto do sambaqui Encantada-III (Juventus), evidenciando o perfil antracológico esca-vado na camada de sedimento conchífero enegrecido, a camada arenosa subjacente, e a reduçãoda espessura do pacote arqueológico em direção à periferia do sítio (Foto: Paulo De Blasis).

Page 6: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

108

Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, econsiderações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

identificado em microscópio óptico de luzrefletida com campo claro e campo escuro. Adeterminação taxonômica foi feita por compa-ração exaustiva do fragmento desconhecidocom amostras identificadas da coleção dereferência de madeiras atuais carbonizadas doLaboratório de Paleoecologia Vegetal do MuseuNacional. Foi utilizado para isso o programa deidentificação “Atlas Brasil” (Scheel-Ybert et al.2006), além de consultas a obras e artigos daliteratura.

Datações por AMS foram feitas após oestudo antracológico, o que é possível porquenenhum produto químico é utilizado noprocesso de identificação dos fragmentos(Vernet et al. 1979). Cada datação foi obtida apartir de carvões de uma única espécie, selecio-nados durante a análise antracológica.

Todas as datações apresentadas nestetexto, inclusive aquelas que já haviam sidopublicadas anteriormente, foram calibradascom o uso do programa Calib (Stuiver et al.2008). No caso de amostras de conchas,utilizou-se a curva Marine04 (Hughen et al.2004), considerando o valor de efeito reserva-tório (R) de 220±20 anos, conforme propostopor Eastoe et al. (2002).

Resultados

No total, 265 fragmentos de carvão foramanalisados neste sítio, dos quais apenas 169puderam ser taxonomicamente identificados. Apequena quantidade de fragmentos coletadosnão está relacionada a um problema amostral,mas sim a uma baixa concentração de carvõesno sedimento. O perfil amostrado seguiudimensões padrão habitualmente utilizadas emamostragens antracológicas (Scheel-Ybert et al.2005/2006), mas a quantidade de carvõesobtida foi muito menor do que o normalmenteobtido a partir destas amostragens. Além disso,o tamanho dos fragmentos foi extremamentereduzido, sempre inferior a 2 mm, o que ébastante incomum no caso de amostras desambaquis. Isto provavelmente está relacionadoa uma menor frequência de queimas neste sítiodo que o normalmente observado em outrossambaquis.

A alta proporção de indetermináveis, poroutro lado, pode ser explicada pelo pequenotamanho dos fragmentos. Além de dificultar aanálise, fragmentos muito pequenos podemreduzir a precisão da determinação taxonômica,pois geralmente não apresentam um conjunto

Fig. 4. Acumulação de conchas na camada de contato entre o sedimento escuro e a areia brancada camada de base do sambaqui Encantada-III (Juventus) (Foto: R. Scheel-Ybert).

Page 7: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

109

Rita Scheel-YbertGina Faraco Bianchini

Paulo De Blasis

suficientemente grande de caracteres anatômicosque autorizem uma boa identificação.

Ainda que devam ser interpretados comcautela, especialmente devido ao pequenonúmero de fragmentos de carvão encontrados,os resultados da análise antracológica semostraram interessantes e significativos.

Ao contrário do aspecto macroscópico damatriz arqueológica analisada, na qual nenhu-ma estratificação interna foi observada, odiagrama antracológico permitiu a identifica-ção de duas zonas claramente definidas (Fig. 5):a zona I, inferior, caracterizada pela presença demangue (Avicennia sp), de espécies característi-cas da mata de restinga (Euphorbiaceae,Pachystroma sp, Melastomataceae, Myrtaceae) ede plantas pioneiras (lianas não identificadas);e a zona II, superior, que não apresentaelementos de mangue, mas sim uma grandeproporção de pioneiras (pelo menos trêsespécies de liana não identificadas), e taxacaracterísticos da mata de restinga (especial-mente uma Sapotaceae não identificada, mastambém Anacardiaceae, Euphorbiaceae eMyrtaceae) (Fig. 6). Na transição entre estasduas zonas, observa-se o desaparecimento domangue e o aumento relativo da vegetação derestinga e pioneira.

