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1 DE MORTIBUS PERSECUTORUM: UMA ABORDAGEM POLÍTICA DO PENSAMENTO DE LACTÂNCIO doi: 10.4025/XIIjeam2013.gobato.venturini21 GOBATO, Douglas Raphael Machado VENTURINI, Renata Lopes Biazotto Introdução: hiper-especialização e crise dos paradigmas no conhecimento histórico Escrever um trabalho de história nos dias de hoje já não parece uma tarefa tão simples como fora, por exemplo, para os historiadores do século XIX, e entre as dificuldades encontradas atualmente, como aponta José D’Assunção Barros, estão a hiper- especialização do conhecimento histórico e a chamada “crise dos paradigmas” (2005, p. 9). Segundo o autor, os historiadores do século XIX tinham uma ideia mais homogênea de seu ofício, ao contrário do historiador contemporâneo, particularmente após meados do século XX, quando começou a se falar de uma crise dos paradigmas, onde “[...] já não existem nos meios acadêmicos muitos estudiosos que acreditam na existência definitiva de ‘uma única maneira de ver as coisas’” (2005, p. 11). Sobre a hiper-especialização ou fragmentação no campo do conhecimento histórico, que Barros chama de “Clio Despedaçada”, temos um quadro onde o historiador tende a estudar campos cada vez menores e pertencerem a vertentes historiográficas cada vez mais específicas (2005, p. 9). Claro que a especialização é um processo natural em uma época em que um único individuo já não é capaz de dominar grande parte do conhecimento existente, aliás, a muito que ninguém pode abarcar sequer toda uma área do saber. Mas essa não é exatamente a questão posta por Barros, que trata de uma hiper-especialização perigosa quando o pesquisador torna-se cada vez mais incapaz de comunicar o assunto de sua pesquisa com campos mais amplos, o que justifica a atual insistência em direção à interdisciplinaridade e a “interligação dos saberes” (2005, p. 12). Notamos o mesmo fenômeno na área da História das Ideias ou História Intelectual, no entanto, aqui os problemas se estendem para além de uma fragmentação do

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DE MORTIBUS PERSECUTORUM: UMA ABORDAGEM POLÍTICA

DO PENSAMENTO DE LACTÂNCIO doi: 10.4025/XIIjeam2013.gobato.venturini21

GOBATO, Douglas Raphael Machado

VENTURINI, Renata Lopes Biazotto

Introdução: hiper-especialização e crise dos paradigmas no conhecimento histórico

Escrever um trabalho de história nos dias de hoje já não parece uma tarefa tão

simples como fora, por exemplo, para os historiadores do século XIX, e entre as

dificuldades encontradas atualmente, como aponta José D’Assunção Barros, estão a hiper-

especialização do conhecimento histórico e a chamada “crise dos paradigmas” (2005, p. 9).

Segundo o autor, os historiadores do século XIX tinham uma ideia mais homogênea de seu

ofício, ao contrário do historiador contemporâneo, particularmente após meados do século

XX, quando começou a se falar de uma crise dos paradigmas, onde “[...] já não existem

nos meios acadêmicos muitos estudiosos que acreditam na existência definitiva de ‘uma

única maneira de ver as coisas’” (2005, p. 11). Sobre a hiper-especialização ou

fragmentação no campo do conhecimento histórico, que Barros chama de “Clio

Despedaçada”, temos um quadro onde o historiador tende a estudar campos cada vez

menores e pertencerem a vertentes historiográficas cada vez mais específicas (2005, p. 9).

Claro que a especialização é um processo natural em uma época em que um único

individuo já não é capaz de dominar grande parte do conhecimento existente, aliás, a muito

que ninguém pode abarcar sequer toda uma área do saber. Mas essa não é exatamente a

questão posta por Barros, que trata de uma hiper-especialização perigosa quando o

pesquisador torna-se cada vez mais incapaz de comunicar o assunto de sua pesquisa com

campos mais amplos, o que justifica a atual insistência em direção à interdisciplinaridade e

a “interligação dos saberes” (2005, p. 12).

Notamos o mesmo fenômeno na área da História das Ideias ou História Intelectual,

no entanto, aqui os problemas se estendem para além de uma fragmentação do

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conhecimento, visto que ainda sequer existe uma divisão bem estabelecida das sub-áreas

que compõe esse campo da historiografia. Ainda, voltando à questão da crise dos

paradigmas posta por Barros, as autoras Sonia Lacerda e Tereza Kirschner, mostram a

mesma questão no campo da História Intelectual:

“Há mais de uma década uma atmosfera de crise paira nos domínios da História Intelectual anglo-americana [...] No centro do fenômeno encontra-se o questionamento da validade dos objetos de análise tradicionalmente associados a essa vertente da historiografia. Os trabalhos produzidos nessas circunstâncias empenham-se, antes de mais nada, em definir com maior nitidez os contornos da especialidade, discutir as abordagens que lhe são próprias e demarcar fronteiras intra e interdisciplinares” (2003, p. 25).

