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ano 4 mdash no 61 O S E M E S T R E D E 2 0 1 7
I S S N 2 3 5 8 - 7 3 7 7
o u t r a m a rg e mr e v i s t a d e f i l o s o f i a
sumaacuterio
editorial | editorial
Diversidade na Adversidade
Gabriel Almeida Assumpccedilatildeo (UFMG)
artigos | papers
A Pragmaacutetica do Discurso de Foucault
Ceciacutelia de Sousa Neves (UFMG)
Leibniz e a Criacutetica ao Espaccedilo Tota Simul Newtoniano a mocircnada como
causa imediata do movimento
Cloves Thiago Dias Freire (UFS)
A Questatildeo do Dualismo e da Linguagem em Bergson
Edvan Aragatildeo Santos (USP)
Do Niilismo agrave Experiecircncia Totalitaacuteria
Elvis de Oliveira Mendes (UFPE)
Funccedilatildeo Personalidade em Devir ndash um olhar da teoria do self
Fabio Henrique Medeiros Bogo (UFSC)
Praacuteticas de Cuidado de Si na Antiguidade
Felipe Gustavo Soares da Silva (UFPE)
Do Amor Platocircnico ao Crush a filosofia entre adolescentes ndash toacutepicos de
ensino de filosofia
Gabriel R Rocha (PUC-RS)
A Subjetividade e a Busca pela Felicidade no Pensamento de Blaise
Pascal
Jean Vargas (UFMG)
O Possiacutevel Metafoacuterico Segundo Tomaacutes De Aquino
Matheus Henrique Gomes Monteiro (UNICAMP)
De Descartes a Frege os avanccedilos epistemoloacutegicos do meacutetodo
Michelle Cardoso Montoya (UFRJ)
Dois Sentidos de Participaccedilatildeo em Platatildeo
Otacilio Luciano de Sousa Neto (UFC)
ano 4 mdash no 6 mdash 1 O S E M E S T R E D E 2 0 1 7
Sobre o Tempo uma questatildeo fundamental
Paulo Seacutergio Calvet Ribeiro Filho (PUC-RIO)
Zaratustra Metaciacutenico
Rafael Rocha da Rosa (UERJ)
A Modernidade lsquonarsquo Filosofia de Descartes a criacutetica das formas
substanciais
William Teixeira (UnB)
entrevista | interview
ldquoFechamento epistecircmicordquo de Steven Luper
Luiz H M Segundo (UFSC)
sumaacuterio
DIVERSIDADE NA ADVERSIDADE
Gabriel Almeida Assumpccedilatildeo (UFMG)
O sexto nuacutemero da Outramargem Revista de Filosofia retrata a
diversidade da produccedilatildeo acadecircmica nacional em filosofia multiplicidade essa que se daacute
tanto do ponto de vista histoacuterico quanto do ponto de vista sistemaacutetico Como resultado
temos artigos em filosofia antiga medieval moderna e contemporacircnea Os materiais
variam natildeo soacute no que tange ao periacuteodo da histoacuteria da filosofia mas tambeacutem no que diz
respeito agrave aacuterea da filosofia eacutetica metafiacutesica filosofia da linguagem epistemologia
poliacutetica e filosofia da natureza
Tambeacutem chama atenccedilatildeo o fato de que haacute contribuiccedilotildees de pesquisadores de
vaacuterios estados diferentes o que aponta para um momento de expansatildeo do perioacutedico
cuja amplitude geograacutefica e temaacutetica atinge novos niacuteveis Em um momento da histoacuteria
do Paiacutes no qual os investimentos em ciecircncia e educaccedilatildeo tecircm sido cada vez mais
escassos mostra-se de grande importacircncia continuar o esforccedilo de pesquisa e
valorizarmos a produccedilatildeo dos colegas pois eacute especialmente nos momentos de
adversidade que natildeo devemos desistir da busca do saber e da troca de conhecimentos
As situaccedilotildees de escassez e crise foram e continuaratildeo sendo fonte de inspiraccedilatildeo e
mudanccedila e com esse intuito apresentamos um panorama do que tem sido pesquisado
em vaacuterias universidades do Brasil
O artigo de Paulo S C Ribeiro Filho (PUC-RJ) ldquoSobre o tempo uma
questatildeo fundamentalrdquo traz um debate sobre um dos temas mais complexos e aporeacuteticos
da filosofia o tempo Esse enigma filosoacutefico abordado por filoacutesofos tatildeo distintos como
Aristoacuteteles Plotino e Kant eacute aqui elaborado a partir de quatro pensadores Agostinho
Borges Agamben e Heidegger Outro texto que abrange mais de um periacuteodo da histoacuteria
da filosofia eacute o de Felipe Gustavo S da Silva (UFPE) com ldquoPraacuteticas de Cuidado de si
na Antiguidaderdquo em que Foucault eacute o referencial para uma investigaccedilatildeo histoacuterico-
criacutetica do pensamento antigo especialmente Platatildeo Mais um artigo no qual a relaccedilatildeo de
Michel Foucault com os antigos se faz presente eacute ldquoZaratustra metaciacutenicordquo de Rafael R
da Rosa (UERJ) O autor discute o tema claacutessico da transvaloraccedilatildeo dos valores por
2
Nietzsche mas sob lentes foucaultianas em diaacutelogo com uma tradiccedilatildeo marginal o
cinismo
Em termos de pesquisa que envolve mais de um momento da histoacuteria da
filosofia temos ldquoDe Descartes a Frege os avanccedilos epistemoloacutegicos do meacutetodordquo escrito
por Michelle C Montoya (PPGLM-UFRJ) A contribuiccedilatildeo da autora eacute uma apreciaccedilatildeo
histoacuterica do problema do meacutetodo no pensamento moderno com a indicaccedilatildeo posterior de
como G Frege apresentou respostas mais fecundas a esse problema ainda que portando
certa ldquocontinuidaderdquo com a proposta cartesiana
No acircmbito da filosofia antiga temos dois artigos o de Gabriel R Rocha
(PUC-RS) ldquoDo amor platocircnico ao crush a filosofia entre adolescentes ndash toacutepicos de
ensino de filosofiardquo e o de Otacilio L de S Neto (UFC) ldquoDois sentidos de participaccedilatildeo
em Platatildeordquo No caso de Rocha trata-se de um esforccedilo interdisciplinar de refletir sobre o
Eros platocircnico e diferenccedilas e semelhanccedilas com maneiras contemporacircneas de lidar com a
vida afetiva e o desejo com ecircnfase na giacuteria crush usada por jovens e adolescentes
recorrendo a teoacutericos como Z Bauman A MacIntyre e E Cassirer O texto de Neto
por sua vez consiste em rigorosa exegese de trechos do Parmecircnides e do Feacutedon
platocircnico diferenciando duas nuances do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo em Platatildeo Essa
retomada de um problema claacutessico na histoacuteria da filosofia atenta para a polissemia tatildeo
recorrente em conceitos de filosofia antiga
Ainda na aacuterea da metafiacutesica mas no acircmbito da filosofia medieval cujos
estudos tecircm crescido no paiacutes temos a contribuiccedilatildeo de Matheus Monteiro (UNICAMP)
ldquoO possiacutevel metafoacuterico segundo Tomaacutes de Aquinordquo Nesse artigo o autor expotildee o
conceito de possiacutevel metafoacuterico e o problematiza de modo criacutetico para que
medievalistas possam discutir o tema ainda mais a fundo
No acircmbito da filosofia moderna haacute o artigo de William Teixeira (UnB) ldquoA
modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes a criacutetica das formas substanciaisrdquo O texto
mostra como Descartes partiu da criacutetica agrave noccedilatildeo escolaacutestica de lsquoforma substancialrsquo para
uma concepccedilatildeo mecanicista dos fenocircmenos naturais baseado em medidas e na
matemaacutetica Com essa atitude o filoacutesofo estaria proacuteximo de Bacon e Galileu portanto
inserido em um contexto moderno
Tambeacutem na filosofia moderna temos ldquoA subjetividade e a busca pela
felicidade no pensamento de Blaise Pascalrdquo artigo de Jean Vargas (UFMG) que
articula condiccedilatildeo humana e subjetividade humana tratando-se de importante reflexatildeo de
cunho antropoloacutegico agrave luz das ideias de teacutedio esquecimento de si amor-proacuteprio e
3
divertissement Cloves T D Freire (UFS) por sua vez escreveu ldquoLeibniz e a criacutetica ao
espaccedilo tota simul newtoniano a mocircnada como causa imediata do movimentordquo artigo
no qual se confronta dois grandes ldquorivaisrdquo no pensamento moderno cuja disputa pela
autoria do caacutelculo eacute famosa I Newton e G Leibniz No caso do texto de Freire Leibniz
critica a ideia de espaccedilo absoluto de Newton com base na noccedilatildeo de mocircnada e de sua
capacidade de aperceccedilatildeo e nos princiacutepios de razatildeo suficiente e identidade dos
indiscerniacuteveis
Ainda no acircmbito de reflexotildees acerca do eu mas sob um ponto de vista da
filosofia contemporacircnea temos ldquoFunccedilatildeo personalidade em devir ndash um olhar da teoria do
selfrdquo por Faacutebio H M Bogo (UFSC) O material em questatildeo se baseia na psicanaacutelise e
especialmente na esquizoanaacutelise de Deleuze e Guatarri Aqui natildeo se trata de uma
filosofia da subjetividade mas de uma filosofia da dissoluccedilatildeo do eu que passa a ser
pensado como funccedilatildeo e natildeo como estrutura
No acircmbito da filosofia poliacutetica temos a contribuiccedilatildeo de Elvis de O Mendes
(UFPE) intitulada ldquoDo niilismo agrave experiecircncia totalitaacuteriardquo Trata-se de um artigo focado
no pensamento de Leo Strauss e na abordagem que este faz agrave tirania como fenocircmeno
histoacuterico Jaacute ldquoA pragmaacutetica do discurso de Foucaultrdquo por Ceciacutelia de S Neves (UFMG)
o foco reside no tema da linguagem atentando para suas dimensotildees poliacuteticas chamando
atenccedilatildeo para como ler Foucault pensando na atualidade
A linguagem tambeacutem eacute tema do trabalho de Edvan Aragatildeo Santos (USP)
ldquoA questatildeo do dualismo e da linguagem em Bergsonrdquo artigo no qual se relacionam
linguagem consciecircncia e apreensatildeo da realidade Nosso nuacutemero tambeacutem contempla a
traduccedilatildeo de Epistemic closure ldquoFechamento epistecircmicordquo de Steven Luper por Luiz H
M Segundo (UFSC) que nos permitiu acesso em liacutengua portuguesa a uma importante
contribuiccedilatildeo em filosofia analiacutetica
Que esse rico panorama da pesquisa filosoacutefica dos poacutes-graduandos
brasileiros sirva de incentivo em tempos tatildeo duros Esperamos que as contribuiccedilotildees
continuem em qualidade e em quantidade
Boa leitura
Gabriel Assumpccedilatildeo
Errata No vol 3 n 5 (2ordm semestre de 2016) na entrevista com Ivan
Domingues chamada ldquoFilosofia como Resistecircnciardquo na paacutegina 3 onde estaacute ldquoDavid
4
Emanuel Carneirordquo leia-se ldquoDavid Emanuel Coelhordquo Pedimos desculpas aos leitores e
ao David pelo erro
A PRAGMAacuteTICA DO DISCURSO DE FOUCAULT
Ceciacutelia de Sousa Neves1
RESUMO Objetiva-se esclarecer o horizonte no qual surge a anaacutelise pragmaacutetica do discurso de Foucault inserindo-a no percurso da reflexatildeo filosoacutefica acerca da linguagem assim como seu significado e potencial poliacutetico Para isso nos serviremos principalmente das obras A ordem do discurso e Arqueologia do saber O artigo compotildee-se de duas partes na primeira inscreveremos Foucault no registro de duas grandes rupturas na investigaccedilatildeo acerca da linguagem a ruptura platocircnica com o pensamento preacute-socraacutetico e a ruptura operada por Saussure em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo em seguida esclareceremos o significado da anaacutelise do discurso de Foucault e como ela serve a um projeto poliacutetico emancipador Buscamos com isso reeditar o convite que esse filoacutesofo fascinante ainda hoje nos endereccedila a saber o de adentrarmos na ordem arriscada do discurso que embora tenha sido durante tanto tempo considerada pela tradiccedilatildeo como o inimigo a ser abatido natildeo apenas obedece a leis e regularidades que ainda estatildeo para serem descobertas como nos abre um mundo novo de possibilidades Palavras-chave Discurso Pragmaacutetica Foucault ABSTRACT This paper aims at clarifying the horizon in which the pragmatic analysis of Foucaults discourse arises inserting it in the course of philosophical reflection on language as well as its meaning and political potential For this we will focus on the following Foucalultrsquos works The order of discourse and Archeology of knowledge This paper is composed of two parts in the first part we will register Foucault in the two major ruptures in the investigation of language the Platonic rupture with pre-Socratic thought and the rupture operated by Saussure in relation to tradition Then we will clarify the meaning of Foucaults discourse analysis and how it serves as an emancipatory political project Thereby we intend to reissue the invitation that this fascinating philosopher still addresses to us which is the entering into the risky order of discourse that although it has been for so long considered by tradition as an enemy to be slaughtered not only obeys laws and Regularities that are yet to be discovered as well as it opens to us a new world of possibilities Keywords Discourse Pragmatic Foucault
Introduccedilatildeo
1 Doutoranda do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFMG Bolsista Capes E-mail de contato cecilianeves2003yahoocombr
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A reflexatildeo acerca da linguagem do seu estatuto e funccedilatildeo ou posiccedilatildeo em
relaccedilatildeo ao pensamento conhecimento e agrave praacutexis confunde-se com a proacutepria filosofia Natildeo
por acaso a filosofia se concretiza na ruptura iniciada por Platatildeo e sistematizada por
Aristoacuteteles com o discurso dos preacute-socraacuteticos poetas e sofistas gregos Foucault2 elabora
essa ruptura em termos da instituiccedilatildeo de uma nova e decisiva oposiccedilatildeo entre discurso
verdadeiro e falso Se para os poetas gregos o discurso verdadeiro ndash desejaacutevel e investido
pelo poder natildeo somente de anunciar mas realizar o destino e provocar a adesatildeo ndash consistia
no ato ritualizado de enunciaccedilatildeo de modo que a linguagem se identificava com a
realidade caracteriacutestica de uma perspectiva ontoloacutegica da linguagem a partir de Platatildeo
um discurso verdadeiro diz respeito agrave justeza ou exata aplicaccedilatildeo dos nomes ou seja
desloca-se para o enunciado o qual tem o papel de traduzir (ou intermediar por meio de
signos) o pensamento caracterizando portanto uma perspectiva instrumental da
linguagem O movimento que funda as bases ou o mainstream da ordem do discurso
filosoacutefico ocidental ou seja que delineia nos termos foucaultianos uma ldquovontade de
saberrdquo cujas caracteriacutesticas gerais ainda hoje nos determina consiste nesta reconfiguraccedilatildeo
da relaccedilatildeo entre linguagem e realidade Assim toda a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental
pode ser lida enquanto resposta a essa racionalizaccedilatildeo do discurso operada pelo
platonismo ou seja ldquopropondo uma verdade ideal como lei do discurso e uma
racionalidade imanente como princiacutepio de seu desenvolvimentordquo3
A ideia quixotesca de que a formalizaccedilatildeo do discurso promove sua depuraccedilatildeo
do lastro do desejo e do poder da contingecircncia e relatividade tem como principal
consequecircncia a supressatildeo da realidade do discurso Esta negaccedilatildeo da realidade especiacutefica
do discurso seu afastamento da contingecircncia das praacuteticas como seu princiacutepio constituinte
como indicamos tomaraacute muitas formas na histoacuteria do pensamento e da filosofia Em
relaccedilatildeo agrave filosofia podemos falar de dois caminhos principais o primeiro e hegemocircnico
diz respeito agravequele que reforccedila essa supressatildeo atraveacutes de que Foucault denomina como
uma filosofia do idecircntico que defende uma providecircncia preacute-discursiva do sentido o
destino da racionalidade ou teleologia do devir uma histoacuteria contiacutenua o retorno
compulsivo agraves origens as totalizaccedilotildees e uma filosofia do sujeito o segundo marginal e
maldito visa desvelar a ilegitimidade e arbitrariedade dessa construccedilatildeo atraveacutes da anaacutelise
do mecanismo proacuteprio da linguagem em nome de uma filosofia da diferenccedila cuja
principal caracteriacutestica eacute o descentramento face agrave soberania do sujeito e as figuras gecircmeas
2 FOUCAULT A ordem do discurso p13 3 FOUCAULT A ordem do discurso p43
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da antropologia e do humanismo Eacute nesta segunda via aberta pela criacutetica radical de autores
como Nietzsche Artaud e Bataille que se inscreve a anaacutelise pragmaacutetica do discurso de
Foucault Anaacutelise que por sua vez elege um ponto de partida original para a abordagem
filosoacutefica acerca da linguagem natildeo o pensamento como fez a tradiccedilatildeo nem a linguagem
como fez Saussure mas o espaccedilo contingente em que desenvolvem os acontecimentos
discursivos Foucault visa desvelaacute-los em sua pureza sem a mediaccedilatildeo de operadores de
siacutentese eou psicoloacutegicos a serviccedilo da continuidade e identidade a fim de abrir novas
potencialidades para a anaacutelise histoacuterica dos discursos tais como a descriccedilatildeo de outras
formas de regularidade e jogos de relaccedilotildees
Uma imagem singular que descreve muito bem o pensamento de Foucault eacute
a de canteiro de obras Na medida em que este pensamento se revela imperativamente
experimental e ensaiacutestico Foucault nos adverte a possibilidade de que ao final ldquoem lugar
de dar fundamento ao que jaacute existe () sejamos obrigados a continuar fora das paisagens
familiares longe das garantias a que estamos habituados em um terreno ainda natildeo
esquadrinhado e na direccedilatildeo de um final que natildeo eacute faacutecil preverrdquo4 Esta observaccedilatildeo importa
na medida em que previne o leitor e o estudioso acerca do que se deve e natildeo se deve
esperar de sua obra espere encontrar exemplos impressionantes de anaacutelises e criacuteticas
filosoacuteficas apuradas e detalhadas mas natildeo espere respostas e teorias conclusivas e
sistemaacuteticas Outra questatildeo que orientaraacute nosso exame eacute o fato de que esta filosofia da
diferenccedila eacute indissociaacutevel de um projeto poliacutetico que confia no esclarecimento como a via
privilegiada da liberdade Ao buscar esclarecer as condiccedilotildees de funcionamento
contingecircncias histoacutericas e a legalidade especiacutefica do campo em que se desenvolvem os
acontecimentos discursivos Foucault quer sobretudo ldquomostrar que o que eacute jamais foi
ou seja eacute sempre na confluecircncia dos encontros dos acasos no curso da histoacuteria fraacutegil
precaacuteria que satildeo formadas as coisas que nos datildeo a impressatildeo de serem as mais
evidentesrdquo5
1 As duas rupturas Platatildeo e Saussure
O texto seminal que inaugura a reflexatildeo filosoacutefica acerca da linguagem eacute o
diaacutelogo platocircnico chamado Craacutetilo Aqui se formula o problema nuclear que serviraacute de
eixo em torno do qual o pensamento sobre a linguagem se desenvolveraacute Trata-se de
4 FOUCAULT A arqueologia do saber p44 5 FOUCAULT Estruturalismo e poacutes-estruturalismo p 325
8
justificar racionalmente em que consiste a ldquoexata aplicaccedilatildeo dos nomesrdquo ou a ldquojusteza dos
nomesrdquo em outras palavras busca-se esclarecer qual eacute o fundamento da relaccedilatildeo entre
signo e referente nome e objeto forma e conteuacutedo ou ainda entre as palavras e as coisas
O que estaacute em jogo nesse problema eacute a proacutepria possibilidade do conhecimento verdadeiro
O diaacutelogo consiste na investigaccedilatildeo de Soacutecrates das teses opostas de Hermoacutegenes para
quem a origem e natureza das denominaccedilotildees satildeo puramente convencionais e Craacutetilo para
quem cada coisa tem por natureza um nome apropriado
Face ao relativismo da tese de Hermoacutegenes ndash segundo a qual se a verdade eacute o
que parece a cada um natildeo apenas toda designaccedilatildeo estaacute correta como natildeo haacute diferenccedila
entre verdadeiro e falso viacutecio e virtude ou razatildeo e loucura ndash Soacutecrates afirma um dos
pressupostos baacutesicos da doutrina platocircnica a saber que as coisas e suas accedilotildees (inclusive
o ato de falar e nomear) possuem uma ldquoessecircncia permanenterdquo6 isto eacute uma existecircncia
natural e transcendente que funciona como criteacuterio de verdade da coisa e de sua maneira
de ser Assim o nome ldquoeacute a imitaccedilatildeo vocal da coisa imitadardquo7 de modo que nomear
corretamente implica exprimir com signos a ideia fundamental da coisa Nesse sentido
como afirma Soacutecrates Craacutetilo tem razatildeo pois os nomes derivam da natureza das coisas e
bem aplicados revelam o caraacuteter o modo de ser ou a natureza proacutepria de algo Mas Craacutetilo
erra ao explicar em que consiste a atribuiccedilatildeo dos nomes agraves coisas Isso porque o criteacuterio
para a correccedilatildeo da imagem ou imitaccedilatildeo natildeo estaacute no fato de ela ser exatamente igual agrave
coisa designada como o quer Craacutetilo ou seja natildeo eacute possiacutevel identificar nome e coisa
pois a princiacutepio uma imagem natildeo possui a mesma propriedade dos originais e se possuiacutesse
seria mera duplicaccedilatildeo logo seria impossiacutevel distinguir uma da outra Portanto para o
nome ser bem formado eacute preciso apenas que ele contenha a imagem fundamental de cada
coisa razatildeo pela qual pode variar as letras
A tese de Craacutetilo ao afirmar que um nome imita perfeitamente a coisa
simplesmente por ser nome defende que atraveacutes do nome eu conheccedilo a coisa assim como
conhecendo as coisas descobrimos seu nome O problema eacute que se por um lado os nomes
dizem a verdade acerca da coisa que designam de modo que para atribuir o nome eacute
preciso conhecer as coisas por outro lado para conhecer as coisas eacute preciso jaacute deter os
nomes ao menos os nomes primitivos A questatildeo que coloca a tese de Craacutetilo em apuros
concerne agrave origem mesma da linguagem ou seja como os primeiros legisladores
apreenderam e designaram as coisas se os nomes primitivos necessaacuterios para isso natildeo
6 PLATAtildeO Craacutetilo 386 e 7 PLATAtildeO Craacutetilo 423 b
9
tinham sido fixados e se para fixar os nomes eacute preciso apreender as coisas Para resolver
essa aporia da origem da linguagem a qual Soacutecrates conduziu a tese de Craacutetilo Soacutecrates
daacute um passo aleacutem daquele que eacute dado na investigaccedilatildeo da tese de Hermoacutegenes ndash em que
se chegou agrave conclusatildeo que a designaccedilatildeo seraacute verdadeira se imita a essecircncia da coisa e
falsa se natildeo Esse passo corresponde agrave instituiccedilatildeo do criteacuterio de verdade para essa
designaccedilatildeo criteacuterio esse que natildeo se encontra na imanecircncia da linguagem mas seraacute situado
em um registro ontologicamente independente da experiecircncia concreta dos indiviacuteduos
Portanto eacute um criteacuterio transcendente que autoriza e fundamenta a ligaccedilatildeo entre signo e o
referente entre nome e o objeto forma e conteuacutedo as palavras e as coisas O modo mais
natural seguro e belo de conhecer algo eacute partindo de sua proacutepria verdade natildeo de suas
imagens secundaacuterias Ou seja ldquonatildeo eacute por meio de seus nomes que devemos procurar
conhecer ou estudar as coisas mas de preferecircncia por meio delas proacutepriasrdquo8 Eacute a partir
dessa verdade intelectual que vamos avaliar a representaccedilatildeo da verdade por suas imagens
(nomes) natildeo o inverso
A principal consequecircncia desse diaacutelogo razatildeo pela qual esta obra inaugura a
reflexatildeo filosoacutefica sobre a linguagem estaacute na reduccedilatildeo do discurso agrave condiccedilatildeo de mero
suporte entre pensar e falar simples instrumento de traduccedilatildeo do pensamento A partir de
Platatildeo torna-se lugar comum a pressuposiccedilatildeo de um horizonte de significaccedilatildeo contiacutenua
de sentido ou seja anterior ao uso dos nomes existe uma verdade absoluta e necessaacuteria
em relaccedilatildeo a qual ao discurso soacute cabe encadeaacute-la refleti-la desdobrar seu sentido do
interior ao exterior A linguagem serve como um instrumento para compartilhar
informaccedilotildees e distinguir as coisas De modo que o discurso verdadeiro e a possibilidade
de conhecimento se reduzem agrave forma correta do enunciado proposicional que nos permite
nomear ou designar as coisas ou seja ldquodizer por meio das palavras o que eacute e o que natildeo
eacuterdquo9 Digno de nota eacute o fato de que nesta passagem Platatildeo formula explicitamente pela
primeira vez o conceito de verdade como correspondecircncia isto eacute funda no ser o criteacuterio
que garante e justifica a verdade do discurso
A ideia de que haacute uma essecircncia fundamental (por exemplo uma cadeira ideal
ontologicamente independente da nossa experiecircncia) que as palavras (associadas a um
conceito intelectual) rotulam constitui como sugere Derrida o nuacutecleo metafiacutesico do
pensamento ocidental O enquadramento do discurso no esquema analiacutetico da
racionalidade (e de seu criteacuterio de verdade transcendente) eacute a resposta platocircnica agrave ldquoluta
8 PLATAtildeO Craacutetilo 439 b 9 PLATAtildeO Craacutetilo 385 b
10
contra o enfeiticcedilamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagemrdquo10 de que
falou Wittgenstein Ela tambeacutem seraacute a matriz de outras saiacutedas claacutessicas do acircmbito
movediccedilo do discurso formado pelas palavras como o cogito de Descartes o amor
intelectualis Dei de Spinoza a analiacutetica de Kant e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica de Husserl
A recusa da ideia de que a linguagem eacute um meio transparente de pensamento
se consolida na virada linguiacutestica movimento iniciado no seacuteculo XX e idealizado por
Wittgenstein Aqui localizamos a segunda ruptura em relaccedilatildeo ao pensamento da
linguagem O que estaacute em jogo neste giro linguiacutestico eacute a consideraccedilatildeo da linguagem como
paradigma isto eacute como eixo constituinte do pensamento
Se na filosofia platocircnica o criteacuterio da verdade da relaccedilatildeo de referecircncia (entre
signonome e referenteobjeto) e o que autoriza o significado ou o sentido (a dimensatildeo
semacircntica) eacute a essecircncia ou o ser pode-se dizer que haacute um niacutevel intermediaacuterio entre signo
e referente que autoriza um modo de determinaccedilatildeo do referente Portanto a questatildeo do
valor referencial do signo (ou seja de como o signo pode representar aspectos da
realidade) se daacute formula na condiccedilatildeo de que o signo deve ser representaccedilatildeo natildeo da
realidade mas uma imagem do modo de ser proacuteprio de algo Um possiacutevel esquema seria
signo ndash ideia ndash coisa
Em Saussure a preocupaccedilatildeo com a fundamentaccedilatildeo da referecircncia entre signo
e realidade (ou seja a preocupaccedilatildeo em fornecer aos signos um conteuacutedo para justificar
como eles podem representar aspectos da realidade ou como ele pode ser aplicado aos
objetos) eacute excluiacuteda Trata-se de descrever os significados e sentido dos signos (objeto do
linguista) sem se preocupar com o referente (com o que pode lhe corresponder no mundo)
mas apenas em funccedilatildeo das relaccedilotildees que os signos tecircm uns com os outros no interior da
liacutengua concebida como um sistema autocircnomo de diferenccedilas O esquema saussuriano seria
restrito ao signo ndash significadosignificante Saussure natildeo se preocupa em articular signo
e mundo pois a semacircntica da linguagem eacute autocircnoma Ao definir o signo natildeo como o que
une uma coisa e um nome mas como a uniatildeo de conceito (significado sentido) e
significante (som) Saussure diz que o conceito de algo natildeo eacute definido positivamente pelo
seu conteuacutedo (referente) ndash ou seja natildeo satildeo descriccedilotildees de objetos reais por isso natildeo tem
nada a ver com as ciecircncias naturais ndash mas negativamente atraveacutes de suas relaccedilotildees
diferenciais com os outros termos no interior do sistema simboacutelico da linguagem Isso
significa que soacute existe uma cadeira real no interior de um sistema simboacutelico que a
10 WITTGENSTEIN Investigaccedilotildees filosoacuteficas sect 109
11
diferencia de todo o resto Diferentemente da tradiccedilatildeo especialmente de Platatildeo para quem
o pensamento antecede a linguagem cabendo a essa apenas expressaacute-lo ou desdobrar um
sentido que lhe eacute anterior para Saussure e a partir da virada linguiacutestica do XX eacute a
linguagem que estrutura nossa percepccedilatildeo constroi a realidade e possibilita o
conhecimento permanecendo tudo o que estaacute fora da linguagem no domiacutenio do
inconcebiacutevel Se em Platatildeo pensamos para falar para Saussure falamos para pensar
Ao inscrever o fundamento do significado na imanecircncia da linguagem
Saussure patrocina um movimento fundamental na ruptura com o nuacutecleo metafiacutesico da
tradiccedilatildeo Poreacutem embora Saussure natildeo considere a liacutengua como traduccedilatildeo ou instrumento
do pensamento mas da comunicaccedilatildeo ao priorizar a liacutengua (forma) prescindindo da fala
(evento) pode-se dizer que ele manteacutem a elisatildeo da realidade do discurso na medida em
que exclui da estrutura da liacutengua a dinacircmica histoacuterica e social Eacute exatamente aqui na
necessidade de se pensar o discurso aleacutem da linguagem mas na sua verdade e realidade
proacuteprias que inscrevemos Foucault A anaacutelise do discurso de Foucault eacute original porque
toma como ponto de partida a perspectiva dos saberes e praacuteticas discursivas inscrevendo
radicalmente as ordens do discurso no plano das formas histoacutericas e contingentes A
inquietaccedilatildeo que move Foucault no caminho de uma anaacutelise filosoacutefica do discurso eacute a
ldquoinquietaccedilatildeo diante do que eacute o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada
ou escritardquo11
2 A pragmaacutetica do discurso de Foucault
Esse deslocamento da abordagem acerca da questatildeo da linguagem ndash que a
interpela natildeo a partir do seu papel coadjuvante de traduccedilatildeo do pensamento como logos
identificado com a realidade ou como sistema linguiacutestico autocircnomo mas a partir de sua
materialidade isto eacute enquanto existecircncia transitoacuteria e contingente com a qual o discurso
irrompe num ato arbitraacuterio e violento nos jogos do pensamento e da linguagem ndash eacute o que
caracteriza a singularidade da anaacutelise do discurso feita por Foucault e a razatildeo pela qual
esta se apresenta como pragmaacutetica do discurso Pois trata-se para o filoacutesofo de
acolher cada momento do discurso em sua irrupccedilatildeo de acontecimentos nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersatildeo temporal que lhe permite ser repetido sabido esquecido transformado apagado ateacute nos menores traccedilos escondido bem longe de todos os olhares na poeira dos
11 FOUCAULT A ordem do discurso p8
12
livros Natildeo eacute preciso remeter o discurso agrave longiacutenqua presenccedila da origem eacute preciso trataacute-lo no jogo de sua instacircncia12
Mas prossegue Foucault ldquoo que haacute enfim de tatildeo perigoso no fato de as
pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente Onde afinal estaacute o
perigordquo13 Por que e a serviccedilo de quais interesses a materialidade do discurso ou seja
sua realidade especiacutefica foi negada e marginalizada pela perspectiva dominante na
tradiccedilatildeo filosoacutefica O que significa o deslocamento operado por Foucault Por que essa
mudanccedila caracteriza a singularidade de sua filosofia e quais as potencialidades que abre
Essas perguntas nos conduzem ao trabalho negativo ou criacutetico da anaacutelise
pragmaacutetica do discurso de Foucault que seraacute desenvolvida nas obras A ordem do discurso
e Arqueologia do saber No livro A ordem do discurso o proacuteprio filoacutesofo postula seu
ponto de partida
Eis a hipoacutetese que gostaria de apresentar esta noite para fixar o lugar ndash ou talvez o teatro muito provisoacuterio ndash do trabalho que faccedilo suponho que em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos que tecircm por funccedilatildeo conjurar seus poderes e perigos dominar seu acontecimento aleatoacuterio esquivar sua pesada e temiacutevel materialidade14
Gostariacuteamos de chamar atenccedilatildeo para duas questotildees essenciais para a
compreensatildeo da problemaacutetica instaurada pelo toacutepico da pragmaacutetica do discurso de
Foucault em primeiro lugar a questatildeo de que em toda sociedade a produccedilatildeo e os poderes
do discurso satildeo controlados atraveacutes de procedimentos especiacuteficos em segundo lugar o
fato de que esses jogos de delimitaccedilatildeo e exclusatildeo visam em uacuteltima instacircncia banir a sua
materialidade Tratam-se de questotildees acerca da espeacutecie destes procedimentos e sobre a
razatildeo pela qual a materialidade do discurso eacute o inimigo a ser combatido em nome da
proacutepria sociabilidade ou seja por que eacute preciso suprimir a realidade do discurso
No livro a Ordem do discurso Foucault analisaraacute tais procedimentos de
controle de dominaccedilatildeo e limitaccedilatildeo dos poderes e da produccedilatildeo do discurso Cada um dos
trecircs sistemas de restriccedilatildeo identificados visa controlar uma dimensatildeo do discurso o
primeiro grupo exerce sobre o este uma coerccedilatildeo exterior que visa limitar seus poderes
operando atraveacutes de trecircs princiacutepios a saber a interdiccedilatildeo (qualquer pessoa natildeo pode dizer
qualquer coisa em qualquer circunstacircncia) a separaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo (cesura entre a loucura
12 FOUCAULT A arqueologia do saber p28 13 FOUCAULT A ordem do discurso p8 14 FOUCAULT A ordem do discurso p8-9
13
e a razatildeo) e a oposiccedilatildeo do verdadeiro e do falso (a questatildeo da vontade de verdade) o
segundo grupo configura dispositivos que do interior do proacuteprio discurso visam
estabilizar a aleatoriedade de sua apariccedilatildeo satildeo eles o princiacutepio do comentaacuterio (limita o
acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repeticcedilatildeo e do
mesmo) o princiacutepio do autor (limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que
teria a forma da individualidade e do eu) e princiacutepio da organizaccedilatildeo das disciplinas (limita
o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualizaccedilatildeo
permanente das regras) o uacuteltimo conjunto de jogos de coerccedilatildeo tem como objetivo
selecionar os sujeitos que falam por meio de mecanismos que podem ser designados como
ritual (define o conjunto de signos papeis gestos circunstacircncias nas quais o discurso eacute
proferido) sociedade de discurso (visa conservar a produccedilatildeo dos discursos fazendo-os
circular num espaccedilo fechado) doutrinas (visa a manutenccedilatildeo de um discurso atraveacutes da
ortodoxia) e educaccedilatildeo (seleciona e distribui os discursos para puacuteblicos determinados)
Tais princiacutepios de rarefaccedilatildeo do discurso respondem a trecircs criteacuterios fundamentais satildeo
arbitraacuterios e histoacutericos ieacute satildeo contingentes e modificaacuteveis apoiam-se sobre um suporte
institucional ou seja satildeo reforccedilados por uma espessura de praacuteticas e reconduzidos pelo
modo como o saber eacute aplicado valorizado e distribuiacutedo em uma sociedade por isso
exercem-se sob pressatildeo e violecircncia assim como desempenham um poder coercitivo sobre
os outros discursos
Esses jogos de limitaccedilotildees e exclusotildees ressoam na filosofia a partir de um
conjunto de temas que contribuem para justificaacute-los e reforccedilaacute-los a despeito da aparente
ldquologofiliardquo que caracteriza a tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental Os temas dizem respeito agrave
filosofia do sujeito fundante (que postula um sujeito metafiacutesico que funda o horizonte de
significaccedilatildeo um fundamento uacuteltimo do qual se deduz todas as proposiccedilotildees e que tem no
cogito cartesiano uma de suas formulaccedilotildees mais contundentes) o tema da experiecircncia
originaacuteria (que traduz um conjunto de significaccedilotildees ou representaccedilotildees anteriores que jaacute
dispotildeem o mundo para noacutes a qual tambeacutem podemos remeter a Descartes e aos princiacutepios
a priori da razatildeo de Kant) e o tema da mediaccedilatildeo universal (que encontra um logos em
todas as coisas e acontecimentos transformando a realidade em discurso isto eacute a filosofia
da histoacuteria hegeliana)
Analogamente na obra Arqueologia do saber Foucault direciona sua anaacutelise
para todo um ldquojogo de noccedilotildees que diversificam cada uma agrave sua maneira o tema da
14
continuidaderdquo15 a noccedilatildeo de tradiccedilatildeo de influecircncia desenvolvimento e evoluccedilatildeo
mentalidade e espiacuterito recortes e agrupamentos familiares e por fim a ficccedilatildeo da unidade
do livro e da obra Estas assim como os princiacutepios de coerccedilatildeo do discurso analisados em
A ordem do discurso tambeacutem cumprem a funccedilatildeo precisa de enquadrar o discurso em uma
histoacuteria contiacutenua progressiva e teleoloacutegica da racionalidade controlar a dispersatildeo e
remeter a relatividade a um fundo de permanecircncia a um uacutenico e mesmo princiacutepio de
organizaccedilatildeo e coerecircncia Em suma todos esses recursos visam conjurar a ameaccedila e o
perigo da abertura e da materialidade do discurso sua irrupccedilatildeo contingencial e
descontiacutenua que se daacute no campo das praacuteticas em nome de unidades ou conjuntos
discursivos nos quais todos os enunciados se desdobram dedutivamente a partir de um
uacutenico nuacutecleo ou princiacutepio unificador
O objetivo de ambas as anaacutelises promovidas por Foucault eacute desmistificar a
autoevidecircncia destes temas e noccedilotildees com a qual eles se impotildeem e se furtam a
questionamentos a fim de liberar os problemas que atravessam essas ldquocontinuidades
irrefletidas pelas quais se organizam de antematildeo os discursos que se pretende analisarrdquo16
Na esteira da criacutetica nietzschiana da linguagem que desvelou por traacutes da fixidez da
linguagem uma dinacircmica de luta por precedecircncia e poder entre quanta de forccedilas Foucault
recoloca o questionamento acerca destas
formas preacutevias de continuidade todas essas siacutenteses que natildeo problematizamos e que deixamos valer de pleno eacute preciso pois mantecirc-las em suspenso Natildeo se trata eacute claro de recusaacute-las definitivamente mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos mostrar que elas natildeo se justificam por si mesmas que satildeo sempre o efeito de uma construccedilatildeo cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas definir em que condiccedilotildees e em vista de que anaacutelises algumas satildeo legiacutetimas indicar as que de qualquer forma natildeo podem mais ser admitidas17
Em suma trata-se de suspender provisoriamente (procedimento semelhante agrave
duacutevida cartesiana ou a suspensatildeo fenomenoloacutegica) a validade destas siacutenteses com as quais
operamos organizamos e articulamos ateacute agora automaticamente nossos discursos
Foucault mostra que longe de serem o que se acreditava que fossem agrave primeira vista elas
ldquoexigem uma teoria e que essa teoria natildeo pode ser elaborada sem que apareccedila em sua
pureza natildeo sinteacutetica o campo dos fatos do discurso a partir do qual satildeo construiacutedasrdquo18
15 FOUCAULT A arqueologia do saber p23 16 FOUCAULT A arqueologia do saber p27 17 FOUCAULT A arqueologia do saber p28 18 FOUCAULT A arqueologia do saber p29
15
O que autoriza a criacutetica dessas siacutenteses inteiramente formadas eacute sua remissatildeo
ao campo dos ldquofatos de discursordquo isto eacute ao pano de fundo histoacuterico e contingencial dos
acontecimentos ou praacuteticas discursivas no qual essas unidades emergem elas mesmas
como fatos a serem analisados ao lado de outros A intenccedilatildeo de Foucault por traacutes dessa
reduccedilatildeo eacute testar ndash no acircmbito do discurso eixo sobre o qual gravita seu pensamento na
deacutecada de 60 ndash um meacutetodo de anaacutelise histoacuterica isento de qualquer antropologismo e
humanismo portanto livre das teleologias e totalizaccedilotildees Por isso a anaacutelise do discurso
opera essa reduccedilatildeo pragmaacutetica desses grandes conjuntos enunciativos que se apresentam
como unidades autoacutectones e universalmente reconheciacuteveis assim como dos jogos de
noccedilotildees (categorias reflexivas princiacutepios de classificaccedilatildeo regras normativas) que os
constituem agrave dinacircmica especiacutefica do campo dos fatos do discurso em que eles surgem e
se constroem a partir de relaccedilotildees complexas com outros fatos
Uma vez suspensos esses princiacutepios formas e temas que controlam os
discursos em uma sociedade todo um domiacutenio encontra-se liberado Este domiacutenio eacute
constituiacutedo pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (falados ou escritos) em sua
dispersatildeo de acontecimentos e na instacircncia proacutepria de cada um A anaacutelise do discurso de
Foucault desemboca na descoberta de uma populaccedilatildeo de acontecimentos no espaccedilo do
discurso em geral Esse registro eacute anaacutelogo ao que Foucault designa como ldquoepistemerdquo na
obra As palavras e as coisas de forma que assim como esta ele funciona como um ldquoa
priori histoacutericordquo Este eacute precisamente o solo do qual parte a pragmaacutetica discursiva de
Foucault concebida enquanto o ldquoprojeto de uma descriccedilatildeo dos acontecimentos
discursivos como horizonte para a busca das unidades que aiacute se formamrdquo19 Portanto a
anaacutelise do discurso natildeo mais se pautaraacute na remissatildeo do discurso a um conjunto de
significaccedilotildees anteriores que ao discurso cabe explicitar mas na remissatildeo a sua proacutepria
materialidade anterior agrave formalizaccedilatildeo A questatildeo a ser respondida natildeo eacute mais ldquoo que se
dizia no que estava ditordquo e sim ldquoque singular existecircncia eacute esta que vem agrave tona no que se
diz e em nenhuma outra parterdquo20
Poreacutem Foucault natildeo visa apenas liberar a instacircncia do acontecimento
enunciativo da liacutengua e do pensamento assim como de todos os grupamentos
considerados como unidades naturais imediatas e universais O trabalho natildeo se esgota no
seu papel negativo ou criacutetico Como indicamos a suspensatildeo da validade ldquoautoevidenterdquo
desses conjuntos eacute apenas provisoacuteria longe de ser uma denegaccedilatildeo dogmaacutetica trata-se de
19 FOUCAULT A arqueologia do saber p30 20 FOUCAULT A arqueologia do saber p31
16
desfazecirc-los para posteriormente ldquosaber se podemos recompocirc-los legitimamenterdquo
Foucault pretende lanccedilar as bases teoacutericas de um novo meacutetodo de anaacutelise histoacuterica cuja
face positiva e afirmativa fica patente na recomendaccedilatildeo que nos faz por questotildees de
meacutetodo da necessidade de se adotar algumas disposiccedilotildees procedimentos e noccedilotildees do
pensamento que embora incocircmodos porque pouco familiares satildeo potencialmente
reveladores de outras formas de regularidade jogos de relaccedilotildees e unidades
Primeiramente deve-se adotar um princiacutepio de inversatildeo que significa
reconhecer nas figuras e formas nas quais a tradiccedilatildeo situou a fonte e o princiacutepio de
desenvolvimento dos discursos ndash como o princiacutepio do autor disciplina comentaacuterio
unidade da obra etc ndash jogos de coerccedilatildeo estrateacutegias artificiais de controle do discurso e
exorcismo da sua materialidade Tais jogos adverte Foucault devem ser analisados eles
mesmos enquanto fatos do discurso
Em segundo lugar a adoccedilatildeo de um princiacutepio de descontinuidade diz respeito
agrave decisatildeo deliberada segundo a qual ldquoos discursos devem ser tratados como praacuteticas
descontiacutenuas que se cruzam por vezes mas tambeacutem se ignoram ou se excluemrdquo21 Nas
palavras de Foucault ldquodecidi-me a natildeo negligenciar nenhuma forma de descontinuidade
de corte limiar ou de limite Decidi-me a descrever enunciados no campo do discurso e
as relaccedilotildees de que satildeo suscetiacuteveisrdquo22 Esta disposiccedilatildeo metodoloacutegica possibilita a criacutetica da
vontade de verdade que mascara sob a necessidade da forma a origem arbitraacuteria
convencionada e contingente a saturaccedilatildeo de desejo e poder indissociaacuteveis do discurso
bem como ratifica a rejeiccedilatildeo da tentaccedilatildeo habitual de querer reencontrar por baixo daqueles
sistemas de rarefaccedilatildeo ou por traacutes de todas as formas e acontecimentos da realidade um
grande discurso contiacutenuo ilimitado e silencioso que se deveria articular ou pensar Outro
aspecto fundamental da noccedilatildeo de descontinuidade eacute a possibilidade de romper com a
compulsiva remissatildeo do discurso a uma origem secreta e originaacuteria a um ponto
indefinidamente recuado e portanto inalcanccedilaacutevel Pois eacute precisamente esse expediente
proacuteprio das tradicionais filosofias da histoacuteria que torna impossiacutevel assinalar na ordem
do discurso a irrupccedilatildeo de um acontecimento verdadeiro no ldquojogo de sua instacircnciardquo
considerando-se sua aleatoriedade materialidade e singularidade Ao situar a
descontinuidade no fato do enunciado no ato de sua irrupccedilatildeo histoacuterica ou de sua
irredutiacutevel emergecircncia Foucault restitui ao enunciado sua singularidade de
acontecimento e tambeacutem restaura a noccedilatildeo de descontinuidade como um dos elementos
21 FOUCAULT A ordem do discurso p50 22 FOUCAULT A arqueologia do saber p35
17
fundamentais da nova anaacutelise histoacuterica advogada pelo filoacutesofo A descontinuidade deixa
de ser considerada como ldquoo estigma da dispersatildeo temporal que o historiador se
encarregava de suprimir da histoacuteriardquo a fatalidade e o fracasso da leitura histoacuterica como
compreendia a histoacuteria tradicional para se tornar na perspectiva da ldquohistoacuteria novardquo o
elemento positivo fundamental da anaacutelise histoacuterica um conceito operatoacuterio integrado ao
discurso e agrave praacutetica do historiador De forma que o fato dessa mutaccedilatildeo epistemoloacutegica
natildeo ter sido suficientemente explicitada ou compreendida deve-se agrave dificuldade em se
formular uma ldquoteoria geral da descontinuidade das seacuteries dos limites das unidades das
ordens especiacuteficas das autonomias e das dependecircncias diferenciadasrdquo23 Dificuldade que
apenas se explica na medida em que manifesta uma ldquorepugnacircncia singular em pensar a
diferenccedila em descrever os afastamentos e as dispersotildees em desintegrar a forma
tranquilizadora do idecircnticordquo24 Portanto eacute o medo de pensar o outro que nos manteacutem
acorrentados a um pensamento da histoacuteria como o lugar das continuidades ininterruptas
discurso do contiacutenuo e garantia da soberania do sujeito em suma da antropologia e do
humanismo
Uma terceira disposiccedilatildeo de meacutetodo diz respeito agrave admissatildeo de um princiacutepio
de especificidade a fim de garantir a restituiccedilatildeo ao discurso da sua realidade especiacutefica a
saber seu caraacuteter de acontecimento Trata-se de esquivar-se do amparo fornecido pelo
recurso a uma providecircncia preacute-discursiva e com isso suspender a ldquosoberania do
significanterdquo25 O discurso deve ser concebido como ldquouma violecircncia que fazemos agraves
coisas como uma praacutetica que lhes impomos em todo o caso e eacute nesta praacutetica que os
acontecimentos do discurso encontram o princiacutepio de sua regularidaderdquo26
Uma quarta recomendaccedilatildeo concerne agrave adoccedilatildeo irrevogaacutevel da perspectiva da
exterioridade do discurso Foucault nos alerta que natildeo devemos passar do discurso para
seu nuacutecleo interior acircmago de um pensamento ou significaccedilatildeo anterior mas partir do
proacuteprio discurso para suas condiccedilotildees externas de possibilidade e regularidade dimensatildeo
a partir da qual eacute possiacutevel responder agrave pergunta pela sua singularidade
Aleacutem disso Foucault desloca as noccedilotildees que devem servir como princiacutepios
reguladores da anaacutelise As noccedilotildees de criaccedilatildeo unidade originalidade e significaccedilatildeo que
animaram a histoacuteria tradicional das ideias satildeo substituiacutedas ponto por ponto na nova
23 FOUCAULT A arqueologia do saber p13 24 FOUCAULT A arqueologia do saber p13-14 25 FOUCAULT A ordem do discurso p48 26 FOUCAULT A ordem do discurso p50
18
anaacutelise histoacuterica promovida por Foucault pelas noccedilotildees de acontecimento seacuterie
regularidade e condiccedilatildeo de possibilidade O postulado de um princiacutepio de agrupamento
do discurso que garanta sua unidade e originalidade criativa funcionando como princiacutepio
de sua coerecircncia e nuacutecleo de sua significaccedilatildeo eacute deslocado e substituiacutedo pela abordagem
do discurso em sua irrupccedilatildeo dispersiva como acontecimento registro onde se buscaratildeo a
partir de suas redes de contingecircncias os princiacutepios de sua regularidade e condiccedilotildees de
possibilidade As noccedilotildees de consciecircncia e continuidade (com seus problemas correlatos
ieacute da liberdade e da causalidade) assim como as noccedilotildees de signo e estrutura perdem a
centralidade em nome das noccedilotildees de seacuterie e descontinuidade Ao inveacutes de buscar
reconstituir outro discurso a palavra muda o texto invisiacutevel o sentido precedente por
traacutes do discurso Foucault orienta sua anaacutelise dos discursos pela necessidade de
compreender o enunciado na sua estreiteza e singularidade de sua situaccedilatildeo descrever as
formas de regularidades e o jogo de correlaccedilotildees com outros enunciados ldquoestabelecer as
seacuteries diversas entrecruzadas divergentes muitas vezes mas natildeo autocircnomas que
permitem circunscrever o lsquolugarrsquo do acontecimento as margens de sua contingecircncia as
condiccedilotildees de sua apariccedilatildeordquo27 Por mais efecircmero e banal um enunciado eacute um
acontecimento inesgotaacutevel paradoxal na medida em que eacute uacutenico e ao mesmo tempo
aberto agrave repeticcedilatildeo e transformaccedilatildeo
Conclusatildeo
A segunda imagem que se ajusta ao pensamento de Foucault eacute o modo como
ele se articula como uma verdadeira maacutequina de guerra A criacutetica agrave tradiccedilatildeo eacute um dos
eixos motores dessa filosofia da diferenccedila apresentando-se nesta sob muacuteltiplos registros
aspectos e com vaacuterias consequecircncias A criacutetica se dirige por exemplo ao historicismo (e
filosofias da histoacuteria) humanismos psicologismos antropologismos agrave fenomenologia e
ao estruturalismo embora a relaccedilatildeo com este seja essencialmente ambiacutegua No entanto
Foucault natildeo se encontra sozinho na tradiccedilatildeo do pensamento ele toma a via aberta por
Marx Nietzsche Artaud Bataille e de certo modo Spinoza aleacutem de resgatar vozes a
muito tempo banidas do discurso autorizado a saber o louco o monstruoso o criminoso
o irredutivelmente disperso Eacute atraveacutes desse caleidoscoacutepio de relaccedilotildees que o filoacutesofo nos
convida a acompanhaacute-lo no desafio de adentrar no universo proacuteprio do discurso para
27 FOUCAULT A ordem do discurso p53
19
pensaacute-lo em sua materialidade depuraacute-lo das marcas da identidade e da eternidade com
as quais a tradiccedilatildeo tentou impor-lhe uma ilegiacutetima estabilidade e objetividade Trata-se
portanto de abordar o discurso tal como ele eacute realmente atravessado por lutas vitoacuterias
ferimentos servidotildees dominaccedilotildees perigos e poderes que a tradiccedilatildeo jurou conjurar
atraveacutes do controle
Pode-se dizer que um dos objetivos de Foucault eacute abrir epistemologicamente
o caminho agrave criaccedilatildeo acolhendo a diferenccedila e seu potencial desestabilizador no interior da
sua filosofia Nas palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoEste tecircnue deslocamento temo
reconhecer nele como que uma pequena (e talvez odiosa) engrenagem que permite
introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso o descontiacutenuo e a materialidaderdquo28
Poreacutem o deslocamento operado por sua anaacutelise histoacuterica aqui examinada em relaccedilatildeo ao
discurso ultrapassa o domiacutenio da linguiacutestica e abre o caminho para uma filosofia de
caraacuteter eminentemente poliacutetico Na qual para concluir gostariacuteamos de inscrever a anaacutelise
pragmaacutetica do discurso do qual examinamos alguns pontos
Em Foucault a luta para produzir e defender a diferenccedila serve a um projeto
poliacutetico que vecirc no esclarecimento uma das vias privilegiadas para a conquista da
liberdade Na medida em que nossa experiecircncia individual e social eacute construiacuteda nesse
campo discursivo do qual Foucault busca apreender a lei depreende-se que eacute por meio da
libertaccedilatildeo do discurso das unidades e dos sistemas de controle e coerccedilatildeo que sobre ele se
impotildeem restringindo a aacuterea de legitimidade do discurso que eacute possiacutevel criar uma nova
realidade mais livre e condizente agrave pluralidade dos indiviacuteduos No cerne desse ativismo
filosoacutefico-poliacutetico de Foucault podemos situar a famosa frase de Wittgenstein que no
ponto 56 do Tractatus afirmou ldquoos limites de minha linguagem significam os limites de
meu mundordquo29
Um dos exemplos mais persuasivos da reaccedilatildeo extremamente violenta agrave qual
estatildeo sujeitos todos os discursos que excedem os limites prescritos pelos mecanismos de
coerccedilatildeo e exclusatildeo que atuam nas sociedades eacute a excomunhatildeo de Spinoza em 1656 pelos
judeus da Sinagoga Portuguesa de Amsterdatilde O banimento do jovem Spinoza entatildeo com
apenas 23 anos da comunidade judia revela-nos algo importante acerca do motivo pelo
qual todas as sociedades operam com tais sistemas de controle do discurso como indicou
Foucault O discurso ultrajante e blasfemo de Spinoza ao desrespeitar um dogma
fundador do judaiacutesmo deve ser punido com a expulsatildeo da comunidade porque ameaccedila
28 FOUCAULT A ordem do discurso p56 29 WITTGENSTEIN Tractatus Logico-Philosophicus p245
20
sua coesatildeo e unidade O terror que se quer comunicar por meio de semelhante condenaccedilatildeo
se baseia no medo arcaico da espeacutecie humana que durante milhares de anos associou o
banimento social agrave certeza da morte Este evento reedita tal temor e serve para alertar
todos os componentes de um grupo social qual eacute o destino dos transgressores (e seus
discursos potencialmente revolucionaacuterios) a saber o exiacutelio um dos siacutembolos primaacuterios
da morte Essa ferocidade pode ser visualizada no trecho seguinte trecho da carta
() Com a sentenccedila dos Anjos e dos Santos com o consentimento do Deus Bendito e com o consentimento de toda esta Congregaccedilatildeo diante destes santos Livros noacutes heremizamos expulsamos amaldiccediloamos e esconjuramos Baruch de Spinoza com os seiscentos e treze preceitos que estatildeo escritos neles com o Herem com que Josueacute excomungou Jericoacute com a maldiccedilatildeo com que Elias amaldiccediloou os moccedilos e com todas as maldiccedilotildees que estatildeo escritas na Lei Maldito seja de dia e maldito seja de noite maldito seja em seu deitar maldito seja em seu levantar maldito seja em seu sair e maldito seja em seu entrar () [Herem ndash anaacutetema ndash pronunciado contra Spinoza em 27 de julho de 1656]
Foucault se coloca na posiccedilatildeo de Espinosa poreacutem totalmente consciente da
razatildeo e dos mecanismos de autoproteccedilatildeo dos discursos hegemocircnicos E sua filosofia
desponta como instrumento de ativismo ou ainda a filosofia se converte ela mesma em
ativismo poliacutetico na medida em que a criacutetica filosoacutefica se dirige agrave anaacutelise de problemas
pontuais sendo sempre orientada pelo presente e irremediavelmente histoacuterica Eacute na
articulaccedilatildeo entre filosofia histoacuteria e atualidade que Foucault desloca a pergunta de Kant
pelos limites que a razatildeo deve respeitar para assegurar sua legitimidade para a pergunta
pelos limites ilegiacutetimos a serem questionados e transgredidos pois ldquoo trabalho do
intelectual eacute certamente em um sentido dizer o que existe fazendo-o aparecer como
podendo natildeo ser ou podendo natildeo ser como ele eacuterdquo30
Usando a filosofia para tensionar as verdades instituiacutedas desvelando sua
histoacuteria e como elas escondem hierarquizaccedilotildees de poder Foucault participou teoacuterica e
praticamente de movimentos vanguardistas de contestaccedilatildeo como a luta antimanicomial
(Histoacuteria da loucura) a criacutetica ao sistema prisional (Vigiar e Punir) movimento gay
(Histoacuteria da sexualidade) entre outros Portanto sua anaacutelise do discurso eacute tambeacutem uma
demanda de liberdade no campo da linguagem pois com ela Foucault quer ldquoMostrar agraves
pessoas que elas satildeo muito mais livres do que pensam que elas tomam por verdadeiro
30 FOUCAULT Estruturalismo e poacutes-estruturalismo p 325
21
por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da histoacuteria e que essa
pretensa evidecircncia pode ser criticada e destruiacutedardquo
REFEREcircNCIAS
FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural no Collegravege de France
pronunciada em 2 de dezembro de 1970 Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014
______ A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009
______ Estruturalismo e poacutes-estruturalismo (1983) In FOUCAULT Michel Ditos e
Escritos II Arqueologia das ciecircncias e histoacuteria dos sistemas de Pensamento Rio de
Janeiro Forense Universitaacuteria 2005
PLATAtildeO Craacutetilo In PLATAtildeO Teeteto-Craacutetilo Beleacutem Universidade Federal do Paraacute
1988 p 101-177
SPINOZA Benedictus de Eacutetica Belo Horizonte Autecircntica Editora 2010
WITTGENSTEIN Ludwig Investigaccedilotildees filosoacuteficas Petroacutepolis Vozes 2009
______ Tractatus Logico-Philosophicus Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo
Paulo 2001
LEIBNIZ E A CRIacuteTICA AO ESPACcedilO TOTA SIMUL NEWTONIANO A
MOcircNADA COMO CAUSA IMEDIATA DO MOVIMENTO
Cloves Thiago Dias Freire1
RESUMO Neste artigo pretendemos recompor a argumentaccedilatildeo que sustenta a criacutetica de Leibniz a noccedilatildeo de espaccedilo tota simul newtoniano com vistas a mostrar que segundo o pressuposto leibniziano a verdadeira causa imediata do movimento deve residir na noccedilatildeo verdadeira de substacircncia ou Mocircnada e natildeo como defendia Newton na noccedilatildeo de um espaccedilo totalmente semelhante e indiscerniacutevel Segundo o filoacutesofo alematildeo a noccedilatildeo de um espaccedilo que possui realidade per se implicaria na impossibilidade da correta caracterizaccedilatildeo do movimento dos corpos posto que esta noccedilatildeo violaria os princiacutepios da razatildeo suficiente e da identidade dos indiscerniacuteveis Neste sentido o fundamento do movimento natildeo estaria na existecircncia de um espaccedilo absoluto mas no registro intriacutenseco da mudanccedila e do movimento pela apercepccedilatildeo individualizada da Mocircnada Palavras-chave Newton Leibniz Espaccedilo Movimento ABSTRACT In this article we intended to recompose the argument that sustains the critic of Leibniz the notion of Newtonian space tota simul in order to show that according to the Leibnizian presupposition the real immediate cause of the movement should live in the true notion of substance or Monad and no as it defended Newton in the notion of a space totally similar and undiscernible According to the German philosopher the notion of a space that possesses reality per se would be implicated in the impossibility of the correct characterization of movement of the bodies position that this notion would violate the principles of sufficient reason and of the identity of the undiscernible In this sense the foundation of movement would not be in the existence of an absolute space but in the intrinsic registration of the change and of the movement for the individualized apperception of the Monad Keywords Newton Leibniz Space Movement
1 Consideraccedilotildees iniciais
Isaac Newton ao postular sua noccedilatildeo de espaccedilo absoluto tota simul com o
intuito de superar os entraves da noccedilatildeo cartesiana de movimento propocircs a dissociaccedilatildeo
ontoloacutegica entre espaccedilo e corpomateacuteria tornando o espaccedilo absoluto um referencial
inercial para a correta descriccedilatildeo da mecacircnica do mundo
1 Mestre em filosofia (PPGF-UFS) email Thiagodfreire1gmailcom
23
Todavia na opiniatildeo de Leibniz esta noccedilatildeo de espaccedilo demandaria
inconsistecircncias metafiacutesicas insoluacuteveis para a filosofia do movimento pois num espaccedilo
tota simul indiscerniacutevel seria impossiacutevel observar a mudanccedila de relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos
corpos o que implicaria na violaccedilatildeo dos princiacutepios da razatildeo suficiente e da identidade
dos indiscerniacuteveis O espaccedilo absoluto seria para o alematildeo apenas uma consideraccedilatildeo uacutetil
pois o registro da mudanccedila e do movimento natildeo estaria no espaccedilo propriamente dito mas
intrinsecamente na noccedilatildeo verdadeira de substacircncia ou mocircnada
Como pretendemos mostrar para Leibniz se aceitarmos a noccedilatildeo de espaccedilo
absoluto newtoniano como uma teoria consistente teremos de admitir como
consequecircncia a impossibilidade da correta designaccedilatildeo do movimento dos corpos uma
vez que num espaccedilo tota simul seria impossiacutevel determinar quando um corpo muda de
relaccedilatildeo de situaccedilatildeo com outros corpos
Esta opiniatildeo estaacute amparada em grande medida no disposto do sect 8 da
Monadologia muito provavelmente porque seraacute ali que Leibniz ao caracterizar a
natureza desta nova substacircncia ou mocircnada problematizaraacute a consequente designaccedilatildeo do
movimento questatildeo das mais fundamentais do iniacutecio da filosofia moderna
Dito isto pretendemos compreender de que forma a noccedilatildeo de substacircncia
apresentada na Monadologia e retomada na Correspondecircncia com Clarke seraacute
fundamental para compreendermos a criacutetica empreendida por Leibniz a noccedilatildeo newtoniana
de espaccedilo absoluto e por conseguinte a noccedilatildeo de movimento
Assim para recompor este debate desenvolveremos este artigo em trecircs
momentos argumentativos Primeiramente tentaremos caracterizar a noccedilatildeo de espaccedilo e
de movimento na filosofia newtoniana tendo como referecircncia os textos De gravitatione
e Principia mathematica No segundo momento analisaremos a Correspondecircncia
Leibniz-Clarke com o propoacutesito de compreender os fundamentos da criacutetica estabelecida
por Leibniz agrave noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano Por fim nos apoiando nos Princiacutepios
da filosofia ditos a Monadologia sustentaremos que para Leibniz a verdadeira
designaccedilatildeo das causas da mudanccedila e do movimento deve ser atribuiacuteda a noccedilatildeo verdadeira
de substacircncia ou Mocircnada e natildeo a existecircncia de um espaccedilo que possui realidade per se
2 Newton e o espaccedilo absoluto tota simul
Eacute possiacutevel dizer que a filosofia natural newtoniana tenha sido pensada como
uma resposta direta as inconsistecircncias do modo cartesiano de pensar a descriccedilatildeo dos
24
eventos no mundo das coisas materiais Esta assertiva pode ser corroborada por um texto
escrito ao que tudo indica entre os anos de 1664 e 1668 denominado De gravitatione et
aequipondio fluidorum2 que data da mesma eacutepoca em que Newton ainda era um estudante
no Trinity College3 Grosso modo podemos caracterizaacute-lo como uma criacutetica direta a
filosofia natural cartesiana especificamente as premissas dos Princiacutepios da filosofia
(1644)
Em De gravitatione jaacute se apresentavam a geacutenese das futuras noccedilotildees de espaccedilo
absoluto e movimento absoluto pensadas como resposta as inconsistecircncias das definiccedilotildees
cartesianas de espaccedilo e movimento Segundo Descartes a definiccedilatildeo de movimento
verdadeiro (motus proprie sumptus) seraacute expressa no famoso art 25 parte II dos
Princiacutepios escreve ele
[] o movimento eacute a translaccedilatildeo [translationem] de uma parte da mateacuteria ou de um corpo da proximidade daqueles que lhe satildeo imediatamente contiacuteguos ndash e que consideramos em repouso ndash para a proximidade de outros4
Todavia para Newton como consequecircncia desta definiccedilatildeo de movimento ao
fim do deslocamento de um determinado corpo no espaccedilo eacute impossiacutevel determinar o lugar
no qual o corpo se encontrava antes de iniciar tal movimento Isto eacute ocasionado pois o
movimento eacute referenciado aos corpos contiacuteguos e ao teacutermino de um movimento os corpos
contiacuteguos natildeo permanecem na mesma relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que se encontravam
anteriormente Na letra de Newton
Natildeo existe base alguma a partir da qual possamos no momento encontrar um lugar que existiu no passado ou dizer que tal lugar ainda pode ser descoberto na natureza Com efeito uma vez que segundo Descartes o lugar natildeo eacute outra coisa senatildeo a superfiacutecie dos corpos adjacentes ou a posiccedilatildeo entre alguns outros corpos mais distantes eacute impossiacutevel ndash conforme esta doutrina ndash que o lugar exista durante um periacuteodo de tempo mais longo do que aquele durante o qual esses corpos mantecircm as mesmas posiccedilotildees do qual o Filoacutesofo deriva a denominaccedilatildeo individual5
Ora se eacute impossiacutevel determinar o lugar ou seja o ponto (situs) do espaccedilo em
que se inicia o movimento entatildeo natildeo se pode determinar sua velocidade pois esta
2 Sobre o peso e o equiliacutebrio dos fluidos 3 O Trinity College foi fundado por Henrique VIII em 1546 como parte da Universidade de Cambridge na cidade de Cambridge Reino Unido A eacutepoca de Newton o Trinity College tinha forte influecircncia dos chamados platocircnicos de Cambridge liderados por figuras como Ralph Cudworth e Henry More 4 DESCARTES Princiacutepios da filosofia 2015 p 70 5 NEWTON O peso e o equiliacutebrio dos fluidos 1983 p 69 grifo nosso
25
depende da distacircncia percorrida por um determinado corpo no espaccedilo Logo para
Newton pode-se concluir que no universo cartesiano nada se move apesar das aparecircncias
em contraacuterio Conclusatildeo que seraacute mais bem compreendida quando do registro da seguinte
passagem em De gravitatione diz ele
Do que ficou dito se infere indubitavelmente que o movimento cartesiano natildeo eacute movimento pois natildeo tem velocidade nem definiccedilatildeo natildeo havendo tampouco espaccedilo ou distacircncia percorridos por ele Por conseguinte eacute necessaacuterio que a definiccedilatildeo de lugares e consequentemente tambeacutem dos movimentos locais seja referida a alguma coisa destituiacuteda de movimento tal como a extensatildeo sozinha ou o espaccedilo na medida em que se vecirc que este se distingue dos corpos6
Segundo Newton o grande erro da definiccedilatildeo cartesiana de movimento foi
referenciar a mudanccedila de situaccedilatildeo com relaccedilatildeo a corpos contiacuteguos todavia conforme a
citaccedilatildeo acima a correta definiccedilatildeo do movimento deveria considerar o espaccedilo enquanto
destituiacutedo de movimento e distinto dos corpos o que possibilitaria sua atuaccedilatildeo como um
referencial inercial para o movimento dos corpos Referencial que seraacute definitivamente
formalizado com a publicaccedilatildeo de seu tratado mais importante Principia mathematica
A obra Philosophiae naturalis principia Mathematica doravante
denominada Principia foi editada pela primeira vez em 1686 Neste tratado Newton
expotildee seu grande projeto de filosofia natural que tem como objetivo metodoloacutegico derivar
as causas dos eventos fiacutesicos a partir do estudo dos fenocircmenos meacutetodo sintetizado em
seu famoso postulado ldquohipotheses non fingordquo Muito provavelmente este texto lanccedila as
bases da mecacircnica claacutessica que se tornaraacute o modelo de comunicaccedilatildeo cientiacutefica nos seacuteculos
posteriores
No tratado Newton daraacute nova definiccedilatildeo agraves quantidades fiacutesicas consideradas
por ele mais desconhecidas e reafirmaraacute aquelas jaacute desenvolvidas em De gravitatione
tais como tempo espaccedilo lugar e movimento Contudo acredita ser necessaacuterio realizar a
correta distinccedilatildeo entre as quantidades absolutas e relativas verdadeiras e aparentes
matemaacuteticas e vulgares pois assevera que o leigo (vulgus) natildeo conhece essas quantidades
sob outras noccedilotildees a natildeo ser a partir de suas relaccedilotildees com os objetos tangiacuteveis
Portanto conforme o postulado newtoniano a correta compreensatildeo de sua
noccedilatildeo de espaccedilo demandaraacute dos sujeitos um processo de abstraccedilatildeo dos sentidos que possa
fazer distinguir entre o espaccedilo absoluto matemaacutetico e verdadeiro do espaccedilo relativo e
6 Ibid p 69 grifo nosso
26
vulgar Eacute o que podemos observar nas seguintes definiccedilotildees do primeiro Escoacutelio dos
Principia
II O espaccedilo absoluto [spatium absolutum] por sua natureza sem nenhuma relaccedilatildeo [relatione] com algo externo permanece sempre semelhante e imoacutevel [similare amp immobile] o relativo eacute certa medida (mesura) ou dimensatildeo [dimensio] moacutevel desse espaccedilo a qual nossos sentidos definem por sua situaccedilatildeo [situm] relativamente aos corpos e que a plebe [vulgo] emprega em vez do espaccedilo imoacutevel [] III O lugar [locus] eacute uma parte do espaccedilo que um corpo ocupa e com relaccedilatildeo ao espaccedilo eacute absoluto ou relativo Digo uma parte do espaccedilo e natildeo a situaccedilatildeo do corpo [situs corporis] ou a superficie ambiente [superficiem ambientem] Com efeito os lugares dos soacutelidos iguais satildeo sempre iguais mas as superfiacutecies satildeo quase sempre desiguais por causa da dessemelhanccedila das figuras as situaccedilotildees [situs] poreacutem natildeo tecircm propriamente falando quantidade sendo antes afecccedilotildees dos lugares [affectiones locorum] que os proacuteprios lugares7
Neste sentido Newton propotildee que o espaccedilo absoluto verdadeiro e matemaacutetico
possui natureza distinta dos corpos que o ocupam adequadamente (ou uniformemente)
permanecendo sempre semelhante e imoacutevel e o lugar eacute uma parte deste espaccedilo e natildeo eacute a
situaccedilatildeo dos corpos com relaccedilatildeo a outros corpos contiacuteguos como pensara Descartes no
famoso sect 25 dos Princiacutepios Assim as relaccedilotildees de situaccedilatildeo dos corpos no espaccedilo seratildeo
apenas afecccedilotildees dos lugares sem qualquer possibilidade de quantificaccedilatildeo
Isto posto o movimento absoluto ldquoeacute a translaccedilatildeo de um corpo e um lugar
absoluto para outro absoluto ao passo que o relativo eacute a translaccedilatildeo de um lugar relativo
para outro relativordquo8 Consequentemente o movimento relativo seria a translaccedilatildeo de um
corpo de um lugar relativo para outro
Ademais assim como as partes do tempo satildeo imutaacuteveis tambeacutem eacute a ordem
do espaccedilo uma vez que a essecircncia das partes do espaccedilo eacute ser lugar e os lugares primaacuterios
natildeo se movem Por isso para Newton a causa imediata da designaccedilatildeo da
mudanccedilamovimento deve ser relacionada ao modo vulgar de considerar o lugar e
consequentemente o movimento pois
[] como essas partes do espaccedilo natildeo podem ser vistas e distinguidas umas das outras por nossos sentidos usamos em lugar delas medidas sensiacuteveis Com efeito definimos todos os lugares [loca universa] pelas posiccedilotildees [positionibus] e distacircncias das coisas em relaccedilatildeo a um determinado corpo que consideramos imoacutevel a seguir
7 NEWTON Princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural 1983 p 8 grifo nosso 8 Ibid p 9
27
tambeacutem calculamos todos os movimentos relativamente a esses lugares enquanto concebemos os corpos como transferidos destes9
Neste sentido para Newton por sermos incapazes de pelos sentidos ver e
distinguir as partes das coisas imoacuteveis matemaacutetica verdadeira e absoluta ou seja devido
a nossa incapacidade de distinguir o verdadeiro espaccedilo definimos todo espaccedilo em relaccedilatildeo
agrave posiccedilatildeo e distacircncia das coisas vinculadas a um determinado corpo que consideramos
imoacutevel Parece-nos que apesar de possuir realidade per se este espaccedilo absoluto
matemaacutetico e verdadeiro deve possuir um estatuto ontoloacutegico proacuteprio pois a
caracterizaccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico deve se referenciar sempre aos lugares relativos e natildeo ao
absoluto
Na opiniatildeo de Newton se considerarmos o movimento em sua natureza
geomeacutetrica e verdadeiramente determinada a partir do transporte ou translaccedilatildeo de um
corpo de sua vizinhanccedila imoacutevel para a vizinhanccedila de outros sem referecircncia a nada que
esteja verdadeiramente imoacutevel perderemos o que eacute proacuteprio do movimento pois como ele
afirma
Eacute propriedade do movimento [motus proprietas est] que as partes que guardam as posiccedilotildees dadas em relaccedilatildeo a seus todos participam dos movimentos desses todos Logo movidos os corpos ambientes as coisas que em redor estatildeo relativamente em repouso se moveratildeo10
Uma consequecircncia desta proposiccedilatildeo eacute que o movimento verdadeiro e absoluto
natildeo pode ser definido pela translaccedilatildeo a partir dos corpos vizinhos que satildeo vistos parados
pois tomando os corpos ambientes como referencial ao moverem-se os corpos ambientes
as coisas em seu redor relativamente em repouso se moveratildeo
Se o movimento for referenciado pelo lugar quando o lugar se move
juntamente se move seu conteuacutedo por isso um corpo que se move de um lugar em
movimento participa tambeacutem de seu conteuacutedo consequentemente
[] movimentos integrais e absolutos natildeo podem definir-se senatildeo pelos lugares imoacuteveis e por isso acima os referi a esses lugares mas referi os movimentos relativos aos lugares moacuteveis Ora lugares imoacuteveis natildeo satildeo senatildeo aqueles que por toda infinidade conservam as posiccedilotildees muacutetuas pelo que sempre permanecem imoacuteveis constituindo o espaccedilo que chamo imoacutevel11
9 Ibid p 10 grifo nosso 10 Ibid p 10 grifo nosso 11 Ibid p 11 grifo nosso
28
Aleacutem disso o que distingue o movimento relativo e o movimento absoluto
satildeo as causas impressas nos corpos pois o movimento verdadeiro natildeo eacute gerado nem se
muda senatildeo por forccedilas impressas nos proacuteprios corpos Jaacute o movimento relativo pode ser
gerado sem forccedilas impressas neste corpo bastando para isto que se imprimam forccedilas em
outros corpos com os quais exerce relaccedilatildeo de contiguidade
Newton assevera que as definiccedilotildees das quantidades fiacutesicas por se apoiarem
no mundo das coisas sensiacuteveis se referem sempre a seu aspecto relativo ou vulgar mas
nunca as quantidades efetivamente verdadeiras e absolutas Todavia dado que o espaccedilo
eacute composto de partes imoacuteveis indistintas e intangiacuteveis eacute dificiacutelimo conhecer os
verdadeiros movimentos de cada corpo e distingui-los dos movimentos relativos
A efetiva distinccedilatildeo entre movimento absoluto e movimento relativo seraacute a
pedra angular da mecacircnica newtoniana dos Principia Esta distinccedilatildeo soacute seraacute possiacutevel
tomando como referencial para o movimento uma noccedilatildeo de espaccedilo que eacute naturalmente
imoacutevel indistinto e intangiacutevel Como jaacute assinalamos este projeto jaacute se apresentava desde
o De gravitatione
Mas seraacute com as proposiccedilotildees registradas no texto final dos Principia
denominado ldquoEscoacutelio geralrdquo e adicionado agrave obra somente a partir da 2ordf ediccedilatildeo de 1713
que a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto ganharaacute contornos problemaacuteticos muito em funccedilatildeo do
abandono de seu projeto inicial de se desvencilhar de pressupostos metafiacutesicos na
fundamentaccedilatildeo de sua filosofia natural No Escoacutelio geral Newton fundamentaraacute em
concepccedilotildees metafiacutesicas a ordem e manutenccedilatildeo do universo regido por um Deus ou Ser
inteligente que emana de seu ser o proacuteprio espaccedilo enquanto um Sensorium Dei
Em De gravitatione Newton postula que se soacute existe aquilo que estaacute no
espaccedilo e jaacute que Deus existe deve necessariamente existir no espaccedilo Logo se eacute de sua
natureza ser infinito deve estaacute em todo lugar natildeo somente em accedilatildeo mas tambeacutem
essencialmente Isto quer dizer que Deus estaacute no espaccedilo agrave medida que o espaccedilo estaacute
contido em sua substacircncia presente Neste sentido assinala Newton que ldquonele satildeo todas
as coisas contidas e movidas todavia nenhum afeta o outro Deus natildeo sofre nada do
movimento dos corpos os corpos natildeo encontram nenhuma resistecircncia da onipresenccedila de
Deusrdquo12
Ocorre que apesar de estar no espaccedilo sempre e em todos os lugares
substancialmente Deus natildeo eacute humano nem em absoluto corpoacutereo ldquoEle eacute completamente
12 Ibid p 21
29
destituiacutedo de todo corpo e figura corporal e natildeo pode portanto nem ser visto nem
ouvido nem tocado nem deve ser ele adorado sob a representaccedilatildeo de qualquer coisa
corporalrdquo13
Todavia apesar de natildeo ser corpoacutereo eacute extenso por estar no espaccedilo mas
incorpoacutereo por conter virtualmente o proacuteprio espaccedilo em seu Ser Contudo da substacircncia
de Deus Newton afirma que soacute conhecemos suas criaccedilotildees enquanto resultado de suas
causas finais
Do que depreendemos ateacute aqui o conceito de espaccedilo na filosofia de Newton
serviu como suporte para a elaboraccedilatildeo de sua filosofia do movimento entretanto esta
formulaccedilatildeo seraacute contestada por Leibniz muito em funccedilatildeo das consequentes implicaccedilotildees
metafisicas Por esse motivo dando prosseguimento agrave nossa anaacutelise dos conceitos de
espaccedilo e movimento tentaremos mostrar como se posiciona o filoacutesofo alematildeo frente a
estes postulados no acircmbito da correspondecircncia com Samuel Clarke
3 Leibniz e o real atributo do espaccedilo a correspondecircncia com Clarke
Newton no escoacutelio agrave VIII definiccedilatildeo dos Principia postula que o espaccedilo em
sua definiccedilatildeo absoluta possui natureza proacutepria sem relaccedilatildeo com qualquer coisa externa
permanecendo sempre similar e imoacutevel Esta noccedilatildeo como mostramos tinha o objetivo
de estabelecer um referencial inercial para a descriccedilatildeo de corpos em movimento O que
segundo o inglecircs seria impossiacutevel determinar na filosofia natural cartesiana que associava
ontologicamente espaccedilo e mateacuteria Daiacute a necessidade de um referencial que natildeo se
confundisse com a natureza corpoacuterea
Entretanto Leibniz se oporaacute frontalmente a realidade per se de um espaccedilo
totalmente semelhante imoacutevel e independente dos corpos pois em seu ponto de vista o
espaccedilo natildeo eacute senatildeo a ordem de coexistecircncia das coisas notadas simultaneamente
Contrapondo assim a noccedilatildeo de um espaccedilo homogecircneo e indiscerniacutevel por uma
consequente designaccedilatildeo heterogecircnea e relacional do espaccedilo
Dito isto nos voltaremos para compreender os fundamentos da criacutetica
leibniziana a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano Com tal propoacutesito analisaremos a
primeira parte da quinta carta de Leibniz a Clarke com vistas a entender as razotildees que
levaram Leibniz a se opor agravequela noccedilatildeo de espaccedilo defendida por Newton Aleacutem disso
13 NEWTON loc cit
30
pretendemos compreender as consequecircncias da admissatildeo de um espaccedilo tota simul para a
correta designaccedilatildeo dos corpos em movimento
A correspondecircncia Leibniz-Clarke se inicia imediatamente apoacutes Leibniz
enviar excertos de uma missiva agrave Princesa Carolina de Gales14 que por sua vez a envia
ao teoacutelogo newtoniano Samuel Clarke O conjunto da correspondecircncia eacute composto por
cinco cartas de Leibniz e cinco cartas de Clarke trocadas entre 1715 e 1716 portanto
muito proacuteximo da morte de Leibniz
A primeira carta daraacute o tom do debate e trata latu sensu de filosofia e teologia
natural com ecircnfase na discussatildeo sobre o real atributo do espaccedilo e do tempo Para fins de
nossa anaacutelise nos concentraremos na primeira parte (sectsect 1-53) da quinta carta de Leibniz
ou resposta agrave quarta carta reacuteplica de Clarke Nesta carta acreditamos que Leibniz sintetiza
as principais proposiccedilotildees de sua criacutetica a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano assim
como tambeacutem caracteriza sua proacutepria noccedilatildeo de espaccedilo relacional Boa parte desta criacutetica
se fundamentaraacute sobre a violaccedilatildeo do princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis
Mas antes de analisarmos a quinta carta voltemos um pouco pois em sua
quarta reacuteplica a Leibniz (sectsect 3-4) Clarke registra a respeito da identidade dos
indiscerniacuteveis que quanto aos corpos compostos natildeo haveria a possibilidade de existirem
dois sujeitos perfeitamente semelhantes contudo quanto agraves partes da mateacuteria simples
seria possiacutevel a Deus criar duas partes semelhantes em tudo Isto natildeo implicaria diz ele
ser a mesma coisa pois ldquoacrescento que o lugar de uma dessas gotas natildeo seria o da outra
embora a situaccedilatildeo delas fosse uma coisa absolutamente indiferenterdquo15
Ao admitir a possibilidade de que Deus traga a existecircncia duas porccedilotildees de
mateacuteria em situaccedilotildees totalmente indiscerniacuteveis Clarke propotildee que a situaccedilatildeo destes
corpos seria discerniacutevel em funccedilatildeo apenas de suas posiccedilotildees no espaccedilo ou seja de seu
lugar especiacutefico fazendo do lugar um predicado (ou afecccedilatildeo) dos corpos a maneira
newtoniana Leibniz por sua vez se posicionaraacute contrariamente a estaacute afirmaccedilatildeo
sustentando sua argumentaccedilatildeo como mostraremos na violaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo
suficiente e do princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis
Em resposta a esta carta de Clarke Leibniz assinala que a filosofia primeira
foi pouco fecunda e demonstrativa devido ao fato de que os filoacutesofos embora
reconhecessem a importacircncia do princiacutepio da razatildeo suficiente assim como do princiacutepio
14 Guilhermina Carlota Carolina (1683 ndash1737) foi esposa do rei Jorge II e rainha consorte do Reino da Gratilde-Bretanha e do Reino da Irlanda de 1727 ateacute sua morte 15 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 188
31
da identidade dos indiscerniacuteveis estes natildeo foram razoavelmente empregados Do
princiacutepio da razatildeo suficiente se infere que todo acontecimento soacute vem a ser em virtude de
uma causa ou razatildeo Leibniz considera que se este princiacutepio fosse empregado
adequadamente natildeo seria asseverada a existecircncia de dois sujeitos absolutamente
indiscerniacuteveis pois como ele descreve no sect 21 da referida carta ldquose existissem [dois seres
iguais] Deus e a natureza agiriam sem razatildeo tratando a um de outro jeito que a outro
Assim pois Deus natildeo produz duas porccedilotildees de mateacuteria perfeitamente iguais e
semelhantesrdquo16
Este argumento se coloca frontalmente em oposiccedilatildeo a filosofia dos aacutetomos e
do vazio defendida tanto por Newton quanto pelos newtonianos Primeiramente porque
se natildeo eacute compatiacutevel com a sabedoria divina criar duas porccedilotildees de mateacuteria sejam elas
gotas ou aacutetomos exatamente iguais entatildeo aceitar a existecircncia de aacutetomos sem nenhuma
variedade ou movimento particular seria contraacuterio ao grande princiacutepio da razatildeo suficiente
Em segundo lugar porque sustenta que cada porccedilatildeo da mateacuteria pode ser
subdivida em outras movidas de modo diferente e nenhuma destas partes parece
inteiramente uma com a outra Desta forma o princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis17
contestaria a possibilidade de se encontrar na natureza dois corpos inteiramente
semelhantes Princiacutepio que tambeacutem refutaria a existecircncia de um espaccedilo totalmente
similar e mutualmente congruente onde natildeo seria possiacutevel distinguir uma parte da outra
Em vista disto para Leibniz o espaccedilo natildeo eacute mais que a ordem da coexistecircncia
das coisas notadas na simultaneidade delas O que implica na impossibilidade de um
universo material finito existir e se movimentar num espaccedilo infinito tal qual o espaccedilo
newtoniano pois como escreve ele no sect 29 da referida correspondecircncia