Além disso, um forte aumento de diversi-dade ocorre no interior da zona I, entre osníveis 30-40 e 20-30. O incremento progressivona variedade de espécies de restinga concomitanteao desaparecimento de Avicennia poderiasignificar o início do processo de retração domangue na região, com avanço da mata derestinga. Esta interpretação, no entanto, deveser tomada com cautela, não só devido ao baixonúmero de fragmentos disponíveis para análise,como pelo fato de que não se pode afirmar queo mangue tenha de fato diminuído entre asduas amostras, pois o aumento da proporção deoutras espécies provoca a diminuição daporcentagem relativa da espécie de mangue,sem que isso signifique necessariamente suararefação no ambiente. Uma interpretaçãoalternativa seria a de que tenha havido simples-mente uma variação no uso de espécies derestinga/pioneiras em relação às espécies demangue em dois eventos de queima (fogueiras)

diferentes. Neste caso, a variação observada nointerior da zona I seria justificada pela disponi-bilidade ou escolha diferenciada de lenha paracada um destes eventos, e não por uma variaçãoambiental.

Uma melhor compreensão do processo devariação ambiental ocorrido na região dependede análises mais detalhadas de um materialabrangendo todo o período de tempo emquestão, a fim de determinar em que momen-to, efetivamente, o mangue começou a desapa-recer.

Note-se que todos os taxa identificados,com exceção de Avicennia, podem ser encontra-dos tanto na mata de restinga quanto na MataAtlântica. A sua atribuição à mata de restingafoi feita com base no contexto geográfico dosítio, próximo ao litoral, visto que nesta regiãoa Mata Atlântica normalmente só ocorre maispara o interior e em altitudes um pouco maiselevadas.

A forte proporção de espécies pioneiras,especialmente as lianas não-identificadas,sugere um ambiente de colonização recente ouuma borda de mata. É possível, também, queelas sejam provenientes de um ambiente maisaberto nas proximidades do sítio. Algunspoucos fragmentos de córtex de palmeira quetambém foram encontrados tendem a corrobo-rar esta hipótese, pois podem ser provenientesde pequenas palmeiras frequentes na restingaaberta e em bordas de lagoa.

É interessante também assinalar a presença,apenas na zona antracológica II, de fragmentosde coquinhos (4), sementes (5) e de parênquimanão identificado (2), estes últimos podendo seroriginados tanto de sementes quanto detubérculos (Fig. 7). A maior parte destes restosfoi encontrada no nível 0-10, onde totalizam10% de todos os fragmentos encontrados;apenas uma semente e um coquinho provêmdo nível 10-20, e nenhuma dos outros níveis. Otamanho extremamente reduzido dos fragmen-tos impede qualquer tentativa de determinação,não sendo possível sequer afirmar que se trateefetivamente de restos alimentares, mas esta éuma hipótese que deve ser considerada.

A cronologia do sítio foi reforçada combase em datações AMS feitas diretamente a

Page 8: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

110

Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, econsiderações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

Fig. 5. Diagrama antracológico com-pleto do sambaqui Encantada-III(Juventus), Garopaba do Sul, SC.

Page 9: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

111

Rita Scheel-YbertGina Faraco Bianchini

Paulo De Blasis

partir dos carvões analisados (Tabela I).Fragmentos de Avicennia sp do nível de base(30-40 cm) forneceram a idade de 4320±40anos BP (4970-4830 anos cal BP), a qualcoincide com a datação de 4420±50 anos BP(4961-4642 anos cal BP), obtida anteriormentea partir de uma amostra de conchas deAnomalocardia proveniente da mesma camada,na mesma profundidade (De Blasis et al.2007). Esta paridade concha/carvão deuconsistência a ambas as datações, que seconfirmam mutuamente.

Fragmentos de carvão de Sapotaceaeprovenientes do nível superior, sub-superficial,do sambaqui Encantada-III (0-10 cm) fornece-ram uma idade de apenas 740 ±40 anos BP(720-650 anos cal BP). Esta data é muitorecente, sendo incompatível com a cronologiaregional estabelecida para a ocupaçãosambaquieira, incluindo vários outros peque-nos sambaquis. Deve-se descartar a hipótese decontaminação, pois a datação de fragmentos decarvão de uma única espécie, em particular daespécie dominante, visa justamente limitar o

Fig. 6. Espécies lenhosas encontradas no sambaqui Encantada-III (Juventus). (a) Avicennia sp; (b) Sapotaceae; (c)Pachystroma sp; (d) Melastomataceae; (e) Myrtaceae.

