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ano 4 n o . 6 1 O . SEMESTRE DE 2017 ISSN 2358-7377 outra margem revista de filosofia

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ano 4 mdash no 61 O S E M E S T R E D E 2 0 1 7

I S S N 2 3 5 8 - 7 3 7 7

o u t r a m a rg e mr e v i s t a d e f i l o s o f i a

sumaacuterio

editorial | editorial

Diversidade na Adversidade

Gabriel Almeida Assumpccedilatildeo (UFMG)

artigos | papers

A Pragmaacutetica do Discurso de Foucault

Ceciacutelia de Sousa Neves (UFMG)

Leibniz e a Criacutetica ao Espaccedilo Tota Simul Newtoniano a mocircnada como

causa imediata do movimento

Cloves Thiago Dias Freire (UFS)

A Questatildeo do Dualismo e da Linguagem em Bergson

Edvan Aragatildeo Santos (USP)

Do Niilismo agrave Experiecircncia Totalitaacuteria

Elvis de Oliveira Mendes (UFPE)

Funccedilatildeo Personalidade em Devir ndash um olhar da teoria do self

Fabio Henrique Medeiros Bogo (UFSC)

Praacuteticas de Cuidado de Si na Antiguidade

Felipe Gustavo Soares da Silva (UFPE)

Do Amor Platocircnico ao Crush a filosofia entre adolescentes ndash toacutepicos de

ensino de filosofia

Gabriel R Rocha (PUC-RS)

A Subjetividade e a Busca pela Felicidade no Pensamento de Blaise

Pascal

Jean Vargas (UFMG)

O Possiacutevel Metafoacuterico Segundo Tomaacutes De Aquino

Matheus Henrique Gomes Monteiro (UNICAMP)

De Descartes a Frege os avanccedilos epistemoloacutegicos do meacutetodo

Michelle Cardoso Montoya (UFRJ)

Dois Sentidos de Participaccedilatildeo em Platatildeo

Otacilio Luciano de Sousa Neto (UFC)

ano 4 mdash no 6 mdash 1 O S E M E S T R E D E 2 0 1 7

Sobre o Tempo uma questatildeo fundamental

Paulo Seacutergio Calvet Ribeiro Filho (PUC-RIO)

Zaratustra Metaciacutenico

Rafael Rocha da Rosa (UERJ)

A Modernidade lsquonarsquo Filosofia de Descartes a criacutetica das formas

substanciais

William Teixeira (UnB)

entrevista | interview

ldquoFechamento epistecircmicordquo de Steven Luper

Luiz H M Segundo (UFSC)

sumaacuterio

DIVERSIDADE NA ADVERSIDADE

Gabriel Almeida Assumpccedilatildeo (UFMG)

O sexto nuacutemero da Outramargem Revista de Filosofia retrata a

diversidade da produccedilatildeo acadecircmica nacional em filosofia multiplicidade essa que se daacute

tanto do ponto de vista histoacuterico quanto do ponto de vista sistemaacutetico Como resultado

temos artigos em filosofia antiga medieval moderna e contemporacircnea Os materiais

variam natildeo soacute no que tange ao periacuteodo da histoacuteria da filosofia mas tambeacutem no que diz

respeito agrave aacuterea da filosofia eacutetica metafiacutesica filosofia da linguagem epistemologia

poliacutetica e filosofia da natureza

Tambeacutem chama atenccedilatildeo o fato de que haacute contribuiccedilotildees de pesquisadores de

vaacuterios estados diferentes o que aponta para um momento de expansatildeo do perioacutedico

cuja amplitude geograacutefica e temaacutetica atinge novos niacuteveis Em um momento da histoacuteria

do Paiacutes no qual os investimentos em ciecircncia e educaccedilatildeo tecircm sido cada vez mais

escassos mostra-se de grande importacircncia continuar o esforccedilo de pesquisa e

valorizarmos a produccedilatildeo dos colegas pois eacute especialmente nos momentos de

adversidade que natildeo devemos desistir da busca do saber e da troca de conhecimentos

As situaccedilotildees de escassez e crise foram e continuaratildeo sendo fonte de inspiraccedilatildeo e

mudanccedila e com esse intuito apresentamos um panorama do que tem sido pesquisado

em vaacuterias universidades do Brasil

O artigo de Paulo S C Ribeiro Filho (PUC-RJ) ldquoSobre o tempo uma

questatildeo fundamentalrdquo traz um debate sobre um dos temas mais complexos e aporeacuteticos

da filosofia o tempo Esse enigma filosoacutefico abordado por filoacutesofos tatildeo distintos como

Aristoacuteteles Plotino e Kant eacute aqui elaborado a partir de quatro pensadores Agostinho

Borges Agamben e Heidegger Outro texto que abrange mais de um periacuteodo da histoacuteria

da filosofia eacute o de Felipe Gustavo S da Silva (UFPE) com ldquoPraacuteticas de Cuidado de si

na Antiguidaderdquo em que Foucault eacute o referencial para uma investigaccedilatildeo histoacuterico-

criacutetica do pensamento antigo especialmente Platatildeo Mais um artigo no qual a relaccedilatildeo de

Michel Foucault com os antigos se faz presente eacute ldquoZaratustra metaciacutenicordquo de Rafael R

da Rosa (UERJ) O autor discute o tema claacutessico da transvaloraccedilatildeo dos valores por

2

Nietzsche mas sob lentes foucaultianas em diaacutelogo com uma tradiccedilatildeo marginal o

cinismo

Em termos de pesquisa que envolve mais de um momento da histoacuteria da

filosofia temos ldquoDe Descartes a Frege os avanccedilos epistemoloacutegicos do meacutetodordquo escrito

por Michelle C Montoya (PPGLM-UFRJ) A contribuiccedilatildeo da autora eacute uma apreciaccedilatildeo

histoacuterica do problema do meacutetodo no pensamento moderno com a indicaccedilatildeo posterior de

como G Frege apresentou respostas mais fecundas a esse problema ainda que portando

certa ldquocontinuidaderdquo com a proposta cartesiana

No acircmbito da filosofia antiga temos dois artigos o de Gabriel R Rocha

(PUC-RS) ldquoDo amor platocircnico ao crush a filosofia entre adolescentes ndash toacutepicos de

ensino de filosofiardquo e o de Otacilio L de S Neto (UFC) ldquoDois sentidos de participaccedilatildeo

em Platatildeordquo No caso de Rocha trata-se de um esforccedilo interdisciplinar de refletir sobre o

Eros platocircnico e diferenccedilas e semelhanccedilas com maneiras contemporacircneas de lidar com a

vida afetiva e o desejo com ecircnfase na giacuteria crush usada por jovens e adolescentes

recorrendo a teoacutericos como Z Bauman A MacIntyre e E Cassirer O texto de Neto

por sua vez consiste em rigorosa exegese de trechos do Parmecircnides e do Feacutedon

platocircnico diferenciando duas nuances do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo em Platatildeo Essa

retomada de um problema claacutessico na histoacuteria da filosofia atenta para a polissemia tatildeo

recorrente em conceitos de filosofia antiga

Ainda na aacuterea da metafiacutesica mas no acircmbito da filosofia medieval cujos

estudos tecircm crescido no paiacutes temos a contribuiccedilatildeo de Matheus Monteiro (UNICAMP)

ldquoO possiacutevel metafoacuterico segundo Tomaacutes de Aquinordquo Nesse artigo o autor expotildee o

conceito de possiacutevel metafoacuterico e o problematiza de modo criacutetico para que

medievalistas possam discutir o tema ainda mais a fundo

No acircmbito da filosofia moderna haacute o artigo de William Teixeira (UnB) ldquoA

modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes a criacutetica das formas substanciaisrdquo O texto

mostra como Descartes partiu da criacutetica agrave noccedilatildeo escolaacutestica de lsquoforma substancialrsquo para

uma concepccedilatildeo mecanicista dos fenocircmenos naturais baseado em medidas e na

matemaacutetica Com essa atitude o filoacutesofo estaria proacuteximo de Bacon e Galileu portanto

inserido em um contexto moderno

Tambeacutem na filosofia moderna temos ldquoA subjetividade e a busca pela

felicidade no pensamento de Blaise Pascalrdquo artigo de Jean Vargas (UFMG) que

articula condiccedilatildeo humana e subjetividade humana tratando-se de importante reflexatildeo de

cunho antropoloacutegico agrave luz das ideias de teacutedio esquecimento de si amor-proacuteprio e

3

divertissement Cloves T D Freire (UFS) por sua vez escreveu ldquoLeibniz e a criacutetica ao

espaccedilo tota simul newtoniano a mocircnada como causa imediata do movimentordquo artigo

no qual se confronta dois grandes ldquorivaisrdquo no pensamento moderno cuja disputa pela

autoria do caacutelculo eacute famosa I Newton e G Leibniz No caso do texto de Freire Leibniz

critica a ideia de espaccedilo absoluto de Newton com base na noccedilatildeo de mocircnada e de sua

capacidade de aperceccedilatildeo e nos princiacutepios de razatildeo suficiente e identidade dos

indiscerniacuteveis

Ainda no acircmbito de reflexotildees acerca do eu mas sob um ponto de vista da

filosofia contemporacircnea temos ldquoFunccedilatildeo personalidade em devir ndash um olhar da teoria do

selfrdquo por Faacutebio H M Bogo (UFSC) O material em questatildeo se baseia na psicanaacutelise e

especialmente na esquizoanaacutelise de Deleuze e Guatarri Aqui natildeo se trata de uma

filosofia da subjetividade mas de uma filosofia da dissoluccedilatildeo do eu que passa a ser

pensado como funccedilatildeo e natildeo como estrutura

No acircmbito da filosofia poliacutetica temos a contribuiccedilatildeo de Elvis de O Mendes

(UFPE) intitulada ldquoDo niilismo agrave experiecircncia totalitaacuteriardquo Trata-se de um artigo focado

no pensamento de Leo Strauss e na abordagem que este faz agrave tirania como fenocircmeno

histoacuterico Jaacute ldquoA pragmaacutetica do discurso de Foucaultrdquo por Ceciacutelia de S Neves (UFMG)

o foco reside no tema da linguagem atentando para suas dimensotildees poliacuteticas chamando

atenccedilatildeo para como ler Foucault pensando na atualidade

A linguagem tambeacutem eacute tema do trabalho de Edvan Aragatildeo Santos (USP)

ldquoA questatildeo do dualismo e da linguagem em Bergsonrdquo artigo no qual se relacionam

linguagem consciecircncia e apreensatildeo da realidade Nosso nuacutemero tambeacutem contempla a

traduccedilatildeo de Epistemic closure ldquoFechamento epistecircmicordquo de Steven Luper por Luiz H

M Segundo (UFSC) que nos permitiu acesso em liacutengua portuguesa a uma importante

contribuiccedilatildeo em filosofia analiacutetica

Que esse rico panorama da pesquisa filosoacutefica dos poacutes-graduandos

brasileiros sirva de incentivo em tempos tatildeo duros Esperamos que as contribuiccedilotildees

continuem em qualidade e em quantidade

Boa leitura

Gabriel Assumpccedilatildeo

Errata No vol 3 n 5 (2ordm semestre de 2016) na entrevista com Ivan

Domingues chamada ldquoFilosofia como Resistecircnciardquo na paacutegina 3 onde estaacute ldquoDavid

4

Emanuel Carneirordquo leia-se ldquoDavid Emanuel Coelhordquo Pedimos desculpas aos leitores e

ao David pelo erro

A PRAGMAacuteTICA DO DISCURSO DE FOUCAULT

Ceciacutelia de Sousa Neves1

RESUMO Objetiva-se esclarecer o horizonte no qual surge a anaacutelise pragmaacutetica do discurso de Foucault inserindo-a no percurso da reflexatildeo filosoacutefica acerca da linguagem assim como seu significado e potencial poliacutetico Para isso nos serviremos principalmente das obras A ordem do discurso e Arqueologia do saber O artigo compotildee-se de duas partes na primeira inscreveremos Foucault no registro de duas grandes rupturas na investigaccedilatildeo acerca da linguagem a ruptura platocircnica com o pensamento preacute-socraacutetico e a ruptura operada por Saussure em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo em seguida esclareceremos o significado da anaacutelise do discurso de Foucault e como ela serve a um projeto poliacutetico emancipador Buscamos com isso reeditar o convite que esse filoacutesofo fascinante ainda hoje nos endereccedila a saber o de adentrarmos na ordem arriscada do discurso que embora tenha sido durante tanto tempo considerada pela tradiccedilatildeo como o inimigo a ser abatido natildeo apenas obedece a leis e regularidades que ainda estatildeo para serem descobertas como nos abre um mundo novo de possibilidades Palavras-chave Discurso Pragmaacutetica Foucault ABSTRACT This paper aims at clarifying the horizon in which the pragmatic analysis of Foucaults discourse arises inserting it in the course of philosophical reflection on language as well as its meaning and political potential For this we will focus on the following Foucalultrsquos works The order of discourse and Archeology of knowledge This paper is composed of two parts in the first part we will register Foucault in the two major ruptures in the investigation of language the Platonic rupture with pre-Socratic thought and the rupture operated by Saussure in relation to tradition Then we will clarify the meaning of Foucaults discourse analysis and how it serves as an emancipatory political project Thereby we intend to reissue the invitation that this fascinating philosopher still addresses to us which is the entering into the risky order of discourse that although it has been for so long considered by tradition as an enemy to be slaughtered not only obeys laws and Regularities that are yet to be discovered as well as it opens to us a new world of possibilities Keywords Discourse Pragmatic Foucault

Introduccedilatildeo

1 Doutoranda do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFMG Bolsista Capes E-mail de contato cecilianeves2003yahoocombr

6

A reflexatildeo acerca da linguagem do seu estatuto e funccedilatildeo ou posiccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao pensamento conhecimento e agrave praacutexis confunde-se com a proacutepria filosofia Natildeo

por acaso a filosofia se concretiza na ruptura iniciada por Platatildeo e sistematizada por

Aristoacuteteles com o discurso dos preacute-socraacuteticos poetas e sofistas gregos Foucault2 elabora

essa ruptura em termos da instituiccedilatildeo de uma nova e decisiva oposiccedilatildeo entre discurso

verdadeiro e falso Se para os poetas gregos o discurso verdadeiro ndash desejaacutevel e investido

pelo poder natildeo somente de anunciar mas realizar o destino e provocar a adesatildeo ndash consistia

no ato ritualizado de enunciaccedilatildeo de modo que a linguagem se identificava com a

realidade caracteriacutestica de uma perspectiva ontoloacutegica da linguagem a partir de Platatildeo

um discurso verdadeiro diz respeito agrave justeza ou exata aplicaccedilatildeo dos nomes ou seja

desloca-se para o enunciado o qual tem o papel de traduzir (ou intermediar por meio de

signos) o pensamento caracterizando portanto uma perspectiva instrumental da

linguagem O movimento que funda as bases ou o mainstream da ordem do discurso

filosoacutefico ocidental ou seja que delineia nos termos foucaultianos uma ldquovontade de

saberrdquo cujas caracteriacutesticas gerais ainda hoje nos determina consiste nesta reconfiguraccedilatildeo

da relaccedilatildeo entre linguagem e realidade Assim toda a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental

pode ser lida enquanto resposta a essa racionalizaccedilatildeo do discurso operada pelo

platonismo ou seja ldquopropondo uma verdade ideal como lei do discurso e uma

racionalidade imanente como princiacutepio de seu desenvolvimentordquo3

A ideia quixotesca de que a formalizaccedilatildeo do discurso promove sua depuraccedilatildeo

do lastro do desejo e do poder da contingecircncia e relatividade tem como principal

consequecircncia a supressatildeo da realidade do discurso Esta negaccedilatildeo da realidade especiacutefica

do discurso seu afastamento da contingecircncia das praacuteticas como seu princiacutepio constituinte

como indicamos tomaraacute muitas formas na histoacuteria do pensamento e da filosofia Em

relaccedilatildeo agrave filosofia podemos falar de dois caminhos principais o primeiro e hegemocircnico

diz respeito agravequele que reforccedila essa supressatildeo atraveacutes de que Foucault denomina como

uma filosofia do idecircntico que defende uma providecircncia preacute-discursiva do sentido o

destino da racionalidade ou teleologia do devir uma histoacuteria contiacutenua o retorno

compulsivo agraves origens as totalizaccedilotildees e uma filosofia do sujeito o segundo marginal e

maldito visa desvelar a ilegitimidade e arbitrariedade dessa construccedilatildeo atraveacutes da anaacutelise

do mecanismo proacuteprio da linguagem em nome de uma filosofia da diferenccedila cuja

principal caracteriacutestica eacute o descentramento face agrave soberania do sujeito e as figuras gecircmeas

2 FOUCAULT A ordem do discurso p13 3 FOUCAULT A ordem do discurso p43

7

da antropologia e do humanismo Eacute nesta segunda via aberta pela criacutetica radical de autores

como Nietzsche Artaud e Bataille que se inscreve a anaacutelise pragmaacutetica do discurso de

Foucault Anaacutelise que por sua vez elege um ponto de partida original para a abordagem

filosoacutefica acerca da linguagem natildeo o pensamento como fez a tradiccedilatildeo nem a linguagem

como fez Saussure mas o espaccedilo contingente em que desenvolvem os acontecimentos

discursivos Foucault visa desvelaacute-los em sua pureza sem a mediaccedilatildeo de operadores de

siacutentese eou psicoloacutegicos a serviccedilo da continuidade e identidade a fim de abrir novas

potencialidades para a anaacutelise histoacuterica dos discursos tais como a descriccedilatildeo de outras

formas de regularidade e jogos de relaccedilotildees

Uma imagem singular que descreve muito bem o pensamento de Foucault eacute

a de canteiro de obras Na medida em que este pensamento se revela imperativamente

experimental e ensaiacutestico Foucault nos adverte a possibilidade de que ao final ldquoem lugar

de dar fundamento ao que jaacute existe () sejamos obrigados a continuar fora das paisagens

familiares longe das garantias a que estamos habituados em um terreno ainda natildeo

esquadrinhado e na direccedilatildeo de um final que natildeo eacute faacutecil preverrdquo4 Esta observaccedilatildeo importa

na medida em que previne o leitor e o estudioso acerca do que se deve e natildeo se deve

esperar de sua obra espere encontrar exemplos impressionantes de anaacutelises e criacuteticas

filosoacuteficas apuradas e detalhadas mas natildeo espere respostas e teorias conclusivas e

sistemaacuteticas Outra questatildeo que orientaraacute nosso exame eacute o fato de que esta filosofia da

diferenccedila eacute indissociaacutevel de um projeto poliacutetico que confia no esclarecimento como a via

privilegiada da liberdade Ao buscar esclarecer as condiccedilotildees de funcionamento

contingecircncias histoacutericas e a legalidade especiacutefica do campo em que se desenvolvem os

acontecimentos discursivos Foucault quer sobretudo ldquomostrar que o que eacute jamais foi

ou seja eacute sempre na confluecircncia dos encontros dos acasos no curso da histoacuteria fraacutegil

precaacuteria que satildeo formadas as coisas que nos datildeo a impressatildeo de serem as mais

evidentesrdquo5

1 As duas rupturas Platatildeo e Saussure

O texto seminal que inaugura a reflexatildeo filosoacutefica acerca da linguagem eacute o

diaacutelogo platocircnico chamado Craacutetilo Aqui se formula o problema nuclear que serviraacute de

eixo em torno do qual o pensamento sobre a linguagem se desenvolveraacute Trata-se de

4 FOUCAULT A arqueologia do saber p44 5 FOUCAULT Estruturalismo e poacutes-estruturalismo p 325

8

justificar racionalmente em que consiste a ldquoexata aplicaccedilatildeo dos nomesrdquo ou a ldquojusteza dos

nomesrdquo em outras palavras busca-se esclarecer qual eacute o fundamento da relaccedilatildeo entre

signo e referente nome e objeto forma e conteuacutedo ou ainda entre as palavras e as coisas

O que estaacute em jogo nesse problema eacute a proacutepria possibilidade do conhecimento verdadeiro

O diaacutelogo consiste na investigaccedilatildeo de Soacutecrates das teses opostas de Hermoacutegenes para

quem a origem e natureza das denominaccedilotildees satildeo puramente convencionais e Craacutetilo para

quem cada coisa tem por natureza um nome apropriado

Face ao relativismo da tese de Hermoacutegenes ndash segundo a qual se a verdade eacute o

que parece a cada um natildeo apenas toda designaccedilatildeo estaacute correta como natildeo haacute diferenccedila

entre verdadeiro e falso viacutecio e virtude ou razatildeo e loucura ndash Soacutecrates afirma um dos

pressupostos baacutesicos da doutrina platocircnica a saber que as coisas e suas accedilotildees (inclusive

o ato de falar e nomear) possuem uma ldquoessecircncia permanenterdquo6 isto eacute uma existecircncia

natural e transcendente que funciona como criteacuterio de verdade da coisa e de sua maneira

de ser Assim o nome ldquoeacute a imitaccedilatildeo vocal da coisa imitadardquo7 de modo que nomear

corretamente implica exprimir com signos a ideia fundamental da coisa Nesse sentido

como afirma Soacutecrates Craacutetilo tem razatildeo pois os nomes derivam da natureza das coisas e

bem aplicados revelam o caraacuteter o modo de ser ou a natureza proacutepria de algo Mas Craacutetilo

erra ao explicar em que consiste a atribuiccedilatildeo dos nomes agraves coisas Isso porque o criteacuterio

para a correccedilatildeo da imagem ou imitaccedilatildeo natildeo estaacute no fato de ela ser exatamente igual agrave

coisa designada como o quer Craacutetilo ou seja natildeo eacute possiacutevel identificar nome e coisa

pois a princiacutepio uma imagem natildeo possui a mesma propriedade dos originais e se possuiacutesse

seria mera duplicaccedilatildeo logo seria impossiacutevel distinguir uma da outra Portanto para o

nome ser bem formado eacute preciso apenas que ele contenha a imagem fundamental de cada

coisa razatildeo pela qual pode variar as letras

A tese de Craacutetilo ao afirmar que um nome imita perfeitamente a coisa

simplesmente por ser nome defende que atraveacutes do nome eu conheccedilo a coisa assim como

conhecendo as coisas descobrimos seu nome O problema eacute que se por um lado os nomes

dizem a verdade acerca da coisa que designam de modo que para atribuir o nome eacute

preciso conhecer as coisas por outro lado para conhecer as coisas eacute preciso jaacute deter os

nomes ao menos os nomes primitivos A questatildeo que coloca a tese de Craacutetilo em apuros

concerne agrave origem mesma da linguagem ou seja como os primeiros legisladores

apreenderam e designaram as coisas se os nomes primitivos necessaacuterios para isso natildeo

6 PLATAtildeO Craacutetilo 386 e 7 PLATAtildeO Craacutetilo 423 b

9

tinham sido fixados e se para fixar os nomes eacute preciso apreender as coisas Para resolver

essa aporia da origem da linguagem a qual Soacutecrates conduziu a tese de Craacutetilo Soacutecrates

daacute um passo aleacutem daquele que eacute dado na investigaccedilatildeo da tese de Hermoacutegenes ndash em que

se chegou agrave conclusatildeo que a designaccedilatildeo seraacute verdadeira se imita a essecircncia da coisa e

falsa se natildeo Esse passo corresponde agrave instituiccedilatildeo do criteacuterio de verdade para essa

designaccedilatildeo criteacuterio esse que natildeo se encontra na imanecircncia da linguagem mas seraacute situado

em um registro ontologicamente independente da experiecircncia concreta dos indiviacuteduos

Portanto eacute um criteacuterio transcendente que autoriza e fundamenta a ligaccedilatildeo entre signo e o

referente entre nome e o objeto forma e conteuacutedo as palavras e as coisas O modo mais

natural seguro e belo de conhecer algo eacute partindo de sua proacutepria verdade natildeo de suas

imagens secundaacuterias Ou seja ldquonatildeo eacute por meio de seus nomes que devemos procurar

conhecer ou estudar as coisas mas de preferecircncia por meio delas proacutepriasrdquo8 Eacute a partir

dessa verdade intelectual que vamos avaliar a representaccedilatildeo da verdade por suas imagens

(nomes) natildeo o inverso

A principal consequecircncia desse diaacutelogo razatildeo pela qual esta obra inaugura a

reflexatildeo filosoacutefica sobre a linguagem estaacute na reduccedilatildeo do discurso agrave condiccedilatildeo de mero

suporte entre pensar e falar simples instrumento de traduccedilatildeo do pensamento A partir de

Platatildeo torna-se lugar comum a pressuposiccedilatildeo de um horizonte de significaccedilatildeo contiacutenua

de sentido ou seja anterior ao uso dos nomes existe uma verdade absoluta e necessaacuteria

em relaccedilatildeo a qual ao discurso soacute cabe encadeaacute-la refleti-la desdobrar seu sentido do

interior ao exterior A linguagem serve como um instrumento para compartilhar

informaccedilotildees e distinguir as coisas De modo que o discurso verdadeiro e a possibilidade

de conhecimento se reduzem agrave forma correta do enunciado proposicional que nos permite

nomear ou designar as coisas ou seja ldquodizer por meio das palavras o que eacute e o que natildeo

eacuterdquo9 Digno de nota eacute o fato de que nesta passagem Platatildeo formula explicitamente pela

primeira vez o conceito de verdade como correspondecircncia isto eacute funda no ser o criteacuterio

que garante e justifica a verdade do discurso

A ideia de que haacute uma essecircncia fundamental (por exemplo uma cadeira ideal

ontologicamente independente da nossa experiecircncia) que as palavras (associadas a um

conceito intelectual) rotulam constitui como sugere Derrida o nuacutecleo metafiacutesico do

pensamento ocidental O enquadramento do discurso no esquema analiacutetico da

racionalidade (e de seu criteacuterio de verdade transcendente) eacute a resposta platocircnica agrave ldquoluta

8 PLATAtildeO Craacutetilo 439 b 9 PLATAtildeO Craacutetilo 385 b

10

contra o enfeiticcedilamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagemrdquo10 de que

falou Wittgenstein Ela tambeacutem seraacute a matriz de outras saiacutedas claacutessicas do acircmbito

movediccedilo do discurso formado pelas palavras como o cogito de Descartes o amor

intelectualis Dei de Spinoza a analiacutetica de Kant e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica de Husserl

A recusa da ideia de que a linguagem eacute um meio transparente de pensamento

se consolida na virada linguiacutestica movimento iniciado no seacuteculo XX e idealizado por

Wittgenstein Aqui localizamos a segunda ruptura em relaccedilatildeo ao pensamento da

linguagem O que estaacute em jogo neste giro linguiacutestico eacute a consideraccedilatildeo da linguagem como

paradigma isto eacute como eixo constituinte do pensamento

Se na filosofia platocircnica o criteacuterio da verdade da relaccedilatildeo de referecircncia (entre

signonome e referenteobjeto) e o que autoriza o significado ou o sentido (a dimensatildeo

semacircntica) eacute a essecircncia ou o ser pode-se dizer que haacute um niacutevel intermediaacuterio entre signo

e referente que autoriza um modo de determinaccedilatildeo do referente Portanto a questatildeo do

valor referencial do signo (ou seja de como o signo pode representar aspectos da

realidade) se daacute formula na condiccedilatildeo de que o signo deve ser representaccedilatildeo natildeo da

realidade mas uma imagem do modo de ser proacuteprio de algo Um possiacutevel esquema seria

signo ndash ideia ndash coisa

Em Saussure a preocupaccedilatildeo com a fundamentaccedilatildeo da referecircncia entre signo

e realidade (ou seja a preocupaccedilatildeo em fornecer aos signos um conteuacutedo para justificar

como eles podem representar aspectos da realidade ou como ele pode ser aplicado aos

objetos) eacute excluiacuteda Trata-se de descrever os significados e sentido dos signos (objeto do

linguista) sem se preocupar com o referente (com o que pode lhe corresponder no mundo)

mas apenas em funccedilatildeo das relaccedilotildees que os signos tecircm uns com os outros no interior da

liacutengua concebida como um sistema autocircnomo de diferenccedilas O esquema saussuriano seria

restrito ao signo ndash significadosignificante Saussure natildeo se preocupa em articular signo

e mundo pois a semacircntica da linguagem eacute autocircnoma Ao definir o signo natildeo como o que

une uma coisa e um nome mas como a uniatildeo de conceito (significado sentido) e

significante (som) Saussure diz que o conceito de algo natildeo eacute definido positivamente pelo

seu conteuacutedo (referente) ndash ou seja natildeo satildeo descriccedilotildees de objetos reais por isso natildeo tem

nada a ver com as ciecircncias naturais ndash mas negativamente atraveacutes de suas relaccedilotildees

diferenciais com os outros termos no interior do sistema simboacutelico da linguagem Isso

significa que soacute existe uma cadeira real no interior de um sistema simboacutelico que a

10 WITTGENSTEIN Investigaccedilotildees filosoacuteficas sect 109

11

diferencia de todo o resto Diferentemente da tradiccedilatildeo especialmente de Platatildeo para quem

o pensamento antecede a linguagem cabendo a essa apenas expressaacute-lo ou desdobrar um

sentido que lhe eacute anterior para Saussure e a partir da virada linguiacutestica do XX eacute a

linguagem que estrutura nossa percepccedilatildeo constroi a realidade e possibilita o

conhecimento permanecendo tudo o que estaacute fora da linguagem no domiacutenio do

inconcebiacutevel Se em Platatildeo pensamos para falar para Saussure falamos para pensar

Ao inscrever o fundamento do significado na imanecircncia da linguagem

Saussure patrocina um movimento fundamental na ruptura com o nuacutecleo metafiacutesico da

tradiccedilatildeo Poreacutem embora Saussure natildeo considere a liacutengua como traduccedilatildeo ou instrumento

do pensamento mas da comunicaccedilatildeo ao priorizar a liacutengua (forma) prescindindo da fala

(evento) pode-se dizer que ele manteacutem a elisatildeo da realidade do discurso na medida em

que exclui da estrutura da liacutengua a dinacircmica histoacuterica e social Eacute exatamente aqui na

necessidade de se pensar o discurso aleacutem da linguagem mas na sua verdade e realidade

proacuteprias que inscrevemos Foucault A anaacutelise do discurso de Foucault eacute original porque

toma como ponto de partida a perspectiva dos saberes e praacuteticas discursivas inscrevendo

radicalmente as ordens do discurso no plano das formas histoacutericas e contingentes A

inquietaccedilatildeo que move Foucault no caminho de uma anaacutelise filosoacutefica do discurso eacute a

ldquoinquietaccedilatildeo diante do que eacute o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada

ou escritardquo11

2 A pragmaacutetica do discurso de Foucault

Esse deslocamento da abordagem acerca da questatildeo da linguagem ndash que a

interpela natildeo a partir do seu papel coadjuvante de traduccedilatildeo do pensamento como logos

identificado com a realidade ou como sistema linguiacutestico autocircnomo mas a partir de sua

materialidade isto eacute enquanto existecircncia transitoacuteria e contingente com a qual o discurso

irrompe num ato arbitraacuterio e violento nos jogos do pensamento e da linguagem ndash eacute o que

caracteriza a singularidade da anaacutelise do discurso feita por Foucault e a razatildeo pela qual

esta se apresenta como pragmaacutetica do discurso Pois trata-se para o filoacutesofo de

acolher cada momento do discurso em sua irrupccedilatildeo de acontecimentos nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersatildeo temporal que lhe permite ser repetido sabido esquecido transformado apagado ateacute nos menores traccedilos escondido bem longe de todos os olhares na poeira dos

11 FOUCAULT A ordem do discurso p8

12

livros Natildeo eacute preciso remeter o discurso agrave longiacutenqua presenccedila da origem eacute preciso trataacute-lo no jogo de sua instacircncia12

Mas prossegue Foucault ldquoo que haacute enfim de tatildeo perigoso no fato de as

pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente Onde afinal estaacute o

perigordquo13 Por que e a serviccedilo de quais interesses a materialidade do discurso ou seja

sua realidade especiacutefica foi negada e marginalizada pela perspectiva dominante na

tradiccedilatildeo filosoacutefica O que significa o deslocamento operado por Foucault Por que essa

mudanccedila caracteriza a singularidade de sua filosofia e quais as potencialidades que abre

Essas perguntas nos conduzem ao trabalho negativo ou criacutetico da anaacutelise

pragmaacutetica do discurso de Foucault que seraacute desenvolvida nas obras A ordem do discurso

e Arqueologia do saber No livro A ordem do discurso o proacuteprio filoacutesofo postula seu

ponto de partida

Eis a hipoacutetese que gostaria de apresentar esta noite para fixar o lugar ndash ou talvez o teatro muito provisoacuterio ndash do trabalho que faccedilo suponho que em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos que tecircm por funccedilatildeo conjurar seus poderes e perigos dominar seu acontecimento aleatoacuterio esquivar sua pesada e temiacutevel materialidade14

Gostariacuteamos de chamar atenccedilatildeo para duas questotildees essenciais para a

compreensatildeo da problemaacutetica instaurada pelo toacutepico da pragmaacutetica do discurso de

Foucault em primeiro lugar a questatildeo de que em toda sociedade a produccedilatildeo e os poderes

do discurso satildeo controlados atraveacutes de procedimentos especiacuteficos em segundo lugar o

fato de que esses jogos de delimitaccedilatildeo e exclusatildeo visam em uacuteltima instacircncia banir a sua

materialidade Tratam-se de questotildees acerca da espeacutecie destes procedimentos e sobre a

razatildeo pela qual a materialidade do discurso eacute o inimigo a ser combatido em nome da

proacutepria sociabilidade ou seja por que eacute preciso suprimir a realidade do discurso

No livro a Ordem do discurso Foucault analisaraacute tais procedimentos de

controle de dominaccedilatildeo e limitaccedilatildeo dos poderes e da produccedilatildeo do discurso Cada um dos

trecircs sistemas de restriccedilatildeo identificados visa controlar uma dimensatildeo do discurso o

primeiro grupo exerce sobre o este uma coerccedilatildeo exterior que visa limitar seus poderes

operando atraveacutes de trecircs princiacutepios a saber a interdiccedilatildeo (qualquer pessoa natildeo pode dizer

qualquer coisa em qualquer circunstacircncia) a separaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo (cesura entre a loucura

12 FOUCAULT A arqueologia do saber p28 13 FOUCAULT A ordem do discurso p8 14 FOUCAULT A ordem do discurso p8-9

13

e a razatildeo) e a oposiccedilatildeo do verdadeiro e do falso (a questatildeo da vontade de verdade) o

segundo grupo configura dispositivos que do interior do proacuteprio discurso visam

estabilizar a aleatoriedade de sua apariccedilatildeo satildeo eles o princiacutepio do comentaacuterio (limita o

acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repeticcedilatildeo e do

mesmo) o princiacutepio do autor (limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que

teria a forma da individualidade e do eu) e princiacutepio da organizaccedilatildeo das disciplinas (limita

o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualizaccedilatildeo

permanente das regras) o uacuteltimo conjunto de jogos de coerccedilatildeo tem como objetivo

selecionar os sujeitos que falam por meio de mecanismos que podem ser designados como

ritual (define o conjunto de signos papeis gestos circunstacircncias nas quais o discurso eacute

proferido) sociedade de discurso (visa conservar a produccedilatildeo dos discursos fazendo-os

circular num espaccedilo fechado) doutrinas (visa a manutenccedilatildeo de um discurso atraveacutes da

ortodoxia) e educaccedilatildeo (seleciona e distribui os discursos para puacuteblicos determinados)

Tais princiacutepios de rarefaccedilatildeo do discurso respondem a trecircs criteacuterios fundamentais satildeo

arbitraacuterios e histoacutericos ieacute satildeo contingentes e modificaacuteveis apoiam-se sobre um suporte

institucional ou seja satildeo reforccedilados por uma espessura de praacuteticas e reconduzidos pelo

modo como o saber eacute aplicado valorizado e distribuiacutedo em uma sociedade por isso

exercem-se sob pressatildeo e violecircncia assim como desempenham um poder coercitivo sobre

os outros discursos

Esses jogos de limitaccedilotildees e exclusotildees ressoam na filosofia a partir de um

conjunto de temas que contribuem para justificaacute-los e reforccedilaacute-los a despeito da aparente

ldquologofiliardquo que caracteriza a tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental Os temas dizem respeito agrave

filosofia do sujeito fundante (que postula um sujeito metafiacutesico que funda o horizonte de

significaccedilatildeo um fundamento uacuteltimo do qual se deduz todas as proposiccedilotildees e que tem no

cogito cartesiano uma de suas formulaccedilotildees mais contundentes) o tema da experiecircncia

originaacuteria (que traduz um conjunto de significaccedilotildees ou representaccedilotildees anteriores que jaacute

dispotildeem o mundo para noacutes a qual tambeacutem podemos remeter a Descartes e aos princiacutepios

a priori da razatildeo de Kant) e o tema da mediaccedilatildeo universal (que encontra um logos em

todas as coisas e acontecimentos transformando a realidade em discurso isto eacute a filosofia

da histoacuteria hegeliana)

Analogamente na obra Arqueologia do saber Foucault direciona sua anaacutelise

para todo um ldquojogo de noccedilotildees que diversificam cada uma agrave sua maneira o tema da

14

continuidaderdquo15 a noccedilatildeo de tradiccedilatildeo de influecircncia desenvolvimento e evoluccedilatildeo

mentalidade e espiacuterito recortes e agrupamentos familiares e por fim a ficccedilatildeo da unidade

do livro e da obra Estas assim como os princiacutepios de coerccedilatildeo do discurso analisados em

A ordem do discurso tambeacutem cumprem a funccedilatildeo precisa de enquadrar o discurso em uma

histoacuteria contiacutenua progressiva e teleoloacutegica da racionalidade controlar a dispersatildeo e

remeter a relatividade a um fundo de permanecircncia a um uacutenico e mesmo princiacutepio de

organizaccedilatildeo e coerecircncia Em suma todos esses recursos visam conjurar a ameaccedila e o

perigo da abertura e da materialidade do discurso sua irrupccedilatildeo contingencial e

descontiacutenua que se daacute no campo das praacuteticas em nome de unidades ou conjuntos

discursivos nos quais todos os enunciados se desdobram dedutivamente a partir de um

uacutenico nuacutecleo ou princiacutepio unificador

O objetivo de ambas as anaacutelises promovidas por Foucault eacute desmistificar a

autoevidecircncia destes temas e noccedilotildees com a qual eles se impotildeem e se furtam a

questionamentos a fim de liberar os problemas que atravessam essas ldquocontinuidades

irrefletidas pelas quais se organizam de antematildeo os discursos que se pretende analisarrdquo16

Na esteira da criacutetica nietzschiana da linguagem que desvelou por traacutes da fixidez da

linguagem uma dinacircmica de luta por precedecircncia e poder entre quanta de forccedilas Foucault

recoloca o questionamento acerca destas

formas preacutevias de continuidade todas essas siacutenteses que natildeo problematizamos e que deixamos valer de pleno eacute preciso pois mantecirc-las em suspenso Natildeo se trata eacute claro de recusaacute-las definitivamente mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos mostrar que elas natildeo se justificam por si mesmas que satildeo sempre o efeito de uma construccedilatildeo cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas definir em que condiccedilotildees e em vista de que anaacutelises algumas satildeo legiacutetimas indicar as que de qualquer forma natildeo podem mais ser admitidas17

Em suma trata-se de suspender provisoriamente (procedimento semelhante agrave

duacutevida cartesiana ou a suspensatildeo fenomenoloacutegica) a validade destas siacutenteses com as quais

operamos organizamos e articulamos ateacute agora automaticamente nossos discursos

Foucault mostra que longe de serem o que se acreditava que fossem agrave primeira vista elas

ldquoexigem uma teoria e que essa teoria natildeo pode ser elaborada sem que apareccedila em sua

pureza natildeo sinteacutetica o campo dos fatos do discurso a partir do qual satildeo construiacutedasrdquo18

15 FOUCAULT A arqueologia do saber p23 16 FOUCAULT A arqueologia do saber p27 17 FOUCAULT A arqueologia do saber p28 18 FOUCAULT A arqueologia do saber p29

15

O que autoriza a criacutetica dessas siacutenteses inteiramente formadas eacute sua remissatildeo

ao campo dos ldquofatos de discursordquo isto eacute ao pano de fundo histoacuterico e contingencial dos

acontecimentos ou praacuteticas discursivas no qual essas unidades emergem elas mesmas

como fatos a serem analisados ao lado de outros A intenccedilatildeo de Foucault por traacutes dessa

reduccedilatildeo eacute testar ndash no acircmbito do discurso eixo sobre o qual gravita seu pensamento na

deacutecada de 60 ndash um meacutetodo de anaacutelise histoacuterica isento de qualquer antropologismo e

humanismo portanto livre das teleologias e totalizaccedilotildees Por isso a anaacutelise do discurso

opera essa reduccedilatildeo pragmaacutetica desses grandes conjuntos enunciativos que se apresentam

como unidades autoacutectones e universalmente reconheciacuteveis assim como dos jogos de

noccedilotildees (categorias reflexivas princiacutepios de classificaccedilatildeo regras normativas) que os

constituem agrave dinacircmica especiacutefica do campo dos fatos do discurso em que eles surgem e

se constroem a partir de relaccedilotildees complexas com outros fatos

Uma vez suspensos esses princiacutepios formas e temas que controlam os

discursos em uma sociedade todo um domiacutenio encontra-se liberado Este domiacutenio eacute

constituiacutedo pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (falados ou escritos) em sua

dispersatildeo de acontecimentos e na instacircncia proacutepria de cada um A anaacutelise do discurso de

Foucault desemboca na descoberta de uma populaccedilatildeo de acontecimentos no espaccedilo do

discurso em geral Esse registro eacute anaacutelogo ao que Foucault designa como ldquoepistemerdquo na

obra As palavras e as coisas de forma que assim como esta ele funciona como um ldquoa

priori histoacutericordquo Este eacute precisamente o solo do qual parte a pragmaacutetica discursiva de

Foucault concebida enquanto o ldquoprojeto de uma descriccedilatildeo dos acontecimentos

discursivos como horizonte para a busca das unidades que aiacute se formamrdquo19 Portanto a

anaacutelise do discurso natildeo mais se pautaraacute na remissatildeo do discurso a um conjunto de

significaccedilotildees anteriores que ao discurso cabe explicitar mas na remissatildeo a sua proacutepria

materialidade anterior agrave formalizaccedilatildeo A questatildeo a ser respondida natildeo eacute mais ldquoo que se

dizia no que estava ditordquo e sim ldquoque singular existecircncia eacute esta que vem agrave tona no que se

diz e em nenhuma outra parterdquo20

Poreacutem Foucault natildeo visa apenas liberar a instacircncia do acontecimento

enunciativo da liacutengua e do pensamento assim como de todos os grupamentos

considerados como unidades naturais imediatas e universais O trabalho natildeo se esgota no

seu papel negativo ou criacutetico Como indicamos a suspensatildeo da validade ldquoautoevidenterdquo

desses conjuntos eacute apenas provisoacuteria longe de ser uma denegaccedilatildeo dogmaacutetica trata-se de

19 FOUCAULT A arqueologia do saber p30 20 FOUCAULT A arqueologia do saber p31

16

desfazecirc-los para posteriormente ldquosaber se podemos recompocirc-los legitimamenterdquo

Foucault pretende lanccedilar as bases teoacutericas de um novo meacutetodo de anaacutelise histoacuterica cuja

face positiva e afirmativa fica patente na recomendaccedilatildeo que nos faz por questotildees de

meacutetodo da necessidade de se adotar algumas disposiccedilotildees procedimentos e noccedilotildees do

pensamento que embora incocircmodos porque pouco familiares satildeo potencialmente

reveladores de outras formas de regularidade jogos de relaccedilotildees e unidades

Primeiramente deve-se adotar um princiacutepio de inversatildeo que significa

reconhecer nas figuras e formas nas quais a tradiccedilatildeo situou a fonte e o princiacutepio de

desenvolvimento dos discursos ndash como o princiacutepio do autor disciplina comentaacuterio

unidade da obra etc ndash jogos de coerccedilatildeo estrateacutegias artificiais de controle do discurso e

exorcismo da sua materialidade Tais jogos adverte Foucault devem ser analisados eles

mesmos enquanto fatos do discurso

Em segundo lugar a adoccedilatildeo de um princiacutepio de descontinuidade diz respeito

agrave decisatildeo deliberada segundo a qual ldquoos discursos devem ser tratados como praacuteticas

descontiacutenuas que se cruzam por vezes mas tambeacutem se ignoram ou se excluemrdquo21 Nas

palavras de Foucault ldquodecidi-me a natildeo negligenciar nenhuma forma de descontinuidade

de corte limiar ou de limite Decidi-me a descrever enunciados no campo do discurso e

as relaccedilotildees de que satildeo suscetiacuteveisrdquo22 Esta disposiccedilatildeo metodoloacutegica possibilita a criacutetica da

vontade de verdade que mascara sob a necessidade da forma a origem arbitraacuteria

convencionada e contingente a saturaccedilatildeo de desejo e poder indissociaacuteveis do discurso

bem como ratifica a rejeiccedilatildeo da tentaccedilatildeo habitual de querer reencontrar por baixo daqueles

sistemas de rarefaccedilatildeo ou por traacutes de todas as formas e acontecimentos da realidade um

grande discurso contiacutenuo ilimitado e silencioso que se deveria articular ou pensar Outro

aspecto fundamental da noccedilatildeo de descontinuidade eacute a possibilidade de romper com a

compulsiva remissatildeo do discurso a uma origem secreta e originaacuteria a um ponto

indefinidamente recuado e portanto inalcanccedilaacutevel Pois eacute precisamente esse expediente

proacuteprio das tradicionais filosofias da histoacuteria que torna impossiacutevel assinalar na ordem

do discurso a irrupccedilatildeo de um acontecimento verdadeiro no ldquojogo de sua instacircnciardquo

considerando-se sua aleatoriedade materialidade e singularidade Ao situar a

descontinuidade no fato do enunciado no ato de sua irrupccedilatildeo histoacuterica ou de sua

irredutiacutevel emergecircncia Foucault restitui ao enunciado sua singularidade de

acontecimento e tambeacutem restaura a noccedilatildeo de descontinuidade como um dos elementos

21 FOUCAULT A ordem do discurso p50 22 FOUCAULT A arqueologia do saber p35

17

fundamentais da nova anaacutelise histoacuterica advogada pelo filoacutesofo A descontinuidade deixa

de ser considerada como ldquoo estigma da dispersatildeo temporal que o historiador se

encarregava de suprimir da histoacuteriardquo a fatalidade e o fracasso da leitura histoacuterica como

compreendia a histoacuteria tradicional para se tornar na perspectiva da ldquohistoacuteria novardquo o

elemento positivo fundamental da anaacutelise histoacuterica um conceito operatoacuterio integrado ao

discurso e agrave praacutetica do historiador De forma que o fato dessa mutaccedilatildeo epistemoloacutegica

natildeo ter sido suficientemente explicitada ou compreendida deve-se agrave dificuldade em se

formular uma ldquoteoria geral da descontinuidade das seacuteries dos limites das unidades das

ordens especiacuteficas das autonomias e das dependecircncias diferenciadasrdquo23 Dificuldade que

apenas se explica na medida em que manifesta uma ldquorepugnacircncia singular em pensar a

diferenccedila em descrever os afastamentos e as dispersotildees em desintegrar a forma

tranquilizadora do idecircnticordquo24 Portanto eacute o medo de pensar o outro que nos manteacutem

acorrentados a um pensamento da histoacuteria como o lugar das continuidades ininterruptas

discurso do contiacutenuo e garantia da soberania do sujeito em suma da antropologia e do

humanismo

Uma terceira disposiccedilatildeo de meacutetodo diz respeito agrave admissatildeo de um princiacutepio

de especificidade a fim de garantir a restituiccedilatildeo ao discurso da sua realidade especiacutefica a

saber seu caraacuteter de acontecimento Trata-se de esquivar-se do amparo fornecido pelo

recurso a uma providecircncia preacute-discursiva e com isso suspender a ldquosoberania do

significanterdquo25 O discurso deve ser concebido como ldquouma violecircncia que fazemos agraves

coisas como uma praacutetica que lhes impomos em todo o caso e eacute nesta praacutetica que os

acontecimentos do discurso encontram o princiacutepio de sua regularidaderdquo26

Uma quarta recomendaccedilatildeo concerne agrave adoccedilatildeo irrevogaacutevel da perspectiva da

exterioridade do discurso Foucault nos alerta que natildeo devemos passar do discurso para

seu nuacutecleo interior acircmago de um pensamento ou significaccedilatildeo anterior mas partir do

proacuteprio discurso para suas condiccedilotildees externas de possibilidade e regularidade dimensatildeo

a partir da qual eacute possiacutevel responder agrave pergunta pela sua singularidade

Aleacutem disso Foucault desloca as noccedilotildees que devem servir como princiacutepios

reguladores da anaacutelise As noccedilotildees de criaccedilatildeo unidade originalidade e significaccedilatildeo que

animaram a histoacuteria tradicional das ideias satildeo substituiacutedas ponto por ponto na nova

23 FOUCAULT A arqueologia do saber p13 24 FOUCAULT A arqueologia do saber p13-14 25 FOUCAULT A ordem do discurso p48 26 FOUCAULT A ordem do discurso p50

18

anaacutelise histoacuterica promovida por Foucault pelas noccedilotildees de acontecimento seacuterie

regularidade e condiccedilatildeo de possibilidade O postulado de um princiacutepio de agrupamento

do discurso que garanta sua unidade e originalidade criativa funcionando como princiacutepio

de sua coerecircncia e nuacutecleo de sua significaccedilatildeo eacute deslocado e substituiacutedo pela abordagem

do discurso em sua irrupccedilatildeo dispersiva como acontecimento registro onde se buscaratildeo a

partir de suas redes de contingecircncias os princiacutepios de sua regularidade e condiccedilotildees de

possibilidade As noccedilotildees de consciecircncia e continuidade (com seus problemas correlatos

ieacute da liberdade e da causalidade) assim como as noccedilotildees de signo e estrutura perdem a

centralidade em nome das noccedilotildees de seacuterie e descontinuidade Ao inveacutes de buscar

reconstituir outro discurso a palavra muda o texto invisiacutevel o sentido precedente por

traacutes do discurso Foucault orienta sua anaacutelise dos discursos pela necessidade de

compreender o enunciado na sua estreiteza e singularidade de sua situaccedilatildeo descrever as

formas de regularidades e o jogo de correlaccedilotildees com outros enunciados ldquoestabelecer as

seacuteries diversas entrecruzadas divergentes muitas vezes mas natildeo autocircnomas que

permitem circunscrever o lsquolugarrsquo do acontecimento as margens de sua contingecircncia as

condiccedilotildees de sua apariccedilatildeordquo27 Por mais efecircmero e banal um enunciado eacute um

acontecimento inesgotaacutevel paradoxal na medida em que eacute uacutenico e ao mesmo tempo

aberto agrave repeticcedilatildeo e transformaccedilatildeo

Conclusatildeo

A segunda imagem que se ajusta ao pensamento de Foucault eacute o modo como

ele se articula como uma verdadeira maacutequina de guerra A criacutetica agrave tradiccedilatildeo eacute um dos

eixos motores dessa filosofia da diferenccedila apresentando-se nesta sob muacuteltiplos registros

aspectos e com vaacuterias consequecircncias A criacutetica se dirige por exemplo ao historicismo (e

filosofias da histoacuteria) humanismos psicologismos antropologismos agrave fenomenologia e

ao estruturalismo embora a relaccedilatildeo com este seja essencialmente ambiacutegua No entanto

Foucault natildeo se encontra sozinho na tradiccedilatildeo do pensamento ele toma a via aberta por

Marx Nietzsche Artaud Bataille e de certo modo Spinoza aleacutem de resgatar vozes a

muito tempo banidas do discurso autorizado a saber o louco o monstruoso o criminoso

o irredutivelmente disperso Eacute atraveacutes desse caleidoscoacutepio de relaccedilotildees que o filoacutesofo nos

convida a acompanhaacute-lo no desafio de adentrar no universo proacuteprio do discurso para

27 FOUCAULT A ordem do discurso p53

19

pensaacute-lo em sua materialidade depuraacute-lo das marcas da identidade e da eternidade com

as quais a tradiccedilatildeo tentou impor-lhe uma ilegiacutetima estabilidade e objetividade Trata-se

portanto de abordar o discurso tal como ele eacute realmente atravessado por lutas vitoacuterias

ferimentos servidotildees dominaccedilotildees perigos e poderes que a tradiccedilatildeo jurou conjurar

atraveacutes do controle

Pode-se dizer que um dos objetivos de Foucault eacute abrir epistemologicamente

o caminho agrave criaccedilatildeo acolhendo a diferenccedila e seu potencial desestabilizador no interior da

sua filosofia Nas palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoEste tecircnue deslocamento temo

reconhecer nele como que uma pequena (e talvez odiosa) engrenagem que permite

introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso o descontiacutenuo e a materialidaderdquo28

Poreacutem o deslocamento operado por sua anaacutelise histoacuterica aqui examinada em relaccedilatildeo ao

discurso ultrapassa o domiacutenio da linguiacutestica e abre o caminho para uma filosofia de

caraacuteter eminentemente poliacutetico Na qual para concluir gostariacuteamos de inscrever a anaacutelise

pragmaacutetica do discurso do qual examinamos alguns pontos

Em Foucault a luta para produzir e defender a diferenccedila serve a um projeto

poliacutetico que vecirc no esclarecimento uma das vias privilegiadas para a conquista da

liberdade Na medida em que nossa experiecircncia individual e social eacute construiacuteda nesse

campo discursivo do qual Foucault busca apreender a lei depreende-se que eacute por meio da

libertaccedilatildeo do discurso das unidades e dos sistemas de controle e coerccedilatildeo que sobre ele se

impotildeem restringindo a aacuterea de legitimidade do discurso que eacute possiacutevel criar uma nova

realidade mais livre e condizente agrave pluralidade dos indiviacuteduos No cerne desse ativismo

filosoacutefico-poliacutetico de Foucault podemos situar a famosa frase de Wittgenstein que no

ponto 56 do Tractatus afirmou ldquoos limites de minha linguagem significam os limites de

meu mundordquo29

Um dos exemplos mais persuasivos da reaccedilatildeo extremamente violenta agrave qual

estatildeo sujeitos todos os discursos que excedem os limites prescritos pelos mecanismos de

coerccedilatildeo e exclusatildeo que atuam nas sociedades eacute a excomunhatildeo de Spinoza em 1656 pelos

judeus da Sinagoga Portuguesa de Amsterdatilde O banimento do jovem Spinoza entatildeo com

apenas 23 anos da comunidade judia revela-nos algo importante acerca do motivo pelo

qual todas as sociedades operam com tais sistemas de controle do discurso como indicou

Foucault O discurso ultrajante e blasfemo de Spinoza ao desrespeitar um dogma

fundador do judaiacutesmo deve ser punido com a expulsatildeo da comunidade porque ameaccedila

28 FOUCAULT A ordem do discurso p56 29 WITTGENSTEIN Tractatus Logico-Philosophicus p245

20

sua coesatildeo e unidade O terror que se quer comunicar por meio de semelhante condenaccedilatildeo

se baseia no medo arcaico da espeacutecie humana que durante milhares de anos associou o

banimento social agrave certeza da morte Este evento reedita tal temor e serve para alertar

todos os componentes de um grupo social qual eacute o destino dos transgressores (e seus

discursos potencialmente revolucionaacuterios) a saber o exiacutelio um dos siacutembolos primaacuterios

da morte Essa ferocidade pode ser visualizada no trecho seguinte trecho da carta

() Com a sentenccedila dos Anjos e dos Santos com o consentimento do Deus Bendito e com o consentimento de toda esta Congregaccedilatildeo diante destes santos Livros noacutes heremizamos expulsamos amaldiccediloamos e esconjuramos Baruch de Spinoza com os seiscentos e treze preceitos que estatildeo escritos neles com o Herem com que Josueacute excomungou Jericoacute com a maldiccedilatildeo com que Elias amaldiccediloou os moccedilos e com todas as maldiccedilotildees que estatildeo escritas na Lei Maldito seja de dia e maldito seja de noite maldito seja em seu deitar maldito seja em seu levantar maldito seja em seu sair e maldito seja em seu entrar () [Herem ndash anaacutetema ndash pronunciado contra Spinoza em 27 de julho de 1656]

Foucault se coloca na posiccedilatildeo de Espinosa poreacutem totalmente consciente da

razatildeo e dos mecanismos de autoproteccedilatildeo dos discursos hegemocircnicos E sua filosofia

desponta como instrumento de ativismo ou ainda a filosofia se converte ela mesma em

ativismo poliacutetico na medida em que a criacutetica filosoacutefica se dirige agrave anaacutelise de problemas

pontuais sendo sempre orientada pelo presente e irremediavelmente histoacuterica Eacute na

articulaccedilatildeo entre filosofia histoacuteria e atualidade que Foucault desloca a pergunta de Kant

pelos limites que a razatildeo deve respeitar para assegurar sua legitimidade para a pergunta

pelos limites ilegiacutetimos a serem questionados e transgredidos pois ldquoo trabalho do

intelectual eacute certamente em um sentido dizer o que existe fazendo-o aparecer como

podendo natildeo ser ou podendo natildeo ser como ele eacuterdquo30

Usando a filosofia para tensionar as verdades instituiacutedas desvelando sua

histoacuteria e como elas escondem hierarquizaccedilotildees de poder Foucault participou teoacuterica e

praticamente de movimentos vanguardistas de contestaccedilatildeo como a luta antimanicomial

(Histoacuteria da loucura) a criacutetica ao sistema prisional (Vigiar e Punir) movimento gay

(Histoacuteria da sexualidade) entre outros Portanto sua anaacutelise do discurso eacute tambeacutem uma

demanda de liberdade no campo da linguagem pois com ela Foucault quer ldquoMostrar agraves

pessoas que elas satildeo muito mais livres do que pensam que elas tomam por verdadeiro

30 FOUCAULT Estruturalismo e poacutes-estruturalismo p 325

21

por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da histoacuteria e que essa

pretensa evidecircncia pode ser criticada e destruiacutedardquo

REFEREcircNCIAS

FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural no Collegravege de France

pronunciada em 2 de dezembro de 1970 Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014

______ A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009

______ Estruturalismo e poacutes-estruturalismo (1983) In FOUCAULT Michel Ditos e

Escritos II Arqueologia das ciecircncias e histoacuteria dos sistemas de Pensamento Rio de

Janeiro Forense Universitaacuteria 2005

PLATAtildeO Craacutetilo In PLATAtildeO Teeteto-Craacutetilo Beleacutem Universidade Federal do Paraacute

1988 p 101-177

SPINOZA Benedictus de Eacutetica Belo Horizonte Autecircntica Editora 2010

WITTGENSTEIN Ludwig Investigaccedilotildees filosoacuteficas Petroacutepolis Vozes 2009

______ Tractatus Logico-Philosophicus Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo

Paulo 2001

LEIBNIZ E A CRIacuteTICA AO ESPACcedilO TOTA SIMUL NEWTONIANO A

MOcircNADA COMO CAUSA IMEDIATA DO MOVIMENTO

Cloves Thiago Dias Freire1

RESUMO Neste artigo pretendemos recompor a argumentaccedilatildeo que sustenta a criacutetica de Leibniz a noccedilatildeo de espaccedilo tota simul newtoniano com vistas a mostrar que segundo o pressuposto leibniziano a verdadeira causa imediata do movimento deve residir na noccedilatildeo verdadeira de substacircncia ou Mocircnada e natildeo como defendia Newton na noccedilatildeo de um espaccedilo totalmente semelhante e indiscerniacutevel Segundo o filoacutesofo alematildeo a noccedilatildeo de um espaccedilo que possui realidade per se implicaria na impossibilidade da correta caracterizaccedilatildeo do movimento dos corpos posto que esta noccedilatildeo violaria os princiacutepios da razatildeo suficiente e da identidade dos indiscerniacuteveis Neste sentido o fundamento do movimento natildeo estaria na existecircncia de um espaccedilo absoluto mas no registro intriacutenseco da mudanccedila e do movimento pela apercepccedilatildeo individualizada da Mocircnada Palavras-chave Newton Leibniz Espaccedilo Movimento ABSTRACT In this article we intended to recompose the argument that sustains the critic of Leibniz the notion of Newtonian space tota simul in order to show that according to the Leibnizian presupposition the real immediate cause of the movement should live in the true notion of substance or Monad and no as it defended Newton in the notion of a space totally similar and undiscernible According to the German philosopher the notion of a space that possesses reality per se would be implicated in the impossibility of the correct characterization of movement of the bodies position that this notion would violate the principles of sufficient reason and of the identity of the undiscernible In this sense the foundation of movement would not be in the existence of an absolute space but in the intrinsic registration of the change and of the movement for the individualized apperception of the Monad Keywords Newton Leibniz Space Movement

1 Consideraccedilotildees iniciais

Isaac Newton ao postular sua noccedilatildeo de espaccedilo absoluto tota simul com o

intuito de superar os entraves da noccedilatildeo cartesiana de movimento propocircs a dissociaccedilatildeo

ontoloacutegica entre espaccedilo e corpomateacuteria tornando o espaccedilo absoluto um referencial

inercial para a correta descriccedilatildeo da mecacircnica do mundo

1 Mestre em filosofia (PPGF-UFS) email Thiagodfreire1gmailcom

23

Todavia na opiniatildeo de Leibniz esta noccedilatildeo de espaccedilo demandaria

inconsistecircncias metafiacutesicas insoluacuteveis para a filosofia do movimento pois num espaccedilo

tota simul indiscerniacutevel seria impossiacutevel observar a mudanccedila de relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos

corpos o que implicaria na violaccedilatildeo dos princiacutepios da razatildeo suficiente e da identidade

dos indiscerniacuteveis O espaccedilo absoluto seria para o alematildeo apenas uma consideraccedilatildeo uacutetil

pois o registro da mudanccedila e do movimento natildeo estaria no espaccedilo propriamente dito mas

intrinsecamente na noccedilatildeo verdadeira de substacircncia ou mocircnada

Como pretendemos mostrar para Leibniz se aceitarmos a noccedilatildeo de espaccedilo

absoluto newtoniano como uma teoria consistente teremos de admitir como

consequecircncia a impossibilidade da correta designaccedilatildeo do movimento dos corpos uma

vez que num espaccedilo tota simul seria impossiacutevel determinar quando um corpo muda de

relaccedilatildeo de situaccedilatildeo com outros corpos

Esta opiniatildeo estaacute amparada em grande medida no disposto do sect 8 da

Monadologia muito provavelmente porque seraacute ali que Leibniz ao caracterizar a

natureza desta nova substacircncia ou mocircnada problematizaraacute a consequente designaccedilatildeo do

movimento questatildeo das mais fundamentais do iniacutecio da filosofia moderna

Dito isto pretendemos compreender de que forma a noccedilatildeo de substacircncia

apresentada na Monadologia e retomada na Correspondecircncia com Clarke seraacute

fundamental para compreendermos a criacutetica empreendida por Leibniz a noccedilatildeo newtoniana

de espaccedilo absoluto e por conseguinte a noccedilatildeo de movimento

Assim para recompor este debate desenvolveremos este artigo em trecircs

momentos argumentativos Primeiramente tentaremos caracterizar a noccedilatildeo de espaccedilo e

de movimento na filosofia newtoniana tendo como referecircncia os textos De gravitatione

e Principia mathematica No segundo momento analisaremos a Correspondecircncia

Leibniz-Clarke com o propoacutesito de compreender os fundamentos da criacutetica estabelecida

por Leibniz agrave noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano Por fim nos apoiando nos Princiacutepios

da filosofia ditos a Monadologia sustentaremos que para Leibniz a verdadeira

designaccedilatildeo das causas da mudanccedila e do movimento deve ser atribuiacuteda a noccedilatildeo verdadeira

de substacircncia ou Mocircnada e natildeo a existecircncia de um espaccedilo que possui realidade per se

2 Newton e o espaccedilo absoluto tota simul

Eacute possiacutevel dizer que a filosofia natural newtoniana tenha sido pensada como

uma resposta direta as inconsistecircncias do modo cartesiano de pensar a descriccedilatildeo dos

24

eventos no mundo das coisas materiais Esta assertiva pode ser corroborada por um texto

escrito ao que tudo indica entre os anos de 1664 e 1668 denominado De gravitatione et

aequipondio fluidorum2 que data da mesma eacutepoca em que Newton ainda era um estudante

no Trinity College3 Grosso modo podemos caracterizaacute-lo como uma criacutetica direta a

filosofia natural cartesiana especificamente as premissas dos Princiacutepios da filosofia

(1644)

Em De gravitatione jaacute se apresentavam a geacutenese das futuras noccedilotildees de espaccedilo

absoluto e movimento absoluto pensadas como resposta as inconsistecircncias das definiccedilotildees

cartesianas de espaccedilo e movimento Segundo Descartes a definiccedilatildeo de movimento

verdadeiro (motus proprie sumptus) seraacute expressa no famoso art 25 parte II dos

Princiacutepios escreve ele

[] o movimento eacute a translaccedilatildeo [translationem] de uma parte da mateacuteria ou de um corpo da proximidade daqueles que lhe satildeo imediatamente contiacuteguos ndash e que consideramos em repouso ndash para a proximidade de outros4

Todavia para Newton como consequecircncia desta definiccedilatildeo de movimento ao

fim do deslocamento de um determinado corpo no espaccedilo eacute impossiacutevel determinar o lugar

no qual o corpo se encontrava antes de iniciar tal movimento Isto eacute ocasionado pois o

movimento eacute referenciado aos corpos contiacuteguos e ao teacutermino de um movimento os corpos

contiacuteguos natildeo permanecem na mesma relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que se encontravam

anteriormente Na letra de Newton

Natildeo existe base alguma a partir da qual possamos no momento encontrar um lugar que existiu no passado ou dizer que tal lugar ainda pode ser descoberto na natureza Com efeito uma vez que segundo Descartes o lugar natildeo eacute outra coisa senatildeo a superfiacutecie dos corpos adjacentes ou a posiccedilatildeo entre alguns outros corpos mais distantes eacute impossiacutevel ndash conforme esta doutrina ndash que o lugar exista durante um periacuteodo de tempo mais longo do que aquele durante o qual esses corpos mantecircm as mesmas posiccedilotildees do qual o Filoacutesofo deriva a denominaccedilatildeo individual5

Ora se eacute impossiacutevel determinar o lugar ou seja o ponto (situs) do espaccedilo em

que se inicia o movimento entatildeo natildeo se pode determinar sua velocidade pois esta

2 Sobre o peso e o equiliacutebrio dos fluidos 3 O Trinity College foi fundado por Henrique VIII em 1546 como parte da Universidade de Cambridge na cidade de Cambridge Reino Unido A eacutepoca de Newton o Trinity College tinha forte influecircncia dos chamados platocircnicos de Cambridge liderados por figuras como Ralph Cudworth e Henry More 4 DESCARTES Princiacutepios da filosofia 2015 p 70 5 NEWTON O peso e o equiliacutebrio dos fluidos 1983 p 69 grifo nosso

25

depende da distacircncia percorrida por um determinado corpo no espaccedilo Logo para

Newton pode-se concluir que no universo cartesiano nada se move apesar das aparecircncias

em contraacuterio Conclusatildeo que seraacute mais bem compreendida quando do registro da seguinte

passagem em De gravitatione diz ele

Do que ficou dito se infere indubitavelmente que o movimento cartesiano natildeo eacute movimento pois natildeo tem velocidade nem definiccedilatildeo natildeo havendo tampouco espaccedilo ou distacircncia percorridos por ele Por conseguinte eacute necessaacuterio que a definiccedilatildeo de lugares e consequentemente tambeacutem dos movimentos locais seja referida a alguma coisa destituiacuteda de movimento tal como a extensatildeo sozinha ou o espaccedilo na medida em que se vecirc que este se distingue dos corpos6

Segundo Newton o grande erro da definiccedilatildeo cartesiana de movimento foi

referenciar a mudanccedila de situaccedilatildeo com relaccedilatildeo a corpos contiacuteguos todavia conforme a

citaccedilatildeo acima a correta definiccedilatildeo do movimento deveria considerar o espaccedilo enquanto

destituiacutedo de movimento e distinto dos corpos o que possibilitaria sua atuaccedilatildeo como um

referencial inercial para o movimento dos corpos Referencial que seraacute definitivamente

formalizado com a publicaccedilatildeo de seu tratado mais importante Principia mathematica

A obra Philosophiae naturalis principia Mathematica doravante

denominada Principia foi editada pela primeira vez em 1686 Neste tratado Newton

expotildee seu grande projeto de filosofia natural que tem como objetivo metodoloacutegico derivar

as causas dos eventos fiacutesicos a partir do estudo dos fenocircmenos meacutetodo sintetizado em

seu famoso postulado ldquohipotheses non fingordquo Muito provavelmente este texto lanccedila as

bases da mecacircnica claacutessica que se tornaraacute o modelo de comunicaccedilatildeo cientiacutefica nos seacuteculos

posteriores

No tratado Newton daraacute nova definiccedilatildeo agraves quantidades fiacutesicas consideradas

por ele mais desconhecidas e reafirmaraacute aquelas jaacute desenvolvidas em De gravitatione

tais como tempo espaccedilo lugar e movimento Contudo acredita ser necessaacuterio realizar a

correta distinccedilatildeo entre as quantidades absolutas e relativas verdadeiras e aparentes

matemaacuteticas e vulgares pois assevera que o leigo (vulgus) natildeo conhece essas quantidades

sob outras noccedilotildees a natildeo ser a partir de suas relaccedilotildees com os objetos tangiacuteveis

Portanto conforme o postulado newtoniano a correta compreensatildeo de sua

noccedilatildeo de espaccedilo demandaraacute dos sujeitos um processo de abstraccedilatildeo dos sentidos que possa

fazer distinguir entre o espaccedilo absoluto matemaacutetico e verdadeiro do espaccedilo relativo e

6 Ibid p 69 grifo nosso

26

vulgar Eacute o que podemos observar nas seguintes definiccedilotildees do primeiro Escoacutelio dos

Principia

II O espaccedilo absoluto [spatium absolutum] por sua natureza sem nenhuma relaccedilatildeo [relatione] com algo externo permanece sempre semelhante e imoacutevel [similare amp immobile] o relativo eacute certa medida (mesura) ou dimensatildeo [dimensio] moacutevel desse espaccedilo a qual nossos sentidos definem por sua situaccedilatildeo [situm] relativamente aos corpos e que a plebe [vulgo] emprega em vez do espaccedilo imoacutevel [] III O lugar [locus] eacute uma parte do espaccedilo que um corpo ocupa e com relaccedilatildeo ao espaccedilo eacute absoluto ou relativo Digo uma parte do espaccedilo e natildeo a situaccedilatildeo do corpo [situs corporis] ou a superficie ambiente [superficiem ambientem] Com efeito os lugares dos soacutelidos iguais satildeo sempre iguais mas as superfiacutecies satildeo quase sempre desiguais por causa da dessemelhanccedila das figuras as situaccedilotildees [situs] poreacutem natildeo tecircm propriamente falando quantidade sendo antes afecccedilotildees dos lugares [affectiones locorum] que os proacuteprios lugares7

Neste sentido Newton propotildee que o espaccedilo absoluto verdadeiro e matemaacutetico

possui natureza distinta dos corpos que o ocupam adequadamente (ou uniformemente)

permanecendo sempre semelhante e imoacutevel e o lugar eacute uma parte deste espaccedilo e natildeo eacute a

situaccedilatildeo dos corpos com relaccedilatildeo a outros corpos contiacuteguos como pensara Descartes no

famoso sect 25 dos Princiacutepios Assim as relaccedilotildees de situaccedilatildeo dos corpos no espaccedilo seratildeo

apenas afecccedilotildees dos lugares sem qualquer possibilidade de quantificaccedilatildeo

Isto posto o movimento absoluto ldquoeacute a translaccedilatildeo de um corpo e um lugar

absoluto para outro absoluto ao passo que o relativo eacute a translaccedilatildeo de um lugar relativo

para outro relativordquo8 Consequentemente o movimento relativo seria a translaccedilatildeo de um

corpo de um lugar relativo para outro

Ademais assim como as partes do tempo satildeo imutaacuteveis tambeacutem eacute a ordem

do espaccedilo uma vez que a essecircncia das partes do espaccedilo eacute ser lugar e os lugares primaacuterios

natildeo se movem Por isso para Newton a causa imediata da designaccedilatildeo da

mudanccedilamovimento deve ser relacionada ao modo vulgar de considerar o lugar e

consequentemente o movimento pois

[] como essas partes do espaccedilo natildeo podem ser vistas e distinguidas umas das outras por nossos sentidos usamos em lugar delas medidas sensiacuteveis Com efeito definimos todos os lugares [loca universa] pelas posiccedilotildees [positionibus] e distacircncias das coisas em relaccedilatildeo a um determinado corpo que consideramos imoacutevel a seguir

7 NEWTON Princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural 1983 p 8 grifo nosso 8 Ibid p 9

27

tambeacutem calculamos todos os movimentos relativamente a esses lugares enquanto concebemos os corpos como transferidos destes9

Neste sentido para Newton por sermos incapazes de pelos sentidos ver e

distinguir as partes das coisas imoacuteveis matemaacutetica verdadeira e absoluta ou seja devido

a nossa incapacidade de distinguir o verdadeiro espaccedilo definimos todo espaccedilo em relaccedilatildeo

agrave posiccedilatildeo e distacircncia das coisas vinculadas a um determinado corpo que consideramos

imoacutevel Parece-nos que apesar de possuir realidade per se este espaccedilo absoluto

matemaacutetico e verdadeiro deve possuir um estatuto ontoloacutegico proacuteprio pois a

caracterizaccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico deve se referenciar sempre aos lugares relativos e natildeo ao

absoluto

Na opiniatildeo de Newton se considerarmos o movimento em sua natureza

geomeacutetrica e verdadeiramente determinada a partir do transporte ou translaccedilatildeo de um

corpo de sua vizinhanccedila imoacutevel para a vizinhanccedila de outros sem referecircncia a nada que

esteja verdadeiramente imoacutevel perderemos o que eacute proacuteprio do movimento pois como ele

afirma

Eacute propriedade do movimento [motus proprietas est] que as partes que guardam as posiccedilotildees dadas em relaccedilatildeo a seus todos participam dos movimentos desses todos Logo movidos os corpos ambientes as coisas que em redor estatildeo relativamente em repouso se moveratildeo10

Uma consequecircncia desta proposiccedilatildeo eacute que o movimento verdadeiro e absoluto

natildeo pode ser definido pela translaccedilatildeo a partir dos corpos vizinhos que satildeo vistos parados

pois tomando os corpos ambientes como referencial ao moverem-se os corpos ambientes

as coisas em seu redor relativamente em repouso se moveratildeo

Se o movimento for referenciado pelo lugar quando o lugar se move

juntamente se move seu conteuacutedo por isso um corpo que se move de um lugar em

movimento participa tambeacutem de seu conteuacutedo consequentemente

[] movimentos integrais e absolutos natildeo podem definir-se senatildeo pelos lugares imoacuteveis e por isso acima os referi a esses lugares mas referi os movimentos relativos aos lugares moacuteveis Ora lugares imoacuteveis natildeo satildeo senatildeo aqueles que por toda infinidade conservam as posiccedilotildees muacutetuas pelo que sempre permanecem imoacuteveis constituindo o espaccedilo que chamo imoacutevel11

9 Ibid p 10 grifo nosso 10 Ibid p 10 grifo nosso 11 Ibid p 11 grifo nosso

28

Aleacutem disso o que distingue o movimento relativo e o movimento absoluto

satildeo as causas impressas nos corpos pois o movimento verdadeiro natildeo eacute gerado nem se

muda senatildeo por forccedilas impressas nos proacuteprios corpos Jaacute o movimento relativo pode ser

gerado sem forccedilas impressas neste corpo bastando para isto que se imprimam forccedilas em

outros corpos com os quais exerce relaccedilatildeo de contiguidade

Newton assevera que as definiccedilotildees das quantidades fiacutesicas por se apoiarem

no mundo das coisas sensiacuteveis se referem sempre a seu aspecto relativo ou vulgar mas

nunca as quantidades efetivamente verdadeiras e absolutas Todavia dado que o espaccedilo

eacute composto de partes imoacuteveis indistintas e intangiacuteveis eacute dificiacutelimo conhecer os

verdadeiros movimentos de cada corpo e distingui-los dos movimentos relativos

A efetiva distinccedilatildeo entre movimento absoluto e movimento relativo seraacute a

pedra angular da mecacircnica newtoniana dos Principia Esta distinccedilatildeo soacute seraacute possiacutevel

tomando como referencial para o movimento uma noccedilatildeo de espaccedilo que eacute naturalmente

imoacutevel indistinto e intangiacutevel Como jaacute assinalamos este projeto jaacute se apresentava desde

o De gravitatione

Mas seraacute com as proposiccedilotildees registradas no texto final dos Principia

denominado ldquoEscoacutelio geralrdquo e adicionado agrave obra somente a partir da 2ordf ediccedilatildeo de 1713

que a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto ganharaacute contornos problemaacuteticos muito em funccedilatildeo do

abandono de seu projeto inicial de se desvencilhar de pressupostos metafiacutesicos na

fundamentaccedilatildeo de sua filosofia natural No Escoacutelio geral Newton fundamentaraacute em

concepccedilotildees metafiacutesicas a ordem e manutenccedilatildeo do universo regido por um Deus ou Ser

inteligente que emana de seu ser o proacuteprio espaccedilo enquanto um Sensorium Dei