De fato aleacutem de natildeo haver espaccedilo real fora do universo material semelhante accedilatildeo seria sem finalidade seria trabalhar sem fazer nada agendo nihil agere Natildeo se produziria nenhuma mudanccedila observaacutevel fosse por quem fosse Satildeo imaginaccedilotildees dos filoacutesofos de noccedilotildees incompletas que fazem do espaccedilo uma realidade absoluta18
Agora de acordo com as premissas asseveradas por Leibniz se aceitarmos a
noccedilatildeo do espaccedilo absoluto newtoniano este espaccedilo fora do universo material (espaccedilo
vazio) seria indiscerniacutevel logo natildeo sendo possiacutevel atestar o movimento dos corpos posto
que o movimento seja a mudanccedila de situaccedilatildeo em relaccedilatildeo a alguma outra coisa chegando
16 Ibid p 196 17 Principium identitatis indiscernibilium 18 LEIBNIZ op cit p 198 grifo nosso
32
a um estado discerniacutevel do primeiro Se assim natildeo fosse o movimento seria apenas uma
ficccedilatildeo
Segundo Raquel Sapunaru em O conceito leibniziano de espaccedilo eacute
importante destacar que o conceito de situaccedilatildeo eacute fundamental para a anaacutelise do espaccedilo
leibniziano pois se deve atentar para o fato de que a situaccedilatildeo e o lugar satildeo apenas
abstraccedilotildees ou seja a situaccedilatildeo eacute apenas um modo do espaccedilo e o lugar seria uma
identificaccedilatildeo quantitativa desses modos ou das situaccedilotildees19
Por conseguinte o espaccedilo natildeo depende da situaccedilatildeo dos corpos mas eacute a ordem
da coexistecircncia que faz com que os corpos sejam situaacuteveis e pelos quais possuem uma
relaccedilatildeo de situaccedilatildeo entre si ao existirem20
Leibniz considera que assim como o tempo o espaccedilo soacute pode ser tomado na
sua idealidade ou seja o espaccedilo soacute ldquoexisterdquo enquanto ente de razatildeo por isto sua
existecircncia para aleacutem do mundo material deve ser interpretada como uma imaginaccedilatildeo isto
eacute uma ficccedilatildeo Pelas mesmas razotildees a existecircncia do espaccedilo vazio deve ser tambeacutem
objetada
Tal como Descartes Leibniz tambeacutem sustenta um espeacutecie de plenismo
cosmoloacutegico onde nenhum corpo pode ser movido senatildeo por outro corpo que o impele
sem interstiacutecio vazio Portanto qualquer operaccedilatildeo sobre um corpo que natildeo decorra da
atuaccedilatildeo material seraacute ou milagrosa ou imaginaacuteria21
Com tal caracteriacutestica compreender o espaccedilo como algo absoluto e
desprovido de corpos seria concebecirc-lo impassiacutevel e independente de Deus Se assim o
for o espaccedilo natildeo poderia ser entendido como uma propriedade de Deus ou ao modo
newtoniano como um Sensorium Dei Na mesma perspectiva o filoacutesofo alematildeo
questiona
Se o espaccedilo eacute a propriedade ou a afecccedilatildeo da substacircncia que estaacute no espaccedilo ele seraacute ora a afecccedilatildeo de um corpo ora de um outro corpo ora de uma substacircncia imaterial ora quando vazio de toda outra substacircncia material ou imaterial talvez do proacuteprio Deus Mas que estranha propriedade ou afecccedilatildeo que passa de sujeito para sujeito Assim sendo os sujeitos deixaratildeo seus acidentes como se fossem um haacutebito a fim de que outros sujeitos possam se revestir com eles Como pois se distinguiratildeo os acidentes e as substacircncias22
19 SAPUNARU O conceito leibniziano de espaccedilo 2012 p 91 20 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 186 21 Ibid p 199 22 Ibid p 200 grifo nosso
33
Neste momento Leibniz estaacute questionando aqui qual o estatuto predicativo
que estaacute associado a esta noccedilatildeo de espaccedilo independente pois se o espaccedilo deve ser
compreendido como uma propriedade ou afecccedilatildeo do que estaacute no espaccedilo logo (1) deve
ser material ou imaterial (2) se for material deve ser a afecccedilatildeo ora de um corpo ora de
outro (3) se for imaterial deve ser a afecccedilatildeo ora do vazio ou ateacute mesmo do proacuteprio Deus
Entretanto para o alematildeo a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto de Newton viola gravemente o
sistema predicativo da loacutegica claacutessica onde as substacircncias devem fazer deduzir de si
todos os predicados do sujeito a que se atribui esta noccedilatildeo Na loacutegica predicativa de
Leibniz o conceito do atributo ou predicado deve jaacute estaacute contido no sujeito Portanto
como assinala Raquel Sapunaru
[] toda predicaccedilatildeo mesmo relacional se verdadeira deve estar fundada em algum ponto da seacuterie de predicados que define esta substacircncia Inversamente natildeo eacute possiacutevel considerar que duas substacircncias diferentes tenham a mesma relaccedilatildeo de coexistecircncia com as outras substacircncias pois isso seria idecircntico a aceitar que o mesmo predicado se encontra simultaneamente em duas substacircncias23
Nesta esteira Leibniz assinala que tornar o espaccedilo uma propriedade de Deus
eacute abusar dos termos pois se o espaccedilo eacute a propriedade de Deus e se Deus estaacute no espaccedilo
entatildeo o sujeito estaria contido na propriedade Afirmar isto eacute extrapolar os limites do
raciociacutenio e da razatildeo posto que Deus natildeo poderia ser extenso E isso afetaria frontalmente
o esquema predicativo sujeito-predicado S estaacute em P ou P conteacutem S24
Assim para Leibniz o espaccedilo eacute o conjunto dos lugares compreendidos a
partir da razatildeo estabelecida entre os coexistentes com respeito a um determinado nuacutemero
de corpos que se mantecircm na mesma relaccedilatildeo de situaccedilatildeo Considerando que esta ordem de
relaccedilatildeo eacute estabelecida puramente no domiacutenio do ideal a noccedilatildeo enganosa de espaccedilo
absoluto eacute formada pelos homens segundo uma necessidade de encontrar fora da ordem
dos coexistentes uma identidade formal Como Leibniz descreve no famoso sect 47 da quinta
carta a Clarke
Eis como os homens chegam a formar a noccedilatildeo de espaccedilo Consideram que muitas coisas existem simultaneamente e acham nelas certa ordem de coexistecircncia segundo a qual a relaccedilatildeo entre umas e outras eacute mais ou menos simples eacute sua situaccedilatildeo ou distacircncia Quando acontece que um desses coexistentes modifica essa relaccedilatildeo a uma multidatildeo de outros sem que estes mudem entre si e que um receacutem-vindo adquire a relaccedilatildeo que o primeiro tivera com os outros diz-se que
23 SAPUNARU O conceito leibniziano de espaccedilo 2012 p 95 24 Cf Discurso de metafisica sect 8
34
veio ocupar seu lugar chama-se essa transformaccedilatildeo um movimento que se acha naquele que estaacute agrave causa imediata da transformaccedilatildeo E quando muitos ou mesmo todos mudassem conforme certas regras conhecidas de direccedilatildeo e velocidade poder-se-ia sempre determinar a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que cada um adquiriria para com o outro e mesmo a relaccedilatildeo que qualquer outro teria ou que ele teria para com outro qualquer se natildeo tivesse mudado ou o tivesse feito de outro modo Supondo e fingindo que entre esses coexistentes haja um nuacutemero suficiente de alguns que natildeo tenham tido transformaccedilatildeo em si dir-se-aacute que os que tem uma relaccedilatildeo com esses existentes fixos como outros anteriormente ocupam o mesmo lugar que estes uacuteltimos tinham tido Ora o que abrange todos esses lugares eacute que se chama espaccedilo Isso demonstra que para ter a ideia do lugar e por consequecircncia do espaccedilo basta considerar essas relaccedilotildees e as regras de suas transformaccedilotildees sem necessidade de imaginar aqui nenhuma realidade absoluta fora das coisas cuja situaccedilatildeo se considera E para dar uma espeacutecie de definiccedilatildeo lugar eacute aquilo que se diz ser o mesmo em relaccedilatildeo a A e a B quando a relaccedilatildeo de coexistecircncia de B com C E F G etc conveacutem inteiramente com a relaccedilatildeo de coexistecircncia que A tivera com os mesmos supondo-se que natildeo tenha havido nenhuma causa de mudanccedila em C E F G etc25
Portanto para Leibniz o espaccedilo eacute o resultado dos lugares tomados
conjuntamente na medida em que satildeo pensados por noacutes somente enquanto entes de razatildeo
Deve-se ainda considerar que o lugar difere da relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que
ocupa o lugar Tanto o corpo A quanto o corpo B ocupam o mesmo lugar Todavia a
relaccedilatildeo de A para com os corpos fixos natildeo seraacute igual agraves relaccedilotildees estabelecidas entre B
que tomaraacute seu lugar com esses mesmos corpos fixos Isto porque corpos diferentes natildeo
poderiam ter as mesmas relaccedilotildees individuais pois as relaccedilotildees devem se referenciar pelas
qualidades intriacutensecas das substacircncias individuais ou Mocircnadas26
4 A Mocircnada como causa imediata da mudanccedila e do movimento
Para o filoacutesofo de Leipzig os homens formam a noccedilatildeo de espaccedilo atraveacutes da
criaccedilatildeo de identidades e compreendem estas relaccedilotildees como independentes e extriacutensecas
aos sujeitos chamando a isto de lugar e de espaccedilo Entretanto esta aplicaccedilatildeo do espiacuterito
que considera as relaccedilotildees de coexistecircncia enquanto certa ordem externa aos corpos natildeo
poderia se dar senatildeo no domiacutenio dos entes de razatildeo Por isso ao natildeo se tratar nem de
substacircncia nem de acidentes o espaccedilo deve ser uma denominaccedilatildeo puramente ideal cuja
consideraccedilatildeo natildeo deixa de ser uacutetil
25 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 201 grifo nosso 26 Ibid p 202
35
Todavia para ele se aceitarmos a noccedilatildeo de um espaccedilo tota simul newtoniano
teremos dificuldades para a correta designaccedilatildeo sobre quais corpos se encontram em
movimento num dado lugar do espaccedilo Neste sentido Leibniz esclarece ao final do jaacute
referido sect 47 sobre as consequecircncias da adoccedilatildeo desta noccedilatildeo incorreta uma vez que
[] os vestiacutegios [les traces] dos moacuteveis que eles deixam agraves vezes nos imoacuteveis sobre os quais exercem seu movimento deram agrave imaginaccedilatildeo dos homens a ocasiatildeo de conceber essa ideia como se restasse ainda algum vestiacutegio mesmo sem a existecircncia de qualquer coisa imoacutevel mas isso natildeo eacute senatildeo ideal e traz somente como consequecircncia que se existisse algum imoacutevel a gente o poderia designar [deacutesigner] E eacute essa analogia que faz com que se imaginem lugares vestiacutegios e espaccedilos ainda que essas coisas natildeo passem na verdade de relaccedilotildees e de forma alguma natildeo sejam uma realidade absoluta 27
Nestes termos Leibniz se contrapotildee a finitude do universo material e a
realidade absoluta do espaccedilo desprovido de corpos agrave moda newtoniana principalmente
porque a proposiccedilatildeo de um espaccedilo absoluto implicaria na impossibilidade da observaccedilatildeo
do movimento das coisas materiais pois nesta hipoacutetese natildeo haveria mudanccedila de situaccedilatildeo
observaacutevel Assim se o universo material for finito e capaz de passear no espaccedilo infinito
tal deslocamento natildeo poderia ser observado uma vez que natildeo haveria mudanccedila de
situaccedilatildeo dos corpos neste espaccedilo homogecircneo e infinito
Necessitariacuteamos para determinar verdadeiramente o movimento da
manutenccedilatildeo dos vestiacutegios a partir das partes imutaacuteveis do espaccedilo e do tempo Todavia
para Leibniz foram estas noccedilotildees incompletas que deram aos homens a imaginaccedilatildeo de
conceber aquela ideia de espaccedilo per se
O movimento por sua vez soacute poderia ser observaacutevel na hipoacutetese de mudanccedila
de situaccedilatildeo entre os corpos no espaccedilo isto quer dizer mudanccedila de situaccedilatildeo na ordem das
relaccedilotildees Por este acircngulo para o alematildeo ldquoo movimento eacute independente da observaccedilatildeo
mas natildeo da observabilidade Natildeo haacute movimento quando natildeo existe mudanccedila observaacutevel
E mesmo quando natildeo haacute mudanccedila observaacutevel natildeo haacute mudanccedila de modo algumrdquo28
Leibniz destaca no sect 53 da quinta carta a Clarke que a partir da leitura dos
Principia VIII definiccedilatildeo e de seu respectivo escoacutelio natildeo foi possiacutevel provar e
demonstrar o espaccedilo absoluto como uma realidade independe dos corpos como propotildee
Newton Sustenta entatildeo que o espaccedilo eacute puramente uma consequecircncia das relaccedilotildees de
situaccedilatildeo que pertencem ao domiacutenio do ideal enquanto entes de razatildeo
27 Ibid p 202-203 grifo nosso 28 Ibid p 204
36
Assim o primeiro ponto de divergecircncia entre as noccedilotildees de espaccedilo defendidas
por Leibniz e Newton se concentra na real atribuiccedilatildeo do espaccedilo Para Newton o espaccedilo
eacute absoluto homogecircneo e infinito para aleacutem da mateacuteria do mundo Por seu turno para
Leibniz natildeo eacute possiacutevel falar de espaccedilo ou lugar real desprovido de mateacuteria
Como jaacute anotado Leibniz concentra fundamentalmente sua criacutetica apoiado
em dois princiacutepios estruturantes de seu pensamento O princiacutepio da razatildeo suficiente e o
princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis No primeiro se postula que nada vem a ser
senatildeo por uma causa ou razatildeo suficiente tendo como causa uacuteltima agrave sabedoria divina O
segundo derivado do primeiro afirma que natildeo pode haver na natureza duas coisas que
diferem solo numero
Ademais argumenta que natildeo podem existir na natureza duas coisas que sejam
qualitativamente iguais e quantitativamente diferentes pois soacute eacute possiacutevel observar a
diferenccedila quantitativa ao passo que se observa as diferenccedilas qualitativas
Consequentemente soacute eacute possiacutevel observar a mudanccedila quando se observa a causa imediata
da transformaccedilatildeo ou a verdadeira causa da mudanccedila Proposiccedilatildeo que se apresenta em
conformidade com sua noccedilatildeo de substacircncia completa onde os acidentes natildeo passeiam
fora dos sujeitos
A noccedilatildeo leibniziana de substacircncia teraacute sua formulaccedilatildeo definitiva em um dos
uacuteltimos tratados produzidos na fase madura de Leibniz e provavelmente seu texto mais
conhecido denominado de Princiacutepios da filosofia ditos a Monadologia escrito em
francecircs no ano de 1714 Este texto apresenta os temas essenciais da filosofia leibniziana
fundamentada no novo conceito de substacircncia ou Mocircnadas
Leibniz afirma que por serem substacircncias simples que entram nos compostos
as mocircnadas satildeo fechadas natildeo podendo ser alterada nem modificada por outra substacircncia
Como ele descreve no sect 7 da Monadologia
As Mocircnadas natildeo tecircm janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou sair Os acidentes natildeo podem destacar-se nem passear fora das substacircncias como outrora as espeacutecies dos Escolaacutesticos Assim nem substacircncia nem acidente podem vir de fora para dentro da Mocircnada29
Dessa forma se as mocircnadas satildeo substacircncias simples inextensas e sem forma
necessitam de algo que as diferencie umas das outras jaacute que natildeo devem diferir solo
29 LEIBNIZ A monadologia 1983 p 105
37
numero Eacute necessaacuterio portanto que as mocircnadas difiram entre si uma vez que segundo
Leibniz na natureza natildeo haacute dois sujeitos iguais
Neste sentido as mudanccedilas nas mocircnadas devem ter origem num princiacutepio
interno que consiste na especificaccedilatildeo da variedade e da mudanccedila que promove
naturalmente e gradativamente tais desdobramentos Portanto o conceito de substacircncia
deve envolver trecircs caracteriacutesticas baacutesicas unidade independecircncia e identidade na
mudanccedila
Tendo isto em vista aquilo que denominariacuteamos de espaccedilo fiacutesico eacute a ordem
de relaccedilatildeo das coexistecircncias e o movimento dos corpos eacute discerniacutevel natildeo por
caracteriacutesticas extriacutensecas como o espaccedilo absoluto newtoniano mas decorrentes das
qualidades originariamente intriacutensecas das substacircncias
Portanto na opiniatildeo de Leibniz se admitiacutessemos a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto
newtoniano como possiacutevel teriacuteamos que reconhecer como consequecircncia que o universo
criado ocuparia um espaccedilo homogecircneo e natildeo haveria razatildeo para Deus criar uma coisa
aqui e natildeo ali Por outro lado aderindo a sua noccedilatildeo de espaccedilo relacional o universo seria
ocupado heterogeneamente e haveria uma razatildeo suficiente para a criaccedilatildeo de um sujeito
num determinado lugar (locus) com determinada relaccedilatildeo de situaccedilatildeo (situs) no espaccedilo
Condiccedilatildeo que permitiria a observaccedilatildeo de corpos em movimento pois os traccedilos da
mudanccedila natildeo estatildeo no espaccedilo tomado em sua forma absoluta mas na causa imediata da
mudanccedila e do movimento ou seja na proacutepria substacircncia ou Mocircnada
5 Consideraccedilotildees finais
A partir da argumentaccedilatildeo que desenvolvemos eacute possiacutevel dizer que Newton
assenta sua filosofia do espaccedilo e do movimento contrariando os princiacutepios da razatildeo
suficiente e da identidade dos indiscerniacuteveis O que na opiniatildeo de Leibniz demandaria a
impossibilidade da observaccedilatildeo do movimento e se o movimento natildeo pode ser observado
entatildeo natildeo haacute movimento real
Por outro lado se o espaccedilo como assinala Leibniz eacute a ordem de coexistecircncia
entre os corpos entatildeo o movimento seraacute uma mudanccedila relativa de situaccedilatildeo de um corpo
com respeito a outros corpos fixos chegando a uma situaccedilatildeo discerniacutevel da primeira Esta
relaccedilatildeo de situaccedilatildeo natildeo se daacute extrinsecamente pois segue das expressivas determinaccedilotildees
intriacutensecas da substacircncia ou Mocircnada
38
Em vista disto estamos agora em condiccedilotildees de compreender aquilo que
Leibniz postulara no sect 8 da Monadologia onde propotildee que o movimento soacute pode ser
observado levando-se em consideraccedilatildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas da substacircncia diz
ele
Se as substacircncias simples em nada diferissem [diffeacuteraient] pelas suas qualidades [qualiteacutes] natildeo haveria meio de se aperceber qualquer modificaccedilatildeo [ou movimento] nas coisas ([changement dans les choses] pois o que estaacute no composto natildeo pode vir senatildeo dos ingredientes simples e as Mocircnadas natildeo tendo qualidades seriam indistinguiacuteveis [indistinguables] umas das outras visto natildeo diferirem tambeacutem em quantidade e por conseguinte admitido o pleno cada lugar receberia sempre no movimento soacute o equivalente do que antes contivera e um estado de coisas seria portanto indiscerniacutevel de outro30
Ora parece que Leibniz esta sinalizando aqui para a necessidade de
observarmos que se as substacircncias simples natildeo se distinguirem de alguma forma toda a
descriccedilatildeo dos eventos fiacutesicos estaria prejudicada posto que natildeo seria possiacutevel discernir
entre os diversos estados de coisas em um sistema cosmoloacutegico pleno
Neste sentido para Leibniz a consideraccedilatildeo do movimento deve fundar-se nas
qualidades intriacutensecas das mocircnadas pois estatildeo nelas agraves particularidades reais que as
tornam discerniacuteveis umas das outras o que nos permite distinguir as mudanccedilas de estado
ou de movimento Por isto as mocircnadas satildeo aquilo que confere alguma ldquosubstacircnciardquo aos
corpos que estatildeo em constante transformaccedilatildeo e mudanccedila
Ademais se as mocircnadas satildeo fechadas e as mudanccedilas de estado ou movimento
de cada corpo diz respeito necessariamente as mocircnadas entatildeo soacute pode residir nela agrave causa
imediata da mudanccedila e do movimento Portanto natildeo seria necessaacuterio como pensara
Newton recorrer ao espaccedilo absoluto como fundamento proacuteprio do movimento onde seria
registrada a continuidade das vaacuterias mudanccedilas das relaccedilotildees de situaccedilotildees dos corpos
Com tal caracteriacutestica o vestiacutegio da continuidade das vaacuterias mudanccedilas seria
registrado pela apercepccedilatildeo do que se passa nos corpos sob o ponto de vista
individualizado das mocircnadas Dito de outra maneira as mocircnadas lembram quando o
corpo saiu do lugar e espelham as mudanccedilas do estado de coisas Portanto as mocircnadas
satildeo a causa imediata ou proacutexima da transformaccedilatildeo satildeo a causa proacutepria da mudanccedila ou
do movimento como Leibniz jaacute havia assinalado no sect 47 da quinta carta a Clarke
30 LEIBNIZ A monadologia 1983 p 105 grifo nosso
39
Referecircncias bibliograacuteficas BENIacuteTEZ Laura ROBLES Joseacute A De newton y los newtonianos entre descartes y berkeley Bernal Universidade Nacional de Quilmes 2006 DESCARTES Reneacute Princiacutepios da filosofia Traduccedilatildeo Heloisa da Graccedila Burati Satildeo Paulo Rideel 2005 ______ Meditaccedilotildees sobre filosofia primeira Traduccedilatildeo Fausto Castilho Campinas editora Unicamp 2004 LEIBNIZ G W A Monadologia e Correspondecircncia com Clarke In Coleccedilatildeo Os Pensadores Traduccedilatildeo de Marilena de Souza Chauiacute Satildeo Paulo Abril cultural 1983 PERKINS Franklin Compreender Leibniz Traduccedilatildeo de Marcus Penchel Petroacutepolis Vozes 2009 NEWTON Isaac Principia princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural - I Traduccedilatildeo Andreacute Koch Torres Assis e outros 2ordf ed Satildeo Paulo Edusp 2012 ______ Principia princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural - II Traduccedilatildeo Andreacute Koch Torres Assis e outros Satildeo Paulo Edusp 2012 ______ O peso e o equiliacutebrio dos fluidos e outros In Coleccedilatildeo Os Pensadores Traduccedilatildeo Luiz Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Nova Cultural 1983 RUSSEL Bertrand A critical exposition of the Philosophy of Leibniz New York Routledge 1996 SAPUNARU Anna Raquel O conceito leibniziano de espaccedilo distacircncias metafiacutesicas e proximidades fiacutesicas do conceito newtoniano (Coleccedilatildeo teses) Satildeo Paulo Editora Livraria da Fiacutesica 2012
A QUESTAtildeO DO DUALISMO E DA LINGUAGEM EM BERGSON
Edvan Aragatildeo Santos1
RESUMO O objetivo central neste artigo eacute trazer agrave tona o debate sobre a questatildeo da linguagem na filosofia de Henri Bergson Para tanto traccedilaremos nosso percurso a partir do notoacuterio estabelecimento da diferenccedila de natureza entre espaccedilo e tempo e o consequente reconhecimento das duas esferas da subjetividade Ao apresentar a problemaacutetica do dualismo na subjetividade e a cisatildeo entre nossa consciecircncia e o objeto Bergson tem como querela a dificuldade da linguagem abstrata e espacial em apreender a realidade da duraccedilatildeo do nosso eu mais profundo Palavras-chave Linguagem Dualismo Subjetividade Duraccedilatildeo Espaccedilo
ABSTRACT The central aim of this article is to bring to the fore the debate on the question of language in the philosophy of Henri Bergson To do so we will trace our route from the notorious establishment of the difference in nature between space and time and the consequent recognition of the two spheres of subjectivity In presenting the problem of dualism in subjectivity and the split between consciousness and the object Bergson has as focus of his discussion the difficulty of abstract and spatial language in apprehend the reality of the duration of our deepest self Keywords Language Dualism Subjectivity Duration Space
Qual o limite de nossa linguagem Ela expressa de fato a realidade das coisas
Estas questotildees moveram os debates em muitos momentos da filosofia bergsoniana o
posicionando quase sempre em um empasse no qual ficou evidente a dificuldade de
encontrar uma linguagem adequada ao fazer filosoacutefico Veremos que para o filoacutesofo a
linguagem sobretudo no seu livro Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia ganha
um sentido funcional ao mesmo tempo que um obstaacuteculo agrave apreensatildeo da nossa natureza
mais profunda requerendo para tanto um verdadeiro exerciacutecio de desconstruccedilatildeo do seu
sentido usual Esta problemaacutetica se dirige diretamente ao problema do dualismo subjetivo
neste mesmo livro e a notoacuteria distinccedilatildeo entre espaccedilo e tempo problema tatildeo caro agrave sua
obra
Para Bergson lidamos em geral com uma noccedilatildeo de tempo espacial em nossa
vida cotidiana e praacutetica que viabiliza nossa accedilatildeo no mundo a organizaccedilatildeo da vida Mas
1 Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Satildeo Paulo edvanaragaosantosgmailcom
41
findamos por ampliar o alcance da mistura entre espaccedilo2 e tempo de tal modo que a
realidade pura da duraccedilatildeo aquela que nos habita e que constitui o que haacute de mais genuiacuteno
em noacutes passa a ser apreendida por esse prisma Desse modo eacute a um eu homogecircneo claro
e dotado de uma multiplicidade quantitativa poderiacuteamos dizer que normalmente nos
referimos quando pensamos em noacutes mesmos Dito de outro modo eacute sob a eacutegide de um eu
espacializado e simboacutelico que nos conhecemos Certamente trata-se de um recurso da
consciecircncia para assimilar em sua proacutepria interioridade o que na verdade lhe eacute
ininteligiacutevel procedimento que natildeo erradica a realidade pungente da duraccedilatildeo em suas
instacircncias mais recocircnditas Ela continua laacute enquanto dados que lhe satildeo imediatos mas
cada vez mais inacessiacuteveis Natildeo obstante essa estrateacutegia tem consequecircncias e elas
repercutem drasticamente em nossa vida Nessa perspectiva Bergson se debruccedila sobre um
outro dualismo que irrompe no acircmago de nossa subjetividade
Para nos remeter a essa cisatildeo no interior da vida psicoloacutegica a anaacutelise
bergsoniana retomando as conclusotildees de seu percurso volta a problematizar a radical
diferenccedila entre a multiplicidade pertinente agrave consciecircncia pura e aquela clara e distinta que
encontramos na representaccedilatildeo do tempo homogecircneo ldquoEm siacutentese seria preciso admitir
duas espeacutecies de multiplicidade dois sentidos possiacuteveis da palavra distinguir duas
concepccedilotildees uma qualitativa e outra qualitativa da diferenccedila entre o mesmo e o outrordquo3
No entanto argumenta ele estamos habituados a tomar uma multiplicidade pela outra ndash ou
o mesmo pelo outro ndash equiacutevoco que nos defronta com a problemaacutetica da linguagem
Afinal esse haacutebito de confundir as multiplicidades correlaciona-se com a dificuldade que
encontramos para expressar linguisticamente a diferenccedila entre ambas Eacute indubitaacutevel o
enlace entre linguagem e espaccedilo dado que o segundo eacute pressuposto para o advento da
primeira a qual nos eacute imprescindiacutevel para pensar e para conviver Daiacute deriva que ao nos
empenharmos em expressar as realidades muacuteltiplas e indistintas ou seja aquelas que
duram tal como os nossos estados de alma terminamos por distinguir os elementos que as
constituem exteriorizando-os e tratamos de pensaacute-las como se elas se apresentassem jaacute
feitas estanques em estado de pleno acabamento Assim quando nos remetemos agrave
heterogeneidade dos vaacuterios estados de consciecircncia - mesmo se experimentamos uma
2 Nos referimos aqui ao debate claacutessico bergsoniano no qual o tempo enquanto duraccedilatildeo se distingue do espaccedilo no entanto nossa experiecircncia na vida cotidiana nos remete a um misto entre tempo e espaccedilo e portanto costumeiramente temos uma visatildeo deturpada pelo espaccedilo da experiecircncia do tempo real tal como podemos observar na relaccedilatildeo entre uma marcaccedilatildeo dos ponteiros do reloacutegio e o tempo da nossa consciecircncia interior 3 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 85 Grifo do autor
42
organizaccedilatildeo contiacutenua de elementos que se interpenetram transmudam-se e crescem - ao
traduzi-los em discurso verbal acabamos por desnaturaacute-los Por essa razatildeo diz Bergson
ao utilizar o termo vaacuterios jaacute exteriorizamos os instantes justapomos os momentos
transmudando em multiplicidade numeacuterica a multiplicidade qualitativa pertinente agrave
experiecircncia que temos com a representaccedilatildeo das realidades externas Numa palavra ainda
que tenhamos a experiecircncia iacutentima da fusatildeo da transformaccedilatildeo e da indistinccedilatildeo ao pensar
a nossa interioridade e ao traduzi-la em discurso enfim ao representaacute-la aprendemos pelo
espaccedilo um real que eacute apenas tempo Nos termos do autor
Eacute a imagem deste desenvolvimento uma vez efectuado que atribuiacutemos necessariamente os termos destinados a expressar o estado de uma alma que ainda o natildeo tivesse efectuado estes termos estatildeo pois manchados por um viacutecio original e a representaccedilatildeo de uma multiplicidade sem relaccedilatildeo com o nuacutemero e com o espaccedilo ainda que clara para um pensamento que entra em si e se abstrai natildeo pode traduzir-se para a linguagem do senso-comum4
A despeito das dificuldades com que a linguagem nos defronta eacute preciso
insistir na diferenccedila de natureza entre esses dois tipos de multiplicidades Tarefa ante a qual
o autor natildeo vacila e que procuramos acompanhar nessas paacuteginas Natildeo obstante malgrado
esse esforccedilo de inspeccedilatildeo teoacuterica vimos que na praacutetica a ideia da multiplicidade distinta
estaacute sempre permeada pela multiplicidade qualitativa de modo que natildeo podemos pensar a
primeira sem que a outra desponte ou se aninhe sutilmente na intimidade da alma
Persistecircncia que se verifica insiste o filoacutesofo mesmo quando contamos unidades eis
porque findamos por dar a elas ndash agraves unidades - um dinamismo e por integraacute-las numa
continuidade quase afetiva Ou seja nesse processo mesmo desenhando as partes
exteriores umas agraves outras distinguindo-as no fundo atinamos a uma continuidade ou a uma
possiacutevel relaccedilatildeo entre as partes que viabiliza a apreensatildeo de uma continuidade de modo
que seria liacutecito dizer que agrave multiplicidade homogecircnea acompanha sempre o espectro da
multiplicidade do tipo heterogecircnea Remetendo-nos agrave anaacutelise do nuacutemero anteriormente
tecida Bergson afirmaraacute
Em siacutentese o processo pelo qual contamos as unidades e com elas formamos uma multiplicidade distinta apresenta um duplo aspecto por um lado supomo-las idecircnticas o que natildeo se pode conceber a natildeo ser com a condiccedilatildeo de que estas unidades se alinhem num meio homogecircneo mas por outro lado a terceira unidade por exemplo ao acrescentar-se agraves outras duas modifica a natureza o aspecto e como que o ritmo do conjunto sem esta muacutetua penetraccedilatildeo e este processo de
4 Ibidem p 86
43
certo modo qualitativo natildeo haveria adiccedilatildeo possiacutevel ndash Eacute pois graccedilas agrave qualidade da quantidade que formamos a ideia de uma quantidade sem qualidade5
No que concerne agraves realidades temporais noacutes o vimos essa transposiccedilatildeo para
uma natureza quantitativa soacute ocorreraacute com o exerciacutecio de figuraccedilatildeo simboacutelica No entanto
natildeo eacute preciso muito esforccedilo para chegar a essa figuraccedilatildeo que violenta a natureza essencial
da duraccedilatildeo e daacute a ela uma conotaccedilatildeo similar agrave da multiplicidade quantitativa Normalmente
graccedilas a um processo em que colocamos como concomitantes e mesmo como anaacutelogos os
dois tipos de multiplicidades consideramos a adiccedilatildeo como um fenocircmeno que permite tanto
o dado qualitativo que promove a mudanccedila da totalidade quanto o aspecto quantitativo
projetado na forma numeacuterica de um espaccedilo Em virtude dessa identificaccedilatildeo assinala
Bergson lanccedilamos com muita facilidade a multiplicidade indistinta no espaccedilo
conformando-a aos moldes da multiplicidade numeacuterica e lidamos com ambas como se natildeo
houvesse entre elas profundas diferenccedilas de natureza ldquoDaiacute a possibilidade de desdobrar no
espaccedilo sob a forma de multiplicidade numeacuterica o que chamamos uma multiplicidade
qualitativa e de considerar uma como equivalente da outrardquo6 Essa possibilidade de
equivalecircncia entre as duas multiplicidades eacute bastante factiacutevel insiste o autor quando se
trata de um fenocircmeno exterior Isto porque para noacutes ele toma a forma tambeacutem de um
movimento mesmo que homogecircneo porque a siacutentese que nossa consciecircncia opera ao dotar
de continuidade o passado com o presente permite que esses fenocircmenos exteriores ganhem
qualidade e duraccedilatildeo Daiacute que tanto a projeccedilatildeo do tempo no espaccedilo quanto a percepccedilatildeo dos
dados exteriores formam na consciecircncia o mesmo modo de representaccedilatildeo Em imagens
bergsonianas
Assim quando ouvimos uma seacuterie de pancadas de martelo os sons formam uma melodia indivisiacutevel enquanto sensaccedilotildees puras e datildeo ainda origem ao que chamamos um progresso dinacircmico mas sabendo que a mesma causa objectiva age decompomos este progresso em fase que consideramos entatildeo como idecircnticas e desta multiplicidade de termos idecircnticos que natildeo se podem conceber senatildeo pelo desdobramento no espaccedilo chegamos ainda necessariamente agrave ideia de um tempo homogecircneo imagem simboacutelica da duraccedilatildeo real7
Ao voltar a esta anaacutelise da mistura entre duraccedilatildeo espaccedilo Bergson nos conduz
a um importante momento de seu primeiro livro Trata-se do modo pelo qual essa
5 Ibidem p 86 e 87 6 Ibidem p 87 7 Ibidem p 87 e 88
44
permissibilidade entre as duas multiplicidades repercutiraacute na vivecircncia de nossa intimidade
Ou seja estabelece-se uma relaccedilatildeo entre as duas formas de multiplicidade e as dimensotildees
de nosso proacuteprio eu Como assinala o autor a interioridade de cada um de noacutes acaba
revestindo-se tambeacutem dessa dupla direccedilatildeo Destarte haacute o eu que toca a superfiacutecie da
realidade obtendo algo dessa exterioridade das coisas isto eacute encontrando esse tempo
homogecircneo essa realidade simboacutelica na qual nossas sensaccedilotildees sucessivas conservam e se
assemelham a algo dessa exterioridade o que permite a concomitacircncia entre nossas
sensaccedilotildees e as coisas Esta dimensatildeo superficial do eu espelha com muita coerecircncia o
modo pelo qual representamos as coisas fora de noacutes e revela uma interioridade tatildeo distinta
justaposta e exteriorizada quanto elas Nesse sentido podemos afirmar que o contato e a
relaccedilatildeo com as coisas exteriores reverbera sobre as camadas mais superficiais de nossa
subjetividade de sorte que nela se reflete a exterioridade ldquoreciacuteproca que caracteriza
objetivamente as suas causasrdquo8 Assim como apreendemos as coisas materiais num meio
homogecircneo configura-se uma interioridade tambeacutem lanccedilada num quadro vazio que eacute
vislumbrada como se materialidade fosse Um eu simboacutelico assim aflora Mas para aleacutem
dessa subjetividade exteriorizada um outro eu atesta sua presenccedila nas dimensotildees mais
distantes da exterioridade haacute um eu profundo que sente e delibera isto eacute aquele em que
os estados de alma estatildeo imbricados uns aos outros Aqui delineia-se um interioridade que
eacute puro devir progresso ininterrupto e auto-organizaccedilatildeo constante Totalmente distinta
pois dessa simbolizaccedilatildeo do eu superficial
No entanto parece sempre que o eu superficial e o eu profundo misturam-se
um ao outro a ponto de terem uma mesma duraccedilatildeo tal como fundimos as duas formas de
multiplicidade Haacute portanto uma extrapolaccedilatildeo da representaccedilatildeo simboacutelica que apreende
em seus tentaacuteculos realidades que a ela natildeo se coadunam Bergson assevera ldquoO que
demonstra perfeitamente que a nossa concepccedilatildeo ordinaacuteria da duraccedilatildeo se deve a uma
invasatildeo gradual do espaccedilo no domiacutenio da consciecircncia pura ()rdquo9 Para fundamentar essa
invasatildeo Bergson alude ainda a situaccedilotildees do nosso cotidiano nas quais podemos distinguir
dois modos de apreensatildeo do tempo aquele imediato o da duraccedilatildeo-qualidade em que
percepcionamos o sentimento da totalidade da mudanccedila sutil e qualitativa tal qual o
exemplo da sinfonia e aquele materializado contado em que numeramos os momentos
distintos um dos outros Ele volta assim ao exemplo do reloacutegio
8 Ibidem p 88 9 Ibidem p 88
45
No momento em que escrevo estas linhas o reloacutegio ao lado bate as horas mas o meu ouvido distraiacutedo soacute se apercebe depois de algumas terem soado portanto natildeo as contei E no entanto basta-me um esforccedilo de atenccedilatildeo retrospectiva para somar as quatro batidas jaacute produzidas e acrescenta-las agraves que ouccedilo Se entrando em mim me interrogo mais cuidadosamente sobre o que acaba de acontecer caio na conta de que os quatro primeiros sons impressionaram o meu ouvido e ateacute emocionaram minha consciecircncia mas que as sensaccedilotildees produzidas por cada um deles em vez de se justaporem se fundiram umas com as outras de maneira a dotar o conjunto de um aspecto proacuteprio de maneira a fazer dele uma espeacutecie de frase musical10
Desse modo nesse exemplo das toadas do reloacutegio similar ao do sino vemos
que ao percepcionar distraidamente as pancadas dos sons ao meu ouvido mesmo
colocando o elemento da conta na lembranccedila da sensaccedilatildeo essa sucessotildees natildeo nos aparecem
sobre a forma da justaposiccedilatildeo mas enquanto mudanccedila qualitativa como um transcorrer
em que o proacuteprio nuacutemero e sua contagem ganha um aspecto qualitativo Assim temos a
multiplicidade distinta em que percebemos os sons e ao mesmo tempo a memoacuteria de cada
uma delas nos permite apreendecirc-las como continuidade como se prolongassem umas nas
outras Eacute por esses dois aspectos que se fundem mas que satildeo distintos quanto agrave sua
natureza que Bergson postula que duas espeacutecies de multiplicidades se inscreveratildeo no eu
de cada um de noacutes Destarte eacute sob a siacutentese operada pela consciecircncia que nos deparamos
com uma versatildeo simboacutelica e homogecircnea do nossa vida interna
Ocorre que o eu superficial que eacute internamente distinto tal como os pontos
lanccedilados no espaccedilo e que reflete o modo pelo qual representamos a exterioridade finda por
projetar-se sobre as dimensotildees mais profundas da interioridade aquela que eacute puramente
temporal Essa tendecircncia acaba por camuflar esse eu fundamental que eacute de fato nossa
natureza substancial
Sem duacutevida tanto o eu superficial quanto o profundo nos satildeo constitutivos
mas eacute o primeiro que seraacute eleito como prioritaacuterio revestindo-se de uma relevacircncia absoluta
Ele seraacute via de regra concebido com a totalidade do que somos figurando simbolicamente
a dimensatildeo profunda do eu Processo em que a organicidade e o dinamismo profundo de
nossos estados de alma e dos afetos com sua densidade e sua vitalidade escapa-nos por
completo O espaccedilo adentra pois a dimensatildeo da duraccedilatildeo pura que nos habita de modo que
passamos a nos representar tal como representamos as coisas Em uacuteltima instacircncia o nosso
eu assume a tocircnica da interioridade inspecionada por uma psicologia desatenta e mesmo
10 Ibidem p 89
46
os afetos intensos os estados de alma que nada devem a exterioridade adquirem sua versatildeo
homogecircnea Mas como este eu mais profundo natildeo faz senatildeo uma uacutenica e mesma pessoa com o eu superficial parecem necessariamente duram da mesma maneira () nossa concepccedilatildeo ordinaacuteria da duraccedilatildeo se deve a uma invasatildeo gradual do espaccedilo no domiacutenio da consciecircncia pura ()11
Cumpre frisar como reconhece o autor que esse processo de subversatildeo e perda
de noacutes mesmos digamos assim constitui um caminho do qual natildeo podemos nos esquivar
Afinal como tantas vezes sustentado nos textos bergsonianos antes de sonhar o homem
precisa viver Para viver cumpre comunicar organizar a vida agir no mundo com os outros
conviver tolerar negociar ceder Ou seja se de direito a consciecircncia eacute pura
temporalidade fusatildeo e organizaccedilatildeo progressiva de si de fato eacute o eu homogecircneo que nos
permite viver e sobreviver eacute por meio da dimensatildeo superficial de nossa subjetividade que
alicerccedilamos nossa inserccedilatildeo no mundo humano O texto
A razatildeo estaacute em que a nossa vida exterior e por assim dizer social tem para noacutes mais importacircncia praacutetica do que a nossa existecircncia interior e individual Tendemos instintivamente a solidificar as nossas impressotildees para as exprimir mediante a linguagem Daqui confundirmos o proacuteprio sentimento que estaacute em perpetua mudanccedila com o seu objecto exterior permanente e sobretudo com a palavra que exprime esse objecto12
Essas consideraccedilotildees atestam pois que eacute o eu simboacutelico que prevalece eacute ele
que priorizamos e que temos em mente quando alimentamos a ideacuteia de que somos um
sujeito de que o conhecemos clara e distintamente Eacute ele que atesta a materialidade de
nossas vidas e que nos abre as vias da exploraccedilatildeo e do conhecimento do mundo Dada a
prioridade deste eu matemaacutetico e numeacuterico em nossas urgecircncias ligadas agrave sobrevivecircncia
ampliamos o seu alcance Sem este eu solidificado de fato a vida humana natildeo se
constituiria Bergson interroga ldquoSe cada um de noacutes vivesse uma vida puramente
individual se natildeo houvesse nem sociedade e nem linguagem a nossa consciecircncia captaria
sob esta forma indistinta a seacuterie de estados internosrdquo13 A resposta eacute peremptoriamente
negativa Mesmo destituiacutedos desses atributos ainda alinhariacuteamos estes estados em um
meio homogecircneo A intuiccedilatildeo de um espaccedilo homogecircneo pontua fortemente o autor
constitui uma preparaccedilatildeo para a sociabilidade ela nos diferencia dos animais consolida
11 Ibidem p 88 12 Ibidem p 91 13 Ibidem p 95
47
nossa capacidade de abstraccedilatildeo de representaccedilatildeo desse meio exterior permitindo que ele
se torne para noacutes objeto de conhecimento e locus de accedilatildeo
Mas Bergson natildeo deixa de apontar que para aleacutem da absoluta necessidade eacute
tambeacutem por comodidade que repousamos mais facilmente nessa dimensatildeo superficial do
eu a qual assume comumente o perfil das conveniecircncias e das frivolidades sociais Sem
duacutevida eacute cocircmodo alinhar os objetos colocando-os uns distintos uns dos outros o
alinhamento dos objetos e a utilizaccedilatildeo da linguagem dotadas de sentidos fixos e
consensuais facilita enormemente nosso controle sobre as coisas Ademais a percepccedilatildeo da
duraccedilatildeo pura eacute algo muito nebuloso obscuro exige um esforccedilo que nada tem a ver com a
loacutegica da eficaacutecia que pauta a operacionalizaccedilatildeo da vida Nesse sentido a capacidade de
espacializaccedilatildeo cauciona-nos para a vida praacutetica e abre-nos um leque infinito de
possibilidades de construccedilatildeo do mundo humano Aspecto que Bergson de modo algum
negligencia e que aprofundaraacute em seus trabalhos posteriores
No momento entretanto importa considerar o fato de que esses aspectos
justificam nossa preferecircncia pela representaccedilatildeo superficial do eu em detrimento das
instacircncias mais inacessiacuteveis as quais aos olhos da inteligecircncia regida pela faculdade da
espacializaccedilatildeo seratildeo sempre indiacutecios de confusatildeo de estranhamento e de eficiecircncia nula
Mas a despeito dos imperativos e das veleidades que nos fazem priorizar o eu superficial e
tomaacute-lo pela totalidade do que somos por mais que o eu simboacutelico prevaleccedila e atue como
um verdadeiro simulacro de nossa profundidade Bergson sublinha que essa realidade
heterogecircnea natildeo pode ser erradicada Ela viceja em noacutes e nos eacute sempre presente tal como
a multiplicidade qualitativa que ronda multiplicidade quantitativa O que ocorre eacute que a
consciecircncia anseia pela representaccedilatildeo simboacutelica de si ao priorizaacute-la finda por se afastar do
que traz em si de mais fundamental distanciando-se de uma realidade que lhe deveria ser
imediata Mas ela natildeo logra pulverizar ou minimizar a natureza de sua mais profunda
intimidade Bergson o assinala com um texto lapidar
Distingamos pois para concluir duas formas da multiplicidade duas apreciaccedilotildees muito diferentes da duraccedilatildeo dois aspectos da vida consciente Sob a duraccedilatildeo homogecircnea siacutembolo extensivo da duraccedilatildeo verdadeira uma psicologia atenta separa uma duraccedilatildeo cujos momentos heterogecircneos se penetram sob a multiplicidade numeacuterica dos estados conscientes uma multiplicidade qualitativa sob o eu dos estados bem definidos um em que sucessatildeo implica fusatildeo e organizaccedilatildeo Mas quase sempre nos contentamos como primeiro isto eacute com a sombra do eu projetado no espaccedilo homogecircneo14
14 Ibidem p 90
48
O que esse percurso um tanto quanto vagaroso pela reflexatildeo tecida em Os
dados imediatos nos revela eacute que a despeito da obstinaccedilatildeo prevalente da inteligecircncia em
optar pelo conforto do siacutembolo este eu fundamental pode ser reencontrado Mas para
ultrapassar esse eu distorcido por esse eu superficial e por uma consciecircncia
substancialmente compromissada com a praacutexis eacute necessaacuterio um verdadeiro esforccedilo do
pensar que evadindo-se das formas habituais de anaacutelise pemite que os limites entre as
duas esferas da subjetividade sejam depuradas afastando assim essa nossa interioridade
exteriorizada a qual guiada pelas convenccedilotildees pelos pensamentos formalizados e prontos
assemelha-se a folhas mortas na superfiacutecie de um lago Com esse esforccedilo de anaacutelise que
busca afastar os viacutecios da consciecircncia reflexa que olha criticamente seu modo de operar e
descreve o movimento genuiacuteno dos estados de alma o qual afinal eacute realizado pelo autor
de Os dados imediatos torna-se possiacutevel vislumbrar o eu revolto que pulsa no fundo das
aacuteguas Bergson assim coloca
Por outras palavras as nossas percepccedilotildees sensaccedilotildees emoccedilotildees e ideias apresentam-se sob um duplo aspecto um niacutetido preciso mas impessoal o outro confuso infinitamente moacutevel e inexprimiacutevel porque a linguagem natildeo o pode captar sem lhe fixar a mobilidade nem adaptar a sua forma banal sem o fazer descer ao domiacutenio comum15
Com efeito a dificuldade para encontrar esse eu fundamental reside justamente
no fato de que ele se apresenta sobre um aspecto antinocircmico agrave loacutegica que nos guia no
mundo praacutetico sua natureza movente revolta e que natildeo para de se transformar contradita
o eu superficial que se encontra coadunado com as representaccedilotildees espaciais e se constitui
em conformidade com as exigecircncias do mundo social Inequivocamente as exigecircncias da
praacutexis acabam por ofuscar essa natureza mais profunda Se ela natildeo pode erradicaacute-la logra
tornaacute-la ainda mais oculta Processo que se consolida com a traduccedilatildeo desses estados pelo
discurso linguiacutestico e que tem consequecircncias nefastas porquanto passamos a viver no
acircmbito de uma sombra da nossa subjetividade e a tomamos como o que haacute de mais genuiacuteno
em noacutes Como jaacute insinuamos diversas vezes nessas linhas a linguagem tem um papel
determinante da estruturaccedilatildeo desse eu quantitativo e espacializado Ela viabilizaraacute a vida
praacutetica mas natildeo o faraacute sem operar uma certa perda no limite ela se constituiraacute como um
obstaacuteculo ao acesso do eu profundo Voltemos pois agrave problemaacutetica da linguagem
15 Opus citatum
49
Enquanto signo de precisatildeo e modelo estaacutetico de pensamento as recursos
linguiacutesticos natildeo conseguem imprimir essa mobilidade da duraccedilatildeo-qualidade que eacute interior
a noacutes Ao traduzi-la acaba cristalizando-a em sentidos comuns e banais os quais suprimem
a unicidade e a singularidade dos afetos e dos estados de alma Isso porque ao dar
expressividade a nossos afetos e agraves vivecircncias profundas ao designar sentimentos uacutenicos
com siacutembolos gerais que se ajustam agraves mais distintas realidades o pensamento discursivo
opera uma solidificaccedilatildeo das nossas impressotildees uma retenccedilatildeo do progresso ininterrupto que
norteia o amadurecimento de sentimentos e ideias Deste modo ao ser nomeado o processo
temporal ou a mobilidade afetiva que constitui o eu adquire a tocircnica do imutaacutevel de modo
que nossos estados de almas se congelam e parecem natildeo mais sujeitos agrave modificaccedilatildeo
Bergson pontua
As nossas sensaccedilotildees simples consideradas no seu estado natural ofereceriam menos consistecircncia ainda Este sabor aquele perfume agradaram-me quando crianccedila e hoje repugnam-me Contudo dou ainda o mesmo nome agrave sensaccedilatildeo experimentada e falo como se o perfume e o sabor fossem idecircnticos quando soacute os meus gostos mudaram Portanto ainda cristalizo essa sensaccedilatildeo e quando a sua mobilidade adquire uma tal evidencia que me eacute possiacutevel reconhececirc-la retiro esta mobilidade para lhe dar um nome a parte e cristaliza-la por sua vez sob a forma de gosto16
Assim ainda que nossas percepccedilotildees sobre as coisas ou sobre os nossos estados
aniacutemicos mudem persistimos em classificaacute-los com o mesmo nome isto eacute recorremos agrave
linguagem que produz uma representaccedilatildeo artificial da multiplicidade das impressotildees e das
experiecircncias No entanto para aleacutem de uma simples maacute representaccedilatildeo da sensaccedilatildeo por noacutes
experimentada para Bergson a linguagem nos induz por vezes ao erro Suas imagens
luminosas o precisam
Assim quando como uma iguaria rara o seu nome enriquecido com a provaccedilatildeo que se lhe daacute interpotildee-se entre a minha sensaccedilatildeo e a minha consciecircncia poderei acreditar que o sabor me agrada quando um simples esforccedilo de atenccedilatildeo me provaria o contraacuterio Em siacutentese a palavra com contornos bem definidos a palavra em bruto que armazena o que haacute se estaacutevel de comum e por conseguinte de impessoal nas impressotildees da humanidade esmaga ou pelo menos encobre as impressotildees delicadas e fugitivas da nossa consciecircncia individual17
16 Ibidem p 91 Grifo do autor 17 Ibidem p 92
50
Tambeacutem na impressatildeo comum do dia a dia deparamo-nos com os mesmos
objetos os quais com o passar do tempo comeccedilam a ganhar uma familiaridade para noacutes
no entanto a despeito de tal familiaridade um dia percebemos uma mudanccedila singular e
parece que eles se modificaram e envelheceram tal como noacutes Mas as mudanccedilas satildeo
percebidas em bloco jamais em sua processualidade Ora o modo pelo qual a linguagem
capta a mudanccedila fora de noacutes na vida praacutetica eacute correlato ao modo pelo qual apreendemos
sempre o nosso eu como algo solidificado que nos parece imutaacutevel - ou cujas
transmutaccedilotildees percebemos com jaacute concluiacutedas visto que a percepccedilatildeo da mudanccedila seja nas
coisas seja em noacutes nos escapa invariavelmente Isso tem a ver com as necessidades da
nossa vida social isto eacute com um eu que estaacute imerso na superficialidade das coisas e da
vida social e que estendemos para a totalidade de nossa vida psicoloacutegica Ou seja
acabamos por aprendecirc-lo apenas em sua dimensatildeo superficial como se assim o nosso eu se
nos revelasse por inteiro Em suma em virtude das acomodaccedilotildees da vida praacutetica tendemos
a estabilizar nossas impressotildees profundas e internas solidificando nossas impressotildees em
um eu exterior imerso no mundo social Daiacute resulta a cristalizaccedilatildeo das impressotildees voluacuteveis
da alma e o fato de que nos restringimos a uma visatildeo imoacutevel da mobilidade
Inequivocamente a linguagem opera essa ilusatildeo ela natildeo soacute daacute estabilidade ao que eacute
instaacutevel tirando a essecircncia movente das impressotildees mas para aleacutem disso tem o poder de
manipular e de distorcer o sentido das impressotildees Atendo-nos agraves representaccedilotildees que com
ela construiacutemos os dados que nos satildeo imediatos distanciam-se perdemo-nos de noacutes
mesmo Dito de outro modo esse instrumento que nos eacute primordial e imprescindiacutevel finda
por prejudicar a apreensatildeo imediata dessa experiecircncia interior pois existe de fato uma
discordacircncia entre aquilo que formulamos em termos de linguagem e a realidade interior
da duraccedilatildeo Tal problema tem sua origem numa inadequaccedilatildeo entre os siacutembolos linguiacutesticos
estaacuteticos e fixos ndash que natildeo se dissociam do pensar voltado para a accedilatildeo ou seja da natureza
da inteligecircncia - e dos quais nos servimos para nomear o real e a realidade fluiacuteda e interior
da duraccedilatildeo Problema que Bergson jaacute estampava no prefaacutecio de Os dados Imediatos
A consciecircncia atormentada por um desejo insaciaacutevel de distinguir substitui o siacutembolo pela realidade ou natildeo percepciona a realidade atraveacutes do siacutembolo Com o eu assim refractado e por isso mesmo subdividido se presta infinitamente melhor agraves exigecircncias da vida social em geral e da linguagem em particular ela prefere-o e perde pouco a pouco de vista o eu fundamental18
18 Ibidem p 9
51
No limiar da obra Bergson jaacute admite uma inadequaccedilatildeo entre nossos recursos
de expressatildeo e a duraccedilatildeo interior pois tendemos pelas exigecircncias da vida social a usar
uma linguagem estaacutetica tendo como norte nossa adaptaccedilatildeo agrave vida praacutetica19 Essa
linguagem ao ter em vista a utilidade da praacutexis esfera em que tudo eacute representado como
espacialmente disposto provoca um distanciamento em relaccedilatildeo agrave duraccedilatildeo interior ou seja
produz um vazio estabelecido entre nossa representaccedilatildeo da consciecircncia e as suas instacircncias
mais profundas Instaura-se assim uma profunda discordacircncia entre aquilo que
formulamos em termos de linguagem e a realidade interior que se quer exprimir20 Tal
problema tem sua origem numa inadequaccedilatildeo entre a nossa linguagem estaacutetica e fixa e a
natureza da realidade que viceja em nossa interioridade universo onde podemos sentir os
estados que se entrelaccedilam na duraccedilatildeo contiacutenua quando por exemplo tocamos no fundo
de noacutes mesmo apreendendo assim algo da proacutepria totalidade que nos perpassa a qual se
perde ao ser traduzida pelas ferramentas que nos permitem a elocuccedilatildeo Cumpre observar
que este aspecto impregnaraacute tanto os modos de expressatildeo comuns quanto aqueles que
prevalecem no discurso cientiacutefico Ainda no Prefaacutecio de Os dados imediatos Bergson
observa
Exprimimo-nos necessariamente por palavras e pensamentos quase sempre no espaccedilo Isto eacute a linguagem exige que estabeleccedilamos entre as nossas ideias as mesmas distinccedilotildees niacutetidas e precisas a mesma descontinuidade que entre os objetos materiais Essa assimilaccedilatildeo eacute uacutetil na vida praacutetica e necessaacuteria na maioria das ciecircncias Mas poder-se-ia perguntar se as dificuldades insuperaacuteveis que certos problemas filosoacuteficos levantam natildeo advecircm por teimarmos em justapor no espaccedilo fenocircmenos que natildeo ocupam espaccedilo e se abstraindo das grosseiras imagens em torno das quais se polemiza natildeo lhes poriacuteamos termo21
Vemos aqui o autor tomar como foco central o desajuste entre nossa forma de
pensar que eacute viabilizada pelos signos linguiacutesticos e os elementos da pura duraccedilatildeo que ao
19 ldquoA continuidade da filosofia de Bergson trataraacute de mostrar que a apreensatildeo dos objetos materiais isolados eacute relativa aos nossos haacutebitos intelectuais derivados da apreensatildeo praacutetica do real efetivada pela percepccedilatildeo ndash que eacute um processo essencialmente destinado agrave accedilatildeo ndash e elaborada pelo trabalho de abstraccedilatildeo da inteligecircncia (e da linguagem) Eacute a aplicaccedilatildeo sem limites e sem criacutetica dos processos intelectuais derivados da praacutexis aos questionamentos metafiacutesicos que acaba por afirmar a existecircncia e a essecircncia da mateacuteria como objeto materialrdquo (PINTO Bergson e os dualismos p 5) A pesquisadora Deacutebora Morato trata aqui de um problema que seraacute melhor fundamento em Mateacuteria e Memoacuteria e que tange agrave elevaccedilatildeo da representaccedilatildeo ao modelo fundamental de conhecimento Consequecircncia sobretudo da maneira como apreendemos o mundo pela exterioridade espacial - sendo a representaccedilatildeo como consequecircncia da nossa adaptaccedilatildeo agrave exterioridade 20 ldquoEvidencia-se nessa medida o sentido dos dois primeiros capiacutetulos aqueles que aparentemente mais se aproximam de um dualismo (instituiacutedo via dissociaccedilatildeo da experiecircncia) a apreensatildeo de uma das dimensotildees da experiecircncia real que cotidiana e regularmente se oculta pelas necessidades da praxis e cujo ocultamento eacute a mola mestra do pensamento conceitual quer ele se manifeste no senso comum na ciecircncia ou na metafiacutesicardquo (PINTO Bergson e os dualismos p 4) 21 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 9
52
serem traduzidos pelo pensamento satildeo justapostos de modo descontinuado no espaccedilo
Mas essa passagem na abertura do livro alude ao ponto que por todo o livro estaraacute sob o
fogo criacutetico do filoacutesofo quer dizer o fato de que ao voltarmos nossa atenccedilatildeo agrave vida praacutetica
produzimos gradativamente uma ciecircncia que ratifica esse modelo espacial de apreender a
realidade Criacutetica que se estende igualmente agrave filosofia Vale notar que no decorrer de sua
obra Bergson natildeo deixaraacute de apontar a dificuldade e a necessidade da sua e de toda a
filosofia em encontrar uma expressividade adequada ao seu objeto22 Como nota F Worms
ao pontuar nossa limitaccedilatildeo perante a linguagem e o modo pelo qual espacializamos
realidades imateriais aos nomeaacute-las e distingui-las segundo os recursos simboacutelicos
Bergson mostra que eacute daiacute que se originam os grandes falsos problemas filosoacuteficos Afinal
com a linguagem criamos os conceitos as teorias que instauram um universo abstrato
fixando e coisificando em quadros simboacutelicos a experiecircncia moacutevel e temporal da
realidade23 No caso da psicologia esse processo culmina na coisificaccedilatildeo do eu em sua
22 Todavia a criacutetica ao alcance da linguagem e a discussatildeo acerca da possibilidade de rompimento de sua superficialidade no que tange agrave apreensatildeo da duraccedilatildeo em sua forma pura natildeo eacute resolvido com facilidade Justamente em virtude desse caraacuteter necessaacuterio a linguagem enquanto condiccedilatildeo empiacuterica circunscreve nossa relaccedilatildeo objetiva e exterior ao objeto de uma maneira instrumental Diz-nos o filosofo que se tiveacutessemos todo o conhecimento ilimitado na percepccedilatildeo natildeo teriacuteamos necessidade da concepccedilatildeo cuja explicitaccedilatildeo natildeo se daacute sem a linguagem Atentemos ao texto ldquoConceber eacute um paliativo quando natildeo eacute dado perceber e o raciociacutenio eacute feito para colmatar os vazios da percepccedilatildeo ou para estender o seu alcance Natildeo nego a utilidade das ideias abstratas e gerais ndash como tatildeo pouco contesto o valor do papel-moeda Mas assim como papel moeda natildeo eacute mais que uma promessa de ouro assim tambeacutem uma concepccedilatildeo soacute vale pelas percepccedilotildees possiacuteveis que representardquo (BERGSON O Pensamento e o Movente p 151) Observemos que aqui se revela uma sutileza retoacuterica ou seja concebemos porque natildeo alcanccedilamos um conhecimento ilimitado na percepccedilatildeo e por isso mesmo nossa linguagem se apresenta como uma mediaccedilatildeo paliativa um deacuteficit perante nossa insuficiente compreensatildeo revelando um fosso entre nossa representaccedilatildeo e os objetos Desse modo eacute no intuito de resolver essa inadequaccedilatildeo de nossa representaccedilatildeo que se faz necessaacuteria uma criacutetica ao seu alcance mostrando que ao contraacuterio da uma visatildeo imperante na tradiccedilatildeo metafiacutesica sobretudo a moderna podemos nos voltar para um conhecimento imediato distinto da posiccedilatildeo reflexiva da inteligecircncia 23 Seguindo o comentador notemos que tais problemas se evidenciam sobretudo nos paradoxos encontrados nas disputas das argumentaccedilotildees relativas aos problemas filosoacuteficos Um problema que se constroacutei no acircmbito da disputa fundada por uma linguagem abstrata nunca explicita o seu nuacutecleo o qual inversamente em sua efetividade poderia ser apreendido numa intuiccedilatildeo simples e uacutenica Para Bergson a linguagem se apresenta sobretudo como um paradoxo visto que ela nunca logra representar a intuiccedilatildeo simples da duraccedilatildeo a qual se revela de fato intraduziacutevel Desse modo um discurso calcado no puro jogo argumentativo ndash e portanto dissociado dos dados concretos e imediatos - nunca alcanccedila a natureza real do problema Por essa razatildeo Bergson afirma que os debates retoacutericos e argumentativos que se desdobram ao longo da histoacuteria da filosofia restritos ao plano da especulaccedilatildeo natildeo passam de debates pautados numa linguagem que os manteacutem na exterioridade do problema central e portanto em grande parte desprovidos de sentido ldquoEis entatildeo a questatildeo que se potildee e que tomo por essencial Uma vez que toda tentativa de filosofia puramente conceitual suscita tentativas antagocircnicas e que no terreno na dialeacutetica pura natildeo haacute sistema ao qual natildeo se possa opor a outro iremos noacutes permanecer nesse terreno ou seraacute que natildeo deveriacuteamos antes (sem renunciar nem eacute preciso dizecirc-lo ao exerciacutecio das faculdades de concepccedilatildeo e de raciociacutenio) voltar agrave percepccedilatildeo conseguir dela que se dilate e estenda (BERGSON O Pensamento e o Movente p 154) Isso natildeo impede que em seu desdobramento sua filosofia enfatize a urgecircncia de uma linguagem outra capaz de atingir o objeto no que ele tem de particular absorvendo seu significado mais autecircntico Sobre este ponto Leopoldo e Silva acrescenta Qual eacute a linguagem da filosofia Se tomarmos esta pergunta como criteacuterio orientador para uma leitura da obra bergsoniana chegaremos ao final do percurso sem encontrar
53
matematizaccedilatildeo Eis o que revelam as anaacutelises tecidas pelo autor em Os dados imediatos
texto no qual a reflexatildeo bergsoniana problematiza a razatildeo pela qual a interioridade se oculta
ou se perde ante uma ciecircncia que se arvora na condiccedilatildeo de defini-la e no limite de adestraacute-
la evidenciando o papel que os recursos da expressatildeo e do pensamento assumem neste
desvio Afinal como sustenta o autor em outro lugar a inteligecircncia ldquo() se manifesta por
uma atividade que eacute um preluacutedio agrave arte mecacircnica e por uma linguagem que anuncia a
ciecircnciardquo24 Explicita-se assim o caraacuteter puramente simboacutelico das ciecircncias matemaacuteticas e
das ciecircncias que nela se espelham mesmo aquela que se aventura pela alma humana as
quais em vez de apreenderem o proacuteprio objeto o representam por meio de uma ferramenta
abstrata que o fragmenta e o espacializa Esta tendecircncia sem duacutevida perpetua as praacuteticas
do senso comum o qual ao atrelar-se agrave percepccedilatildeo praacutetica e por estar voltado agrave vida social
natildeo almeja o alargamento da apreensatildeo do real em sua dimensatildeo imediata Ademais
lembremos que a questatildeo central no primeiro livro de Bergson concerne justamente a um
problema metafiacutesico a liberdade o qual natildeo seraacute devidamente compreendido quando
enfrentado dentro dos paracircmetros fixos da linguagem cientiacutefica ou filosoacutefica
Notadamente essa eacute uma questatildeo fundamental do bergsonismo e ela
reapareceraacute em nosso percurso Por ora uma vez que eacute a discussatildeo tecida no primeiro livro
o nosso foco a referecircncia a essa problemaacutetica vem aqui apenas esclarecer o modo pelo
qual a linguagem seja ela cientiacutefica ou natildeo ao mesmo tempo em que se associa ao espaccedilo
viabilizando a sociabilidade e a organizaccedilatildeo do mundo nos impede de apreender a
realidade dos afetos O que escapa assim eacute a dimensatildeo ontoloacutegica do eu aquela que se
confunde com o tempo e que se opotildee a toda materialidade uma vez que ao fragmentaacute-la e
ao dar a ela a inteligibilidade dos siacutembolos findamos por sacrificaacute-la coisificando-a
Decerto o que persiste em nossa interioridade profunda eacute um progresso
constante uma subjetividade movente e temporal cujos momentos natildeo apenas mudam
permanentemente mas ao mudarem operam uma transformaccedilatildeo na totalidade do que
somos e dos momentos antecedentes Daiacute que seja impossiacutevel a delimitaccedilatildeo em blocos
estanques dos elementos que a constituem O que existe em noacutes profundamente eacute a duraccedilatildeo
da qual nos afastamos devido agrave nossa inserccedilatildeo no universo representacional e discursivo
Instaura-se pois uma distacircncia entre essa realidade e a forma pela qual a linguagem e o
uma resposta efetiva Esta ausecircncia decorre do caraacuteter que Bergson atribui agrave linguagem produto da inteligecircncia concebida como faculdade instrumental A inteligecircncia eacute o meio de que a natureza nos dotou para triunfar sobre a mateacuteria e organizar o mundo da perspectiva das necessidades humanas (LEOPOLDO E SILVA Intuiccedilatildeo e Discurso Filosoacutefico p 9) 24 BERGSON O Pensamento e o Movente p 84
54
conceito com a solidez que lhes eacute peculiar acabam por exprimir esse progresso o que
deturpa essa natureza e impregna de fixidez as nossas formas de sentir e ver o mundo dentro
e fora de noacutes
A evidecircncia da diferenccedila e do hiato que se instaura entre a representaccedilatildeo da
linguagem e a experiecircncia concreta fica mais clara no caso dos sentimentos realidades que
atingem as mais variadas gradaccedilotildees e nuances sensiacuteveis as quais satildeo inapreensiacuteveis agrave
delimitaccedilatildeo conceitual Eacute da natureza do sentimento crescer se desenvolver sua natureza
eacute a da constante transformaccedilatildeo da mutabilidade das gradaccedilotildees que se delineiam
incessantemente Eis a coloraccedilatildeo de sua originalidade a qual perde seus tons e sua
concentraccedilatildeo ao ser conceitualizada Um caminhar constante e elaacutestico dos momentos que
eacute a cor proacutepria do sentimento Remetendo-nos agraves primeiras paacuteginas de sua investigaccedilatildeo
Bergson escreve
Um amor violento uma melancolia profunda invadindo a nossa alma satildeo infindos elementos diversos que se fundam se penetram sem contornos precisos sem a menor tendecircncia a experiorizarem-se uns relativamente aos outros a sua originalidade tem esse preccedilo25
Eis a vida que eacute a proacutepria natureza do afeto tal qual o tempo ininterrupto da
vivecircncia pura em que os momentos do tempo se interpenetram A evoluccedilatildeo afetiva
destarte aproxima-se do amadurecimento na escolha de uma resoluccedilatildeo Bergson
acrescenta
O proacuteprio sentimento eacute um ser que vive se desenvolve e consequentemente muda sem cessar caso contraacuterio natildeo se compreenderia como nos levou pouco a pouco a uma resoluccedilatildeo a nossa resoluccedilatildeo seria imediatamente tomada26
Vale ratificar ao expor essa realidade afetiva em espaccedilos justapostos acabamos
por esterilizar a singularidade de sua coloraccedilatildeo e damos a ela um sentido comum e
coloquial Impessoal portanto O que se perde eacute o caraacuteter proacuteprio e vivo da vida interior a
vivacidade dos estados que se interpenetram e a compotildeem O que se perde eacute a dinamicidade
do eu profundo A incapacidade de apreender a natureza de nossos afetos e de nossos
estados drsquoalma se confunde com a incapacidade para apreendermos o nosso proacuteprio eu o
qual concebido simbolicamente eacute tatildeo descolorido quanto sentimentos justapostos e
destituiacutedos de sua heterogeneidade Assim como desnaturalizamos nossos afetos ao
25 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 92 26 Ibidem p 92
55
traduzi-los em palavras cujos significados gerais foram socialmente convencionados e
transformados em gecircneros desconhecemo-nos quando segmentamos e discursamos acerca
do dinamismo orgacircnico de nosso eu profundo Condenados a lidar com nossos afetos como
se coisas fossem a apreender apenas a sombra exteriorizada de nosso eu convencional
vislumbrando-o pelas vias dos siacutembolos que o desnaturalizam enquanto experiecircncia
muacuteltipla essa supressatildeo da experiecircncia ininterrupta acaba por nos distanciar em uacuteltimo
caso de noacutes mesmos A percepccedilatildeo da multiplicidade qualitativa que neles viceja e que nos
constitui a experiecircncia imediata dessa sutileza infinita de mutaccedilotildees e transformaccedilotildees dos
nossos estados de alma nos daria uma visatildeo mais proacutexima da nossa experiecircncia real Isso
faria o romancista cujas palavras deslocadas de seus sentidos utilitaacuterios talvez nos
desvelassem natildeo a justaposiccedilatildeo dos estados de alma e dos elementos constitutivos do eu
mas a ldquointerpenetraccedilatildeo infinita de mil impressotildees diversas que jaacute deixaram de o ser na
altura que os nomeamosrdquo27 Esse artista audacioso sustenta Bergson conseguiria nos
compreender mais do que noacutes mesmos
Provavelmente a experiecircncia profunda e a compreensatildeo efetiva dessa natureza
do nosso eu iacutentimo natildeo possa se dar em um profundo espanto um estranhamento que eacute
tambeacutem a aventura de mergulhar numa realidade distinta daquela que nos eacute habitual Para
tanto seria preciso abandonar a zona de conforto em que a linguagem usual nos deixa e
lutar contra a nossa da obsessatildeo pela figuraccedilatildeo espacial Dito de outro modo para que o eu
se deixasse viver em sua dimensatildeo autecircntica seria preciso entender que quando trocamos
as experiecircncias por siacutembolos acomodados pela linguagem comum acabamos por deturpar
a natureza vivida da experiecircncia interior Seria preciso ainda ousar o desajuste em relaccedilatildeo
agraves formas de pensar e de sentir generalizadas o que nos colocaria em descompasso com o
comportamento comum Sim porque certos pensamentos que parecem mesclados aos
afetos que por vezes nos assaltam e impregnam a totalidade de nosso eu com um ldquoardor
irrefletidordquo se constituem como ideias que nada tem de justapostas mas que expressam a
interpenetraccedilatildeo constante de nossos estados de alma Esses pensamentos nos arrebatam
porque trazem neles algo do que haacute de mais intenso em cada um de noacutes Bergson assinala
As opiniotildees que mais nos agarramos satildeo as que explicamos com mais dificuldade e as razotildees com que as justificamos raramente satildeo as que nos levaram a adoptaacute-las Em certo sentido adoptaacutemo-las sem razatildeo porque aos nossos olhos o seu valor reside em que o seu cambiante
27 Ibidem p 93
56
corresponde agrave coloraccedilatildeo comum de todas as nossas ideias porque logo de iniacutecio vimos nelas algo de noacutes28
Tais pensamentos ou ideias natildeo admitem a tocircnica comum das palavras jaacute
imbuiacutedas de sentidos cristalizados Ao serem expressos ainda que o sejam pelas palavras
comuns a todos eles de algum modo revelam a riqueza da experiecircncia interior que ao se
expandir para a totalidade do nosso eu ofuscando a sua dimensatildeo simboacutelica enchem de
vida as nossas ideias e permitem que com elas advenha um sentido novo e original Ao
aflorar esse pensamento novo integra-se agrave totalidade de nossa alma a qual modificada e
em estado de vibraccedilatildeo nos impregna por completo Sem duacutevida satildeo esses os momentos
em que o ldquoeu se deixa viverrdquo29
Claro que esse natildeo eacute o modo habitual pelo qual opera nosso pensamento natildeo
eacute assim que comumente produzimos ideias Em geral elas nos chegam jaacute prontas adquirem
uma aparecircncia de imobilidade sem a vivacidade pessoal ou a plenitude do eu De fato
quanto mais exprimirmos nossas ideias de modo espacializado na exterioridade proacutepria da
linguagem comum mais impessoal se sem vida elas se revelaratildeo Por isso para o filoacutesofo
as ideias mais proacuteprias e vivas satildeo as mais difiacuteceis de se expressar com as palavras as
ideias que nos chegam prontas desde jaacute utilizadas e utilizaacuteveis pela linguagem comum
satildeo obviamente as mais faacuteceis de serem expressas Satildeo essas as ideias que afloram na
dimensatildeo mais superficial de nosso eu ideias inertes e impessoais cuja natureza clara e
distinta assemelha-se ao nuacutemero Eacute a elas que se aplicam a teoria associacionista que se
propotildee a conhecer cientificamente a realidade subjetiva o homem o nosso eu No entanto
lembremos que ao apreendermos a multiplicidade quantitativa ao adicionar seus elementos
e vislumbrarmos nesse processo alguma dinamicidade ressoa de um fundo natildeo claro uma
multiplicidade qualitativa que nos constitui profundamente Sem duacutevida os pensamentos
e as ideias que facilmente verbalizamos aquelas que se apresentam imoacuteveis e justapostos
uns aos outros exteriorizados em formas soacutelidas e conceituais habitam as camadas mais
superficiais da consciecircncia e refletem aquelas produzidas pela sociedade pelo contato do
eu com o mundo exterior Por detraacutes delas caso fosse possiacutevel ter essa visatildeo veriacuteamos as
ideias e pensamentos se fundirem o que nos remeteria a uma inteligecircncia viva cujas ideias
natildeo se distinguem dos estados aniacutemicos que se interpenetram e se recriam
28 Ibidem p 94 29 Ibidem p 72
57
permanentemente Assim adviria um pensamento inquieto mutante imageacutetico do qual
por vezes o sonho nos aproxima
A imaginaccedilatildeo do sonhador isolada do mundo externo reproduz em imagens simples e parodia agrave sua maneira o trabalho que incessantemente se prossegue sobre as ideias nas regiotildees mais profundas da vida intelectual30
Em suma com esses argumentos Bergson ratifica que nossa vida interna
apresenta duas esferas uma voltada agrave exterioridade movida por um tempo homogecircneo
cujos elementos apresentam-se enquanto quantidade enquanto dados exteriores uns aos
outros a outra impulsionada por uma vida movente e profunda em que os momentos se
fundem e nos datildeo a visatildeo de um movimento progressivo e orgacircnico dos estados que se
amalgamam e que se recriam continuamente Aqui prevalece a pura duraccedilatildeo O eu
interior que constitui de fato nossas impressotildees reais e vivas das coisas eacute ofuscado pela
exteriorizaccedilatildeo operada pela representaccedilatildeo espacial e pela linguagem em prol da
sociabilidade a qual insistimos nos eacute imprescindiacutevel Mas o meio homogecircneo e a
linguagem a despeito do triunfo social que viabilizam acabam por camuflar a natureza
do eu interior que nos desvela o que haacute de mais denso profundo e vital em noacutes que nos
revela afinal o ser em noacutes o que haacute de absoluto e ontoloacutegico em nossa existecircncia Assim
se o eu espacializado nos insere numa vida social necessaacuteria e eficaz quando tomado
pela totalidade de nossa vida subjetiva ele nos condena a uma vida inferior Eacute ao eu
habitante desta vida que a psicologia desatenta ou associacionista se restringe Seria
preciso superaacute-la para compreender que o descolorido o banal a frivolidade a vida
convencional natildeo eacute o uacutenico registro de nossa interioridade natildeo eacute tampouco o destino
inexoraacutevel do eu de cada um de noacutes Ele pode tambeacutem aceder a uma existecircncia mais
profunda a qual viabilizaria a experiecircncia da autonomia numa palavra agrave liberdade
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
BERGSON Henri Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciecircncia Lisboa Ediccedilotildees 70 1988
_______________ O Pensamento e o Movente Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
30 Ibidem p 95
58
LEOPOLDO E SILVA Franklin Bergson Intuiccedilatildeo e Discurso Filosoacutefico Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1994
PINTO Deacutebora Bergson e os dualismos Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophppid=S010131732004000100007ampscript=sci_arttextamptlng=pt 2013
WORMS Freacutedeacuteric Bergson ou os dois sentidos da vida Satildeo Paulo Editora Unifesp 2010
DO NIILISMO Agrave EXPERIEcircNCIA TOTALITAacuteRIA
Elvis de Oliveira Mendes1
RESUMO O presente artigo pretende mostrar de que maneira o filoacutesofo poliacutetico teuto americano Leo Strauss tenta por meio de uma reflexatildeo acerca do fenocircmeno histoacuterico da tirania desenvolver uma compreensatildeo maior do advento dos totalitarismos do seacuteculo XX o que o filoacutesofo veio a chamar de ldquotirania de nossos temposrdquo Deste modo o esforccedilo empreendido aqui por Strauss eacute o de traccedilar uma espeacutecie de leitura sobre ou uma investigaccedilatildeo de quais seriam por assim dizer as raiacutezes intelectuais dos regimes totalitaacuterios e sobretudo do nazismo Palavras-chave Niilismo Leo Strauss Tirania Totalitarismos Nazismo ABSTRACT The present article aims to show how the Teutonic American political philosopher Leo Strauss tries by means of a reflection on the historical phenomenon of the tyranny to develop a greater understanding of the advent of the totalitarianisms of the twentieth century what the philosopher came to call tyranny of our times Thus Strausss effort here is to trace a kind of reading about or an inquiry into what are so to speak the intellectual roots of totalitarian regimes and above all of Nazism Keywords Nihilism Leo Strauss Tyranny Totalitarianism Nazism
Introduccedilatildeo
A escolha de um nome como o de Leo Strauss para efetuar uma abordagem
seacuteria de um dos mais importantes complexos e polecircmicos temas da histoacuteria recente natildeo
eacute de maneira alguma uma escolha arbitraacuteria ou inoacutecua De fato a escolha de uma das mais
importantes mentes da filosofia poliacutetica do seacuteculo XX se daacute devido agrave magnitude da
reflexatildeo por ela produzida reflexatildeo esta que o presente ensaio pretende analisar em um
de seus aspectos Ora para dar iniacutecio adequadamente a esse procedimento eacute preciso
compreender que estamos diante de um filoacutesofo alematildeo de origem judaica filho de uma
Alemanha em que os judeus viveram um periacuteodo profundamente marcado por um
sentimento de esperanccedila e prosperidade o sonho de uma vida nova de um futuro melhor
para seus filhos e netos sentimento sem precedentes para o povo judeu cuja histoacuteria havia
sido marcada ateacute aquela eacutepoca pela vida nos cativeiros e guetos Natildeo obstante o sonho
1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (elvisoliverlivecom) Meus agradecimentos ao prof Dr Richard Romeiro Oliveira (UFSJ) pela revisatildeo final deste artigo
60
de um lar para quae beata vita viria a se tornar um pesadelo marcado pela perseguiccedilatildeo
humilhaccedilatildeo tortura e morte em massa Esse episoacutedio obscuro e brutal que marca
fatalmente natildeo apenas a histoacuteria da Europa mas a histoacuteria da humanidade eacute de igual
maneira uma paacutegina triste que marca diretamente e de forma seminal toda a vida de
Strauss jaacute que os acontecimentos funestos da Alemanha da deacutecada de 1930 foram
sentidos como ldquonavalha na carnerdquo desse ateacute entatildeo desconhecido acadecircmico alematildeo que
posteriormente viria a se tornar um dos maiores teoacutericos poliacuteticos do seacuteculo XX2
Neste contexto os eventos ocorridos na deacutecada referida mudaram
indubitavelmente para sempre o curso da vida de Strauss e pode-se dizer que tal
mudanccedila de curso deu novos contornos ao seu pensamento o que se desvela como fator
decisivo para o entendimento da construccedilatildeo de sua obra intelectual Ora com a ascenccedilatildeo
do nacional socialismo alematildeo em 1933 Strauss por sua descendecircncia judaica se tornara
persona nom grata em plena terra natal Diante deste cenaacuterio fugir para longe dali assim
como deixar parentes e amigos para traacutes se configurou como uma estrateacutegia de
sobrevivecircncia A exemplo de outros germans eacutemigreacutes como Arendt Voegelin Loumlwith e
vaacuterios outros que fugiram da perseguiccedilatildeo de cunho antissemita que se propagou pela
Europa Strauss recebeu natildeo apenas exiacutelio nos EUA mas uma nova paacutetria que o acolheu
e forneceu as condiccedilotildees necessaacuterias para a continuaccedilatildeo e posterior florescimento de um
edifiacutecio intelectual grandioso3
Assim levando em conta esses elementos nosso objetivo aqui seraacute o de tentar
refletir agrave luz das contribuiccedilotildees deste filoacutesofo poliacutetico sobre algumas importantes e difiacuteceis
questotildees acerca da ascensatildeo e legitimaccedilatildeo dos regimes totalitaacuterios e das poliacuteticas
extremas da primeira metade do seacuteculo passado no intuito de refletir acerca de algumas
questotildees centrais como quais fatores causaram isso Como todos foram convencidos
Quem autorizou esses regimes Que fatores emocionais contribuiacuteram para tal
Evidentemente natildeo eacute a pretensatildeo do presente ensaio responder a cada uma dessas
questotildees de forma exaustiva pois isso exigiria a efetuaccedilatildeo de desenvolvimentos analiacuteticos
que natildeo caberiam nos limites deste breve ensaio A nossa pretensatildeo aqui eacute ao contraacuterio
de certa maneira bem mais modesta o que natildeo quer dizer menos complexa qual seja
refletir a partir da visatildeo straussiana acerca das raiacutezes intelectuais que tornaram a crenccedila
2 Ver sobre isso VILLA D The Philosopher versus the Citizen Arendt Strauss and Socrates In VILLA D Politics Philosophy Terror Princeton Princeton University Press 1999 pp 155-179 3 Sobre a trajetoacuteria de Strauss ver BLOOM A ldquoLeo Strauss September 20 1889 ndash October 18 1973rdquo Political Theory v 2 no 4 (1974) p 372-392
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nos regimes totalitaacuterios uma crenccedila consistente Sendo assim as questotildees
supramencionadas nos serviratildeo portanto de fio condutor e de objeto para nossa
abordagem
Como jaacute foi mencionado anteriormente tentaremos refletir acerca dessas
difiacuteceis questotildees tendo como horizonte norteador o pensamento filosoacutefico de Leo Strauss
Recorrendo a esse referencial straussiano tentaremos seguir outra direccedilatildeo ou melhor
tentaremos buscar outra forma de abordagem desse polecircmico assunto forma de
abordagem que de certa maneira natildeo se limite apenas a uma busca de culpados monstros
e criminosos Definitivamente o esforccedilo empreendido aqui tentaraacute ir aleacutem das
interpretaccedilotildees ordinaacuterias (historicizantes) comumente elaboradas que quase em sua
totalidade reduzem os debates acerca desse assunto a uma espeacutecie de ldquocaccedila agraves bruxasrdquo
ou de ldquodemonizaccedilatildeordquo do passado ou se se preferir de crucificaccedilatildeo dos culpados
procedimento que quase sempre com rariacutessimas exceccedilotildees desemboca em um
anacronismo de caraacuteter totalmente maniqueiacutesta Definitivamente natildeo eacute esse nosso
objetivo aqui
Neste sentido no que diz respeito ao fenocircmeno dos totalitarismos Strauss
parece ser bastante realista evitando assim o jaacute mencionado reducionismo histoacuterico De
toda sorte o professor de Chicago natildeo busca culpados mas tenta compreender a
totalidade do fenocircmeno em seus vaacuterios desdobramentos Seguindo esta orientaccedilatildeo
tentaremos antes de tudo entender o tipo de sociedade e o tipo de homem que surge com
o advento da modernidade Ora para Strauss para compreender minimamente os fatores
que geraram a conditio sine qua non que guiou o mundo agrave loucura de duas guerras
mundiais e ao banho de sangue que marcam o seacuteculo XX tal compreensatildeo soacute eacute possiacutevel
se entendermos a raison decirctre das ideologias que brotam com a consolidaccedilatildeo das ciecircncias
modernas Para Strauss parece claro que os valores e crenccedilas cultivados pelo homem