Apesar da pouca ressonância desse debate em alguns países europeus e no Brasil,

verificamos uma “crise de identidade” mais ou menos generalizada dentro da História

Intelectual. Todo historiador que pretende trabalhar com essa área deve conhecer essas

discussões e posicionar-se quanto às várias possibilidades de abordagem da História

Intelectual. Por isso, neste trabalho pretendemos fazer um breve apanhado geral sobre o

desenvolvimento da História Intelectual até seu atual estado de subdivisão em diversas

subáreas mais ou menos delimitadas entre si. Logo após, tomando algumas das práticas

metodológicas fundamentais na análise do documento, como o estudo do autor e da obra

em seu contexto e o caráter da narrativa, procuraremos revelar quais as intenções do texto,

nesse caso, utilizaremos a obra De Mortibus Persecutorum de Lactâncio, escrita no inicio

do século IV d. C., como modelo.

Da “história das ideias” à História Intelectual

A fim de estabelecer o que de fato constitui a “história das ideias” dentro da

historiografia, tomemos uma classificação prévia feita pelo historiador Francisco Falcon.

Segundo o autor, existem duas possibilidades de considerarmos a história das ideias, a

história das ideias em sua proposição ontológica e epistemológica. Na perspectiva

ontológica, o estudo das ideias se dá por elas mesmas, como um conceito pitagórico,

construindo-se uma história conceitual sem enraizamento com os eventos reais.

Já as ideias em sua proposição epistemológica, são consideradas como o objeto de

estudo próprio da História Intelectual, estando de alguma forma, sempre comprometidas

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com os acontecimentos, no entanto, oferecendo uma ampla margem para diversas

possibilidades de abordagem. É, pois, a história das ideias em sua preposição

epistemológica que nos interessa nesse trabalho.

Conforme Falcon, foi no século XIX que se deram os primeiros passos em direção

ao que mais tarde se chamaria de História das Ideias ou História Intelectual como um

campo do saber autônomo dentro da historiografia. O que importa conhecermos, é que no

século XIX a própria História, enquanto ciência, ainda não havia delimitado bem seu

objeto de estudo, a herança da “história filosófica” do século anterior, que se tratava de

uma filosofia especulativa da história e buscava oferecer um contraponto a visão teológico-

cristã, mas que não tinha limites bem definidos entre a história e a filosofia, ainda era

bastante forte (1997, p. 98).

No século XIX, também se desenvolveram duas vertentes dentro da historiografia,

a primeira, de caráter “discursivo e explicativo”, buscava uma objetividade característica

das ciências matemáticas na construção da história. A segunda, de caráter “compreensivo e

historicista”, procurava valorizar o homem enquanto ser pensante, capaz de agir sobre os

acontecimentos, indo além de uma explicação objetiva da realidade. A partir desses

pressupostos diferentes, surgiram duas escolas, a Romântica e a Metódica ou Positivista,

ambas incorporando tanto a perspectiva explicativa como a historicista, porém com ênfases

diferentes (FALCON, 1997, p. 98 e 99).

A Escola Romântica, que se desenvolveu em todos os países europeus, embora com

características específicas, até a metade do século XIX, passou a considerar as ideias como

parte da explicação da realidade, os acontecimentos não se desvinculam das ideias, são

duas dimensões que compõe um todo (FALCON, 1997, p. 100). No entanto, conforme

Falcon, a Escola Romântica:

“[...] apenas realçou o papel de determinadas ideias no acontecer histórico, [e] não levou a uma historiografia específica, nem tampouco produziu uma concepção estruturada e coerente sobre as ideias e seu papel na história e no trabalho do historiador [...]” (1997, p. 100).

Com a segunda metade do século XIX, a perspectiva positivista ganhou espaço e

tornou-se hegemônica, consequentemente: “no espaço historiográfico desse ‘positivismo

metodológico’ a compartimentalização disciplinar deslocou e pluralizou a história das

ideias” (FALCON, 1997, p. 101). Dessa forma, vemos o inicio de uma compartimentação

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do conhecimento, conforme dito por Barros, e o surgimento de uma gama de vertentes na

história das ideias, o que marcará todo o século XX.

Foi, principalmente, a partir do inicio dos anos de 1930 que surgiram as principais

correntes historiográficas da atualidade, sobretudo na França e no eixo anglo-saxônico. Em

comum, essas escolas procuravam contrapor o pragmatismo metódico-positivista, ainda

que não negando-o completamente. Apesar disso, as diferenças de abordagem entre elas

eram muitas, especialmente no que dizia respeito à história das ideias.

Tomemos como eixo de nossa análise as três escolas historiográficas mais

importantes e suas abordagens concernentes às ideias: o Marxismo, a escola francesa dos

Annales e a história das ideias norte-americana, chamada de Intelectual History. Dessa

forma, veremos como os desdobramentos da História Intelectual que atingem os dias de

hoje, são, na verdade, ramificações dessas três matrizes historiográficas.

