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*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected]. De Rivail a Kardec, das “mesas girantes” ao Espiritismo Túlio Augusto Paz e Albuquerque* Resumo: Pretendemos refletir de que modo o professor Rivail se torna Allan Kardec o codificador da doutrina dos Espíritos. A transição do educador Rivail para Allan Kardec teve como fronteira os acontecimentos das “mesas girantes” no século XIX. Que com O livro dos Espíritos (1857) chegou-se a naturalizar os efeitos das “mesas” ou mediúnicos, antes considerados como sobrenaturais. Para realizarmos estas reflexões, buscaremos compreender os capitais articulados pelo professor Rivail no campo científico, e como seu habitus contribuiu para a articulação do Espiritismo no campo religioso. Refletir como estas questões se relacionam nos faz compreender não só sobre o contexto histórico da França do século XIX, mas as memórias que se articulam nos grupos sociais que primeiro aderem as ideias espíritas naquele país. Palavras-Chaves: Allan-Kardec; Espiritismo; Habitus; Rivail; Introdução: Existe vida após a morte? O que é o sobrenatural? Espíritos existem? Poderíamos nos comunicar com ele(s)?, são perguntas que estiveram vivas em todas as épocas históricas, e, recentemente a brincadeira Charlie, Charlie, are you here? que se popularizou no mundo através das operações de marketing de lançamento de um filme Thriller americano, prova que essas perguntas e práticas estão longe de deixar o imaginário social. Independente do ceticismo da ciência moderna, de crer ou não em tais fenômenos, a verdade é que o debate acerca do “sobrenatural”, “espíritos”, “diabo”, “céu”, “inferno”, “paraíso”, é um debate que está presente em nossa história. Caminhar pelos horizontes do imaginário, da imaginação social, faz-nos refletir mais profundamente sobre o humano, nas suas inter-relações culturais e sociais, fazendo revelar suas tradições e as contradições vividas no tempo histórico. Nem sempre a relação “sobrenatural”, “espíritos” e “diabo” estavam ligadas apenas a brincadeiras” ou “passatempo”, mas também em debates teóricos e filosóficos. Em boa parte delas, as discussões até então “subjetivas”, se concretizavam no cotidiano em suor, lágrimas e sangue. Foram inúmeras as guerras, conflitos, divisões de grupos sociais, preconceitos, xenofobia e ódio em nossa história, mas que ainda teimam em aparecer nos dias atuais.

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*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

De Rivail a Kardec, das “mesas girantes” ao Espiritismo

Túlio Augusto Paz e Albuquerque*

Resumo: Pretendemos refletir de que modo o professor Rivail se torna Allan Kardec o codificador da doutrina dos Espíritos. A transição do educador Rivail para Allan Kardec teve como fronteira os acontecimentos das “mesas girantes” no século XIX. Que com O livro dos Espíritos (1857) chegou-se a naturalizar os efeitos das “mesas” ou mediúnicos, antes considerados como sobrenaturais. Para realizarmos estas reflexões, buscaremos compreender os capitais articulados pelo professor Rivail no campo científico, e como seu habitus contribuiu para a articulação do Espiritismo no campo religioso. Refletir como estas questões se relacionam nos faz compreender não só sobre o contexto histórico da França do século XIX, mas as memórias que se articulam nos grupos sociais que primeiro aderem as ideias espíritas naquele país.

Palavras-Chaves: Allan-Kardec; Espiritismo; Habitus; Rivail;

Introdução:

Existe vida após a morte? O que é o sobrenatural? Espíritos existem?

Poderíamos nos comunicar com ele(s)?, são perguntas que estiveram vivas em

todas as épocas históricas, e, recentemente a brincadeira Charlie, Charlie, are you

here? que se popularizou no mundo através das operações de marketing de

lançamento de um filme Thriller americano, prova que essas perguntas e práticas

estão longe de deixar o imaginário social.

Independente do ceticismo da ciência moderna, de crer ou não em tais

fenômenos, a verdade é que o debate acerca do “sobrenatural”, “espíritos”, “diabo”,

“céu”, “inferno”, “paraíso”, é um debate que está presente em nossa história.

Caminhar pelos horizontes do imaginário, da imaginação social, faz-nos refletir mais

profundamente sobre o humano, nas suas inter-relações culturais e sociais, fazendo

revelar suas tradições e as contradições vividas no tempo histórico.

Nem sempre a relação “sobrenatural”, “espíritos” e “diabo” estavam ligadas

apenas a “brincadeiras” ou “passatempo”, mas também em debates teóricos e

filosóficos. Em boa parte delas, as discussões até então “subjetivas”, se

concretizavam no cotidiano em suor, lágrimas e sangue. Foram inúmeras as

guerras, conflitos, divisões de grupos sociais, preconceitos, xenofobia e ódio em

nossa história, mas que ainda teimam em aparecer nos dias atuais.