Em De gravitatione Newton postula que se soacute existe aquilo que estaacute no

espaccedilo e jaacute que Deus existe deve necessariamente existir no espaccedilo Logo se eacute de sua

natureza ser infinito deve estaacute em todo lugar natildeo somente em accedilatildeo mas tambeacutem

essencialmente Isto quer dizer que Deus estaacute no espaccedilo agrave medida que o espaccedilo estaacute

contido em sua substacircncia presente Neste sentido assinala Newton que ldquonele satildeo todas

as coisas contidas e movidas todavia nenhum afeta o outro Deus natildeo sofre nada do

movimento dos corpos os corpos natildeo encontram nenhuma resistecircncia da onipresenccedila de

Deusrdquo12

Ocorre que apesar de estar no espaccedilo sempre e em todos os lugares

substancialmente Deus natildeo eacute humano nem em absoluto corpoacutereo ldquoEle eacute completamente

12 Ibid p 21

29

destituiacutedo de todo corpo e figura corporal e natildeo pode portanto nem ser visto nem

ouvido nem tocado nem deve ser ele adorado sob a representaccedilatildeo de qualquer coisa

corporalrdquo13

Todavia apesar de natildeo ser corpoacutereo eacute extenso por estar no espaccedilo mas

incorpoacutereo por conter virtualmente o proacuteprio espaccedilo em seu Ser Contudo da substacircncia

de Deus Newton afirma que soacute conhecemos suas criaccedilotildees enquanto resultado de suas

causas finais

Do que depreendemos ateacute aqui o conceito de espaccedilo na filosofia de Newton

serviu como suporte para a elaboraccedilatildeo de sua filosofia do movimento entretanto esta

formulaccedilatildeo seraacute contestada por Leibniz muito em funccedilatildeo das consequentes implicaccedilotildees

metafisicas Por esse motivo dando prosseguimento agrave nossa anaacutelise dos conceitos de

espaccedilo e movimento tentaremos mostrar como se posiciona o filoacutesofo alematildeo frente a

estes postulados no acircmbito da correspondecircncia com Samuel Clarke

3 Leibniz e o real atributo do espaccedilo a correspondecircncia com Clarke

Newton no escoacutelio agrave VIII definiccedilatildeo dos Principia postula que o espaccedilo em

sua definiccedilatildeo absoluta possui natureza proacutepria sem relaccedilatildeo com qualquer coisa externa

permanecendo sempre similar e imoacutevel Esta noccedilatildeo como mostramos tinha o objetivo

de estabelecer um referencial inercial para a descriccedilatildeo de corpos em movimento O que

segundo o inglecircs seria impossiacutevel determinar na filosofia natural cartesiana que associava

ontologicamente espaccedilo e mateacuteria Daiacute a necessidade de um referencial que natildeo se

confundisse com a natureza corpoacuterea

Entretanto Leibniz se oporaacute frontalmente a realidade per se de um espaccedilo

totalmente semelhante imoacutevel e independente dos corpos pois em seu ponto de vista o

espaccedilo natildeo eacute senatildeo a ordem de coexistecircncia das coisas notadas simultaneamente

Contrapondo assim a noccedilatildeo de um espaccedilo homogecircneo e indiscerniacutevel por uma

consequente designaccedilatildeo heterogecircnea e relacional do espaccedilo

Dito isto nos voltaremos para compreender os fundamentos da criacutetica

leibniziana a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano Com tal propoacutesito analisaremos a

primeira parte da quinta carta de Leibniz a Clarke com vistas a entender as razotildees que

levaram Leibniz a se opor agravequela noccedilatildeo de espaccedilo defendida por Newton Aleacutem disso

13 NEWTON loc cit

30

pretendemos compreender as consequecircncias da admissatildeo de um espaccedilo tota simul para a

correta designaccedilatildeo dos corpos em movimento

A correspondecircncia Leibniz-Clarke se inicia imediatamente apoacutes Leibniz

enviar excertos de uma missiva agrave Princesa Carolina de Gales14 que por sua vez a envia

ao teoacutelogo newtoniano Samuel Clarke O conjunto da correspondecircncia eacute composto por

cinco cartas de Leibniz e cinco cartas de Clarke trocadas entre 1715 e 1716 portanto

muito proacuteximo da morte de Leibniz

A primeira carta daraacute o tom do debate e trata latu sensu de filosofia e teologia

natural com ecircnfase na discussatildeo sobre o real atributo do espaccedilo e do tempo Para fins de

nossa anaacutelise nos concentraremos na primeira parte (sectsect 1-53) da quinta carta de Leibniz

ou resposta agrave quarta carta reacuteplica de Clarke Nesta carta acreditamos que Leibniz sintetiza

as principais proposiccedilotildees de sua criacutetica a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano assim

como tambeacutem caracteriza sua proacutepria noccedilatildeo de espaccedilo relacional Boa parte desta criacutetica

se fundamentaraacute sobre a violaccedilatildeo do princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis

Mas antes de analisarmos a quinta carta voltemos um pouco pois em sua

quarta reacuteplica a Leibniz (sectsect 3-4) Clarke registra a respeito da identidade dos

indiscerniacuteveis que quanto aos corpos compostos natildeo haveria a possibilidade de existirem

dois sujeitos perfeitamente semelhantes contudo quanto agraves partes da mateacuteria simples

seria possiacutevel a Deus criar duas partes semelhantes em tudo Isto natildeo implicaria diz ele

ser a mesma coisa pois ldquoacrescento que o lugar de uma dessas gotas natildeo seria o da outra

embora a situaccedilatildeo delas fosse uma coisa absolutamente indiferenterdquo15

Ao admitir a possibilidade de que Deus traga a existecircncia duas porccedilotildees de

mateacuteria em situaccedilotildees totalmente indiscerniacuteveis Clarke propotildee que a situaccedilatildeo destes

corpos seria discerniacutevel em funccedilatildeo apenas de suas posiccedilotildees no espaccedilo ou seja de seu

lugar especiacutefico fazendo do lugar um predicado (ou afecccedilatildeo) dos corpos a maneira

newtoniana Leibniz por sua vez se posicionaraacute contrariamente a estaacute afirmaccedilatildeo

sustentando sua argumentaccedilatildeo como mostraremos na violaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo

suficiente e do princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis

Em resposta a esta carta de Clarke Leibniz assinala que a filosofia primeira

foi pouco fecunda e demonstrativa devido ao fato de que os filoacutesofos embora

reconhecessem a importacircncia do princiacutepio da razatildeo suficiente assim como do princiacutepio

14 Guilhermina Carlota Carolina (1683 ndash1737) foi esposa do rei Jorge II e rainha consorte do Reino da Gratilde-Bretanha e do Reino da Irlanda de 1727 ateacute sua morte 15 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 188

31

da identidade dos indiscerniacuteveis estes natildeo foram razoavelmente empregados Do

princiacutepio da razatildeo suficiente se infere que todo acontecimento soacute vem a ser em virtude de

uma causa ou razatildeo Leibniz considera que se este princiacutepio fosse empregado

adequadamente natildeo seria asseverada a existecircncia de dois sujeitos absolutamente

indiscerniacuteveis pois como ele descreve no sect 21 da referida carta ldquose existissem [dois seres

iguais] Deus e a natureza agiriam sem razatildeo tratando a um de outro jeito que a outro

Assim pois Deus natildeo produz duas porccedilotildees de mateacuteria perfeitamente iguais e

semelhantesrdquo16

Este argumento se coloca frontalmente em oposiccedilatildeo a filosofia dos aacutetomos e

do vazio defendida tanto por Newton quanto pelos newtonianos Primeiramente porque

se natildeo eacute compatiacutevel com a sabedoria divina criar duas porccedilotildees de mateacuteria sejam elas

gotas ou aacutetomos exatamente iguais entatildeo aceitar a existecircncia de aacutetomos sem nenhuma

variedade ou movimento particular seria contraacuterio ao grande princiacutepio da razatildeo suficiente

Em segundo lugar porque sustenta que cada porccedilatildeo da mateacuteria pode ser

subdivida em outras movidas de modo diferente e nenhuma destas partes parece

inteiramente uma com a outra Desta forma o princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis17

contestaria a possibilidade de se encontrar na natureza dois corpos inteiramente

semelhantes Princiacutepio que tambeacutem refutaria a existecircncia de um espaccedilo totalmente

similar e mutualmente congruente onde natildeo seria possiacutevel distinguir uma parte da outra

Em vista disto para Leibniz o espaccedilo natildeo eacute mais que a ordem da coexistecircncia

das coisas notadas na simultaneidade delas O que implica na impossibilidade de um

universo material finito existir e se movimentar num espaccedilo infinito tal qual o espaccedilo

newtoniano pois como escreve ele no sect 29 da referida correspondecircncia

De fato aleacutem de natildeo haver espaccedilo real fora do universo material semelhante accedilatildeo seria sem finalidade seria trabalhar sem fazer nada agendo nihil agere Natildeo se produziria nenhuma mudanccedila observaacutevel fosse por quem fosse Satildeo imaginaccedilotildees dos filoacutesofos de noccedilotildees incompletas que fazem do espaccedilo uma realidade absoluta18

Agora de acordo com as premissas asseveradas por Leibniz se aceitarmos a

noccedilatildeo do espaccedilo absoluto newtoniano este espaccedilo fora do universo material (espaccedilo

vazio) seria indiscerniacutevel logo natildeo sendo possiacutevel atestar o movimento dos corpos posto

que o movimento seja a mudanccedila de situaccedilatildeo em relaccedilatildeo a alguma outra coisa chegando

16 Ibid p 196 17 Principium identitatis indiscernibilium 18 LEIBNIZ op cit p 198 grifo nosso

32

a um estado discerniacutevel do primeiro Se assim natildeo fosse o movimento seria apenas uma

ficccedilatildeo

Segundo Raquel Sapunaru em O conceito leibniziano de espaccedilo eacute

importante destacar que o conceito de situaccedilatildeo eacute fundamental para a anaacutelise do espaccedilo

leibniziano pois se deve atentar para o fato de que a situaccedilatildeo e o lugar satildeo apenas

abstraccedilotildees ou seja a situaccedilatildeo eacute apenas um modo do espaccedilo e o lugar seria uma

identificaccedilatildeo quantitativa desses modos ou das situaccedilotildees19

Por conseguinte o espaccedilo natildeo depende da situaccedilatildeo dos corpos mas eacute a ordem

da coexistecircncia que faz com que os corpos sejam situaacuteveis e pelos quais possuem uma

relaccedilatildeo de situaccedilatildeo entre si ao existirem20

Leibniz considera que assim como o tempo o espaccedilo soacute pode ser tomado na

sua idealidade ou seja o espaccedilo soacute ldquoexisterdquo enquanto ente de razatildeo por isto sua

existecircncia para aleacutem do mundo material deve ser interpretada como uma imaginaccedilatildeo isto

eacute uma ficccedilatildeo Pelas mesmas razotildees a existecircncia do espaccedilo vazio deve ser tambeacutem

objetada

Tal como Descartes Leibniz tambeacutem sustenta um espeacutecie de plenismo

cosmoloacutegico onde nenhum corpo pode ser movido senatildeo por outro corpo que o impele

sem interstiacutecio vazio Portanto qualquer operaccedilatildeo sobre um corpo que natildeo decorra da

atuaccedilatildeo material seraacute ou milagrosa ou imaginaacuteria21

Com tal caracteriacutestica compreender o espaccedilo como algo absoluto e

desprovido de corpos seria concebecirc-lo impassiacutevel e independente de Deus Se assim o

for o espaccedilo natildeo poderia ser entendido como uma propriedade de Deus ou ao modo

newtoniano como um Sensorium Dei Na mesma perspectiva o filoacutesofo alematildeo

questiona

Se o espaccedilo eacute a propriedade ou a afecccedilatildeo da substacircncia que estaacute no espaccedilo ele seraacute ora a afecccedilatildeo de um corpo ora de um outro corpo ora de uma substacircncia imaterial ora quando vazio de toda outra substacircncia material ou imaterial talvez do proacuteprio Deus Mas que estranha propriedade ou afecccedilatildeo que passa de sujeito para sujeito Assim sendo os sujeitos deixaratildeo seus acidentes como se fossem um haacutebito a fim de que outros sujeitos possam se revestir com eles Como pois se distinguiratildeo os acidentes e as substacircncias22

19 SAPUNARU O conceito leibniziano de espaccedilo 2012 p 91 20 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 186 21 Ibid p 199 22 Ibid p 200 grifo nosso

33

Neste momento Leibniz estaacute questionando aqui qual o estatuto predicativo

que estaacute associado a esta noccedilatildeo de espaccedilo independente pois se o espaccedilo deve ser

compreendido como uma propriedade ou afecccedilatildeo do que estaacute no espaccedilo logo (1) deve

ser material ou imaterial (2) se for material deve ser a afecccedilatildeo ora de um corpo ora de

outro (3) se for imaterial deve ser a afecccedilatildeo ora do vazio ou ateacute mesmo do proacuteprio Deus

Entretanto para o alematildeo a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto de Newton viola gravemente o

sistema predicativo da loacutegica claacutessica onde as substacircncias devem fazer deduzir de si

todos os predicados do sujeito a que se atribui esta noccedilatildeo Na loacutegica predicativa de

Leibniz o conceito do atributo ou predicado deve jaacute estaacute contido no sujeito Portanto

como assinala Raquel Sapunaru

[] toda predicaccedilatildeo mesmo relacional se verdadeira deve estar fundada em algum ponto da seacuterie de predicados que define esta substacircncia Inversamente natildeo eacute possiacutevel considerar que duas substacircncias diferentes tenham a mesma relaccedilatildeo de coexistecircncia com as outras substacircncias pois isso seria idecircntico a aceitar que o mesmo predicado se encontra simultaneamente em duas substacircncias23

Nesta esteira Leibniz assinala que tornar o espaccedilo uma propriedade de Deus

eacute abusar dos termos pois se o espaccedilo eacute a propriedade de Deus e se Deus estaacute no espaccedilo

entatildeo o sujeito estaria contido na propriedade Afirmar isto eacute extrapolar os limites do

raciociacutenio e da razatildeo posto que Deus natildeo poderia ser extenso E isso afetaria frontalmente

o esquema predicativo sujeito-predicado S estaacute em P ou P conteacutem S24

Assim para Leibniz o espaccedilo eacute o conjunto dos lugares compreendidos a

partir da razatildeo estabelecida entre os coexistentes com respeito a um determinado nuacutemero

de corpos que se mantecircm na mesma relaccedilatildeo de situaccedilatildeo Considerando que esta ordem de

relaccedilatildeo eacute estabelecida puramente no domiacutenio do ideal a noccedilatildeo enganosa de espaccedilo

absoluto eacute formada pelos homens segundo uma necessidade de encontrar fora da ordem

dos coexistentes uma identidade formal Como Leibniz descreve no famoso sect 47 da quinta

carta a Clarke

Eis como os homens chegam a formar a noccedilatildeo de espaccedilo Consideram que muitas coisas existem simultaneamente e acham nelas certa ordem de coexistecircncia segundo a qual a relaccedilatildeo entre umas e outras eacute mais ou menos simples eacute sua situaccedilatildeo ou distacircncia Quando acontece que um desses coexistentes modifica essa relaccedilatildeo a uma multidatildeo de outros sem que estes mudem entre si e que um receacutem-vindo adquire a relaccedilatildeo que o primeiro tivera com os outros diz-se que

23 SAPUNARU O conceito leibniziano de espaccedilo 2012 p 95 24 Cf Discurso de metafisica sect 8

34

veio ocupar seu lugar chama-se essa transformaccedilatildeo um movimento que se acha naquele que estaacute agrave causa imediata da transformaccedilatildeo E quando muitos ou mesmo todos mudassem conforme certas regras conhecidas de direccedilatildeo e velocidade poder-se-ia sempre determinar a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que cada um adquiriria para com o outro e mesmo a relaccedilatildeo que qualquer outro teria ou que ele teria para com outro qualquer se natildeo tivesse mudado ou o tivesse feito de outro modo Supondo e fingindo que entre esses coexistentes haja um nuacutemero suficiente de alguns que natildeo tenham tido transformaccedilatildeo em si dir-se-aacute que os que tem uma relaccedilatildeo com esses existentes fixos como outros anteriormente ocupam o mesmo lugar que estes uacuteltimos tinham tido Ora o que abrange todos esses lugares eacute que se chama espaccedilo Isso demonstra que para ter a ideia do lugar e por consequecircncia do espaccedilo basta considerar essas relaccedilotildees e as regras de suas transformaccedilotildees sem necessidade de imaginar aqui nenhuma realidade absoluta fora das coisas cuja situaccedilatildeo se considera E para dar uma espeacutecie de definiccedilatildeo lugar eacute aquilo que se diz ser o mesmo em relaccedilatildeo a A e a B quando a relaccedilatildeo de coexistecircncia de B com C E F G etc conveacutem inteiramente com a relaccedilatildeo de coexistecircncia que A tivera com os mesmos supondo-se que natildeo tenha havido nenhuma causa de mudanccedila em C E F G etc25

Portanto para Leibniz o espaccedilo eacute o resultado dos lugares tomados

conjuntamente na medida em que satildeo pensados por noacutes somente enquanto entes de razatildeo

Deve-se ainda considerar que o lugar difere da relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que

ocupa o lugar Tanto o corpo A quanto o corpo B ocupam o mesmo lugar Todavia a

relaccedilatildeo de A para com os corpos fixos natildeo seraacute igual agraves relaccedilotildees estabelecidas entre B

que tomaraacute seu lugar com esses mesmos corpos fixos Isto porque corpos diferentes natildeo

poderiam ter as mesmas relaccedilotildees individuais pois as relaccedilotildees devem se referenciar pelas

qualidades intriacutensecas das substacircncias individuais ou Mocircnadas26

4 A Mocircnada como causa imediata da mudanccedila e do movimento

Para o filoacutesofo de Leipzig os homens formam a noccedilatildeo de espaccedilo atraveacutes da

criaccedilatildeo de identidades e compreendem estas relaccedilotildees como independentes e extriacutensecas

aos sujeitos chamando a isto de lugar e de espaccedilo Entretanto esta aplicaccedilatildeo do espiacuterito

que considera as relaccedilotildees de coexistecircncia enquanto certa ordem externa aos corpos natildeo

poderia se dar senatildeo no domiacutenio dos entes de razatildeo Por isso ao natildeo se tratar nem de

substacircncia nem de acidentes o espaccedilo deve ser uma denominaccedilatildeo puramente ideal cuja

consideraccedilatildeo natildeo deixa de ser uacutetil

25 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 201 grifo nosso 26 Ibid p 202

35

Todavia para ele se aceitarmos a noccedilatildeo de um espaccedilo tota simul newtoniano

teremos dificuldades para a correta designaccedilatildeo sobre quais corpos se encontram em

movimento num dado lugar do espaccedilo Neste sentido Leibniz esclarece ao final do jaacute

referido sect 47 sobre as consequecircncias da adoccedilatildeo desta noccedilatildeo incorreta uma vez que

[] os vestiacutegios [les traces] dos moacuteveis que eles deixam agraves vezes nos imoacuteveis sobre os quais exercem seu movimento deram agrave imaginaccedilatildeo dos homens a ocasiatildeo de conceber essa ideia como se restasse ainda algum vestiacutegio mesmo sem a existecircncia de qualquer coisa imoacutevel mas isso natildeo eacute senatildeo ideal e traz somente como consequecircncia que se existisse algum imoacutevel a gente o poderia designar [deacutesigner] E eacute essa analogia que faz com que se imaginem lugares vestiacutegios e espaccedilos ainda que essas coisas natildeo passem na verdade de relaccedilotildees e de forma alguma natildeo sejam uma realidade absoluta 27

Nestes termos Leibniz se contrapotildee a finitude do universo material e a

realidade absoluta do espaccedilo desprovido de corpos agrave moda newtoniana principalmente

porque a proposiccedilatildeo de um espaccedilo absoluto implicaria na impossibilidade da observaccedilatildeo

do movimento das coisas materiais pois nesta hipoacutetese natildeo haveria mudanccedila de situaccedilatildeo

observaacutevel Assim se o universo material for finito e capaz de passear no espaccedilo infinito

tal deslocamento natildeo poderia ser observado uma vez que natildeo haveria mudanccedila de

situaccedilatildeo dos corpos neste espaccedilo homogecircneo e infinito

Necessitariacuteamos para determinar verdadeiramente o movimento da

manutenccedilatildeo dos vestiacutegios a partir das partes imutaacuteveis do espaccedilo e do tempo Todavia

para Leibniz foram estas noccedilotildees incompletas que deram aos homens a imaginaccedilatildeo de

conceber aquela ideia de espaccedilo per se

O movimento por sua vez soacute poderia ser observaacutevel na hipoacutetese de mudanccedila

de situaccedilatildeo entre os corpos no espaccedilo isto quer dizer mudanccedila de situaccedilatildeo na ordem das

relaccedilotildees Por este acircngulo para o alematildeo ldquoo movimento eacute independente da observaccedilatildeo

mas natildeo da observabilidade Natildeo haacute movimento quando natildeo existe mudanccedila observaacutevel

E mesmo quando natildeo haacute mudanccedila observaacutevel natildeo haacute mudanccedila de modo algumrdquo28

Leibniz destaca no sect 53 da quinta carta a Clarke que a partir da leitura dos

Principia VIII definiccedilatildeo e de seu respectivo escoacutelio natildeo foi possiacutevel provar e

demonstrar o espaccedilo absoluto como uma realidade independe dos corpos como propotildee

Newton Sustenta entatildeo que o espaccedilo eacute puramente uma consequecircncia das relaccedilotildees de

situaccedilatildeo que pertencem ao domiacutenio do ideal enquanto entes de razatildeo

27 Ibid p 202-203 grifo nosso 28 Ibid p 204

36

Assim o primeiro ponto de divergecircncia entre as noccedilotildees de espaccedilo defendidas

por Leibniz e Newton se concentra na real atribuiccedilatildeo do espaccedilo Para Newton o espaccedilo

eacute absoluto homogecircneo e infinito para aleacutem da mateacuteria do mundo Por seu turno para

Leibniz natildeo eacute possiacutevel falar de espaccedilo ou lugar real desprovido de mateacuteria

Como jaacute anotado Leibniz concentra fundamentalmente sua criacutetica apoiado

em dois princiacutepios estruturantes de seu pensamento O princiacutepio da razatildeo suficiente e o

princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis No primeiro se postula que nada vem a ser

senatildeo por uma causa ou razatildeo suficiente tendo como causa uacuteltima agrave sabedoria divina O

segundo derivado do primeiro afirma que natildeo pode haver na natureza duas coisas que

diferem solo numero

Ademais argumenta que natildeo podem existir na natureza duas coisas que sejam

qualitativamente iguais e quantitativamente diferentes pois soacute eacute possiacutevel observar a

diferenccedila quantitativa ao passo que se observa as diferenccedilas qualitativas

Consequentemente soacute eacute possiacutevel observar a mudanccedila quando se observa a causa imediata

da transformaccedilatildeo ou a verdadeira causa da mudanccedila Proposiccedilatildeo que se apresenta em

conformidade com sua noccedilatildeo de substacircncia completa onde os acidentes natildeo passeiam

fora dos sujeitos

A noccedilatildeo leibniziana de substacircncia teraacute sua formulaccedilatildeo definitiva em um dos

uacuteltimos tratados produzidos na fase madura de Leibniz e provavelmente seu texto mais

conhecido denominado de Princiacutepios da filosofia ditos a Monadologia escrito em

francecircs no ano de 1714 Este texto apresenta os temas essenciais da filosofia leibniziana

fundamentada no novo conceito de substacircncia ou Mocircnadas

Leibniz afirma que por serem substacircncias simples que entram nos compostos

as mocircnadas satildeo fechadas natildeo podendo ser alterada nem modificada por outra substacircncia

Como ele descreve no sect 7 da Monadologia

As Mocircnadas natildeo tecircm janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou sair Os acidentes natildeo podem destacar-se nem passear fora das substacircncias como outrora as espeacutecies dos Escolaacutesticos Assim nem substacircncia nem acidente podem vir de fora para dentro da Mocircnada29

Dessa forma se as mocircnadas satildeo substacircncias simples inextensas e sem forma

necessitam de algo que as diferencie umas das outras jaacute que natildeo devem diferir solo

29 LEIBNIZ A monadologia 1983 p 105

37

numero Eacute necessaacuterio portanto que as mocircnadas difiram entre si uma vez que segundo

Leibniz na natureza natildeo haacute dois sujeitos iguais

Neste sentido as mudanccedilas nas mocircnadas devem ter origem num princiacutepio

interno que consiste na especificaccedilatildeo da variedade e da mudanccedila que promove

naturalmente e gradativamente tais desdobramentos Portanto o conceito de substacircncia

deve envolver trecircs caracteriacutesticas baacutesicas unidade independecircncia e identidade na

mudanccedila

Tendo isto em vista aquilo que denominariacuteamos de espaccedilo fiacutesico eacute a ordem

de relaccedilatildeo das coexistecircncias e o movimento dos corpos eacute discerniacutevel natildeo por

caracteriacutesticas extriacutensecas como o espaccedilo absoluto newtoniano mas decorrentes das

qualidades originariamente intriacutensecas das substacircncias

Portanto na opiniatildeo de Leibniz se admitiacutessemos a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto

newtoniano como possiacutevel teriacuteamos que reconhecer como consequecircncia que o universo

criado ocuparia um espaccedilo homogecircneo e natildeo haveria razatildeo para Deus criar uma coisa

aqui e natildeo ali Por outro lado aderindo a sua noccedilatildeo de espaccedilo relacional o universo seria

ocupado heterogeneamente e haveria uma razatildeo suficiente para a criaccedilatildeo de um sujeito

num determinado lugar (locus) com determinada relaccedilatildeo de situaccedilatildeo (situs) no espaccedilo

Condiccedilatildeo que permitiria a observaccedilatildeo de corpos em movimento pois os traccedilos da

mudanccedila natildeo estatildeo no espaccedilo tomado em sua forma absoluta mas na causa imediata da

mudanccedila e do movimento ou seja na proacutepria substacircncia ou Mocircnada

5 Consideraccedilotildees finais

A partir da argumentaccedilatildeo que desenvolvemos eacute possiacutevel dizer que Newton

assenta sua filosofia do espaccedilo e do movimento contrariando os princiacutepios da razatildeo

suficiente e da identidade dos indiscerniacuteveis O que na opiniatildeo de Leibniz demandaria a

impossibilidade da observaccedilatildeo do movimento e se o movimento natildeo pode ser observado

entatildeo natildeo haacute movimento real

Por outro lado se o espaccedilo como assinala Leibniz eacute a ordem de coexistecircncia

entre os corpos entatildeo o movimento seraacute uma mudanccedila relativa de situaccedilatildeo de um corpo

com respeito a outros corpos fixos chegando a uma situaccedilatildeo discerniacutevel da primeira Esta

relaccedilatildeo de situaccedilatildeo natildeo se daacute extrinsecamente pois segue das expressivas determinaccedilotildees

intriacutensecas da substacircncia ou Mocircnada

38

Em vista disto estamos agora em condiccedilotildees de compreender aquilo que

Leibniz postulara no sect 8 da Monadologia onde propotildee que o movimento soacute pode ser

observado levando-se em consideraccedilatildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas da substacircncia diz

ele

Se as substacircncias simples em nada diferissem [diffeacuteraient] pelas suas qualidades [qualiteacutes] natildeo haveria meio de se aperceber qualquer modificaccedilatildeo [ou movimento] nas coisas ([changement dans les choses] pois o que estaacute no composto natildeo pode vir senatildeo dos ingredientes simples e as Mocircnadas natildeo tendo qualidades seriam indistinguiacuteveis [indistinguables] umas das outras visto natildeo diferirem tambeacutem em quantidade e por conseguinte admitido o pleno cada lugar receberia sempre no movimento soacute o equivalente do que antes contivera e um estado de coisas seria portanto indiscerniacutevel de outro30

Ora parece que Leibniz esta sinalizando aqui para a necessidade de

observarmos que se as substacircncias simples natildeo se distinguirem de alguma forma toda a

descriccedilatildeo dos eventos fiacutesicos estaria prejudicada posto que natildeo seria possiacutevel discernir

entre os diversos estados de coisas em um sistema cosmoloacutegico pleno

Neste sentido para Leibniz a consideraccedilatildeo do movimento deve fundar-se nas

qualidades intriacutensecas das mocircnadas pois estatildeo nelas agraves particularidades reais que as

tornam discerniacuteveis umas das outras o que nos permite distinguir as mudanccedilas de estado

ou de movimento Por isto as mocircnadas satildeo aquilo que confere alguma ldquosubstacircnciardquo aos

corpos que estatildeo em constante transformaccedilatildeo e mudanccedila

Ademais se as mocircnadas satildeo fechadas e as mudanccedilas de estado ou movimento

de cada corpo diz respeito necessariamente as mocircnadas entatildeo soacute pode residir nela agrave causa

imediata da mudanccedila e do movimento Portanto natildeo seria necessaacuterio como pensara

Newton recorrer ao espaccedilo absoluto como fundamento proacuteprio do movimento onde seria

registrada a continuidade das vaacuterias mudanccedilas das relaccedilotildees de situaccedilotildees dos corpos

Com tal caracteriacutestica o vestiacutegio da continuidade das vaacuterias mudanccedilas seria

registrado pela apercepccedilatildeo do que se passa nos corpos sob o ponto de vista

individualizado das mocircnadas Dito de outra maneira as mocircnadas lembram quando o

corpo saiu do lugar e espelham as mudanccedilas do estado de coisas Portanto as mocircnadas

satildeo a causa imediata ou proacutexima da transformaccedilatildeo satildeo a causa proacutepria da mudanccedila ou

do movimento como Leibniz jaacute havia assinalado no sect 47 da quinta carta a Clarke

30 LEIBNIZ A monadologia 1983 p 105 grifo nosso

39

Referecircncias bibliograacuteficas BENIacuteTEZ Laura ROBLES Joseacute A De newton y los newtonianos entre descartes y berkeley Bernal Universidade Nacional de Quilmes 2006 DESCARTES Reneacute Princiacutepios da filosofia Traduccedilatildeo Heloisa da Graccedila Burati Satildeo Paulo Rideel 2005 ______ Meditaccedilotildees sobre filosofia primeira Traduccedilatildeo Fausto Castilho Campinas editora Unicamp 2004 LEIBNIZ G W A Monadologia e Correspondecircncia com Clarke In Coleccedilatildeo Os Pensadores Traduccedilatildeo de Marilena de Souza Chauiacute Satildeo Paulo Abril cultural 1983 PERKINS Franklin Compreender Leibniz Traduccedilatildeo de Marcus Penchel Petroacutepolis Vozes 2009 NEWTON Isaac Principia princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural - I Traduccedilatildeo Andreacute Koch Torres Assis e outros 2ordf ed Satildeo Paulo Edusp 2012 ______ Principia princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural - II Traduccedilatildeo Andreacute Koch Torres Assis e outros Satildeo Paulo Edusp 2012 ______ O peso e o equiliacutebrio dos fluidos e outros In Coleccedilatildeo Os Pensadores Traduccedilatildeo Luiz Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Nova Cultural 1983 RUSSEL Bertrand A critical exposition of the Philosophy of Leibniz New York Routledge 1996 SAPUNARU Anna Raquel O conceito leibniziano de espaccedilo distacircncias metafiacutesicas e proximidades fiacutesicas do conceito newtoniano (Coleccedilatildeo teses) Satildeo Paulo Editora Livraria da Fiacutesica 2012

A QUESTAtildeO DO DUALISMO E DA LINGUAGEM EM BERGSON

Edvan Aragatildeo Santos1

RESUMO O objetivo central neste artigo eacute trazer agrave tona o debate sobre a questatildeo da linguagem na filosofia de Henri Bergson Para tanto traccedilaremos nosso percurso a partir do notoacuterio estabelecimento da diferenccedila de natureza entre espaccedilo e tempo e o consequente reconhecimento das duas esferas da subjetividade Ao apresentar a problemaacutetica do dualismo na subjetividade e a cisatildeo entre nossa consciecircncia e o objeto Bergson tem como querela a dificuldade da linguagem abstrata e espacial em apreender a realidade da duraccedilatildeo do nosso eu mais profundo Palavras-chave Linguagem Dualismo Subjetividade Duraccedilatildeo Espaccedilo

ABSTRACT The central aim of this article is to bring to the fore the debate on the question of language in the philosophy of Henri Bergson To do so we will trace our route from the notorious establishment of the difference in nature between space and time and the consequent recognition of the two spheres of subjectivity In presenting the problem of dualism in subjectivity and the split between consciousness and the object Bergson has as focus of his discussion the difficulty of abstract and spatial language in apprehend the reality of the duration of our deepest self Keywords Language Dualism Subjectivity Duration Space

Qual o limite de nossa linguagem Ela expressa de fato a realidade das coisas

Estas questotildees moveram os debates em muitos momentos da filosofia bergsoniana o

posicionando quase sempre em um empasse no qual ficou evidente a dificuldade de

encontrar uma linguagem adequada ao fazer filosoacutefico Veremos que para o filoacutesofo a

linguagem sobretudo no seu livro Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia ganha

um sentido funcional ao mesmo tempo que um obstaacuteculo agrave apreensatildeo da nossa natureza

mais profunda requerendo para tanto um verdadeiro exerciacutecio de desconstruccedilatildeo do seu

sentido usual Esta problemaacutetica se dirige diretamente ao problema do dualismo subjetivo

neste mesmo livro e a notoacuteria distinccedilatildeo entre espaccedilo e tempo problema tatildeo caro agrave sua

obra

Para Bergson lidamos em geral com uma noccedilatildeo de tempo espacial em nossa

vida cotidiana e praacutetica que viabiliza nossa accedilatildeo no mundo a organizaccedilatildeo da vida Mas

1 Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Satildeo Paulo edvanaragaosantosgmailcom

41

findamos por ampliar o alcance da mistura entre espaccedilo2 e tempo de tal modo que a

realidade pura da duraccedilatildeo aquela que nos habita e que constitui o que haacute de mais genuiacuteno

em noacutes passa a ser apreendida por esse prisma Desse modo eacute a um eu homogecircneo claro

e dotado de uma multiplicidade quantitativa poderiacuteamos dizer que normalmente nos

referimos quando pensamos em noacutes mesmos Dito de outro modo eacute sob a eacutegide de um eu

espacializado e simboacutelico que nos conhecemos Certamente trata-se de um recurso da

consciecircncia para assimilar em sua proacutepria interioridade o que na verdade lhe eacute

ininteligiacutevel procedimento que natildeo erradica a realidade pungente da duraccedilatildeo em suas

instacircncias mais recocircnditas Ela continua laacute enquanto dados que lhe satildeo imediatos mas

cada vez mais inacessiacuteveis Natildeo obstante essa estrateacutegia tem consequecircncias e elas

repercutem drasticamente em nossa vida Nessa perspectiva Bergson se debruccedila sobre um

outro dualismo que irrompe no acircmago de nossa subjetividade

Para nos remeter a essa cisatildeo no interior da vida psicoloacutegica a anaacutelise

bergsoniana retomando as conclusotildees de seu percurso volta a problematizar a radical

diferenccedila entre a multiplicidade pertinente agrave consciecircncia pura e aquela clara e distinta que

encontramos na representaccedilatildeo do tempo homogecircneo ldquoEm siacutentese seria preciso admitir

duas espeacutecies de multiplicidade dois sentidos possiacuteveis da palavra distinguir duas

concepccedilotildees uma qualitativa e outra qualitativa da diferenccedila entre o mesmo e o outrordquo3

No entanto argumenta ele estamos habituados a tomar uma multiplicidade pela outra ndash ou

o mesmo pelo outro ndash equiacutevoco que nos defronta com a problemaacutetica da linguagem

Afinal esse haacutebito de confundir as multiplicidades correlaciona-se com a dificuldade que

encontramos para expressar linguisticamente a diferenccedila entre ambas Eacute indubitaacutevel o

enlace entre linguagem e espaccedilo dado que o segundo eacute pressuposto para o advento da

primeira a qual nos eacute imprescindiacutevel para pensar e para conviver Daiacute deriva que ao nos

empenharmos em expressar as realidades muacuteltiplas e indistintas ou seja aquelas que

duram tal como os nossos estados de alma terminamos por distinguir os elementos que as

constituem exteriorizando-os e tratamos de pensaacute-las como se elas se apresentassem jaacute

feitas estanques em estado de pleno acabamento Assim quando nos remetemos agrave

heterogeneidade dos vaacuterios estados de consciecircncia - mesmo se experimentamos uma

2 Nos referimos aqui ao debate claacutessico bergsoniano no qual o tempo enquanto duraccedilatildeo se distingue do espaccedilo no entanto nossa experiecircncia na vida cotidiana nos remete a um misto entre tempo e espaccedilo e portanto costumeiramente temos uma visatildeo deturpada pelo espaccedilo da experiecircncia do tempo real tal como podemos observar na relaccedilatildeo entre uma marcaccedilatildeo dos ponteiros do reloacutegio e o tempo da nossa consciecircncia interior 3 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 85 Grifo do autor

42

organizaccedilatildeo contiacutenua de elementos que se interpenetram transmudam-se e crescem - ao

traduzi-los em discurso verbal acabamos por desnaturaacute-los Por essa razatildeo diz Bergson

ao utilizar o termo vaacuterios jaacute exteriorizamos os instantes justapomos os momentos

transmudando em multiplicidade numeacuterica a multiplicidade qualitativa pertinente agrave

experiecircncia que temos com a representaccedilatildeo das realidades externas Numa palavra ainda

que tenhamos a experiecircncia iacutentima da fusatildeo da transformaccedilatildeo e da indistinccedilatildeo ao pensar

a nossa interioridade e ao traduzi-la em discurso enfim ao representaacute-la aprendemos pelo

espaccedilo um real que eacute apenas tempo Nos termos do autor

Eacute a imagem deste desenvolvimento uma vez efectuado que atribuiacutemos necessariamente os termos destinados a expressar o estado de uma alma que ainda o natildeo tivesse efectuado estes termos estatildeo pois manchados por um viacutecio original e a representaccedilatildeo de uma multiplicidade sem relaccedilatildeo com o nuacutemero e com o espaccedilo ainda que clara para um pensamento que entra em si e se abstrai natildeo pode traduzir-se para a linguagem do senso-comum4

A despeito das dificuldades com que a linguagem nos defronta eacute preciso

insistir na diferenccedila de natureza entre esses dois tipos de multiplicidades Tarefa ante a qual

o autor natildeo vacila e que procuramos acompanhar nessas paacuteginas Natildeo obstante malgrado

esse esforccedilo de inspeccedilatildeo teoacuterica vimos que na praacutetica a ideia da multiplicidade distinta

estaacute sempre permeada pela multiplicidade qualitativa de modo que natildeo podemos pensar a

primeira sem que a outra desponte ou se aninhe sutilmente na intimidade da alma

Persistecircncia que se verifica insiste o filoacutesofo mesmo quando contamos unidades eis

porque findamos por dar a elas ndash agraves unidades - um dinamismo e por integraacute-las numa

continuidade quase afetiva Ou seja nesse processo mesmo desenhando as partes

exteriores umas agraves outras distinguindo-as no fundo atinamos a uma continuidade ou a uma

possiacutevel relaccedilatildeo entre as partes que viabiliza a apreensatildeo de uma continuidade de modo

que seria liacutecito dizer que agrave multiplicidade homogecircnea acompanha sempre o espectro da

multiplicidade do tipo heterogecircnea Remetendo-nos agrave anaacutelise do nuacutemero anteriormente

tecida Bergson afirmaraacute

Em siacutentese o processo pelo qual contamos as unidades e com elas formamos uma multiplicidade distinta apresenta um duplo aspecto por um lado supomo-las idecircnticas o que natildeo se pode conceber a natildeo ser com a condiccedilatildeo de que estas unidades se alinhem num meio homogecircneo mas por outro lado a terceira unidade por exemplo ao acrescentar-se agraves outras duas modifica a natureza o aspecto e como que o ritmo do conjunto sem esta muacutetua penetraccedilatildeo e este processo de

4 Ibidem p 86

43

certo modo qualitativo natildeo haveria adiccedilatildeo possiacutevel ndash Eacute pois graccedilas agrave qualidade da quantidade que formamos a ideia de uma quantidade sem qualidade5

No que concerne agraves realidades temporais noacutes o vimos essa transposiccedilatildeo para

uma natureza quantitativa soacute ocorreraacute com o exerciacutecio de figuraccedilatildeo simboacutelica No entanto

natildeo eacute preciso muito esforccedilo para chegar a essa figuraccedilatildeo que violenta a natureza essencial

da duraccedilatildeo e daacute a ela uma conotaccedilatildeo similar agrave da multiplicidade quantitativa Normalmente

graccedilas a um processo em que colocamos como concomitantes e mesmo como anaacutelogos os

dois tipos de multiplicidades consideramos a adiccedilatildeo como um fenocircmeno que permite tanto

o dado qualitativo que promove a mudanccedila da totalidade quanto o aspecto quantitativo

projetado na forma numeacuterica de um espaccedilo Em virtude dessa identificaccedilatildeo assinala

Bergson lanccedilamos com muita facilidade a multiplicidade indistinta no espaccedilo

conformando-a aos moldes da multiplicidade numeacuterica e lidamos com ambas como se natildeo

houvesse entre elas profundas diferenccedilas de natureza ldquoDaiacute a possibilidade de desdobrar no

espaccedilo sob a forma de multiplicidade numeacuterica o que chamamos uma multiplicidade

qualitativa e de considerar uma como equivalente da outrardquo6 Essa possibilidade de

equivalecircncia entre as duas multiplicidades eacute bastante factiacutevel insiste o autor quando se

trata de um fenocircmeno exterior Isto porque para noacutes ele toma a forma tambeacutem de um

movimento mesmo que homogecircneo porque a siacutentese que nossa consciecircncia opera ao dotar

de continuidade o passado com o presente permite que esses fenocircmenos exteriores ganhem

qualidade e duraccedilatildeo Daiacute que tanto a projeccedilatildeo do tempo no espaccedilo quanto a percepccedilatildeo dos

dados exteriores formam na consciecircncia o mesmo modo de representaccedilatildeo Em imagens

bergsonianas

Assim quando ouvimos uma seacuterie de pancadas de martelo os sons formam uma melodia indivisiacutevel enquanto sensaccedilotildees puras e datildeo ainda origem ao que chamamos um progresso dinacircmico mas sabendo que a mesma causa objectiva age decompomos este progresso em fase que consideramos entatildeo como idecircnticas e desta multiplicidade de termos idecircnticos que natildeo se podem conceber senatildeo pelo desdobramento no espaccedilo chegamos ainda necessariamente agrave ideia de um tempo homogecircneo imagem simboacutelica da duraccedilatildeo real7

Ao voltar a esta anaacutelise da mistura entre duraccedilatildeo espaccedilo Bergson nos conduz

a um importante momento de seu primeiro livro Trata-se do modo pelo qual essa

5 Ibidem p 86 e 87 6 Ibidem p 87 7 Ibidem p 87 e 88

44

permissibilidade entre as duas multiplicidades repercutiraacute na vivecircncia de nossa intimidade

Ou seja estabelece-se uma relaccedilatildeo entre as duas formas de multiplicidade e as dimensotildees

de nosso proacuteprio eu Como assinala o autor a interioridade de cada um de noacutes acaba

revestindo-se tambeacutem dessa dupla direccedilatildeo Destarte haacute o eu que toca a superfiacutecie da

realidade obtendo algo dessa exterioridade das coisas isto eacute encontrando esse tempo

homogecircneo essa realidade simboacutelica na qual nossas sensaccedilotildees sucessivas conservam e se

assemelham a algo dessa exterioridade o que permite a concomitacircncia entre nossas

sensaccedilotildees e as coisas Esta dimensatildeo superficial do eu espelha com muita coerecircncia o

modo pelo qual representamos as coisas fora de noacutes e revela uma interioridade tatildeo distinta

justaposta e exteriorizada quanto elas Nesse sentido podemos afirmar que o contato e a

relaccedilatildeo com as coisas exteriores reverbera sobre as camadas mais superficiais de nossa

subjetividade de sorte que nela se reflete a exterioridade ldquoreciacuteproca que caracteriza

objetivamente as suas causasrdquo8 Assim como apreendemos as coisas materiais num meio

homogecircneo configura-se uma interioridade tambeacutem lanccedilada num quadro vazio que eacute

vislumbrada como se materialidade fosse Um eu simboacutelico assim aflora Mas para aleacutem

dessa subjetividade exteriorizada um outro eu atesta sua presenccedila nas dimensotildees mais

distantes da exterioridade haacute um eu profundo que sente e delibera isto eacute aquele em que

os estados de alma estatildeo imbricados uns aos outros Aqui delineia-se um interioridade que

eacute puro devir progresso ininterrupto e auto-organizaccedilatildeo constante Totalmente distinta

pois dessa simbolizaccedilatildeo do eu superficial

No entanto parece sempre que o eu superficial e o eu profundo misturam-se

um ao outro a ponto de terem uma mesma duraccedilatildeo tal como fundimos as duas formas de

multiplicidade Haacute portanto uma extrapolaccedilatildeo da representaccedilatildeo simboacutelica que apreende

em seus tentaacuteculos realidades que a ela natildeo se coadunam Bergson assevera ldquoO que

demonstra perfeitamente que a nossa concepccedilatildeo ordinaacuteria da duraccedilatildeo se deve a uma

invasatildeo gradual do espaccedilo no domiacutenio da consciecircncia pura ()rdquo9 Para fundamentar essa

invasatildeo Bergson alude ainda a situaccedilotildees do nosso cotidiano nas quais podemos distinguir

dois modos de apreensatildeo do tempo aquele imediato o da duraccedilatildeo-qualidade em que

percepcionamos o sentimento da totalidade da mudanccedila sutil e qualitativa tal qual o

exemplo da sinfonia e aquele materializado contado em que numeramos os momentos

distintos um dos outros Ele volta assim ao exemplo do reloacutegio

8 Ibidem p 88 9 Ibidem p 88

45

No momento em que escrevo estas linhas o reloacutegio ao lado bate as horas mas o meu ouvido distraiacutedo soacute se apercebe depois de algumas terem soado portanto natildeo as contei E no entanto basta-me um esforccedilo de atenccedilatildeo retrospectiva para somar as quatro batidas jaacute produzidas e acrescenta-las agraves que ouccedilo Se entrando em mim me interrogo mais cuidadosamente sobre o que acaba de acontecer caio na conta de que os quatro primeiros sons impressionaram o meu ouvido e ateacute emocionaram minha consciecircncia mas que as sensaccedilotildees produzidas por cada um deles em vez de se justaporem se fundiram umas com as outras de maneira a dotar o conjunto de um aspecto proacuteprio de maneira a fazer dele uma espeacutecie de frase musical10

Desse modo nesse exemplo das toadas do reloacutegio similar ao do sino vemos

que ao percepcionar distraidamente as pancadas dos sons ao meu ouvido mesmo

colocando o elemento da conta na lembranccedila da sensaccedilatildeo essa sucessotildees natildeo nos aparecem

sobre a forma da justaposiccedilatildeo mas enquanto mudanccedila qualitativa como um transcorrer

em que o proacuteprio nuacutemero e sua contagem ganha um aspecto qualitativo Assim temos a

multiplicidade distinta em que percebemos os sons e ao mesmo tempo a memoacuteria de cada

uma delas nos permite apreendecirc-las como continuidade como se prolongassem umas nas

outras Eacute por esses dois aspectos que se fundem mas que satildeo distintos quanto agrave sua

natureza que Bergson postula que duas espeacutecies de multiplicidades se inscreveratildeo no eu

de cada um de noacutes Destarte eacute sob a siacutentese operada pela consciecircncia que nos deparamos

com uma versatildeo simboacutelica e homogecircnea do nossa vida interna

Ocorre que o eu superficial que eacute internamente distinto tal como os pontos

lanccedilados no espaccedilo e que reflete o modo pelo qual representamos a exterioridade finda por

projetar-se sobre as dimensotildees mais profundas da interioridade aquela que eacute puramente

temporal Essa tendecircncia acaba por camuflar esse eu fundamental que eacute de fato nossa

natureza substancial

Sem duacutevida tanto o eu superficial quanto o profundo nos satildeo constitutivos

mas eacute o primeiro que seraacute eleito como prioritaacuterio revestindo-se de uma relevacircncia absoluta

Ele seraacute via de regra concebido com a totalidade do que somos figurando simbolicamente

a dimensatildeo profunda do eu Processo em que a organicidade e o dinamismo profundo de

nossos estados de alma e dos afetos com sua densidade e sua vitalidade escapa-nos por

completo O espaccedilo adentra pois a dimensatildeo da duraccedilatildeo pura que nos habita de modo que

passamos a nos representar tal como representamos as coisas Em uacuteltima instacircncia o nosso

eu assume a tocircnica da interioridade inspecionada por uma psicologia desatenta e mesmo

10 Ibidem p 89

46

os afetos intensos os estados de alma que nada devem a exterioridade adquirem sua versatildeo

homogecircnea Mas como este eu mais profundo natildeo faz senatildeo uma uacutenica e mesma pessoa com o eu superficial parecem necessariamente duram da mesma maneira () nossa concepccedilatildeo ordinaacuteria da duraccedilatildeo se deve a uma invasatildeo gradual do espaccedilo no domiacutenio da consciecircncia pura ()11

Cumpre frisar como reconhece o autor que esse processo de subversatildeo e perda

de noacutes mesmos digamos assim constitui um caminho do qual natildeo podemos nos esquivar

Afinal como tantas vezes sustentado nos textos bergsonianos antes de sonhar o homem

precisa viver Para viver cumpre comunicar organizar a vida agir no mundo com os outros

conviver tolerar negociar ceder Ou seja se de direito a consciecircncia eacute pura

temporalidade fusatildeo e organizaccedilatildeo progressiva de si de fato eacute o eu homogecircneo que nos

permite viver e sobreviver eacute por meio da dimensatildeo superficial de nossa subjetividade que

alicerccedilamos nossa inserccedilatildeo no mundo humano O texto

A razatildeo estaacute em que a nossa vida exterior e por assim dizer social tem para noacutes mais importacircncia praacutetica do que a nossa existecircncia interior e individual Tendemos instintivamente a solidificar as nossas impressotildees para as exprimir mediante a linguagem Daqui confundirmos o proacuteprio sentimento que estaacute em perpetua mudanccedila com o seu objecto exterior permanente e sobretudo com a palavra que exprime esse objecto12

Essas consideraccedilotildees atestam pois que eacute o eu simboacutelico que prevalece eacute ele

que priorizamos e que temos em mente quando alimentamos a ideacuteia de que somos um

sujeito de que o conhecemos clara e distintamente Eacute ele que atesta a materialidade de

nossas vidas e que nos abre as vias da exploraccedilatildeo e do conhecimento do mundo Dada a

prioridade deste eu matemaacutetico e numeacuterico em nossas urgecircncias ligadas agrave sobrevivecircncia

ampliamos o seu alcance Sem este eu solidificado de fato a vida humana natildeo se

constituiria Bergson interroga ldquoSe cada um de noacutes vivesse uma vida puramente

individual se natildeo houvesse nem sociedade e nem linguagem a nossa consciecircncia captaria

sob esta forma indistinta a seacuterie de estados internosrdquo13 A resposta eacute peremptoriamente

negativa Mesmo destituiacutedos desses atributos ainda alinhariacuteamos estes estados em um

meio homogecircneo A intuiccedilatildeo de um espaccedilo homogecircneo pontua fortemente o autor

constitui uma preparaccedilatildeo para a sociabilidade ela nos diferencia dos animais consolida

11 Ibidem p 88 12 Ibidem p 91 13 Ibidem p 95

47

nossa capacidade de abstraccedilatildeo de representaccedilatildeo desse meio exterior permitindo que ele

se torne para noacutes objeto de conhecimento e locus de accedilatildeo

Mas Bergson natildeo deixa de apontar que para aleacutem da absoluta necessidade eacute

tambeacutem por comodidade que repousamos mais facilmente nessa dimensatildeo superficial do

eu a qual assume comumente o perfil das conveniecircncias e das frivolidades sociais Sem

duacutevida eacute cocircmodo alinhar os objetos colocando-os uns distintos uns dos outros o

alinhamento dos objetos e a utilizaccedilatildeo da linguagem dotadas de sentidos fixos e

consensuais facilita enormemente nosso controle sobre as coisas Ademais a percepccedilatildeo da

duraccedilatildeo pura eacute algo muito nebuloso obscuro exige um esforccedilo que nada tem a ver com a

loacutegica da eficaacutecia que pauta a operacionalizaccedilatildeo da vida Nesse sentido a capacidade de

espacializaccedilatildeo cauciona-nos para a vida praacutetica e abre-nos um leque infinito de

possibilidades de construccedilatildeo do mundo humano Aspecto que Bergson de modo algum

negligencia e que aprofundaraacute em seus trabalhos posteriores

No momento entretanto importa considerar o fato de que esses aspectos

justificam nossa preferecircncia pela representaccedilatildeo superficial do eu em detrimento das

instacircncias mais inacessiacuteveis as quais aos olhos da inteligecircncia regida pela faculdade da

espacializaccedilatildeo seratildeo sempre indiacutecios de confusatildeo de estranhamento e de eficiecircncia nula

Mas a despeito dos imperativos e das veleidades que nos fazem priorizar o eu superficial e

tomaacute-lo pela totalidade do que somos por mais que o eu simboacutelico prevaleccedila e atue como

um verdadeiro simulacro de nossa profundidade Bergson sublinha que essa realidade

heterogecircnea natildeo pode ser erradicada Ela viceja em noacutes e nos eacute sempre presente tal como

a multiplicidade qualitativa que ronda multiplicidade quantitativa O que ocorre eacute que a

consciecircncia anseia pela representaccedilatildeo simboacutelica de si ao priorizaacute-la finda por se afastar do

que traz em si de mais fundamental distanciando-se de uma realidade que lhe deveria ser

imediata Mas ela natildeo logra pulverizar ou minimizar a natureza de sua mais profunda

intimidade Bergson o assinala com um texto lapidar

Distingamos pois para concluir duas formas da multiplicidade duas apreciaccedilotildees muito diferentes da duraccedilatildeo dois aspectos da vida consciente Sob a duraccedilatildeo homogecircnea siacutembolo extensivo da duraccedilatildeo verdadeira uma psicologia atenta separa uma duraccedilatildeo cujos momentos heterogecircneos se penetram sob a multiplicidade numeacuterica dos estados conscientes uma multiplicidade qualitativa sob o eu dos estados bem definidos um em que sucessatildeo implica fusatildeo e organizaccedilatildeo Mas quase sempre nos contentamos como primeiro isto eacute com a sombra do eu projetado no espaccedilo homogecircneo14

14 Ibidem p 90

48

O que esse percurso um tanto quanto vagaroso pela reflexatildeo tecida em Os

dados imediatos nos revela eacute que a despeito da obstinaccedilatildeo prevalente da inteligecircncia em

optar pelo conforto do siacutembolo este eu fundamental pode ser reencontrado Mas para

ultrapassar esse eu distorcido por esse eu superficial e por uma consciecircncia

substancialmente compromissada com a praacutexis eacute necessaacuterio um verdadeiro esforccedilo do

pensar que evadindo-se das formas habituais de anaacutelise pemite que os limites entre as

duas esferas da subjetividade sejam depuradas afastando assim essa nossa interioridade

exteriorizada a qual guiada pelas convenccedilotildees pelos pensamentos formalizados e prontos

assemelha-se a folhas mortas na superfiacutecie de um lago Com esse esforccedilo de anaacutelise que

busca afastar os viacutecios da consciecircncia reflexa que olha criticamente seu modo de operar e

descreve o movimento genuiacuteno dos estados de alma o qual afinal eacute realizado pelo autor

de Os dados imediatos torna-se possiacutevel vislumbrar o eu revolto que pulsa no fundo das

aacuteguas Bergson assim coloca

Por outras palavras as nossas percepccedilotildees sensaccedilotildees emoccedilotildees e ideias apresentam-se sob um duplo aspecto um niacutetido preciso mas impessoal o outro confuso infinitamente moacutevel e inexprimiacutevel porque a linguagem natildeo o pode captar sem lhe fixar a mobilidade nem adaptar a sua forma banal sem o fazer descer ao domiacutenio comum15

Com efeito a dificuldade para encontrar esse eu fundamental reside justamente

no fato de que ele se apresenta sobre um aspecto antinocircmico agrave loacutegica que nos guia no

mundo praacutetico sua natureza movente revolta e que natildeo para de se transformar contradita

o eu superficial que se encontra coadunado com as representaccedilotildees espaciais e se constitui

em conformidade com as exigecircncias do mundo social Inequivocamente as exigecircncias da

praacutexis acabam por ofuscar essa natureza mais profunda Se ela natildeo pode erradicaacute-la logra

tornaacute-la ainda mais oculta Processo que se consolida com a traduccedilatildeo desses estados pelo

discurso linguiacutestico e que tem consequecircncias nefastas porquanto passamos a viver no

acircmbito de uma sombra da nossa subjetividade e a tomamos como o que haacute de mais genuiacuteno

em noacutes Como jaacute insinuamos diversas vezes nessas linhas a linguagem tem um papel

determinante da estruturaccedilatildeo desse eu quantitativo e espacializado Ela viabilizaraacute a vida

praacutetica mas natildeo o faraacute sem operar uma certa perda no limite ela se constituiraacute como um

obstaacuteculo ao acesso do eu profundo Voltemos pois agrave problemaacutetica da linguagem

15 Opus citatum

49

Enquanto signo de precisatildeo e modelo estaacutetico de pensamento as recursos

linguiacutesticos natildeo conseguem imprimir essa mobilidade da duraccedilatildeo-qualidade que eacute interior

a noacutes Ao traduzi-la acaba cristalizando-a em sentidos comuns e banais os quais suprimem

a unicidade e a singularidade dos afetos e dos estados de alma Isso porque ao dar

expressividade a nossos afetos e agraves vivecircncias profundas ao designar sentimentos uacutenicos

com siacutembolos gerais que se ajustam agraves mais distintas realidades o pensamento discursivo

opera uma solidificaccedilatildeo das nossas impressotildees uma retenccedilatildeo do progresso ininterrupto que

norteia o amadurecimento de sentimentos e ideias Deste modo ao ser nomeado o processo

temporal ou a mobilidade afetiva que constitui o eu adquire a tocircnica do imutaacutevel de modo

que nossos estados de almas se congelam e parecem natildeo mais sujeitos agrave modificaccedilatildeo

Bergson pontua

As nossas sensaccedilotildees simples consideradas no seu estado natural ofereceriam menos consistecircncia ainda Este sabor aquele perfume agradaram-me quando crianccedila e hoje repugnam-me Contudo dou ainda o mesmo nome agrave sensaccedilatildeo experimentada e falo como se o perfume e o sabor fossem idecircnticos quando soacute os meus gostos mudaram Portanto ainda cristalizo essa sensaccedilatildeo e quando a sua mobilidade adquire uma tal evidencia que me eacute possiacutevel reconhececirc-la retiro esta mobilidade para lhe dar um nome a parte e cristaliza-la por sua vez sob a forma de gosto16

Assim ainda que nossas percepccedilotildees sobre as coisas ou sobre os nossos estados

aniacutemicos mudem persistimos em classificaacute-los com o mesmo nome isto eacute recorremos agrave

linguagem que produz uma representaccedilatildeo artificial da multiplicidade das impressotildees e das

experiecircncias No entanto para aleacutem de uma simples maacute representaccedilatildeo da sensaccedilatildeo por noacutes

experimentada para Bergson a linguagem nos induz por vezes ao erro Suas imagens

luminosas o precisam

Assim quando como uma iguaria rara o seu nome enriquecido com a provaccedilatildeo que se lhe daacute interpotildee-se entre a minha sensaccedilatildeo e a minha consciecircncia poderei acreditar que o sabor me agrada quando um simples esforccedilo de atenccedilatildeo me provaria o contraacuterio Em siacutentese a palavra com contornos bem definidos a palavra em bruto que armazena o que haacute se estaacutevel de comum e por conseguinte de impessoal nas impressotildees da humanidade esmaga ou pelo menos encobre as impressotildees delicadas e fugitivas da nossa consciecircncia individual17

16 Ibidem p 91 Grifo do autor 17 Ibidem p 92

50

Tambeacutem na impressatildeo comum do dia a dia deparamo-nos com os mesmos

objetos os quais com o passar do tempo comeccedilam a ganhar uma familiaridade para noacutes

no entanto a despeito de tal familiaridade um dia percebemos uma mudanccedila singular e

parece que eles se modificaram e envelheceram tal como noacutes Mas as mudanccedilas satildeo

percebidas em bloco jamais em sua processualidade Ora o modo pelo qual a linguagem

capta a mudanccedila fora de noacutes na vida praacutetica eacute correlato ao modo pelo qual apreendemos

sempre o nosso eu como algo solidificado que nos parece imutaacutevel - ou cujas

transmutaccedilotildees percebemos com jaacute concluiacutedas visto que a percepccedilatildeo da mudanccedila seja nas

coisas seja em noacutes nos escapa invariavelmente Isso tem a ver com as necessidades da

nossa vida social isto eacute com um eu que estaacute imerso na superficialidade das coisas e da

vida social e que estendemos para a totalidade de nossa vida psicoloacutegica Ou seja

acabamos por aprendecirc-lo apenas em sua dimensatildeo superficial como se assim o nosso eu se

nos revelasse por inteiro Em suma em virtude das acomodaccedilotildees da vida praacutetica tendemos

a estabilizar nossas impressotildees profundas e internas solidificando nossas impressotildees em

um eu exterior imerso no mundo social Daiacute resulta a cristalizaccedilatildeo das impressotildees voluacuteveis

da alma e o fato de que nos restringimos a uma visatildeo imoacutevel da mobilidade

Inequivocamente a linguagem opera essa ilusatildeo ela natildeo soacute daacute estabilidade ao que eacute

instaacutevel tirando a essecircncia movente das impressotildees mas para aleacutem disso tem o poder de

manipular e de distorcer o sentido das impressotildees Atendo-nos agraves representaccedilotildees que com

ela construiacutemos os dados que nos satildeo imediatos distanciam-se perdemo-nos de noacutes

mesmo Dito de outro modo esse instrumento que nos eacute primordial e imprescindiacutevel finda

por prejudicar a apreensatildeo imediata dessa experiecircncia interior pois existe de fato uma

discordacircncia entre aquilo que formulamos em termos de linguagem e a realidade interior

da duraccedilatildeo Tal problema tem sua origem numa inadequaccedilatildeo entre os siacutembolos linguiacutesticos

estaacuteticos e fixos ndash que natildeo se dissociam do pensar voltado para a accedilatildeo ou seja da natureza

da inteligecircncia - e dos quais nos servimos para nomear o real e a realidade fluiacuteda e interior

da duraccedilatildeo Problema que Bergson jaacute estampava no prefaacutecio de Os dados Imediatos

A consciecircncia atormentada por um desejo insaciaacutevel de distinguir substitui o siacutembolo pela realidade ou natildeo percepciona a realidade atraveacutes do siacutembolo Com o eu assim refractado e por isso mesmo subdividido se presta infinitamente melhor agraves exigecircncias da vida social em geral e da linguagem em particular ela prefere-o e perde pouco a pouco de vista o eu fundamental18

18 Ibidem p 9

51

No limiar da obra Bergson jaacute admite uma inadequaccedilatildeo entre nossos recursos

de expressatildeo e a duraccedilatildeo interior pois tendemos pelas exigecircncias da vida social a usar

uma linguagem estaacutetica tendo como norte nossa adaptaccedilatildeo agrave vida praacutetica19 Essa

linguagem ao ter em vista a utilidade da praacutexis esfera em que tudo eacute representado como

espacialmente disposto provoca um distanciamento em relaccedilatildeo agrave duraccedilatildeo interior ou seja

produz um vazio estabelecido entre nossa representaccedilatildeo da consciecircncia e as suas instacircncias

mais profundas Instaura-se assim uma profunda discordacircncia entre aquilo que

formulamos em termos de linguagem e a realidade interior que se quer exprimir20 Tal

problema tem sua origem numa inadequaccedilatildeo entre a nossa linguagem estaacutetica e fixa e a

natureza da realidade que viceja em nossa interioridade universo onde podemos sentir os

estados que se entrelaccedilam na duraccedilatildeo contiacutenua quando por exemplo tocamos no fundo

de noacutes mesmo apreendendo assim algo da proacutepria totalidade que nos perpassa a qual se

perde ao ser traduzida pelas ferramentas que nos permitem a elocuccedilatildeo Cumpre observar

que este aspecto impregnaraacute tanto os modos de expressatildeo comuns quanto aqueles que

prevalecem no discurso cientiacutefico Ainda no Prefaacutecio de Os dados imediatos Bergson

observa

Exprimimo-nos necessariamente por palavras e pensamentos quase sempre no espaccedilo Isto eacute a linguagem exige que estabeleccedilamos entre as nossas ideias as mesmas distinccedilotildees niacutetidas e precisas a mesma descontinuidade que entre os objetos materiais Essa assimilaccedilatildeo eacute uacutetil na vida praacutetica e necessaacuteria na maioria das ciecircncias Mas poder-se-ia perguntar se as dificuldades insuperaacuteveis que certos problemas filosoacuteficos levantam natildeo advecircm por teimarmos em justapor no espaccedilo fenocircmenos que natildeo ocupam espaccedilo e se abstraindo das grosseiras imagens em torno das quais se polemiza natildeo lhes poriacuteamos termo21

Vemos aqui o autor tomar como foco central o desajuste entre nossa forma de

pensar que eacute viabilizada pelos signos linguiacutesticos e os elementos da pura duraccedilatildeo que ao

19 ldquoA continuidade da filosofia de Bergson trataraacute de mostrar que a apreensatildeo dos objetos materiais isolados eacute relativa aos nossos haacutebitos intelectuais derivados da apreensatildeo praacutetica do real efetivada pela percepccedilatildeo ndash que eacute um processo essencialmente destinado agrave accedilatildeo ndash e elaborada pelo trabalho de abstraccedilatildeo da inteligecircncia (e da linguagem) Eacute a aplicaccedilatildeo sem limites e sem criacutetica dos processos intelectuais derivados da praacutexis aos questionamentos metafiacutesicos que acaba por afirmar a existecircncia e a essecircncia da mateacuteria como objeto materialrdquo (PINTO Bergson e os dualismos p 5) A pesquisadora Deacutebora Morato trata aqui de um problema que seraacute melhor fundamento em Mateacuteria e Memoacuteria e que tange agrave elevaccedilatildeo da representaccedilatildeo ao modelo fundamental de conhecimento Consequecircncia sobretudo da maneira como apreendemos o mundo pela exterioridade espacial - sendo a representaccedilatildeo como consequecircncia da nossa adaptaccedilatildeo agrave exterioridade 20 ldquoEvidencia-se nessa medida o sentido dos dois primeiros capiacutetulos aqueles que aparentemente mais se aproximam de um dualismo (instituiacutedo via dissociaccedilatildeo da experiecircncia) a apreensatildeo de uma das dimensotildees da experiecircncia real que cotidiana e regularmente se oculta pelas necessidades da praxis e cujo ocultamento eacute a mola mestra do pensamento conceitual quer ele se manifeste no senso comum na ciecircncia ou na metafiacutesicardquo (PINTO Bergson e os dualismos p 4) 21 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 9

52

serem traduzidos pelo pensamento satildeo justapostos de modo descontinuado no espaccedilo

Mas essa passagem na abertura do livro alude ao ponto que por todo o livro estaraacute sob o

fogo criacutetico do filoacutesofo quer dizer o fato de que ao voltarmos nossa atenccedilatildeo agrave vida praacutetica

produzimos gradativamente uma ciecircncia que ratifica esse modelo espacial de apreender a

realidade Criacutetica que se estende igualmente agrave filosofia Vale notar que no decorrer de sua

obra Bergson natildeo deixaraacute de apontar a dificuldade e a necessidade da sua e de toda a

filosofia em encontrar uma expressividade adequada ao seu objeto22 Como nota F Worms

ao pontuar nossa limitaccedilatildeo perante a linguagem e o modo pelo qual espacializamos

realidades imateriais aos nomeaacute-las e distingui-las segundo os recursos simboacutelicos

Bergson mostra que eacute daiacute que se originam os grandes falsos problemas filosoacuteficos Afinal

com a linguagem criamos os conceitos as teorias que instauram um universo abstrato

fixando e coisificando em quadros simboacutelicos a experiecircncia moacutevel e temporal da

realidade23 No caso da psicologia esse processo culmina na coisificaccedilatildeo do eu em sua

22 Todavia a criacutetica ao alcance da linguagem e a discussatildeo acerca da possibilidade de rompimento de sua superficialidade no que tange agrave apreensatildeo da duraccedilatildeo em sua forma pura natildeo eacute resolvido com facilidade Justamente em virtude desse caraacuteter necessaacuterio a linguagem enquanto condiccedilatildeo empiacuterica circunscreve nossa relaccedilatildeo objetiva e exterior ao objeto de uma maneira instrumental Diz-nos o filosofo que se tiveacutessemos todo o conhecimento ilimitado na percepccedilatildeo natildeo teriacuteamos necessidade da concepccedilatildeo cuja explicitaccedilatildeo natildeo se daacute sem a linguagem Atentemos ao texto ldquoConceber eacute um paliativo quando natildeo eacute dado perceber e o raciociacutenio eacute feito para colmatar os vazios da percepccedilatildeo ou para estender o seu alcance Natildeo nego a utilidade das ideias abstratas e gerais ndash como tatildeo pouco contesto o valor do papel-moeda Mas assim como papel moeda natildeo eacute mais que uma promessa de ouro assim tambeacutem uma concepccedilatildeo soacute vale pelas percepccedilotildees possiacuteveis que representardquo (BERGSON O Pensamento e o Movente p 151) Observemos que aqui se revela uma sutileza retoacuterica ou seja concebemos porque natildeo alcanccedilamos um conhecimento ilimitado na percepccedilatildeo e por isso mesmo nossa linguagem se apresenta como uma mediaccedilatildeo paliativa um deacuteficit perante nossa insuficiente compreensatildeo revelando um fosso entre nossa representaccedilatildeo e os objetos Desse modo eacute no intuito de resolver essa inadequaccedilatildeo de nossa representaccedilatildeo que se faz necessaacuteria uma criacutetica ao seu alcance mostrando que ao contraacuterio da uma visatildeo imperante na tradiccedilatildeo metafiacutesica sobretudo a moderna podemos nos voltar para um conhecimento imediato distinto da posiccedilatildeo reflexiva da inteligecircncia 23 Seguindo o comentador notemos que tais problemas se evidenciam sobretudo nos paradoxos encontrados nas disputas das argumentaccedilotildees relativas aos problemas filosoacuteficos Um problema que se constroacutei no acircmbito da disputa fundada por uma linguagem abstrata nunca explicita o seu nuacutecleo o qual inversamente em sua efetividade poderia ser apreendido numa intuiccedilatildeo simples e uacutenica Para Bergson a linguagem se apresenta sobretudo como um paradoxo visto que ela nunca logra representar a intuiccedilatildeo simples da duraccedilatildeo a qual se revela de fato intraduziacutevel Desse modo um discurso calcado no puro jogo argumentativo ndash e portanto dissociado dos dados concretos e imediatos - nunca alcanccedila a natureza real do problema Por essa razatildeo Bergson afirma que os debates retoacutericos e argumentativos que se desdobram ao longo da histoacuteria da filosofia restritos ao plano da especulaccedilatildeo natildeo passam de debates pautados numa linguagem que os manteacutem na exterioridade do problema central e portanto em grande parte desprovidos de sentido ldquoEis entatildeo a questatildeo que se potildee e que tomo por essencial Uma vez que toda tentativa de filosofia puramente conceitual suscita tentativas antagocircnicas e que no terreno na dialeacutetica pura natildeo haacute sistema ao qual natildeo se possa opor a outro iremos noacutes permanecer nesse terreno ou seraacute que natildeo deveriacuteamos antes (sem renunciar nem eacute preciso dizecirc-lo ao exerciacutecio das faculdades de concepccedilatildeo e de raciociacutenio) voltar agrave percepccedilatildeo conseguir dela que se dilate e estenda (BERGSON O Pensamento e o Movente p 154) Isso natildeo impede que em seu desdobramento sua filosofia enfatize a urgecircncia de uma linguagem outra capaz de atingir o objeto no que ele tem de particular absorvendo seu significado mais autecircntico Sobre este ponto Leopoldo e Silva acrescenta Qual eacute a linguagem da filosofia Se tomarmos esta pergunta como criteacuterio orientador para uma leitura da obra bergsoniana chegaremos ao final do percurso sem encontrar

53

matematizaccedilatildeo Eis o que revelam as anaacutelises tecidas pelo autor em Os dados imediatos

texto no qual a reflexatildeo bergsoniana problematiza a razatildeo pela qual a interioridade se oculta

ou se perde ante uma ciecircncia que se arvora na condiccedilatildeo de defini-la e no limite de adestraacute-

la evidenciando o papel que os recursos da expressatildeo e do pensamento assumem neste

desvio Afinal como sustenta o autor em outro lugar a inteligecircncia ldquo() se manifesta por

uma atividade que eacute um preluacutedio agrave arte mecacircnica e por uma linguagem que anuncia a

ciecircnciardquo24 Explicita-se assim o caraacuteter puramente simboacutelico das ciecircncias matemaacuteticas e

das ciecircncias que nela se espelham mesmo aquela que se aventura pela alma humana as

quais em vez de apreenderem o proacuteprio objeto o representam por meio de uma ferramenta

abstrata que o fragmenta e o espacializa Esta tendecircncia sem duacutevida perpetua as praacuteticas

do senso comum o qual ao atrelar-se agrave percepccedilatildeo praacutetica e por estar voltado agrave vida social

natildeo almeja o alargamento da apreensatildeo do real em sua dimensatildeo imediata Ademais

lembremos que a questatildeo central no primeiro livro de Bergson concerne justamente a um

problema metafiacutesico a liberdade o qual natildeo seraacute devidamente compreendido quando

enfrentado dentro dos paracircmetros fixos da linguagem cientiacutefica ou filosoacutefica

Notadamente essa eacute uma questatildeo fundamental do bergsonismo e ela

reapareceraacute em nosso percurso Por ora uma vez que eacute a discussatildeo tecida no primeiro livro

o nosso foco a referecircncia a essa problemaacutetica vem aqui apenas esclarecer o modo pelo

qual a linguagem seja ela cientiacutefica ou natildeo ao mesmo tempo em que se associa ao espaccedilo

viabilizando a sociabilidade e a organizaccedilatildeo do mundo nos impede de apreender a

realidade dos afetos O que escapa assim eacute a dimensatildeo ontoloacutegica do eu aquela que se

confunde com o tempo e que se opotildee a toda materialidade uma vez que ao fragmentaacute-la e

ao dar a ela a inteligibilidade dos siacutembolos findamos por sacrificaacute-la coisificando-a

Decerto o que persiste em nossa interioridade profunda eacute um progresso

constante uma subjetividade movente e temporal cujos momentos natildeo apenas mudam

permanentemente mas ao mudarem operam uma transformaccedilatildeo na totalidade do que

somos e dos momentos antecedentes Daiacute que seja impossiacutevel a delimitaccedilatildeo em blocos

estanques dos elementos que a constituem O que existe em noacutes profundamente eacute a duraccedilatildeo

da qual nos afastamos devido agrave nossa inserccedilatildeo no universo representacional e discursivo

Instaura-se pois uma distacircncia entre essa realidade e a forma pela qual a linguagem e o

uma resposta efetiva Esta ausecircncia decorre do caraacuteter que Bergson atribui agrave linguagem produto da inteligecircncia concebida como faculdade instrumental A inteligecircncia eacute o meio de que a natureza nos dotou para triunfar sobre a mateacuteria e organizar o mundo da perspectiva das necessidades humanas (LEOPOLDO E SILVA Intuiccedilatildeo e Discurso Filosoacutefico p 9) 24 BERGSON O Pensamento e o Movente p 84

54

conceito com a solidez que lhes eacute peculiar acabam por exprimir esse progresso o que

deturpa essa natureza e impregna de fixidez as nossas formas de sentir e ver o mundo dentro

e fora de noacutes

A evidecircncia da diferenccedila e do hiato que se instaura entre a representaccedilatildeo da

linguagem e a experiecircncia concreta fica mais clara no caso dos sentimentos realidades que

atingem as mais variadas gradaccedilotildees e nuances sensiacuteveis as quais satildeo inapreensiacuteveis agrave

delimitaccedilatildeo conceitual Eacute da natureza do sentimento crescer se desenvolver sua natureza

eacute a da constante transformaccedilatildeo da mutabilidade das gradaccedilotildees que se delineiam

incessantemente Eis a coloraccedilatildeo de sua originalidade a qual perde seus tons e sua

concentraccedilatildeo ao ser conceitualizada Um caminhar constante e elaacutestico dos momentos que

eacute a cor proacutepria do sentimento Remetendo-nos agraves primeiras paacuteginas de sua investigaccedilatildeo