Comecemos pelo Marxismo. Sobre essa corrente historiográfica não se pode dizer,

conforme Falcon, que houve espaço para a história das ideias antes da Primeira Guerra

Mundial (1914-1918). De fato, começou a existir algum lugar para esse tipo de abordagem

com a chamada “segunda geração” de historiadores marxistas, respectivamente após o

término do conflito (1997, p. 107). Outro fator importante, é que após a guerra o marxismo

se dividiu em duas correntes diferenciadas, o marxismo soviético e o ocidental, cuja

principal representação se deu pela Escola de Frankfurt.

Parte da explicação para a abertura do marxismo a uma história das ideias deveu-se

ao contexto em que viveram seus intelectuais nos anos que seguiram o primeiro conflito

mundial, com a ascensão dos movimentos fascistas, a depressão econômica de 1929, a

Guerra Civil Espanhola (1936-1939), os totalitarismos de direita e a Segunda Guerra

Mundial (1939-1945). Esses eventos geraram inúmeros debates, inclusive, sobre o próprio

marxismo enquanto escola (FALCON, 1997, p 108-109). De todo modo, como aponta o

próprio Falcon, muita coisa da história das ideias dentro do marxismo só se tornou mais

visível após a Segunda Guerra (1997, p. 108), incluindo a corrente revisionista conhecida

como Nova Esquerda Inglesa, que teve entre seus principais representantes o historiador

britânico Edward Thompson, onde em A formação da classe operária inglesa, aborda

questões autenticamente ligadas a historia das ideias, como o cotidiano e as crenças da

classe trabalhadora inglesa no século XIX.

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Na França, a Escola dos Analles, como ficou conhecida, surgiu a partir de uma

revista acadêmica no final da década de 1920, chamada “Annales d’histoire économique et

sociale”, marcando um ponto decisivo na história das ideias, especialmente com o conceito

de “história das mentalidades”.

A revista inicialmente surgiu como contraponto ao modelo positivista de

construção da história, voltada a combater, conforme expressão cunhada pelo historiador

François Simiand (1873-1935) os três “ídolos” da Escola Metódica, a saber: o “ídolo

político”, onde a história é construída a partir de eventos políticos como guerras e acordos

diplomáticos, o “ídolo individual”, pautado nas narrativas de grandes personagens,

ignorando a história das massas e o “ídolo cronológico”, onde a narrativa da história está

preocupada com o rastreio das origens e o “progresso” das civilizações (LE GOFF, 1990,

p. 41-42).

No tocante a história das ideias, os fundadores dos Annales, os historiadores Lucien

Febvre e Marc Bloch, dedicaram especial atenção a essa área, contudo, acabaram por

condicionar demasiadamente esse campo de estudo a uma perspectiva globalizante e

sintética da história social (VAINFAS, 1997, p. 132 e 133).

Após a Segunda Guerra, com a morte de Marc Bloch em 1946 e a aposentadoria de

Lucien Febvre, em meados da década de 1950, a Escola enfrentou uma serie de mudanças,

a começar pelo nome da revista, que passou a se chamar “Annales. Economies. Sociétés.

Civilizations”. Sob a direção do historiador Fernand Braudel, a revista passou a valorizar a

produção de grandes obras de história total, a exemplo de “O Mediterrâneo e o mundo

mediterrâneo na época de Filipe II”, um texto de caráter sintético e com grande destaque

para os aspectos socioeconômicos e suas relações com o meio geográfico (VAINFAS,

1997, p.135). A “era Braudel (1956-1969)”, como chamou o historiador Peter Burke, foi

caracterizada pelo obscurecimento da história das ideias inicialmente valorizadas por

Bloch e Febvre (VAINFAS, 1997, 133).

Se a história econômica acabou por eclipsar a história das ideias, foi também a

partir de uma das ferramentas utilizadas por seus historiadores que se abriu a possibilidade

para o resgate das ideias dentro da historiografia francesa. Tratava-se da demografia,

utilizada para fazer levantamentos de dados. Assim nos diz Philippe Ariès: “séries

numéricas na longa duração revelam modelos de comportamento de outro modo

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inacessíveis e clandestinos [...] as mentalidades surgiam ao cabo de uma análise das

estatísticas demográficas” (1990, p. 159).

Com a saída de Braudel, uma nova geração de historiadores assumiu a direção da

Revista, alterando os rumos da Escola francesa. A “Nova História”, como ficou conhecida,

resgatou a história das mentalidades de Bloch e Febvre e a transformou na pedra angular

de suas análises. Outro conceito fundamental dessa nova geração foi o de “tempo de longa

duração”, onde somente a partir de pesquisas com longos recortes temporais se poderiam

compreender as mudanças no pensamento dos indivíduos (LE GOFF, 1990, p. 45).

