De novo a raa Por SUELI CARNEIRO Pesquisadora do CNPQ e diretora do Geleds-Instituto da Mulher Negra e colunista de Afirma

Os novos resultados obtidos pelas pesquisas sobre as origens genticas da populao brasileira realizadas pelo grupo de cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), liderados por Flvia Parra e Srgio Danilo Pena, repem o debate sobre o conceito de raa. Como divulgado pela imprensa, as concluses seriam assim resumidas, Nem todo negro no Brasil geneticamente um afrodescendente, nem todo afro-brasileiro necessariamente um negro. Disso decorre, de acordo com os pesquisadores, que raa somente um conceito social, o que as cincias sociais h muito tempo vm demonstrando.

E, como no poderia deixar de ser, a primeira conseqncia que extrada,do resultado desse estudo, de natureza poltica. Diz Srgio Danilo Pena, a propsito da infeliz observao do presidente eleito em debate durante a campanha sobre a utilizao de critrios cientficos para a determinao dos grupos raciais de modo a viabilizar a implementao das cotas raciais para negros, que a complexidade envolvida brutal e que no existe base objetiva para a introduo de cotas raciais nas universidades pblicas por exemplo (...) A nica coisa que se pode usar, sujeita a muitos abusos, a autoclassificao.

A contribuio fundamental desses estudos genticos a demonstrao da ilegitimidade cientfica das teses racistas e das prticas discriminatrias que elas geram. a explicitao do carter poltico e ideolgico de que elas se revestem. Portanto, era de se esperar que a reao que eles deveriam provocar seria uma condenao enftica das prticas racistas que produziram e permanecem reproduzindo violncias e excluses ao longo de nossa histria. Desse reconhecimento adviria, como conseqncia tica obrigatria, a defesa de reparao dos males provocados. Ao contrrio, as concluses do estudo so utilizadas para negar uma dessas possibilidades, a adoo de cotas para negros no nvel universitrio.

Em outra rea de conhecimento, a cincia nos informa que se no h base cientfica para uma classificao racial, h, no entanto, bases inesgotveis para a discriminao. o caso das concluses do estudo de Ricardo Henriques, Raa & Gnero, nos sistemas de ensino (Unesco, 2002), que demonstra com abundncia de dados estatsticos que o pertencimento racial, de forma inequvoca, tem importncia significativa na estruturao das desigualdades sociais e econmicas no Brasil. E o autor categoricamente aponta que, para a reverso desse quadro, se requerem polticas de incluso com preferncia racial, polticas ditas de ao afirmativa, que contribuam para romper com o circuito de gerao progressiva de desigualdade (...) Portanto, faz-se necessrio redefinir os horizontes de igualdade de oportunidades entre brancos e negros, estabelecendo polticas pblicas explcitas de incluso racial.

Estamos, ento, diante de um paradoxo. De um lado, um tipo de cincia que, ao provar a insustentvel leveza do ser negro, desautoriza aes reparatrias; de outro, uma cincia que reconhece no ser negro uma condio concreta de insero social inferiorizada e advoga por polticas especficas de incluso. Entre ambas, a metfora de Hannah Arendt, invocada por Roseli Fischmann em seu ltimo artigo, Do passado que se recusa a passar e permanece assombrando o presente para impedir o futuro.

Para que um novo futuro para as relaes raciais possa emergir, teremos que admitir que, como diz Antnio Srgio Guimares, por mais que nos repugne a empulhao que o conceito de raa permite - ou seja, fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos -, tal conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja impossvel de ser travado sem que se lhe reconhea a realidade social que s o ato de nomear permite. Fora desse paradigma, ou se retorna farsa da democracia racial ou se opta pelo imobilismo e ratificao da abjeta estratificao racial existente.

Portanto, negro todo aquele que assim se autodeclare. E todos esto aptos a ser beneficirios de polticas de cotas. Abusos ou falsidade ideolgica no so problemas da cincia e sim da Justia.

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* Fonte: Afirma Revista Negra www.afirma.inf.br

SUELI CARNEIRO http://www.espacoacademico.com.br/021/21ccarneiro.htm