Page 10: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

112

Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, econsiderações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

risco de que fragmentos de outros contextos(carvões de outros níveis ou matéria orgânica)se misturem acidentalmente com o materialdatado. No entanto, é possível que os carvõesdatados não estejam relacionados com aconstrução do sambaqui, sendo oriundos deuma queima realizada na superfície do sítio porvolta de 750 BP.

Discussão

O sítio Encantada-III dista apenas cerca de20 km do limite meridional atual de distribui-ção do mangue (cf. Schaeffer-Novelli et al.2000), mas este tipo de vegetação não ocorremais nesta localidade. O desaparecimento domanguezal na área poderia estar associado a

Fig. 7. Vestígios arqueobotânicos não lenhosos provenientes do sambaqui Encantada-III (Juventus). (a,f) coquinhos;(b,e) sementes; (c,d) fragmentos de parênquima não identificado; (a-e) nível 0-10; (f) nível 10-20.

Page 11: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

113

Rita Scheel-YbertGina Faraco Bianchini

Paulo De Blasis

fatores climáticos (o clima regional, durante oHoloceno médio, pode ter sido mais quente eúmido do que nos dias atuais), antrópicos(desaparecimento do mangue devido à ativida-de humana), ou relacionados à variação donível relativo do mar.

É provável que o Holoceno Médio tenhasido um período mais quente e úmido doque o atual, estando relacionado ao “ÓtimoClimático” (Bradley 1999), no entantoainda existem muito poucos estudospaleoambientais nesta área, especialmentepara o período estudado. Na Serra Geral,região centro-sul do Estado de Santa Catarina,análises palinológicas foram realizadas em doistestemunhos entre 1400-1800 m de altitude(28º11’S, 49º52’W e 28º23’S, 49º33’W). Oclima local parece ter sido frio e relativamenteseco entre 10.500 e 10.000 anos BP, quente eseco entre 10.000 e 3000 anos BP, frio eúmido entre 3000 e 100 anos BP, e maisquente e mais seco desde então (Behling1995). No entanto, os resultados apresentadospor este autor mostram a expansão da MataAtlântica entre 7800 e 3200 anos BP, o quesugere um aumento de umidade neste período(Ybert et al. 2003). Na planície costeira, doistestemunhos estudados, um ao sul da cidadede Joinville (26º25’S, 48º52’W) e outropróximo a São Leonardo (27º42’S, 49º09’W),indicaram um clima mais seco entre ca. 4900e 4600 anos BP e um aumento da umidadeentre 4600 e 3500 anos BP, mas não háindicações sobre mudanças de temperatura(Behling 1995). De todo modo, a proximidadeentre a área de estudo e o limite meridionalatual do mangue tornam improvável umaexplicação puramente climática.

Por outro lado, variações significativas donível do mar ocorreram neste período, as quaispodem explicar o desaparecimento local domangue.

Após uma queda significativa do nívelrelativo do mar durante o último máximoglacial (a cerca de 18.000 anos BP o mar estava110-120 m abaixo do nível atual), o mar voltoua subir até atingir a cota atual em torno de7000 anos BP. Durante o Holoceno, o nívelcontinuou subindo, alcançou um máximo emtorno de 5500 anos cal BP, para em seguidaregredir progressiva e continuamente (Anguloet al. 2006).

O registro de mangue neste sambaqui, emtorno de 4900 anos cal BP, situa-se logo depoisdo máximo holocênico, num momento em queo nível relativo do mar ainda estava significati-vamente mais alto do que o atual – a estimati-va, para esta região, é de que o nível relativo domar tenha estado, até ca. 4000 anos cal BP,entre 1 e 3 metros mais alto do que no presente(Angulo et al. 2006). Nestas condições, apaisagem local era bem diferente do que seconhece hoje.