Bergson escreve

Um amor violento uma melancolia profunda invadindo a nossa alma satildeo infindos elementos diversos que se fundam se penetram sem contornos precisos sem a menor tendecircncia a experiorizarem-se uns relativamente aos outros a sua originalidade tem esse preccedilo25

Eis a vida que eacute a proacutepria natureza do afeto tal qual o tempo ininterrupto da

vivecircncia pura em que os momentos do tempo se interpenetram A evoluccedilatildeo afetiva

destarte aproxima-se do amadurecimento na escolha de uma resoluccedilatildeo Bergson

acrescenta

O proacuteprio sentimento eacute um ser que vive se desenvolve e consequentemente muda sem cessar caso contraacuterio natildeo se compreenderia como nos levou pouco a pouco a uma resoluccedilatildeo a nossa resoluccedilatildeo seria imediatamente tomada26

Vale ratificar ao expor essa realidade afetiva em espaccedilos justapostos acabamos

por esterilizar a singularidade de sua coloraccedilatildeo e damos a ela um sentido comum e

coloquial Impessoal portanto O que se perde eacute o caraacuteter proacuteprio e vivo da vida interior a

vivacidade dos estados que se interpenetram e a compotildeem O que se perde eacute a dinamicidade

do eu profundo A incapacidade de apreender a natureza de nossos afetos e de nossos

estados drsquoalma se confunde com a incapacidade para apreendermos o nosso proacuteprio eu o

qual concebido simbolicamente eacute tatildeo descolorido quanto sentimentos justapostos e

destituiacutedos de sua heterogeneidade Assim como desnaturalizamos nossos afetos ao

25 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 92 26 Ibidem p 92

55

traduzi-los em palavras cujos significados gerais foram socialmente convencionados e

transformados em gecircneros desconhecemo-nos quando segmentamos e discursamos acerca

do dinamismo orgacircnico de nosso eu profundo Condenados a lidar com nossos afetos como

se coisas fossem a apreender apenas a sombra exteriorizada de nosso eu convencional

vislumbrando-o pelas vias dos siacutembolos que o desnaturalizam enquanto experiecircncia

muacuteltipla essa supressatildeo da experiecircncia ininterrupta acaba por nos distanciar em uacuteltimo

caso de noacutes mesmos A percepccedilatildeo da multiplicidade qualitativa que neles viceja e que nos

constitui a experiecircncia imediata dessa sutileza infinita de mutaccedilotildees e transformaccedilotildees dos

nossos estados de alma nos daria uma visatildeo mais proacutexima da nossa experiecircncia real Isso

faria o romancista cujas palavras deslocadas de seus sentidos utilitaacuterios talvez nos

desvelassem natildeo a justaposiccedilatildeo dos estados de alma e dos elementos constitutivos do eu

mas a ldquointerpenetraccedilatildeo infinita de mil impressotildees diversas que jaacute deixaram de o ser na

altura que os nomeamosrdquo27 Esse artista audacioso sustenta Bergson conseguiria nos

compreender mais do que noacutes mesmos

Provavelmente a experiecircncia profunda e a compreensatildeo efetiva dessa natureza

do nosso eu iacutentimo natildeo possa se dar em um profundo espanto um estranhamento que eacute

tambeacutem a aventura de mergulhar numa realidade distinta daquela que nos eacute habitual Para

tanto seria preciso abandonar a zona de conforto em que a linguagem usual nos deixa e

lutar contra a nossa da obsessatildeo pela figuraccedilatildeo espacial Dito de outro modo para que o eu

se deixasse viver em sua dimensatildeo autecircntica seria preciso entender que quando trocamos

as experiecircncias por siacutembolos acomodados pela linguagem comum acabamos por deturpar

a natureza vivida da experiecircncia interior Seria preciso ainda ousar o desajuste em relaccedilatildeo

agraves formas de pensar e de sentir generalizadas o que nos colocaria em descompasso com o

comportamento comum Sim porque certos pensamentos que parecem mesclados aos

afetos que por vezes nos assaltam e impregnam a totalidade de nosso eu com um ldquoardor

irrefletidordquo se constituem como ideias que nada tem de justapostas mas que expressam a

interpenetraccedilatildeo constante de nossos estados de alma Esses pensamentos nos arrebatam

porque trazem neles algo do que haacute de mais intenso em cada um de noacutes Bergson assinala

As opiniotildees que mais nos agarramos satildeo as que explicamos com mais dificuldade e as razotildees com que as justificamos raramente satildeo as que nos levaram a adoptaacute-las Em certo sentido adoptaacutemo-las sem razatildeo porque aos nossos olhos o seu valor reside em que o seu cambiante

27 Ibidem p 93

56

corresponde agrave coloraccedilatildeo comum de todas as nossas ideias porque logo de iniacutecio vimos nelas algo de noacutes28

Tais pensamentos ou ideias natildeo admitem a tocircnica comum das palavras jaacute

imbuiacutedas de sentidos cristalizados Ao serem expressos ainda que o sejam pelas palavras

comuns a todos eles de algum modo revelam a riqueza da experiecircncia interior que ao se

expandir para a totalidade do nosso eu ofuscando a sua dimensatildeo simboacutelica enchem de

vida as nossas ideias e permitem que com elas advenha um sentido novo e original Ao

aflorar esse pensamento novo integra-se agrave totalidade de nossa alma a qual modificada e

em estado de vibraccedilatildeo nos impregna por completo Sem duacutevida satildeo esses os momentos

em que o ldquoeu se deixa viverrdquo29

Claro que esse natildeo eacute o modo habitual pelo qual opera nosso pensamento natildeo

eacute assim que comumente produzimos ideias Em geral elas nos chegam jaacute prontas adquirem

uma aparecircncia de imobilidade sem a vivacidade pessoal ou a plenitude do eu De fato

quanto mais exprimirmos nossas ideias de modo espacializado na exterioridade proacutepria da

linguagem comum mais impessoal se sem vida elas se revelaratildeo Por isso para o filoacutesofo

as ideias mais proacuteprias e vivas satildeo as mais difiacuteceis de se expressar com as palavras as

ideias que nos chegam prontas desde jaacute utilizadas e utilizaacuteveis pela linguagem comum

satildeo obviamente as mais faacuteceis de serem expressas Satildeo essas as ideias que afloram na

dimensatildeo mais superficial de nosso eu ideias inertes e impessoais cuja natureza clara e

distinta assemelha-se ao nuacutemero Eacute a elas que se aplicam a teoria associacionista que se

propotildee a conhecer cientificamente a realidade subjetiva o homem o nosso eu No entanto

lembremos que ao apreendermos a multiplicidade quantitativa ao adicionar seus elementos

e vislumbrarmos nesse processo alguma dinamicidade ressoa de um fundo natildeo claro uma

multiplicidade qualitativa que nos constitui profundamente Sem duacutevida os pensamentos

e as ideias que facilmente verbalizamos aquelas que se apresentam imoacuteveis e justapostos

uns aos outros exteriorizados em formas soacutelidas e conceituais habitam as camadas mais

superficiais da consciecircncia e refletem aquelas produzidas pela sociedade pelo contato do

eu com o mundo exterior Por detraacutes delas caso fosse possiacutevel ter essa visatildeo veriacuteamos as

ideias e pensamentos se fundirem o que nos remeteria a uma inteligecircncia viva cujas ideias

natildeo se distinguem dos estados aniacutemicos que se interpenetram e se recriam

28 Ibidem p 94 29 Ibidem p 72

57

permanentemente Assim adviria um pensamento inquieto mutante imageacutetico do qual

por vezes o sonho nos aproxima

A imaginaccedilatildeo do sonhador isolada do mundo externo reproduz em imagens simples e parodia agrave sua maneira o trabalho que incessantemente se prossegue sobre as ideias nas regiotildees mais profundas da vida intelectual30

Em suma com esses argumentos Bergson ratifica que nossa vida interna

apresenta duas esferas uma voltada agrave exterioridade movida por um tempo homogecircneo

cujos elementos apresentam-se enquanto quantidade enquanto dados exteriores uns aos

outros a outra impulsionada por uma vida movente e profunda em que os momentos se

fundem e nos datildeo a visatildeo de um movimento progressivo e orgacircnico dos estados que se

amalgamam e que se recriam continuamente Aqui prevalece a pura duraccedilatildeo O eu

interior que constitui de fato nossas impressotildees reais e vivas das coisas eacute ofuscado pela

exteriorizaccedilatildeo operada pela representaccedilatildeo espacial e pela linguagem em prol da

sociabilidade a qual insistimos nos eacute imprescindiacutevel Mas o meio homogecircneo e a

linguagem a despeito do triunfo social que viabilizam acabam por camuflar a natureza

do eu interior que nos desvela o que haacute de mais denso profundo e vital em noacutes que nos

revela afinal o ser em noacutes o que haacute de absoluto e ontoloacutegico em nossa existecircncia Assim

se o eu espacializado nos insere numa vida social necessaacuteria e eficaz quando tomado

pela totalidade de nossa vida subjetiva ele nos condena a uma vida inferior Eacute ao eu

habitante desta vida que a psicologia desatenta ou associacionista se restringe Seria

preciso superaacute-la para compreender que o descolorido o banal a frivolidade a vida

convencional natildeo eacute o uacutenico registro de nossa interioridade natildeo eacute tampouco o destino

inexoraacutevel do eu de cada um de noacutes Ele pode tambeacutem aceder a uma existecircncia mais

profunda a qual viabilizaria a experiecircncia da autonomia numa palavra agrave liberdade

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BERGSON Henri Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciecircncia Lisboa Ediccedilotildees 70 1988

_______________ O Pensamento e o Movente Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

30 Ibidem p 95

58

LEOPOLDO E SILVA Franklin Bergson Intuiccedilatildeo e Discurso Filosoacutefico Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1994

PINTO Deacutebora Bergson e os dualismos Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophppid=S010131732004000100007ampscript=sci_arttextamptlng=pt 2013

WORMS Freacutedeacuteric Bergson ou os dois sentidos da vida Satildeo Paulo Editora Unifesp 2010

DO NIILISMO Agrave EXPERIEcircNCIA TOTALITAacuteRIA

Elvis de Oliveira Mendes1

RESUMO O presente artigo pretende mostrar de que maneira o filoacutesofo poliacutetico teuto americano Leo Strauss tenta por meio de uma reflexatildeo acerca do fenocircmeno histoacuterico da tirania desenvolver uma compreensatildeo maior do advento dos totalitarismos do seacuteculo XX o que o filoacutesofo veio a chamar de ldquotirania de nossos temposrdquo Deste modo o esforccedilo empreendido aqui por Strauss eacute o de traccedilar uma espeacutecie de leitura sobre ou uma investigaccedilatildeo de quais seriam por assim dizer as raiacutezes intelectuais dos regimes totalitaacuterios e sobretudo do nazismo Palavras-chave Niilismo Leo Strauss Tirania Totalitarismos Nazismo ABSTRACT The present article aims to show how the Teutonic American political philosopher Leo Strauss tries by means of a reflection on the historical phenomenon of the tyranny to develop a greater understanding of the advent of the totalitarianisms of the twentieth century what the philosopher came to call tyranny of our times Thus Strausss effort here is to trace a kind of reading about or an inquiry into what are so to speak the intellectual roots of totalitarian regimes and above all of Nazism Keywords Nihilism Leo Strauss Tyranny Totalitarianism Nazism

Introduccedilatildeo

A escolha de um nome como o de Leo Strauss para efetuar uma abordagem

seacuteria de um dos mais importantes complexos e polecircmicos temas da histoacuteria recente natildeo

eacute de maneira alguma uma escolha arbitraacuteria ou inoacutecua De fato a escolha de uma das mais

importantes mentes da filosofia poliacutetica do seacuteculo XX se daacute devido agrave magnitude da

reflexatildeo por ela produzida reflexatildeo esta que o presente ensaio pretende analisar em um

de seus aspectos Ora para dar iniacutecio adequadamente a esse procedimento eacute preciso

compreender que estamos diante de um filoacutesofo alematildeo de origem judaica filho de uma

Alemanha em que os judeus viveram um periacuteodo profundamente marcado por um

sentimento de esperanccedila e prosperidade o sonho de uma vida nova de um futuro melhor

para seus filhos e netos sentimento sem precedentes para o povo judeu cuja histoacuteria havia

sido marcada ateacute aquela eacutepoca pela vida nos cativeiros e guetos Natildeo obstante o sonho

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (elvisoliverlivecom) Meus agradecimentos ao prof Dr Richard Romeiro Oliveira (UFSJ) pela revisatildeo final deste artigo

60

de um lar para quae beata vita viria a se tornar um pesadelo marcado pela perseguiccedilatildeo

humilhaccedilatildeo tortura e morte em massa Esse episoacutedio obscuro e brutal que marca

fatalmente natildeo apenas a histoacuteria da Europa mas a histoacuteria da humanidade eacute de igual

maneira uma paacutegina triste que marca diretamente e de forma seminal toda a vida de

Strauss jaacute que os acontecimentos funestos da Alemanha da deacutecada de 1930 foram

sentidos como ldquonavalha na carnerdquo desse ateacute entatildeo desconhecido acadecircmico alematildeo que

posteriormente viria a se tornar um dos maiores teoacutericos poliacuteticos do seacuteculo XX2

Neste contexto os eventos ocorridos na deacutecada referida mudaram

indubitavelmente para sempre o curso da vida de Strauss e pode-se dizer que tal

mudanccedila de curso deu novos contornos ao seu pensamento o que se desvela como fator

decisivo para o entendimento da construccedilatildeo de sua obra intelectual Ora com a ascenccedilatildeo

do nacional socialismo alematildeo em 1933 Strauss por sua descendecircncia judaica se tornara

persona nom grata em plena terra natal Diante deste cenaacuterio fugir para longe dali assim

como deixar parentes e amigos para traacutes se configurou como uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia A exemplo de outros germans eacutemigreacutes como Arendt Voegelin Loumlwith e

vaacuterios outros que fugiram da perseguiccedilatildeo de cunho antissemita que se propagou pela

Europa Strauss recebeu natildeo apenas exiacutelio nos EUA mas uma nova paacutetria que o acolheu

e forneceu as condiccedilotildees necessaacuterias para a continuaccedilatildeo e posterior florescimento de um

edifiacutecio intelectual grandioso3

Assim levando em conta esses elementos nosso objetivo aqui seraacute o de tentar

refletir agrave luz das contribuiccedilotildees deste filoacutesofo poliacutetico sobre algumas importantes e difiacuteceis

questotildees acerca da ascensatildeo e legitimaccedilatildeo dos regimes totalitaacuterios e das poliacuteticas

extremas da primeira metade do seacuteculo passado no intuito de refletir acerca de algumas

questotildees centrais como quais fatores causaram isso Como todos foram convencidos

Quem autorizou esses regimes Que fatores emocionais contribuiacuteram para tal

Evidentemente natildeo eacute a pretensatildeo do presente ensaio responder a cada uma dessas

questotildees de forma exaustiva pois isso exigiria a efetuaccedilatildeo de desenvolvimentos analiacuteticos

que natildeo caberiam nos limites deste breve ensaio A nossa pretensatildeo aqui eacute ao contraacuterio

de certa maneira bem mais modesta o que natildeo quer dizer menos complexa qual seja

refletir a partir da visatildeo straussiana acerca das raiacutezes intelectuais que tornaram a crenccedila

2 Ver sobre isso VILLA D The Philosopher versus the Citizen Arendt Strauss and Socrates In VILLA D Politics Philosophy Terror Princeton Princeton University Press 1999 pp 155-179 3 Sobre a trajetoacuteria de Strauss ver BLOOM A ldquoLeo Strauss September 20 1889 ndash October 18 1973rdquo Political Theory v 2 no 4 (1974) p 372-392

61

nos regimes totalitaacuterios uma crenccedila consistente Sendo assim as questotildees

supramencionadas nos serviratildeo portanto de fio condutor e de objeto para nossa

abordagem

Como jaacute foi mencionado anteriormente tentaremos refletir acerca dessas

difiacuteceis questotildees tendo como horizonte norteador o pensamento filosoacutefico de Leo Strauss

Recorrendo a esse referencial straussiano tentaremos seguir outra direccedilatildeo ou melhor

tentaremos buscar outra forma de abordagem desse polecircmico assunto forma de

abordagem que de certa maneira natildeo se limite apenas a uma busca de culpados monstros

e criminosos Definitivamente o esforccedilo empreendido aqui tentaraacute ir aleacutem das

interpretaccedilotildees ordinaacuterias (historicizantes) comumente elaboradas que quase em sua

totalidade reduzem os debates acerca desse assunto a uma espeacutecie de ldquocaccedila agraves bruxasrdquo

ou de ldquodemonizaccedilatildeordquo do passado ou se se preferir de crucificaccedilatildeo dos culpados

procedimento que quase sempre com rariacutessimas exceccedilotildees desemboca em um

anacronismo de caraacuteter totalmente maniqueiacutesta Definitivamente natildeo eacute esse nosso

objetivo aqui

Neste sentido no que diz respeito ao fenocircmeno dos totalitarismos Strauss

parece ser bastante realista evitando assim o jaacute mencionado reducionismo histoacuterico De

toda sorte o professor de Chicago natildeo busca culpados mas tenta compreender a

totalidade do fenocircmeno em seus vaacuterios desdobramentos Seguindo esta orientaccedilatildeo

tentaremos antes de tudo entender o tipo de sociedade e o tipo de homem que surge com

o advento da modernidade Ora para Strauss para compreender minimamente os fatores

que geraram a conditio sine qua non que guiou o mundo agrave loucura de duas guerras

mundiais e ao banho de sangue que marcam o seacuteculo XX tal compreensatildeo soacute eacute possiacutevel

se entendermos a raison decirctre das ideologias que brotam com a consolidaccedilatildeo das ciecircncias

modernas Para Strauss parece claro que os valores e crenccedilas cultivados pelo homem

moderno ou pelo Zeitgeist da modernidade4 quais sejam as crenccedilas no ldquomito do

progressordquo no racionalismo exacerbado e na supervalorizaccedilatildeo da ciecircncia e da teacutecnica

somadas ao forte sentimento de ovaccedilatildeo das identidades nacionais (volkgeist) e clamor de

teorias igualitaristas de caraacuteter fortemente salviacutefico e messiacircnico foram alguns dos

elementos necessaacuterios para a configuraccedilatildeo dos eventos nefastos que estariam por eclodir

Observando esses elementos Strauss julga que sua combinaccedilatildeo estava fadada a culminar

no espetaacuteculo mais brutal da histoacuteria

4 Ler sobre isso ROSEN Stanley Leo Strauss and the Problem of the Modern In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 119-136

62

Dando desenvolvimento agrave nossa anaacutelise podemos dizer que na medida em

que a experiecircncia das poliacuteticas extremas marca de forma decisiva a filosofia poliacutetica de

Leo Strauss natildeo nos surpreende que o mesmo tenha dedicado parte de sua obra ao tema

da perseguiccedilatildeo e ao problema das relaccedilotildees entre a poliacutetica e a filosofia no intuito de

evidenciar o conflito entre o filoacutesofo e a cidade5 e com isso ressaltar a periculosidade

das ideias filosoacuteficas quando transformadas em um instrumento meramente pragmaacutetico e

poliacutetico isto eacute quando convertidas em uma praacutetica mundana ativista e interessada

levada agraves uacuteltimas consequecircncias Embora Strauss natildeo possua nenhuma obra dedicada

exclusivamente ao tema dos totalitarismos esse tema natildeo obstante aparece ora

tacitamente ora explicitamente em muitos de seus escritos de forma fragmentaacuteria o que

natildeo diminui o seu rigor filosoacutefico no trato do assunto sobretudo no que diz respeito ao

trabalho de compreensatildeo do nazismo do fascismo e do comunismo entre outros assuntos

anaacutelogos Pode-se dizer assim que Strauss em sua carreira intelectual se dedicou de

forma comprometida e insistente a uma aguda reflexatildeo acerca do fenocircmeno totalitaacuterio o

qual pretendeu caracterizar com o nome de ldquotirania modernardquo Ora tal dedicaccedilatildeo

consequentemente lhe rendeu uma fecunda e frutiacutefera produccedilatildeo de escritos que nos

oferecem interpretaccedilotildees seacuterias e sobretudo capazes de insights originais

A Modernidade e a Gecircnese do ideal totalitaacuterio

Na carreira intelectual de Strauss eacute facilmente constatado em suas obras sua

insistecircncia no tema da ldquocrise da modernidaderdquo ou no que ele veio a chamar de ldquocrise de

nosso tempordquo ou ldquocrise da civilizaccedilatildeo ocidentalrdquo De fato estes termos satildeo comuns e

aparecem de forma visiacutevel em seus escritos Ao ver de Strauss a pretensatildeo de construccedilatildeo

de um mundo melhor fundado unicamente pela racionalidade livre das desigualdades e

das mazelas humanas um paraiacuteso construiacutedo neste mundo atraveacutes da ciecircncia e do advento

da razatildeo filosoacutefica se mostrou como um empreendimento problemaacutetico por ser resultado

de um desejo ingecircnuo e imprudente que gerou consequecircncias catastroacuteficas para

humanidade fracassando em suas principais promessas6 Ainda neste mesmo sentido

vale observar que para Strauss esta crise foi diagnosticada adequadamente no tempo da

5 Sobre isso considerar a introduccedilatildeo e o capiacutetulo I de STRAUSS L Perseguiccedilatildeo e a arte de escrever e outros ensaios de filosofia poliacutetica Trad Hugo Lagone ndash 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 pp17-30 6 Ler sobre isso STRAUSS L The City and Man Chicago The University of Chicago Press 1992 (1964) p 1-12

63

primeira guerra mundial pelo historiador alematildeo Oswald Spengler como a decadecircncia ou

decliacutenio do Ocidente Tal fenocircmeno estaacute associado em consideraacutevel medida com a perda

dos desiacutegnios ou melhor com a perda de direccedilatildeo dos homens que fazem parte da

civilizaccedilatildeo ocidental7 Sobre isso Strauss explica que A crise da modernidade se revela no fato ou consiste no fato de que o homem ocidental moderno natildeo sabe mais o que ele quer - que ele natildeo acredita mais que possa saber o que eacute o bem e o mal o que eacute o certo e o errado Ateacute poucas geraccedilotildees atraacutes era geralmente tido como garantido que o homem poderia saber o que eacute o certo e o errado o que eacute o justo ou o bem ou a melhor ordem social ndash em suma acreditava-se que a filosofia poliacutetica era possiacutevel e necessaacuteria Em nosso tempo essa crenccedila perdeu seu poder8

Dito isto Strauss nos mostra toda problematicidade relacionada ao advento

da decadecircncia da filosofia poliacutetica a partir dos uacuteltimos focirclegos da modernidade Para ele

a ascensatildeo e consolidaccedilatildeo de correntes de pensamento como o positivismo e o

historicismo teriam eclipsado completamente a possibilidade da filosofia poliacutetica se natildeo

a possibilidade da proacutepria filosofia9 Mas que relaccedilatildeo existiria entre a ldquomorte da filosofia

poliacuteticardquo e o surgimento e legitimaccedilatildeo dos regimes totalitaacuterios Ora para responder a essa

importante questatildeo eacute necessaacuterio esclarecer antes de mais nada que para Strauss esses

dois acontecimentos estatildeo intrinsecamente ligados uma vez que para o filoacutesofo a crise da

civilizaccedilatildeo ocidental estaacute intimamente conectada com o fenocircmeno do niilismo moderno

Todavia o niilismo eacute um dos aspectos mais corrosivos e devastadores que implode o

edifiacutecio moral do establishment social do Ocidente porque ataca diretamente a tradiccedilatildeo

e todos os valores e verdades morais sobre os quais a sociedade ocidental ateacute entatildeo se

assentou

Diante disso o niilismo desvelado pelas correntes racionalistas oriundas do

pensamento moderno jaacute citadas a saber o positivismo e o historicismo tornou acessiacutevel

ao homem comum toda falta de sentido e orientaccedilatildeo da vida humana Este fenocircmeno na

7 STRAUSS L An Introduction to Political Philosophy Ten essays by Leo Strauss [Ed Hilail Gildin] Detroit Wayne State University Press 1989 p 81-82 8 Ibidem p 81 ldquoThe crisis of modernity reveals itself in the fact or consists in the fact that modern western man no longer knows what he wants ndash that he no longer believes that he can know what is good and bad what is right and wrong Until a few generations ago it was generally taken for granted that man can know what is right and wrong what is just or the good or the best order of society ndash in a word that political philosophy is possible and necessary In our time this faith has lost its powerrdquo (Traduccedilatildeo livre) 9 Cf STRAUSS L Direito natural e histoacuteria Trad Bruno Costa Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 p 17-18

64

visatildeo de Strauss acabou com qualquer possibilidade de se distinguir entre o bem e o mal

o justo e o injusto o certo e o errado entre outros valores que possibilitariam a busca

racional do melhor regime ou da boa sociedade assim como quae optimae leges quae

optimae respublica Sendo assim o vaacutecuo deixado pelo niilismo e pelo caraacuteter

estritamente cientiacutefico caracteriacutestico da modernidade gerou as bases necessaacuterias para uma

mudanccedila radical na mentalidade do homem comum cultivando um terreno feacutertil para a

consolidaccedilatildeo de ideologias e crenccedilas de construccedilatildeo da sociedade perfeita a qualquer

custo no seio do imaginaacuterio popular Sendo entatildeo a construccedilatildeo de uma sociedade

perfeita algo possiacutevel atraveacutes da racionalidade cientiacutefico-filosoacutefica uacutenica e

exclusivamente qualquer projeto poliacutetico poderia ser de fato confabulado sobretudo

apoiado e legitimado por maioria popular o que torna os meios para alcanccedila-lo algo de

segundo plano ou sem importacircncia alguma diante de seus fins a saber um ganho social

grandioso e inestimaacutevel10

Ora para Strauss o cientificismo moderno eacute responsaacutevel por uma ruptura

radical com o modo antigo ou preacute-moderno de ver o mundo qualquer explicaccedilatildeo

metafiacutesica ou religiosa perdeu completamente seu esteio diante das respostas

paradigmaacuteticas que surgem com os avanccedilos incontestaacuteveis da nuova scienza Diante

disto paulatinamente essa substituiccedilatildeo das verdades morais pela cientificidade (neutra

em relaccedilatildeo a valores) abriu a brecha necessaacuteria para o esvaziamento de sentido da

existecircncia humana e levou consequentemente ao desenvolvimento de um galopante e

devastador relativismo nos mais variados acircmbitos das sociedades ocidentais

contemporacircneas11 Assim os regimes totalitaacuterios teriam aparecido como alternativa de

preenchimento deste vaacutecuo na maioria dos casos impulsionados por um discurso

carismaacutetico e substancialmente moralista marcado por um pathos salviacutefico e gerador de

uma caricatura messiacircnica defensora da classe trabalhadora da famiacutelia da igualdade e

do amor patrioacutetico De fato em vaacuterias partes do mundo a crenccedila nas poliacuteticas extremas e

na figura do chefe nacional do liacuteder ou do pai acolhedor foi o fio de esperanccedila que

iluminaria o caminho do povo rumo a um futuro de progresso prosperidade e abundacircncia

Vale dizer que os totalitarismos surgem e ganham muita forccedila em um periacuteodo

de muitas dificuldades sociais e econocircmicas De fato sabe-se que o periacuteodo entre guerras

em paiacuteses como Alemanha e Itaacutelia eacute caracterizado por grandes dificuldades financeiras

humilhaccedilatildeo (como o tratado de Versalhes por exemplo) e descrenccedila em todas as

10 Cf STRAUSS L What is Political Philosophy Chicago University of Chicago Press 1988 p 26-27 11 Ler o que Strauss diz sobre isso em STRAUSS L Direito Natural e Histoacuteria pp 43-96

65

instituiccedilotildees representativas Neste contexto qualquer aspiraccedilatildeo liberal ou democraacutetica jaacute

natildeo fazia mais sentido nenhum no contexto do caos vivido nas sociedades Europeias do

periacuteodo poacutes-primeira guerra As sociedades ocidentais pareciam sinalizar ter assim

perdido seu norte o que fez a crenccedila nas ideologias ldquosalvadorasrdquo da naccedilatildeo parecer uma

saiacuteda real elemento que se configurou como necessaacuterio para a ascensatildeo de poliacuteticas

extremas com forte aprovaccedilatildeo e clamor popular

Sendo assim para Strauss os tristes episoacutedios que deram contornos ao

espetaacuteculo de horror da primeira metade do seacuteculo XX natildeo se explicam exclusivamente

como produto de mentes moacuterbidas ou de personalidades problemaacuteticas donas dos mais

soacuterdidos desejos Na verdade a experiecircncia totalitaacuteria seria um fenocircmeno social e poliacutetico

complexo e de difiacutecil compreensatildeo sobretudo quando levamos em consideraccedilatildeo a

aprovaccedilatildeo da maioria popular Para Strauss como jaacute foi mencionado anteriormente a

permissatildeo popular para a consolidaccedilatildeo dos totalitarismos eacute em consideraacutevel sentido

consequecircncia do niilismo moderno efeito de um vazio ou de uma falta de sentido total

para a vida humana o qual se explica pelo eclipse da metafiacutesica e das explicaccedilotildees

teoloacutegicas Sobre isso a comentadora canadense Shadia Drury explica que na visatildeo de

Strauss O Ocidente estaacute em decliacutenio por que se tornou presa do niilismo O niilismo eacute simplesmente a crenccedila que todos os valores ou fins satildeo de igual valia ou que natildeo existe nada intrinsecamente mais nobre ou bom em detrimento de outro Os valores de nossa proacutepria civilizaccedilatildeo natildeo satildeo superiores a nenhum outro por que todos os valores satildeo igualmente infundados e assim igualmente sem valia Todos os valores satildeo convenccedilotildees ideologias interpretaccedilotildees ficccedilotildees ou produtos da vontade de poder Niilismo eacute uma profunda indiferenccedila com as distinccedilotildees entre bem e mal nobre e baixo12

Ainda de acordo com Drury Strauss natildeo estaacute sugerindo que para ser saudaacutevel

uma sociedade deve acreditar na viabilidade de uma sociedade universal e proacutespera

Antes a visatildeo straussiana eacute de que a higidez de uma ordem social depende do fato de que

ela acredite em seus proacuteprios ideais e princiacutepios13 Natildeo obstante se o niilismo moderno eacute

12 DRURY S The Political Ideas of Leo Strauss Updated Edition Lexington Palgrave Macmillan 2005 (1987) p 162 ldquoThe West is in decline because it has fallen prey to nihilism Nihilism is simply the belief that all values or ends are of equal worth or that there is nothing intrinsically more noble or good than any other The values of our own civilization are not superior to those of any other because all values are equally groundless and hence equally worthless All values are conventions ideologies interpretations fictions or products of will to power Nihilism is a profound indifference to the distinctions between good and evil noble and baserdquo (Traduccedilatildeo livre) 13 Cf Ibidem p 162

66

a fonte desta falta de sentido ou desta falta de direccedilatildeo dos homens a raiz do problema

estaria na questatildeo como o niilismo foi desvelado Para Strauss a fonte do niilismo

moderno ou de seu desvelamento estaacute no historicismo ou no forte caraacuteter idealista do

pensamento moderno como jaacute podemos perceber na criacutetica de FH Jacobi ao idealismo

Alematildeo14 Antes de Nietzsche Jacobi em suas Cartas sobre o Niilismo apontou assim

para os perigos do niilismo moderno Observando isso percebemos que natildeo eacute agrave toa que

Strauss agraves vezes usa os termos historicismo niilismo e relativismo como sinocircnimos como

se ele descrevesse um ou o mesmo fenocircmeno15 Portanto para ele (Strauss) o historicismo

eacute amplamente responsaacutevel pelo niilismo moderno ou por seu desvelamento e assim pela

crise moderna16

O Niilismo alematildeo e o Nacional Socialismo

O fenocircmeno dos totalitarismos por motivos oacutebvios natildeo eacute de fato um

fenocircmeno exclusivamente alematildeo de forma que natildeo se trata aqui de reduzir esses

acontecimentos ao contexto da histoacuteria alematilde No entanto para que natildeo fiquemos

caminhando em ciacuterculos neste momento nos deteremos em uma expressatildeo fundamental

na visatildeo de Strauss para a compreensatildeo de um fenocircmeno ainda mais primevo e central a

saber o niilismo alematildeo17

Para Strauss a ascensatildeo do nacional socialismo alematildeo eacute antes de tudo uma

consequecircncia de um fenocircmeno muito maior e complexo chamado niilismo alematildeo Para

Strauss o niilismo tem raiacutezes muito mais profundas que os discursos de Hitler a derrota

da Alemanha na Guerra Mundial e tudo que se relaciona com isso18 O nacional

socialismo seria entatildeo apenas uma forma politizada de niilismo uma forma de niilismo

vulgar que se tornou mais famosa e popular Decerto a fim de iluminar nosso caminho

em direccedilatildeo a uma melhor compreensatildeo deste fenocircmeno devemos entender de forma mais

adequada o que eacute niilismo Ora esclarece Strauss por niilismo entenda-se o velle nihil o

querer o nada ou a vontade de nada a destruiccedilatildeo de tudo inclusive de si mesmo e

14 Ler JACOBI Friedrich Heinrich Cartas a Mendelssohn David Hume Carta a Fichte Trad Joseacute Luis Villacantildeas Barcelona Ciacuterculo de Lectores 1996 15 DRURY S The Political Ideas of Leo Strauss p 163 16 Ibidem p 163 17 Strauss possui um longo e esclarecedor ensaio sobre esse assunto escrito em 1941 em plena Segunda Guerra Mundial no iniacutecio de seu exiacutelio nos EUA este ensaio foi publicado mais recentemente pela Interpretation ndash a journal of political philosophy em 1999 Consultar STRAUSS L German Nihilism Editado por David Janssens e Daniel Tanguay Interpretation Spring 1999 vol 26 ndeg 3 18 STRAUSS L German Nihilism p 357

67

portanto primariamente a vontade de autodestruiccedilatildeo19 Esse sintoma se revelaria na

corrida armamentista caracteriacutestica do fim do seacuteculo XIX e comeccedilo do seacuteculo XX o que

resulta segundo Strauss na radicalizaccedilatildeo do Militarismo e do fortalecimento de valores

beacutelicos (Warlike ideals)

Entretanto para Strauss o niilismo alematildeo natildeo eacute um niilismo absoluto isto

eacute o desejo de destruiccedilatildeo de tudo inclusive de si mesmo mas a destruiccedilatildeo de algo

especiacutefico da civilizaccedilatildeo moderna20 Mas isso torna o niilismo alematildeo quase um niilismo

absoluto pois embora o niilismo alematildeo fosse por assim dizer um tipo limitado de

niilismo sua negaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo moderna natildeo eacute guiada ou acompanhada por nenhuma

concepccedilatildeo positiva clara21 O problema ou o mal-estar que gera o niilismo alematildeo eacute um

problema de caraacuteter moral22 Sendo assim o moralismo eacute um sintoma preponderante e

decisivo dos discursos totalitaacuterios como o proacuteprio Strauss explica na seguinte passagem

O niilismo alematildeo deseja a destruiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo moderna como tal a civilizaccedilatildeo tem um significado moral Como qualquer um sabe ele natildeo faz muita objeccedilatildeo aos artifiacutecios da teacutecnica moderna Este significado moral da civilizaccedilatildeo moderna ao que os niilistas alematildees se opotildeem eacute expresso em formulaccedilotildees tal como estas para socorrer o estado de homem ou para salvaguardar os direitos do homem ou a maior felicidade possiacutevel do maior nuacutemero possiacutevel Qual eacute o motivo subjacente do protesto contra a civilizaccedilatildeo moderna contra o espiacuterito do ocidente e em particular do ocidente anglo-saxatildeo23

Apresentado tal questionamento o fator a ser levantado e melhor esclarecido

a partir daqui eacute entatildeo por que o Ocidente seria um inimigo maior a ser destruiacutedo Ora

para Strauss

A resposta deve ser eacute um protesto moral Este protesto procede da convicccedilatildeo que o internacionalismo inerente agrave civilizaccedilatildeo moderna ou mais precisamente que o estabelecimento de uma sociedade perfeitamente aberta como eacute a meta da civilizaccedilatildeo moderna e portanto todas as aspiraccedilotildees dirigidas em direccedilatildeo a esta meta satildeo irreconciliaacuteveis

19 Ibidem p 357 20 Ibidem p 357 21 Ibidem p 357 22 Ler sobre isso SHELL Susan ldquoTo Spare the Vanquished and Crush the Arrogantrdquo Leo Straussrsquos Lecture on ldquoGerman Nihilismrdquo In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 171-192 23 Ibidem p 358 ldquoGerman nihilism desires the destruction of modem civililsquosrsquoation as far as modern civililsquosrsquoation has a moral meaning As everyone knows it does not object so much to modem technical devices That moral meaning of modem civilization to which the German nihilists object is expressed in formulations such as these to relieve mans estate or to safeguard the rights of man or the greatest possible happiness of the greatest possible number What is the motive underlying the protest against modem civilisation against the spirit of the West and in particular of the Anglo-Saxon Westrdquo (Traduccedilatildeo livre)

68

com as demandas baacutesicas da vida moral O protesto procede da convicccedilatildeo que a raiz de toda vida moral eacute essencialmente e portanto eternamente a sociedade fechada da convicccedilatildeo que a sociedade aberta estaacute fadada a ser se natildeo imoral no miacutenimo amoral o lugar de encontro dos perseguidores do prazer do lucro do poder irresponsaacutevel de fato de qualquer tipo de irresponsabilidade e falta de seriedade24

Dito isto percebe-se que ao ver de Strauss o rechaccedilo agrave cultura ocidental

constroacutei as bases de seu edifiacutecio a partir de um argumento de cunho moral Nesse sentido

ldquoo niilismo alematildeo eacute uma forma radicalizada de militarismo alematildeordquo mais precisamente

um conflito que apenas a priori e de certa maneira aparece como uma guerra de

princiacutepios e que paulatinamente se configura como um sentimento de amor agrave guerra De

fato as emoccedilotildees e os sentimentos gerados no acircmago do povo pelos fatiacutedicos

acontecimentos relacionados agrave Guerra Mundial ao vazio e total falta de sentido

caracteriacutestico do mundo poacutes-guerra parecem ter achado um terreno feacutertil para o cultivo

da paixatildeo pela destruiccedilatildeo do mundo da forma que se apresentara A paixatildeo pelo novo e a

ruptura com o passado ou melhor a destruiccedilatildeo da tradiccedilatildeo para a construccedilatildeo de algo

totalmente novo um novo que teria como fim a redenccedilatildeo o Estado perfeito a paz O

preccedilo por esse esplendor entatildeo foi visto como incomensuraacutevel e o meio soacute seria possiacutevel

atraveacutes das armas atraveacutes da guerra total Nesse sentido Strauss afirma que

indubitavelmente

ningueacutem poderia estar satisfeito com o mundo poacutes-guerra A democracia liberal alematilde de todas as descriccedilotildees parecia para muitas pessoas ser absolutamente incapaz de lidar com as dificuldades com as quais a Alemanha foi confrontada25

Sendo assim para Strauss uma atmosfera de desconfianccedila e incredulidade

com relaccedilatildeo a qualquer regime de aspiraccedilatildeo democraacutetica se tornara ainda mais forte com

o passar do tempo e em virtude do abismo social em que Alemanha se encontrara Ainda

nesse mesmo sentido essa atmosfera contribuiu diretamente segundo Strauss para o

24 Ibidem p 358 ldquoThe answer must be it is a moral protest That protest proceeds from the conviction that the internationalism inherent in modem civililsquosrsquoation or more precisely that the establishment of a perfectly open society which is as it were the goal of modem civililsquosrsquoation and therefore all aspirations directed toward that goal are irreconcilable with the basic demands of moral life That protest proceeds from the conviction that the root of all moral life is essentially and therefore eternally the closed society from the conviction that the open society is bound to be if not immoral at least amoral the meeting ground of seekers of pleasure of gain of irresponsible power indeed of any kind of irresponsibility and lack of seriousnessrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 25 Ibidem p 359 ldquoNo one could be satisfied with the post-war world German liberal democracy of all descriptions seemed to many people to be absolutely unable to cope with the difficulties with which Germany was confrontedrdquo (Traduccedilatildeo livre)

69

surgimento de um profundo preconceito ou para a confirmaccedilatildeo de um profundo

preconceito jaacute existente contra a democracia liberal26 Diante deste cenaacuterio duas

alternativas agrave democracia liberal foram abertas a primeira aparentemente pretendia

retornar a um contexto preacute-guerra a segunda por outro lado via nos acontecimentos do

presente o prenuacutencio da revoluccedilatildeo ou o caminho rumo agrave revoluccedilatildeo uma consequente e

inevitaacutevel nova guerra mundial Com efeito esta segunda alternativa pareceu mais

interessante ao povo alematildeo na medida em que estava sustentada numa crenccedila jaacute

envelhecida em ldquoum levante do proletariado e dos estratos proletaacuterios da sociedade que

conduziria ao desaparecimento do Estado agrave sociedade sem classes agrave aboliccedilatildeo de toda

exploraccedilatildeo e injusticcedila agrave era da paz finalrdquo27 Portanto ldquofoi essa perspectiva pelo menos

tanto quanto o presente desesperado que conduziu ao niilismordquo28

Neste contexto ldquoa perspectiva de um planeta pacificado sem opressores e

oprimidos de uma sociedade devotada agrave produccedilatildeo e consumo apenasrdquo29 foi amplamente

acreditada mas natildeo como processo paulatino e sim para jaacute a partir da crenccedila de que isso

podia ser construiacutedo aqui e agora se tornou predominante para grande parte da juventude

alematilde certamente pelo fato de estarem os jovens preocupados com suas proacuteprias posiccedilotildees

social e econocircmica30 Mas isso por outro lado gerou uma espeacutecie de ldquoateiacutesmo juvenilrdquo

no mundo tal como se apresentara o que acabou por tornar as alternativas intoleraacuteveis

pelo jovem alematildeo Com efeito se por um lado a democracia liberal natildeo inspirava

confianccedila Strauss explica que por outro

o que para os comunistas parecia o cumprimento do sonho da humanidade parecia para os jovens alematildees como a maior degradaccedilatildeo da humanidade como a vinda do fim da humanidade como a chegada do ultimo homem31

Embora a juventude alematilde natildeo soubesse bem o que queriam construir no

lugar do presente ela estava compelida a destruir o mundo tal como era levada por aquilo

26 Ibidem p 359 27 Ibidem p 359-360 ldquohellipa rising of the proletariat and of the proletarianized strata of society which would usher in the withering away of the State the classless society the abolition of all exploitation and injustice the era of final peacerdquo (Traduccedilatildeo livre) 28 Ibidem p 360 ldquoIt was this prospect at least as much as the desperate present which led to nihilismrdquo (Traduccedilatildeo livre) 29 Ibidem p 360 ldquoThe prospect of a pacified planet without rulers and ruled of a planetary society devoted to production and consumption onlyhelliprdquo (Traduccedilatildeo livre) 30 Ibidem p 360 31 Ibidem p 360 ldquoWhat to the communists appeared to be the fulfilment of the dream of mankind appeared to those young Germans as the greatest debasement of humanity as the coming of the end of humanity as the arrival of the latest manrdquo (Traduccedilatildeo livre)

70

que Strauss nomeia como ldquoonda do futurordquo (wave of the future) ndash mesmo que a ideia de

futuro natildeo fosse nada clara ou talvez nem mesmo existisse

Para Strauss o que estaacute em jogo eacute o fato de que a juventude alematilde natildeo

acreditava mais na possiblidade dos instrumentos poliacuteticos e ideoloacutegicos de seu tempo

por que foram de fato instrumentos forjados pelos homens velhos A emancipaccedilatildeo dos

jovens eacute uma caracteriacutestica central da Alemanha poacutes-primeira guerra E se o idealismo

alematildeo caminhou em direccedilatildeo ao teiacutesmo ou ao panteiacutesmo nesse novo momento essa

juventude seraacute tomada por um sentimento ateiacutesta Segundo Strauss isso se daacute pela

influecircncia radical do pensamento de Schopenhauer e sobretudo de Nietzsche sobre a

mente do jovem alematildeo do periacuteodo poacutes-primeira guerra Nesse sentido o proacuteprio Strauss

faz a seguinte colocaccedilatildeo ldquoSchopenhauer foi no meu conhecimento o primeiro filoacutesofo

alematildeo natildeo materialista e conservador que professou abertamente seu ateiacutesmordquo32 No

entanto para Strauss a influecircncia de Schopenhauer em nada se compara com o poder e o

fasciacutenio exercido pelo pensamento de Nietzsche sobre parte da juventude alematilde33 Ora

segundo Strauss ldquoNietzsche afirmou que a aceitaccedilatildeo ateiacutesta natildeo eacute reconciliaacutevel com mas

indispensaacutevel para uma poliacutetica antidemocraacutetica antissocialista e antipacifista de acordo

com ele toda crenccedila comunista eacute apenas uma forma de teiacutesmo de crenccedila na

providecircnciardquo34

Mas como sabemos Nietzsche jaacute estava morto haacute algumas deacutecadas No

entanto o sucesso e a propagaccedilatildeo de suas ideias dependia da explicaccedilatildeo dos grandes

professores da eacutepoca (e em alguns casos especiacuteficos de sua deturpaccedilatildeo) natildeo menos que

nomes como os de Spengler Moeller van den Bruck Carl Schmitt Ernst Junger e

Heidegger entre outros segundo Strauss teriam aberto de forma consciente ou natildeo um

caminho para Hitler35 Diante disso o nazismo surgiu como resposta ao vazio radical

vivido por uma juventude niilista Um fio de esperanccedila que seria anunciada por um ceacuteu

nebuloso e obscuro seguido de uma tempestade devastadora que seria semelhante ao fim

do mundo mas que na verdade deveria ser compreendida como o fim de uma era

32 Ibidem p 361 ldquoSchopenhauer was to my knowledge the first non-materialist and conservative German philosopher who openly professed his atheismrdquo (Traduccedilatildeo livre) 33 O proacuteprio Strauss em suas correspondecircncias com Karl Loumlwith fala sobre seu fasciacutenio pela obra de Nietzsche quando jovem afirma que entre seus 20 e 30 anos de idade foi ldquoenfeiticcediladordquo pelas palavras daquele homem chegando a acreditar em tudo que conseguia entender de Nietzsche Cf Leo Strauss to Karl Loumlwith 23 June 1935 in ―Correspondence of Karl Loumlwith and Leo Strauss trans George Elliot Tucker Independent Journal of Philosophy 56 (1988) 182ndash83 34 Ibidem p 361-362 ldquoNietzsche asserted that the atheist assumption is not only reconcilable with but indispensable for a radical anti-democratic anti-socialist and anti-pacifist policy according to him even the communist creed is only a secularized form of theism of the belief in providencerdquo (Traduccedilatildeo livre) 35 Cf Ibidem p 362

71

Com efeito explica Strauss que ldquose o niilismo eacute a rejeiccedilatildeo dos princiacutepios da

civilizaccedilatildeo como tal e se a civilizaccedilatildeo eacute baseada no reconhecimento do fato que o sujeito

da civilizaccedilatildeo eacute o homem como homem toda interpretaccedilatildeo da ciecircncia e moral em termos

de raccedila ou naccedilotildees ou de culturas eacute estritamente niilistardquo36 De fato ela estaraacute sempre

dentro de um contexto histoacuterico relativo e determinado por vaacuterios fatores quais sejam

local eacutepoca e os desenvolvimentos de cada cultura Portanto o que Strauss tenta mostrar

eacute que haacute uma distinccedilatildeo entre dois tipos de niilismo o niilismo em geral e o niilismo

alematildeo O niilismo em geral rejeita os valores humanos a civilizaccedilatildeo como um todo o

niilismo alematildeo por sua vez rejeita o ideal moderno de civilizaccedilatildeo rejeita um tipo

especiacutefico de civilizaccedilatildeo37 por isso acredita na guerra crenccedila esta alimentada por um

pathos salviacutefico De fato o niilismo alematildeo rejeita os princiacutepios da civilizaccedilatildeo tal como

eacute em favor da guerra e da conquista em favor das virtudes guerreiras O niilismo alematildeo

eacute portanto parente do militarismo alematildeo38

A Ciecircncia Poliacutetica Moderna e a ldquoTirania de nossos temposrdquo

De acordo com Strauss a ciecircncia poliacutetica moderna eacute niilista porque

abandonou o seu objetivo normativo mais alto de fato o seu caraacuteter deontoloacutegico morreu

com os antigos os quais foram acusados pelos pensadores modernos de serem

demasiados utoacutepicos ou se se preferir ingenuamente romacircnticos Isso significa que a

ciecircncia poliacutetica morreu quando abdicou da exigecircncia de refletir seriamente sobre o melhor

regime e sobre a necessidade de se buscar racionalmente a verdade acerca do bem do

justo e do belo Portanto a ciecircncia poliacutetica morreu quando abdicou da tarefa de legislar

para apenas descrever Em outras palavras a ciecircncia poliacutetica moderna abandonou o ideal

antigo e sua busca pelo ldquodever serrdquo e pelas virtudes para se limitar a dizer ldquoo que eacuterdquo Tal

postura supostamente mais realista surge jaacute no tempo da renascenccedila segundo Strauss eacute

com Maquiavel de fato que brotam as raiacutezes do plano poliacutetico moderno39 Poreacutem mesmo

sendo o autor de O Priacutencipe o responsaacutevel direto por uma negaccedilatildeo radical da filosofia

36 Ibidem p 366 ldquoIf nihilism is the rejection of the principles of civilisation as such and if civilisation is based on recognition of the fact that the subject of civilisation is man as man every interpretation of science and morals in terms of races or of nations or of cultures is strictly speaking nihilisticrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 37 Cf Ibidem p 367 38 Ibidem p 369 ldquoGerman nihilism rejects then the principles of civilisation as such in favor of war and conquest in favor of the warlike virtues German nihilism is therefore akin to German militarismrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 39 Cf STRAUSS L What is Political Philosophy And Other Studies p 40

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poliacutetica tal como era concebida por Platatildeo e Aristoacuteteles eacute Hobbes o grande mentor

intelectual da modernidade uma vez que eacute Hobbes que aplicando o meacutetodo matemaacutetico

agrave filosofia poliacutetica elevou a filosofia poliacutetica ao status de ciecircncia em sua acepccedilatildeo

moderna

De fato para Strauss a filosofia poliacutetica moderna possui suas bases na

exatidatildeo matemaacutetica isto eacute num conhecimento indiferente agraves paixotildees humanas Poreacutem

a opiniatildeo quase sempre possui sua origem em alguma paixatildeo humana e por ser assim a

filosofia poliacutetica a partir da modernidade teria se tornado incapaz de refletir sobre as

coisas poliacuteticas no seu acircmbito mais originaacuterio que eacute justamente o acircmbito da opiniatildeo

Segundo Strauss isso explicaria por que a filosofia poliacutetica moderna teria se tornado

incapaz de compreender entre outras coisas o fenocircmeno da tirania40 Esse fato

justificaria talvez a insistecircncia de Strauss em seu movimento de retorno aos preacute-

modernos a seu ver a ciecircncia poliacutetica tradicional possui elementos que possibilitam uma

melhor compreensatildeo do fenocircmeno da tirania jaacute que o mundo antigo conviveu durante

longos periacuteodos e de forma distinta sob a eacutegide desse tipo de regime Isso eacute perceptiacutevel

em sua obra On Tiranny41 (Sobre a Tirania) onde Strauss exerce uma leitura do Hieron

de Xonofonte referente ao diaacutelogo entre o tirano Hieron e o poeta Simonides sobre a

tirania e mesmo sob a forma de um diaacutelogo eleganter eacute possiacutevel perceber que o objetivo

de Strauss eacute refletir sobre a tirania do passado a fim de mostrar que a ciecircncia poliacutetica

moderna natildeo eacute capaz de compreender o fenocircmeno da tirania tal como ele se apresenta em

nosso tempo qual seja a experiecircncia totalitaacuteria Como podemos perceber no comentaacuterio

de Strauss Uma ciecircncia social que natildeo pode falar da tirania com a mesma propriedade com que a medicina fala por exemplo de cacircncer natildeo pode entender o fenocircmeno social tal o que ele eacute Isto eacute portanto natildeo cientiacutefico A ciecircncia social de nossos dias encontra-se nesta condiccedilatildeo Se for verdade que a ciecircncia social atual eacute o resultado inevitaacutevel da ciecircncia social moderna e da filosofia moderna uma delas eacute forccedilada a pensar a restauraccedilatildeo da ciecircncia social claacutessica Uma vez que noacutes aprendermos novamente com os claacutessicos o que eacute a tirania noacutes seremos capacitados e compelidos a diagnosticar com as tiranias um nuacutemero de regimes contemporacircneos que aparecem no disfarce das ditaduras Este diagnoacutestico pode apenas ser o primeiro passo em direccedilatildeo a uma anaacutelise

40 Cf STRAUSS L A Filosofia Poliacutetica de Hobbes Suas bases e sua gecircnese Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2016 p188 - 189 41 STRAUSS L On Tyranny Chicago The University of Chicago Press 2000

73

exata da tirania dos dias atuais pois a tirania dos dias atuais eacute fundamentalmente diferente da tirania analisada pelos claacutessicos42

Sendo assim logo de partida em primeiro lugar Strauss aponta para um

aspecto seminal que eacute o fato de que a tirania antiga e a tirania moderna satildeo distintas em

essecircncia jaacute que a perspectiva moderna de tirania tem como fundamentos preciacutepuos o mito

do progresso (ilimitado) e a conquista e dominaccedilatildeo total da natureza elementos que

representam algo que se opotildee diametralmente ao projeto de aprimoramento da vida e

correccedilatildeo das sociedades proposto pelas ciecircncias modernas Eis por que Strauss vecirc no

cientista social moderno uma figura vendada e incapaz de captar a essecircncia mesma do

que eacute a tirania Sobre isso Strauss afirma que

O fato de que existe uma diferenccedila fundamental entre a tirania claacutessica e a tirania dos dias atuais ou que os claacutessicos nem sonharam com a tirania atual natildeo eacute uma razatildeo boa ou suficiente para abandonar a referecircncia do sistema claacutessico Pois este fato eacute perfeitamente compatiacutevel com a possibilidade que a tirania dos dias atuais encontra seu lugar dentro do sistema claacutessico ie isto natildeo pode ser compreendido adequadamente exceto dentro da estrutura claacutessica A diferenccedila entre a tirania dos dias atuais e a tirania claacutessica tem sua raiz na diferenccedila entre a noccedilatildeo moderna de filosofia ou ciecircncia e a noccedilatildeo claacutessica de filosofia ou ciecircncia A tirania dos dias atuais em contradiccedilatildeo a tirania claacutessica eacute baseada no progresso ilimitado e na ldquoconquista da naturezardquo que se tornou possiacutevel atraveacutes da ciecircncia moderna assim como na popularizaccedilatildeo ou difusatildeo do conhecimento filosoacutefico ou cientiacutefico43

Ora embora Sobre a tirania seja apenas um comentaacuterio o insight filosoacutefico

trazido por ele eacute fecundo e original e se trata por assim dizer de uma criacutetica agrave maneira

42 STRAUSS L On Tyranny p 177 ldquoA social science that cannot speak of tyranny with the same confidence with which medicine speaks for example of cancer cannot understand social phenomena as what they are It is therefore not scientific Present-day social science finds itself in this condition If it is true that present-day social science is the inevitable result of modern social science and of modern philosophy one is forced to think of the restoration of classical social science Once we have learned again from the classics what tyranny is we shall be enabled and compelled to diagnose as tyrannies a number of contemporary regimes which appear in the guise of dictatorships This diagnosis can only be the first step toward an exact analysis of present ndashday tyranny for present-day tyranny is fundamentally different from the tyranny analyzed by the classicsrdquo (Traduccedilatildeo livre) 43 STRAUSS L On Tyranny p 177 ldquoA social science that cannot speak of tyranny with the same confidence with which medicine speaks for example of cancer cannot understand social phenomena as what they are It is therefore not scientific Present-day social science finds itself in this condition If it is true that present-day social science is the inevitable result of modern social science and of modern philosophy one is forced to think of the restoration of classical social science Once we have learned again from the classics what tyranny is we shall be enabled and compelled to diagnose as tyrannies a number of contemporary regimes which appear in the guise of dictatorships This diagnosis can only be the first step toward an exact analysis of present ndashday tyranny for present-day tyranny is fundamentally different from the tyranny analyzed by the classicsrdquo (Traduccedilatildeo livre)

74

por meio da qual a ciecircncia poliacutetica moderna lida com o fenocircmeno do totalitarismo Pois

para Strauss a pretensatildeo moderna de construccedilatildeo de uma repuacuteblica universal um estado

igualitaacuterio livre das desigualdades homogecircneo e feliz consiste na realidade na

consolidaccedilatildeo de uma tirania Portanto ainda na oacutetica straussiana a ciecircncia poliacutetica

moderna fez de sua utopia morada e ao fazer isso transformou a construccedilatildeo de seu

paraiacuteso um inferno de violecircncia e destruiccedilatildeo movida por ideais de mundo que de tatildeo

perfeitos cegaram a razatildeo abrindo passagem para oportunistas sanguinaacuterios

Em resumo Strauss indica uma resposta indireta ao problema se

posicionando inclusive no contexto da filosofia poliacutetica em relaccedilatildeo ao problema da

finitude e do esgotamento das formas poliacuteticas e ao fazer isso preserva o termo tirania

para descrever um fenocircmeno dos nossos tempos Importante observar a aposta de Strauss

de por meio de uma anaacutelise ou melhor atraveacutes da escuta atenta ao que os antigos tecircm a

nos dizer encontrar importantes ensinamentos sobre as tiranias antigas e modernas

valorizando o legado filosoacutefico dos escritores do passado cujas obras permitem iluminar

uma melhor compreensatildeo daquilo que podemos nomear como ldquoinvestidas tiracircnicas dos

nossos temposrdquo

Parece ter sido o esforccedilo de Strauss nos fazer refletir acerca do perigo das

promessas e dos mais lindos devaneios de redenccedilatildeo da razatildeo humana ou acerca das

pretensotildees das ideologias de transformar este mundo na morada perfeita para os homens

De fato como foi dito ainda na introduccedilatildeo deste ensaio natildeo era a intenccedilatildeo deste propor

nem mesmo uma iacutenfima interpretaccedilatildeo acerca dos acontecimentos funestos do breve mas

conturbado seacuteculo XX Talvez natildeo fosse apresentado algo de realmente novo e original

quase certamente que natildeo No entanto por outro lado o insight de Strauss que deve ser

colocado aqui no cerne da discussatildeo eacute que este filoacutesofo vivendo em plena guerra em seu

exiacutelio nos EUA conseguiu nos presentear com uma profunda reflexatildeo de sobriedade

incriacutevel encarando os fatos poliacuteticos catastroacuteficos do seacuteculo XX em seu alto grau de

complexidade e amplitude

Nesse sentido devemos meditar acerca da necessidade de estarmos sempre

em alerta frente ao perigo da crenccedila na poliacutetica como esperanccedila do risco sorrateiro que

rodeia e estaacute sempre agrave espreita dos discursos de caraacuteter salviacutefico de forte apelo

messiacircnico Em outras palavras essa crenccedila que sempre retorna nos momentos mais

difiacuteceis e que usa o grande clamor popular como instrumento de manobra para legitimar

suas ldquomelhores intenccedilotildeesrdquo e funciona muitas vezes como uma espeacutecie de guia das

75

multidotildees que sedentas por justiccedila e igualdade marcham rumo a um futuro proacutespero de

paz para todos os povos

De fato eacute a partir da memoacuteria dos acontecimentos do passado que devemos

estar conscientes do perigo de tais promessas sempre forjadas com um alto teor

racionalista Com isso seremos capazes de manter a desconfianccedila em relaccedilatildeo aos

fantasmas da histoacuteria lembrando que as grandes trageacutedias possuiacuteam quase sempre por

traacutes de si fortes evidecircncias de sua benevolecircncia baseada e garantida pela razatildeo Eacute para o

que nos alerta Roger Scruton de forma bastante contemporacircnea quando nos lembra que

ldquoa liquidaccedilatildeo dos Kulaks foi justificada pela lsquociecircncia marxistarsquo as doutrinas racistas dos

nazistas foram propostas como eugenia cientiacutefica e lsquoO Grande Salto para o Futurorsquo de

Mao Tseacute Tung foi considerado a simples aplicaccedilatildeo de leis comprovadas da histoacuteriardquo44

Ora esses satildeo alguns dos muitos acontecimentos catastroacuteficos que foram legitimados

escolhidos e executados em nome da razatildeo

Em suma o que Strauss tenta tornar patente por meio de uma reflexatildeo densa

e rigorosa eacute de fato o perigo que nos espreita quando a crenccedila na razatildeo se torna

edificante e pretende se fazer construtora de um mundo melhor ou ainda o risco contido

na transformaccedilatildeo da visatildeo fria do especialista em guia de uma sociedade Em outras

palavras trata-se da tentaccedilatildeo do otimismo racional que se aventura a prometer aquilo que

a racionalidade filosoacutefico-cientiacutefica em essecircncia natildeo eacute capaz de produzir45 a saber paz e

igualdade entre os homens se convertendo no contraacuterio ao mostrar seu lado sombrio e

seu elatilde destruidor Em ultima anaacutelise Strauss apesar de ter toda sua famiacutelia totalmente

destruiacuteda e sua vida quase ceifada de forma violenta e prematura natildeo se preocupou em

apontar culpados evitando a ordinaacuteria reductio ad Hitlerum (tatildeo comum entre

socioacutelogos historiadores e psicoacutelogos de nossa eacutepoca) mas tentou entender antes quais

os elementos e atores foram necessaacuterios para que a razatildeo se tornasse autodestrutiva

Inequivocamente eacute necessaacuterio observar o passado e estarmos atentos ao fato de que

sempre que algueacutem ou alguma classe social afirmou saber o caminho do melhor estava

ali a se desvelar a face horrenda de uma nova tirania

44 SCRUTON R As Vantagens do Pessimismo e o perigo da falsa esperanccedila Trad Faacutebio Faria 1 Ed Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 p 8 45 Para Strauss o conhecimento filosoacutefico possui em si um caraacuteter corrosivo e subversivo destruidor de todas as verdades morais e tradiccedilotildees sendo entatildeo incapaz de trazer paz e felicidade aos homens Pelo contraacuterio a filosofia possui um caraacuteter perturbador e inquietante por desvelar toda falta de sentido da existecircncia humana tornando assim essa vida algo de insuportaacutevel para a maioria dos homens e sobretudo tornando impossiacutevel a manutenccedilatildeo da ordem civil Sobre isso ler o que Strauss diz em STRAUSS L Liberalism Ancient and Modern University of Chicago Press Edition 1995 p 83-85

76

Referecircncias

BLOOM A ldquoLeo Strauss September 20 1899 ndash October 18 1973rdquo Political Theory v 2 no 4 (1974) p 372-392

DRURY S The Political Ideas of Leo Strauss Updated Edition Lexington Palgrave Macmillan 2005 (1987)

JACOBI Friedrich Heinrich Cartas a Mendelssohn David Hume Carta a Fichte Trad Joseacute Luis Villacantildeas Barcelona Ciacuterculo de Lectores 1996

ROSEN Stanley Leo Strauss and the Problem of the Modern In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009

SCRUTON Roger As Vantagens do Pessimismo e o perigo da falsa esperanccedila Trad Faacutebio Faria 1 Ed Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015

SHELL Susan ldquoTo Spare the Vanquished and Crush the Arrogantrdquo Leo Straussrsquos Lecture on ldquoGerman Nihilismrdquo In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009

STRAUSS Leo A Filosofia Poliacutetica de Hobbes Suas bases e sua gecircnese Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2016

___ An Introduction to Political Philosophy Ten essays by Leo Strauss [Ed Hilail Gildin] Detroit Wayne State University Press 1989 ___ Leo Strauss ldquoCorrespondencerdquo Independent Journal of Philosophy 5ndash6 (1988) ___ Liberalism Ancient and Modern Leo Strauss foreword by Allan Bloom University of Chicago Press Edition 1995 ___ Natural Right and History Chicago The University of Chicago Press 1971 (1953) Traduccedilatildeo para o portuguecircs Brasileiro de Bruno Costa Simotildees Direito Natural e Histoacuteria Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 ___ On Tyranny Chicago The University of Chicago Press 2000 ___ Persecution and The Art of Writing Chicago The University of Chicago Press 1988 (1952) Traduccedilatildeo em portuguecircs Brasileiro de Hugo Lagone Perseguiccedilatildeo e a arte de escrever e outros ensaios de filosofia poliacutetica Leo Strauss ndash 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 ___ The City and Man Chicago The University of Chicago Press 1992 (1964) ___ What is Political Philosophy Chicago University of Chicago Press 1988

VILLA D The Philosopher versus the Citizen Arendt Strauss and Socrates In VILLA D Politics Philosophy Terror Princeton Princeton University Press 1999 pp 155-179

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FUNCcedilAtildeO PERSONALIDADE EM DEVIR ndash UM OLHAR DA TEORIA DO

SELF

Fabio Henrique Medeiros Bogo1

RESUMO A partir da Teoria do Self em articulaccedilatildeo com as contribuiccedilotildees da psicanaacutelise e do escrutiacutenio anticapitalista de Deleuze e Guattari lanccedila-se um olhar ontoloacutegico-gestaacuteltico sobre o sujeito que outrora tido como estruturado teve o primado de sua racionalidade destronado pelas revoluccedilotildees de pensamento do seacuteculo XX Numa dinacircmica anaacuteloga agrave noccedilatildeo Deleuziana de ritornelo o Self estabelece laccedilos com o Outro no processo de contato como efeito tardio estas experiecircncias satildeo registradas linguiacutestica e conceitualmente compondo totalidades de sentido agraves quais o Self possa se identificar O que se produz eacute algo que se pode nomear como Personalidade que opera como funccedilatildeo de devir e natildeo como estrutura fixa exceto nos casos em que arbitrariamente se cristaliza com fins de evitaccedilatildeo do contato Palavras-chave Self personalidade ritornelo ontologia ABSTRACT Through the Theory of Self in articulation with the contributions of psychoanalysis and the anti-capitalist scrutiny of Deleuze and Guattari the article depicts an ontological-gestaltic view over the subject which otherwise conceived as structured has had the primacy of its rationality dethroned by the revolutions of thought of the 20th century By means of dynamics which are similar to Deleuzersquos notion of ritornello the Self establishes bonds with the Other during the process of contact as a late effect these experiences are registered linguistically and conceptually in a way that produces totalities of meaning to which it can identify What is produced is something that might be named as Personality which operates as a function of becoming and not a fixed structure with the exception of the cases in which it arbitrarily crystallizes as a means to avoid contact Keyword Self personality ritornello ontology

Introduccedilatildeo

As antropologias filosoacuteficas construiacutedas no iacutenterim da efervescecircncia poacutes-

modernista do seacuteculo XX denotavam uma distinta orientaccedilatildeo revisionista com relaccedilatildeo agraves

convencionadas estruturas de personalidade psicologistas Uma vez que a ldquocrise das

ciecircncias europeiasrdquo havia sido denunciada por Husserl2 e principalmente apoacutes as duas

1 Psicoacutelogo Mestre e Doutorando em Filosofia (UFSC) pela linha de pesquisa Ontologia Mente e Metapsicologia Orientando do Prof Dr Marcos Joseacute Muumlller fabiohbogogmailcom 2 HUSSERL A crise das ciecircncias europeias e a fenomenologia transcendental

79

grandes guerras mundiais evidenciarem que a era moderna da razatildeo natildeo fora capaz de

neutralizar o afatilde humano pelo conflito jaacute natildeo se podia ignorar a necessidade de lanccedilar

novo olhar aos modos de produccedilatildeo de saber e de cultura As teorias criacuteticas surgidas em

Frankfurt e os gritos estudantis de Maio de 1968 na Franccedila foram fenocircmenos progecircnitos

destes tempos de inegaacutevel revoluccedilatildeo de pensamento e natildeo foi diferente com as teorias

sobre a identidade O desafio consistia em elaborar uma articulaccedilatildeo teoacuterica que

prescindisse em absoluto da loacutegica positivista de modo a natildeo incorrer em uma tipificaccedilatildeo

remanescente das teorias humorais do periacuteodo medieval com classificaccedilotildees

personaliacutesticas circunscritas na loacutegica autorreferente de suas estruturas Este caminho

seria rejeitado em favor de uma nova noccedilatildeo de Personalidade que contemplasse a gecircnese

da identidade na participaccedilatildeo coletiva das representaccedilotildees agraves quais o sujeito se identifica

Mesmo o conceito de representaccedilatildeo precisou ser ressignificado ao menos no

tangente de seu papel constitutivo da identidade sob pena de ser equivocadamente

tomada por metaacutefora as representaccedilotildees natildeo configuram meras abstraccedilotildees ideativas

sendo antes simulaccedilotildees que o sujeito engendra em suas apropriaccedilotildees de sentido

realidades construiacutedas simbolicamente e experienciadas por inteiro com todo o corpo

Mais precisamente as simulaccedilotildees operam a escrita das identificaccedilotildees no proacuteprio real O

sujeito que ldquofingerdquo ser um danccedilarino nesse processo danccedila de verdade A simulaccedilatildeo eacute

nesta analogia de Deleuze e Guattari3 uma re-produccedilatildeo uma coacutepia que deveacutem real A

literatura recente das ciecircncias humanas e da filosofia particularmente apoacutes a ldquorevoluccedilatildeo

copernicana inacabadardquo4 operada pela psicanaacutelise de Freud vem tateando a ideia do fim

da metafiacutesica e da superaccedilatildeo do sujeito autocontido do Eu (Moi) que eacute ldquoeu substancialrdquo

do Ser capaz de dobrar-se sobre si e adquirir certeza de si Em lugar disso assume-se um

ser que recebe seu sentido inteligiacutevel no seio da imersatildeo cultural isto equivale a dizer que

o sujeito foi tornado enunciado e substituiacutedo pela Arte Ciecircncia Religiatildeo Economia

Poliacutetica Miacutedia ndash enfim pela cultura

Os fatores supracitados indicam possiacutevel convergecircncia em uma figura de

sujeito que passa a ser concebida na fronteira de contato do campo de presenccedila

intersubjetivo do desejo onde as vivecircncias satildeo moldadas pela atualidade da experiecircncia

na realidade imanente Trata-se de uma ideia cuja fundaccedilatildeo estaacute agraves avessas ldquode fora para

dentrordquo no sentido ambiente-organismo e em que a Personalidade eacute tomada jaacute natildeo mais

como estrutura mas como funccedilatildeo de estabelecimento de laccedilo social Eacute assim que opera

3 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p121 4 LAPLANCHE La reacutevolution copernicienne inacheveacutee

80

por exemplo a teoria do Self construiacuteda por Fritz Perls Ralph Hefferline e o

fenomenoacutelogo Paul Goodman5 para sustentar a praacutetica cliacutenica da Gestalt-terapia6

Por oferecer uma leitura temporal da experiecircncia do sujeito que contemple

tanto sua participaccedilatildeo na realidade atual quanto a copresenccedila das inatualidades de seus

afetos e seus projetos-de-ser tanto a vivecircncia mais iacutentima de seu estranhamento quanto a

sua partilha na complexa trama do patrimocircnio de significaccedilotildees da humanidade tanto sua

existecircncia na qualidade de organismo em contato com o ambiente visando crescimento e

conservaccedilatildeo condiccedilatildeo que ele compartilha com toda a biosfera terrestre quanto sua

condiccedilatildeo particular de Ser posto-em-questatildeo e submetido agrave marca indeleacutevel da cultura a

teoria do Self seraacute utilizada aqui como chave maior de anaacutelise A partir dela eacute que seratildeo

estabelecidas as interlocuccedilotildees com as demais contribuiccedilotildees aqui tomadas de empreacutestimo

para matizar a diversidade que a anaacutelise requer procurando manter viva a voz que as

profere sem forccedilar uma siacutentese neutralizadora das diferenccedilas A teoria do Self eacute inclusiva

e heterogecircnea nascida ela proacutepria na confluecircncia da psicanaacutelise da fenomenologia e da

Gestalttheorie e a aceitaccedilatildeo do conflito aberto eacute sua parte integrante Somente pela sua

assincronia eacute que um todo gestaacuteltico7 logra preservar a multiplicidade da experiecircncia de

ser

Dimensatildeo reflexiva do sistema-funccedilatildeo self a personalidade

Parte da riqueza da teoria do Self construiacuteda por Perls Hefferline e Goodman

diz respeito agrave possibilidade de contemplar o sujeito a partir de pontos de vista distintos

Por meio da anatomofisiologia chega-se a um sujeito como conjunto das funccedilotildees de

percepccedilatildeo propriocepccedilatildeo musculatura motricidade autorregulaccedilatildeo organiacutesmica etc

que natildeo eacute menos factiacutevel que uma definiccedilatildeo da ordem de uma psicodinacircmica funcional ndash

funccedilotildees de Id Ego e Personalidade ndash ou temporal ndash relacionada agraves etapas do processo de

contato distintas apenas com fins elucidativos Em suma conceber o sujeito como um

gestalt eacute admitir que todos estes pontos de vista tornem manifesta uma ou outra dimensatildeo

5 PERLS Fritz HEFFERLINE Ralph GOODMAN Paul Gestalt-terapia 6 No decorrer deste texto os autores seratildeo referenciados como ldquoPHGrdquo para fins de praticidade 7 A noccedilatildeo mereoloacutegica intencionada no uso do termo alematildeo ldquogestaltrdquo de difiacutecil traduccedilatildeo eacute a de uma totalidade composta por partes assinteacuteticas alternando o status de figura e fundo em funccedilatildeo da mirada do observador cuja participaccedilatildeo eacute sine qua non neste processo Atentar para um dos aspectos deste todo eacute conferir-lhe prioridade e evidenciaacute-lo como ldquofigurardquo enquanto os demais mantecircm o status de ldquofundordquo Da mesma forma apreender intencionalmente um ldquotodordquo eacute perder de vista as nuances de suas ldquopartesrdquo componentes e vice-versa

81

deste sujeito sem jamais esgotaacute-lo ou tampouco estabelecer muacutetua complementaridade

Porquanto seja ontologia a teoria do Self eacute inexoravelmente plural ndash e paradoxalmente

o Self eacute o integrador o correlato da unidade sinteacutetica Kantiana Em concordacircncia com a

letra de Merleau-Ponty em sua leitura de Kurt Goldstein8 o ldquoeurdquo do Self eacute um ldquoeu-

engajadordquo uma vez que

[hellip] a consciecircncia projeta-se em um mundo fiacutesico e tem um corpo assim como ela se projeta em um mundo cultural e tem haacutebitos porque ela soacute pode ser consciecircncia jogando com significaccedilotildees dadas no passado absoluto da natureza ou em seu passado pessoal e porque toda forma vivida tende para uma certa generalidade seja a de nossos haacutebitos seja a de nossas ldquofunccedilotildees corporaisrdquo 9

A teoria do Self trata de um corpo de atos ndash o da anatomia e da fisiologia

capaz de respostas sensoriais e motoras ndash que eacute atravessado por um corpo outro preacute-

pessoal o corpo de haacutebitos Ambos corpo anatomofisioloacutegico e corpo habitual se

expressam no contato e a impessoalidade dos haacutebitos garante uma perspectiva de falta

(de sentido) Encobrindo-os estaacute a dimensatildeo antropoloacutegica Imaginaacuteria do contato alccedilada

em significaccedilotildees Eis a relaccedilatildeo com a noccedilatildeo de corpo-sem-oacutergatildeos como encontrada

originalmente na obra de Antonin Artaud10 de um corpo uacutenico organismo preacute-reflexivo

que pulsa e contata antes de ser dilacerado por sua ldquofragmentaccedilatildeo em oacutergatildeosrdquo uma

referecircncia agrave sectarizaccedilatildeo em conceitos do intelecto Eacute assim que Artaud conclui seu

manifesto ldquoPara acabar com o julgamento de Deusrdquo transmitido pelo raacutedio em 1948

O homem eacute enfermo porque eacute mal construiacutedo Temos que nos decidir a desnudaacute-lo para raspar esse animaluacuteculo que o corroacutei mortalmente 2 deus e juntamente com deus os seus oacutergatildeos Se quiserem podem meter-me numa camisa de forccedila mas natildeo existe coisa mais inuacutetil que um oacutergatildeo Quando tiverem conseguido um corpo sem oacutergatildeos entatildeo o teratildeo libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade Entatildeo poderatildeo ensinaacute-lo a danccedilar agraves avessas como no deliacuterio dos bailes populares e esse avesso seraacute seu verdadeiro lugar

Na medida em que eacute composta de objetos do conhecimento que o sujeito

agrega e compotildee para tecer uma sorte de discurso sobre si de certo modo a funccedilatildeo

Personalidade eacute construiacuteda agrave maneira de uma narrativa ela eacute naturalmente uma

construccedilatildeo tardia do processo de contato que eacute posterior agrave apropriaccedilatildeo linguiacutestico-