moderno ou pelo Zeitgeist da modernidade4 quais sejam as crenccedilas no ldquomito do
progressordquo no racionalismo exacerbado e na supervalorizaccedilatildeo da ciecircncia e da teacutecnica
somadas ao forte sentimento de ovaccedilatildeo das identidades nacionais (volkgeist) e clamor de
teorias igualitaristas de caraacuteter fortemente salviacutefico e messiacircnico foram alguns dos
elementos necessaacuterios para a configuraccedilatildeo dos eventos nefastos que estariam por eclodir
Observando esses elementos Strauss julga que sua combinaccedilatildeo estava fadada a culminar
no espetaacuteculo mais brutal da histoacuteria
4 Ler sobre isso ROSEN Stanley Leo Strauss and the Problem of the Modern In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 119-136
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Dando desenvolvimento agrave nossa anaacutelise podemos dizer que na medida em
que a experiecircncia das poliacuteticas extremas marca de forma decisiva a filosofia poliacutetica de
Leo Strauss natildeo nos surpreende que o mesmo tenha dedicado parte de sua obra ao tema
da perseguiccedilatildeo e ao problema das relaccedilotildees entre a poliacutetica e a filosofia no intuito de
evidenciar o conflito entre o filoacutesofo e a cidade5 e com isso ressaltar a periculosidade
das ideias filosoacuteficas quando transformadas em um instrumento meramente pragmaacutetico e
poliacutetico isto eacute quando convertidas em uma praacutetica mundana ativista e interessada
levada agraves uacuteltimas consequecircncias Embora Strauss natildeo possua nenhuma obra dedicada
exclusivamente ao tema dos totalitarismos esse tema natildeo obstante aparece ora
tacitamente ora explicitamente em muitos de seus escritos de forma fragmentaacuteria o que
natildeo diminui o seu rigor filosoacutefico no trato do assunto sobretudo no que diz respeito ao
trabalho de compreensatildeo do nazismo do fascismo e do comunismo entre outros assuntos
anaacutelogos Pode-se dizer assim que Strauss em sua carreira intelectual se dedicou de
forma comprometida e insistente a uma aguda reflexatildeo acerca do fenocircmeno totalitaacuterio o
qual pretendeu caracterizar com o nome de ldquotirania modernardquo Ora tal dedicaccedilatildeo
consequentemente lhe rendeu uma fecunda e frutiacutefera produccedilatildeo de escritos que nos
oferecem interpretaccedilotildees seacuterias e sobretudo capazes de insights originais
A Modernidade e a Gecircnese do ideal totalitaacuterio
Na carreira intelectual de Strauss eacute facilmente constatado em suas obras sua
insistecircncia no tema da ldquocrise da modernidaderdquo ou no que ele veio a chamar de ldquocrise de
nosso tempordquo ou ldquocrise da civilizaccedilatildeo ocidentalrdquo De fato estes termos satildeo comuns e
aparecem de forma visiacutevel em seus escritos Ao ver de Strauss a pretensatildeo de construccedilatildeo
de um mundo melhor fundado unicamente pela racionalidade livre das desigualdades e
das mazelas humanas um paraiacuteso construiacutedo neste mundo atraveacutes da ciecircncia e do advento
da razatildeo filosoacutefica se mostrou como um empreendimento problemaacutetico por ser resultado
de um desejo ingecircnuo e imprudente que gerou consequecircncias catastroacuteficas para
humanidade fracassando em suas principais promessas6 Ainda neste mesmo sentido
vale observar que para Strauss esta crise foi diagnosticada adequadamente no tempo da
5 Sobre isso considerar a introduccedilatildeo e o capiacutetulo I de STRAUSS L Perseguiccedilatildeo e a arte de escrever e outros ensaios de filosofia poliacutetica Trad Hugo Lagone ndash 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 pp17-30 6 Ler sobre isso STRAUSS L The City and Man Chicago The University of Chicago Press 1992 (1964) p 1-12
63
primeira guerra mundial pelo historiador alematildeo Oswald Spengler como a decadecircncia ou
decliacutenio do Ocidente Tal fenocircmeno estaacute associado em consideraacutevel medida com a perda
dos desiacutegnios ou melhor com a perda de direccedilatildeo dos homens que fazem parte da
civilizaccedilatildeo ocidental7 Sobre isso Strauss explica que A crise da modernidade se revela no fato ou consiste no fato de que o homem ocidental moderno natildeo sabe mais o que ele quer - que ele natildeo acredita mais que possa saber o que eacute o bem e o mal o que eacute o certo e o errado Ateacute poucas geraccedilotildees atraacutes era geralmente tido como garantido que o homem poderia saber o que eacute o certo e o errado o que eacute o justo ou o bem ou a melhor ordem social ndash em suma acreditava-se que a filosofia poliacutetica era possiacutevel e necessaacuteria Em nosso tempo essa crenccedila perdeu seu poder8
Dito isto Strauss nos mostra toda problematicidade relacionada ao advento
da decadecircncia da filosofia poliacutetica a partir dos uacuteltimos focirclegos da modernidade Para ele
a ascensatildeo e consolidaccedilatildeo de correntes de pensamento como o positivismo e o
historicismo teriam eclipsado completamente a possibilidade da filosofia poliacutetica se natildeo
a possibilidade da proacutepria filosofia9 Mas que relaccedilatildeo existiria entre a ldquomorte da filosofia
poliacuteticardquo e o surgimento e legitimaccedilatildeo dos regimes totalitaacuterios Ora para responder a essa
importante questatildeo eacute necessaacuterio esclarecer antes de mais nada que para Strauss esses
dois acontecimentos estatildeo intrinsecamente ligados uma vez que para o filoacutesofo a crise da
civilizaccedilatildeo ocidental estaacute intimamente conectada com o fenocircmeno do niilismo moderno
Todavia o niilismo eacute um dos aspectos mais corrosivos e devastadores que implode o
edifiacutecio moral do establishment social do Ocidente porque ataca diretamente a tradiccedilatildeo
e todos os valores e verdades morais sobre os quais a sociedade ocidental ateacute entatildeo se
assentou
Diante disso o niilismo desvelado pelas correntes racionalistas oriundas do
pensamento moderno jaacute citadas a saber o positivismo e o historicismo tornou acessiacutevel
ao homem comum toda falta de sentido e orientaccedilatildeo da vida humana Este fenocircmeno na
7 STRAUSS L An Introduction to Political Philosophy Ten essays by Leo Strauss [Ed Hilail Gildin] Detroit Wayne State University Press 1989 p 81-82 8 Ibidem p 81 ldquoThe crisis of modernity reveals itself in the fact or consists in the fact that modern western man no longer knows what he wants ndash that he no longer believes that he can know what is good and bad what is right and wrong Until a few generations ago it was generally taken for granted that man can know what is right and wrong what is just or the good or the best order of society ndash in a word that political philosophy is possible and necessary In our time this faith has lost its powerrdquo (Traduccedilatildeo livre) 9 Cf STRAUSS L Direito natural e histoacuteria Trad Bruno Costa Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 p 17-18
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visatildeo de Strauss acabou com qualquer possibilidade de se distinguir entre o bem e o mal
o justo e o injusto o certo e o errado entre outros valores que possibilitariam a busca
racional do melhor regime ou da boa sociedade assim como quae optimae leges quae
optimae respublica Sendo assim o vaacutecuo deixado pelo niilismo e pelo caraacuteter
estritamente cientiacutefico caracteriacutestico da modernidade gerou as bases necessaacuterias para uma
mudanccedila radical na mentalidade do homem comum cultivando um terreno feacutertil para a
consolidaccedilatildeo de ideologias e crenccedilas de construccedilatildeo da sociedade perfeita a qualquer
custo no seio do imaginaacuterio popular Sendo entatildeo a construccedilatildeo de uma sociedade
perfeita algo possiacutevel atraveacutes da racionalidade cientiacutefico-filosoacutefica uacutenica e
exclusivamente qualquer projeto poliacutetico poderia ser de fato confabulado sobretudo
apoiado e legitimado por maioria popular o que torna os meios para alcanccedila-lo algo de
segundo plano ou sem importacircncia alguma diante de seus fins a saber um ganho social
grandioso e inestimaacutevel10
Ora para Strauss o cientificismo moderno eacute responsaacutevel por uma ruptura
radical com o modo antigo ou preacute-moderno de ver o mundo qualquer explicaccedilatildeo
metafiacutesica ou religiosa perdeu completamente seu esteio diante das respostas
paradigmaacuteticas que surgem com os avanccedilos incontestaacuteveis da nuova scienza Diante
disto paulatinamente essa substituiccedilatildeo das verdades morais pela cientificidade (neutra
em relaccedilatildeo a valores) abriu a brecha necessaacuteria para o esvaziamento de sentido da
existecircncia humana e levou consequentemente ao desenvolvimento de um galopante e
devastador relativismo nos mais variados acircmbitos das sociedades ocidentais
contemporacircneas11 Assim os regimes totalitaacuterios teriam aparecido como alternativa de
preenchimento deste vaacutecuo na maioria dos casos impulsionados por um discurso
carismaacutetico e substancialmente moralista marcado por um pathos salviacutefico e gerador de
uma caricatura messiacircnica defensora da classe trabalhadora da famiacutelia da igualdade e
do amor patrioacutetico De fato em vaacuterias partes do mundo a crenccedila nas poliacuteticas extremas e
na figura do chefe nacional do liacuteder ou do pai acolhedor foi o fio de esperanccedila que
iluminaria o caminho do povo rumo a um futuro de progresso prosperidade e abundacircncia
Vale dizer que os totalitarismos surgem e ganham muita forccedila em um periacuteodo
de muitas dificuldades sociais e econocircmicas De fato sabe-se que o periacuteodo entre guerras
em paiacuteses como Alemanha e Itaacutelia eacute caracterizado por grandes dificuldades financeiras
humilhaccedilatildeo (como o tratado de Versalhes por exemplo) e descrenccedila em todas as
10 Cf STRAUSS L What is Political Philosophy Chicago University of Chicago Press 1988 p 26-27 11 Ler o que Strauss diz sobre isso em STRAUSS L Direito Natural e Histoacuteria pp 43-96
65
instituiccedilotildees representativas Neste contexto qualquer aspiraccedilatildeo liberal ou democraacutetica jaacute
natildeo fazia mais sentido nenhum no contexto do caos vivido nas sociedades Europeias do
periacuteodo poacutes-primeira guerra As sociedades ocidentais pareciam sinalizar ter assim
perdido seu norte o que fez a crenccedila nas ideologias ldquosalvadorasrdquo da naccedilatildeo parecer uma
saiacuteda real elemento que se configurou como necessaacuterio para a ascensatildeo de poliacuteticas
extremas com forte aprovaccedilatildeo e clamor popular
Sendo assim para Strauss os tristes episoacutedios que deram contornos ao
espetaacuteculo de horror da primeira metade do seacuteculo XX natildeo se explicam exclusivamente
como produto de mentes moacuterbidas ou de personalidades problemaacuteticas donas dos mais
soacuterdidos desejos Na verdade a experiecircncia totalitaacuteria seria um fenocircmeno social e poliacutetico
complexo e de difiacutecil compreensatildeo sobretudo quando levamos em consideraccedilatildeo a
aprovaccedilatildeo da maioria popular Para Strauss como jaacute foi mencionado anteriormente a
permissatildeo popular para a consolidaccedilatildeo dos totalitarismos eacute em consideraacutevel sentido
consequecircncia do niilismo moderno efeito de um vazio ou de uma falta de sentido total
para a vida humana o qual se explica pelo eclipse da metafiacutesica e das explicaccedilotildees
teoloacutegicas Sobre isso a comentadora canadense Shadia Drury explica que na visatildeo de
Strauss O Ocidente estaacute em decliacutenio por que se tornou presa do niilismo O niilismo eacute simplesmente a crenccedila que todos os valores ou fins satildeo de igual valia ou que natildeo existe nada intrinsecamente mais nobre ou bom em detrimento de outro Os valores de nossa proacutepria civilizaccedilatildeo natildeo satildeo superiores a nenhum outro por que todos os valores satildeo igualmente infundados e assim igualmente sem valia Todos os valores satildeo convenccedilotildees ideologias interpretaccedilotildees ficccedilotildees ou produtos da vontade de poder Niilismo eacute uma profunda indiferenccedila com as distinccedilotildees entre bem e mal nobre e baixo12
Ainda de acordo com Drury Strauss natildeo estaacute sugerindo que para ser saudaacutevel
uma sociedade deve acreditar na viabilidade de uma sociedade universal e proacutespera
Antes a visatildeo straussiana eacute de que a higidez de uma ordem social depende do fato de que
ela acredite em seus proacuteprios ideais e princiacutepios13 Natildeo obstante se o niilismo moderno eacute
12 DRURY S The Political Ideas of Leo Strauss Updated Edition Lexington Palgrave Macmillan 2005 (1987) p 162 ldquoThe West is in decline because it has fallen prey to nihilism Nihilism is simply the belief that all values or ends are of equal worth or that there is nothing intrinsically more noble or good than any other The values of our own civilization are not superior to those of any other because all values are equally groundless and hence equally worthless All values are conventions ideologies interpretations fictions or products of will to power Nihilism is a profound indifference to the distinctions between good and evil noble and baserdquo (Traduccedilatildeo livre) 13 Cf Ibidem p 162
66
a fonte desta falta de sentido ou desta falta de direccedilatildeo dos homens a raiz do problema
estaria na questatildeo como o niilismo foi desvelado Para Strauss a fonte do niilismo
moderno ou de seu desvelamento estaacute no historicismo ou no forte caraacuteter idealista do
pensamento moderno como jaacute podemos perceber na criacutetica de FH Jacobi ao idealismo
Alematildeo14 Antes de Nietzsche Jacobi em suas Cartas sobre o Niilismo apontou assim
para os perigos do niilismo moderno Observando isso percebemos que natildeo eacute agrave toa que
Strauss agraves vezes usa os termos historicismo niilismo e relativismo como sinocircnimos como
se ele descrevesse um ou o mesmo fenocircmeno15 Portanto para ele (Strauss) o historicismo
eacute amplamente responsaacutevel pelo niilismo moderno ou por seu desvelamento e assim pela
crise moderna16
O Niilismo alematildeo e o Nacional Socialismo
O fenocircmeno dos totalitarismos por motivos oacutebvios natildeo eacute de fato um
fenocircmeno exclusivamente alematildeo de forma que natildeo se trata aqui de reduzir esses
acontecimentos ao contexto da histoacuteria alematilde No entanto para que natildeo fiquemos
caminhando em ciacuterculos neste momento nos deteremos em uma expressatildeo fundamental
na visatildeo de Strauss para a compreensatildeo de um fenocircmeno ainda mais primevo e central a
saber o niilismo alematildeo17
Para Strauss a ascensatildeo do nacional socialismo alematildeo eacute antes de tudo uma
consequecircncia de um fenocircmeno muito maior e complexo chamado niilismo alematildeo Para
Strauss o niilismo tem raiacutezes muito mais profundas que os discursos de Hitler a derrota
da Alemanha na Guerra Mundial e tudo que se relaciona com isso18 O nacional
socialismo seria entatildeo apenas uma forma politizada de niilismo uma forma de niilismo
vulgar que se tornou mais famosa e popular Decerto a fim de iluminar nosso caminho
em direccedilatildeo a uma melhor compreensatildeo deste fenocircmeno devemos entender de forma mais
adequada o que eacute niilismo Ora esclarece Strauss por niilismo entenda-se o velle nihil o
querer o nada ou a vontade de nada a destruiccedilatildeo de tudo inclusive de si mesmo e
14 Ler JACOBI Friedrich Heinrich Cartas a Mendelssohn David Hume Carta a Fichte Trad Joseacute Luis Villacantildeas Barcelona Ciacuterculo de Lectores 1996 15 DRURY S The Political Ideas of Leo Strauss p 163 16 Ibidem p 163 17 Strauss possui um longo e esclarecedor ensaio sobre esse assunto escrito em 1941 em plena Segunda Guerra Mundial no iniacutecio de seu exiacutelio nos EUA este ensaio foi publicado mais recentemente pela Interpretation ndash a journal of political philosophy em 1999 Consultar STRAUSS L German Nihilism Editado por David Janssens e Daniel Tanguay Interpretation Spring 1999 vol 26 ndeg 3 18 STRAUSS L German Nihilism p 357
67
portanto primariamente a vontade de autodestruiccedilatildeo19 Esse sintoma se revelaria na
corrida armamentista caracteriacutestica do fim do seacuteculo XIX e comeccedilo do seacuteculo XX o que
resulta segundo Strauss na radicalizaccedilatildeo do Militarismo e do fortalecimento de valores
beacutelicos (Warlike ideals)
Entretanto para Strauss o niilismo alematildeo natildeo eacute um niilismo absoluto isto
eacute o desejo de destruiccedilatildeo de tudo inclusive de si mesmo mas a destruiccedilatildeo de algo
especiacutefico da civilizaccedilatildeo moderna20 Mas isso torna o niilismo alematildeo quase um niilismo
absoluto pois embora o niilismo alematildeo fosse por assim dizer um tipo limitado de
niilismo sua negaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo moderna natildeo eacute guiada ou acompanhada por nenhuma
concepccedilatildeo positiva clara21 O problema ou o mal-estar que gera o niilismo alematildeo eacute um
problema de caraacuteter moral22 Sendo assim o moralismo eacute um sintoma preponderante e
decisivo dos discursos totalitaacuterios como o proacuteprio Strauss explica na seguinte passagem
O niilismo alematildeo deseja a destruiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo moderna como tal a civilizaccedilatildeo tem um significado moral Como qualquer um sabe ele natildeo faz muita objeccedilatildeo aos artifiacutecios da teacutecnica moderna Este significado moral da civilizaccedilatildeo moderna ao que os niilistas alematildees se opotildeem eacute expresso em formulaccedilotildees tal como estas para socorrer o estado de homem ou para salvaguardar os direitos do homem ou a maior felicidade possiacutevel do maior nuacutemero possiacutevel Qual eacute o motivo subjacente do protesto contra a civilizaccedilatildeo moderna contra o espiacuterito do ocidente e em particular do ocidente anglo-saxatildeo23
Apresentado tal questionamento o fator a ser levantado e melhor esclarecido
a partir daqui eacute entatildeo por que o Ocidente seria um inimigo maior a ser destruiacutedo Ora
para Strauss
A resposta deve ser eacute um protesto moral Este protesto procede da convicccedilatildeo que o internacionalismo inerente agrave civilizaccedilatildeo moderna ou mais precisamente que o estabelecimento de uma sociedade perfeitamente aberta como eacute a meta da civilizaccedilatildeo moderna e portanto todas as aspiraccedilotildees dirigidas em direccedilatildeo a esta meta satildeo irreconciliaacuteveis
19 Ibidem p 357 20 Ibidem p 357 21 Ibidem p 357 22 Ler sobre isso SHELL Susan ldquoTo Spare the Vanquished and Crush the Arrogantrdquo Leo Straussrsquos Lecture on ldquoGerman Nihilismrdquo In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 171-192 23 Ibidem p 358 ldquoGerman nihilism desires the destruction of modem civililsquosrsquoation as far as modern civililsquosrsquoation has a moral meaning As everyone knows it does not object so much to modem technical devices That moral meaning of modem civilization to which the German nihilists object is expressed in formulations such as these to relieve mans estate or to safeguard the rights of man or the greatest possible happiness of the greatest possible number What is the motive underlying the protest against modem civilisation against the spirit of the West and in particular of the Anglo-Saxon Westrdquo (Traduccedilatildeo livre)
68
com as demandas baacutesicas da vida moral O protesto procede da convicccedilatildeo que a raiz de toda vida moral eacute essencialmente e portanto eternamente a sociedade fechada da convicccedilatildeo que a sociedade aberta estaacute fadada a ser se natildeo imoral no miacutenimo amoral o lugar de encontro dos perseguidores do prazer do lucro do poder irresponsaacutevel de fato de qualquer tipo de irresponsabilidade e falta de seriedade24
Dito isto percebe-se que ao ver de Strauss o rechaccedilo agrave cultura ocidental
constroacutei as bases de seu edifiacutecio a partir de um argumento de cunho moral Nesse sentido
ldquoo niilismo alematildeo eacute uma forma radicalizada de militarismo alematildeordquo mais precisamente
um conflito que apenas a priori e de certa maneira aparece como uma guerra de
princiacutepios e que paulatinamente se configura como um sentimento de amor agrave guerra De
fato as emoccedilotildees e os sentimentos gerados no acircmago do povo pelos fatiacutedicos
acontecimentos relacionados agrave Guerra Mundial ao vazio e total falta de sentido
caracteriacutestico do mundo poacutes-guerra parecem ter achado um terreno feacutertil para o cultivo
da paixatildeo pela destruiccedilatildeo do mundo da forma que se apresentara A paixatildeo pelo novo e a
ruptura com o passado ou melhor a destruiccedilatildeo da tradiccedilatildeo para a construccedilatildeo de algo
totalmente novo um novo que teria como fim a redenccedilatildeo o Estado perfeito a paz O
preccedilo por esse esplendor entatildeo foi visto como incomensuraacutevel e o meio soacute seria possiacutevel
atraveacutes das armas atraveacutes da guerra total Nesse sentido Strauss afirma que
indubitavelmente
ningueacutem poderia estar satisfeito com o mundo poacutes-guerra A democracia liberal alematilde de todas as descriccedilotildees parecia para muitas pessoas ser absolutamente incapaz de lidar com as dificuldades com as quais a Alemanha foi confrontada25
Sendo assim para Strauss uma atmosfera de desconfianccedila e incredulidade
com relaccedilatildeo a qualquer regime de aspiraccedilatildeo democraacutetica se tornara ainda mais forte com
o passar do tempo e em virtude do abismo social em que Alemanha se encontrara Ainda
nesse mesmo sentido essa atmosfera contribuiu diretamente segundo Strauss para o
24 Ibidem p 358 ldquoThe answer must be it is a moral protest That protest proceeds from the conviction that the internationalism inherent in modem civililsquosrsquoation or more precisely that the establishment of a perfectly open society which is as it were the goal of modem civililsquosrsquoation and therefore all aspirations directed toward that goal are irreconcilable with the basic demands of moral life That protest proceeds from the conviction that the root of all moral life is essentially and therefore eternally the closed society from the conviction that the open society is bound to be if not immoral at least amoral the meeting ground of seekers of pleasure of gain of irresponsible power indeed of any kind of irresponsibility and lack of seriousnessrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 25 Ibidem p 359 ldquoNo one could be satisfied with the post-war world German liberal democracy of all descriptions seemed to many people to be absolutely unable to cope with the difficulties with which Germany was confrontedrdquo (Traduccedilatildeo livre)
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surgimento de um profundo preconceito ou para a confirmaccedilatildeo de um profundo
preconceito jaacute existente contra a democracia liberal26 Diante deste cenaacuterio duas
alternativas agrave democracia liberal foram abertas a primeira aparentemente pretendia
retornar a um contexto preacute-guerra a segunda por outro lado via nos acontecimentos do
presente o prenuacutencio da revoluccedilatildeo ou o caminho rumo agrave revoluccedilatildeo uma consequente e
inevitaacutevel nova guerra mundial Com efeito esta segunda alternativa pareceu mais
interessante ao povo alematildeo na medida em que estava sustentada numa crenccedila jaacute
envelhecida em ldquoum levante do proletariado e dos estratos proletaacuterios da sociedade que
conduziria ao desaparecimento do Estado agrave sociedade sem classes agrave aboliccedilatildeo de toda
exploraccedilatildeo e injusticcedila agrave era da paz finalrdquo27 Portanto ldquofoi essa perspectiva pelo menos
tanto quanto o presente desesperado que conduziu ao niilismordquo28
Neste contexto ldquoa perspectiva de um planeta pacificado sem opressores e
oprimidos de uma sociedade devotada agrave produccedilatildeo e consumo apenasrdquo29 foi amplamente
acreditada mas natildeo como processo paulatino e sim para jaacute a partir da crenccedila de que isso
podia ser construiacutedo aqui e agora se tornou predominante para grande parte da juventude
alematilde certamente pelo fato de estarem os jovens preocupados com suas proacuteprias posiccedilotildees
social e econocircmica30 Mas isso por outro lado gerou uma espeacutecie de ldquoateiacutesmo juvenilrdquo
no mundo tal como se apresentara o que acabou por tornar as alternativas intoleraacuteveis
pelo jovem alematildeo Com efeito se por um lado a democracia liberal natildeo inspirava
confianccedila Strauss explica que por outro
o que para os comunistas parecia o cumprimento do sonho da humanidade parecia para os jovens alematildees como a maior degradaccedilatildeo da humanidade como a vinda do fim da humanidade como a chegada do ultimo homem31
Embora a juventude alematilde natildeo soubesse bem o que queriam construir no
lugar do presente ela estava compelida a destruir o mundo tal como era levada por aquilo
26 Ibidem p 359 27 Ibidem p 359-360 ldquohellipa rising of the proletariat and of the proletarianized strata of society which would usher in the withering away of the State the classless society the abolition of all exploitation and injustice the era of final peacerdquo (Traduccedilatildeo livre) 28 Ibidem p 360 ldquoIt was this prospect at least as much as the desperate present which led to nihilismrdquo (Traduccedilatildeo livre) 29 Ibidem p 360 ldquoThe prospect of a pacified planet without rulers and ruled of a planetary society devoted to production and consumption onlyhelliprdquo (Traduccedilatildeo livre) 30 Ibidem p 360 31 Ibidem p 360 ldquoWhat to the communists appeared to be the fulfilment of the dream of mankind appeared to those young Germans as the greatest debasement of humanity as the coming of the end of humanity as the arrival of the latest manrdquo (Traduccedilatildeo livre)
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que Strauss nomeia como ldquoonda do futurordquo (wave of the future) ndash mesmo que a ideia de
futuro natildeo fosse nada clara ou talvez nem mesmo existisse
Para Strauss o que estaacute em jogo eacute o fato de que a juventude alematilde natildeo
acreditava mais na possiblidade dos instrumentos poliacuteticos e ideoloacutegicos de seu tempo
por que foram de fato instrumentos forjados pelos homens velhos A emancipaccedilatildeo dos
jovens eacute uma caracteriacutestica central da Alemanha poacutes-primeira guerra E se o idealismo
alematildeo caminhou em direccedilatildeo ao teiacutesmo ou ao panteiacutesmo nesse novo momento essa
juventude seraacute tomada por um sentimento ateiacutesta Segundo Strauss isso se daacute pela
influecircncia radical do pensamento de Schopenhauer e sobretudo de Nietzsche sobre a
mente do jovem alematildeo do periacuteodo poacutes-primeira guerra Nesse sentido o proacuteprio Strauss
faz a seguinte colocaccedilatildeo ldquoSchopenhauer foi no meu conhecimento o primeiro filoacutesofo
alematildeo natildeo materialista e conservador que professou abertamente seu ateiacutesmordquo32 No
entanto para Strauss a influecircncia de Schopenhauer em nada se compara com o poder e o
fasciacutenio exercido pelo pensamento de Nietzsche sobre parte da juventude alematilde33 Ora
segundo Strauss ldquoNietzsche afirmou que a aceitaccedilatildeo ateiacutesta natildeo eacute reconciliaacutevel com mas
indispensaacutevel para uma poliacutetica antidemocraacutetica antissocialista e antipacifista de acordo
com ele toda crenccedila comunista eacute apenas uma forma de teiacutesmo de crenccedila na
providecircnciardquo34
Mas como sabemos Nietzsche jaacute estava morto haacute algumas deacutecadas No
entanto o sucesso e a propagaccedilatildeo de suas ideias dependia da explicaccedilatildeo dos grandes
professores da eacutepoca (e em alguns casos especiacuteficos de sua deturpaccedilatildeo) natildeo menos que
nomes como os de Spengler Moeller van den Bruck Carl Schmitt Ernst Junger e
Heidegger entre outros segundo Strauss teriam aberto de forma consciente ou natildeo um
caminho para Hitler35 Diante disso o nazismo surgiu como resposta ao vazio radical
vivido por uma juventude niilista Um fio de esperanccedila que seria anunciada por um ceacuteu
nebuloso e obscuro seguido de uma tempestade devastadora que seria semelhante ao fim
do mundo mas que na verdade deveria ser compreendida como o fim de uma era
32 Ibidem p 361 ldquoSchopenhauer was to my knowledge the first non-materialist and conservative German philosopher who openly professed his atheismrdquo (Traduccedilatildeo livre) 33 O proacuteprio Strauss em suas correspondecircncias com Karl Loumlwith fala sobre seu fasciacutenio pela obra de Nietzsche quando jovem afirma que entre seus 20 e 30 anos de idade foi ldquoenfeiticcediladordquo pelas palavras daquele homem chegando a acreditar em tudo que conseguia entender de Nietzsche Cf Leo Strauss to Karl Loumlwith 23 June 1935 in ―Correspondence of Karl Loumlwith and Leo Strauss trans George Elliot Tucker Independent Journal of Philosophy 56 (1988) 182ndash83 34 Ibidem p 361-362 ldquoNietzsche asserted that the atheist assumption is not only reconcilable with but indispensable for a radical anti-democratic anti-socialist and anti-pacifist policy according to him even the communist creed is only a secularized form of theism of the belief in providencerdquo (Traduccedilatildeo livre) 35 Cf Ibidem p 362
71
Com efeito explica Strauss que ldquose o niilismo eacute a rejeiccedilatildeo dos princiacutepios da
civilizaccedilatildeo como tal e se a civilizaccedilatildeo eacute baseada no reconhecimento do fato que o sujeito
da civilizaccedilatildeo eacute o homem como homem toda interpretaccedilatildeo da ciecircncia e moral em termos
de raccedila ou naccedilotildees ou de culturas eacute estritamente niilistardquo36 De fato ela estaraacute sempre
dentro de um contexto histoacuterico relativo e determinado por vaacuterios fatores quais sejam
local eacutepoca e os desenvolvimentos de cada cultura Portanto o que Strauss tenta mostrar
eacute que haacute uma distinccedilatildeo entre dois tipos de niilismo o niilismo em geral e o niilismo
alematildeo O niilismo em geral rejeita os valores humanos a civilizaccedilatildeo como um todo o
niilismo alematildeo por sua vez rejeita o ideal moderno de civilizaccedilatildeo rejeita um tipo
especiacutefico de civilizaccedilatildeo37 por isso acredita na guerra crenccedila esta alimentada por um
pathos salviacutefico De fato o niilismo alematildeo rejeita os princiacutepios da civilizaccedilatildeo tal como
eacute em favor da guerra e da conquista em favor das virtudes guerreiras O niilismo alematildeo
eacute portanto parente do militarismo alematildeo38
A Ciecircncia Poliacutetica Moderna e a ldquoTirania de nossos temposrdquo
De acordo com Strauss a ciecircncia poliacutetica moderna eacute niilista porque
abandonou o seu objetivo normativo mais alto de fato o seu caraacuteter deontoloacutegico morreu
com os antigos os quais foram acusados pelos pensadores modernos de serem
demasiados utoacutepicos ou se se preferir ingenuamente romacircnticos Isso significa que a
ciecircncia poliacutetica morreu quando abdicou da exigecircncia de refletir seriamente sobre o melhor
regime e sobre a necessidade de se buscar racionalmente a verdade acerca do bem do
justo e do belo Portanto a ciecircncia poliacutetica morreu quando abdicou da tarefa de legislar
para apenas descrever Em outras palavras a ciecircncia poliacutetica moderna abandonou o ideal
antigo e sua busca pelo ldquodever serrdquo e pelas virtudes para se limitar a dizer ldquoo que eacuterdquo Tal
postura supostamente mais realista surge jaacute no tempo da renascenccedila segundo Strauss eacute
com Maquiavel de fato que brotam as raiacutezes do plano poliacutetico moderno39 Poreacutem mesmo
sendo o autor de O Priacutencipe o responsaacutevel direto por uma negaccedilatildeo radical da filosofia
36 Ibidem p 366 ldquoIf nihilism is the rejection of the principles of civilisation as such and if civilisation is based on recognition of the fact that the subject of civilisation is man as man every interpretation of science and morals in terms of races or of nations or of cultures is strictly speaking nihilisticrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 37 Cf Ibidem p 367 38 Ibidem p 369 ldquoGerman nihilism rejects then the principles of civilisation as such in favor of war and conquest in favor of the warlike virtues German nihilism is therefore akin to German militarismrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 39 Cf STRAUSS L What is Political Philosophy And Other Studies p 40
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poliacutetica tal como era concebida por Platatildeo e Aristoacuteteles eacute Hobbes o grande mentor
intelectual da modernidade uma vez que eacute Hobbes que aplicando o meacutetodo matemaacutetico
agrave filosofia poliacutetica elevou a filosofia poliacutetica ao status de ciecircncia em sua acepccedilatildeo
moderna
De fato para Strauss a filosofia poliacutetica moderna possui suas bases na
exatidatildeo matemaacutetica isto eacute num conhecimento indiferente agraves paixotildees humanas Poreacutem
a opiniatildeo quase sempre possui sua origem em alguma paixatildeo humana e por ser assim a
filosofia poliacutetica a partir da modernidade teria se tornado incapaz de refletir sobre as
coisas poliacuteticas no seu acircmbito mais originaacuterio que eacute justamente o acircmbito da opiniatildeo
Segundo Strauss isso explicaria por que a filosofia poliacutetica moderna teria se tornado
incapaz de compreender entre outras coisas o fenocircmeno da tirania40 Esse fato
justificaria talvez a insistecircncia de Strauss em seu movimento de retorno aos preacute-
modernos a seu ver a ciecircncia poliacutetica tradicional possui elementos que possibilitam uma
melhor compreensatildeo do fenocircmeno da tirania jaacute que o mundo antigo conviveu durante
longos periacuteodos e de forma distinta sob a eacutegide desse tipo de regime Isso eacute perceptiacutevel
em sua obra On Tiranny41 (Sobre a Tirania) onde Strauss exerce uma leitura do Hieron
de Xonofonte referente ao diaacutelogo entre o tirano Hieron e o poeta Simonides sobre a
tirania e mesmo sob a forma de um diaacutelogo eleganter eacute possiacutevel perceber que o objetivo
de Strauss eacute refletir sobre a tirania do passado a fim de mostrar que a ciecircncia poliacutetica
moderna natildeo eacute capaz de compreender o fenocircmeno da tirania tal como ele se apresenta em
nosso tempo qual seja a experiecircncia totalitaacuteria Como podemos perceber no comentaacuterio
de Strauss Uma ciecircncia social que natildeo pode falar da tirania com a mesma propriedade com que a medicina fala por exemplo de cacircncer natildeo pode entender o fenocircmeno social tal o que ele eacute Isto eacute portanto natildeo cientiacutefico A ciecircncia social de nossos dias encontra-se nesta condiccedilatildeo Se for verdade que a ciecircncia social atual eacute o resultado inevitaacutevel da ciecircncia social moderna e da filosofia moderna uma delas eacute forccedilada a pensar a restauraccedilatildeo da ciecircncia social claacutessica Uma vez que noacutes aprendermos novamente com os claacutessicos o que eacute a tirania noacutes seremos capacitados e compelidos a diagnosticar com as tiranias um nuacutemero de regimes contemporacircneos que aparecem no disfarce das ditaduras Este diagnoacutestico pode apenas ser o primeiro passo em direccedilatildeo a uma anaacutelise
40 Cf STRAUSS L A Filosofia Poliacutetica de Hobbes Suas bases e sua gecircnese Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2016 p188 - 189 41 STRAUSS L On Tyranny Chicago The University of Chicago Press 2000
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exata da tirania dos dias atuais pois a tirania dos dias atuais eacute fundamentalmente diferente da tirania analisada pelos claacutessicos42
Sendo assim logo de partida em primeiro lugar Strauss aponta para um
aspecto seminal que eacute o fato de que a tirania antiga e a tirania moderna satildeo distintas em
essecircncia jaacute que a perspectiva moderna de tirania tem como fundamentos preciacutepuos o mito
do progresso (ilimitado) e a conquista e dominaccedilatildeo total da natureza elementos que
representam algo que se opotildee diametralmente ao projeto de aprimoramento da vida e
correccedilatildeo das sociedades proposto pelas ciecircncias modernas Eis por que Strauss vecirc no
cientista social moderno uma figura vendada e incapaz de captar a essecircncia mesma do
que eacute a tirania Sobre isso Strauss afirma que
O fato de que existe uma diferenccedila fundamental entre a tirania claacutessica e a tirania dos dias atuais ou que os claacutessicos nem sonharam com a tirania atual natildeo eacute uma razatildeo boa ou suficiente para abandonar a referecircncia do sistema claacutessico Pois este fato eacute perfeitamente compatiacutevel com a possibilidade que a tirania dos dias atuais encontra seu lugar dentro do sistema claacutessico ie isto natildeo pode ser compreendido adequadamente exceto dentro da estrutura claacutessica A diferenccedila entre a tirania dos dias atuais e a tirania claacutessica tem sua raiz na diferenccedila entre a noccedilatildeo moderna de filosofia ou ciecircncia e a noccedilatildeo claacutessica de filosofia ou ciecircncia A tirania dos dias atuais em contradiccedilatildeo a tirania claacutessica eacute baseada no progresso ilimitado e na ldquoconquista da naturezardquo que se tornou possiacutevel atraveacutes da ciecircncia moderna assim como na popularizaccedilatildeo ou difusatildeo do conhecimento filosoacutefico ou cientiacutefico43
Ora embora Sobre a tirania seja apenas um comentaacuterio o insight filosoacutefico
trazido por ele eacute fecundo e original e se trata por assim dizer de uma criacutetica agrave maneira
42 STRAUSS L On Tyranny p 177 ldquoA social science that cannot speak of tyranny with the same confidence with which medicine speaks for example of cancer cannot understand social phenomena as what they are It is therefore not scientific Present-day social science finds itself in this condition If it is true that present-day social science is the inevitable result of modern social science and of modern philosophy one is forced to think of the restoration of classical social science Once we have learned again from the classics what tyranny is we shall be enabled and compelled to diagnose as tyrannies a number of contemporary regimes which appear in the guise of dictatorships This diagnosis can only be the first step toward an exact analysis of present ndashday tyranny for present-day tyranny is fundamentally different from the tyranny analyzed by the classicsrdquo (Traduccedilatildeo livre) 43 STRAUSS L On Tyranny p 177 ldquoA social science that cannot speak of tyranny with the same confidence with which medicine speaks for example of cancer cannot understand social phenomena as what they are It is therefore not scientific Present-day social science finds itself in this condition If it is true that present-day social science is the inevitable result of modern social science and of modern philosophy one is forced to think of the restoration of classical social science Once we have learned again from the classics what tyranny is we shall be enabled and compelled to diagnose as tyrannies a number of contemporary regimes which appear in the guise of dictatorships This diagnosis can only be the first step toward an exact analysis of present ndashday tyranny for present-day tyranny is fundamentally different from the tyranny analyzed by the classicsrdquo (Traduccedilatildeo livre)
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por meio da qual a ciecircncia poliacutetica moderna lida com o fenocircmeno do totalitarismo Pois
para Strauss a pretensatildeo moderna de construccedilatildeo de uma repuacuteblica universal um estado
igualitaacuterio livre das desigualdades homogecircneo e feliz consiste na realidade na
consolidaccedilatildeo de uma tirania Portanto ainda na oacutetica straussiana a ciecircncia poliacutetica
moderna fez de sua utopia morada e ao fazer isso transformou a construccedilatildeo de seu
paraiacuteso um inferno de violecircncia e destruiccedilatildeo movida por ideais de mundo que de tatildeo
perfeitos cegaram a razatildeo abrindo passagem para oportunistas sanguinaacuterios
Em resumo Strauss indica uma resposta indireta ao problema se
posicionando inclusive no contexto da filosofia poliacutetica em relaccedilatildeo ao problema da
finitude e do esgotamento das formas poliacuteticas e ao fazer isso preserva o termo tirania
para descrever um fenocircmeno dos nossos tempos Importante observar a aposta de Strauss
de por meio de uma anaacutelise ou melhor atraveacutes da escuta atenta ao que os antigos tecircm a
nos dizer encontrar importantes ensinamentos sobre as tiranias antigas e modernas
valorizando o legado filosoacutefico dos escritores do passado cujas obras permitem iluminar
uma melhor compreensatildeo daquilo que podemos nomear como ldquoinvestidas tiracircnicas dos
nossos temposrdquo
Parece ter sido o esforccedilo de Strauss nos fazer refletir acerca do perigo das
promessas e dos mais lindos devaneios de redenccedilatildeo da razatildeo humana ou acerca das
pretensotildees das ideologias de transformar este mundo na morada perfeita para os homens
De fato como foi dito ainda na introduccedilatildeo deste ensaio natildeo era a intenccedilatildeo deste propor
nem mesmo uma iacutenfima interpretaccedilatildeo acerca dos acontecimentos funestos do breve mas
conturbado seacuteculo XX Talvez natildeo fosse apresentado algo de realmente novo e original
quase certamente que natildeo No entanto por outro lado o insight de Strauss que deve ser
colocado aqui no cerne da discussatildeo eacute que este filoacutesofo vivendo em plena guerra em seu
exiacutelio nos EUA conseguiu nos presentear com uma profunda reflexatildeo de sobriedade
incriacutevel encarando os fatos poliacuteticos catastroacuteficos do seacuteculo XX em seu alto grau de
complexidade e amplitude
Nesse sentido devemos meditar acerca da necessidade de estarmos sempre
em alerta frente ao perigo da crenccedila na poliacutetica como esperanccedila do risco sorrateiro que
rodeia e estaacute sempre agrave espreita dos discursos de caraacuteter salviacutefico de forte apelo
messiacircnico Em outras palavras essa crenccedila que sempre retorna nos momentos mais
difiacuteceis e que usa o grande clamor popular como instrumento de manobra para legitimar
suas ldquomelhores intenccedilotildeesrdquo e funciona muitas vezes como uma espeacutecie de guia das
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multidotildees que sedentas por justiccedila e igualdade marcham rumo a um futuro proacutespero de
paz para todos os povos
De fato eacute a partir da memoacuteria dos acontecimentos do passado que devemos
estar conscientes do perigo de tais promessas sempre forjadas com um alto teor
racionalista Com isso seremos capazes de manter a desconfianccedila em relaccedilatildeo aos
fantasmas da histoacuteria lembrando que as grandes trageacutedias possuiacuteam quase sempre por
traacutes de si fortes evidecircncias de sua benevolecircncia baseada e garantida pela razatildeo Eacute para o
que nos alerta Roger Scruton de forma bastante contemporacircnea quando nos lembra que
ldquoa liquidaccedilatildeo dos Kulaks foi justificada pela lsquociecircncia marxistarsquo as doutrinas racistas dos
nazistas foram propostas como eugenia cientiacutefica e lsquoO Grande Salto para o Futurorsquo de
Mao Tseacute Tung foi considerado a simples aplicaccedilatildeo de leis comprovadas da histoacuteriardquo44
Ora esses satildeo alguns dos muitos acontecimentos catastroacuteficos que foram legitimados
escolhidos e executados em nome da razatildeo
Em suma o que Strauss tenta tornar patente por meio de uma reflexatildeo densa
e rigorosa eacute de fato o perigo que nos espreita quando a crenccedila na razatildeo se torna
edificante e pretende se fazer construtora de um mundo melhor ou ainda o risco contido
na transformaccedilatildeo da visatildeo fria do especialista em guia de uma sociedade Em outras
palavras trata-se da tentaccedilatildeo do otimismo racional que se aventura a prometer aquilo que
a racionalidade filosoacutefico-cientiacutefica em essecircncia natildeo eacute capaz de produzir45 a saber paz e
igualdade entre os homens se convertendo no contraacuterio ao mostrar seu lado sombrio e
seu elatilde destruidor Em ultima anaacutelise Strauss apesar de ter toda sua famiacutelia totalmente
destruiacuteda e sua vida quase ceifada de forma violenta e prematura natildeo se preocupou em
apontar culpados evitando a ordinaacuteria reductio ad Hitlerum (tatildeo comum entre
socioacutelogos historiadores e psicoacutelogos de nossa eacutepoca) mas tentou entender antes quais
os elementos e atores foram necessaacuterios para que a razatildeo se tornasse autodestrutiva
Inequivocamente eacute necessaacuterio observar o passado e estarmos atentos ao fato de que
sempre que algueacutem ou alguma classe social afirmou saber o caminho do melhor estava
ali a se desvelar a face horrenda de uma nova tirania
44 SCRUTON R As Vantagens do Pessimismo e o perigo da falsa esperanccedila Trad Faacutebio Faria 1 Ed Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 p 8 45 Para Strauss o conhecimento filosoacutefico possui em si um caraacuteter corrosivo e subversivo destruidor de todas as verdades morais e tradiccedilotildees sendo entatildeo incapaz de trazer paz e felicidade aos homens Pelo contraacuterio a filosofia possui um caraacuteter perturbador e inquietante por desvelar toda falta de sentido da existecircncia humana tornando assim essa vida algo de insuportaacutevel para a maioria dos homens e sobretudo tornando impossiacutevel a manutenccedilatildeo da ordem civil Sobre isso ler o que Strauss diz em STRAUSS L Liberalism Ancient and Modern University of Chicago Press Edition 1995 p 83-85
76
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SCRUTON Roger As Vantagens do Pessimismo e o perigo da falsa esperanccedila Trad Faacutebio Faria 1 Ed Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015
SHELL Susan ldquoTo Spare the Vanquished and Crush the Arrogantrdquo Leo Straussrsquos Lecture on ldquoGerman Nihilismrdquo In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009
STRAUSS Leo A Filosofia Poliacutetica de Hobbes Suas bases e sua gecircnese Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2016
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VILLA D The Philosopher versus the Citizen Arendt Strauss and Socrates In VILLA D Politics Philosophy Terror Princeton Princeton University Press 1999 pp 155-179
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FUNCcedilAtildeO PERSONALIDADE EM DEVIR ndash UM OLHAR DA TEORIA DO
SELF
Fabio Henrique Medeiros Bogo1
RESUMO A partir da Teoria do Self em articulaccedilatildeo com as contribuiccedilotildees da psicanaacutelise e do escrutiacutenio anticapitalista de Deleuze e Guattari lanccedila-se um olhar ontoloacutegico-gestaacuteltico sobre o sujeito que outrora tido como estruturado teve o primado de sua racionalidade destronado pelas revoluccedilotildees de pensamento do seacuteculo XX Numa dinacircmica anaacuteloga agrave noccedilatildeo Deleuziana de ritornelo o Self estabelece laccedilos com o Outro no processo de contato como efeito tardio estas experiecircncias satildeo registradas linguiacutestica e conceitualmente compondo totalidades de sentido agraves quais o Self possa se identificar O que se produz eacute algo que se pode nomear como Personalidade que opera como funccedilatildeo de devir e natildeo como estrutura fixa exceto nos casos em que arbitrariamente se cristaliza com fins de evitaccedilatildeo do contato Palavras-chave Self personalidade ritornelo ontologia ABSTRACT Through the Theory of Self in articulation with the contributions of psychoanalysis and the anti-capitalist scrutiny of Deleuze and Guattari the article depicts an ontological-gestaltic view over the subject which otherwise conceived as structured has had the primacy of its rationality dethroned by the revolutions of thought of the 20th century By means of dynamics which are similar to Deleuzersquos notion of ritornello the Self establishes bonds with the Other during the process of contact as a late effect these experiences are registered linguistically and conceptually in a way that produces totalities of meaning to which it can identify What is produced is something that might be named as Personality which operates as a function of becoming and not a fixed structure with the exception of the cases in which it arbitrarily crystallizes as a means to avoid contact Keyword Self personality ritornello ontology
Introduccedilatildeo
As antropologias filosoacuteficas construiacutedas no iacutenterim da efervescecircncia poacutes-
modernista do seacuteculo XX denotavam uma distinta orientaccedilatildeo revisionista com relaccedilatildeo agraves
convencionadas estruturas de personalidade psicologistas Uma vez que a ldquocrise das
ciecircncias europeiasrdquo havia sido denunciada por Husserl2 e principalmente apoacutes as duas
1 Psicoacutelogo Mestre e Doutorando em Filosofia (UFSC) pela linha de pesquisa Ontologia Mente e Metapsicologia Orientando do Prof Dr Marcos Joseacute Muumlller fabiohbogogmailcom 2 HUSSERL A crise das ciecircncias europeias e a fenomenologia transcendental
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grandes guerras mundiais evidenciarem que a era moderna da razatildeo natildeo fora capaz de
neutralizar o afatilde humano pelo conflito jaacute natildeo se podia ignorar a necessidade de lanccedilar
novo olhar aos modos de produccedilatildeo de saber e de cultura As teorias criacuteticas surgidas em
Frankfurt e os gritos estudantis de Maio de 1968 na Franccedila foram fenocircmenos progecircnitos
destes tempos de inegaacutevel revoluccedilatildeo de pensamento e natildeo foi diferente com as teorias
sobre a identidade O desafio consistia em elaborar uma articulaccedilatildeo teoacuterica que
prescindisse em absoluto da loacutegica positivista de modo a natildeo incorrer em uma tipificaccedilatildeo
remanescente das teorias humorais do periacuteodo medieval com classificaccedilotildees
personaliacutesticas circunscritas na loacutegica autorreferente de suas estruturas Este caminho
seria rejeitado em favor de uma nova noccedilatildeo de Personalidade que contemplasse a gecircnese
da identidade na participaccedilatildeo coletiva das representaccedilotildees agraves quais o sujeito se identifica
Mesmo o conceito de representaccedilatildeo precisou ser ressignificado ao menos no
tangente de seu papel constitutivo da identidade sob pena de ser equivocadamente
tomada por metaacutefora as representaccedilotildees natildeo configuram meras abstraccedilotildees ideativas
sendo antes simulaccedilotildees que o sujeito engendra em suas apropriaccedilotildees de sentido
realidades construiacutedas simbolicamente e experienciadas por inteiro com todo o corpo
Mais precisamente as simulaccedilotildees operam a escrita das identificaccedilotildees no proacuteprio real O
sujeito que ldquofingerdquo ser um danccedilarino nesse processo danccedila de verdade A simulaccedilatildeo eacute
nesta analogia de Deleuze e Guattari3 uma re-produccedilatildeo uma coacutepia que deveacutem real A
literatura recente das ciecircncias humanas e da filosofia particularmente apoacutes a ldquorevoluccedilatildeo
copernicana inacabadardquo4 operada pela psicanaacutelise de Freud vem tateando a ideia do fim
da metafiacutesica e da superaccedilatildeo do sujeito autocontido do Eu (Moi) que eacute ldquoeu substancialrdquo
do Ser capaz de dobrar-se sobre si e adquirir certeza de si Em lugar disso assume-se um
ser que recebe seu sentido inteligiacutevel no seio da imersatildeo cultural isto equivale a dizer que
o sujeito foi tornado enunciado e substituiacutedo pela Arte Ciecircncia Religiatildeo Economia
Poliacutetica Miacutedia ndash enfim pela cultura
Os fatores supracitados indicam possiacutevel convergecircncia em uma figura de
sujeito que passa a ser concebida na fronteira de contato do campo de presenccedila
intersubjetivo do desejo onde as vivecircncias satildeo moldadas pela atualidade da experiecircncia
na realidade imanente Trata-se de uma ideia cuja fundaccedilatildeo estaacute agraves avessas ldquode fora para
dentrordquo no sentido ambiente-organismo e em que a Personalidade eacute tomada jaacute natildeo mais
como estrutura mas como funccedilatildeo de estabelecimento de laccedilo social Eacute assim que opera
3 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p121 4 LAPLANCHE La reacutevolution copernicienne inacheveacutee
80
por exemplo a teoria do Self construiacuteda por Fritz Perls Ralph Hefferline e o
fenomenoacutelogo Paul Goodman5 para sustentar a praacutetica cliacutenica da Gestalt-terapia6
Por oferecer uma leitura temporal da experiecircncia do sujeito que contemple
tanto sua participaccedilatildeo na realidade atual quanto a copresenccedila das inatualidades de seus
afetos e seus projetos-de-ser tanto a vivecircncia mais iacutentima de seu estranhamento quanto a
sua partilha na complexa trama do patrimocircnio de significaccedilotildees da humanidade tanto sua
existecircncia na qualidade de organismo em contato com o ambiente visando crescimento e
conservaccedilatildeo condiccedilatildeo que ele compartilha com toda a biosfera terrestre quanto sua
condiccedilatildeo particular de Ser posto-em-questatildeo e submetido agrave marca indeleacutevel da cultura a
teoria do Self seraacute utilizada aqui como chave maior de anaacutelise A partir dela eacute que seratildeo
estabelecidas as interlocuccedilotildees com as demais contribuiccedilotildees aqui tomadas de empreacutestimo
para matizar a diversidade que a anaacutelise requer procurando manter viva a voz que as
profere sem forccedilar uma siacutentese neutralizadora das diferenccedilas A teoria do Self eacute inclusiva
e heterogecircnea nascida ela proacutepria na confluecircncia da psicanaacutelise da fenomenologia e da
Gestalttheorie e a aceitaccedilatildeo do conflito aberto eacute sua parte integrante Somente pela sua
assincronia eacute que um todo gestaacuteltico7 logra preservar a multiplicidade da experiecircncia de
ser
Dimensatildeo reflexiva do sistema-funccedilatildeo self a personalidade
Parte da riqueza da teoria do Self construiacuteda por Perls Hefferline e Goodman
diz respeito agrave possibilidade de contemplar o sujeito a partir de pontos de vista distintos
Por meio da anatomofisiologia chega-se a um sujeito como conjunto das funccedilotildees de
percepccedilatildeo propriocepccedilatildeo musculatura motricidade autorregulaccedilatildeo organiacutesmica etc
que natildeo eacute menos factiacutevel que uma definiccedilatildeo da ordem de uma psicodinacircmica funcional ndash
funccedilotildees de Id Ego e Personalidade ndash ou temporal ndash relacionada agraves etapas do processo de
contato distintas apenas com fins elucidativos Em suma conceber o sujeito como um
gestalt eacute admitir que todos estes pontos de vista tornem manifesta uma ou outra dimensatildeo
5 PERLS Fritz HEFFERLINE Ralph GOODMAN Paul Gestalt-terapia 6 No decorrer deste texto os autores seratildeo referenciados como ldquoPHGrdquo para fins de praticidade 7 A noccedilatildeo mereoloacutegica intencionada no uso do termo alematildeo ldquogestaltrdquo de difiacutecil traduccedilatildeo eacute a de uma totalidade composta por partes assinteacuteticas alternando o status de figura e fundo em funccedilatildeo da mirada do observador cuja participaccedilatildeo eacute sine qua non neste processo Atentar para um dos aspectos deste todo eacute conferir-lhe prioridade e evidenciaacute-lo como ldquofigurardquo enquanto os demais mantecircm o status de ldquofundordquo Da mesma forma apreender intencionalmente um ldquotodordquo eacute perder de vista as nuances de suas ldquopartesrdquo componentes e vice-versa
81
deste sujeito sem jamais esgotaacute-lo ou tampouco estabelecer muacutetua complementaridade
Porquanto seja ontologia a teoria do Self eacute inexoravelmente plural ndash e paradoxalmente
o Self eacute o integrador o correlato da unidade sinteacutetica Kantiana Em concordacircncia com a
letra de Merleau-Ponty em sua leitura de Kurt Goldstein8 o ldquoeurdquo do Self eacute um ldquoeu-
engajadordquo uma vez que
[hellip] a consciecircncia projeta-se em um mundo fiacutesico e tem um corpo assim como ela se projeta em um mundo cultural e tem haacutebitos porque ela soacute pode ser consciecircncia jogando com significaccedilotildees dadas no passado absoluto da natureza ou em seu passado pessoal e porque toda forma vivida tende para uma certa generalidade seja a de nossos haacutebitos seja a de nossas ldquofunccedilotildees corporaisrdquo 9
A teoria do Self trata de um corpo de atos ndash o da anatomia e da fisiologia
capaz de respostas sensoriais e motoras ndash que eacute atravessado por um corpo outro preacute-
pessoal o corpo de haacutebitos Ambos corpo anatomofisioloacutegico e corpo habitual se
expressam no contato e a impessoalidade dos haacutebitos garante uma perspectiva de falta
(de sentido) Encobrindo-os estaacute a dimensatildeo antropoloacutegica Imaginaacuteria do contato alccedilada
em significaccedilotildees Eis a relaccedilatildeo com a noccedilatildeo de corpo-sem-oacutergatildeos como encontrada
originalmente na obra de Antonin Artaud10 de um corpo uacutenico organismo preacute-reflexivo
que pulsa e contata antes de ser dilacerado por sua ldquofragmentaccedilatildeo em oacutergatildeosrdquo uma
referecircncia agrave sectarizaccedilatildeo em conceitos do intelecto Eacute assim que Artaud conclui seu
manifesto ldquoPara acabar com o julgamento de Deusrdquo transmitido pelo raacutedio em 1948
O homem eacute enfermo porque eacute mal construiacutedo Temos que nos decidir a desnudaacute-lo para raspar esse animaluacuteculo que o corroacutei mortalmente 2 deus e juntamente com deus os seus oacutergatildeos Se quiserem podem meter-me numa camisa de forccedila mas natildeo existe coisa mais inuacutetil que um oacutergatildeo Quando tiverem conseguido um corpo sem oacutergatildeos entatildeo o teratildeo libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade Entatildeo poderatildeo ensinaacute-lo a danccedilar agraves avessas como no deliacuterio dos bailes populares e esse avesso seraacute seu verdadeiro lugar
Na medida em que eacute composta de objetos do conhecimento que o sujeito
agrega e compotildee para tecer uma sorte de discurso sobre si de certo modo a funccedilatildeo
Personalidade eacute construiacuteda agrave maneira de uma narrativa ela eacute naturalmente uma
construccedilatildeo tardia do processo de contato que eacute posterior agrave apropriaccedilatildeo linguiacutestico-
8 O neurologista e psiquiatra Kurt Goldstein foi uma das mais importantes influecircncias para o casal Fritz e Laura Perls na ocasiatildeo da criaccedilatildeo da Gestalt-terapia e da Teoria do Self em conjunto com Paul Goodman 9 MERLEAU-PONTY Fenomenologia da percepccedilatildeo p192 10 ARTAUD Antonin Para acabar com o julgamento de Deus p42
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reflexiva do que foi experienciado em ato e que se presta agrave participaccedilatildeo na comunidade
de sentidos da cultura Em outras palavras o que a funccedilatildeo Personalidade produz eacute ldquouma
formaccedilatildeo do Self por uma atitude social compartilhadardquo11 Na medida em que deveacutem o
Self ndash de cuja integralidade participam tambeacutem o corpo de haacutebitos e a funccedilatildeo de ato ndash eacute
uma poesia arriacutetmica e fadada agrave incompletude Em comparaccedilatildeo a ldquopessoardquo que resulta
do trabalho da Personalidade eacute uma prosa razoavelmente inteligiacutevel
Ademais dentre tais muacuteltiplos vieses possiacuteveis a cliacutenica gestaacuteltica desde o
princiacutepio se apresentou como uma empresa de atenccedilatildeo agrave awareness isto eacute agrave emergecircncia
de excitamentos no fundo de passado e a formulaccedilatildeo de desejos de protensatildeo futura a
partir das atualidades O fluxo de awareness se traduz como a proacutepria criaccedilatildeo (protensatildeo
e realizaccedilatildeo) e destruiccedilatildeo (assimilaccedilatildeo e repeticcedilatildeo) de gestalten de maneira quase anaacuteloga
agrave dinacircmica das pulsotildees de vida e de morte A awareness sensorial manifesta-se como
dinacircmica de conservaccedilatildeo a assimilaccedilatildeo da dimensatildeo de ldquomais-gozarrdquo de cada ato e sua
repeticcedilatildeo como haacutebitos motores ou verbais que natildeo se confundem com a memoacuteria nem
com os sentimentos do ego psicofiacutesico substanciado pois tratam do atravessamento do
corpo ldquoporosordquo do sujeito por um passado impessoal da ordem do gozo como outrem
sem motivo ou criteacuterios de manifestaccedilatildeo precisos e que soacute se deixam apreender a
posteriori pelo rastro de excitamento que deixam no corpo A awareness deliberada por
sua vez manifesta-se como dinacircmica de crescimento as accedilotildees individuais respostas
motoras e verbais orientadas pelas inatualidades de passado habitual e futuro
possibiliacutestico constituem uma totalidade presuntiva uma gestalt sob a forma de desejo
por ser o correlato atual do contato a awareness deliberada daacute abertura para a experiecircncia
individual do sujeito unitaacuterio sempre dinacircmica e em devir orientada no sentido de um
realizar-se12
Na dinacircmica do desejo o sujeito vivencia um todo presuntivo que representa
uma representaccedilatildeo futura que o sujeito viraacute-a-ser Haacute neste apanhado imbuiacutedo de
inteligibilidade um terceiro desdobramento tardio na forma da awareness reflexiva
proacuteprio agrave condiccedilatildeo humana pois depende da faculdade de consciecircncia reflexiva e da
aquisiccedilatildeo da linguagem Este desdobramento tem a ver com os juiacutezos intelectuais que o
sujeito estabelece sobre suas proacuteprias sensaccedilotildees e accedilotildees Como dinacircmica de
autoconsistecircncia imaginaacuteria a awareness reflexiva envolve o processo de ldquodar-se contardquo
11 PHG Gestalt-terapia p123 12 MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Cliacutenicas gestaacutelticas sentido eacutetico poliacutetico e antropoloacutegico da teoria do Self p32
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ou ldquoter consciecircnciardquo de si em correspondecircncia com a intencionalidade categorial de
Husserl que resulta na construccedilatildeo de uma ficccedilatildeo inteligiacutevel sobre a experiecircncia ontoloacutegica
do sujeito Eis a dimensatildeo do fluxo de awareness que receberaacute maior ecircnfase em uma
observaccedilatildeo do sujeito do ponto de vista de sua Personalidade
As instacircncias de existecircncia do sujeito descrevem essencialmente trecircs
funccedilotildees de operaccedilatildeo intencional temporal ou funccedilotildees do Self correspondentes agraves trecircs
formas de awareness sensorial na Funccedilatildeo Id relativa agrave copresenccedila do excitamento
deliberada na funccedilatildeo Ato relativa agrave resposta motora desejante e reflexiva na funccedilatildeo
Personalidade relativa agrave atribuiccedilatildeo de unidade da experiecircncia Estas natildeo satildeo senatildeo trecircs
perspectivas para um fenocircmeno comum e soacute se distinguem a partir dos marcos
diferenciais que o observador elege como figura Sob este paradigma torna-se
incongruente pensar em qualquer coisa que se assemelhasse a estruturas egoacuteicas ou
personaliacutesticas do Self salvo como construccedilatildeo tardia e derivativa do awareness com fins
de estabelecimento de laccedilos sociais Deveras haacute pouco lugar para a ipseidade identitaacuteria
na teoria do Self Se a funccedilatildeo Id eacute caracterizada pela generalidade no acircmbito das formas
ou haacutebitos na funccedilatildeo Personalidade por sua vez satildeo os conteuacutedos produzidos que satildeo
compartilhados em caraacuteter de generalidade Aleacutem disso se o Id confere ambiguidade ao
sujeito a Personalidade lhe confere humanidade valores e cidadania seu status de
semelhante A awareness deliberada da funccedilatildeo de ato possibilita o reconhecimento da
ipseidade e da perspectiva de autoria de comportamento mas esta experiecircncia eacute efecircmera
a awareness reflexiva constitutiva da funccedilatildeo Personalidade eacute quem lhe confere
durabilidade e constroacutei a narrativa identitaacuteria do eu
Na epocheacute Husserliana apoacutes isolar todas as contingecircncias da realidade
empiacuterica o sujeito chegaria ao ldquosi-mesmo incontestaacutevelrdquo que processa todas as vivecircncias
um ser coincidente consigo mesmo monaacutedico e auto-evidente Husserl concebeu em sua
doutrina fenomenoloacutegica uma instacircncia que ocupasse o lugar de epicentro da visada
noeacutetico-noemaacutetica o ego transcendental dotado de um vieacutes apodiacutetico a partir do qual
observaria os fenocircmenos como espectador imparcial sem jamais confundir-se com os
objetos visados Ele operaria como polo sinteacutetico de toda a experiecircncia o que significa
que articularia a organizaccedilatildeo de todos os vividos ordenando-os em um sistema orgacircnico
transcendente A identidade uacuteltima para Husserl estaria mais aleacutem da imanecircncia da
inserccedilatildeo fenotiacutepica no lebenswelt ou dizendo o mesmo pelo seu avesso a experiecircncia
concreta natildeo seria capaz de afetar a transcendecircncia do ldquoeurdquo Assim o que se chama de
subjetividade monaacutedica em Husserl indica a soma ou confluecircncia entre o Ego como
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funccedilatildeo sintetizadora da experiecircncia e as informaccedilotildees personaliacutesticas dos vividos retidos
(que seriam anaacutelogas agraves representaccedilotildees que posteriormente PHG atribuiriam agrave funccedilatildeo
Personalidade)
A questatildeo das instacircncias imanentes e transcendentes do eu eacute tangenciada na
leitura de Deleuze sobre filosofia Kantiana da razatildeo a partir do enunciado filosoacutefico ldquoEu
eacute um outrordquo Deleuze13 mostra como Kant agrave guisa de apreciaccedilatildeo criacutetica do Cogito
Cartesiano estabelece um ldquoeurdquo ativo capaz de afetar o tempo e o espaccedilo e que por sua
vez determina a existecircncia de um ldquoeurdquo que muda no tempo e apresenta a cada instante
um grau de consciecircncia Tem-se entatildeo o Eu (Moi) como aspecto passivo e autorreferencial
de um organismo reconhece a si na passagem do tempo e o Eu (Je) tido como funccedilatildeo de
ato que determina no tempo a existecircncia desse organismo Eacute soacute a partir do Eu (Moi) que
podemos nos reconhecer e mesmo assim nos damos conta dele quase como espectadores
sofrendo a estranheza da determinaccedilatildeo por esse Eu (Je) numa condiccedilatildeo de alteridade que
nos soa como outro Os juiacutezos esteacuteticos seriam o ldquoponto fora da curvardquo na epistemologia
de Kant jaacute que o que neles se obteacutem natildeo eacute um objeto de conhecimento mas antes um de
complacecircncia e prazerdesprazer pelo qual eacute responsaacutevel a proacutepria unidade indeterminada
ndash em ldquolivre e harmonioso jogordquo ndash das faculdades do acircnimo (Gemuumltskrafte)14
Personalidade em ritornelo
Do fato de ser o Eu (Moi) entendido como passivo natildeo se pode derivar que
seja estaacutevel ou estaacutetico Este natildeo eacute senatildeo o resultado de um sem-nuacutemero de
ressignificaccedilotildees das vivecircncias do organismo em sua experiecircncia cotidiana vivecircncias que
devecircm registros de sentido que na teoria de Deleuze caracterizam as siacutenteses conjuntivas
Estas satildeo incorporadas na biografia do sujeito que passa a saber algo de si A dimensatildeo
personaliacutestica eacute caracterizada por um movimento de adoccedilatildeo e abandono de unidades
discursivas investidas de potencial identitaacuterio Deleuze e Guatarri tratam deste fenocircmeno
em termos geoeacuteticos15 isto eacute sob a forma de desterritorializaccedilatildeo harr reterritorializaccedilatildeo de
espaccedilos existenciais e o denominam de ritornelo Tais espaccedilos existenciais logram a
funccedilatildeo antropoloacutegica de viabilizar inobstante de maneira absolutamente transitoacuteria e
13 DELEUZE Criacutetica e Cliacutenica p43 14 KANT Criacutetica da faculdade do juiacutezo sect9 p54 15 Uma etimologia do termo revela os radicais ldquogeacuteo-ldquo referindo-se agrave distribuiccedilatildeo espacial pela terra e ldquoecircthosrdquo grafado ldquoήθοςrdquo que significa ldquomoradardquo ou ldquohabitaccedilatildeordquo O esclarecimento eacute vaacutelido para que natildeo haja confusatildeo com o termo oriundo do radical ldquoeacutethosrdquo grafado έθος significando ldquocostumerdquo
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efecircmera um grau de autorreconhecimento minimamente suficiente para que o sujeito decirc
conta da participaccedilatildeo cotidiana na realidade social
Tradicionalmente uma marcaccedilatildeo musical que marca o refratildeo de uma melodia
considerada o aacutepice de uma composiccedilatildeo e que se repete algumas vezes na partitura o
ritornelo eacute utilizado na filosofia de Deleuze para descrever uma relaccedilatildeo de busca alternada
por seguranccedila e por novidade no mundo eacute a criaccedilatildeo de um plano de existecircncia sobre a
indiferenciaccedilatildeo do caos a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio que faccedila as funccedilotildees de ldquomoradardquo
provisoacuteria e subsequentemente um lanccedilar-se no mundo que abre espaccedilo para a
improvisaccedilatildeo e o ajustamento criativo em face do acontecimento Durante a seacuterie de
entrevistas que Deleuze concedeu a Claire Parnet entre 1988 e 1989 lanccedilada
posteriormente em viacutedeo e transcriccedilatildeo como ldquoLrsquoAbeacuteceacutedaire de Gilles Deleuzerdquo o autor
comenta
Criamos ao menos um conceito muito importante o de ritornelo Para mim o ritornelo [] estaacute ligado ao problema do territoacuterio da saiacuteda ou entrada ao territoacuterio ou seja ao problema da desterritorializaccedilatildeo Volto para o meu territoacuterio que eu conheccedilo ou entatildeo me desterritorializo ou seja parto saio do meu territoacuterio16
Na mesma ocasiatildeo Deleuze define o ritornelo em termos muitos simples
como um ldquotraacute-laacute-laacuterdquo um cantarolar tranquilizante que se murmura quando em casa
durante os afazeres domeacutesticos ou nos casos opostos quando se estaacute fora de casa
cantarola-se para aplacar a tensatildeo de estar voltando da rua ao fim do dia de trabalho ou
entatildeo partindo (para onde) Em suma a incessante dinacircmica de ocupaccedilatildeo e desocupaccedilatildeo
de territoacuterios existenciais o tracircnsito alternado em meio agraves inuacutemeras totalidades de sentido
compartilhadas pela linguagem eacute o que atribui a qualquer coisa que se possa pensar como
uma personalidade a natureza de algo vazado e centriacutefugo A autocontinecircncia imaginaacuteria
prenunciada pela territorializaccedilatildeo nunca se faz completa pois eacute sempre atravessada por
I) novas intensidades da produccedilatildeo desejante isto eacute posteriores situaccedilotildees concretas de
contato deste organismo com o ambiente de modo a operar a criaccedilatildeo de novas articulaccedilotildees
de realidade e II) por um universo de haacutebitos ou excitamentos preacute-pessoais
experienciados pelo sujeito como alteridade radical agrave qual ele eacute passivo Neste sentido o
conceito do movimento de ritornelo estaacute em confronto direto com a ideia da fixidez
personaliacutestica estruturada e autocontida como paracircmetro de regularidade Nos termos da
16 DELEUZE O abecedaacuterio de Gilles Deleuze Seccedilatildeo ldquolsquoOrsquo de lsquoOacuteperarsquordquo
86
Teoria do Self isto equivale simplesmente a afirmar que a funccedilatildeo Personalidade estaacute em
articulaccedilatildeo com as demais funccedilotildees de Ato e de Id
Independentemente de se analisar do ponto de vista de algo que falte ao
territoacuterio de sentido do sujeito como faz a psicanaacutelise ou do ponto de vista de algo que
lhe sobre que sobrevenha ao territoacuterio como acoplamento maquiacutenico excessivo
obrigando-o a uma reconfiguraccedilatildeo o efeito eacute o mesmo compelido pela protensatildeo a uma
virtualidade o sujeito se percebe em anguacutestia tendo que descentrar-se e vir a ocupar uma
nova posiccedilatildeo no mundo Ora nada haacute aqui para condenar ateacute porque o que o territoacuterio
tem de reconfortante tem tambeacutem de opressivamente ansiogecircnico Da mesma forma se
a desterritorializaccedilatildeo eacute promotora de anguacutestia ela corresponde todavia ao movimento
autopoieacutetico do proacuteprio bios que permite em seu processo autorreprodutivo a agecircncia do
caos e da transformaccedilatildeo
A situaccedilatildeo vem a se agravar entretanto nos casos em que o eixo
desterritorializante do ritornelo se torna a diretriz predominante A perda de polos
territoriais de seguranccedila e autorreconhecimento eacute abordada por PHG17 no texto original
pelo uso da palavra misery traduziacutevel como ldquoafliccedilatildeordquo ou ldquosofrimentordquo Em outras
palavras a experiecircncia de misery eacute provocada pela ldquofalta de um lugar eacutetico em que
possamos estabelecer relaccedilotildees poliacuteticas e antropoloacutegicasrdquo18 Eis o momento da elaboraccedilatildeo
de luto pelos territoacuterios perdidos e do resgate do movimento de ritornelo em seu eixo
oposto o da reterritorializaccedilatildeo ndash incumbecircncia dos membros da rede de apoio do sujeito
em sofrimento como familiares profissionais e demais viacutenculos de afeto Assim acontece
na produccedilatildeo da subjetividade quando se volta para o territoacuterio que se supunha conhecido
o que se experimenta eacute uma novidade O sujeito muda o territoacuterio muda e o paradoxo eacute
que mesmo a busca pela constacircncia se daacute na mudanccedila jaacute que a geoeacutetica eacute um plano-triacuteade
de experimentaccedilatildeo prudecircncia e improvisaccedilatildeo19
Este modelo geoeacutetico encontra consonacircncia na obra de PHG (1951) que
atribuem natildeo apenas agrave gestalt-terapia mas agrave proacutepria psicologia a funccedilatildeo de investigar a
operaccedilatildeo da fronteira de contato no campo organismoambiente Sejam os conceitos e
terminologias abandonados e fiquem os fenocircmenos aos quais eles se referem de fato a
psicologia se encarrega da relaccedilatildeo dos sujeitos uns com os outros e com o mundo natural
17 PHG Gestalt-terapia 18 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p284 19 COSTA O ritornelo em Deleuze- Guattari e as trecircs eacuteticas possiacuteveis In II Seminaacuterio Nacional de Filosofia e Educaccedilatildeo Confluecircncias 2006 Santa Maria
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De todo modo agrave diferenccedila das perspectivas estruturalistas a gestalt-terapia natildeo funda sua
ontologia sobre a fixaccedilatildeo identitaacuteria de um ego circunscrito em si proacuteprio O ldquoeu
reconheciacutevelrdquo da gestalt-terapia natildeo eacute uma instacircncia estaacutetica que tendo atingido a
maturaccedilatildeo natildeo mais se transformaria quando muito expandiria aqui e ali e que atuaria
como mera depositaacuteria das experiecircncias que vive e assimila Ao contraacuterio trata-se de uma
instacircncia intermitente em constante atualizaccedilatildeo de modo a ser jamais a mesma
A funccedilatildeo Personalidade esta funccedilatildeo de individuaccedilatildeo ontoloacutegica
territorializante eacute ldquoa proacutepria presenccedila do outro social como mediaccedilatildeo geneacuterica e
determinada entre dois atos distintosrdquo20 A mediaccedilatildeo geneacuterica de que se fala eacute da ordem
da comunicaccedilatildeo ao outro social nas palavras de PHG21 a Personalidade eacute o correlato
descritiacutevel ou reacuteplica verbal das vivecircncias de contato do Self Precisamente por esta razatildeo
a Personalidade eacute dinacircmica e mutaacutevel ela estaacute em funccedilatildeo dos atravessamentos habituais
e eacute constantemente sobrescrito pelas criaccedilotildees da funccedilatildeo de ato Em suma ela funciona
reescrevendo a si mesma em consonacircncia com a maneira como Lacan22 no Seminaacuterio
XX descreve o domiacutenio Imaginaacuterio que ldquonatildeo para de se escreverrdquo Porquanto funccedilatildeo a
Personalidade eacute movida pelas aacuteguas do rio de Heraacuteclito que seguem dia apoacutes dia um
curso semelhante ndash permitindo a um observador constatar que ainda se trata do mesmo
rio ndash sem jamais permanecer exatamente idecircntico em dois momentos seguidos ela opera
dinamicamente pela coadunaccedilatildeo dos objetos de realidade com os quais o sujeito se
identifica um emprego a preferecircncia por praia ou montanha a apreciaccedilatildeo por um artista
uma nacionalidade um hobby um aprendizado um juiacutezo loacutegico23
A Personalidade eacute o resultado do contato social criativo Os atos que
desempenhamos satildeo recebidos pelo outro social ndash e tambeacutem por noacutes mesmos na
alteridade do Eu (Je) que eacute capaz de observar o Eu (Moi) de uma perspectiva externa ndash
como objetos do intelecto produccedilotildees duraacuteveis da ordem do Imaginaacuterio que permanecem
como identidades As criaccedilotildees da funccedilatildeo de ato convertem-se em significantes
estabelecidos como pensamento Nesse sentido o outro social com o qual a Personalidade
dialoga funciona como ldquoespelho dos atosrdquo24 uma vez mais ecoando a descriccedilatildeo do
20 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p286 21 PHG Gestalt-terapia 22 LACAN O Seminaacuterio livro XX Mais ainda p127 23 Natildeo obstante do fato da constituiccedilatildeo subjetiva dos organismos caracterizar-se como devir processual natildeo se pode derivar que ele seja ldquoincompletordquo o sujeito eacute por inteiro valendo-se de quaisquer recursos dos quais disponha na atualidade para (re)construir-se agrave medida que a demanda do Outro se transmuta 24 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p286
88
domiacutenio Imaginaacuterio que Lacan traduz como ldquoreflexo do semelhante ao semelhanterdquo 25
Isto serve para alertar que este processo natildeo pode ser tomado do ponto de vista solipsista
apenas a partir dos laccedilos sociais eacute que a Personalidade faz sentido jaacute que eacute o relato (ao
Outro) das vivecircncias a partir das representaccedilotildees intersubjetivas (entre eu e o Outro) e por
meio de significaccedilotildees linguiacutesticas (na liacutengua do Outro) Natildeo se trata de um evento
privado subjetivo mas do resultado de interaccedilotildees e viacutenculos estabelecidos no ambiente
e determinados por este mesmo ambiente em suma a constituiccedilatildeo da personalidade eacute um
fenocircmeno de aprendizagem
A presenccedila do outro social na gecircnese da dinacircmica e da fixidez personaliacutestica
Na medida em que toma parte do continuum da awareness o Self natildeo se
encontra nem na voz ativa entendendo o sujeito como autor da accedilatildeo nem tampouco na
voz passiva em que o sujeito tenha sofrido a accedilatildeo sobre si No entendimento dos gestalt-
terapeutas o Self ocorre na ldquovoz meacutediardquo em que o sujeito ldquoexperimenta a si mesmo na
accedilatildeordquo26 O que parece ao menos eacute que os autores admitem a ldquovoz meacutediardquo como um eixo
de equiliacutebrio ideal do qual o Self frequentemente se desvia em virtude de seus dispositivos
de autoconquista ou autossabotagem Eacute no Self bem-definido repleto de identificaccedilotildees e
alienaccedilotildees que lhe satildeo preciosas que se percebe a disfunccedilatildeo O ego cristalizado boicota
a novidade e a espontaneidade e preza pela autoconsistecircncia pela fixidez personaliacutestica
Embora a noccedilatildeo tradicional de uma estrutura personaliacutestica venha a ser
ressignificada em vista de uma funccedilatildeo Personalidade fluida este novo construto estaacute
longe de contemplar a integridade do estar-no-mundo de um organismo Falar de um eu-
mesmo ndash ou Self ndash eacute falar de um sistema de funccedilotildees de contato do presente transiente
concreto um fluxo de conscientizaccedilatildeo ndash ou de awareness Nesse iacutenterim a funccedilatildeo
Personalidade natildeo eacute senatildeo o paraacutegrafo final de uma declaraccedilatildeo ontoloacutegica extensa eacute a
dimensatildeo mais facilmente acessiacutevel e comunicaacutevel do sistema Self natildeo soacute para outrem
como para o proacuteprio organismo simplesmente porque se fundamenta na awareness
reflexiva do contato que o organismo estabelece com o ambiente atual ao seu redor Self
eacute uma agecircncia de crescimento por meio do contato portanto se eacute de fato necessaacuterio
atribuir-lhe uma localizaccedilatildeo toacutepica para compreensibilizaacute-lo natildeo se localizaraacute este
sistema no interior intimista do sujeito mas na sua fronteira de contato com o mundo
25 LACAN O Seminaacuterio livro XX Mais ainda p111 26 PHG Gestalt-terapia p43
89
externo pertencendo a ambos ambiente e organismo E natildeo poderia ser diferente
sabendo-se que o que fazemos durante todo o percurso da vida eacute experimentar eventos no
ambiente externo e participar deles doando-lhes o que temos a oferecer a saber o efeito
destas experiecircncias mesmas em nosso proacuteprio corpo passivo e nosso poder ativo e
desejante de manipulaccedilatildeo e produccedilatildeo da realidade
A passagem do ego monaacutedico para esse Self tornado funccedilatildeo de ajustamento ndash
produccedilatildeo ndash no mundo um recorte de siacutenteses conjuntivas da intrincada rede de
multideterminaccedilotildees descentralizadas e emergentes sugere que o foco da anaacutelise
ontoloacutegica do antropos seja deslocado para esse feixe de fenocircmenos subjetivos que nos
compotildee As construccedilotildees identitaacuterias todas funcionam como simulacros da verdade
existencial subjetiva sem que nenhuma delas a esgote ou menos ainda funcione como
eidos egoacuteico ldquoQual nosso rosto genuiacutenordquo perguntam PHG sabendo que natildeo seria outra
coisa senatildeo ldquouma resposta a uma situaccedilatildeo presenterdquo 27 Contatar a realidade presente e
disponibilizar a emergecircncia de gestalten permitindo-se devir eacute o modo gestaacuteltico de
responder agrave convocaccedilatildeo Nietzscheana do ldquotorna-te quem tu eacutesrdquo ndash e mesmo esta eacute
enganadora quando concentra sua awareness na situaccedilatildeo presente o organismo pulveriza
as certezas do passado em possibilidades futuras e contempla o potencial destas se
realizarem ldquoSeja vocecirc mesmordquo ou ldquosejardquo coisa qualquer eacute no melhor dos casos uma
exortaccedilatildeo ansiogecircnica agrave identificaccedilatildeo com uma das possibilidades futuras ainda
indefinidas ldquotorna-te quem tu eacutesrdquo no pior dos casos eacute uma demanda por
previsibilidade personaliacutestica por meio da fixaccedilatildeo em identificaccedilotildees passadas ldquoseja
aquilo que sempre esperei que vocecirc fosserdquo
A vida social de contato pleno gera integraccedilatildeo de valores e identificaccedilotildees
pertinentes para o sujeito mas no contato interrompido este imita e repete de forma
alienada Traccedilos personaliacutesticos crenccedilas valores escolhas frequentemente satildeo vividas
como estados de crescimento que um dia foram atuais mas perduraram aleacutem de seu
tempo ateacute que natildeo sejam mais funcionais Quando satildeo enfim abandonados com certo
desprezo ou rejeiccedilatildeo violenta denotam que a situaccedilatildeo ainda estaacute inacabada PHG afirmam
que vivecircncias passadas que foram resolvidas surgem como memoacuterias serenas sem
acarretar grande mobilizaccedilatildeo de tensatildeo por jaacute terem sido integradas ao Self e resolvidas
Via de regra contudo as relaccedilotildees que o sujeito estabelece no meio cultural que viratildeo a
delinear sua constituiccedilatildeo identitaacuteria natildeo satildeo de outra natureza senatildeo intervenccedilotildees sofridas
27 PHG Gestalt-terapia p179
90
por um corpo pelos fluxos da maacutequina-socius que o atravessam de todos os lados desde
o nascimento
Se nos primeiros meses da vida a crianccedila se daacute conta da presenccedila de uma
alteridade ndash o adulto ndash que opera a mediaccedilatildeo contingente dos atos ora oferecendo as
condiccedilotildees para possibilitaacute-los ora coibindo-os por volta dos 18 meses comeccedila a
reconhecer uma outra forma de alteridade que eacute o Outro social das representaccedilotildees e da
linguagem (MUumlLLER-GRANZOTTO 2012a) A aquisiccedilatildeo das formas linguajeiras
permitem agrave crianccedila utilizar seu crescente vocabulaacuterio para construccedilatildeo de unidades de
sentido destinadas a comunicar algo ao semelhante A partir desta etapa a crianccedila pode
entatildeo ingressar neste jogo de interaccedilotildees sociais do qual os adultos participam e identificar
o valor social atribuiacutedo agraves coisas e aos atos isto eacute a demanda por identidade impliacutecita em
cada laccedilo social ldquoHaacute por detraacutes da pergunta dirigida a mim algueacutem que quer saber de
mim e provavelmente um lsquoalgueacutem que sou eursquo por detraacutes da minha respostardquo28