A Nova História se preocupou com a história total, incluindo as massas e

abrangendo todos os aspectos da vida, entre eles as formas de pensamento, os costumes e

as tradições. Pretendeu-se direcionar as análises dos processos socioeconômicos e

materiais para os processos mentais, no entanto, apesar do grande avanço representado por

essa abertura de novas possibilidades de analise, não demorou para que a história das

mentalidades começasse a ser questionada, o que se deu, principalmente, a partir do final

da década de 1960. Além disso, a historiografia como um todo enfrentava um período de

questionamentos, foi a chamada “crise dos paradigmas”, grandemente impulsionada pelas

obras de Michel Foucault. “Foucault tinha então em vista um alvo muito evidente: uma

certa concepção de história e da escrita da história [...] ele realiza sua própria leitura das

mutações metodológicas em curso na história nova” (FALCON, 1997, p.116). Conforme

Falcon, as ideias de Foucault para a história das ideias solaparam a possibilidade de

totalização na história, gerando a noção de descontinuidade como instrumento e objeto de

investigação (1997, p. 115-116). Um verdadeiro golpe nos conceitos de totalidade e longa

duração da Nova História francesa.

Aliando-se a esse momento de controvérsias nos paradigmas da historiografia e as

inúmeras criticas feitas a história das mentalidades, a partir da década de 1980 muitos

historiadores, vários deles outrora vinculados à Escola dos Annales, passaram a refugiar-se

em outras áreas. Desse modo, como sugere Vainfas, “[...] é possível verificar o surgimento

de uma série de ‘novos’ campos, esboços de disciplinas que, em maior ou menor grau,

herdaram os temas e problemáticas das mentalidades” (1997, p. 146). Entre esses vários

microcampos, temos a história da vida privada, a história de gênero, a história da

sexualidade, entre outros (VAINFAS, 1997, p.146-147).

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Se até aqui temos falado do desenvolvimento da história das ideias a partir da

influência da história francesa dos Annales, é importante saber que existiu desde os anos de

1940 alguns movimentos de estudo das ideias no eixo Inglaterra-Estados Unidos. Citamos

a contemporânea norte americana dos Annales, a New History, que tinha como seus

principais pressupostos colocar a história a serviço da compreensão do próprio ser humano

na busca da solução de seus problemas, incluindo a história intelectual ou das ideias, como

parte da explicação histórica, valendo-se de uma abordagem interdisciplinar e utilizando a

percepção dos anacronismos históricos para iluminar as ideias e instituições do presente

(FALCON, 1997, p. 109-110).

Da mesma forma que a história dos Annales na França passou por um esgotamento

a partir da década de 1960, a New History acabou abrindo espaço para um movimento

revisionista, chamado de New Intelectual History, que da mesma forma que na França

criou possibilidades para novas abordagens, como a História Social das Ideias e a História

do Discurso (FALCON, 1997, p. 113).

Finalmente, tanto na França quanto no meio anglo-saxão, houve um quadro de

pulverização de abordagens no campo da história das ideias, ou como preferirmos, História

Intelectual. Dentro desse quadro de fragmentação, inclusive, destacam-se alguns autores

pela criação de seus próprios modelos de abordagem, entre os quis Carlo Ginzburg com

suas noções de “cultura popular” e “circularidade cultural”, Roger Chartier e sua História

Cultural pautada nos conceitos de “representação” e “apropriação” e Edward Thompson

com seu estudo das classes populares na Inglaterra da Revolução Industrial no qual

desenvolve uma “história vista de baixo” (VAINFAS, 1997, p.150-151).

Recentemente, alguns autores, como Robert Darton (LACERDA e KIRSCHNER,

2003, p. 26-27) têm feito tentativas em direção a classificar e delimitar a História

Intelectual, no entanto, classificações como essa escondem um quadro mais amplo de

discussões e ambiguidades. Conforme Lacerda e Kirschner: “a classificação de Darton,

como, aliás, a maioria das que se tentaram, está cheia de ambiguidades, em decorrência da

obscuridade de seus critérios taxionômicos e da falta de precisão conceitual” (2003, p. 26).

Além disso, existem muitos interesses de historiadores em sua busca por reconhecimento,

o que dificulta ainda mais qualquer classificação (2003, p. 26-27).

Nem mesmo os debates em relação a como denominar esse campo da

historiográfica chegaram a um ponto comum. Nos meios acadêmicos de tradição ou

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influencia da escola francesa dos Annales, permanece o termo “história das ideias”,

enquanto que nos meios norte-americanos usa-se “história intelectual”. Essa aparentemente

inocente divergência terminológica só vem tornar ainda mais difícil qualquer conciliação e

organização da área de pesquisa. Como Lacerda e Kirschner, preferimos o termo História

Intelectual: “a razão da preferência é simplesmente o fato de que ‘ideias’ é um termo

demasiado genérico, aplicável a todo e qualquer conteúdo mental, portanto inadequado

para uso classificatório” (2003, p. 29).

Por fim, a partir dessa breve explanação, aprendemos que o historiador que

pretende trabalhar com a História Intelectual, precisa saber sobre os debates existentes na

área e a partir deles se posicionar. É fundamental dizer quais os autores e os modelos de

abordagem se utilizam. Nesse trabalho, pretendemos utilizar a “história das ideias

políticas” como paradigma de análise, portanto, passemos agora a descrever em que

consiste esse modelo de abordagem e em seguida avaliar se este responde as perguntas que

fizermos ao nosso documento.