8 O neurologista e psiquiatra Kurt Goldstein foi uma das mais importantes influecircncias para o casal Fritz e Laura Perls na ocasiatildeo da criaccedilatildeo da Gestalt-terapia e da Teoria do Self em conjunto com Paul Goodman 9 MERLEAU-PONTY Fenomenologia da percepccedilatildeo p192 10 ARTAUD Antonin Para acabar com o julgamento de Deus p42

82

reflexiva do que foi experienciado em ato e que se presta agrave participaccedilatildeo na comunidade

de sentidos da cultura Em outras palavras o que a funccedilatildeo Personalidade produz eacute ldquouma

formaccedilatildeo do Self por uma atitude social compartilhadardquo11 Na medida em que deveacutem o

Self ndash de cuja integralidade participam tambeacutem o corpo de haacutebitos e a funccedilatildeo de ato ndash eacute

uma poesia arriacutetmica e fadada agrave incompletude Em comparaccedilatildeo a ldquopessoardquo que resulta

do trabalho da Personalidade eacute uma prosa razoavelmente inteligiacutevel

Ademais dentre tais muacuteltiplos vieses possiacuteveis a cliacutenica gestaacuteltica desde o

princiacutepio se apresentou como uma empresa de atenccedilatildeo agrave awareness isto eacute agrave emergecircncia

de excitamentos no fundo de passado e a formulaccedilatildeo de desejos de protensatildeo futura a

partir das atualidades O fluxo de awareness se traduz como a proacutepria criaccedilatildeo (protensatildeo

e realizaccedilatildeo) e destruiccedilatildeo (assimilaccedilatildeo e repeticcedilatildeo) de gestalten de maneira quase anaacuteloga

agrave dinacircmica das pulsotildees de vida e de morte A awareness sensorial manifesta-se como

dinacircmica de conservaccedilatildeo a assimilaccedilatildeo da dimensatildeo de ldquomais-gozarrdquo de cada ato e sua

repeticcedilatildeo como haacutebitos motores ou verbais que natildeo se confundem com a memoacuteria nem

com os sentimentos do ego psicofiacutesico substanciado pois tratam do atravessamento do

corpo ldquoporosordquo do sujeito por um passado impessoal da ordem do gozo como outrem

sem motivo ou criteacuterios de manifestaccedilatildeo precisos e que soacute se deixam apreender a

posteriori pelo rastro de excitamento que deixam no corpo A awareness deliberada por

sua vez manifesta-se como dinacircmica de crescimento as accedilotildees individuais respostas

motoras e verbais orientadas pelas inatualidades de passado habitual e futuro

possibiliacutestico constituem uma totalidade presuntiva uma gestalt sob a forma de desejo

por ser o correlato atual do contato a awareness deliberada daacute abertura para a experiecircncia

individual do sujeito unitaacuterio sempre dinacircmica e em devir orientada no sentido de um

realizar-se12

Na dinacircmica do desejo o sujeito vivencia um todo presuntivo que representa

uma representaccedilatildeo futura que o sujeito viraacute-a-ser Haacute neste apanhado imbuiacutedo de

inteligibilidade um terceiro desdobramento tardio na forma da awareness reflexiva

proacuteprio agrave condiccedilatildeo humana pois depende da faculdade de consciecircncia reflexiva e da

aquisiccedilatildeo da linguagem Este desdobramento tem a ver com os juiacutezos intelectuais que o

sujeito estabelece sobre suas proacuteprias sensaccedilotildees e accedilotildees Como dinacircmica de

autoconsistecircncia imaginaacuteria a awareness reflexiva envolve o processo de ldquodar-se contardquo

11 PHG Gestalt-terapia p123 12 MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Cliacutenicas gestaacutelticas sentido eacutetico poliacutetico e antropoloacutegico da teoria do Self p32

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ou ldquoter consciecircnciardquo de si em correspondecircncia com a intencionalidade categorial de

Husserl que resulta na construccedilatildeo de uma ficccedilatildeo inteligiacutevel sobre a experiecircncia ontoloacutegica

do sujeito Eis a dimensatildeo do fluxo de awareness que receberaacute maior ecircnfase em uma

observaccedilatildeo do sujeito do ponto de vista de sua Personalidade

As instacircncias de existecircncia do sujeito descrevem essencialmente trecircs

funccedilotildees de operaccedilatildeo intencional temporal ou funccedilotildees do Self correspondentes agraves trecircs

formas de awareness sensorial na Funccedilatildeo Id relativa agrave copresenccedila do excitamento

deliberada na funccedilatildeo Ato relativa agrave resposta motora desejante e reflexiva na funccedilatildeo

Personalidade relativa agrave atribuiccedilatildeo de unidade da experiecircncia Estas natildeo satildeo senatildeo trecircs

perspectivas para um fenocircmeno comum e soacute se distinguem a partir dos marcos

diferenciais que o observador elege como figura Sob este paradigma torna-se

incongruente pensar em qualquer coisa que se assemelhasse a estruturas egoacuteicas ou

personaliacutesticas do Self salvo como construccedilatildeo tardia e derivativa do awareness com fins

de estabelecimento de laccedilos sociais Deveras haacute pouco lugar para a ipseidade identitaacuteria

na teoria do Self Se a funccedilatildeo Id eacute caracterizada pela generalidade no acircmbito das formas

ou haacutebitos na funccedilatildeo Personalidade por sua vez satildeo os conteuacutedos produzidos que satildeo

compartilhados em caraacuteter de generalidade Aleacutem disso se o Id confere ambiguidade ao

sujeito a Personalidade lhe confere humanidade valores e cidadania seu status de

semelhante A awareness deliberada da funccedilatildeo de ato possibilita o reconhecimento da

ipseidade e da perspectiva de autoria de comportamento mas esta experiecircncia eacute efecircmera

a awareness reflexiva constitutiva da funccedilatildeo Personalidade eacute quem lhe confere

durabilidade e constroacutei a narrativa identitaacuteria do eu

Na epocheacute Husserliana apoacutes isolar todas as contingecircncias da realidade

empiacuterica o sujeito chegaria ao ldquosi-mesmo incontestaacutevelrdquo que processa todas as vivecircncias

um ser coincidente consigo mesmo monaacutedico e auto-evidente Husserl concebeu em sua

doutrina fenomenoloacutegica uma instacircncia que ocupasse o lugar de epicentro da visada

noeacutetico-noemaacutetica o ego transcendental dotado de um vieacutes apodiacutetico a partir do qual

observaria os fenocircmenos como espectador imparcial sem jamais confundir-se com os

objetos visados Ele operaria como polo sinteacutetico de toda a experiecircncia o que significa

que articularia a organizaccedilatildeo de todos os vividos ordenando-os em um sistema orgacircnico

transcendente A identidade uacuteltima para Husserl estaria mais aleacutem da imanecircncia da

inserccedilatildeo fenotiacutepica no lebenswelt ou dizendo o mesmo pelo seu avesso a experiecircncia

concreta natildeo seria capaz de afetar a transcendecircncia do ldquoeurdquo Assim o que se chama de

subjetividade monaacutedica em Husserl indica a soma ou confluecircncia entre o Ego como

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funccedilatildeo sintetizadora da experiecircncia e as informaccedilotildees personaliacutesticas dos vividos retidos

(que seriam anaacutelogas agraves representaccedilotildees que posteriormente PHG atribuiriam agrave funccedilatildeo

Personalidade)

A questatildeo das instacircncias imanentes e transcendentes do eu eacute tangenciada na

leitura de Deleuze sobre filosofia Kantiana da razatildeo a partir do enunciado filosoacutefico ldquoEu

eacute um outrordquo Deleuze13 mostra como Kant agrave guisa de apreciaccedilatildeo criacutetica do Cogito

Cartesiano estabelece um ldquoeurdquo ativo capaz de afetar o tempo e o espaccedilo e que por sua

vez determina a existecircncia de um ldquoeurdquo que muda no tempo e apresenta a cada instante

um grau de consciecircncia Tem-se entatildeo o Eu (Moi) como aspecto passivo e autorreferencial

de um organismo reconhece a si na passagem do tempo e o Eu (Je) tido como funccedilatildeo de

ato que determina no tempo a existecircncia desse organismo Eacute soacute a partir do Eu (Moi) que

podemos nos reconhecer e mesmo assim nos damos conta dele quase como espectadores

sofrendo a estranheza da determinaccedilatildeo por esse Eu (Je) numa condiccedilatildeo de alteridade que

nos soa como outro Os juiacutezos esteacuteticos seriam o ldquoponto fora da curvardquo na epistemologia

de Kant jaacute que o que neles se obteacutem natildeo eacute um objeto de conhecimento mas antes um de

complacecircncia e prazerdesprazer pelo qual eacute responsaacutevel a proacutepria unidade indeterminada

ndash em ldquolivre e harmonioso jogordquo ndash das faculdades do acircnimo (Gemuumltskrafte)14

Personalidade em ritornelo

Do fato de ser o Eu (Moi) entendido como passivo natildeo se pode derivar que

seja estaacutevel ou estaacutetico Este natildeo eacute senatildeo o resultado de um sem-nuacutemero de

ressignificaccedilotildees das vivecircncias do organismo em sua experiecircncia cotidiana vivecircncias que

devecircm registros de sentido que na teoria de Deleuze caracterizam as siacutenteses conjuntivas

Estas satildeo incorporadas na biografia do sujeito que passa a saber algo de si A dimensatildeo

personaliacutestica eacute caracterizada por um movimento de adoccedilatildeo e abandono de unidades

discursivas investidas de potencial identitaacuterio Deleuze e Guatarri tratam deste fenocircmeno

em termos geoeacuteticos15 isto eacute sob a forma de desterritorializaccedilatildeo harr reterritorializaccedilatildeo de

espaccedilos existenciais e o denominam de ritornelo Tais espaccedilos existenciais logram a

funccedilatildeo antropoloacutegica de viabilizar inobstante de maneira absolutamente transitoacuteria e

13 DELEUZE Criacutetica e Cliacutenica p43 14 KANT Criacutetica da faculdade do juiacutezo sect9 p54 15 Uma etimologia do termo revela os radicais ldquogeacuteo-ldquo referindo-se agrave distribuiccedilatildeo espacial pela terra e ldquoecircthosrdquo grafado ldquoήθοςrdquo que significa ldquomoradardquo ou ldquohabitaccedilatildeordquo O esclarecimento eacute vaacutelido para que natildeo haja confusatildeo com o termo oriundo do radical ldquoeacutethosrdquo grafado έθος significando ldquocostumerdquo

85

efecircmera um grau de autorreconhecimento minimamente suficiente para que o sujeito decirc

conta da participaccedilatildeo cotidiana na realidade social

Tradicionalmente uma marcaccedilatildeo musical que marca o refratildeo de uma melodia

considerada o aacutepice de uma composiccedilatildeo e que se repete algumas vezes na partitura o

ritornelo eacute utilizado na filosofia de Deleuze para descrever uma relaccedilatildeo de busca alternada

por seguranccedila e por novidade no mundo eacute a criaccedilatildeo de um plano de existecircncia sobre a

indiferenciaccedilatildeo do caos a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio que faccedila as funccedilotildees de ldquomoradardquo

provisoacuteria e subsequentemente um lanccedilar-se no mundo que abre espaccedilo para a

improvisaccedilatildeo e o ajustamento criativo em face do acontecimento Durante a seacuterie de

entrevistas que Deleuze concedeu a Claire Parnet entre 1988 e 1989 lanccedilada

posteriormente em viacutedeo e transcriccedilatildeo como ldquoLrsquoAbeacuteceacutedaire de Gilles Deleuzerdquo o autor

comenta

Criamos ao menos um conceito muito importante o de ritornelo Para mim o ritornelo [] estaacute ligado ao problema do territoacuterio da saiacuteda ou entrada ao territoacuterio ou seja ao problema da desterritorializaccedilatildeo Volto para o meu territoacuterio que eu conheccedilo ou entatildeo me desterritorializo ou seja parto saio do meu territoacuterio16

Na mesma ocasiatildeo Deleuze define o ritornelo em termos muitos simples

como um ldquotraacute-laacute-laacuterdquo um cantarolar tranquilizante que se murmura quando em casa

durante os afazeres domeacutesticos ou nos casos opostos quando se estaacute fora de casa

cantarola-se para aplacar a tensatildeo de estar voltando da rua ao fim do dia de trabalho ou

entatildeo partindo (para onde) Em suma a incessante dinacircmica de ocupaccedilatildeo e desocupaccedilatildeo

de territoacuterios existenciais o tracircnsito alternado em meio agraves inuacutemeras totalidades de sentido

compartilhadas pela linguagem eacute o que atribui a qualquer coisa que se possa pensar como

uma personalidade a natureza de algo vazado e centriacutefugo A autocontinecircncia imaginaacuteria

prenunciada pela territorializaccedilatildeo nunca se faz completa pois eacute sempre atravessada por

I) novas intensidades da produccedilatildeo desejante isto eacute posteriores situaccedilotildees concretas de

contato deste organismo com o ambiente de modo a operar a criaccedilatildeo de novas articulaccedilotildees

de realidade e II) por um universo de haacutebitos ou excitamentos preacute-pessoais

experienciados pelo sujeito como alteridade radical agrave qual ele eacute passivo Neste sentido o

conceito do movimento de ritornelo estaacute em confronto direto com a ideia da fixidez

personaliacutestica estruturada e autocontida como paracircmetro de regularidade Nos termos da

16 DELEUZE O abecedaacuterio de Gilles Deleuze Seccedilatildeo ldquolsquoOrsquo de lsquoOacuteperarsquordquo

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Teoria do Self isto equivale simplesmente a afirmar que a funccedilatildeo Personalidade estaacute em

articulaccedilatildeo com as demais funccedilotildees de Ato e de Id

Independentemente de se analisar do ponto de vista de algo que falte ao

territoacuterio de sentido do sujeito como faz a psicanaacutelise ou do ponto de vista de algo que

lhe sobre que sobrevenha ao territoacuterio como acoplamento maquiacutenico excessivo

obrigando-o a uma reconfiguraccedilatildeo o efeito eacute o mesmo compelido pela protensatildeo a uma

virtualidade o sujeito se percebe em anguacutestia tendo que descentrar-se e vir a ocupar uma

nova posiccedilatildeo no mundo Ora nada haacute aqui para condenar ateacute porque o que o territoacuterio

tem de reconfortante tem tambeacutem de opressivamente ansiogecircnico Da mesma forma se

a desterritorializaccedilatildeo eacute promotora de anguacutestia ela corresponde todavia ao movimento

autopoieacutetico do proacuteprio bios que permite em seu processo autorreprodutivo a agecircncia do

caos e da transformaccedilatildeo

A situaccedilatildeo vem a se agravar entretanto nos casos em que o eixo

desterritorializante do ritornelo se torna a diretriz predominante A perda de polos

territoriais de seguranccedila e autorreconhecimento eacute abordada por PHG17 no texto original

pelo uso da palavra misery traduziacutevel como ldquoafliccedilatildeordquo ou ldquosofrimentordquo Em outras

palavras a experiecircncia de misery eacute provocada pela ldquofalta de um lugar eacutetico em que

possamos estabelecer relaccedilotildees poliacuteticas e antropoloacutegicasrdquo18 Eis o momento da elaboraccedilatildeo

de luto pelos territoacuterios perdidos e do resgate do movimento de ritornelo em seu eixo

oposto o da reterritorializaccedilatildeo ndash incumbecircncia dos membros da rede de apoio do sujeito

em sofrimento como familiares profissionais e demais viacutenculos de afeto Assim acontece

na produccedilatildeo da subjetividade quando se volta para o territoacuterio que se supunha conhecido

o que se experimenta eacute uma novidade O sujeito muda o territoacuterio muda e o paradoxo eacute

que mesmo a busca pela constacircncia se daacute na mudanccedila jaacute que a geoeacutetica eacute um plano-triacuteade

de experimentaccedilatildeo prudecircncia e improvisaccedilatildeo19

Este modelo geoeacutetico encontra consonacircncia na obra de PHG (1951) que

atribuem natildeo apenas agrave gestalt-terapia mas agrave proacutepria psicologia a funccedilatildeo de investigar a

operaccedilatildeo da fronteira de contato no campo organismoambiente Sejam os conceitos e

terminologias abandonados e fiquem os fenocircmenos aos quais eles se referem de fato a

psicologia se encarrega da relaccedilatildeo dos sujeitos uns com os outros e com o mundo natural

17 PHG Gestalt-terapia 18 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p284 19 COSTA O ritornelo em Deleuze- Guattari e as trecircs eacuteticas possiacuteveis In II Seminaacuterio Nacional de Filosofia e Educaccedilatildeo Confluecircncias 2006 Santa Maria

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De todo modo agrave diferenccedila das perspectivas estruturalistas a gestalt-terapia natildeo funda sua

ontologia sobre a fixaccedilatildeo identitaacuteria de um ego circunscrito em si proacuteprio O ldquoeu

reconheciacutevelrdquo da gestalt-terapia natildeo eacute uma instacircncia estaacutetica que tendo atingido a

maturaccedilatildeo natildeo mais se transformaria quando muito expandiria aqui e ali e que atuaria

como mera depositaacuteria das experiecircncias que vive e assimila Ao contraacuterio trata-se de uma

instacircncia intermitente em constante atualizaccedilatildeo de modo a ser jamais a mesma

A funccedilatildeo Personalidade esta funccedilatildeo de individuaccedilatildeo ontoloacutegica

territorializante eacute ldquoa proacutepria presenccedila do outro social como mediaccedilatildeo geneacuterica e

determinada entre dois atos distintosrdquo20 A mediaccedilatildeo geneacuterica de que se fala eacute da ordem

da comunicaccedilatildeo ao outro social nas palavras de PHG21 a Personalidade eacute o correlato

descritiacutevel ou reacuteplica verbal das vivecircncias de contato do Self Precisamente por esta razatildeo

a Personalidade eacute dinacircmica e mutaacutevel ela estaacute em funccedilatildeo dos atravessamentos habituais

e eacute constantemente sobrescrito pelas criaccedilotildees da funccedilatildeo de ato Em suma ela funciona

reescrevendo a si mesma em consonacircncia com a maneira como Lacan22 no Seminaacuterio

XX descreve o domiacutenio Imaginaacuterio que ldquonatildeo para de se escreverrdquo Porquanto funccedilatildeo a

Personalidade eacute movida pelas aacuteguas do rio de Heraacuteclito que seguem dia apoacutes dia um

curso semelhante ndash permitindo a um observador constatar que ainda se trata do mesmo

rio ndash sem jamais permanecer exatamente idecircntico em dois momentos seguidos ela opera

dinamicamente pela coadunaccedilatildeo dos objetos de realidade com os quais o sujeito se

identifica um emprego a preferecircncia por praia ou montanha a apreciaccedilatildeo por um artista

uma nacionalidade um hobby um aprendizado um juiacutezo loacutegico23

A Personalidade eacute o resultado do contato social criativo Os atos que

desempenhamos satildeo recebidos pelo outro social ndash e tambeacutem por noacutes mesmos na

alteridade do Eu (Je) que eacute capaz de observar o Eu (Moi) de uma perspectiva externa ndash

como objetos do intelecto produccedilotildees duraacuteveis da ordem do Imaginaacuterio que permanecem

como identidades As criaccedilotildees da funccedilatildeo de ato convertem-se em significantes

estabelecidos como pensamento Nesse sentido o outro social com o qual a Personalidade

dialoga funciona como ldquoespelho dos atosrdquo24 uma vez mais ecoando a descriccedilatildeo do

20 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p286 21 PHG Gestalt-terapia 22 LACAN O Seminaacuterio livro XX Mais ainda p127 23 Natildeo obstante do fato da constituiccedilatildeo subjetiva dos organismos caracterizar-se como devir processual natildeo se pode derivar que ele seja ldquoincompletordquo o sujeito eacute por inteiro valendo-se de quaisquer recursos dos quais disponha na atualidade para (re)construir-se agrave medida que a demanda do Outro se transmuta 24 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p286

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domiacutenio Imaginaacuterio que Lacan traduz como ldquoreflexo do semelhante ao semelhanterdquo 25

Isto serve para alertar que este processo natildeo pode ser tomado do ponto de vista solipsista

apenas a partir dos laccedilos sociais eacute que a Personalidade faz sentido jaacute que eacute o relato (ao

Outro) das vivecircncias a partir das representaccedilotildees intersubjetivas (entre eu e o Outro) e por

meio de significaccedilotildees linguiacutesticas (na liacutengua do Outro) Natildeo se trata de um evento

privado subjetivo mas do resultado de interaccedilotildees e viacutenculos estabelecidos no ambiente

e determinados por este mesmo ambiente em suma a constituiccedilatildeo da personalidade eacute um

fenocircmeno de aprendizagem

A presenccedila do outro social na gecircnese da dinacircmica e da fixidez personaliacutestica

Na medida em que toma parte do continuum da awareness o Self natildeo se

encontra nem na voz ativa entendendo o sujeito como autor da accedilatildeo nem tampouco na

voz passiva em que o sujeito tenha sofrido a accedilatildeo sobre si No entendimento dos gestalt-

terapeutas o Self ocorre na ldquovoz meacutediardquo em que o sujeito ldquoexperimenta a si mesmo na

accedilatildeordquo26 O que parece ao menos eacute que os autores admitem a ldquovoz meacutediardquo como um eixo

de equiliacutebrio ideal do qual o Self frequentemente se desvia em virtude de seus dispositivos

de autoconquista ou autossabotagem Eacute no Self bem-definido repleto de identificaccedilotildees e

alienaccedilotildees que lhe satildeo preciosas que se percebe a disfunccedilatildeo O ego cristalizado boicota

a novidade e a espontaneidade e preza pela autoconsistecircncia pela fixidez personaliacutestica

Embora a noccedilatildeo tradicional de uma estrutura personaliacutestica venha a ser

ressignificada em vista de uma funccedilatildeo Personalidade fluida este novo construto estaacute

longe de contemplar a integridade do estar-no-mundo de um organismo Falar de um eu-

mesmo ndash ou Self ndash eacute falar de um sistema de funccedilotildees de contato do presente transiente

concreto um fluxo de conscientizaccedilatildeo ndash ou de awareness Nesse iacutenterim a funccedilatildeo

Personalidade natildeo eacute senatildeo o paraacutegrafo final de uma declaraccedilatildeo ontoloacutegica extensa eacute a

dimensatildeo mais facilmente acessiacutevel e comunicaacutevel do sistema Self natildeo soacute para outrem

como para o proacuteprio organismo simplesmente porque se fundamenta na awareness

reflexiva do contato que o organismo estabelece com o ambiente atual ao seu redor Self

eacute uma agecircncia de crescimento por meio do contato portanto se eacute de fato necessaacuterio

atribuir-lhe uma localizaccedilatildeo toacutepica para compreensibilizaacute-lo natildeo se localizaraacute este

sistema no interior intimista do sujeito mas na sua fronteira de contato com o mundo

25 LACAN O Seminaacuterio livro XX Mais ainda p111 26 PHG Gestalt-terapia p43

89

externo pertencendo a ambos ambiente e organismo E natildeo poderia ser diferente

sabendo-se que o que fazemos durante todo o percurso da vida eacute experimentar eventos no

ambiente externo e participar deles doando-lhes o que temos a oferecer a saber o efeito

destas experiecircncias mesmas em nosso proacuteprio corpo passivo e nosso poder ativo e

desejante de manipulaccedilatildeo e produccedilatildeo da realidade

A passagem do ego monaacutedico para esse Self tornado funccedilatildeo de ajustamento ndash

produccedilatildeo ndash no mundo um recorte de siacutenteses conjuntivas da intrincada rede de

multideterminaccedilotildees descentralizadas e emergentes sugere que o foco da anaacutelise

ontoloacutegica do antropos seja deslocado para esse feixe de fenocircmenos subjetivos que nos

compotildee As construccedilotildees identitaacuterias todas funcionam como simulacros da verdade

existencial subjetiva sem que nenhuma delas a esgote ou menos ainda funcione como

eidos egoacuteico ldquoQual nosso rosto genuiacutenordquo perguntam PHG sabendo que natildeo seria outra

coisa senatildeo ldquouma resposta a uma situaccedilatildeo presenterdquo 27 Contatar a realidade presente e

disponibilizar a emergecircncia de gestalten permitindo-se devir eacute o modo gestaacuteltico de

responder agrave convocaccedilatildeo Nietzscheana do ldquotorna-te quem tu eacutesrdquo ndash e mesmo esta eacute

enganadora quando concentra sua awareness na situaccedilatildeo presente o organismo pulveriza

as certezas do passado em possibilidades futuras e contempla o potencial destas se

realizarem ldquoSeja vocecirc mesmordquo ou ldquosejardquo coisa qualquer eacute no melhor dos casos uma

exortaccedilatildeo ansiogecircnica agrave identificaccedilatildeo com uma das possibilidades futuras ainda

indefinidas ldquotorna-te quem tu eacutesrdquo no pior dos casos eacute uma demanda por

previsibilidade personaliacutestica por meio da fixaccedilatildeo em identificaccedilotildees passadas ldquoseja

aquilo que sempre esperei que vocecirc fosserdquo

A vida social de contato pleno gera integraccedilatildeo de valores e identificaccedilotildees

pertinentes para o sujeito mas no contato interrompido este imita e repete de forma

alienada Traccedilos personaliacutesticos crenccedilas valores escolhas frequentemente satildeo vividas

como estados de crescimento que um dia foram atuais mas perduraram aleacutem de seu

tempo ateacute que natildeo sejam mais funcionais Quando satildeo enfim abandonados com certo

desprezo ou rejeiccedilatildeo violenta denotam que a situaccedilatildeo ainda estaacute inacabada PHG afirmam

que vivecircncias passadas que foram resolvidas surgem como memoacuterias serenas sem

acarretar grande mobilizaccedilatildeo de tensatildeo por jaacute terem sido integradas ao Self e resolvidas

Via de regra contudo as relaccedilotildees que o sujeito estabelece no meio cultural que viratildeo a

delinear sua constituiccedilatildeo identitaacuteria natildeo satildeo de outra natureza senatildeo intervenccedilotildees sofridas

27 PHG Gestalt-terapia p179

90

por um corpo pelos fluxos da maacutequina-socius que o atravessam de todos os lados desde

o nascimento

Se nos primeiros meses da vida a crianccedila se daacute conta da presenccedila de uma

alteridade ndash o adulto ndash que opera a mediaccedilatildeo contingente dos atos ora oferecendo as

condiccedilotildees para possibilitaacute-los ora coibindo-os por volta dos 18 meses comeccedila a

reconhecer uma outra forma de alteridade que eacute o Outro social das representaccedilotildees e da

linguagem (MUumlLLER-GRANZOTTO 2012a) A aquisiccedilatildeo das formas linguajeiras

permitem agrave crianccedila utilizar seu crescente vocabulaacuterio para construccedilatildeo de unidades de

sentido destinadas a comunicar algo ao semelhante A partir desta etapa a crianccedila pode

entatildeo ingressar neste jogo de interaccedilotildees sociais do qual os adultos participam e identificar

o valor social atribuiacutedo agraves coisas e aos atos isto eacute a demanda por identidade impliacutecita em

cada laccedilo social ldquoHaacute por detraacutes da pergunta dirigida a mim algueacutem que quer saber de

mim e provavelmente um lsquoalgueacutem que sou eursquo por detraacutes da minha respostardquo28

Sua existecircncia motora passa a ter uma autoria uma figura Imaginaacuteria de

referecircncia e de interlocuccedilatildeo entre as demais unidades Imaginaacuterias Satildeo estas outras

unidades isto eacute eacute o olhar do outro social que referenda e legitima a existecircncia da unidade

personaliacutestica Por isso o Outro ndash seja uma pessoa um desenho em um livro ou uma roupa

na vitrine de uma loja ndash cumpre para ela a funccedilatildeo de espelho de confirmaccedilatildeo da

representaccedilatildeo imageacutetica Se eacute proacuteprio do bios que seu crescimento se decirc pela exposiccedilatildeo

agraves contingecircncias ambientais no caso da humanidade a autorregulaccedilatildeo organiacutesmica se

traduz com veemecircncia na exposiccedilatildeo ao feixe de marcas culturais pelos quais os

dispositivos maquiacutenicos de subjetivaccedilatildeo operam a simbolizaccedilatildeo dos corpos Em meio a

essa miriacuteade de universos incorporais de valor as cadeias discursivas (religiosas

poliacuteticas ideoloacutegicas enunciados cientiacuteficos ritornelos ou formas que se repetem etc)

servem para organizar um sentido de identidade mais palpaacutevel delimitar um territoacuterio de

existecircncia reconheciacutevel com fronteiras de ego liacutequidas

Feacutelix Guattari29 aponta como o mapeamento dos territoacuterios existenciais eacute

sentido como marca no corpo e se daacute pela via dos dispositivos maquiacutenicos de

subjetivaccedilatildeo em massa O que se precisa salientar a respeito do maquinismo como

apropriado por Guattari eacute que as maacutequinas subjetivantes tecem a trama social produzem

desejos coletivos forjam afetos comuns e engendram complexas redes de significaccedilatildeo

28 MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Cliacutenicas gestaacutelticas sentido eacutetico poliacutetico e antropoloacutegico da teoria do Self p237 29 GUATTARI Caosmose p60

91

compartilhada Se Nietzsche podia dizer que ldquocada nome da histoacuteria sou eurdquo30 eacute porque

ele assumia a transitoriedade de suas identificaccedilotildees com estes personagens Os nomes

proacuteprios satildeo mais que representaccedilotildees Antes satildeo demarcaccedilotildees territoriais domiacutenios

significantes engendrados pela semiologia dos equipamentos coletivos dos quais a

maacutequina social dispotildee atravessamentos de intensidades diversas que datildeo sentido(s) ao

corpo que operam um efeito sobre a memoacuteria a inteligecircncia a sensorialidade e os afetos

Esta accedilatildeo eacute anterior mesmo a uma semiologia significante os sentidos e as denotaccedilotildees

em princiacutepio escapam ao sentido linguiacutestico comum e funcionam de maneira paralela e

independente entre si A partir das siacutenteses disjuntivas entre as diferentes significaccedilotildees

surge um terceiro termo derivativo A este eacute que se daacute o nome de corpo-sem-oacutergatildeos ou

corpo pleno ou ainda quando se trata da produccedilatildeo social socius Por este terceiro termo

de inicial indiferenciaccedilatildeo eacute que correm os fluxos de intensidades formando planos

imanentes de existecircncia neles eacute que as maacutequinas desejantes operam cortes31 e fazem

distinccedilotildees que datildeo forma aos objetos do mundo

Os equipamentos coletivos satildeo tambeacutem maacutequinas teacutecnico-sociais e a elas

cabe a mesma leitura poliacutetica no tangente agrave virtualidade de sua aplicaccedilatildeo a praacutetica

esportiva endossa a autossuperaccedilatildeo e outorga ao sujeito maior controle sobre seu corpo

tautocronicamente serve de perfeito ldquopatildeo-e-circordquo agrave massa que lhe devota sua atenccedilatildeo e

permanece alheia ao que de fato importa no tracircmite das instacircncias deliberativas A miacutedia

potencializada pela televisatildeo e pela internet horizontaliza o acesso agrave informaccedilatildeo ao

mesmo tempo em que vomita uma abundacircncia de alimento para a banalidade e desobriga

a populaccedilatildeo para seu aliacutevio de decidir por si mesma Assim o eacute para onde quer que se

olhe o sistema educacional as estrateacutegias de planejamento urbano a religiatildeo e mesmo a

arte Esse efeito em si dispotildee de um potencial homogeneizante pois a sociedade

axiomatizada pelo capital precisa atribuir valor de troca agraves suas produccedilotildees Este e aquele

produto precisam ter seus respectivos valores correspondentes a uma mesma unidade de

medida Essa eacute sua poderosa estrateacutegia de apropriaccedilatildeo de toda a produccedilatildeo desejante que

eacute domada homogeneizada e redirecionada no sentido da produccedilatildeo da mais-valia

A homogecircnese alienante no entanto natildeo eacute a uacutenica possibilidade de

investimento para a produccedilatildeo de sujeitos A subjetivaccedilatildeo maquiacutenica tambeacutem pode ter um

potencial emancipatoacuterio promotor de heterogecircnese O que Guattari defende eacute a

30 NIETZSCHE em carta enviada a Jacob Burckhardt em Janeiro de 1889 In ALMEIDA Nietzsche e o paradoxo p 141 31 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p16

92

emancipaccedilatildeo dos territoacuterios fixos tanto para a intervenccedilatildeo social quanto para o contexto

cliacutenico O programa teleoloacutegico de ldquocurardquo por um meacutetodo fixo eacute descartado em favor de

uma perspectiva eacutetico-esteacutetica de promoccedilatildeo da experiecircncia do espontacircneo no campo de

presenccedila cliacutenico O eixo de desterritorializaccedilatildeo do ritornelo subjetivante adquire aqui um

novo sentido cliacutenico uma vez feita a associaccedilatildeo entre crescimento organiacutesmico produccedilatildeo

desejante de realidade e ocupaccedilatildeo de novos territoacuterios de sentido receacutem-inventados

Nesse mesmo sentido a cliacutenica gestaacuteltica esquiva-se de assumir a diacuteade normal-anormal

como ocupaccedilotildees de territoacuterios existenciais identitaacuterios32 Roacutetulos como ldquosaudaacutevelrdquo ou

ldquodoenterdquo satildeo exiacutemias ferramentas de homogeneizaccedilatildeo mas prestam um desserviccedilo como

registros da experiecircncia subjetiva neles natildeo cabe o sujeito Em vez disso a gestalt-terapia

encontra uma alternativa mais parcimoniosa na anaacutelise funcional dos ajustamentos de

contato na fronteira organismo-ambiente e transita por entre o eixo ldquocontato bomrdquo ndash

ldquocontato falhordquo e mesmo nestes casos nas funccedilotildees de defesa supressatildeo isolamento

repeticcedilatildeo etc haacute sempre um aspecto criativo e adaptativo particularmente funcionais

numa sociedade intrinsecamente neuroacutetica como a que aqui se desvela

Natildeo eacute surpresa que a questatildeo da sujeiccedilatildeo agrave demanda impessoal do Outro

social (ldquosejardquo) leve naturalmente ao tema da neurose Sobretudo cabe ressaltar o

seguinte o problema da concepccedilatildeo psicologizante de que o neuroacutetico estaria ldquoprivado de

sua natureza humanardquo e que ela precisaria ser ldquorecuperadardquo eacute justamente o fato de que o

consulente de um processo terapecircutico eacute um sujeito em devir que constroacutei para si

identidades conforme sua conveniecircncia para as demandas ambientais agraves quais esteja

exposto Eis inclusive a justificativa de PHG para o estabelecimento da gestalt-terapia

como uma abordagem terapecircutica natildeo-normativa que estabeleccedila o menos possiacutevel uma

meta a ser atingida A claacutessica explicaccedilatildeo psicanaliacutetica eacute de que o sintoma eacute duplamente

uma defesa contra a vitalidade mas tambeacutem uma demonstraccedilatildeo de vitalidade A questatildeo

eacute que o sintoma eacute tambeacutem um esforccedilo organiacutesmico mas dedicado agrave repressatildeo do proacuteprio

Self ao inveacutes da resoluccedilatildeo de situaccedilotildees inacabadas na atualidade O sintoma eacute constitutivo

da funccedilatildeo Personalidade torna o sujeito autorreferente e reconheciacutevel como haacutebito que

eacute Sobretudo trata-se de uma criaccedilatildeo da funccedilatildeo de ato e de uma expressatildeo da

singularidade do sujeito Destarte a neurose cumpre uma funccedilatildeo em vez de um ldquomal-a-

ser-combatidordquo talvez ela se aproxime mais da ideia de um ldquomal necessaacuteriordquo Os efeitos

negativos da neurose a saber o embotamento do contato e da awareness a normatizaccedilatildeo

32 PHG Gestalt-terapia p44

93

a supressatildeo do estado oscilante de emergecircncia ndash relaxamento e sua conversatildeo em um

estado riacutegido de moderada ansiedade satildeo justamente o que faz o cotidiano estaacutevel e

territorializado do sujeito

A timidez eacute um dos exemplos apresentados por PHG33 de manifestaccedilatildeo de

defesa do Self contra a anguacutestia da desterritorializaccedilatildeo Ousar sair do conforto do status

quo e confrontar-se com o excitamento eacute muitas vezes uma experiecircncia aterradora em

face da qual a seguranccedila do conhecido parece ser uma alternativa mais favoraacutevel ldquoO que

temos que entenderrdquo dizem os autores ldquoeacute que natildeo existe algo como uma seguranccedila

verdadeira porque nesse caso o Self seria uma fixidezrdquo Uma vez que se esteja de acordo

com essa afirmaccedilatildeo de PHG soacute entatildeo eacute cabiacutevel preconizar que a postura conservativa de

seguranccedila personaliacutestica ndash saber com certeza dizer quem se eacute ndash seja abandonada em

proveito de uma postura de adaptabilidade e aceitaccedilatildeo espontacircnea das oportunidades de

crescimento orientadas pelo eixo da autorregulaccedilatildeo organiacutesmica

A prerrogativa da subjetivaccedilatildeo maquiacutenica autopoieacutetica faz eco com o sentido

dado aqui ao parecircnklisis de Epicuro que serve de instrumento agrave cliacutenica promotora de

desvios do clinamen fundada na Teoria do Self O aspecto de singularizaccedilatildeo que subjaz

nessa ontologia indica que a subjetivaccedilatildeo natildeo eacute senatildeo um enriquecimento de virtualidades

aliado agrave progressiva difusatildeo de um territoacuterio existencial de autorreconhecimento que eacute

por natureza vazado O que o faz vazar eacute exatamente a promoccedilatildeo do desvio condiccedilatildeo

sine qua non para o organismo contatar o mundo A desterritorializaccedilatildeo eacute um ajustamento

criativo que eacute biologicamente adaptativo assim como sua contraparte de ocupaccedilatildeo de

novos territoacuterios ndash isto eacute a adoccedilatildeo de novas significaccedilotildees provindas da cultura ndash tambeacutem

o eacute porquanto a divisatildeo entre intrapessoal e interpessoal eacute superada pela constataccedilatildeo de

que ldquotoda personalidade individual e toda sociedade organizada se desenvolvem a partir

de funccedilotildees de coesatildeo que satildeo essenciais tanto para a pessoa quanto para a sociedaderdquo34

Natildeo obstante esta seria uma afirmaccedilatildeo ingecircnua dos gestalt-terapeutas se natildeo fosse

ressaltado uma vez mais que aqui se trata de uma faceta heterogeneizante da

subjetivaccedilatildeo e que ao contraacuterio na loacutegica capitalista a reciprocidade entre

desenvolvimento do indiviacuteduo e do socius eacute um conceito distorcido pelo efeito da

axiomatizaccedilatildeo e do primado da mais-valia

Uma anaacutelise mais minuciosa do escrutiacutenio feito por Deleuze e Guattari sobre

a loacutegica capitalista seria tema de outro texto Todavia eacute necessaacuterio ao menos mencionar

33 PHG Gestalt-terapia p218 34 PHG Gestalt-terapia p162

94

o papel do capitalismo como grande constituinte da subjetividade privatizada da

contemporaneidade e explorar brevemente o modus operandi de seu vasto mecanismo

axiomatizante Foucault apontou como a passagem do regime feudal para o regime

disciplinar provocou uma inversatildeo na piracircmide identitaacuteria do poder Inicialmente a

vassalagem majoritariamente anocircnima estava engajada em uma relaccedilatildeo de subserviecircncia

ascendente para com a figura opulenta do monarca Em um regime disciplinar por sua

vez35 ldquo[] a individualizaccedilatildeo em contrapartida eacute lsquodescendentersquo Agrave medida que o poder

se torna mais anocircnimo e mais funcional aqueles sobre quem ele se exerce tendem a ser

mais fortemente individualizados36 O poder pulverizado e microfiacutesico que descreve

Foucault natildeo eacute senatildeo a inversatildeo do socius despoacutetico objetivamente codificado Por meio

deste exerciacutecio complexo de poder o regime capitalista abre matildeo de todos os coacutedigos e

permite que a proacutepria diversidade de identidades trabalhe a seu favor porquanto adquira

valor de troca O assim chamado (sarcasticamente afirmam Deleuze e Guattari) ldquopoder

de comprardquo natildeo eacute senatildeo um ldquofluxo verdadeiramente impotencializado que representa a

impotecircncia absoluta do assalariado assim como a dependecircncia relativa do capitalismo

industrialrdquo37 ndash trata-se portanto de um expediente antiprodutivo por excelecircncia

Em princiacutepio anteriormente a qualquer codificaccedilatildeo devimos todos os nomes

da histoacuteria fomos o mesmo ser em toda parte matildee pai chefe amigo inimigo filho

mito anocircnimo Todos estes desdobramentos repousariam como pura potencialidade sobre

o socius corpo pleno de antiproduccedilatildeo da terra inengendrada que remeteria a uma origem

anagoacutegica ou vale o acreacutescimo uma origem psicanaliacutetica A referecircncia ao socius

virginal preacutevio agrave marcaccedilatildeo cultural vale soacute como nostalgia seja ela nostalgia do Uno

holiacutestico ou nostalgia do ldquoS1rdquo forcluiacutedo a homeostase da indiferenciaccedilatildeo matildee-bebecirc

Isto em termos ontogeneacuteticos contudo nossa filogecircnese natildeo eacute diferente O

sistema nervoso motoacuterico-muscular humano desenvolveu-se evolutivamente de modo a

funcionar separado do pensamento cognitivo e sensorial (PHG 1951 p121) Mover-se e

raciocinar satildeo processos diferentes e independentes para o homo sapiens o que natildeo eacute

verdade para a maioria dos mamiacuteferos Uma vez mais a marca neuroacutetica da cultura

acentua a dissonacircncia entre sentidos e motricidade para impedir a espontaneidade Laccedilos

mais primitivos como sexo e alimentaccedilatildeo satildeo aleacutem de preacute-verbais preacute-pessoais O outro

35 Traduccedilatildeo livre No original ldquo[hellip] lrsquoindividualisation em revanche est lsquodescendantersquo agrave mesure que le pouvoir devient plus anonyme et plus fonctionnel ceux sur qui il srsquoexerce tendent agrave ecirctre plus fortement individualiseacutesrdquo 36 FOUCAULT Surveiller et punir p194 37 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p317

95

natildeo aparece como pessoa mas como ldquoalgordquo a ser contatado O que se distingue como

ldquopessoardquo seratildeo as posteriores criaccedilotildees das identidades culturais produto da inserccedilatildeo na

teia de fluxos subjetivantes do socius e das relaccedilotildees de alianccedila ou laccedilos sociais

Destarte a passagem dos registros intensivos no socius para os papeacuteis

identitaacuterios reificados eacute o ponto de partida da codificaccedilatildeo social A maacutequina capitalista

inobstante vem surgir na modernidade como inversatildeo deste processo ela opera

unidirecionalmente no sentido da total descodificaccedilatildeo dos fluxos O capital depende de

trabalhadores livres e da virtualidade do dinheiro (especulaccedilatildeo) e por isso natildeo daacute conta

de abranger todo o campo social Pelo contraacuterio soacute tem a ganhar se deixar que este fluxo

corra desterritorializado e cada vez mais intensificado O modus operandi da maacutequina

capitalista sua descodificaccedilatildeo dos fluxos implica a ruptura do Urstaat Imaginaacuterio como

referecircncia ao Estado ideal Nada mais eacute sacralizado Todavia no capitalismo apesar de

estarem descodificados os fluxos estatildeo capturados em uma orientaccedilatildeo axiomaacutetica Por

vias escusas que os fluxos esquizofrenicamente talham no socius por meio de crises

desarranjos e vertigens protoemancipatoacuterias eles cinicamente ndash a ponto de afirmarem que

parte nenhuma ali estaacute sendo lesada ndash convergem a um ponto comum que eacute

inexoravelmente o da proacutepria subsistecircncia do capital

Conclusatildeo

A breve menccedilatildeo agrave anaacutelise de Deleuze e Guattari sobre o capitalismo serve de

contraponto ao que foi exposto anteriormente sobre a Personalidade em devir justamente

por ser seu desdouro inerente A reinvenccedilatildeo criativa das narrativas sobre o Self estaacute com

relativa frequecircncia alienada agrave funccedilatildeo de autossubsistecircncia do capital todavia ela tem

igualmente o potencial para ser emancipatoacuteria e heterogeneizante Lanccedilar luz agrave distinccedilatildeo

entre uma e outra forma eacute um trabalho eacutetico em progresso cuja relevacircncia eacute justificada

pelo proacuteprio reconhecimento das capacidades dos seres desejantes em criar possibilidades

de existecircncia e por vecirc-las amordaccediladas pela vida inautecircntica

Levada ao extremo a criaccedilatildeo das identidades na cultura desprende-se da crua

veracidade de animais em contato e se sublima em nuvens de abstraccedilotildees de acuacutemulos

de significantes de dados que porventura venham a descrever um sujeito individualizado

Quando se crecircem absolutamente associados a determinadas identificaccedilotildees culturais os

organismos deixam de fazer uso instrumental e criativo da Personalidade doam seus

corpos para a territorializaccedilatildeo institucional e outorgam agrave autoridade do Outro poder de

96

ldquoexploraccedilatildeo do homem pelo homem e de muitos pelo todordquo38

Neste sentido a Teoria do Self principalmente graccedilas ao diaacutelogo que ela

permite estabelecer com outras antropologias revela uma forccedila poliacutetica a ser reconhecida

em sua expressividade Por meio dos marcos diferenciais que evidenciam no sujeito a

primazia do contato e da awareness ela se apresenta como uma ferramenta meritoacuteria

para o resgate da accedilatildeo criadora dos corpos e consequentemente para uma sutil revoluccedilatildeo

nas dinacircmicas de exerciacutecio de poder subjacentes nos laccedilos entre sujeito e Outro social

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PRAacuteTICAS DE CUIDADO DE SI NA ANTIGUIDADE1

Felipe Gustavo Soares da Silva2

RESUMO O presente trabalho faz anaacutelise histoacuterico-filosoacutefica do tema do cuidado de si a partir de suas praacuteticas nas figuras mais representativas do mundo grego desde o periacuteodo preacute-filosoacutefico ateacute Platatildeo demonstrando como as praacuteticas do cuidado representam um modo de viver ordenado e ainda mais caracterizam o pensar e o agir de uma eacutepoca ilustre da Histoacuteria e da Filosofia grega Por fim o trabalho apresente o cume filosoacutefico do tema do cuidado na antiguidade na personificaccedilatildeo de Soacutecrates conforme retratado pelos diaacutelogos platocircnicos PALAVRAS-CHAVE Antiguidade grega Cuidado de si Paideia ABSTRACT The present work performs an historical and philosophical analysis of the theme ldquocare of the selfrdquo through the prism of its practices by the most representative figures of the Greek world starting from pre-philosophical period until Plato demonstrating how the practices of the care represents an ordained way of life and more represents the thinking and the acting of an illustrious time of the History and the Greek Philosophy At last this work presents the philosophical apex of the theme care in ancient times personified by Socrates as portrayed by Platonic dialogues KEY-WORDS Greek antiquity Care of self Paideia

1 Introduccedilatildeo

A antiguidade grega eacute marcada fortemente por uma cultura de

autoaprimoramento do proacuteprio homem O processo educativo do homem natildeo dispensa

ao lado da tarefa do educador o papel do educando como primordial e diante disto cuidar

de si representa a praacutetica agrave qual era atarefado o educando O cuidado de si imperativo do

mundo antigo trata-se de uma seacuterie de praacuteticas que conduzem o homem a uma cultura de

si mesmo a uma vigilacircncia sobre suas accedilotildees e uma contiacutenua reflexatildeo sobre elas que tem

como finalidade uacuteltima para a vida humana o alcance da Excelecircncia

O cuidado de si eacute comumente estudado em diversas aacutereas sobretudo na

educaccedilatildeo na poliacutetica e na sauacutede obviamente pela influecircncia dos estudos realizados

recentemente por M Foucault que busca identificar as raiacutezes da subjetivaccedilatildeo na

1 Dedico este trabalho agrave profa Ana Cristina Machado pela parceria e amizade sempre presente 2 Mestre em filosofia (UFPE) Especialista em educaccedilatildeo pobreza e desigualdade social (UFPE) e-mail felipegustavopxhotmailcom

100

antiguidade sendo ele um dos mais importantes estudiosos do tema na

contemporaneidade Em seu segundo volume da Histoacuteria da sexualidade3 Foucault

aborda em um capiacutetulo especiacutefico o que ele chamada de uso dos prazeres a forma pela

qual o homem antigo relacionava-se com seus desejos e as praacuteticas ou o uso que faz deles

Jaacute no recuo histoacuterico ao mundo grego realizado em sua Hermenecircutica do sujeito4

descreve o que seria o cuidado de si e em que consistem as diversas accedilotildees praticadas pelo

homem grego Mesmo natildeo se tratando de uma anaacutelise teacutecnica da obra platocircnica mas uma

anaacutelise da questatildeo do cuidado diante do que ele chama de lsquotecnologias de sirsquo Foucault

traz uma anaacutelise importante para que possamos conceituar o cuidado de si para o modo

de viver dos gregos

Primeiramente o tema de uma atitude geral um certo modo de encarar as coisas de estar no mundo de praticar accedilotildees de ter relaccedilotildees com o outro A epimeleacuteia heautou eacute uma atitude para consigo para com os outros para com o mundo Em segundo lugar a epimeleacuteia heautou eacute tambeacutem uma certa forma de atenccedilatildeo de olhar Cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar que se o conduza do exterior paraeu ia dizer ldquoo interiorrdquo deixemos de lado esta palavra (que como sabemos coloca muitos problemas) e digamos simplesmente que eacute preciso converter o olhar do exterior dos outros do mundo etc para si ldquomesmordquo O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento Haacute um parentesco da palavra epimeleacuteia com meleacutete que quer dizer ao mesmo tempo exerciacutecio e meditaccedilatildeo Em terceiro lugar a noccedilatildeo de epimeleacuteia natildeo designa simplesmente esta atitude geral ou esta forma de atenccedilatildeo voltada para si Tambeacutem designa sempre algumas accedilotildees accedilotildees que satildeo exercidas de si para consigo accedilotildees pelas quais nos assumimos nos modificamos nos purificamos nos transformamos e nos transfiguramos Daiacute uma seacuterie de praacuteticas que satildeo na sua maioria exerciacutecios cujo destino (na histoacuteria da cultura da filosofia da moral da espiritualidade ocidentais) seraacute bem longo (FOUCAULT 2014p14-15)

Nos seus estudos Foucault trata de examinar a noccedilatildeo de cuidado apontando

trecircs dimensotildees principais em que o cuidado de si relaciona-se primeiramente a

pedagogia depois a poliacutetica e por fim a Eroacutetica (FOUCAULT M 2014 p52) O autor

centraliza sua abordagem do cuidado de si no Alcibiacuteades primeiro onde analisa o cuidado

da alma como principal objetivo do diaacutelogo O estudo realizado por Foucault natildeo pode

ser desprezado visto sua atualidade e significaccedilatildeo para o estudo atual da noccedilatildeo do cuidado

e visto sua descriccedilatildeo sobre o que significavam as diversas praacuteticas vividas e

3 FOUCAULT M A hermenecircutica do sujeito Trad de Maacutercio Alves da Fonseca Salma Tannus Nuchail Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 4 FOUCAULT Michel Histoacuteria da Sexualidade 3 - o cuidado de si Rio de Janeiro Graal 2002

101

compartilhadas pelo homem grego poreacutem adverte-nos Deleuze que Foucault natildeo

pretende rever os gregos mas observar os modos de constituiccedilatildeo do sujeito (moderno)

noccedilatildeo totalmente distinta do mundo antigo (DELEUZE1996 p 115) O proacuteprio Foucault

nos adverte que as praacuteticas de cuidado (de si) na antiguidade natildeo satildeo exclusividade do

momento filosoacutefico (FOUCAULT 2014) Mesmo antes dos grandes mestres da Filosofia

antiga jaacute havia uma espeacutecie de preocupaccedilatildeo do homem na forma de viver no mundo e se

relacionar com o que o envolvia seja um deus seja os outros homens seja a proacutepria vida

que ele encara e as situaccedilotildees diversas que nela encontra As situaccedilotildees nas quais os homens

se encontraram mesmo no momento preacute-filosoacutefico onde ainda natildeo havia um saber

racional estabelecido e praticado sinalizam a preocupaccedilatildeo em viver bem e natildeo de qualquer

maneira no mundo Algumas destas situaccedilotildees satildeo trazidas ao leitor neste texto procurando

evidenciar como a responsabilidade e o dever do cuidado representam um fator marcante

na histoacuteria da humanidade encontrando o aacutepice de suas recomendaccedilotildees na Filosofia de

Soacutecrates e Platatildeo

Para demonstrarmos o que ora propomos iremos demonstrar algumas

praacuteticas do homem no momento preacute-filosoacutefico e percorrer algumas passagens de quatro

diaacutelogos de Platatildeo em que o tema do cuidado eacute recorrente Apologia Alcibiacuteades

Repuacuteblica e Leis Estes quatro diaacutelogos iratildeo sinalizar tanto o pensamento socraacutetico

exposto por Platatildeo em torno do tema do cuidado e que ao mesmo tempo representa o

aacutepice de noccedilatildeo de cuidar de si mesmo na antiguidade

2 Praacuteticas no momento preacute-filosoacutefico

Encontramos no discurso mitoloacutegico ou seja ainda num momento anterior

ao discurso e reflexatildeo filosoacutefica sinais das praacuteticas de cuidado Neste momento a forma

pela qual o homem relacionava-se com uma determinada divindade influenciava

diretamente no percurso da poacutelis e do seu desenvolvimento sendo necessaacuterio uma espeacutecie

de cuidado nas praacuteticas a serem desenvolvidas nos cultos prestados aos deuses e na forma

pela qual o homem manifestava-se religiosamente atribuindo seu destino agraves matildeos e agraves

vontades dos deuses vemos ainda na poesia de Homero base da educaccedilatildeo grega Arcaica

um apelo a uma espeacutecie de cuidado a partir da ideia de virtude e de educaccedilatildeo Essa forma

de cuidar pode ser verificada por uma espeacutecie de exame e guiada pelo exemplo do heroacutei

veja-se que a Iliacuteada narra a guerra de Troacuteia tendo dentre os principais personagens o

guerreiro Aquiles responsaacutevel pela vitoacuteria dos gregos matando Heitor priacutencipe de Troacuteia

102

Num cenaacuterio beacutelico o vigor fiacutesico e a honra satildeo os valores que o poema incita O homem

natildeo se destina a uma vida puacuteblica mas agrave guerra e a guerra seria assim como o heroiacutesmo

o conteuacutedo praacutetico da vida humana A Odisseacuteia por sua vez conta a saga do heroacutei grego

Ulisses apoacutes a guerra de Troacuteia narrando as dificuldades encontradas na volta para casa

onde ele conta com o auxiacutelio da deusa Atena que lhe daacute proteccedilatildeo e o ajuda a reassumir

seu trono A Odisseacuteia traz entatildeo os elementos de uma civilizaccedilatildeo regida por leis que

adequam-se agrave sociedade e traz a imagem de um heroacutei a ser seguido um modelo de

heroiacutesmo Aqui o heroacutei estaacute jaacute inserido em uma civilizaccedilatildeo evoluiacuteda natildeo se trata mais de

um heroacutei de guerra mas de um cidadatildeo afaacutevel Poreacutem apesar da separaccedilatildeo do local no

qual estatildeo inseridos os dois heroacuteis o ideal do heroiacutesmo eacute o mesmo eacute ele o modelo da

educaccedilatildeo e o caminho a ser seguido para a Excelecircncia o que denota a existecircncia de uma

espeacutecie de cuidado voltada para o seguimento do exemplo do heroacutei que consequentemente

conduziria o homem agrave virtude

O modelo de educaccedilatildeo homeacuterica funda-se no comportamento virtuoso do heroacutei O comportamento dos heroacuteis representados por personagens humanas excepcionais aristocratas e nobres servia de modelo de comportamento para todos A virtude que os heroacuteis ostentavam atraveacutes de suas atitudes era chamada de arete(GOERGEN P 2006 P 185-186)

Tambeacutem importante para realccedilar o cuidado de si na antiguidade eacute o tema

trabalhado por Hesiacuteodo em Trabalhos e dias (HESIacuteODO 1996) Hesiacuteodo eacute assim como

Homero um grande poeta arcaico que contribui para moldar o pensamento moral e

religioso da Greacutecia tradicional Haacute entatildeo em Hesiacuteodo uma mudanccedila simboacutelica em relaccedilatildeo

a Homero do heroacutei valente e destemido do campo de batalha ao homem que centra a sua

forccedila no trabalho e produz para suprir as necessidades vitais da poacutelis Em Trabalhos e

dias Hesiacuteodo faz uma anaacutelise de uma das caracteriacutesticas fundamentais do mundo grego

que eacute o cultivo do espiacuterito agocircnico como caminho de atingir a sabedoria nos campos

poliacutetico e artiacutestico Para ele o trabalho eacute base da justiccedila entre os homens Esta disposiccedilatildeo

agoniacutestica em Hesiacuteodo se manifesta em Trabalhos e dias mediante o elogio da ldquoBoa Eacuterisrdquo

que atraveacutes de um saudaacutevel instinto de rivalidade entre os homens faz com eles se

esforcem perenemente pelo aprimoramento pessoal pois com o desenvolvimento das

suas respectivas qualidades perpetuaria infinitamente a vida humana e

consequentemente beneficiaria a proacutepria coletividade Quando fala sobre as qualidades

divinas da ldquoBoa Eacuterisrdquo em relaccedilatildeo agrave promoccedilatildeo do trabalho Hesiacuteodo afirma que ela

103

() estimula ao trabalho mesmo quem seja indolente Na verdade sente incentivo ao trabalho quem vecirc rica a pessoa que se afadiga a arar a terra a plantar a bem dispor a casa o vizinho inveja o vizinho que busca a abundacircncia Boa eacute esta Luta para os mortais O oleiro eacute ecircmulo do oleiro o artesatildeo do artesatildeo e o pobre inveja o pobre e o aedo o aedo (HESIacuteODO sect 20-26)

Haacute que se ressaltar que na poesia de Hesiacuteodo ocorre uma sutil diferenciaccedilatildeo

entre Ergon (o trabalho criativo cujo esforccedilo empreendido dignifica o homem) e Ponos

(a labuta sofrida extenuante) O cuidado seraacute representado exatamente pelo Ergon que

por sua vez conduziraacute ao homem agrave arete Hesiacuteodo nos demonstra atraveacutes de uma rica

reflexatildeo moral fundada na recusa da desmedida (Hyacutebris) e na celebraccedilatildeo da justiccedila e da

excelecircncia com o objetivo de delinear um modelo de virtude e aperfeiccediloamento Pelo

trabalho os homens renunciam agrave Hyacutebris e exercita-se na ponderaccedilatildeo da ldquojusta medidardquo

no empenho das energias corporais necessaacuterias para a realizaccedilatildeo de suas atividades A

postura do poeta seraacute de oferecer uma alternativa agrave eacutetica cavalheiresca preconizada nos

poemas homeacutericos vendo no exerciacutecio do trabalho o caminho para evitar a injusticcedila e se

alcanccedilar a virtude sendo assim a obra demonstra um conteuacutedo importante para se pensar

a praacutetica e a preocupaccedilatildeo com o cuidado de si na eacutepoca arcaica O trabalho humano

enquanto esforccedilo representa uma praacutetica de cuidado no momento preacute-filosoacutefico descrito

por Hesiacuteodo

Pelo trabalho eacute que os homens enriquecem em gados e bens E aqueles que trabalharem satildeo muito mais caros aos imortais Trabalho natildeo eacute vileza vileza eacute natildeo trabalhar Se trabalhares em breve o indolente te inveja a prosperidade Da riqueza eacute companheira o meacuterito e a gloacuteria Na situaccedilatildeo que te deram os deuses o melhor eacute trabalhar Cuida da tua vida desviando o teu acircnimo insensato das alheias riquezas para o trabalho como eu te exorto Uma vergonha pouco recomendaacutevel acompanha o indigente A vergonha estaacute junto da desgraccedila a confianccedila da felicidade (HESIacuteODO sect 308-316)

Chama agrave atenccedilatildeo ainda os festejos teatrais nos quais se via as peccedilas de gecircnero

traacutegico ou cocircmico aqui nos importa dizer que as trageacutedias especificamente eram

voltadas para uma purificaccedilatildeo uma catarse da alma Quando nos teatros as pessoas se

comoviam diante das cenas traacutegicas encenadas tinha-se entatildeo um sinal da presenccedila dos

deuses no lugar Parece que o ideal de purificaccedilatildeo representava uma espeacutecie de cuidado

impliacutecito agrave trageacutedia onde a catarse representava o encontro do homem consigo mesmo e

uma revisatildeo de vida que possibilitava entatildeo a sua purificaccedilatildeo pelo exame da proacutepria vida

104

3 A noccedilatildeo filosoacutefica do cuidado Soacutecrates e seu retrato em Platatildeo

O tema do cuidado nos remete diretamente agrave figura de Soacutecrates na

antiguidade Eacute Platatildeo que mais claramente traz em seus diaacutelogos a principal mensagem

filosoacutefica de seu mestre e que representa a mais estudada e fundamentada noccedilatildeo de

cuidado na antiguidade Aqui iremos verificar como o tema do cuidado aparece nos

principais diaacutelogos platocircnicos representando a preocupaccedilatildeo do autor em mostrar como

seu mestre Soacutecrates preocupava-se com a praacutetica do cuidado e em que medida essa

noccedilatildeo elevada filosoficamente pode contribuir para a Excelecircncia humana

Soacutecrates aparece nos diaacutelogos de Platatildeo sempre como aquele que

recomendara a praacutetica do cuidado ou pelo menos incitando a ela quando fala da

Excelecircncia sendo esta a finalidade uacuteltima da noccedilatildeo de cuidado Ora o cuidado a que ele

incita aos jovens eacute o cuidado da alma eacute este o objeto do cuidado eacute da alma que devemos

cuidar eacute sobre ela que o homem deve debruccedilar-se para poder enfim alcanccedilar a excelecircncia

O cuidado de si ou mais especificamente o cuidado da alma pode ser interpretada como

a grande mensagem trazida por Soacutecrates e testemunhada pelos diaacutelogos Platocircnicos este

cuidado teraacute como veremos uma dimensatildeo extremamente voltada para poliacutetica natildeo

podendo separar-se o individual e o coletivo neste primeiro momento ou seja o cuidado

da alma possibilitaraacute ao homem viver bem em meio aos outros homens a governar e a

ser governado e a alcanccedilar a excelecircncia na poacutelis Se o homem grego prezava pelo cuidado

de si como uma maneira de vida traduzida em todos os atos a liccedilatildeo de Soacutecrates eacute dar a

esta maneira de viver uma finalidade uacuteltima e mais nobre que eacute o cuidado da alma como

elemento mais nobre a ser cuidado pelo homem

Na maioria dos diaacutelogos platocircnicos em que o cuidado aparece como tema

recorrente vemos Soacutecrates como o mestre do cuidar eacute ele que incita cidadatildeos em geral e

de maneira particular o proacuteprio filoacutesofo a cuidar de si Aparece ainda o cuidado da cidade

e sobre ele nos diz-nos Hadot (2008) que haacute em Soacutecrates um aspecto missionaacuterio e

popular neste sentido entendemos que se abre a possiblidade do cuidado de si ser um

cuidado dos outros e um consequente cuidado de um organismo bem maior que eacute a cidade

O exame da proacutepria vida e a preocupaccedilatildeo com a relaccedilatildeo agir-falar exprime a

preocupaccedilatildeo da moral socraacutetica em demonstrar o papel da racionalidade da alma Esta

seraacute a instacircncia final do cuidado que veremos ao analisar como o cuidado de si aparece

na obra platocircnica em siacutentese a vida filosoficamente examinada encontra um caminho

possiacutevel pelo cuidado de si que incitara ao homem rever seus proacuteprios valores sua

105

maneira de agir cotidiana e longe de afastar-se da cidade deve nela proporcionar com os

outros homens que tambeacutem busquem cuidar de si aquilo que a Repuacuteblica apareceraacute

definido como a harmonia da cidade a justiccedila Vejamos estes diaacutelogos

31 A Apologia O mandamento Socraacutetico levado agraves uacuteltimas consequecircncias

Na Apologia5 na narraccedilatildeo da defesa proferida por Soacutecrates ante a sua

condenaccedilatildeo vemos um relato sobre a personificaccedilatildeo do cuidado de si na figura de

Soacutecrates Cuidar de si eacute o mandamento de Soacutecrates e ele o faz como objeto indispensaacutevel

para a vida A preocupaccedilatildeo com a riqueza deve ser afastada do homem mas busca-se a

virtude a partir de uma atenccedilatildeo consigo mesmo Primeiramente eacute bom situar que a defesa

de Soacutecrates daacute-se por ser acusado de corromper a sociedade sobretudo a juventude a

partir do mandamento do cuidado (Apol 25c)

Homens de Atenas contais com meu respeito e minha amizade mas acatarei ao deus de preferencia a voacutes e por quanto durar minha existecircncia e for eu capaz de prosseguir jamais renunciarei agrave filosofia e cessarei de vos exortar e de meu modo costumeiro com qualquer um de voacutes que venha a topar no meu caminho salientar ldquohomem excelente sendo como eacutes um cidadatildeo de atenas a maior das cidades-estado e a mais notoacuteria por sua sabedoria e poder natildeo te sentes envergonhado por te preocupares com a aquisiccedilatildeo de riqueza reputaccedilatildeo e honras enquanto natildeo te importas e nem te atentas para a sabedoria a verdade e o aperfeiccediloamento de tua almardquo E entatildeo se qualquer um de voacutes contestar o teor de minhas palavras e afirmar que realmente se importa natildeo permitirei que vaacute embora dispondo-me sim a interrogaacute-lo examinaacute-lo e submetecirc-lo a testese se apurar que natildeo eacute detentor da virtude a despeito de afirmar que o eacute o censurarei por desprezar coisas de maacuteximas importacircncia enquanto se importa com coisas secundaacuterias Assim agirei com todo aquele que encontrar jovem e velho estrangeiro e concidadatildeo poreacutem mais especificamente com os concidadatildeos porquanto sois ligados mais estreitamente a mim Certificai-vos de que assim o deus me ordena a fazer e creio natildeo haver nenhum outro benefiacutecio concedido a esta cidade do que o serviccedilo que presto ao deus Pois tudo que faccedilo em minhas andanccedilas eacute vos instar jovens e velhos entre voacutes a natildeo zelardes por vossos corpos ou vossas riquezas mais do que pela perfeiccedilatildeo possiacutevel de vossas almas e vos digo que a riqueza natildeo gera a virtude mas esta gera a riqueza e todos os demais bens aos seres humanos tanto os benefiacutecios privados quanto os puacuteblicos (Apol 29d ndash 30b)

5 Para nossa anaacutelise a principal traduccedilatildeo fora PLATAtildeO Apologia de Soacutecrates Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 2011

106

A Apologia nos revela o cuidado como o ensinamento socraacutetico que mais

caracteriza o personagem Soacutecrates eacute aquele que se preocupa consigo e preocupa-se com

os outros e diante disto devota toda a sua vida a exortar os homens a cuidarem de si

porque ele acredita que este eacute o caminho para o homem cidadatildeo e para a cidade alcanccedilar

a virtude Portanto Soacutecrates ataca o cultivo dos bens exteriores em detrimento da virtude

As praacuteticas de si visam a excelecircncia uma transformaccedilatildeo na vida daqueles que vivem de

qualquer maneira sem preocupar-se com a ela mas estatildeo ligados apenas aos bens

materiais e exteriores como a riqueza a beleza corporal e o poder Veja-se que Platatildeo

nos sugere que Soacutecrates levara o cuidado de si ateacute as uacuteltimas consequecircncias

consequecircncias de morte sem dar nenhuma justificativa para isto mas apenas como tarefa

confiada pelo deus e maneira uacutenica de dar sentido agrave proacutepria vida (Apol38 a)

Diante da morte de Soacutecrates vemos o testemunho de que o cuidado carece de

um outro e quem eacute esse outro senatildeo o mestre Eacute o mestre que vai cuidar do cuidado que

o outro vai ter de si neste sentido o diaacutelogo abre o debate para a ideia de que o cuidado

de si longe de ser um individualismo eacute uma atitude de si para o outro e neste sentido

reforccedila-se a necessidade do outro para que haja entatildeo o cuidado Ao mesmo tempo

reforccedila-se com a leitura da Apologia que o tema do cuidado eacute um tema socraacutetico e que eacute

proacuteprio da personagem incitar em suas oportunidades que os homens pratiquem o cuidado

de si Na apologia Soacutecrates daacute testemunho de toda sua atividade filosoacutefica em recomendar

aos jovens uma vida filosoficamente examinada ou seja uma vida em consonacircncia com

o cuidado de si aqui o cuidado aparece como condiccedilatildeo para os governantes e de fato o

tema tem lugar especiacutefico e fundamental quando se trata de governar os outros cuidar

dos outros parece uma tarefa bem maior que cuidar de si mesmo apenas e nisto estaacute a

liccedilatildeo do diaacutelogo ainda que natildeo pertenccedila a Platatildeo deve-se comeccedilar o cuidado por si

mesmo para poder cuidar dos outros

32 O Alcibiacuteades Primeiro o cuidado de si como cuidado dos outros6

O cuidado de si na Filosofia de Platatildeo eacute comumente estudado a partir do

diaacutelogo Alcibiacuteades primeiro7 onde de fato o tema do cuidado aparece de maneira clara

6 Para nossa anaacutelise a principal traduccedilatildeo fora PLATAtildeO O primeiro Alcibiacuteades In Fedro Cartas o primeiro Alcebiacuteades Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 2007 7 Eacute nesta obra que Foucault constroacutei essencialmente sua leitura da noccedilatildeo de cuidado na antiguidade mas especificamente ele constroacutei o curso no colleacutege de France fazendo leitura deste diaacutelogo e relacionando-os aos processos de subjetivaccedilatildeo num contexto de educaccedilatildeo e espiritualidade

107

como tema central e o cuidado eacute estabelecido como necessaacuterio como condiccedilatildeo para

governo da cidade ou seja como tema poliacutetico mas sem desprezar o cuidado de si

daquele que governa que deve cuidar da proacutepria alma antes da pretensatildeo de cuidar dos

outros (Alc134e) Essencialmente o cuidado de si eacute o tema da obra e quanto a isso

observa J Paviani que

o cuidado de si eacute examinado no Alcibiacuteades Primeiro na perspectiva da formaccedilatildeo social e poliacutetica do cidadatildeo Ele refere-se ao indiviacuteduo (e aos outros) e tambeacutem ao cuidado da cidade () A techne terapecircutica socraacutetica tem como objetivo a natureza humana isto eacute a alma a partir do cuidado que exige o conhecer-se a si mesmo A meta eacute a vida feliz do ser humano e do cidadatildeo (PAVIANI 2010 p 38)

O diaacutelogo estabelecido entre Soacutecrates e Alcibiacuteades eacute voltado para uma

questatildeo poliacutetica onde a preocupaccedilatildeo do jovem eacute de governar a cidade governar aos

outros e Soacutecrates lhe impotildee a tarefa de cuidar de si Esforccedila-te para te tornares cada vez

mais belo (Alc 131 d )

O que se deve cuidar Qual o objeto do cuidado A resposta eacute clara deve-se

cuidar da alma essa eacute a noccedilatildeo preliminar que orienta o governo de si e possibilita o

governo dos outros possibilita entatildeo a poliacutetica Esta eacute a dimensatildeo do cuidado tratada no

diaacutelogo como governar os outros senatildeo pela anterior e constante praacutetica do cuidado de si

mesmo

33 A Repuacuteblica e a dimensatildeo pedagoacutegica do cuidado8

Aqui importa destacar que visto em relaccedilatildeo agrave triparticcedilatildeo da alma cabe a cada

parte da alma um cuidado especiacutefico sendo a ideia de justiccedila enquanto virtude de todo

cidadatildeo e natildeo apenas de uma classe especiacutefica o cuidado enquanto fruto de todos os

outros cuidados que se manifesta como uma espeacutecie de moderaccedilatildeo Vejamos como isso

se desenvolve e aqui utilizaremos como exemplo a educaccedilatildeo dos guardiotildees e a forma

que lhes eacute recomendado o cuidar de si

Na Repuacuteblica Platatildeo defende que o filoacutesofo eacute quem deve governar Mas por

quecirc A resposta eacute bem simples Porque ele tem uma vida filosoficamente examinada

porque sua parte racional ordena agraves demais a si Ademais porque o Filoacutesofo da Repuacuteblica

8 PLATAtildeO A Repuacuteblica Ou sobre a justiccedila diaacutelogo poliacutetico Traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

108

cumpre aquilo que deve ser a condiccedilatildeo daquele que pretende governar aos outros Ele

governa a si mesmo Mas e o que dizer em relaccedilatildeo agraves demais classes de cidadatildeos Ora o

cuidado de si aparece de maneira discreta mas bem praacutetica na Repuacuteblica sob a oacutetica de

uma dimensatildeo pedagoacutegica mais especificamente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo da alma onde a

educaccedilatildeo de cada classe de cidadatildeo proporcionaraacute ao homem e agrave cidade a Virtude da

Justiccedila O cuidado de si aparece como uma espeacutecie de moderaccedilatildeo dever da educaccedilatildeo em

proporcionar ao homem a plena harmonia entre as partes de sua alma estendendo-se agrave

cidade a harmonia e a consequente justiccedila

A Soprosyne (σωφροσύνη) aparece como uma virtude que tem um uma

atenccedilatildeo especial pelo autor no contexto da triparticcedilatildeo da alma e da analogia agrave cidade a

moderaccedilatildeo ou temperanccedila a virtude que deve estar natildeo em uma parte especiacutefica da alma

mas em toda a cidade Toda educaccedilatildeo da Repuacuteblica tem a intenccedilatildeo de proporcionar uma

cidade justa na qual cada classe de cidadatildeo pratique sua virtude especiacutefica mas que seja

tambeacutem moderado e o ponto de chegada dessa conclusatildeo eacute que ldquoassim como soacute a razatildeo

pode governar o homem soacute o filoacutesofo eacute capaz de orientar os destinos da cidaderdquo (DOS

SANTOS 2008 P89) Vemos aiacute como o conceito de moderaccedilatildeo aparece como um domiacutenio

de si num contexto pedagoacutegico de formaccedilatildeo de cada classe de cidadatildeo e da cidade ideal

De maneira geral Platatildeo combate a questatildeo da submissatildeo do homem a toda sorte de

prazeres e

descreve de um modo traacutegico a existecircncia daqueles que pautam sua vida segundo o imperativo do prazer vivem errantes satildeo incapazes de ultrapassar o limite do prazer e elevar-se ateacute o verdadeiro ser nem podem provar o que seja um prazer soacutelido e puro Engordam e acasalam-se semelhante aos animais vivem pela cupidez dos sentidos dilaceram-se e batem uns nos outros matando-se por causa do seu apetite insaciaacutevel Passam a vida em prazeres misturados com sofrimentos satildeo fantasmas do prazer verdadeiro Satildeo insaciaacuteveis porquanto natildeo encham de alimentos consistentes a parte real e estanque de si mesmos (TEIXEIRA 2006 p30)

A moderaccedilatildeo eacute uma espeacutecie de domiacutenio de si e estes termos estatildeo ligados

diretamente agraves praacuteticas prescritas pelo ideal grego do cuidado A moderaccedilatildeo iraacute gerar na

alma humana uma harmonia diante dos prazeres e do desejo o que representa na

linguagem de Platatildeo o domiacutenio da parte superior da alma sobre as demais

Mas aparentemente o objetivo dessas expressotildees eacute tentar indicar que haacute na alma dessa mesma pessoa uma parte melhor e uma pior e que toda vez que a parte naturalmente melhor estaacute no controle da pior isto eacute expresso declarando-se que a pessoa eacute autocontrolada ou tem domiacutenio

109

de si mesma De qualquer modo a expressatildeo domiacutenio de si mesmo ou autocontrole eacute um termo de louvor Mas quando ao contraacuterio a parte melhor (que eacute menor) eacute dominada pela pior (que eacute a maior) devido a uma maacute criaccedilatildeo ou maacutes companhias isto eacute designado como descontrole ou licenciosidade e constitui uma censura (Rep431 a)

Na educaccedilatildeo proposta pela Repuacuteblica a harmonia na alma representa a

finalidade da educaccedilatildeo do homem a qual pretende que ele seja justo e consequentemente

a cidade tambeacutem o seja e desta forma que cada um ocupe-se com o que lhe foi destinado

pela natureza ldquoPara Platatildeo a moderaccedilatildeo eacute essencial para o desenvolvimento da sabedoria

e aperfeiccediloamento da alma A alma sem cultura e sem graccedila senatildeo tende para a falta de

comedimento A verdade eacute aparentada com o comedimento e natildeo com a falta delerdquo

(TEIXEIRA 2006 P39)