Sua existecircncia motora passa a ter uma autoria uma figura Imaginaacuteria de
referecircncia e de interlocuccedilatildeo entre as demais unidades Imaginaacuterias Satildeo estas outras
unidades isto eacute eacute o olhar do outro social que referenda e legitima a existecircncia da unidade
personaliacutestica Por isso o Outro ndash seja uma pessoa um desenho em um livro ou uma roupa
na vitrine de uma loja ndash cumpre para ela a funccedilatildeo de espelho de confirmaccedilatildeo da
representaccedilatildeo imageacutetica Se eacute proacuteprio do bios que seu crescimento se decirc pela exposiccedilatildeo
agraves contingecircncias ambientais no caso da humanidade a autorregulaccedilatildeo organiacutesmica se
traduz com veemecircncia na exposiccedilatildeo ao feixe de marcas culturais pelos quais os
dispositivos maquiacutenicos de subjetivaccedilatildeo operam a simbolizaccedilatildeo dos corpos Em meio a
essa miriacuteade de universos incorporais de valor as cadeias discursivas (religiosas
poliacuteticas ideoloacutegicas enunciados cientiacuteficos ritornelos ou formas que se repetem etc)
servem para organizar um sentido de identidade mais palpaacutevel delimitar um territoacuterio de
existecircncia reconheciacutevel com fronteiras de ego liacutequidas
Feacutelix Guattari29 aponta como o mapeamento dos territoacuterios existenciais eacute
sentido como marca no corpo e se daacute pela via dos dispositivos maquiacutenicos de
subjetivaccedilatildeo em massa O que se precisa salientar a respeito do maquinismo como
apropriado por Guattari eacute que as maacutequinas subjetivantes tecem a trama social produzem
desejos coletivos forjam afetos comuns e engendram complexas redes de significaccedilatildeo
28 MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Cliacutenicas gestaacutelticas sentido eacutetico poliacutetico e antropoloacutegico da teoria do Self p237 29 GUATTARI Caosmose p60
91
compartilhada Se Nietzsche podia dizer que ldquocada nome da histoacuteria sou eurdquo30 eacute porque
ele assumia a transitoriedade de suas identificaccedilotildees com estes personagens Os nomes
proacuteprios satildeo mais que representaccedilotildees Antes satildeo demarcaccedilotildees territoriais domiacutenios
significantes engendrados pela semiologia dos equipamentos coletivos dos quais a
maacutequina social dispotildee atravessamentos de intensidades diversas que datildeo sentido(s) ao
corpo que operam um efeito sobre a memoacuteria a inteligecircncia a sensorialidade e os afetos
Esta accedilatildeo eacute anterior mesmo a uma semiologia significante os sentidos e as denotaccedilotildees
em princiacutepio escapam ao sentido linguiacutestico comum e funcionam de maneira paralela e
independente entre si A partir das siacutenteses disjuntivas entre as diferentes significaccedilotildees
surge um terceiro termo derivativo A este eacute que se daacute o nome de corpo-sem-oacutergatildeos ou
corpo pleno ou ainda quando se trata da produccedilatildeo social socius Por este terceiro termo
de inicial indiferenciaccedilatildeo eacute que correm os fluxos de intensidades formando planos
imanentes de existecircncia neles eacute que as maacutequinas desejantes operam cortes31 e fazem
distinccedilotildees que datildeo forma aos objetos do mundo
Os equipamentos coletivos satildeo tambeacutem maacutequinas teacutecnico-sociais e a elas
cabe a mesma leitura poliacutetica no tangente agrave virtualidade de sua aplicaccedilatildeo a praacutetica
esportiva endossa a autossuperaccedilatildeo e outorga ao sujeito maior controle sobre seu corpo
tautocronicamente serve de perfeito ldquopatildeo-e-circordquo agrave massa que lhe devota sua atenccedilatildeo e
permanece alheia ao que de fato importa no tracircmite das instacircncias deliberativas A miacutedia
potencializada pela televisatildeo e pela internet horizontaliza o acesso agrave informaccedilatildeo ao
mesmo tempo em que vomita uma abundacircncia de alimento para a banalidade e desobriga
a populaccedilatildeo para seu aliacutevio de decidir por si mesma Assim o eacute para onde quer que se
olhe o sistema educacional as estrateacutegias de planejamento urbano a religiatildeo e mesmo a
arte Esse efeito em si dispotildee de um potencial homogeneizante pois a sociedade
axiomatizada pelo capital precisa atribuir valor de troca agraves suas produccedilotildees Este e aquele
produto precisam ter seus respectivos valores correspondentes a uma mesma unidade de
medida Essa eacute sua poderosa estrateacutegia de apropriaccedilatildeo de toda a produccedilatildeo desejante que
eacute domada homogeneizada e redirecionada no sentido da produccedilatildeo da mais-valia
A homogecircnese alienante no entanto natildeo eacute a uacutenica possibilidade de
investimento para a produccedilatildeo de sujeitos A subjetivaccedilatildeo maquiacutenica tambeacutem pode ter um
potencial emancipatoacuterio promotor de heterogecircnese O que Guattari defende eacute a
30 NIETZSCHE em carta enviada a Jacob Burckhardt em Janeiro de 1889 In ALMEIDA Nietzsche e o paradoxo p 141 31 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p16
92
emancipaccedilatildeo dos territoacuterios fixos tanto para a intervenccedilatildeo social quanto para o contexto
cliacutenico O programa teleoloacutegico de ldquocurardquo por um meacutetodo fixo eacute descartado em favor de
uma perspectiva eacutetico-esteacutetica de promoccedilatildeo da experiecircncia do espontacircneo no campo de
presenccedila cliacutenico O eixo de desterritorializaccedilatildeo do ritornelo subjetivante adquire aqui um
novo sentido cliacutenico uma vez feita a associaccedilatildeo entre crescimento organiacutesmico produccedilatildeo
desejante de realidade e ocupaccedilatildeo de novos territoacuterios de sentido receacutem-inventados
Nesse mesmo sentido a cliacutenica gestaacuteltica esquiva-se de assumir a diacuteade normal-anormal
como ocupaccedilotildees de territoacuterios existenciais identitaacuterios32 Roacutetulos como ldquosaudaacutevelrdquo ou
ldquodoenterdquo satildeo exiacutemias ferramentas de homogeneizaccedilatildeo mas prestam um desserviccedilo como
registros da experiecircncia subjetiva neles natildeo cabe o sujeito Em vez disso a gestalt-terapia
encontra uma alternativa mais parcimoniosa na anaacutelise funcional dos ajustamentos de
contato na fronteira organismo-ambiente e transita por entre o eixo ldquocontato bomrdquo ndash
ldquocontato falhordquo e mesmo nestes casos nas funccedilotildees de defesa supressatildeo isolamento
repeticcedilatildeo etc haacute sempre um aspecto criativo e adaptativo particularmente funcionais
numa sociedade intrinsecamente neuroacutetica como a que aqui se desvela
Natildeo eacute surpresa que a questatildeo da sujeiccedilatildeo agrave demanda impessoal do Outro
social (ldquosejardquo) leve naturalmente ao tema da neurose Sobretudo cabe ressaltar o
seguinte o problema da concepccedilatildeo psicologizante de que o neuroacutetico estaria ldquoprivado de
sua natureza humanardquo e que ela precisaria ser ldquorecuperadardquo eacute justamente o fato de que o
consulente de um processo terapecircutico eacute um sujeito em devir que constroacutei para si
identidades conforme sua conveniecircncia para as demandas ambientais agraves quais esteja
exposto Eis inclusive a justificativa de PHG para o estabelecimento da gestalt-terapia
como uma abordagem terapecircutica natildeo-normativa que estabeleccedila o menos possiacutevel uma
meta a ser atingida A claacutessica explicaccedilatildeo psicanaliacutetica eacute de que o sintoma eacute duplamente
uma defesa contra a vitalidade mas tambeacutem uma demonstraccedilatildeo de vitalidade A questatildeo
eacute que o sintoma eacute tambeacutem um esforccedilo organiacutesmico mas dedicado agrave repressatildeo do proacuteprio
Self ao inveacutes da resoluccedilatildeo de situaccedilotildees inacabadas na atualidade O sintoma eacute constitutivo
da funccedilatildeo Personalidade torna o sujeito autorreferente e reconheciacutevel como haacutebito que
eacute Sobretudo trata-se de uma criaccedilatildeo da funccedilatildeo de ato e de uma expressatildeo da
singularidade do sujeito Destarte a neurose cumpre uma funccedilatildeo em vez de um ldquomal-a-
ser-combatidordquo talvez ela se aproxime mais da ideia de um ldquomal necessaacuteriordquo Os efeitos
negativos da neurose a saber o embotamento do contato e da awareness a normatizaccedilatildeo
32 PHG Gestalt-terapia p44
93
a supressatildeo do estado oscilante de emergecircncia ndash relaxamento e sua conversatildeo em um
estado riacutegido de moderada ansiedade satildeo justamente o que faz o cotidiano estaacutevel e
territorializado do sujeito
A timidez eacute um dos exemplos apresentados por PHG33 de manifestaccedilatildeo de
defesa do Self contra a anguacutestia da desterritorializaccedilatildeo Ousar sair do conforto do status
quo e confrontar-se com o excitamento eacute muitas vezes uma experiecircncia aterradora em
face da qual a seguranccedila do conhecido parece ser uma alternativa mais favoraacutevel ldquoO que
temos que entenderrdquo dizem os autores ldquoeacute que natildeo existe algo como uma seguranccedila
verdadeira porque nesse caso o Self seria uma fixidezrdquo Uma vez que se esteja de acordo
com essa afirmaccedilatildeo de PHG soacute entatildeo eacute cabiacutevel preconizar que a postura conservativa de
seguranccedila personaliacutestica ndash saber com certeza dizer quem se eacute ndash seja abandonada em
proveito de uma postura de adaptabilidade e aceitaccedilatildeo espontacircnea das oportunidades de
crescimento orientadas pelo eixo da autorregulaccedilatildeo organiacutesmica
A prerrogativa da subjetivaccedilatildeo maquiacutenica autopoieacutetica faz eco com o sentido
dado aqui ao parecircnklisis de Epicuro que serve de instrumento agrave cliacutenica promotora de
desvios do clinamen fundada na Teoria do Self O aspecto de singularizaccedilatildeo que subjaz
nessa ontologia indica que a subjetivaccedilatildeo natildeo eacute senatildeo um enriquecimento de virtualidades
aliado agrave progressiva difusatildeo de um territoacuterio existencial de autorreconhecimento que eacute
por natureza vazado O que o faz vazar eacute exatamente a promoccedilatildeo do desvio condiccedilatildeo
sine qua non para o organismo contatar o mundo A desterritorializaccedilatildeo eacute um ajustamento
criativo que eacute biologicamente adaptativo assim como sua contraparte de ocupaccedilatildeo de
novos territoacuterios ndash isto eacute a adoccedilatildeo de novas significaccedilotildees provindas da cultura ndash tambeacutem
o eacute porquanto a divisatildeo entre intrapessoal e interpessoal eacute superada pela constataccedilatildeo de
que ldquotoda personalidade individual e toda sociedade organizada se desenvolvem a partir
de funccedilotildees de coesatildeo que satildeo essenciais tanto para a pessoa quanto para a sociedaderdquo34
Natildeo obstante esta seria uma afirmaccedilatildeo ingecircnua dos gestalt-terapeutas se natildeo fosse
ressaltado uma vez mais que aqui se trata de uma faceta heterogeneizante da
subjetivaccedilatildeo e que ao contraacuterio na loacutegica capitalista a reciprocidade entre
desenvolvimento do indiviacuteduo e do socius eacute um conceito distorcido pelo efeito da
axiomatizaccedilatildeo e do primado da mais-valia
Uma anaacutelise mais minuciosa do escrutiacutenio feito por Deleuze e Guattari sobre
a loacutegica capitalista seria tema de outro texto Todavia eacute necessaacuterio ao menos mencionar
33 PHG Gestalt-terapia p218 34 PHG Gestalt-terapia p162
94
o papel do capitalismo como grande constituinte da subjetividade privatizada da
contemporaneidade e explorar brevemente o modus operandi de seu vasto mecanismo
axiomatizante Foucault apontou como a passagem do regime feudal para o regime
disciplinar provocou uma inversatildeo na piracircmide identitaacuteria do poder Inicialmente a
vassalagem majoritariamente anocircnima estava engajada em uma relaccedilatildeo de subserviecircncia
ascendente para com a figura opulenta do monarca Em um regime disciplinar por sua
vez35 ldquo[] a individualizaccedilatildeo em contrapartida eacute lsquodescendentersquo Agrave medida que o poder
se torna mais anocircnimo e mais funcional aqueles sobre quem ele se exerce tendem a ser
mais fortemente individualizados36 O poder pulverizado e microfiacutesico que descreve
Foucault natildeo eacute senatildeo a inversatildeo do socius despoacutetico objetivamente codificado Por meio
deste exerciacutecio complexo de poder o regime capitalista abre matildeo de todos os coacutedigos e
permite que a proacutepria diversidade de identidades trabalhe a seu favor porquanto adquira
valor de troca O assim chamado (sarcasticamente afirmam Deleuze e Guattari) ldquopoder
de comprardquo natildeo eacute senatildeo um ldquofluxo verdadeiramente impotencializado que representa a
impotecircncia absoluta do assalariado assim como a dependecircncia relativa do capitalismo
industrialrdquo37 ndash trata-se portanto de um expediente antiprodutivo por excelecircncia
Em princiacutepio anteriormente a qualquer codificaccedilatildeo devimos todos os nomes
da histoacuteria fomos o mesmo ser em toda parte matildee pai chefe amigo inimigo filho
mito anocircnimo Todos estes desdobramentos repousariam como pura potencialidade sobre
o socius corpo pleno de antiproduccedilatildeo da terra inengendrada que remeteria a uma origem
anagoacutegica ou vale o acreacutescimo uma origem psicanaliacutetica A referecircncia ao socius
virginal preacutevio agrave marcaccedilatildeo cultural vale soacute como nostalgia seja ela nostalgia do Uno
holiacutestico ou nostalgia do ldquoS1rdquo forcluiacutedo a homeostase da indiferenciaccedilatildeo matildee-bebecirc
Isto em termos ontogeneacuteticos contudo nossa filogecircnese natildeo eacute diferente O
sistema nervoso motoacuterico-muscular humano desenvolveu-se evolutivamente de modo a
funcionar separado do pensamento cognitivo e sensorial (PHG 1951 p121) Mover-se e
raciocinar satildeo processos diferentes e independentes para o homo sapiens o que natildeo eacute
verdade para a maioria dos mamiacuteferos Uma vez mais a marca neuroacutetica da cultura
acentua a dissonacircncia entre sentidos e motricidade para impedir a espontaneidade Laccedilos
mais primitivos como sexo e alimentaccedilatildeo satildeo aleacutem de preacute-verbais preacute-pessoais O outro
35 Traduccedilatildeo livre No original ldquo[hellip] lrsquoindividualisation em revanche est lsquodescendantersquo agrave mesure que le pouvoir devient plus anonyme et plus fonctionnel ceux sur qui il srsquoexerce tendent agrave ecirctre plus fortement individualiseacutesrdquo 36 FOUCAULT Surveiller et punir p194 37 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p317
95
natildeo aparece como pessoa mas como ldquoalgordquo a ser contatado O que se distingue como
ldquopessoardquo seratildeo as posteriores criaccedilotildees das identidades culturais produto da inserccedilatildeo na
teia de fluxos subjetivantes do socius e das relaccedilotildees de alianccedila ou laccedilos sociais
Destarte a passagem dos registros intensivos no socius para os papeacuteis
identitaacuterios reificados eacute o ponto de partida da codificaccedilatildeo social A maacutequina capitalista
inobstante vem surgir na modernidade como inversatildeo deste processo ela opera
unidirecionalmente no sentido da total descodificaccedilatildeo dos fluxos O capital depende de
trabalhadores livres e da virtualidade do dinheiro (especulaccedilatildeo) e por isso natildeo daacute conta
de abranger todo o campo social Pelo contraacuterio soacute tem a ganhar se deixar que este fluxo
corra desterritorializado e cada vez mais intensificado O modus operandi da maacutequina
capitalista sua descodificaccedilatildeo dos fluxos implica a ruptura do Urstaat Imaginaacuterio como
referecircncia ao Estado ideal Nada mais eacute sacralizado Todavia no capitalismo apesar de
estarem descodificados os fluxos estatildeo capturados em uma orientaccedilatildeo axiomaacutetica Por
vias escusas que os fluxos esquizofrenicamente talham no socius por meio de crises
desarranjos e vertigens protoemancipatoacuterias eles cinicamente ndash a ponto de afirmarem que
parte nenhuma ali estaacute sendo lesada ndash convergem a um ponto comum que eacute
inexoravelmente o da proacutepria subsistecircncia do capital
Conclusatildeo
A breve menccedilatildeo agrave anaacutelise de Deleuze e Guattari sobre o capitalismo serve de
contraponto ao que foi exposto anteriormente sobre a Personalidade em devir justamente
por ser seu desdouro inerente A reinvenccedilatildeo criativa das narrativas sobre o Self estaacute com
relativa frequecircncia alienada agrave funccedilatildeo de autossubsistecircncia do capital todavia ela tem
igualmente o potencial para ser emancipatoacuteria e heterogeneizante Lanccedilar luz agrave distinccedilatildeo
entre uma e outra forma eacute um trabalho eacutetico em progresso cuja relevacircncia eacute justificada
pelo proacuteprio reconhecimento das capacidades dos seres desejantes em criar possibilidades
de existecircncia e por vecirc-las amordaccediladas pela vida inautecircntica
Levada ao extremo a criaccedilatildeo das identidades na cultura desprende-se da crua
veracidade de animais em contato e se sublima em nuvens de abstraccedilotildees de acuacutemulos
de significantes de dados que porventura venham a descrever um sujeito individualizado
Quando se crecircem absolutamente associados a determinadas identificaccedilotildees culturais os
organismos deixam de fazer uso instrumental e criativo da Personalidade doam seus
corpos para a territorializaccedilatildeo institucional e outorgam agrave autoridade do Outro poder de
96
ldquoexploraccedilatildeo do homem pelo homem e de muitos pelo todordquo38
Neste sentido a Teoria do Self principalmente graccedilas ao diaacutelogo que ela
permite estabelecer com outras antropologias revela uma forccedila poliacutetica a ser reconhecida
em sua expressividade Por meio dos marcos diferenciais que evidenciam no sujeito a
primazia do contato e da awareness ela se apresenta como uma ferramenta meritoacuteria
para o resgate da accedilatildeo criadora dos corpos e consequentemente para uma sutil revoluccedilatildeo
nas dinacircmicas de exerciacutecio de poder subjacentes nos laccedilos entre sujeito e Outro social
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PRAacuteTICAS DE CUIDADO DE SI NA ANTIGUIDADE1
Felipe Gustavo Soares da Silva2
RESUMO O presente trabalho faz anaacutelise histoacuterico-filosoacutefica do tema do cuidado de si a partir de suas praacuteticas nas figuras mais representativas do mundo grego desde o periacuteodo preacute-filosoacutefico ateacute Platatildeo demonstrando como as praacuteticas do cuidado representam um modo de viver ordenado e ainda mais caracterizam o pensar e o agir de uma eacutepoca ilustre da Histoacuteria e da Filosofia grega Por fim o trabalho apresente o cume filosoacutefico do tema do cuidado na antiguidade na personificaccedilatildeo de Soacutecrates conforme retratado pelos diaacutelogos platocircnicos PALAVRAS-CHAVE Antiguidade grega Cuidado de si Paideia ABSTRACT The present work performs an historical and philosophical analysis of the theme ldquocare of the selfrdquo through the prism of its practices by the most representative figures of the Greek world starting from pre-philosophical period until Plato demonstrating how the practices of the care represents an ordained way of life and more represents the thinking and the acting of an illustrious time of the History and the Greek Philosophy At last this work presents the philosophical apex of the theme care in ancient times personified by Socrates as portrayed by Platonic dialogues KEY-WORDS Greek antiquity Care of self Paideia
1 Introduccedilatildeo
A antiguidade grega eacute marcada fortemente por uma cultura de
autoaprimoramento do proacuteprio homem O processo educativo do homem natildeo dispensa
ao lado da tarefa do educador o papel do educando como primordial e diante disto cuidar
de si representa a praacutetica agrave qual era atarefado o educando O cuidado de si imperativo do
mundo antigo trata-se de uma seacuterie de praacuteticas que conduzem o homem a uma cultura de
si mesmo a uma vigilacircncia sobre suas accedilotildees e uma contiacutenua reflexatildeo sobre elas que tem
como finalidade uacuteltima para a vida humana o alcance da Excelecircncia
O cuidado de si eacute comumente estudado em diversas aacutereas sobretudo na
educaccedilatildeo na poliacutetica e na sauacutede obviamente pela influecircncia dos estudos realizados
recentemente por M Foucault que busca identificar as raiacutezes da subjetivaccedilatildeo na
1 Dedico este trabalho agrave profa Ana Cristina Machado pela parceria e amizade sempre presente 2 Mestre em filosofia (UFPE) Especialista em educaccedilatildeo pobreza e desigualdade social (UFPE) e-mail felipegustavopxhotmailcom
100
antiguidade sendo ele um dos mais importantes estudiosos do tema na
contemporaneidade Em seu segundo volume da Histoacuteria da sexualidade3 Foucault
aborda em um capiacutetulo especiacutefico o que ele chamada de uso dos prazeres a forma pela
qual o homem antigo relacionava-se com seus desejos e as praacuteticas ou o uso que faz deles
Jaacute no recuo histoacuterico ao mundo grego realizado em sua Hermenecircutica do sujeito4
descreve o que seria o cuidado de si e em que consistem as diversas accedilotildees praticadas pelo
homem grego Mesmo natildeo se tratando de uma anaacutelise teacutecnica da obra platocircnica mas uma
anaacutelise da questatildeo do cuidado diante do que ele chama de lsquotecnologias de sirsquo Foucault
traz uma anaacutelise importante para que possamos conceituar o cuidado de si para o modo
de viver dos gregos
Primeiramente o tema de uma atitude geral um certo modo de encarar as coisas de estar no mundo de praticar accedilotildees de ter relaccedilotildees com o outro A epimeleacuteia heautou eacute uma atitude para consigo para com os outros para com o mundo Em segundo lugar a epimeleacuteia heautou eacute tambeacutem uma certa forma de atenccedilatildeo de olhar Cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar que se o conduza do exterior paraeu ia dizer ldquoo interiorrdquo deixemos de lado esta palavra (que como sabemos coloca muitos problemas) e digamos simplesmente que eacute preciso converter o olhar do exterior dos outros do mundo etc para si ldquomesmordquo O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento Haacute um parentesco da palavra epimeleacuteia com meleacutete que quer dizer ao mesmo tempo exerciacutecio e meditaccedilatildeo Em terceiro lugar a noccedilatildeo de epimeleacuteia natildeo designa simplesmente esta atitude geral ou esta forma de atenccedilatildeo voltada para si Tambeacutem designa sempre algumas accedilotildees accedilotildees que satildeo exercidas de si para consigo accedilotildees pelas quais nos assumimos nos modificamos nos purificamos nos transformamos e nos transfiguramos Daiacute uma seacuterie de praacuteticas que satildeo na sua maioria exerciacutecios cujo destino (na histoacuteria da cultura da filosofia da moral da espiritualidade ocidentais) seraacute bem longo (FOUCAULT 2014p14-15)
Nos seus estudos Foucault trata de examinar a noccedilatildeo de cuidado apontando
trecircs dimensotildees principais em que o cuidado de si relaciona-se primeiramente a
pedagogia depois a poliacutetica e por fim a Eroacutetica (FOUCAULT M 2014 p52) O autor
centraliza sua abordagem do cuidado de si no Alcibiacuteades primeiro onde analisa o cuidado
da alma como principal objetivo do diaacutelogo O estudo realizado por Foucault natildeo pode
ser desprezado visto sua atualidade e significaccedilatildeo para o estudo atual da noccedilatildeo do cuidado
e visto sua descriccedilatildeo sobre o que significavam as diversas praacuteticas vividas e
3 FOUCAULT M A hermenecircutica do sujeito Trad de Maacutercio Alves da Fonseca Salma Tannus Nuchail Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 4 FOUCAULT Michel Histoacuteria da Sexualidade 3 - o cuidado de si Rio de Janeiro Graal 2002
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compartilhadas pelo homem grego poreacutem adverte-nos Deleuze que Foucault natildeo
pretende rever os gregos mas observar os modos de constituiccedilatildeo do sujeito (moderno)
noccedilatildeo totalmente distinta do mundo antigo (DELEUZE1996 p 115) O proacuteprio Foucault
nos adverte que as praacuteticas de cuidado (de si) na antiguidade natildeo satildeo exclusividade do
momento filosoacutefico (FOUCAULT 2014) Mesmo antes dos grandes mestres da Filosofia
antiga jaacute havia uma espeacutecie de preocupaccedilatildeo do homem na forma de viver no mundo e se
relacionar com o que o envolvia seja um deus seja os outros homens seja a proacutepria vida
que ele encara e as situaccedilotildees diversas que nela encontra As situaccedilotildees nas quais os homens
se encontraram mesmo no momento preacute-filosoacutefico onde ainda natildeo havia um saber
racional estabelecido e praticado sinalizam a preocupaccedilatildeo em viver bem e natildeo de qualquer
maneira no mundo Algumas destas situaccedilotildees satildeo trazidas ao leitor neste texto procurando
evidenciar como a responsabilidade e o dever do cuidado representam um fator marcante
na histoacuteria da humanidade encontrando o aacutepice de suas recomendaccedilotildees na Filosofia de
Soacutecrates e Platatildeo
Para demonstrarmos o que ora propomos iremos demonstrar algumas
praacuteticas do homem no momento preacute-filosoacutefico e percorrer algumas passagens de quatro
diaacutelogos de Platatildeo em que o tema do cuidado eacute recorrente Apologia Alcibiacuteades
Repuacuteblica e Leis Estes quatro diaacutelogos iratildeo sinalizar tanto o pensamento socraacutetico
exposto por Platatildeo em torno do tema do cuidado e que ao mesmo tempo representa o
aacutepice de noccedilatildeo de cuidar de si mesmo na antiguidade
2 Praacuteticas no momento preacute-filosoacutefico
Encontramos no discurso mitoloacutegico ou seja ainda num momento anterior
ao discurso e reflexatildeo filosoacutefica sinais das praacuteticas de cuidado Neste momento a forma
pela qual o homem relacionava-se com uma determinada divindade influenciava
diretamente no percurso da poacutelis e do seu desenvolvimento sendo necessaacuterio uma espeacutecie
de cuidado nas praacuteticas a serem desenvolvidas nos cultos prestados aos deuses e na forma
pela qual o homem manifestava-se religiosamente atribuindo seu destino agraves matildeos e agraves
vontades dos deuses vemos ainda na poesia de Homero base da educaccedilatildeo grega Arcaica
um apelo a uma espeacutecie de cuidado a partir da ideia de virtude e de educaccedilatildeo Essa forma
de cuidar pode ser verificada por uma espeacutecie de exame e guiada pelo exemplo do heroacutei
veja-se que a Iliacuteada narra a guerra de Troacuteia tendo dentre os principais personagens o
guerreiro Aquiles responsaacutevel pela vitoacuteria dos gregos matando Heitor priacutencipe de Troacuteia
102
Num cenaacuterio beacutelico o vigor fiacutesico e a honra satildeo os valores que o poema incita O homem
natildeo se destina a uma vida puacuteblica mas agrave guerra e a guerra seria assim como o heroiacutesmo
o conteuacutedo praacutetico da vida humana A Odisseacuteia por sua vez conta a saga do heroacutei grego
Ulisses apoacutes a guerra de Troacuteia narrando as dificuldades encontradas na volta para casa
onde ele conta com o auxiacutelio da deusa Atena que lhe daacute proteccedilatildeo e o ajuda a reassumir
seu trono A Odisseacuteia traz entatildeo os elementos de uma civilizaccedilatildeo regida por leis que
adequam-se agrave sociedade e traz a imagem de um heroacutei a ser seguido um modelo de
heroiacutesmo Aqui o heroacutei estaacute jaacute inserido em uma civilizaccedilatildeo evoluiacuteda natildeo se trata mais de
um heroacutei de guerra mas de um cidadatildeo afaacutevel Poreacutem apesar da separaccedilatildeo do local no
qual estatildeo inseridos os dois heroacuteis o ideal do heroiacutesmo eacute o mesmo eacute ele o modelo da
educaccedilatildeo e o caminho a ser seguido para a Excelecircncia o que denota a existecircncia de uma
espeacutecie de cuidado voltada para o seguimento do exemplo do heroacutei que consequentemente
conduziria o homem agrave virtude
O modelo de educaccedilatildeo homeacuterica funda-se no comportamento virtuoso do heroacutei O comportamento dos heroacuteis representados por personagens humanas excepcionais aristocratas e nobres servia de modelo de comportamento para todos A virtude que os heroacuteis ostentavam atraveacutes de suas atitudes era chamada de arete(GOERGEN P 2006 P 185-186)
Tambeacutem importante para realccedilar o cuidado de si na antiguidade eacute o tema
trabalhado por Hesiacuteodo em Trabalhos e dias (HESIacuteODO 1996) Hesiacuteodo eacute assim como
Homero um grande poeta arcaico que contribui para moldar o pensamento moral e
religioso da Greacutecia tradicional Haacute entatildeo em Hesiacuteodo uma mudanccedila simboacutelica em relaccedilatildeo
a Homero do heroacutei valente e destemido do campo de batalha ao homem que centra a sua
forccedila no trabalho e produz para suprir as necessidades vitais da poacutelis Em Trabalhos e
dias Hesiacuteodo faz uma anaacutelise de uma das caracteriacutesticas fundamentais do mundo grego
que eacute o cultivo do espiacuterito agocircnico como caminho de atingir a sabedoria nos campos
poliacutetico e artiacutestico Para ele o trabalho eacute base da justiccedila entre os homens Esta disposiccedilatildeo
agoniacutestica em Hesiacuteodo se manifesta em Trabalhos e dias mediante o elogio da ldquoBoa Eacuterisrdquo
que atraveacutes de um saudaacutevel instinto de rivalidade entre os homens faz com eles se
esforcem perenemente pelo aprimoramento pessoal pois com o desenvolvimento das
suas respectivas qualidades perpetuaria infinitamente a vida humana e
consequentemente beneficiaria a proacutepria coletividade Quando fala sobre as qualidades
divinas da ldquoBoa Eacuterisrdquo em relaccedilatildeo agrave promoccedilatildeo do trabalho Hesiacuteodo afirma que ela
103
() estimula ao trabalho mesmo quem seja indolente Na verdade sente incentivo ao trabalho quem vecirc rica a pessoa que se afadiga a arar a terra a plantar a bem dispor a casa o vizinho inveja o vizinho que busca a abundacircncia Boa eacute esta Luta para os mortais O oleiro eacute ecircmulo do oleiro o artesatildeo do artesatildeo e o pobre inveja o pobre e o aedo o aedo (HESIacuteODO sect 20-26)
Haacute que se ressaltar que na poesia de Hesiacuteodo ocorre uma sutil diferenciaccedilatildeo
entre Ergon (o trabalho criativo cujo esforccedilo empreendido dignifica o homem) e Ponos
(a labuta sofrida extenuante) O cuidado seraacute representado exatamente pelo Ergon que
por sua vez conduziraacute ao homem agrave arete Hesiacuteodo nos demonstra atraveacutes de uma rica
reflexatildeo moral fundada na recusa da desmedida (Hyacutebris) e na celebraccedilatildeo da justiccedila e da
excelecircncia com o objetivo de delinear um modelo de virtude e aperfeiccediloamento Pelo
trabalho os homens renunciam agrave Hyacutebris e exercita-se na ponderaccedilatildeo da ldquojusta medidardquo
no empenho das energias corporais necessaacuterias para a realizaccedilatildeo de suas atividades A
postura do poeta seraacute de oferecer uma alternativa agrave eacutetica cavalheiresca preconizada nos
poemas homeacutericos vendo no exerciacutecio do trabalho o caminho para evitar a injusticcedila e se
alcanccedilar a virtude sendo assim a obra demonstra um conteuacutedo importante para se pensar
a praacutetica e a preocupaccedilatildeo com o cuidado de si na eacutepoca arcaica O trabalho humano
enquanto esforccedilo representa uma praacutetica de cuidado no momento preacute-filosoacutefico descrito
por Hesiacuteodo
Pelo trabalho eacute que os homens enriquecem em gados e bens E aqueles que trabalharem satildeo muito mais caros aos imortais Trabalho natildeo eacute vileza vileza eacute natildeo trabalhar Se trabalhares em breve o indolente te inveja a prosperidade Da riqueza eacute companheira o meacuterito e a gloacuteria Na situaccedilatildeo que te deram os deuses o melhor eacute trabalhar Cuida da tua vida desviando o teu acircnimo insensato das alheias riquezas para o trabalho como eu te exorto Uma vergonha pouco recomendaacutevel acompanha o indigente A vergonha estaacute junto da desgraccedila a confianccedila da felicidade (HESIacuteODO sect 308-316)
Chama agrave atenccedilatildeo ainda os festejos teatrais nos quais se via as peccedilas de gecircnero
traacutegico ou cocircmico aqui nos importa dizer que as trageacutedias especificamente eram
voltadas para uma purificaccedilatildeo uma catarse da alma Quando nos teatros as pessoas se
comoviam diante das cenas traacutegicas encenadas tinha-se entatildeo um sinal da presenccedila dos
deuses no lugar Parece que o ideal de purificaccedilatildeo representava uma espeacutecie de cuidado
impliacutecito agrave trageacutedia onde a catarse representava o encontro do homem consigo mesmo e
uma revisatildeo de vida que possibilitava entatildeo a sua purificaccedilatildeo pelo exame da proacutepria vida
104
3 A noccedilatildeo filosoacutefica do cuidado Soacutecrates e seu retrato em Platatildeo
O tema do cuidado nos remete diretamente agrave figura de Soacutecrates na
antiguidade Eacute Platatildeo que mais claramente traz em seus diaacutelogos a principal mensagem
filosoacutefica de seu mestre e que representa a mais estudada e fundamentada noccedilatildeo de
cuidado na antiguidade Aqui iremos verificar como o tema do cuidado aparece nos
principais diaacutelogos platocircnicos representando a preocupaccedilatildeo do autor em mostrar como
seu mestre Soacutecrates preocupava-se com a praacutetica do cuidado e em que medida essa
noccedilatildeo elevada filosoficamente pode contribuir para a Excelecircncia humana
Soacutecrates aparece nos diaacutelogos de Platatildeo sempre como aquele que
recomendara a praacutetica do cuidado ou pelo menos incitando a ela quando fala da
Excelecircncia sendo esta a finalidade uacuteltima da noccedilatildeo de cuidado Ora o cuidado a que ele
incita aos jovens eacute o cuidado da alma eacute este o objeto do cuidado eacute da alma que devemos
cuidar eacute sobre ela que o homem deve debruccedilar-se para poder enfim alcanccedilar a excelecircncia
O cuidado de si ou mais especificamente o cuidado da alma pode ser interpretada como
a grande mensagem trazida por Soacutecrates e testemunhada pelos diaacutelogos Platocircnicos este
cuidado teraacute como veremos uma dimensatildeo extremamente voltada para poliacutetica natildeo
podendo separar-se o individual e o coletivo neste primeiro momento ou seja o cuidado
da alma possibilitaraacute ao homem viver bem em meio aos outros homens a governar e a
ser governado e a alcanccedilar a excelecircncia na poacutelis Se o homem grego prezava pelo cuidado
de si como uma maneira de vida traduzida em todos os atos a liccedilatildeo de Soacutecrates eacute dar a
esta maneira de viver uma finalidade uacuteltima e mais nobre que eacute o cuidado da alma como
elemento mais nobre a ser cuidado pelo homem
Na maioria dos diaacutelogos platocircnicos em que o cuidado aparece como tema
recorrente vemos Soacutecrates como o mestre do cuidar eacute ele que incita cidadatildeos em geral e
de maneira particular o proacuteprio filoacutesofo a cuidar de si Aparece ainda o cuidado da cidade
e sobre ele nos diz-nos Hadot (2008) que haacute em Soacutecrates um aspecto missionaacuterio e
popular neste sentido entendemos que se abre a possiblidade do cuidado de si ser um
cuidado dos outros e um consequente cuidado de um organismo bem maior que eacute a cidade
O exame da proacutepria vida e a preocupaccedilatildeo com a relaccedilatildeo agir-falar exprime a
preocupaccedilatildeo da moral socraacutetica em demonstrar o papel da racionalidade da alma Esta
seraacute a instacircncia final do cuidado que veremos ao analisar como o cuidado de si aparece
na obra platocircnica em siacutentese a vida filosoficamente examinada encontra um caminho
possiacutevel pelo cuidado de si que incitara ao homem rever seus proacuteprios valores sua
105
maneira de agir cotidiana e longe de afastar-se da cidade deve nela proporcionar com os
outros homens que tambeacutem busquem cuidar de si aquilo que a Repuacuteblica apareceraacute
definido como a harmonia da cidade a justiccedila Vejamos estes diaacutelogos
31 A Apologia O mandamento Socraacutetico levado agraves uacuteltimas consequecircncias
Na Apologia5 na narraccedilatildeo da defesa proferida por Soacutecrates ante a sua
condenaccedilatildeo vemos um relato sobre a personificaccedilatildeo do cuidado de si na figura de
Soacutecrates Cuidar de si eacute o mandamento de Soacutecrates e ele o faz como objeto indispensaacutevel
para a vida A preocupaccedilatildeo com a riqueza deve ser afastada do homem mas busca-se a
virtude a partir de uma atenccedilatildeo consigo mesmo Primeiramente eacute bom situar que a defesa
de Soacutecrates daacute-se por ser acusado de corromper a sociedade sobretudo a juventude a
partir do mandamento do cuidado (Apol 25c)
Homens de Atenas contais com meu respeito e minha amizade mas acatarei ao deus de preferencia a voacutes e por quanto durar minha existecircncia e for eu capaz de prosseguir jamais renunciarei agrave filosofia e cessarei de vos exortar e de meu modo costumeiro com qualquer um de voacutes que venha a topar no meu caminho salientar ldquohomem excelente sendo como eacutes um cidadatildeo de atenas a maior das cidades-estado e a mais notoacuteria por sua sabedoria e poder natildeo te sentes envergonhado por te preocupares com a aquisiccedilatildeo de riqueza reputaccedilatildeo e honras enquanto natildeo te importas e nem te atentas para a sabedoria a verdade e o aperfeiccediloamento de tua almardquo E entatildeo se qualquer um de voacutes contestar o teor de minhas palavras e afirmar que realmente se importa natildeo permitirei que vaacute embora dispondo-me sim a interrogaacute-lo examinaacute-lo e submetecirc-lo a testese se apurar que natildeo eacute detentor da virtude a despeito de afirmar que o eacute o censurarei por desprezar coisas de maacuteximas importacircncia enquanto se importa com coisas secundaacuterias Assim agirei com todo aquele que encontrar jovem e velho estrangeiro e concidadatildeo poreacutem mais especificamente com os concidadatildeos porquanto sois ligados mais estreitamente a mim Certificai-vos de que assim o deus me ordena a fazer e creio natildeo haver nenhum outro benefiacutecio concedido a esta cidade do que o serviccedilo que presto ao deus Pois tudo que faccedilo em minhas andanccedilas eacute vos instar jovens e velhos entre voacutes a natildeo zelardes por vossos corpos ou vossas riquezas mais do que pela perfeiccedilatildeo possiacutevel de vossas almas e vos digo que a riqueza natildeo gera a virtude mas esta gera a riqueza e todos os demais bens aos seres humanos tanto os benefiacutecios privados quanto os puacuteblicos (Apol 29d ndash 30b)
5 Para nossa anaacutelise a principal traduccedilatildeo fora PLATAtildeO Apologia de Soacutecrates Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 2011
106
A Apologia nos revela o cuidado como o ensinamento socraacutetico que mais
caracteriza o personagem Soacutecrates eacute aquele que se preocupa consigo e preocupa-se com
os outros e diante disto devota toda a sua vida a exortar os homens a cuidarem de si
porque ele acredita que este eacute o caminho para o homem cidadatildeo e para a cidade alcanccedilar
a virtude Portanto Soacutecrates ataca o cultivo dos bens exteriores em detrimento da virtude
As praacuteticas de si visam a excelecircncia uma transformaccedilatildeo na vida daqueles que vivem de
qualquer maneira sem preocupar-se com a ela mas estatildeo ligados apenas aos bens
materiais e exteriores como a riqueza a beleza corporal e o poder Veja-se que Platatildeo
nos sugere que Soacutecrates levara o cuidado de si ateacute as uacuteltimas consequecircncias
consequecircncias de morte sem dar nenhuma justificativa para isto mas apenas como tarefa
confiada pelo deus e maneira uacutenica de dar sentido agrave proacutepria vida (Apol38 a)
Diante da morte de Soacutecrates vemos o testemunho de que o cuidado carece de
um outro e quem eacute esse outro senatildeo o mestre Eacute o mestre que vai cuidar do cuidado que
o outro vai ter de si neste sentido o diaacutelogo abre o debate para a ideia de que o cuidado
de si longe de ser um individualismo eacute uma atitude de si para o outro e neste sentido
reforccedila-se a necessidade do outro para que haja entatildeo o cuidado Ao mesmo tempo
reforccedila-se com a leitura da Apologia que o tema do cuidado eacute um tema socraacutetico e que eacute
proacuteprio da personagem incitar em suas oportunidades que os homens pratiquem o cuidado
de si Na apologia Soacutecrates daacute testemunho de toda sua atividade filosoacutefica em recomendar
aos jovens uma vida filosoficamente examinada ou seja uma vida em consonacircncia com
o cuidado de si aqui o cuidado aparece como condiccedilatildeo para os governantes e de fato o
tema tem lugar especiacutefico e fundamental quando se trata de governar os outros cuidar
dos outros parece uma tarefa bem maior que cuidar de si mesmo apenas e nisto estaacute a
liccedilatildeo do diaacutelogo ainda que natildeo pertenccedila a Platatildeo deve-se comeccedilar o cuidado por si
mesmo para poder cuidar dos outros
32 O Alcibiacuteades Primeiro o cuidado de si como cuidado dos outros6
O cuidado de si na Filosofia de Platatildeo eacute comumente estudado a partir do
diaacutelogo Alcibiacuteades primeiro7 onde de fato o tema do cuidado aparece de maneira clara
6 Para nossa anaacutelise a principal traduccedilatildeo fora PLATAtildeO O primeiro Alcibiacuteades In Fedro Cartas o primeiro Alcebiacuteades Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 2007 7 Eacute nesta obra que Foucault constroacutei essencialmente sua leitura da noccedilatildeo de cuidado na antiguidade mas especificamente ele constroacutei o curso no colleacutege de France fazendo leitura deste diaacutelogo e relacionando-os aos processos de subjetivaccedilatildeo num contexto de educaccedilatildeo e espiritualidade
107
como tema central e o cuidado eacute estabelecido como necessaacuterio como condiccedilatildeo para
governo da cidade ou seja como tema poliacutetico mas sem desprezar o cuidado de si
daquele que governa que deve cuidar da proacutepria alma antes da pretensatildeo de cuidar dos
outros (Alc134e) Essencialmente o cuidado de si eacute o tema da obra e quanto a isso
observa J Paviani que
o cuidado de si eacute examinado no Alcibiacuteades Primeiro na perspectiva da formaccedilatildeo social e poliacutetica do cidadatildeo Ele refere-se ao indiviacuteduo (e aos outros) e tambeacutem ao cuidado da cidade () A techne terapecircutica socraacutetica tem como objetivo a natureza humana isto eacute a alma a partir do cuidado que exige o conhecer-se a si mesmo A meta eacute a vida feliz do ser humano e do cidadatildeo (PAVIANI 2010 p 38)
O diaacutelogo estabelecido entre Soacutecrates e Alcibiacuteades eacute voltado para uma
questatildeo poliacutetica onde a preocupaccedilatildeo do jovem eacute de governar a cidade governar aos
outros e Soacutecrates lhe impotildee a tarefa de cuidar de si Esforccedila-te para te tornares cada vez
mais belo (Alc 131 d )
O que se deve cuidar Qual o objeto do cuidado A resposta eacute clara deve-se
cuidar da alma essa eacute a noccedilatildeo preliminar que orienta o governo de si e possibilita o
governo dos outros possibilita entatildeo a poliacutetica Esta eacute a dimensatildeo do cuidado tratada no
diaacutelogo como governar os outros senatildeo pela anterior e constante praacutetica do cuidado de si
mesmo
33 A Repuacuteblica e a dimensatildeo pedagoacutegica do cuidado8
Aqui importa destacar que visto em relaccedilatildeo agrave triparticcedilatildeo da alma cabe a cada
parte da alma um cuidado especiacutefico sendo a ideia de justiccedila enquanto virtude de todo
cidadatildeo e natildeo apenas de uma classe especiacutefica o cuidado enquanto fruto de todos os
outros cuidados que se manifesta como uma espeacutecie de moderaccedilatildeo Vejamos como isso
se desenvolve e aqui utilizaremos como exemplo a educaccedilatildeo dos guardiotildees e a forma
que lhes eacute recomendado o cuidar de si
Na Repuacuteblica Platatildeo defende que o filoacutesofo eacute quem deve governar Mas por
quecirc A resposta eacute bem simples Porque ele tem uma vida filosoficamente examinada
porque sua parte racional ordena agraves demais a si Ademais porque o Filoacutesofo da Repuacuteblica
8 PLATAtildeO A Repuacuteblica Ou sobre a justiccedila diaacutelogo poliacutetico Traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
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cumpre aquilo que deve ser a condiccedilatildeo daquele que pretende governar aos outros Ele
governa a si mesmo Mas e o que dizer em relaccedilatildeo agraves demais classes de cidadatildeos Ora o
cuidado de si aparece de maneira discreta mas bem praacutetica na Repuacuteblica sob a oacutetica de
uma dimensatildeo pedagoacutegica mais especificamente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo da alma onde a
educaccedilatildeo de cada classe de cidadatildeo proporcionaraacute ao homem e agrave cidade a Virtude da
Justiccedila O cuidado de si aparece como uma espeacutecie de moderaccedilatildeo dever da educaccedilatildeo em
proporcionar ao homem a plena harmonia entre as partes de sua alma estendendo-se agrave
cidade a harmonia e a consequente justiccedila
A Soprosyne (σωφροσύνη) aparece como uma virtude que tem um uma
atenccedilatildeo especial pelo autor no contexto da triparticcedilatildeo da alma e da analogia agrave cidade a
moderaccedilatildeo ou temperanccedila a virtude que deve estar natildeo em uma parte especiacutefica da alma
mas em toda a cidade Toda educaccedilatildeo da Repuacuteblica tem a intenccedilatildeo de proporcionar uma
cidade justa na qual cada classe de cidadatildeo pratique sua virtude especiacutefica mas que seja
tambeacutem moderado e o ponto de chegada dessa conclusatildeo eacute que ldquoassim como soacute a razatildeo
pode governar o homem soacute o filoacutesofo eacute capaz de orientar os destinos da cidaderdquo (DOS
SANTOS 2008 P89) Vemos aiacute como o conceito de moderaccedilatildeo aparece como um domiacutenio
de si num contexto pedagoacutegico de formaccedilatildeo de cada classe de cidadatildeo e da cidade ideal
De maneira geral Platatildeo combate a questatildeo da submissatildeo do homem a toda sorte de
prazeres e
descreve de um modo traacutegico a existecircncia daqueles que pautam sua vida segundo o imperativo do prazer vivem errantes satildeo incapazes de ultrapassar o limite do prazer e elevar-se ateacute o verdadeiro ser nem podem provar o que seja um prazer soacutelido e puro Engordam e acasalam-se semelhante aos animais vivem pela cupidez dos sentidos dilaceram-se e batem uns nos outros matando-se por causa do seu apetite insaciaacutevel Passam a vida em prazeres misturados com sofrimentos satildeo fantasmas do prazer verdadeiro Satildeo insaciaacuteveis porquanto natildeo encham de alimentos consistentes a parte real e estanque de si mesmos (TEIXEIRA 2006 p30)
A moderaccedilatildeo eacute uma espeacutecie de domiacutenio de si e estes termos estatildeo ligados
diretamente agraves praacuteticas prescritas pelo ideal grego do cuidado A moderaccedilatildeo iraacute gerar na
alma humana uma harmonia diante dos prazeres e do desejo o que representa na
linguagem de Platatildeo o domiacutenio da parte superior da alma sobre as demais
Mas aparentemente o objetivo dessas expressotildees eacute tentar indicar que haacute na alma dessa mesma pessoa uma parte melhor e uma pior e que toda vez que a parte naturalmente melhor estaacute no controle da pior isto eacute expresso declarando-se que a pessoa eacute autocontrolada ou tem domiacutenio
109
de si mesma De qualquer modo a expressatildeo domiacutenio de si mesmo ou autocontrole eacute um termo de louvor Mas quando ao contraacuterio a parte melhor (que eacute menor) eacute dominada pela pior (que eacute a maior) devido a uma maacute criaccedilatildeo ou maacutes companhias isto eacute designado como descontrole ou licenciosidade e constitui uma censura (Rep431 a)
Na educaccedilatildeo proposta pela Repuacuteblica a harmonia na alma representa a
finalidade da educaccedilatildeo do homem a qual pretende que ele seja justo e consequentemente
a cidade tambeacutem o seja e desta forma que cada um ocupe-se com o que lhe foi destinado
pela natureza ldquoPara Platatildeo a moderaccedilatildeo eacute essencial para o desenvolvimento da sabedoria
e aperfeiccediloamento da alma A alma sem cultura e sem graccedila senatildeo tende para a falta de
comedimento A verdade eacute aparentada com o comedimento e natildeo com a falta delerdquo
(TEIXEIRA 2006 P39)
Eacute bom lembrar que aqui natildeo pretendemos demonstrar a estrutura da educaccedilatildeo
platocircnica descrita na Repuacuteblica poreacutem gostariacuteamos de exemplificar a questatildeo a partir da
educaccedilatildeo dos guerreiros voltada para o desenvolvimento da virtude da coragem e
demonstrar como a noccedilatildeo de cuidado aparece como imperativo de todos os homens
visando o bem da poacutelis e atividade poliacutetica A virtude especiacutefica para essa classe de
cidadatildeos eacute bem definida no livro IV da Repuacuteblica ldquoesse poder de preservar diante de
tudo a crenccedila correta e inculcada pela lei sobre o que deve ser temido e o que natildeo deve eacute
o que chamo de coragemrdquo (Rep430b) Para isso a formaccedilatildeo dos futuros guardiotildees
cultivava tambeacutem a opiniatildeo (δόξα) do jovem para que fosse reta incluindo a educaccedilatildeo
da muacutesica da poesia das faacutebulas e da ginaacutestica Soacutecrates deixa manifesto que a Paideacuteia
tem como objetivo a formaccedilatildeo de homens livres que enquanto tais natildeo precisam de medos
infundados mas que eles devem temer a escravidatildeo sob todas as suas formas9 Aqui
interessa demonstrar que nesse contexto surge a necessidade de formar um guardiatildeo
moderado em suas accedilotildees e que saiba cuidar de si O autocontrole eacute uma expressatildeo dessa
moderaccedilatildeo e aparece como tarefa a ser cultivada no futuro guardiatildeo que natildeo deveria temer
nada nem a morte (Rep390c) mas afastar-se de todas as ilusotildees ateacute mesmo as do
dinheiro e dos presentes (Rep390d) enfim de tudo fosse desmedido e exagerado O que
se deve cuidar na perspectiva da Repuacuteblica Sem duacutevida a alma poreacutem natildeo se prescinde
do corpo e este aparece como objeto da educaccedilatildeo da Paideia o cuidado com o gosto
musical com a poesia com o corpo pela ginaacutestica satildeo elementos que atestam que a
9 Sobre a questatildeo da liberdade na Repuacuteblica Cf ARAUacuteJO JUacuteNIOR Anastaacutecio Borges de ldquoOs sentidos da Eleutheriacutea na Repuacuteblica de Platatildeordquo Archai n 9 jul-dez 2012 pp 27-36
110
Repuacuteblica sugere e reflete aquela preocupaccedilatildeo do grego com a maneira pela qual o
homem relaciona-se com as coisas ao seu redor bem como a medida de tudo isso
Natildeo haacute como pensar a Repuacuteblica separando sua proposta pedagoacutegica de
cuidado Nela o cuidado do homem individual prepara-o para viver na poacutelis atraveacutes da
moderaccedilatildeo ou temperanccedila que seraacute a virtude que deveraacute estar em toda a cidade em cada
classe de cidadatildeos e natildeo apenas em uma especiacutefica
34 As Leis e o cuidado dos outros pelo cuidado de si10
As Leis11 enquanto um diaacutelogo da maturidade de Platatildeo apresenta a noccedilatildeo de
cuidado voltado para muitas direccedilotildees e destacamos aqui a dimensatildeo poliacutetica descrita na
obra e que retoma a analogia da alma agrave cidade conforme elaborado na Repuacuteblica Neste
diaacutelogo a lei eacute concebida como essencialmente divina (OLIVEIRA RR 2007 p337) e
a poliacutetica aparece como uma arte
Isso por conseguinte quer dizer a descoberta das naturezas e disposiccedilotildees das almas humanas - se revelaraacute como uma das coisas mais uacuteteis para a arte cuja incumbecircncia eacute delas tratar E esta arte eacute (como presumo que o diriacuteamos) a poliacutetica natildeo eacute mesmo (Leg 650b)
Esta arte eacute definida nas Leis como a ldquoarte de cuidar da almardquo sendo este o
criteacuterio que qualifica o homem para governar os outros homens Veja-se que a obra versa
sobre como governar mas tambeacutem como ser governado O governo de si eacute fruto da noccedilatildeo
de cuidado O tema do trabalho da alma eacute uma praacutetica que revela o cuidado e seu
direcionamento para a relaccedilatildeo com os outros atraveacutes da poliacutetica Isto nos mostra que a
noccedilatildeo de cuidado de si realmente difere-se de um individualismo de um egoiacutesmo mas
refere-se a uma atitude para o outro assim como na poliacutetica O que se deve cuidar a partir
da perspectiva das Leis eacute a alma12 E se eacute contestada a autenticidade do Alcibiacuteades
primeiro parece que as Leis eacute uma oportunidade para revermos a dimensatildeo poliacutetica do
cuidado longe dos problemas hermenecircuticos
10 Sobre o estudo das Leis importa destacar o trabalho de OLIVEIRA R R Demiurgia Poliacutetica as relaccedilotildees entre a razatildeo e a cidade nas Leis de Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2011 11 Para nossa pesquisa utilizamos a seguinte traduccedilatildeo PLATAtildeO Leis Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980 12 Como dissemos anteriormente este eacute o tema central do Alcibiacuteades primeiro Aqui faremos apenas essa referecircncia vista a problemaacutetica da autoria da obra Poreacutem destacamos aqui o mandamento de Soacutecrates a Alcebiacuteades mestra obra que eacute de cuidar de sua proacutepria alma como tarefa que precede o governo dos outros (132b) A felicidade da alma dependeraacute da virtude dos homens (134b) e portanto quem natildeo conhecer as coisas a seu respeito natildeo poderaacute conhecer tambeacutem as coisas a respeito dos outros (133e)
111
A noccedilatildeo de cuidar aqui apareceraacute envolvendo o papel do legislador daquele
que comanda a cidade e os cidadatildeos O filoacutesofo nas Leis torna-se o legislador e a
educaccedilatildeo entrelaccedila-se com a poliacutetica natildeo sendo mais a educaccedilatildeo de cada classe de
cidadatildeos mas a educaccedilatildeo de todos pelo imperativo de cuidar da alma e saber lidar pela
educaccedilatildeo com tudo aquilo que possa causar-lhe mau Trata-se de alcanccedilar uma totalidade
da virtude (Leg 630 e)Natildeo se trata de afastar o homem de seus desejos e sim de educa-
lo para lidar com eles Eacute o filoacutesofo que cuida do cuidado que os outros deveratildeo ter de si
O cuidado aparece tematizado como o cuidado pelo outro a partir da educaccedilatildeo e da Lei
Natildeo vemos no diaacutelogo uma exortaccedilatildeo socraacutetica agrave revisatildeo da proacutepria vida a um
conhecimento de si vemos na verdade a construccedilatildeo de um processo educativo onde pela
accedilatildeo do legislador o homem alcanccedilaria a excelecircncia Vejamos as palavras do diaacutelogo que
sugerem a proposta educativa das Leis
A educaccedilatildeo a que nos referimos eacute o treinamento desde a infacircncia na virtude o que torna o individuo entusiasticamente desejoso de se converter num cidadatildeo perfeito o qual possui uma compreensatildeo tanto de governar como a de ser governado com justiccedila Esta eacute a forma especiacutefica da formaccedilatildeo agrave qual suponho nossa discussatildeo em pauta restringiria ao termo educaccedilatildeo enquanto seria vulgar servil e inteiramente indigno de chamar de educaccedilatildeo uma formaccedilatildeo que visa somente agrave aquisiccedilatildeo do dinheiro do vigor fiacutesico ou mesmo alguma habilidade mental destituiacuteda de sabedoria e justiccedila (Leg 644 a-b)
O filoacutesofo assume o papel de cuidar pela educaccedilatildeo A noccedilatildeo de cuidar eacute impliacutecita
eacute necessaacuterio compreender que governar a cidade natildeo tem um outro caminho senatildeo
governar seus cidadatildeos e educa-los desde a mais tenra infacircncia voltando tudo para uma
essecircncia divina daiacute o ideal de que na Repuacuteblica aparece como ideia de Bem e nas Leis
aparece como sendo Deus a meta para onde tudo deve direcionar-se (Leg 716 c 717 a)
Quanto a questatildeo Jaeger afirma que
O filoacutesofo torna-se por meio da legislaccedilatildeo o demiurgo do cosmos da comunidade humana que deve ser integrado dentro daquele cosmos mais vasto e o impeacuterio de Deus realiza-se pela aplicaccedilatildeo consciente que o homem ser racional faz do logos divino (JAEGER 2011 p 1343)
Obviamente o cuidado surge nesta perspectiva que demonstramos como um
cuidado pelo outro sem desprezar a noccedilatildeo de cuidar de si mesmo O legislador filoacutesofo
na intenccedilatildeo de governar de legislar eficazmente e com justiccedila busca assemelhar-se do
divino e nisto consiste o seu especiacutefico cuidado consigo mesmo Veja-se que ele sugere
que soacute um Deus poderia possuir um conhecimento poliacutetico competente e concebe o
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processo poliacutetico em uma continuidade ou seja os sucessores poderatildeo corrigir possiacuteveis
erros de seus antecessores por isso a legislaccedilatildeo eacute comparada por ele agrave uma obra de arte
(Leg 769c) O paracircmetro do cuidado eacute o cuidado com a cidade A poliacutetica consistiraacute
portanto em cuidar dos outros pelo processo educativo e pelas leis (noacutemoi) sendo papel
do legislador incumbir nos outros homens alguma sabedoria (Leg 687d) visando formar
o eacutethos dos homens e conduzi-los agrave uma virtude Esta virtude meta do projeto poliacutetico
das Leis tem relaccedilatildeo com a racionalidade e pode ser exemplificada com a passagem que
segue
Ograve estrangeiro natildeo eacute por acaso que as leis dos cretenses gozam de excelentiacutessima reputaccedilatildeo entre todos os helenos satildeo leis justas porquanto produzem o bem-estar daqueles que a utilizam proporcionando todas as coisas que satildeo boas Ora os bens satildeo de duas espeacutecies a saber humanos e divinos os bens humanos dependem dos divinos e aquele que recebe o maior bem adquire igualmente o menor caso contraacuterio eacute privado de ambos Entre os bens menores a sauacutede vem em primeiro lugar a beleza em segundo o vigor em terceiro necessaacuterio agrave corrida e a todos os demais exerciacutecios corporais segue-se o quarto bem a riqueza natildeo a riqueza cega mas aquela de visatildeo aguda que tem a sabedoria por companheira A sabedoria a proposito ocupa o primeiro lugar entre os bens que satildeo divinos vindo a racional moderaccedilatildeo da alma em segundo lugar da uniatildeo destas duas com a coragem nasce a justiccedila ou seja o terceiro bem divino seguido pelo quarto que eacute a coragem (Leg 631 b-d)
Veja-se que a meta (skopoacutes) da legislaccedilatildeo natildeo eacute algo vazio tem uma
finalidade a virtude e como dissemos relaciona-se com a racionalidade contribuindo
para o bem individualmente do cidadatildeo e coletivamente da poacutelis A educaccedilatildeo eacute o
caminho proposto para aquisiccedilatildeo da virtude pelo homem da poacutelis desde a mais tenra
infacircncia
Entendo assim por educaccedilatildeo a primeira aquisiccedilatildeo que a crianccedila faz da virtude Quando o prazer o amor a dor e o oacutedio nascem com justeza nas almas antes do despertar da razatildeo e uma vez a razatildeo desperta os sentimentos se harmonizam com ela no reconhecimento de que foram bem treinados pelas praacuteticas adequadas correspondentes essa harmonizaccedilatildeo vista como um todo constitui a virtude (Leg 653b)
4 Conclusatildeo
Podemos concluir que as praacuteticas dos homens no momento preacute-filosoacutefico
demonstram o cuidado de si nas mais diversas situaccedilotildees vividas sobretudo pelo
113
relacionamento com os deuses da mitologia aos quais se atribuiacutea o destino e governo do
universo bem como o fim uacuteltimo do homem
No processo de evoluccedilatildeo do conceito encontramos em Soacutecrates encontramos
o aacutepice da noccedilatildeo filosoacutefica do cuidado direcionando o dever do cuidar de si mesmo para
a alma do homem pela busca da virtude Esse aacutepice chega ateacute noacutes pela filosofia de Platatildeo
nela encontramos o ideal e a proposta de vida refletida e submetida agrave razatildeo que caracteriza
a praacutetica do cuidado de si tatildeo pregada por Soacutecrates e ora testemunhado pelos diaacutelogos de
Platatildeo Os diaacutelogos de Platatildeo satildeo marcados pela noccedilatildeo do cuidado impliacutecita nos ideais e
nas formas propostas de educaccedilatildeo para o homem O pensamento de Platatildeo eacute situado numa
eacutepoca em que esse cuidar era um elemento primordial na vida do homem Ademais ele
testemunha em seus escritos a sua eacutepoca e a eacutepoca do mestre Soacutecrates a quem devemos
o fato de elevar o cuidado a um status filosoacutefico e tornaacute-lo objeto de reflexatildeo para a vida
e para a felicidade do homem
O estudo das praacuteticas de cuidado na antiguidade nos leva a concluir toda a
importacircncia da educaccedilatildeo na antiguidade a busca pela virtude e pela vida feliz atraveacutes da
vivecircncia do cuidado de si mesmo e reflexatildeo sobre as proacuteprias accedilotildees e suas consequecircncias
No sentido filosoacutefico a predominacircncia da razatildeo frente aos desejos inferiores do homem
era o objetivo das praacuteticas de cuidado que coletivamente representavam uma accedilatildeo
poliacutetica onde todos eram beneficiados por esse elemento educativo de si mesmo e no
fundo da coletividade
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114
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_______ O primeiro Alcibiacuteades In Fedro Cartas o primeiro Alcibiacuteades Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 2007
DO AMOR PLATOcircNICO AO CRUSH A FILOSOFIA ENTRE
ADOLESCENTES ndash TOacutePICOS DE ENSINO DE FILOSOFIA
Gabriel R Rocha1
RESUMO O artigo demonstra a relaccedilatildeo de equivalecircncia possiacutevel entre o amor platocircnico e o significado da giacuteria crush usualmente muito utilizada entre os adolescentes Natildeo obstante a equivalecircncia demonstrou-se falsa pois que o objeto do amor platocircnico consoante ao entendimento apresentado ao Banquete de Platatildeo difere do objeto de desejo expresso no signo crush No entanto apesar de diferir quanto ao fim o crush eacute passiacutevel de ser compreendido como etapa inicial no processo ascendente em relaccedilatildeo ao amor verdadeiro Pondera-se sobre o crush em sua correlaccedilatildeo ao contexto sociocultural contemporacircneo neste fim utiliza-se de autores como Pierre Leacutevy Ernest Cassirer Zygmunt Bauman e Alasdair MacIntyre justapondo-se sempre que possiacutevel e necessaacuterio a aspectos determinantes da filosofia platocircnica em correspondecircncia ao tema proposto Aleacutem de contar com uma breve introduccedilatildeo e consideraccedilotildees finais optou-se por uma seccedilatildeo uacutenica em contribuiccedilatildeo ao estudo qualitativo do tema Ademais o estudo reafirma a utilidade da filosofia como constituiacuteda de saber fortemente contributivo ao pensar rigoroso criacutetico e plural sobre as diferentes expressotildees que caracterizam o modo de ser contemporacircneo particularmente em relaccedilatildeo ao modo de ser do jovem adolescente imerso em um mundo cada vez mais multicultural global e inter-relacionado em rede Palavras-chave Amor platocircnico Beleza Crush Desejo Eros ABSTRACT The article demonstrates the possible equivalence relationship between platonic love and the meaning of the commonly used slang crush among teenagers Nonetheless the equivalence proved to be false since the object of Platonic Love according to the understanding presented of Platos Symposium differs from the object of desire expressed in the mark crush However despite differing in the end the crush is likely to be understood as the initial step in the ascending process in relation to true love It is based on crush in its correlation with the contemporary social and cultural context in this end it uses authors like Pierre Leacutevy Ernst Cassirer Zygmunt Bauman and Alasdair MacIntyre juxtaposing whenever possible and necessary to determinant aspects of the Platonic philosophy in correspondence to the proposed theme In addition to having a brief introduction and final considerations a single section was chosen contributing to the qualitative study of the theme In addition the study reaffirms the usefulness of philosophy as consisting of highly contributory knowledge in rigorous critical and plural thinking about the different expressions that characterize the contemporary way of being particularly in relation to the way of being of the young adolescent immersed in a world increasingly multicultural global and interrelated within a network Key-words Platonic love Beauty Crush Desire Eros
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Professor de Filosofia na educaccedilatildeo baacutesica email gabiphilo78gmailcom
116
Introduccedilatildeo
Entre muitos aspectos comuns que caracterizam a adolescecircncia2 a utilizaccedilatildeo
de giacuterias compotildee o que poder-se-ia chamar de ldquomodo de ser adolescenterdquo Este uso
particular da linguagem entre os jovens adolescentes natildeo se restringe a determinados
locais de livre convivecircncia mas perpassa tambeacutem o meio educacional ou seja o espaccedilo
de relaccedilatildeo e formaccedilatildeo que eacute a escola Da mesma forma em que tambeacutem se encontra
manifestadamente presente no mundo virtual ou ciberespaccedilo3
Evidente que nenhum professor estimula o uso de giacuterias em sala de aula
espaccedilo em que prioritariamente deve-se aprender e fazer uso de certas regras quanto agrave
utilizaccedilatildeo e compreensatildeo da linguagem seja esta miacutetica ou religiosa esteacutetica ou
cientiacutefica histoacuterica ou geograacutefica expressadas na oralidade ou na simbologia no desenho
ou na cartografia e claro na escrita Entrementes as giacuterias expotildeem particularidades natildeo
somente restritas a simples expressotildees verbais embora sejam estas o meio de sua
manifestaccedilatildeo mas expotildeem sobretudo caracteres comportamentais e eacuteticos culturais
esteacuteticos e sociais especiacuteficos agrave determinada geraccedilatildeo4
Resulta assim que se torna possiacutevel a identificaccedilatildeo de caraacuteter geracional
mediante agrave observaccedilatildeo cautelosa quanto ao uso de determinadas giacuterias quando aquele
que agrave expressa revela mesmo sem intencionalidade a qual geraccedilatildeo se vincula i eacute haacute
qual geraccedilatildeo pertencia quando do periacuteodo de sua juventude
Evidencia-se no interior desta perspectiva que existem giacuterias mais
universalizaacuteveis do que outras em que seu uso claramente ultrapassam aspectos mais
restritivos a grupos determinados Por exemplo haacute giacuterias que servem para identificar
certo grupo social ou agraves chamadas ldquotribos urbanasrdquo como as usadas entre os skatistas e
os punks mas a outras que nitidamente identificam todo um conjunto sociocultural e
mesmo histoacuterico de uma determinada geraccedilatildeo sobressaindo-se de maneira mais
2 No Brasil o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Lei Federal nordm 8 069 de 13 de julho de 1990) em seu artigo 2ordm assere o seguinte ldquoConsidera-se crianccedila para os efeitos da Lei a pessoa ateacute doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idaderdquo 3 LEacuteVY P Cibercultura p 157 o ldquociberespaccedilo eacute o espaccedilo das comunicaccedilotildees por redes de computaccedilatildeordquo 4 Este amplo aspecto que revela a abrangecircncia de uma giacuteria expotildee o desejo de socializaccedilatildeo inerente a qualquer ser humano Conforme assere ROCHER Guy Introduccioacuten a la sociologiacutea general p 23 ldquoA socializaccedilatildeo eacute o processo por meio do qual a pessoa aprende e interioriza no transcurso de sua vida os elementos socioculturais de seu meio ambiente integra-os na estrutura de sua personalidade sob a influecircncia da experiecircncia e de agentes sociais significativos e se adapta assim ao entorno social em cujo seio deve viverrdquo
117
abrangente Este parece ser o caso da giacuteria aqui escolhida para anaacutelise e reflexatildeo
filosoacutefica o ldquocrushrdquo
Natildeo causa estranheza que em um mundo cada vez mais globalizado e em rede
o que eacute tido como local rapidamente ultrapassa a sua origem geograacutefica ou histoacuterico-
cultural e assim estenda-se ao globo Se esta velocidade de inter-relaccedilatildeo e
interdependecircncia existe entre economias nacionais organizaccedilotildees paiacuteses e suas
instituiccedilotildees ainda mais velozmente se identifica esta ausecircncia de zonas limiacutetrofes ao que
refere ao mundo jovem adolescente
Em consequecircncia livros tornados ldquoBest-sellersrdquo filmes ldquoBlockbustersrdquo
seacuteries televisivas canais por assinatura vestuaacuterio acessoacuterios alimentaccedilatildeo ldquoblogsrdquo sites
de busca e pesquisa redes sociais ldquogamesrdquo entre outros identificam o comum modo de
ser caracteriacutestico deste periacuteodo existencial em nossa contemporaneidade mundial
Por conseguinte o objetivo primordial proposto deste artigo daacute-se no esforccedilo
compreensivo de a partir de uma giacuteria atualmente utilizada e disseminada entre a
juventude adolescente o ldquocrushrdquo promover o exerciacutecio reflexivo sobre certos aspectos
da filosofia platocircnica bem como ponderar sobre a possibilidade - em verdade
considerada como sempre necessaacuteria - da interferecircncia filosoacutefica no espaccedilo comum de
comunicaccedilatildeo e convivecircncia que se caracteriza a sala de aula
Neste intuito escolhe-se um termo que ultrapassou o discurso puramente
acadecircmico o de ldquoamor platocircnicordquo e sua possiacutevel relaccedilatildeo de equivalecircncia ou natildeo entre
esta expressatildeo e a giacuteria ldquocrushrdquo Assim resulta que o tema proposto sugere aproximar o
discurso produzido no texto filosoacutefico neste caso o texto dialoacutegico de Platatildeo sobretudo
o diaacutelogo Banquete e a expressatildeo ldquocrushrdquo atualmente usual entre os jovens adolescentes
em clara referecircncia no dizer deles mesmos ao objeto de seus desejos
Crush e amor platocircnico
Como anteriormente mencionado ldquocrushrdquo eacute uma giacuteria Mas ao que se refere
E neste sentido porque se revela plausiacutevel propor pensa-la filosoficamente justapondo-a
ao chamado ldquoamor platocircnicordquo
Antes de esclarecer-se os questionamentos referidos acima eacute necessaacuterio
adicionar agrave compreensatildeo proposta a seguinte contribuiccedilatildeo de Ernst Cassirer sobre o
conceito de siacutembolo Observa-se o seguinte
118
[] O sinal eacute uma parte do mundo fiacutesico do ser o siacutembolo eacute uma parte do mundo humano do sentido Os sinais satildeo lsquooperadoresrsquo os siacutembolos satildeo lsquodesignadoresrsquo [] Um siacutembolo natildeo eacute apenas universal poreacutem extremamente variaacutevel Posso expressar o mesmo significado em vaacuterios idiomas e ateacute mesmo dentro dos limites de uma uacutenica liacutengua o mesmo pensamento ou ideia pode ser expresso em termos muito diferentes [] Um siacutembolo genuiacuteno natildeo se caracteriza pela uniformidade mas pela versatilidade Natildeo eacute riacutegido nem inflexiacutevel eacute moacutevel5
Consoante a referendada citaccedilatildeo compreende-se o siacutembolo como elemento
que designa a realidade embora natildeo seja a realidade poreacutem oferta-lhe sentido A giacuteria
portanto eacute um siacutembolo e natildeo somente um sinal ou uma pantomima porque nela se
manifesta via linguagem todo o imageacutetico caracteriacutestico de um signo6 A giacuteria portanto
o ldquocrushrdquo expressa uma mediaccedilatildeo simboacutelica entre o real e o ideal sendo dotada de
significado e propiciadora de entendimento intersubjetivo
Termo de origem inglesa natildeo haacute traduccedilatildeo de ldquocrushrdquo enquanto giacuteria7 pois
ldquocrushrdquo eacute ldquocrushrdquo e assim expressa uma cultura linguiacutestica comum entre os adolescentes
qual seja a manifestaccedilatildeo do desejo amoroso a pessoas proacuteximas ou natildeo fisicamente mas
que sempre correspondam ou ao menos venham a corresponder ao imageacutetico erotizante
juvenil
Resulta do precedente que quando o (a) jovem adolescente afirma ldquoEle ou
ela eacute meu crushrdquo significa natildeo somente e necessariamente uma relaccedilatildeo direta e pessoal
poreacutem uma relaccedilatildeo de desejo idealizado em cuja principal forccedila motriz parece constituir-
se na beleza fiacutesica
Em consequecircncia tem-se duas possibilidades de equivalecircncia ao ldquoamor
platocircnico8rdquo a primeira eacute quanto a idealizaccedilatildeo do objeto de desejo a segunda daacute-se na
5 CASSIRER E Antropologia Filosoacutefica ndash ensaio sobre o homem introduccedilatildeo a uma filosofia da cultura humana p67 6 A tese principal de Cassirer eacute que toda relaccedilatildeo do homem com o mundo eacute mediada por um sistema de signos Esses sistemas podem ser linguiacutesticos artiacutesticos matemaacuteticos etc antes do homem ser racional ou poliacutetico ou faber ele eacute symbolicum 7 Diz-se ldquoenquanto giacuteriardquo porquanto a palavra crush significa literalmente ldquoesmagarrdquo ldquomoerrdquo mas tambeacutem traz consigo este significado de ldquopaixatildeo passageira e ou idealizadardquo por exemplo a expressatildeo ldquoShe has a crush for yourdquo (ldquoela tem uma quedinha por vocecircrdquo) Assim ao se analisar a giacuteria esta enquanto giacuteria e expressatildeo verbal entre os adolescentes natildeo recebe traduccedilatildeo embora todos saibam o seu significado quando transliterado agrave liacutengua portuguesa 8 Conforme o Dicionaacuterio Oxford de Filosofia p 148 verbete Ficino Marsiacutelio (1433-99) diz-se deste ldquoque seus comentaacuterios ao Banquete de Platatildeo satildeo a fonte da expressatildeo corrente ldquoamor platocircnicordquo com o sentido de um amor que natildeo procura expressatildeo sexual contentando-se antes unicamente com a apreciaccedilatildeo das formas que o ser amado exemplificardquo Marsiacutelio Ficino foi o principal representante do platonismo e neoplatonismo renascentista fundador e diretor da Academia de Florenccedila eacute sua a numeraccedilatildeo mundialmente conhecida que serve para a organizaccedilatildeo catalogaccedilatildeo e citaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo ldquoEm 1484 foi publicada sua traduccedilatildeo integral dos diaacutelogos de Platatildeordquo Id ibid p 148
119
relaccedilatildeo entre desejo e beleza i eacute o desejo pelo belo Todavia antes da necessaacuteria
continuidade investigativa desta equivalecircncia possiacutevel torna-se vaacutelido acrescentar o que
se segue
Quando na deacutecada de 1990 surgira entre os adolescentes o uso da giacuteria ldquoficarrdquo
esta trazia como significado simboacutelico o fato de realmente ter beijado algueacutem por
exemplo ldquofiqueirdquo com ldquoelardquo ou com ldquoelerdquo em uma festa Assim o ldquoficarrdquo natildeo equivaleria
a namoro i eacute um compromisso fixo com outra pessoa ldquoficarrdquo era somente ldquoficarrdquo
mesmo que houvesse a possibilidade do ldquoficarrdquo se efetivar em namoro ou em algum
compromisso monogacircmico
Da mesma forma o ldquocrushrdquo natildeo eacute necessariamente ldquoficarrdquo e muito menos
namorar mas sobretudo manifesta-se como ato de desejo ou de se encontrar enamorado
por algueacutem que pode ou natildeo ser de relaccedilatildeo fisicamente aproximada
Chega-se assim a primeira possiacutevel conclusatildeo o ldquocrushrdquo pode corresponder
a ldquoamor platocircnicordquo se e somente se pensado conforme o senso comum em sua
manifestaccedilatildeo de desejo amoroso idealizado mas natildeo realizaacutevel Portanto natildeo
expressando equivalecircncia com a proposta filosoacutefica de Platatildeo quanto ao amor Pois como
seraacute demonstrado o amor idealizado em Platatildeo eacute realizaacutevel constituindo-se no amor pelo
ldquoBelo em sirdquo sempre correlato ao amor pelo Bem logo ele natildeo eacute idealizado mas
plenamente atingiacutevel na contemplaccedilatildeo
Nestes termos o ldquocrushrdquo natildeo eacute passiacutevel de satisfazer tamanha exigecircncia
platocircnica entretanto ainda assim pode-se considerar o ldquocrushrdquo como equivalente da
primeira manifestaccedilatildeo pelo desejo do belo uma primeira etapa quanto a real beleza e o
verdadeiro amor que natildeo eacute e natildeo pode ser em Platatildeo somente amor pelos belos corpos9
Adentra-se pois ao tema da educaccedilatildeo10 do desejo de valor inestimaacutevel agrave Platatildeo
Se somente se deseja com o corpo (socircma) natildeo eacute possiacutevel agravequele que assim
procede desvincular-se de ldquoprazeres menoresrdquo Entretanto estes prazeres menores natildeo
satildeo isentos de intensidade ao contraacuterio por serem intensos e passiacuteveis de causarem
desregramento interno aos indiviacuteduos que justamente a estes prazeres haacute submissatildeo
9 Argumento que segue a loacutegica dos enunciados correspondente ao diaacutelogo Banquete contudo tambeacutem correlato ao diaacutelogo Fedro O tema seraacute desenvolvido mais adiante 10 Educaccedilatildeo natildeo tem sentido de instrumentalizaccedilatildeo teacutecnica mas sobretudo condiz com agrave educaccedilatildeo moral da psycheacute educar para a formaccedilatildeo e desenvolvimento das virtudes ou excelecircncias (aretai) morais Consultar diaacutelogo Leis 643e-644a-b Sobre esta questatildeo assere JAEGER Paideacuteia p 336 ldquoA educaccedilatildeo profissional herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofiacutecio ou a induacutestria natildeo se podia comparar agrave educaccedilatildeo total de espiacuterito e de corpo do nobre καλὸς κᾀγαϑός baseada numa concepccedilatildeo total do Homemrdquo
120
podendo efetivamente manifestar o domiacutenio do desejo de prazer sobre outras faculdades
ou tendecircncias internas da psycheacute11 (alma) humana o que por sua vez ocasionaraacute
indiviacuteduos compromissados somente com agrave satisfaccedilatildeo dos sentidos12
Para Platatildeo eacute preciso educar a faculdade desejante (epithymiacutea) opondo-lhe a
faculdade da razatildeo (logistikoacuten) e a esta acrescentando-lhe uma virtude ou excelecircncia
(areteacute) fundamental a temperanccedila (sophrosyacutenecirc)13 Observa-se o exposto seguinte no
diaacutelogo Fedro
[] em cada um de noacutes existem dois princiacutepios de forma e de conduta que seguimos para onde eles nos conduzem um inato eacute o desejo de prazer (ἐπιθυμία ἡδονῶν) outro adquirido que aspira sempre ao melhor Por vezes estas duas tendecircncias concordam em noacutes mas em certas ocasiotildees verificamos que entram em guerra em que uma vez sai vencedora a primeira outra vez a segunda Posto isto assentemos em que quando sai vencedora a forma orientada pela razatildeo essa forma chama-se temperanccedila quando eacute o desejo que destituiacutedo de razatildeo nos arrasta para os prazeres chama-se gula []14
Embora o desejo de prazer seja inato aos homens eacute necessaacuterio educaacute-lo
oferecer-lhe agrave correta direccedilatildeo caso contraacuterio natildeo se torna possiacutevel trilhar um caminho
ascendente do corpoacutereo ao racional diga-se espiritualizar a relaccedilatildeo com os objetos de
desejo bem como na relaccedilatildeo mesma com o proacuteprio desejo inato de prazer15
11 O termo alma do grego ψιχή eacute conceito fundamental em Platatildeo Considera-se aqui como termo alma a sede da inteligecircncia e da moral Conforme propotildee TRABATONNI Platatildeo p 131-32 ldquoDesde os tempos de Homero a alma representava a vida do corpo Todavia Platatildeo aceita a provaacutevel posiccedilatildeo do Soacutecrates histoacuterico que abandona o aspecto fisioloacutegico (alma como apenas o que manteacutem o corpo vivo) para uma imagem espiritual a alma eacute antes de tudo a sede do intelecto e da consciecircncia e eacute o sujeito das accedilotildees e dos valores moraisrdquo 12 Como assere GRUBE El pensamiento de Platoacuten p 130 ldquoDo ponto de vista da intensidade os maiores prazeres satildeo fiacutesicos [] se o que buscamos eacute a intensidade nunca a encontraremos na sauacutede ou na moderaccedilatildeordquo 13 Conforme o argumento apresentado corrobora ROWE Introduccioacuten a la eacutetica griega p 253 ldquoA sophrosyacutenecirc eacute a sujeiccedilatildeo harmoniosa das duas partes inferiores da alma agrave parte racional dominanterdquo Para Rowe sem a temperanccedila natildeo eacute possiacutevel agrave faculdade racional (logistikoacuten) da psycheacute dominar as funccedilotildees que lhe satildeo inferiores 14 PLATAtildeO Fedro 237e-238a Observa-se no Fedro 238a o trecho seguinte ldquo[] quando eacute o desejo que destituiacutedo de razatildeo nos arrasta aos prazeres e nos conduz a seu belo talante essa forma chama-se gulardquo Na traduccedilatildeo do diaacutelogo para a liacutengua inglesa tem-se o termo ldquoexcessrdquo a significar ldquoem demasiardquo ldquoem excessordquo In Plato in Twelve Volumes 1925 Questatildeo de amplo interesse cuja problemaacutetica adentra-se agrave psicanaacutelise Conforme MASCARENHAS Emoccedilotildees no Divatilde pp 216-19 ldquoa gula relaciona-se com a voracidade fissura mesma Por isso eacute insaciaacutevel ademais refere-se a todo tipo de excesso natildeo somente portanto aos apetites culinaacuteriosrdquo Assim tanto o termo gula da traduccedilatildeo para o portuguecircs quanto o termo excess em inglecircs ambos parecem adequados e expressam coerecircncia ao pensamento (notavelmente originaacuterio) de Platatildeo 15 REIS M Por uma nova interpretaccedilatildeo das doutrinas escritas a filosofia de Platatildeo eacute triaacutedica p 385 nota 11 argumenta o seguinte ldquoNa filosofia platocircnica o uso de epithymiacutea (apetite de algo) distingue-se daquele do eacuteros (desejo amor) O sentido do primeiro termo eacute mais restrito que o do segundo A epithymiacutea refere-se a um tipo de iacutempeto proacuteprio agrave parte apetitiva da alma voltado para determinado objeto (apetite de algo) ligado agraves experiecircncias de carecircncia e suprimento de prazer e dor Jaacute o eros refere-se ao impulso da
121
Platatildeo argumenta que natildeo eacute condizente com agrave razatildeo e com agrave virtude satisfazer-
se em um modo de ser conduzido por um hedonismo absoluto ainda mais quando os
objetos de prazer natildeo se elevam para aleacutem da sensaccedilatildeo16 O diaacutelogo Fedro na passagem
seguinte corrobora com agraves inferecircncias apresentadas
O desejo que desprovido de razatildeo atrofia a alma (psycheacute) e esmaga o prazer (hecircdonecirc) do bem e se dirige exclusivamente para os desejos proacuteprios da sua natureza cujo uacutenico objetivo17 eacute a beleza corporal quando se lanccedila impudicamente sobre ela comporta-se de tal maneira que se torna irresistiacutevel e eacute dessa irresistibilidade dessa forccedila destemperada que ele recebe a denominaccedilatildeo de Eros ou de Amor18
Embora o final da citaccedilatildeo conclua negativamente quanto agrave ldquoforccedila
destemperadardquo de Eros torna-se plausiacutevel quando adicionado a outros argumentos do
proacuteprio Fedro compreender que Eros quando desprovido de razatildeo e desprovido de
temperanccedila eacute somente forccedila impulsiva sem o devido direcionamento assim justifica-se
o educar daquele que deseja e somente assim eacute possiacutevel agrave alma (psycheacute) e natildeo ao corpo
amar o que verdadeiramente eacute digno de amor19
Entrementes antes de merecida e continuada anaacutelise qualitativa sobre Eros e
sobre determinados conceitos agrave compreensatildeo almejada eacute imprescindiacutevel somar-se mais
algumas consideraccedilotildees sobre o ldquocrushrdquo enquanto possibilidade de exprimir a mentalidade
cultural20 do jovem adolescente