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

No século XIX, período chave para a proposta deste artigo, a discussão sobre

o “sobrenatural”, “espíritos”, “comunicações”, fora bastante viva, envolvendo não

apenas muitos países, mas diversos grupos sociais, crentes ou descrentes no

fenômeno espiritual. Deste modo, focaremos atenção especial à França, lugar de

origem do Espiritismo, lugar em que o professor Rivail transforma-se em Allan

Kardec ao se deparar com os fenômenos das “Mesas Girantes e Dançantes”.

Pretendemos com esse artigo, perceber as ligações memorísticas entre Rivail e

Kardec, o cético e o crente nos espíritos, o professor e o codificador da doutrina dos

espíritos, mas antes será necessário refletir sobre o contexto em que foi propício

para a construção do espiritismo na França, e a sua propagação no mundo.

Sobre o nascimento e expansão do Espiritismo, da França para a Europa e os

demais continentes, são explicados a partir dos pesquisadores Aubrée e Laplantine

(2009, p. 107) por quatro aspectos. Citá-los é imprescindível para podermos fazer a

análise a posteriori: (1) revolução técnica e econômica; (2) o caráter sintético da

doutrina; (3) caráter democrático da doutrina; (4) a doutrina era consoladora;

O primeiro aspecto se relaciona a revolução técnica e econômica vivida pela

França e Europa no século XIX, de acordo com Aubrée e Laplantine (2009, p. 107)

propiciaram um crescimento populacional incomum até então. A população europeia

contabilizaria de 187 milhões em 1800 e se ampliaria para mais de 400 milhões em

1900. Houve um êxodo rural intenso rumo às cidades. Maioria deles, atraídos pelo

surgimento das indústrias, eram logo transformados em operários. De acordo com

Aubrée e Laplantine (2009, p. 107), “a classe operária [superexplorada] [Abandona]

os valores tradicionais da sua região de origem, como também a prática religiosa,

conhecem sob o efeito dessas perturbações uma perda de identidade.”. Para Isaía

(2001, p. 186) resultam dessas perturbações “estados alterados de consciência”.

Esta confusão de inquietude (de uma época que começa a perceber que

os frutos do progresso científico e técnico só beneficiam alguns) vão

encontrar uma de suas expressões no que denominamos “mal do século”

ou ainda “spleen”, este sentimento de vazio que conduz à busca sem rumo

de um outro lugar, enfim de uma outra vida. (AUBRÉE; LAPLANTINE.

2009, p. 107-108)

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

Esse sentimento de vazio, de desespero, perda de identidade, estados

alterados de consciência que pairavam no século XIX, vai dar origem a movimentos

distintos, a psicanálise, com o austríaco Sigmund S. Freud (1856-1939); o modern

Spiritualism; o Socialismo, com o lançamento do Manifesto do Partido Comunista,

com Karl Marx e Engels; o nascimento da filosofia de Kierkegaard (1813-1855);

Friedrich Nietzsche (1844-1900) e do Espiritismo (1857), com Allan Kardec;

Seja em função do desespero no qual uma grande parcela da população

estava mergulhada, seja em função da suspeição posta pela

intelectualidade ao frio racionalismo das luzes, seja ainda em função da

existência de práticas religiosas extremamente favorecedoras de um clima

de familiaridade com o “outro lado”, o certo é que a invocação aos espíritos

ganhou terreno na França de meados o século XIX. (ISAIA, 2001, p. 187-

188)

O segundo aspecto diz respeito ao caráter sintético “plástico” da doutrina dos

espíritos, por Aubrée e Laplantine (2009, p. 108-109), considerado por Artur Isaía

(2001) pelo caráter de conciliação social da doutrina. A doutrina era capaz de unir,

ciência e aspectos religiosos, matéria e espírito, ricos e pobres, patrão e operário.

O caráter democrático, o seu terceiro aspecto detalhado pelos pesquisadores

Aubrée e Laplantine (2009, p. 109), este se relacionava a uma estrutura pedagogica

simples utilizada por Allan Kardec, na elaboração dos livros. Estavam ao alcance e

acesso de todos e não faria uma exigência de renúncia da religião então vivenciada.

O caráter consolador da doutrina é seu quarto aspecto, ao mesmo tempo em

que se relaciona aos outros três: “é o fato de amenizar o imenso sofrimento

daqueles que se sentem exilados, frustrados no seio da sociedade do Segundo

Império Francês (e posteriormente do início da Terceira República), daqueles que

perderam um ente querido, daqueles que padecem e que se questionam” (AUBRÉE;

LAPLANTINE, 2009, p. 109).