Na configuração geomorfológica atual daárea, não há condições favoráveis à instalaçãodo mangue. Na época de construção do sítio,no entanto, durante o máximo transgressivo, abaía que aí existia pode ter oferecido taiscondições devido à existência de uma zona deáguas calmas, apresentando uma mistura deágua doce, proveniente dos cursos d’água quenela desaguavam, e de água salgada, do mar.Posteriormente, a baixa do nível do mar e ofechamento da baía, dando origem às lagoasisoladas do mar por um cordão arenoso, teriamprovocado o desaparecimento do mangue.

(*) A datação sobre Anomalocardia já havia sido anteriormente publicada (De Blasis et al. 2007).

Tabela I

Datações obtidas para o sítio Encantada-III (Juventus)*

Encantada - IIIEncantada - IIIEncantada - III

Sítio

Beta 169712Beta 189713

Az 10638

Laboratório

720-6504970-48304961-4642

404050

74043204420

nível 0-10, carvão (Sapotaceae)nível 30-40, carvão (Avicennia)nível 30-40, concha (Anomalocardia)

Data Sigma DataCalibrada

Proveniência

Page 12: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

114

Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, econsiderações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

A ocorrência de vegetação de mangue naregião durante o período de ocupaçãosambaquieira é corroborada pela presença decamadas significativas de Ostrea sp em váriossambaquis da porção mais interna da laguna,sobretudo em Rio Caipora, Lajeado e Ilhotinha(28º24’28"S, 48º57’51'’W), os mais antigos daregião, nos quais conchas de Ostrea foramdatadas em 6590±60 (7413-7171 anos cal BP),5470±60 (6199-5906 anos cal BP) e 5270±60anos BP (5960-5658 anos cal BP), respectiva-mente. Nenhum fragmento de planta típica demangue foi encontrado nas análises antracológicasdo sambaqui Jabuticabeira-II (28º35’25"S,48º57’36"W), a cerca de 4 km do Encantada-III, mas também nele a presença de ostras emáreas funerárias desde pelo menos ca. 2280±80anos BP (2362-1992 anos cal BP), inclusiveexemplares portando marcas de fixação a raízes(Fig. 8), sugerem a ocorrência de mangue nasproximidades (Scheel-Ybert 2001; Bianchini 2008).

No entanto, embora seja um indício forte,a presença de ostras não é uma evidênciaindiscutível de ocorrência local de mangue,pois não se pode descartar a possibilidade deque tenham sido transportadas em âmbito

regional, especialmente quando presentes emcontexto funerário. O mesmo acontece commadeira de uso utilitário ou ritual, que devidoa aspectos práticos ou simbólicos pode sertransportada a partir de distâncias relativamen-te longas (e.g. Bianchini et al. 2007; Bianchini2008). Por outro lado, a lenha utilizada emfogueiras, ou seja, a madeira utilizada comocombustível é sempre proveniente de um raiorelativamente restrito no entorno do sítio(Vernet 1977; Chabal 1997; Scheel-Ybert 2000).

Outro resultado importante das análisesantracológicas é que estas, associadas àsdatações obtidas, demonstram a existência dedois momentos distintos de ocupação do sítio.Embora amostras de apenas dois níveis artifici-ais tenham sido datadas, a pequena quantidadede carvões encontrada no sítio e a relativasimilaridade taxonômica dos níveis 0-10 e 10-20cm (zona II), de um lado, e 20-30 e 30-40cm(zona I), de outro, permitem levantar a hipótesede que os carvões de cada uma destas zonascorresponda a eventos relativamente contempo-râneos entre si.

O primeiro momento de ocupação, datadoem 4970-4830 anos cal BP, está relacionado à

Fig. 8. Exemplar de Ostrea portando marca de fixação a raiz coletado numa área funerária dosambaqui Jabuticabeira-II (Locus 2, Trincheira T-18), datada de ca. 2362-1992 anos cal BP (Foto:Rita Scheel-Ybert).

Page 13: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

115

Rita Scheel-YbertGina Faraco Bianchini

Paulo De Blasis

construção e ocupação do sítio propriamentedita. Não se sabe, até o momento, qual teriasido a função deste sambaqui. Os dadosantracológicos não contribuem para esclareceresta questão, mas eles descartam a possibilidadede que este seja um sítio de habitação, pois araridade dos fragmentos de carvão, seu peque-no tamanho e sua baixa diversidade específicanão apontam para um uso cotidiano. Osmesmos fatores permitem também sugerir que,qualquer que tenha sido a função do sítio, suautilização não foi contínua no tempo, mas simde curta duração.