totalidade da alma (e natildeo de parte dela) seu eacutelan vital movimento que conduz a alma agrave continuidade agrave unidade bem como elemento unificador do muacuteltiplordquo Este argumento embora forte eacute passiacutevel de refutaccedilatildeo na proacutepria passagem referendada no texto do diaacutelogo Fedro 238c Poreacutem o argumento estaacute correto quanto a caracterizaccedilatildeo de eros como forccedila propulsora agrave totalidade da alma (por isso aqui apresenta-se a interpretaccedilatildeo de eros como caminho ascendente em direccedilatildeo agrave Beleza em si consoante ao diaacutelogo Banquete da mesma forma considera-se que ldquocrushrdquo natildeo pode significar equivalecircncia a amor platocircnico como amor ideal justamente devido ao objeto de amor do amante Como elemento metafiacutesico de unificaccedilatildeo creia-se que estaacute mais para o Bem do que para Eros Quanto agrave questatildeo de carecircncia ou falta temos o desejo pela beleza assim como temos pela sabedoria ou pelo gozo fiacutesico o que difere eacute o objeto e natildeo a faculdade desejante Por isso educar a razatildeo de quem deseja e adicionar a virtude da temperanccedila 16 Isto eacute como ato de sentir aiacutesthesis 17 No original grego tem-se a expressatildeo ἐπιθυμιῶν ἐπὶ σωμάτων κάλλος assim a melhor traduccedilatildeo seria infere-se ldquocujo uacutenico desejo eacute a beleza corporalrdquo 18 PLATAtildeO Fedro 238c 19 Crecirc-se evidente que em Platatildeo natildeo haacute negaccedilatildeo do desejo de prazer A proacutepria felicidade (eudaimoniacutea) natildeo eacute a ausecircncia de desejos como pensaram os epicuristas ao contraacuterio a felicidade consoante Platatildeo eacute o domiacutenio sobre si i eacute o equiliacutebrio entre as faculdades da psycheacute embora seja sempre preferiacutevel o predomiacutenio da razatildeo como garantia da proacutepria harmonia Contribui GRUBE El Pensamiento de Platoacuten p 117 no seguinte ldquoPlatatildeo afirma que o prazer e dor satildeo estados de atividade rechaccedilando assim a confusatildeo de uma felicidade como mera imperturbabilidade e ausecircncia de todos desejos estado negativo e passivo que constituiria o ideal dos epicuristasrdquo Tambeacutem em referecircncia ao Filebo GRUBE (Ibid p 123) ldquoUma vida boa deve conter para tanto certa mescla de conhecimento e sentimento de intelecto e prazerrdquo 20 Conceito relevante agrave histoacuteria e agrave antropologia mentalidade cultural significa infere-se ao que caracteriza um modo de ser especiacutefico dentro de determinado contexto histoacuterico-social todavia natildeo restrito necessariamente a um tempo e espaccedilo determinado e especiacutefico pois que seu objeto eacute sobretudo o mental
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Supotildee-se que a utilizaccedilatildeo de giacuterias entre os jovens adolescentes caso em que
o ldquocrushrdquo eacute somente mais uma dentre inuacutemeras acabam por atuar como ldquoidentificadoresrdquo
ou como ldquoagentes sociaisrdquo em que determinados grupos expressam seus valores e sua
mentalidade cultural comum logo identificaccedilatildeo essa fortemente relacionada agrave
coletividade Por paradoxal que inicialmente possa parecer o uso de giacuterias revela uma
possiacutevel contraposiccedilatildeo ao individualismo ou a individuaccedilatildeo marca indeleacutevel de nossa
eacutepoca
O socioacutelogo polonecircs Zygmunt Bauman assim define o conceito de
individualizaccedilatildeo ldquoO que a ideacuteia de lsquoindividualizaccedilatildeorsquo traz eacute a emancipaccedilatildeo do indiviacuteduo
da determinaccedilatildeo atribuiacuteda herdada e inata do caraacuteter social dele ou dela uma separaccedilatildeo
corretamente vista como uma caracteriacutestica muito clara e seminal da condiccedilatildeo
moderna21rdquo
Procede assim que o individualismo atua como desagregador do sujeito na
medida em que o dissocia do todo social promovendo o rompimento com a histoacuteria e
com a heranccedila familiar e comunitaacuteria22 Por conseguinte as giacuterias em geral acabam por
constituiacuterem-se como agentes de identificaccedilatildeo social estimulando agrave convivecircncia e agraves
relaccedilotildees intersubjetivas
Entretanto quando aplicado agrave especificidade da giacuteria ldquocrushrdquo natildeo se pode
inferir que haacute um efetivo movimento de socializaccedilatildeo Pois quando certo aluno relata que
possui diferentes ldquocrushrdquo em diferentes locais o referido espaccedilo23 natildeo eacute necessariamente
embora em direta relaccedilatildeo com o que eacute tipicamente social O historiador Ronaldo Vainfas em artigo intitulado Histoacuteria das Mentalidades e Histoacuteria Cultural p 148-49 corrobora em nossa elaboraccedilatildeo asserindo o seguinte [] lsquoNova Histoacuteria Culturalrsquo distinta da antiga lsquohistoacuteria da culturarsquo disciplina acadecircmica ou gecircnero historiograacutefico dedicado a estudar manifestaccedilotildees lsquooficiaisrsquo ou lsquoformasrsquo da cultura de determinada sociedade as artes a literatura a filosofia etc A chamada Nova Histoacuteria Cultural natildeo recusa de modo algum as expressotildees culturais das elites ou classes lsquoletradasrsquo mas revela especial apreccedilo tal como a histoacuteria das mentalidades pelas manifestaccedilotildees das massas anocircnimas as festas as resistecircncias as crenccedilas heterodoxas Em uma palavra a Nova Histoacuteria Cultural revela uma especial afeiccedilatildeo pelo informal e sobretudo pelo popularrdquo Nota-se portanto que o trabalho aqui proposto embora se relacione com que poder-se-ia chamar de ldquohistoacuteria das ideiasrdquo porquanto vinculado o tema a um grande expoente do pensamento filosoacutefico Platatildeo tem no entanto como ponto de partida de sua pretensa problematizaccedilatildeo algo que pertence agrave ldquocultura simplesrdquo informal expressatildeo de um modo de ser em que o uso da giacuteria serve como caracterizaccedilatildeo Ademais evidencia-se o tema como objeto passiacutevel de diferentes abordagens teoacutericas o que contribuiria por si soacute a produtivo trabalho interdisciplinar em sala de aula e natildeo somente na alcunha Ciecircncias Humanas mas tambeacutem notadamente em relaccedilatildeo agraves Linguagens e suas tecnologias 21 BAUMAN Z A sociedade individualizada p 183 22 Pensa de maneira correlata Alasdair MacIntyre em criacutetica agraves eacuteticas individualistas e em defesa da perspectiva apresentada pelo comunitarismo eacutetico do qual comunga Consultar entre outras obras After Virtue 1981 23 Natildeo adentraremos ateacute por falta de competecircncia socioloacutegica para fazecirc-lo na especiacutefica problemaacutetica quanto aos conceitos de espaccedilo Todavia apresenta-se sobre o tema o seguinte esclarecimento de BAUMAN Eacutetica Poacutes-Moderna p 167 ldquoMuito se escreveu sobre a distinccedilatildeo entre espaccedilo lsquofiacutesicorsquo mdash espaccedilo lsquoobjetivorsquo lsquoespaccedilo como talrsquo - e espaccedilo social Em geral existe acordo em que ambos se acham em
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fiacutesico em verdade na maioria natildeo o eacute e nisto entra-se na questatildeo do distanciamento
promovido pelo mundo ldquoonlinerdquo e neste sentido ocorreria natildeo um estiacutemulo agrave
socializaccedilatildeo ao contraacuterio haveria estiacutemulo ao individualismo excludente24
A relaccedilatildeo com o virtual eacute inegaacutevel se nisto existe a promoccedilatildeo para o
retrocesso nas relaccedilotildees humanas ou abertura agrave socializaccedilatildeo todavia esta questatildeo longe
se encontra de mostrar-se conclusiva Natildeo obstante o aspecto mais estritamente filosoacutefico
ao tema talvez se revele no seguinte questionamento O que caracteriza agraves relaccedilotildees
humanas
Se agraves relaccedilotildees humanas estiverem restritas agrave socializaccedilatildeo e agrave vida coletiva ao
encontro com o outro em espaccedilo determinado no tempo e no espaccedilo sem duacutevida o mundo
ldquoonlinerdquo eacute seguramente expressatildeo de empobrecimento da existecircncia humana Por outro
lado se a virtualidade do espaccedilo em rede propicia relaccedilotildees humanas qualitativas entatildeo
haacute outras formas possiacuteveis de caracterizar os relacionamentos humanos Esta segunda
perspectiva positiva quanto agraves relaccedilotildees ciberneacuteticas parece colocar-se de acordo com o
pensamento do filoacutesofo francecircs Pierre Leacutevy
Para Leacutevy em obra intitulada Cibercultura ldquoeacute virtual toda entidade
lsquodesterritorializadarsquo capaz de gerar diversas manifestaccedilotildees concretas em diferentes
momentos e locais determinados sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou
tempo determinadordquo25 Se conforme assere trata-se de ldquomanifestaccedilotildees concretasrdquo a
realidade virtual eacute tatildeo composta de realidade quanto ao que se restringe a empiria das
relaccedilotildees humanas ideia ao que parece condizente com o conceito de
ldquodesterritorializaccedilatildeordquo
Nestes termos a giacuteria ldquocrushrdquo manifesta algo real embora o objeto desejado
seja uma simples reproduccedilatildeo imageacutetica Quando por exemplo jovens tornam-se
ldquoseguidoresrdquo nas redes sociais ndash que satildeo globais eacute vaacutelido frisar ndash de outros jovens que de
relacionamento metafoacuterico um com o outro De um lado falamos de espaccedilo social usando os termos cunhados para a distacircncia e proximidade lsquofiacutesicasrsquo lsquoobjetivasrsquo e mensuraacuteveis Mas de outro lado pode-se tambeacutem frisar que soacute se pocircde chegar agrave ideacuteia desse lsquoespaccedilo fiacutesicorsquo pela reduccedilatildeo fenomenoloacutegica da experiecircncia diaacuteria agrave pura quantidade durante a qual a distacircncia eacute lsquodespovoadarsquo e lsquoextemporalizadarsquo ou seja sistematicamente limpada de todos os traccedilos contingentes e transitoacuterios somente no fim dessa reduccedilatildeo eacute que se pode conceber o espaccedilo objetivo o espaccedilo como tal como lsquoespaccedilo purorsquo lsquoespaccedilo vaziorsquo espaccedilo destituiacutedo de qualquer conteuacutedo relativo a tempo e circunstacircncia Sob esse outro ponto de vista o espaccedilo fiacutesico eacute uma abstraccedilatildeo que natildeo se pode experimentar diretamente captamos o espaccedilo fiacutesico intelectualmente com a ajuda de noccedilotildees que se cunharam originalmente para lsquomapearrsquo qualitativamente relaccedilotildees diversificadas com outros homensrdquo 24 Tal inferecircncia coloca-se de acordo com o pensamento de Bauman em cuja criacutetica agraves redes sociais e ao mundo virtual perpassa quase a integridade de suas obras Cabe-nos ressaltar que de maneira oposta apresenta-se as ideias de Pierre Leacutevy 25 LEacuteVY P Cibercultura p 47
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certa forma lhe representam ideais entre os quais o de beleza a consequecircncia desta
relaccedilatildeo se manifestaraacute no comportamento gerando-se assim atitudes e modos de
proceder crenccedilas e ideias portanto se a relaccedilatildeo em si mesma natildeo eacute necessariamente
social seus impactos seratildeo sentidos no interior das sociedades
Torna-se compreensiacutevel agrave valorizaccedilatildeo excessiva da beleza fiacutesica o culto aos
corpos trabalhados em esforccedilos contiacutenuos em horas de academia Natildeo se intenciona
criticar a valorizaccedilatildeo da sauacutede e do esporte mas sim o elevado status quo sociocultural
que impera em torno do corpo O chamado ldquopadrotildees de belezardquo que se encontram
reforccedilados na grande miacutedia formam modelos idealizados sobre o que melhor
representaria os ideais de belo
Neste panorama desenvolvem-se valores outros que natildeo correspondem aos
valores morais Ao valorar em demasia tudo o que se encontra atrelado ao corpoacutereo i eacute
aos valores materiais em consequecircncia desvaloriza-se princiacutepios necessaacuterios que
deveriam nortear a vida humana e as sociedades assim natildeo eacute por acaso que todas as
grandes crises da contemporaneidade mundial propotildee-se possuam como causa primaacuteria
a falta de virtudes26
O filoacutesofo Alasdair MacIntyre ao analisar agrave eacutetica tomista e a diferenciaccedilatildeo
proposta entre bens exteriores e bens interiores denota que as sociedades ocidentais
materialmente desenvolvidas excluiacuteram as virtudes em detrimento da valorizaccedilatildeo
somente dos bens exteriores
Neste sentido acrescentar-se-ia a identificaccedilatildeo do belo ao corpo com a
supremacia da imagem e da propaganda a promover a supraexcitaccedilatildeo dos sentidos tatildeo
bem explorada pelo ldquoshow businessrdquo e admirado pela ldquosociedade do espetaacuteculo27rdquo
privilegiando-se o desejo de prazer ao que eacute satisfeito apenas pelos sentidos que como
referido anteriormente coloca-se em oposiccedilatildeo ao que propusera o pensamento platocircnico
Assim a simbologia do ldquocrushrdquo relaciona-se diretamente portanto com a
imagem em um contexto que privilegia o espetaacuteculo Como proposto de forma notaacutevel
26 Cf MAcINTYRE Depois da virtude p 340-341 ldquoSe natildeo houver um telos que transcenda os bens limitados das praacuteticas constituindo o bem de toda a vida humana o bem da vida humana concebido como uma unidade faraacute com que certas arbitrariedades subversivas invadam a vida moral e sejamos incapazes de especificar adequadamente o contexto de certas virtudesrdquo 27 Tiacutetulo da obra de Guy Debord La Societeacute du spectacle publicada pela primeira vez em 1967 em Paris
125
por Guy Debord ldquoO espetaacuteculo natildeo eacute um conjunto de imagens mas uma relaccedilatildeo social
entre pessoas mediatizada por imagens28rdquo
A definiccedilatildeo de espetaacuteculo conforme se nos apresenta Debord acaba por
adentrar-se na anaacutelise desenvolvida porquanto o ldquocrushrdquo demonstra justamente as
relaccedilotildees que em grande medida satildeo mediatizadas pela imagem imagens estas que
representam os estereoacutetipos de beleza produzidos pela induacutestria cultural na
retroalimentaccedilatildeo dos proacuteprios valores das sociedades industrializadas contemporacircneas
Se de fato vivenciamos uma sociedade do espetaacuteculo isto tambeacutem significa
que vivenciamos uma sociedade da primazia dos sentidos e avessa ao pensamento
abstrato agrave contemplaccedilatildeo e agrave reflexatildeo
Para Platatildeo29 os sentidos satildeo considerados insuficientes e incapazes para
compreender a realidade primeira do inteligiacutevel e portanto a realidade e universalidade
dos princiacutepios originaacuterios (archaiacute) representados nas Ideias do Justo do Belo e
sobretudo a do Bem30 conforme evidencia-se no diaacutelogo Repuacuteblica
E que existe o belo em si e o bom em si e do mesmo modo relativamente a todas as coisas que entatildeo postulamos como muacuteltiplas e inversamente postulamos que a cada uma corresponde uma ideia que eacute uacutenica e chamamos-lhe a sua essecircncia [] E diremos ainda que aquelas satildeo visiacuteveis mas natildeo inteligiacuteveis ao passo que as ideias satildeo inteligiacuteveis mas natildeo visiacuteveis31
Do que se segue que em Platatildeo as artes em geral bem como os indiviacuteduos
que a expressam estatildeo somente utilizando-se de opiniotildees (doxai) sobre a realidade e natildeo
portanto com o conhecimento (episteacuteme) desta A imagem (eiacutedolon) que funciona como
representaccedilatildeo do sensiacutevel e revela o senso esteacutetico eacute uma coacutepia de algo que em si mesmo
eacute uma imitaccedilatildeo (miacutemesis) Logo natildeo haacute aproximaccedilatildeo ao que eacute verdadeiramente real e ao
que verdadeiramente possui valor ou deveria possuir valor ao ser humano32 Natildeo obstante
28 DEBORD La Societeacute du spectacle tese 58 Livre traduccedilatildeo do francecircs Vale a ressalva que o autor faleceu em 1994 antes portanto do acesso global agrave rede mundial de computadores (Internet) tambeacutem portanto antes do surgimento das redes sociais 29 O filoacutesofo propotildee uma relaccedilatildeo do homem com o todo coacutesmico universal O mundo fiacutesico e a vida fiacutesica que haacute neste somente expressa uma particularidade existencial mas se encontra neste plano os princiacutepios que o fundamentam A filosofia de Platatildeo promove a espiritualidade no humano e portanto vinculada ao impereciacutevel e permanente ao que em suma verdadeiramente eacute 30 Compreende-se que o Bem (Agathoacuten) natildeo eacute uma Ideia (Idea ou Eiacutedos) mas estaacute aleacutem destas conforme depreende-se do exposto seguinte Repuacuteblica 509c ldquo[] apesar do bem natildeo ser uma essecircncia (ousiacutea) mas estar acima e para aleacutem da essecircncia (hyperousiacutea) pela sua dignidade e poderrdquo 31 PLATAtildeO Repuacuteblica 507b 32 Tal raciociacutenio revela-se coerente ao sugestionado na ldquoteoria da Linhardquo no livro VI de A Repuacuteblica em que eacute se evidencia os diferentes niacuteveis hieraacuterquicos de realidade e a adequaccedilatildeo dos saberes apresentados de forma ascendente de maneira que cabe a psycheacute ascender da multiplicidade agraves essecircncias e ainda sobre
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caberia ainda questionar Mas estas imagens representaccedilotildees do belo nos corpos belos
atuam propedecircuticamente em sentido ascendente agrave Beleza em si mesma
Chega-se novamente ao anteriormente proposto ou seja embora o desejo aos
corpos belos possa atuar como primeira etapa ao verdadeiramente Belo consoante ao que
eacute asserido no diaacutelogo Banquete a ausecircncia de valores que possam corresponder ao natildeo
corpoacutereo e a invisibilidade nas sociedades contemporacircneas acabam por atuar como fortes
empecilhos para este caminho ascendente em direccedilatildeo ao inteligiacutevel e portanto natildeo
correspondem agrave realidade do ldquoamor platocircnicordquo
No contexto mercadoloacutegico das sociedades industrializadas cujo mote
econocircmico eacute o consumo os objetos de desejo satildeo produzidos sobretudo no olhar eacute a
partir deste sentido corpoacutereo que aquele que deseja assim vislumbra os possiacuteveis prazeres
proporcionados na aquisiccedilatildeo de algum bem exterior
Eacute notaacutevel que nrsquoA Repuacuteblica33 confere-se agrave educaccedilatildeo o atributo de
justamente caracterizar-se a correta orientaccedilatildeo dada ao olhar Ora se se olha somente
tendo em vista as coisas materiais a faculdade que deseja iraacute preponderar fortemente
sobre a racionalidade e sobre qualquer virtude que a psycheacute possa apresentar e
desenvolver
Do que se segue que o olhar da psycheacute quando corretamente educado volta-
se agrave interioridade de si mesmo assim transcendendo agraves imperfeitas representaccedilotildees do
visiacutevel Contudo se o olho como oacutergatildeo humano pudesse indicar algo em direccedilatildeo agrave perfeita
beleza indubitavelmente encontrar-se-ia o ceacuteu ou mesmo o aleacutem do ceacuteu agraves galaacutexias e os
objetos do universo o grau maior de aproximaccedilatildeo quanto ao que eacute realmente Belo
Justifica-se pois o distanciamento quanto agrave simples beleza encontra nos corpos belos e
por conseguinte a ruptura entre o que chamar-se-ia de ldquocrushrdquo e o ldquoamor platocircnicordquo
Na atualidade de nossas sociedades a educaccedilatildeo subtraiu o olhar agrave
interioridade ao conhecimento de si mesmo eacute este sobretudo o sentido da correta
orientaccedilatildeo do olhar para Platatildeo Em suma este eacute caminho interno das virtudes dos bens
interiores como propunha a eacutetica tomista Infelizmente tudo parece indicar que se
caminha em sentido contraacuterio a estes bens impereciacuteveis e natildeo descartaacuteveis ao espiacuterito
humano
estas o Bem (este representado no simbolismo do Sol) Consultar tambeacutem o livro X da referida obra sobretudo a passagem de 597a-598e ss 33 PLATAtildeO Repuacuteblica 518d
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A ldquomodernidade liacutequidardquo como a cunhou Bauman como sendo ldquoa civilizaccedilatildeo
do excesso da superfluidade do refugo e da sua remoccedilatildeo34rdquo eacute a civilizaccedilatildeo dos bens
exteriores da moda do supeacuterfluo e da mutabilidade constante assim em certo sentido o
ldquocrushrdquo representa somente esta necessidade de preencher-se de algo que provavelmente
natildeo duraraacute ateacute agrave proacutexima estaccedilatildeo
Da mesma forma se haacute uma civilizaccedilatildeo do excesso longe nos encontramos
consoante a eacutetica aristoteacutelica35 da virtude Tem-se o excesso do descartaacutevel e do
momentacircneo assim como haacute deficiecircncia do que se constitui como permanente e
duradouro daquilo que sempre eacute Sem duacutevida esta foi uma seacuteria preocupaccedilatildeo para Platatildeo
A beleza dos corpos degenera-se envelhece morre e decompotildee-se mas a
Beleza em si mesma encontra-se em tudo o que eacute belo e se belo tambeacutem bom porque
tudo verdadeiramente bom haacute de ser belo36 Do que se segue que as virtudes sempre satildeo
em si mesmas virtudes talvez seja este o teacutelos grego que precisa ser reconstruiacutedo37
O simbolismo do ldquocrushrdquo portanto expressa esta superficialidade indeleacutevel
ou esta ldquoliquidezrdquo nos dizeres de Bauman sobre agraves relaccedilotildees humanas nas sociedades
contemporacircneas E se estes desejos amorosos pelos belos corpos e das belas
representaccedilotildees das imagens ainda sim podem servir como indiacutecios de uma continuidade
ascendente agrave Beleza verdadeira e primeira neste caso se correto for haacute possiblidade de
se restaurar o humano em sua proacutepria humanidade
Em estudo sobre o diaacutelogo Banquete38 o notaacutevel historiador da filosofia e
helenista italiano Giovanni Reale comenta
34 BAUMAN Z Vidas Desperdiccediladas p 120 35 ldquo[] a virtude moral eacute um meio-termo e em que sentido devemos entender essa expressatildeo e que eacute um meio-termo entre dois viacutecios um dos quais envolve excesso e o outro deficiecircncia e isso porque a sua natureza eacute visar agrave mediania nas paixotildees e nos atosrdquo (Eacutetica agrave Nicocircmaco II 1109 a 20) 36 No texto platocircnico do diaacutelogo Hiacutepias Maior cujo principal objeto eacute a anaacutelise do conceito de Belo em uma busca marcadamente propedecircutica pela definiccedilatildeo do ldquoBelo em sirdquo apresenta-se embora o diaacutelogo seja aporeacutetico a equivalecircncia entre o Bem (Agathoacuten) e o Belo (Kaacutelon) neste sentido algo natildeo pode ser bom sem ser belo e belo sem ser bom Conforme o texto Hiacutepias Maior 297b assere Soacutecrates ldquoNa mesma ordem de ideias se o belo eacute causa do bem eacute porque o bem soacute pode ser originado pelo belo E aiacute estaacute salvo erro a razatildeo de nos empenharmos na sabedoria e em todas as demais coisas belas eacute que o seu produto o seu lsquorebentorsquo ndash ou seja o bem ndash eacute digno do nosso empenho e satildeo porventura elas que nos levam a descobri o belo como uma espeacutecie de lsquopairsquo do bemrdquo No diaacutelogo Repuacuteblica 506e-507c tem-se o inverso na relaccedilatildeo porquanto o Bem aparece como o ldquopairdquo do Belo Consultar entre outras obras fundamentais G M A Grube Platorsquos thought London University Press 1970 37 Neste sentido corrobora MAcINTYRE Depois da virtude p 368-69 ldquoAs virtudes devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior bem como um conhecimento do bem cada vez maiorrdquo 38 ldquoAs obras filosoacuteficas e eruditas em cujo tiacutetulo aparece a palavra banquete tatildeo abundantes na literatura grega poacutes-platocircnica atestam a grande influecircncia que a penetraccedilatildeo do espirito filosoacutefico e dos seus
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[] a temaacutetica do eros e do amor deve ser entendido como forccedila mediadora entre o sensiacutevel e o suprassensiacutevel uma forccedila que daacute asas e eleva atraveacutes dos diversos graus da beleza agrave Beleza meta-empiacuterica em si mesma E jaacute que o Belo para o grego coincide com o Bem ou em todo caso eacute um aspecto do Bem assim Eros eacute uma forccedila que eleva ao Bem39
Eros ocupa um lugar de suma importacircncia porque atua exatamente na
distacircncia entre o mundo corpoacutereo sensiacutevel e o mundo verdadeiramente real ou
inteligiacutevel Por isso Eros eacute como o filoacutesofo Pois embora este ame o inteligiacutevel e tudo o
que lhe corresponde a virtude o Belo a sabedoria (sophiacutea) seu amor nunca eacute plenamente
satisfeito Por conseguinte sempre haveraacute uma ausecircncia a ser preenchida sempre haveraacute
necessidade de contiacutenuos esforccedilos para afastar-se da ignoracircncia (amathiacutea)
Do que pondera Reale o Amor eacute um daiacutemon40 entre outros que atuam entre
os deuses e os homens Filho de Penia (pobreza) e Poros (abundacircncia) o Amor ou Eros
tem dupla natureza estando no meio entre a ignoracircncia e a sapiecircncia41
Por sua vez Bauman apresenta o seguinte comentaacuterio ao diaacutelogo Banquete
[] Como sempre Soacutecrates se esforccedila para elevar a mera descriccedilatildeo agrave categoria de lei da loacutegica ao substituir provaacutevel por necessaacuterio natildeo eacute necessaacuterio que aquele que deseja deseje o que lhe falta ou natildeo deseje o que natildeo lhe falta Para que natildeo haja lugar para adivinhaccedilotildees e erros de julgamento Soacutecrates resume todos que desejam desejam o que natildeo estaacute em sua possessatildeo o que natildeo tecircm o que natildeo satildeo e o que lhes falta Isto eacute ele insiste o que chamamos de desejo ou seja o que o desejo deve ser a natildeo ser que seja outra coisa que natildeo o desejo42
Assim considera-se que o desejo eacute existente enquanto natildeo se possui o que se
deseja43 Logo infere-se que o problema eacutetico-filosoacutefico natildeo se encontra na faculdade de
desejar mas sim nos objetos aos quais se direciona a faculdade desejante
profundos problemas exerceu neste tipo de reuniatildeo Eacute Platatildeo o criador da nova forma filosoacutefica do banquete A narraccedilatildeo literaacuteria e a nova interpretaccedilatildeo filosoacutefica da antiga praacutetica social associam-se nele agrave organizaccedilatildeo da vida espiritual na sua escola rdquo JAEGER Paideia p722-23 39 REALE G Platatildeo p 217 40 Eacute vaacutelido elucidar que o termo grego daiacutemonδαίμων natildeo possui entre os gregos o sentido imaginaacuterio de anjo decaiacutedo entidade maligna que habita o inferno Ora o daiacutemon eacute identificado como espeacutecie de guia zeloso como aparece nas palavras de Soacutecrates (consultar Apologia de Soacutecrates) e ainda como aqui estaacute sendo utilizado no sentido de deuses menores (mortais) como eacute o caso do referido Eros 41 REALE ibid p 218-219 Consultar tambeacutem o diaacutelogo Banquete 202e-203a 42 BAUMAN A sociedade individualizada p 207-08 43 Assim pondera TRABATTONI Platatildeo p 147 ldquoO conceito de eros natildeo somente para Platatildeo revela um dado essencial da natureza humana ou seja a sua tensatildeo dinacircmica para a obtenccedilatildeo de um determinado objetivo Em outras palavras essa vontade pode ser chamada de lsquotensatildeorsquo ou lsquodesejorsquordquo
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Em consequecircncia a proposta de Platatildeo quanto ao desejo eacute educar o agente
desejante i eacute a psycheacute humana Porquanto conforme for o direcionamento do ldquoolharrdquo
ter-se-aacute consigo agraves consequecircncias em relaccedilatildeo ao que se deseja Encontra-se assim a
funccedilatildeo paideiacutestica da filosofia mas tambeacutem a responsabilidade educativa do profissional
de educaccedilatildeo e ainda o dever educativo de pais e familiares como da sociedade em geral
em relaccedilatildeo ao comportamento e aos valores apresentados aos jovens e agraves geraccedilotildees futuras
Por conseguinte deve-se propor lucidez quanto aos objetos de desejo pois
naquilo em que hipoteticamente se encontra carente seria de fato necessaacuterio ou
simplesmente correspondente do supeacuterfluo O desejo apresentado se restringe agrave
satisfaccedilatildeo do corpo da vaidade do orgulho de si ou almeja uma satisfaccedilatildeo mais profunda
e elevada que inclusive pode ser considerada digna de equivalecircncia aos bens interiores
da psycheacute e assim tidos como universalizaacuteveis Retorna-se agrave problemaacutetica referida mais
acima quanto ao que se deve valorar ou ao o que estaacute sendo valorado nas sociedades
contemporacircneas
Socialmente ou culturalmente natildeo haacute grandes problemas quanto ao desejo
pelos belos corpos pela admiraccedilatildeo do vigor da juventude igualmente agrave procura de
experiecircncias diversas que objetivam formar a proacutepria identidade e o enriquecimento das
proacuteprias relaccedilotildees humanas Todavia a questatildeo eacute mais profunda e diz respeito a modos
de ser e valores equivocados que se tem cultuado na contemporaneidade mundial seja
esta uma ldquosociedade do espetaacuteculordquo como propotildee Debord ou uma ldquocivilizaccedilatildeo do
excessordquo como interpreta Bauman
O ldquocrushrdquo pode expressar culturalmente algo natural ao ser humano como
asseria Platatildeo i eacute o desejo de prazer Se no entanto este desejo de prazer restringir-se
somente ao corpoacutereo sem avanccedilar agrave formas e expressotildees mais elevadas e portanto
tambeacutem a prazeres mais qualificados em nada se avanccedila em sentido educacional e
mesmo civilizatoacuterio
Como assere Reale ldquoo amor eacute desejo do belo do bem da sapiecircncia da
felicidade da imortalidade44rdquo no entanto crecirc-se que este sentido ou esta direccedilatildeo dada ao
amor natildeo eacute natural mas sim consequecircncia adquirida na experiecircncia educativa de si
mesmo em correlata relaccedilatildeo ao mundo em que se vivencia agrave proacutepria existecircncia45
44 Cf REALE op cit p 219 45 Como eacute possiacutevel depreender-se da magistral passagem do diaacutelogo Banquete 210a-e 211c-d ldquo[] deve com efeito comeccedilou ela (Diotima) o que corretamente se encaminha a esse fim comeccedilar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos e em primeiro lugar se corretamente o dirige seu dirigente deve ele amar um soacute corpo e entatildeo gerar belos discursos pois deve compreender que a beleza em qualquer corpo eacute irmatilde
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Do que se segue que na relaccedilatildeo de ensino e aprendizagem quando a atenccedilatildeo
do professor se direciona natildeo somente agrave conteuacutedos poreacutem permitindo a abertura para a
vivecircncia dos proacuteprios educandos promove-se assim o compreender de novos horizontes
educativos que se integram aos conteuacutedos necessaacuterios todavia acrescentando-lhes
sentidos qualitativos que dignificam e enobrecem a proacutepria relaccedilatildeo entre professores e
alunos
Considerado o ldquocrushrdquo como possiacutevel expressatildeo de primeira etapa do amor
o amor pela particular beleza manifestada em um corpo belo pode-se ponderar em
aproximada consonacircncia agrave proacutepria descriccedilatildeo de amor apresentada por Diotima propondo
assim um caminho ascendente de contemplaccedilatildeo da beleza Sem duacutevida a apresentaccedilatildeo de
um novo arcabouccedilo de valores se apresentam indispensaacuteveis e eacute neste novo caminho
propositivo que os belos discursos se tornam imprescindiacuteveis agrave formaccedilatildeo educativa e
filosoacutefica
Neste propoacutesito o direcionamento do olhar amoroso agraves coisas
verdadeiramente belas a procura ao mais belo indubitavelmente conduziraacute ao encontro
com as virtudes e sobretudo ao Bem46 Vislumbra-se assim a inegaacutevel probabilidade
quanto aos provaacuteveis benefiacutecios a serem produzidos nas relaccedilotildees humanas e na vida em
sociedade
Resulta-se assim do exposto precedente a plausibilidade ndash embora soe pueril
ndash de maior apreccedilo agrave filosofia ou ao amor agrave filosofia Natildeo obstante o despertar para este
amor natildeo se encontra restringido no desejo aos corpos belos mas o bom uso desta forccedila
impulsiva de Eros adicionando-lhe o melhor uso de uma racionalidade que enfim
compreenda a ausecircncia de desejo agrave sabedoria nas sociedades contemporacircneas pois como
da que estaacute em qualquer outro e que se deve procurar o belo na forma muita tolice seria natildeo considerar uma soacute e mesma beleza em todos os corpos e depois de entender isso deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um soacute [] depois disso a beleza que estaacute nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo de modo que mesmo se algueacutem de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto contente-se ele ame e se interesse e procura e produza discursos tais que tornem melhores os jovens para que entatildeo seja obrigado a contemplar o belo nos ofiacutecios e nas leis e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum e julgue de pouca monta o belo no corpo depois dos ofiacutecios eacute para o conhecimento que eacute preciso transportaacute-lo a fim que veja tambeacutem a beleza das ciecircncias e olhando para o belo jaacute muito sem mais amor como um domeacutestico a beleza individual de uma crianccedila de um homem ou de um soacute costume natildeo seja ele nessa escravidatildeo miseraacutevel e um mesquinho discursador mas voltado ao vasto oceano do belo e contemplando-o muitos discursos belos produza e reflexotildees em inesgotaacutevel amor agrave sabedoria [] Eis com efeito em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir em comeccedilar do que aqui eacute belo e em vista daquele belo subir sempre como servindo-se de degraus [] e conheccedila enfim o que em si eacute belordquo 46 ldquoPara Platatildeo o conceito de eros torna-se assim a suma e o compecircndio da aspiraccedilatildeo humana ao bemrdquo JAEGER ibid p 738
131
exorta o Banquete47 ldquoUma das coisas mais belas eacute a sabedoria e o Amor eacute amor pelo
belo de modo que eacute forccediloso o Amor ser filoacutesofo e sendo filoacutesofo estar entre o saacutebio e o
ignoranterdquo
Consideraccedilotildees finais
Ao longo do texto houveram algumas conclusotildees que denotaram certo grau
de pessimismo em referecircncia a giacuteria ldquocrushrdquo Pois o seu mais direto significado se
identifica com um modo de ser puramente relacionado ao efecircmero e supeacuterfluo sendo
mais uma expressatildeo de sujeiccedilatildeo do poder constante da imagem e aos ininterruptos
estiacutemulos visuais aos quais todos noacutes encontramo-nos submetidos na
contemporaneidade
Se por um lado eacute na juventude que devemos adquirir certos valores essenciais
agraves necessaacuterias relaccedilotildees humanas eacute tambeacutem o periacuteodo existencial que manifesta grandes
sonhos e ideais de uma incerteza otimista quanto ao futuro ndash como se em outro periacuteodo
existencial se tornasse possiacutevel haver certezas ndash e a crenccedila frequente de que tudo eacute
realmente viaacutevel de ser realizado Triste seria segundo esta linha argumentativa de uma
juventude isenta de idealismo do querer um amor ideal de desejar o que causa prazer e
negar o que eacute motivo de dor Entrementes natildeo se pode confundir ideais com ilusotildees da
mesma que natildeo eacute possiacutevel equivaler submissatildeo a padrotildees como livre-arbiacutetrio
A contemporaneidade possui certos aspectos comuns devido mesmo a
internacionalizaccedilatildeo cultural em que estamos inseridos i eacute o local de alguma forma
sempre estaacute imerso ao global A rede mundial de computadores as redes sociais
ldquodesterritorializaramrdquo agraves relaccedilotildees humanas consoante ao demonstrado no pensamento de
Pierre Leacutevy Para o filoacutesofo francecircs ampliou-se positivamente a comunicaccedilatildeo e o homem
ganhou novos horizontes e possibilidades que lhe enriquecem a existecircncia
Em forma distinta o socioacutelogo polonecircs Zygmunt Bauman deduz que as
relaccedilotildees humanas se tornaram empobrecidas fluidas sem portanto a necessaacuteria
consistecircncia qualitativa que deveriam sustentar agraves relaccedilotildees humanas Encontramo-nos
carentes de sabedoria e distanciados do que os gregos chamaram de bem viver ou boa
vida
47 PLATAtildeO op cit 204b
132
De maneira similar embora de outra perspectiva argumentativa Alasdair
MacIntyre propotildee que a grave ausecircncia de virtudes nas sociedades ocidentais eacute
consequecircncia do individualismo das eacuteticas modernas e do emotivismo encontrado nas
eacuteticas contemporacircneas Eacute novamente preciso aproximarmo-nos enquanto sociedades
desenvolvidas e industrializadas dos ideais de virtude bem como encontrarmos um teacutelos
que corresponda aos anseios da proacutepria racionalidade
Mediante a toda esta complexidade tem-se em Platatildeo algumas possibilidades
para repensarmos o nosso comportamento e nossos valores Entrementes natildeo se trata de
acordarmos em absoluto com o pensamento platocircnico e nem de crermos na possibilidade
de haver na obra do filoacutesofo grego todas as respostas que procuramos em nossas
inquiriccedilotildees Natildeo obstante a maneira como Platatildeo propotildee agrave filosofia i eacute como amor ao
saber que forma o homem de maneira marcadamente espiritual ou seja do homem
integrado ao cosmo e em correspondecircncia a um ideal de perfeiccedilatildeo beleza e sabedoria
manifesta uma maneira de ser ou um modo de vida que se opotildee ao materialismo
existencial vigente
Os filoacutesofos os professores os pesquisadores das ciecircncias humanas natildeo
podem omitir-se quanto agrave formaccedilatildeo moral ciacutevica poliacutetica e comportamental da juvenil
adolescecircncia Pois muito se instrui o intelecto mas pouco ainda se faz em relaccedilatildeo agrave
verdadeira educaccedilatildeo que como propusera Platatildeo eacute educaccedilatildeo para as virtudes Contudo
conforme asserido natildeo eacute possiacutevel educar para as virtudes se natildeo valoramos os bens
internos ao espiacuterito humano
Eacute preciso dizer com coragem agraves sociedades e agraves instituiccedilotildees muitas das quais
instituiccedilotildees educacionais nem tudo que parece ter valor eacute digno de ser valorado Tal
assertiva inclusive revela o sentido aproximado expresso no seguinte ldquoTudo me eacute liacutecito
mas nem tudo conveacutem procuro natildeo me deixar dominar por nada48rdquo
A exortaccedilatildeo do apoacutestolo Paulo nos revela algo importante para ainda
pensarmos nestas palavras finais de encerramento O ser humano independente da eacutepoca
e do contexto histoacuterico e independentemente de qualquer possiacutevel determinismo
geograacutefico ou cultural possui em si mesmo certas tendecircncias internas devendo-se educar
lhe para natildeo se perder no excesso de suas imperfeiccedilotildees morais ou na carecircncia do que lhe
eacute oposto ou seja a virtude
48 PAULO 1 Carta aos Coriacutentios 6 12
133
Como considerado tem-se o excesso de bens materiais e superabundacircncia do
supeacuterfluo e do descartaacutevel em patoloacutegica valorizaccedilatildeo agrave objetos que promovam o prazer
somente ao corpoacutereo e aos sentidos natildeo obstante eacute desvelada a factual ausecircncia de
virtudes de satisfaccedilatildeo de si de prazeres qualificados que enobreccedilam e que ofertem reais
sentidos agrave existecircncia para aleacutem da aparecircncia fiacutesica e da transitoriedade de bens de
consumo
Platatildeo propunha que todo ser humano eacute detentor de um defeito inato ldquoo amor
excessivo de si mesmordquo como tambeacutem a existecircncia do desejo inato de prazer Logo se
natildeo oferecermos aos adolescentes e agraves crianccedilas aos jovens enfim a ldquosolidezrdquo portanto
em oposiccedilatildeo a ldquoliquidezrdquo quanto a maneiras corretas de se proceder e de agir consigo
mesmo e com os outros as novas geraccedilotildees correm o risco de tornarem-se incapazes de
desejarem o que natildeo se vecirc com os olhos do corpo
Eacute este o sentido que o ldquocrushrdquo natildeo poderia somente ser embora o seja i eacute
o desejo pelo belo sem nenhuma intencionalidade de procurar o mais Belo natildeo havendo
assim uma verticalidade dialeacutetica ascendente tudo se daacute no corpoacutereo e neste permanece
Eacute somente neste sentido que se pode permitir equivalecircncia entre ldquocrushrdquo e ldquoamor
platocircnicordquo ou seja somente na concepccedilatildeo common sense do termo porquanto o ldquoamor
platocircnicordquo repete-se natildeo eacute idealizado no sentido comum de entendimento da expressatildeo
de inalcanccedilabilidade de desejo poreacutem apenas ao que manifesta corporeidade
O outro provaacutevel sentido de ldquocrushrdquo e sua equivalecircncia ao ldquoamor platocircnicordquo
natildeo o do senso comum mas o da tradiccedilatildeo de Eros como forccedila impulsiva que direciona agrave
Verdade (Aleacutetheia) e agrave Sabedoria (Sophiacutea) torna-se possiacutevel apenas quando partiacutecipe da
educaccedilatildeo Nisto a funccedilatildeo do filoacutesofo do professor para entatildeo corrigir e orientar em
suma para conduzir (psicagogiacutea) o olhar da psycheacute do jovem ao incessante procurar do
mais Belo que necessariamente tem de se vincular agrave abstrata imaterialidade logo
condizente assim a universalidade do Justo e do Bem
Do que se conclui em sentido abrangente que a exigecircncia platocircnica de amor
ao Belo eacute constituiacutedo de um convite e de um aviso Convite porque convida-nos agrave
procura de uma Beleza que natildeo se encontra na transitoriedade daquilo que perece
envelhece morre Aviso ou alerta porquanto se natildeo aceitarmos o convite possivelmente
estejamos fadados a incapacidade de nunca contemplarmos o Belo assim contentando-
nos agraves aparecircncias como se estas fossem a realidade originaacuteria exatamente como
prisioneiros em uma caverna pouco iluminada
134
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135
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A SUBJETIVIDADE E A BUSCA PELA FELICIDADE NO PENSAMENTO DE
BLAISE PASCAL
JeanVargas1
RESUMO Considerando as ideias de teacutedio divertissement esquecimento de si e amor-proacuteprio este texto pretende mostrar em que medida a busca do eu pela felicidade aponta para um problema de fundo qual seja o do eu diante de seu criador Argumenta-se aqui que a condiccedilatildeo humana tal como Pascal a entende eacute crucial para se pensar a questatildeo da subjetividade humana Nesse sentido o objetivo do texto eacute destacar as tensotildees entre o teacutedio e a subjetividade Palavras-chave felicidade subjetividade teacutedio ABSTRACT Considering the concepts of boredom divertissement self forgetfulness and self-love this text intends to show how the search of the self for happiness leads to a fundamental problem that of the self in front of its creator It is argued here that the human condition as Pascal understands it is crucial to thinking about the question of human subjectivity Thus the purpose of the text is highlight the tensions between boredom and subjectivity Keywords happiness subjectivity boredom
Introduccedilatildeo
O problema da subjetividade se coloca para Blaise Pascal (1623-1662) sob
o registro relacional entre o eu e Deus A questatildeo fundamental parece ser expressa da
seguinte maneira como o eu pode ser diante de Deus Dito de outro modo em que
medida este eu pode se colocar haja vista o horizonte de alteridade relacional com o
criador
Como se sabe Pascal nos deixou em sua obra principal denominada
Pensamentos tatildeo somente reflexotildees avulsas com um estilo fragmentaacuterio e assistemaacutetico
1 Doutorando no curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFMG E-mail de contato jean_sv07hotmailcom
137
de escrita filosoacutefica O que significa que estaacute a cargo de seus inteacuterpretes o ocircnus de articular
minimamente as reflexotildees soltas afim de que elas soem como um todo coeso2
Eacute evidente que esta tarefa pode ser malsucedida de modo que trair as
intenccedilotildees do autor eacute sempre uma preocupaccedilatildeo latente Todavia a partir da reflexatildeo
pascalina eacute permitido ao leitor um certo protagonismo pois o modo como os pensamentos
satildeo articulados podem oferecer respostas mais ou menos elaboradas
Eacute diante deste cenaacuterio que este artigo se presta natildeo apenas a vincular os
pensamentos soltos do autor propiciando uma certa simetria agrave reflexatildeo pascalina como
pretende tambeacutem tensionar a relaccedilatildeo entre os pressupostos sobre a subjetividade
(impliacutecitos e expliacutecitos na obra do pensador francecircs) com o olhar antropoloacutegico sobre o
problema da condiccedilatildeo humana Para tanto o texto eacute divido em trecircs momentos quais
sejam 1) O diagnoacutestico sobre a condiccedilatildeo humana em Pascal 2) a subjetividade e o
problema da busca pela felicidade e 3) o esquecimento de si o teacutedio e o divertissement
Primeiro momento O diagnoacutestico sobre a condiccedilatildeo humana em Pascal
A ideia de que o ser humano possui uma natureza traacutegica transita ao longo de
toda a reflexatildeo pascalina3 Em certo sentido a noccedilatildeo de natureza humana em nosso autor
pode ser rastreada ateacute Santo Agostinho passando por Tomaacutes de Aquino e mesmo pelo
Jansenismo4 O lastro que explicita a natureza humana eacute a narrativa da queda e natildeo uma
metafiacutesica de elucubraccedilatildeo filosoacutefica
Esta narrativa da queda natildeo se presta a provar todavia a razoabilidade da
perspectiva cristatilde de Pascal isto eacute natildeo se pretende derivar daiacute um conjunto de provas
robustas sobre o cristianismo A narrativa da queda se configura como o pilar pelo qual
se ergue todo o edifiacutecio argumentativo do filoacutesofo francecircs Mas se por um lado a
narrativa da queda natildeo se presta a provar no sentido forte os pressupostos da
antropologia cristatilde por outro lado ela eacute imprescindiacutevel a uma apologia do cristianismo
na medida em que a situaccedilatildeo humana eacute de forma tal que seria mais misteriosa sem este
misteacuterio Nesse sentido a narrativa da queda tratar-se-ia da melhor chave explicativa para
acessar a condiccedilatildeo humana
2 Com esta observaccedilatildeo natildeo pretendo pressupor que este tipo de literatura assistemaacutetica seja por si soacute insuficiente ou pouco interessante O que pretendi destacar eacute que se o interprete aspirar um todo coeso entatildeo cabe a ele o ocircnus de juntar as peccedilas do quebra-cabeccedila pois o autor prescinde da tarefa de fazecirc-lo 3 GOLDMAN apud BIRCHAL A marca do vazio reflexotildees sobre a subjetividade em Blaise Pascal p 51 4 Ver OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana pp 367-408
138
Mas que condiccedilatildeo seria esta A condiccedilatildeo humana fundamental eacute marcada
pela concupiscecircncia enquanto princiacutepio de todos os movimentos humanos5 A condiccedilatildeo
humana tal qual aparece nos Pensamentos coloca o ser humano diante de Deus a quem
todo amor eacute devido Assim a natureza humana estaacute radicalmente ainda que natildeo
completamente corrompida em funccedilatildeo do pecado original Isto implica em dizer que
embora a criaccedilatildeo de Deus seja melhor do que efetivamente se apresenta soacute conhecemos
de fato sua versatildeo decaiacuteda Natildeo obstante este quadro pessimista algumas caracteriacutesticas
da condiccedilatildeo original satildeo preservadas como por exemplo a possibilidade de acesso ao
conhecimento Natildeo se trata do conhecimento no mais eminente sentido entretanto
conhecer ainda eacute um resquiacutecio de um atributo comunicaacutevel de DeusOu seja dada a atual
condiccedilatildeo eacute vedada ao homem a capacidade de conhecimento pleno Mas o fato de ainda
poder conhecer algo o remete a uma qualidade de sua natureza originaacuteria que eacute por isso
mesmo preacute-queda Trata-se de uma natureza originaacuteria portanto que de certo modo
ainda subjaz
Ora neste sentido o tema do amor-proacuteprio6 eacute significativo para se
compreender o problema da subjetividade em Pascal O amor de si permite ao ser humano
centralizar suas accedilotildees e buscar atender agraves demandas do seu eu De acordo com o proacuteprio
filoacutesofo ldquonuma palavra o eu tem duas qualidades eacute injusto em si fazendo-se centro de
tudo eacute incocircmodo aos outros querendo sujeitaacute-los pois cada eu eacute o inimigo e desejaria
ser o tirano de todos os outrosrdquo7
Eacute como se o eu fosse por assim dizer um ldquoburaco negrordquo insaciaacutevel que natildeo
quer saber a verdade sobre si Por isso muitos se prestam a criar um eu imaginaacuterio pois
estatildeo excessivamente preocupados com a imagem puacuteblica de si8Assim seria preferiacutevel
agraves pessoas comuns melhorarem e reforccedilarem sua imagem puacuteblica a ponto de optarem por
morrer do que efetivamente pensar a si mesmas
O amor-proacuteprio este excessivo de si eacute reduzido a uma modalidade de
concupiscecircncia o que permite a Pascal denunciar os mecanismos que por meio do nosso
eu imaginaacuterio9 acaba por abrir as portas para escamotear a proacutepria subjetividade De
acordo com Pascal conforme observa Luiacutes Oliva ldquoo amor-proacuteprio desmedido (devido ao
5 ARMOGATHE Pascal e o amor-proacuteprio p 232 6 O tema do amor-proacuteprio eacute bastante relevante para Pascal contudo natildeo se trata de um tema exclusivamente cristatildeo Na eacutetica nicomaqueacuteia Aristoacuteteles jaacute abordava esta temaacutetica 7 PASCAL apud OLIVAAntecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 399 8 PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 978 9 IDEM Fr 806
139
deslocamento do centro para a concupiscecircncia o transitoacuterio) fez que o homem mentisse
se mascarasse e se revestisse de qualidades ilusoacuterias para obter poder e estimardquo10
Por isso a relaccedilatildeo vertical do homem com Deus mais do que a relaccedilatildeo
horizontal do eu com os outros eus precisa ser retomada Conforme notou Gouhier ldquotrata-
se da relaccedilatildeo do eu com Deus e natildeo do eu com outros eus Todavia quando o eu se faz
ldquocentro de tudordquo faz tambeacutem girar em torno de si todos os outros eusrdquo11 Graccedilas agrave
concupiscecircncia presente na natureza humana desde a queda o amor deixa de ser
endereccedilado exclusivamente ao criador e passa a lidar com a concorrecircncia do amor-
proacuteprio cuja tendecircncia eacute colocar seus proacuteprios interesses como o centro de suas accedilotildees e
ao fazecirc-lo acaba por travar uma relaccedilatildeo de controle e imposiccedilotildees quando diante do outro
Os problemas denunciados por Pascal decorrentes do ato do amor de si levam
ao tema do eu odioso Este eu que pretende ser o centro da subjetividade precisa ser
aniquilado ou ainda reduzido a nada diante de Deus este outro Absoluto A ideia de
odiar a si mesmo natildeo eacute um exagero pois trata-se de uma expressatildeo literal Gouhier coloca
nesses termos
natildeo basta ldquonatildeo amar a si mesmordquo como recomenda o autor da Imitaccedilatildeo O ldquooacutedio de sirdquo natildeo eacute uma hipeacuterbole a expressatildeo deve ser tomada literalmente ela evoca a um soacute tempo o sentimento e o dever que resultam o amor de Deus12
Deve-se odiar o eu porque este imerso na concupiscecircncia pretende rivalizar
e em uacuteltima anaacutelise procura reivindicar um lugar que eacute exclusivo de Deus O amor de si
eacute abusivo mas natildeo basta tatildeo somente impor limites a ele O ato da conversatildeo precisa
corrigir algo distorcido na natureza humana O centro da subjetividade natildeo pode ser outro
senatildeo o proacuteprio Deus Daiacute a necessidade de odiar a si mesmo na medida em que a
subjetividade corrompida por sua natureza pecaminosa quer ocupar a posiccedilatildeo que
originalmente pertence exclusivamente a Deus
Nosso autor soacute pode adentrar na reflexatildeo sobre o eu que precisa ser odiado
porque parte dos pressupostos acerca da condiccedilatildeo humana Trata-se como mostramos
de uma condiccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais a original mas que todavia natildeo deixou de ser
completamente Jaacute natildeo eacute mais a mesma mas ainda natildeo deixou de ter resquiacutecios da marca
de Deus Desse modo temos aqui uma tensatildeo antropoloacutegica entre o jaacute e o ainda natildeo o
10 OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 400 11 GOUHIER Blaise Pascal conversatildeo e apologeacutetica p 82 12IDEM pp 77-78
140
que torna o cenaacuterio cocircmodo para que Pascal posso diagnosticar o homem como aquele
entre a grandeza e a miseacuteria Desse modo podemos verificar em que medida o problema
do teacutedio e o divertimento corroboram para evitar que o homem retome a relaccedilatildeo
extraviada com o seu criador
Segundo momento A subjetividade e o problema da busca pela felicidade
Ao tratar da questatildeo da subjetividade eacute atribuiacutedo a Pascal a substantivaccedilatildeo
do eu na modernidade13Isto significa dizer que foi o autor dos Pensamentos quem em
suas interlocuccedilotildees com seus antecessores mais notadamente Agostinho Montaigne e
Descartes nos conduziu agrave reflexatildeo sobre a subjetividade enquanto um ente substantivo
Embora Pascal fale de algo como ldquoo eurdquo daiacute natildeo se segue entretanto que ele
tenha predicados exaustivos para propor-nos uma definiccedilatildeo da subjetividade Muito pelo
contraacuterio Se tomarmos o trecho mais frequentado pelos estudiosos para tratar o problema
do sujeito em nosso autor verificamos o cuidado que Pascal tem antes de formular
definiccedilotildees positivas sobre o eu o que eacute o eu
Um homem que se potildee na janela para ver as pessoas que passam se passo por ali posso dizer que ele se pocircs na janela para me ver Natildeo porque ele natildeo estaacute pensando em mim particularmente mas quem ama algueacutem por causa de sua beleza ama mesmo Natildeo porque as bexigas que mataratildeo a beleza sem matar a pessoa faratildeo com que ele natildeo a ame mais
E se me amam pelo meu juiacutezo por minha proacutepria memoacuteria amam me mesmo A mim Natildeo pois posso perder essas qualidades sem perder-me a mim mesmo Onde estaacute entatildeo esse eu se natildeo estaacute no corpo nem na alma E como amar o corpo ou a alma senatildeo por essas qualidades que natildeo satildeo o que fazem o eu pois que satildeo pereciacuteveis Porque algueacutem amaria a substacircncia da alma de uma pessoa abstratamente e algumas qualidades nela existentes Isso natildeo eacute possiacutevel e seria injusto Portanto nunca se ama ningueacutem mas somente qualidades
Natildeo se zombe mais entatildeo daqueles que se fazem honrar por cargos e ofiacutecios pois natildeo se ama ningueacutem a natildeo ser por qualidades posticcedilas14
Apesar de comeccedilar com uma interrogaccedilatildeo Pascal natildeo oferece definiccedilotildees
positivas sobre o eu O fragmento acima nos remete a uma provaacutevel interlocuccedilatildeo com
Descartes O eu em Pascal natildeo converge com a posiccedilatildeo sustentada pelo pensador do
13 DESCOMBESLe parler de soi p 84 14PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 688
141
Coacutegito pois as qualidades posticcedilas aqui embora pereciacuteveis possuem primazia sobre a
substacircncia pensante Como Telma Birchal observou
Neste fragmento que alude sem duacutevidas ao Coacutegito Pascal mostra que a reduccedilatildeo cartesiana tem consequecircncias impraticaacuteveis a seguir numa reviravolta caracteriacutestica de seu pensamento manteacutem a exigecircncia de que o Eu deva ser realmente algo que escape ao domiacutenio do pereciacutevel para terminar afirmando a supremacia das qualidades sobre a substacircncia15
Ora o movimento pascalino longe de admitir ideias claras e distintas
pretende retomar a perspectiva do homem comum e da doacutexa onde as qualidades posticcedilas
satildeo formadoras de opiniatildeo sobre a subjetividade alheia O ponto de Pascal natildeo eacute postular
que as qualidades tomadas de empreacutestimo constituam o eu Pelo contraacuterio esta
perspectiva eacute problematizada No entanto o autor dos Pensamentos tambeacutem parece
descredenciar as articulaccedilotildees que pretendem propor um discurso elaborado sobre a
subjetividade a partir de uma razatildeo especulativa ndash e aqui a interlocuccedilatildeo parece ser mais
uma vez claramente com Descartes como notou Carraud16
Pascal natildeo trata o eu de maneira desencarnada aos moldes de uma
experiecircncia mental O que se pensa ser o eu no fim das contas natildeo passa de um complexo
de qualidades posticcedilas o que nos impede de criticar o homem comum quando este ama
algueacutem por estas mesmas qualidades O eu natildeo estaacute na alma nem no corpo e desta
perspectiva nunca se ama ningueacutem senatildeo a atributos Desenvolveremos mais este ponto
adiante
Por ora resta notar que desse ponto de vista o acesso agrave subjetividade requer
natildeo uma razatildeo especulativa que existe enquanto pensa e somente enquanto pensa A
primazia do acesso agrave interioridade natildeo eacute clara e distinta na medida em que se daacute por meio
do sentimento pois ldquoo coraccedilatildeo possui razotildees que a proacutepria razatildeo desconhecerdquo Ao
introduzir o sentimento como um meio de acesso mais fidedigno agrave interioridade e em
segundo lugar dado o quadro da natureza humana decaiacuteda Pascal tem as ferramentas
necessaacuterias para nos conduzir ao elemento que o interessa de fato qual seja o de uma
intencionalidade da subjetividade Para Pascal mais importante do que a pergunta pelo
que significa o eu em seu sentido metafiacutesico eacute a reflexatildeo moral que estaacute em jogo ndash e aqui
de novo a perspectiva dos filoacutesofos eacute contraposta a do homem ordinaacuterio
15BIRCHAL A marca do vazio reflexotildees sobre a subjetividade em Blaise Pascal p 53 16 CARRAUD Linventiondu moi p 30
142
O que eacute comum na busca de todos os homens Pascal responde ldquotodos os
homens procuram ser felizes () eacute o motivo de todas as accedilotildees de todos os homens ateacute
daqueles que vatildeo se enforcarrdquo17 A busca pela felicidade constitui entatildeo aquilo que ao
fim e ao cabo todos almejam Ora tanto os filoacutesofos quanto os homens comuns jaacute
notaram esta busca incessante Pascal identifica duas opiniotildees que nos conduzem ao
anseio humano da felicidade A opiniatildeo 1) dos homens comuns que buscam a felicidade
no movimento nas coisas e nos objetos externos a noacutes e 2) a dos filoacutesofos que criticam o
homem comum pois a felicidade uacuteltima estaria tatildeo somente no repouso
Pascal argumenta a partir disso que o homem comum tem fortes razotildees para
fazer o que faz Entre ir para a guerra e pensar em si mesmo o homem ordinaacuterio prefere
ir para a guerra Ele procura eacute a caccedila (o movimento) e natildeo exatamente a presa
Todo este movimento para fora de noacutes indica a nossa dificuldade de nos
mantermos em repouso As pessoas tecircm razotildees (motivos) em buscar as coisas Mas
nenhuma dessas coisas externas nos conduz agrave felicidade pois ser feliz (e aiacute os filoacutesofos
tem razatildeo) natildeo estaacute no movimento mas sim no repouso As pessoas passam de coisas
para coisas o que denuncia a nossa condiccedilatildeo de incompletude
Os filoacutesofos nesse sentido acertam na teoria de que a busca dos objetos natildeo
traz felicidade Acontece que os filoacutesofos se equivocam ao sustentarem que o problema
que leva o homem ordinaacuterio agrave busca incessante pelos objetos externos seja motivado por
certa ignoracircncia Para Pascal natildeo se trata de uma ignoracircncia simplista como supotildeem os
filoacutesofos A ignoracircncia eacute de outra ordem e sequer estes grandes pensadores da histoacuteria da
humanidade conseguiram uma soluccedilatildeo eficaz
De fato o remeacutedio oferecido pelos filoacutesofos eacute quase tatildeo ruim quanto a proacutepria
doenccedila Natildeo eacute o dobramento sobre si de acordo com Pascal que resolveraacute o drama
humano pela busca da felicidade Este eacute um paliativo falso O homem comum faz o que
faz porque de alguma maneira sabe que a panaceia da tranquilidade da alma da ataraxia
e de outras tantas foacutermulas de repouso natildeo satisfazem a condiccedilatildeo de incompletude18
Assim podemos formular a questatildeo nesses termos ao se verificar mais
detidamente sobre a razatildeo dos efeitos nota-se que os filoacutesofos acertam na teoria e erram
17 PASCAL apud BIRCHAL Aquele que busca a Deus o increacutedulo e o honnecircte-homme natureza e sobrenatureza nestes trecircs tipos de homem p339 18 Conforme explica Maria Isabel Limongi ldquocomo natildeo se pode encontrar a felicidade que estaacute em Deus nos objetos que deleitam agrave vontade natildeo haacute alternativa senatildeo deixar-se determinar pela imaginaccedilatildeo imaginando que os prazeres sensiacuteveis possam trazer a felicidade que de fato natildeo trazemrdquo LIMONGI Pascal e a ordem da concupiscecircncia p 332
143
na praacutetica pois a felicidade de fato natildeo estaacute no movimento Jaacute o homem comum por sua
vez erra na teoria mas acerta na praacutetica visto que viver na busca dos objetos exteriores
eacute esperado porquanto o repouso de se voltar para si fracassa em sua tentativa de frear a
incontornaacutevel carecircncia do humano pela felicidade Cada uma dessas posiccedilotildees estaacute
parcialmente certa mas eacute preciso compreender a razatildeo dos efeitos A busca interminaacutevel
eacute um efeito que precisa ser explicado
Pascal sugere a partir disso uma terceira posiccedilatildeo que seria preferiacutevel agraves
outras duas Ao juntar a teoria dos filoacutesofos com a praacutetica do homem comum chegamos
ao cristianismo Ora eacute o cristianismo que revela a dupla natureza do homem O homem
eacute um ser miseraacutevel decaiacutedo pois possui um instinto secreto que nos vincula agrave busca
incessante Mas haacute outro instinto secreto que aponta para o fato de que a felicidade como
os filoacutesofos perceberam estaacute no repouso Poreacutem natildeo seria como querem os filoacutesofos um
repouso interior Antes seria um repouso que estaacute fora de noacutes O repouso estaacute em Deus19
(muito embora em certo sentido Deus esteja fora e dentro de noacutes)
O homem eacute um ser contraditoacuterio com duas naturezas quais sejam a marca
de Deus e a marca do vazio Somente Deus completaria o nosso vazio Nesse sentido eacute
preciso compreender que a vida eacute uma busca que o eu soacute pode ser diante de Deus e que
justamente o cristianismo melhor do que a percepccedilatildeo dos filoacutesofos e do homem comum
aponta para este diagnoacutestico A fragilidade humana consiste em querer-se grande mas se
vecirc pequeno em querer ser feliz mas vecirc-se miseraacutevel20
Terceiro momento O esquecimento de si o teacutedio e o divertissement
A proposta de Pascal seguindo a esteira de Platatildeo recomenda que o homem
conheccedila a si mesmo ainda que esta atitude natildeo se preste de modo imediato ao acesso agrave
verdade Nos termos de Pascal ldquoEacute necessaacuterio conhecer-se a si mesmo Ainda que isso
natildeo servisse para encontrar a verdade pelo menos serve para regrar a proacutepria vida e nada
haacute de mais justordquo21
19Segundo Luiacutes Oliva ldquoo repouso soacute viraacute quando a capacidade do homem para o infinito for preenchida novamente ou seja quando o homem se reunir a Deus O pecado foi uma tentativa do homem constituir-se em totalidade proacutepria abandonando o seu verdadeiro centro que eacute Deusrdquo OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 406 20 Ver ANJOSBLAISE PASCAL O DIVERTIMENTO E O CONHECIMENTO DE SI p 363 21PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 72
144
Conhecer a si mesmo implica em pensar em si poreacutem este ato conforme
mostra Pascal eacute evitado a todo o custo na medida em que ldquonatildeo podendo os homens curar
a morte a miseacuteria a ignoracircncia resolveram para ficar felizes natildeo mais pensar nissordquo22
Pensar em si inviabiliza o acesso agrave felicidade mesmo que se trate de uma felicidade fugaz
e efecircmera pois a verdadeira felicidade como jaacute assinalamos soacute Deus a pode conceder
Pois bem o ato de pensar em si mesmo desemboca na natureza precaacuteria do
homem pois se depara com sua condiccedilatildeo miseraacutevel e fraacutegil Mas como os humanos
insistem em tentar suprir sua carecircncia pelos mais diversos meios que natildeo a busca de Deus
eles acabam praticando exatamente o contraacuterio da recomendaccedilatildeo de autoconhecimento
Eles se engajam na empreitada de esquecer-se de si Para obter sucesso nessa tarefa
lanccedilam matildeo do divertissement preenchendo todo o tempo com infindaacuteveis afazeres tais
como denuncia Pascal sobrecarregam os homens desde a infacircncia com o cuidado de sua honra dos bens dos amigos e ainda dos bens e honra dos amigos cumulam-nos de afazeres de aprendizado das liacutenguas e de exerciacutecios e se lhes daacute a entender que natildeo conseguiriam ser felizes sem que a sua sauacutede honra e fortuna e a de seus amigos estivessem em bom estado e que a falta de uma uacutenica coisa dessas os tornaraacute infelizes () E eis por que depois de preparar-lhes tantos afazeres se ainda tiverem algum tempo livre aconselha-se que o empreguem em se divertir e jogar e ocupar-se sempre por inteiro Como o coraccedilatildeo do homem eacute oco e cheio de lixo23
O divertimento ocupa e desvia os homens de pensar naquilo que satildeo O
divertimento funciona como um mecanismo de alienaccedilatildeo porquanto eacute a uacutenica coisa que
consola o ser humano de sua miseacuteria A uacutenica coisa que nos consola de nossas miseacuterias eacute a diversatildeo E no entanto eacute a maior de nossas miseacuterias Porque eacute ela que nos impede principalmente de pensar em noacutes que nos potildee a perder insensivelmente Sem ela ficariacuteamos entediados e esse teacutedio nos levaria a buscar um meio mais soacutelido de sair dele mas a diversatildeo nos entreteacutem e nos faz chegar insensivelmente agrave morte24
Quando cessa a diversatildeo resta apenas o teacutedio e isso vale inclusive para os
grandes homens como o rei por exemplo que ldquo estaacute cercado por pessoas que soacute pensam
em diverti-lo e impedi-lo de pensar em si mesmo Porque ele fica infeliz embora seja rei
22 IDEM Fr 133 23 IDEM Fr139 24 IDEM Fr 414
145
se pensar em sirdquo25 Se por algum motivo a diversatildeo natildeo ocorre eis entatildeo uma vez mais
o homem a soacutes consigo mesmo O proacuteximo passo eacute a emergecircncia do teacutedio este negrume
oriundo do fundo da alma esta tristeza esta maacutegoa este despeito este desespero26
Temos aqui como chama a atenccedilatildeo Carraud um novo sentido de pensar em
si diferente daquele sentido cartesiano
Pensar em si natildeo eacute mais pensar no conceito de si (res cogitans) em Deus como seu autor e seu fim mas em si socialmente e existencialmente em si como rei e como homem que natildeo se divertindo seca-se no teacutedio27
Portanto a tarefa de conhecer-se a si mesmo passa pela ideia de pensar a si
Natildeo se trata contudo de abordar o problema da subjetividade aos moldes cartesianos
Pensar a si eacute pensar esta subjetividade no mundo da vida e sua condiccedilatildeo existencial qual
seja a de buscar a felicidade
Poreacutem pensar a si tem como apanaacutegio a miseacuteria humana daquele que se sabe
mortal28A busca se torna ainda mais obstinada pois a felicidade eacute sempre um ideal
longiacutenquo a ser alcanccedilado Esta busca por ser feliz da perspectiva do homem comum
quanto mais obstinada for mais precisa praticar o esquecimento de si a fim de escapar a
sua condiccedilatildeo decaiacuteda Ora mas esquecer-se de si requer o preenchimento do tempo com
as futilidades e tarefas do cotidiano Mesmo os momentos de lazer satildeo preenchidos com
muito movimento e barulho para garantir que a proximidade com a morte seja discreta
sem se aperceber de fazecirc-lo portanto29 Manter a vida ocupada permite tambeacutem o
afastamento da mais insuportaacutevel companhia o teacutedio
Entediar-se eacute se sentir a soacutes consigo mesmo e lembrar da condiccedilatildeo humana
no mundo Nesse sentido se algueacutem sente teacutedio estaacute prestes a pensar em si mesmo Este
repouso no teacutedio poreacutem pode ser interrompido com a diversatildeo Divertir-se garante a
dissipaccedilatildeo do teacutedio e o retorno agrave situaccedilatildeo alienante do primeiro momento Assim o eu
evita ser diante de Deus e se empenha em ser um eu imaginaacuterio cuja busca da felicidade
se centra nos objetos externos Esta busca motivada pela carecircncia humana leva as
25 IDEM Fr 136 26 IDEM Fr 622 27 CARRAUDObservaccedilotildees sobre a segunda antropologia o pensamento como alienaccedilatildeo p 315 28 Como afirma IvonilParraz ldquoConhecendo sua contingecircncia considerando os acasos que envolvem sua existecircncia o eu ldquoque pensardquo descobre-se natildeo como um eu sou mas como um ser natildeo necessaacuterio nem eterno nem infinito A sua proacutepria condiccedilatildeo no interior do tempo leva-o a descobrir sua finituderdquo PARRAZ O disfarce da forccedila p175 29PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 414
146
pessoas a um trabalho de Siacutesifo visto que a subjetividade soacute pode acessar a completude
diante do repouso em seu criador Ou ainda dito de outro jeito para Pascal o eu autecircntico
soacute pode ser (no mais eminente sentido do termo) se e somente se for um eu em relaccedilatildeo
com Deus
Conclusatildeo
O tema da subjetividade em Pascal aparece ao longo dos Pensamentos como
um centro de gravidade onde muitas outras temaacuteticas flutuam tais como a busca pela
felicidade o divertimento e o teacutedio para ficar em poucos exemplos Pascal sabe que natildeo
estaacute inaugurando a discussatildeo e sabe especialmente que muito jaacute foi dito sobre este
problema
Todavia o legado pascalino consiste sobretudo em tratar o eu de maneira
substantiva para pensaacute-lo natildeo tanto enquanto uma subjetividade ontoloacutegica mas sim
antropoloacutegica e moral De fato Agostinho jaacute havia tratado do tema a partir deste recorte
mas natildeo nos mesmos moldes em que coloca Pascal Falar do divertimento enquanto
mecanismo de alienaccedilatildeo e da tentativa de evitar o teacutedio com o esquecimento de si tendo
como pano de fundo o problema da natureza humana constitui o esteio pascalino do qual
se pode erigir toda a sua reflexatildeo filosoacutefica
Neste artigo foram precisamente estes os passos adotados para estabelecer o
fio condutor de nossa discussatildeo qual seja o problema da subjetividade Procuramos
mostrar que o pressuposto antropoloacutegico por detraacutes da reflexatildeo de nosso autor passa
tambeacutem por consideraccedilotildees teoloacutegicas amalgamadas na tradiccedilatildeo cristatilde Reconhecer a
condiccedilatildeo humana bem como o que se deriva a partir daiacute mais notadamente a ideia de
concupiscecircncia e amor-proacuteprio permitem ao nosso autor se mover tendo como leitmotiv
a alteridade relacional entre o eu e Deus
No segundo momento destacamos a temaacutetica do eu e sua condiccedilatildeo de
incompletude o que abre o campo para a jornada humana em direccedilatildeo agrave busca pela
felicidade Ora buscar a felicidade conforme procuramos mostrar tanto pela via do
homem ordinaacuterio quanto pela via dos filoacutesofos fracassam em suas tentativas seja porque
acertam na teoria e erram na praacutetica (os filoacutesofos) seja porque acertam na praacutetica mas
erram na teoria (os homens comuns) O eu soacute satisfaz a sua carecircncia quando procura a
felicidade no repouso Este entretanto natildeo estaacute no interior da proacutepria subjetividade pois
estaacute em outra subjetividade alheia a si Estaacute a saber no proacuteprio Deus
147
Muitos satildeo os empecilhos para se alcanccedilar a felicidade O primeiro passo seria
conhecer-se a si mesmo cujo desdobramento implica em pensar em si e por conseguinte
em mergulhar no teacutedio Acontece que as pessoas procuram evitar o teacutedio a todo custo
visto que entediar-se parece estar na contramatildeo de uma vida feliz Ou seja eacute contra
intuitivo supor em princiacutepio que o teacutedio seja preacute-condiccedilatildeo para o acesso agrave felicidade
Um grande mecanismo para evitar que o homem pense em sua condiccedilatildeo e natildeo acesse o
teacutedio eacute o divertimento Divertir-se ou ainda atarefar-se tem como efeito colateral o
esquecimento de si Portanto por meio do divertimento e do esquecimento de si o eu se
aliena do seu criador e soacute conhece a fugacidade da vida sem alcanccedilar a felicidade ulterior
propiciada apenas por Deus
Tratava-se neste artigo portanto de descrever os meandros e caminhos pelos
quais a subjetividade humana escapa a uma condiccedilatildeo autecircntica Esta condiccedilatildeo soacute pode se
dar como chamamos atenccedilatildeo em seu sentido relacional com o criador O cenaacuterio em que
nos coloca Pascal reflete sobre o problema da condiccedilatildeo humana ou como diria o proacuteprio
pensador francecircs sobre a nossa condiccedilatildeo de miseacuteria na qual noacutes humanos meros
ldquocaniccedilosrdquo pensantes nos deparamos
O homem natildeo eacute senatildeo um caniccedilo o mais fraco da natureza mas eacute um caniccedilo pensante Natildeo eacute preciso que o universo inteiro se arme para esmagaacute-lo um vapor uma gota de aacutegua basta para mataacute-lo Mas ainda que o universo o esmagasse o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata pois ele sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele O universo de nada sabe
Toda a nossa dignidade consiste pois no pensamento Eacute daiacute que temos de nos elevar e natildeo do espaccedilo e da duraccedilatildeo que natildeo conseguiriacuteamos preencher Trabalhemos pois para pensar bem eis aiacute o princiacutepio da moral30
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O POSSIacuteVEL METAFOacuteRICO SEGUNDO TOMAacuteS DE AQUINO
Matheus Henrique Gomes Monteiro1
RESUMO O presente artigo tem o objetivo de discutir o conceito de possiacutevel metafoacuterico e suas ocorrecircncias na filosofia de Tomaacutes de Aquino Primeiro apresenta os aspectos gerais do que eacute ldquoser possiacutevelrdquo considerando a obra tomasiana como um todo Segundo situa o possiacutevel metafoacuterico analisando as informaccedilotildees dadas pelo filoacutesofo para definir o conceito Ao longo do artigo ateacute a conclusatildeo apresentam-se questotildees a serem desenvolvidas ulteriormente por pesquisadores da aacuterea como parte da presente discussatildeo Palavras-chave possiacutevel metaacutefora matemaacutetica Filosofia Medieval
ABSTRACT This paper discusses the concept of metaphorical possible and its developments in the philosophy of Thomas Aquinas Firstly I show the main aspects of what means ldquoto be possiblerdquo in Aquinasrsquo philosophical system by considering the thomasic opera as a whole Secondly I locate the metaphorical possible in the divisions of being possible by analyzing the elements given by the philosopher in order to define the concept In the paper specially at the end I suggest some questions to be developed by colleagues and other scholars based on the discussion started Keywords possible metaphor mathematics Medieval Philosophy
Na discussatildeo sobre o que Deus pode fazer e o que pode ser feito Tomaacutes de
Aquino distinguiu vaacuterios modos de dizer ldquoser possiacutevelrdquo entre eles o possiacutevel metafoacuterico
Nos diversos textos em que o conceito aparece o filoacutesofo ele mesmo natildeo o desenvolve
muito com a justificativa de que para tratar dos problemas concernentes ao poder de
Deus o possiacutevel metafoacuterico ldquofoge ao assuntordquo Haacute inclusive textos voltados ao debate
sobre o que eacute possiacutevel por exemplo Sobre a eternidade do mundo de 1271 em que o
possiacutevel metafoacuterico nem mesmo eacute mencionado Muitos comentadores que se dedicaram
a estudar esses temas reconhecem que o filoacutesofo distingue um modo de dizer ldquoser
possiacutevelrdquo metaforicamente e ateacute datildeo a ele uma vaga definiccedilatildeo poreacutem nenhum deles
aprofundou a reflexatildeo sobre o seu significado nem pretendeu compreender a razatildeo por
que Tomaacutes de Aquino o pocircs de lado em tantos debates e sem maiores explicaccedilotildees2
1 Doutorando em filosofia pela UnicampCAPES e-mail Mhgmonteirogmailcom 2 Smith (1943) Dewan (1974) Wippel (1981 p 26) Veldhuijsen (1990 p 31) Wilks (1994) Storlarski (2001 p 97) Storck (2003) Estes autores mencionam o possiacutevel metafoacuterico poreacutem natildeo se concentram em
150
Neste artigo pretende-se apresentar os aspectos gerais do que Tomaacutes de
Aquino discute sobre o ldquoser possiacutevelrdquo e com base neles situar o possiacutevel metafoacuterico em
sua filosofia Por meio desse trabalho espera-se despertar nos estudiosos do pensamento
tomasiano o interesse pelo tema e considerar as questotildees que ele suscita no
prosseguimento das suas investigaccedilotildees3
Nas questotildees Sobre a potecircncia de Deus quando discute sobre o poder divino
e o que pode ser feito o filoacutesofo faz menccedilotildees breves ao conceito de possiacutevel metafoacuterico
contudo ele desenvolve-o com mais detalhe no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica nas partes sobre
os modos de dizer possiacutevel Em resumo Tomaacutes de Aquino diz que o possiacutevel metafoacuterico
eacute segundo nenhuma potecircncia e por isso eacute dito possiacutevel metaforicamente e em sentido
equiacutevoco Aleacutem disso diz que ele pertence ao domiacutenio da matemaacutetica (aritmeacutetica e
geometria) e que ele eacute uma potecircncia racional e uma potecircncia matemaacutetica4 Para haver
melhor compreensatildeo sobre o significado de cada um desses pontos eacute necessaacuterio voltar-
se para a doutrina geral a respeito do ldquoser possiacutevelrdquo em Tomaacutes de Aquino
Em filosofia Tomaacutes de Aquino reserva um importante papel para a accedilatildeo de
dizer (dicere) o que eacute evidente na grande ocorrecircncia desse verbo na articulaccedilatildeo dos
argumentos O recurso agrave fala na qual ele supotildee as intenccedilotildees entre apreensatildeo inteligecircncia
e comunicaccedilatildeo situa o debate sobre o possiacutevel e a possibilidade nos diversos acircmbitos do
discurso5
Em geral o nome possiacutevel (possibilis ou possibile) pode significar os entes
corpoacutereos contingentes os quais podem ser ou natildeo ser segundo a mudanccedila isto eacute podem
ser de um modo agora e de outro depois (alteraccedilatildeo aumento e diminuiccedilatildeo) ou podem vir
a ser (geraccedilatildeo) ou deixar de ser (corrupccedilatildeo) aleacutem desses haacute os entes criados inclusive
esclarececirc-lo Haacute ainda os que abordam questotildees relativas ao possiacutevel na filosofia de Tomaacutes de Aquino poreacutem natildeo mencionam o possiacutevel metafoacuterico Por fim haacute alguma bibliografia sobre a metaacutefora na filosofia tomasiana poreacutem circunscrita ao seu uso na teologia De fato ainda natildeo encontrei pesquisadores interessados em estudar o possiacutevel metafoacuterico no acircmbito da matemaacutetica onde ele eacute situado por Tomaacutes de Aquino Espero que este artigo seja um incentivo para pesquisas sobre o assunto 3 Uma das questotildees que precisam ser esclarecidas eacute se o possiacutevel metafoacuterico era de fato um conceito que Tomaacutes de Aquino integrava ao seu pensamento ou se ele era um conceito de Aristoacuteteles presente na Metafiacutesica o qual devido agrave empresa de comentar a obra do estagirita Tomaacutes de Aquino teve de explicar e ao qual fez referecircncias pontuais em debates ulteriores ateacute que natildeo visse mais justificativa para ele em sua proacutepria filosofia De todo modo para enfrentar essa questatildeo antes eacute necessaacuterio fazer o levantamento das ocorrecircncias do conceito na filosofia tomasiana e analisar qual eacute o seu papel local (no texto em que estaacute presente) e tambeacutem o global no pensamento do filoacutesofo como um todo mdash etapa que este artigo se propotildee a comeccedilar 4 A siacutentese apresentada tem por base as passagens Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp q 3 a 14 resp Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 5 De Grijs (1990 p 5ndash6) observa o mesmo de modo especial com respeito ao opuacutesculo Sobre a eternidade do mundo
151
os corpos celestes e os anjos cuja essecircncia e ato de ser dependem da accedilatildeo criadora de
Deus por fim os possiacuteveis natildeo-criados que podem ser algum verbo mental que o ser
humano supotildee ao raciocinar sobre a onipotecircncia de Deus e que este conhece estar em seu
poder fazer embora (por assim dizer) natildeo os tenha feito nem venha a fazer
No acircmbito da loacutegica esses significados estatildeo implicados na locuccedilatildeo ser
possiacutevel (esse possibile) segundo a qual Tomaacutes de Aquino distingue entre um modo da
verdade e um modo de ser A primeira alternativa eacute o modal que modificando a coacutepula
entre o termo-sujeito e o termo-predicado significa que o contraacuterio do que eacute enunciado
tambeacutem pode ser verdadeiro6 A segunda alternativa eacute na realidade um ente que eacute em
potecircncia sob determinado aspecto7 e na inteligecircncia um conceito que tem ratio
possibilis ou possibilitas que eacute um princiacutepio explicativo da possibilidade no conceito
do por que o possiacutevel eacute possiacutevel sob o aspecto considerado8 O possiacutevel tem uma ratio
possibilis quando eacute considerado segundo alguma potecircncia e outra quando eacute considerado
segundo nenhuma potecircncia9
No primeiro caso o ser possiacutevel significa o objeto de uma potecircncia Para
melhor entender isso pode-se recorrer agrave abordagem de Tomaacutes de Aquino nos Escritos
sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 resp segundo a qual o verbo poder cujo formato
nominal eacute potecircncia divide-se em potente e possiacutevel Essa divisatildeo eacute simeacutetrica agravequela entre
agente e paciente e agravequela entre causa e efeito Como o que eacute em ato age sobre o que eacute
em potecircncia resultando em um efeito em ato tal que o primeiro (em ato) seja sua causa
eficiente e o segundo (em potecircncia) sua causa material assim tambeacutem a potecircncia do
agente eacute ativa e princiacutepio de accedilatildeo sobre outro enquanto outro e a potecircncia do paciente eacute
passiva e princiacutepio de sofrer accedilatildeo de outro Porque o ser em ato no agente eacute anterior ao
ser em potecircncia no paciente a potecircncia se diz primeira e propriamente da potecircncia ativa
e por analogia da potecircncia passiva10
6 No acircmbito da loacutegica o modal ser possiacutevel modifica as sentenccedilas sob as formas gerais S eacute P ou S natildeo eacute P significando que o contraacuterio do que elas enunciam pode ser verdadeiro Ele eacute unilateral quando se opotildee apenas a ser impossiacutevel ou eacute bilateral quando se opotildee a ser necessaacuterio e a ser impossiacutevel Cf Aristoacuteteles Sobre a interpretaccedilatildeo II 21a34ndash23a23 Tomaacutes de Aquino Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 Ver tambeacutem KNNUTTILA 1988 p 342ndash81 7 Nesse caso haacute uma potecircncia correspondente ao ato primeiro que eacute a forma e outra correspondente ao ato segundo que eacute a operaccedilatildeo A primeira potecircncia eacute chamada de potecircncia passiva e a segunda de potecircncia ativa Cf Sobre a potecircncia de Deus q 1 a 1 resp 8 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 resp 9 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I d 42 q 1 a 1 Suma contra os gentios II c 6 Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp e q 3 a 14 resp Suma de teologia Ia q 9 a 2 resp Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 e IX l 1 Comentaacuterio a Sobre o ceacuteu I l 25 10 No Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 Tomaacutes de Aquino explica sobre a potecircncia passiva que ldquoPossiacuteveis
152
Por sua vez o possiacutevel corresponde ao efeito em potecircncia que se encontra na
potecircncia ativa do agente mais precisamente ele eacute o objeto da potecircncia Assim quando o
possiacutevel eacute considerado numa ordem com respeito agrave potecircncia11 sua ratio possibilis eacute a
ratio do ato pelo qual a causa produz seu efeito12 Por exemplo o inflamaacutevel eacute objeto da
potecircncia ativa do fogo e por parte desse ser em ato sua ratio possibilis eacute o quente da
accedilatildeo de queimar Poreacutem tratando-se de movimento para produzir um efeito eacute necessaacuteria
a mateacuteria o paciente Dessa maneira em segundo lugar o possiacutevel tem ratio possibilis
pela causa material que eacute a potecircncia passiva13
No segundo caso quando o ser possiacutevel eacute considerado segundo nenhuma
potecircncia14 ele eacute separado desse conceito e eacute chamado equivocamente de ldquopossiacutevelrdquo
Nesse sentido ou o possiacutevel eacute absoluto pois natildeo eacute autocontraditoacuterio e pode ter ratio entis
ou ratio non entis isto eacute pode-se dizer que ldquoisso eacute de algum modordquo ou que ldquoisso natildeo eacute
de algum modordquo15 ou ele eacute metafoacuterico devido a certa semelhanccedila e aplica-se a um objeto
da ciecircncia matemaacutetica (aritmeacutetica ou geometria)
Poreacutem outros se dizem possiacuteveis ou potecircncia natildeo por algum princiacutepio que tenham em si e deles a potecircncia se diz equivocamente [] Pois nesses a potecircncia se diz natildeo por algum princiacutepio que tenham poreacutem por certa semelhanccedila assim como nas [figuras] geomeacutetricas16