Para realizar esse intento, buscamos nos aproximar teoricamente de Pierre

Bourdieu, em seus livros O Poder Simbólico, A Economia das Trocas Simbólicas, e

Sociologia. Os estudos de Bourdieu estão associados à tradição judaico-cristã, o

Espiritismo a partir do seu codificador, apresenta esta enquanto 3ª revelação,

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

reconhecendo uma tradição judaico-cristã no seu corpo doutrinário, logo, se

justificaria sem anacronismo, a utilização das teorias de Bourdieu na análise do

espiritismo no “campo religioso”.

Visamos deste modo, compreender como o Professor Rivail, detentor do

capital simbólico no campo científico, consegue atuar, ressignificando-o (Allan

Kardec), no campo “religioso”, e mesmo assim, conseguiu ser detentor também do

capital simbólico em seu novo campo de atuação.

Do cético ao “religioso” – de Rivail a Kardec

Para análise destacaremos algumas biografias sobre Allan Kardec.

Encontramos dezesseis1 livros biográficos publicados desde a sua morte, três

publicados no exterior e quatorze no Brasil. O ano do seu bicentenário, foi bastante

lembrado com três biografias lançadas. A última delas foi lançada em 2013, Kardec,

a biografia pelo jornalista Marcel Souto Maior, que no ano de 2003 havia publicado a

biografia As Vidas de Chico Xavier, vendendo aproximadamente 1 milhão de

exemplares. Posteriormente, viu sua biografia ser transformada em filme Chico

Xavier (2010), levando mais de 3,5 milhões de pessoas às salas de cinema de todo

o Brasil.

Detentor de um capital simbólico notável, Allan Kardec e a doutrina dos

Espíritos nos chamam a atenção pela aceitação de sua produção cultural no mundo

e principalmente no Brasil. Pensar as conexões que fizeram ele detentor do capital

simbólico, é essencial para visualizarmos a que memórias Allan Kardec e o

Espiritismo irão se associar. Como o professor Rivail se transforma em Kardec, o

codificador da doutrina dos Espíritos?

1 SAUSSE, Henri. Biographie d’Allan Kardec, 1896 (trad. pela FEB, 1983); BRITO, Chrysanto de.

Allan Kardec e o Espiritismo, 1935; FILHO, Júlio de Abreu. Biografia de Allan Kardec, 1955; MOREIL, André. Vida e Obra de Allan Kardec, 1966; VARTIER, Jean. Allan Karde, La naissance du Spiritisme, 1971; WANTUIL & THIENSEN. Allan Kardec – Meticulosa pesquisa biobibliográfica e ensaios de interpretação (Vol. I, II e III), 1973; AMORIM, Deolindo. Allan Kardec, 1981; DUMAS, André. Allan Kardec, sa vie et son oeuvre, 1983; IMBASSAHY, Carlos. A missão de Allan Kardec, 1988; MARTINS & BARROS, Allan Kardec, análise dos documentos biográficos, 1999; AUDI, Edson. Vida e Obra de Allan Kardec (Bicentenário de Nascimento), 2004; WANTUIL & THIENSEN, Allan Kardec – o educador e o codificador (vol. I e II), 2004; INCONTRI, Dora. Para entender Allan Kardec, 2004; MONTEIRO, Eduardo Carvalho. Allan Kardec, o druida reencarnado, 2008; COUTO, Violeta Cunha. Kardec e Gabi, 2012; MAIOR, Marcel Souto. Kardec, a biografia, 2013.

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

Denizard Rivail se inseriu no “campo científico”, e posteriormente enquanto

Allan Kardec no “campo religioso” no século XIX, seus bens simbólicos por ele

produzido, são característicos do próprio habitus, mesmo atuante em campos tão

distintos. Ele (Allan Kardec) enquanto sujeito social construído foi transformado

símbolo da identidade espírita.

O conceito de habitus para Maria Graça J. Setton (2002, p. 62) surge da

necessidade empírica de apreender as relações de afinidade entre o comportamento

dos agentes e as estruturas e condicionamentos sociais. Apesar do conceito de

habitus já ter sido bastante utilizado por diversos pesquisadores na história, fizemos

a opção pelo conceito de habitus, defendido pelo sociólogo Bourdieu, que

compreende:

como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando

todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma

matriz de percepções, de apreciações e de ações - e torna possível a

realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças as transferências

analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma

forma, e as correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente

produzidas por esses resultados. (BOURDIEU, 1983, p. 65)