O segundo momento, datado em 720-650anos cal BP, é evidência de uma re-ocupaçãoposterior do sítio, a qual, pelas mesmas razõesexpostas acima, foi provavelmente temporária.

A possibilidade de um evento de queimadaou paleoincêndio na superfície do sítio éimprovável. A configuração geomorfológica daárea, no limite entre uma zona de dunas comintensa movimentação eólica e uma planíciepantanosa facilmente inundável não é favorávelao desenvolvimento da vegetação mais densa demata de restinga identificada nas amostrasantracológicas. Nesta área, a vegetação local serestringe a plantas herbáceas e sub-arbustivas, comalguns arbustos esparsos. Os lenhos que foramqueimados sobre o sítio, consequentemente, nãopodem ser provenientes de uma vegetação queocorresse na superfície do mesmo, mas forampara aí transportados, ainda que não necessari-amente de muito longe.

Assim como no caso da amostra anterior, araridade, pequeno tamanho e baixa diversidadede carvões não sugerem um uso cotidiano, masmuito provavelmente a utilização de uma oupoucas fogueiras durante um curto intervalo detempo, o que é compatível com a hipótese deum acampamento. Considerando a possibilida-de de que pelo menos alguns dos coquinhos esementes associados a este momento deocupação sejam efetivamente restos alimenta-res, este dado corroboraria a hipótese de umacampamento com fogueiras de uso culinário.

Este acampamento poderia estar relaciona-do com populações Je ou Guarani. A hipótese éfundamentada exclusivamente na cronologia, jáque não existem até o momento outras indica-

ções, sejam elas baseadas em vestígios arqueoló-gicos ou arqueobotânicos. No entanto, asdatações obtidas até o momento no quadro doprojeto “Sambaquis e Paisagem” indicam que aocupação sambaquieira desta região ocorreuentre cerca de 7600 e 1200 anos cal BP (DeBlasis et al. 2007). Seguiram-se a ela ocupaçõesJe e Guarani (De Blasis et al. 2007), de modoque o mais provável é que a ocupação datadade 720-650 anos cal BP seja relativa a um destesgrupos.

Conclusão

Os dados antracológicos, associados àsdatações obtidas, apontam para a existência dedois períodos de ocupação no sítio, provavel-mente de curta duração, sem evidências deatividades cotidianas nem do uso repetido dofogo, sendo o primeiro associado à construçãodo sítio por populações sambaquieiras e osegundo, possivelmente, a um acampamento depopulações Je ou Guarani, que ocuparam aárea posteriormente.

O entorno do sítio, nos dois períodos, eraocupado essencialmente por uma mata derestinga, provavelmente situada em direção aointerior. O registro antracológico tambémapresenta elementos que podiam pertencertanto à restinga aberta quanto à vegetaçãotípica de borda de lagoa. Os elementos demangue são restritos ao primeiro período deocupação.

No segundo período de ocupação, apresença de vestígios arqueobotânicos nãolenhosos sugere a possibilidade de se tratar, pelomenos em parte, de restos alimentares vegetais.

Os resultados aqui apresentados sãoimportantes em vários aspectos.

Do ponto de vista paleoambiental, elesdemonstram a ocorrência de mangue há cerca de4900 anos cal BP um pouco ao sul de seu limiteatual de distribuição, indicando que sua área dedistribuição, no passado, foi mais extensa do queé atualmente. O desaparecimento do manguezalnesta área pode ser explicado pela variação donível relativo do mar. Variações climáticas efatores antrópicos também podem ter influído na

Page 14: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

116

Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, econsiderações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

distribuição passada do mangue, mas outrosestudos na região, assim como mais ao sul, aindasão necessários para verificar esta hipótese.