e impossiacuteveis dizem-se com efeito desses que tecircm em si mesmos algum princiacutepio e isso segundo certos modos segundo os quais as potecircncias se dizem natildeo equivocamente mas sim analogamenterdquo pouco mais adiante ele prossegue mostrando a reduccedilatildeo das potecircncias agrave potecircncia ativa ldquoPortanto deve-se fazer consideraccedilatildeo sobre as potecircncias que se reduzem a uma espeacutecie pois qualquer uma delas eacute certo princiacutepio e todas as potecircncias se dizem reduzidas a algum princiacutepio do qual se dizem todas as outras E esse eacute o princiacutepio ativo que eacute o princiacutepio de accedilatildeo de mudanccedila sobre outro enquanto eacute outrordquo 11 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 3 resp 12 ldquoA cada potecircncia ativa corresponde um possiacutevel como seu objeto proacuteprio segundo o princiacutepio (rationem) daquele ato em que se funda a potecircncia ativardquo (Suma de teologia Ia q 25 a 3 resp) 13 Pois algo eacute uma potecircncia passiva porque estaacute em potecircncia para sofrer accedilatildeo de um outro que estaacute em ato A sua passividade natildeo eacute explicada pela potecircncia ativa Algo pode sofrer accedilatildeo de outro pois eacute em potecircncia No entanto a sua passividade natildeo eacute aberta a qualquer accedilatildeo mas a determinada accedilatildeo de certa potecircncia ativa Essa restriccedilatildeo explica-se pela ratio do ato no qual se baseia a potecircncia ativa a mesma ratio que tambeacutem delimita o objeto dessa potecircncia Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 14 ldquoQuando se diz que algo eacute possiacutevel natildeo segundo alguma potecircncia [isso se diz] ou metaforicamente [] ou absolutamenterdquo (Sobre a potecircncia de Deus q 3 a 14) 15 Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 Nesse paraacutegrafo para efeito de sistematizaccedilatildeo natildeo considero o problema dos possiacuteveis natildeo-criados pois ao consideraacute-los deve-se acrescentar agrave ausecircncia de contradiccedilatildeo em si proacuteprio e agrave enunciabilidade jaacute explicadas a ratio de poder ser um verbo mental (conceptibilidade) Os possiacuteveis natildeo-criados natildeo satildeo conceitos com essecircncia presente e delimitada na inteligecircncia humana mas satildeo uma suposiccedilatildeo na medida em que o ser humano raciocina sobre a onipotecircncia de Deus Dizer que eles tecircm a ratio de conceptibilidade se deve agrave consideraccedilatildeo de que embora natildeo sejam um conceito na inteligecircncia humana eles satildeo alguma ideacuteia na inteligecircncia divina que vecirc em seu poder tudo o que pode fazer Devolvo mais detalhadamente esse assunto em MONTEIRO 2014 16 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 As traduccedilotildees dos textos de Tomaacutes de Aquino satildeo feitas por mim o Comentaacuterio agrave Metafiacutesica com base na ediccedilatildeo do texto latino Parma t 20 1871 o Sobre a potecircncia de Deus
153
Em uacuteltima anaacutelise todo possiacutevel eacute um possiacutevel absoluto que deve satisfazer
a condiccedilatildeo de natildeo ser autocontraditoacuterio e de poder ter ratio entis ou ratio non entis Esse
possiacutevel pode ser considerado em si segundo a ratio possibilis da ausecircncia de contradiccedilatildeo
em si proacuteprio e da enunciabilidade ou pode ser considerado numa ordem com respeito a
uma potecircncia ou causa segundo a ratio possibilis da potecircncia passiva ou da potecircncia
ativa17
Diante desse quadro geral eacute preciso reconhecer duas dificuldades A primeira
delas concerne a situaccedilatildeo do possiacutevel metafoacuterico dentro da divisatildeo geral sobre o ser
possiacutevel que foi exposta anteriormente
Em Sobre a potecircncia q 3 a 14 resp o possiacutevel metafoacuterico eacute considerado
segundo nenhuma potecircncia Todavia em uma parte anterior q 1 a 3 resp Tomaacutes de
Aquino natildeo o potildee dentro da divisatildeo ldquosegundo nenhuma potecircnciardquo mas apresenta-o como
um terceiro modo de dizer o possiacutevel
Segundo o filoacutesofo Aristoacuteteles possiacutevel e impossiacutevel se dizem de trecircs modos De um modo segundo alguma potecircncia ativa ou passiva assim se diz que eacute possiacutevel para o homem andar segundo a potecircncia locomotiva poreacutem que eacute impossiacutevel para ele voar De outro modo natildeo segundo alguma potecircncia poreacutem segundo si mesmo assim como dizemos que o possiacutevel eacute o que natildeo eacute impossiacutevel de ser e que o impossiacutevel eacute o que eacute necessaacuterio natildeo ser Do terceiro modo o possiacutevel se diz segundo a potecircncia matemaacutetica que estaacute nas [figuras] geomeacutetricas []
Apoacutes a leitura fica a questatildeo afinal o possiacutevel metafoacuterico tem ou natildeo tem
uma ratio possibilis de alguma potecircncia Como todo possiacutevel o possiacutevel metafoacuterico eacute
um conceito que tem ratio possibilis e para efeito loacutegico no miacutenimo esta deve ser a
ausecircncia de contradiccedilatildeo em si proacuteprio e a enunciabilidade18 Nos exemplos dados por
Tomaacutes de Aquino o possiacutevel metafoacuterico significa nuacutemeros e figuras geomeacutetricas que satildeo
abstraccedilotildees do numeraacutevel e do volume pertencentes agrave forma quantitativa nos corpos Eles
dependem dos corpos para ser mas natildeo dependem deles para serem conhecidos e
definidos Na matemaacutetica os nuacutemeros e as figuras geomeacutetricas natildeo tecircm ser em potecircncia
igual os corpos natildeo se movem nem satildeo gerados nem se corrompem como os corpos
com base na ediccedilatildeo Parma t 8 1856 a Suma de teologia com base na ediccedilatildeo Leonina t 4 1888 e a Suma contra os gentios com base na ediccedilatildeo Leonina t 13 1918 17 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 3 resp 18 Uma das consequumlecircncias disso eacute que o possiacutevel metafoacuterico natildeo pode pertencer ao discurso poeacutetico que admite a contradiccedilatildeo na forma de paradoxos e oximoros por exemplo Esta pode ser uma razatildeo forte para depois delimitar o possiacutevel metafoacuterico no acircmbito da matemaacutetica
154
pois natildeo tecircm mateacuteria sensiacutevel19
Assim eles natildeo satildeo objeto de uma potecircncia fora da alma humana mas
enquanto conceitos eles satildeo objetos da inteligecircncia (potecircncia da alma) e satildeo objetos de
uma ciecircncia a matemaacutetica Do primeiro modo eles satildeo inteligiacuteveis pois podem ser
conhecidos Do segundo modo eles satildeo matematizaacuteveis pois podem ser explicados pelos
princiacutepios matemaacuteticos
Entretanto em nada disso se manifesta em que consiste a metaacutefora muito
menos sua aplicaccedilatildeo aos casos em que a linha eacute potecircncia do comensuraacutevel20 e em que
nuacutemeros e figuras multiplicados por eles mesmos podem fazer um quadrado21 ao que
Tomaacutes de Aquino chama de potecircncia matemaacutetica e o que parece equivalente a elevar um
nuacutemero ao quadrado na matemaacutetica atual
Para esclarecer esses pontos deve-se proceder agrave segunda dificuldade que diz
respeito agrave diferenccedila entre metaacutefora e analogia22 Nessa dificuldade eacute necessaacuterio recordar-
se de que o possiacutevel se diz segundo alguma potecircncia ou segundo nenhuma potecircncia e que
na primeira consideraccedilatildeo a palavra potecircncia se diz primeira e propriamente da potecircncia
ativa e por analogia da potecircncia passiva mas na segunda consideraccedilatildeo essa palavra se
diz equivocamente do possiacutevel metafoacuterico e do possiacutevel absoluto pois natildeo haacute neles
princiacutepio de agir nem de sofrer accedilatildeo
Embora Owens (1962 p 310 n 28) reconheccedila que na letra do texto Tomaacutes de
Aquino exclua a metaacutefora como uma forma de analogia ele defende que aleacutem da literalidade
ldquode um ponto de vista filosoacutefico portanto natildeo eacute necessaacuteria qualquer hesitaccedilatildeo em ver a
metaacutefora como um tipo de analogiardquo pois tal como o pensador entende ldquo[] Na metaacutefora
o sentido de um termo eacute transferido para outro com base na analogiardquo Stolarski (2001 p
97) tambeacutem entende que ldquometaforicamenterdquo eacute um tipo de analogia
Ao menos esse entendimento parece estar em sintonia com o pensamento de
19 Cf Comentaacuterio a Sobre a Trindade de Boeacutecio q 5 a 1 resp 20 ldquo[] se diz possiacutevel segundo potecircncia matemaacutetica que estaacute entre as geometrias porque a linha eacute dita potecircncia do comensuraacutevel pois o quadrado dela eacute comensuraacutevelrdquo (Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp) 21 Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 e IX l 1 22 Na filosofia de Tomaacutes de Aquino a analogia eacute um dos conceitos mais centrais e tambeacutem um dos mais controversos Neste artigo natildeo o desenvolverei em detalhes embora reconheccedila a sua importacircncia para a discussatildeo por vir Contudo o debate entre os comentadores sobre o assunto permite trabalhar minimamente com as definiccedilotildees presentes em Escritos sobre as Sentenccedilas I d 19 q 5 a 2 ad 1 e em Sobre a verdade q 2 a 11 a saber a distinccedilatildeo entre a analogia de proporccedilatildeo e a analogia de proporcionalidade Tanto uma quanto outra no emprego da palavra na sentenccedila tecircm a intenccedilatildeo de abranger entre univocidade ateacute a completa equivocidade Enquanto houver alguma proporccedilatildeo entre as palavras haacute alguma analogia entre elas Cf OWENS 1962 Ver tambeacutem ELDERS 2009 p 53ndash75
155
Aristoacuteteles em Poeacutetica 21 1457b16ndash3023 Nessa obra o estagirita distingue quatro
empregos para a metaacutefora quando haacute transferecircncia de ldquoum nome alheiordquo do gecircnero para a
espeacutecie ou quando haacute da espeacutecie para o gecircnero ou quando haacute de uma espeacutecie para outra ou
por fim quando haacute por via de analogia No uacuteltimo caso entende que haacute duas proporccedilotildees uma
de um termo a com um termo b e outra de um termo c com um termo d24
119886119886119887119887 mdash 119888119888
119889119889
Segundo Aristoacuteteles o poeta pode ver senatildeo uma identidade ao menos uma
semelhanccedila entre as proporccedilotildees e entatildeo substituir a por c ou b por d O termo a e o termo
c natildeo satildeo necessariamente da mesma espeacutecie nem do mesmo gecircnero Eles se assemelham
um ao outro em razatildeo da relaccedilatildeo que mantecircm com os outros termos b e d os quais
tambeacutem natildeo pertencem necessariamente agraves mesmas categorias O exemplo dado por
Aristoacuteteles eacute
dia
tarde mdash vidavelhice
Na metaacutefora por via da analogia tem-se que ldquoA tarde eacute a velhice do diardquo ou
ldquoA velhice eacute a tarde da vidardquo Sobre sentenccedilas como essas cabe ressaltar que em Sobre
a interpretaccedilatildeo 4 17a1ndash6 Aristoacuteteles diz claramente que o discurso poeacutetico natildeo eacute
declarativo pois natildeo afirma nem nega segundo o verdadeiro ou o falso
Poreacutem o problema eacute que natildeo haacute indiacutecios de que Tomaacutes de Aquino tivesse
acesso agrave Poeacutetica senatildeo por meio de fragmentos reproduzidos ou comentaacuterios indiretos
feitos em textos dos filoacutesofos aacuterabes traduzidos para o latim A Poeacutetica soacute ganharia
publicaccedilatildeo em grego e versatildeo latina a partir do seacuteculo XVI25
Contudo a falta de acesso agrave Poeacutetica natildeo impediu que Tomaacutes de Aquino
23 Baseio-me nas traduccedilotildees para o portuguecircs de Eudoro de Sousa (2003) e de Jaime Bruna (2014) 24 Haacute ainda um outro modo de metaacutefora por via de analogia quando o poeta nega um dos nomes alheios Um exemplo dado por Aristoacuteteles eacute a taccedila de Dioniso e o escudo de Ares Em vez de declarar que ldquoA taccedila de Dioniso natildeo eacute o escudo de Aresrdquo o poeta pode dizer ldquoO escudo de Ares eacute taccedila sem vinhordquo Entendo que esse modo de metaacutefora natildeo contribui para a discussatildeo adiante por isso natildeo o desenvolvi no corpo do texto 25 As primeiras ediccedilotildees em grego dos livros Retoacuterica e Poeacutetica foram publicadas por Aldo Manuacutecio em 1508 em Veneza Haacute tambeacutem vaacuterios estudos sobre a publicaccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles e dos comentadores antigos nos seacuteculos XV e XVI entre os quais recomendo KRAYE 2002 p 189ndash211 e SELLARS 2004 p 239ndash68
156
desenvolvesse um conceito de metaacutefora bastante semelhante ao de Aristoacuteteles Aquino
natildeo dedicou agrave metaacutefora uma questatildeo ou um livro poreacutem abordou-a suscintamente em
outras discussotildees como em Suma de teologia Ia q 1 a 9 a respeito do seu uso na
interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ldquoa poeacutetica [fala] por metaacuteforas por causa da
representaccedilatildeo pois esta eacute naturalmente deleitaacutevel para o homemrdquo26
Na metaacutefora os termos tornam presente ao intelecto um conceito sob uma
imagem proacutexima da experiecircncia mdash uma representaccedilatildeo Nesse sentido a metaacutefora eacute
equiacutevoca pois os termos que satildeo empregados nas sentenccedilas natildeo tecircm o sentido proacuteprio
segundo o qual nas diversas ciecircncias teoreacuteticas referem-se agraves coisas (res) mas eles satildeo
apresentados em um sentido diverso atrelado agrave imagem que representam na imaginaccedilatildeo
Consequentemente a metaacutefora eacute indiferente para o discurso declarativo porque ela ldquonatildeo
afirma sobre a coisa mas somente sobre a imaginaccedilatildeordquo27
Por exemplo nos debates sobre a criaccedilatildeo e a duraccedilatildeo do mundo Tomaacutes de
Aquino enfrenta vaacuterios argumentos de adversaacuterios e os problemas que eles apresentam a
respeito do tempo e do lugar recorrendo agrave metaacutefora28 Aquino diz que nos dois casos do
tempo e do lugar a imaginaccedilatildeo pode acrescentar alguma medida agrave coisa existente29 Esse
recurso eacute usado pelo filoacutesofo na discussatildeo sobre o sentido de ldquoacima derdquo no contexto da
uacuteltima esfera celeste mdash cabe recordar-se de que a cosmologia tomasiana assim como a
aristoteacutelica afirmava a existecircncia de um universo finito constituiacutedo de esferas cristalinas
concecircntricas fora das quais nada existiria Contudo com base na metaacutefora Tomaacutes de
Aquino argumenta
Assim quando se diz que natildeo haacute nada acima do ceacuteu o acima designa um lugar imaginado enquanto possa se imaginar outras dimensotildees sobrepostas agraves dimensotildees dos corpos celestes30
Ademais na discussatildeo sobre a criaccedilatildeo Tomaacutes de Aquino diz que post (depois)
em ldquocreatum habere esse post non esserdquo natildeo significa a sucessatildeo proacutepria do movimento
segundo o antes e o depois A criaccedilatildeo eacute uma operaccedilatildeo divina que eacute realizada da eternidade
O proacuteprio tempo segundo o qual se diz o antes o agora e o depois eacute criado por Deus Natildeo
obstante segundo a metaacutefora diz-se que a criaccedilatildeo eacute a mudanccedila pela qual Deus produz o
26 ldquopoetica autem metaphoris propter representationem repraesentatio enim naturaliter homini delectabilis estrdquo 27 ldquonon ponit [] in re sed solum in imaginationerdquo (Suma contra os gentios II c 36) 28 Cf Suma de teologia Ia q 46 a 1 ad 8 29 Suma contra os gentios II c 36 30 Suma de teologia Ia q 46 a 1 ad 8
157
mundo do natildeo-ser para o ser31 Em Suma de teologia Ia q 45 a 2 ad 2 o filoacutesofo atribui
enunciados como esse ao modo humano de conhecer
Na passagem da Suma de teologia em que fala sobre o uso da metaacutefora na
teologia Tomaacutes de Aquino explica que a metaacutefora toma um conceito que eacute abstrato um
conceito que seja difiacutecil de ser compreendido e torna-o presente agrave inteligecircncia sob alguma
imagem que eacute mais faacutecil de ser conhecida porque eacute mais proacutexima da experiecircncia Esse
conceito sob a imagem embora se torne mais faacutecil fica mais confuso tambeacutem pois aquilo
a que ele refere natildeo eacute o mesmo que a imagem significa originalmente Nesse sentido ele
precisa ser reelaborado considerando-se aquilo que o difere da imagem (o que ele natildeo eacute)
bem como o seu grau de abstraccedilatildeo
Dessa exposiccedilatildeo geral e certamente insuficiente a respeito da metaacutefora ao
menos se pode notar que o desenvolvimento tomasiano desse conceito aproxima-se em
vaacuterios pontos da definiccedilatildeo aristoteacutelica mas natildeo o bastante para incluir a metaacutefora na
analogia Na filosofia de Tomaacutes de Aquino enquanto a analogia corresponde ao uso das
palavras no acircmbito factual e real no discurso verdadeiro ou falso a metaacutefora corresponde
ao uso delas no acircmbito fictiacutecio e imaginaacuterio no discurso verossiacutemil Natildeo obstante
Aquino estaacute agrave vontade para empregar a metaacutefora como um auxiacutelio nos raciociacutenios por
exemplo fazendo comparaccedilotildees didaacuteticas ou dando inteligibilidade a uma suposiccedilatildeo irreal
(o momento antes do tempo o lugar fora do mundo)
Apoacutes considerar essas dificuldades fica mais claro o que Tomaacutes de Aquino
explica nos textos a seguir
[Aristoacuteteles] diz que na geometria a potecircncia se diz segundo metaacutefora Na geometria a potecircncia da linha se diz quadrado da linha por meio desta semelhanccedila porque como disto que eacute em potecircncia se faz aquilo que eacute em ato assim de uma linha multiplicada por si mesma resulta o quadrado dela assim tambeacutem se disseacutessemos que o trecircs eacute possiacutevel no nove porque o nove se segue de trecircs multiplicado por si mesmo Pois trecircs vezes trecircs satildeo nove Poreacutem como o impossiacutevel tomado do segundo modo natildeo se diz segundo alguma impotecircncia assim tambeacutem os modos de possiacutevel afirmados por uacuteltimo [o possiacutevel metafoacuterico e o possiacutevel absoluto] natildeo se dizem segundo alguma potecircncia mas segundo semelhanccedila ou segundo modo de verdadeiro ou falso32
Poreacutem outros se dizem possiacuteveis ou potecircncia natildeo por algum princiacutepio que tenham em si e deles a potecircncia se diz equivocamente [] Pois nesses a potecircncia se diz natildeo por algum princiacutepio que tenham poreacutem por certa semelhanccedila assim como nas [figuras] geomeacutetricas Pois eacute dito que
31 Cf Suma contra os gentios II c 37 32 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14
158
a potecircncia de alguma linha eacute o quadrado dela e eacute dito que a linha eacute possiacutevel em seu quadrado De modo semelhante pode-se dizer nos nuacutemeros que o trecircs eacute possiacutevel no nove que eacute o quadrado de trecircs pois do trecircs multiplicado por si mesmo se faz o nove Pois trecircs vezes trecircs fazem nove Tambeacutem da linha que eacute a raiz do quadrado multiplicada por si mesma se faz um quadrado Entre os nuacutemeros eacute semelhante Daiacute que a raiz do quadrado tem alguma semelhanccedila com a mateacuteria da qual se faz uma coisa Por isso tambeacutem por alguma semelhanccedila diz-se potente no quadrado assim como se diz a mateacuteria potente na coisa33
Os exemplos do possiacutevel metafoacuterico satildeo de potenciaccedilatildeo o nuacutemero ou a linha
que eacute multiplicado por si mesmo e resulta no quadrado e inversamente de radiciaccedilatildeo o
nuacutemero ou linha que eacute raiz quadrada Nos textos reproduzidos Tomaacutes de Aquino faz
duas declaraccedilotildees fundamentais
1) ldquoA raiz do quadrado tem alguma semelhanccedila com a mateacuteriardquo
2) ldquoComo do que eacute em potecircncia se faz o que eacute em ato
assim da multiplicaccedilatildeo da linha (ou do nuacutemero) por ela mesma resulta o quadradordquo
De acordo com essas declaraccedilotildees o possiacutevel metafoacuterico tem ratio possibilis
na semelhanccedila com a mateacuteria Natildeo se trata da potecircncia passiva nem da potecircncia
intelectual nem de um princiacutepio matemaacutetico mas da semelhanccedila entre duas proporccedilotildees
um nuacutemero ou linha proporcional a outro e a mateacuteria ou ser em potecircncia proporcional
a uma coisa ou ser em ato
nuacutemerolinha
quadrado mdash mateacuteriaser em potecircncia coisaser em ato
De um lado nuacutemero linha quadrado natildeo tecircm mateacuteria sensiacutevel e satildeo objetos
da ciecircncia matemaacutetica De outro lado mateacuteria coisa ser em potecircncia ser em ato podem
referir-se ao acircmbito da fiacutesica ou ao dos singulares incluindo a mateacuteria sensiacutevel ou a
mateacuteria sinalada aleacutem do movimento Tambeacutem a proporccedilatildeo que eacute multiplicaccedilatildeo do
nuacutemero ou linha por ele mesmo natildeo eacute igual nem se relaciona a algo comum agrave proporccedilatildeo
que eacute passagem da potecircncia para o ato no movimento Fica evidente que a potecircncia que
significa a multiplicaccedilatildeo de nuacutemero e figuras eacute dita equivocamente em comparaccedilatildeo agrave
potecircncia que significa a mateacuteria (potecircncia passiva) por analogia agrave potecircncia ativa
Contudo haacute ainda uma semelhanccedila e uma transferecircncia pela metaacutefora Diz-
se que ldquoa coisa eacute feita da mateacuteriardquo materia ex qua fit res tambeacutem se diz que ldquoo quadrado
33 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1
159
eacute feito da linhardquo e que ldquo9 eacute feito de 3rdquo pois tanto a linha quanto o nuacutemero 3 satildeo tomados
e postos sob uma operaccedilatildeo da inteligecircncia que resulta em um quadrado ou no nuacutemero 9
Assim ex ductu ternarii in seipsum facit nouenarium ou seja trecircs vezes trecircs resulta em
nove34 O emprego da preposiccedilatildeo ex (de) e do verbo facere (fazer) sugere uma semelhanccedila
entre o que estaacute no acircmbito da fiacutesica e o que estaacute no acircmbito da matemaacutetica poreacutem como
foi analisado natildeo haacute nada em comum senatildeo semelhanccedila acidental por assim dizer
Contudo haacute uma transferecircncia de um acircmbito para o outro assim como haacute na teologia
uma transferecircncia de atributos sensiacuteveis para falar de Deus por meio da metaacutefora
Por fim em Sobre a potecircncia q 3 a 14 resp Tomaacutes de Aquino acrescenta
um novo aspecto ao possiacutevel metafoacuterico a noccedilatildeo de ldquopotecircncia racionalrdquo
Poreacutem diz-se na circunstacircncia de algo possiacutevel natildeo segundo alguma potecircncia ou metaforicamente assim como nas geometrias se diz que alguma linha eacute potecircncia racional ou absolutamente
Como foi visto a linha assim como o nuacutemero natildeo tem propriamente uma
potecircncia poreacutem tanto uma quanto outro satildeo abstraccedilotildees e objetos da inteligecircncia satildeo
inteligiacuteveis cujo ato procede da inteligecircncia que os apreendeu abstraiu e conheceu Desse
modo quando Tomaacutes de Aquino diz ldquopotecircncia racionalrdquo ou estaacute dizendo que a linha e o
nuacutemero satildeo objetos de uma potecircncia racional (a inteligecircncia que pode raciocionar) ou
estaacute dizendo que semelhantemente a uma potecircncia racional eles satildeo princiacutepios dos quais
pode se seguir um de dois efeitos contraacuterios35 Poreacutem se a linha e o nuacutemero fossem
entendidos como princiacutepios restaria esclarecer quais satildeo os contraacuterios que se seguiriam
deles mdash o quadrado (resultado da multiplicaccedilatildeo) seria um deles ou seria o uacutenico
Haacute ainda de questionar-se a razatildeo por que Tomaacutes de Aquino apenas utiliza
exemplos de potenciaccedilatildeo e de radiciaccedilatildeo Outras operaccedilotildees de multiplicaccedilatildeo ateacute mesmo
outras operaccedilotildees matemaacuteticas (a soma a subtraccedilatildeo e a divisatildeo) natildeo teriam imagens ou
semelhanccedilas com algum termo fora do acircmbito da matemaacutetica A metaacutefora eacute empregada
em todos os juiacutezos de possibilidade na matemaacutetica A imaginaccedilatildeo tem algum papel
importante no conhecimento ou nas operaccedilotildees matemaacuteticas Seraacute que na rigidez dos
axiomas e na exatidatildeo dos caacutelculos sob a superfiacutecie de definiccedilotildees claras e de raciociacutenios
necessaacuterios Tomaacutes de Aquino captou a voz meloacutedica vinda das musas de Hesiacuteodo a
contar mentiras semelhantes a verdades
34 Mais informaccedilotildees sobre o vocabulaacuterio matemaacutetico medieval ver SMITH 1953 p 101ndash28 35 Para uma definiccedilatildeo de potecircncia racional Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 2
160
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MEacuteTODO
Michelle Cardoso Montoya1
RESUMO O presente artigo pretende expor superficialmente alguns avanccedilos epistemoloacutegicos acerca do uso do meacutetodo para alcanccedilar a verdade cientiacutefica considerando-se perspectivas pontuais de Descartes Bacon e Hobbes ao longo da modernidade Tanto o meacutetodo proposto por Renegrave Descartes (1596-1650) quanto o por Francis Bacon (1561-1625) visavam primordialmente orientar qual seria o uso adequado da razatildeo e dos sentidos nos processos epistemoloacutegicos A partir do bom uso da razatildeo no caso cartesiano e de ambos no caso baconiano obtermos fundamentos soacutelidos para investigaccedilatildeo de verdades especialmente as que condizem com a ciecircncia Com Francis Bacon e Thomas Hobbes (1558-1679) verificaremos avanccedilos quanto ao uso epistemoloacutegico do meacutetodo todavia ainda insuficientes para lidar com o que intitularemos por ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo Contudo tentaremos sustentar que as maiores inovaccedilotildees acerca do uso epistemoloacutegico do meacutetodo foram feitas de fato por Gottlob Frege (1848-1925) em sua Conceitografia A partir disto demonstraremos como podemos considerar a conceitografia fregeana como uma espeacutecie de ldquocontinuidaderdquo do meacutetodo cartesiano Palavras-chave Meacutetodo Verdade Cientiacutefica Espaccedilo Epistecircmico ABSTRACT The present article is intended to superficially expose some epistemological advances on the use of the method to reach a scientific truth considering the punctual perspectives of Descartes Bacon and Hobbes throughout modernity Both the method proposed by Reneacute Descartes (1596-1650) and Francis Bacon (1561-1625) aimed primarily at guiding the proper use of reason and senses in epistemological processes From the good use of reason in the Cartesian case and both in the case of the Baconian we obtain solid foundations for the investigation of truths especially those that correspond to science With Francis Bacon and Thomas Hobbes (1558-1679) we will see advances in the epistemological use of the method yet still insufficient to deal with what we will call the problem of epistemic space However we will try to argue that the greatest innovations about the epistemological use of the method were actually made by Gottlob Frege (1848-1925) in his Ideography From this we will demonstrate how we can consider Fregean conception as a kind of continuity of the Cartesian method Keywords Method Scientific truth Epistemic space
1 Mestranda em Filosofia pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGLM-UFRJ) e-mail Michelle_montoyaiduffbr
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Tanto o meacutetodo proposto por Reneacute Descartes (1596-1650) quanto o por
Francis Bacon (1561-1625) visavam primordialmente orientar qual seria o uso adequado
da razatildeo e dos sentidos nos processos epistemoloacutegicos A partir do bom uso da razatildeo no
caso cartesiano e de ambos no caso baconiano obteriacuteamos fundamentos soacutelidos para
investigaccedilatildeo de verdades especialmente das que condizem com a ciecircncia Descartes em
Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito afirma que nossa faculdade do entendimento seria
composta por dois atos intelectuais a saber a intuiccedilatildeo e a deduccedilatildeo A faculdade do
entendimento embora natildeo fosse a uacutenica responsaacutevel pelo processo de conhecimento e o
raciociacutenio jaacute que operaria de acordo com o res cogitam cartesiano isto eacute com a
substacircncia intelectual A intuiccedilatildeo numa certa perspectiva era dita comumente como
independente jaacute que natildeo dependeria de nenhuma outra certeza aleacutem do que estaria
inserido em seu proacuteprio conteuacutedo
A deduccedilatildeo por sua vez seria dependente da intuiccedilatildeo ou mesmo de deduccedilotildees
menos complexas que a proacutepria em questatildeo Logo o processo de conhecimento genuiacuteno
no sistema cartesiano seria baseado em pressupostos de natildeo imediatidade isto eacute para
chegarmos a emitir um juiacutezo certo e indubitaacutevel precisariacuteamos percorrer com nosso
entendimento diversas etapas que com certa praacutetica executariacuteamos numa velocidade
quase imperceptiacutevel Uma vez que para Descartes o entendimento soacute operaria em
conformidade com o intelecto natildeo se fiando nos sentidos para garantir certezas pois estes
seriam enganosos podemos dizer que ocorre o que chamaremos daqui para frente de
ldquoaniquilamento do corpordquo que significa justamente o abandono do conhecimento
imediato proporcionado pelos sentidos como certo e inquestionaacutevel No lugar deste
aniquilamento veremos que restaraacute uma ldquoracionalizaccedilatildeo dos processos epistemoloacutegicosrdquo
fortemente marcada pelo exerciacutecio de uma atividade intelectual que toma por fundamento
de busca pela verdade os atos do entendimento jaacute citados Todavia ao se considerar o ato
da deduccedilatildeo verificaremos que ainda haveraacute um problema lacunar que intitularemos por
ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo jaacute que conforme perceberemos restaratildeo espaccedilos entre
uma deduccedilatildeo e outra que passaratildeo sequencialmente desapercebidos O autor em questatildeo
tentou apresentar meios de solucionar esse problema poreacutem visivelmente ineficientes
Com Francis Bacon observaremos um avanccedilo epistemoloacutegico quanto ao
emprego do meacutetodo que eacute uma ldquoreconciliaccedilatildeo do corpo com o espiacuteritordquo ou se
preferirmos com a alma No Novo Oacuterganon ele proporaacute um meacutetodo empiacutericonatural
embasado nos sentidos Neste momento a razatildeo por si soacute natildeo poderaacute mais operar
sozinha sem ferramentas entatildeo teremos a ldquoressucitaccedilatildeo do corpo nos processos
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epistemoloacutegicosrdquoA partir de Thomas Hobbes (1558-1679) observaremos outros avanccedilos
epistemoloacutegicos interessantes acerca do uso do meacutetodo na investigaccedilatildeo da verdade
partindo de uma cooperaccedilatildeo natural entre corpo e espiacuterito inseridos numa situaccedilatildeo mais
praacutetica a da vida poliacutetica O meacutetodo seraacute utilizado com a finalidade de se estabelecer uma
vida poliacutetica mais sustentaacutevel Todavia neste artigo tentaremos sustentar que as maiores
inovaccedilotildees acerca do meacutetodo foram feitas de fato por Gottlob Frege (1848-1925) em sua
Conceitografia
A fim de banir o problema das lacunas que pudessem eventualmente estarem
presentes nas cadeias inferenciais que aqui consideraremos como uma nova acepccedilatildeo mais
contemporacircnea ao que Descartes considerava como cadeias dedutivas Frege
provavelmente numa certa via deu continuidade aos avanccedilos epistemoloacutegicos quanto ao
uso do meacutetodo Sendo assim neste artigo vamos expor os avanccedilos epistemoloacutegicos no
que diz respeito a utilizaccedilatildeo do meacutetodo de forma pontual ao longo da modernidade a
comeccedilar de Descartes Bacon e Hobbes Daiacute apontaremos alguns indiacutecios sobre como
Frege tentou lidar com o problema do espaccedilo epistecircmico que assolou o meacutetodo ao longo
da modernidade bem como sob qual(is) aspecto(s) podemos considerar a conceitografia
fregeana como uma continuidade do meacutetodo cartesiano ainda que de forma natildeo
conclusiva
Consideraccedilotildees acerca do dualismo cartesiano corpo e espiacuterito
Neste ponto faz-se importante comentar o que Reneacute Descartes entendia por
corpo e espiacuterito 2No sexto paraacutegrafo da ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo o autor nos oferece uma
noccedilatildeo de corpo
ldquo (hellip) por corpo entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaccedilo de tal sorte que todo outro corpo dele seja excluiacutedo que pode ser sentido ou pelo tato ou pela visatildeo ou pela audiccedilatildeo ou pelo olfato que pode ser movido de muitas maneiras natildeo por si mesmo mas por algo de alheio pelo qual seja tocado e do qual receba a impressatildeordquo3
O corpo no sistema cartesiano eacute tido como uma substacircncia material sujeita
a afetaccedilotildees por parte de objetos dos quais detenha percepccedilotildees por meio de um processo
2 Procuraremos aqui tratar ldquoespiacuteritordquo e ldquoalmardquo como sinocircnimos no sistema cartesiano Logo o dualismo corpo-alma e corpo-espiacuterito significaratildeo a mesma coisa 3 DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo sect6 p 127
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imediato4 Ele ocuparia um lugar no espaccedilo por isso seria considerado mateacuteria O calor
interno que circula dentro de noacutes ao realizarmos movimentos bem como todas as nossas
funccedilotildees fisioloacutegicas estariam sob responsabilidade do corpo Logo quando este se
corrompe seus movimentos cessam jaacute que natildeo seriam condizentes com a alma Sendo
assim nossa mortalidade estaria atrelada ao corpoque seria uma extensatildeo delimitada e
finita Nossos sentidos especialmente no processo de conhecimento soacute poderiam ser
exercidos mediante a accedilatildeo do corpo que nos transmitiria por meio de interaccedilotildees nervosas
internas as percepccedilotildees a alma Desse modo nossas accedilotildees seriam regidas pelo corpo que
por vezes dependeriam das paixotildees para ocorrer ou seja da almaporeacutem nem sempre
ldquo () devemos crer que todo calor e todos os movimentos em noacutes existentes na medida
em que natildeo dependem do pensamento pertencem apenas ao corpo5rdquoPor meio de uma
fisiologia largamente detalhada Descartes busca explicitar as funccedilotildees do corpo em As
Paixotildees da Alma tal como o movimento do coraccedilatildeo o percurso dos espiacuteritos animais e
suas contribuiccedilotildees para a movimentaccedilatildeo corporal e o exerciacutecio dos sentidos No entanto
neste artigo evitaremos entrar nestes meacuteritos por julgarmos como irrelevantes para
presente discussatildeo que estaacute sendo desenvolvida
A alma por sua vez estaria detida dentro de uma ldquomaacutequina corporalrdquo natildeo
sendo responsaacutevel nem por sua formaccedilatildeo tampouco por sua conservaccedilatildeo Corresponderia
a uma substacircncia intelectual da qual o pensamento dependeria Sua funccedilatildeo eacute lidar com
dois gecircneros de pensamentos as accedilotildees da alma (ou intelectivas) e as paixotildees Entatildeo o
fim do corpo natildeo determinaria o fim da alma embora se comuniquem entre si Ao findar
o corpo este tatildeo somente se separa da alma revelando sua natureza de efemeridade que
aprisiona dentro de si o que possui caracteriacutesticas capazes de contemplar o que eacute eterno
Sendo assim falar de dualismo cartesiano eacute mostrar como essa conjugaccedilatildeo interativa
ldquoalma-corpordquo se revela em seu aspecto determinista mais fundamental Isto eacute a
mortalidade humana bem como sua capacidade finita seria determinada pelo corpo Jaacute a
alma sendo dotada de ideias inatas de perfeiccedilatildeo e infinitude por exemplo possibilitaria
a contemplaccedilatildeo humana do infinito mesmo aprisionada num lugar de finitude Desse
modo por conseguir transcender as limitaccedilotildees do espaccedilo a alma conseguiria possibilitar
a humanidade a expectativa de ajuizar acerca do universal por mais que natildeo se saiba a
medida exata da proacutepria universalidade E neste ponto eacute de suma importacircncia ter feito
4 Ver mais em DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo 5 DESCARTES As Paixotildees da Alma ldquoPrimeira Parterdquo artigo 4 p296
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essas consideraccedilotildees acerca do dualismo cartesiano para compreendermos o
funcionamento do meacutetodo
O meacutetodo cartesiano
Em Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito vemos que o meacutetodo eacute um conjunto
de regras a serem observadas durante o processo de conhecimento e descoberta da
verdade especialmente no caso cientiacutefico O meacutetodo seria inerente a nossa natureza
humana e nosso entendimento operaria em conformidade com ele Por sua vezo meacutetodo
seria aplicaacutevel a todas as ciecircncias em conjunto de forma indissociaacutevel de maneira
idecircntica e universal ou seja de acordo com a mathesis universalis Na ldquoRegra Irdquo da
obra mencionada o autor defende que as ciecircncias ao contraacuterio das artes seriam
inseparaacuteveis podendo ateacute mesmo serem exercidas com excelecircncia em conjunto
diferentemente das artes mecacircnicas e manuais que exigiriam extrema especializaccedilatildeo Daiacute
adviria a possibilidade dessa mathesis isto eacute de uma universalizaccedilatildeo das ciecircncias no
sentido de existir um conjunto de regras (meacutetodo) passiacutevel de ser aplicado a todas elas
Logo as ciecircncias natildeo deveriam ser mutuamente exclusivas Ao se conhecer a verdade de
uma determinada ciecircncia esta nos ajudaria a alcanccedilar a verdade de uma outra ciecircncia
O meacutetodo seria necessaacuterio para dirigir a razatildeo em busca pela verdade Por
meio dele poderiacuteamos atingir a formulaccedilatildeo de juiacutezos firmes e verdadeiros Nossa razatildeo
neste sistema ainda deveria estar subordinada ao que Descartes chamava de ldquobom sensordquo
ou ldquouniversal sabedoriardquo que estabeleceria os limites maacuteximos de ateacute onde podemos
conhecer Contudo ele ressalta que deveriacuteamos retomar a praacutetica contemplativa de
ldquoconhecer por conhecerrdquo ou seja ldquodevemos apreciar as coisas por si mesmas e natildeo por
sua contribuiccedilatildeordquo6 Isso quer dizer que natildeo deveriacuteamos empenhar forccedilas em descobrir
verdades em face de algum aspecto utilitaacuterio mas sim exercer a atividade intelectual por
exercer por mera contemplaccedilatildeo e amor ao saber em conformidade com o ldquobom sensordquoO
meacutetodo tambeacutem orientaria como o espiacuterito deveria se valer da intuiccedilatildeo e deduccedilatildeo no
processo de conhecimento
As deduccedilotildees seriam certezas extraiacutedas da intuiccedilatildeo caracterizadas por serem
complexas e dependentes de outras deduccedilotildees ou intuiccedilatildeo Nenhuma deduccedilatildeo teria
evidecircncia atual e permitiria a construccedilatildeo da cadeia de conhecimentos ou se preferirmos
6 DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra IIrdquo
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dizer de verdades ou num termo mais contemporacircneo de inferecircncias Seria responsaacutevel
tambeacutem pela apreensatildeo dos objetos do conhecimento bem como das relaccedilotildees cognitivas
entre os objetos no interior de um campo cientiacutefico por exemplo A intuiccedilatildeo seria o que
haacute de mais simples a primeira certeza capaz de inaugurar uma cadeia de deduccedilotildees
concebida como pura e distinta pelo espiacuterito proveniente da ldquoluz da razatildeordquo7A intuiccedilatildeo
por ser mais simples que a deduccedilatildeo eacute mais indubitaacutevel
O meacutetodo cartesiano portanto seria por fim o resultado de uma reflexatildeo
profunda de forma elaborada e natildeo espontacircnea daiacute seu caraacuteter natildeo imediato Por isso
representa o prolongamento dos poderes naturais da razatildeo presentes em noacutes E ainda de
acordo com Descartes o meacutetodo operaraacute de acordo com dois movimentos do espiacuterito e
satildeo eles a anaacutelise e a siacutentese Tais movimentos jaacute teriam sido vistos e ilustrados pela
matemaacutetica grega a partir de Pappus e Diophanto8 No entanto eacute vaacutelido ressaltar que
embora pudessem ser considerados em conjunto um tipo de meacutetodo combinado 9
devemos lembrar que sua essencialidade quanto agrave aplicaccedilatildeo natildeo eacute vaacutelida exclusivamente
para matemaacutetica Tendo em vista que a aritmeacutetica e a geometria seriam tidas como
ciecircncias simples foi possiacutevel se perceber com mais clareza que o meacutetodo isto eacute operar
de acordo com ele faz parte de nossa natureza humana sendo um princiacutepio inato
Descartes retoma o meacutetodo combinado a fim de propor uma aplicaccedilatildeo do mesmo
uniforme e universalmente possiacutevel a todas as ciecircncias Para tanto retoma-se a anaacutelise
problemaacutetica a teoacuterica e a siacutentese
Segundo Descartes embora o espiacuterito humano tivesse o haacutebito de
desvencilhar do que eacute simples e faacutecil haveria dois fatores essenciais para se garantir o
bom funcionamento do meacutetodo a fim de que nossa ldquoluz naturalrdquo ou ldquouniversal sabedoriardquo
natildeo fosse ofuscada a ordem e a medida A ordem porque nosso intelecto deveria partir
de objetos simples ateacute chegar aos mais complexos isto considerando todas as suas partes
e etapas de acordo com os movimentos antes jaacute ilustrados pela matemaacutetica A medida
seria uma caracteriacutestica tiacutepica da mathesis universalis (Matemaacutetica Universal) que
estipularia criteacuterios de homogenizaccedilatildeo dos objetos entre si em disposiccedilatildeo com as ciecircncias
jaacute que teriam a mesma natureza comum reconheciacutevel Sendo assim tanto a ordem quanto
a inteligibilidade seriam requisitos baacutesicos para que todo e qualquer objeto pudesse ser
7 Significava o mesmo que Descartes chamava de ldquoluz naturalrdquo 8 DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra VIrdquo Ver mais detalhes sobre o meacutetodo de anaacutelise e siacutentese em Pappus e Diophanto em HEATH A History of Greek Mathematics pp 400-405 9 LOPARIC Descartes Heuriacutestico pp 136-142
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tratado pelo intelecto Neste sentido conhecer de acordo com o meacutetodo significaria
ordenar e medir os objetos com a razatildeo Logo deveriam permitir serem homogenizados
pela ldquoluz da razatildeordquo bem como o conhecimento natildeo poderia ultrapassar as delimitaccedilotildees
colocadas pela ordem e medida uma vez que estas satildeo imprescindiacuteveis ao funcionamento
adequado do meacutetodo
Vimos no ponto anterior que por meio de certas da alma poderiacuteamos
contemplar a infinitude estando na finitude o que nos possibilitaria a contemplaccedilatildeo da
universalidade que seria tida como simples e absoluta por ser faacutecil ou ao menos
alimentaria em noacutes estas expectativas de conhecimento Todavia agora observamos que
a nossa razatildeo nos processos epistemoloacutegicos natildeo deve exceder a certos limites pois caso
contraacuterio poderaacute infringir o meacutetodo Sendo assim cabe ressaltar aqui que temos apenas
a possibilidade de contemplar a ideia de infinitude e aspectos de universalidade contudo
isto natildeo significa ajuizar acerca do que natildeo eacute alcanccedilaacutevel pela nossa razatildeo Esta
possibilidade simbolizaria antes de mais nada a nossa capacidade de contemplar certas
ideias condizentes com a imortalidade mesmo aprisionados num corpo mortal sem
evidecircncias claras jaacute que este corpo eacute regido pelos sentidos que conforme visto nas
Meditaccedilotildees Metafiacutesicas seriam enganosos e ilusoacuterios10 capazes de deturpar a razatildeo se
esta natildeo estivesse agindo de acordo com o bom senso A fim de fomentar esse engano
mediante a colocaccedilatildeo estrateacutegica da Duacutevida Hiperboacutelica na obra citada Descartes incorre
num ceticismo radical negador do corpo Isto eacute que rejeita como certo e indubitaacutevel todo
e qualquer conhecimento adquirido por meio dos sentidos
No entanto considerando-se a contemplaccedilatildeo como mera possibilidade vecirc-se
um impasse no sistema cartesiano como afirmar que se pode alcanccedilar a certeza e a
evidecircncia tendo um intelecto preso ao corpo No comeccedilo deste artigo abordamos esta
questatildeo sob um outro acircngulo quando foi abordado o ldquoaniquilamento do corpo nos
processos epistemoloacutegicosrdquo Eis a resoluccedilatildeo para esse impasse racionalizar o processo
de conhecimento desconsiderando os possiacuteveis ludibriamentos que os nossos sentidos
podem imprimir em noacutes por meio da materialidade Assim se daraacute esse aniquilamento
No entanto verificaremos mais adiante com o meacutetodo empiacutericonatural de Bacon que o
ldquoaniquilamento do corpo nos processos epistemoloacutegicosrdquo de forma integral se apresenta
como algo inviaacutevel Temos assim uma marca de avanccedilo traga pelo meacutetodo baconiano a
ldquoressuscitaccedilatildeo do corpordquo e seu casamento com o espiacuterito
10 DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo
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O problema do espaccedilo epistecircmico
Segundo Descartes o meacutetodo em si natildeo apresentaria problemas tampouco
existiria a possibilidade de se fazer intelectualmente uma deduccedilatildeo mal feita se
operaacutessemos o meacutetodo detendo-nos em coisas faacuteceis jaacute que seriam mais acessiacuteveis pelo
espiacuterito Aqui deve-se entender por faacutecil aquilo que natildeo eacute composto mas sim
independente Nenhuma concepccedilatildeo duvidosa poderia surgir jaacute que de acordo com nossa
proacutepria natureza agiriacuteamos conforme o meacutetodo e o ldquobom sensordquo a natildeo ser que os
suspendecircssemos Aleacutem disso nos processos epistemoloacutegicos em conformidade com o
meacutetodo temos a recomendaccedilatildeo cartesiana de natildeo prosseguirmos diante de algo complexo
caso ainda tenhamos duacutevida quanto sua natureza11 Contudo apesar desses pressupostos
e recomendaccedilotildees vemos que ainda natildeo haacute clareza quanto ao ordenamento das cadeias
dedutivas cartesianas Chamarei essa falta de clareza de ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo
Numa cadeia cartesiana de deduccedilotildees podemos perceber uma certa ausecircncia
de clareza quanto ao limite seguro espacial que uma deduccedilatildeo deve ter em relaccedilatildeo a outra
Por mais que tentemos clarificar a natureza de todas as coisas envolvidas no processo
dedutivo nos deparamos com a ausecircncia de um criteacuterio espacial bem delimitado e preciso
quanto a distacircncia que uma deduccedilatildeo deve ter da outra Se por exemplo quisermos
determinar se a velocidade da luz eacute a mais raacutepida se demandaria a investigaccedilatildeo de vaacuterias
outras naturezas tais como a da luz a velocidade a da rapidez e entre outras Cada
natureza analisada provavelmente demandaria a anaacutelise de uma outra natureza No fim
de nossa anaacutelise eacute quase certo que a encerrariacuteamos sem a certeza absoluta de que estamos
certos e de que atingimos algum grau de verdade Quantas deduccedilotildees precisariacuteamos fazer
para chegar a criteacuterios seguros quanto a velocidade da luz Isto parece a primeira vista
bastante incerto aleacutem de demandar outros criteacuterios mais seguros que determinem o
espaccedilo que deve haver entre uma deduccedilatildeo e outra Veremos a seguir que Bacon natildeo faraacute
muitos avanccedilos quanto a esta questatildeo especificamente contudo seus adendos
colaboraratildeo para a nossa hipoacutetese inicial de um avanccedilo gradual quanto a aplicabilidade
epistemoloacutegica do meacutetodo O ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo seraacute solucionado com
mais clareza a partir das inovaccedilotildees fregeanas apresentadas na Conceitografia
11 BACON Novo Oacuterganon ldquoPrefaacuteciordquo
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O meacutetodo empiacutericonatural
O meacutetodo empiacutericonatural de Bacon buscou conciliar o papel do corpo e do
espiacuterito nos processos epistemoloacutegicos promovendo o ldquoeterno casamentordquo das
faculdades racionais com os sentidos ressuscitando o corpo O principal movimento do
corpo e do espiacuterito quanto a esse meacutetodo seraacute a induccedilatildeo Aqui ela teraacute uma acepccedilatildeo
distinta da enumeraccedilatildeo suficiente jaacute vista no sistema cartesiano12 Seraacute tida como o meio
mais adequado de conduzir o corpo e o espiacuterito natildeo soacute por respeitar o papel dos sentidos
no processo de conhecimento como por tornar o ser humano obediente a natureza O
intelecto por natildeo ter contato imediato com a natureza que eacute a nossa uacutenica possibilidade
concreta de conhecimento perfeito seria mais propenso a erros do que os sentidos A
partir disso Bacon inauguraraacute um modo de operar o conhecimento mais condizente com
as limitaccedilotildees de nossa mortalidade e humanidade que tem por marca a inacessibilidade
imediata frente ao universal e o infinito Logo estabeleceraacute que na verdade ao contraacuterio
do que se pressupunha no meacutetodo cartesiano devemos partir dos particulares e natildeo dos
universais jaacute que estes natildeo seriam condizentes com os limites humanos dos sentidos
A induccedilatildeo baconiana aleacutem de seguir um movimento oposto ao da
demonstraccedilatildeo convencional valia-se de axiomas para compor por etapas a passagem dos
conhecimentos particulares aos universais isto eacute das proposiccedilotildees mais complexas as
mais simples de ordem geral De acordo com Bacon por meio da deduccedilatildeo natildeo
conseguiriacuteamos conhecer a natureza com clareza jaacute que esta pressuporia o ldquointelecto nurdquo
ou seja despido dos sentidos A induccedilatildeo deveria ser tomada como ponto de partida do
conhecimento sem a expectativa de se deparar apenas com a simplicidade ordenadora
tal como a do meacutetodo cartesiano Conhecer a natureza natildeo seria faacutecil todavia com o
meacutetodo indutivo conseguiriacuteamos dividir o todo complexo que se apresenta diante de noacutes
em partes possibilitando deste modo uma anaacutelise mais minuciosa e em seguida o acesso
a conhecer as coisas
O intelecto por ser afetaacutevel por emoccedilotildees e crenccedilas seria tatildeo duvidoso quanto
os sentidos13 Diga-se de passagem que dado o distanciamento do intelecto em relaccedilatildeo a
natureza este chegaria seria ainda mais propenso a erros que os sentidos Dada a relaccedilatildeo
intriacutenseca do conhecimento com a natureza no sistema baconiano ao contraacuterio do
12 Ver mais sobre enumeraccedilatildeo suficiente em DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra VIrdquo E a criacutetica de Bacon a enumeraccedilatildeo suficiente em BACON Novo Oacuterganon ldquoPlano da Obrardquo sect1 13 BACON Novo Oacuterganon ldquoLivro Irdquo ldquoAforismo XLIXrdquo
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ldquoconhecimento por conhecerrdquo proposto pelo sistema cartesiano teremos um
ldquoconhecimento parardquo o que significa obter conhecimento visando fins utilitaacuterios Um
desses fins que podemos observar no ldquoPrefaacuteciordquo do Novo Oacuterganon seraacute o de usar o
conhecimento em benefiacutecio da vida para conduzi-la com caridade isto eacute de acordo com
os valores eacuteticos morais e cristatildeos Logo o conhecimento estaria relacionado agrave aquisiccedilatildeo
desses valores a fim de se conduzir a vida humana com mais dignidade
A deduccedilatildeo no sistema baconiano poderia nos conduzir ao ldquoobscurecimento
do globo celesterdquo jaacute que utilizariacuteamos o intelecto de forma especulativa ignorando os
sentidos que satildeo capazes de acessar a natureza diretamente Somente por meio da
empiria que direcionariacuteamos a nossa razatildeo por vias seguras condizentes com a sabedoria
universal que teria um quecirc de divino Natildeo respeitar a ordem natural significaria
obscurecer os processos epistemoloacutegicos optando por vias especulativas Num certo
aspecto o meacutetodo baconiano limitaria o exerciacutecio de nossa razatildeo jaacute que ela teria de
exercer ser esforccedilo intelectual a partir da natureza Outro objetivo desse meacutetodo aleacutem da
conciliaccedilatildeo mencionada foi o de eliminar os iacutedolos14
Os iacutedolos poderiam ser entendidos por ilusotildees impressas na razatildeo
principalmente quando a mente 15 sofre alteraccedilotildees em seu funcionamento graccedilas a
afetaccedilotildees oriundas das percepccedilotildees adquiridas a partir dos sentidos podendo ser inatos ou
artificiais Os inatos seriam inerentes ao proacuteprio intelecto enquanto os artificiais inseridos
na mente humana a partir de doutrinaccedilotildees externas e crenccedilas Os iacutedolos inatos segundo
Bacon natildeo poderiam ser eliminados da mente daiacute a importacircncia de um meacutetodo
empiacutericonatural indutivo que concilie as faculdades empiacutericas com as racionais O
meacutetodo baconiano seraacute chamado pelo proacuteprio autor de Interpretaccedilatildeo da Natureza
enquanto o ldquomeacutetodo antigordquo de Antecipaccedilatildeo da Mente
Um dos avanccedilos que o meacutetodo baconiano nos trouxe foi o de tomar a
particularidade como ponto de partida para a anaacutelise da verdade e a aquisiccedilatildeo de
conhecimento mesmo diante de uma complexidade residida na necessidade de um certo
nuacutemero de axiomas para tornar um dado processo epistemoloacutegico mais gradual Tal
avanccedilo eacute importante pois veremos que no sistema de Frege a necessidade de um mesmo
ponto de partida especialmente se considerarmos sua teoria da prova Outros avanccedilos
14 Traduccedilatildeo do termo baconiano idola Podemos tambeacutem traduzir este termo por ldquoilusatildeordquo pois significaria justamente a aquisiccedilatildeo de uma ideia fictiacutecia proveniente de um certo ludibriamento sofrido pela razatildeo 15 Mente em Bacon natildeo se diferencia muito de razatildeo por isso tomarei ambos termos como sinocircnimos um do outro Podemos dizer de forma redundante que a mente para ele eacute a razatildeo em exerciacutecio
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importantes que podemos verificar eacute o reconhecimento dos possiacuteveis impasses que a
linguagem natural pode incutir no meacutetodo a partir de sua utilizaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do
que eacute exterior a noacutes intervir no bom curso e exerciacutecio da razatildeo
No ldquoAforismo XLIVrdquo do ldquoLivro Irdquo de Novo Oacuterganon Bacon jaacute enunciaraacute um
dos maiores impasses que a linguagem colocaraacute ao meacutetodo a imprecisatildeo terminoloacutegica
O silogismo por ser composto de proposiccedilotildees que consistem de palavras de acordo com
o autor seriam pouco seguros caso fossem tomados por fundamento jaacute que satildeo
permutaacuteveis por noccedilotildees que podem ser abstratas e pouco claras para a ciecircncia Por isso
a induccedilatildeo se faria necessaacuteria uma vez que o silogismo natildeo se referia as coisas em si mas
a seus roacutetulos Logo o silogismo natildeo seria uacutetil para se investigar a verdade
O meacutetodo hobbesiano
O meacutetodo hobbesiano buscou retomar o status prioritaacuterio da razatildeo nos
processos epistemoloacutegicos contudo sem ldquoaniquilar o corpordquo A razatildeo ganha um papel de
destaque ao ser igualada a proacutepria Filosofia que estaria inserida dentro de noacutes Propondo
um meacutetodo condizente com a criaccedilatildeo do mundo isto eacute que seguia a ordem da criaccedilatildeo
(luz distinccedilatildeo entre dia e noite firmamento criaturas celestes criaturas sensiacuteveis e
homem) Hobbes buscou estabelecer uma ordem contemplativa que nos fosse adequada
para o exerciacutecio explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo de nossa sabedoria de forma analoacutegica a
estrutura do mundo A Filosofia em sua maacutexima seria consoante ao meacutetodo jaacute que teria
por pressuposto principal a ldquouniatildeo eterna e vigorosa com o mundordquo De acordo com
Hobbes a Filosofia eacute inata em todos os homens jaacute que corresponde a razatildeo natural
contudo para que esta natildeo se desvie dos caminhos corretos precisaria de um meacutetodo
efetivo Muitas vezes como os homens se contentam com a experiecircncia cotidiana como
fundamento para uma indubitabilidade um meacutetodo seria posto de lado o que eacute uma falha
O autor nos oferece uma definiccedilatildeo de Filosofia em Do Corpo dizendo que
ela eacute o conhecimento adquirido pelo reto raciociacutenio dos Efeitos ou Fenocircmenos a partir
das Causas e Geraccedilotildees e vice-versa Haveriam coisas importantes a serem analisadas
nessa definiccedilatildeo todavia ficaremos apenas com a primeira delas onde se dariam essas
Causas e Efeitos Hobbes nos diz que natildeo haacute nada inteiramente imaterial tudo precisa de
um corpo para ser passiacutevel de ser reconhecido ainda que natildeo estejamos falando
exatamente de um corpo fiacutesico Sem corpo natildeo pode haver raciociacutenio pois o princiacutepio
baacutesico que todas as ciecircncias deviam dominar era de como se mede os corpos e seus
173
respectivos movimentos A Filosofia seria uma ferramenta uacutetil para usarmos os Efeitos
dos corpos com comodidade16Em seu exerciacutecio ela pressuporia raciociacutenio que eacute visto
como um caacutelculo onde as principais operaccedilotildees da razatildeo a fim de que ela aja de acordo
com o meacutetodo seraacute a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo Por isso podemos chamar o meacutetodo
hobbesiano de racionalizante Um raciociacutenio neste meacutetodo natildeo tomaria por base apenas
palavras ou nuacutemeros mas corpos movimentos tempos graus e entre outros A adiccedilatildeo e
a subtraccedilatildeo serviriam para reunir distinguir e separar conceitos Para ilustrar isso na
primeira parte de Do Corpo Hobbes nos daacute o exemplo de ldquohomem racionalrdquo que pode
ser desdobrado pelo proacuteprio meacutetodo racionalizante que ele propotildee por meio da
decomposiccedilatildeo dos conceitos ldquohomemrdquo ldquoanimadordquo e ldquoracionalrdquo que juntos somados pela
adiccedilatildeo formam uma soacute noccedilatildeo ldquohomem racionalrdquo
O meacutetodo racionalizante nos traraacute algumas inovaccedilotildees Primeiro a
consideraccedilatildeo de que o que eacute adquirido de forma imediata pela natureza natildeo eacute raciociacutenio
porque a conquista da verdade e firmeza da razatildeo depende da Filosofia atrelada a um bom
meacutetodo Segundo que a experiecircncia natildeo pode ser equiparaacutevel ao raciociacutenio jaacute que eacute soacute
memoacuteria e natildeo consegue reunir ou compor conceitos Terceiro o rompimento com
aspectos teoloacutegicos jaacute que as divindades natildeo poderiam ser conhecidas pela razatildeo mas
eram relativas a questotildees de feacute Tambeacutem natildeo poderiacuteamos aplicar nenhum tipo de anaacutelise
baseada em divisatildeo ou decomposiccedilatildeo de partes jaacute que nada originariamente as concebem
As inovaccedilotildees da conceitografia fregeana quanto meacutetodo
Frege no ldquoPrefaacuteciordquo da Conceitografia ressalta que a linguagem formular do
pensamento puro ou ideografia tem em sua execuccedilatildeo o intento de atender a certos
propoacutesitos cientiacuteficos um deles a saber seria o de minorizar as mazelas da linguagem
natural que possivelmente estaria permeando o discurso cientiacutefico Portanto tal ideografia
natildeo deveria ser posta de lado caso natildeo servisse como ldquomeacutetodordquo para outras finalidades17
Logo busca delimitar seu uso de modo a consideraacute-la como ferramenta uacutetil para
examinar de forma mais detida e detalhada cadeias de inferecircncia sem que estas sejam
obscurecidas pelos obstaacuteculos impostos a algum grau de precisatildeo e clareza colocados pela
linguagem corrente (natural) jaacute que ela deixaria lacunas inevitaacuteveis Nisto Frege propocircs
16 HOBBES Do Corpo ldquoparte 1- Caacuteculo ou Loacutegicardquo capiacutetulo 1 sect 6 a 8
17 FREGE Conceitografia ldquoPrefaacuteciordquo
174
a elaboraccedilatildeo de uma linguagem formular para o pensamento puro que trata de conteuacutedos
conceituais a fim de desfazer a ambiguidade gerada a partir do uso equiacutevoco de sinais
que pudessem designar tanto um conceito quanto o objeto que recaiacutesse sobre um conceito
Desse modo elaborou-se uma lingua characterica onde signos especiacuteficos pudessem ser
manipulados de acordo com regras definidas Juntamente com a concepccedilatildeo desta
linguagem busca-se novos fundamentos para uma ldquonova Sintaxerdquo isto eacute o abandono da
estrutura claacutessica sujeito-predicado aristoteacutelica em prol da noccedilatildeo de funccedilatildeo e argumento
a fim de aumentar ainda mais a precisatildeo discursiva especialmente no que tange o discurso
cientiacutefico
Ao realizar as devidas correccedilotildees quanto aos equiacutevocos comumente expressos
pela linguagem Frege procurou estabelecer um sistema que natildeo soacute desse conta da
imprecisatildeo vista na linguagem natural como tambeacutem de fundamentar uma base
epistemoloacutegica soacutelida para a ciecircncia Essa base ao se valer de um pressuposto de
particularidade foi extremamente uacutetil para solucionar o problema do espaccedilo epistecircmico
suscitado desde o iniacutecio do meacutetodo cartesiano Ao considerarmos a hipoacutetese natildeo
conclusiva de que a conceitografia fregeana serviria como uma restriccedilatildeo provisoacuteria tanto
para pretensotildees universalistas quanto para a fundamentaccedilatildeo mais soacutelida da ciecircncia a
partir de uma particularidade escapando desde da mathesis universalis cartesiana ao
ldquodescobrir facilmente algordquo de Bacon constataremos que Frege por meio do
oferecimento de ferramentas que combatem a proacutepria insuficiecircncia da linguagem natural
em lidar com o problema lacunar (isto principalmente se considerarmos o emprego da
deduccedilatildeo nos processos epistemoloacutegicos) trouxe uma das maiores inovaccedilotildees quanto ao
uso do meacutetodo jaacute vistas a restriccedilatildeo provisoacuteria
Entendemos aqui a restriccedilatildeo provisoacuteria pela limitaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de um
sistema em foacutermulas e escopos especiacuteficos a fim de evitar eventuais problemas que
possam surgir numa aplicaccedilatildeo mais aberta o que foi feito por Frege em seu sistema
supracitado Por meio dela ainda foi possiacutevel deslocar a linguagem de um patamar
gramatical para o das leis loacutegicas em busca de precisatildeo que livre conclusotildees de alguma
generalidade pois construiu-se uma linguagem mais estaacutevel e menos evolutiva Frege
realizou isto valendo-se da palavra escrita jaacute que ela teria mais permanecircncia
possibilitando sua anaacutelise quantas vezes fosse necessaacuterio
Deste modo que o que chamamos de ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo na
verdade era um problema linguiacutestico que foi mais esclarecido a partir do uso de regras
especiacuteficas de manipulaccedilatildeo de signos presentes na conceitografia fregeana que visava
175
atingir um niacutevel de precisatildeo ao ponto de conseguir identificar lacunas presentes em nossas
cadeias inferenciais a fim de contornaacute-las Sendo assim encerraremos nossa exposiccedilatildeo
jaacute que o nosso maior objetivo era indicar apontamentos de motivos pelos quais podemos
considerar ou natildeo a conceitografia fregeana como meacutetodo sem pretensotildees de
elaborarmos conclusotildees mais definitivas
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
BACON F Novo Oacuterganon (Instauratio Magna)Satildeo Paulo Edipro 2014
DESCARTESRObra Escolhida Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1962
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LOPARIC Z Descartes Heuriacutestico Satildeo Paulo IFCH Unicamp 1997
DOIS SENTIDOS DE PARTICIPACcedilAtildeO EM PLATAtildeO
Otacilio Luciano de Sousa Neto1
RESUMO Este artigo visa observar a ocorrecircncia dos termos que dizem participaccedilatildeo nos passos 130b e 130e do Parmecircnides de Platatildeo com a finalidade de distinguir duas concepccedilotildees pouco explanadas nos estudos da ontologia platocircnica um sentido de participaccedilatildeo mutaacutevel no qual um ente pode tornar a participar de uma Forma e possuir um predicado e outro sentido de participaccedilatildeo eterno no qual um participante possui eternamente um predicado (eg o trecircs eacute sempre iacutempar) respectivamente associados aos termos μεταλαμβάνοντα e μετέχοντα Esta distinccedilatildeo se torna mais clara em 155e e pode ser encontrada em outros momentos dos diaacutelogos platocircnicos como por exemplo no Feacutedon Palavras-chave Platatildeo Parmecircnides participaccedilatildeo
ABSTRACT This paper aims to observe the occurrence of terms that say participation in steps 130b and 130e of Platos Parmenides in order to distinguish two conceptions poorly explained in the studies of Platonic ontology a sense of changeable participation which an entity can begin to partake in a Form and get a predicate and another sense of eternal participation in which a participant eternally possesses a predicate (eg three is always odd) respectively associated with the terms μεταλαμβάνοντα and μετέχοντα This distinction becomes clearer in 155e and can be found elsewhere in the Platonic dialogues as for example in the Phaedo Keywords Plato Parmenides participation
Satildeo curiosas as maneiras que aparecem os termos participaccedilatildeo nas passagens
das aporias da participaccedilatildeo e no Parmecircnides como um todo Assim sendo nossa tarefa
eacute investigar estes termos questionando o que eacute participaccedilatildeo
Para que se entenda a participaccedilatildeo jaacute de iniacutecio eacute interessante observar certas
passagens nas quais Parmecircnides pergunta a Soacutecrates como se daacute a participaccedilatildeo Lecirc-se
Mas dize-me tu mesmo assim fizeste a divisatildeo tal como falas de um lado certas formas mesmas de outro as coisas que delas participam E te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada do que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo2 (PLATAtildeO Parmecircnides 130b)
1 Mestrando em filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute 2 καί μοι εἰπέ αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς μὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ μετέχοντα καί τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁμοιότης χωρὶς ἧς ἡμεῖς ὁμοιότητος ἔχομεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες
177
De antematildeo eacute possiacutevel homologar uma determinada concepccedilatildeo questionada
por Parmecircnides As Formas estatildeo separadas [χωρὶς] das coisas de que delas participam
Parmecircnides pergunta se as Formas satildeo separadas dos entes que delas participam A
resposta de Soacutecrates eacute afirmativa e portanto eacute posiccedilatildeo de Soacutecrates que as Formas satildeo
separadas dos participantes Isto natildeo quer dizer necessariamente que as Formas satildeo de
fato separadas dos itens que delas participam apenas quer dizer que Soacutecrates aceita tal
concepccedilatildeo neste momento do diaacutelogo
O problema da separaccedilatildeo em Platatildeo eacute muito discutido e nas proacuteximas
palavras natildeo cabe levantar novamente este problema3 Entretanto a passagem apresenta
que haacute Formas e coisas que delas participam [μετέχοντα] O termo μετέχοντα eacute particiacutepio
presente portanto natildeo indica necessariamente entes sensiacuteveis mas quaisquer coisas que
possa participar das Formas sejam entes sensiacuteveis accedilotildees e outras Formas4
Nada obstante algumas palavras depois a pergunta eacute refeita com algumas
alteraccedilotildees Vecirc-se
[hellip] Mas dize-me o seguinte parece-te como dizes haver certas formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na grandeza grandes se no belo e na justiccedila justas e belas5 (PLATAtildeO Parmecircnides 130e - 131a)
Nesta nova passagem novidades satildeo expressas A primeira nova eacute de que as
coisas que participam das Formas recebem delas denominaccedilotildees [ἐπωνυμίας] Assim eacute
importante lembrar quando algo participa da Semelhanccedila este se torna semelhante
quando participa da Grandeza recebe o predicado grande e na Beleza e na Justiccedila recebe
os adjetivos belo e justo A outra novidade eacute o termo usado para dizer participaccedilatildeo
μεταλαμβάνοντα
Mas podem dois termos dizer o mesmo
Μεταμβάνειν eacute verbo na terceira pessoa do singular do presente do indicativo
da voz ativa originaacuterio do termo μεταλαμβάνω O termo μεταλαμβάνω pode ser
entendido primeiramente por ldquoter ou obter uma parte participarrdquo Este sentido guarda a
3 Para ampliar a discussatildeo deste problema conferir FUJISAWA 1974 Conferir tambeacutem FINE 2003 pp 252-301 NETO 2016 4 Cf PLATAtildeO Repuacuteblica 476a 5 τόδε δ᾽ οὖν μοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα μεταλαμβάνοντα τὰς ἐπωνυμίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁμοιότητος μὲν μεταλαβόντα ὅμοια μεγέθους δὲ μεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι
178
possibilidade de ler μεταλαμβάνω apontando para ldquouma parte recebida ou adicionadardquo
Um segundo sentido aponta para algo que se ldquorecebe em sucessatildeo ou posteriormenterdquo
Outro sentido refere-se a algo que ldquose toma como alternativa que se toma em troca que
substituirdquo E em seu quarto sentido ldquoser mudadordquo6
Para μετέχειν natildeo aparecem tantos sentidos e os que aparecem natildeo satildeo
claramente uacuteteis O termo μετέχειν eacute o infinitivo presente da voz ativa do termo μετέχω
O termo μετέχω por sua vez tem como primeiro sentido apresentado ldquoparticipar ou
compartilhar emrdquo em outro sentido refere-se agraves ldquopartes adicionadasrdquo e mesmo ainda diz
respeito a ldquoser um parceirordquo7
Eacute claramente reconheciacutevel a gecircnese do termo μεταλαμβάνω como a junccedilatildeo
do prefixo ldquoμετάrdquo ao verbo ldquoλαμβάνωrdquo Tambeacutem eacute visiacutevel a associaccedilatildeo entre μετέχω
como a junccedilatildeo do termo ldquoμετάrdquo ao termo ldquoἔχωrdquo O prefixo ldquoμετάrdquo traz o sentido de
ldquojuntamente com entre pelo auxiacutelio derdquo O verbo ldquoλαμβάνωrdquo tem o sentido de ldquoagarrar
segurar levar consigo como precircmio ou espoacutelio pegar tomar em matildeos receber tomar
posse de apreender obter a posse derdquo O verbo ldquoἔχωrdquo traz entre seus sentidos ldquoter
segurar como uso mais comum possuir propriedade manter sustentar reter suportar ou
segurar para si mesmordquo
Sobre a distinccedilatildeo de μετέχω e μεταλαμβάνω satildeo pouquiacutessimas as palavras
que se podem facilmente encontrar Satildeo uacuteteis para o trabalho neste sentido apenas as
palavras de Cornford e Scolnicov8 Lecirc-se
Como no Feacutedon μεταλαμβάνειν (μετάσχεσις Feacutedon 101c μετάληψις Parm 131 a Aristotle cotado abaixo p 79) significa comeccedilar a participar quando a coisa se torna como (γίγνεσθαι) por outro lado μετέχειν eacute usado para ter uma participaccedilatildeo e corresponde a ser como (εἶναι) Mετέχειν e μεταλαμβάνειν satildeo claramente distinguidos novamente em 155E 11-156A 1 (CORNFORD F M 1939 p69 TRADUCcedilAtildeO NOSSA)9 Μεταλαμβάνει eacute o equivalente platonico a lsquotornar-sersquo jaacute enquanto μετέχει lsquotomar parte emrsquo ou lsquoparticipar emrsquo eacute equivalente ao predicado lsquoeacutersquo Eacute claro na tese de Soacutecrates(cf 128e5 ff acima p48) somente sensiacuteveis podem lsquovir a tomar parte emrsquo algo ou seja nas
6 CfLIDDEL H G SCOOT R 1996 7 IDEM ibidem 8 Fujisawa parece elucidar o problema Entretanto a distinccedilatildeo ressaltada por Fujisawa se daacute em maior forccedila para distinguir ἔχειν de μετέχειν e μεταλαμβάνειν E a distinccedilatildeo e o problema se daacute para defender a tese de caracteres imanentes e natildeo parece tratar profundamente sobre o problema da predicaccedilatildeo Cf FUSISAWA 1974 9 CORNFORD F M Plato and The Parmenides and Parmenidesrsquo Ways of Truth translation with a running comment p 69
179
Formas as quais satildeo diferentes deles (SCOLNICOV 2001 p56 TRADUCcedilAtildeO NOSSA)10
Na apresentaccedilatildeo de Scolnicov eacute claro que para o Soacutecrates do diaacutelogo a
participaccedilatildeo se daacute apenas em entes sensiacuteveis Entretanto natildeo se vecirc que esta tese pode ser
defendida por Parmecircnides uma vez que em suas perguntas ele apenas pergunta acerca
ldquodos participantesrdquo ou das ldquocoisas que das Formas participamrdquo Ainda assim Scolnicov
distingue μεταλαμβάνει de μετέχει associando o primeiro a ldquotornar-serdquo e o segundo a
ldquoserrdquo em sentido predicativo Natildeo suficiente as distinccedilotildees lexicais apresentadas por
Cornford nos termos μετέχω e μεταλαμβάνω relacionam μεταλαμβάνω a γίγνεσθαι e
μετέχω a εἶναι Presumivelmente Cornford e Scolnicov apresentam a mesma distinccedilatildeo e
mesma posiccedilatildeo acerca do problema Entretanto deve-se perguntar quais as razotildees que
fundamentam esta relaccedilatildeo
[155e] O um se eacute tal como discorremos sendo tanto um quanto muacuteltiplas coisas e natildeo sendo nem um nem muacuteltiplas coisas e participando do tempo [μετέχον] natildeo eacute necessaacuterio que ora porque eacute um participe [μετέχειν] da essecircncia [οὐσίας] e ora por outro lado porque natildeo eacute natildeo participe [μετέχειν] da essecircncia [οὐσίας] Eacute necessaacuterio Assim sendo quando participa [μετέχει] poderaacute nesse momento natildeo participar [μετέχειν] ou quando natildeo participa [μετέχει] participar [μετέχειν] Natildeo poderaacute Logo eacute em um tempo que ele participa [μετέχει] e eacute em outro que natildeo participa [μετέχοι] Pois somente desse modo poderia participar e natildeo participar [μετέχοι] [156a]Correto Assim sendo natildeo haveraacute tambeacutem aquele tempo em que ele entra em participaccedilatildeo [μεταλαμβάνει] com o ser e em que dele se afasta Ou como seraacute possiacutevel ora ter [ἔχειν] e ora natildeo ter [μὴ ἔχειν] a mesma coisa se jamais ele a apanhar [λαμβάνῃ] ou largar [ἀφίῃ] De modo nenhum seraacute possiacutevel E o entrar em participaccedilatildeo [μεταλαμβάνειν] com a essecircncia natildeo chamas vir-a-ser [γίγνεσθαι] Sim perfeitamente
10 SCOLNICOV Samuel Platorsquos Parmenides p 56
180
O um entatildeo como parece apanhando [λαμβάνον] e largando [ἀφιὲν] a essecircncia tanto vem a ser quanto perece (PLATAtildeO Parmecircnides 155e-156a)
A passagem acima apresenta um problema que poderia ser uma insoluacutevel
aporia da participaccedilatildeo
O que eacute apresentado de iniacutecio eacute uma determinada concepccedilatildeo acerca do um
o qual pode ser entendido ou bem ora como um ou bem ora como muitos ou muacuteltiplos
(πολλὰ) Todavia se o um pode ser ora entendido como um e ora como πολλὰ ora ele
pode natildeo ser entendido como um ora natildeo pode ser entendido como πολλὰ E participando
do tempo eacute necessaacuterio admitir que algum tipo de mudanccedila uma vez que um item (x) que
participa da forma (F) ora pode ser retentor de um predicado (f) em razatildeo da participaccedilatildeo
ora pode natildeo ter mais tal predicado (f) e portanto natildeo ser mais um participante da Forma
(F) O que se diz precisamente eacute o participante do tempo (μετέχον χρόνου) a um tempo
participa de uma propriedade (οὐσίας μετέχειν ποτέ) a outro tempo natildeo participa da
propriedade (μὴ μετέχειν αὖ ποτε οὐσίας)11
Seguindo esta anaacutelise o participante do tempo (μετέχον χρόνου) tendo como
motivo um soacute aspecto ser participante do tempo (μετέχον χρόνου) ora eacute participante ora
natildeo eacute participante da propriedade (οὐσίας) Isto eacute semelhante a posiccedilatildeo de Zenatildeo no
iniacutecio do diaacutelogo impossiacutevel Isto eacute impossiacutevel uma vez que eacute uma contradiccedilatildeo sob o
mesmo aspecto ser participante do tempo o participante eacute e natildeo eacute participante da
propriedade (οὐσίας) Assim sendo o tempo eacute causa de um participante possuir alguma
propriedade (beleza justiccedila etc) e natildeo possuir esta mesma propriedade Eacute claro como eacute
afirmado no diaacutelogo que natildeo poderaacute ldquoquando participa (μετέχει) () natildeo participar
(μετέχειν) ou quando natildeo participa (μετέχει) participar (μετέχειν) (PLATAtildeO
Parmecircnides 155e) rdquo
Eis uma aporia da participaccedilatildeo por participar no tempo algo eacute e natildeo eacute
Entretanto para esta haacute soluccedilatildeo A soluccedilatildeo eacute a instauraccedilatildeo de dois momentos temporais
(i) o momento em que participa e (ii) o momento em que natildeo participa O instaurar destes
dois momentos resolve a contradiccedilatildeo pois eacute em um momento que se diz que participa e
em outro momento distinto se diz que natildeo participa
11 Eacute possiacutevel entender a partir da Repuacuteblica 476a que aleacutem de entes sensiacuteveis eacute possiacutevel que accedilotildees Formas e predicados participem de Formas Neste caso contudo entende-se que participar em uma propriedade [οὐσίας] natildeo eacute outra coisa que natildeo possuir [ἔχειν] uma determinada propriedade em razatildeo da participaccedilatildeo na Forma Cf FUJISAWA 1974 Conferir tambeacutem NETO 2016
181
Ateacute entatildeo o uacutenico termo usado para dizer participaccedilatildeo nesta passagem eacute
μετέχω em suas devidas conjugaccedilotildees e ou declinaccedilotildees E eacute brilhante pois em grego a
uacuteltima palavra usada em 155e eacute μετέχοι Eis que acaba 155e comeccedila 156a e o termo
μετέχω nem mais iraacute surgir no argumento O termo usado agora para dizer participaccedilatildeo eacute
μεταλαμβάνω
Relembra-se μεταλαμβάνειν eacute distinto de μετέχειν O primeiro sob anaacutelise
lexical teria um sentido aproximado de ldquojuntamente com o agarrarrdquo o segundo
ldquojuntamente com o possuirrdquo Em contraposiccedilatildeo ao apanhar (λαμβάνω) tem-se o largar
(ἀφω)
Assim o ente entra em participaccedilatildeo (μεταλαμβάνει) e com isso ele apanha
(λαμβάνει) por participar (μεταλαμβάνει) determinada propriedade (οὐσία) e tecircm essa
propriedade (ἔχει) mas natildeo eternamente (como em μετέχω) mas por um tempo efecircmero
que dura apenas ateacute largar (ἀφει) a propriedade que retecircm na participaccedilatildeo e a participaccedilatildeo
(μεταλαμβάνει) cessar
Este sentido de participaccedilatildeo fugaz apresenta claramente a presenccedila do
conceito de ldquovir-a-serrdquo para a compreensatildeo de seu sentido e por vezes este conceito se
daacute grafado em grego atraveacutes do termo γίγνομαι Este caso certamente se daacute no Feacutedon
na emblemaacutetica passagem que parece ser a capital para entender a participaccedilatildeo em Platatildeo
O que me parece eacute que se existe algo belo aleacutem do belo em si soacute poderaacute ser belo por participar desse belo em si O mesmo afirmo de tudo o mais Admites essa espeacutecie de causa Admito respondeu Entatildeo jaacute natildeo compreendo continuou as outras causas de pura erudiccedilatildeo e nem consigo explicaacute-las E se para justificar a beleza de alguma coisa algueacutem me falar da sua cor brilhante ou da forma ou do que quer que seja deixo tudo o mais de lado que soacute contribui para atrapalhar-me e me atenho uacutenica e simplesmente talvez mesmo com uma boa dose de ingenuidade ao meu ponto de vista a saber que nada mais a deixa bela senatildeo tatildeo soacute a presenccedila ou comunicaccedilatildeo daquela beleza em si qualquer que seja o meio ou caminho de lhe acrescentar De tudo o mais natildeo faccedilo grande cabedal o que digo eacute que eacute soacute pela beleza em si que as coisas belas satildeo belas Na minha opiniatildeo essa eacute a maneira mais certa de responder tanto a mim mesmo como aos outros Firmando-me nessa posiccedilatildeo tenho certeza de natildeo vir a cair e de que tanto eu como qualquer pessoa em idecircnticas circunstacircncias poderaacute responder com seguranccedila que eacute pela beleza que as coisas belas satildeo belas12 (PLATAtildeO Feacutedon 100c-e NEGRITOS NOSSOS)
12 φαίνεται γάρ μοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι᾽ ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι μετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω τῇ τοιᾷδε αἰτίᾳ συγχωρεῖς
182
O termo que se grafa em grego eacute γίγνεται e natildeo haacute duacutevidas que o termo tem
o sentido de ldquovir a ser13rdquo Por este motivo discordamos aqui da presente traduccedilatildeo uma
vez que o que Soacutecrates diz que eacute pela Beleza que as coisas se tornam belas
Eacute claro que a acepccedilatildeo Socraacutetica natildeo parece como afirma o proacuteprio Soacutecrates
indubitaacutevel jaacute que o proacuteprio personagem que profere as palavras afirma que pode haver
nele uma boa dose de ingenuidade ao defender a participaccedilatildeo Natildeo obstante como eacute
possiacutevel que o personagem que muitiacutessimas vezes eacute o baluarte da discussatildeo nos diaacutelogos
platocircnicos natildeo estar seguro de uma tatildeo importante doutrina O fato eacute que mesmo que
Soacutecrates possa parecer seguro acerca da existecircncia das Formas ele natildeo parece seguro de
como funciona as relaccedilotildees que se datildeo onde as Formas satildeo elementos de relaccedilatildeo
Nos mais importantes diaacutelogos para a participaccedilatildeo ndash os considerados por noacutes
os mais importantes objetos de pesquisa ndash a saber Feacutedon Parmecircnides e Sofista Soacutecrates
em momento algum parece estar totalmente seguro acerca de alguma relaccedilatildeo que se daacute
entre Forma e quaisquer itens que dela participar o que natildeo impede o personagem de
homologar ou propor fortiacutessimos aspectos acerca da participaccedilatildeo No Feacutedon mesmo que
assuma que possa estar sendo ingecircnuo ele assume um sentido de participaccedilatildeo que
apresenta a possibilidade de transiccedilatildeo de um item que natildeo eacute portador de um predicado e
pela participaccedilatildeo na Forma pode se tornar retentor de um predicado conferido pela
Forma14 No Parmecircnides Soacutecrates apenas nos passos 129a-e iraacute proferir as palavras que
dizem participaccedilatildeo μετέχειν μεταλαμβάνειν e em momento algum do diaacutelogo iraacute dizecirc-
las novamente apenas aceitaraacute ou recusaraacute as perguntas feitas pelo personagem
Parmecircnides Este uacuteltimo no entanto atraveacutes de suas questotildees iraacute tratar de importantes
aspectos da participaccedilatildeo Jaacute no Sofista Soacutecrates se cala logo no iniacutecio do diaacutelogo e caberaacute
ao Estrangeiro de Eleacuteia apresentar a teia de conexotildees que haacute entre Formas (συμπλοκὴ τῶν
εἰδῶν)15
Entranto mesmo que Soacutecrates seja um personagem que legitima toda a
compreensatildeo sobre a participaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel que seja alvo de contenda o sentido de
participaccedilatildeo tanto no Feacutedon como no Parmecircnides que traga consigo a noccedilatildeo de ldquotornar-
serdquo fazendo com que um item que natildeo eacute x possa vir-a-ser x por participar de uma Forma
X ldquojuntamente com o agarrarrdquo da propriedade Obstante Platatildeo natildeo deixa de escrever
13 Cf LIDDEL H G SCOOT R 1996 14 Soacutecrates inseguro e ousado ainda iraacute apresentar um exemplo de outro sentido de participaccedilatildeo 15 Cf PECK A L Platos Sophist The συμπλοϰὴ τῶν εἰδῶν 1962
183
Mas estou certo de que tambeacutem admites que nunca poderaacute a neve como neve conforme dissemos haacute pouco depois de receber o calor continuar a ser o que era neve com calor Com a aproximaccedilatildeo do calor ou ela se retira ou vem a fenecer Perfeitamente Tal qual o fogo com a chegada do frio retira-se ou perece de jeito nenhum depois de receber o frio se atreveria a ser o que antes era fogo a um tempo e frio Falaste com muito acerto observou Pode acontecer continuou nalguns exemplos desse tipo que natildeo somente a ideia em si mesma tenha o direito de conservar eternamente o mesmo nome como tambeacutem algo que diferente que sem ser aquela ideia apresenta-se enquanto existe com sua forma Eacute possiacutevel que com o seguinte exemplo eu deixe mais claro meu pensamento O nuacutemero iacutempar teraacute de conservar sempre esse nome com o que o designamos Ou natildeo Perfeitamente [] Seja como for de tal modo eacute construiacuteda a natureza do trecircs do cinco e de toda uma metade de nuacutemeros que apesar de cada um deles natildeo ser a mesma coisa que o iacutempar sempre teraacute de ser iacutempar O mesmo passa com o dois o quatro e toda a outra metade dos nuacutemeros que sem serem o par sempre teratildeo de ser pares Admites isso ou natildeo Como natildeo admitir Foi a sua resposta16 (PLATAtildeO Feacutedon 103d-104b)
16 ἀλλὰ τόδε γ᾽ οἶμαι δοκεῖ σοι οὐδέποτε χιόνα γ᾽ οὖσαν δεξαμένην τὸ θερμόν ὥσπερ ἐν τοῖς πρόσθεν ἐλέγομεν ἔτι ἔσεσθαι ὅπερ ἦν χιόνα καὶ θερμόν ἀλλὰ προσιόντος τοῦ θερμοῦ ἢ ὑπεκχωρήσειν αὐτῷ ἢ ἀπολεῖσθαι πάνυ γε καὶ τὸ πῦρ γε αὖ προσιόντος τοῦ ψυχροῦ αὐτῷ ἢ ὑπεξιέναι ἢ ἀπολεῖσθαι οὐ μέντοι ποτὲ τολμήσειν δεξάμενον τὴν ψυχρότητα ἔτι εἶναι ὅπερ ἦν πῦρ καὶ ψυχρόν ἀληθῆ ἔφη λέγεις ἔστιν ἄρα ἦ δ᾽ ὅς περὶ ἔνια τῶν τοιούτων ὥστε μὴ μόνον αὐτὸ τὸ εἶδος ἀξιοῦσθαι τοῦ αὑτοῦ ὀνόματος εἰς τὸν ἀεὶ χρόνον ἀλλὰ καὶ ἄλλο τι ὃ ἔστι μὲν οὐκ ἐκεῖνο ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν ἀεί ὅτανπερ ᾖ ἔτι δὲ ἐν τῷδε ἴσως ἔσται σαφέστερον ὃ λέγω τὸ γὰρ περιττὸν ἀεί που δεῖ τούτου τοῦ ὀνόματος τυγχάνειν ὅπερ νῦν λέγομεν ἢ οὔ πάνυ γε ἆρα μόνον τῶν ὄντωνmdashτοῦτο γὰρ ἐρωτῶmdashἢ καὶ ἄλλο τι ὃ ἔστι μὲν οὐχ ὅπερ τὸ περιττόν ὅμως δὲ δεῖ αὐτὸ μετὰ τοῦ ἑαυτοῦ ὀνόματος καὶ τοῦτο καλεῖν ἀεὶ διὰ τὸ οὕτω πεφυκέναι ὥστε τοῦ περιττοῦ μηδέποτε ἀπολείπεσθαι λέγω δὲ αὐτὸ εἶναι οἷον καὶ ἡ τριὰς πέπονθε καὶ ἄλλα πολλά σκόπει δὲ περὶ τῆς τριάδος ἆρα οὐ δοκεῖ σοι τῷ τε αὑτῆς ὀνόματι ἀεὶ προσαγορευτέα εἶναι καὶ τῷ τοῦ περιττοῦ ὄντος οὐχ ὅπερ τῆς τριάδος ἀλλ᾽ ὅμως οὕτως πέφυκε καὶ ἡ τριὰς καὶ ἡ πεμπτὰς καὶ ὁ ἥμισυς τοῦ ἀριθμοῦ ἅπας ὥστεοὐκ ὢν ὅπερ τὸ περιττὸν ἀεὶ ἕκαστος αὐτῶν ἐστι περιττός καὶ αὖ τὰ δύο καὶ τὰ τέτταρα καὶ ἅπας ὁ ἕτερος αὖ στίχος τοῦ ἀριθμοῦ οὐκ ὢν ὅπερ τὸ ἄρτιον ὅμως ἕκαστος αὐτῶν ἄρτιός ἐστιν ἀεί συγχωρεῖς ἢ οὔ