Nesse trecho podemos perceber que o “habitus” tem uma relação dialética

com o “campo” 2, ao mesmo tempo em que o “campo” condiciona o habitus, o

“habitus” reinventa o campo. De acordo com Bourdieu, podemos compreender o

habitus, como uma possibilidade socialmente construída, durável, porém flexível às

mudanças, as novas experiências, que podem surgir ao se relacionarem com um

contexto específico, ou mesmo, já influenciadas por novas experiências. Maria

Graça J. Setton (2002, p. 64) interpretando Bourdieu percebe:

Habitus é um instrumento conceptual que auxilia a apreender uma certa

homogeneidade nas disposições, nos gostos e preferências de grupos

e/ou indivíduos produtos de uma mesma trajetória social. Assim o conceito

2 Campo seria um espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, espaço de

disputa e jogo de poder. Segundo Bourdieu, a sociedade é composta por vários campos, vários

espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos por regras próprias. (SETTON, 2002, p. 64)

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

consegue apreender o princípio de parte das disposições práticas

normalmente vistas de maneira difusa. Não obstante, Bourdieu faz a

ressalva de que o ajustamento imediato entre habitus e campo é apenas

uma forma possível de ajustamento, embora seja a mais freqüente.

Podem-se vislumbrar formas de ajustamento ou desajustamento entre

estruturas objetivas e subjetivas.

De acordo com Maria da Graça J. Setton (2002, p. 65) “Os habitus individuais,

produtos da socialização, são constituídos em condições sociais específicas, (...) em

espaços distintos como a família, a escola, o trabalho, os grupos de amigos e a

cultura de massa.”. De acordo com seus biógrafos, Hippolyte Léon Denizard Rivail

nasceu no dia 3 de outubro de 1804, filho do magistrado, Jean Baptiste Antoine

Rivail e Jeanne Duhamel, residentes em Lyon, na rua Sala n.° 76. A família como

ambiente primeiro que condiciona a construção do habitus, é marcada pelo

envolvimento científico e filosófico de seus membros.

No entanto, a época em que viveu era pouco propícia ao exercício do livre-

pensamento. O Império havia proibido todos os ensinamentos que

pudessem contribuir para despertar e desenvolver o espírito crítico e,

principalmente, o ensino da filosofia, culminando com autos-de-fé em

praças públicas das obras de Rousseau e Voltaire. As famílias mais

abastadas enviavam seus filhos para fora de França, a fim de fazerem

seus estudos, sendo assim que Léon Rivail foi enviado para Yverdon

(Suíça), onde frequentou o Instituto Henri Pestalozzi. (DUMAS, 2009, p. 4)

A escola enquanto segunda condicionante ao Habitus ficou a cargo Johann

Heinrich Pestalozzi (1746-1827), fundador do Instituto em Yverdon (1804) na Suíça,

instituto este que ficou reconhecido de acordo com Couto (2012, p. 13) como “escola

modelo da Europa”, era bastante frequentada “todos os anos por grande número de

estrangeiros.”, o sucesso se devia em grande medida pelo seu tato pedagógico e

sua concepção de educação que compreendia em linhas gerais:

como a formação do homem enquanto ser individual, escrevendo que “o

homem não chega a ser homem a não ser por meio da educação” e

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

também: “me aperfeiçoo a mim mesmo quando faço do que devo o que

quero”. Típico de Pestalozzi é que faz uma aplicação da moral ao social;

para que a vida social não seja constritiva, mas que nela possa o homem

ser independente e livre, deve basear-se em uma aceitação dos vínculos

sociais não por meras conveniências práticas, mas por uma livre aceitação

do dever; a educação é o que deve levar o homem a adotar esta atitude,

com a que conseguirá sua autonomia espiritual. (SOËTARD, 2010, p. 90)

O conceito de educação do mestre Pestalozzi resolvia aliar a moral ao social,

partindo de um processo de autoconhecimento do sujeito, propiciando-lhe conhecer

seus desejos na busca de uma harmonização espiritual do “querer”, “desejar” aquilo

que “deve”, aliar a “escolha individual” ao que seria “obrigação” social. Percebam

que Rivail teve um ensino que refletia acerca da harmonização espiritual, que

indissociavelmente interferia na harmonização social. Desenvolvendo uma

consciência social, livre e independente, o que era pregado pelos iluministas.

toda instrução deve gravar profunda e imutavelmente no íntimo do ser

humano o essencial de sua matéria de conhecimento; depois unir

lentamente, mas com uma força ininterrupta, o menos essencial ao

essencial, e manter cada uma dessas matérias até o último limite de sua

matéria em uma relação vivente, mas proporcionada com o todo

(PESTALOZZI apud SOËTARD, 2010, p. 79)

Denizard Rivail retorna a França, após adquirir bastante experiência com seu

mestre Pestalozzi, dar continuidade a sua produção pedagógica seguindo as

orientações e teorias de seu mestre. Abaixo, segue uma tabela com suas produções

científicas disponibilizadas a sociedade francesa, com destaque ao curso de

Aritmética, gramática francesa clássica e Mémorie sur cette question: Quel est le

système d’études le plus en harmonie avec les besoins de l’époque? Premiada pela

academia de Arrás.