Do ponto de vista arqueológico, estesresultados (1) fornecem informações sobre apaisagem local, apresentando evidências diretasda ocorrência de mangue na própria área deimplantação do sítio; (2) corroboram a estreitaassociação entre grupos sambaquieiros e omanguezal; (3) evidenciam o uso de madeira demangue como combustível em sambaquis destaregião; e (4) fornecem elementos interpretativosque podem auxiliar na compreensão doprocesso de ocupação do sítio.

Agradecimentos

Este trabalho foi realizado no quadro doprojeto “Sambaquis e Paisagem: modelando ainter-relação entre processos culturais e naturaisno litoral sul de Santa Catarina”, coordenadopor Paulo De Blasis (MAE-USP), com suporteda Fundação de Amparo à Pesquisa do Estadode São Paulo-FAPESP. A primeira autora éBolsista de Produtividade e contou com apoiofinanceiro do CNPq.

Os autores agradecem ao Dr. Jean-PierreYbert e à Dra. Veronica Wesolowski pela leituracrítica do manuscrito e por valiosas sugestões.

RITA SCHEEL-YBERT, R.; BIANCHINI, G.F.; DE BLASIS. P. Mangrove record in asmall sambaqui from the southern Santa Catarina coast, Brazil, at circa 4900 calyrs BP, and considerations about the site Encantada-III occupation process. Revistado Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

Abstract: Wood charcoal pieces of Avicennia sp, a typical and exclusivemangrove species, were retrieved from archaeological sediments dated of ca.4900 years BP at sambaqui Encantada-III, Jaguaruna, Santa Catarina State. Thissite is localized slightly to the south of the present limit of mangrove distribution;the mangrove disappearance from this region is probably associated to variationsin the relative sea level. These results corroborate the close association betweensambaqui groups and the mangrove, and present direct evidence of the occurrenceof this vegetation type close to the site implantation area and of the use ofmangrove wood as fuel in sambaquis from this region. Moreover, anthracologicaldata point to the existence of two periods of occupation in this site, probably ofshort duration, without evidence of quotidian activities. While the first periodis associated to sambaqui populations, the second one is possibly related to Je orGuarani populations who inhabited the area subsequently.

Keywords: Sambaquis – Anthracology – Mangrove – Palaeoenvironment –Holocene – Southern Brazilian coast.

ANGULO R.J.; LESSA G.C. & SOUZA M.C.2006 A critical review of mid- to late-Holocene

sea-level fluctuations on the easternBrazilian coastline. Quaternary ScienceReview, 25: 486-506.

BEHLING, H.1995 Investigations into the Late Pleistocene and

Holocene history of vegetation and climatein Santa Catarina (S Brazil). VegetationHistory and Archaeobotany, 4: 127-152.

Referências bibliográficas

Page 15: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

117

Rita Scheel-YbertGina Faraco Bianchini

Paulo De Blasis

BIANCHINI, G.F.2008 Fogo e Paisagem: evidências de práticas

rituais e construção do ambiente a partir daanálise antracológica de um sambaqui nolitoral sul de Santa Catarina. Dissertaçãode Mestrado, Mestrado em Arqueologiado Museu Nacional, UFRJ. 200p.

BIANCHINI, G.F. ; SCHEEL-YBERT, R.; GASPAR, M.D.2007 Estaca de Lauraceae em contexto

funerário (sítio Jaboticabeira-II, SantaCatarina, Brasil). Revista do Museu deArqueologia e Etnologia, São Paulo, 17:223-229.

BLASCO, F. 1987 Réflexions sur le déterminisme des

formations végétales tropicales. In:Cambon, G.; Richard, P.; Suc, J.-P. (Eds.)Palynologie et Milieux Tropicaux. Mémoires etTravaux de l’Institut de Montpellier, 17: 3-13.

BRADLEY, R.1999 Paleoclimatology: Reconstructing Climates of

the Quaternary. 2nd edition. InternationalGeophysics Series, Volume 68. Elsevier,Academic Press. 613p.

CHABAL, L.1997 Forêts et sociétés en Languedoc

(Néolithique final, Antiquité tardive):L’anthracologie, méthode et paléoécologie.Documents d’archéologie française, 63: 1-188.

CINTRÓN-MOLERO, G.; SCHAEFFER-NOVELLI, Y. 1992 Ecology and management of New World

mangroves. In: Seeliger, U. (Ed.) Coastalcommunities of Latin America. San Diego,Academic Press: 233-258.