184
Para analisar a passagem do Feacutedon eacute necessaacuterio relembrar alguns pontos
Primeiro de que a Forma se relaciona com outros entes sejam eles entes sensiacuteveis ou
mesmo outras Formas Quando uma Forma tem relaccedilatildeo com um ente sensiacutevel e o ente
sensiacutevel nesta relaccedilatildeo reteacutem (ἔχει) uma propriedade (οὐσία) chamamos isso de
participaccedilatildeo Antes foi visto que um ente pode possuir uma propriedade e em outro
momento natildeo mais a possuir quando isto acontece dizemos participaccedilatildeo atraveacutes do
termo μεταλαμβάνω
Contudo o sentido de participaccedilatildeo aferido no Feacutedon (130d-104b) eacute outro
Eacute sabido que em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo agravequilo que participa da Forma
possui (ἔχειν) ou melhor agarra (λαμβάνειν) uma propriedade (ὀυσια) em razatildeo da
participaccedilatildeo Viu-se que um ente pode vir a tornar-se retentor de um predicado caso venha
a ser (γίγνεται) participante da Forma e pode muito bem natildeo reter mais o predicado caso
a participaccedilatildeo cesse Entretanto eacute possiacutevel pensar em alguma participaccedilatildeo que jamais
cesse apontando uma propriedade tatildeo duradoura quanto a proacutepria existecircncia essencial do
ente
De antematildeo este tipo de participaccedilatildeo seria impossiacutevel pois os entes
sensiacuteveis mutaacuteveis que satildeo jamais se conservam idecircnticos nem a si mesmos e nem em
relaccedilatildeo aos outros (Feacutedon 78a-79b) Tal mutabilidade poderia muito bem indicar que
nenhum tipo de participaccedilatildeo poderia se dar eternamente ndash ou necessariamente enquanto
o proacuteprio participante existisse
O que se apresenta entretanto no Feacutedon (130d-104b) eacute outro tipo de relaccedilatildeo
necessaacuteria e eterna em que algo que eacute diferente da Forma da qual participa conserva
durante toda a sua existecircncia a relaccedilatildeo que haacute com tal diferente Forma Assim sendo um
ente seria enquanto existente retentor de um predicado x por participar de uma Forma
X Forma esta a qual eacute totalmente divergente do ente De tal maneira um ente que
relaciona com a Forma e possui dela propriedades predicados pode se conservar durante
toda sua existecircncia retentor de determinada propriedade nunca apanhando (λαμβάνον)
mas sempre a possuindo (ἔχει) e nunca largando (ἀφιὲν) Assim seria necessaacuterio dizer
que ele eacute (ἐστιν) belo justo bom ou quaisquer coisas que seja por participar da Forma
e natildeo eacute possiacutevel dizer que ele se tornou (γίγνεται) belo justo bom (ou quaisquer
πῶς γὰρ οὔκ ἔφη
185
predicados cabiacuteveis) pois se ele se tornou eacute necessaacuterio afirmar que antes natildeo era
Contudo desde sua existecircncia sempre foi retentor de tal predicado
Certamente eacute possiacutevel pensar que justo belo e bom satildeo predicados
transitoacuterios podendo assim um item se tornar justo belo ou bom e em algum momento
natildeo o ser mais Natildeo pensamos aqui a possibilidade de algum ente seja justo
essencialmente e participe da justiccedila sem nunca a agarrar mas sendo justo por possuir a
justiccedila17
Como exemplos Soacutecrates apresenta o caso do fogo que enquanto existir seraacute
quente Se natildeo for mais quente natildeo existe e natildeo eacute mais fogo A neve enquanto neve eacute
fria e se natildeo for mais fria natildeo seraacute mais neve O nuacutemero trecircs eacute iacutempar e natildeo pode acontecer
de existir um trecircs natildeo iacutempar e que seja par
Entretanto os exemplos dados por Soacutecrates divergem acerca do objeto de que
tratam No primeiro caso a neve e o fogo ambos satildeo entes sensiacuteveis que podem ser
captados pela senso-percepccedilatildeo De tal modo mesmo que estes entes sensiacuteveis nunca
permaneccedilam idecircnticos a si mesmos e nem aos outros (Feacutedon 78a-79b) eles tecircm um tipo
de participaccedilatildeo que permanece enquanto permanece a proacutepria existecircncia do ente a neve
enquanto a neve (χιόνα) deveraacute possuir (ἔχει) o predicado frio (ψυχροῦ) sob pena de natildeo
mais existir enquanto neve caso a participaccedilatildeo cesse o fogo (τὸ πῦρ) por sua vez deveraacute
ser sempre quente (θερμόν) sob pena de natildeo ser mais fogo se a participaccedilatildeo cessar Natildeo
caberaacute de maneira alguma agrave neve ser quente ndash uma vez que natildeo existiraacute mais ndash e nem
caberaacute ao fogo ser frio Estas participaccedilotildees embora se deem entre entes mutaacuteveis duram
enquanto existir o ente
Todavia distinto eacute o caso do nuacutemero trecircs uma vez que trecircs natildeo parece ser um
ente um ente sensiacutevel Pensa-se duas maneiras de entender o numeral trecircs (i) ou bem trecircs
eacute predicado de algo (eg Soacutecrates eacute trecircs por possuir trecircs partes cabeccedila tronco e
membros) ou (ii) bem trecircs poderaacute ser uma Forma abstrata que confere predicados Igual
seria o caso do Um do Cinco e de demais nuacutemeros Se pensarmos o primeiro ponto (i)
deveraacute haver uma Forma Triacuteade que possibilite que algo seja trecircs pois todos os
17 Platatildeo de fato natildeo deixa de investigar como seria possiacutevel que um ente participe (μετέχει) de uma determinada Forma que lhe confesse um predicado virtuoso tal como o exemplo da Justiccedila usado acima De fato tal relaccedilatildeo eacute objeto de investigaccedilatildeo no livro II da Repuacuteblica (359c em diante) A investigaccedilatildeo de Soacutecrates e Glauco eacute sobre a possibilidade de haver um homem justo de tal maneira que continuasse justo mesmo de posse de ilimitado poder alegoricamente apresentado como anel de Giges ou de quaisquer peripeacutecias que podem se dar no tempo Portanto a busca de Soacutecrates e Glaacuteuco no livro II da Repuacuteblica eacute por um tipo de participaccedilatildeo (μετέχειν) neste sentido um homem que eacute (ἐστιν) justo e jamais poderaacute vir a ser (γίγνεται) injusto
186
predicados precisar tem uma Forma para haver o predicado Todo trecircs portanto eacute iacutempar
Poreacutem iacutempar eacute um predicado entatildeo haacute a Forma Iacutempar que lhe confere predicado Assim
sendo todo predicado trecircs deveraacute participar do Iacutempar e ser predicado de iacutempar Logo
todo item que tiver o predicado de trecircs deveraacute tambeacutem ser iacutempar pois o predicado trecircs
participa necessariamente (μετέχει) do Iacutempar Sob o segundo aspecto (ii) para pensar
tem-se que Trecircs eacute uma Forma abstrata que confere predicado trecircs aos entes que dela
participa poreacutem eacute necessaacuterio assumir que Trecircs eacute iacutempar e eacute iacutempar por participar do Iacutempar
Nesta participaccedilatildeo entre Formas Trecircs (ou Triacuteade) que participa de Iacutempar se faz
necessaacuterio dizer que todo item que participa do Trecircs deveraacute ser iacutempar porque a proacutepria
Triacuteade participa do Iacutempar
Neste tipo de participaccedilatildeo ndash sendo tomado como objeto o fogo a neve o trecircs
etc ndash o item eacute [εἶναι] ldquojuntamente comrdquo [μετά] o possuir [ἔχει] a propriedade [οὐσία]
denominado a partir da Forma e natildeo se torna [γίγνεσθαι] algo ldquojuntamente comrdquo [μετά]
o apanhar [λαμβάνω] daquela propriedade
Atraveacutes da anaacutelise dos passos 155e-156a do Parmecircnides eacute perceptiacutevel que
μεταλαμβάνω eacute associaacutevel a uma participaccedilatildeo mutaacutevel que ora pode ser e pode natildeo ser
E μεταλαμβάνω eacute apresentado para resolver o problema que traz outro tipo de participar
[μετέχω] onde o ente eacute por participar na Forma e natildeo eacute possiacutevel se tornar porque ou bem
participa ou bem natildeo participa e natildeo pode participar natildeo participando e nem mesmo natildeo
participando participar Assim μετέχω natildeo explica todos os casos de relaccedilotildees entre
Formas e entes sensiacuteveis pois existem as relaccedilotildees que iniciam e cessam que se dizem
atraveacutes de μεταλαμβάνω O participar de μετέχω eacute o participar no qual o ente eacute [εἶναι]
por participar da Forma e sendo natildeo pode natildeo ser e definitivamente possui [ἔχει] a
propriedade [οὐσία]
Por analogia eacute possiacutevel perceber que este eacute o caso 103d-104b no Feacutedon pois
o numeral trecircs juntamente com o possuir [μετέχει] a propriedade [οὐσία] do Iacutempar eacute
[εἶναι] trecircs E natildeo pode ele largar [ἀφει] o iacutempar pois assim deixaria de existir e de ser
trecircs O mesmo ocorre com a neve e o frio o fogo e o calor
Mesmo outros pesquisadores de Platatildeo parecem ter se deparado com o
problema Trindade Santos em sua introduccedilatildeo ao Sofista revisa concepccedilotildees de
participaccedilatildeo presentes em Platatildeo Dentre elas a do Feacutedon No texto eacute possiacutevel ler
Por exemplo no caso da alma os predicados ldquomotalimportalrdquo satildeo atribuiacutedos em funccedilatildeo da participaccedilatildeo da alma noutra entidade que a inclui (seja ldquo a Forma da Vidardquo Feacuted 106d vide 103a-105e) Todavia
187
no caso da atribuiccedilatildeo da ldquoalturapequenezrdquo a Siacutemias esses predicados satildeo atribuiacutedos pela comparaccedilatildeo de altura de Siacutemias com as de Soacutecrates e de Feacutedon o que implica legitimar a predicaccedilatildeo de acordo com a observaccedilatildeo casuiacutestica da variaccedilatildeo relacional
Sendo ldquoXrdquo diferente de ldquoalgordquo (ou o ldquoeacuterdquo expressaria uma identidade) ldquoalto temrdquo (pelo menos) momentaneamente um ldquoxrdquo mediante a participaccedilatildeo nele da Forma ldquoXrdquo No entanto contextos relacionais (ldquox tem algordquo agora mas natildeo antes ou depois para uns mas natildeo para outros em relaccedilatildeo a uns mas uma propriedade ldquoxrdquo a um sensiacutevel depende de factores externos excepto no caso de se tratar de uma propriedade essencial de ldquoalgo ser xrdquo (102b-c) (SANTOS 2011 p139)18
Certamente vemos o assunto de outra maneira que natildeo a de Trindade Santos
ao pensar que a retenccedilatildeo de uma propriedade poder-se-ia ser causada por factores
externos que parecem ser simplesmente frutos da contingecircncia Vemos assim pois
pensamos que natildeo eacute por outro motivo se natildeo a participaccedilatildeo na Forma que um ente poderaacute
vir-a-ser portador de um predicado (Feacutedon 100c-e) Entretanto o que Trindade Santos
natildeo mencionou ndash mas certamente tinha consciecircncia soacute natildeo o fez uma vez que natildeo era o
escopo do trabalho o qual estava a realizar no Sofista ndash eacute que sua distinccedilatildeo entre
participaccedilatildeo que apresenta uma propriedade essencial e uma participaccedilatildeo que se daacute
juntamente com fatores externos (ou seja fatores temporais ou seja uma participaccedilatildeo
que reteacutem predicados participando do tempo 19) eacute exatamente esta distinccedilatildeo traccedilada entre
μετέχειν e μεταλαμβάνειν
Eacute interessante apresentar que esta distinccedilatildeo eacute corrente em todo diaacutelogo
Parmecircnides sendo respeitada na maioria dos casos As uacutenicas exceccedilotildees nas quais
μετέχειν e εἶναι aparecem juntas no diaacutelogo satildeo
1 Na fala de Soacutecrates em 128a9 Soacutecrates associa μετέχειν a εἶναι Eacute importante
entatildeo lembrar que Soacutecrates eacute apresentado no diaacutelogo e em alguns outros
momentos como um personagem ainda inseguro acerca da relaccedilatildeo entre Formas
e participantes
2 Em 155c-d μετέχειν eacute associado a εἶναι Este eacute o uacutenico passo que poderia
apresentar quaisquer problemas agrave tese dos dois sentidos de participaccedilatildeo pela
presenccedila de μετέχειν e εἶναι Mesmo que um haacutebil argumentador possa utilizar
18 SANTOS 2011 Introduccedilatildeo ao Sofista EM PLATAtildeO Sofista Traduccedilatildeo de Henrique Murachco
Juvino Maia Jr Joseacute Gabriel Trindade dos Santos Introduccedilatildeo e apecircndice de Joseacute Gabriel Trindade Santos
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2011
19 Cf PLATAtildeO Parmecircnides 155e-156ordf
188
essa passagem para ir contra a presente tese acredita-se que natildeo haveraacute vantagem
alguma pois natildeo eacute exequiacutevel pensar contraacuterio a presente tese Na passagem ndash
como em muitos momentos da segunda parte do diaacutelogo ndash o Um estaacute sendo
associado ao Ser ou desassociado com o intuito de ser objeto de investigaccedilatildeo
Em 155c-d a uacutenica associaccedilatildeo eacute que se diz que o tempo participa do um que eacute e
do tornar-se mais velho e mais jovem (χρόνου μετέχει τὸ ἓν πρεσβύτερόν τε καὶ
νεώτερον γίγνεσθαι) e natildeo aferimos quaisquer maneiras de que a passagem possa
efetivamente trazer problemas agrave tese
3 Nas demais apariccedilotildees dos termos μεταλαμβάνω no Parmecircnides ou bem surge
acompanhado do termo γίγνεσθαι ou bem natildeo eacute acompanhado de nenhum tempo
que possa associaacute-lo ao ldquoserrdquo ou ao ldquotornar-serdquo Semelhantemente μετέχω ou bem
iraacute surgir ao lado de εἶναι ou natildeo indicaraacute o ldquoserrdquo ou o ldquotornar-serdquo Interpretamos
que quando natildeo indicado a associaccedilatildeo a ldquovir-a-serrdquo ou ao ldquoserrdquo natildeo eacute interessante
ao argumento trabalhado pelos personagens
Visto isso eacute possiacutevel concluir que haacute uma distinccedilatildeo entre μετέχω e
μεταλαμβάνω no Parmecircnides Essa distinccedilatildeo tal qual descrita eacute concordante com a que
Cornford traccedila em apenas quatro linhas20 Natildeo tatildeo soacute esta distinccedilatildeo reverbera em outros
diaacutelogos pelo menos no Feacutedon 130d-104b
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
CORNFORD FM Plato and the Parmenides Parmenidesrsquo Way of Truth and Platorsquos
Parmenides translated with an introduction and a running commentary London
Routledge amp Kegan Paul 1939
LIDDEL H G SCOTT R Greek-English Lexicon - With a revised suplement Oxford
Clarendo Press 1996
PLATAtildeO Parmecircnides Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maura Iglesias e Fernando
Rodrigues Rio de Janeiro Editora PUC-Rio e Ediccedilotildees Loyola 2003
20 Cf CORNFORD F M 1939 p 69
189
_______ Feacutedon Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem EDUFPA 2011
_______ Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira 5 ed Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbbenkian 1949
_______ Sofista Traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr Joseacute Gabriel
Trindade dos Santos Introduccedilatildeo e apecircndice de Joseacute Gabriel Trindade Santos Lisboa F
Calouste Gulbenkian 2011
SCOLNICOV Samuel Platorsquos Parmenides Translated with Introduction and commentary Berkley Los Angeles London University of Caloforn
SOBRE O TEMPO UMA QUESTAtildeO FUNDAMENTAL
Paulo Seacutergio Calvet Ribeiro Filho1
RESUMO O texto aborda alguns desdobramentos acerca da questatildeo fundamental ldquoque eacute o tempordquo Seratildeo contempladas1) a interpretaccedilatildeo de Jeanne Marie Gagnebin acerca do Livro XI das Confissotildees de Agostinho apresentada na obra Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria 2) trecircs palestras de Jorge Luiacutes Borges a respeito do tema chamadas ldquoO livrordquo ldquoO tempordquoe ldquoA imortalidaderdquo inseridas em Cinco visotildees pessoais 3) as ideias apresentadas no ensaio de Giorgio Agamben intitulado ldquoO que eacute o contemporacircneordquo 4) uma conferecircncia de Martin Heidegger chamada ldquoO Conceito de tempordquo Palavras-chave Tempo Finitude Contemporacircneo ABSTRACT The text approaches some deployments about the fundamental question ldquowhat is timerdquo There will be contemplated 1) The interpretation of Jeanne Marie Gagnebin about the book XI of Confessions by Augustine presented in the work Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria 2) Three Jorge Luis Borgesrsquo lectures related to this theme entitled ldquoO livrordquo ldquoO tempordquo and ldquoA imortalidaderdquo inserted in Cinco visotildees pessoais 3) The ideas presented in the essay of Giorgio Agamben entitled ldquoO que eacute contemporacircneordquo 4) one conference of Martin Heidegger called ldquoO conceito do tempordquo Keywords Time Finiteness Contemporary
Introduccedilatildeo
Haacute um problema insanaacutevel mas fundamental Muitos filoacutesofos se intrigaram
com ele aleacutem de poetas e compositores2 cineastas e escritores Cada um interage com
ele agrave sua maneira nos bares muito se fala em falta de tempo nos sindicatos a jornada
de trabalho eacute debatida nas escolas e universidades discutem a carga horaacuteria o tempo
devido a cada disciplina professores muacutesicos cuidadores muitas vezes satildeo pagos por
hora
Contudo o problema fundamental natildeo se limita a este aspecto menor ndash o vieacutes
econocircmico da questatildeo ldquoTempo eacute dinheirordquo Neste velho ditado estaacute impliacutecita uma
1 Mestre em filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro e graduando em histoacuteria pela Universidade Estadual do Maranhatildeo 2 Como natildeo lembrar de ldquoOraccedilatildeo ao tempordquo de Caetano Veloso Ou mesmo da angustiante ldquoSinal fechadordquo de Paulinho da Viola
191
maneira de concebecirc-lo curta e miacuteope Sob este acircngulo na verdade a indagaccedilatildeo essencial
nem mesmo fora colocada Tal frase feita eacute como uma daquelas respostas sem pergunta
um clichecirc enfim
Sobre o que trataraacute esse escrito Sobre uma das questotildees mais pungentes que
jaacute foram elaboradas e que pode ser colocada assim que eacute o tempo Tem-se nada mais
nada menos do que toda a tradiccedilatildeo ocidental transpassada por respostas Algumas satildeo
dignas de nota Deter-se-aacute aqui apenas na anaacutelise de algumas delas
De iniacutecio seraacute abordada a interpretaccedilatildeo de Jeanne Marie Gagnebin acerca do
Livro XI das Confissotildees de Agostinho Optou-se por contemplaacute-la por ela fazer uma
leitura original de um autor por sua vez original Em seguida seratildeo analisadas trecircs
palestras de Jorge Luiacutes Borges aqui expostas por ele fazer uma espeacutecie de retrospectiva
das respostas mais famosas sobre a questatildeo que aqui serve de guia aleacutem de ter uma
posiccedilatildeo peculiar como se veraacute Em um terceiro momento tal temaacutetica seraacute desdobrada e
seraacute trazido agrave baila um pensador contemporacircneo que reflete a respeito do proacuteprio conceito
de contemporacircneo Giorgio Agamben Sua indagaccedilatildeo eacute urgente e por isso figuraraacute neste
trabalho Por fim a conferecircncia O Conceito de tempo de Martin Heidegger seraacute
analisada
O Agostinho de Jeanne Marie Gagnebin
Agrave quarta aula de um conjunto de sete Jeanne Marie Gagnebin nomeia Dizer
o tempo3 Ali a autora se ateacutem entre outras coisas agrave famosa reflexatildeo de Agostinho
presente no Livro XI de suas Confissotildees Partindo de uma interpretaccedilatildeo de Paul Ricouer
afirma a autora que a novidade que o filoacutesofo de Hipona apresenta eacute uma concepccedilatildeo
diferenciada sobre a temporalidade qual seja o tempo eacute inseparaacutevel da interioridade
psiacutequica
Destarte tem-se uma inovaccedilatildeo pois esta resposta se opotildee agraves tentativas da
filosofia antiga principalmente Platatildeo e Aristoacuteteles que definiam o tempo em funccedilatildeo do
movimento dos corpos externos
Tempo como distentio animi ndash distensatildeo da almado espiacuterito Por mais que
Agostinho um religioso fale muitas vezes em Eternidade sua inquietaccedilatildeo e sua proposta
satildeo eminentemente seculares pois
3 GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria p 67-79
192
Ao propor uma definiccedilatildeo de tempo como inseparaacutevel da interioridade psiacutequica Agostinho abre um novo campo de reflexatildeo o da temporalidade da nossa condiccedilatildeo especiacutefica de seres que natildeo soacute nascem e morrem ldquonordquo tempo mas sobretudo que sabem que tem consciecircncia dessa sua condiccedilatildeo temporal e mortal4
A partir desse ponto de vista a temporalidade aparece como atributo da alma5
que se sabe e se percebe assim e por isso mesmo se sente fustigada pela vontade de
querer saber a respeito da natureza de sua finitude
O problema fundamental em Agostinho vai aleacutem pois este passa a se
questionar inclusive a respeito da linguagem Jeanne Marie destaca dois
posicionamentos Ao primeiro chama de ldquoreflexatildeo criacutetica sobre nossa linguagemrdquo
(GAGNEBIN 2005 p 70) Trata-se de uma problematizaccedilatildeo presente desde o Livro X
das Confissotildees que afirma que a propensatildeo quase natural de falar do tempo em termos
espaciais atrapalha a reflexatildeo sobre sua natureza
Ao segundo posicionamento a autora faz menccedilatildeo ao que chama de
ldquoargumentaccedilatildeo pragmaacuteticardquo (idem) Nela Agostinho natildeo critica apenas certas categorias
linguiacutesticas mas sim o uso que se faz da linguagem Nesse sentido ao pensar o tempo
se pensa quase inevitavelmente a respeito da linguagem
Assim no correr de seu pensamento o autor de Confissotildees
natildeo tenta mais falar de fora sobre o objeto tempo mas sim descrever ladeando com o pensar o pensar o proacuteprio pensamento nossa experiecircncia do tempo Ora essa se diz natildeo em termos espaciais objetivos mas em termos ativos de esticamento de dilaceraccedilatildeo de tensatildeo entre o lembrar e o esperar6
Ressalta a autora partindo das Confissotildees que nossa experiecircncia do tempo
estaacute associada agrave experiecircncia narrativa e esta se apresenta como tensatildeo existente entre o
lembrar (tensatildeo entre o presente do presente e o presente do passado) e o esperar (tensatildeo
entre o presente do presente e o presente do futuro) O que significa que o problema do
tempo sempre se desdobra no problema do dizerescrever E esta eacute uma leitura original
de Agostinho
Jeanne Marie Gagnebin ao final da aula intitulada Dizer o tempo parece estar
4GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria p 68 5 Quanto agrave ideacuteia de alma em Santo Agostinho eacute preciso ter em vista que se trata pelo menos neste momento de suas reflexotildees a respeito do tempo de um princiacutepio psiacutequico que se desdobra em temporalidade O que tem como implicaccedilatildeo que a alma humana justamente por experimentar sua finitude atraveacutes do tempo distingue-se de Deus que eacute eterno 6GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteriap 75
193
inquieta e reticente Afirma que hoje natildeo se pode mais acreditar que ldquoo Outro do nosso
tempo seja a eternidade divinardquo 7 Natildeo eacute possiacutevel furtar-se contudo de refletir a respeito
de Confissotildees
Que se passe agora a outra resposta ndash a de um argentino que tem uma
perspectiva sui generis acerca do tempo e inclusive da imortalidade
Jorge Luiacutes Borges ndash o livro o tempo e a imortalidade
Se o uso corrente da linguagem natildeo pode dar conta de certos temas como
acima fora exposto a partir do Agostinho de Jeanne Marie Gagnebin existe um
instrumento que pode lidar bem com esta limitaccedilatildeo poetizando-a estendendo-a A
interioridade psiacutequica da temporalidade humana pode ter seus passos ldquoregistradosrdquo e
podem ser garantidas agraves geraccedilotildees vindouras reflexotildees seculares atraveacutes de seu uso e
usufruto
O livro eacute esse instrumento singular quase maacutegico Assim falou
Jorge Luiacutes Borges Este trecho teraacute por como base trecircs palestras ndash chamadas O livro O
tempo e A imortalidade ndash proferidas em junho de 1978 na Universidade de Belgrano
quando fora inaugurada8
O que diz a respeito do tempo Primeiramente que se pode prescindir do
espaccedilo mas natildeo do tempo9 Para dar seguimento a defesa deste enunciado propotildee um
experimento mental ndash sugere que se imagine um mundo onde soacute existisse um uacutenico
sentido o da audiccedilatildeo Ali tudo estaria transformado inclusive a linguagem Ali se teria
esquecido o espaccedilo mas o tempo nunca
Por isso o problema aqui tratado eacute para Borges um problema essencial ldquo()
quero dizer que natildeo podemos prescindir do tempo Nossa consciecircncia estaacute continuamente
passando de um estado a outro e isso eacute o tempo uma sucessatildeordquo (idem)
Ali apresentado entatildeo ainda a partir de uma interioridade psiacutequica Vale
frisar ademais que esta sucessatildeo defendida natildeo eacute mera sucessatildeo linear homogecircnea mas
interior O problema do tempo partindo do ponto de vista adotado pelo referido autor
natildeo pode ser resolvido todavia podem ser revistas as soluccedilotildees apresentadas
Partindo da soluccedilatildeo de Platatildeo ndash que afirma que o tempo eacute a imagem imoacutevel
7GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteriap 77 8 BORGES Cinco visotildees pessoais p 13-32 e 61-73 9BORGES Cinco visotildees pessoais p 62
194
da eternidade ndash Borges acaba afirmando que a eternidade eacute uma de nossas mais belas
invenccedilotildees Em seguida afirma que Aristoacuteteles tambeacutem errara pois ldquoTambeacutem eacute um erro
dizer como Aristoacuteteles que o tempo eacute a medida do movimento pois o movimento
acontece no tempo e natildeo pode explicar o tempordquo10 Isto quer dizer que a temporalidade
natildeo pode ser refeacutem explicativa do movimento mas deve-se dar o contraacuterio Adiante deter-
se-aacute mais nesta problemaacutetica
Ainda pouco se afirmou na esteira do argentino que a indagaccedilatildeo essencial
natildeo pode ser resolvida O interessante eacute perceber que mesmo sem se dar conta ele aponta
uma soluccedilatildeo Onde ele a encontra Na imortalidade
Antes que o leitor contemporacircneo se contorccedila eacute importante ressaltar que
Borges nega uma imortalidade individual ldquoEu natildeo quero continuar sendo Jorge Luiacutes
Borges quero ser outra pessoa Espero que minha morte seja total espero morrer no corpo
e na almardquo 11
Fica evidente que se trata de uma imortalidade transubjetiva Nomeada aqui
dessa forma por ir aleacutem da pessoalidade visto que ldquocada um de noacutes eacute de alguma forma
todos os homens que morreram antesrdquo 12 Eacute nesse sentido especiacutefico que o homem eacute
imortal ldquoO importante eacute a imortalidade Essa imortalidade concretiza-nos nas obras que
deixamos na memoacuteria que algueacutem deixa nos outrosrdquo13 Assim ao opor uma imortalidade
individual a uma que chama coacutesmica Borges fornece uma concepccedilatildeo original uma
resposta original agrave indagaccedilatildeo que eacute o tempo
Por isso em O livro afirma que este eacute uma extensatildeo de nossa memoacuteria e de
nossa imaginaccedilatildeo14 Aleacutem do que ldquoo livro eacute lido para eternizar a memoacuteriardquo 15 Percebe-se
que este instrumento singular ocupa um papel relevante no drama dessa imortalidade
transubjetiva
Agamben e o contemporacircneo in between
Uma pergunta cabe em outra tal como uma aacutervore imensa cabe no ponto da
semente Assim a partir de ldquoque eacute o tempordquo Giorgio Agamben faz germinar ldquoDe quem
10BORGES Cinco visotildees pessoais p 66 11BORGES Cinco visotildees pessoais p 23 12BORGES Cinco visotildees pessoais p 31 13Idem 14BORGES Cinco visotildees pessoais p 13 15BORGES Cinco visotildees pessoais p 19
195
e do que somos contemporacircneos () o que significa ser contemporacircneordquo16
Eacute preciso frisar logo de saiacuteda que natildeo se trata apenas de estar ldquocom o tempordquo
de ser coetacircneo Natildeo se trata apenas do tempo presente Natildeo eacute mera inserccedilatildeo numa eacutepoca
Nesse sentido o autor italiano segue uma indicaccedilatildeo de Nietzsche presente na Segunda
consideraccedilatildeo intempestiva texto de 1874 Orientaccedilatildeo que atravessaraacute toda sua reflexatildeo que
afirma em suma que o pertencimento verdadeiro a uma eacutepoca estaacute relacionado natildeo a
uma concordacircncia plena com as opiniotildees ali vigentes mas sim a certa dose de
inatualidade17 Explica-se para ser contemporacircneo segundo o Nietzsche lido por
Agamben eacute preciso aderir e tomar distacircncia em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio tempo o que se
daacute pari passu O contemporacircneo estaacute in between por assim dizer
O bom poeta entatildeo segundo o autor italiano manteacutem o olhar fixo no seu
tempo e tambeacutem se torce em busca do passado o que para ele eacute uma atitude
eminentemente contemporacircnea Dessas premissas brota uma segunda definiccedilatildeo ldquoo
contemporacircneo eacute aquele que manteacutem fixo o olhar no seu tempo para nele perceber natildeo
as luzes mas o escurordquo 18
Perceber o escuro natildeo eacute apenas vislumbrar vazios natildeo eacute inatividade ndash notar
o escuro eacute um exerciacutecio que vai buscar as natildeo-explicaccedilotildees pois todas as eacutepocas tecircm suas
luzes e penumbras Levar isso em conta exige coragem eacute uma tarefa Os contemporacircneos
satildeo raros esses exegetas da dimensatildeo temporal em que estatildeo inseridos esses meacutedicos
forenses que catam vestiacutegios de tempos idos esses ldquobioacutegrafosrdquo que se inquietam com a
vida mesma de seu proacuteprio presente contudo transcendendo-o no sentido em que
extrapolam os limites temporais
Para que essa tarefa essa exigecircncia seja executada o contemporacircneo tem
que se dar conta que ldquoa chave do moderno estaacute escondida no imemorial e no preacute-
histoacutericordquo19 Isto eacute para interagir com seu tempo modificando-o eacute preciso ter uma atitude
especiacutefica para com o passado eacute preciso trazecirc-lo agrave baila Textos quadros obrasmuacutesicas
poemas ndash natildeo importa de onde partam ndash devem fomentar o pensar contemporacircneoSer
contemporacircneo eacute permanecer in between numa interzone temporal
Heidegger e o conceito de tempo
16AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 57 17AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 58 18AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 62 19AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 70
196
Para estudantes e professores da Faculdade de Teologia da Universidade de
Marburgo Martin Heidegger profere em 25 de julho de 1924 a conferecircncia intitulada O
conceito de tempo
Tendo em vista seu puacuteblico comeccedila sua exposiccedilatildeo justificando que seu
posicionamento em relaccedilatildeo ao tempo natildeo tem por baliza a eternidade pois ldquose o filoacutesofo
se interroga acerca do tempo eacute porque estaacute decidido a compreender o tempo a partir do
tempordquo 20 Isto eacute o filoacutesofo deve tentar compreender essa questatildeo cabal a partir de sua
proacutepria dimensatildeo temporal natildeo tendo por base a eternidade Por isso a conferecircncia natildeo
assume uma conotaccedilatildeo teoloacutegica
Quando acima fora mencionado Jorge Luiacutes Borges a quem o tempo natildeo pode
ser refeacutem explicativo do movimento fora dito que o argentino se opunha assim a uma
concepccedilatildeo aristoteacutelica fundada no movimento Fora dito tambeacutem um pouco antes disso
que Agostinho jaacute se opusera a essa concepccedilatildeo da filosofia antiga inaugurando uma esfera
de reflexatildeo que se baseara numa interioridade psiacutequica da temporalidade
Pois bem Heidegger vai mais longe em suas consideraccedilotildees pois coloca boa
parte da tradiccedilatildeo ocidental de Aristoacuteteles a Einstein21 sob a eacutegide do conceito que ele
chama ldquotempo da natureza e do mundordquo22 Partindo desse enfoque o filoacutesofo alematildeo diz
ser problemaacutetica esta perspectiva visto que nela se origina uma reflexatildeo falseada na
nascente
O tempo natildeo precisa ser definido pelo homem porquanto o homem eacute tempo
natildeo pode ser circunscrito numa simples mediccedilatildeo porque ao tomar o tempo apenas como
medida o homem se afasta de si mesmo e perde sua autenticidade O reloacutegio neste
sentido eacute o objeto que o transforma em objeto distanciando o homem de seu modo
proacuteprio de ser
Heidegger talvez se aproxime de Henry David Thoreau quando este afirma
que ldquoO homem se tornou o instrumento de seus instrumentosrdquo23 De fato o homem tem
20HEIDEGGER O conceito de tempop 21 21Tal afirmaccedilatildeo nos pareceu de iniacutecio duvidosa Contudo refizemos algumas leituras e encontramos a seguinte assertiva de um fiacutesico que reafirma a tese de Heidegger ldquoDe acordo com a teoria da relatividade o espaccedilo natildeo eacute tridimensional e o tempo natildeo constitui uma entidade isolada Ambos acham- se intimamente vinculados formando um continuum quadridimensional o lsquoespaccedilo-temporsquo Na teoria da relatividade portanto nunca podemos falar acerca do espaccedilo sem falar acerca do tempo e vice-versardquo CAPRA O Tao da fiacutesica p 54 22HEIDEGGER O conceito de tempo p 25 23 THOREAU Walden and Civil Disobedience p 29
197
se transformado em instrumento de seus instrumentos A humanidade estaacute como refeacutem
do reloacutegio e da concepccedilatildeo que afirma que o tempo eacute homogecircneo um amontoado de
porccedilotildees iguais entre si e por isso mesmo indiferentes umas agraves outras
ldquoO reloacutegio indica o tempordquo 24 natildeo eacute ele mesmo o tempo Este na verdade
por marcar o instante acaba ldquopondo no mesmo sacordquo todos os outros momentos
homogeneizando-os
Afinal qual seria o caminho apontado por Heidegger para que se fuja ou
melhor para que se enfrente esta concepccedilatildeo do tempo da natureza e do mundo Segundo
ele soacute se pode colocar corretamente a questatildeo do tempo se se puser no jogo isto eacute se se
partir do proacuteprio horizonte da finitude25 Por ser o homem finito e por saber mesmo sem
querer desta condiccedilatildeo acaba-se tendo abertura para colocar o problema neste acircmbito A
morte aponta essa possibilidade O que eacute ter-em-todo-caso a proacutepria morte Eacute o correr antecipativo do ser-aiacute para o seu tracircnsito enquanto possibilidade extrema e iminente ndash sabida com certeza e com completa indeterminabilidade ndash de si-mesmo O ser-aiacute enquanto vida humana eacute primordialmente ser- possiacutevel o ser da possibilidade do tracircnsito certo e no entanto indeterminado26
A morte neste sentido eacute como uma exigecircncia exigecircncia no sequestro
filosoacutefico que tira da quotidianidade A morte Heidegger eacute enfaacutetico ao afirmar estaacute
presente mesmo que natildeo se pense a respeito dela27 A morte eacute de certa forma condiccedilatildeo
fundante do modo de ser proacuteprio eacute partiacutecipe no Dasein
O homem soacute natildeo se tem tempo28porque se prende ao trivial ldquoNatildeo ter tempo
significa lanccedilar o tempo no presente reles do quotidianordquo 29
24HEIDEGGER O conceito de tempo p 27 25Aqui se aproxima em certa medida de Agostinho como jaacute expusemos Chegando a citaacute-lo inclusive 26HEIDEGGER O conceito de tempop 47 27Eacute interessante notar que Montaigne em pleno seacuteculo XVI jaacute se inquietava de uma maneira similar a de Heidegger ldquo() como eacute possiacutevel conseguirmos nos desfazer do pensamento da morte e que a cada instante natildeo nos pareccedila que ela nos agarra pela golardquo Ou ainda ldquoTiremos-lhe a estranheza [da morte] frequentemo-la acostumemo-nos com ela natildeo tenhamos nada de tatildeo presente na cabeccedila como a morte ()rdquo Ainda uma vez ldquoEacute incerto onde a morte nos espera aguardemo-la em toda parte Meditar previamente sobre a morte eacute meditar previamente sobre a liberdaderdquo MONTAIGNE Os ensaios uma seleccedilatildeo p 66 68 e 69 respectivamente Grifo nosso 28A conferecircncia fora proferida em 1924 e de laacute para caacute a exclamaccedilatildeo ldquoNatildeo tenho tempordquo estaacute voando cada vez mais de boca em boca em todos os lugares e setores Heidegger fora aliaacutes como em muitas vezes profeacutetico em relaccedilatildeo a algumas questotildees Natildeo eacute nem preciso dizer que ele chamou de teacutecnica estaacute vencendo nas querelas ideoloacutegicas do presente 29HEIDEGGER O conceito de tempo p 51
198
Somos o tempo mesmo isso eacute nossa condiccedilatildeo de ser Devemos pois evitar
que o tempo do reloacutegio impeccedila com que busquemos e vivenciemos o tempo em seu
sentido originaacuterio Por isso Heidegger nos momentos finais de sua conferecircncia
transforma a pergunta ldquoque eacute o tempordquo em ldquoquem eacute o tempordquo Somos
REFEREcircNCIAS
AGAMBEN Giorgio O que eacute o contemporacircneo Chapecoacute SC Argos 2009 BORGES Jorge Luiacutes Cinco visotildees pessoais Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2002 CAPRA Fritjof O Tao da fiacutesica Satildeo Paulo Cultrix 2006 ENDE Michael Momo e o senhor do tempo Satildeo Paulo Martins Fontes 1996 GAGNEBIN Jeanne Marie Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria Rio de Janeiro Imago 2005 HEIDEGGER Martin O conceito de tempo Lisboa Fim de Seacuteculo 1998 MONTAIGNE Michel de Os ensaios uma seleccedilatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 THOREAU Henry David Walden and Civil Disobedience United States of America Sterling Publishing Co 2012
ZARATUSTRA METACIacuteNICO
Rafael Rocha da Rosa1
RESUMO O objetivo deste artigo eacute cotejar a interpretaccedilatildeo foucaultiana sobre o cinismo com a criacutetica nietzschiana agrave cultura e seu projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores A partir de uma anedota sobre Dioacutegenes o ciacutenico Foucault desenvolve suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica tendo como ponto de partida o imperativo de transfigurar o valor da moeda Nessa tarefa eacute crucial a relaccedilatildeo que o autor estabelece entre moeda valores e normas posto que o cinismo efetivamente assume determinada posiccedilatildeo contra as convenccedilotildees diametralmente avessa aos haacutebitos e aos costumes sociais Haveria no cinismo um impulso destruidor de convencionalismos e das rotas culturais dominantes estabelecidas para e pela coletividade Assim a vida ciacutenica exprimiria um modo de viver transfigurando os valores e estilos de vida convencionais Portanto creio que haja uma feacutertil proximidade entre essas concepccedilotildees e o posicionamento filosoacutefico de Nietzsche com sua criacutetica agrave cultura e a afirmaccedilatildeo de uma transvaloraccedilatildeo dos valores Palavras-chave Cinismo Nietzsche Foucault Valor Cultura ABSTRACT The purpose of this article is to compare the foucaultian interpretation of cynicism with the Nietzschersquos critique of culture and his project of transvaluation of values From an anecdote on Diogenes the cynic Foucault develops his hypotheses about the true cynical life starting from the imperative to change the value of the currency In this task the relation that the author establishes between currency values and norms is crucial since cynicism effectively assumes a certain position against conventions diametrically averse to social habits and customs There would be in cynicism a destructive impulse to conventions and dominant cultural routes established for and by the collectivity Thus the cynical life would express a way of living transfiguring conventional values and lifestyles I therefore believe there is a fertile closeness between these conceptions and Nietzsches philosophical positioning his critique of culture and the affirmation of a revaluation of values Keywords Cynism Nietzsche Foucault Value Culture
Introduccedilatildeo
Ao abordar o tema da parresiacutea em A coragem da verdade Foucault encontra
no cinismo seu exemplo mais potente Entre os diversos exemplos utilizados pelo autor
no desenvolvimento de suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica destaco a famosa
1 Doutorando em Filosofia pela UERJ bolsista CAPES Contato rafael_rocha1yahoocombr
200
anedota sobre Dioacutegenes o Ciacutenico a respeito do imperativo de transfigurar o valor da
moeda Este ponto eacute rico de possibilidades interpretativas para o estabelecimento de um
viacutenculo entre o cinismo e o pensamento nietzschiano como a questatildeo da transvaloraccedilatildeo
de todos os valores2 malgrado as distinccedilotildees caracteriacutesticas de ambos
Creio que o filoacutesofo alematildeo interpretou alterou e agregou aspectos do
cinismo que seriam interessasses agrave elaboraccedilatildeo de seu proacuteprio pensamento o que o tornaria
herdeiro dessa corrente filosoacutefica Considerando o cinismo sob a oacutetica de Foucault
acredito que a principal personagem de Nietzsche Zaratustra possibilitaria essa chave de
leitura Nesse sentido o uso do prefixo grego meta cabe perfeitamente para nossos
propoacutesitos haja vista que eacute utilizado para indicar mudanccedila transformaccedilatildeo transposiccedilatildeo
Zaratustra seria um homem que vivenciaria na praacutetica as concepccedilotildees
filosoacuteficas de Nietzsche que passaria pelos processos patoloacutegicos do niilismo o
afastamento asceacutetico da cultura degenerada a afirmaccedilatildeo criadora de si a confecccedilatildeo de
novos valores e a sua difusatildeo para os homens superarem a condiccedilatildeo decadente Se
nenhum indiviacuteduo foi capaz ateacute entatildeo de passar pelas experiecircncias e pelos estaacutegios que
Nietzsche postula em sua filosofia o autor se viu obrigado a criar uma personagem que
tenha passado por esse percurso
Para compreendermos essa aproximaccedilatildeo entre o pensamento nietzschiano e o
cinismo cumpre abordar inicialmente a interpretaccedilatildeo foucaultiana sobre os mesmos
A arte de viver do asceta ciacutenico
Em seu uacuteltimo curso ministrado no Collegravege de France Foucault abordou a
relaccedilatildeo entre sujeito e verdade a questatildeo da fala franca a parresiacutea especificamente
Nessas liccedilotildees em oposiccedilatildeo agraves estruturas epistemoloacutegicas voltadas para a anaacutelise do
discurso verdadeiro o autor direciona sua atenccedilatildeo para o que denominou formas
aletuacutergicas ou seja os atos que caracterizam o sujeito que diz a verdade as formas e
modos de viver que tornam o indiviacuteduo reconheciacutevel pelos outros enquanto aquele que
pratica a fala franca que produz e diz a verdade
Apesar de ser uma noccedilatildeo fundamentalmente poliacutetica a parresiacutea possibilita a
Foucault abordar a relaccedilatildeo entre sujeito e verdade sob a oacutetica da accedilatildeo examinando as
2 Hipoacutetese abordada por Peter Sloterdjick em O quinto ldquoevangelhordquo de Nietzsche
201
praacuteticas de si e os modos de veridicccedilatildeo temas caros ao autor3 Isto eacute os saberes e as
relaccedilotildees de poder nos procedimentos que governam a conduta dos homens e como os
sujeitos satildeo constituiacutedos atraveacutes das praacuteticas de si Desse modo o filoacutesofo francecircs analisa
o eixo eacutetico do dizer-a-verdade em oposiccedilatildeo agrave dimensatildeo exclusivamente poliacutetica O autor
justifica essa escolha pela crise das instituiccedilotildees poliacuteticas enquanto lugar de praacutetica da
parresiacutea4 Assim a partir da parresiacutea como um modo de viver Foucault coloca a questatildeo
sobre como conduzir-se identificando nessa atitude a possibilidade do sujeito livre
autogovernar-se
Contudo a praacutetica da parresiacutea teria duas acepccedilotildees distintas uma negativa e
outra positiva O aspecto pejorativo seria o caso do parresiasta que eacute incapaz de conter e
filtrar sua fala descolando seu discurso de uma racionalidade e da verdade dizendo tudo
que vem agrave cabeccedila sem criteacuterios falando qualquer coisa que o instigue e motive O outro
caso seria o discurso fruto da racionalidade o dizer tudo anexado agrave verdade sem
mascarar dissimular ou ocultar nada a seu respeito e acreditando efetivamente naquilo
que eacute dito de modo que a fala corresponda de fato agrave opiniatildeo pessoal ou seja eacute
estritamente necessaacuterio um viacutenculo entre a verdade falada o pensamento daquele que diz
e seus atos
Outro ponto que o filoacutesofo francecircs destaca eacute a ameaccedila inerente agrave fala franca
A veracidade do parresiasta o situa numa tensatildeo com o ouvinte ameaccedilando-o a se tornar
viacutetima da reaccedilatildeo violenta daquele a que se dirige Assim a coragem de aventurar-se na
praacutetica da fala franca eacute determinante e teria duas faces a de assumir os riscos de colocar
em xeque a relaccedilatildeo com aquele que ouve e de arriscar a proacutepria vida ao dizer a verdade
Segue-se a definiccedilatildeo foucaultiana sobre a parresiacutea como a coragem da
verdade daquele que assume o risco seja ele qual for de dizer sua opiniatildeo seu
pensamento com toda a franqueza E o ouvinte eacute parte integrante desse jogo parresiaacutestico
na medida em que tambeacutem tem a coragem de ouvir a franqueza de seu interlocutor Desse
modo o dizer-a-verdade da parresiacutea eacute distinto das outras modalidades identificadas pelo
autor do teacutecnico do saacutebio e do profeta presentes na aleturgia socraacutetica Poreacutem a fala
franca de Soacutecrates seria marcada por especificidades que a distinguiria malgrado a
semelhanccedila das outras formas aletuacutergicas No entanto devido agraves limitaccedilotildees estruturais
deste artigo natildeo aprofundarei a discussatildeo sobre este ponto
3 ldquoA articulaccedilatildeo entre os modos de veridicccedilatildeo as teacutecnicas de governamentabilidade e as praacuteticas de si eacute no fundo o que sempre procurei fazerrdquo FOUCAULT A coragem da verdade p8 4 FOUCAULT A coragem da verdade p 63
202
Segundo Foucault mesmo que possua algumas caracteriacutesticas em comum
com as outras formas de dizer-a-verdade o estilo socraacutetico seria distinto delas pelos
fatores mencionados acima e principalmente pela coragem necessaacuteria agrave fala franca E
esse seria o fator capital que separaria a parresiacutea eacutetica da poliacutetica visto que Soacutecrates
distingue radicalmente seu proacuteprio dizer-a-verdade das trecircs outras grandes modalidades do dizer-a-verdade (profecia sabedoria ensino) segundo [] nessa forma de veridicccedilatildeo a parresiacutea a coragem eacute necessaacuteria [] Essa coragem da verdade ele deve exercer na forma de uma parresiacutea natildeo poliacutetica uma parresiacutea que se desenrolaraacute pela prova da alma Seraacute uma parresiacutea eacutetica5
Alcanccedilar conceitualmente a parresiacutea eacutetica eacute justamente um dos principais
propoacutesitos do autor pois dela parte a questatildeo do cuidado de si Por meio da harmonia
entre a maneira como se vive e a palavra dita articula-se a fala franca a um estilo de vida
Segue-se o interesse foucaultiano em Soacutecrates enquanto parresiasta haja vista que seu
modo de viver e seu discurso estariam arraigados expressando o princiacutepio do cuidado e
da praacutetica de si Por isso o filoacutesofo francecircs compreende a parresiacutea socraacutetica natildeo
pertencendo ao domiacutenio exclusivo da poliacutetica e sim da eacutetica cujos interesses seriam os
modos de vida
Ademais a existecircncia adquiriu uma dimensatildeo esteacutetica a partir da parresiacutea
socraacutetica6 A coragem de pocircr agrave prova seu modo de viver levou ao processo de dar forma
e estilo agrave vida que o autor denominou sem primazia de esteacutetica da existecircncia E Foucault
captou o momento em que foi instituiacutedo um nexo entre a aleturgia e a estetizaccedilatildeo da vida7
com Soacutecrates
Ao aceder ao tema da estiliacutestica da existecircncia o filoacutesofo francecircs passa entatildeo
a tratar da praacutetica ciacutenica que expressaria uma forma aletuacutergica extraordinaacuteria onde a
maneira como se vive estaria intrinsecamente atrelada agrave fala franca Este seria o tema
central de A coragem da verdade Ao ocupar-se da parresiacutea de Soacutecrates dos modos de
viver Foucault estaria preparando o terreno para sua questatildeo nevraacutelgica o cinismo
enquanto modo de vida extremamente singular articulado visceralmente ao imperativo
de dizer-a-verdade corajosamente
5 FOUCAULT A coragem da verdade p76 6 ldquopela emergecircncia e pela fundaccedilatildeo da parresiacutea socraacutetica a existecircncia foi constituiacuteda no pensamento grego como um objeto esteacutetico como objeto de percepccedilatildeo esteacutetica o biacuteos como obra de arterdquo FOUCAULT A coragem da verdade p141 7 ldquocomo o dizer-a-verdade nessa modalidade eacutetica que aparece com Soacutecrates no iniacutecio da filosofia ocidental interferiu com o princiacutepio da existecircncia como obra a ser modelada em toda sua perfeiccedilatildeo possiacutevelrdquo Ibid p 144
203
Para o autor ldquonatildeo se trata de competecircncia natildeo se trata de teacutecnica natildeo se trata
de mestre nem de obra De que se trata Trata-se [] da maneira como se viverdquo8 Por
conseguinte o cinismo seria o exemplo primaacuterio de uma filosofia que teria como ponto
de partida a vida como objeto de diligecircncia de uma praacutetica que incitaria os homens agrave arte
de si agrave elaboraccedilatildeo de certo modo de viver A atitude ciacutenica expressaria em uacuteltima
instacircncia o imperativo do cuidado de si
O uso da palavra ldquopraacuteticardquo justifica-se devido agrave liberdade inerente ao cinismo
que o torna refrataacuterio aos moldes da filosofia tradicional Seu teor de ensinamento oral
enquanto maneira de ser implicou em pouco material textual com parco delineamento
teoacuterico Sobreviveu como modo de vida atitude e natildeo doutrina escrita Seus adeptos
teriam a atenccedilatildeo voltada ao viver e natildeo agrave elaboraccedilatildeo de um manual tratado ou livro que
definisse conceitos temas hipoacuteteses sobre o cinismo O que natildeo evitou que alguns de
seus praticantes deixassem alguns escritos legados para a posteridade9 Natildeo obstante seja
pela praacutetica seja pela fraca teoria a tradiccedilatildeo ciacutenica foi popularizada na Antiguidade por
sua forma de disseminaccedilatildeo
Cumpre destacar a dimensatildeo asceacutetica da existecircncia ciacutenica A apropriaccedilatildeo
seguida da modificaccedilatildeo dessa noccedilatildeo implicaria na renuacutencia de convenccedilotildees e haacutebitos
sociais o que culminaria num tipo peculiar de ascese inerente ao cinismo
A ascese ciacutenica teria algumas especificidades Primeiramente ela extrapolaria
os limites entre a vida puacuteblica e privada posto que o ciacutenico natildeo teria segredos ou
privacidade sua existecircncia seria completamente desnudada aos olhos de todos
Despojado de casa lugar de intimidade e isolamento de roupas total ou parcialmente
ele satisfaz suas necessidades fisioloacutegicas na rua espaccedilo coletivo Em sua vida nada seria
oculto tudo seria drasticamente exposto A aplicaccedilatildeo extrema de natildeo ocultamento como
forma de conduta derrubaria e alteraria a moralizaccedilatildeo e o pudor convencional sobre os
haacutebitos naturais dos homens
Segundo seria o modo de viver sem misturas dependecircncias ou viacutenculos eacute
extremada no cinismo com a pobreza tomada como um componente da verdadeira vida
completamente desprovida de luxos e riquezas Haacute uma reduccedilatildeo ao miacutenimo das posses
concretas de modo que a inoacutepia seria tanto fiacutesica quanto mental natildeo sendo meramente
8 Ibid p 126 9 Consoante o filoacutesofo francecircs ldquoa tradiccedilatildeo ciacutenica natildeo comporta textos teoacutericos ou muitiacutessimo poucos Digamos em todo caso que o arcabouccedilo doutrinal do cinismo parece ter sido bem rudimentar [] Em todo caso o fato eacute atestado o cinismo foi uma filosofia por um lado de ampla implantaccedilatildeo social e por outro de um arcabouccedilo teoacuterico estreito exiacuteguo e elementarrdquo FOUCAULT A coragem da verdade p179
204
um ldquodesprendimento da almardquo Vale ressaltar que este ponto seria uma escolha isto eacute
atitude ativa e natildeo indiferenccedila resignada de uma condiccedilatildeo mediacuteocre Nas palavras do
autor ldquoela eacute uma elaboraccedilatildeo de si mesmo na forma de pobreza visiacutevel [] ela eacute uma
conduta efetiva de pobrezardquo10 Aleacutem disso haveria um imperativo para o desprendimento
uma busca por libertar-se de todo bem por mais iacutenfimo que este seja como uma simples
tigela para beber aacutegua jaacute que podemos juntar as matildeos em forma de cuia para reter ali o
liacutequido e leva-lo agrave boca11
Terceiro o da vida reta em conformidade com determinados costumes e
regras coletivas eacute retomado pelo ciacutenico e transmutado em sua base Ainda haacute a
conformidade mas natildeo ao que eacute cultural e criado pelo homem e sim ao que eacute oriundo da
natureza Ou seja o princiacutepio ao qual o cinismo concorda em sua existecircncia eacute a lei natural
e natildeo humana Segue-se a recusa agrave moral do grupo agraves convenccedilotildees sociais como a
constituiccedilatildeo de uma famiacutelia e os haacutebitos e tabus alimentares A concepccedilatildeo ciacutenica de
retidatildeo estaria inserida em uma dimensatildeo natural animal portanto O que geraria o efeito
escandaloso dessa praacutetica ao se contrapor ao elogio da razatildeo caracteriacutestico da
Antiguidade que a partir da animalidade atribuiacutea um valor de distinccedilatildeo para o humano
Por fim o quarto a vida soberana eacute retomada e revertida em uma forma
insolente a realeza ciacutenica um dos pontos nevraacutelgicos do cinismo segundo Foucault
ldquotemos aiacute nessa ideia do filoacutesofo como antirrei algo que estaacute no proacuteprio centro da
experiecircncia ciacutenica e da vida ciacutenica como verdadeira vida e outra vida e do ciacutenico como
verdadeiro rei e outro reirdquo12 Ao se proclamar rei o ciacutenico contesta os monarcas coroados
em seus tronos agindo como sua contraparte destacando acintosamente o quatildeo oco e
precaacuterio eles seriam A agudeza dessa posiccedilatildeo antagocircnica faz dele um antirrei por
descortinar os elementos fraacutegeis que embasam a soberania dos homens comuns
Para exercer seu domiacutenio o rei dependeria de uma seacuterie de fatores a educaccedilatildeo
e hereditariedade que garanta o acesso ao trono um exeacutercito para manter e expandir suas
terras aliados para garantir a coesatildeo de suas conquistas o triunfo sobre seus inimigos e
por uacuteltimo o fator acaso a que o monarca estaacute exposto e que pode arrebatar sua
monarquia Jaacute a forma reacutegia de cinismo o ciacutenico-rei seria um monarca autecircntico sua
vida seria de fato soberana assim como sua ldquorealezardquo Ele seria efetivamente
10 Ibid p227 11 Exemplo dado por Foucault sobre famosa anedota de Dioacutegenes o Ciacutenico 12 FOUCAULT A coragem da verdade p242
205
independente dispensando todos os elementos supracitados acima que sustentam outras
realezas
Aleacutem disso a praacutetica ciacutenica operaria uma radicalizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave
preocupaccedilatildeo e ao cuidado com o outro caracteriacutestico da vida soberana No cinismo tanto
os discursos quanto as liccedilotildees satildeo dispensadas alcanccedilando o limite do autossacrifiacutecio para
ocupar-se dos outros passando do gozo de si para certa renuacutencia de si Assim sua tarefa
assumiria uma feiccedilatildeo belicosa tanto interna quanto externa atacar e enfrentar os haacutebitos
as convenccedilotildees as instituiccedilotildees purgando os viacutecios que afetam a humanidade e enfrentar
a si mesmo seus proacuteprios desejos e paixotildees Portanto o ciacutenico seria um tipo de rei que
combateria por si pelos outros e desse modo sua maneira de viver conduziria agrave felicidade
e agrave plenitude de sua existecircncia
Essas alteraccedilotildees efetuadas na concepccedilatildeo de verdadeira vida expressam um
traccedilo crucial do cinismo a maacutexima ldquoalterar a moedardquo Um dos principais episoacutedios a
respeito de Dioacutegenes o Ciacutenico menciona o conselho dado a ele pelo oraacuteculo de Delfos
que o instigou a alterar o valor da moeda Tal liccedilatildeo ganha forccedila devido a duas versotildees
biograacuteficas sobre Dioacutegenes era filho de um banqueiro ou cambista algueacutem que
trabalhava com compra venda e troca de dinheiro cunhado e um ou outro foram acusados
de falsificaccedilatildeo dos valores monetaacuterios sendo expulsos de Sinope local onde viviam E a
partir dessa anedota Foucault desenvolve suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica
tendo como ponto de partida o imperativo de transfigurar o valor da moeda
O problema da verdadeira vida ciacutenica eacute [] a aproximaccedilatildeo que haacute [] entre moeda e costume regra lei Nomisma eacute a moeda Noacutemos eacute a lei Mudar o valor da moeda eacute tambeacutem eacute tomar certa atitude em relaccedilatildeo ao que eacute convenccedilatildeo regra lei [] eles vatildeo modificar a efiacutegie [] vatildeo fazer aparecer uma vida que eacute precisamente o contraacuterio do que era reconhecido tradicionalmente como a verdadeira vida [] o cinismo como careta da verdadeira vida13
O preceito de ldquoalterar o valor da moedardquo seria um fundamento primordial do
cinismo Este imperativo incitaria o sujeito ao cuidado e agrave praacutetica si reavaliando a forma
como vive e os valores adotados que foram estabelecidos e avaliados pelos outros Tal
maacutexima impele a uma tomada de posiccedilatildeo radical em relaccedilatildeo agrave forma como se vive
colocando em xeque as atitudes padronizadas por determinado valor coletivo
Nessa tarefa eacute crucial a relaccedilatildeo que o autor estabelece entre moeda valores
e normas posto que o cinismo efetivamente assume determinada posiccedilatildeo contra as
13 FOUCAULT A coragem da verdade p199-200
206
convenccedilotildees diametralmente avessa aos haacutebitos e agraves concepccedilotildees sociais Segundo
Foucault ldquoos ciacutenicos se opotildeem agraves leis divinas agraves leis humanas e a toda forma de
tradicionalidade ou de organizaccedilatildeo socialrdquo14 Isto eacute haveria um impulso destruidor de
convencionalismos e das rotas culturais dominantes estabelecidas para a coletividade E
tambeacutem a recusa de qualquer sofrimento ou accedilatildeo em prol da comunidade da poliacutetica da
religiatildeo da economia ou da famiacutelia Portanto o ciacutenico teria uma eacutetica singular
Assim o princiacutepio fundamental do cinismo de ldquoalterar o valor da moedardquo
conduz agrave radicalizaccedilatildeo de um estilo de vida livre que se distancia das artificias valoraccedilotildees
tradicionais dos costumes da moral vigente colocando em xeque o modo de viver
adotado pela cultura massificada dominante Esse seria um dos elementos mais marcantes
da praacutetica ciacutenica e que afetaria sua aleturgia
De acordo com o filoacutesofo francecircs as caracteriacutesticas do cinismo expressariam
uma forma privilegiada de parresiacutea haja vista que eacute no modo de viver que o dizer-a-
verdade se manifesta Ou seja para o ciacutenico eacute a proacutepria existecircncia e natildeo o discurso que
critica e potildee em xeque a sociedade e a cultura em que vive A liberdade e a autonomia de
suas praacuteticas seriam refrataacuterias agraves valoraccedilotildees normatizadoras dos costumes que submetem
os indiviacuteduos No cinismo a proacutepria existecircncia seria como uma imagem caricatural e
impertinente dos valores seguidos por determinada sociedade no paradoxo de sua adesatildeo
e ruptura imediata a estes
A esse agir contraditoacuterio segue-se um tema caro a Foucault a dimensatildeo
ciacutenica da coragem da verdade Isto eacute pocircr a vida em risco para mostrar aos homens o
quanto eles seriam paradoxais por estimarem determinados valores no campo teoacuterico e o
rechaccedilam no espaccedilo praacutetico Ou seja o ciacutenico faz atraveacutes da maneira como vive com
que os indiviacuteduos condenem e rejeitem as accedilotildees do que eles mesmos valorizam e prezam
em pensamento Consequentemente a existecircncia no cinismo eacute exposta ao perigo pelo
ato e natildeo pelo discurso
E esta seria uma das argumentaccedilotildees que justificariam a hipoacutetese foucaultiana
ldquoeis por que o cinismo [] se relaciona agrave questatildeo das praacuteticas e das artes da existecircncia eacute
que ele foi a forma ao mesmo tempo mais rudimentar e mais radical na qual se colocou a
questatildeo dessa forma particular de vida [] que eacute a vida filosoacuteficardquo15 A verdadeira vida
ciacutenica concebe a filosofia enquanto exerciacutecio para a existecircncia e natildeo mera teoria
dissociada da praacutetica No cinismo o filosofar natildeo seria um campo estritamente discursivo
14 FOUCAULT A coragem da verdade Ibid p175 15 Ibid p208
207
e conceitual seria uma forma de viver que exigira a coragem de viver efetivamente suas
verdades
Tal estilo de vida seria marcado como vimos acima por suas praacuteticas
asceacuteticas Entrementes natildeo seria um ascetismo provocado por nenhuma divindade por
sinais externos e espirituais com uma finalidade religiosa Ao contraacuterio o objetivo seria
o modo de viver dos homens nessa existecircncia natildeo em outra tanto que o ciacutenico visa a
mudanccedila dos valores que influenciam a sociedade em que estaacute marginalmente inserido
E a escolha por essa maneira de viver seria individual se daria a partir do momento em
que o sujeito flagrasse em si sua propensatildeo Nas palavras do autor
a missatildeo ciacutenica soacute seraacute reconhecida na praacutetica da aacuteskesis A ascese o exerciacutecio a proacutepria praacutetica de toda resistecircncia que faz viver na natildeo dissimulaccedilatildeo na natildeo dependecircncia na diacriacutetica entre o que eacute bom e o que eacute ruim tudo isso vai ser o proacuteprio sinal da missatildeo ciacutenica Ningueacutem eacute chamado ao cinismo como Soacutecrates foi pelo deus de Delfos que lhe mandou um sinal nem como seratildeo os apoacutestolos pelo dom das liacutenguas que teratildeo recebido O ciacutenico se reconhece a si mesmo e ele estaacute sozinho consigo mesmo para se reconhecer na prova que faz da vida ciacutenica16
Essa relaccedilatildeo entre cinismo e ascese eacute vital Foucault aponta determinadas
vertentes do cristianismo que teriam sido responsaacuteveis pela propagaccedilatildeo do modo de viver
ciacutenico na Europa17A pobreza o despojamento o afastamento e a renuacutencia implicam
certa forma de ascetismo que foi adotado por alguns segmentos do cristianismo como
os franciscanos e dominicanos18
O ascetismo seria inerente agrave estilizaccedilatildeo da existecircncia por meio das praacuteticas
ciacutenicas A seacuterie de exerciacutecios corporais mentais o afastamento dos haacutebitos culturais
como vestimenta alimentaccedilatildeo e relaccedilotildees sociais demarcam bem essa ligaccedilatildeo O modo
de vida ciacutenico seria alcanccedilado por certa forma de ascese que purgaria o corpo e a mente
dos adeptos das convenccedilotildees e costumes tradicionais possibilitando a parresiacutea um viver
independente e coerente com a verdade
Conforme o autor no cinismo ldquoo ensino filosoacutefico natildeo tinha essencialmente
como funccedilatildeo transmitir conhecimentos [] Tratava-se de armaacute-los para a vida para que
16 FOUCAULT A coragem da verdade p263 17 ldquoO primeiro suporte da transferecircncia e da penetraccedilatildeo do modo de ser ciacutenico na Europa cristatilde foi constituiacutedo eacute claro pela proacutepria cultura cristatilde e pelas praacuteticas e pelas instituiccedilotildees do ascetismordquo Ibid p158 18 ldquoOs franciscanos com seu despojamento sua erracircncia sua pobreza sua mendicidade satildeo ateacute certo ponto os ciacutenicos da cristandade medieval Quanto aos dominicanos pois bem vocecircs sabem que eles proacuteprios se chamavam de Domini canes (os catildees do Senhor)rdquo Ibid p160
208
pudessem enfrentar os acontecimentosrdquo19 Isto eacute o sentido de suas praacuteticas estaria voltado
para o corpo fiacutesico e para a vida neste mundo Logo seria uma ascese imanente natildeo seria
uma ponte para outra existecircncia Utilizando a linguagem nietzschiana seria um ascetismo
intramundano e natildeo trasmundano natildeo teria o sentido do ceacuteu teria o sentido da Terra
Logo a verdadeira vida ciacutenica consolidaria entatildeo uma soberania asceacutetica de
si estetizando a existecircncia troccedilando da cultura e dos modos de viver civilizados
rechaccedilando-os e transfigurando seus valores Assim acredito que haja uma proximidade
entre essas concepccedilotildees e a filosofia nietzschiana com sua criacutetica agrave metafiacutesica agrave cultura e
a afirmaccedilatildeo de uma transvaloraccedilatildeo dos valores E a principal personagem de Nietzsche
Zaratustra expressaria esse ascetismo ciacutenico Na parte que segue me deterei nessa
hipoacutetese
Cinismo de Zaratustra
Ao estabelecer um viacutenculo entre o pensamento nietzschiano e o cinismo
cumpre destacar que Nietzsche natildeo repete e adota incondicionalmente os preceitos da
tradiccedilatildeo ciacutenica Ele se apropria do cinismo enquanto um modo de vida filosoacutefico que
aponta para um desdobramento praacutetico e natildeo soacute discursivo e a utiliza para a elaboraccedilatildeo
de sua proacutepria visatildeo de mundo e para a estruturaccedilatildeo de seu pensamento Algo
extremamente importante para sua reflexatildeo Desse modo meu objetivo eacute captar traccedilos do
cinismo antigo que foram anexados pelo autor de Zaratustra na composiccedilatildeo de sua
filosofia
Em minha hipoacutetese a ascese ciacutenica seria um elemento determinante para o
projeto nietzschiano de transvaloraccedilatildeo e interpreto Zaratustra como um ciacutenico de acordo
com a perspectiva foucaultiana expressa em A coragem da verdade Contudo o filoacutesofo
francecircs natildeo estabeleceu esse viacutenculo entre sua interpretaccedilatildeo do cinismo e o pensamento
nietzschiano poreacutem o diaacutelogo entre ambos eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre as
posiccedilotildees filosoacuteficas
Logo no iniacutecio da obra que leva o nome do protagonista ele inicia sua jornada
apartando-se do conviacutevio em sociedade e por dez anos mantem-se afastado dos homens
19 FOUCAULT A coragem da verdade p181
209
e de seu modo de viver20 Contudo tal distanciamento eacute sazonal como o leitor descobre
ao longo do livro sendo fundamental para purgar a personagem do miasma intriacutenseco aos
valores da cultura em que vivia E tambeacutem para que ele se fortaleccedila e confeccione novos
valores para depois retornar aos indiviacuteduos e propagar sua contra doutrina colocando em
xeque aquelas valoraccedilotildees niilistas
Tal postura itinerante seria semelhante agrave metaacutefora de Epicteto adotada por
Foucault ao compreender o ciacutenico como uma espeacutecie de batedor enviado agrave frente da
humanidade para avaliar as condiccedilotildees de hostilidade ou de favorecimento para sua vida
no mundo E posteriormente retornaria agrave sociedade para comunicar e anunciar a verdade
do que descobriu Esse movimento de afastamento e proximidade eacute caracteriacutestico de
Zaratustra ao longo de sua obra Ao final dos capiacutetulos depois de ter com os homens ele
volta agrave solidatildeo para apoacutes certa passagem de tempo regressar agrave civilizaccedilatildeo
A recusa ciacutenica aos costumes o rompimento com as convenccedilotildees sociais e
haacutebitos culturais seriam os primeiros passos dados por Zaratustra E o longo periacuteodo de
solidatildeo que possibilitou o cultivo de sua gaia sabedoria o transformou profundamente
Assim que desce a montanha e deixa de lado o isolamento ele encontra um velho santo
que o reconhece e percebe imediatamente sua mudanccedila
Natildeo me eacute estranho esse andarilho por aqui passou haacute muitos anos Chamava-se Zaratustra mas estaacute mudado Naquele tempo levava tuas cinzas para os montes queres agora levar teu fogo para os vales Natildeo temes o castigo para o incendiaacuterio Sim reconheccedilo Zaratustra Puro eacute seu olhar e sua boca natildeo esconde nenhum nojo Natildeo caminha ele como um danccedilarino Mudado estaacute Zaratustra tornou-se uma crianccedila Zaratustra um despertado eacute Zaratustra que queres agora com os que dormem 21
Essa passagem eacute bastante feacutertil sobre alguns dos efeitos que o ascetismo tem
sobre Zaratustra A renuacutencia ao conviacutevio foi responsaacutevel pela depuraccedilatildeo do grande asco
agrave vida um sentimento niilista22 e por meio da solidatildeo asceacutetica o vazio inerente aos valores
20 ldquoAos trinta anos de idade Zaratustra deixou sua paacutetria e o lago de sua paacutetria e foi para as montanhas Ali gozou do seu espiacuterito e da sua solidatildeo e durante dez anos natildeo se cansou Mas enfim seu coraccedilatildeo mudourdquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoProacutelogordquo sect1 p11 21 Ibid ldquoProacutelogordquo sect2 p 11 22 Nessa passagem Nietzsche estabelece uma relaccedilatildeo direta entre nojo e niilismo sendo aquele um sentimento de asco que afeta o indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave vida ao ser acometido pelo segundo O niilismo seria o efeito nocivo que aflige o homem ao ser destituiacutedo de valores incondicionais que orientem sua existecircncia deixando-o desnorteado como um barco em um mar revolto ldquoquando vos mandei destroccedilar os bons e as taacutebuas dos bons somente entatildeo embarquei o homem para seu alto-mar E somente agora lhe vem o grande pavor o grande olhar ao redor a grande doenccedila o grande nojo o grande enjoo do marrdquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDas velhas e novas taacutebuasrdquo sect28 p204
210
decadentes da sociedade foi superado A renuacutencia agrave cultura eacute determinante para a tarefa
criadora de novas apreciaccedilotildees23 Esse eacute o fogo que a personagem quer levar aos homens
incendiar aquele modo decadente de viver destruir e queimar suas taacutebuas de valores24
Nessa mudanccedila por que passou o protagonista tornou-se leve e apto para superar o pesado
espiacuterito de gravidade que conspurca a vida e o mundo25 que as concebe enquanto
sofrimento e doenccedila Ao praticar determinada ascese o bufatildeo de Nietzsche torna-se
crianccedila novamente alcanccedila a pureza necessaacuteria agrave plena adesatildeo ao jogo incessante de
destruiccedilatildeo e criaccedilatildeo de novas metas e perspectivas para a existecircncia constantemente
significando e ressignificando a si mesmo26
O trecho supracitado mostra o estado em que Zaratustra se encontrava ao fugir
da civilizaccedilatildeo ldquonaquele tempo levava tuas cinzas para os montesrdquo diz o velho santo
Cinzas satildeo resiacuteduos de um corpo queimado e tambeacutem podem ser restos mortais Entatildeo a
personagem estava ferida fiacutesica ou mentalmente de tal modo que buscou convalescer no
isolamento Natildeo suportou continuar entre os homens Por quecirc O que motivou essa recusa
ao conviacutevio humano O que o afetou desse modo deixando-o em tal estado A resposta
definitiva natildeo eacute dada pelo livro O que possibilita o infinito exerciacutecio interpretativo
A constataccedilatildeo da fraqueza e dependecircncia de seus contemporacircneos de sua
incapacidade para viver uma vida autocircnoma e livre poderia responder a essas indagaccedilotildees
Por meio de sua contra doutrina o protagonista mostra-se avesso agrave nociva vontade de
verdade que apascentou e reduziu o homem a um animal de rebanho que o tornou crente
e dependente de valores absolutos que garantissem alguma seguranccedila para sua existecircncia
Sua aversatildeo eacute tamanha que ao dirigir-se agraves pessoas na cidade mais proacutexima
que encontrou umas das primeiras coisas ditas por Zaratustra foi ldquoo homem eacute algo a ser
superadordquo27 Ou seja ele afirma a necessidade de ultrapassar o atual estado das coisas
visto que permanecer fiel agravequele modo de viver seria a ruiacutena do homem pois seus valores
estariam fatalmente comprometidos
23 ldquolonge do mercado e da fama se passa tudo que eacute grande longe do mercado e da fama habitaram desde sempre os inventores de novos valores [] foge meu amigo para tua solidatildeo e para onde o ar eacute rude e forterdquo Ibid ldquoDas moscas do mercadordquo p53 24 ldquoOacute meus irmatildeos destroccedilai destroccedilai as velhas taacutebuas de valoresrdquo Ibid ldquoDas velhas e novas taacutebuasrdquo sect10 p193 25 ldquoPesadas satildeo para ele a terra e a vida e assim quer o espiacuterito de gravidade [] demasiados valores e palavras pesadas potildee ele sobre si ndash e entatildeo a vida lhe parece um desertordquo Ibid ldquoDo espiacuterito de gravidaderdquo sect2 p184 26 ldquoInocecircncia eacute a crianccedila e esquecimento um novo comeccedilo um jogo [] sim para o jogo da criaccedilatildeo meus irmatildeos eacute preciso um sagrado dizer-simrdquo Ibid ldquoDas trecircs metamorfosesrdquo p29 27 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoProacutelogordquo sect3 p13
211
Entrementes essa tarefa seria perigosa posto que colocaria sua proacutepria vida
em risco Tanto que ao expor sua contra doutrina agraves pessoas da cidade foi execrado e
ameaccedilado de morte ldquoVai-te embora desta cidade oacute Zaratustra muitos te odeiam
Odeiam-te os bons e os justos e te chamam de seu inimigo e desprezador odeiam-te os
crentes da verdadeira feacute e te chama de perigo para a multidatildeo [] Tua sorte foi que te
juntaste ao cachorro morto ao te rebaixares assim te salvaste por hoje Mas deixa esta
cidade ndash ou amanhatilde salto sobre ti um vivo sobre um mortordquo28 Essa passagem expressa
o efeito da contra doutrina de Zaratustra nos adeptos da vontade de verdade O
protagonista expocircs sua criacutetica agrave cultura dos homens e pocircs-se em perigo de morte ao fazecirc-
lo Tal qual o ciacutenico que arrisca a proacutepria vida em sua tarefa de alterar a moeda ou seja
transformar os valores que regram a existecircncia dos indiviacuteduos O bufatildeo de Nietzsche
almeja suplantar a cultura vigente e para esse fito tem a coragem de se colocar em risco
Assim a coragem eacute atributo imprescindiacutevel no projeto de transvaloraccedilatildeo
Coragem para romper com as relaccedilotildees sociais com o conviacutevio humano com os haacutebitos
com os costumes com certo modo caduco de viver Ter a coragem de reconfigurar e
orientar sua existecircncia ao sabor de sua proacutepria verdade seria tarefa para os raros ldquoser
verdadeiro ndash poucos satildeo capazes dissordquo29 Esse foi o primeiro passo dado por Zaratustra
em sua jornada para se tornar o mestre do eterno retorno Ou seja ele assumiu os riscos
de iniciar uma vida asceacutetica ao renunciar ao modo de viver predominante em sua cultura
e seus valores supremos
O evento catastroacutefico da Modernidade a ruiacutena da velha divindade solapa
definitivamente a posiccedilatildeo suprema e incondicional atribuiacuteda agrave verdade donde emanava
valores e sentidos absolutos Em face desse vazio angustiante fruto da ausecircncia de alento
transcendental a praacutetica de si eacute capital o cuidado de si eacute tarefa aacuterdua do indiviacuteduo No
entanto a verdade singular e provisoacuteria ainda seria possiacutevel no que Nietzsche denominou
esteacutetica da existecircncia atividade artesanal de lidar com o teor plaacutestico da vida
Tal concepccedilatildeo eacute parte determinante da contra doutrina de Zaratustra ensinar
os homens a cuidarem de si em uma terra ausente de um Pai transcendental que zelaria
por todos Por isso a personagem incita os indiviacuteduos a acordarem para a infinita liberdade
oriunda da morte de Deus instiga-os agrave felicidade proveniente da capacidade readquirida
de criar novos soacuteis e mundos para viver A natildeo desprezar o corpo e os afetos pois eacute a
28 Ibid ldquoProacutelogordquo p21-22 29 Ibid ldquoDe velhas e novas taacutebuasrdquo p191
212
partir deles que teriacuteamos nossa criadora paleta de cores30 Essa nova atitude tornaria o
sujeito capaz de criar e avaliar novamente rechaccedilando as estimaccedilotildees e apreciaccedilotildees alheias
e afirmando as suas proacuteprias E fatalmente destruir os antigos valores arraigados pela
cultura pelo costume pelas convenccedilotildees31
A postura de Zaratustra remonta agrave do ciacutenico cujo estilo de vida independente
e livre coloca em xeque os valores que orientam a maneira com as pessoas vivem Este
por meio de uma conduta asceacutetica primorosa zelaria por todos propagando o cuidado de
si pela preocupaccedilatildeo com os homens mostrando pelo exemplo de sua proacutepria existecircncia
o quatildeo paradoxal seria o modo de viver dominante O bufatildeo de Nietzsche diz ldquoeu amo
os homensrdquo e ldquoquero ensinar aos homens o sentido do seu serrdquo32 Ou seja o protagonista
natildeo fica isolado em sua montanha ele desce para compartilhar seu leve saber alegre
explicitando sua diligecircncia com os indiviacuteduos ldquoposso novamente descer para junto de
meus amigos e inimigos Zaratustra pode novamente falar e presentear e fazer o melhor
para os que mais amardquo33 Logo a ascese ciacutenica eacute livremente apropriada pelo filoacutesofo
alematildeo e inserida na contra doutrina de seu principal personagem que mesmo agrave margem
da sociedade zela por ela cuidando de seus integrantes Mas natildeo para manter o estado
vigente de sua cultura e sim para sua radical variaccedilatildeo dado que ldquoo homem eacute algo que
deve ser superadordquo34
Assim a esteacutetica da existecircncia seria um ponto vital do pensamento
nietzschiano Apoacutes a morte de Deus Nietzsche conduz suas reflexotildees de modo a orientar
inuacutemeros modos de vidas possiacuteveis Seu pensamento postula o juacutebilo diante da nova
liberdade e de uma vida prenhe de significaccedilotildees possiacuteveis em detrimento de uma tristeza
niilista que acomete os fracos acovardados que se massificam em rebanho e que recusam
a pluralidade de sua potecircncia criadora
Estetizar a existecircncia seria cuidar de si nesse novo mundo plural assumir os
riscos e lidar com todo acaso e adversidade inerente agrave vida Viver de modo a repetir sua
existecircncia infinitas vezes afirmando suas escolhas e todo acontecimento nocivo ou natildeo
dado que toda experiecircncia por que passa o indiviacuteduo eacute determinante para sua composiccedilatildeo
30 ldquoO corpo eacute uma grande razatildeo uma multiplicidade [] haacute mais razatildeo em teu corpo do que em tua melhor sabedoriardquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDos desprezadores do corpordquo p35 31 ldquoApenas atraveacutes do estimar existe valor e sem o estimar seria oca a noz da existecircncia Escutai oacute criadores Mudanccedila nos valores ndash isso eacute mudanccedila nos criadores Quem tem de ser um criador sempre destroacuteirdquo Ibid ldquoDas mil metas e uma soacute metardquo p58 32 Ibid ldquoProacutelogordquo sect2 e sect7 p12 e p21 33 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoO menino com o espelhordquo p80 34 Ibid ldquoProacutelogordquo sect3 p13
213
No pensamento nietzschiano esse cuidado para consigo seria necessaacuterio
dado que a fonte que atribuiacutera tais valores secou Assim certa ascese eacute crucial para o
indiviacuteduo recuperar sua potecircncia criadora dado que os valores degenerados da cultura
embotaram tal capacidade
O ascetismo de Zaratustra como do ciacutenico seria despojado de qualquer
conotaccedilatildeo trasmundana Para o Nietzsche uma das questotildees mais candentes seria o modo
de viver em um mundo cujo encanto se perdeu cujo valor transcendental se apagou Para
Foucault a soberania da existecircncia ciacutenica expressaria tal ventura dado que exprime ldquoa
alegria de quem aceita seu destino e natildeo conhece por conseguinte nenhuma falta
nenhuma tristeza e nenhum temor Tudo o que eacute dureza de existecircncia tudo que eacute privaccedilatildeo
e frustraccedilatildeo tudo isso se reverte num exerciacutecio de soberania sobre sirdquo35 Essa postura eacute
cara ao nietzschianismo expressa na concepccedilatildeo do amor fati36 a plena adesatildeo agrave vida
aceitando-a e afirmando-a sem descontos com tudo que for caracteriacutestico da mesma dor
sofrimento prazer juacutebilo
Ambas apontam para a celebraccedilatildeo de um viver autocircnomo livre de valoraccedilotildees
ou significaccedilotildees supremas que zelem e orientem a vida dos homens O devir inerente ao
mundo seria vivenciado independente de seus efeitos negativos ou positivos e natildeo
controlado por alguma instacircncia suprema A postura afirmativa de lidar com a
adversidade aponta para a potencializaccedilatildeo das capacidades do sujeito expresso na
maacutexima nietzschiana ldquoo que natildeo me mata me fortalecerdquo37 e na interpretaccedilatildeo foucaultiana
ldquoas pancadas portanto fazem crescer Elas potildeem a prova treinam aperfeiccediloamrdquo38
Assim o viacutenculo entre a contra doutrina de Zaratustra e o cinismo eacute prenhe de
possibilidades
Segundo Foucault um dos traccedilos caracteriacutesticos do cinismo eacute sua dimensatildeo
praacutetica enquanto modo de viver Tal posiccedilatildeo eacute cara agrave Nietzsche que incita seus leitores
a assumirem uma posiccedilatildeo ativa em relaccedilatildeo a suas vidas ldquosomente quem faz aprenderdquo 39
Ou seja a aprendizagem de seu pensamento se daria pela accedilatildeo e natildeo soacute pelo discurso
Apesar de o filoacutesofo alematildeo ter professado seu pensamento por escritos a questatildeo eacutetica
35 FOUCAULT A coragem da verdade p272 36 ldquominha foacutermula para a grandeza no homem eacute amor fati nada querer diferente seja para traacutes seja para frente seja em toda a eternidade Natildeo apenas suportar o necessaacuterio menos ainda ocultaacute-lo [] mas amaacute-lordquo NIETZSCHE Ecce Homo ldquoPor que sobu tatildeo inteligenterdquo sect10 p49 37 NIETZSCHE Crepuacutesculo dos iacutedolos ldquoMaacuteximas e Flechasrdquo sect8 p10 38 FOUCAULT A coragem da verdade p 264 39 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoO mais feio dos homensrdquo p 253
214
eacute um de seus principais interesses Ademais o autor elegeu para sua filosofia qualidades
praacuteticas que conduzam agrave accedilatildeo e agrave transformaccedilatildeo do proacuteprio modo de viver
Estimo um filoacutesofo na medida em que ele pode dar um exemplo [] mas este exemplo deve ser dado natildeo somente por livros mas pela vida cotidiana como os filoacutesofos gregos ensinaram pela expressatildeo do rosto atitude o vestuaacuterio o regime alimentar os costumes muito mais do que pelo que se diz pelo que se escreve Como noacutes estamos ainda longe na Alemanha de poder realizar essa corajosa evidecircncia de uma vida filosoacutefica40
Esse trecho possibilita o estabelecimento de uma relaccedilatildeo direta com o
cinismo Vimos anteriormente de que maneira a vida filosoacutefica ciacutenica conteacutem as
caracteriacutesticas elogiadas por Nietzsche na citaccedilatildeo acima O filoacutesofo alematildeo almejou
elaborar um pensamento que conduzisse a uma vida filosoacutefica potente o suficiente para
confrontar-se com a ordem cultural estabelecida Daiacute a coragem inerente a essa atitude
posto que todo seu agir deveria ser um ataque agrave sociedade a fim de transformaacute-la
As reflexotildees nietzschianas questionavam valores totalizantes colocando em
xeque as verdades incondicionais que massificaram os homens em rebanhos Assim o
leve saber alegre de seu principal personagem seria refrataacuterio agraves tradicionais formas de
conhecimento Tanto que Zaratustra visa a autonomia e independecircncia dos indiviacuteduos
ldquoEste eacute o meu caminho ndash qual eacute o vosso Assim respondi aos que me perguntaram pelo
lsquocaminhorsquo Pois o caminho ndash natildeo existerdquo41 Desse modo Nietzsche propotildee uma filosofia
que enfatiza a singularidade evitando novos dogmas conceituais e discursivos dado que
seu interesse eacute que seu leitor se torne quem ele eacute soberano de si
Nesse sentido forccedila e luta satildeo traccedilos decisivos no projeto nietzschiano de
transvaloraccedilatildeo dos valores para postular novas formas de viver Os fracos desejariam a
antiga existecircncia agrilhoada agrave velha divindade agrave obsoleta forma de vida pautada nas
valoraccedilotildees incondicionais e ser despojado dessa base tornaacute-lo-ia triste niilista Somente
os fortes celebrariam a ventura desse novo mundo a felicidade de se pocircr agrave prova e
enfrentar a decadente cultura vigente
Tal caracteriacutestica eacute intriacutenseca ao cinismo conforme Foucault afirma ldquoo
ciacutenico eacute um filoacutesofo em guerrardquo42 Ele assume por seu estilo singular de viver um ataque
direto agrave cultura de sua sociedade ldquoo combate dos ciacutenicos [] eacute um combate contra
40 NIETZSCHE Schopenhauer educador p 350 41 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDo espiacuterito de gravidaderdquo p118 42 FOUCAULT A coragem da verdade p264
215
costumes contra convenccedilotildees contra instituiccedilotildees contra leis contra todo um estado da
humanidaderdquo43 A praacutetica ciacutenica exige forccedila e domiacutenio de si para o enfrentamento