Tabela III* – Publicações de Denizard Rivail3

3 WANTUIL, THIESEN, 2004, p. 215-222

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

Ano Título Edição

1823 [prospecto] Cours Pratique et Théorique

D’Arithmétique, d’après les príncipes de Pestalozzi, avec des modifications (p. 93)

1824 Cours Pratique et Théorique D’ Arithmétique

1825 École de premier degré

1828 Plan proposé pour l’amélioration de l’éducation

publique

1830 Les trois premiers livres de Télémaque

1831 Grammaire française classiquesur um nouveau

plan

1831 Memorie sur I’instruction publique

1831 Mémorie sur cette question: Quel est le système

d’études le plus en harmonie avec les besoins de l’époque?

1834 Discours prononcé à La distribution des prix

1838 Programme des études selon le plan d’instruction

1845 Cours complet théorique ei pratique

d’arithmétique 3a

1846 Manuel des examens pour les brevets de

capacité

1847 Cours complet théorique ei pratique

d’arithmétique 4a

1847 Solutions des exercices et problèmes du “Traité

complet d’arithmétique”

1847 Project de reforme concernant les exames et les

maisons d’éducation des jeunes personnes

1847 Traité d’arithmétique

- Calcul de tète

1848 Catéchisme grammatical de La langue française

1848 Grammaire normale des examens 1a

1849 Dictées normales des examens 1a

1879 Dictées normales des examens 8a

1850 Dictées du premier et du second àge [volume I]

1850 Dictées du premier et du second àge [volume II]

1856 Gramática Normal dos Exames 2a

- Programme des cours usuels de physique, de chimie, d’astronomie et de physiologie

- Programme des études d’instruction primaire

Denizard Rivail foi um educador de destaque na sociedade francesa, que alia

em seu capital cultural, a pedagogia a várias áreas do conhecimento: aritmética,

cálculo, física, química, astronomia, fisiologia, gramática francesa e educação

pública. “Destinados à instrução primária, secundária e até mesmo superior,

algumas de suas obras foram adotadas pela Universidade de França, em

estabelecimentos públicos” (WANTUIL; THIESEN, 2004, p. 222) O seu interesse

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

pelo conhecimento ia além dessas áreas do conhecimento. Como vemos na tabela

abaixo:

Tabela IV – Diplomas concedidos como: “institutor e ‘chef d’institution’ da academia de Paris”4

Ano Título

1828

Diploma de membro correspondente da Sociedade Real de Emulação, de Agricultura, Ciências, Letras e Artes do Departamento do Ain (Société royale d’émulation, d’agriculture, sciences, lettres et arts du département de i’Ain)

1829 Diploma de membro residente da Sociedade Gramatical (Société grammaticale)

1829 Diploma de membro fundador da Sociedade de Previdência dos Diretores de Instituições e Pensões de Paris (Société de prevoyance des chefs d’institution et des maitres-de-pension de Paris)

1831 Diploma da Sociedade de Educação Nacional (Société d’éducation nationale)

1831 Diploma de membro da Academia de Arrás (Académie d’Arras)

1835 Diploma da Sociedade das Ciências Naturais de França (Société des sciences naturalles de France)

1847 Diploma de membro da Sociedade para a Instrução Elementar (Société pour l’instruction élémentaire)

- Diploma do Instituto de Línguas (Institut des langues)

- Diploma de membro da Sociedade Promotora da Indústria Nacional (Société d’encouragement pour i’industrie nationale)

- Diploma de membro titular da Sociedade Francesa de Estatística Universal (Société française de statistique universelle)

- Diploma de membro titular da Academia da Indústria Agrícola, Manufatureira e Comercial (Académie de l’industrie agricole, manufacturiére et commerciale)

- Diploma de membro titular do Instituto Histórico (Institut historique)

Bem articulado em seu capital cultural e social (línguas, matemática, física,

astronomia, química, fisiologia e educação), Denizard Rivail também se interessa

com os estudos a respeito do “magnetismo”, das teorias mesmerianas o

“magnetismo animal”, que logo após a publicação de O Livro dos Espíritos vai nos

relatar da proximidade entre o Espiritismo e Magnetismo, na Revista Espírita de

março (1958, p. 149):

O magnetismo preparou o caminho do Espiritismo, e o rápido progresso

desta última doutrina se deve, incontestavelmente, à vulgarização das

idéias sobre a primeira. Dos fenômenos magnéticos, do sonambulismo e

4 (WANTUIL, THIESEN, 2004, p. 201-209)

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

do êxtase às manifestações espíritas não há mais que um passo; tal é sua

conexão que, por assim dizer, torna-se impossível falar de um sem falar do

outro.