A história das ideias politicas e o De mortibus persecutorum de Lactâncio

Em primeiro lugar, é preciso consideramos as ideias em sua relação com as

instituições, sendo como forma de justifica-las, alterá-las, ou até aboli-las. R. Descimon

nos diz o que a historiografia contemporânea entende por instituição:

“Segundo esse historiador francês, esta categoria histórica tem sido usada, no vocabulário contemporâneo, para designar ‘a constituição da República, ou, mais tecnicamente, o conjunto de regras e de órgãos que fixam a organização de um setor da vida pública, ou, mais amplamente, o conjunto das formas sociais fundadas pela lei ou pelo costume’” (DESCIMON apud VENTURINI et alli, 2005, p. 215-216).

A partir dessa definição preliminar, podemos inferir que as instituições, a exemplo

da República, são amparadas ou justificadas por um conjunto de ideias, que

ocasionalmente podem exprimir-se nas formas de legislação ou de costumes. Entretanto, o

próprio Descimon admite que haja formas mais amplas de se considerar as instituições:

“Todavia, os historiadores têm feito do termo [instituição] um uso mais empírico e espontâneo, elegendo como objeto de estudos o Rei, o Domínio, as Finanças, a Justiça, a Igreja, a Senhoria, a Universidade, etc.,

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e até ampliando o ‘domínio do que é institucional para a maior parte da atividade coletiva’” (2005, p. 216).

Essa ampliação do conceito de instituição acompanhou a própria evolução na

concepção de documento, especialmente a partir da Escola dos Annales, que passou a

considerar como fonte historiográfica não apenas os “documentos oficias” de caráter

político, mas toda e qualquer materialização das ideias humanas, como resquícios

arqueológicos, escritos literários e canções populares (VENTURINI et alli, 2005, p. 219).

Desse modo:

“[...] a partir desse entendimento o conceito de instituições [...] abarcaria não apenas estruturas formais dotadas de grande visibilidade, como igreja, Estado, universidade, partidos, sindicatos, museus, arquivos públicos, etc., mas também autores, obras e escolas de pensamento [...] consideramos como objetos de estudo não apenas as instituições formais, mas também toda forma organizada e coerente de pensamento, mesmo não formalizada em termos burocráticos e não dispondo de estruturas materiais [...]” (VENTURINI et alli, 2005, p. 223)

Assim, temos as instituições formais, como o próprio Estado, a Igreja, a República

e todo e qualquer conjunto de ideias que se materialize em uma sede ou um conjunto de

construções, como o fórum e as catedrais, e disponham de um aparato burocrático,

frequentemente expresso na forma de leis. Já as instituições informais, seriam aquelas

ideias que apesar de existirem e possuírem coerência, podem não assumir a forma de uma

construção, e se o fazem, carecem de uma formalização legal, burocratizada ou às vezes de

reconhecimento perante a sociedade, como foi o caso da igreja cristã antes de sua

legalização pelo Estado Romano. Nessa categoria, ainda podemos incluir as formas de

pensamento e os costumes populares. O mais importante, é que seja formal ou informal,

não há como desvincular uma instituição das ideias que a legitimam, por isso, qualquer

alteração nessas ideias poderia causar modificações nas próprias instituições.

Ao trabalharmos com a obra De Mortibus Persecutorum de Lactâncio, devemos

considerar duas instituições: primeiro, a igreja cristã, que até a ascensão de Constantino no

século IV d. C., não era formalizada, e mesmo que houvesse construções como igrejas e

capelas e uma organização interna, a falta de reconhecimento por parte do Estado a

colocava como uma instituição informal. Notemos que nesse momento era o Estado

Romano, com sua burocracia e seu direito, que atribuía legitimidade a outras instituições.

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Em segundo lugar, portanto, temos o Estado Romano, com sua legislação, burocracia e

órgãos administrativos, uma autentica instituição formalizada com poder de formalizar

outras.

Tendo elegido a fonte e o paradigma de analise, cabe à questão, será que esse

modelo de análise responde ao estudo que pretendemos levar a diante? Todo historiador

sabe que as perguntas devem ser feitas primeiro ao documento, e a partir das respostas

dadas por este verificar se há possibilidade de esta ou aquela abordagem ser utilizada,

ainda que muitas vezes várias abordagens sejam possíveis. O historiador Moses I. Finley

nos diz: “A primeira pergunta a ser formulada com relação a qualquer documento refere-se

a razão ou ao motivo de ele ter sido escrito” (1994, p. 44). Para responder a essa pergunta

somos levados ao estudo do contexto que envolve a obra e do texto do documento.

O contexto de De Mortibus Persecutorum de Lactâncio

A obra De mortibus persecutorum foi escrita por volta de finais de 313 e inicio de

314 d. C., já nos últimos dias de vida de seu autor. Em seu texto, Lactâncio adapta o

conceito de “mal” imperador – presente na historiografia oficial pagã como sinônimo de

imperador anti-senatorial – à categoria de perseguidor dos cristãos, sugerindo uma relação

entre a política desses governantes e o castigo divino sobre os perseguidores do

cristianismo.