incessante ao modo de vida dominante e para a renuacutencia dos haacutebitos sociais
convencionais Assim ele encontra sua felicidade ao se ocupar de si e dos outros O ciacutenico
luta pelos homens pela humanidade dispensando a doutrina e sem massificar os
indiviacuteduos com discursos totalizantes A ascese da vida ciacutenica visa agrave transformaccedilatildeo pelo
exemplo de sua singularidade
Logo o tema nietzschiano da esteacutetica da existecircncia conduziria a uma
dimensatildeo praacutetica agrave luz das hipoacuteteses foucaultianas sobre o cinismo As reflexotildees do
filoacutesofo francecircs abrem novas perspectivas de interpretaccedilatildeo sobre o pensamento de
Nietzsche na medida em que via Foucault seria possiacutevel compreender Zaratustra
enquanto asceta Algo de suma importacircncia e contraditoacuterio agrave primeira vista devido agrave
terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da moral
A hipoacutetese da ascese de Zaratustra salta aos olhos logo no iniacutecio da jornada
da referida personagem no entanto a oposiccedilatildeo ao ascetismo feita pelo autor na obra
supracitada impede o desenvolvimento dessa argumentaccedilatildeo Todavia a interpretaccedilatildeo de
Foucault sobre o cinismo abre a possibilidade de lermos o bufatildeo de Nietzsche enquanto
um asceta ciacutenico A renuacutencia ao estilo de vida predominante em sua eacutepoca assim como
a negaccedilatildeo radical dos valores estanques que orientaram seus contemporacircneos conduzem
a certa forma de ascetismo Eacute contra essa sociedade pautada na consolaccedilatildeo proveniente
dos discursos totalizantes que o filoacutesofo alematildeo se afasta e declara guerra
Ao cotejar A coragem da verdade com Assim falou Zaratustra a riqueza
oriunda das semelhanccedilas eacute imensa Malgrado as distinccedilotildees dos contextos histoacutericos e
filosoacuteficos e com as devidas ressalvas conceituais estabelecer um diaacutelogo entre ambos eacute
possiacutevel e fundamental para a compreensatildeo de alguns pontos do pensamento
nietzschiano como a dimensatildeo praacutetica de sua contra doutrina do leve saber alegre
Conclusatildeo
Nietzsche posterga a confianccedila de uma vida orientada por valores irrestritos
e anuncia a morte de Deus acontecimento dramaacutetico da Modernidade que lanccedilaria os
43 Ibid p247
216
indiviacuteduos em mundo de caos e puro devir O resultado fisioloacutegico imediato seria o
niilismo negaccedilatildeo da vontade e a anguacutestia em face de um horizonte ausente de sentido
Para superar o niilismo e suplantar a cultura decadente de sua eacutepoca o autor
apresenta seu leve saber alegre a contra doutrina de Zaratustra Esse novo conhecimento
afirmaria a celebraccedilatildeo total da vida e da liberdade proveniente do ocaso da velha
divindade Destituiacutedo de valores supremos que encerraram sua existecircncia o indiviacuteduo
encontraria a ventura de viver em um lugar com infinitas possibilidades
Assim as reflexotildees de Nietzsche conduziriam a uma eacutetica a um modo de
viver nesse mundo ausente de discursos totalizantes O autor se preocupou em exprimir
uma filosofia que tivesse uma dimensatildeo praacutetica que incitasse ao ato em face da cultura
nociva que envenenaria o sujeito com concepccedilotildees torpes
No entanto natildeo interpreto o pensamento nietzschiano como um discurso de
massa que vise regrar as atitudes dos homens Ao contraacuterio o filoacutesofo instiga seu leitor
a ser autor de sua existecircncia que assuma uma posiccedilatildeo ativa em sua vida e renegue a
mentalidade dominante que o arrebanha e o torna cativo de riacutegidos valores
Uma das metas do autor eacute o surgimento de uma nova estirpe de homem um
indiviacuteduo criador e autocircnomo que atuaria como uma maacutequina de guerra contra a
concepccedilatildeo de mundo orientada por discursos totalizantes que entorpeceriam a potecircncia
criadora singular Para tornar-se livre e independente o sujeito deveria praticar certa
forma de ascese renunciar ao modo de viver comumente aceito recusar e transformar os
haacutebitos que regram a vida coletiva e romper com a visatildeo de mundo pautada nas valoraccedilotildees
engessados pelo costume
As posiccedilotildees filosoacuteficas tomadas por Nietzsche permitem que seja considerado
um herdeiro da corrente ciacutenica na medida em que existem alguns pontos de contato entre
as duas filosofias Portanto poderiacuteamos consideraacute-lo um metaciacutenico visto que realizou
variaccedilotildees e interpretaccedilotildees de alguns preceitos e se apropriou a sua maneira do que
poderia potencializar seu pensamento
Bibliografia
NIETZSCHE Assim falou Zaratustra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011
__________ Ecce Homo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008
217
__________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006
__________ Schopenhauer educador Satildeo Paulo Prumo 2012
FOUCAULT A coragem da verdade Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2011
SLOTERDJICK P O quinto ldquoevangelhordquo de Nietzsche Rio de Janeiro Tempo brasileiro 2004
A MODERNIDADE lsquoNArsquo FILOSOFIA DE DESCARTES
A CRIacuteTICA DAS FORMAS SUBSTANCIAIS
William Teixeira1
RESUMO O objetivo desse artigo eacute mostrar como Descartes elaborou sua filosofia mecanicista Assim o primeiro passo para atingir esse objetivo levou Descartes a criticar e abandonar a noccedilatildeo de lsquoforma substancialrsquo a qual era amplamente empregada pelos escolaacutesticos para explicar todos os acontecimentos relativos aos seres naturais de uma maneira qualitativa Tendo descartado as formas substanciais o proacuteximo passo era estabelecer um novo objeto de estudo para a filosofia natural o qual ele encontrou na mateacuteria corpoacuterea (res extensa) e suas propriedades geomeacutetricas Dessas modificaccedilotildees introduzidas por Descartes vai emergir tambeacutem um novo meacutetodo de investigar os fenocircmenos naturais baseado na mediccedilatildeo e precisatildeo matemaacuteticas mais comprometido com a lsquoepistemologia platocircnicarsquo do que com a lsquoepistemologia aristoteacutelicarsquo Noacutes concluiremos afirmando que Descartes estava em acordo com muitos de seus contemporacircneos notavelmente Bacon e Galileu pensadores que estavam engajados em combater a filosofia formalista de Aristoacuteteles Junto com eles Descartes deu sua contribuiccedilatildeo para a renovaccedilatildeo da filosofia ocidental Palavras-chaves Descartes Escolaacutestica Filosofia natural Forma substancial Res extensa ABSTRACT The aim of this paper is to show how Descartes worked out his mechanistic philosophy So the first step to reach this goal led Descartes to criticize and abandon the notion of lsquosubstantial formrsquo which was largely employed by the schoolmen to explain all events concerning natural beings in a qualitative way Having discharged the substantial form the next step was to establish a new subject-matter for natural philosophy which he found in the material body (res extensa) and its geometrical properties From these modifications introduced by Descartes will also emerge a new method of investigating natural phenomena based on mathematical measurement and precision more commited with a lsquoPlatonic epistemologyrsquo than with an lsquoAristotelic onersquo We will conclude by asserting that Descartes was in agreement with many of his contemporaries most notably Bacon and Galileo thinkers who were engaged in fighting against the formalistic philosophy of Aristotle Together with them Descartes has given his contribuition for the renovation of the western philosophy Keywords Descartes Scholasticism Natural philosophy Substantial form Res extensa
1 UnB email williamunbhotmailcom
219
No relato de sua biografia intelectual que se encontra no Discurso do
meacutetodo Descartes se nos apresenta como algueacutem insatisfeito com sua aprendizagem
escolar estimando que haacute pouco valor na formaccedilatildeo que adquiriu em sua juventude
Fui nutrido nas letras desde minha infacircncia e porque me convenceram que atraveacutes delas podia-se adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que eacute uacutetil agrave vida eu tinha um extremo desejo de aprendecirc-las Mas assim que eu conclui todo esse curso de estudos ao fim do qual costuma-se ser acolhido entre os eruditos eu mudei totalmente de opiniatildeo Eu me encontrava pois embarassado por tantas duacutevidas e erros de modo que eu parecia natildeo ter obtido nenhum benefiacutecio ao me instruir a natildeo ser ter descoberto mais e mais minha ignoracircncia2
Como eacute bem sabido Descartes estudou no renomado coleacutegio jesuiacuteta de La
Flegraveche que era de acordo com seu proacuteprio parecer ldquo[] uma das mais ceacutelebres escolas
de Europardquo3 onde acreditava ldquo[] haver homens saacutebiosrdquo4 Nessa instituiccedilatildeo ele se
aprofundou no estudo da filosofia escolaacutestica siacutentese elaborada por Santo Tomaacutes de
Aquino no seacuteculo XIII da teologia cristatilde com o pensamento de Aristoacuteteles Visto ser
este o responsaacutevel principal de suas frustraccedilotildees acadecircmicas eacute pois precisamente contra
o aristotelismo que se encontrava vigorosamente estabelecido ainda na primeira metade
do seacuteculo XVII que Descartes se insurge de modo mais veemente5
Dentre as disciplinas baseadas diretamente nas obras de Aristoacuteteles6 e
sendo ministradas como comentaacuterios a estas agraves quais Descartes foi submetido durante
2 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 4 lsquoATrsquo refere-se a DESCARTES Reneacute Oeuvres de Descartes (publieacutees par Charles Adam amp Paul Tannery) Todas as referecircncias agraves obras de Descartes seratildeo feitas dessa maneira seguindo procedimento usual entre estudiosos desse autor ldquoJrsquoai eacuteteacute nourri aux lettres degraves mon enfance et parce qursquoon me persuadait que par le moyen on pouvait acquerir une connaissance claire et assurreacutee de tout ce qursquoil est utile agrave la vie jrsquoavais un extreme deacutesir de les apprendre Mais sitocirct que jrsquoeus acheveacute tout ce cours de eacutetudes au bout duquel on a coucirctume drsquoecirctre reccedilu au rang des doctes je changeai entiegraverement drsquoopinion Car je me trouvais embarasseacute de tant de doutes et drsquoerreurs qursquoil me semblait nrsquoavoir fait autre profit en tacircchant de mrsquoinstruir sinon que jrsquoavais deacutecourvert de plus en plus mon ignorancerdquo 3 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 5 ldquo[] lrsquoune des plus celegravebres eacutecoles de lrsquoEuroperdquo 4 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 5 ldquo[] avoir de savants hommesrdquo 5 A respeito desse fato eacute oportuno observar que Descartes natildeo era o uacutenico estudante incomodado com o conteuacutedo demasiadamente aristoteacutelico ministrado pelas Escolas e universidades da eacutepoca Locke e Hobbes por exemplo tambeacutem se sentiam deveras incomodados com o formalismo inoacutecuo das obras de Aristoacuteteles Leibniz em contrapartida natildeo compartilhava o mesmo niacutevel de exasperaccedilatildeo de seus contemporacircneos em relaccedilatildeo aos escolaacutesticos embora consideresse que certos equiacutevocos por eles cometidos devessem ser corrigidos (cf LEIBNIZ Metaphysische abhandlung pp 24-25) 6 Cf ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 60 ldquoEm La Flegraveche como em outros coleacutegios jesuiacutetas da eacutepoca o curriacuteculo [do curso] de filosofia durava trecircs anos ( os trecircs uacuteltimos anos de formaccedilatildeo do estudante a partir do 15 anos de idade) Ele consistia em preleccedilotildees duas vezes por dia com a duraccedilatildeo de duas horas baseadas primariamente nas obras de Aristoacuteteles e Tomas de Aquino No tempo de Descartes o primeiro ano era devotado agrave loacutegica e agrave eacutetica consistindo em comentaacuterios e questotildees baseadas na Isagoge de Porfiacuterio e nas Categorias no Sobre a interpretaccedilatildeo nos Primeiros analiacuteticos nos Toacutepicos nos Segundos analiacuteticos e na Eacutetica a Nicocircmacos de Aristoacuteteles O segundo ano era devotado agrave fiacutesica e agrave metafiacutesica baseado primariamente na Fiacutesica no
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seus anos de aprendizagem aquela que mais lhe desagradou ou ao menos contra a qual
ele se opocircs de modo mais enfaacutetico foi agrave filosofia natural7 Essa disciplina escolaacutestica agrave
qual Descartes foi apresentado por seus mestres jesuiacutetas em La Flegraveche era praticamente
a mesma que era ensinada nas universidades francesas do seacuteculo XIII e XIV isto eacute o
sistema de explicaccedilatildeo da natureza herdado da Idade Meacutedia pelos jesuiacutetas continuava
intacto ainda no seacuteculo XVII8 seacuteculo este que paradoxalmente assistia agrave emergecircnica da
Revoluccedilatildeo Cientiacutefica da qual Descartes seraacute um dos principais esteios
A filosofia natural escolaacutestica em suas explanaccedilotildees sustentava-se
amplamente em justificaccedilotildees de caraacuteter qualitativo O mundo segundo essa
interpretaccedilatildeo era formado por uma grande diversidade de substacircncias cada qual com
suas proacuteprias qualidades ou essecircncias Nesse sistema os objetos do mundo fiacutesico
tinham sua especificidade determinada por um elemento lsquoformalrsquo que compunha sua
estrutura presidia sua atividade e definia seus caracteres acidentais Eis um exemplo
proveniente de um famoso pesquisador da filosofia medieval ldquoO peso e a leveza
tornam-se pois qualidades decorrentes de faculdades que derivam da forma substancial
que a causa geradora do corpo lhe conferiurdquo9 Tomaacutes de Aquino justifica esse fato
assim ldquoCom efeito todo corpo natural tem alguma forma substancial determinada e
visto que agrave forma substancial sigam-se os acidentes eacute necessaacuterio que a determinada
forma sigam-se determinados acidentesrdquo10 Assim a verdadeira natureza de cada corpo
natural eacute a sua lsquoformarsquo de modo que seguindo-se a doutrina hilemoacuterfica de Aristoacuteteles
Sobre o ceacuteu no livro I do Sobre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo e no livros I 2 e II da Metafiacutesica O terceiro ano do [curso de] filosofia era o ano das matemaacuteticas consistindo em aritmeacutetica geometria muacutesica e astronomia [hellip]rdquo ldquoAt La Flegraveche as in other Jesuit colleges of the time the curriculum in philosophy would have lasted three years (the final three years of a studentrsquos education from about the age of fifteen on) It would have consisted of lectures twice a day in sessions lasting two hours each from a set curriculum based primarily on Aristotle and Thomas Aquinas During Descartesrsquo time the first year was devoted to logic and ethics consisting of commentaries and questions based on Porphyryrsquos Isagoge and Aristotlersquos Categories On Interpretation Prior Analytics Topics Posterior Analytics and Nicomachean Ethics The second year was devoted to physics and metaphysics based primarily on Aristotlersquos Physics De Caelo On Generation and Corruption book I and Metaphysics book I 2 and II The third year of philosophy was a year of mathematics consisting of arithmetics geometry music and astronomy [hellip] 7 Cf MENN Descartes and Augustine p 4 ldquoA atitude de Descartes em relaccedilatildeo agrave filosofia escolaacutestica eacute claramente hostil Especialmente em sua fiacutesica sua filosofia vai diretamente de encontro agrave filosofia de Aristoacuteteles a qual ele espera substituir nas Escolasrdquo ldquoDescartesrsquo attitude towards scholasticism is clearly hostile Especially in its physics his philosophy runs directly counter to the philosophy of Aristotle which he hopes to replace in the schoolsrdquo 8 Cf GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 143 9 GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 161 ldquoLa lourdeur et la leacutegegravereteacute deviennent donc des qualiteacutes dues agrave des faculteacutes qui deacuterivent de la forme substantielle que la cause geacuteneacuteratrice du corps lui a confeacutereacuteerdquo 10 AQUINO Summa theologiae I q 7 art 3 ldquoNam omne corpus naturale aliquam formam substantialem habet determinatam cum igitur ad formam substantialem consequantur accidentia necesse est quod ad determinatam formam consequantur determinata accidentiardquo
221
quando esta se une a aquele ao corpo entendido como princiacutepio material de
individuaccedilatildeo tem-se uma lsquoforma substancialrsquo o que constitui o princiacutepio de movimento
ou mudanccedila (κίνησις na terminologia do Estagirita11) dos entes que existem por
natureza (τὰ φύσει ὄντα)12 a qual no homem por exemplo identifica-se com a alma
racional ou espiacuterito13 Desse modo a fiacutesica escolaacutestica14 que fora ensinada ao jovem
Descartes em seu profundo acordo com o pensamento de Aristoacuteteles se atribuiacutea como
tarefa primaacuteria a identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo das lsquoformas substanciaisrsquo15 isto eacute da
natureza (φύσις) ou essecircncia dos entes corpoacutereos elementos estes vale dizer
eminentemente qualitativos
Eacute pois agrave noccedilatildeo de lsquoforma substancialrsquo que Descartes dirigiraacute sua criacutetica
mais severa16 uma vez que era sobre ela que repousava todo o sistema da fiacutesica
escolaacutestico-aristoteacutelica Sua supressatildeo determinaria necessariamente a ruiacutena de toda
aquela ciecircncia e ao mesmo tempo condicionaria a proacutepria elaboraccedilatildeo da fiacutesica
cartesiana que deveria lhe substituir17 Com efeito Descartes considerava a fiacutesica que
lhe fora ensinada inaceitaacutevel Para ele uma ciecircncia que se baseava sobre um tal
princiacutepio como o de forma substancial natildeo possuiacutea nenhum poder real de explicaccedilatildeo ou
11 Aristotle Physics II 1 192b12-15 12 Aquino endossa essa opiniatildeo de Aristoacuteteles ldquo[] Muitas coisas existem por natureza uma vez que tecircm o princiacutepio de seu movimento em sirdquo (AQUINO Commentaria in libros physicorum II l 1 n 8) ldquo[] Multa sunt a natura quae habent principium sui motus in serdquo 13 ldquoPortanto esse princiacutepio pelo qual primeiramente entendemos que ele seja nomeado intelecto ou alma intelectiva eacute a forma do corpordquo (AQUINO Summa theologicae I q 76 art 1) ldquoHoc ergo principium quo primo intelligimus sive dicatur intellectus sive anima intellectiva est forma corporisrdquo Esta seraacute com efeito a uacutenica forma substancial que Descartes admitiraacute em seu sistema elevada entretanto ao status de substacircncia ndash a res cogitans 14 Eacute importante ter em mente que essa exposiccedilatildeo da fiacutesica escolaacutestica se pretende apenas como um esboccedilo para melhor situar a criacutetica de Descartes agraves formas substacircncias natildeo sendo de nenhum modo exaustiva ou completa 15 A fiacutesica escolaacutestica era efetivamente uma disciplina ldquotaxonocircmicardquo descrevendo e classificando os fenocircmenos mas nunca capaz de descobrir leis gerais que desse conta da explicaccedilatildeo e previsibilidade da natureza dos mesmos assim como o foi a historia natural em especial a biologia ateacute o princiacutepio do seculo XIX 16 ldquo[] Todas as qualidades e formas agraves quais tenho horror []rdquo (DESCARTES Correspondecircncia a Ciermans AT 2 p 74) ldquo[] Qualitates omnes et formas a quibus abhorreo []rdquo 17 A criacutetica agraves formas substanciais na verdade ocupa um lugar fundamental em todo o sistema de Descartes natildeo se restringindo meramente agrave refutaccedilatildeo da filosofia natural escolaacutestica isto eacute a uma disciplina particular ldquo[] A criacutetica agraves formas substanciais confere seu sentido pleno agraves Meditaccedilotildees metafiacutesicas por completo porque integralmente centradas na distinccedilatildeo real da alma e do corpo elas contecircm precisamente aquilo que era necessaacuterio para estabelecer essa conclusatildeo da metafiacutesica que eacute ao mesmo tempo o princiacutepio de uma fiacutesica do movimento e da extensatildeordquo (GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 189) ldquo[] La critique de formes substantielles donne son sens plein aux Meacuteditations meacutetaphysiques tout entiegraveres parce que inteacutegralement centreacutees sur la distinction reacuteele de lrsquoacircme et du corps elles ne contiennent que ce qursquoil fallait pour eacutetablir cette conclusion de la meacutetaphysique qui est en mecircme temps le principe drsquoune physique de lrsquoeacutetendue et du mouvementrdquo
222
de prediccedilatildeo18 dado que ldquo[] a Forma se torna uma espeacutecie de tela invisiacutevel entre o
observador e seu objeto de estudo a qual impede-no de agarraacute-lo mensuraacute-lo e pesaacute-
lordquo19 Em sua visatildeo inversamente era necessaacuteria uma abordagem que focasse natildeo em
variaacuteveis qualitativas mas em fatores quantitativos e passiacuteveis de mensuraccedilatildeo Dessa
perspectiva ao inveacutes das lsquoformas substanciaisrsquo e lsquoqualidades reaisformas acidentaisrsquo o
universo cartesiano seraacute constituiacutedo apoacutes a supressatildeo do hilemorfismo aristoteacutelico
representado por seu famoso lsquodualismorsquo corpo-alma20 por um material singular e
homogecircneo ao qual ele denominaraacute res extensa21 Assim Descartes recusa a noccedilatildeo de
forma substancial como princiacutepio explicativo do mundo natural e em seu lugar vai
estabelecer um princiacutepio puramente material representado pela noccedilatildeo de res extensa
com as consequentes qualidades primaacuterias que considera ser-lhe inerente ndash figura
movimento grandeza nuacutemero ndash como objeto de estudo da filosofia natural reduzindo
assim o objeto da fiacutesica agrave geometria
18 Leibniz apesar de contrariado com o fato de as formas substanciais se encontrarem tatildeo desacreditadas uma vez que as considera diferentemente de Descartes uacuteteis em seu aspecto lsquometafiacutesicorsquo afirma por outro lado em acordo com Descartes que a consideraccedilatildeo dessas formas em nada serve ao pormenor da fiacutesica natildeo se devendo por isso empregaacute-las para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos particulares ldquoOs escolaacutesticos e os meacutedicos do passado a exemplo deles falharam ao acreditar fornecer a razatildeo das propriedades dos corpos recorrendo agraves formas e agraves qualidades sem se darem ao trabalho de examinar sua maneira de operaccedilatildeo como se algueacutem se contentasse em dizer que um reloacutegio tem a qualidade de indicar as horas devido a sua forma [substancial] sem considerar em que isto consisterdquo (LEIBNIZ Metaphysische abhandlung pp 20-22) rdquoEt crsquoest en quoi nos scholastiques ont manqueacute et les Meacutedecins du temps passeacute agrave leur exemple croyant de rendre raison des proprieteacutes des corps em faisant mention des formes et des qualiteacutes sans se mettre en peine drsquoexaminer la maniegravere de lrsquooperation comme si on se voulait contenter de dire qursquoune horloge a la qualiteacute horodictique provenante de sa forme sans considerer en quoi tout cela consisterdquo 19 ALLAN The philosophy of Aristotle p 115 ldquo[] the Form becomes a kind of invisible screen between the observer and the object of his study which prevents him from grasping and measuring and weighing itrdquo 20 Forlin esclarece as verdadeiras intenccedilotildees de Descartes ao propor o seu lsquodualismorsquo corpo-alma ldquoEacute comum afirmar que quando na Descartes na Meditaccedilatildeo segunda opera uma distinccedilatildeo radical entre corpo e alma o interesse cartesiano seria sobretudo o de mostrar que a alma eacute puramente imaterial e completamente independente do corpo Na verdade Descartes estaacute interessado eacute na contrapartida dessa distinccedilatildeo seu interesse eacute mostrar que o corpo eacute puramente material e completamente independente de qualquer alma ou forma como pressupunham os tomistas-aristoteacutelicos Tal condiccedilatildeo eacute necessaacuteria para se justificar metafiacutesicamente a elaboraccedilatildeo de uma ciecircncia da natureza que tem como objeto apenas a extensatildeo e suas propriedades geomeacutetricas e mecacircnicas ou seja eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para se validar metafisicamente a realizaccedilatildeo de uma fiacutesica-matemaacuteticardquo (FORLIN A metafiacutesica cartesiana e a fundamentaccedilatildeo da fiacutesica moderna p 89) 21Ao recusar as lsquoformas substanciasrsquo e as lsquoqualidades reaisrsquo ou lsquoformas acidentaisrsquo e afirmar que o universo eacute constituiacutedo apenas de res extensa i e de um princiacutepio material Descartes estaacute negando ao mesmo tempo assim como jaacute o fizera Galileu a existecircncia objetiva das lsquoqualidades secundaacuterias nos corpos ndash cores odores sabores etc Estas bem como todas as outras sensaccedilotildees seratildeo excluiacutedas dos objetos e corpos e realocados na mente do sujeito estando na base da inovadora concepccedilatildeo de mente e da revolucionaacuteria teoria da percepccedilatildeo cartesianas todos estes elementos fundamentando o inatismo desse autor A abordagem desses importantes temas cartesianos entretanto natildeo fazem parte do escopo do presente trabalho Para mais detalhes sobre tais questotildees cf TEIXEIRA Teoria das ideias inatismo e teoria da percepccedilatildeo em Descartes pp 487-515
223
O corolaacuterio mais imediato dessa alteraccedilatildeo feita por Descartes no objeto de
estudo da filosofia natural reside no fato que no acircmbito da explicaccedilatildeo dos fenocircmenos
enquanto para os escolaacutesticos agrave maneira peripateacutetica o movimento e a mundaccedila nos
corpos ou entes naturais originavam-se no interior dos mesmos tendo como princiacutepio
originaacuterio a forma substancial que constitue sua essecircncia e determina seus atributos
numa fiacutesica mecanicista de tipo cartesiana movimento e mudanccedila advecircm
exclusivamente da interaccedilatildeo entre os corpos eou das partes constituintes dos mesmos
sendo portanto fatores exteriores a eles donde resulta que todos os fenocircmenos que lhes
satildeo atinentes podem ser explicados segundo padrotildees de causa e efeito empiricamente
verificaacuteveis e sobretudo matematicamente mensuraacuteveis
Na obra Le Monde ou Traiteacute de la Lumiegravere (AT 8) onde Descartes
apresenta as concepccedilotildees de sua filosofia natural ou fisica o que significa dizer
[] uma alternativa completamente mecanicista ao sistema de Aristoacuteteles efetivamente derivando heliocentrismo22 a partir de princiacutepios primeiros oferecendo uma nova e aparentemente viaacutevel concepccedilatildeo de mateacuteria [res extensa] e formulando leis fundamentais do movimento23 ndash leis que satildeo claramente passiacuteveis de quantificaccedilatildeo24
Encontra-se desde o princiacutepio a condenaccedilatildeo que o filoacutesofo francecircs efetua
em relaccedilatildeo agraves formas substanciais considerando-nas o obstaacuteculo que impede aquela
disciplina de se tornar uma verdadeira ciecircncia Nessa obra vecirc-se a recusa de Descartes
em compreender os fenocircmenos fiacutesicos atraveacutes de noccedilotildees como lsquoformarsquo lsquoqualidadersquo
lsquoaccedilatildeorsquo e outras semelhantes tatildeo caras agrave fiacutesica escolaacutestica Para ele uma fiacutesica que se
queira verdadeiramente ciecircncia deve estudar os entes da natureza mediante a anaacutelise de
suas partes extensas e do movimento que se estabelece entre elas
ldquoQue um outro diz ele numa clara alusatildeo aos escolaacutesticos pois imagine se quiser nessa madeira a Forma do fogo a Qualidade do calor e a Accedilatildeo que a queima como coisas totalmente diversas para
22 Agrave ocasiatildeo da condenaccedilatildeo de Galileu pela Inquisiccedilatildeo Descartes escreve a Mersenne acerca do comprometimento do Le Monde com o modelo copernicano ldquo[] Se ele [o movimento da Terra] eacute falso todos os fundamentos de minha Filosofia tambeacutem o satildeo pois ele se demonstra por eles de forma evidente E ele estaacute tatildeo ligado com todas as partes de meu Tratado que eu natildeo o poderia excluir dele sem tornar o restante totalmente defeituosordquo (DESCARTES Correspondecircncia a Mersenne AT 1 p 271) ldquo[] Srsquoil est faux tous les fondements de ma Philosophie le sont aussi car il se demonstre par eux eacutevidemment Et il est teacutellement lieacute avec toutes les parties de mon Traiteacute que je ne lrsquoen saurait deacutetacher sans rendre le reste tout defectueuxrdquo 23 Cf DESCARTES Le Monde AT 11 pp 38 e 41 e Principia AT 8 pp 62-66 24 GAUKROGER Descartesrsquo system of natural philosophy p 18 ldquo[] a fully mechanist alternative to Aristotelian systems one which effectively derives heliocentrism from first principles which offers a novel and apparently viable conception of matter and which formulates fundamental laws of motion ndash laws which are clearly open to quantitative elaborationrdquo
224
mim que temo me enganar se aiacute suponho qualquer coisa aleacutem do que necessariamente deve haver me contento em conceber o movimento de suas partes25rdquo26
Em suma a filosofia natural cartesiana opotildee-se por um lado aos obscuros
princiacutepios que Aristoacuteteles usara na explicaccedilatildeo do mundo fenomenal ndash e que satildeo
sistematica e ostensivamente empregados pelos escolaacutesticos ndash e por outro busca
construir uma sistema de explicaccedilatildeo do mundo natural apelando apenas a princiacutepios
claros e evidentes isto eacute tangiacuteveis e mensuraacuteveis tal como o faria um geocircmetra
Apoiando-se sobre esses pressupostos ele afirma
[] Notei que absolutamente nada pertence agrave natureza do corpo exceto que seja somente uma coisa comprida larga e profunda capaz de vaacuterias figuras e de vaacuterios movimentos e [que] as figuras e os movimentos satildeo apenas modos dele que sem o mesmo atraveacutes de nenhuma [outra] faculdade podem existir27
Desse modo Descartes elimina da ciecircncia natural todas as explicaccedilotildees
baseadas em princiacutepios anticientiacuteficos e obscurantistas tais como lsquoqualidades
sensiacuteveisrsquo lsquofaculdades fiacutesicasrsquo28 e lsquoformas substanciaisrsquo empregados fartamente pelos
escolaacutesticos em suas investigaccedilotildees naturais Em seu lugar surge a mera extensatildeo e as
qualidades primaacuterias como fatores explicativos dos fenocircmenos da natureza de modo
que todo o universo passa a ser visto como um grande ldquoengenho mecacircnicordquo Essas
inovaccedilotildees implementadas por Descartes representaram um enorme ganho de
simplicidade e precisatildeo o que contribuiu significativamente para o estabelecimento da
fiacutesica como uma ciecircncia baseada no meacutetodo experimental e no raciociacutenio matemaacutetico 25 A fiacutesica mecanicista de Descartes estaacute evidentemente comprometida com a teoria do corpuscularismo como se aduz da mencionada passagem Cf DESCARTES Principia AT 8 pp 323-325 26 DESCARTES Le Monde AT 11 p7 ldquoQursquoun autre donc imagine srsquoil veut en ce bois la Forme du feu la Qualiteacute de la chaleur et lrsquoAction que la brucircle comme des choses toutes diverses pour moi qui crains de me tromper si jrsquoy suppose quelque chose de plus que ce que je vois neacutecesseraiment y devoir ecirctre je me contente drsquoy concevoir le mouvement de ses partiesrdquo 27 DESCARTES Meditaccedilotildees acerca da filosofia primeira Sextas respostas AT 7 p 440 e AT 9 p 239 ldquo[] Adverti nihil plane ad rationem corporis pertinere nisi tantum quod sit res longa lata et profunda variarum figurarum variorumque motuum capax ejusque figuras ac motus esse tantum modos qui per nullam potentiam sine ipso possunt existere []rdquo 28 Em Le malade imaginaire (1673) Moliegravere ao lado de Racine La Fontaine Corneille Boileau Bossuet um dos mestres do Classicismo francecircs aquele movimento esteacutetico da literatura francesa de forte inspiraccedilatildeo cartesiana ( com efeito ordem clareza razatildeo anaacutelise verdade equiliacutebrio perfeiccedilatildeo satildeo valores do Classicismo) como que de maneira irocircnica fazendo eco agrave critica de Descartes agrave noccedilatildeo de forma substancial explora os efeitos cocircmicos das explicaccedilotildees escolaacutesticas aplicadas agrave medicina Na cena em questatildeo um futuro bacharel em medicina eacute questionado por um dos membros do corpo docente daquele faculdade a respeito da ldquo[] causa e razatildeo pela qual o oacutepio faz dormir []rdquo Ele lsquoescolasticamentersquo responde ldquoPorque haacute nele uma virtude dormitiva cuja natureza eacute embotar os sentidosrdquo (MOLIEgraveRE Le malade imaginaire scegravene XIV et derniegravere troisiegraveme intermegravede p 70) ldquo[] causam et rationem quare Opium facit dormire [] Quia est in eo [opio] Virtus dormitiva Cujus est natura Sensus assoupirerdquo
225
impulsionando assim sua separaccedilatildeo de sua matriz filosoacutefica29 Ainda que o modelo de
fiacutesica proposto por Descartes tenha sido superado por Newton nos dececircnios seguintes ndash
os Principia do inglecircs foram publicados em 1686 ndash a abordagem matemaacutetico-
quantitativa em oposiccedilatildeo agrave descritivo-qualitativa veiculada pelos escolaacutesticos
permanece incontestavelmente um dos mais importantes pilares da atividade cientiacutefica
Embora veemente e implacaacutevel em sua criacutetica Descartes natildeo foi o primeiro
nem o uacutenico pensador moderno a rejeitar as formas substanciais como fator explicatiacutevo
dos fenocircmenos naturais30 Antes dele as formas substancias jaacute tinham sido execradas
da filosofia natural por pensadores do quilate de Francis Bacon (1561-1626) e Galileu
Galilei (1564-1642) O inglecircs motivado pelo ideal de apresentar um novo meacutetodo para
a ciecircncia propocircs em seu Novum Organum uma completa reforma dos procedimentos
investigativos vigentes que se fundamentavam nos preceitos aristoteacutelicos dando ecircnfase
ao meacutetodo experimental e agrave consequente verificaccedilatildeo empiacuterica dos fatos De acordo com
ele ldquoeacute melhor dissecar a natureza do que abstraiacute-la [] Eacute melhor considerar a mateacuteria
sua conformaccedilatildeo sua accedilatildeo proacutepria e as leis de sua accedilatildeo e movimento pois formas satildeo
uma mera ficccedilatildeo da mente humana a natildeo ser que se chame por esse nome as leis [que
regem sua] accedilatildeordquo31 Natildeo haacute como negar que Descartes em sua criacutetica aos escolaacutesticos
estivesse motivado por priniacutecipios similares aos propostos por Bacon ainda que se deva
conceder que este fiel ao espiacuterito empiricista britacircnico fosse o lsquoarautorsquo do indutivismo
ao passo que Descartes propugnava um meacutetodo mais hipoteacutetico-dedutivo de iacutendole
racionalista O italiano por seu turno ignorou as praacuteticas cientiacuteficas aristoteacutelicas
filiando-se agrave uma epistemologia lsquoplatocircnicarsquo como sustentado pelo renomado historiador
da ciecircncia Alexander Koyreacute por acreditar que ldquoo livro da natureza estaacute escrito em
lingua matemaacuteticardquo32 Ou seja em Galileu assim como em Descartes a quantificaccedilatildeo e
29 A introduccedilatildeo do fator quantitativo cartesiano (e galilaico) em detrimento do fator qualitativo escolaacutestico cria finalmente condiccedilotildees para que a fiacutesica se desvencilhe do ranccedilo aristoteacutelico e possa progredir enquanto ciecircncia ldquoO fato de que ele [Aristoacuteteles] insiste na mudanccedila qualitativa como um dado uacuteltimo e natildeo percebe o valor da mensuraccedilatildeo eacute uma falta grave e uma das principais razotildees para a estagnaccedilatildeo da ciecircncia durante a Idade Meacutediardquo (ALLAN The philosophy of Aristotle 162) ldquo[] The fact that he insists on qualitative change as an ultimate datum and does not realize the value of measurement is a grave fault and is one of the main reasons for the stagnation of science during the Middle Agesrdquo 30 O que diferencia a criacutetica agraves formas substacircncias cartesiana daquela realizada por seus contemporacircneos eacute como observado na nota 16 acima o fato dela servir em Descartes para estabelecer a distinccedilatildeo real entre alma e corpo estando assim na base do argumento do cogito ou em outras palavras na base de sua metafiacutesica e tambeacutem na base da fiacutesica devido ao estabelecimento simultacircneo da res extensa 31 BACON Novum organum I 51 ldquo[] It is better to dissect than abstract nature [] It is best to consider matter its conformation its own action and the law of its action or motion for forms are a mere fiction of the human mind unless you will call the laws of action by that name 32 ldquoA filosofia estaacute escrita nesse grandiacutessimo livro que continuamente abre-se diante de nossos olhos (refiro-me ao universo) mas natildeo se pode entendecirc-lo se antes natildeo se aprende a entender a lingua e
226
a mensuraccedilatildeo em uma palavra a busca por precisatildeo ndash que se realiza atraveacutes da
geometrizaccedilatildeo da natureza ndash satildeo as bases da atividade cientiacutefica33 o que exclui
naturalmente avaliaccedilotildees de caraacuteter qualitativo agrave maneira dos escolaacutesticos
Esse aspecto da obra do filoacutesofo francecircs evidencia aquilo que poderiacuteamos
designar de a modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes Com efeito eacute fato plenamente
reconheciacutevel que Descartes estava tacitamente congregado aos muitos autores
contemporacircneos seus que combatiam o aristotelismo ainda hegemocircnico das Escolas e
universidades de modo que a criacutetica agraves formas substanciais natildeo caracteriza uma
singularidade em sua obra na verdade ela mostra que o nosso autor estava respirando
os novos ares que estavam sendo insuflados na filosofia ocidental Outro aspecto
relevante que situa a modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes eacute a adoccedilatildeo de ferramentas
matemaacutetico-geomeacutetricas para a soluccedilatildeo de problemas de filosofia natural em particular
e ao mesmo tempo conscientemente ou natildeo a tomada de partido a favor da
epistemologia platocircnicarsquo que agrave eacutepoca emergia como um antiacutedoto agrave onipresenccedila do
peripatismo na cultura europeacuteia ndash uma fortaleza quase inexpugnaacutevel34 Nas atuais
circusntacircncias negar Aristoacuteteles significava quase que necessariamente afirmar Platatildeo Natildeo haacute mais que duas grades vias abertas agrave especulaccedilatildeo metafiacutesica a de Platatildeo e a de Aristoacuteteles Pode-se ter uma metafiacutesica do inteligiacutevel que desconfia do sensiacutevel de meacutetodo matemaacutetico e que se prolonga por uma ciecircncia que mede ou uma metafiacutesica do concreto que desconfia do inteligiacutevel de meacutetodo bioloacutegico e que se prolonga por um ciecircncia que classifica [] Como ele tinha acabado de sair do
conhecer os caracteres com os quais estaacute escrito Ele estaacute escrito em lingua matemaacutetica e os caracteres satildeo triacircngulos ciacuterculos e outras figuras geomeacutetricas sem cujos meios eacute impossiacutevel entender por via humana as palavrasrdquo (GALILEU Il saggiatore pp 16-17) ldquoLa filosofia egrave scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli occhi (io dico lrsquouniverso) ma non si puograve intendere se prima non srsquoimpara a intender la lingua e conoscer i caratteri nersquo quali egrave scritto Eggli egrave scritto in lingua matematica e i caratteri son triangoli cerchi ed altre figure geometriche senza i quali mezzi egrave impossibile a intenderne umanamente parolardquo 33 Natildeo obstante sua repreensatildeo agrave ausecircncia de fundamentos metafiacutesicos na filosofia natural de Galileu que este elaborou ldquo[] sem ter considerado as causas primeiras da natureza []rdquo Descartes aquiesce ao modo de proceder do cientista italiano ldquoEu acho que no geral ele filosofa muito melhor que o vulgo ao se afastar o maacuteximo que ele pode dos erros da Escola e se aplicar a examinar as questotildees da fiacutesica atraveacutes de raciociacutenios matemaacuteticos Nisto eu estou inteiramente de acordo com ele e acredito que natildeo haacute outro meio para encontrar a verdaderdquo (DESCARTES Correspondecircncia a Mersenne AT 2 p 380) [] ldquoSans avoir considereacute les causes premiegraveres de la nature []rdquo ldquoJe trouve en geacuteneacuteral qursquoil philosophe beaucoup mieux que le vulgaire en ce qursquoil quitte les plus qursquoil peut les erreurs de lrsquoEacutecole et tacircche agrave examiner les matiegraveres physiques par des raisons matheacutematiques En cela je mrsquoaccorde interiegraverement avec lui et je tiens qursquoil nrsquoy a point drsquoautre moyen pour trouver la veriteacuterdquo 34 ldquoTalvez a mais interessante liccedilatildeo que possa ser aprendida ao observar a relaccedilatildeo de Descartes com a escolaacutestica eacute o absoluto poder e autoridade do aristotelismo durante o seacuteculo dezesseterdquo (ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 58) ldquoPerhaps the most interesting lesson that can be learned by looking at Descartesrsquo relations with scholastics is the sheer power and authority of Aristotelianism during the seventeenth centuryrdquo
227
aristotelismo no qual seus mestres tentaram o engajar Descartes podia apenas dirigir-se ao platonismo []35
Jolley em obra mais recente corrobora essa opiniatildeo ldquoOs filoacutesofos no
periacuteodo [seacuteculo dezessete] natildeo estavam realmente virando as costas agrave tradiccedilatildeo como um
todo eles estavam antes eclipsando Aristoacuteteles para trazer agrave luz Platatildeordquo36
De qualquer modo a partir das consideraccedilotildees feitas acima eacute liacutecito concluir
que Descartes foi um ferrenho criacutetico da tradiccedilatildeo De sua insatisfaccedilatildeo como aprendiz de
filosofia escolaacutestica elevou-se agrave condiccedilatildeo de renovador da filosofia natural aristoteacutelica
que ainda dominava o curriacuteculo acadecircmico na Europa do seacuteculo XVII Com efeito em
sua proacutepria eacutepoca Descartes jaacute era visto como um opositor da filosofia ensinada nas
Escolas o que acabou por resultar na inclusatildeo de suas obra no Index de Livros
Proibidos em 1663 com a seguinte notaccedilatildeo ldquoateacute que sejam corrigidosrdquo37 e na deacutecada
seguinte assistia-se agrave proibiccedilatildeo pelo governo francecircs do ensino das doutrinas
cartesianas Ambas accedilotildees foram impetradas pelos opositores da filosofia de Descartes
Descartes tinha mesmo como objetivo lsquoimplodirrsquo a filosofia escolaacutestica e para tal
propoacutesito chegou a escrever uma obra que pudesse substituir os manuais ateacute entatildeo
utilizados para o ensino da filosofia ndash os Principia Philosophiae (cf AT 8) obra
incompleta que pretendia ser um compilaccedilatildeo de todo o seu sistema de pensamento38
Bibliografia
ALLAN Donald James The philosophy of Aristotle Oxford Oxford University Press
1970 2nd ed
AQUINO Santo Tomaacutes de Commentaria in libros physicorum Disponiacutevel em
lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt 35 GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 199 ldquoIl nrsquoy a guegravere que deux grandes voies ouvertes agrave la speacuteculation meacutetaphysique celle de Platon et celle drsquoAristote On peut avoir une meacutetaphysique de lrsquointelligible meacutefiante agrave lrsquoeacutegard du sensible de meacutethode matheacutematique et se prolongeant par une science qui mesure ou une meacutetaphysique du concret meacutefiante du intelligible de meacutethode biologique et se prolongeant par une science qui classe [] Puisqursquoil venait de sortir de lrsquoaristoteacutelisme ougrave ses maicirctres avaient essayeacute de lrsquoengager Descartes ne pouvait que rentrer dans la platonisme []rdquo 36 JOLLEY The light of the soul Theories of ideas in Leibniz Malebranche and Descartes p 11 ldquophilosophers in the period [seventeenth-century] were not really turning their back on the tradition as a whole rather they were casting down Aristotle in order to raise up Platordquo 37 (ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 80) ldquodonec corriganturrdquo 38 Agradeccedilo ao professor Eneacuteias Forlin da Unicamp pelos comentaacuterios e sugestotildees que muito contribuiacuteram para o aperfeiccediloamento desse texto
228
______ Summa theologiae Disponiacutevel em
lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt
ARIEW Roger ldquoDescartes and scholasticism The Intellectual Background to
Descartesrsquo Thoughtrdquo In COTTINGHAM John (Ed) Cambridge Companion to
Descartes Cambridge Cambrigde University Press 1992
ARISTOTLE Physics Disponiacutevel em lthttpwwwloebclassicscomviewaristotle-
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BACON Francis Advancement of learning Novum organum New atlantis Chicago
Encyclopaedia Britannica (Great books of the Western world 28) 1994 2 ed
DAVIES Brian The Thought of Tomas Aquinas Oxford Claredon 1992
DESCARTES Reneacute Oeuvres de Descartes (publieacutees par Charles Adam amp Paul
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FORLIN Eneacuteias ldquoA metafiacutesica cartesiana e a fundamentaccedilatildeo da fiacutesica modernardquo
Perspectiva filosoacutesica Vol 2 No 34 (jul-dez 2010) pp 81-95
GALILEU Galilei Il saggiatore Disponiacutevel em
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GAUKROGER Stephen Descartesrsquo system of natural philosophy New York
Cambridge University Press 2002
GILSON Eacutetienne Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du
systegraveme carteacutesien Paris Librairie Philosophique J Vrin 1951
LEIBNIZ Gottfried Wilhelm Metaphysische abhandlung Hamburg Verlag von Felix
Meiner 1962 (Philosophische bibliotek 260)
JOLLEY Nicholas The light of the soul Theories of ideas in Leibniz Malebranche
and Descartes New York Oxford University Press 1998
MOLIEgraveRE Jean Baptiste Poquelin Le malade imaginaire Disponiacutevel em
lthttpwwwtoutmolierenetoeuvreshtmlgt
229
TEIXEIRA WilliamldquoTeorias das ideias inatismo e teoria da percepccedilatildeo em Descartesrdquo
Cadernos Espinosanos Satildeo Paulo Grupo de Estudos Espinosanos Ndeg 35 pp 487-515
Jul-Dez 2016
FECHAMENTO EPISTEcircMICO
Steven Luper1
A maioria de noacutes pensa que pode seguramente aumentar a sua base de conhecimento
aceitando coisas que satildeo implicadas (ou logicamente implicadas) por aquilo que sabemos
Aproximadamente falando o conjunto de coisas que sabemos eacute fechado sob implicaccedilatildeo
(ou sob deduccedilatildeo ou implicaccedilatildeo loacutegica) de modo que sabemos que uma determinada
afirmaccedilatildeo eacute verdadeira reconhecendo e como resultado aceitando que ela se segue
daquilo que sabemos Isso natildeo quer dizer que o modo pelo qual usualmente aumentamos
o nosso conhecimento eacute simplesmente atraveacutes do reconhecimento e aceitaccedilatildeo daquilo que
se segue daquilo que jaacute sabiacuteamos Eacute claro que haacute muito mais coisas envolvidas Por
exemplo coletamos dados e construiacutemos explicaccedilotildees para eles e sob circunstacircncias
apropriadas aprendemos com os outros Mais precisamente quando alegamos saber que
alguma proposiccedilatildeo eacute verdadeira essa proacutepria alegaccedilatildeo estaacute sujeita ao erro geralmente
ver aquilo que se segue de uma alegaccedilatildeo de conhecimento nos permite reavaliar e ateacute
mesmo abandonar a nossa alegaccedilatildeo de conhecimento ao inveacutes de concluir que sabemos
aquilo se segue dela Contudo parece razoaacutevel pensar que se de fato sabemos que
alguma proposiccedilatildeo eacute verdadeira entatildeo estamos em posiccedilatildeo de saber que as coisas que se
seguem dessa proposiccedilatildeo satildeo tambeacutem verdadeiras Todavia alguns teoacutericos tecircm negado
que o conhecimento seja fechado sob implicaccedilatildeo loacutegica Os argumentos contra o
fechamento incluem os seguintes
O argumento da anaacutelise do conhecimento dada a anaacutelise correta o
conhecimento natildeo eacute fechado Por exemplo se a anaacutelise correta inclui uma
condiccedilatildeo de rastreamento entatildeo o fechamento falha
1 Traduzido por Luiz H M Segundo Doutorando em epistemologia (UFSC) Departamento de Filosofia (UFOP) email luizhelveciosegundogmailcom Artigo originalmente publicado em LUPER S ldquoEpistemic Closurerdquo The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2016 Edition) Edward N Zalta (ed) Disponiacutevel em httpsplatostanfordeduarchivesspr2016entriesclosure-epistemic
231
O argumento do natildeo-fechamento dos modos de conhecimento uma vez que
os modos de se obter preservar e aumentar o conhecimento tal como a
percepccedilatildeo o testemunho a demonstraccedilatildeo a memoacuteria a indicaccedilatildeo e a
informaccedilatildeo natildeo satildeo individualmente fechados tambeacutem natildeo eacute o
conhecimento
O argumento das proposiccedilotildees incognosciacuteveis (ou natildeo facilmente
conheciacuteveis) certas proposiccedilotildees natildeo podem ser conhecidas (sem meios
especiais) dado o fechamento elas poderiam ser conhecidas (sem
capacidades especiais) a partir da deduccedilatildeo de afirmaccedilotildees mundanas que
sabemos de modo que o conhecimento natildeo eacute fechado
O argumento do ceticismo o ceticismo eacute falso mas seria verdadeiro se o
conhecimento fosse fechado de modo que o conhecimento natildeo eacute fechado
Embora os proponentes do fechamento tenham respostas para esses argumentos eles
tambeacutem argumentam mais ou menos ao estilo de G E Moore (1959) que o fechamento
eacute um dado firme ndash eacute bastante oacutebvio para excluir qualquer compreensatildeo do conhecimento
ou de noccedilotildees correlatas que minem o fechamento
Uma ideia bastante proacutexima eacute a de que nos eacute racional (justificaacutevel) acreditar em tudo
aquilo que se siga daquilo que nos eacute racional acreditar Essa ideia estaacute intimamente
relacionada agrave tese de que o conhecimento eacute fechado uma vez que de acordo com muitos
teoacutericos saber que p implica acreditar justificadamente que p Se o conhecimento implica
a justificaccedilatildeo a falha no fechamento dessa uacuteltima poderia conduzir agrave falha no fechamento
daquele
1 O Fechamento do Conhecimento
O que significa precisamente dizer que o conhecimento eacute fechado sob implicaccedilatildeo Uma
resposta eacute que o seguinte princiacutepio direto de fechamento do conhecimento sob implicaccedilatildeo
eacute verdadeiro
SP Se uma pessoa S sabe que p e p implica q entatildeo S sabe que p
A condicional envolvida no princiacutepio direto poderia ser a condicional
material a condicional subjuntiva ou a implicaccedilatildeo produzindo trecircs
possibilidades cada uma mais forte do que a outra
SP1 S sabe que p e p implica q somente se S sabe que q
SP2 Se S soubesse algo p que implicasse q S saberia que q
232
SP3 Eacute necessariamente o caso que S sabe que p e p implica q somente se S
sabe que q
Poreacutem cada uma das versotildees do princiacutepio direto eacute falsa uma vez que
podemos saber algo p mas natildeo ver que p implica q ou por alguma outra razatildeo natildeo
acreditar em q Uma vez que o conhecimento implica crenccedila (de acordo com quase todos
os teoacutericos) natildeo sabemos que q Uma preocupaccedilatildeo menos oacutebvia eacute que poderiacuteamos
raciocinar mal e vir a acreditar que p implica q Talvez pensemos que p implica q porque
pensamos que qualquer coisa implica qualquer coisa ou porque temos um formigamento
no dedatildeo do peacute Hawthorne (2005) levanta a possibilidade de que ao aprender que p
implica q S deixe de saber que p Ele tambeacutem nota que SP1 eacute defensaacutevel sob a suposiccedilatildeo
(desviante) de que um pensamento p eacute equivalente a outro q se p e q valem em todos
os mundos possiacuteveis Suponha que p implica q Entatildeo p eacute equivalente agrave conjunccedilatildeo de p
e q e assim o pensamento de que p eacute idecircntico ao de que p e q Por conseguinte ao saber
que p S sabe p e q Supondo que ao saber p e q S sabe que p e S sabe que q entatildeo
quando S sabe que p tambeacutem sabe que q como diz SP1
O princiacutepio direto precisa de qualificaccedilatildeo mas natildeo precisamos nos preocupar
com isso jaacute que tais qualificaccedilotildees apresentam-se naturalmente dada a ideia que estamos
tentando captar nomeadamente que podemos aumentar o nosso conhecimento atraveacutes
do reconhecimento e da aceitaccedilatildeo daquelas coisas que se seguem daquilo que sabemos
As qualificaccedilotildees introduzidas no seguinte princiacutepio (interpretado como uma condicional
material) parecem bastante naturais
K Se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que p implica q entatildeo
S sabe que q
Como nota Williamson (2000) a ideia de que podemos aumentar o nosso conhecimento
deduzindo a partir daquilo que sabemos apoia um princiacutepio de fechamento que eacute mais
forte do que K Eacute um princiacutepio que diz que sabemos coisas que acreditamos com base em
serem conjuntamente implicados por vaacuterios itens que sabemos separadamente Suponha
que eu saiba que Maria seja alta e que eacute canhota K natildeo nos autoriza a juntar esses dois
itens de conhecimentos de modo a saber que Maria eacute alta e eacute canhota Mas o seguinte
princiacutepio generalizado de fechamento cobre deduccedilotildees envolvendo itens conhecidos
separados
GK Se ao saber vaacuterias proposiccedilotildees S acredita que p porque S sabe que elas
implicam p entatildeo S sabe que p
233
Alguns teoacutericos distinguem entre agravequilo que chamam ldquofechamento de premissa uacutenicardquo
daquilo a que chamam ldquofechamento de muacuteltiplas premissasrdquo Tais teoacutericos negariam que
K capte o fechamento de ldquopremissa uacutenicardquo pois K diz que S sabe que q se S sabe que
duas coisas satildeo verdadeiras que p eacute verdadeira tanto quanto p implica q O fechamento
de ldquopremissa uacutenicardquo eacute geralmente formulado como se segue (seguindo Williamson 2002
e Hawthorne 2004)
SPK Se ao saber que p S acredita que q por deduzir competentemente q a
partir de p entatildeo S sabe que q
Estaacute longe de ser claro poreacutem que podemos deduzir competentemente q a partir de p
sem depender de qualquer conhecimento afora p Felizmente parece que nada depende
dessa possibilidade exceto talvez para aqueles que estejam interessados em se podemos
identificar algo que possa ser apropriadamente chamado de ldquoprinciacutepio de fechamento de
premissa uacutenicardquo
Os proponentes do fechamento poderiam aceitar tanto K quanto GK talvez
qualificados de modo natural (mas poderiam natildeo aceitar veja as questotildees sobre o
fechamento da justificaccedilatildeo na seccedilatildeo 6) Em contraste Fred Dretske e Robert Nozick
rejeitam K e GK Eles rejeitam qualquer princiacutepio de fechamento natildeo importa o quatildeo
restrito que garanta que saibamos que hipoacuteteses ceacuteticas (eg de que sou um ceacuterebro numa
cuba) sejam falsas com base em alegaccedilotildees mundanas de conhecimento (eg que natildeo estou
numa cuba) Aleacutem de rejeitarem K e GK eles negam o fechamento do conhecimento na
instanciaccedilatildeo e na simplificaccedilatildeo embora natildeo na equivalecircncia (Nozick 1981 227-229)
KI Se ao saber que todas as coisas satildeo F S acreditar que uma coisa particular
a eacute F porque S sabe que isso eacute implicado pelo fato de que todas as coisas satildeo
F entatildeo S sabe que a eacute F
KS Se ao saber que p e q S acredita que q porque S sabe que q eacute implicado
por p e q entatildeo S sabe que q
KE Se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que q eacute equivalente a
p entatildeo S sabe que q
Voltemo-nos para seus argumentos
2 O Argumento a partir da Anaacutelise do Conhecimento
234
O argumento a partir da anaacutelise do conhecimento diz que a abordagem correta do
conhecimento leva agrave falha de K Podemos distinguir duas versotildees De acordo com a
primeira K falha porque o conhecimento requer rastreamento de crenccedila De acordo com
a segunda qualquer abordagem das alternativas relevantes tal com as de Dretske e
Nozick leva agrave falha de K De acordo com Dretske (2003 112-3 2005 19) qualquer
abordagem das alternativas relevantes conduz ldquonaturalmenterdquo embora ldquonatildeo
inevitavelmenterdquo agrave falha de K
21 Falhas de Fechamento devido agrave Condiccedilatildeo de Rastreamento ao Conhecimento
Em linhas gerais a primeira versatildeo envolve a defesa da anaacutelise rastreadora
do conhecimento de Dretske ou de Nozick e em seguida mostra-se que ela mina K
(versotildees da abordagem rastreadora satildeo tambeacutem defendidas por Becker 2009 Murphy e
Black 2007 e Roush 2005 esse uacuteltimo modifica a abordagem rastreadora de modo a
preservar o fechamento para criacuteticas veja Brueckner 2012) Podemos pular a defesa que
consiste amplamente em mostrar que o rastreamento se sai melhor em lidar com as nossas
intuiccedilotildees epistecircmicas em casos de suposto conhecimento do que seus competidores
Podemos tambeacutem simplificar as anaacutelises De acordo com Nozick saber que p eacute grosso
modo (ignorando sua amplamente desacreditada quarta condiccedilatildeo criticada eg em
Luper 1984 e 2009 e em Kripke 2011) ter uma crenccedila de que p que satisfaccedila a seguinte
condiccedilatildeo (ldquoBTrdquo para crenccedila rastreadora [tracking belief])
BT fosse p falsa S natildeo acreditaria que p
Isto eacute nos mundos mais proacuteximos ao atual nos quais natildeo-p eacute o caso S natildeo acredita que
p O mundo atual eacute a situaccedilatildeo em que algueacutem se encontra quando adquire a crenccedila de que
p BT exige que em todos os mundos natildeo-p proacuteximos S natildeo acredite que p (A semacircntica
das condicionais subjuntivas eacute clarificada em Stalnaker 1968 Lewis 1973 e modificada
por Nozick 1981 nota 8) De acordo com a perspectiva de Dretske saber que p eacute
aproximadamente uma questatildeo de ter uma razatildeo R para acreditar que p que satisfaz a
seguinte condiccedilatildeo (ldquoCRrdquo para razatildeo conclusiva)
CR fosse p falsa R natildeo seria o caso
Isto eacute nos mundos proacuteximos ao atual em que natildeo-p eacute o caso R natildeo eacute o caso Quando R
satisfaz essa condiccedilatildeo Dretske diz que R eacute uma razatildeo conclusiva para acreditar que p
Dretske observa (2003 n 9 2005 n 4) que a sua perspectiva natildeo enfrenta
uma das objeccedilotildees que Saul Kripke (2011 162-224 Dretske tinha acesso a um rascunho
235
que circulava anterior agrave sua publicaccedilatildeo) apresenta contra a abordagem de Nozick
Suponha que eu esteja dirigindo por uma vizinhanccedila na qual desconhecido a mim
celeiros de papel machecirc estatildeo espalhados e que eu vejo que o objeto agrave minha frente eacute um
celeiro Tambeacutem noto que eacute vermelho Porque tenho perceptos diante de mim que satildeo
como celeiros acredito que celeiro o objeto diante de mim eacute um celeiro (comum) (o
exemplo eacute atribuiacutedo a Ginet em Goldman 1976) As nossas intuiccedilotildees sugerem que natildeo sei
que celeiro E assim dizem BT e CR Mas suponha agora que a vizinhanccedila natildeo tenha
quaisquer celeiros falsos vermelhos apenas os azuis satildeo falsos (Chamemos de caso do
celeiro vermelho) Assim de acordo com a perspectiva de Nozick posso rastrear o fato
de que haacute um celeiro vermelho uma vez que eu natildeo acreditaria que houvesse um celeiro
vermelho (via perceptos de celeiros vermelhos) caso natildeo houvesse qualquer celeiro
vermelho muito embora eu natildeo possa rastrear o fato de que haacute um celeiro uma vez que
eu poderia acreditar que houvesse um celeiro (via perceptos de celeiros azuis) ainda que
natildeo houvesse qualquer celeiro Dretske disse que essa justaposiccedilatildeo na qual sei algo e
mesmo assim natildeo sei uma segunda coisa que estaacute intimamente relacionada agrave primeira
(haver um celeiro vermelho o que sei implica haver um celeiro o que natildeo sei) ldquoeacute um
embaraccedilordquo e quanto a isso pensava ele a sua perspectiva eacute superior agrave de Nozick Seja
R a minha base para a crenccedila o fato de que tenho perceptos de celeiros vermelhos Se
natildeo houvesse qualquer celeiro R natildeo seria o caso de modo que sei que haacute um celeiro
Aleacutem disso se natildeo houvesse qualquer celeiro vermelho R ainda natildeo seria o caso de
modo que sei que haacute um celeiro vermelho Desse modo Dretske consegue evitar a
justaposiccedilatildeo objetaacutevel Contudo eacute surpreendente que Drestske cite o caso do celeiro
vermelho como base para se preferir a sua versatildeo do rastreamento em detrimento da de
Nozick Primeiro o proacuteprio Dretske aceitou justaposiccedilotildees de conhecimento e ignoracircncia
que satildeo pelo menos tatildeo bizarras quanto como veremos Segundo Nozick evita a proacutepria
justaposiccedilatildeo discutida por Dretske ajustando sua abordagem de modo a fazer referecircncia
aos meacutetodos pelos quais viemos a acreditar nas coisas (Hawthorne 2005) De acordo com
uma versatildeo mais polida Nozick disse que saber que p eacute grosso modo ter uma crenccedila de
que p obtida atraveacutes de um meacutetodo M que satisfaz a seguinte condiccedilatildeo (ldquoBMTrdquo para
rastreamento do meacutetodo da crenccedila)
BMT fosse p falsa S natildeo acreditaria que p via M
Se natildeo houvesse qualquer celeiro vermelho eu natildeo acreditaria nem que houvesse um
celeiro e nem que houvesse um celeiro vermelho via perceptos de celeiros vermelhos
236
Terceiro o caso do celeiro vermelho eacute um caso em que as intuiccedilotildees variam
Natildeo eacute oacutebvio que eu saiba haver um celeiro vermelho nas circunstacircncias que Dretske
esboccedila que diferem das do exemplo original de Ginet (em que consigo saber celeiro)
apenas nas estipulaccedilotildees de que vejo um celeiro vermelho e que nenhuns dos simulacros
de celeiro satildeo vermelhos Aleacutem do mais ambas as abordagens de Dretske e Nozick tecircm
a estranha implicaccedilatildeo de que sei que haacute um celeiro caso eu baseie a minha crenccedila nos
perceptos de celeiro vermelho e que natildeo sei quando ao baseaacute-la em meus perceptos de
celeiro ignoro a cor do celeiro Presumivelmente a cor do celeiro natildeo eacute relevante para
que ele seja um celeiro
As abordagens rastreadoras permitem contraexemplos a K A ilustraccedilatildeo mais
conhecida de Dretske eacute o caso da zebra suponha que vocecirc estaacute num zooloacutegico em
condiccedilotildees comuns de fronte a uma jaula marcada ldquozebrardquo o animal na jaula eacute uma zebra
e vocecirc acredita que zeb o animal na jaula eacute uma zebra pois vocecirc tem perceptos visuais
de uma zebre na jaula Ocorre a vocecirc que zeb implica natildeo-mula natildeo eacute o caso que o animal
na jaula seja uma mula disfarccedilada ao inveacutes de uma zebra Vocecirc entatildeo acredita que natildeo-
mula deduzindo-a de zeb Vocecirc sabe isso Vocecirc sabe zeb uma vez que se zeb fosse falsa
vocecirc natildeo teria perceptos visuais de uma zebre na jaula ao inveacutes vocecirc teria perceptos de
uma jaula vazia ou perceptos de um oricteacuteropo ou algo parecido Vocecirc sabe que natildeo-
mula Se natildeo-mula fosse falsa vocecirc ainda teria perceptos visuais de uma zebre na jaula
(e vocecirc ainda acreditaria que zeb e ainda acreditaria que natildeo-mula deduzindo-a de zeb)
Assim vocecirc natildeo sabe que natildeo-mula Mas note que temos
a Vocecirc sabe que zeb
b Vocecirc acredita que natildeo-mula por reconhecer que zeb implica natildeo-mula
c Vocecirc natildeo sabe que natildeo-mula
Por conta de (a)-(c) temos um contraexemplo a K que implica que se (a) vocecirc sabe que
zeb e (b) vocecirc acredita que natildeo-mula por reconhecer que zeb implica natildeo-mula entatildeo
vocecirc sabe natildeo-mula contraacuterio a (c)
Tendo rejeitado K e negado que sabemos coisas como natildeo-mula Nozick
tambeacutem negou o fechamento atraveacutes da simplificaccedilatildeo Pois se alguma proposiccedilatildeo p
implica outra proposiccedilatildeo q entatildeo p eacute equivalente agrave conjunccedilatildeo p amp q de acordo com isso
dado o fechamento atraveacutes da equivalecircncia que Nozick aceita se sabemos que zeb
podemos saber a conjunccedilatildeo zeb amp natildeo-mula mas se tambeacutem aceitamos o fechamento
atraveacutes da simplificaccedilatildeo seremos capazes de saber que natildeo-mula
237
Em resposta agrave primeira versatildeo do argumento da anaacutelise do conhecimento
alguns teoacutericos (eg Luper 1984 BonJour 1987 DeRose 1995) argumentaram que K eacute
tatildeo plausiacutevel (o que Dretske reconheceu em 2005 18) que soacute deveria ser abandonado
frente a razotildees fortes muito embora natildeo haja tais razotildees
A fim de mostrar que natildeo haacute fortes razotildees para abandonar K os teoacutericos tecircm
fornecido abordagens do conhecimento que (a) lidam com as nossas intuiccedilotildees pelo menos
tatildeo bem quanto as anaacutelises rastreadoras e ainda (b) subscrevem K Uma maneira de ser
fazer isso eacute enfraquecer as anaacutelises rastreadoras de modo que saibamos as coisas que
rastreamos ou que acreditamos porque sabemos que se seguem de coisas que rastreamos
(esse tipo de opccedilatildeo foi usada contra Nozick por vaacuterios teoacutericos Roush a defende em 2005
41-51) Outra abordagem eacute a que se segue Saber que p eacute grosso modo uma questatildeo de
ter uma razatildeo R para acreditar que p que satisfaz a seguinte condiccedilatildeo (ldquoSIrdquo para indicaccedilatildeo
segura [safe indication])
SI se R fosse o caso p seria o caso
SI requer que p seja verdadeira nos mundos R proacuteximos Quando R satisfaz essa
condiccedilatildeo dizemos que R eacute um indicador seguro de que p eacute verdadeiro (Versotildees
diferentes da condiccedilatildeo de seguranccedila tecircm sido defendidas veja por exemplo Luper 1984
Sosa 1999 2003 2007 2009 Williamson 2000 e Pritchard 2007) SI eacute a contraposiccedilao
de CR embora a contraposiccedilatildeo de uma condicional subjuntiva natildeo seja equivalente agrave
original
Suponhamos sem um argumento que SI daacute conta dos casos de conhecimento
e ignoracircncia assim como intuitivamente CR daacute Por que dizer que SI subscreve K O
ponto principal eacute que se R indica seguramente que p eacute verdadeira entatildeo indica
seguramente que q eacute verdadeira quando q eacute alguma das consequecircncias de p Posto de
outro modo o ponto eacute que o seguinte raciociacutenio eacute vaacutelido (sendo uma instacircncia do
fortalecimento da consequecircncia)
1 Se R fosse o caso p seria verdadeiro (ie R indica seguramente que p)
2 p implica q
3 Assim se R fosse o caso q seria verdadeiro (ie R indica seguramente que
q)
Assim se uma pessoa S sabe que p com base em R S estaacute em posiccedilatildeo de saber que q com
base em R quando q se segue de p S estaacute tambeacutem em posiccedilatildeo de saber que q com base
na conjunccedilatildeo de R junto do fato de que p implica q Assim se S sabe que p com base em
238
R e acredita em q com base em R (em que p repousa) junto do fato que p implica q entatildeo
S sabe que q Novamente se
(a) S sabe que p (com base em R) e
(b) S acredita que q por reconhecer que p implica q (de modo que S acredita
que q com base em R em que p repousa junto do fato de que p implica q)
entatildeo
(c) S sabe que q (com base em R e o fato de que p implica q) como K requer
Para ilustrar usemos o exemplo de Dretske Tendo baseado a sua crenccedila de
que zeb em seus perceptos de zebra na jaula vocecirc sabe zeb de acordo com SI
dadas suas circunstacircncias tivesse vocecirc outros perceptos zeb seria verdadeira
Aleacutem do mais quando vocecirc acredita que natildeo-mula por primeiro acreditar que
zeb com base nos seus perceptos de zebra na jaula e entatildeo deduz natildeo-mula de
zeb vocecirc sabe natildeo-mula de acordo com SI se vocecirc tivesse esses perceptos
natildeo apenas zeb seria o caso como tambeacutem sua consequecircncia natildeo-mula
Desviemo-nos um pouco a fim de notar que algumas versotildees da abordagem
da seguranccedila natildeo preservam o fechamento (Murphy 2005 apresenta essa objeccedilatildeo contra
a versatildeo de Sosa da abordagem da seguranccedila) Por exemplo ateacute certo ponto Ernest Sosa
discutiu a seguinte versatildeo da condiccedilatildeo
Se S acreditasse que p p seria verdadeira
Isso eacute exigir que a crenccedila de uma pessoa indique seguramente a sua verdade Contudo eacute
inteiramente possiacutevel estar numa situaccedilatildeo em que a crenccedila indique seguramente a sua
verdade muito embora a condiccedilatildeo exigida natildeo seja satisfeita para algo que se siga de tal
crenccedila O ponto pode ser ilustrado atraveacutes de uma versatildeo do caso do celeiro vermelho
Suponha que (com base em meus perceptos de celeiro vermelho) acredito que celeiro
vermelho haacute um celeiro vermelho em minha frente Suponha tambeacutem que haacute de fato um
celeiro vermelho em minha frente Contudo (vocecirc adivinhou) muitos celeiros falsos foram
espalhados pela vizinhanccedila todos eles azuis e natildeo vermelhos Nos mundos proacuteximos nos
quais acredito que celeiro vermelho estou correto e portanto satisfaccedilo a condiccedilatildeo
exigida para saber celeiro vermelho que eacute a de minha crenccedila em celeiro vermelho indicar
seguramente a sua proacutepria verdade Ora celeiro vermelho implica celeiro haacute um celeiro
em minha frente Mas de acordo com a perspectiva proposta a condiccedilatildeo exigida para
saber celeiro natildeo eacute que a minha crenccedila de que celeiro vermelho indique seguramente que
celeiro eacute o caso O que eacute exigido ao inveacutes eacute que a minha crenccedila de que celeiro indique
seguramente sua proacutepria verdade Supondo que eu acreditasse que celeiro caso eu visse
239
um dos celeiros azuis falsos entatildeo a minha crenccedila de que celeiro natildeo indica seguramente
sua verdade
Retomando K falha se o conhecimento implica CR mas natildeo se o
conhecimento implica SI mas pode natildeo ser possiacutevel subscrever K meramente por
substituir CR por SI uma vez que alguma outra condiccedilatildeo para o conhecimento poderia
bloquear o fechamento Podemos subscrever o fechamento se supusermos que acreditar
que p em bases ldquosegurasrdquo eacute suficiente para saber que p mas essa suposiccedilatildeo eacute duvidosa
Do modo como entendemos a seguranccedila podemos acreditar nas coisas com bases seguras
sem as saber Um exemplo oacutebvio eacute qualquer verdade necessaacuteria porque elas satildeo o caso
em todos os mundos possiacuteveis podemos acreditar seguramente nelas por qualquer razatildeo
Como outro exemplo lembre-se do caso de celeiro vermelho discutido anteriormente a
despeito dos muitos celeiros azuis falsos na vizinhanccedila os meus perceptos de celeiro
vermelho satildeo indicadores seguros de que o objeto em minha frente eacute um celeiro e que eacute
um celeiro vermelho de modo que nenhuma justaposiccedilatildeo objetaacutevel (tal como sei que haacute
um celeiro vermelho mas natildeo sei que haacute um celeiro) ocorre embora alguns teoacutericos
insistiratildeo que nas circunstacircncias delineadas natildeo sei nem que o objeto eacute um celeiro nem
que eacute um celeiro vermelho
22 Falhas do Fechamento de acordo com a Abordagem das Alternativas Relevantes
A segunda versatildeo do argumento a partir da anaacutelise do conhecimento diz que
qualquer perspectiva das alternativas relevantes natildeo apenas as abordagens rastreadoras
estaacute em tensatildeo com K Uma anaacutelise eacute uma abordagem das alternativas relevantes quando
satisfaz duas condiccedilotildees Primeiro produz uma compreensatildeo apropriada de ldquoalternativa
relevanterdquo A abordagem de Dretske se qualifica assim uma vez que ela nos permite dizer
que uma alternativa A a p eacute relevante se e somente se
CRA fosse p falsa A poderia ser o caso
De acordo com a segunda condiccedilatildeo a anaacutelise tem de dizer que saber que p requer excluir
todas as alternativas relevantes a p mas natildeo todas as alternativas a p A abordagem de
Dretske se qualifica como tal novamente Ele diz que uma alternativa A eacute excluiacuteda com
base em R se e somente se a seguinte condiccedilatildeo eacute satisfeita
CRR se A fosse o caso R natildeo seria o caso
E de acordo com a abordagem de Dretske uma alternativa A tem de ser excluiacuteda se e
somente se A satisfaz CRA
240
Assim a abordagem rastreadora eacute uma abordagem das alternativas relevantes
Mas por que dizer que as abordagens das alternativas relevantes ao conhecimento estatildeo
em tensatildeo com K Diremos isso se como Dretske aceitarmos o seguinte princiacutepio
crucial a negaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo p eacute automaticamente uma alternativa relevante a p
(natildeo importa o quatildeo bizarra ou remota natildeo-p possa ser) embora geralmente natildeo seja uma
alternativa relevante agraves coisas que implicam p Para um teoacuterico das alternativas
relevantes esse princiacutepio sugere que podemos saber que p somente se pudermos excluir
natildeo-p mas podemos saber coisas que implicam p ainda que natildeo possamos excluir natildeo-p
o que abre a possibilidade de haver casos que violem K Pois embora a nossa
incapacidade de excluir natildeo-p nos impeccedila de saber que p ela natildeo nos impede de saber
coisas que impliquem p E jaacute temos um exemplo pronto em matildeos o caso da zebra Talvez
vocecirc natildeo possa excluir mula mas isso lhe impede de saber que natildeo-mula natildeo que saiba
zeb Esses pontos podem ser reformulados em termos da abordagem das razotildees
conclusivas Para Dretske a negaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo p eacute automaticamente uma
alternativa relevante uma vez que a condiccedilatildeo CRA eacute automaticamente satisfeita isto eacute
eacute vacuamente verdadeiro que
Fosse p falsa natildeo-p poderia ser o caso
Portanto mula eacute uma alternativa relevante a natildeo-mula Ademais vocecirc natildeo saberaacute natildeo-
mula uma vez que natildeo puder excluir mula vocecirc acredita que natildeo-mula com base em seus
perceptos de zebra na jaula mas ainda os teria caso mula fosse o caso contraacuterio a CRR
Contudo vocecirc sabe zeb a despeito de sua incapacidade de excluir mula pois fosse zeb
falsa vocecirc natildeo teria os perceptos de zebra na jaula
De acordo com a segunda versatildeo do argumento da anaacutelise do conhecimento
qualquer perspectiva das alternativas relevantes estaacute em tensatildeo com K O quatildeo persuasivo
eacute esse argumento Como reconheceu Dretske (2003) eacute de fato um ataque fraco a K uma
vez que algumas abordagens das alternativas relevantes satildeo completamente consistentes
com K Como exemplo temos apenas de adaptar a perspectiva da indicaccedilatildeo segura
tornando claro que ela eacute uma abordagem das alternativas relevantes (Luper 1984 1987c
2006)
A perspectiva da indicaccedilatildeo segura pode ser adaptada em dois passos
Primeiro dizemos que uma alternativa a p A eacute relevante se e somente se a seguinte
condiccedilatildeo eacute satisfeita
SRA Nas circunstacircncias de S A poderia ser o caso
241
Assim qualquer possibilidade que seja remota eacute automaticamente irrelevante falhando
SRA Segundo dizemos que A eacute excluiacuteda com base em R se e somente se a seguinte
condiccedilatildeo eacute satisfeita
SIR fosse R o caso A natildeo seria o caso
Esse modo de entender as alternativas relevantes manteacutem K O ponto central
eacute que se S sabe que p com base em R e eacute por isso capaz de excluir as alternativas
relevantes a p entatildeo S pode tambeacutem excluir as alternativas relevantes a q em que q eacute
algo implicado por p Se R natildeo fosse o caso as alternativas a q natildeo seriam tambeacutem
Aparentemente a abordagem das alternativas relevantes pode ser interpretada
de modo que apoie K tanto quanto de modo que natildeo apoie Assim Dretske natildeo estaacute na
melhor posiccedilatildeo ao dizer que a perspectiva das alternativas relevantes leva ldquonaturalmenterdquo
agrave falha do fechamento
23 Fechamento e Confiabilismo
De acordo com uma versatildeo do confiabilismo (defendida por Ramsey 1931 e
Armstrong 1973 dentre outros) algueacutem sabe que p se e somente se adquire (ou sustenta)
a crenccedila de que p atraveacutes de um meacutetodo confiaacutevel Estaacute o confiabilista comprometido
com K A resposta depende precisamente de como a noccedilatildeo relevante do confiabilismo eacute
entendida Se entendermos a confiabilidade como os teoacutericos do rastreamento entendem
rejeitaremos o fechamento Mas haacute outras versotildees do confiabilismo que sustentam K Por
exemplo a abordagem da indicaccedilatildeo segura eacute um tipo de confiabilismo Poderiacuteamos
tambeacutem dizer que uma crenccedila verdadeira de que p eacute confiavelmente formada se e
somente se for baseada num evento que geralmente ocorreria somente se p (ou uma
crenccedila do tipo p) fosse verdadeira Nesse sentido qualquer evento que indique
confiavelmente que p eacute verdadeira tambeacutem indicaraacute confiavelmente que as consequumlecircncias
de p satildeo verdadeiras
3 O Argumento do Natildeo-Fechamento dos Modos de Conhecimento
Dretske argumentou (2003 2005) que deveriacuteamos esperar que K falhe porque nenhum
dos modos de obter preservar e aumentar o conhecimento satildeo individualmente fechados
Dretske apresenta seu argumento na forma de uma pergunta retoacuterica ldquode que modo
242
algueacutem poderia fechar algo quando todos os modos de obtecirc-lo estendecirc-lo e preservaacute-lo
estatildeo em abertordquo (2003 113-4)
31 Modos de Conhecimento e Natildeo-Fechamento
Como exemplos de modos de obter sustentar e aumentar o conhecimento
Dretske sugeriu a percepccedilatildeo o testemunho a demonstraccedilatildeo a memoacuteria a indicaccedilatildeo e a
informaccedilatildeo Dizer que esses itens natildeo satildeo individualmente fechados eacute dizer que os
seguintes princiacutepios de fechamento para modos com ou sem qualificaccedilotildees parenteacuteticas
satildeo falsos
PC Se S percebe que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica q
entatildeo S percebe q
TC Se S recebeu o testemunho de que p e (S acredita que q porque S sabe
que) p implica q entatildeo S recebeu o testemunho de que q
OC Se S demonstrou que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica
q entatildeo S demonstrou que q
RC Se S se lembra que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica
q entatildeo S se lembra de q
IC Se R indica que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica q
entatildeo R indica que q
NC Se R carrega a informaccedilatildeo de que p e (S acredita que q porque S sabe
que) p implica q entatildeo R carrega a informaccedilatildeo de que q
E de acordo com Dretske cada um desses princiacutepios eacute falso Podemos perceber que
temos matildeos por exemplo sem perceber que haacute coisas fiacutesicas
32 Respostas a Dretske
Houve vaacuterias reacuteplicas ao argumento de Dretske contra o fechamento com base
nos modos de conhecimento
Primeiro a falha de um ou mais princiacutepios de fechamento para modos natildeo
implica que K falhe O que importa eacute se os vaacuterios modos de conhecimento discutidos por
Dretske nos deixam em posiccedilatildeo de saber as consequecircncias das coisas que sabemos Em
outras palavras a questatildeo eacute se o seguinte princiacutepio eacute verdadeiro
243
T Se ao saber que p via percepccedilatildeo testemunho demonstraccedilatildeo memoacuteria ou
algo que indique ou carregue a informaccedilatildeo de que p S acredita que q porque
p implica q entatildeo S sabe que q
Segundo os teoacutericos tecircm defendido alguns princiacutepios de fechamento para
modos tais como PC IC e NC Dretske rejeita esses trecircs princiacutepios porque pensa que a
percepccedilatildeo a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo satildeo melhores analisados em termos de razotildees
conclusivas o que mina o fechamento Mas os trecircs princiacutepios (ou algo muito proacuteximos
deles) podem ser defendidos se analisarmos a percepccedilatildeo a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo em
termos de indicaccedilatildeo segura Considere IC e NC Ambos satildeo verdadeiros se analisarmos
a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo como se segue
R indica p sse p seria verdadeiro se R fosse o caso
R carrega a informaccedilatildeo de que p sse p seria verdadeiro se R fosse o caso
Uma versatildeo de PC pode ser defendida se fizermos uso da noccedilatildeo de percepccedilatildeo do proacuteprio
Dretske (1969) Considere um cientista que estuda o comportamento de eleacutetrons atraveacutes
da observaccedilatildeo das bolhas que eles deixam para traacutes numa cacircmara de nuvens Os eleacutetrons
em si satildeo invisiacuteveis mas o cientista pode perceber que os eleacutetrons (invisiacuteveis) estatildeo se
movendo de certos modos por perceber que as bolhas (visiacuteveis) deixadas para traacutes estatildeo
dispostas de maneiras especiacuteficas O que percebemos diretamente nos coloca em posiccedilatildeo
de perceber vaacuterias coisas indiretamente Suponha pois que quando percebemos que p
direta ou indiretamente e isso nos causa a crenccedila de que q quando p implica q somos
deixados numa posiccedilatildeo de perceber q indiretamente Assim estamos corretos ao aceitar
alguma versatildeo de PC como por exemplo
SPC Se S percebe que p e isso causa em S a crenccedila de que q entatildeo S percebe
que q
4 O Argumento das Proposiccedilotildees Natildeo (Facilmente) Conheciacuteveis
Outro argumento antifechamento eacute o de que haacute alguns tipos de proposiccedilotildees que natildeo
sabemos a menos que tenhamos capacidades extraordinaacuterias embora essas proposiccedilotildees
sejam implicadas por afirmaccedilotildees mundanas cuja verdade sabemos Uma vez que isso seria
impossiacutevel caso K estivesse correto K tem de ser falso A mesma dificuldade eacute agraves vezes
discutida sob o roacutetulo de problema do conhecimento faacutecil uma vez que alguns teoacutericos
(Cohen 2002) acreditam que certas coisas satildeo difiacuteceis de conhecer no sentido de que natildeo
podem ser conhecidas por deduccedilatildeo a partir de conhecimento banal O argumento tem
244
diferentes versotildees dependendo de que proposiccedilotildees dizemos serem difiacuteceis de conhecer
De acordo com Dretske (e talvez Nozick) natildeo podemos saber facilmente que proposiccedilotildees
restritivas ou proposiccedilotildees de grande porte satildeo verdadeiras Essas proposiccedilotildees se
assemelham agraves proposiccedilotildees que Moore (1959) considerou verdadeiras com certeza e que
Wittgenstein (1969) declarou serem incognosciacuteveis (mas Wittgenstein as considerou
incognosciacuteveis com base nas duacutebias razotildees de que elas tecircm de ser verdadeiras caso
tenhamos de evitar duacutevidas) Outra possibilidade eacute que natildeo podemos facilmente saber
proposiccedilotildees loteacutericas Um caso especial do argumento das proposiccedilotildees incognosciacuteveis
comeccedila com a alegaccedilatildeo de que natildeo podemos saber a falsidade de hipoacuteteses ceacuteticas
Consideraremos essa terceira perspectiva na proacutexima seccedilatildeo
41 O Argumento das Proposiccedilotildees Restritivas
Dretske natildeo delineou claramente a classe das proposiccedilotildees a que chamou
ldquorestritivasrdquo (em 2003) ou ldquode grande porterdquo (em 2005) Alguns dos exemplos fornecidos
por ele satildeo ldquoHaacute um passadordquo ldquoHaacute objetos fiacutesicosrdquo e ldquoNatildeo estou sendo tapeado por uma
ilusatildeo engenhosardquo Ele parecia pensar que essas proposiccedilotildees tecircm uma propriedade a que
podemos chamar ldquoesquividaderdquo em que p eacute esquiva para mim se e somente se a falsidade
de p natildeo mudaria minhas experiecircncias Mas ser restritivo natildeo coincide com ser esquivo
Se natildeo houvesse objetos fiacutesicos as minhas experiecircncias seriam dramaticamente alteradas
uma vez que eu natildeo existiria Assim algumas proposiccedilotildees restritivas natildeo satildeo esquivas Eacute
difiacutecil dizer poreacutem se todas as afirmaccedilotildees esquivas satildeo restritivas por causa da
maleabilidade do termo ldquorestritivordquo Natildeo-mula eacute esquiva mas seraacute restritiva
Natildeo podemos saber proposiccedilotildees restritivas Se natildeo e se sabemos coisas que
as implicam Drestke pensou tivesse apoio adicional para a sua abordagem das razotildees
conclusivas supondo como ele fez que a sua abordagem exclui o conhecimento de
proposiccedilotildees restritivas (embora permita o conhecimento de coisas que as implicam)
Contudo essa suposiccedilatildeo eacute falsa (Hawthorne 2005 Luper 2006) Temos razatildeo conclusiva
para acreditar em algumas proposiccedilotildees restritivas tal como a de que haacute objetos fiacutesicos
Contudo Drestke poderia abandonar a noccedilatildeo de proposiccedilatildeo restritiva em favor da noccedilatildeo
de proposiccedilatildeo esquiva e citar em favor de sua abordagem das razotildees conclusivas e contra
K os fatos de que natildeo sabemos afirmaccedilotildees esquivas mas que podemos saber coisas que
as impliquem