Eacute bom lembrar que aqui natildeo pretendemos demonstrar a estrutura da educaccedilatildeo

platocircnica descrita na Repuacuteblica poreacutem gostariacuteamos de exemplificar a questatildeo a partir da

educaccedilatildeo dos guerreiros voltada para o desenvolvimento da virtude da coragem e

demonstrar como a noccedilatildeo de cuidado aparece como imperativo de todos os homens

visando o bem da poacutelis e atividade poliacutetica A virtude especiacutefica para essa classe de

cidadatildeos eacute bem definida no livro IV da Repuacuteblica ldquoesse poder de preservar diante de

tudo a crenccedila correta e inculcada pela lei sobre o que deve ser temido e o que natildeo deve eacute

o que chamo de coragemrdquo (Rep430b) Para isso a formaccedilatildeo dos futuros guardiotildees

cultivava tambeacutem a opiniatildeo (δόξα) do jovem para que fosse reta incluindo a educaccedilatildeo

da muacutesica da poesia das faacutebulas e da ginaacutestica Soacutecrates deixa manifesto que a Paideacuteia

tem como objetivo a formaccedilatildeo de homens livres que enquanto tais natildeo precisam de medos

infundados mas que eles devem temer a escravidatildeo sob todas as suas formas9 Aqui

interessa demonstrar que nesse contexto surge a necessidade de formar um guardiatildeo

moderado em suas accedilotildees e que saiba cuidar de si O autocontrole eacute uma expressatildeo dessa

moderaccedilatildeo e aparece como tarefa a ser cultivada no futuro guardiatildeo que natildeo deveria temer

nada nem a morte (Rep390c) mas afastar-se de todas as ilusotildees ateacute mesmo as do

dinheiro e dos presentes (Rep390d) enfim de tudo fosse desmedido e exagerado O que

se deve cuidar na perspectiva da Repuacuteblica Sem duacutevida a alma poreacutem natildeo se prescinde

do corpo e este aparece como objeto da educaccedilatildeo da Paideia o cuidado com o gosto

musical com a poesia com o corpo pela ginaacutestica satildeo elementos que atestam que a

9 Sobre a questatildeo da liberdade na Repuacuteblica Cf ARAUacuteJO JUacuteNIOR Anastaacutecio Borges de ldquoOs sentidos da Eleutheriacutea na Repuacuteblica de Platatildeordquo Archai n 9 jul-dez 2012 pp 27-36

110

Repuacuteblica sugere e reflete aquela preocupaccedilatildeo do grego com a maneira pela qual o

homem relaciona-se com as coisas ao seu redor bem como a medida de tudo isso

Natildeo haacute como pensar a Repuacuteblica separando sua proposta pedagoacutegica de

cuidado Nela o cuidado do homem individual prepara-o para viver na poacutelis atraveacutes da

moderaccedilatildeo ou temperanccedila que seraacute a virtude que deveraacute estar em toda a cidade em cada

classe de cidadatildeos e natildeo apenas em uma especiacutefica

34 As Leis e o cuidado dos outros pelo cuidado de si10

As Leis11 enquanto um diaacutelogo da maturidade de Platatildeo apresenta a noccedilatildeo de

cuidado voltado para muitas direccedilotildees e destacamos aqui a dimensatildeo poliacutetica descrita na

obra e que retoma a analogia da alma agrave cidade conforme elaborado na Repuacuteblica Neste

diaacutelogo a lei eacute concebida como essencialmente divina (OLIVEIRA RR 2007 p337) e

a poliacutetica aparece como uma arte

Isso por conseguinte quer dizer a descoberta das naturezas e disposiccedilotildees das almas humanas - se revelaraacute como uma das coisas mais uacuteteis para a arte cuja incumbecircncia eacute delas tratar E esta arte eacute (como presumo que o diriacuteamos) a poliacutetica natildeo eacute mesmo (Leg 650b)

Esta arte eacute definida nas Leis como a ldquoarte de cuidar da almardquo sendo este o

criteacuterio que qualifica o homem para governar os outros homens Veja-se que a obra versa

sobre como governar mas tambeacutem como ser governado O governo de si eacute fruto da noccedilatildeo

de cuidado O tema do trabalho da alma eacute uma praacutetica que revela o cuidado e seu

direcionamento para a relaccedilatildeo com os outros atraveacutes da poliacutetica Isto nos mostra que a

noccedilatildeo de cuidado de si realmente difere-se de um individualismo de um egoiacutesmo mas

refere-se a uma atitude para o outro assim como na poliacutetica O que se deve cuidar a partir

da perspectiva das Leis eacute a alma12 E se eacute contestada a autenticidade do Alcibiacuteades

primeiro parece que as Leis eacute uma oportunidade para revermos a dimensatildeo poliacutetica do

cuidado longe dos problemas hermenecircuticos

10 Sobre o estudo das Leis importa destacar o trabalho de OLIVEIRA R R Demiurgia Poliacutetica as relaccedilotildees entre a razatildeo e a cidade nas Leis de Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2011 11 Para nossa pesquisa utilizamos a seguinte traduccedilatildeo PLATAtildeO Leis Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980 12 Como dissemos anteriormente este eacute o tema central do Alcibiacuteades primeiro Aqui faremos apenas essa referecircncia vista a problemaacutetica da autoria da obra Poreacutem destacamos aqui o mandamento de Soacutecrates a Alcebiacuteades mestra obra que eacute de cuidar de sua proacutepria alma como tarefa que precede o governo dos outros (132b) A felicidade da alma dependeraacute da virtude dos homens (134b) e portanto quem natildeo conhecer as coisas a seu respeito natildeo poderaacute conhecer tambeacutem as coisas a respeito dos outros (133e)

111

A noccedilatildeo de cuidar aqui apareceraacute envolvendo o papel do legislador daquele

que comanda a cidade e os cidadatildeos O filoacutesofo nas Leis torna-se o legislador e a

educaccedilatildeo entrelaccedila-se com a poliacutetica natildeo sendo mais a educaccedilatildeo de cada classe de

cidadatildeos mas a educaccedilatildeo de todos pelo imperativo de cuidar da alma e saber lidar pela

educaccedilatildeo com tudo aquilo que possa causar-lhe mau Trata-se de alcanccedilar uma totalidade

da virtude (Leg 630 e)Natildeo se trata de afastar o homem de seus desejos e sim de educa-

lo para lidar com eles Eacute o filoacutesofo que cuida do cuidado que os outros deveratildeo ter de si

O cuidado aparece tematizado como o cuidado pelo outro a partir da educaccedilatildeo e da Lei

Natildeo vemos no diaacutelogo uma exortaccedilatildeo socraacutetica agrave revisatildeo da proacutepria vida a um

conhecimento de si vemos na verdade a construccedilatildeo de um processo educativo onde pela

accedilatildeo do legislador o homem alcanccedilaria a excelecircncia Vejamos as palavras do diaacutelogo que

sugerem a proposta educativa das Leis

A educaccedilatildeo a que nos referimos eacute o treinamento desde a infacircncia na virtude o que torna o individuo entusiasticamente desejoso de se converter num cidadatildeo perfeito o qual possui uma compreensatildeo tanto de governar como a de ser governado com justiccedila Esta eacute a forma especiacutefica da formaccedilatildeo agrave qual suponho nossa discussatildeo em pauta restringiria ao termo educaccedilatildeo enquanto seria vulgar servil e inteiramente indigno de chamar de educaccedilatildeo uma formaccedilatildeo que visa somente agrave aquisiccedilatildeo do dinheiro do vigor fiacutesico ou mesmo alguma habilidade mental destituiacuteda de sabedoria e justiccedila (Leg 644 a-b)

O filoacutesofo assume o papel de cuidar pela educaccedilatildeo A noccedilatildeo de cuidar eacute impliacutecita

eacute necessaacuterio compreender que governar a cidade natildeo tem um outro caminho senatildeo

governar seus cidadatildeos e educa-los desde a mais tenra infacircncia voltando tudo para uma

essecircncia divina daiacute o ideal de que na Repuacuteblica aparece como ideia de Bem e nas Leis

aparece como sendo Deus a meta para onde tudo deve direcionar-se (Leg 716 c 717 a)

Quanto a questatildeo Jaeger afirma que

O filoacutesofo torna-se por meio da legislaccedilatildeo o demiurgo do cosmos da comunidade humana que deve ser integrado dentro daquele cosmos mais vasto e o impeacuterio de Deus realiza-se pela aplicaccedilatildeo consciente que o homem ser racional faz do logos divino (JAEGER 2011 p 1343)

Obviamente o cuidado surge nesta perspectiva que demonstramos como um

cuidado pelo outro sem desprezar a noccedilatildeo de cuidar de si mesmo O legislador filoacutesofo

na intenccedilatildeo de governar de legislar eficazmente e com justiccedila busca assemelhar-se do

divino e nisto consiste o seu especiacutefico cuidado consigo mesmo Veja-se que ele sugere

que soacute um Deus poderia possuir um conhecimento poliacutetico competente e concebe o

112

processo poliacutetico em uma continuidade ou seja os sucessores poderatildeo corrigir possiacuteveis

erros de seus antecessores por isso a legislaccedilatildeo eacute comparada por ele agrave uma obra de arte

(Leg 769c) O paracircmetro do cuidado eacute o cuidado com a cidade A poliacutetica consistiraacute

portanto em cuidar dos outros pelo processo educativo e pelas leis (noacutemoi) sendo papel

do legislador incumbir nos outros homens alguma sabedoria (Leg 687d) visando formar

o eacutethos dos homens e conduzi-los agrave uma virtude Esta virtude meta do projeto poliacutetico

das Leis tem relaccedilatildeo com a racionalidade e pode ser exemplificada com a passagem que

segue

Ograve estrangeiro natildeo eacute por acaso que as leis dos cretenses gozam de excelentiacutessima reputaccedilatildeo entre todos os helenos satildeo leis justas porquanto produzem o bem-estar daqueles que a utilizam proporcionando todas as coisas que satildeo boas Ora os bens satildeo de duas espeacutecies a saber humanos e divinos os bens humanos dependem dos divinos e aquele que recebe o maior bem adquire igualmente o menor caso contraacuterio eacute privado de ambos Entre os bens menores a sauacutede vem em primeiro lugar a beleza em segundo o vigor em terceiro necessaacuterio agrave corrida e a todos os demais exerciacutecios corporais segue-se o quarto bem a riqueza natildeo a riqueza cega mas aquela de visatildeo aguda que tem a sabedoria por companheira A sabedoria a proposito ocupa o primeiro lugar entre os bens que satildeo divinos vindo a racional moderaccedilatildeo da alma em segundo lugar da uniatildeo destas duas com a coragem nasce a justiccedila ou seja o terceiro bem divino seguido pelo quarto que eacute a coragem (Leg 631 b-d)

Veja-se que a meta (skopoacutes) da legislaccedilatildeo natildeo eacute algo vazio tem uma

finalidade a virtude e como dissemos relaciona-se com a racionalidade contribuindo

para o bem individualmente do cidadatildeo e coletivamente da poacutelis A educaccedilatildeo eacute o

caminho proposto para aquisiccedilatildeo da virtude pelo homem da poacutelis desde a mais tenra

infacircncia

Entendo assim por educaccedilatildeo a primeira aquisiccedilatildeo que a crianccedila faz da virtude Quando o prazer o amor a dor e o oacutedio nascem com justeza nas almas antes do despertar da razatildeo e uma vez a razatildeo desperta os sentimentos se harmonizam com ela no reconhecimento de que foram bem treinados pelas praacuteticas adequadas correspondentes essa harmonizaccedilatildeo vista como um todo constitui a virtude (Leg 653b)

4 Conclusatildeo

Podemos concluir que as praacuteticas dos homens no momento preacute-filosoacutefico

demonstram o cuidado de si nas mais diversas situaccedilotildees vividas sobretudo pelo

113

relacionamento com os deuses da mitologia aos quais se atribuiacutea o destino e governo do

universo bem como o fim uacuteltimo do homem

No processo de evoluccedilatildeo do conceito encontramos em Soacutecrates encontramos

o aacutepice da noccedilatildeo filosoacutefica do cuidado direcionando o dever do cuidar de si mesmo para

a alma do homem pela busca da virtude Esse aacutepice chega ateacute noacutes pela filosofia de Platatildeo

nela encontramos o ideal e a proposta de vida refletida e submetida agrave razatildeo que caracteriza

a praacutetica do cuidado de si tatildeo pregada por Soacutecrates e ora testemunhado pelos diaacutelogos de

Platatildeo Os diaacutelogos de Platatildeo satildeo marcados pela noccedilatildeo do cuidado impliacutecita nos ideais e

nas formas propostas de educaccedilatildeo para o homem O pensamento de Platatildeo eacute situado numa

eacutepoca em que esse cuidar era um elemento primordial na vida do homem Ademais ele

testemunha em seus escritos a sua eacutepoca e a eacutepoca do mestre Soacutecrates a quem devemos

o fato de elevar o cuidado a um status filosoacutefico e tornaacute-lo objeto de reflexatildeo para a vida

e para a felicidade do homem

O estudo das praacuteticas de cuidado na antiguidade nos leva a concluir toda a

importacircncia da educaccedilatildeo na antiguidade a busca pela virtude e pela vida feliz atraveacutes da

vivecircncia do cuidado de si mesmo e reflexatildeo sobre as proacuteprias accedilotildees e suas consequecircncias

No sentido filosoacutefico a predominacircncia da razatildeo frente aos desejos inferiores do homem

era o objetivo das praacuteticas de cuidado que coletivamente representavam uma accedilatildeo

poliacutetica onde todos eram beneficiados por esse elemento educativo de si mesmo e no

fundo da coletividade

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARAUacuteJO JUacuteNIOR Anastaacutecio Borges de ldquoOs sentidos da Eleutheriacutea na Repuacuteblica de Platatildeordquo Archai n 9 jul-dez 2012 pp 27-36 DELEUZE G Conversaccedilotildees Rio de Janeiro Editora 34 1996 DOS SANTOS Joseacute trindade Para ler Platatildeo A ontoepistemologia dos diaacutelogos socraacuteticos Satildeo Paulo Loyola 2008 FOUCAULT M A hermenecircutica do sujeito Trad de Maacutercio Alves da Fonseca Salma Tannus Nuchail Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 _______ FOUCAULT Michel Histoacuteria da Sexualidade 3 - o cuidado de si Rio de Janeiro Graal 2002

114

GAZOLLA Raquel A tirania na Repuacuteblica ndash o outro em si mesmo Rev Filosofiacutea Univ Costa Rica XLVI (117118)87-93 Enero-Agosto 2008 p 91 GOERGEN Pedro De Homero e Hesiacuteodo ou das origens da filosofia e da educaccedilatildeo Pro-posiccedilotildees v 17 n 3 (51) - setdes 2006 P 185-186 HADOT Pierre O que eacute a Filosofia Antiga3ordf ed Satildeo Paulo Loyola 2008 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias 3ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Loyola 1996 HOMERO Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Antocircnio Pinto de Carvalho Satildeo Paulo Abril 1978 ________ Iliacuteada Traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Abril 2009 JAEGER Werner Paideia a formaccedilatildeo do homem grego 5ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Martins fontes 2011 TEIXEIRA Evilaacutesio F Borges A educaccedilatildeo da alma segundo Platatildeo 4ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Paulus 2006 PAVIANI Jaime Platatildeo a educaccedilatildeo e o cuidado de si a recepccedilatildeo de Foucault Satildeo Paulo Hypnos nuacutemero 24 1ordm semestre 2010 PLATAtildeO A Repuacuteblica Ou sobre a justiccedila diaacutelogo poliacutetico Traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 _______ Apologia de Soacutecrates Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 2011 _______ Leis Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute1980

_______ O primeiro Alcibiacuteades In Fedro Cartas o primeiro Alcibiacuteades Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 2007

DO AMOR PLATOcircNICO AO CRUSH A FILOSOFIA ENTRE

ADOLESCENTES ndash TOacutePICOS DE ENSINO DE FILOSOFIA

Gabriel R Rocha1

RESUMO O artigo demonstra a relaccedilatildeo de equivalecircncia possiacutevel entre o amor platocircnico e o significado da giacuteria crush usualmente muito utilizada entre os adolescentes Natildeo obstante a equivalecircncia demonstrou-se falsa pois que o objeto do amor platocircnico consoante ao entendimento apresentado ao Banquete de Platatildeo difere do objeto de desejo expresso no signo crush No entanto apesar de diferir quanto ao fim o crush eacute passiacutevel de ser compreendido como etapa inicial no processo ascendente em relaccedilatildeo ao amor verdadeiro Pondera-se sobre o crush em sua correlaccedilatildeo ao contexto sociocultural contemporacircneo neste fim utiliza-se de autores como Pierre Leacutevy Ernest Cassirer Zygmunt Bauman e Alasdair MacIntyre justapondo-se sempre que possiacutevel e necessaacuterio a aspectos determinantes da filosofia platocircnica em correspondecircncia ao tema proposto Aleacutem de contar com uma breve introduccedilatildeo e consideraccedilotildees finais optou-se por uma seccedilatildeo uacutenica em contribuiccedilatildeo ao estudo qualitativo do tema Ademais o estudo reafirma a utilidade da filosofia como constituiacuteda de saber fortemente contributivo ao pensar rigoroso criacutetico e plural sobre as diferentes expressotildees que caracterizam o modo de ser contemporacircneo particularmente em relaccedilatildeo ao modo de ser do jovem adolescente imerso em um mundo cada vez mais multicultural global e inter-relacionado em rede Palavras-chave Amor platocircnico Beleza Crush Desejo Eros ABSTRACT The article demonstrates the possible equivalence relationship between platonic love and the meaning of the commonly used slang crush among teenagers Nonetheless the equivalence proved to be false since the object of Platonic Love according to the understanding presented of Platos Symposium differs from the object of desire expressed in the mark crush However despite differing in the end the crush is likely to be understood as the initial step in the ascending process in relation to true love It is based on crush in its correlation with the contemporary social and cultural context in this end it uses authors like Pierre Leacutevy Ernst Cassirer Zygmunt Bauman and Alasdair MacIntyre juxtaposing whenever possible and necessary to determinant aspects of the Platonic philosophy in correspondence to the proposed theme In addition to having a brief introduction and final considerations a single section was chosen contributing to the qualitative study of the theme In addition the study reaffirms the usefulness of philosophy as consisting of highly contributory knowledge in rigorous critical and plural thinking about the different expressions that characterize the contemporary way of being particularly in relation to the way of being of the young adolescent immersed in a world increasingly multicultural global and interrelated within a network Key-words Platonic love Beauty Crush Desire Eros

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Professor de Filosofia na educaccedilatildeo baacutesica email gabiphilo78gmailcom

116

Introduccedilatildeo

Entre muitos aspectos comuns que caracterizam a adolescecircncia2 a utilizaccedilatildeo

de giacuterias compotildee o que poder-se-ia chamar de ldquomodo de ser adolescenterdquo Este uso

particular da linguagem entre os jovens adolescentes natildeo se restringe a determinados

locais de livre convivecircncia mas perpassa tambeacutem o meio educacional ou seja o espaccedilo

de relaccedilatildeo e formaccedilatildeo que eacute a escola Da mesma forma em que tambeacutem se encontra

manifestadamente presente no mundo virtual ou ciberespaccedilo3

Evidente que nenhum professor estimula o uso de giacuterias em sala de aula

espaccedilo em que prioritariamente deve-se aprender e fazer uso de certas regras quanto agrave

utilizaccedilatildeo e compreensatildeo da linguagem seja esta miacutetica ou religiosa esteacutetica ou

cientiacutefica histoacuterica ou geograacutefica expressadas na oralidade ou na simbologia no desenho

ou na cartografia e claro na escrita Entrementes as giacuterias expotildeem particularidades natildeo

somente restritas a simples expressotildees verbais embora sejam estas o meio de sua

manifestaccedilatildeo mas expotildeem sobretudo caracteres comportamentais e eacuteticos culturais

esteacuteticos e sociais especiacuteficos agrave determinada geraccedilatildeo4

Resulta assim que se torna possiacutevel a identificaccedilatildeo de caraacuteter geracional

mediante agrave observaccedilatildeo cautelosa quanto ao uso de determinadas giacuterias quando aquele

que agrave expressa revela mesmo sem intencionalidade a qual geraccedilatildeo se vincula i eacute haacute

qual geraccedilatildeo pertencia quando do periacuteodo de sua juventude

Evidencia-se no interior desta perspectiva que existem giacuterias mais

universalizaacuteveis do que outras em que seu uso claramente ultrapassam aspectos mais

restritivos a grupos determinados Por exemplo haacute giacuterias que servem para identificar

certo grupo social ou agraves chamadas ldquotribos urbanasrdquo como as usadas entre os skatistas e

os punks mas a outras que nitidamente identificam todo um conjunto sociocultural e

mesmo histoacuterico de uma determinada geraccedilatildeo sobressaindo-se de maneira mais

2 No Brasil o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Lei Federal nordm 8 069 de 13 de julho de 1990) em seu artigo 2ordm assere o seguinte ldquoConsidera-se crianccedila para os efeitos da Lei a pessoa ateacute doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idaderdquo 3 LEacuteVY P Cibercultura p 157 o ldquociberespaccedilo eacute o espaccedilo das comunicaccedilotildees por redes de computaccedilatildeordquo 4 Este amplo aspecto que revela a abrangecircncia de uma giacuteria expotildee o desejo de socializaccedilatildeo inerente a qualquer ser humano Conforme assere ROCHER Guy Introduccioacuten a la sociologiacutea general p 23 ldquoA socializaccedilatildeo eacute o processo por meio do qual a pessoa aprende e interioriza no transcurso de sua vida os elementos socioculturais de seu meio ambiente integra-os na estrutura de sua personalidade sob a influecircncia da experiecircncia e de agentes sociais significativos e se adapta assim ao entorno social em cujo seio deve viverrdquo

117

abrangente Este parece ser o caso da giacuteria aqui escolhida para anaacutelise e reflexatildeo

filosoacutefica o ldquocrushrdquo

Natildeo causa estranheza que em um mundo cada vez mais globalizado e em rede

o que eacute tido como local rapidamente ultrapassa a sua origem geograacutefica ou histoacuterico-

cultural e assim estenda-se ao globo Se esta velocidade de inter-relaccedilatildeo e

interdependecircncia existe entre economias nacionais organizaccedilotildees paiacuteses e suas

instituiccedilotildees ainda mais velozmente se identifica esta ausecircncia de zonas limiacutetrofes ao que

refere ao mundo jovem adolescente

Em consequecircncia livros tornados ldquoBest-sellersrdquo filmes ldquoBlockbustersrdquo

seacuteries televisivas canais por assinatura vestuaacuterio acessoacuterios alimentaccedilatildeo ldquoblogsrdquo sites

de busca e pesquisa redes sociais ldquogamesrdquo entre outros identificam o comum modo de

ser caracteriacutestico deste periacuteodo existencial em nossa contemporaneidade mundial

Por conseguinte o objetivo primordial proposto deste artigo daacute-se no esforccedilo

compreensivo de a partir de uma giacuteria atualmente utilizada e disseminada entre a

juventude adolescente o ldquocrushrdquo promover o exerciacutecio reflexivo sobre certos aspectos

da filosofia platocircnica bem como ponderar sobre a possibilidade - em verdade

considerada como sempre necessaacuteria - da interferecircncia filosoacutefica no espaccedilo comum de

comunicaccedilatildeo e convivecircncia que se caracteriza a sala de aula

Neste intuito escolhe-se um termo que ultrapassou o discurso puramente

acadecircmico o de ldquoamor platocircnicordquo e sua possiacutevel relaccedilatildeo de equivalecircncia ou natildeo entre

esta expressatildeo e a giacuteria ldquocrushrdquo Assim resulta que o tema proposto sugere aproximar o

discurso produzido no texto filosoacutefico neste caso o texto dialoacutegico de Platatildeo sobretudo

o diaacutelogo Banquete e a expressatildeo ldquocrushrdquo atualmente usual entre os jovens adolescentes

em clara referecircncia no dizer deles mesmos ao objeto de seus desejos

Crush e amor platocircnico

Como anteriormente mencionado ldquocrushrdquo eacute uma giacuteria Mas ao que se refere

E neste sentido porque se revela plausiacutevel propor pensa-la filosoficamente justapondo-a

ao chamado ldquoamor platocircnicordquo

Antes de esclarecer-se os questionamentos referidos acima eacute necessaacuterio

adicionar agrave compreensatildeo proposta a seguinte contribuiccedilatildeo de Ernst Cassirer sobre o

conceito de siacutembolo Observa-se o seguinte

118

[] O sinal eacute uma parte do mundo fiacutesico do ser o siacutembolo eacute uma parte do mundo humano do sentido Os sinais satildeo lsquooperadoresrsquo os siacutembolos satildeo lsquodesignadoresrsquo [] Um siacutembolo natildeo eacute apenas universal poreacutem extremamente variaacutevel Posso expressar o mesmo significado em vaacuterios idiomas e ateacute mesmo dentro dos limites de uma uacutenica liacutengua o mesmo pensamento ou ideia pode ser expresso em termos muito diferentes [] Um siacutembolo genuiacuteno natildeo se caracteriza pela uniformidade mas pela versatilidade Natildeo eacute riacutegido nem inflexiacutevel eacute moacutevel5

Consoante a referendada citaccedilatildeo compreende-se o siacutembolo como elemento

que designa a realidade embora natildeo seja a realidade poreacutem oferta-lhe sentido A giacuteria

portanto eacute um siacutembolo e natildeo somente um sinal ou uma pantomima porque nela se

manifesta via linguagem todo o imageacutetico caracteriacutestico de um signo6 A giacuteria portanto

o ldquocrushrdquo expressa uma mediaccedilatildeo simboacutelica entre o real e o ideal sendo dotada de

significado e propiciadora de entendimento intersubjetivo

Termo de origem inglesa natildeo haacute traduccedilatildeo de ldquocrushrdquo enquanto giacuteria7 pois

ldquocrushrdquo eacute ldquocrushrdquo e assim expressa uma cultura linguiacutestica comum entre os adolescentes

qual seja a manifestaccedilatildeo do desejo amoroso a pessoas proacuteximas ou natildeo fisicamente mas

que sempre correspondam ou ao menos venham a corresponder ao imageacutetico erotizante

juvenil

Resulta do precedente que quando o (a) jovem adolescente afirma ldquoEle ou

ela eacute meu crushrdquo significa natildeo somente e necessariamente uma relaccedilatildeo direta e pessoal

poreacutem uma relaccedilatildeo de desejo idealizado em cuja principal forccedila motriz parece constituir-

se na beleza fiacutesica

Em consequecircncia tem-se duas possibilidades de equivalecircncia ao ldquoamor

platocircnico8rdquo a primeira eacute quanto a idealizaccedilatildeo do objeto de desejo a segunda daacute-se na

5 CASSIRER E Antropologia Filosoacutefica ndash ensaio sobre o homem introduccedilatildeo a uma filosofia da cultura humana p67 6 A tese principal de Cassirer eacute que toda relaccedilatildeo do homem com o mundo eacute mediada por um sistema de signos Esses sistemas podem ser linguiacutesticos artiacutesticos matemaacuteticos etc antes do homem ser racional ou poliacutetico ou faber ele eacute symbolicum 7 Diz-se ldquoenquanto giacuteriardquo porquanto a palavra crush significa literalmente ldquoesmagarrdquo ldquomoerrdquo mas tambeacutem traz consigo este significado de ldquopaixatildeo passageira e ou idealizadardquo por exemplo a expressatildeo ldquoShe has a crush for yourdquo (ldquoela tem uma quedinha por vocecircrdquo) Assim ao se analisar a giacuteria esta enquanto giacuteria e expressatildeo verbal entre os adolescentes natildeo recebe traduccedilatildeo embora todos saibam o seu significado quando transliterado agrave liacutengua portuguesa 8 Conforme o Dicionaacuterio Oxford de Filosofia p 148 verbete Ficino Marsiacutelio (1433-99) diz-se deste ldquoque seus comentaacuterios ao Banquete de Platatildeo satildeo a fonte da expressatildeo corrente ldquoamor platocircnicordquo com o sentido de um amor que natildeo procura expressatildeo sexual contentando-se antes unicamente com a apreciaccedilatildeo das formas que o ser amado exemplificardquo Marsiacutelio Ficino foi o principal representante do platonismo e neoplatonismo renascentista fundador e diretor da Academia de Florenccedila eacute sua a numeraccedilatildeo mundialmente conhecida que serve para a organizaccedilatildeo catalogaccedilatildeo e citaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo ldquoEm 1484 foi publicada sua traduccedilatildeo integral dos diaacutelogos de Platatildeordquo Id ibid p 148

119

relaccedilatildeo entre desejo e beleza i eacute o desejo pelo belo Todavia antes da necessaacuteria

continuidade investigativa desta equivalecircncia possiacutevel torna-se vaacutelido acrescentar o que

se segue

Quando na deacutecada de 1990 surgira entre os adolescentes o uso da giacuteria ldquoficarrdquo

esta trazia como significado simboacutelico o fato de realmente ter beijado algueacutem por

exemplo ldquofiqueirdquo com ldquoelardquo ou com ldquoelerdquo em uma festa Assim o ldquoficarrdquo natildeo equivaleria

a namoro i eacute um compromisso fixo com outra pessoa ldquoficarrdquo era somente ldquoficarrdquo

mesmo que houvesse a possibilidade do ldquoficarrdquo se efetivar em namoro ou em algum

compromisso monogacircmico

Da mesma forma o ldquocrushrdquo natildeo eacute necessariamente ldquoficarrdquo e muito menos

namorar mas sobretudo manifesta-se como ato de desejo ou de se encontrar enamorado

por algueacutem que pode ou natildeo ser de relaccedilatildeo fisicamente aproximada

Chega-se assim a primeira possiacutevel conclusatildeo o ldquocrushrdquo pode corresponder

a ldquoamor platocircnicordquo se e somente se pensado conforme o senso comum em sua

manifestaccedilatildeo de desejo amoroso idealizado mas natildeo realizaacutevel Portanto natildeo

expressando equivalecircncia com a proposta filosoacutefica de Platatildeo quanto ao amor Pois como

seraacute demonstrado o amor idealizado em Platatildeo eacute realizaacutevel constituindo-se no amor pelo

ldquoBelo em sirdquo sempre correlato ao amor pelo Bem logo ele natildeo eacute idealizado mas

plenamente atingiacutevel na contemplaccedilatildeo

Nestes termos o ldquocrushrdquo natildeo eacute passiacutevel de satisfazer tamanha exigecircncia

platocircnica entretanto ainda assim pode-se considerar o ldquocrushrdquo como equivalente da

primeira manifestaccedilatildeo pelo desejo do belo uma primeira etapa quanto a real beleza e o

verdadeiro amor que natildeo eacute e natildeo pode ser em Platatildeo somente amor pelos belos corpos9

Adentra-se pois ao tema da educaccedilatildeo10 do desejo de valor inestimaacutevel agrave Platatildeo

Se somente se deseja com o corpo (socircma) natildeo eacute possiacutevel agravequele que assim

procede desvincular-se de ldquoprazeres menoresrdquo Entretanto estes prazeres menores natildeo

satildeo isentos de intensidade ao contraacuterio por serem intensos e passiacuteveis de causarem

desregramento interno aos indiviacuteduos que justamente a estes prazeres haacute submissatildeo

9 Argumento que segue a loacutegica dos enunciados correspondente ao diaacutelogo Banquete contudo tambeacutem correlato ao diaacutelogo Fedro O tema seraacute desenvolvido mais adiante 10 Educaccedilatildeo natildeo tem sentido de instrumentalizaccedilatildeo teacutecnica mas sobretudo condiz com agrave educaccedilatildeo moral da psycheacute educar para a formaccedilatildeo e desenvolvimento das virtudes ou excelecircncias (aretai) morais Consultar diaacutelogo Leis 643e-644a-b Sobre esta questatildeo assere JAEGER Paideacuteia p 336 ldquoA educaccedilatildeo profissional herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofiacutecio ou a induacutestria natildeo se podia comparar agrave educaccedilatildeo total de espiacuterito e de corpo do nobre καλὸς κᾀγαϑός baseada numa concepccedilatildeo total do Homemrdquo

120

podendo efetivamente manifestar o domiacutenio do desejo de prazer sobre outras faculdades

ou tendecircncias internas da psycheacute11 (alma) humana o que por sua vez ocasionaraacute

indiviacuteduos compromissados somente com agrave satisfaccedilatildeo dos sentidos12

Para Platatildeo eacute preciso educar a faculdade desejante (epithymiacutea) opondo-lhe a

faculdade da razatildeo (logistikoacuten) e a esta acrescentando-lhe uma virtude ou excelecircncia

(areteacute) fundamental a temperanccedila (sophrosyacutenecirc)13 Observa-se o exposto seguinte no

diaacutelogo Fedro

[] em cada um de noacutes existem dois princiacutepios de forma e de conduta que seguimos para onde eles nos conduzem um inato eacute o desejo de prazer (ἐπιθυμία ἡδονῶν) outro adquirido que aspira sempre ao melhor Por vezes estas duas tendecircncias concordam em noacutes mas em certas ocasiotildees verificamos que entram em guerra em que uma vez sai vencedora a primeira outra vez a segunda Posto isto assentemos em que quando sai vencedora a forma orientada pela razatildeo essa forma chama-se temperanccedila quando eacute o desejo que destituiacutedo de razatildeo nos arrasta para os prazeres chama-se gula []14

Embora o desejo de prazer seja inato aos homens eacute necessaacuterio educaacute-lo

oferecer-lhe agrave correta direccedilatildeo caso contraacuterio natildeo se torna possiacutevel trilhar um caminho

ascendente do corpoacutereo ao racional diga-se espiritualizar a relaccedilatildeo com os objetos de

desejo bem como na relaccedilatildeo mesma com o proacuteprio desejo inato de prazer15

11 O termo alma do grego ψιχή eacute conceito fundamental em Platatildeo Considera-se aqui como termo alma a sede da inteligecircncia e da moral Conforme propotildee TRABATONNI Platatildeo p 131-32 ldquoDesde os tempos de Homero a alma representava a vida do corpo Todavia Platatildeo aceita a provaacutevel posiccedilatildeo do Soacutecrates histoacuterico que abandona o aspecto fisioloacutegico (alma como apenas o que manteacutem o corpo vivo) para uma imagem espiritual a alma eacute antes de tudo a sede do intelecto e da consciecircncia e eacute o sujeito das accedilotildees e dos valores moraisrdquo 12 Como assere GRUBE El pensamiento de Platoacuten p 130 ldquoDo ponto de vista da intensidade os maiores prazeres satildeo fiacutesicos [] se o que buscamos eacute a intensidade nunca a encontraremos na sauacutede ou na moderaccedilatildeordquo 13 Conforme o argumento apresentado corrobora ROWE Introduccioacuten a la eacutetica griega p 253 ldquoA sophrosyacutenecirc eacute a sujeiccedilatildeo harmoniosa das duas partes inferiores da alma agrave parte racional dominanterdquo Para Rowe sem a temperanccedila natildeo eacute possiacutevel agrave faculdade racional (logistikoacuten) da psycheacute dominar as funccedilotildees que lhe satildeo inferiores 14 PLATAtildeO Fedro 237e-238a Observa-se no Fedro 238a o trecho seguinte ldquo[] quando eacute o desejo que destituiacutedo de razatildeo nos arrasta aos prazeres e nos conduz a seu belo talante essa forma chama-se gulardquo Na traduccedilatildeo do diaacutelogo para a liacutengua inglesa tem-se o termo ldquoexcessrdquo a significar ldquoem demasiardquo ldquoem excessordquo In Plato in Twelve Volumes 1925 Questatildeo de amplo interesse cuja problemaacutetica adentra-se agrave psicanaacutelise Conforme MASCARENHAS Emoccedilotildees no Divatilde pp 216-19 ldquoa gula relaciona-se com a voracidade fissura mesma Por isso eacute insaciaacutevel ademais refere-se a todo tipo de excesso natildeo somente portanto aos apetites culinaacuteriosrdquo Assim tanto o termo gula da traduccedilatildeo para o portuguecircs quanto o termo excess em inglecircs ambos parecem adequados e expressam coerecircncia ao pensamento (notavelmente originaacuterio) de Platatildeo 15 REIS M Por uma nova interpretaccedilatildeo das doutrinas escritas a filosofia de Platatildeo eacute triaacutedica p 385 nota 11 argumenta o seguinte ldquoNa filosofia platocircnica o uso de epithymiacutea (apetite de algo) distingue-se daquele do eacuteros (desejo amor) O sentido do primeiro termo eacute mais restrito que o do segundo A epithymiacutea refere-se a um tipo de iacutempeto proacuteprio agrave parte apetitiva da alma voltado para determinado objeto (apetite de algo) ligado agraves experiecircncias de carecircncia e suprimento de prazer e dor Jaacute o eros refere-se ao impulso da

121

Platatildeo argumenta que natildeo eacute condizente com agrave razatildeo e com agrave virtude satisfazer-

se em um modo de ser conduzido por um hedonismo absoluto ainda mais quando os

objetos de prazer natildeo se elevam para aleacutem da sensaccedilatildeo16 O diaacutelogo Fedro na passagem

seguinte corrobora com agraves inferecircncias apresentadas

O desejo que desprovido de razatildeo atrofia a alma (psycheacute) e esmaga o prazer (hecircdonecirc) do bem e se dirige exclusivamente para os desejos proacuteprios da sua natureza cujo uacutenico objetivo17 eacute a beleza corporal quando se lanccedila impudicamente sobre ela comporta-se de tal maneira que se torna irresistiacutevel e eacute dessa irresistibilidade dessa forccedila destemperada que ele recebe a denominaccedilatildeo de Eros ou de Amor18

Embora o final da citaccedilatildeo conclua negativamente quanto agrave ldquoforccedila

destemperadardquo de Eros torna-se plausiacutevel quando adicionado a outros argumentos do

proacuteprio Fedro compreender que Eros quando desprovido de razatildeo e desprovido de

temperanccedila eacute somente forccedila impulsiva sem o devido direcionamento assim justifica-se

o educar daquele que deseja e somente assim eacute possiacutevel agrave alma (psycheacute) e natildeo ao corpo

amar o que verdadeiramente eacute digno de amor19

Entrementes antes de merecida e continuada anaacutelise qualitativa sobre Eros e

sobre determinados conceitos agrave compreensatildeo almejada eacute imprescindiacutevel somar-se mais

algumas consideraccedilotildees sobre o ldquocrushrdquo enquanto possibilidade de exprimir a mentalidade

cultural20 do jovem adolescente

totalidade da alma (e natildeo de parte dela) seu eacutelan vital movimento que conduz a alma agrave continuidade agrave unidade bem como elemento unificador do muacuteltiplordquo Este argumento embora forte eacute passiacutevel de refutaccedilatildeo na proacutepria passagem referendada no texto do diaacutelogo Fedro 238c Poreacutem o argumento estaacute correto quanto a caracterizaccedilatildeo de eros como forccedila propulsora agrave totalidade da alma (por isso aqui apresenta-se a interpretaccedilatildeo de eros como caminho ascendente em direccedilatildeo agrave Beleza em si consoante ao diaacutelogo Banquete da mesma forma considera-se que ldquocrushrdquo natildeo pode significar equivalecircncia a amor platocircnico como amor ideal justamente devido ao objeto de amor do amante Como elemento metafiacutesico de unificaccedilatildeo creia-se que estaacute mais para o Bem do que para Eros Quanto agrave questatildeo de carecircncia ou falta temos o desejo pela beleza assim como temos pela sabedoria ou pelo gozo fiacutesico o que difere eacute o objeto e natildeo a faculdade desejante Por isso educar a razatildeo de quem deseja e adicionar a virtude da temperanccedila 16 Isto eacute como ato de sentir aiacutesthesis 17 No original grego tem-se a expressatildeo ἐπιθυμιῶν ἐπὶ σωμάτων κάλλος assim a melhor traduccedilatildeo seria infere-se ldquocujo uacutenico desejo eacute a beleza corporalrdquo 18 PLATAtildeO Fedro 238c 19 Crecirc-se evidente que em Platatildeo natildeo haacute negaccedilatildeo do desejo de prazer A proacutepria felicidade (eudaimoniacutea) natildeo eacute a ausecircncia de desejos como pensaram os epicuristas ao contraacuterio a felicidade consoante Platatildeo eacute o domiacutenio sobre si i eacute o equiliacutebrio entre as faculdades da psycheacute embora seja sempre preferiacutevel o predomiacutenio da razatildeo como garantia da proacutepria harmonia Contribui GRUBE El Pensamiento de Platoacuten p 117 no seguinte ldquoPlatatildeo afirma que o prazer e dor satildeo estados de atividade rechaccedilando assim a confusatildeo de uma felicidade como mera imperturbabilidade e ausecircncia de todos desejos estado negativo e passivo que constituiria o ideal dos epicuristasrdquo Tambeacutem em referecircncia ao Filebo GRUBE (Ibid p 123) ldquoUma vida boa deve conter para tanto certa mescla de conhecimento e sentimento de intelecto e prazerrdquo 20 Conceito relevante agrave histoacuteria e agrave antropologia mentalidade cultural significa infere-se ao que caracteriza um modo de ser especiacutefico dentro de determinado contexto histoacuterico-social todavia natildeo restrito necessariamente a um tempo e espaccedilo determinado e especiacutefico pois que seu objeto eacute sobretudo o mental

122

Supotildee-se que a utilizaccedilatildeo de giacuterias entre os jovens adolescentes caso em que

o ldquocrushrdquo eacute somente mais uma dentre inuacutemeras acabam por atuar como ldquoidentificadoresrdquo

ou como ldquoagentes sociaisrdquo em que determinados grupos expressam seus valores e sua

mentalidade cultural comum logo identificaccedilatildeo essa fortemente relacionada agrave

coletividade Por paradoxal que inicialmente possa parecer o uso de giacuterias revela uma

possiacutevel contraposiccedilatildeo ao individualismo ou a individuaccedilatildeo marca indeleacutevel de nossa

eacutepoca

O socioacutelogo polonecircs Zygmunt Bauman assim define o conceito de

individualizaccedilatildeo ldquoO que a ideacuteia de lsquoindividualizaccedilatildeorsquo traz eacute a emancipaccedilatildeo do indiviacuteduo

da determinaccedilatildeo atribuiacuteda herdada e inata do caraacuteter social dele ou dela uma separaccedilatildeo

corretamente vista como uma caracteriacutestica muito clara e seminal da condiccedilatildeo

moderna21rdquo

Procede assim que o individualismo atua como desagregador do sujeito na

medida em que o dissocia do todo social promovendo o rompimento com a histoacuteria e

com a heranccedila familiar e comunitaacuteria22 Por conseguinte as giacuterias em geral acabam por

constituiacuterem-se como agentes de identificaccedilatildeo social estimulando agrave convivecircncia e agraves

relaccedilotildees intersubjetivas

Entretanto quando aplicado agrave especificidade da giacuteria ldquocrushrdquo natildeo se pode

inferir que haacute um efetivo movimento de socializaccedilatildeo Pois quando certo aluno relata que

possui diferentes ldquocrushrdquo em diferentes locais o referido espaccedilo23 natildeo eacute necessariamente

embora em direta relaccedilatildeo com o que eacute tipicamente social O historiador Ronaldo Vainfas em artigo intitulado Histoacuteria das Mentalidades e Histoacuteria Cultural p 148-49 corrobora em nossa elaboraccedilatildeo asserindo o seguinte [] lsquoNova Histoacuteria Culturalrsquo distinta da antiga lsquohistoacuteria da culturarsquo disciplina acadecircmica ou gecircnero historiograacutefico dedicado a estudar manifestaccedilotildees lsquooficiaisrsquo ou lsquoformasrsquo da cultura de determinada sociedade as artes a literatura a filosofia etc A chamada Nova Histoacuteria Cultural natildeo recusa de modo algum as expressotildees culturais das elites ou classes lsquoletradasrsquo mas revela especial apreccedilo tal como a histoacuteria das mentalidades pelas manifestaccedilotildees das massas anocircnimas as festas as resistecircncias as crenccedilas heterodoxas Em uma palavra a Nova Histoacuteria Cultural revela uma especial afeiccedilatildeo pelo informal e sobretudo pelo popularrdquo Nota-se portanto que o trabalho aqui proposto embora se relacione com que poder-se-ia chamar de ldquohistoacuteria das ideiasrdquo porquanto vinculado o tema a um grande expoente do pensamento filosoacutefico Platatildeo tem no entanto como ponto de partida de sua pretensa problematizaccedilatildeo algo que pertence agrave ldquocultura simplesrdquo informal expressatildeo de um modo de ser em que o uso da giacuteria serve como caracterizaccedilatildeo Ademais evidencia-se o tema como objeto passiacutevel de diferentes abordagens teoacutericas o que contribuiria por si soacute a produtivo trabalho interdisciplinar em sala de aula e natildeo somente na alcunha Ciecircncias Humanas mas tambeacutem notadamente em relaccedilatildeo agraves Linguagens e suas tecnologias 21 BAUMAN Z A sociedade individualizada p 183 22 Pensa de maneira correlata Alasdair MacIntyre em criacutetica agraves eacuteticas individualistas e em defesa da perspectiva apresentada pelo comunitarismo eacutetico do qual comunga Consultar entre outras obras After Virtue 1981 23 Natildeo adentraremos ateacute por falta de competecircncia socioloacutegica para fazecirc-lo na especiacutefica problemaacutetica quanto aos conceitos de espaccedilo Todavia apresenta-se sobre o tema o seguinte esclarecimento de BAUMAN Eacutetica Poacutes-Moderna p 167 ldquoMuito se escreveu sobre a distinccedilatildeo entre espaccedilo lsquofiacutesicorsquo mdash espaccedilo lsquoobjetivorsquo lsquoespaccedilo como talrsquo - e espaccedilo social Em geral existe acordo em que ambos se acham em

123

fiacutesico em verdade na maioria natildeo o eacute e nisto entra-se na questatildeo do distanciamento

promovido pelo mundo ldquoonlinerdquo e neste sentido ocorreria natildeo um estiacutemulo agrave

socializaccedilatildeo ao contraacuterio haveria estiacutemulo ao individualismo excludente24

A relaccedilatildeo com o virtual eacute inegaacutevel se nisto existe a promoccedilatildeo para o

retrocesso nas relaccedilotildees humanas ou abertura agrave socializaccedilatildeo todavia esta questatildeo longe

se encontra de mostrar-se conclusiva Natildeo obstante o aspecto mais estritamente filosoacutefico

ao tema talvez se revele no seguinte questionamento O que caracteriza agraves relaccedilotildees

humanas

Se agraves relaccedilotildees humanas estiverem restritas agrave socializaccedilatildeo e agrave vida coletiva ao

encontro com o outro em espaccedilo determinado no tempo e no espaccedilo sem duacutevida o mundo

ldquoonlinerdquo eacute seguramente expressatildeo de empobrecimento da existecircncia humana Por outro

lado se a virtualidade do espaccedilo em rede propicia relaccedilotildees humanas qualitativas entatildeo

haacute outras formas possiacuteveis de caracterizar os relacionamentos humanos Esta segunda

perspectiva positiva quanto agraves relaccedilotildees ciberneacuteticas parece colocar-se de acordo com o

pensamento do filoacutesofo francecircs Pierre Leacutevy

Para Leacutevy em obra intitulada Cibercultura ldquoeacute virtual toda entidade

lsquodesterritorializadarsquo capaz de gerar diversas manifestaccedilotildees concretas em diferentes

momentos e locais determinados sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou

tempo determinadordquo25 Se conforme assere trata-se de ldquomanifestaccedilotildees concretasrdquo a

realidade virtual eacute tatildeo composta de realidade quanto ao que se restringe a empiria das

relaccedilotildees humanas ideia ao que parece condizente com o conceito de

ldquodesterritorializaccedilatildeordquo

Nestes termos a giacuteria ldquocrushrdquo manifesta algo real embora o objeto desejado

seja uma simples reproduccedilatildeo imageacutetica Quando por exemplo jovens tornam-se

ldquoseguidoresrdquo nas redes sociais ndash que satildeo globais eacute vaacutelido frisar ndash de outros jovens que de

relacionamento metafoacuterico um com o outro De um lado falamos de espaccedilo social usando os termos cunhados para a distacircncia e proximidade lsquofiacutesicasrsquo lsquoobjetivasrsquo e mensuraacuteveis Mas de outro lado pode-se tambeacutem frisar que soacute se pocircde chegar agrave ideacuteia desse lsquoespaccedilo fiacutesicorsquo pela reduccedilatildeo fenomenoloacutegica da experiecircncia diaacuteria agrave pura quantidade durante a qual a distacircncia eacute lsquodespovoadarsquo e lsquoextemporalizadarsquo ou seja sistematicamente limpada de todos os traccedilos contingentes e transitoacuterios somente no fim dessa reduccedilatildeo eacute que se pode conceber o espaccedilo objetivo o espaccedilo como tal como lsquoespaccedilo purorsquo lsquoespaccedilo vaziorsquo espaccedilo destituiacutedo de qualquer conteuacutedo relativo a tempo e circunstacircncia Sob esse outro ponto de vista o espaccedilo fiacutesico eacute uma abstraccedilatildeo que natildeo se pode experimentar diretamente captamos o espaccedilo fiacutesico intelectualmente com a ajuda de noccedilotildees que se cunharam originalmente para lsquomapearrsquo qualitativamente relaccedilotildees diversificadas com outros homensrdquo 24 Tal inferecircncia coloca-se de acordo com o pensamento de Bauman em cuja criacutetica agraves redes sociais e ao mundo virtual perpassa quase a integridade de suas obras Cabe-nos ressaltar que de maneira oposta apresenta-se as ideias de Pierre Leacutevy 25 LEacuteVY P Cibercultura p 47

124

certa forma lhe representam ideais entre os quais o de beleza a consequecircncia desta

relaccedilatildeo se manifestaraacute no comportamento gerando-se assim atitudes e modos de

proceder crenccedilas e ideias portanto se a relaccedilatildeo em si mesma natildeo eacute necessariamente

social seus impactos seratildeo sentidos no interior das sociedades

Torna-se compreensiacutevel agrave valorizaccedilatildeo excessiva da beleza fiacutesica o culto aos

corpos trabalhados em esforccedilos contiacutenuos em horas de academia Natildeo se intenciona

criticar a valorizaccedilatildeo da sauacutede e do esporte mas sim o elevado status quo sociocultural

que impera em torno do corpo O chamado ldquopadrotildees de belezardquo que se encontram

reforccedilados na grande miacutedia formam modelos idealizados sobre o que melhor

representaria os ideais de belo

Neste panorama desenvolvem-se valores outros que natildeo correspondem aos

valores morais Ao valorar em demasia tudo o que se encontra atrelado ao corpoacutereo i eacute

aos valores materiais em consequecircncia desvaloriza-se princiacutepios necessaacuterios que

deveriam nortear a vida humana e as sociedades assim natildeo eacute por acaso que todas as

grandes crises da contemporaneidade mundial propotildee-se possuam como causa primaacuteria

a falta de virtudes26

O filoacutesofo Alasdair MacIntyre ao analisar agrave eacutetica tomista e a diferenciaccedilatildeo

proposta entre bens exteriores e bens interiores denota que as sociedades ocidentais

materialmente desenvolvidas excluiacuteram as virtudes em detrimento da valorizaccedilatildeo

somente dos bens exteriores

Neste sentido acrescentar-se-ia a identificaccedilatildeo do belo ao corpo com a

supremacia da imagem e da propaganda a promover a supraexcitaccedilatildeo dos sentidos tatildeo

bem explorada pelo ldquoshow businessrdquo e admirado pela ldquosociedade do espetaacuteculo27rdquo

privilegiando-se o desejo de prazer ao que eacute satisfeito apenas pelos sentidos que como

referido anteriormente coloca-se em oposiccedilatildeo ao que propusera o pensamento platocircnico

Assim a simbologia do ldquocrushrdquo relaciona-se diretamente portanto com a

imagem em um contexto que privilegia o espetaacuteculo Como proposto de forma notaacutevel

26 Cf MAcINTYRE Depois da virtude p 340-341 ldquoSe natildeo houver um telos que transcenda os bens limitados das praacuteticas constituindo o bem de toda a vida humana o bem da vida humana concebido como uma unidade faraacute com que certas arbitrariedades subversivas invadam a vida moral e sejamos incapazes de especificar adequadamente o contexto de certas virtudesrdquo 27 Tiacutetulo da obra de Guy Debord La Societeacute du spectacle publicada pela primeira vez em 1967 em Paris

125

por Guy Debord ldquoO espetaacuteculo natildeo eacute um conjunto de imagens mas uma relaccedilatildeo social

entre pessoas mediatizada por imagens28rdquo

A definiccedilatildeo de espetaacuteculo conforme se nos apresenta Debord acaba por

adentrar-se na anaacutelise desenvolvida porquanto o ldquocrushrdquo demonstra justamente as

relaccedilotildees que em grande medida satildeo mediatizadas pela imagem imagens estas que

representam os estereoacutetipos de beleza produzidos pela induacutestria cultural na

retroalimentaccedilatildeo dos proacuteprios valores das sociedades industrializadas contemporacircneas

Se de fato vivenciamos uma sociedade do espetaacuteculo isto tambeacutem significa

que vivenciamos uma sociedade da primazia dos sentidos e avessa ao pensamento

abstrato agrave contemplaccedilatildeo e agrave reflexatildeo

Para Platatildeo29 os sentidos satildeo considerados insuficientes e incapazes para

compreender a realidade primeira do inteligiacutevel e portanto a realidade e universalidade

dos princiacutepios originaacuterios (archaiacute) representados nas Ideias do Justo do Belo e

sobretudo a do Bem30 conforme evidencia-se no diaacutelogo Repuacuteblica

E que existe o belo em si e o bom em si e do mesmo modo relativamente a todas as coisas que entatildeo postulamos como muacuteltiplas e inversamente postulamos que a cada uma corresponde uma ideia que eacute uacutenica e chamamos-lhe a sua essecircncia [] E diremos ainda que aquelas satildeo visiacuteveis mas natildeo inteligiacuteveis ao passo que as ideias satildeo inteligiacuteveis mas natildeo visiacuteveis31

Do que se segue que em Platatildeo as artes em geral bem como os indiviacuteduos

que a expressam estatildeo somente utilizando-se de opiniotildees (doxai) sobre a realidade e natildeo

portanto com o conhecimento (episteacuteme) desta A imagem (eiacutedolon) que funciona como

representaccedilatildeo do sensiacutevel e revela o senso esteacutetico eacute uma coacutepia de algo que em si mesmo

eacute uma imitaccedilatildeo (miacutemesis) Logo natildeo haacute aproximaccedilatildeo ao que eacute verdadeiramente real e ao

que verdadeiramente possui valor ou deveria possuir valor ao ser humano32 Natildeo obstante

28 DEBORD La Societeacute du spectacle tese 58 Livre traduccedilatildeo do francecircs Vale a ressalva que o autor faleceu em 1994 antes portanto do acesso global agrave rede mundial de computadores (Internet) tambeacutem portanto antes do surgimento das redes sociais 29 O filoacutesofo propotildee uma relaccedilatildeo do homem com o todo coacutesmico universal O mundo fiacutesico e a vida fiacutesica que haacute neste somente expressa uma particularidade existencial mas se encontra neste plano os princiacutepios que o fundamentam A filosofia de Platatildeo promove a espiritualidade no humano e portanto vinculada ao impereciacutevel e permanente ao que em suma verdadeiramente eacute 30 Compreende-se que o Bem (Agathoacuten) natildeo eacute uma Ideia (Idea ou Eiacutedos) mas estaacute aleacutem destas conforme depreende-se do exposto seguinte Repuacuteblica 509c ldquo[] apesar do bem natildeo ser uma essecircncia (ousiacutea) mas estar acima e para aleacutem da essecircncia (hyperousiacutea) pela sua dignidade e poderrdquo 31 PLATAtildeO Repuacuteblica 507b 32 Tal raciociacutenio revela-se coerente ao sugestionado na ldquoteoria da Linhardquo no livro VI de A Repuacuteblica em que eacute se evidencia os diferentes niacuteveis hieraacuterquicos de realidade e a adequaccedilatildeo dos saberes apresentados de forma ascendente de maneira que cabe a psycheacute ascender da multiplicidade agraves essecircncias e ainda sobre

126

caberia ainda questionar Mas estas imagens representaccedilotildees do belo nos corpos belos

atuam propedecircuticamente em sentido ascendente agrave Beleza em si mesma

Chega-se novamente ao anteriormente proposto ou seja embora o desejo aos

corpos belos possa atuar como primeira etapa ao verdadeiramente Belo consoante ao que

eacute asserido no diaacutelogo Banquete a ausecircncia de valores que possam corresponder ao natildeo

corpoacutereo e a invisibilidade nas sociedades contemporacircneas acabam por atuar como fortes

empecilhos para este caminho ascendente em direccedilatildeo ao inteligiacutevel e portanto natildeo

correspondem agrave realidade do ldquoamor platocircnicordquo

No contexto mercadoloacutegico das sociedades industrializadas cujo mote

econocircmico eacute o consumo os objetos de desejo satildeo produzidos sobretudo no olhar eacute a

partir deste sentido corpoacutereo que aquele que deseja assim vislumbra os possiacuteveis prazeres

proporcionados na aquisiccedilatildeo de algum bem exterior

Eacute notaacutevel que nrsquoA Repuacuteblica33 confere-se agrave educaccedilatildeo o atributo de

justamente caracterizar-se a correta orientaccedilatildeo dada ao olhar Ora se se olha somente

tendo em vista as coisas materiais a faculdade que deseja iraacute preponderar fortemente

sobre a racionalidade e sobre qualquer virtude que a psycheacute possa apresentar e

desenvolver

Do que se segue que o olhar da psycheacute quando corretamente educado volta-

se agrave interioridade de si mesmo assim transcendendo agraves imperfeitas representaccedilotildees do

visiacutevel Contudo se o olho como oacutergatildeo humano pudesse indicar algo em direccedilatildeo agrave perfeita

beleza indubitavelmente encontrar-se-ia o ceacuteu ou mesmo o aleacutem do ceacuteu agraves galaacutexias e os

objetos do universo o grau maior de aproximaccedilatildeo quanto ao que eacute realmente Belo

Justifica-se pois o distanciamento quanto agrave simples beleza encontra nos corpos belos e

por conseguinte a ruptura entre o que chamar-se-ia de ldquocrushrdquo e o ldquoamor platocircnicordquo

Na atualidade de nossas sociedades a educaccedilatildeo subtraiu o olhar agrave

interioridade ao conhecimento de si mesmo eacute este sobretudo o sentido da correta

orientaccedilatildeo do olhar para Platatildeo Em suma este eacute caminho interno das virtudes dos bens

interiores como propunha a eacutetica tomista Infelizmente tudo parece indicar que se

caminha em sentido contraacuterio a estes bens impereciacuteveis e natildeo descartaacuteveis ao espiacuterito

humano

estas o Bem (este representado no simbolismo do Sol) Consultar tambeacutem o livro X da referida obra sobretudo a passagem de 597a-598e ss 33 PLATAtildeO Repuacuteblica 518d

127

A ldquomodernidade liacutequidardquo como a cunhou Bauman como sendo ldquoa civilizaccedilatildeo

do excesso da superfluidade do refugo e da sua remoccedilatildeo34rdquo eacute a civilizaccedilatildeo dos bens

exteriores da moda do supeacuterfluo e da mutabilidade constante assim em certo sentido o

ldquocrushrdquo representa somente esta necessidade de preencher-se de algo que provavelmente

natildeo duraraacute ateacute agrave proacutexima estaccedilatildeo

Da mesma forma se haacute uma civilizaccedilatildeo do excesso longe nos encontramos

consoante a eacutetica aristoteacutelica35 da virtude Tem-se o excesso do descartaacutevel e do

momentacircneo assim como haacute deficiecircncia do que se constitui como permanente e

duradouro daquilo que sempre eacute Sem duacutevida esta foi uma seacuteria preocupaccedilatildeo para Platatildeo

A beleza dos corpos degenera-se envelhece morre e decompotildee-se mas a

Beleza em si mesma encontra-se em tudo o que eacute belo e se belo tambeacutem bom porque

tudo verdadeiramente bom haacute de ser belo36 Do que se segue que as virtudes sempre satildeo

em si mesmas virtudes talvez seja este o teacutelos grego que precisa ser reconstruiacutedo37

O simbolismo do ldquocrushrdquo portanto expressa esta superficialidade indeleacutevel

ou esta ldquoliquidezrdquo nos dizeres de Bauman sobre agraves relaccedilotildees humanas nas sociedades

contemporacircneas E se estes desejos amorosos pelos belos corpos e das belas

representaccedilotildees das imagens ainda sim podem servir como indiacutecios de uma continuidade

ascendente agrave Beleza verdadeira e primeira neste caso se correto for haacute possiblidade de

se restaurar o humano em sua proacutepria humanidade

Em estudo sobre o diaacutelogo Banquete38 o notaacutevel historiador da filosofia e

helenista italiano Giovanni Reale comenta

34 BAUMAN Z Vidas Desperdiccediladas p 120 35 ldquo[] a virtude moral eacute um meio-termo e em que sentido devemos entender essa expressatildeo e que eacute um meio-termo entre dois viacutecios um dos quais envolve excesso e o outro deficiecircncia e isso porque a sua natureza eacute visar agrave mediania nas paixotildees e nos atosrdquo (Eacutetica agrave Nicocircmaco II 1109 a 20) 36 No texto platocircnico do diaacutelogo Hiacutepias Maior cujo principal objeto eacute a anaacutelise do conceito de Belo em uma busca marcadamente propedecircutica pela definiccedilatildeo do ldquoBelo em sirdquo apresenta-se embora o diaacutelogo seja aporeacutetico a equivalecircncia entre o Bem (Agathoacuten) e o Belo (Kaacutelon) neste sentido algo natildeo pode ser bom sem ser belo e belo sem ser bom Conforme o texto Hiacutepias Maior 297b assere Soacutecrates ldquoNa mesma ordem de ideias se o belo eacute causa do bem eacute porque o bem soacute pode ser originado pelo belo E aiacute estaacute salvo erro a razatildeo de nos empenharmos na sabedoria e em todas as demais coisas belas eacute que o seu produto o seu lsquorebentorsquo ndash ou seja o bem ndash eacute digno do nosso empenho e satildeo porventura elas que nos levam a descobri o belo como uma espeacutecie de lsquopairsquo do bemrdquo No diaacutelogo Repuacuteblica 506e-507c tem-se o inverso na relaccedilatildeo porquanto o Bem aparece como o ldquopairdquo do Belo Consultar entre outras obras fundamentais G M A Grube Platorsquos thought London University Press 1970 37 Neste sentido corrobora MAcINTYRE Depois da virtude p 368-69 ldquoAs virtudes devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior bem como um conhecimento do bem cada vez maiorrdquo 38 ldquoAs obras filosoacuteficas e eruditas em cujo tiacutetulo aparece a palavra banquete tatildeo abundantes na literatura grega poacutes-platocircnica atestam a grande influecircncia que a penetraccedilatildeo do espirito filosoacutefico e dos seus

128

[] a temaacutetica do eros e do amor deve ser entendido como forccedila mediadora entre o sensiacutevel e o suprassensiacutevel uma forccedila que daacute asas e eleva atraveacutes dos diversos graus da beleza agrave Beleza meta-empiacuterica em si mesma E jaacute que o Belo para o grego coincide com o Bem ou em todo caso eacute um aspecto do Bem assim Eros eacute uma forccedila que eleva ao Bem39

Eros ocupa um lugar de suma importacircncia porque atua exatamente na

distacircncia entre o mundo corpoacutereo sensiacutevel e o mundo verdadeiramente real ou

inteligiacutevel Por isso Eros eacute como o filoacutesofo Pois embora este ame o inteligiacutevel e tudo o

que lhe corresponde a virtude o Belo a sabedoria (sophiacutea) seu amor nunca eacute plenamente

satisfeito Por conseguinte sempre haveraacute uma ausecircncia a ser preenchida sempre haveraacute

necessidade de contiacutenuos esforccedilos para afastar-se da ignoracircncia (amathiacutea)

Do que pondera Reale o Amor eacute um daiacutemon40 entre outros que atuam entre

os deuses e os homens Filho de Penia (pobreza) e Poros (abundacircncia) o Amor ou Eros

tem dupla natureza estando no meio entre a ignoracircncia e a sapiecircncia41

Por sua vez Bauman apresenta o seguinte comentaacuterio ao diaacutelogo Banquete

[] Como sempre Soacutecrates se esforccedila para elevar a mera descriccedilatildeo agrave categoria de lei da loacutegica ao substituir provaacutevel por necessaacuterio natildeo eacute necessaacuterio que aquele que deseja deseje o que lhe falta ou natildeo deseje o que natildeo lhe falta Para que natildeo haja lugar para adivinhaccedilotildees e erros de julgamento Soacutecrates resume todos que desejam desejam o que natildeo estaacute em sua possessatildeo o que natildeo tecircm o que natildeo satildeo e o que lhes falta Isto eacute ele insiste o que chamamos de desejo ou seja o que o desejo deve ser a natildeo ser que seja outra coisa que natildeo o desejo42

Assim considera-se que o desejo eacute existente enquanto natildeo se possui o que se

deseja43 Logo infere-se que o problema eacutetico-filosoacutefico natildeo se encontra na faculdade de

desejar mas sim nos objetos aos quais se direciona a faculdade desejante

profundos problemas exerceu neste tipo de reuniatildeo Eacute Platatildeo o criador da nova forma filosoacutefica do banquete A narraccedilatildeo literaacuteria e a nova interpretaccedilatildeo filosoacutefica da antiga praacutetica social associam-se nele agrave organizaccedilatildeo da vida espiritual na sua escola rdquo JAEGER Paideia p722-23 39 REALE G Platatildeo p 217 40 Eacute vaacutelido elucidar que o termo grego daiacutemonδαίμων natildeo possui entre os gregos o sentido imaginaacuterio de anjo decaiacutedo entidade maligna que habita o inferno Ora o daiacutemon eacute identificado como espeacutecie de guia zeloso como aparece nas palavras de Soacutecrates (consultar Apologia de Soacutecrates) e ainda como aqui estaacute sendo utilizado no sentido de deuses menores (mortais) como eacute o caso do referido Eros 41 REALE ibid p 218-219 Consultar tambeacutem o diaacutelogo Banquete 202e-203a 42 BAUMAN A sociedade individualizada p 207-08 43 Assim pondera TRABATTONI Platatildeo p 147 ldquoO conceito de eros natildeo somente para Platatildeo revela um dado essencial da natureza humana ou seja a sua tensatildeo dinacircmica para a obtenccedilatildeo de um determinado objetivo Em outras palavras essa vontade pode ser chamada de lsquotensatildeorsquo ou lsquodesejorsquordquo

129

Em consequecircncia a proposta de Platatildeo quanto ao desejo eacute educar o agente

desejante i eacute a psycheacute humana Porquanto conforme for o direcionamento do ldquoolharrdquo

ter-se-aacute consigo agraves consequecircncias em relaccedilatildeo ao que se deseja Encontra-se assim a

funccedilatildeo paideiacutestica da filosofia mas tambeacutem a responsabilidade educativa do profissional

de educaccedilatildeo e ainda o dever educativo de pais e familiares como da sociedade em geral

em relaccedilatildeo ao comportamento e aos valores apresentados aos jovens e agraves geraccedilotildees futuras

Por conseguinte deve-se propor lucidez quanto aos objetos de desejo pois

naquilo em que hipoteticamente se encontra carente seria de fato necessaacuterio ou

simplesmente correspondente do supeacuterfluo O desejo apresentado se restringe agrave

satisfaccedilatildeo do corpo da vaidade do orgulho de si ou almeja uma satisfaccedilatildeo mais profunda

e elevada que inclusive pode ser considerada digna de equivalecircncia aos bens interiores

da psycheacute e assim tidos como universalizaacuteveis Retorna-se agrave problemaacutetica referida mais

acima quanto ao que se deve valorar ou ao o que estaacute sendo valorado nas sociedades

contemporacircneas

Socialmente ou culturalmente natildeo haacute grandes problemas quanto ao desejo

pelos belos corpos pela admiraccedilatildeo do vigor da juventude igualmente agrave procura de

experiecircncias diversas que objetivam formar a proacutepria identidade e o enriquecimento das

proacuteprias relaccedilotildees humanas Todavia a questatildeo eacute mais profunda e diz respeito a modos

de ser e valores equivocados que se tem cultuado na contemporaneidade mundial seja

esta uma ldquosociedade do espetaacuteculordquo como propotildee Debord ou uma ldquocivilizaccedilatildeo do

excessordquo como interpreta Bauman

O ldquocrushrdquo pode expressar culturalmente algo natural ao ser humano como

asseria Platatildeo i eacute o desejo de prazer Se no entanto este desejo de prazer restringir-se

somente ao corpoacutereo sem avanccedilar agrave formas e expressotildees mais elevadas e portanto

tambeacutem a prazeres mais qualificados em nada se avanccedila em sentido educacional e

mesmo civilizatoacuterio

Como assere Reale ldquoo amor eacute desejo do belo do bem da sapiecircncia da

felicidade da imortalidade44rdquo no entanto crecirc-se que este sentido ou esta direccedilatildeo dada ao

amor natildeo eacute natural mas sim consequecircncia adquirida na experiecircncia educativa de si

mesmo em correlata relaccedilatildeo ao mundo em que se vivencia agrave proacutepria existecircncia45

44 Cf REALE op cit p 219 45 Como eacute possiacutevel depreender-se da magistral passagem do diaacutelogo Banquete 210a-e 211c-d ldquo[] deve com efeito comeccedilou ela (Diotima) o que corretamente se encaminha a esse fim comeccedilar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos e em primeiro lugar se corretamente o dirige seu dirigente deve ele amar um soacute corpo e entatildeo gerar belos discursos pois deve compreender que a beleza em qualquer corpo eacute irmatilde

130

Do que se segue que na relaccedilatildeo de ensino e aprendizagem quando a atenccedilatildeo

do professor se direciona natildeo somente agrave conteuacutedos poreacutem permitindo a abertura para a

vivecircncia dos proacuteprios educandos promove-se assim o compreender de novos horizontes

educativos que se integram aos conteuacutedos necessaacuterios todavia acrescentando-lhes

sentidos qualitativos que dignificam e enobrecem a proacutepria relaccedilatildeo entre professores e

alunos

Considerado o ldquocrushrdquo como possiacutevel expressatildeo de primeira etapa do amor

o amor pela particular beleza manifestada em um corpo belo pode-se ponderar em

aproximada consonacircncia agrave proacutepria descriccedilatildeo de amor apresentada por Diotima propondo

assim um caminho ascendente de contemplaccedilatildeo da beleza Sem duacutevida a apresentaccedilatildeo de

um novo arcabouccedilo de valores se apresentam indispensaacuteveis e eacute neste novo caminho

propositivo que os belos discursos se tornam imprescindiacuteveis agrave formaccedilatildeo educativa e

filosoacutefica

Neste propoacutesito o direcionamento do olhar amoroso agraves coisas

verdadeiramente belas a procura ao mais belo indubitavelmente conduziraacute ao encontro

com as virtudes e sobretudo ao Bem46 Vislumbra-se assim a inegaacutevel probabilidade

quanto aos provaacuteveis benefiacutecios a serem produzidos nas relaccedilotildees humanas e na vida em

sociedade

Resulta-se assim do exposto precedente a plausibilidade ndash embora soe pueril

ndash de maior apreccedilo agrave filosofia ou ao amor agrave filosofia Natildeo obstante o despertar para este

amor natildeo se encontra restringido no desejo aos corpos belos mas o bom uso desta forccedila

impulsiva de Eros adicionando-lhe o melhor uso de uma racionalidade que enfim

compreenda a ausecircncia de desejo agrave sabedoria nas sociedades contemporacircneas pois como

da que estaacute em qualquer outro e que se deve procurar o belo na forma muita tolice seria natildeo considerar uma soacute e mesma beleza em todos os corpos e depois de entender isso deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um soacute [] depois disso a beleza que estaacute nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo de modo que mesmo se algueacutem de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto contente-se ele ame e se interesse e procura e produza discursos tais que tornem melhores os jovens para que entatildeo seja obrigado a contemplar o belo nos ofiacutecios e nas leis e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum e julgue de pouca monta o belo no corpo depois dos ofiacutecios eacute para o conhecimento que eacute preciso transportaacute-lo a fim que veja tambeacutem a beleza das ciecircncias e olhando para o belo jaacute muito sem mais amor como um domeacutestico a beleza individual de uma crianccedila de um homem ou de um soacute costume natildeo seja ele nessa escravidatildeo miseraacutevel e um mesquinho discursador mas voltado ao vasto oceano do belo e contemplando-o muitos discursos belos produza e reflexotildees em inesgotaacutevel amor agrave sabedoria [] Eis com efeito em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir em comeccedilar do que aqui eacute belo e em vista daquele belo subir sempre como servindo-se de degraus [] e conheccedila enfim o que em si eacute belordquo 46 ldquoPara Platatildeo o conceito de eros torna-se assim a suma e o compecircndio da aspiraccedilatildeo humana ao bemrdquo JAEGER ibid p 738

131

exorta o Banquete47 ldquoUma das coisas mais belas eacute a sabedoria e o Amor eacute amor pelo

belo de modo que eacute forccediloso o Amor ser filoacutesofo e sendo filoacutesofo estar entre o saacutebio e o

ignoranterdquo

Consideraccedilotildees finais

Ao longo do texto houveram algumas conclusotildees que denotaram certo grau

de pessimismo em referecircncia a giacuteria ldquocrushrdquo Pois o seu mais direto significado se

identifica com um modo de ser puramente relacionado ao efecircmero e supeacuterfluo sendo

mais uma expressatildeo de sujeiccedilatildeo do poder constante da imagem e aos ininterruptos

estiacutemulos visuais aos quais todos noacutes encontramo-nos submetidos na

contemporaneidade

Se por um lado eacute na juventude que devemos adquirir certos valores essenciais

agraves necessaacuterias relaccedilotildees humanas eacute tambeacutem o periacuteodo existencial que manifesta grandes

sonhos e ideais de uma incerteza otimista quanto ao futuro ndash como se em outro periacuteodo

existencial se tornasse possiacutevel haver certezas ndash e a crenccedila frequente de que tudo eacute

realmente viaacutevel de ser realizado Triste seria segundo esta linha argumentativa de uma

juventude isenta de idealismo do querer um amor ideal de desejar o que causa prazer e

negar o que eacute motivo de dor Entrementes natildeo se pode confundir ideais com ilusotildees da

mesma que natildeo eacute possiacutevel equivaler submissatildeo a padrotildees como livre-arbiacutetrio

A contemporaneidade possui certos aspectos comuns devido mesmo a

internacionalizaccedilatildeo cultural em que estamos inseridos i eacute o local de alguma forma

sempre estaacute imerso ao global A rede mundial de computadores as redes sociais

ldquodesterritorializaramrdquo agraves relaccedilotildees humanas consoante ao demonstrado no pensamento de

Pierre Leacutevy Para o filoacutesofo francecircs ampliou-se positivamente a comunicaccedilatildeo e o homem

ganhou novos horizontes e possibilidades que lhe enriquecem a existecircncia

Em forma distinta o socioacutelogo polonecircs Zygmunt Bauman deduz que as

relaccedilotildees humanas se tornaram empobrecidas fluidas sem portanto a necessaacuteria

consistecircncia qualitativa que deveriam sustentar agraves relaccedilotildees humanas Encontramo-nos

carentes de sabedoria e distanciados do que os gregos chamaram de bem viver ou boa

vida

47 PLATAtildeO op cit 204b

132

De maneira similar embora de outra perspectiva argumentativa Alasdair

MacIntyre propotildee que a grave ausecircncia de virtudes nas sociedades ocidentais eacute

consequecircncia do individualismo das eacuteticas modernas e do emotivismo encontrado nas

eacuteticas contemporacircneas Eacute novamente preciso aproximarmo-nos enquanto sociedades

desenvolvidas e industrializadas dos ideais de virtude bem como encontrarmos um teacutelos

que corresponda aos anseios da proacutepria racionalidade

Mediante a toda esta complexidade tem-se em Platatildeo algumas possibilidades

para repensarmos o nosso comportamento e nossos valores Entrementes natildeo se trata de

acordarmos em absoluto com o pensamento platocircnico e nem de crermos na possibilidade

de haver na obra do filoacutesofo grego todas as respostas que procuramos em nossas

inquiriccedilotildees Natildeo obstante a maneira como Platatildeo propotildee agrave filosofia i eacute como amor ao

saber que forma o homem de maneira marcadamente espiritual ou seja do homem

integrado ao cosmo e em correspondecircncia a um ideal de perfeiccedilatildeo beleza e sabedoria

manifesta uma maneira de ser ou um modo de vida que se opotildee ao materialismo

existencial vigente

Os filoacutesofos os professores os pesquisadores das ciecircncias humanas natildeo

podem omitir-se quanto agrave formaccedilatildeo moral ciacutevica poliacutetica e comportamental da juvenil

adolescecircncia Pois muito se instrui o intelecto mas pouco ainda se faz em relaccedilatildeo agrave

verdadeira educaccedilatildeo que como propusera Platatildeo eacute educaccedilatildeo para as virtudes Contudo

conforme asserido natildeo eacute possiacutevel educar para as virtudes se natildeo valoramos os bens

internos ao espiacuterito humano

Eacute preciso dizer com coragem agraves sociedades e agraves instituiccedilotildees muitas das quais

instituiccedilotildees educacionais nem tudo que parece ter valor eacute digno de ser valorado Tal

assertiva inclusive revela o sentido aproximado expresso no seguinte ldquoTudo me eacute liacutecito

mas nem tudo conveacutem procuro natildeo me deixar dominar por nada48rdquo

A exortaccedilatildeo do apoacutestolo Paulo nos revela algo importante para ainda

pensarmos nestas palavras finais de encerramento O ser humano independente da eacutepoca

e do contexto histoacuterico e independentemente de qualquer possiacutevel determinismo

geograacutefico ou cultural possui em si mesmo certas tendecircncias internas devendo-se educar

lhe para natildeo se perder no excesso de suas imperfeiccedilotildees morais ou na carecircncia do que lhe

eacute oposto ou seja a virtude

48 PAULO 1 Carta aos Coriacutentios 6 12

133

Como considerado tem-se o excesso de bens materiais e superabundacircncia do

supeacuterfluo e do descartaacutevel em patoloacutegica valorizaccedilatildeo agrave objetos que promovam o prazer

somente ao corpoacutereo e aos sentidos natildeo obstante eacute desvelada a factual ausecircncia de

virtudes de satisfaccedilatildeo de si de prazeres qualificados que enobreccedilam e que ofertem reais

sentidos agrave existecircncia para aleacutem da aparecircncia fiacutesica e da transitoriedade de bens de

consumo

Platatildeo propunha que todo ser humano eacute detentor de um defeito inato ldquoo amor

excessivo de si mesmordquo como tambeacutem a existecircncia do desejo inato de prazer Logo se

natildeo oferecermos aos adolescentes e agraves crianccedilas aos jovens enfim a ldquosolidezrdquo portanto

em oposiccedilatildeo a ldquoliquidezrdquo quanto a maneiras corretas de se proceder e de agir consigo

mesmo e com os outros as novas geraccedilotildees correm o risco de tornarem-se incapazes de

desejarem o que natildeo se vecirc com os olhos do corpo

Eacute este o sentido que o ldquocrushrdquo natildeo poderia somente ser embora o seja i eacute

o desejo pelo belo sem nenhuma intencionalidade de procurar o mais Belo natildeo havendo

assim uma verticalidade dialeacutetica ascendente tudo se daacute no corpoacutereo e neste permanece