Sobre Lactâncio, as informações são bastante escassas, resumindo-se ao que ele

próprio deixou em suas obras e ao que São Jerônimo escreveu sobre ele. Tudo indica que

seu nome era Lactancio Caecilius Firmianus e que viveu por volta do século III e início do

século IV d. C. O que mais sabemos sobre ele é que era africano, de Numídia, onde como

discípulo de Arnóbio tornou-se um retórico. Sua experiência como mestre o levou a

ensinar retórica em Nicomédia e, mais tarde, a pedido de Constantino, ser o tutor do filho

do imperador. Sobre a conversão de Lactâncio ao cristianismo tudo que sabemos é que

durante a Grande Perseguição de Diocleciano (303-305 d. C.) este já era cristão.

A obra De Mortibus Persecutorum, nos leva a dois grandes eventos da história

romana, a crise do Império, que se estendia, de forma mais visível, desde o reinado de

Marco Aurélio (161-180 d. C.) e a ascensão do cristianismo, especialmente a partir de

meados do século III d. C, e é este o quadro contextual que abordaremos.

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A crise que atingiu a sociedade romana a partir do século II d. C., fez sentir, mais

ou menos de acordo com a época e a região, seus efeitos em todos os segmentos da

sociedade. A revolução militar representada pelos imperadores advindos do exército

modificou grandemente o modelo de governo em meados do século III d. C.: “Raras vezes

a sociedade chegara a cortar o poder das classes superiores com tanta coragem [...]”

(BROWN, 1972, p. 26).

Apesar dessa transformação, a crise do século III d. C. “manifestava-se com maior

evidência nas catastróficas relações externas do Império” (ALFÖLDY, 1989, p. 173). Após

um período de pausa nos avanços bárbaros nas fronteiras, representado pela contraofensiva

bem sucedida de Marco Aurélio contra os Germanos, o Império foi constantemente

atacado no tempo de Severo Alexandre (222-235 d. C.), Maximino (235-238 d. C.) e

novamente com Décio (249-251 d. C.) e Valeriano (253-260 d. C.) (ALFÖLDY, 1989, p.

173). No plano interno, a necessidade de manter a dispendiosa máquina de guerra, levou a

um endurecimento do governo, como destaca Alföldy: “No novo sistema político, o

Dominado, o Estado tornou-se uma instituição todo-poderosa, que exigia dos seus súbditos

uma submissão total e os governava muitas vezes com brutalidade” (1989, p. 174).

Os efeitos representados pela política de dominação dos imperadores militares

foram imediatamente sentidos pelas camadas superiores da sociedade. Os senadores

perderam seu poder político dentro do escol governamental, sendo substituídos por órgãos

e funcionários estatais mais eficientes. Diante desse recuo senatorial, a ordem dos

cavaleiros (ordo equester) passou a representar a pedra angular na administração imperial.

Todavia, a camada social mais atingida com o novo delineamento político foi a dos

decuriões, composta pelos cidadãos ricos das cidades que tinham por obrigação zelar por

sua manutenção. O enfraquecimento da ordo decurionum deveu-se, principalmente, a face

econômica da crise, que atingiu de forma mais severa as cidades. Os decuriões também

sofriam por ser a classe mais tributada do Império, já que os senadores, grandes

proprietários de terras, e os cavaleiros, em grande parte funcionários do Estado, gozavam

de maiores privilégios econômicos. Quanto à população, tanto a urbana como a dos

campos, era demasiado pobre para que dela se obtivesse algo.

Após o governo dos imperadores soldados e a acentuada crise que envolveu todo o

século III d. C., houve um período de relativa estabilidade no século IV d. C. Esse breve

momento de ressurgimento, porém, teve seu ocaso com o governo de Valentiniano I (364-

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375 d. C.), que segundo Peter Brown (1972, p. 126) foi o último grande imperador do

Ocidente. Os acontecimentos que seguiram a sua morte levaram a administração do

Império a cair novamente nas mãos da aristocracia senatorial, o que no século V d. C.,

representou o desmoronamento do Império Romano do Ocidente.

Intimamente relacionada com a crise que atingiu a sociedade romana, esteve à crise

no campo das ideias, um momento de renascimento das decadentes tradições religiosas

pagãs e do aparecimento de novas correntes filosóficas e espirituais. Como afirma Alföldy:

“E quanto mais depressa se decompunham a organização social tradicional e o sistema de governo que a acompanhava, maior era o vácuo ideológico e moral, o que favorecia o aparecimento de novas correntes espirituais, como as religiões orientais dos mistérios, o cristianismo e a filosofia neoplatônica” (1989, p.175).