DE BLASIS, P.; FISH, S.K.; GASPAR, M.D. ; FISH, P.R.1998 Some references for the discussion of

complexity among the sambaquimoundbuilders from the southern shoresof Brazil. Revista de Arqueologia Americana,15: 75-105.

DE BLASIS, P.; KNEIP, A.; SCHEEL-YBERT, R.;GIANNINI, P.C.; GASPAR, M.D.

2007 Sambaquis e paisagem: dinâmica naturale arqueologia regional no litoral do sulde Santa Catarina. Revista de ArqueologiaSul-Americana, 1 (3): 29-61.

EASTOE, C.J.; FISH, S.; GASPAR, M.D.; LONG, A.2002 Reservoir corrections for marine samples

from the south Atlantic coast, SantaCatarina State, Brazil. Radiocarbon, 44(1): 145-148.

GIANNINI, P.C.F.1993 Sistemas Deposicionais no Quaternário

Costeiro entre Jaguaruna e Imbituba, SC.

São Paulo, Instituto de Geociências,Universidade de São Paulo. Tese deDoutorado (ined.) 2v, 2 maps, 439p.

1998 Associações de fácies eólicas ativas na costacentro-sul de Santa Catarina. Anais daAcademia Brasileira de Ciências, 70 (3): 696.

2002 Complexo lagunar centro-sul catarinense– valioso patrimônio sedimentológico,arqueológico e histórico. In: Schobbenhaus,C.; Campos, D.A.; Queiroz, E.T.; Winge,M.; Berbert-Born, M. (Eds.) SítiosGeológicos e Paleontológicos do Brasil.Brasília, DNPM: 213-222.

GIANNINI, P.C.F.; DE BLASIS, P.; SAWAKUCHI,A.O.; AMARAL, P.G.C.

2005 Processos e materiais geológicos e aconstrução de sambaquis no litoral sul deSanta Catarina. In: Congresso daAssociação Brasileira de Estudos doQuaternário (ABEQUA), 10, Guarapari,ES. Anais... meio digital (cd). Guarapari,cód. 137.

GIANNINI, P.C.F.; SAWAKUCHI, A.O.; MARTINHO,C.T.; TATUMI, S.H.

2007 Eolian depositional episodes controlledby Late Quaternary relative sea levelchanges on the Laguna-Imbituba coast,South Brazil. Amsterdam, Marine Geology,237 (2007): 143-168.

HUGHEN, K.; BAILLIE, M.G.L.; BARD, E.; BECK,J.W.; BERTRAND, C.J.H.; BLACKWELL, P.G.;BUCKS, C.E.; BURR, G.S.; CUTLER, K.B.; DAMON,P.E.; EDWARDS, R.L.; FAIRBANK, R.G.; FRIEDRICH,M.; GUILDERSON, T.P.; KROMER, B.; MCCORMAC,G.; MANNING, S.; RAMSEY, C.B.; REIMER, P.J.;REIMER, R.W.; REMMELE, S.; SOUTHON, J.R.;STUIVER, M.; TALAMO, S.; TAYLOR, F.W.;PLICHT VAN DER, J.; WEYHENMEYER, C.E.

2004 Marine 04 marine radiocarbon agecalibration, 0-26 cal kyr BP. Radiocarbon,46 (3): 1059-1086.

IBGE2002 Mapa de Climas do Brasil. Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística eMinistério do Planejamento, Orçamentoe Gestão. In: <www.ibge.gov.br /home /geociencias/cartografia/default.shtm>.Acessado em 8 de agosto de 2007.

KLEIN, R.M.1978 Mapa fitogeográfico do Estado de Santa

Catarina. Itajaí: Superintendência doDesenvolvimento da Região Sul, Fundaçãode Amparo a Tecnologia e Meio Ambiente,Herbário Barbosa Rodrigues.

Page 16: de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, e ... · Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Ocorrem também espécies associadas, como Hibiscus pernambucensis, Conocarpus

118

Registro de mangue em um sambaqui de pequeno porte do litoral sul de Santa Catarina, Brasil, a cerca de 4900 anos cal BP, econsiderações sobre o processo de ocupação do sítio Encantada-III.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 103-118, 2009.