Eacute somente neste sentido que se pode permitir equivalecircncia entre ldquocrushrdquo e ldquoamor

platocircnicordquo ou seja somente na concepccedilatildeo common sense do termo porquanto o ldquoamor

platocircnicordquo repete-se natildeo eacute idealizado no sentido comum de entendimento da expressatildeo

de inalcanccedilabilidade de desejo poreacutem apenas ao que manifesta corporeidade

O outro provaacutevel sentido de ldquocrushrdquo e sua equivalecircncia ao ldquoamor platocircnicordquo

natildeo o do senso comum mas o da tradiccedilatildeo de Eros como forccedila impulsiva que direciona agrave

Verdade (Aleacutetheia) e agrave Sabedoria (Sophiacutea) torna-se possiacutevel apenas quando partiacutecipe da

educaccedilatildeo Nisto a funccedilatildeo do filoacutesofo do professor para entatildeo corrigir e orientar em

suma para conduzir (psicagogiacutea) o olhar da psycheacute do jovem ao incessante procurar do

mais Belo que necessariamente tem de se vincular agrave abstrata imaterialidade logo

condizente assim a universalidade do Justo e do Bem

Do que se conclui em sentido abrangente que a exigecircncia platocircnica de amor

ao Belo eacute constituiacutedo de um convite e de um aviso Convite porque convida-nos agrave

procura de uma Beleza que natildeo se encontra na transitoriedade daquilo que perece

envelhece morre Aviso ou alerta porquanto se natildeo aceitarmos o convite possivelmente

estejamos fadados a incapacidade de nunca contemplarmos o Belo assim contentando-

nos agraves aparecircncias como se estas fossem a realidade originaacuteria exatamente como

prisioneiros em uma caverna pouco iluminada

134

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS CASSIRER E Antropologia Filosoacutefica ndash ensaio sobre o homem introduccedilatildeo a uma filosofia da cultura humana Trad Vicente Feacutelix de Queiroz 2 ed Satildeo Paulo Mestre Jou 1977 BAUMAN Z A sociedade individualizada vidas contadas e histoacuterias vividas Trad Joseacute Gradel Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2008 _____ Vidas Desperdiccediladas Trad Carlos Medeiros Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2005 _____ Eacutetica Poacutes-Moderna Trad Joatildeo Rezende Costa Satildeo Paulo Paulus 1997 BLACKBURN S Dicionaacuterio Oxford de Filosofia Trad Desideacuterio Murcho et al consultoria da ediccedilatildeo brasileira Danilo Marcondes Rio de Janeiro Zahar 1997 DEBORD G La Societeacute du spectacle Paris Gallimard 1992 GRUBE G M A El pensamiento de Platoacuten Trad Tomaacutes Calvo Martiacutenez Madrid Editorial Gredos S A 1987 JAEGER W Paideacuteia a formaccedilatildeo do Homem grego Trad Artur M Parreira Revisatildeo do texto grego Gilson Ceacutesar Cardoso de Souza 4 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 LEacuteVY P Cibercultura Trad Carlos Irineu da Costa Satildeo Paulo Editora 34 2009 MAcINTYRE A Depois da virtude Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo EDUSC 2001 (Coleccedilatildeo Filosofia amp Poliacutetica) _____ After Virtue Notre Dame University of Notre Dame Press 1984 MOURA M O simboacutelico em Cassirer Revista Ideaccedilatildeo Feira de Santana n 5 2000 PLATO In Twelve Volumes Vol 9 translated by Harold N Fowler Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1925 PLATAtildeO A Repuacuteblica Trad Maria Helena da Rocha Pereira 11 ed Portugal Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2008 _____ O Banquete Trad Introduccedilatildeo e notas do Prof J Cavalcante de Souza 9 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999 _____ Fedro Trad Pinharanda Gomes Lisboa Portugal Guimaratildees Editores 1989 REALE G Platatildeo Trad Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Nova ediccedilatildeo corrigida Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007

135

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A SUBJETIVIDADE E A BUSCA PELA FELICIDADE NO PENSAMENTO DE

BLAISE PASCAL

JeanVargas1

RESUMO Considerando as ideias de teacutedio divertissement esquecimento de si e amor-proacuteprio este texto pretende mostrar em que medida a busca do eu pela felicidade aponta para um problema de fundo qual seja o do eu diante de seu criador Argumenta-se aqui que a condiccedilatildeo humana tal como Pascal a entende eacute crucial para se pensar a questatildeo da subjetividade humana Nesse sentido o objetivo do texto eacute destacar as tensotildees entre o teacutedio e a subjetividade Palavras-chave felicidade subjetividade teacutedio ABSTRACT Considering the concepts of boredom divertissement self forgetfulness and self-love this text intends to show how the search of the self for happiness leads to a fundamental problem that of the self in front of its creator It is argued here that the human condition as Pascal understands it is crucial to thinking about the question of human subjectivity Thus the purpose of the text is highlight the tensions between boredom and subjectivity Keywords happiness subjectivity boredom

Introduccedilatildeo

O problema da subjetividade se coloca para Blaise Pascal (1623-1662) sob

o registro relacional entre o eu e Deus A questatildeo fundamental parece ser expressa da

seguinte maneira como o eu pode ser diante de Deus Dito de outro modo em que

medida este eu pode se colocar haja vista o horizonte de alteridade relacional com o

criador

Como se sabe Pascal nos deixou em sua obra principal denominada

Pensamentos tatildeo somente reflexotildees avulsas com um estilo fragmentaacuterio e assistemaacutetico

1 Doutorando no curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFMG E-mail de contato jean_sv07hotmailcom

137

de escrita filosoacutefica O que significa que estaacute a cargo de seus inteacuterpretes o ocircnus de articular

minimamente as reflexotildees soltas afim de que elas soem como um todo coeso2

Eacute evidente que esta tarefa pode ser malsucedida de modo que trair as

intenccedilotildees do autor eacute sempre uma preocupaccedilatildeo latente Todavia a partir da reflexatildeo

pascalina eacute permitido ao leitor um certo protagonismo pois o modo como os pensamentos

satildeo articulados podem oferecer respostas mais ou menos elaboradas

Eacute diante deste cenaacuterio que este artigo se presta natildeo apenas a vincular os

pensamentos soltos do autor propiciando uma certa simetria agrave reflexatildeo pascalina como

pretende tambeacutem tensionar a relaccedilatildeo entre os pressupostos sobre a subjetividade

(impliacutecitos e expliacutecitos na obra do pensador francecircs) com o olhar antropoloacutegico sobre o

problema da condiccedilatildeo humana Para tanto o texto eacute divido em trecircs momentos quais

sejam 1) O diagnoacutestico sobre a condiccedilatildeo humana em Pascal 2) a subjetividade e o

problema da busca pela felicidade e 3) o esquecimento de si o teacutedio e o divertissement

Primeiro momento O diagnoacutestico sobre a condiccedilatildeo humana em Pascal

A ideia de que o ser humano possui uma natureza traacutegica transita ao longo de

toda a reflexatildeo pascalina3 Em certo sentido a noccedilatildeo de natureza humana em nosso autor

pode ser rastreada ateacute Santo Agostinho passando por Tomaacutes de Aquino e mesmo pelo

Jansenismo4 O lastro que explicita a natureza humana eacute a narrativa da queda e natildeo uma

metafiacutesica de elucubraccedilatildeo filosoacutefica

Esta narrativa da queda natildeo se presta a provar todavia a razoabilidade da

perspectiva cristatilde de Pascal isto eacute natildeo se pretende derivar daiacute um conjunto de provas

robustas sobre o cristianismo A narrativa da queda se configura como o pilar pelo qual

se ergue todo o edifiacutecio argumentativo do filoacutesofo francecircs Mas se por um lado a

narrativa da queda natildeo se presta a provar no sentido forte os pressupostos da

antropologia cristatilde por outro lado ela eacute imprescindiacutevel a uma apologia do cristianismo

na medida em que a situaccedilatildeo humana eacute de forma tal que seria mais misteriosa sem este

misteacuterio Nesse sentido a narrativa da queda tratar-se-ia da melhor chave explicativa para

acessar a condiccedilatildeo humana

2 Com esta observaccedilatildeo natildeo pretendo pressupor que este tipo de literatura assistemaacutetica seja por si soacute insuficiente ou pouco interessante O que pretendi destacar eacute que se o interprete aspirar um todo coeso entatildeo cabe a ele o ocircnus de juntar as peccedilas do quebra-cabeccedila pois o autor prescinde da tarefa de fazecirc-lo 3 GOLDMAN apud BIRCHAL A marca do vazio reflexotildees sobre a subjetividade em Blaise Pascal p 51 4 Ver OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana pp 367-408

138

Mas que condiccedilatildeo seria esta A condiccedilatildeo humana fundamental eacute marcada

pela concupiscecircncia enquanto princiacutepio de todos os movimentos humanos5 A condiccedilatildeo

humana tal qual aparece nos Pensamentos coloca o ser humano diante de Deus a quem

todo amor eacute devido Assim a natureza humana estaacute radicalmente ainda que natildeo

completamente corrompida em funccedilatildeo do pecado original Isto implica em dizer que

embora a criaccedilatildeo de Deus seja melhor do que efetivamente se apresenta soacute conhecemos

de fato sua versatildeo decaiacuteda Natildeo obstante este quadro pessimista algumas caracteriacutesticas

da condiccedilatildeo original satildeo preservadas como por exemplo a possibilidade de acesso ao

conhecimento Natildeo se trata do conhecimento no mais eminente sentido entretanto

conhecer ainda eacute um resquiacutecio de um atributo comunicaacutevel de DeusOu seja dada a atual

condiccedilatildeo eacute vedada ao homem a capacidade de conhecimento pleno Mas o fato de ainda

poder conhecer algo o remete a uma qualidade de sua natureza originaacuteria que eacute por isso

mesmo preacute-queda Trata-se de uma natureza originaacuteria portanto que de certo modo

ainda subjaz

Ora neste sentido o tema do amor-proacuteprio6 eacute significativo para se

compreender o problema da subjetividade em Pascal O amor de si permite ao ser humano

centralizar suas accedilotildees e buscar atender agraves demandas do seu eu De acordo com o proacuteprio

filoacutesofo ldquonuma palavra o eu tem duas qualidades eacute injusto em si fazendo-se centro de

tudo eacute incocircmodo aos outros querendo sujeitaacute-los pois cada eu eacute o inimigo e desejaria

ser o tirano de todos os outrosrdquo7

Eacute como se o eu fosse por assim dizer um ldquoburaco negrordquo insaciaacutevel que natildeo

quer saber a verdade sobre si Por isso muitos se prestam a criar um eu imaginaacuterio pois

estatildeo excessivamente preocupados com a imagem puacuteblica de si8Assim seria preferiacutevel

agraves pessoas comuns melhorarem e reforccedilarem sua imagem puacuteblica a ponto de optarem por

morrer do que efetivamente pensar a si mesmas

O amor-proacuteprio este excessivo de si eacute reduzido a uma modalidade de

concupiscecircncia o que permite a Pascal denunciar os mecanismos que por meio do nosso

eu imaginaacuterio9 acaba por abrir as portas para escamotear a proacutepria subjetividade De

acordo com Pascal conforme observa Luiacutes Oliva ldquoo amor-proacuteprio desmedido (devido ao

5 ARMOGATHE Pascal e o amor-proacuteprio p 232 6 O tema do amor-proacuteprio eacute bastante relevante para Pascal contudo natildeo se trata de um tema exclusivamente cristatildeo Na eacutetica nicomaqueacuteia Aristoacuteteles jaacute abordava esta temaacutetica 7 PASCAL apud OLIVAAntecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 399 8 PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 978 9 IDEM Fr 806

139

deslocamento do centro para a concupiscecircncia o transitoacuterio) fez que o homem mentisse

se mascarasse e se revestisse de qualidades ilusoacuterias para obter poder e estimardquo10

Por isso a relaccedilatildeo vertical do homem com Deus mais do que a relaccedilatildeo

horizontal do eu com os outros eus precisa ser retomada Conforme notou Gouhier ldquotrata-

se da relaccedilatildeo do eu com Deus e natildeo do eu com outros eus Todavia quando o eu se faz

ldquocentro de tudordquo faz tambeacutem girar em torno de si todos os outros eusrdquo11 Graccedilas agrave

concupiscecircncia presente na natureza humana desde a queda o amor deixa de ser

endereccedilado exclusivamente ao criador e passa a lidar com a concorrecircncia do amor-

proacuteprio cuja tendecircncia eacute colocar seus proacuteprios interesses como o centro de suas accedilotildees e

ao fazecirc-lo acaba por travar uma relaccedilatildeo de controle e imposiccedilotildees quando diante do outro

Os problemas denunciados por Pascal decorrentes do ato do amor de si levam

ao tema do eu odioso Este eu que pretende ser o centro da subjetividade precisa ser

aniquilado ou ainda reduzido a nada diante de Deus este outro Absoluto A ideia de

odiar a si mesmo natildeo eacute um exagero pois trata-se de uma expressatildeo literal Gouhier coloca

nesses termos

natildeo basta ldquonatildeo amar a si mesmordquo como recomenda o autor da Imitaccedilatildeo O ldquooacutedio de sirdquo natildeo eacute uma hipeacuterbole a expressatildeo deve ser tomada literalmente ela evoca a um soacute tempo o sentimento e o dever que resultam o amor de Deus12

Deve-se odiar o eu porque este imerso na concupiscecircncia pretende rivalizar

e em uacuteltima anaacutelise procura reivindicar um lugar que eacute exclusivo de Deus O amor de si

eacute abusivo mas natildeo basta tatildeo somente impor limites a ele O ato da conversatildeo precisa

corrigir algo distorcido na natureza humana O centro da subjetividade natildeo pode ser outro

senatildeo o proacuteprio Deus Daiacute a necessidade de odiar a si mesmo na medida em que a

subjetividade corrompida por sua natureza pecaminosa quer ocupar a posiccedilatildeo que

originalmente pertence exclusivamente a Deus

Nosso autor soacute pode adentrar na reflexatildeo sobre o eu que precisa ser odiado

porque parte dos pressupostos acerca da condiccedilatildeo humana Trata-se como mostramos

de uma condiccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais a original mas que todavia natildeo deixou de ser

completamente Jaacute natildeo eacute mais a mesma mas ainda natildeo deixou de ter resquiacutecios da marca

de Deus Desse modo temos aqui uma tensatildeo antropoloacutegica entre o jaacute e o ainda natildeo o

10 OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 400 11 GOUHIER Blaise Pascal conversatildeo e apologeacutetica p 82 12IDEM pp 77-78

140

que torna o cenaacuterio cocircmodo para que Pascal posso diagnosticar o homem como aquele

entre a grandeza e a miseacuteria Desse modo podemos verificar em que medida o problema

do teacutedio e o divertimento corroboram para evitar que o homem retome a relaccedilatildeo

extraviada com o seu criador

Segundo momento A subjetividade e o problema da busca pela felicidade

Ao tratar da questatildeo da subjetividade eacute atribuiacutedo a Pascal a substantivaccedilatildeo

do eu na modernidade13Isto significa dizer que foi o autor dos Pensamentos quem em

suas interlocuccedilotildees com seus antecessores mais notadamente Agostinho Montaigne e

Descartes nos conduziu agrave reflexatildeo sobre a subjetividade enquanto um ente substantivo

Embora Pascal fale de algo como ldquoo eurdquo daiacute natildeo se segue entretanto que ele

tenha predicados exaustivos para propor-nos uma definiccedilatildeo da subjetividade Muito pelo

contraacuterio Se tomarmos o trecho mais frequentado pelos estudiosos para tratar o problema

do sujeito em nosso autor verificamos o cuidado que Pascal tem antes de formular

definiccedilotildees positivas sobre o eu o que eacute o eu

Um homem que se potildee na janela para ver as pessoas que passam se passo por ali posso dizer que ele se pocircs na janela para me ver Natildeo porque ele natildeo estaacute pensando em mim particularmente mas quem ama algueacutem por causa de sua beleza ama mesmo Natildeo porque as bexigas que mataratildeo a beleza sem matar a pessoa faratildeo com que ele natildeo a ame mais

E se me amam pelo meu juiacutezo por minha proacutepria memoacuteria amam me mesmo A mim Natildeo pois posso perder essas qualidades sem perder-me a mim mesmo Onde estaacute entatildeo esse eu se natildeo estaacute no corpo nem na alma E como amar o corpo ou a alma senatildeo por essas qualidades que natildeo satildeo o que fazem o eu pois que satildeo pereciacuteveis Porque algueacutem amaria a substacircncia da alma de uma pessoa abstratamente e algumas qualidades nela existentes Isso natildeo eacute possiacutevel e seria injusto Portanto nunca se ama ningueacutem mas somente qualidades

Natildeo se zombe mais entatildeo daqueles que se fazem honrar por cargos e ofiacutecios pois natildeo se ama ningueacutem a natildeo ser por qualidades posticcedilas14

Apesar de comeccedilar com uma interrogaccedilatildeo Pascal natildeo oferece definiccedilotildees

positivas sobre o eu O fragmento acima nos remete a uma provaacutevel interlocuccedilatildeo com

Descartes O eu em Pascal natildeo converge com a posiccedilatildeo sustentada pelo pensador do

13 DESCOMBESLe parler de soi p 84 14PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 688

141

Coacutegito pois as qualidades posticcedilas aqui embora pereciacuteveis possuem primazia sobre a

substacircncia pensante Como Telma Birchal observou

Neste fragmento que alude sem duacutevidas ao Coacutegito Pascal mostra que a reduccedilatildeo cartesiana tem consequecircncias impraticaacuteveis a seguir numa reviravolta caracteriacutestica de seu pensamento manteacutem a exigecircncia de que o Eu deva ser realmente algo que escape ao domiacutenio do pereciacutevel para terminar afirmando a supremacia das qualidades sobre a substacircncia15

Ora o movimento pascalino longe de admitir ideias claras e distintas

pretende retomar a perspectiva do homem comum e da doacutexa onde as qualidades posticcedilas

satildeo formadoras de opiniatildeo sobre a subjetividade alheia O ponto de Pascal natildeo eacute postular

que as qualidades tomadas de empreacutestimo constituam o eu Pelo contraacuterio esta

perspectiva eacute problematizada No entanto o autor dos Pensamentos tambeacutem parece

descredenciar as articulaccedilotildees que pretendem propor um discurso elaborado sobre a

subjetividade a partir de uma razatildeo especulativa ndash e aqui a interlocuccedilatildeo parece ser mais

uma vez claramente com Descartes como notou Carraud16

Pascal natildeo trata o eu de maneira desencarnada aos moldes de uma

experiecircncia mental O que se pensa ser o eu no fim das contas natildeo passa de um complexo

de qualidades posticcedilas o que nos impede de criticar o homem comum quando este ama

algueacutem por estas mesmas qualidades O eu natildeo estaacute na alma nem no corpo e desta

perspectiva nunca se ama ningueacutem senatildeo a atributos Desenvolveremos mais este ponto

adiante

Por ora resta notar que desse ponto de vista o acesso agrave subjetividade requer

natildeo uma razatildeo especulativa que existe enquanto pensa e somente enquanto pensa A

primazia do acesso agrave interioridade natildeo eacute clara e distinta na medida em que se daacute por meio

do sentimento pois ldquoo coraccedilatildeo possui razotildees que a proacutepria razatildeo desconhecerdquo Ao

introduzir o sentimento como um meio de acesso mais fidedigno agrave interioridade e em

segundo lugar dado o quadro da natureza humana decaiacuteda Pascal tem as ferramentas

necessaacuterias para nos conduzir ao elemento que o interessa de fato qual seja o de uma

intencionalidade da subjetividade Para Pascal mais importante do que a pergunta pelo

que significa o eu em seu sentido metafiacutesico eacute a reflexatildeo moral que estaacute em jogo ndash e aqui

de novo a perspectiva dos filoacutesofos eacute contraposta a do homem ordinaacuterio

15BIRCHAL A marca do vazio reflexotildees sobre a subjetividade em Blaise Pascal p 53 16 CARRAUD Linventiondu moi p 30

142

O que eacute comum na busca de todos os homens Pascal responde ldquotodos os

homens procuram ser felizes () eacute o motivo de todas as accedilotildees de todos os homens ateacute

daqueles que vatildeo se enforcarrdquo17 A busca pela felicidade constitui entatildeo aquilo que ao

fim e ao cabo todos almejam Ora tanto os filoacutesofos quanto os homens comuns jaacute

notaram esta busca incessante Pascal identifica duas opiniotildees que nos conduzem ao

anseio humano da felicidade A opiniatildeo 1) dos homens comuns que buscam a felicidade

no movimento nas coisas e nos objetos externos a noacutes e 2) a dos filoacutesofos que criticam o

homem comum pois a felicidade uacuteltima estaria tatildeo somente no repouso

Pascal argumenta a partir disso que o homem comum tem fortes razotildees para

fazer o que faz Entre ir para a guerra e pensar em si mesmo o homem ordinaacuterio prefere

ir para a guerra Ele procura eacute a caccedila (o movimento) e natildeo exatamente a presa

Todo este movimento para fora de noacutes indica a nossa dificuldade de nos

mantermos em repouso As pessoas tecircm razotildees (motivos) em buscar as coisas Mas

nenhuma dessas coisas externas nos conduz agrave felicidade pois ser feliz (e aiacute os filoacutesofos

tem razatildeo) natildeo estaacute no movimento mas sim no repouso As pessoas passam de coisas

para coisas o que denuncia a nossa condiccedilatildeo de incompletude

Os filoacutesofos nesse sentido acertam na teoria de que a busca dos objetos natildeo

traz felicidade Acontece que os filoacutesofos se equivocam ao sustentarem que o problema

que leva o homem ordinaacuterio agrave busca incessante pelos objetos externos seja motivado por

certa ignoracircncia Para Pascal natildeo se trata de uma ignoracircncia simplista como supotildeem os

filoacutesofos A ignoracircncia eacute de outra ordem e sequer estes grandes pensadores da histoacuteria da

humanidade conseguiram uma soluccedilatildeo eficaz

De fato o remeacutedio oferecido pelos filoacutesofos eacute quase tatildeo ruim quanto a proacutepria

doenccedila Natildeo eacute o dobramento sobre si de acordo com Pascal que resolveraacute o drama

humano pela busca da felicidade Este eacute um paliativo falso O homem comum faz o que

faz porque de alguma maneira sabe que a panaceia da tranquilidade da alma da ataraxia

e de outras tantas foacutermulas de repouso natildeo satisfazem a condiccedilatildeo de incompletude18

Assim podemos formular a questatildeo nesses termos ao se verificar mais

detidamente sobre a razatildeo dos efeitos nota-se que os filoacutesofos acertam na teoria e erram

17 PASCAL apud BIRCHAL Aquele que busca a Deus o increacutedulo e o honnecircte-homme natureza e sobrenatureza nestes trecircs tipos de homem p339 18 Conforme explica Maria Isabel Limongi ldquocomo natildeo se pode encontrar a felicidade que estaacute em Deus nos objetos que deleitam agrave vontade natildeo haacute alternativa senatildeo deixar-se determinar pela imaginaccedilatildeo imaginando que os prazeres sensiacuteveis possam trazer a felicidade que de fato natildeo trazemrdquo LIMONGI Pascal e a ordem da concupiscecircncia p 332

143

na praacutetica pois a felicidade de fato natildeo estaacute no movimento Jaacute o homem comum por sua

vez erra na teoria mas acerta na praacutetica visto que viver na busca dos objetos exteriores

eacute esperado porquanto o repouso de se voltar para si fracassa em sua tentativa de frear a

incontornaacutevel carecircncia do humano pela felicidade Cada uma dessas posiccedilotildees estaacute

parcialmente certa mas eacute preciso compreender a razatildeo dos efeitos A busca interminaacutevel

eacute um efeito que precisa ser explicado

Pascal sugere a partir disso uma terceira posiccedilatildeo que seria preferiacutevel agraves

outras duas Ao juntar a teoria dos filoacutesofos com a praacutetica do homem comum chegamos

ao cristianismo Ora eacute o cristianismo que revela a dupla natureza do homem O homem

eacute um ser miseraacutevel decaiacutedo pois possui um instinto secreto que nos vincula agrave busca

incessante Mas haacute outro instinto secreto que aponta para o fato de que a felicidade como

os filoacutesofos perceberam estaacute no repouso Poreacutem natildeo seria como querem os filoacutesofos um

repouso interior Antes seria um repouso que estaacute fora de noacutes O repouso estaacute em Deus19

(muito embora em certo sentido Deus esteja fora e dentro de noacutes)

O homem eacute um ser contraditoacuterio com duas naturezas quais sejam a marca

de Deus e a marca do vazio Somente Deus completaria o nosso vazio Nesse sentido eacute

preciso compreender que a vida eacute uma busca que o eu soacute pode ser diante de Deus e que

justamente o cristianismo melhor do que a percepccedilatildeo dos filoacutesofos e do homem comum

aponta para este diagnoacutestico A fragilidade humana consiste em querer-se grande mas se

vecirc pequeno em querer ser feliz mas vecirc-se miseraacutevel20

Terceiro momento O esquecimento de si o teacutedio e o divertissement

A proposta de Pascal seguindo a esteira de Platatildeo recomenda que o homem

conheccedila a si mesmo ainda que esta atitude natildeo se preste de modo imediato ao acesso agrave

verdade Nos termos de Pascal ldquoEacute necessaacuterio conhecer-se a si mesmo Ainda que isso

natildeo servisse para encontrar a verdade pelo menos serve para regrar a proacutepria vida e nada

haacute de mais justordquo21

19Segundo Luiacutes Oliva ldquoo repouso soacute viraacute quando a capacidade do homem para o infinito for preenchida novamente ou seja quando o homem se reunir a Deus O pecado foi uma tentativa do homem constituir-se em totalidade proacutepria abandonando o seu verdadeiro centro que eacute Deusrdquo OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 406 20 Ver ANJOSBLAISE PASCAL O DIVERTIMENTO E O CONHECIMENTO DE SI p 363 21PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 72

144

Conhecer a si mesmo implica em pensar em si poreacutem este ato conforme

mostra Pascal eacute evitado a todo o custo na medida em que ldquonatildeo podendo os homens curar

a morte a miseacuteria a ignoracircncia resolveram para ficar felizes natildeo mais pensar nissordquo22

Pensar em si inviabiliza o acesso agrave felicidade mesmo que se trate de uma felicidade fugaz

e efecircmera pois a verdadeira felicidade como jaacute assinalamos soacute Deus a pode conceder

Pois bem o ato de pensar em si mesmo desemboca na natureza precaacuteria do

homem pois se depara com sua condiccedilatildeo miseraacutevel e fraacutegil Mas como os humanos

insistem em tentar suprir sua carecircncia pelos mais diversos meios que natildeo a busca de Deus

eles acabam praticando exatamente o contraacuterio da recomendaccedilatildeo de autoconhecimento

Eles se engajam na empreitada de esquecer-se de si Para obter sucesso nessa tarefa

lanccedilam matildeo do divertissement preenchendo todo o tempo com infindaacuteveis afazeres tais

como denuncia Pascal sobrecarregam os homens desde a infacircncia com o cuidado de sua honra dos bens dos amigos e ainda dos bens e honra dos amigos cumulam-nos de afazeres de aprendizado das liacutenguas e de exerciacutecios e se lhes daacute a entender que natildeo conseguiriam ser felizes sem que a sua sauacutede honra e fortuna e a de seus amigos estivessem em bom estado e que a falta de uma uacutenica coisa dessas os tornaraacute infelizes () E eis por que depois de preparar-lhes tantos afazeres se ainda tiverem algum tempo livre aconselha-se que o empreguem em se divertir e jogar e ocupar-se sempre por inteiro Como o coraccedilatildeo do homem eacute oco e cheio de lixo23

O divertimento ocupa e desvia os homens de pensar naquilo que satildeo O

divertimento funciona como um mecanismo de alienaccedilatildeo porquanto eacute a uacutenica coisa que

consola o ser humano de sua miseacuteria A uacutenica coisa que nos consola de nossas miseacuterias eacute a diversatildeo E no entanto eacute a maior de nossas miseacuterias Porque eacute ela que nos impede principalmente de pensar em noacutes que nos potildee a perder insensivelmente Sem ela ficariacuteamos entediados e esse teacutedio nos levaria a buscar um meio mais soacutelido de sair dele mas a diversatildeo nos entreteacutem e nos faz chegar insensivelmente agrave morte24

Quando cessa a diversatildeo resta apenas o teacutedio e isso vale inclusive para os

grandes homens como o rei por exemplo que ldquo estaacute cercado por pessoas que soacute pensam

em diverti-lo e impedi-lo de pensar em si mesmo Porque ele fica infeliz embora seja rei

22 IDEM Fr 133 23 IDEM Fr139 24 IDEM Fr 414

145

se pensar em sirdquo25 Se por algum motivo a diversatildeo natildeo ocorre eis entatildeo uma vez mais

o homem a soacutes consigo mesmo O proacuteximo passo eacute a emergecircncia do teacutedio este negrume

oriundo do fundo da alma esta tristeza esta maacutegoa este despeito este desespero26

Temos aqui como chama a atenccedilatildeo Carraud um novo sentido de pensar em

si diferente daquele sentido cartesiano

Pensar em si natildeo eacute mais pensar no conceito de si (res cogitans) em Deus como seu autor e seu fim mas em si socialmente e existencialmente em si como rei e como homem que natildeo se divertindo seca-se no teacutedio27

Portanto a tarefa de conhecer-se a si mesmo passa pela ideia de pensar a si

Natildeo se trata contudo de abordar o problema da subjetividade aos moldes cartesianos

Pensar a si eacute pensar esta subjetividade no mundo da vida e sua condiccedilatildeo existencial qual

seja a de buscar a felicidade

Poreacutem pensar a si tem como apanaacutegio a miseacuteria humana daquele que se sabe

mortal28A busca se torna ainda mais obstinada pois a felicidade eacute sempre um ideal

longiacutenquo a ser alcanccedilado Esta busca por ser feliz da perspectiva do homem comum

quanto mais obstinada for mais precisa praticar o esquecimento de si a fim de escapar a

sua condiccedilatildeo decaiacuteda Ora mas esquecer-se de si requer o preenchimento do tempo com

as futilidades e tarefas do cotidiano Mesmo os momentos de lazer satildeo preenchidos com

muito movimento e barulho para garantir que a proximidade com a morte seja discreta

sem se aperceber de fazecirc-lo portanto29 Manter a vida ocupada permite tambeacutem o

afastamento da mais insuportaacutevel companhia o teacutedio

Entediar-se eacute se sentir a soacutes consigo mesmo e lembrar da condiccedilatildeo humana

no mundo Nesse sentido se algueacutem sente teacutedio estaacute prestes a pensar em si mesmo Este

repouso no teacutedio poreacutem pode ser interrompido com a diversatildeo Divertir-se garante a

dissipaccedilatildeo do teacutedio e o retorno agrave situaccedilatildeo alienante do primeiro momento Assim o eu

evita ser diante de Deus e se empenha em ser um eu imaginaacuterio cuja busca da felicidade

se centra nos objetos externos Esta busca motivada pela carecircncia humana leva as

25 IDEM Fr 136 26 IDEM Fr 622 27 CARRAUDObservaccedilotildees sobre a segunda antropologia o pensamento como alienaccedilatildeo p 315 28 Como afirma IvonilParraz ldquoConhecendo sua contingecircncia considerando os acasos que envolvem sua existecircncia o eu ldquoque pensardquo descobre-se natildeo como um eu sou mas como um ser natildeo necessaacuterio nem eterno nem infinito A sua proacutepria condiccedilatildeo no interior do tempo leva-o a descobrir sua finituderdquo PARRAZ O disfarce da forccedila p175 29PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 414

146

pessoas a um trabalho de Siacutesifo visto que a subjetividade soacute pode acessar a completude

diante do repouso em seu criador Ou ainda dito de outro jeito para Pascal o eu autecircntico

soacute pode ser (no mais eminente sentido do termo) se e somente se for um eu em relaccedilatildeo

com Deus

Conclusatildeo

O tema da subjetividade em Pascal aparece ao longo dos Pensamentos como

um centro de gravidade onde muitas outras temaacuteticas flutuam tais como a busca pela

felicidade o divertimento e o teacutedio para ficar em poucos exemplos Pascal sabe que natildeo

estaacute inaugurando a discussatildeo e sabe especialmente que muito jaacute foi dito sobre este

problema

Todavia o legado pascalino consiste sobretudo em tratar o eu de maneira

substantiva para pensaacute-lo natildeo tanto enquanto uma subjetividade ontoloacutegica mas sim

antropoloacutegica e moral De fato Agostinho jaacute havia tratado do tema a partir deste recorte

mas natildeo nos mesmos moldes em que coloca Pascal Falar do divertimento enquanto

mecanismo de alienaccedilatildeo e da tentativa de evitar o teacutedio com o esquecimento de si tendo

como pano de fundo o problema da natureza humana constitui o esteio pascalino do qual

se pode erigir toda a sua reflexatildeo filosoacutefica

Neste artigo foram precisamente estes os passos adotados para estabelecer o

fio condutor de nossa discussatildeo qual seja o problema da subjetividade Procuramos

mostrar que o pressuposto antropoloacutegico por detraacutes da reflexatildeo de nosso autor passa

tambeacutem por consideraccedilotildees teoloacutegicas amalgamadas na tradiccedilatildeo cristatilde Reconhecer a

condiccedilatildeo humana bem como o que se deriva a partir daiacute mais notadamente a ideia de

concupiscecircncia e amor-proacuteprio permitem ao nosso autor se mover tendo como leitmotiv

a alteridade relacional entre o eu e Deus

No segundo momento destacamos a temaacutetica do eu e sua condiccedilatildeo de

incompletude o que abre o campo para a jornada humana em direccedilatildeo agrave busca pela

felicidade Ora buscar a felicidade conforme procuramos mostrar tanto pela via do

homem ordinaacuterio quanto pela via dos filoacutesofos fracassam em suas tentativas seja porque

acertam na teoria e erram na praacutetica (os filoacutesofos) seja porque acertam na praacutetica mas

erram na teoria (os homens comuns) O eu soacute satisfaz a sua carecircncia quando procura a

felicidade no repouso Este entretanto natildeo estaacute no interior da proacutepria subjetividade pois

estaacute em outra subjetividade alheia a si Estaacute a saber no proacuteprio Deus

147

Muitos satildeo os empecilhos para se alcanccedilar a felicidade O primeiro passo seria

conhecer-se a si mesmo cujo desdobramento implica em pensar em si e por conseguinte

em mergulhar no teacutedio Acontece que as pessoas procuram evitar o teacutedio a todo custo

visto que entediar-se parece estar na contramatildeo de uma vida feliz Ou seja eacute contra

intuitivo supor em princiacutepio que o teacutedio seja preacute-condiccedilatildeo para o acesso agrave felicidade

Um grande mecanismo para evitar que o homem pense em sua condiccedilatildeo e natildeo acesse o

teacutedio eacute o divertimento Divertir-se ou ainda atarefar-se tem como efeito colateral o

esquecimento de si Portanto por meio do divertimento e do esquecimento de si o eu se

aliena do seu criador e soacute conhece a fugacidade da vida sem alcanccedilar a felicidade ulterior

propiciada apenas por Deus

Tratava-se neste artigo portanto de descrever os meandros e caminhos pelos

quais a subjetividade humana escapa a uma condiccedilatildeo autecircntica Esta condiccedilatildeo soacute pode se

dar como chamamos atenccedilatildeo em seu sentido relacional com o criador O cenaacuterio em que

nos coloca Pascal reflete sobre o problema da condiccedilatildeo humana ou como diria o proacuteprio

pensador francecircs sobre a nossa condiccedilatildeo de miseacuteria na qual noacutes humanos meros

ldquocaniccedilosrdquo pensantes nos deparamos

O homem natildeo eacute senatildeo um caniccedilo o mais fraco da natureza mas eacute um caniccedilo pensante Natildeo eacute preciso que o universo inteiro se arme para esmagaacute-lo um vapor uma gota de aacutegua basta para mataacute-lo Mas ainda que o universo o esmagasse o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata pois ele sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele O universo de nada sabe

Toda a nossa dignidade consiste pois no pensamento Eacute daiacute que temos de nos elevar e natildeo do espaccedilo e da duraccedilatildeo que natildeo conseguiriacuteamos preencher Trabalhemos pois para pensar bem eis aiacute o princiacutepio da moral30

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O POSSIacuteVEL METAFOacuteRICO SEGUNDO TOMAacuteS DE AQUINO

Matheus Henrique Gomes Monteiro1

RESUMO O presente artigo tem o objetivo de discutir o conceito de possiacutevel metafoacuterico e suas ocorrecircncias na filosofia de Tomaacutes de Aquino Primeiro apresenta os aspectos gerais do que eacute ldquoser possiacutevelrdquo considerando a obra tomasiana como um todo Segundo situa o possiacutevel metafoacuterico analisando as informaccedilotildees dadas pelo filoacutesofo para definir o conceito Ao longo do artigo ateacute a conclusatildeo apresentam-se questotildees a serem desenvolvidas ulteriormente por pesquisadores da aacuterea como parte da presente discussatildeo Palavras-chave possiacutevel metaacutefora matemaacutetica Filosofia Medieval

ABSTRACT This paper discusses the concept of metaphorical possible and its developments in the philosophy of Thomas Aquinas Firstly I show the main aspects of what means ldquoto be possiblerdquo in Aquinasrsquo philosophical system by considering the thomasic opera as a whole Secondly I locate the metaphorical possible in the divisions of being possible by analyzing the elements given by the philosopher in order to define the concept In the paper specially at the end I suggest some questions to be developed by colleagues and other scholars based on the discussion started Keywords possible metaphor mathematics Medieval Philosophy

Na discussatildeo sobre o que Deus pode fazer e o que pode ser feito Tomaacutes de

Aquino distinguiu vaacuterios modos de dizer ldquoser possiacutevelrdquo entre eles o possiacutevel metafoacuterico

Nos diversos textos em que o conceito aparece o filoacutesofo ele mesmo natildeo o desenvolve

muito com a justificativa de que para tratar dos problemas concernentes ao poder de

Deus o possiacutevel metafoacuterico ldquofoge ao assuntordquo Haacute inclusive textos voltados ao debate

sobre o que eacute possiacutevel por exemplo Sobre a eternidade do mundo de 1271 em que o

possiacutevel metafoacuterico nem mesmo eacute mencionado Muitos comentadores que se dedicaram

a estudar esses temas reconhecem que o filoacutesofo distingue um modo de dizer ldquoser

possiacutevelrdquo metaforicamente e ateacute datildeo a ele uma vaga definiccedilatildeo poreacutem nenhum deles

aprofundou a reflexatildeo sobre o seu significado nem pretendeu compreender a razatildeo por

que Tomaacutes de Aquino o pocircs de lado em tantos debates e sem maiores explicaccedilotildees2

1 Doutorando em filosofia pela UnicampCAPES e-mail Mhgmonteirogmailcom 2 Smith (1943) Dewan (1974) Wippel (1981 p 26) Veldhuijsen (1990 p 31) Wilks (1994) Storlarski (2001 p 97) Storck (2003) Estes autores mencionam o possiacutevel metafoacuterico poreacutem natildeo se concentram em

150

Neste artigo pretende-se apresentar os aspectos gerais do que Tomaacutes de

Aquino discute sobre o ldquoser possiacutevelrdquo e com base neles situar o possiacutevel metafoacuterico em

sua filosofia Por meio desse trabalho espera-se despertar nos estudiosos do pensamento

tomasiano o interesse pelo tema e considerar as questotildees que ele suscita no

prosseguimento das suas investigaccedilotildees3

Nas questotildees Sobre a potecircncia de Deus quando discute sobre o poder divino

e o que pode ser feito o filoacutesofo faz menccedilotildees breves ao conceito de possiacutevel metafoacuterico

contudo ele desenvolve-o com mais detalhe no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica nas partes sobre

os modos de dizer possiacutevel Em resumo Tomaacutes de Aquino diz que o possiacutevel metafoacuterico

eacute segundo nenhuma potecircncia e por isso eacute dito possiacutevel metaforicamente e em sentido

equiacutevoco Aleacutem disso diz que ele pertence ao domiacutenio da matemaacutetica (aritmeacutetica e

geometria) e que ele eacute uma potecircncia racional e uma potecircncia matemaacutetica4 Para haver

melhor compreensatildeo sobre o significado de cada um desses pontos eacute necessaacuterio voltar-

se para a doutrina geral a respeito do ldquoser possiacutevelrdquo em Tomaacutes de Aquino

Em filosofia Tomaacutes de Aquino reserva um importante papel para a accedilatildeo de

dizer (dicere) o que eacute evidente na grande ocorrecircncia desse verbo na articulaccedilatildeo dos

argumentos O recurso agrave fala na qual ele supotildee as intenccedilotildees entre apreensatildeo inteligecircncia

e comunicaccedilatildeo situa o debate sobre o possiacutevel e a possibilidade nos diversos acircmbitos do

discurso5

Em geral o nome possiacutevel (possibilis ou possibile) pode significar os entes

corpoacutereos contingentes os quais podem ser ou natildeo ser segundo a mudanccedila isto eacute podem

ser de um modo agora e de outro depois (alteraccedilatildeo aumento e diminuiccedilatildeo) ou podem vir

a ser (geraccedilatildeo) ou deixar de ser (corrupccedilatildeo) aleacutem desses haacute os entes criados inclusive

esclarececirc-lo Haacute ainda os que abordam questotildees relativas ao possiacutevel na filosofia de Tomaacutes de Aquino poreacutem natildeo mencionam o possiacutevel metafoacuterico Por fim haacute alguma bibliografia sobre a metaacutefora na filosofia tomasiana poreacutem circunscrita ao seu uso na teologia De fato ainda natildeo encontrei pesquisadores interessados em estudar o possiacutevel metafoacuterico no acircmbito da matemaacutetica onde ele eacute situado por Tomaacutes de Aquino Espero que este artigo seja um incentivo para pesquisas sobre o assunto 3 Uma das questotildees que precisam ser esclarecidas eacute se o possiacutevel metafoacuterico era de fato um conceito que Tomaacutes de Aquino integrava ao seu pensamento ou se ele era um conceito de Aristoacuteteles presente na Metafiacutesica o qual devido agrave empresa de comentar a obra do estagirita Tomaacutes de Aquino teve de explicar e ao qual fez referecircncias pontuais em debates ulteriores ateacute que natildeo visse mais justificativa para ele em sua proacutepria filosofia De todo modo para enfrentar essa questatildeo antes eacute necessaacuterio fazer o levantamento das ocorrecircncias do conceito na filosofia tomasiana e analisar qual eacute o seu papel local (no texto em que estaacute presente) e tambeacutem o global no pensamento do filoacutesofo como um todo mdash etapa que este artigo se propotildee a comeccedilar 4 A siacutentese apresentada tem por base as passagens Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp q 3 a 14 resp Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 5 De Grijs (1990 p 5ndash6) observa o mesmo de modo especial com respeito ao opuacutesculo Sobre a eternidade do mundo

151

os corpos celestes e os anjos cuja essecircncia e ato de ser dependem da accedilatildeo criadora de

Deus por fim os possiacuteveis natildeo-criados que podem ser algum verbo mental que o ser

humano supotildee ao raciocinar sobre a onipotecircncia de Deus e que este conhece estar em seu

poder fazer embora (por assim dizer) natildeo os tenha feito nem venha a fazer

No acircmbito da loacutegica esses significados estatildeo implicados na locuccedilatildeo ser

possiacutevel (esse possibile) segundo a qual Tomaacutes de Aquino distingue entre um modo da

verdade e um modo de ser A primeira alternativa eacute o modal que modificando a coacutepula

entre o termo-sujeito e o termo-predicado significa que o contraacuterio do que eacute enunciado

tambeacutem pode ser verdadeiro6 A segunda alternativa eacute na realidade um ente que eacute em

potecircncia sob determinado aspecto7 e na inteligecircncia um conceito que tem ratio

possibilis ou possibilitas que eacute um princiacutepio explicativo da possibilidade no conceito

do por que o possiacutevel eacute possiacutevel sob o aspecto considerado8 O possiacutevel tem uma ratio

possibilis quando eacute considerado segundo alguma potecircncia e outra quando eacute considerado

segundo nenhuma potecircncia9

No primeiro caso o ser possiacutevel significa o objeto de uma potecircncia Para

melhor entender isso pode-se recorrer agrave abordagem de Tomaacutes de Aquino nos Escritos

sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 resp segundo a qual o verbo poder cujo formato

nominal eacute potecircncia divide-se em potente e possiacutevel Essa divisatildeo eacute simeacutetrica agravequela entre

agente e paciente e agravequela entre causa e efeito Como o que eacute em ato age sobre o que eacute

em potecircncia resultando em um efeito em ato tal que o primeiro (em ato) seja sua causa

eficiente e o segundo (em potecircncia) sua causa material assim tambeacutem a potecircncia do

agente eacute ativa e princiacutepio de accedilatildeo sobre outro enquanto outro e a potecircncia do paciente eacute

passiva e princiacutepio de sofrer accedilatildeo de outro Porque o ser em ato no agente eacute anterior ao

ser em potecircncia no paciente a potecircncia se diz primeira e propriamente da potecircncia ativa

e por analogia da potecircncia passiva10

6 No acircmbito da loacutegica o modal ser possiacutevel modifica as sentenccedilas sob as formas gerais S eacute P ou S natildeo eacute P significando que o contraacuterio do que elas enunciam pode ser verdadeiro Ele eacute unilateral quando se opotildee apenas a ser impossiacutevel ou eacute bilateral quando se opotildee a ser necessaacuterio e a ser impossiacutevel Cf Aristoacuteteles Sobre a interpretaccedilatildeo II 21a34ndash23a23 Tomaacutes de Aquino Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 Ver tambeacutem KNNUTTILA 1988 p 342ndash81 7 Nesse caso haacute uma potecircncia correspondente ao ato primeiro que eacute a forma e outra correspondente ao ato segundo que eacute a operaccedilatildeo A primeira potecircncia eacute chamada de potecircncia passiva e a segunda de potecircncia ativa Cf Sobre a potecircncia de Deus q 1 a 1 resp 8 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 resp 9 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I d 42 q 1 a 1 Suma contra os gentios II c 6 Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp e q 3 a 14 resp Suma de teologia Ia q 9 a 2 resp Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 e IX l 1 Comentaacuterio a Sobre o ceacuteu I l 25 10 No Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 Tomaacutes de Aquino explica sobre a potecircncia passiva que ldquoPossiacuteveis

152

Por sua vez o possiacutevel corresponde ao efeito em potecircncia que se encontra na

potecircncia ativa do agente mais precisamente ele eacute o objeto da potecircncia Assim quando o

possiacutevel eacute considerado numa ordem com respeito agrave potecircncia11 sua ratio possibilis eacute a

ratio do ato pelo qual a causa produz seu efeito12 Por exemplo o inflamaacutevel eacute objeto da

potecircncia ativa do fogo e por parte desse ser em ato sua ratio possibilis eacute o quente da

accedilatildeo de queimar Poreacutem tratando-se de movimento para produzir um efeito eacute necessaacuteria

a mateacuteria o paciente Dessa maneira em segundo lugar o possiacutevel tem ratio possibilis

pela causa material que eacute a potecircncia passiva13

No segundo caso quando o ser possiacutevel eacute considerado segundo nenhuma

potecircncia14 ele eacute separado desse conceito e eacute chamado equivocamente de ldquopossiacutevelrdquo

Nesse sentido ou o possiacutevel eacute absoluto pois natildeo eacute autocontraditoacuterio e pode ter ratio entis

ou ratio non entis isto eacute pode-se dizer que ldquoisso eacute de algum modordquo ou que ldquoisso natildeo eacute

de algum modordquo15 ou ele eacute metafoacuterico devido a certa semelhanccedila e aplica-se a um objeto

da ciecircncia matemaacutetica (aritmeacutetica ou geometria)

Poreacutem outros se dizem possiacuteveis ou potecircncia natildeo por algum princiacutepio que tenham em si e deles a potecircncia se diz equivocamente [] Pois nesses a potecircncia se diz natildeo por algum princiacutepio que tenham poreacutem por certa semelhanccedila assim como nas [figuras] geomeacutetricas16

e impossiacuteveis dizem-se com efeito desses que tecircm em si mesmos algum princiacutepio e isso segundo certos modos segundo os quais as potecircncias se dizem natildeo equivocamente mas sim analogamenterdquo pouco mais adiante ele prossegue mostrando a reduccedilatildeo das potecircncias agrave potecircncia ativa ldquoPortanto deve-se fazer consideraccedilatildeo sobre as potecircncias que se reduzem a uma espeacutecie pois qualquer uma delas eacute certo princiacutepio e todas as potecircncias se dizem reduzidas a algum princiacutepio do qual se dizem todas as outras E esse eacute o princiacutepio ativo que eacute o princiacutepio de accedilatildeo de mudanccedila sobre outro enquanto eacute outrordquo 11 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 3 resp 12 ldquoA cada potecircncia ativa corresponde um possiacutevel como seu objeto proacuteprio segundo o princiacutepio (rationem) daquele ato em que se funda a potecircncia ativardquo (Suma de teologia Ia q 25 a 3 resp) 13 Pois algo eacute uma potecircncia passiva porque estaacute em potecircncia para sofrer accedilatildeo de um outro que estaacute em ato A sua passividade natildeo eacute explicada pela potecircncia ativa Algo pode sofrer accedilatildeo de outro pois eacute em potecircncia No entanto a sua passividade natildeo eacute aberta a qualquer accedilatildeo mas a determinada accedilatildeo de certa potecircncia ativa Essa restriccedilatildeo explica-se pela ratio do ato no qual se baseia a potecircncia ativa a mesma ratio que tambeacutem delimita o objeto dessa potecircncia Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 14 ldquoQuando se diz que algo eacute possiacutevel natildeo segundo alguma potecircncia [isso se diz] ou metaforicamente [] ou absolutamenterdquo (Sobre a potecircncia de Deus q 3 a 14) 15 Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 Nesse paraacutegrafo para efeito de sistematizaccedilatildeo natildeo considero o problema dos possiacuteveis natildeo-criados pois ao consideraacute-los deve-se acrescentar agrave ausecircncia de contradiccedilatildeo em si proacuteprio e agrave enunciabilidade jaacute explicadas a ratio de poder ser um verbo mental (conceptibilidade) Os possiacuteveis natildeo-criados natildeo satildeo conceitos com essecircncia presente e delimitada na inteligecircncia humana mas satildeo uma suposiccedilatildeo na medida em que o ser humano raciocina sobre a onipotecircncia de Deus Dizer que eles tecircm a ratio de conceptibilidade se deve agrave consideraccedilatildeo de que embora natildeo sejam um conceito na inteligecircncia humana eles satildeo alguma ideacuteia na inteligecircncia divina que vecirc em seu poder tudo o que pode fazer Devolvo mais detalhadamente esse assunto em MONTEIRO 2014 16 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 As traduccedilotildees dos textos de Tomaacutes de Aquino satildeo feitas por mim o Comentaacuterio agrave Metafiacutesica com base na ediccedilatildeo do texto latino Parma t 20 1871 o Sobre a potecircncia de Deus

153

Em uacuteltima anaacutelise todo possiacutevel eacute um possiacutevel absoluto que deve satisfazer

a condiccedilatildeo de natildeo ser autocontraditoacuterio e de poder ter ratio entis ou ratio non entis Esse

possiacutevel pode ser considerado em si segundo a ratio possibilis da ausecircncia de contradiccedilatildeo

em si proacuteprio e da enunciabilidade ou pode ser considerado numa ordem com respeito a

uma potecircncia ou causa segundo a ratio possibilis da potecircncia passiva ou da potecircncia

ativa17

Diante desse quadro geral eacute preciso reconhecer duas dificuldades A primeira

delas concerne a situaccedilatildeo do possiacutevel metafoacuterico dentro da divisatildeo geral sobre o ser

possiacutevel que foi exposta anteriormente

Em Sobre a potecircncia q 3 a 14 resp o possiacutevel metafoacuterico eacute considerado

segundo nenhuma potecircncia Todavia em uma parte anterior q 1 a 3 resp Tomaacutes de

Aquino natildeo o potildee dentro da divisatildeo ldquosegundo nenhuma potecircnciardquo mas apresenta-o como

um terceiro modo de dizer o possiacutevel

Segundo o filoacutesofo Aristoacuteteles possiacutevel e impossiacutevel se dizem de trecircs modos De um modo segundo alguma potecircncia ativa ou passiva assim se diz que eacute possiacutevel para o homem andar segundo a potecircncia locomotiva poreacutem que eacute impossiacutevel para ele voar De outro modo natildeo segundo alguma potecircncia poreacutem segundo si mesmo assim como dizemos que o possiacutevel eacute o que natildeo eacute impossiacutevel de ser e que o impossiacutevel eacute o que eacute necessaacuterio natildeo ser Do terceiro modo o possiacutevel se diz segundo a potecircncia matemaacutetica que estaacute nas [figuras] geomeacutetricas []

Apoacutes a leitura fica a questatildeo afinal o possiacutevel metafoacuterico tem ou natildeo tem

uma ratio possibilis de alguma potecircncia Como todo possiacutevel o possiacutevel metafoacuterico eacute

um conceito que tem ratio possibilis e para efeito loacutegico no miacutenimo esta deve ser a

ausecircncia de contradiccedilatildeo em si proacuteprio e a enunciabilidade18 Nos exemplos dados por

Tomaacutes de Aquino o possiacutevel metafoacuterico significa nuacutemeros e figuras geomeacutetricas que satildeo

abstraccedilotildees do numeraacutevel e do volume pertencentes agrave forma quantitativa nos corpos Eles

dependem dos corpos para ser mas natildeo dependem deles para serem conhecidos e

definidos Na matemaacutetica os nuacutemeros e as figuras geomeacutetricas natildeo tecircm ser em potecircncia

igual os corpos natildeo se movem nem satildeo gerados nem se corrompem como os corpos

com base na ediccedilatildeo Parma t 8 1856 a Suma de teologia com base na ediccedilatildeo Leonina t 4 1888 e a Suma contra os gentios com base na ediccedilatildeo Leonina t 13 1918 17 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 3 resp 18 Uma das consequumlecircncias disso eacute que o possiacutevel metafoacuterico natildeo pode pertencer ao discurso poeacutetico que admite a contradiccedilatildeo na forma de paradoxos e oximoros por exemplo Esta pode ser uma razatildeo forte para depois delimitar o possiacutevel metafoacuterico no acircmbito da matemaacutetica

154

pois natildeo tecircm mateacuteria sensiacutevel19

Assim eles natildeo satildeo objeto de uma potecircncia fora da alma humana mas

enquanto conceitos eles satildeo objetos da inteligecircncia (potecircncia da alma) e satildeo objetos de

uma ciecircncia a matemaacutetica Do primeiro modo eles satildeo inteligiacuteveis pois podem ser

conhecidos Do segundo modo eles satildeo matematizaacuteveis pois podem ser explicados pelos

princiacutepios matemaacuteticos

Entretanto em nada disso se manifesta em que consiste a metaacutefora muito

menos sua aplicaccedilatildeo aos casos em que a linha eacute potecircncia do comensuraacutevel20 e em que

nuacutemeros e figuras multiplicados por eles mesmos podem fazer um quadrado21 ao que

Tomaacutes de Aquino chama de potecircncia matemaacutetica e o que parece equivalente a elevar um

nuacutemero ao quadrado na matemaacutetica atual

Para esclarecer esses pontos deve-se proceder agrave segunda dificuldade que diz

respeito agrave diferenccedila entre metaacutefora e analogia22 Nessa dificuldade eacute necessaacuterio recordar-

se de que o possiacutevel se diz segundo alguma potecircncia ou segundo nenhuma potecircncia e que

na primeira consideraccedilatildeo a palavra potecircncia se diz primeira e propriamente da potecircncia

ativa e por analogia da potecircncia passiva mas na segunda consideraccedilatildeo essa palavra se

diz equivocamente do possiacutevel metafoacuterico e do possiacutevel absoluto pois natildeo haacute neles

princiacutepio de agir nem de sofrer accedilatildeo

Embora Owens (1962 p 310 n 28) reconheccedila que na letra do texto Tomaacutes de

Aquino exclua a metaacutefora como uma forma de analogia ele defende que aleacutem da literalidade

ldquode um ponto de vista filosoacutefico portanto natildeo eacute necessaacuteria qualquer hesitaccedilatildeo em ver a

metaacutefora como um tipo de analogiardquo pois tal como o pensador entende ldquo[] Na metaacutefora

o sentido de um termo eacute transferido para outro com base na analogiardquo Stolarski (2001 p

97) tambeacutem entende que ldquometaforicamenterdquo eacute um tipo de analogia

Ao menos esse entendimento parece estar em sintonia com o pensamento de

19 Cf Comentaacuterio a Sobre a Trindade de Boeacutecio q 5 a 1 resp 20 ldquo[] se diz possiacutevel segundo potecircncia matemaacutetica que estaacute entre as geometrias porque a linha eacute dita potecircncia do comensuraacutevel pois o quadrado dela eacute comensuraacutevelrdquo (Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp) 21 Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 e IX l 1 22 Na filosofia de Tomaacutes de Aquino a analogia eacute um dos conceitos mais centrais e tambeacutem um dos mais controversos Neste artigo natildeo o desenvolverei em detalhes embora reconheccedila a sua importacircncia para a discussatildeo por vir Contudo o debate entre os comentadores sobre o assunto permite trabalhar minimamente com as definiccedilotildees presentes em Escritos sobre as Sentenccedilas I d 19 q 5 a 2 ad 1 e em Sobre a verdade q 2 a 11 a saber a distinccedilatildeo entre a analogia de proporccedilatildeo e a analogia de proporcionalidade Tanto uma quanto outra no emprego da palavra na sentenccedila tecircm a intenccedilatildeo de abranger entre univocidade ateacute a completa equivocidade Enquanto houver alguma proporccedilatildeo entre as palavras haacute alguma analogia entre elas Cf OWENS 1962 Ver tambeacutem ELDERS 2009 p 53ndash75

155

Aristoacuteteles em Poeacutetica 21 1457b16ndash3023 Nessa obra o estagirita distingue quatro

empregos para a metaacutefora quando haacute transferecircncia de ldquoum nome alheiordquo do gecircnero para a

espeacutecie ou quando haacute da espeacutecie para o gecircnero ou quando haacute de uma espeacutecie para outra ou

por fim quando haacute por via de analogia No uacuteltimo caso entende que haacute duas proporccedilotildees uma

de um termo a com um termo b e outra de um termo c com um termo d24

119886119886119887119887 mdash 119888119888

119889119889

Segundo Aristoacuteteles o poeta pode ver senatildeo uma identidade ao menos uma

semelhanccedila entre as proporccedilotildees e entatildeo substituir a por c ou b por d O termo a e o termo

c natildeo satildeo necessariamente da mesma espeacutecie nem do mesmo gecircnero Eles se assemelham

um ao outro em razatildeo da relaccedilatildeo que mantecircm com os outros termos b e d os quais

tambeacutem natildeo pertencem necessariamente agraves mesmas categorias O exemplo dado por

Aristoacuteteles eacute

dia

tarde mdash vidavelhice

Na metaacutefora por via da analogia tem-se que ldquoA tarde eacute a velhice do diardquo ou

ldquoA velhice eacute a tarde da vidardquo Sobre sentenccedilas como essas cabe ressaltar que em Sobre

a interpretaccedilatildeo 4 17a1ndash6 Aristoacuteteles diz claramente que o discurso poeacutetico natildeo eacute

declarativo pois natildeo afirma nem nega segundo o verdadeiro ou o falso

Poreacutem o problema eacute que natildeo haacute indiacutecios de que Tomaacutes de Aquino tivesse

acesso agrave Poeacutetica senatildeo por meio de fragmentos reproduzidos ou comentaacuterios indiretos

feitos em textos dos filoacutesofos aacuterabes traduzidos para o latim A Poeacutetica soacute ganharia

publicaccedilatildeo em grego e versatildeo latina a partir do seacuteculo XVI25

Contudo a falta de acesso agrave Poeacutetica natildeo impediu que Tomaacutes de Aquino

23 Baseio-me nas traduccedilotildees para o portuguecircs de Eudoro de Sousa (2003) e de Jaime Bruna (2014) 24 Haacute ainda um outro modo de metaacutefora por via de analogia quando o poeta nega um dos nomes alheios Um exemplo dado por Aristoacuteteles eacute a taccedila de Dioniso e o escudo de Ares Em vez de declarar que ldquoA taccedila de Dioniso natildeo eacute o escudo de Aresrdquo o poeta pode dizer ldquoO escudo de Ares eacute taccedila sem vinhordquo Entendo que esse modo de metaacutefora natildeo contribui para a discussatildeo adiante por isso natildeo o desenvolvi no corpo do texto 25 As primeiras ediccedilotildees em grego dos livros Retoacuterica e Poeacutetica foram publicadas por Aldo Manuacutecio em 1508 em Veneza Haacute tambeacutem vaacuterios estudos sobre a publicaccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles e dos comentadores antigos nos seacuteculos XV e XVI entre os quais recomendo KRAYE 2002 p 189ndash211 e SELLARS 2004 p 239ndash68

156

desenvolvesse um conceito de metaacutefora bastante semelhante ao de Aristoacuteteles Aquino

natildeo dedicou agrave metaacutefora uma questatildeo ou um livro poreacutem abordou-a suscintamente em

outras discussotildees como em Suma de teologia Ia q 1 a 9 a respeito do seu uso na

interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ldquoa poeacutetica [fala] por metaacuteforas por causa da

representaccedilatildeo pois esta eacute naturalmente deleitaacutevel para o homemrdquo26

Na metaacutefora os termos tornam presente ao intelecto um conceito sob uma

imagem proacutexima da experiecircncia mdash uma representaccedilatildeo Nesse sentido a metaacutefora eacute

equiacutevoca pois os termos que satildeo empregados nas sentenccedilas natildeo tecircm o sentido proacuteprio

segundo o qual nas diversas ciecircncias teoreacuteticas referem-se agraves coisas (res) mas eles satildeo

apresentados em um sentido diverso atrelado agrave imagem que representam na imaginaccedilatildeo

Consequentemente a metaacutefora eacute indiferente para o discurso declarativo porque ela ldquonatildeo

afirma sobre a coisa mas somente sobre a imaginaccedilatildeordquo27

Por exemplo nos debates sobre a criaccedilatildeo e a duraccedilatildeo do mundo Tomaacutes de

Aquino enfrenta vaacuterios argumentos de adversaacuterios e os problemas que eles apresentam a

respeito do tempo e do lugar recorrendo agrave metaacutefora28 Aquino diz que nos dois casos do

tempo e do lugar a imaginaccedilatildeo pode acrescentar alguma medida agrave coisa existente29 Esse

recurso eacute usado pelo filoacutesofo na discussatildeo sobre o sentido de ldquoacima derdquo no contexto da

uacuteltima esfera celeste mdash cabe recordar-se de que a cosmologia tomasiana assim como a

aristoteacutelica afirmava a existecircncia de um universo finito constituiacutedo de esferas cristalinas

concecircntricas fora das quais nada existiria Contudo com base na metaacutefora Tomaacutes de

Aquino argumenta

Assim quando se diz que natildeo haacute nada acima do ceacuteu o acima designa um lugar imaginado enquanto possa se imaginar outras dimensotildees sobrepostas agraves dimensotildees dos corpos celestes30

Ademais na discussatildeo sobre a criaccedilatildeo Tomaacutes de Aquino diz que post (depois)

em ldquocreatum habere esse post non esserdquo natildeo significa a sucessatildeo proacutepria do movimento

segundo o antes e o depois A criaccedilatildeo eacute uma operaccedilatildeo divina que eacute realizada da eternidade

O proacuteprio tempo segundo o qual se diz o antes o agora e o depois eacute criado por Deus Natildeo

obstante segundo a metaacutefora diz-se que a criaccedilatildeo eacute a mudanccedila pela qual Deus produz o

26 ldquopoetica autem metaphoris propter representationem repraesentatio enim naturaliter homini delectabilis estrdquo 27 ldquonon ponit [] in re sed solum in imaginationerdquo (Suma contra os gentios II c 36) 28 Cf Suma de teologia Ia q 46 a 1 ad 8 29 Suma contra os gentios II c 36 30 Suma de teologia Ia q 46 a 1 ad 8

157

mundo do natildeo-ser para o ser31 Em Suma de teologia Ia q 45 a 2 ad 2 o filoacutesofo atribui

enunciados como esse ao modo humano de conhecer

Na passagem da Suma de teologia em que fala sobre o uso da metaacutefora na

teologia Tomaacutes de Aquino explica que a metaacutefora toma um conceito que eacute abstrato um

conceito que seja difiacutecil de ser compreendido e torna-o presente agrave inteligecircncia sob alguma

imagem que eacute mais faacutecil de ser conhecida porque eacute mais proacutexima da experiecircncia Esse

conceito sob a imagem embora se torne mais faacutecil fica mais confuso tambeacutem pois aquilo

a que ele refere natildeo eacute o mesmo que a imagem significa originalmente Nesse sentido ele

precisa ser reelaborado considerando-se aquilo que o difere da imagem (o que ele natildeo eacute)

bem como o seu grau de abstraccedilatildeo

Dessa exposiccedilatildeo geral e certamente insuficiente a respeito da metaacutefora ao

menos se pode notar que o desenvolvimento tomasiano desse conceito aproxima-se em

vaacuterios pontos da definiccedilatildeo aristoteacutelica mas natildeo o bastante para incluir a metaacutefora na

analogia Na filosofia de Tomaacutes de Aquino enquanto a analogia corresponde ao uso das

palavras no acircmbito factual e real no discurso verdadeiro ou falso a metaacutefora corresponde

ao uso delas no acircmbito fictiacutecio e imaginaacuterio no discurso verossiacutemil Natildeo obstante

Aquino estaacute agrave vontade para empregar a metaacutefora como um auxiacutelio nos raciociacutenios por

exemplo fazendo comparaccedilotildees didaacuteticas ou dando inteligibilidade a uma suposiccedilatildeo irreal

(o momento antes do tempo o lugar fora do mundo)

Apoacutes considerar essas dificuldades fica mais claro o que Tomaacutes de Aquino

explica nos textos a seguir

[Aristoacuteteles] diz que na geometria a potecircncia se diz segundo metaacutefora Na geometria a potecircncia da linha se diz quadrado da linha por meio desta semelhanccedila porque como disto que eacute em potecircncia se faz aquilo que eacute em ato assim de uma linha multiplicada por si mesma resulta o quadrado dela assim tambeacutem se disseacutessemos que o trecircs eacute possiacutevel no nove porque o nove se segue de trecircs multiplicado por si mesmo Pois trecircs vezes trecircs satildeo nove Poreacutem como o impossiacutevel tomado do segundo modo natildeo se diz segundo alguma impotecircncia assim tambeacutem os modos de possiacutevel afirmados por uacuteltimo [o possiacutevel metafoacuterico e o possiacutevel absoluto] natildeo se dizem segundo alguma potecircncia mas segundo semelhanccedila ou segundo modo de verdadeiro ou falso32

Poreacutem outros se dizem possiacuteveis ou potecircncia natildeo por algum princiacutepio que tenham em si e deles a potecircncia se diz equivocamente [] Pois nesses a potecircncia se diz natildeo por algum princiacutepio que tenham poreacutem por certa semelhanccedila assim como nas [figuras] geomeacutetricas Pois eacute dito que

31 Cf Suma contra os gentios II c 37 32 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14

158

a potecircncia de alguma linha eacute o quadrado dela e eacute dito que a linha eacute possiacutevel em seu quadrado De modo semelhante pode-se dizer nos nuacutemeros que o trecircs eacute possiacutevel no nove que eacute o quadrado de trecircs pois do trecircs multiplicado por si mesmo se faz o nove Pois trecircs vezes trecircs fazem nove Tambeacutem da linha que eacute a raiz do quadrado multiplicada por si mesma se faz um quadrado Entre os nuacutemeros eacute semelhante Daiacute que a raiz do quadrado tem alguma semelhanccedila com a mateacuteria da qual se faz uma coisa Por isso tambeacutem por alguma semelhanccedila diz-se potente no quadrado assim como se diz a mateacuteria potente na coisa33

Os exemplos do possiacutevel metafoacuterico satildeo de potenciaccedilatildeo o nuacutemero ou a linha

que eacute multiplicado por si mesmo e resulta no quadrado e inversamente de radiciaccedilatildeo o

nuacutemero ou linha que eacute raiz quadrada Nos textos reproduzidos Tomaacutes de Aquino faz

duas declaraccedilotildees fundamentais

1) ldquoA raiz do quadrado tem alguma semelhanccedila com a mateacuteriardquo

2) ldquoComo do que eacute em potecircncia se faz o que eacute em ato

assim da multiplicaccedilatildeo da linha (ou do nuacutemero) por ela mesma resulta o quadradordquo

De acordo com essas declaraccedilotildees o possiacutevel metafoacuterico tem ratio possibilis

na semelhanccedila com a mateacuteria Natildeo se trata da potecircncia passiva nem da potecircncia

intelectual nem de um princiacutepio matemaacutetico mas da semelhanccedila entre duas proporccedilotildees

um nuacutemero ou linha proporcional a outro e a mateacuteria ou ser em potecircncia proporcional

a uma coisa ou ser em ato

nuacutemerolinha

quadrado mdash mateacuteriaser em potecircncia coisaser em ato

De um lado nuacutemero linha quadrado natildeo tecircm mateacuteria sensiacutevel e satildeo objetos

da ciecircncia matemaacutetica De outro lado mateacuteria coisa ser em potecircncia ser em ato podem

referir-se ao acircmbito da fiacutesica ou ao dos singulares incluindo a mateacuteria sensiacutevel ou a

mateacuteria sinalada aleacutem do movimento Tambeacutem a proporccedilatildeo que eacute multiplicaccedilatildeo do

nuacutemero ou linha por ele mesmo natildeo eacute igual nem se relaciona a algo comum agrave proporccedilatildeo

que eacute passagem da potecircncia para o ato no movimento Fica evidente que a potecircncia que

significa a multiplicaccedilatildeo de nuacutemero e figuras eacute dita equivocamente em comparaccedilatildeo agrave

potecircncia que significa a mateacuteria (potecircncia passiva) por analogia agrave potecircncia ativa

Contudo haacute ainda uma semelhanccedila e uma transferecircncia pela metaacutefora Diz-

se que ldquoa coisa eacute feita da mateacuteriardquo materia ex qua fit res tambeacutem se diz que ldquoo quadrado

33 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1

159

eacute feito da linhardquo e que ldquo9 eacute feito de 3rdquo pois tanto a linha quanto o nuacutemero 3 satildeo tomados

e postos sob uma operaccedilatildeo da inteligecircncia que resulta em um quadrado ou no nuacutemero 9

Assim ex ductu ternarii in seipsum facit nouenarium ou seja trecircs vezes trecircs resulta em

nove34 O emprego da preposiccedilatildeo ex (de) e do verbo facere (fazer) sugere uma semelhanccedila

entre o que estaacute no acircmbito da fiacutesica e o que estaacute no acircmbito da matemaacutetica poreacutem como

foi analisado natildeo haacute nada em comum senatildeo semelhanccedila acidental por assim dizer

Contudo haacute uma transferecircncia de um acircmbito para o outro assim como haacute na teologia

uma transferecircncia de atributos sensiacuteveis para falar de Deus por meio da metaacutefora

Por fim em Sobre a potecircncia q 3 a 14 resp Tomaacutes de Aquino acrescenta

um novo aspecto ao possiacutevel metafoacuterico a noccedilatildeo de ldquopotecircncia racionalrdquo

Poreacutem diz-se na circunstacircncia de algo possiacutevel natildeo segundo alguma potecircncia ou metaforicamente assim como nas geometrias se diz que alguma linha eacute potecircncia racional ou absolutamente

Como foi visto a linha assim como o nuacutemero natildeo tem propriamente uma

potecircncia poreacutem tanto uma quanto outro satildeo abstraccedilotildees e objetos da inteligecircncia satildeo

inteligiacuteveis cujo ato procede da inteligecircncia que os apreendeu abstraiu e conheceu Desse

modo quando Tomaacutes de Aquino diz ldquopotecircncia racionalrdquo ou estaacute dizendo que a linha e o

nuacutemero satildeo objetos de uma potecircncia racional (a inteligecircncia que pode raciocionar) ou

estaacute dizendo que semelhantemente a uma potecircncia racional eles satildeo princiacutepios dos quais

pode se seguir um de dois efeitos contraacuterios35 Poreacutem se a linha e o nuacutemero fossem

entendidos como princiacutepios restaria esclarecer quais satildeo os contraacuterios que se seguiriam

deles mdash o quadrado (resultado da multiplicaccedilatildeo) seria um deles ou seria o uacutenico

Haacute ainda de questionar-se a razatildeo por que Tomaacutes de Aquino apenas utiliza

exemplos de potenciaccedilatildeo e de radiciaccedilatildeo Outras operaccedilotildees de multiplicaccedilatildeo ateacute mesmo

outras operaccedilotildees matemaacuteticas (a soma a subtraccedilatildeo e a divisatildeo) natildeo teriam imagens ou

semelhanccedilas com algum termo fora do acircmbito da matemaacutetica A metaacutefora eacute empregada

em todos os juiacutezos de possibilidade na matemaacutetica A imaginaccedilatildeo tem algum papel

importante no conhecimento ou nas operaccedilotildees matemaacuteticas Seraacute que na rigidez dos

axiomas e na exatidatildeo dos caacutelculos sob a superfiacutecie de definiccedilotildees claras e de raciociacutenios

necessaacuterios Tomaacutes de Aquino captou a voz meloacutedica vinda das musas de Hesiacuteodo a

contar mentiras semelhantes a verdades

34 Mais informaccedilotildees sobre o vocabulaacuterio matemaacutetico medieval ver SMITH 1953 p 101ndash28 35 Para uma definiccedilatildeo de potecircncia racional Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 2

160

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MEacuteTODO

Michelle Cardoso Montoya1

RESUMO O presente artigo pretende expor superficialmente alguns avanccedilos epistemoloacutegicos acerca do uso do meacutetodo para alcanccedilar a verdade cientiacutefica considerando-se perspectivas pontuais de Descartes Bacon e Hobbes ao longo da modernidade Tanto o meacutetodo proposto por Renegrave Descartes (1596-1650) quanto o por Francis Bacon (1561-1625) visavam primordialmente orientar qual seria o uso adequado da razatildeo e dos sentidos nos processos epistemoloacutegicos A partir do bom uso da razatildeo no caso cartesiano e de ambos no caso baconiano obtermos fundamentos soacutelidos para investigaccedilatildeo de verdades especialmente as que condizem com a ciecircncia Com Francis Bacon e Thomas Hobbes (1558-1679) verificaremos avanccedilos quanto ao uso epistemoloacutegico do meacutetodo todavia ainda insuficientes para lidar com o que intitularemos por ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo Contudo tentaremos sustentar que as maiores inovaccedilotildees acerca do uso epistemoloacutegico do meacutetodo foram feitas de fato por Gottlob Frege (1848-1925) em sua Conceitografia A partir disto demonstraremos como podemos considerar a conceitografia fregeana como uma espeacutecie de ldquocontinuidaderdquo do meacutetodo cartesiano Palavras-chave Meacutetodo Verdade Cientiacutefica Espaccedilo Epistecircmico ABSTRACT The present article is intended to superficially expose some epistemological advances on the use of the method to reach a scientific truth considering the punctual perspectives of Descartes Bacon and Hobbes throughout modernity Both the method proposed by Reneacute Descartes (1596-1650) and Francis Bacon (1561-1625) aimed primarily at guiding the proper use of reason and senses in epistemological processes From the good use of reason in the Cartesian case and both in the case of the Baconian we obtain solid foundations for the investigation of truths especially those that correspond to science With Francis Bacon and Thomas Hobbes (1558-1679) we will see advances in the epistemological use of the method yet still insufficient to deal with what we will call the problem of epistemic space However we will try to argue that the greatest innovations about the epistemological use of the method were actually made by Gottlob Frege (1848-1925) in his Ideography From this we will demonstrate how we can consider Fregean conception as a kind of continuity of the Cartesian method Keywords Method Scientific truth Epistemic space