Com o cristianismo houve um embate entre as concepções pagãs e cristãs a respeito

da crise do Império. Santo Mazzarino (1991, p.16-17) chama a atenção para o fato de os

romanos já conceberem a ideia de crise da sociedade no contexto das lutas entre patrícios e

plebeus na transição da República para o Império, em meados do século II a. C. A esse

respeito, é digno de nota o fato de o patriciado evocar o retorno aos velhos costumes

religiosos como modo de conter a degradação dos costumes, que atribuíam como a causa

da crise da República.

Com a crise do Império, retomaram-se as velhas ideias de decadência que

permearam o imaginário dos homens de finais da República, e buscou-se, mais uma vez, o

retorno às antigas práticas religiosas do paganismo (mos maiorum), agora, como modo de

apaziguar a ira dos deuses frente a um novo elemento, o cristianismo. Os cristãos

acreditavam que “[...] o conceito do fim de Roma estava intimamente ligado à ideia do fim

do mundo: o Anticristo chegaria em breve, o sopro do Senhor o destruiria”

(MAZZARINO, 1991, p.38). Devido a essa crença escatológica e a intransigência frente às

práticas pagãs, no imaginário de parte da população, os cristãos tornaram-se obstáculos

para o retorno à estabilidade da sociedade.

A partir do século III d. C., o cristianismo atingiu uma nova amplitude e

experimentou um progresso mais rápido. O Império progressivamente tomou consciência

da ameaça representada pela expansão de uma religião que contrariava as ideias do

paganismo e que aos poucos poderia até mesmo abalar sua coesão interna. Desta forma, no

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final do século III e início do IV d. C., decretaram-se medidas de perseguição de caráter

geral e sistemático com objetivo de eliminar o cristianismo do mundo romano, entretanto,

estas medidas foram ineficazes, pois com exceção das duas grandes ondas de perseguição

que assinalaram a metade e o final do século III d. C., (respectivamente sob os imperadores

Décio, Valeriano e Diocleciano), para a Igreja foi um período de paz favorável à missão.

Finalmente, Constantino acabou por reconhecer a existência da Igreja, com o intuito de

convertê-la em aliada, dando assim o primeiro passo à aceitação do cristianismo como

religião oficial do Império.

Notemos como a conversão do imperador Constantino significou um deslocamento

das ideias cristãs, se antes justificavam uma seita ilegal e perseguida, agora serviam como

legitimadoras das próprias ações imperiais. Após sua conversão, as medidas de

Constantino precisariam estar em conformidade com o conjunto de ideias que aderiu, caso

contrário, seria necessário uma alteração nas próprias ideias para que suas ações pudessem

ser devidamente legitimadas. Dessa forma, como vimos, a cristianismo ganha o caráter de

instituição formal, e mais do que isso, passa a servir de ideário legitimador da própria

instituição imperial na pessoa do imperador.

O texto de De Mortibus Persecutorum

Utilizando alguns dos elementos empregados pela história do discurso, uma das

ramificação da História Intelectual, a partir da obra, Interpretação e Superinterpretação, de

Umberto Eco, notamos que existem três intenções relacionadas ao texto: a intenção do

texto em si, a do autor ao escrevê-lo, e a do leitor ao lê-lo. Assim nos diz o Eco:

“[...] entre a intenção do autor (muito difícil de descobrir e frequentemente irrelevante para a interpretação de um texto) e a intenção do intérprete que [...] simplesmente ‘desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito’ existe uma terceira possibilidade. Existe a intenção do texto” (1997, p. 29).

Umberto Eco nos deixa claro como a intenção do autor é difícil de ser alcançada

justamente porque não podemos voltar no tempo e dialogar diretamente com ele, o que

podemos é a partir de seu texto tentar inferir suas intenções, o que também é bastante

perigoso. Quanto às intenções do leitor e sua interpretação do texto, este o faz de acordo

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com seus propósitos e ideias preconcebidas, tentaremos evitar o desejo de adaptar o texto a

nossos objetivos iniciais e procuraremos fazer uma análise voltada à busca de suas

intencionalidades.

Voltando nossa atenção para as intenções do texto, Robin Lane Fox nos fala de

como os escritos cristãos, os quais incluem a obra de Lactâncio, tem uma indissociável

relação com o poder político. Sendo tradicionalmente uma “religião do livro”, assim como

o judaísmo, o cristianismo sempre valorizou a escrita. Se a religião iniciou-se como uma

crença oral, visto que o próprio Cristo nada deixou escrito, a partir dos evangelhos, do livro

de Atos e das cartas apostólicas, a cultura escrita passou a sobrepujar a oral e tornar-se

hegemônica dentro do cristianismo (1998, p. 156-157).

Fox distingue dois tipos de literatura dentro dessa cultura escrita cristã, a literatura

sagrada, como as Escrituras, o Antigo Testamento e os escritos inspirados, e a literatura

conveniente, utilizada em favor de interesses políticos particulares ou da própria Igreja

enquanto instituição. Interessante notar como esses dois tipos se entrecruzam, muitas

vezes, a literatura sagrada servia de justificativa para a literatura conveniente, autorizando-

a e dando-a legitimidade (1998, p. 158-15).