O Espiritismo está intimamente associado ao “magnetismo”, considerado

como uma base importante para a chegada do Espiritismo enquanto doutrina

científico-filosófica de consequências morais. Não só pelo fato do seu conhecimento

prévio sobre o “magnetismo animal” ter o aproximado dos fenômenos das “mesas

girantes”, em 1853-1854, mas o conceito do magnetismo é essencial para o

desenvolvimento de princípios da doutrina espírita.

Em todos os textos biográficos, há um fato em comum, a gênese espírita, ou

mesmo a fronteira de separação e/ou transformação de Rivail em Allan Kardec, é

quando o céptico se curva às suas experiências. Todos eles nos levam as mesas

girantes que teve seu estopim em 1853.

A rápida repercussão dos fenômenos “mediúnicos” do século XIX aconteceu

graças ao desenvolvimento da imprensa no século XV-XIX. Invenção essa que

ocorreu e se desenvolveu em plena Revolução Científica nos séculos XV-XVII, e

teve ressonância em grande parte da Europa, cujo desenvolvimento do equipamento

foi ficando cada vez mais moderno. “O surgimento de jornais no século XVII

aumentou a ansiedade sobre os efeitos da nova tecnologia.” (BRIGGS; BURKE,

2006, p. 26). As ideias que vinham das palavras impressas rodavam a Europa e o

mundo, textos impressos que levavam ideias, costumes, representações de mundo,

etc.

Dentre as notícias com maior repercussão do século XIX, estavam os

fenômenos das “mesas girantes”, que ganhavam as páginas de jornais de todo o

mundo: La Presse, L’Illustracion, A Pátria, Nacional do Porto, Correio de Lyão,

Dunkerqueoze e Folhas lythographicas, inclusive chegando em terras brasileiras:

Jornal do Commércio, Rio de Janeiro (1853); O Cearense, Ceará (1853) e Diário de

Pernambuco, (1853);

No Brasil, o Diário de Pernambuco, no dia 2 de julho de 1853, informa aos

leitores brasileiros: “Em Paris, não se pode entrar num salão sem ver todo

mundo em volta de uma mesinha, cada um estendendo seu dedo ao

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

vizinho, esperando em silêncio que ela resolva mexer”.” (AUBRÉE;

LAPLANTINE, 2009. p. 32)

Vários expoentes do mundo científico também participaram do debate: o

químico francês Michel Eugène Chevreul (1786-1889) e o físico Michel Faraday

(1791-1867) respondiam que as “mesas girantes” se relacionavam movimentos

físicos; Jules de Mirville (1854) e inglês Alfred Russel Wallace (1823-1913)

defendiam que eram movimentos realizados por espíritos. Mirville, diferente dos

outros intelectuais apontados, pensava que tais espíritos seriam demônios. Já

Agénor Gasparin (1854) indicou que os movimentos poderiam ser explicados

através dos fluídos, recorrendo para a teoria magnética animal de Mesmer.

Denizard Rivail também entra no debate das “mesas girantes”. Ele também

era estudioso do “magnetismo animal”, aceitava as teorias do alemão Franz Anton

Mesmer (1734-1815). “Segundo [Rivail] o fluído magnético, que é uma espécie de

eletricidade, pode perfeitamente atuar sobre os corpos inertes e fazer que eles se

movam” (WANTUIL; THIESEN, 2004, p. 262), as mesas poderiam se mexer apenas

com o fluido mesmeriano.

No ano de 1854, o Sr. Fortier “magnetizador” e amigo de Rivail traz a notícia

de que iria incomodar o mestre lyonês. “as mesas “falavam”, isto é, interrogadas,

respondiam qual se fossem seres inteligentes. E mais: por um de seus pés ditavam

até magníficas composições literárias e musicais.” (WANTUIL; THIESEN, 2004, p.

262),

Isto agora, repliquei-lhe, é outra questão. Só acreditarei quando o vir e

quando me provarem que uma mesa tem cérebro para pensar, nervos para

sentir e que possa tornar-se sonâmbula. Até lá, permita que eu não veja no

caso mais do que um conto para fazer-nos dormir em pé. (KARDEC, 2005.

p. 324)

O professor Denizard Rivail que dizia antes de estudar as “mesas girantes”

“Aquele que houver estudado as ciências rirá, então, da credulidade supersticiosa

dos ignorantes. Não mais crerá em espectros e fantasmas. Não mais aceitará fogos-

fátuos por espíritos.” (VARTIER apud WANTUIL; THIESEN, 2004, p. 263), esse

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

trecho é a fronteira, daquele que não só vai crê nos Espíritos, como lançará uma

teoria explicativa desvendando os horizontes da espiritualidade.