1 Mestranda em Filosofia pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGLM-UFRJ) e-mail Michelle_montoyaiduffbr

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Tanto o meacutetodo proposto por Reneacute Descartes (1596-1650) quanto o por

Francis Bacon (1561-1625) visavam primordialmente orientar qual seria o uso adequado

da razatildeo e dos sentidos nos processos epistemoloacutegicos A partir do bom uso da razatildeo no

caso cartesiano e de ambos no caso baconiano obteriacuteamos fundamentos soacutelidos para

investigaccedilatildeo de verdades especialmente das que condizem com a ciecircncia Descartes em

Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito afirma que nossa faculdade do entendimento seria

composta por dois atos intelectuais a saber a intuiccedilatildeo e a deduccedilatildeo A faculdade do

entendimento embora natildeo fosse a uacutenica responsaacutevel pelo processo de conhecimento e o

raciociacutenio jaacute que operaria de acordo com o res cogitam cartesiano isto eacute com a

substacircncia intelectual A intuiccedilatildeo numa certa perspectiva era dita comumente como

independente jaacute que natildeo dependeria de nenhuma outra certeza aleacutem do que estaria

inserido em seu proacuteprio conteuacutedo

A deduccedilatildeo por sua vez seria dependente da intuiccedilatildeo ou mesmo de deduccedilotildees

menos complexas que a proacutepria em questatildeo Logo o processo de conhecimento genuiacuteno

no sistema cartesiano seria baseado em pressupostos de natildeo imediatidade isto eacute para

chegarmos a emitir um juiacutezo certo e indubitaacutevel precisariacuteamos percorrer com nosso

entendimento diversas etapas que com certa praacutetica executariacuteamos numa velocidade

quase imperceptiacutevel Uma vez que para Descartes o entendimento soacute operaria em

conformidade com o intelecto natildeo se fiando nos sentidos para garantir certezas pois estes

seriam enganosos podemos dizer que ocorre o que chamaremos daqui para frente de

ldquoaniquilamento do corpordquo que significa justamente o abandono do conhecimento

imediato proporcionado pelos sentidos como certo e inquestionaacutevel No lugar deste

aniquilamento veremos que restaraacute uma ldquoracionalizaccedilatildeo dos processos epistemoloacutegicosrdquo

fortemente marcada pelo exerciacutecio de uma atividade intelectual que toma por fundamento

de busca pela verdade os atos do entendimento jaacute citados Todavia ao se considerar o ato

da deduccedilatildeo verificaremos que ainda haveraacute um problema lacunar que intitularemos por

ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo jaacute que conforme perceberemos restaratildeo espaccedilos entre

uma deduccedilatildeo e outra que passaratildeo sequencialmente desapercebidos O autor em questatildeo

tentou apresentar meios de solucionar esse problema poreacutem visivelmente ineficientes

Com Francis Bacon observaremos um avanccedilo epistemoloacutegico quanto ao

emprego do meacutetodo que eacute uma ldquoreconciliaccedilatildeo do corpo com o espiacuteritordquo ou se

preferirmos com a alma No Novo Oacuterganon ele proporaacute um meacutetodo empiacutericonatural

embasado nos sentidos Neste momento a razatildeo por si soacute natildeo poderaacute mais operar

sozinha sem ferramentas entatildeo teremos a ldquoressucitaccedilatildeo do corpo nos processos

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epistemoloacutegicosrdquoA partir de Thomas Hobbes (1558-1679) observaremos outros avanccedilos

epistemoloacutegicos interessantes acerca do uso do meacutetodo na investigaccedilatildeo da verdade

partindo de uma cooperaccedilatildeo natural entre corpo e espiacuterito inseridos numa situaccedilatildeo mais

praacutetica a da vida poliacutetica O meacutetodo seraacute utilizado com a finalidade de se estabelecer uma

vida poliacutetica mais sustentaacutevel Todavia neste artigo tentaremos sustentar que as maiores

inovaccedilotildees acerca do meacutetodo foram feitas de fato por Gottlob Frege (1848-1925) em sua

Conceitografia

A fim de banir o problema das lacunas que pudessem eventualmente estarem

presentes nas cadeias inferenciais que aqui consideraremos como uma nova acepccedilatildeo mais

contemporacircnea ao que Descartes considerava como cadeias dedutivas Frege

provavelmente numa certa via deu continuidade aos avanccedilos epistemoloacutegicos quanto ao

uso do meacutetodo Sendo assim neste artigo vamos expor os avanccedilos epistemoloacutegicos no

que diz respeito a utilizaccedilatildeo do meacutetodo de forma pontual ao longo da modernidade a

comeccedilar de Descartes Bacon e Hobbes Daiacute apontaremos alguns indiacutecios sobre como

Frege tentou lidar com o problema do espaccedilo epistecircmico que assolou o meacutetodo ao longo

da modernidade bem como sob qual(is) aspecto(s) podemos considerar a conceitografia

fregeana como uma continuidade do meacutetodo cartesiano ainda que de forma natildeo

conclusiva

Consideraccedilotildees acerca do dualismo cartesiano corpo e espiacuterito

Neste ponto faz-se importante comentar o que Reneacute Descartes entendia por

corpo e espiacuterito 2No sexto paraacutegrafo da ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo o autor nos oferece uma

noccedilatildeo de corpo

ldquo (hellip) por corpo entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaccedilo de tal sorte que todo outro corpo dele seja excluiacutedo que pode ser sentido ou pelo tato ou pela visatildeo ou pela audiccedilatildeo ou pelo olfato que pode ser movido de muitas maneiras natildeo por si mesmo mas por algo de alheio pelo qual seja tocado e do qual receba a impressatildeordquo3

O corpo no sistema cartesiano eacute tido como uma substacircncia material sujeita

a afetaccedilotildees por parte de objetos dos quais detenha percepccedilotildees por meio de um processo

2 Procuraremos aqui tratar ldquoespiacuteritordquo e ldquoalmardquo como sinocircnimos no sistema cartesiano Logo o dualismo corpo-alma e corpo-espiacuterito significaratildeo a mesma coisa 3 DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo sect6 p 127

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imediato4 Ele ocuparia um lugar no espaccedilo por isso seria considerado mateacuteria O calor

interno que circula dentro de noacutes ao realizarmos movimentos bem como todas as nossas

funccedilotildees fisioloacutegicas estariam sob responsabilidade do corpo Logo quando este se

corrompe seus movimentos cessam jaacute que natildeo seriam condizentes com a alma Sendo

assim nossa mortalidade estaria atrelada ao corpoque seria uma extensatildeo delimitada e

finita Nossos sentidos especialmente no processo de conhecimento soacute poderiam ser

exercidos mediante a accedilatildeo do corpo que nos transmitiria por meio de interaccedilotildees nervosas

internas as percepccedilotildees a alma Desse modo nossas accedilotildees seriam regidas pelo corpo que

por vezes dependeriam das paixotildees para ocorrer ou seja da almaporeacutem nem sempre

ldquo () devemos crer que todo calor e todos os movimentos em noacutes existentes na medida

em que natildeo dependem do pensamento pertencem apenas ao corpo5rdquoPor meio de uma

fisiologia largamente detalhada Descartes busca explicitar as funccedilotildees do corpo em As

Paixotildees da Alma tal como o movimento do coraccedilatildeo o percurso dos espiacuteritos animais e

suas contribuiccedilotildees para a movimentaccedilatildeo corporal e o exerciacutecio dos sentidos No entanto

neste artigo evitaremos entrar nestes meacuteritos por julgarmos como irrelevantes para

presente discussatildeo que estaacute sendo desenvolvida

A alma por sua vez estaria detida dentro de uma ldquomaacutequina corporalrdquo natildeo

sendo responsaacutevel nem por sua formaccedilatildeo tampouco por sua conservaccedilatildeo Corresponderia

a uma substacircncia intelectual da qual o pensamento dependeria Sua funccedilatildeo eacute lidar com

dois gecircneros de pensamentos as accedilotildees da alma (ou intelectivas) e as paixotildees Entatildeo o

fim do corpo natildeo determinaria o fim da alma embora se comuniquem entre si Ao findar

o corpo este tatildeo somente se separa da alma revelando sua natureza de efemeridade que

aprisiona dentro de si o que possui caracteriacutesticas capazes de contemplar o que eacute eterno

Sendo assim falar de dualismo cartesiano eacute mostrar como essa conjugaccedilatildeo interativa

ldquoalma-corpordquo se revela em seu aspecto determinista mais fundamental Isto eacute a

mortalidade humana bem como sua capacidade finita seria determinada pelo corpo Jaacute a

alma sendo dotada de ideias inatas de perfeiccedilatildeo e infinitude por exemplo possibilitaria

a contemplaccedilatildeo humana do infinito mesmo aprisionada num lugar de finitude Desse

modo por conseguir transcender as limitaccedilotildees do espaccedilo a alma conseguiria possibilitar

a humanidade a expectativa de ajuizar acerca do universal por mais que natildeo se saiba a

medida exata da proacutepria universalidade E neste ponto eacute de suma importacircncia ter feito

4 Ver mais em DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo 5 DESCARTES As Paixotildees da Alma ldquoPrimeira Parterdquo artigo 4 p296

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essas consideraccedilotildees acerca do dualismo cartesiano para compreendermos o

funcionamento do meacutetodo

O meacutetodo cartesiano

Em Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito vemos que o meacutetodo eacute um conjunto

de regras a serem observadas durante o processo de conhecimento e descoberta da

verdade especialmente no caso cientiacutefico O meacutetodo seria inerente a nossa natureza

humana e nosso entendimento operaria em conformidade com ele Por sua vezo meacutetodo

seria aplicaacutevel a todas as ciecircncias em conjunto de forma indissociaacutevel de maneira

idecircntica e universal ou seja de acordo com a mathesis universalis Na ldquoRegra Irdquo da

obra mencionada o autor defende que as ciecircncias ao contraacuterio das artes seriam

inseparaacuteveis podendo ateacute mesmo serem exercidas com excelecircncia em conjunto

diferentemente das artes mecacircnicas e manuais que exigiriam extrema especializaccedilatildeo Daiacute

adviria a possibilidade dessa mathesis isto eacute de uma universalizaccedilatildeo das ciecircncias no

sentido de existir um conjunto de regras (meacutetodo) passiacutevel de ser aplicado a todas elas

Logo as ciecircncias natildeo deveriam ser mutuamente exclusivas Ao se conhecer a verdade de

uma determinada ciecircncia esta nos ajudaria a alcanccedilar a verdade de uma outra ciecircncia

O meacutetodo seria necessaacuterio para dirigir a razatildeo em busca pela verdade Por

meio dele poderiacuteamos atingir a formulaccedilatildeo de juiacutezos firmes e verdadeiros Nossa razatildeo

neste sistema ainda deveria estar subordinada ao que Descartes chamava de ldquobom sensordquo

ou ldquouniversal sabedoriardquo que estabeleceria os limites maacuteximos de ateacute onde podemos

conhecer Contudo ele ressalta que deveriacuteamos retomar a praacutetica contemplativa de

ldquoconhecer por conhecerrdquo ou seja ldquodevemos apreciar as coisas por si mesmas e natildeo por

sua contribuiccedilatildeordquo6 Isso quer dizer que natildeo deveriacuteamos empenhar forccedilas em descobrir

verdades em face de algum aspecto utilitaacuterio mas sim exercer a atividade intelectual por

exercer por mera contemplaccedilatildeo e amor ao saber em conformidade com o ldquobom sensordquoO

meacutetodo tambeacutem orientaria como o espiacuterito deveria se valer da intuiccedilatildeo e deduccedilatildeo no

processo de conhecimento

As deduccedilotildees seriam certezas extraiacutedas da intuiccedilatildeo caracterizadas por serem

complexas e dependentes de outras deduccedilotildees ou intuiccedilatildeo Nenhuma deduccedilatildeo teria

evidecircncia atual e permitiria a construccedilatildeo da cadeia de conhecimentos ou se preferirmos

6 DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra IIrdquo

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dizer de verdades ou num termo mais contemporacircneo de inferecircncias Seria responsaacutevel

tambeacutem pela apreensatildeo dos objetos do conhecimento bem como das relaccedilotildees cognitivas

entre os objetos no interior de um campo cientiacutefico por exemplo A intuiccedilatildeo seria o que

haacute de mais simples a primeira certeza capaz de inaugurar uma cadeia de deduccedilotildees

concebida como pura e distinta pelo espiacuterito proveniente da ldquoluz da razatildeordquo7A intuiccedilatildeo

por ser mais simples que a deduccedilatildeo eacute mais indubitaacutevel

O meacutetodo cartesiano portanto seria por fim o resultado de uma reflexatildeo

profunda de forma elaborada e natildeo espontacircnea daiacute seu caraacuteter natildeo imediato Por isso

representa o prolongamento dos poderes naturais da razatildeo presentes em noacutes E ainda de

acordo com Descartes o meacutetodo operaraacute de acordo com dois movimentos do espiacuterito e

satildeo eles a anaacutelise e a siacutentese Tais movimentos jaacute teriam sido vistos e ilustrados pela

matemaacutetica grega a partir de Pappus e Diophanto8 No entanto eacute vaacutelido ressaltar que

embora pudessem ser considerados em conjunto um tipo de meacutetodo combinado 9

devemos lembrar que sua essencialidade quanto agrave aplicaccedilatildeo natildeo eacute vaacutelida exclusivamente

para matemaacutetica Tendo em vista que a aritmeacutetica e a geometria seriam tidas como

ciecircncias simples foi possiacutevel se perceber com mais clareza que o meacutetodo isto eacute operar

de acordo com ele faz parte de nossa natureza humana sendo um princiacutepio inato

Descartes retoma o meacutetodo combinado a fim de propor uma aplicaccedilatildeo do mesmo

uniforme e universalmente possiacutevel a todas as ciecircncias Para tanto retoma-se a anaacutelise

problemaacutetica a teoacuterica e a siacutentese

Segundo Descartes embora o espiacuterito humano tivesse o haacutebito de

desvencilhar do que eacute simples e faacutecil haveria dois fatores essenciais para se garantir o

bom funcionamento do meacutetodo a fim de que nossa ldquoluz naturalrdquo ou ldquouniversal sabedoriardquo

natildeo fosse ofuscada a ordem e a medida A ordem porque nosso intelecto deveria partir

de objetos simples ateacute chegar aos mais complexos isto considerando todas as suas partes

e etapas de acordo com os movimentos antes jaacute ilustrados pela matemaacutetica A medida

seria uma caracteriacutestica tiacutepica da mathesis universalis (Matemaacutetica Universal) que

estipularia criteacuterios de homogenizaccedilatildeo dos objetos entre si em disposiccedilatildeo com as ciecircncias

jaacute que teriam a mesma natureza comum reconheciacutevel Sendo assim tanto a ordem quanto

a inteligibilidade seriam requisitos baacutesicos para que todo e qualquer objeto pudesse ser

7 Significava o mesmo que Descartes chamava de ldquoluz naturalrdquo 8 DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra VIrdquo Ver mais detalhes sobre o meacutetodo de anaacutelise e siacutentese em Pappus e Diophanto em HEATH A History of Greek Mathematics pp 400-405 9 LOPARIC Descartes Heuriacutestico pp 136-142

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tratado pelo intelecto Neste sentido conhecer de acordo com o meacutetodo significaria

ordenar e medir os objetos com a razatildeo Logo deveriam permitir serem homogenizados

pela ldquoluz da razatildeordquo bem como o conhecimento natildeo poderia ultrapassar as delimitaccedilotildees

colocadas pela ordem e medida uma vez que estas satildeo imprescindiacuteveis ao funcionamento

adequado do meacutetodo

Vimos no ponto anterior que por meio de certas da alma poderiacuteamos

contemplar a infinitude estando na finitude o que nos possibilitaria a contemplaccedilatildeo da

universalidade que seria tida como simples e absoluta por ser faacutecil ou ao menos

alimentaria em noacutes estas expectativas de conhecimento Todavia agora observamos que

a nossa razatildeo nos processos epistemoloacutegicos natildeo deve exceder a certos limites pois caso

contraacuterio poderaacute infringir o meacutetodo Sendo assim cabe ressaltar aqui que temos apenas

a possibilidade de contemplar a ideia de infinitude e aspectos de universalidade contudo

isto natildeo significa ajuizar acerca do que natildeo eacute alcanccedilaacutevel pela nossa razatildeo Esta

possibilidade simbolizaria antes de mais nada a nossa capacidade de contemplar certas

ideias condizentes com a imortalidade mesmo aprisionados num corpo mortal sem

evidecircncias claras jaacute que este corpo eacute regido pelos sentidos que conforme visto nas

Meditaccedilotildees Metafiacutesicas seriam enganosos e ilusoacuterios10 capazes de deturpar a razatildeo se

esta natildeo estivesse agindo de acordo com o bom senso A fim de fomentar esse engano

mediante a colocaccedilatildeo estrateacutegica da Duacutevida Hiperboacutelica na obra citada Descartes incorre

num ceticismo radical negador do corpo Isto eacute que rejeita como certo e indubitaacutevel todo

e qualquer conhecimento adquirido por meio dos sentidos

No entanto considerando-se a contemplaccedilatildeo como mera possibilidade vecirc-se

um impasse no sistema cartesiano como afirmar que se pode alcanccedilar a certeza e a

evidecircncia tendo um intelecto preso ao corpo No comeccedilo deste artigo abordamos esta

questatildeo sob um outro acircngulo quando foi abordado o ldquoaniquilamento do corpo nos

processos epistemoloacutegicosrdquo Eis a resoluccedilatildeo para esse impasse racionalizar o processo

de conhecimento desconsiderando os possiacuteveis ludibriamentos que os nossos sentidos

podem imprimir em noacutes por meio da materialidade Assim se daraacute esse aniquilamento

No entanto verificaremos mais adiante com o meacutetodo empiacutericonatural de Bacon que o

ldquoaniquilamento do corpo nos processos epistemoloacutegicosrdquo de forma integral se apresenta

como algo inviaacutevel Temos assim uma marca de avanccedilo traga pelo meacutetodo baconiano a

ldquoressuscitaccedilatildeo do corpordquo e seu casamento com o espiacuterito

10 DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo

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O problema do espaccedilo epistecircmico

Segundo Descartes o meacutetodo em si natildeo apresentaria problemas tampouco

existiria a possibilidade de se fazer intelectualmente uma deduccedilatildeo mal feita se

operaacutessemos o meacutetodo detendo-nos em coisas faacuteceis jaacute que seriam mais acessiacuteveis pelo

espiacuterito Aqui deve-se entender por faacutecil aquilo que natildeo eacute composto mas sim

independente Nenhuma concepccedilatildeo duvidosa poderia surgir jaacute que de acordo com nossa

proacutepria natureza agiriacuteamos conforme o meacutetodo e o ldquobom sensordquo a natildeo ser que os

suspendecircssemos Aleacutem disso nos processos epistemoloacutegicos em conformidade com o

meacutetodo temos a recomendaccedilatildeo cartesiana de natildeo prosseguirmos diante de algo complexo

caso ainda tenhamos duacutevida quanto sua natureza11 Contudo apesar desses pressupostos

e recomendaccedilotildees vemos que ainda natildeo haacute clareza quanto ao ordenamento das cadeias

dedutivas cartesianas Chamarei essa falta de clareza de ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo

Numa cadeia cartesiana de deduccedilotildees podemos perceber uma certa ausecircncia

de clareza quanto ao limite seguro espacial que uma deduccedilatildeo deve ter em relaccedilatildeo a outra

Por mais que tentemos clarificar a natureza de todas as coisas envolvidas no processo

dedutivo nos deparamos com a ausecircncia de um criteacuterio espacial bem delimitado e preciso

quanto a distacircncia que uma deduccedilatildeo deve ter da outra Se por exemplo quisermos

determinar se a velocidade da luz eacute a mais raacutepida se demandaria a investigaccedilatildeo de vaacuterias

outras naturezas tais como a da luz a velocidade a da rapidez e entre outras Cada

natureza analisada provavelmente demandaria a anaacutelise de uma outra natureza No fim

de nossa anaacutelise eacute quase certo que a encerrariacuteamos sem a certeza absoluta de que estamos

certos e de que atingimos algum grau de verdade Quantas deduccedilotildees precisariacuteamos fazer

para chegar a criteacuterios seguros quanto a velocidade da luz Isto parece a primeira vista

bastante incerto aleacutem de demandar outros criteacuterios mais seguros que determinem o

espaccedilo que deve haver entre uma deduccedilatildeo e outra Veremos a seguir que Bacon natildeo faraacute

muitos avanccedilos quanto a esta questatildeo especificamente contudo seus adendos

colaboraratildeo para a nossa hipoacutetese inicial de um avanccedilo gradual quanto a aplicabilidade

epistemoloacutegica do meacutetodo O ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo seraacute solucionado com

mais clareza a partir das inovaccedilotildees fregeanas apresentadas na Conceitografia

11 BACON Novo Oacuterganon ldquoPrefaacuteciordquo

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O meacutetodo empiacutericonatural

O meacutetodo empiacutericonatural de Bacon buscou conciliar o papel do corpo e do

espiacuterito nos processos epistemoloacutegicos promovendo o ldquoeterno casamentordquo das

faculdades racionais com os sentidos ressuscitando o corpo O principal movimento do

corpo e do espiacuterito quanto a esse meacutetodo seraacute a induccedilatildeo Aqui ela teraacute uma acepccedilatildeo

distinta da enumeraccedilatildeo suficiente jaacute vista no sistema cartesiano12 Seraacute tida como o meio

mais adequado de conduzir o corpo e o espiacuterito natildeo soacute por respeitar o papel dos sentidos

no processo de conhecimento como por tornar o ser humano obediente a natureza O

intelecto por natildeo ter contato imediato com a natureza que eacute a nossa uacutenica possibilidade

concreta de conhecimento perfeito seria mais propenso a erros do que os sentidos A

partir disso Bacon inauguraraacute um modo de operar o conhecimento mais condizente com

as limitaccedilotildees de nossa mortalidade e humanidade que tem por marca a inacessibilidade

imediata frente ao universal e o infinito Logo estabeleceraacute que na verdade ao contraacuterio

do que se pressupunha no meacutetodo cartesiano devemos partir dos particulares e natildeo dos

universais jaacute que estes natildeo seriam condizentes com os limites humanos dos sentidos

A induccedilatildeo baconiana aleacutem de seguir um movimento oposto ao da

demonstraccedilatildeo convencional valia-se de axiomas para compor por etapas a passagem dos

conhecimentos particulares aos universais isto eacute das proposiccedilotildees mais complexas as

mais simples de ordem geral De acordo com Bacon por meio da deduccedilatildeo natildeo

conseguiriacuteamos conhecer a natureza com clareza jaacute que esta pressuporia o ldquointelecto nurdquo

ou seja despido dos sentidos A induccedilatildeo deveria ser tomada como ponto de partida do

conhecimento sem a expectativa de se deparar apenas com a simplicidade ordenadora

tal como a do meacutetodo cartesiano Conhecer a natureza natildeo seria faacutecil todavia com o

meacutetodo indutivo conseguiriacuteamos dividir o todo complexo que se apresenta diante de noacutes

em partes possibilitando deste modo uma anaacutelise mais minuciosa e em seguida o acesso

a conhecer as coisas

O intelecto por ser afetaacutevel por emoccedilotildees e crenccedilas seria tatildeo duvidoso quanto

os sentidos13 Diga-se de passagem que dado o distanciamento do intelecto em relaccedilatildeo a

natureza este chegaria seria ainda mais propenso a erros que os sentidos Dada a relaccedilatildeo

intriacutenseca do conhecimento com a natureza no sistema baconiano ao contraacuterio do

12 Ver mais sobre enumeraccedilatildeo suficiente em DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra VIrdquo E a criacutetica de Bacon a enumeraccedilatildeo suficiente em BACON Novo Oacuterganon ldquoPlano da Obrardquo sect1 13 BACON Novo Oacuterganon ldquoLivro Irdquo ldquoAforismo XLIXrdquo

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ldquoconhecimento por conhecerrdquo proposto pelo sistema cartesiano teremos um

ldquoconhecimento parardquo o que significa obter conhecimento visando fins utilitaacuterios Um

desses fins que podemos observar no ldquoPrefaacuteciordquo do Novo Oacuterganon seraacute o de usar o

conhecimento em benefiacutecio da vida para conduzi-la com caridade isto eacute de acordo com

os valores eacuteticos morais e cristatildeos Logo o conhecimento estaria relacionado agrave aquisiccedilatildeo

desses valores a fim de se conduzir a vida humana com mais dignidade

A deduccedilatildeo no sistema baconiano poderia nos conduzir ao ldquoobscurecimento

do globo celesterdquo jaacute que utilizariacuteamos o intelecto de forma especulativa ignorando os

sentidos que satildeo capazes de acessar a natureza diretamente Somente por meio da

empiria que direcionariacuteamos a nossa razatildeo por vias seguras condizentes com a sabedoria

universal que teria um quecirc de divino Natildeo respeitar a ordem natural significaria

obscurecer os processos epistemoloacutegicos optando por vias especulativas Num certo

aspecto o meacutetodo baconiano limitaria o exerciacutecio de nossa razatildeo jaacute que ela teria de

exercer ser esforccedilo intelectual a partir da natureza Outro objetivo desse meacutetodo aleacutem da

conciliaccedilatildeo mencionada foi o de eliminar os iacutedolos14

Os iacutedolos poderiam ser entendidos por ilusotildees impressas na razatildeo

principalmente quando a mente 15 sofre alteraccedilotildees em seu funcionamento graccedilas a

afetaccedilotildees oriundas das percepccedilotildees adquiridas a partir dos sentidos podendo ser inatos ou

artificiais Os inatos seriam inerentes ao proacuteprio intelecto enquanto os artificiais inseridos

na mente humana a partir de doutrinaccedilotildees externas e crenccedilas Os iacutedolos inatos segundo

Bacon natildeo poderiam ser eliminados da mente daiacute a importacircncia de um meacutetodo

empiacutericonatural indutivo que concilie as faculdades empiacutericas com as racionais O

meacutetodo baconiano seraacute chamado pelo proacuteprio autor de Interpretaccedilatildeo da Natureza

enquanto o ldquomeacutetodo antigordquo de Antecipaccedilatildeo da Mente

Um dos avanccedilos que o meacutetodo baconiano nos trouxe foi o de tomar a

particularidade como ponto de partida para a anaacutelise da verdade e a aquisiccedilatildeo de

conhecimento mesmo diante de uma complexidade residida na necessidade de um certo

nuacutemero de axiomas para tornar um dado processo epistemoloacutegico mais gradual Tal

avanccedilo eacute importante pois veremos que no sistema de Frege a necessidade de um mesmo

ponto de partida especialmente se considerarmos sua teoria da prova Outros avanccedilos

14 Traduccedilatildeo do termo baconiano idola Podemos tambeacutem traduzir este termo por ldquoilusatildeordquo pois significaria justamente a aquisiccedilatildeo de uma ideia fictiacutecia proveniente de um certo ludibriamento sofrido pela razatildeo 15 Mente em Bacon natildeo se diferencia muito de razatildeo por isso tomarei ambos termos como sinocircnimos um do outro Podemos dizer de forma redundante que a mente para ele eacute a razatildeo em exerciacutecio

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importantes que podemos verificar eacute o reconhecimento dos possiacuteveis impasses que a

linguagem natural pode incutir no meacutetodo a partir de sua utilizaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do

que eacute exterior a noacutes intervir no bom curso e exerciacutecio da razatildeo

No ldquoAforismo XLIVrdquo do ldquoLivro Irdquo de Novo Oacuterganon Bacon jaacute enunciaraacute um

dos maiores impasses que a linguagem colocaraacute ao meacutetodo a imprecisatildeo terminoloacutegica

O silogismo por ser composto de proposiccedilotildees que consistem de palavras de acordo com

o autor seriam pouco seguros caso fossem tomados por fundamento jaacute que satildeo

permutaacuteveis por noccedilotildees que podem ser abstratas e pouco claras para a ciecircncia Por isso

a induccedilatildeo se faria necessaacuteria uma vez que o silogismo natildeo se referia as coisas em si mas

a seus roacutetulos Logo o silogismo natildeo seria uacutetil para se investigar a verdade

O meacutetodo hobbesiano

O meacutetodo hobbesiano buscou retomar o status prioritaacuterio da razatildeo nos

processos epistemoloacutegicos contudo sem ldquoaniquilar o corpordquo A razatildeo ganha um papel de

destaque ao ser igualada a proacutepria Filosofia que estaria inserida dentro de noacutes Propondo

um meacutetodo condizente com a criaccedilatildeo do mundo isto eacute que seguia a ordem da criaccedilatildeo

(luz distinccedilatildeo entre dia e noite firmamento criaturas celestes criaturas sensiacuteveis e

homem) Hobbes buscou estabelecer uma ordem contemplativa que nos fosse adequada

para o exerciacutecio explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo de nossa sabedoria de forma analoacutegica a

estrutura do mundo A Filosofia em sua maacutexima seria consoante ao meacutetodo jaacute que teria

por pressuposto principal a ldquouniatildeo eterna e vigorosa com o mundordquo De acordo com

Hobbes a Filosofia eacute inata em todos os homens jaacute que corresponde a razatildeo natural

contudo para que esta natildeo se desvie dos caminhos corretos precisaria de um meacutetodo

efetivo Muitas vezes como os homens se contentam com a experiecircncia cotidiana como

fundamento para uma indubitabilidade um meacutetodo seria posto de lado o que eacute uma falha

O autor nos oferece uma definiccedilatildeo de Filosofia em Do Corpo dizendo que

ela eacute o conhecimento adquirido pelo reto raciociacutenio dos Efeitos ou Fenocircmenos a partir

das Causas e Geraccedilotildees e vice-versa Haveriam coisas importantes a serem analisadas

nessa definiccedilatildeo todavia ficaremos apenas com a primeira delas onde se dariam essas

Causas e Efeitos Hobbes nos diz que natildeo haacute nada inteiramente imaterial tudo precisa de

um corpo para ser passiacutevel de ser reconhecido ainda que natildeo estejamos falando

exatamente de um corpo fiacutesico Sem corpo natildeo pode haver raciociacutenio pois o princiacutepio

baacutesico que todas as ciecircncias deviam dominar era de como se mede os corpos e seus

173

respectivos movimentos A Filosofia seria uma ferramenta uacutetil para usarmos os Efeitos

dos corpos com comodidade16Em seu exerciacutecio ela pressuporia raciociacutenio que eacute visto

como um caacutelculo onde as principais operaccedilotildees da razatildeo a fim de que ela aja de acordo

com o meacutetodo seraacute a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo Por isso podemos chamar o meacutetodo

hobbesiano de racionalizante Um raciociacutenio neste meacutetodo natildeo tomaria por base apenas

palavras ou nuacutemeros mas corpos movimentos tempos graus e entre outros A adiccedilatildeo e

a subtraccedilatildeo serviriam para reunir distinguir e separar conceitos Para ilustrar isso na

primeira parte de Do Corpo Hobbes nos daacute o exemplo de ldquohomem racionalrdquo que pode

ser desdobrado pelo proacuteprio meacutetodo racionalizante que ele propotildee por meio da

decomposiccedilatildeo dos conceitos ldquohomemrdquo ldquoanimadordquo e ldquoracionalrdquo que juntos somados pela

adiccedilatildeo formam uma soacute noccedilatildeo ldquohomem racionalrdquo

O meacutetodo racionalizante nos traraacute algumas inovaccedilotildees Primeiro a

consideraccedilatildeo de que o que eacute adquirido de forma imediata pela natureza natildeo eacute raciociacutenio

porque a conquista da verdade e firmeza da razatildeo depende da Filosofia atrelada a um bom

meacutetodo Segundo que a experiecircncia natildeo pode ser equiparaacutevel ao raciociacutenio jaacute que eacute soacute

memoacuteria e natildeo consegue reunir ou compor conceitos Terceiro o rompimento com

aspectos teoloacutegicos jaacute que as divindades natildeo poderiam ser conhecidas pela razatildeo mas

eram relativas a questotildees de feacute Tambeacutem natildeo poderiacuteamos aplicar nenhum tipo de anaacutelise

baseada em divisatildeo ou decomposiccedilatildeo de partes jaacute que nada originariamente as concebem

As inovaccedilotildees da conceitografia fregeana quanto meacutetodo

Frege no ldquoPrefaacuteciordquo da Conceitografia ressalta que a linguagem formular do

pensamento puro ou ideografia tem em sua execuccedilatildeo o intento de atender a certos

propoacutesitos cientiacuteficos um deles a saber seria o de minorizar as mazelas da linguagem

natural que possivelmente estaria permeando o discurso cientiacutefico Portanto tal ideografia

natildeo deveria ser posta de lado caso natildeo servisse como ldquomeacutetodordquo para outras finalidades17

Logo busca delimitar seu uso de modo a consideraacute-la como ferramenta uacutetil para

examinar de forma mais detida e detalhada cadeias de inferecircncia sem que estas sejam

obscurecidas pelos obstaacuteculos impostos a algum grau de precisatildeo e clareza colocados pela

linguagem corrente (natural) jaacute que ela deixaria lacunas inevitaacuteveis Nisto Frege propocircs

16 HOBBES Do Corpo ldquoparte 1- Caacuteculo ou Loacutegicardquo capiacutetulo 1 sect 6 a 8

17 FREGE Conceitografia ldquoPrefaacuteciordquo

174

a elaboraccedilatildeo de uma linguagem formular para o pensamento puro que trata de conteuacutedos

conceituais a fim de desfazer a ambiguidade gerada a partir do uso equiacutevoco de sinais

que pudessem designar tanto um conceito quanto o objeto que recaiacutesse sobre um conceito

Desse modo elaborou-se uma lingua characterica onde signos especiacuteficos pudessem ser

manipulados de acordo com regras definidas Juntamente com a concepccedilatildeo desta

linguagem busca-se novos fundamentos para uma ldquonova Sintaxerdquo isto eacute o abandono da

estrutura claacutessica sujeito-predicado aristoteacutelica em prol da noccedilatildeo de funccedilatildeo e argumento

a fim de aumentar ainda mais a precisatildeo discursiva especialmente no que tange o discurso

cientiacutefico

Ao realizar as devidas correccedilotildees quanto aos equiacutevocos comumente expressos

pela linguagem Frege procurou estabelecer um sistema que natildeo soacute desse conta da

imprecisatildeo vista na linguagem natural como tambeacutem de fundamentar uma base

epistemoloacutegica soacutelida para a ciecircncia Essa base ao se valer de um pressuposto de

particularidade foi extremamente uacutetil para solucionar o problema do espaccedilo epistecircmico

suscitado desde o iniacutecio do meacutetodo cartesiano Ao considerarmos a hipoacutetese natildeo

conclusiva de que a conceitografia fregeana serviria como uma restriccedilatildeo provisoacuteria tanto

para pretensotildees universalistas quanto para a fundamentaccedilatildeo mais soacutelida da ciecircncia a

partir de uma particularidade escapando desde da mathesis universalis cartesiana ao

ldquodescobrir facilmente algordquo de Bacon constataremos que Frege por meio do

oferecimento de ferramentas que combatem a proacutepria insuficiecircncia da linguagem natural

em lidar com o problema lacunar (isto principalmente se considerarmos o emprego da

deduccedilatildeo nos processos epistemoloacutegicos) trouxe uma das maiores inovaccedilotildees quanto ao

uso do meacutetodo jaacute vistas a restriccedilatildeo provisoacuteria

Entendemos aqui a restriccedilatildeo provisoacuteria pela limitaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de um

sistema em foacutermulas e escopos especiacuteficos a fim de evitar eventuais problemas que

possam surgir numa aplicaccedilatildeo mais aberta o que foi feito por Frege em seu sistema

supracitado Por meio dela ainda foi possiacutevel deslocar a linguagem de um patamar

gramatical para o das leis loacutegicas em busca de precisatildeo que livre conclusotildees de alguma

generalidade pois construiu-se uma linguagem mais estaacutevel e menos evolutiva Frege

realizou isto valendo-se da palavra escrita jaacute que ela teria mais permanecircncia

possibilitando sua anaacutelise quantas vezes fosse necessaacuterio

Deste modo que o que chamamos de ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo na

verdade era um problema linguiacutestico que foi mais esclarecido a partir do uso de regras

especiacuteficas de manipulaccedilatildeo de signos presentes na conceitografia fregeana que visava

175

atingir um niacutevel de precisatildeo ao ponto de conseguir identificar lacunas presentes em nossas

cadeias inferenciais a fim de contornaacute-las Sendo assim encerraremos nossa exposiccedilatildeo

jaacute que o nosso maior objetivo era indicar apontamentos de motivos pelos quais podemos

considerar ou natildeo a conceitografia fregeana como meacutetodo sem pretensotildees de

elaborarmos conclusotildees mais definitivas

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BACON F Novo Oacuterganon (Instauratio Magna)Satildeo Paulo Edipro 2014

DESCARTESRObra Escolhida Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1962

DESCARTESR Regras para a Direccedilatildeo do EspiacuteritoSatildeo Paulo Cultura Moderna 1938

FREGEG Loacutegica e filosofia da linguagem Satildeo Paulo CultrixEdusp 1978

HEATH TA History of Greek Mathematics (vol II)Nova York Dover 1981

HOBBES T Do Corpo Parte 1 ndash Caacutelculo e LoacutegicaSatildeo Paulo Unicamp 2009

LOPARIC Z Descartes Heuriacutestico Satildeo Paulo IFCH Unicamp 1997

DOIS SENTIDOS DE PARTICIPACcedilAtildeO EM PLATAtildeO

Otacilio Luciano de Sousa Neto1

RESUMO Este artigo visa observar a ocorrecircncia dos termos que dizem participaccedilatildeo nos passos 130b e 130e do Parmecircnides de Platatildeo com a finalidade de distinguir duas concepccedilotildees pouco explanadas nos estudos da ontologia platocircnica um sentido de participaccedilatildeo mutaacutevel no qual um ente pode tornar a participar de uma Forma e possuir um predicado e outro sentido de participaccedilatildeo eterno no qual um participante possui eternamente um predicado (eg o trecircs eacute sempre iacutempar) respectivamente associados aos termos μεταλαμβάνοντα e μετέχοντα Esta distinccedilatildeo se torna mais clara em 155e e pode ser encontrada em outros momentos dos diaacutelogos platocircnicos como por exemplo no Feacutedon Palavras-chave Platatildeo Parmecircnides participaccedilatildeo

ABSTRACT This paper aims to observe the occurrence of terms that say participation in steps 130b and 130e of Platos Parmenides in order to distinguish two conceptions poorly explained in the studies of Platonic ontology a sense of changeable participation which an entity can begin to partake in a Form and get a predicate and another sense of eternal participation in which a participant eternally possesses a predicate (eg three is always odd) respectively associated with the terms μεταλαμβάνοντα and μετέχοντα This distinction becomes clearer in 155e and can be found elsewhere in the Platonic dialogues as for example in the Phaedo Keywords Plato Parmenides participation

Satildeo curiosas as maneiras que aparecem os termos participaccedilatildeo nas passagens

das aporias da participaccedilatildeo e no Parmecircnides como um todo Assim sendo nossa tarefa

eacute investigar estes termos questionando o que eacute participaccedilatildeo

Para que se entenda a participaccedilatildeo jaacute de iniacutecio eacute interessante observar certas

passagens nas quais Parmecircnides pergunta a Soacutecrates como se daacute a participaccedilatildeo Lecirc-se

Mas dize-me tu mesmo assim fizeste a divisatildeo tal como falas de um lado certas formas mesmas de outro as coisas que delas participam E te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada do que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo2 (PLATAtildeO Parmecircnides 130b)

1 Mestrando em filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute 2 καί μοι εἰπέ αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς μὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ μετέχοντα καί τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁμοιότης χωρὶς ἧς ἡμεῖς ὁμοιότητος ἔχομεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες

177

De antematildeo eacute possiacutevel homologar uma determinada concepccedilatildeo questionada

por Parmecircnides As Formas estatildeo separadas [χωρὶς] das coisas de que delas participam

Parmecircnides pergunta se as Formas satildeo separadas dos entes que delas participam A

resposta de Soacutecrates eacute afirmativa e portanto eacute posiccedilatildeo de Soacutecrates que as Formas satildeo

separadas dos participantes Isto natildeo quer dizer necessariamente que as Formas satildeo de

fato separadas dos itens que delas participam apenas quer dizer que Soacutecrates aceita tal

concepccedilatildeo neste momento do diaacutelogo

O problema da separaccedilatildeo em Platatildeo eacute muito discutido e nas proacuteximas

palavras natildeo cabe levantar novamente este problema3 Entretanto a passagem apresenta

que haacute Formas e coisas que delas participam [μετέχοντα] O termo μετέχοντα eacute particiacutepio

presente portanto natildeo indica necessariamente entes sensiacuteveis mas quaisquer coisas que

possa participar das Formas sejam entes sensiacuteveis accedilotildees e outras Formas4

Nada obstante algumas palavras depois a pergunta eacute refeita com algumas

alteraccedilotildees Vecirc-se

[hellip] Mas dize-me o seguinte parece-te como dizes haver certas formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na grandeza grandes se no belo e na justiccedila justas e belas5 (PLATAtildeO Parmecircnides 130e - 131a)

Nesta nova passagem novidades satildeo expressas A primeira nova eacute de que as

coisas que participam das Formas recebem delas denominaccedilotildees [ἐπωνυμίας] Assim eacute

importante lembrar quando algo participa da Semelhanccedila este se torna semelhante

quando participa da Grandeza recebe o predicado grande e na Beleza e na Justiccedila recebe

os adjetivos belo e justo A outra novidade eacute o termo usado para dizer participaccedilatildeo

μεταλαμβάνοντα

Mas podem dois termos dizer o mesmo

Μεταμβάνειν eacute verbo na terceira pessoa do singular do presente do indicativo

da voz ativa originaacuterio do termo μεταλαμβάνω O termo μεταλαμβάνω pode ser

entendido primeiramente por ldquoter ou obter uma parte participarrdquo Este sentido guarda a

3 Para ampliar a discussatildeo deste problema conferir FUJISAWA 1974 Conferir tambeacutem FINE 2003 pp 252-301 NETO 2016 4 Cf PLATAtildeO Repuacuteblica 476a 5 τόδε δ᾽ οὖν μοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα μεταλαμβάνοντα τὰς ἐπωνυμίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁμοιότητος μὲν μεταλαβόντα ὅμοια μεγέθους δὲ μεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι

178

possibilidade de ler μεταλαμβάνω apontando para ldquouma parte recebida ou adicionadardquo

Um segundo sentido aponta para algo que se ldquorecebe em sucessatildeo ou posteriormenterdquo

Outro sentido refere-se a algo que ldquose toma como alternativa que se toma em troca que

substituirdquo E em seu quarto sentido ldquoser mudadordquo6

Para μετέχειν natildeo aparecem tantos sentidos e os que aparecem natildeo satildeo

claramente uacuteteis O termo μετέχειν eacute o infinitivo presente da voz ativa do termo μετέχω

O termo μετέχω por sua vez tem como primeiro sentido apresentado ldquoparticipar ou

compartilhar emrdquo em outro sentido refere-se agraves ldquopartes adicionadasrdquo e mesmo ainda diz

respeito a ldquoser um parceirordquo7

Eacute claramente reconheciacutevel a gecircnese do termo μεταλαμβάνω como a junccedilatildeo

do prefixo ldquoμετάrdquo ao verbo ldquoλαμβάνωrdquo Tambeacutem eacute visiacutevel a associaccedilatildeo entre μετέχω

como a junccedilatildeo do termo ldquoμετάrdquo ao termo ldquoἔχωrdquo O prefixo ldquoμετάrdquo traz o sentido de

ldquojuntamente com entre pelo auxiacutelio derdquo O verbo ldquoλαμβάνωrdquo tem o sentido de ldquoagarrar

segurar levar consigo como precircmio ou espoacutelio pegar tomar em matildeos receber tomar

posse de apreender obter a posse derdquo O verbo ldquoἔχωrdquo traz entre seus sentidos ldquoter

segurar como uso mais comum possuir propriedade manter sustentar reter suportar ou

segurar para si mesmordquo

Sobre a distinccedilatildeo de μετέχω e μεταλαμβάνω satildeo pouquiacutessimas as palavras

que se podem facilmente encontrar Satildeo uacuteteis para o trabalho neste sentido apenas as

palavras de Cornford e Scolnicov8 Lecirc-se

Como no Feacutedon μεταλαμβάνειν (μετάσχεσις Feacutedon 101c μετάληψις Parm 131 a Aristotle cotado abaixo p 79) significa comeccedilar a participar quando a coisa se torna como (γίγνεσθαι) por outro lado μετέχειν eacute usado para ter uma participaccedilatildeo e corresponde a ser como (εἶναι) Mετέχειν e μεταλαμβάνειν satildeo claramente distinguidos novamente em 155E 11-156A 1 (CORNFORD F M 1939 p69 TRADUCcedilAtildeO NOSSA)9 Μεταλαμβάνει eacute o equivalente platonico a lsquotornar-sersquo jaacute enquanto μετέχει lsquotomar parte emrsquo ou lsquoparticipar emrsquo eacute equivalente ao predicado lsquoeacutersquo Eacute claro na tese de Soacutecrates(cf 128e5 ff acima p48) somente sensiacuteveis podem lsquovir a tomar parte emrsquo algo ou seja nas

6 CfLIDDEL H G SCOOT R 1996 7 IDEM ibidem 8 Fujisawa parece elucidar o problema Entretanto a distinccedilatildeo ressaltada por Fujisawa se daacute em maior forccedila para distinguir ἔχειν de μετέχειν e μεταλαμβάνειν E a distinccedilatildeo e o problema se daacute para defender a tese de caracteres imanentes e natildeo parece tratar profundamente sobre o problema da predicaccedilatildeo Cf FUSISAWA 1974 9 CORNFORD F M Plato and The Parmenides and Parmenidesrsquo Ways of Truth translation with a running comment p 69

179

Formas as quais satildeo diferentes deles (SCOLNICOV 2001 p56 TRADUCcedilAtildeO NOSSA)10

Na apresentaccedilatildeo de Scolnicov eacute claro que para o Soacutecrates do diaacutelogo a

participaccedilatildeo se daacute apenas em entes sensiacuteveis Entretanto natildeo se vecirc que esta tese pode ser

defendida por Parmecircnides uma vez que em suas perguntas ele apenas pergunta acerca

ldquodos participantesrdquo ou das ldquocoisas que das Formas participamrdquo Ainda assim Scolnicov

distingue μεταλαμβάνει de μετέχει associando o primeiro a ldquotornar-serdquo e o segundo a

ldquoserrdquo em sentido predicativo Natildeo suficiente as distinccedilotildees lexicais apresentadas por

Cornford nos termos μετέχω e μεταλαμβάνω relacionam μεταλαμβάνω a γίγνεσθαι e

μετέχω a εἶναι Presumivelmente Cornford e Scolnicov apresentam a mesma distinccedilatildeo e

mesma posiccedilatildeo acerca do problema Entretanto deve-se perguntar quais as razotildees que

fundamentam esta relaccedilatildeo

[155e] O um se eacute tal como discorremos sendo tanto um quanto muacuteltiplas coisas e natildeo sendo nem um nem muacuteltiplas coisas e participando do tempo [μετέχον] natildeo eacute necessaacuterio que ora porque eacute um participe [μετέχειν] da essecircncia [οὐσίας] e ora por outro lado porque natildeo eacute natildeo participe [μετέχειν] da essecircncia [οὐσίας] Eacute necessaacuterio Assim sendo quando participa [μετέχει] poderaacute nesse momento natildeo participar [μετέχειν] ou quando natildeo participa [μετέχει] participar [μετέχειν] Natildeo poderaacute Logo eacute em um tempo que ele participa [μετέχει] e eacute em outro que natildeo participa [μετέχοι] Pois somente desse modo poderia participar e natildeo participar [μετέχοι] [156a]Correto Assim sendo natildeo haveraacute tambeacutem aquele tempo em que ele entra em participaccedilatildeo [μεταλαμβάνει] com o ser e em que dele se afasta Ou como seraacute possiacutevel ora ter [ἔχειν] e ora natildeo ter [μὴ ἔχειν] a mesma coisa se jamais ele a apanhar [λαμβάνῃ] ou largar [ἀφίῃ] De modo nenhum seraacute possiacutevel E o entrar em participaccedilatildeo [μεταλαμβάνειν] com a essecircncia natildeo chamas vir-a-ser [γίγνεσθαι] Sim perfeitamente

10 SCOLNICOV Samuel Platorsquos Parmenides p 56

180

O um entatildeo como parece apanhando [λαμβάνον] e largando [ἀφιὲν] a essecircncia tanto vem a ser quanto perece (PLATAtildeO Parmecircnides 155e-156a)

A passagem acima apresenta um problema que poderia ser uma insoluacutevel

aporia da participaccedilatildeo

O que eacute apresentado de iniacutecio eacute uma determinada concepccedilatildeo acerca do um

o qual pode ser entendido ou bem ora como um ou bem ora como muitos ou muacuteltiplos

(πολλὰ) Todavia se o um pode ser ora entendido como um e ora como πολλὰ ora ele

pode natildeo ser entendido como um ora natildeo pode ser entendido como πολλὰ E participando

do tempo eacute necessaacuterio admitir que algum tipo de mudanccedila uma vez que um item (x) que

participa da forma (F) ora pode ser retentor de um predicado (f) em razatildeo da participaccedilatildeo

ora pode natildeo ter mais tal predicado (f) e portanto natildeo ser mais um participante da Forma

(F) O que se diz precisamente eacute o participante do tempo (μετέχον χρόνου) a um tempo

participa de uma propriedade (οὐσίας μετέχειν ποτέ) a outro tempo natildeo participa da

propriedade (μὴ μετέχειν αὖ ποτε οὐσίας)11

Seguindo esta anaacutelise o participante do tempo (μετέχον χρόνου) tendo como

motivo um soacute aspecto ser participante do tempo (μετέχον χρόνου) ora eacute participante ora

natildeo eacute participante da propriedade (οὐσίας) Isto eacute semelhante a posiccedilatildeo de Zenatildeo no

iniacutecio do diaacutelogo impossiacutevel Isto eacute impossiacutevel uma vez que eacute uma contradiccedilatildeo sob o

mesmo aspecto ser participante do tempo o participante eacute e natildeo eacute participante da

propriedade (οὐσίας) Assim sendo o tempo eacute causa de um participante possuir alguma

propriedade (beleza justiccedila etc) e natildeo possuir esta mesma propriedade Eacute claro como eacute

afirmado no diaacutelogo que natildeo poderaacute ldquoquando participa (μετέχει) () natildeo participar

(μετέχειν) ou quando natildeo participa (μετέχει) participar (μετέχειν) (PLATAtildeO

Parmecircnides 155e) rdquo

Eis uma aporia da participaccedilatildeo por participar no tempo algo eacute e natildeo eacute

Entretanto para esta haacute soluccedilatildeo A soluccedilatildeo eacute a instauraccedilatildeo de dois momentos temporais

(i) o momento em que participa e (ii) o momento em que natildeo participa O instaurar destes

dois momentos resolve a contradiccedilatildeo pois eacute em um momento que se diz que participa e

em outro momento distinto se diz que natildeo participa

11 Eacute possiacutevel entender a partir da Repuacuteblica 476a que aleacutem de entes sensiacuteveis eacute possiacutevel que accedilotildees Formas e predicados participem de Formas Neste caso contudo entende-se que participar em uma propriedade [οὐσίας] natildeo eacute outra coisa que natildeo possuir [ἔχειν] uma determinada propriedade em razatildeo da participaccedilatildeo na Forma Cf FUJISAWA 1974 Conferir tambeacutem NETO 2016

181

Ateacute entatildeo o uacutenico termo usado para dizer participaccedilatildeo nesta passagem eacute

μετέχω em suas devidas conjugaccedilotildees e ou declinaccedilotildees E eacute brilhante pois em grego a

uacuteltima palavra usada em 155e eacute μετέχοι Eis que acaba 155e comeccedila 156a e o termo

μετέχω nem mais iraacute surgir no argumento O termo usado agora para dizer participaccedilatildeo eacute

μεταλαμβάνω

Relembra-se μεταλαμβάνειν eacute distinto de μετέχειν O primeiro sob anaacutelise

lexical teria um sentido aproximado de ldquojuntamente com o agarrarrdquo o segundo

ldquojuntamente com o possuirrdquo Em contraposiccedilatildeo ao apanhar (λαμβάνω) tem-se o largar

(ἀφω)

Assim o ente entra em participaccedilatildeo (μεταλαμβάνει) e com isso ele apanha

(λαμβάνει) por participar (μεταλαμβάνει) determinada propriedade (οὐσία) e tecircm essa

propriedade (ἔχει) mas natildeo eternamente (como em μετέχω) mas por um tempo efecircmero

que dura apenas ateacute largar (ἀφει) a propriedade que retecircm na participaccedilatildeo e a participaccedilatildeo

(μεταλαμβάνει) cessar

Este sentido de participaccedilatildeo fugaz apresenta claramente a presenccedila do

conceito de ldquovir-a-serrdquo para a compreensatildeo de seu sentido e por vezes este conceito se

daacute grafado em grego atraveacutes do termo γίγνομαι Este caso certamente se daacute no Feacutedon

na emblemaacutetica passagem que parece ser a capital para entender a participaccedilatildeo em Platatildeo

O que me parece eacute que se existe algo belo aleacutem do belo em si soacute poderaacute ser belo por participar desse belo em si O mesmo afirmo de tudo o mais Admites essa espeacutecie de causa Admito respondeu Entatildeo jaacute natildeo compreendo continuou as outras causas de pura erudiccedilatildeo e nem consigo explicaacute-las E se para justificar a beleza de alguma coisa algueacutem me falar da sua cor brilhante ou da forma ou do que quer que seja deixo tudo o mais de lado que soacute contribui para atrapalhar-me e me atenho uacutenica e simplesmente talvez mesmo com uma boa dose de ingenuidade ao meu ponto de vista a saber que nada mais a deixa bela senatildeo tatildeo soacute a presenccedila ou comunicaccedilatildeo daquela beleza em si qualquer que seja o meio ou caminho de lhe acrescentar De tudo o mais natildeo faccedilo grande cabedal o que digo eacute que eacute soacute pela beleza em si que as coisas belas satildeo belas Na minha opiniatildeo essa eacute a maneira mais certa de responder tanto a mim mesmo como aos outros Firmando-me nessa posiccedilatildeo tenho certeza de natildeo vir a cair e de que tanto eu como qualquer pessoa em idecircnticas circunstacircncias poderaacute responder com seguranccedila que eacute pela beleza que as coisas belas satildeo belas12 (PLATAtildeO Feacutedon 100c-e NEGRITOS NOSSOS)

12 φαίνεται γάρ μοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι᾽ ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι μετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω τῇ τοιᾷδε αἰτίᾳ συγχωρεῖς

182

O termo que se grafa em grego eacute γίγνεται e natildeo haacute duacutevidas que o termo tem

o sentido de ldquovir a ser13rdquo Por este motivo discordamos aqui da presente traduccedilatildeo uma

vez que o que Soacutecrates diz que eacute pela Beleza que as coisas se tornam belas

Eacute claro que a acepccedilatildeo Socraacutetica natildeo parece como afirma o proacuteprio Soacutecrates

indubitaacutevel jaacute que o proacuteprio personagem que profere as palavras afirma que pode haver

nele uma boa dose de ingenuidade ao defender a participaccedilatildeo Natildeo obstante como eacute

possiacutevel que o personagem que muitiacutessimas vezes eacute o baluarte da discussatildeo nos diaacutelogos

platocircnicos natildeo estar seguro de uma tatildeo importante doutrina O fato eacute que mesmo que

Soacutecrates possa parecer seguro acerca da existecircncia das Formas ele natildeo parece seguro de

como funciona as relaccedilotildees que se datildeo onde as Formas satildeo elementos de relaccedilatildeo

Nos mais importantes diaacutelogos para a participaccedilatildeo ndash os considerados por noacutes

os mais importantes objetos de pesquisa ndash a saber Feacutedon Parmecircnides e Sofista Soacutecrates

em momento algum parece estar totalmente seguro acerca de alguma relaccedilatildeo que se daacute

entre Forma e quaisquer itens que dela participar o que natildeo impede o personagem de

homologar ou propor fortiacutessimos aspectos acerca da participaccedilatildeo No Feacutedon mesmo que

assuma que possa estar sendo ingecircnuo ele assume um sentido de participaccedilatildeo que

apresenta a possibilidade de transiccedilatildeo de um item que natildeo eacute portador de um predicado e

pela participaccedilatildeo na Forma pode se tornar retentor de um predicado conferido pela

Forma14 No Parmecircnides Soacutecrates apenas nos passos 129a-e iraacute proferir as palavras que

dizem participaccedilatildeo μετέχειν μεταλαμβάνειν e em momento algum do diaacutelogo iraacute dizecirc-

las novamente apenas aceitaraacute ou recusaraacute as perguntas feitas pelo personagem

Parmecircnides Este uacuteltimo no entanto atraveacutes de suas questotildees iraacute tratar de importantes

aspectos da participaccedilatildeo Jaacute no Sofista Soacutecrates se cala logo no iniacutecio do diaacutelogo e caberaacute

ao Estrangeiro de Eleacuteia apresentar a teia de conexotildees que haacute entre Formas (συμπλοκὴ τῶν

εἰδῶν)15

Entranto mesmo que Soacutecrates seja um personagem que legitima toda a

compreensatildeo sobre a participaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel que seja alvo de contenda o sentido de

participaccedilatildeo tanto no Feacutedon como no Parmecircnides que traga consigo a noccedilatildeo de ldquotornar-

serdquo fazendo com que um item que natildeo eacute x possa vir-a-ser x por participar de uma Forma

X ldquojuntamente com o agarrarrdquo da propriedade Obstante Platatildeo natildeo deixa de escrever

13 Cf LIDDEL H G SCOOT R 1996 14 Soacutecrates inseguro e ousado ainda iraacute apresentar um exemplo de outro sentido de participaccedilatildeo 15 Cf PECK A L Platos Sophist The συμπλοϰὴ τῶν εἰδῶν 1962

183

Mas estou certo de que tambeacutem admites que nunca poderaacute a neve como neve conforme dissemos haacute pouco depois de receber o calor continuar a ser o que era neve com calor Com a aproximaccedilatildeo do calor ou ela se retira ou vem a fenecer Perfeitamente Tal qual o fogo com a chegada do frio retira-se ou perece de jeito nenhum depois de receber o frio se atreveria a ser o que antes era fogo a um tempo e frio Falaste com muito acerto observou Pode acontecer continuou nalguns exemplos desse tipo que natildeo somente a ideia em si mesma tenha o direito de conservar eternamente o mesmo nome como tambeacutem algo que diferente que sem ser aquela ideia apresenta-se enquanto existe com sua forma Eacute possiacutevel que com o seguinte exemplo eu deixe mais claro meu pensamento O nuacutemero iacutempar teraacute de conservar sempre esse nome com o que o designamos Ou natildeo Perfeitamente [] Seja como for de tal modo eacute construiacuteda a natureza do trecircs do cinco e de toda uma metade de nuacutemeros que apesar de cada um deles natildeo ser a mesma coisa que o iacutempar sempre teraacute de ser iacutempar O mesmo passa com o dois o quatro e toda a outra metade dos nuacutemeros que sem serem o par sempre teratildeo de ser pares Admites isso ou natildeo Como natildeo admitir Foi a sua resposta16 (PLATAtildeO Feacutedon 103d-104b)

16 ἀλλὰ τόδε γ᾽ οἶμαι δοκεῖ σοι οὐδέποτε χιόνα γ᾽ οὖσαν δεξαμένην τὸ θερμόν ὥσπερ ἐν τοῖς πρόσθεν ἐλέγομεν ἔτι ἔσεσθαι ὅπερ ἦν χιόνα καὶ θερμόν ἀλλὰ προσιόντος τοῦ θερμοῦ ἢ ὑπεκχωρήσειν αὐτῷ ἢ ἀπολεῖσθαι πάνυ γε καὶ τὸ πῦρ γε αὖ προσιόντος τοῦ ψυχροῦ αὐτῷ ἢ ὑπεξιέναι ἢ ἀπολεῖσθαι οὐ μέντοι ποτὲ τολμήσειν δεξάμενον τὴν ψυχρότητα ἔτι εἶναι ὅπερ ἦν πῦρ καὶ ψυχρόν ἀληθῆ ἔφη λέγεις ἔστιν ἄρα ἦ δ᾽ ὅς περὶ ἔνια τῶν τοιούτων ὥστε μὴ μόνον αὐτὸ τὸ εἶδος ἀξιοῦσθαι τοῦ αὑτοῦ ὀνόματος εἰς τὸν ἀεὶ χρόνον ἀλλὰ καὶ ἄλλο τι ὃ ἔστι μὲν οὐκ ἐκεῖνο ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν ἀεί ὅτανπερ ᾖ ἔτι δὲ ἐν τῷδε ἴσως ἔσται σαφέστερον ὃ λέγω τὸ γὰρ περιττὸν ἀεί που δεῖ τούτου τοῦ ὀνόματος τυγχάνειν ὅπερ νῦν λέγομεν ἢ οὔ πάνυ γε ἆρα μόνον τῶν ὄντωνmdashτοῦτο γὰρ ἐρωτῶmdashἢ καὶ ἄλλο τι ὃ ἔστι μὲν οὐχ ὅπερ τὸ περιττόν ὅμως δὲ δεῖ αὐτὸ μετὰ τοῦ ἑαυτοῦ ὀνόματος καὶ τοῦτο καλεῖν ἀεὶ διὰ τὸ οὕτω πεφυκέναι ὥστε τοῦ περιττοῦ μηδέποτε ἀπολείπεσθαι λέγω δὲ αὐτὸ εἶναι οἷον καὶ ἡ τριὰς πέπονθε καὶ ἄλλα πολλά σκόπει δὲ περὶ τῆς τριάδος ἆρα οὐ δοκεῖ σοι τῷ τε αὑτῆς ὀνόματι ἀεὶ προσαγορευτέα εἶναι καὶ τῷ τοῦ περιττοῦ ὄντος οὐχ ὅπερ τῆς τριάδος ἀλλ᾽ ὅμως οὕτως πέφυκε καὶ ἡ τριὰς καὶ ἡ πεμπτὰς καὶ ὁ ἥμισυς τοῦ ἀριθμοῦ ἅπας ὥστεοὐκ ὢν ὅπερ τὸ περιττὸν ἀεὶ ἕκαστος αὐτῶν ἐστι περιττός καὶ αὖ τὰ δύο καὶ τὰ τέτταρα καὶ ἅπας ὁ ἕτερος αὖ στίχος τοῦ ἀριθμοῦ οὐκ ὢν ὅπερ τὸ ἄρτιον ὅμως ἕκαστος αὐτῶν ἄρτιός ἐστιν ἀεί συγχωρεῖς ἢ οὔ

184

Para analisar a passagem do Feacutedon eacute necessaacuterio relembrar alguns pontos

Primeiro de que a Forma se relaciona com outros entes sejam eles entes sensiacuteveis ou

mesmo outras Formas Quando uma Forma tem relaccedilatildeo com um ente sensiacutevel e o ente

sensiacutevel nesta relaccedilatildeo reteacutem (ἔχει) uma propriedade (οὐσία) chamamos isso de

participaccedilatildeo Antes foi visto que um ente pode possuir uma propriedade e em outro

momento natildeo mais a possuir quando isto acontece dizemos participaccedilatildeo atraveacutes do

termo μεταλαμβάνω

Contudo o sentido de participaccedilatildeo aferido no Feacutedon (130d-104b) eacute outro

Eacute sabido que em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo agravequilo que participa da Forma

possui (ἔχειν) ou melhor agarra (λαμβάνειν) uma propriedade (ὀυσια) em razatildeo da

participaccedilatildeo Viu-se que um ente pode vir a tornar-se retentor de um predicado caso venha

a ser (γίγνεται) participante da Forma e pode muito bem natildeo reter mais o predicado caso

a participaccedilatildeo cesse Entretanto eacute possiacutevel pensar em alguma participaccedilatildeo que jamais

cesse apontando uma propriedade tatildeo duradoura quanto a proacutepria existecircncia essencial do

ente

De antematildeo este tipo de participaccedilatildeo seria impossiacutevel pois os entes

sensiacuteveis mutaacuteveis que satildeo jamais se conservam idecircnticos nem a si mesmos e nem em

relaccedilatildeo aos outros (Feacutedon 78a-79b) Tal mutabilidade poderia muito bem indicar que

nenhum tipo de participaccedilatildeo poderia se dar eternamente ndash ou necessariamente enquanto

o proacuteprio participante existisse

O que se apresenta entretanto no Feacutedon (130d-104b) eacute outro tipo de relaccedilatildeo

necessaacuteria e eterna em que algo que eacute diferente da Forma da qual participa conserva

durante toda a sua existecircncia a relaccedilatildeo que haacute com tal diferente Forma Assim sendo um

ente seria enquanto existente retentor de um predicado x por participar de uma Forma

X Forma esta a qual eacute totalmente divergente do ente De tal maneira um ente que

relaciona com a Forma e possui dela propriedades predicados pode se conservar durante

toda sua existecircncia retentor de determinada propriedade nunca apanhando (λαμβάνον)

mas sempre a possuindo (ἔχει) e nunca largando (ἀφιὲν) Assim seria necessaacuterio dizer

que ele eacute (ἐστιν) belo justo bom ou quaisquer coisas que seja por participar da Forma

e natildeo eacute possiacutevel dizer que ele se tornou (γίγνεται) belo justo bom (ou quaisquer

πῶς γὰρ οὔκ ἔφη

185

predicados cabiacuteveis) pois se ele se tornou eacute necessaacuterio afirmar que antes natildeo era

Contudo desde sua existecircncia sempre foi retentor de tal predicado

Certamente eacute possiacutevel pensar que justo belo e bom satildeo predicados

transitoacuterios podendo assim um item se tornar justo belo ou bom e em algum momento

natildeo o ser mais Natildeo pensamos aqui a possibilidade de algum ente seja justo

essencialmente e participe da justiccedila sem nunca a agarrar mas sendo justo por possuir a

justiccedila17

Como exemplos Soacutecrates apresenta o caso do fogo que enquanto existir seraacute

quente Se natildeo for mais quente natildeo existe e natildeo eacute mais fogo A neve enquanto neve eacute

fria e se natildeo for mais fria natildeo seraacute mais neve O nuacutemero trecircs eacute iacutempar e natildeo pode acontecer

de existir um trecircs natildeo iacutempar e que seja par

Entretanto os exemplos dados por Soacutecrates divergem acerca do objeto de que

tratam No primeiro caso a neve e o fogo ambos satildeo entes sensiacuteveis que podem ser

captados pela senso-percepccedilatildeo De tal modo mesmo que estes entes sensiacuteveis nunca

permaneccedilam idecircnticos a si mesmos e nem aos outros (Feacutedon 78a-79b) eles tecircm um tipo

de participaccedilatildeo que permanece enquanto permanece a proacutepria existecircncia do ente a neve

enquanto a neve (χιόνα) deveraacute possuir (ἔχει) o predicado frio (ψυχροῦ) sob pena de natildeo

mais existir enquanto neve caso a participaccedilatildeo cesse o fogo (τὸ πῦρ) por sua vez deveraacute

ser sempre quente (θερμόν) sob pena de natildeo ser mais fogo se a participaccedilatildeo cessar Natildeo

caberaacute de maneira alguma agrave neve ser quente ndash uma vez que natildeo existiraacute mais ndash e nem

caberaacute ao fogo ser frio Estas participaccedilotildees embora se deem entre entes mutaacuteveis duram

enquanto existir o ente

Todavia distinto eacute o caso do nuacutemero trecircs uma vez que trecircs natildeo parece ser um

ente um ente sensiacutevel Pensa-se duas maneiras de entender o numeral trecircs (i) ou bem trecircs

eacute predicado de algo (eg Soacutecrates eacute trecircs por possuir trecircs partes cabeccedila tronco e

membros) ou (ii) bem trecircs poderaacute ser uma Forma abstrata que confere predicados Igual

seria o caso do Um do Cinco e de demais nuacutemeros Se pensarmos o primeiro ponto (i)

deveraacute haver uma Forma Triacuteade que possibilite que algo seja trecircs pois todos os

17 Platatildeo de fato natildeo deixa de investigar como seria possiacutevel que um ente participe (μετέχει) de uma determinada Forma que lhe confesse um predicado virtuoso tal como o exemplo da Justiccedila usado acima De fato tal relaccedilatildeo eacute objeto de investigaccedilatildeo no livro II da Repuacuteblica (359c em diante) A investigaccedilatildeo de Soacutecrates e Glauco eacute sobre a possibilidade de haver um homem justo de tal maneira que continuasse justo mesmo de posse de ilimitado poder alegoricamente apresentado como anel de Giges ou de quaisquer peripeacutecias que podem se dar no tempo Portanto a busca de Soacutecrates e Glaacuteuco no livro II da Repuacuteblica eacute por um tipo de participaccedilatildeo (μετέχειν) neste sentido um homem que eacute (ἐστιν) justo e jamais poderaacute vir a ser (γίγνεται) injusto

186

predicados precisar tem uma Forma para haver o predicado Todo trecircs portanto eacute iacutempar

Poreacutem iacutempar eacute um predicado entatildeo haacute a Forma Iacutempar que lhe confere predicado Assim

sendo todo predicado trecircs deveraacute participar do Iacutempar e ser predicado de iacutempar Logo

todo item que tiver o predicado de trecircs deveraacute tambeacutem ser iacutempar pois o predicado trecircs

participa necessariamente (μετέχει) do Iacutempar Sob o segundo aspecto (ii) para pensar

tem-se que Trecircs eacute uma Forma abstrata que confere predicado trecircs aos entes que dela

participa poreacutem eacute necessaacuterio assumir que Trecircs eacute iacutempar e eacute iacutempar por participar do Iacutempar

Nesta participaccedilatildeo entre Formas Trecircs (ou Triacuteade) que participa de Iacutempar se faz

necessaacuterio dizer que todo item que participa do Trecircs deveraacute ser iacutempar porque a proacutepria

Triacuteade participa do Iacutempar

Neste tipo de participaccedilatildeo ndash sendo tomado como objeto o fogo a neve o trecircs

etc ndash o item eacute [εἶναι] ldquojuntamente comrdquo [μετά] o possuir [ἔχει] a propriedade [οὐσία]

denominado a partir da Forma e natildeo se torna [γίγνεσθαι] algo ldquojuntamente comrdquo [μετά]

o apanhar [λαμβάνω] daquela propriedade

Atraveacutes da anaacutelise dos passos 155e-156a do Parmecircnides eacute perceptiacutevel que

μεταλαμβάνω eacute associaacutevel a uma participaccedilatildeo mutaacutevel que ora pode ser e pode natildeo ser

E μεταλαμβάνω eacute apresentado para resolver o problema que traz outro tipo de participar

[μετέχω] onde o ente eacute por participar na Forma e natildeo eacute possiacutevel se tornar porque ou bem

participa ou bem natildeo participa e natildeo pode participar natildeo participando e nem mesmo natildeo

participando participar Assim μετέχω natildeo explica todos os casos de relaccedilotildees entre

Formas e entes sensiacuteveis pois existem as relaccedilotildees que iniciam e cessam que se dizem

atraveacutes de μεταλαμβάνω O participar de μετέχω eacute o participar no qual o ente eacute [εἶναι]

por participar da Forma e sendo natildeo pode natildeo ser e definitivamente possui [ἔχει] a

propriedade [οὐσία]

Por analogia eacute possiacutevel perceber que este eacute o caso 103d-104b no Feacutedon pois

o numeral trecircs juntamente com o possuir [μετέχει] a propriedade [οὐσία] do Iacutempar eacute

[εἶναι] trecircs E natildeo pode ele largar [ἀφει] o iacutempar pois assim deixaria de existir e de ser

trecircs O mesmo ocorre com a neve e o frio o fogo e o calor

Mesmo outros pesquisadores de Platatildeo parecem ter se deparado com o

problema Trindade Santos em sua introduccedilatildeo ao Sofista revisa concepccedilotildees de

participaccedilatildeo presentes em Platatildeo Dentre elas a do Feacutedon No texto eacute possiacutevel ler

Por exemplo no caso da alma os predicados ldquomotalimportalrdquo satildeo atribuiacutedos em funccedilatildeo da participaccedilatildeo da alma noutra entidade que a inclui (seja ldquo a Forma da Vidardquo Feacuted 106d vide 103a-105e) Todavia

187

no caso da atribuiccedilatildeo da ldquoalturapequenezrdquo a Siacutemias esses predicados satildeo atribuiacutedos pela comparaccedilatildeo de altura de Siacutemias com as de Soacutecrates e de Feacutedon o que implica legitimar a predicaccedilatildeo de acordo com a observaccedilatildeo casuiacutestica da variaccedilatildeo relacional

Sendo ldquoXrdquo diferente de ldquoalgordquo (ou o ldquoeacuterdquo expressaria uma identidade) ldquoalto temrdquo (pelo menos) momentaneamente um ldquoxrdquo mediante a participaccedilatildeo nele da Forma ldquoXrdquo No entanto contextos relacionais (ldquox tem algordquo agora mas natildeo antes ou depois para uns mas natildeo para outros em relaccedilatildeo a uns mas uma propriedade ldquoxrdquo a um sensiacutevel depende de factores externos excepto no caso de se tratar de uma propriedade essencial de ldquoalgo ser xrdquo (102b-c) (SANTOS 2011 p139)18

Certamente vemos o assunto de outra maneira que natildeo a de Trindade Santos

ao pensar que a retenccedilatildeo de uma propriedade poder-se-ia ser causada por factores

externos que parecem ser simplesmente frutos da contingecircncia Vemos assim pois

pensamos que natildeo eacute por outro motivo se natildeo a participaccedilatildeo na Forma que um ente poderaacute

vir-a-ser portador de um predicado (Feacutedon 100c-e) Entretanto o que Trindade Santos

natildeo mencionou ndash mas certamente tinha consciecircncia soacute natildeo o fez uma vez que natildeo era o

escopo do trabalho o qual estava a realizar no Sofista ndash eacute que sua distinccedilatildeo entre

participaccedilatildeo que apresenta uma propriedade essencial e uma participaccedilatildeo que se daacute

juntamente com fatores externos (ou seja fatores temporais ou seja uma participaccedilatildeo

que reteacutem predicados participando do tempo 19) eacute exatamente esta distinccedilatildeo traccedilada entre

μετέχειν e μεταλαμβάνειν

Eacute interessante apresentar que esta distinccedilatildeo eacute corrente em todo diaacutelogo

Parmecircnides sendo respeitada na maioria dos casos As uacutenicas exceccedilotildees nas quais

μετέχειν e εἶναι aparecem juntas no diaacutelogo satildeo

1 Na fala de Soacutecrates em 128a9 Soacutecrates associa μετέχειν a εἶναι Eacute importante

entatildeo lembrar que Soacutecrates eacute apresentado no diaacutelogo e em alguns outros

momentos como um personagem ainda inseguro acerca da relaccedilatildeo entre Formas

e participantes

2 Em 155c-d μετέχειν eacute associado a εἶναι Este eacute o uacutenico passo que poderia

apresentar quaisquer problemas agrave tese dos dois sentidos de participaccedilatildeo pela

presenccedila de μετέχειν e εἶναι Mesmo que um haacutebil argumentador possa utilizar

18 SANTOS 2011 Introduccedilatildeo ao Sofista EM PLATAtildeO Sofista Traduccedilatildeo de Henrique Murachco

Juvino Maia Jr Joseacute Gabriel Trindade dos Santos Introduccedilatildeo e apecircndice de Joseacute Gabriel Trindade Santos

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2011

19 Cf PLATAtildeO Parmecircnides 155e-156ordf

188

essa passagem para ir contra a presente tese acredita-se que natildeo haveraacute vantagem

alguma pois natildeo eacute exequiacutevel pensar contraacuterio a presente tese Na passagem ndash

como em muitos momentos da segunda parte do diaacutelogo ndash o Um estaacute sendo

associado ao Ser ou desassociado com o intuito de ser objeto de investigaccedilatildeo