SCHAEFFER-NOVELLI, Y.; CINTRÓN-MOLERO,G.; ADAIME, R.R.; CAMARGO, T.M.

1990 Variability of mangrove ecosystemsalong the Brazilian coast. Estuaries, 13(2): 204-218.

SCHAEFFER-NOVELLI, Y.; CINTRON-MOLERO,G.; SOARES, M.L.G.; DE ROSA, T.

2000 Brazilian mangroves. Aquatic EcosystemHealth and Management, 3: 561-570.

SCHEEL-YBERT, R.1999 Paleoambiente e paleoetnologia de

populações sambaquieiras do sudeste doEstado do Rio de Janeiro. Revista doMuseu de Arqueologia e Etnologia, SãoPaulo, 9: 43-59.

2000 Vegetation stability in the southeasternBrazilian coastal area from 5500 to 140014C yr BP deduced from charcoalanalysis. Review of Palaeobotany andPalynology, 110: 111-138.

2001 Vegetation stability in the Brazilianlittoral during the late Holocene:anthracological evidence. Revista Pesquisasem Geociências, 28 (2): 315-323.

SCHEEL-YBERT, R., DIAS, O.F.2007 Corondó: Palaeoenvironmental

reconstruction and palaeoethnobotanicalconsiderations in a probable locus of earlyplant cultivation (south-eastern Brazil).Environmental Archaeology, 12: 129-138.

SCHEEL-YBERT, R., EGGERS, S., WESOLOWSKI,V., PETRONILHO, C.C., BOYADJIAN, C.H., DEBLASIS, P.A.D., BARBOSA-GUIMARÃES, M.;GASPAR, M.D.

2003 Novas perspectivas na reconstituição domodo de vida dos sambaquieiros: umaabordagem multidisciplinar. Revista deArqueologia, SAB, 16: 109-137.

SCHEEL-YBERT, R., KLÖKLER, D., GASPAR, M.D.,FIGUTI, L.

2005/2006 Proposta de amostragem padroniza-da para macrovestígios bioarqueológicos:antracologia, arqueobotânica,zooarqueologia. Revista do Museu de

Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16:139-163.

SCHEEL-YBERT, R., CARVALHO, M.A., GONÇAL-VES, T.A.P., SCHEEL, M., YBERT, J.P.

2006 Coleções de referência e bancos dedados de estruturas vegetais: subsídiospara estudos paleoecológicos epaleoetnobotânicos. Arquivos do MuseuNacional, Rio de Janeiro, 64: 255-266.

SDM2002 Plano Integrado de Recursos Hídricos da

Bacia Hidrográfica do Rio Tubarão eComplexo Lagunar. Governo do Estado deSanta Catarina. Secretaria de Estado doDesenvolvimento Urbano e MeioAmbiente/SDM.

SILVEIRA, F. 1937 Mangrove. Rodriguésia, 3 (10): 131-154.

STUIVER, M.; REIMER, P.J.; REIMER R.2008 Calib Radiocarbon Calibration. version

5.0.2html. In: <http://calib.qub.ac.uk/calib/>

VERNET, J.-L.1977 Les macrofossiles végétaux et la

paléoécologie du Pléistocène. Bulletin del’Association Française pour l’étude duQuaternaire, suppl., 47: 53-55.

VERNET, J.-L.; BAZILE, E.; EVIN, J. 1979 Coordination des analyses anthracologiques

et des datations absolues sur charbon debois. Bulletin de la Société de Préhistoire deFrance, 76 (3): 76-79.

WALSH, G.E.1974 Mangroves: a review. In: Reimhold, R.;

Queen, W. (Eds.) Ecology of halophytes.New York: Academic Press.

YBERT, J.P.; BISSA, W.M.; CATHARINO, E.L.M.;KUTNER, M.

2003 Environmental and sea-level variationson the southeastern Brazilian coastduring the Late Holocene with commentson prehistoric human occupation.Palaeogeography, Palaeoclimatology,Palaeoecology, 189: 11-24.

Recebido para publicação em 8 de abril de 2009.