Eu me encontrava, pois, no ciclo de um fato inexplicado, contrário, na

aparência, às Leis da natureza e que minha razão repelia. Nada tinha

ainda visto nem observado; as experiências feitas em presença de

pessoas honradas e dignas de fé me firmavam na possibilidade do efeito

puramente material, mas a ideia, de uma mesa falante, não me entrava

ainda no cérebro. (KARDEC, 2013, p. 12)

O Sr. Carlotti, amigo de Rivail há mais de 25 anos foi o primeiro a relatar da

intervenção dos Espíritos, no fenômeno das mesas girantes, assim como relata Allan

Kardec (2013, p. 12) no livro O que é o Espiritismo? E acrescenta que: “contou-me

tantas coisas surpreendentes que, longe de me convencerem, aumentaram as

minhas dúvidas. — Você um dia será dos nossos — disse-me ele. — Não digo que

não — respondi-lhe eu —; veremos isso mais tarde.”.

O Sr. Pâtier e a Sra. Plainemaison também falaram desses fenômenos no

mesmo sentido que o Sr. Carlotti havia relatado. Ele havia os encontrado na casa da

sonâmbula Sra. Roger quando estava em cia do magnetizador Sr. Fôrtier em maio

de 1855 de acordo com Allan Kardec, (2013, p. 12), que ainda afirma que foi neste

encontro que aceitou o convite do Sr. Pâtier para conhecer as experiências que se

realizavam em casa da Sra. Plainemaison.

Foi aí, pela primeira vez, que testemunhei o fenômeno das mesas girantes,

que saltavam e corriam, e isso em condições tais que a dúvida não era

possível. Aí vi também alguns ensaios muito imperfeitos de escrita

mediúnica em uma ardósia com o auxílio de uma cesta. Minhas ideias

estavam longe de se haver modificado, mas naquilo havia um fato que

devia ter uma causa. (KARDEC, 2013, p. 12)

Entre a aparente futilidade, Allan Kardec (2013, p. 13) afirma que: “esses

fenômenos se fazia, alguma coisa de sério e como que a revelação de uma nova lei,

que a mim mesmo prometi aprofundar.”. Com o objetivo de aprofundar seus estudos,

acabou conhecendo a família Baudin, “O Sr. Baudin fez-me oferecimento no sentido

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

de assistir às sessões hebdomadárias que se efetuavam em sua casa, e às quais eu

fui, desde esse momento, muito assíduo.” (KARDEC, 2013, p. 13).

Apliquei a essa nova ciência, como até então o tinha feito, o método da

experimentação; nunca formulei teorias preconcebidas; observava

atentamente, comparava, deduzia as consequências; dos efeitos

procurava remontar às causas pela dedução, pelo encadeamento lógico

dos fatos, não admitindo como válida uma explicação, senão quando ela

podia resolver todas as dificuldades da questão. Foi assim que sempre

procedi em meus trabalhos anteriores, desde a idade de 15 a 16 anos.

(KARDEC, 2013, p. 13)

Podemos perceber que Allan Kardec construindo uma narrativa sobre si, não

apresenta distanciamentos com Denizard Rivail, o método utilizado na nova ciência,

seria o mesmo utilizado em toda sua vida de pesquisador. A trajetória do cientista

Rivail era narrativamente construída ao mesmo tempo em que o caráter científico da

doutrina era ratificado. De que modo uma ciência materialista serviria como base

para uma ciência do Espírito?, o cuidado para não se deixar levar pelas ilusões

ficava evidente “preciso, portanto, se fazia agir com circunspeção, e não

levianamente; ser positivista, e não idealista, para me não deixar arrastar pelas

ilusões.” (KARDEC, 2013, p. 13)

Allan Kardec (2007, p. 26) argumenta que o seu método partia do conhecido

para o desconhecido, se para o materialista o conhecido é a matéria, foi a partir da

matéria que ele iniciou, e a observou, estava convencido que havia nela alguma

coisa que escapava às leis da matéria.