O texto de De Mortibus Persecutorum, é autenticamente um texto de caráter

conveniente, pois trata-se de uma apologia a determinado ponto de vista, e para isso, o

autor se vale das Escrituras como forma de dar legitimidade a sua tese. Lactâncio procura

defender a ilegitimidade das perseguições contra os cristãos levadas a cabo por alguns

imperadores romanos desde Nero (54-68 d. C.), mas ao tratar desse tema insere um novo

conceito em relação à literatura apologética então existente. Em De Mortibus

Persecutorum, Lactâncio concilia a ideia de imperador perseguidor, a partir de uma leitura

cristã, ao conceito de “mal” imperador, que na literatura pagã descrevia o imperador que

governava contra as decisões do Senado. Assim, o “mal” imperador é aquele que governa a

revelia do Senado ao mesmo tempo em que persegue os cristãos, sendo que por ambas as

razões esses imperadores foram mortos de forma cruel como vingança desferida por Deus.

Notemos como as preferências politicas pró-senatoriais do autor se misturam com uma

leitura religiosa dos acontecimentos, transformando a antigo conceito de “mal” imperador

e inserindo uma vertente religiosa. Ramón Teja, responsável pela tradução e comentários

da edição de De Mortibus Persecutorum escolhida para este trabalho, afirma: “Para

confirmar su tesis, Lactancio precisa demostrar dos hechos: por un lado, que todos los

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emperadores perseguidores tuvieron una muerte meserable; por outro, que todos ellos

fueran <<malos>> emperadoes” (2000, p. 24). E completa:

“Hemos visto como su juicio sobre los emperadores viene determinado no sólo por la actitud de éstos hacia la Iglecia, sino también por la que tienen hacia el Senado romano. La tendencia prosenatorial de Lactancio no se refleja sólo em el juicio sobre las disposiciones de caráter religioso tomadas pelos emperadores, sino que [...] se extiende a toda la politica de éstos” (2000, p. 30).

Lactâncio, assim como era lugar comum entre os romanos após a queda da

República, tinha uma preferencia pelo modelo republicano de governo, quando o Senado

representava a autoridade máxima na administração. Com o advento do Império (século I

a. C.), o Senado perdeu grande parte de seu poder, particularmente durante o governo dos

imperadores soldados (século III d. C.). Aproveitando-se da oposição de certos

imperadores contra o cristianismo, Lactâncio expressa seu descaso pela politica anti-

senatorial desses, e os coloca como “maus” imperadores em um duplo sentido,

politicamente maus por ignorarem o Senado e moralmente maus por serem perseguidores

dos cristãos. E se Constantino é visto como um “bom” imperador, o é também em ambos

os sentidos.

Não coincidentemente, o texto de Lactâncio e seu novo conceito de “mal”

imperador vêm justamente ao encontro da nova politica imperial de Constantino. De

Mortibus Persecutorum coloca religião e politica imperial do mesmo lado, uma

justificando a outra, um “Estado cristão” e um “cristianismo romano”. Se voltarmos

questão do contexto da vida do autor, o desenvolvimento dessa nova concepção de “mal”

imperador seria impensável em outros períodos, Lactâncio escreve logo após a conversão

do imperador, época em que teve completa autonomia para divulgar suas ideias. A

proximidade de Lactâncio com Constantino, ainda poderia nos sugerir um maior acordo

entre eles em relação a utilização do cristianismo como um conjunto de ideias

legitimadoras do poder politico imperial, quanto a isso não possuímos provas concretas,

mas o certo é que em De Mortibus Persecutorum as intensões de apoio politico ao governo

de Constantino e a essa nova politica de união entre Estado e Igreja são muito evidentes.

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Considerações finais

Finalmente estamos em condições de responder a questão proposta por Finley,

sobre a razão de o texto ter sido escrito. A obra De Mortibus Persecutorum de Lactâncio

foi escrita a partir de uma intencionalidade política, e tanto a época em que foi redigida

como a forma como o autor se apropria de certos acontecimentos políticos para acomodar

sua tese nos deixa isso claro. A morte dos imperadores perseguidores e o triunfo de um

governante pró-senatorial são eventos habilmente aproveitados por Lactâncio para a

construção de um novo conceito, onde politica e religião se unem na construção da

história, ambas direcionadas pela vontade de Deus.

Sabemos também que a obra de Lactâncio tinha a intenção de servir de propaganda,

destinada, sobretudo, aos habitantes da ala oriental do Império, mas que devido a redação

de Vita Constantini, atribuída a Eusébio de Cesaréia, seu texto acabou ficando obscurecido

e teve escassa ressonância na antiguidade, sendo retomado o interesse por este somente no

século XVII (TEJA, 2000, p. 49).

Independente do alcance da obra de Lactâncio em sua época, isso não anula suas

intencionalidades, ao que nos parece bastante claras: a legitimação das duas principais

instituições da época, o Império Romano e a Igreja Católica, sobre um mesmo arcabouço

ideológico.

REFERÊNCIAS

Fonte Impressa

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