Inicialmente na casa do Sr. Baudin Allan Kardec (2013, p. 15) buscava

“resolver os problemas que [...] interessavam sob o ponto de vista da Filosofia, da

Psicologia e da natureza do mundo invisível.” Em cada sessão ele comparecia:

com uma série de questões preparadas e metodicamente dispostas: eram

respondidas com precisão, profundeza e de modo lógico. Desde esse

momento as reuniões tiveram caráter muito diferente, e, entre os

assistentes, encontravam-se pessoas sérias que tomaram vivo interesse

pelo trabalho. (KARDEC, 2013, p. 15)

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

Afirmava ele que de início pensava na sua instrução, com o tempo percebeu

que “tudo aquilo formava um conjunto e tomava as proporções de uma doutrina, tive

o pensamento de publicar, para instrução de todos. Foram essas mesmas questões

que, sucessivamente desenvolvidas e completadas, fizeram a base de O livro dos

espíritos.” (KARDEC, 2013, p. 15), as comunicações seguiam de toda ordem,

recebeu comunicações alertando da confiabilidade de alguns espíritos. Desse modo

Kardec (2013, p. 15) afirma que em perguntas mais melindrosas utilizou a

colaboração de mais de dez médiuns, “e foi da comparação e da fusão de todas

essas respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes refeitas no silêncio da

meditação, que formei a primeira edição de O livro dos espíritos, a qual apareceu em

18 de abril de 1857.” (KARDEC, 2013, p. 15).

Ele em uma dessas comunicações (2013, p. 14), recebeu uma mensagem por

um médium do seu Espírito protetor, Z, que afirmava em outra existência tê-lo

conhecido, no tempo dos druidas, viviam juntos nas Gálias, naquele tempo o nome

de Denizard Rivail era Allan Kardec. E assim, Rivail argumenta que “Sendo o seu

nome muito conhecido do mundo científico, em virtude dos seus trabalhos

anteriores, e podendo originar uma confusão, talvez mesmo prejudicar o êxito do

empreendimento, ele adotou o alvitre de o assinar com o nome de Allan Kardec”

(KARDEC, 2013, p. 16)

O único homem que teve a visão da importância moral e sociológica de

fenomenologia espírita foi o dr. Rivail. Por isso mesmo, deveria ele apagar-

se no mundo oficial da instrução pública, onde se fizera respeitado e

querido, para se dar a uma nova obra — a da construção de toda uma

filosofia derivada — que importa? — dos golpes que os chamados mortos

vibravam sobre mesas, paredes e móveis. Ia desaparecer o cientista Rivail

para surgir o filósofo Allan Kardec. (FILHO, 2010, p. 27)

A troca do nome impede os seus leitores de irem buscar o professor no

Espiritismo. Quando a mudança é feita para Allan Kardec, a ideia traz uma

expectativa nova, que favorece ao êxito nas trocas simbólicas. O leitor (leigo) irá

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

buscar no bem de salvação (O livro dos Espíritos), na doutrina espírita, a resposta

em busca de preencher o seu vazio.

Por Espiritismo A. Kardec queria designar a construção de uma teoria

doutrinária, espiritualista, definida por ele como: “uma ciência de observação e uma

doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas relações que se

estabelecem entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as

consequências morais que dimanam dessas mesmas relações” (KARDEC, 2013, p.

40). Nesse sentido, ele a via como um novo paradigma de ciência, que (re)interpreta

os fenômenos espirituais – isto é, a ligação do homem com os espíritos, a natureza

dos espíritos, origem, vida e destino –, estabelecendo, assim, modelos de condutas,

visando compreender as consequências morais da ação humana.

O Espiritismo se apresenta como interseção do campo religioso, científico e

filosófico.O Espiritismo tem uma atuação de Conciliação Social, assim como nos

afirma Isaía (2001).

O livro considerado bem simbólico no campo científico, é também na doutrina

espírita dotado deste valor, é o objeto que incita a transformação do sujeito (que só

veem a partir de uma prática, a caridade), inculcando-a a caridade e um habitus

religioso, “princípio gerador de todos os pensamentos, percepções e ações, segundo

as normas de uma representação religiosa do mundo natural e sobrenatural, ou seja,

objetivamente ajustados aos princípios de uma visão política do mundo social.”

(BOURDIEU, 2002, p. 57) que propicia a busca por uma harmonia espiritual, que se

inicia no interior do sujeito e que posteriormente se expande no exterior, no social.

Quando visualizamos “Rivail” e “Kardec” poderíamos pensar está falando de

duas pessoas, dois sujeitos, distintos: o professor e o codificador; o cético e o que

acreditava em espíritos. Porém, vemos que ambos são indissociáveis, o Kardec só

existira, porque antes existiu o professor Rivail, que se dispôs a analisar as “mesas

girantes”. O Espiritismo veio por conta do habitus desse sujeito, da vida, e de todas

as experiências que ele enquanto agente vivenciou, sejam elas, interiores ou

exteriores ao sujeito. Que assim o fez ressignificar o campo religioso católico dando

origem ao campo religioso espírita.

*Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF/RS); E-mail: [email protected].

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