Em 155c-d a uacutenica associaccedilatildeo eacute que se diz que o tempo participa do um que eacute e

do tornar-se mais velho e mais jovem (χρόνου μετέχει τὸ ἓν πρεσβύτερόν τε καὶ

νεώτερον γίγνεσθαι) e natildeo aferimos quaisquer maneiras de que a passagem possa

efetivamente trazer problemas agrave tese

3 Nas demais apariccedilotildees dos termos μεταλαμβάνω no Parmecircnides ou bem surge

acompanhado do termo γίγνεσθαι ou bem natildeo eacute acompanhado de nenhum tempo

que possa associaacute-lo ao ldquoserrdquo ou ao ldquotornar-serdquo Semelhantemente μετέχω ou bem

iraacute surgir ao lado de εἶναι ou natildeo indicaraacute o ldquoserrdquo ou o ldquotornar-serdquo Interpretamos

que quando natildeo indicado a associaccedilatildeo a ldquovir-a-serrdquo ou ao ldquoserrdquo natildeo eacute interessante

ao argumento trabalhado pelos personagens

Visto isso eacute possiacutevel concluir que haacute uma distinccedilatildeo entre μετέχω e

μεταλαμβάνω no Parmecircnides Essa distinccedilatildeo tal qual descrita eacute concordante com a que

Cornford traccedila em apenas quatro linhas20 Natildeo tatildeo soacute esta distinccedilatildeo reverbera em outros

diaacutelogos pelo menos no Feacutedon 130d-104b

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

CORNFORD FM Plato and the Parmenides Parmenidesrsquo Way of Truth and Platorsquos

Parmenides translated with an introduction and a running commentary London

Routledge amp Kegan Paul 1939

LIDDEL H G SCOTT R Greek-English Lexicon - With a revised suplement Oxford

Clarendo Press 1996

PLATAtildeO Parmecircnides Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maura Iglesias e Fernando

Rodrigues Rio de Janeiro Editora PUC-Rio e Ediccedilotildees Loyola 2003

20 Cf CORNFORD F M 1939 p 69

189

_______ Feacutedon Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem EDUFPA 2011

_______ Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira 5 ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbbenkian 1949

_______ Sofista Traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr Joseacute Gabriel

Trindade dos Santos Introduccedilatildeo e apecircndice de Joseacute Gabriel Trindade Santos Lisboa F

Calouste Gulbenkian 2011

SCOLNICOV Samuel Platorsquos Parmenides Translated with Introduction and commentary Berkley Los Angeles London University of Caloforn

SOBRE O TEMPO UMA QUESTAtildeO FUNDAMENTAL

Paulo Seacutergio Calvet Ribeiro Filho1

RESUMO O texto aborda alguns desdobramentos acerca da questatildeo fundamental ldquoque eacute o tempordquo Seratildeo contempladas1) a interpretaccedilatildeo de Jeanne Marie Gagnebin acerca do Livro XI das Confissotildees de Agostinho apresentada na obra Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria 2) trecircs palestras de Jorge Luiacutes Borges a respeito do tema chamadas ldquoO livrordquo ldquoO tempordquoe ldquoA imortalidaderdquo inseridas em Cinco visotildees pessoais 3) as ideias apresentadas no ensaio de Giorgio Agamben intitulado ldquoO que eacute o contemporacircneordquo 4) uma conferecircncia de Martin Heidegger chamada ldquoO Conceito de tempordquo Palavras-chave Tempo Finitude Contemporacircneo ABSTRACT The text approaches some deployments about the fundamental question ldquowhat is timerdquo There will be contemplated 1) The interpretation of Jeanne Marie Gagnebin about the book XI of Confessions by Augustine presented in the work Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria 2) Three Jorge Luis Borgesrsquo lectures related to this theme entitled ldquoO livrordquo ldquoO tempordquo and ldquoA imortalidaderdquo inserted in Cinco visotildees pessoais 3) The ideas presented in the essay of Giorgio Agamben entitled ldquoO que eacute contemporacircneordquo 4) one conference of Martin Heidegger called ldquoO conceito do tempordquo Keywords Time Finiteness Contemporary

Introduccedilatildeo

Haacute um problema insanaacutevel mas fundamental Muitos filoacutesofos se intrigaram

com ele aleacutem de poetas e compositores2 cineastas e escritores Cada um interage com

ele agrave sua maneira nos bares muito se fala em falta de tempo nos sindicatos a jornada

de trabalho eacute debatida nas escolas e universidades discutem a carga horaacuteria o tempo

devido a cada disciplina professores muacutesicos cuidadores muitas vezes satildeo pagos por

hora

Contudo o problema fundamental natildeo se limita a este aspecto menor ndash o vieacutes

econocircmico da questatildeo ldquoTempo eacute dinheirordquo Neste velho ditado estaacute impliacutecita uma

1 Mestre em filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro e graduando em histoacuteria pela Universidade Estadual do Maranhatildeo 2 Como natildeo lembrar de ldquoOraccedilatildeo ao tempordquo de Caetano Veloso Ou mesmo da angustiante ldquoSinal fechadordquo de Paulinho da Viola

191

maneira de concebecirc-lo curta e miacuteope Sob este acircngulo na verdade a indagaccedilatildeo essencial

nem mesmo fora colocada Tal frase feita eacute como uma daquelas respostas sem pergunta

um clichecirc enfim

Sobre o que trataraacute esse escrito Sobre uma das questotildees mais pungentes que

jaacute foram elaboradas e que pode ser colocada assim que eacute o tempo Tem-se nada mais

nada menos do que toda a tradiccedilatildeo ocidental transpassada por respostas Algumas satildeo

dignas de nota Deter-se-aacute aqui apenas na anaacutelise de algumas delas

De iniacutecio seraacute abordada a interpretaccedilatildeo de Jeanne Marie Gagnebin acerca do

Livro XI das Confissotildees de Agostinho Optou-se por contemplaacute-la por ela fazer uma

leitura original de um autor por sua vez original Em seguida seratildeo analisadas trecircs

palestras de Jorge Luiacutes Borges aqui expostas por ele fazer uma espeacutecie de retrospectiva

das respostas mais famosas sobre a questatildeo que aqui serve de guia aleacutem de ter uma

posiccedilatildeo peculiar como se veraacute Em um terceiro momento tal temaacutetica seraacute desdobrada e

seraacute trazido agrave baila um pensador contemporacircneo que reflete a respeito do proacuteprio conceito

de contemporacircneo Giorgio Agamben Sua indagaccedilatildeo eacute urgente e por isso figuraraacute neste

trabalho Por fim a conferecircncia O Conceito de tempo de Martin Heidegger seraacute

analisada

O Agostinho de Jeanne Marie Gagnebin

Agrave quarta aula de um conjunto de sete Jeanne Marie Gagnebin nomeia Dizer

o tempo3 Ali a autora se ateacutem entre outras coisas agrave famosa reflexatildeo de Agostinho

presente no Livro XI de suas Confissotildees Partindo de uma interpretaccedilatildeo de Paul Ricouer

afirma a autora que a novidade que o filoacutesofo de Hipona apresenta eacute uma concepccedilatildeo

diferenciada sobre a temporalidade qual seja o tempo eacute inseparaacutevel da interioridade

psiacutequica

Destarte tem-se uma inovaccedilatildeo pois esta resposta se opotildee agraves tentativas da

filosofia antiga principalmente Platatildeo e Aristoacuteteles que definiam o tempo em funccedilatildeo do

movimento dos corpos externos

Tempo como distentio animi ndash distensatildeo da almado espiacuterito Por mais que

Agostinho um religioso fale muitas vezes em Eternidade sua inquietaccedilatildeo e sua proposta

satildeo eminentemente seculares pois

3 GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria p 67-79

192

Ao propor uma definiccedilatildeo de tempo como inseparaacutevel da interioridade psiacutequica Agostinho abre um novo campo de reflexatildeo o da temporalidade da nossa condiccedilatildeo especiacutefica de seres que natildeo soacute nascem e morrem ldquonordquo tempo mas sobretudo que sabem que tem consciecircncia dessa sua condiccedilatildeo temporal e mortal4

A partir desse ponto de vista a temporalidade aparece como atributo da alma5

que se sabe e se percebe assim e por isso mesmo se sente fustigada pela vontade de

querer saber a respeito da natureza de sua finitude

O problema fundamental em Agostinho vai aleacutem pois este passa a se

questionar inclusive a respeito da linguagem Jeanne Marie destaca dois

posicionamentos Ao primeiro chama de ldquoreflexatildeo criacutetica sobre nossa linguagemrdquo

(GAGNEBIN 2005 p 70) Trata-se de uma problematizaccedilatildeo presente desde o Livro X

das Confissotildees que afirma que a propensatildeo quase natural de falar do tempo em termos

espaciais atrapalha a reflexatildeo sobre sua natureza

Ao segundo posicionamento a autora faz menccedilatildeo ao que chama de

ldquoargumentaccedilatildeo pragmaacuteticardquo (idem) Nela Agostinho natildeo critica apenas certas categorias

linguiacutesticas mas sim o uso que se faz da linguagem Nesse sentido ao pensar o tempo

se pensa quase inevitavelmente a respeito da linguagem

Assim no correr de seu pensamento o autor de Confissotildees

natildeo tenta mais falar de fora sobre o objeto tempo mas sim descrever ladeando com o pensar o pensar o proacuteprio pensamento nossa experiecircncia do tempo Ora essa se diz natildeo em termos espaciais objetivos mas em termos ativos de esticamento de dilaceraccedilatildeo de tensatildeo entre o lembrar e o esperar6

Ressalta a autora partindo das Confissotildees que nossa experiecircncia do tempo

estaacute associada agrave experiecircncia narrativa e esta se apresenta como tensatildeo existente entre o

lembrar (tensatildeo entre o presente do presente e o presente do passado) e o esperar (tensatildeo

entre o presente do presente e o presente do futuro) O que significa que o problema do

tempo sempre se desdobra no problema do dizerescrever E esta eacute uma leitura original

de Agostinho

Jeanne Marie Gagnebin ao final da aula intitulada Dizer o tempo parece estar

4GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria p 68 5 Quanto agrave ideacuteia de alma em Santo Agostinho eacute preciso ter em vista que se trata pelo menos neste momento de suas reflexotildees a respeito do tempo de um princiacutepio psiacutequico que se desdobra em temporalidade O que tem como implicaccedilatildeo que a alma humana justamente por experimentar sua finitude atraveacutes do tempo distingue-se de Deus que eacute eterno 6GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteriap 75

193

inquieta e reticente Afirma que hoje natildeo se pode mais acreditar que ldquoo Outro do nosso

tempo seja a eternidade divinardquo 7 Natildeo eacute possiacutevel furtar-se contudo de refletir a respeito

de Confissotildees

Que se passe agora a outra resposta ndash a de um argentino que tem uma

perspectiva sui generis acerca do tempo e inclusive da imortalidade

Jorge Luiacutes Borges ndash o livro o tempo e a imortalidade

Se o uso corrente da linguagem natildeo pode dar conta de certos temas como

acima fora exposto a partir do Agostinho de Jeanne Marie Gagnebin existe um

instrumento que pode lidar bem com esta limitaccedilatildeo poetizando-a estendendo-a A

interioridade psiacutequica da temporalidade humana pode ter seus passos ldquoregistradosrdquo e

podem ser garantidas agraves geraccedilotildees vindouras reflexotildees seculares atraveacutes de seu uso e

usufruto

O livro eacute esse instrumento singular quase maacutegico Assim falou

Jorge Luiacutes Borges Este trecho teraacute por como base trecircs palestras ndash chamadas O livro O

tempo e A imortalidade ndash proferidas em junho de 1978 na Universidade de Belgrano

quando fora inaugurada8

O que diz a respeito do tempo Primeiramente que se pode prescindir do

espaccedilo mas natildeo do tempo9 Para dar seguimento a defesa deste enunciado propotildee um

experimento mental ndash sugere que se imagine um mundo onde soacute existisse um uacutenico

sentido o da audiccedilatildeo Ali tudo estaria transformado inclusive a linguagem Ali se teria

esquecido o espaccedilo mas o tempo nunca

Por isso o problema aqui tratado eacute para Borges um problema essencial ldquo()

quero dizer que natildeo podemos prescindir do tempo Nossa consciecircncia estaacute continuamente

passando de um estado a outro e isso eacute o tempo uma sucessatildeordquo (idem)

Ali apresentado entatildeo ainda a partir de uma interioridade psiacutequica Vale

frisar ademais que esta sucessatildeo defendida natildeo eacute mera sucessatildeo linear homogecircnea mas

interior O problema do tempo partindo do ponto de vista adotado pelo referido autor

natildeo pode ser resolvido todavia podem ser revistas as soluccedilotildees apresentadas

Partindo da soluccedilatildeo de Platatildeo ndash que afirma que o tempo eacute a imagem imoacutevel

7GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteriap 77 8 BORGES Cinco visotildees pessoais p 13-32 e 61-73 9BORGES Cinco visotildees pessoais p 62

194

da eternidade ndash Borges acaba afirmando que a eternidade eacute uma de nossas mais belas

invenccedilotildees Em seguida afirma que Aristoacuteteles tambeacutem errara pois ldquoTambeacutem eacute um erro

dizer como Aristoacuteteles que o tempo eacute a medida do movimento pois o movimento

acontece no tempo e natildeo pode explicar o tempordquo10 Isto quer dizer que a temporalidade

natildeo pode ser refeacutem explicativa do movimento mas deve-se dar o contraacuterio Adiante deter-

se-aacute mais nesta problemaacutetica

Ainda pouco se afirmou na esteira do argentino que a indagaccedilatildeo essencial

natildeo pode ser resolvida O interessante eacute perceber que mesmo sem se dar conta ele aponta

uma soluccedilatildeo Onde ele a encontra Na imortalidade

Antes que o leitor contemporacircneo se contorccedila eacute importante ressaltar que

Borges nega uma imortalidade individual ldquoEu natildeo quero continuar sendo Jorge Luiacutes

Borges quero ser outra pessoa Espero que minha morte seja total espero morrer no corpo

e na almardquo 11

Fica evidente que se trata de uma imortalidade transubjetiva Nomeada aqui

dessa forma por ir aleacutem da pessoalidade visto que ldquocada um de noacutes eacute de alguma forma

todos os homens que morreram antesrdquo 12 Eacute nesse sentido especiacutefico que o homem eacute

imortal ldquoO importante eacute a imortalidade Essa imortalidade concretiza-nos nas obras que

deixamos na memoacuteria que algueacutem deixa nos outrosrdquo13 Assim ao opor uma imortalidade

individual a uma que chama coacutesmica Borges fornece uma concepccedilatildeo original uma

resposta original agrave indagaccedilatildeo que eacute o tempo

Por isso em O livro afirma que este eacute uma extensatildeo de nossa memoacuteria e de

nossa imaginaccedilatildeo14 Aleacutem do que ldquoo livro eacute lido para eternizar a memoacuteriardquo 15 Percebe-se

que este instrumento singular ocupa um papel relevante no drama dessa imortalidade

transubjetiva

Agamben e o contemporacircneo in between

Uma pergunta cabe em outra tal como uma aacutervore imensa cabe no ponto da

semente Assim a partir de ldquoque eacute o tempordquo Giorgio Agamben faz germinar ldquoDe quem

10BORGES Cinco visotildees pessoais p 66 11BORGES Cinco visotildees pessoais p 23 12BORGES Cinco visotildees pessoais p 31 13Idem 14BORGES Cinco visotildees pessoais p 13 15BORGES Cinco visotildees pessoais p 19

195

e do que somos contemporacircneos () o que significa ser contemporacircneordquo16

Eacute preciso frisar logo de saiacuteda que natildeo se trata apenas de estar ldquocom o tempordquo

de ser coetacircneo Natildeo se trata apenas do tempo presente Natildeo eacute mera inserccedilatildeo numa eacutepoca

Nesse sentido o autor italiano segue uma indicaccedilatildeo de Nietzsche presente na Segunda

consideraccedilatildeo intempestiva texto de 1874 Orientaccedilatildeo que atravessaraacute toda sua reflexatildeo que

afirma em suma que o pertencimento verdadeiro a uma eacutepoca estaacute relacionado natildeo a

uma concordacircncia plena com as opiniotildees ali vigentes mas sim a certa dose de

inatualidade17 Explica-se para ser contemporacircneo segundo o Nietzsche lido por

Agamben eacute preciso aderir e tomar distacircncia em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio tempo o que se

daacute pari passu O contemporacircneo estaacute in between por assim dizer

O bom poeta entatildeo segundo o autor italiano manteacutem o olhar fixo no seu

tempo e tambeacutem se torce em busca do passado o que para ele eacute uma atitude

eminentemente contemporacircnea Dessas premissas brota uma segunda definiccedilatildeo ldquoo

contemporacircneo eacute aquele que manteacutem fixo o olhar no seu tempo para nele perceber natildeo

as luzes mas o escurordquo 18

Perceber o escuro natildeo eacute apenas vislumbrar vazios natildeo eacute inatividade ndash notar

o escuro eacute um exerciacutecio que vai buscar as natildeo-explicaccedilotildees pois todas as eacutepocas tecircm suas

luzes e penumbras Levar isso em conta exige coragem eacute uma tarefa Os contemporacircneos

satildeo raros esses exegetas da dimensatildeo temporal em que estatildeo inseridos esses meacutedicos

forenses que catam vestiacutegios de tempos idos esses ldquobioacutegrafosrdquo que se inquietam com a

vida mesma de seu proacuteprio presente contudo transcendendo-o no sentido em que

extrapolam os limites temporais

Para que essa tarefa essa exigecircncia seja executada o contemporacircneo tem

que se dar conta que ldquoa chave do moderno estaacute escondida no imemorial e no preacute-

histoacutericordquo19 Isto eacute para interagir com seu tempo modificando-o eacute preciso ter uma atitude

especiacutefica para com o passado eacute preciso trazecirc-lo agrave baila Textos quadros obrasmuacutesicas

poemas ndash natildeo importa de onde partam ndash devem fomentar o pensar contemporacircneoSer

contemporacircneo eacute permanecer in between numa interzone temporal

Heidegger e o conceito de tempo

16AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 57 17AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 58 18AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 62 19AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 70

196

Para estudantes e professores da Faculdade de Teologia da Universidade de

Marburgo Martin Heidegger profere em 25 de julho de 1924 a conferecircncia intitulada O

conceito de tempo

Tendo em vista seu puacuteblico comeccedila sua exposiccedilatildeo justificando que seu

posicionamento em relaccedilatildeo ao tempo natildeo tem por baliza a eternidade pois ldquose o filoacutesofo

se interroga acerca do tempo eacute porque estaacute decidido a compreender o tempo a partir do

tempordquo 20 Isto eacute o filoacutesofo deve tentar compreender essa questatildeo cabal a partir de sua

proacutepria dimensatildeo temporal natildeo tendo por base a eternidade Por isso a conferecircncia natildeo

assume uma conotaccedilatildeo teoloacutegica

Quando acima fora mencionado Jorge Luiacutes Borges a quem o tempo natildeo pode

ser refeacutem explicativo do movimento fora dito que o argentino se opunha assim a uma

concepccedilatildeo aristoteacutelica fundada no movimento Fora dito tambeacutem um pouco antes disso

que Agostinho jaacute se opusera a essa concepccedilatildeo da filosofia antiga inaugurando uma esfera

de reflexatildeo que se baseara numa interioridade psiacutequica da temporalidade

Pois bem Heidegger vai mais longe em suas consideraccedilotildees pois coloca boa

parte da tradiccedilatildeo ocidental de Aristoacuteteles a Einstein21 sob a eacutegide do conceito que ele

chama ldquotempo da natureza e do mundordquo22 Partindo desse enfoque o filoacutesofo alematildeo diz

ser problemaacutetica esta perspectiva visto que nela se origina uma reflexatildeo falseada na

nascente

O tempo natildeo precisa ser definido pelo homem porquanto o homem eacute tempo

natildeo pode ser circunscrito numa simples mediccedilatildeo porque ao tomar o tempo apenas como

medida o homem se afasta de si mesmo e perde sua autenticidade O reloacutegio neste

sentido eacute o objeto que o transforma em objeto distanciando o homem de seu modo

proacuteprio de ser

Heidegger talvez se aproxime de Henry David Thoreau quando este afirma

que ldquoO homem se tornou o instrumento de seus instrumentosrdquo23 De fato o homem tem

20HEIDEGGER O conceito de tempop 21 21Tal afirmaccedilatildeo nos pareceu de iniacutecio duvidosa Contudo refizemos algumas leituras e encontramos a seguinte assertiva de um fiacutesico que reafirma a tese de Heidegger ldquoDe acordo com a teoria da relatividade o espaccedilo natildeo eacute tridimensional e o tempo natildeo constitui uma entidade isolada Ambos acham- se intimamente vinculados formando um continuum quadridimensional o lsquoespaccedilo-temporsquo Na teoria da relatividade portanto nunca podemos falar acerca do espaccedilo sem falar acerca do tempo e vice-versardquo CAPRA O Tao da fiacutesica p 54 22HEIDEGGER O conceito de tempo p 25 23 THOREAU Walden and Civil Disobedience p 29

197

se transformado em instrumento de seus instrumentos A humanidade estaacute como refeacutem

do reloacutegio e da concepccedilatildeo que afirma que o tempo eacute homogecircneo um amontoado de

porccedilotildees iguais entre si e por isso mesmo indiferentes umas agraves outras

ldquoO reloacutegio indica o tempordquo 24 natildeo eacute ele mesmo o tempo Este na verdade

por marcar o instante acaba ldquopondo no mesmo sacordquo todos os outros momentos

homogeneizando-os

Afinal qual seria o caminho apontado por Heidegger para que se fuja ou

melhor para que se enfrente esta concepccedilatildeo do tempo da natureza e do mundo Segundo

ele soacute se pode colocar corretamente a questatildeo do tempo se se puser no jogo isto eacute se se

partir do proacuteprio horizonte da finitude25 Por ser o homem finito e por saber mesmo sem

querer desta condiccedilatildeo acaba-se tendo abertura para colocar o problema neste acircmbito A

morte aponta essa possibilidade O que eacute ter-em-todo-caso a proacutepria morte Eacute o correr antecipativo do ser-aiacute para o seu tracircnsito enquanto possibilidade extrema e iminente ndash sabida com certeza e com completa indeterminabilidade ndash de si-mesmo O ser-aiacute enquanto vida humana eacute primordialmente ser- possiacutevel o ser da possibilidade do tracircnsito certo e no entanto indeterminado26

A morte neste sentido eacute como uma exigecircncia exigecircncia no sequestro

filosoacutefico que tira da quotidianidade A morte Heidegger eacute enfaacutetico ao afirmar estaacute

presente mesmo que natildeo se pense a respeito dela27 A morte eacute de certa forma condiccedilatildeo

fundante do modo de ser proacuteprio eacute partiacutecipe no Dasein

O homem soacute natildeo se tem tempo28porque se prende ao trivial ldquoNatildeo ter tempo

significa lanccedilar o tempo no presente reles do quotidianordquo 29

24HEIDEGGER O conceito de tempo p 27 25Aqui se aproxima em certa medida de Agostinho como jaacute expusemos Chegando a citaacute-lo inclusive 26HEIDEGGER O conceito de tempop 47 27Eacute interessante notar que Montaigne em pleno seacuteculo XVI jaacute se inquietava de uma maneira similar a de Heidegger ldquo() como eacute possiacutevel conseguirmos nos desfazer do pensamento da morte e que a cada instante natildeo nos pareccedila que ela nos agarra pela golardquo Ou ainda ldquoTiremos-lhe a estranheza [da morte] frequentemo-la acostumemo-nos com ela natildeo tenhamos nada de tatildeo presente na cabeccedila como a morte ()rdquo Ainda uma vez ldquoEacute incerto onde a morte nos espera aguardemo-la em toda parte Meditar previamente sobre a morte eacute meditar previamente sobre a liberdaderdquo MONTAIGNE Os ensaios uma seleccedilatildeo p 66 68 e 69 respectivamente Grifo nosso 28A conferecircncia fora proferida em 1924 e de laacute para caacute a exclamaccedilatildeo ldquoNatildeo tenho tempordquo estaacute voando cada vez mais de boca em boca em todos os lugares e setores Heidegger fora aliaacutes como em muitas vezes profeacutetico em relaccedilatildeo a algumas questotildees Natildeo eacute nem preciso dizer que ele chamou de teacutecnica estaacute vencendo nas querelas ideoloacutegicas do presente 29HEIDEGGER O conceito de tempo p 51

198

Somos o tempo mesmo isso eacute nossa condiccedilatildeo de ser Devemos pois evitar

que o tempo do reloacutegio impeccedila com que busquemos e vivenciemos o tempo em seu

sentido originaacuterio Por isso Heidegger nos momentos finais de sua conferecircncia

transforma a pergunta ldquoque eacute o tempordquo em ldquoquem eacute o tempordquo Somos

REFEREcircNCIAS

AGAMBEN Giorgio O que eacute o contemporacircneo Chapecoacute SC Argos 2009 BORGES Jorge Luiacutes Cinco visotildees pessoais Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2002 CAPRA Fritjof O Tao da fiacutesica Satildeo Paulo Cultrix 2006 ENDE Michael Momo e o senhor do tempo Satildeo Paulo Martins Fontes 1996 GAGNEBIN Jeanne Marie Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria Rio de Janeiro Imago 2005 HEIDEGGER Martin O conceito de tempo Lisboa Fim de Seacuteculo 1998 MONTAIGNE Michel de Os ensaios uma seleccedilatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 THOREAU Henry David Walden and Civil Disobedience United States of America Sterling Publishing Co 2012

ZARATUSTRA METACIacuteNICO

Rafael Rocha da Rosa1

RESUMO O objetivo deste artigo eacute cotejar a interpretaccedilatildeo foucaultiana sobre o cinismo com a criacutetica nietzschiana agrave cultura e seu projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores A partir de uma anedota sobre Dioacutegenes o ciacutenico Foucault desenvolve suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica tendo como ponto de partida o imperativo de transfigurar o valor da moeda Nessa tarefa eacute crucial a relaccedilatildeo que o autor estabelece entre moeda valores e normas posto que o cinismo efetivamente assume determinada posiccedilatildeo contra as convenccedilotildees diametralmente avessa aos haacutebitos e aos costumes sociais Haveria no cinismo um impulso destruidor de convencionalismos e das rotas culturais dominantes estabelecidas para e pela coletividade Assim a vida ciacutenica exprimiria um modo de viver transfigurando os valores e estilos de vida convencionais Portanto creio que haja uma feacutertil proximidade entre essas concepccedilotildees e o posicionamento filosoacutefico de Nietzsche com sua criacutetica agrave cultura e a afirmaccedilatildeo de uma transvaloraccedilatildeo dos valores Palavras-chave Cinismo Nietzsche Foucault Valor Cultura ABSTRACT The purpose of this article is to compare the foucaultian interpretation of cynicism with the Nietzschersquos critique of culture and his project of transvaluation of values From an anecdote on Diogenes the cynic Foucault develops his hypotheses about the true cynical life starting from the imperative to change the value of the currency In this task the relation that the author establishes between currency values and norms is crucial since cynicism effectively assumes a certain position against conventions diametrically averse to social habits and customs There would be in cynicism a destructive impulse to conventions and dominant cultural routes established for and by the collectivity Thus the cynical life would express a way of living transfiguring conventional values and lifestyles I therefore believe there is a fertile closeness between these conceptions and Nietzsches philosophical positioning his critique of culture and the affirmation of a revaluation of values Keywords Cynism Nietzsche Foucault Value Culture

Introduccedilatildeo

Ao abordar o tema da parresiacutea em A coragem da verdade Foucault encontra

no cinismo seu exemplo mais potente Entre os diversos exemplos utilizados pelo autor

no desenvolvimento de suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica destaco a famosa

1 Doutorando em Filosofia pela UERJ bolsista CAPES Contato rafael_rocha1yahoocombr

200

anedota sobre Dioacutegenes o Ciacutenico a respeito do imperativo de transfigurar o valor da

moeda Este ponto eacute rico de possibilidades interpretativas para o estabelecimento de um

viacutenculo entre o cinismo e o pensamento nietzschiano como a questatildeo da transvaloraccedilatildeo

de todos os valores2 malgrado as distinccedilotildees caracteriacutesticas de ambos

Creio que o filoacutesofo alematildeo interpretou alterou e agregou aspectos do

cinismo que seriam interessasses agrave elaboraccedilatildeo de seu proacuteprio pensamento o que o tornaria

herdeiro dessa corrente filosoacutefica Considerando o cinismo sob a oacutetica de Foucault

acredito que a principal personagem de Nietzsche Zaratustra possibilitaria essa chave de

leitura Nesse sentido o uso do prefixo grego meta cabe perfeitamente para nossos

propoacutesitos haja vista que eacute utilizado para indicar mudanccedila transformaccedilatildeo transposiccedilatildeo

Zaratustra seria um homem que vivenciaria na praacutetica as concepccedilotildees

filosoacuteficas de Nietzsche que passaria pelos processos patoloacutegicos do niilismo o

afastamento asceacutetico da cultura degenerada a afirmaccedilatildeo criadora de si a confecccedilatildeo de

novos valores e a sua difusatildeo para os homens superarem a condiccedilatildeo decadente Se

nenhum indiviacuteduo foi capaz ateacute entatildeo de passar pelas experiecircncias e pelos estaacutegios que

Nietzsche postula em sua filosofia o autor se viu obrigado a criar uma personagem que

tenha passado por esse percurso

Para compreendermos essa aproximaccedilatildeo entre o pensamento nietzschiano e o

cinismo cumpre abordar inicialmente a interpretaccedilatildeo foucaultiana sobre os mesmos

A arte de viver do asceta ciacutenico

Em seu uacuteltimo curso ministrado no Collegravege de France Foucault abordou a

relaccedilatildeo entre sujeito e verdade a questatildeo da fala franca a parresiacutea especificamente

Nessas liccedilotildees em oposiccedilatildeo agraves estruturas epistemoloacutegicas voltadas para a anaacutelise do

discurso verdadeiro o autor direciona sua atenccedilatildeo para o que denominou formas

aletuacutergicas ou seja os atos que caracterizam o sujeito que diz a verdade as formas e

modos de viver que tornam o indiviacuteduo reconheciacutevel pelos outros enquanto aquele que

pratica a fala franca que produz e diz a verdade

Apesar de ser uma noccedilatildeo fundamentalmente poliacutetica a parresiacutea possibilita a

Foucault abordar a relaccedilatildeo entre sujeito e verdade sob a oacutetica da accedilatildeo examinando as

2 Hipoacutetese abordada por Peter Sloterdjick em O quinto ldquoevangelhordquo de Nietzsche

201

praacuteticas de si e os modos de veridicccedilatildeo temas caros ao autor3 Isto eacute os saberes e as

relaccedilotildees de poder nos procedimentos que governam a conduta dos homens e como os

sujeitos satildeo constituiacutedos atraveacutes das praacuteticas de si Desse modo o filoacutesofo francecircs analisa

o eixo eacutetico do dizer-a-verdade em oposiccedilatildeo agrave dimensatildeo exclusivamente poliacutetica O autor

justifica essa escolha pela crise das instituiccedilotildees poliacuteticas enquanto lugar de praacutetica da

parresiacutea4 Assim a partir da parresiacutea como um modo de viver Foucault coloca a questatildeo

sobre como conduzir-se identificando nessa atitude a possibilidade do sujeito livre

autogovernar-se

Contudo a praacutetica da parresiacutea teria duas acepccedilotildees distintas uma negativa e

outra positiva O aspecto pejorativo seria o caso do parresiasta que eacute incapaz de conter e

filtrar sua fala descolando seu discurso de uma racionalidade e da verdade dizendo tudo

que vem agrave cabeccedila sem criteacuterios falando qualquer coisa que o instigue e motive O outro

caso seria o discurso fruto da racionalidade o dizer tudo anexado agrave verdade sem

mascarar dissimular ou ocultar nada a seu respeito e acreditando efetivamente naquilo

que eacute dito de modo que a fala corresponda de fato agrave opiniatildeo pessoal ou seja eacute

estritamente necessaacuterio um viacutenculo entre a verdade falada o pensamento daquele que diz

e seus atos

Outro ponto que o filoacutesofo francecircs destaca eacute a ameaccedila inerente agrave fala franca

A veracidade do parresiasta o situa numa tensatildeo com o ouvinte ameaccedilando-o a se tornar

viacutetima da reaccedilatildeo violenta daquele a que se dirige Assim a coragem de aventurar-se na

praacutetica da fala franca eacute determinante e teria duas faces a de assumir os riscos de colocar

em xeque a relaccedilatildeo com aquele que ouve e de arriscar a proacutepria vida ao dizer a verdade

Segue-se a definiccedilatildeo foucaultiana sobre a parresiacutea como a coragem da

verdade daquele que assume o risco seja ele qual for de dizer sua opiniatildeo seu

pensamento com toda a franqueza E o ouvinte eacute parte integrante desse jogo parresiaacutestico

na medida em que tambeacutem tem a coragem de ouvir a franqueza de seu interlocutor Desse

modo o dizer-a-verdade da parresiacutea eacute distinto das outras modalidades identificadas pelo

autor do teacutecnico do saacutebio e do profeta presentes na aleturgia socraacutetica Poreacutem a fala

franca de Soacutecrates seria marcada por especificidades que a distinguiria malgrado a

semelhanccedila das outras formas aletuacutergicas No entanto devido agraves limitaccedilotildees estruturais

deste artigo natildeo aprofundarei a discussatildeo sobre este ponto

3 ldquoA articulaccedilatildeo entre os modos de veridicccedilatildeo as teacutecnicas de governamentabilidade e as praacuteticas de si eacute no fundo o que sempre procurei fazerrdquo FOUCAULT A coragem da verdade p8 4 FOUCAULT A coragem da verdade p 63

202

Segundo Foucault mesmo que possua algumas caracteriacutesticas em comum

com as outras formas de dizer-a-verdade o estilo socraacutetico seria distinto delas pelos

fatores mencionados acima e principalmente pela coragem necessaacuteria agrave fala franca E

esse seria o fator capital que separaria a parresiacutea eacutetica da poliacutetica visto que Soacutecrates

distingue radicalmente seu proacuteprio dizer-a-verdade das trecircs outras grandes modalidades do dizer-a-verdade (profecia sabedoria ensino) segundo [] nessa forma de veridicccedilatildeo a parresiacutea a coragem eacute necessaacuteria [] Essa coragem da verdade ele deve exercer na forma de uma parresiacutea natildeo poliacutetica uma parresiacutea que se desenrolaraacute pela prova da alma Seraacute uma parresiacutea eacutetica5

Alcanccedilar conceitualmente a parresiacutea eacutetica eacute justamente um dos principais

propoacutesitos do autor pois dela parte a questatildeo do cuidado de si Por meio da harmonia

entre a maneira como se vive e a palavra dita articula-se a fala franca a um estilo de vida

Segue-se o interesse foucaultiano em Soacutecrates enquanto parresiasta haja vista que seu

modo de viver e seu discurso estariam arraigados expressando o princiacutepio do cuidado e

da praacutetica de si Por isso o filoacutesofo francecircs compreende a parresiacutea socraacutetica natildeo

pertencendo ao domiacutenio exclusivo da poliacutetica e sim da eacutetica cujos interesses seriam os

modos de vida

Ademais a existecircncia adquiriu uma dimensatildeo esteacutetica a partir da parresiacutea

socraacutetica6 A coragem de pocircr agrave prova seu modo de viver levou ao processo de dar forma

e estilo agrave vida que o autor denominou sem primazia de esteacutetica da existecircncia E Foucault

captou o momento em que foi instituiacutedo um nexo entre a aleturgia e a estetizaccedilatildeo da vida7

com Soacutecrates

Ao aceder ao tema da estiliacutestica da existecircncia o filoacutesofo francecircs passa entatildeo

a tratar da praacutetica ciacutenica que expressaria uma forma aletuacutergica extraordinaacuteria onde a

maneira como se vive estaria intrinsecamente atrelada agrave fala franca Este seria o tema

central de A coragem da verdade Ao ocupar-se da parresiacutea de Soacutecrates dos modos de

viver Foucault estaria preparando o terreno para sua questatildeo nevraacutelgica o cinismo

enquanto modo de vida extremamente singular articulado visceralmente ao imperativo

de dizer-a-verdade corajosamente

5 FOUCAULT A coragem da verdade p76 6 ldquopela emergecircncia e pela fundaccedilatildeo da parresiacutea socraacutetica a existecircncia foi constituiacuteda no pensamento grego como um objeto esteacutetico como objeto de percepccedilatildeo esteacutetica o biacuteos como obra de arterdquo FOUCAULT A coragem da verdade p141 7 ldquocomo o dizer-a-verdade nessa modalidade eacutetica que aparece com Soacutecrates no iniacutecio da filosofia ocidental interferiu com o princiacutepio da existecircncia como obra a ser modelada em toda sua perfeiccedilatildeo possiacutevelrdquo Ibid p 144

203

Para o autor ldquonatildeo se trata de competecircncia natildeo se trata de teacutecnica natildeo se trata

de mestre nem de obra De que se trata Trata-se [] da maneira como se viverdquo8 Por

conseguinte o cinismo seria o exemplo primaacuterio de uma filosofia que teria como ponto

de partida a vida como objeto de diligecircncia de uma praacutetica que incitaria os homens agrave arte

de si agrave elaboraccedilatildeo de certo modo de viver A atitude ciacutenica expressaria em uacuteltima

instacircncia o imperativo do cuidado de si

O uso da palavra ldquopraacuteticardquo justifica-se devido agrave liberdade inerente ao cinismo

que o torna refrataacuterio aos moldes da filosofia tradicional Seu teor de ensinamento oral

enquanto maneira de ser implicou em pouco material textual com parco delineamento

teoacuterico Sobreviveu como modo de vida atitude e natildeo doutrina escrita Seus adeptos

teriam a atenccedilatildeo voltada ao viver e natildeo agrave elaboraccedilatildeo de um manual tratado ou livro que

definisse conceitos temas hipoacuteteses sobre o cinismo O que natildeo evitou que alguns de

seus praticantes deixassem alguns escritos legados para a posteridade9 Natildeo obstante seja

pela praacutetica seja pela fraca teoria a tradiccedilatildeo ciacutenica foi popularizada na Antiguidade por

sua forma de disseminaccedilatildeo

Cumpre destacar a dimensatildeo asceacutetica da existecircncia ciacutenica A apropriaccedilatildeo

seguida da modificaccedilatildeo dessa noccedilatildeo implicaria na renuacutencia de convenccedilotildees e haacutebitos

sociais o que culminaria num tipo peculiar de ascese inerente ao cinismo

A ascese ciacutenica teria algumas especificidades Primeiramente ela extrapolaria

os limites entre a vida puacuteblica e privada posto que o ciacutenico natildeo teria segredos ou

privacidade sua existecircncia seria completamente desnudada aos olhos de todos

Despojado de casa lugar de intimidade e isolamento de roupas total ou parcialmente

ele satisfaz suas necessidades fisioloacutegicas na rua espaccedilo coletivo Em sua vida nada seria

oculto tudo seria drasticamente exposto A aplicaccedilatildeo extrema de natildeo ocultamento como

forma de conduta derrubaria e alteraria a moralizaccedilatildeo e o pudor convencional sobre os

haacutebitos naturais dos homens

Segundo seria o modo de viver sem misturas dependecircncias ou viacutenculos eacute

extremada no cinismo com a pobreza tomada como um componente da verdadeira vida

completamente desprovida de luxos e riquezas Haacute uma reduccedilatildeo ao miacutenimo das posses

concretas de modo que a inoacutepia seria tanto fiacutesica quanto mental natildeo sendo meramente

8 Ibid p 126 9 Consoante o filoacutesofo francecircs ldquoa tradiccedilatildeo ciacutenica natildeo comporta textos teoacutericos ou muitiacutessimo poucos Digamos em todo caso que o arcabouccedilo doutrinal do cinismo parece ter sido bem rudimentar [] Em todo caso o fato eacute atestado o cinismo foi uma filosofia por um lado de ampla implantaccedilatildeo social e por outro de um arcabouccedilo teoacuterico estreito exiacuteguo e elementarrdquo FOUCAULT A coragem da verdade p179

204

um ldquodesprendimento da almardquo Vale ressaltar que este ponto seria uma escolha isto eacute

atitude ativa e natildeo indiferenccedila resignada de uma condiccedilatildeo mediacuteocre Nas palavras do

autor ldquoela eacute uma elaboraccedilatildeo de si mesmo na forma de pobreza visiacutevel [] ela eacute uma

conduta efetiva de pobrezardquo10 Aleacutem disso haveria um imperativo para o desprendimento

uma busca por libertar-se de todo bem por mais iacutenfimo que este seja como uma simples

tigela para beber aacutegua jaacute que podemos juntar as matildeos em forma de cuia para reter ali o

liacutequido e leva-lo agrave boca11

Terceiro o da vida reta em conformidade com determinados costumes e

regras coletivas eacute retomado pelo ciacutenico e transmutado em sua base Ainda haacute a

conformidade mas natildeo ao que eacute cultural e criado pelo homem e sim ao que eacute oriundo da

natureza Ou seja o princiacutepio ao qual o cinismo concorda em sua existecircncia eacute a lei natural

e natildeo humana Segue-se a recusa agrave moral do grupo agraves convenccedilotildees sociais como a

constituiccedilatildeo de uma famiacutelia e os haacutebitos e tabus alimentares A concepccedilatildeo ciacutenica de

retidatildeo estaria inserida em uma dimensatildeo natural animal portanto O que geraria o efeito

escandaloso dessa praacutetica ao se contrapor ao elogio da razatildeo caracteriacutestico da

Antiguidade que a partir da animalidade atribuiacutea um valor de distinccedilatildeo para o humano

Por fim o quarto a vida soberana eacute retomada e revertida em uma forma

insolente a realeza ciacutenica um dos pontos nevraacutelgicos do cinismo segundo Foucault

ldquotemos aiacute nessa ideia do filoacutesofo como antirrei algo que estaacute no proacuteprio centro da

experiecircncia ciacutenica e da vida ciacutenica como verdadeira vida e outra vida e do ciacutenico como

verdadeiro rei e outro reirdquo12 Ao se proclamar rei o ciacutenico contesta os monarcas coroados

em seus tronos agindo como sua contraparte destacando acintosamente o quatildeo oco e

precaacuterio eles seriam A agudeza dessa posiccedilatildeo antagocircnica faz dele um antirrei por

descortinar os elementos fraacutegeis que embasam a soberania dos homens comuns

Para exercer seu domiacutenio o rei dependeria de uma seacuterie de fatores a educaccedilatildeo

e hereditariedade que garanta o acesso ao trono um exeacutercito para manter e expandir suas

terras aliados para garantir a coesatildeo de suas conquistas o triunfo sobre seus inimigos e

por uacuteltimo o fator acaso a que o monarca estaacute exposto e que pode arrebatar sua

monarquia Jaacute a forma reacutegia de cinismo o ciacutenico-rei seria um monarca autecircntico sua

vida seria de fato soberana assim como sua ldquorealezardquo Ele seria efetivamente

10 Ibid p227 11 Exemplo dado por Foucault sobre famosa anedota de Dioacutegenes o Ciacutenico 12 FOUCAULT A coragem da verdade p242

205

independente dispensando todos os elementos supracitados acima que sustentam outras

realezas

Aleacutem disso a praacutetica ciacutenica operaria uma radicalizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave

preocupaccedilatildeo e ao cuidado com o outro caracteriacutestico da vida soberana No cinismo tanto

os discursos quanto as liccedilotildees satildeo dispensadas alcanccedilando o limite do autossacrifiacutecio para

ocupar-se dos outros passando do gozo de si para certa renuacutencia de si Assim sua tarefa

assumiria uma feiccedilatildeo belicosa tanto interna quanto externa atacar e enfrentar os haacutebitos

as convenccedilotildees as instituiccedilotildees purgando os viacutecios que afetam a humanidade e enfrentar

a si mesmo seus proacuteprios desejos e paixotildees Portanto o ciacutenico seria um tipo de rei que

combateria por si pelos outros e desse modo sua maneira de viver conduziria agrave felicidade

e agrave plenitude de sua existecircncia

Essas alteraccedilotildees efetuadas na concepccedilatildeo de verdadeira vida expressam um

traccedilo crucial do cinismo a maacutexima ldquoalterar a moedardquo Um dos principais episoacutedios a

respeito de Dioacutegenes o Ciacutenico menciona o conselho dado a ele pelo oraacuteculo de Delfos

que o instigou a alterar o valor da moeda Tal liccedilatildeo ganha forccedila devido a duas versotildees

biograacuteficas sobre Dioacutegenes era filho de um banqueiro ou cambista algueacutem que

trabalhava com compra venda e troca de dinheiro cunhado e um ou outro foram acusados

de falsificaccedilatildeo dos valores monetaacuterios sendo expulsos de Sinope local onde viviam E a

partir dessa anedota Foucault desenvolve suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica

tendo como ponto de partida o imperativo de transfigurar o valor da moeda

O problema da verdadeira vida ciacutenica eacute [] a aproximaccedilatildeo que haacute [] entre moeda e costume regra lei Nomisma eacute a moeda Noacutemos eacute a lei Mudar o valor da moeda eacute tambeacutem eacute tomar certa atitude em relaccedilatildeo ao que eacute convenccedilatildeo regra lei [] eles vatildeo modificar a efiacutegie [] vatildeo fazer aparecer uma vida que eacute precisamente o contraacuterio do que era reconhecido tradicionalmente como a verdadeira vida [] o cinismo como careta da verdadeira vida13

O preceito de ldquoalterar o valor da moedardquo seria um fundamento primordial do

cinismo Este imperativo incitaria o sujeito ao cuidado e agrave praacutetica si reavaliando a forma

como vive e os valores adotados que foram estabelecidos e avaliados pelos outros Tal

maacutexima impele a uma tomada de posiccedilatildeo radical em relaccedilatildeo agrave forma como se vive

colocando em xeque as atitudes padronizadas por determinado valor coletivo

Nessa tarefa eacute crucial a relaccedilatildeo que o autor estabelece entre moeda valores

e normas posto que o cinismo efetivamente assume determinada posiccedilatildeo contra as

13 FOUCAULT A coragem da verdade p199-200

206

convenccedilotildees diametralmente avessa aos haacutebitos e agraves concepccedilotildees sociais Segundo

Foucault ldquoos ciacutenicos se opotildeem agraves leis divinas agraves leis humanas e a toda forma de

tradicionalidade ou de organizaccedilatildeo socialrdquo14 Isto eacute haveria um impulso destruidor de

convencionalismos e das rotas culturais dominantes estabelecidas para a coletividade E

tambeacutem a recusa de qualquer sofrimento ou accedilatildeo em prol da comunidade da poliacutetica da

religiatildeo da economia ou da famiacutelia Portanto o ciacutenico teria uma eacutetica singular

Assim o princiacutepio fundamental do cinismo de ldquoalterar o valor da moedardquo

conduz agrave radicalizaccedilatildeo de um estilo de vida livre que se distancia das artificias valoraccedilotildees

tradicionais dos costumes da moral vigente colocando em xeque o modo de viver

adotado pela cultura massificada dominante Esse seria um dos elementos mais marcantes

da praacutetica ciacutenica e que afetaria sua aleturgia

De acordo com o filoacutesofo francecircs as caracteriacutesticas do cinismo expressariam

uma forma privilegiada de parresiacutea haja vista que eacute no modo de viver que o dizer-a-

verdade se manifesta Ou seja para o ciacutenico eacute a proacutepria existecircncia e natildeo o discurso que

critica e potildee em xeque a sociedade e a cultura em que vive A liberdade e a autonomia de

suas praacuteticas seriam refrataacuterias agraves valoraccedilotildees normatizadoras dos costumes que submetem

os indiviacuteduos No cinismo a proacutepria existecircncia seria como uma imagem caricatural e

impertinente dos valores seguidos por determinada sociedade no paradoxo de sua adesatildeo

e ruptura imediata a estes

A esse agir contraditoacuterio segue-se um tema caro a Foucault a dimensatildeo

ciacutenica da coragem da verdade Isto eacute pocircr a vida em risco para mostrar aos homens o

quanto eles seriam paradoxais por estimarem determinados valores no campo teoacuterico e o

rechaccedilam no espaccedilo praacutetico Ou seja o ciacutenico faz atraveacutes da maneira como vive com

que os indiviacuteduos condenem e rejeitem as accedilotildees do que eles mesmos valorizam e prezam

em pensamento Consequentemente a existecircncia no cinismo eacute exposta ao perigo pelo

ato e natildeo pelo discurso

E esta seria uma das argumentaccedilotildees que justificariam a hipoacutetese foucaultiana

ldquoeis por que o cinismo [] se relaciona agrave questatildeo das praacuteticas e das artes da existecircncia eacute

que ele foi a forma ao mesmo tempo mais rudimentar e mais radical na qual se colocou a

questatildeo dessa forma particular de vida [] que eacute a vida filosoacuteficardquo15 A verdadeira vida

ciacutenica concebe a filosofia enquanto exerciacutecio para a existecircncia e natildeo mera teoria

dissociada da praacutetica No cinismo o filosofar natildeo seria um campo estritamente discursivo

14 FOUCAULT A coragem da verdade Ibid p175 15 Ibid p208

207

e conceitual seria uma forma de viver que exigira a coragem de viver efetivamente suas

verdades

Tal estilo de vida seria marcado como vimos acima por suas praacuteticas

asceacuteticas Entrementes natildeo seria um ascetismo provocado por nenhuma divindade por

sinais externos e espirituais com uma finalidade religiosa Ao contraacuterio o objetivo seria

o modo de viver dos homens nessa existecircncia natildeo em outra tanto que o ciacutenico visa a

mudanccedila dos valores que influenciam a sociedade em que estaacute marginalmente inserido

E a escolha por essa maneira de viver seria individual se daria a partir do momento em

que o sujeito flagrasse em si sua propensatildeo Nas palavras do autor

a missatildeo ciacutenica soacute seraacute reconhecida na praacutetica da aacuteskesis A ascese o exerciacutecio a proacutepria praacutetica de toda resistecircncia que faz viver na natildeo dissimulaccedilatildeo na natildeo dependecircncia na diacriacutetica entre o que eacute bom e o que eacute ruim tudo isso vai ser o proacuteprio sinal da missatildeo ciacutenica Ningueacutem eacute chamado ao cinismo como Soacutecrates foi pelo deus de Delfos que lhe mandou um sinal nem como seratildeo os apoacutestolos pelo dom das liacutenguas que teratildeo recebido O ciacutenico se reconhece a si mesmo e ele estaacute sozinho consigo mesmo para se reconhecer na prova que faz da vida ciacutenica16

Essa relaccedilatildeo entre cinismo e ascese eacute vital Foucault aponta determinadas

vertentes do cristianismo que teriam sido responsaacuteveis pela propagaccedilatildeo do modo de viver

ciacutenico na Europa17A pobreza o despojamento o afastamento e a renuacutencia implicam

certa forma de ascetismo que foi adotado por alguns segmentos do cristianismo como

os franciscanos e dominicanos18

O ascetismo seria inerente agrave estilizaccedilatildeo da existecircncia por meio das praacuteticas

ciacutenicas A seacuterie de exerciacutecios corporais mentais o afastamento dos haacutebitos culturais

como vestimenta alimentaccedilatildeo e relaccedilotildees sociais demarcam bem essa ligaccedilatildeo O modo

de vida ciacutenico seria alcanccedilado por certa forma de ascese que purgaria o corpo e a mente

dos adeptos das convenccedilotildees e costumes tradicionais possibilitando a parresiacutea um viver

independente e coerente com a verdade

Conforme o autor no cinismo ldquoo ensino filosoacutefico natildeo tinha essencialmente

como funccedilatildeo transmitir conhecimentos [] Tratava-se de armaacute-los para a vida para que

16 FOUCAULT A coragem da verdade p263 17 ldquoO primeiro suporte da transferecircncia e da penetraccedilatildeo do modo de ser ciacutenico na Europa cristatilde foi constituiacutedo eacute claro pela proacutepria cultura cristatilde e pelas praacuteticas e pelas instituiccedilotildees do ascetismordquo Ibid p158 18 ldquoOs franciscanos com seu despojamento sua erracircncia sua pobreza sua mendicidade satildeo ateacute certo ponto os ciacutenicos da cristandade medieval Quanto aos dominicanos pois bem vocecircs sabem que eles proacuteprios se chamavam de Domini canes (os catildees do Senhor)rdquo Ibid p160

208

pudessem enfrentar os acontecimentosrdquo19 Isto eacute o sentido de suas praacuteticas estaria voltado

para o corpo fiacutesico e para a vida neste mundo Logo seria uma ascese imanente natildeo seria

uma ponte para outra existecircncia Utilizando a linguagem nietzschiana seria um ascetismo

intramundano e natildeo trasmundano natildeo teria o sentido do ceacuteu teria o sentido da Terra

Logo a verdadeira vida ciacutenica consolidaria entatildeo uma soberania asceacutetica de

si estetizando a existecircncia troccedilando da cultura e dos modos de viver civilizados

rechaccedilando-os e transfigurando seus valores Assim acredito que haja uma proximidade

entre essas concepccedilotildees e a filosofia nietzschiana com sua criacutetica agrave metafiacutesica agrave cultura e

a afirmaccedilatildeo de uma transvaloraccedilatildeo dos valores E a principal personagem de Nietzsche

Zaratustra expressaria esse ascetismo ciacutenico Na parte que segue me deterei nessa

hipoacutetese

Cinismo de Zaratustra

Ao estabelecer um viacutenculo entre o pensamento nietzschiano e o cinismo

cumpre destacar que Nietzsche natildeo repete e adota incondicionalmente os preceitos da

tradiccedilatildeo ciacutenica Ele se apropria do cinismo enquanto um modo de vida filosoacutefico que

aponta para um desdobramento praacutetico e natildeo soacute discursivo e a utiliza para a elaboraccedilatildeo

de sua proacutepria visatildeo de mundo e para a estruturaccedilatildeo de seu pensamento Algo

extremamente importante para sua reflexatildeo Desse modo meu objetivo eacute captar traccedilos do

cinismo antigo que foram anexados pelo autor de Zaratustra na composiccedilatildeo de sua

filosofia

Em minha hipoacutetese a ascese ciacutenica seria um elemento determinante para o

projeto nietzschiano de transvaloraccedilatildeo e interpreto Zaratustra como um ciacutenico de acordo

com a perspectiva foucaultiana expressa em A coragem da verdade Contudo o filoacutesofo

francecircs natildeo estabeleceu esse viacutenculo entre sua interpretaccedilatildeo do cinismo e o pensamento

nietzschiano poreacutem o diaacutelogo entre ambos eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre as

posiccedilotildees filosoacuteficas

Logo no iniacutecio da obra que leva o nome do protagonista ele inicia sua jornada

apartando-se do conviacutevio em sociedade e por dez anos mantem-se afastado dos homens

19 FOUCAULT A coragem da verdade p181

209

e de seu modo de viver20 Contudo tal distanciamento eacute sazonal como o leitor descobre

ao longo do livro sendo fundamental para purgar a personagem do miasma intriacutenseco aos

valores da cultura em que vivia E tambeacutem para que ele se fortaleccedila e confeccione novos

valores para depois retornar aos indiviacuteduos e propagar sua contra doutrina colocando em

xeque aquelas valoraccedilotildees niilistas

Tal postura itinerante seria semelhante agrave metaacutefora de Epicteto adotada por

Foucault ao compreender o ciacutenico como uma espeacutecie de batedor enviado agrave frente da

humanidade para avaliar as condiccedilotildees de hostilidade ou de favorecimento para sua vida

no mundo E posteriormente retornaria agrave sociedade para comunicar e anunciar a verdade

do que descobriu Esse movimento de afastamento e proximidade eacute caracteriacutestico de

Zaratustra ao longo de sua obra Ao final dos capiacutetulos depois de ter com os homens ele

volta agrave solidatildeo para apoacutes certa passagem de tempo regressar agrave civilizaccedilatildeo

A recusa ciacutenica aos costumes o rompimento com as convenccedilotildees sociais e

haacutebitos culturais seriam os primeiros passos dados por Zaratustra E o longo periacuteodo de

solidatildeo que possibilitou o cultivo de sua gaia sabedoria o transformou profundamente

Assim que desce a montanha e deixa de lado o isolamento ele encontra um velho santo

que o reconhece e percebe imediatamente sua mudanccedila

Natildeo me eacute estranho esse andarilho por aqui passou haacute muitos anos Chamava-se Zaratustra mas estaacute mudado Naquele tempo levava tuas cinzas para os montes queres agora levar teu fogo para os vales Natildeo temes o castigo para o incendiaacuterio Sim reconheccedilo Zaratustra Puro eacute seu olhar e sua boca natildeo esconde nenhum nojo Natildeo caminha ele como um danccedilarino Mudado estaacute Zaratustra tornou-se uma crianccedila Zaratustra um despertado eacute Zaratustra que queres agora com os que dormem 21

Essa passagem eacute bastante feacutertil sobre alguns dos efeitos que o ascetismo tem

sobre Zaratustra A renuacutencia ao conviacutevio foi responsaacutevel pela depuraccedilatildeo do grande asco

agrave vida um sentimento niilista22 e por meio da solidatildeo asceacutetica o vazio inerente aos valores

20 ldquoAos trinta anos de idade Zaratustra deixou sua paacutetria e o lago de sua paacutetria e foi para as montanhas Ali gozou do seu espiacuterito e da sua solidatildeo e durante dez anos natildeo se cansou Mas enfim seu coraccedilatildeo mudourdquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoProacutelogordquo sect1 p11 21 Ibid ldquoProacutelogordquo sect2 p 11 22 Nessa passagem Nietzsche estabelece uma relaccedilatildeo direta entre nojo e niilismo sendo aquele um sentimento de asco que afeta o indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave vida ao ser acometido pelo segundo O niilismo seria o efeito nocivo que aflige o homem ao ser destituiacutedo de valores incondicionais que orientem sua existecircncia deixando-o desnorteado como um barco em um mar revolto ldquoquando vos mandei destroccedilar os bons e as taacutebuas dos bons somente entatildeo embarquei o homem para seu alto-mar E somente agora lhe vem o grande pavor o grande olhar ao redor a grande doenccedila o grande nojo o grande enjoo do marrdquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDas velhas e novas taacutebuasrdquo sect28 p204

210

decadentes da sociedade foi superado A renuacutencia agrave cultura eacute determinante para a tarefa

criadora de novas apreciaccedilotildees23 Esse eacute o fogo que a personagem quer levar aos homens

incendiar aquele modo decadente de viver destruir e queimar suas taacutebuas de valores24

Nessa mudanccedila por que passou o protagonista tornou-se leve e apto para superar o pesado

espiacuterito de gravidade que conspurca a vida e o mundo25 que as concebe enquanto

sofrimento e doenccedila Ao praticar determinada ascese o bufatildeo de Nietzsche torna-se

crianccedila novamente alcanccedila a pureza necessaacuteria agrave plena adesatildeo ao jogo incessante de

destruiccedilatildeo e criaccedilatildeo de novas metas e perspectivas para a existecircncia constantemente

significando e ressignificando a si mesmo26

O trecho supracitado mostra o estado em que Zaratustra se encontrava ao fugir

da civilizaccedilatildeo ldquonaquele tempo levava tuas cinzas para os montesrdquo diz o velho santo

Cinzas satildeo resiacuteduos de um corpo queimado e tambeacutem podem ser restos mortais Entatildeo a

personagem estava ferida fiacutesica ou mentalmente de tal modo que buscou convalescer no

isolamento Natildeo suportou continuar entre os homens Por quecirc O que motivou essa recusa

ao conviacutevio humano O que o afetou desse modo deixando-o em tal estado A resposta

definitiva natildeo eacute dada pelo livro O que possibilita o infinito exerciacutecio interpretativo

A constataccedilatildeo da fraqueza e dependecircncia de seus contemporacircneos de sua

incapacidade para viver uma vida autocircnoma e livre poderia responder a essas indagaccedilotildees

Por meio de sua contra doutrina o protagonista mostra-se avesso agrave nociva vontade de

verdade que apascentou e reduziu o homem a um animal de rebanho que o tornou crente

e dependente de valores absolutos que garantissem alguma seguranccedila para sua existecircncia

Sua aversatildeo eacute tamanha que ao dirigir-se agraves pessoas na cidade mais proacutexima

que encontrou umas das primeiras coisas ditas por Zaratustra foi ldquoo homem eacute algo a ser

superadordquo27 Ou seja ele afirma a necessidade de ultrapassar o atual estado das coisas

visto que permanecer fiel agravequele modo de viver seria a ruiacutena do homem pois seus valores

estariam fatalmente comprometidos

23 ldquolonge do mercado e da fama se passa tudo que eacute grande longe do mercado e da fama habitaram desde sempre os inventores de novos valores [] foge meu amigo para tua solidatildeo e para onde o ar eacute rude e forterdquo Ibid ldquoDas moscas do mercadordquo p53 24 ldquoOacute meus irmatildeos destroccedilai destroccedilai as velhas taacutebuas de valoresrdquo Ibid ldquoDas velhas e novas taacutebuasrdquo sect10 p193 25 ldquoPesadas satildeo para ele a terra e a vida e assim quer o espiacuterito de gravidade [] demasiados valores e palavras pesadas potildee ele sobre si ndash e entatildeo a vida lhe parece um desertordquo Ibid ldquoDo espiacuterito de gravidaderdquo sect2 p184 26 ldquoInocecircncia eacute a crianccedila e esquecimento um novo comeccedilo um jogo [] sim para o jogo da criaccedilatildeo meus irmatildeos eacute preciso um sagrado dizer-simrdquo Ibid ldquoDas trecircs metamorfosesrdquo p29 27 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoProacutelogordquo sect3 p13

211

Entrementes essa tarefa seria perigosa posto que colocaria sua proacutepria vida

em risco Tanto que ao expor sua contra doutrina agraves pessoas da cidade foi execrado e

ameaccedilado de morte ldquoVai-te embora desta cidade oacute Zaratustra muitos te odeiam

Odeiam-te os bons e os justos e te chamam de seu inimigo e desprezador odeiam-te os

crentes da verdadeira feacute e te chama de perigo para a multidatildeo [] Tua sorte foi que te

juntaste ao cachorro morto ao te rebaixares assim te salvaste por hoje Mas deixa esta

cidade ndash ou amanhatilde salto sobre ti um vivo sobre um mortordquo28 Essa passagem expressa

o efeito da contra doutrina de Zaratustra nos adeptos da vontade de verdade O

protagonista expocircs sua criacutetica agrave cultura dos homens e pocircs-se em perigo de morte ao fazecirc-

lo Tal qual o ciacutenico que arrisca a proacutepria vida em sua tarefa de alterar a moeda ou seja

transformar os valores que regram a existecircncia dos indiviacuteduos O bufatildeo de Nietzsche

almeja suplantar a cultura vigente e para esse fito tem a coragem de se colocar em risco

Assim a coragem eacute atributo imprescindiacutevel no projeto de transvaloraccedilatildeo

Coragem para romper com as relaccedilotildees sociais com o conviacutevio humano com os haacutebitos

com os costumes com certo modo caduco de viver Ter a coragem de reconfigurar e

orientar sua existecircncia ao sabor de sua proacutepria verdade seria tarefa para os raros ldquoser

verdadeiro ndash poucos satildeo capazes dissordquo29 Esse foi o primeiro passo dado por Zaratustra

em sua jornada para se tornar o mestre do eterno retorno Ou seja ele assumiu os riscos

de iniciar uma vida asceacutetica ao renunciar ao modo de viver predominante em sua cultura

e seus valores supremos

O evento catastroacutefico da Modernidade a ruiacutena da velha divindade solapa

definitivamente a posiccedilatildeo suprema e incondicional atribuiacuteda agrave verdade donde emanava

valores e sentidos absolutos Em face desse vazio angustiante fruto da ausecircncia de alento

transcendental a praacutetica de si eacute capital o cuidado de si eacute tarefa aacuterdua do indiviacuteduo No

entanto a verdade singular e provisoacuteria ainda seria possiacutevel no que Nietzsche denominou

esteacutetica da existecircncia atividade artesanal de lidar com o teor plaacutestico da vida

Tal concepccedilatildeo eacute parte determinante da contra doutrina de Zaratustra ensinar

os homens a cuidarem de si em uma terra ausente de um Pai transcendental que zelaria

por todos Por isso a personagem incita os indiviacuteduos a acordarem para a infinita liberdade

oriunda da morte de Deus instiga-os agrave felicidade proveniente da capacidade readquirida

de criar novos soacuteis e mundos para viver A natildeo desprezar o corpo e os afetos pois eacute a

28 Ibid ldquoProacutelogordquo p21-22 29 Ibid ldquoDe velhas e novas taacutebuasrdquo p191

212

partir deles que teriacuteamos nossa criadora paleta de cores30 Essa nova atitude tornaria o

sujeito capaz de criar e avaliar novamente rechaccedilando as estimaccedilotildees e apreciaccedilotildees alheias

e afirmando as suas proacuteprias E fatalmente destruir os antigos valores arraigados pela

cultura pelo costume pelas convenccedilotildees31

A postura de Zaratustra remonta agrave do ciacutenico cujo estilo de vida independente

e livre coloca em xeque os valores que orientam a maneira com as pessoas vivem Este

por meio de uma conduta asceacutetica primorosa zelaria por todos propagando o cuidado de

si pela preocupaccedilatildeo com os homens mostrando pelo exemplo de sua proacutepria existecircncia

o quatildeo paradoxal seria o modo de viver dominante O bufatildeo de Nietzsche diz ldquoeu amo

os homensrdquo e ldquoquero ensinar aos homens o sentido do seu serrdquo32 Ou seja o protagonista

natildeo fica isolado em sua montanha ele desce para compartilhar seu leve saber alegre

explicitando sua diligecircncia com os indiviacuteduos ldquoposso novamente descer para junto de

meus amigos e inimigos Zaratustra pode novamente falar e presentear e fazer o melhor

para os que mais amardquo33 Logo a ascese ciacutenica eacute livremente apropriada pelo filoacutesofo

alematildeo e inserida na contra doutrina de seu principal personagem que mesmo agrave margem

da sociedade zela por ela cuidando de seus integrantes Mas natildeo para manter o estado

vigente de sua cultura e sim para sua radical variaccedilatildeo dado que ldquoo homem eacute algo que

deve ser superadordquo34

Assim a esteacutetica da existecircncia seria um ponto vital do pensamento

nietzschiano Apoacutes a morte de Deus Nietzsche conduz suas reflexotildees de modo a orientar

inuacutemeros modos de vidas possiacuteveis Seu pensamento postula o juacutebilo diante da nova

liberdade e de uma vida prenhe de significaccedilotildees possiacuteveis em detrimento de uma tristeza

niilista que acomete os fracos acovardados que se massificam em rebanho e que recusam

a pluralidade de sua potecircncia criadora

Estetizar a existecircncia seria cuidar de si nesse novo mundo plural assumir os

riscos e lidar com todo acaso e adversidade inerente agrave vida Viver de modo a repetir sua

existecircncia infinitas vezes afirmando suas escolhas e todo acontecimento nocivo ou natildeo

dado que toda experiecircncia por que passa o indiviacuteduo eacute determinante para sua composiccedilatildeo

30 ldquoO corpo eacute uma grande razatildeo uma multiplicidade [] haacute mais razatildeo em teu corpo do que em tua melhor sabedoriardquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDos desprezadores do corpordquo p35 31 ldquoApenas atraveacutes do estimar existe valor e sem o estimar seria oca a noz da existecircncia Escutai oacute criadores Mudanccedila nos valores ndash isso eacute mudanccedila nos criadores Quem tem de ser um criador sempre destroacuteirdquo Ibid ldquoDas mil metas e uma soacute metardquo p58 32 Ibid ldquoProacutelogordquo sect2 e sect7 p12 e p21 33 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoO menino com o espelhordquo p80 34 Ibid ldquoProacutelogordquo sect3 p13

213

No pensamento nietzschiano esse cuidado para consigo seria necessaacuterio

dado que a fonte que atribuiacutera tais valores secou Assim certa ascese eacute crucial para o

indiviacuteduo recuperar sua potecircncia criadora dado que os valores degenerados da cultura

embotaram tal capacidade

O ascetismo de Zaratustra como do ciacutenico seria despojado de qualquer

conotaccedilatildeo trasmundana Para o Nietzsche uma das questotildees mais candentes seria o modo

de viver em um mundo cujo encanto se perdeu cujo valor transcendental se apagou Para

Foucault a soberania da existecircncia ciacutenica expressaria tal ventura dado que exprime ldquoa

alegria de quem aceita seu destino e natildeo conhece por conseguinte nenhuma falta

nenhuma tristeza e nenhum temor Tudo o que eacute dureza de existecircncia tudo que eacute privaccedilatildeo

e frustraccedilatildeo tudo isso se reverte num exerciacutecio de soberania sobre sirdquo35 Essa postura eacute

cara ao nietzschianismo expressa na concepccedilatildeo do amor fati36 a plena adesatildeo agrave vida

aceitando-a e afirmando-a sem descontos com tudo que for caracteriacutestico da mesma dor

sofrimento prazer juacutebilo

Ambas apontam para a celebraccedilatildeo de um viver autocircnomo livre de valoraccedilotildees

ou significaccedilotildees supremas que zelem e orientem a vida dos homens O devir inerente ao

mundo seria vivenciado independente de seus efeitos negativos ou positivos e natildeo

controlado por alguma instacircncia suprema A postura afirmativa de lidar com a

adversidade aponta para a potencializaccedilatildeo das capacidades do sujeito expresso na

maacutexima nietzschiana ldquoo que natildeo me mata me fortalecerdquo37 e na interpretaccedilatildeo foucaultiana

ldquoas pancadas portanto fazem crescer Elas potildeem a prova treinam aperfeiccediloamrdquo38

Assim o viacutenculo entre a contra doutrina de Zaratustra e o cinismo eacute prenhe de

possibilidades

Segundo Foucault um dos traccedilos caracteriacutesticos do cinismo eacute sua dimensatildeo

praacutetica enquanto modo de viver Tal posiccedilatildeo eacute cara agrave Nietzsche que incita seus leitores

a assumirem uma posiccedilatildeo ativa em relaccedilatildeo a suas vidas ldquosomente quem faz aprenderdquo 39

Ou seja a aprendizagem de seu pensamento se daria pela accedilatildeo e natildeo soacute pelo discurso

Apesar de o filoacutesofo alematildeo ter professado seu pensamento por escritos a questatildeo eacutetica

35 FOUCAULT A coragem da verdade p272 36 ldquominha foacutermula para a grandeza no homem eacute amor fati nada querer diferente seja para traacutes seja para frente seja em toda a eternidade Natildeo apenas suportar o necessaacuterio menos ainda ocultaacute-lo [] mas amaacute-lordquo NIETZSCHE Ecce Homo ldquoPor que sobu tatildeo inteligenterdquo sect10 p49 37 NIETZSCHE Crepuacutesculo dos iacutedolos ldquoMaacuteximas e Flechasrdquo sect8 p10 38 FOUCAULT A coragem da verdade p 264 39 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoO mais feio dos homensrdquo p 253

214

eacute um de seus principais interesses Ademais o autor elegeu para sua filosofia qualidades

praacuteticas que conduzam agrave accedilatildeo e agrave transformaccedilatildeo do proacuteprio modo de viver

Estimo um filoacutesofo na medida em que ele pode dar um exemplo [] mas este exemplo deve ser dado natildeo somente por livros mas pela vida cotidiana como os filoacutesofos gregos ensinaram pela expressatildeo do rosto atitude o vestuaacuterio o regime alimentar os costumes muito mais do que pelo que se diz pelo que se escreve Como noacutes estamos ainda longe na Alemanha de poder realizar essa corajosa evidecircncia de uma vida filosoacutefica40

Esse trecho possibilita o estabelecimento de uma relaccedilatildeo direta com o

cinismo Vimos anteriormente de que maneira a vida filosoacutefica ciacutenica conteacutem as

caracteriacutesticas elogiadas por Nietzsche na citaccedilatildeo acima O filoacutesofo alematildeo almejou

elaborar um pensamento que conduzisse a uma vida filosoacutefica potente o suficiente para

confrontar-se com a ordem cultural estabelecida Daiacute a coragem inerente a essa atitude

posto que todo seu agir deveria ser um ataque agrave sociedade a fim de transformaacute-la

As reflexotildees nietzschianas questionavam valores totalizantes colocando em

xeque as verdades incondicionais que massificaram os homens em rebanhos Assim o

leve saber alegre de seu principal personagem seria refrataacuterio agraves tradicionais formas de

conhecimento Tanto que Zaratustra visa a autonomia e independecircncia dos indiviacuteduos

ldquoEste eacute o meu caminho ndash qual eacute o vosso Assim respondi aos que me perguntaram pelo

lsquocaminhorsquo Pois o caminho ndash natildeo existerdquo41 Desse modo Nietzsche propotildee uma filosofia

que enfatiza a singularidade evitando novos dogmas conceituais e discursivos dado que

seu interesse eacute que seu leitor se torne quem ele eacute soberano de si

Nesse sentido forccedila e luta satildeo traccedilos decisivos no projeto nietzschiano de

transvaloraccedilatildeo dos valores para postular novas formas de viver Os fracos desejariam a

antiga existecircncia agrilhoada agrave velha divindade agrave obsoleta forma de vida pautada nas

valoraccedilotildees incondicionais e ser despojado dessa base tornaacute-lo-ia triste niilista Somente

os fortes celebrariam a ventura desse novo mundo a felicidade de se pocircr agrave prova e

enfrentar a decadente cultura vigente

Tal caracteriacutestica eacute intriacutenseca ao cinismo conforme Foucault afirma ldquoo

ciacutenico eacute um filoacutesofo em guerrardquo42 Ele assume por seu estilo singular de viver um ataque

direto agrave cultura de sua sociedade ldquoo combate dos ciacutenicos [] eacute um combate contra

40 NIETZSCHE Schopenhauer educador p 350 41 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDo espiacuterito de gravidaderdquo p118 42 FOUCAULT A coragem da verdade p264

215

costumes contra convenccedilotildees contra instituiccedilotildees contra leis contra todo um estado da

humanidaderdquo43 A praacutetica ciacutenica exige forccedila e domiacutenio de si para o enfrentamento

incessante ao modo de vida dominante e para a renuacutencia dos haacutebitos sociais

convencionais Assim ele encontra sua felicidade ao se ocupar de si e dos outros O ciacutenico

luta pelos homens pela humanidade dispensando a doutrina e sem massificar os

indiviacuteduos com discursos totalizantes A ascese da vida ciacutenica visa agrave transformaccedilatildeo pelo

exemplo de sua singularidade

Logo o tema nietzschiano da esteacutetica da existecircncia conduziria a uma

dimensatildeo praacutetica agrave luz das hipoacuteteses foucaultianas sobre o cinismo As reflexotildees do

filoacutesofo francecircs abrem novas perspectivas de interpretaccedilatildeo sobre o pensamento de

Nietzsche na medida em que via Foucault seria possiacutevel compreender Zaratustra

enquanto asceta Algo de suma importacircncia e contraditoacuterio agrave primeira vista devido agrave

terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da moral

A hipoacutetese da ascese de Zaratustra salta aos olhos logo no iniacutecio da jornada

da referida personagem no entanto a oposiccedilatildeo ao ascetismo feita pelo autor na obra

supracitada impede o desenvolvimento dessa argumentaccedilatildeo Todavia a interpretaccedilatildeo de

Foucault sobre o cinismo abre a possibilidade de lermos o bufatildeo de Nietzsche enquanto

um asceta ciacutenico A renuacutencia ao estilo de vida predominante em sua eacutepoca assim como

a negaccedilatildeo radical dos valores estanques que orientaram seus contemporacircneos conduzem

a certa forma de ascetismo Eacute contra essa sociedade pautada na consolaccedilatildeo proveniente

dos discursos totalizantes que o filoacutesofo alematildeo se afasta e declara guerra

Ao cotejar A coragem da verdade com Assim falou Zaratustra a riqueza

oriunda das semelhanccedilas eacute imensa Malgrado as distinccedilotildees dos contextos histoacutericos e

filosoacuteficos e com as devidas ressalvas conceituais estabelecer um diaacutelogo entre ambos eacute

possiacutevel e fundamental para a compreensatildeo de alguns pontos do pensamento

nietzschiano como a dimensatildeo praacutetica de sua contra doutrina do leve saber alegre

Conclusatildeo

Nietzsche posterga a confianccedila de uma vida orientada por valores irrestritos

e anuncia a morte de Deus acontecimento dramaacutetico da Modernidade que lanccedilaria os

43 Ibid p247

216

indiviacuteduos em mundo de caos e puro devir O resultado fisioloacutegico imediato seria o

niilismo negaccedilatildeo da vontade e a anguacutestia em face de um horizonte ausente de sentido

Para superar o niilismo e suplantar a cultura decadente de sua eacutepoca o autor

apresenta seu leve saber alegre a contra doutrina de Zaratustra Esse novo conhecimento

afirmaria a celebraccedilatildeo total da vida e da liberdade proveniente do ocaso da velha

divindade Destituiacutedo de valores supremos que encerraram sua existecircncia o indiviacuteduo

encontraria a ventura de viver em um lugar com infinitas possibilidades

Assim as reflexotildees de Nietzsche conduziriam a uma eacutetica a um modo de

viver nesse mundo ausente de discursos totalizantes O autor se preocupou em exprimir

uma filosofia que tivesse uma dimensatildeo praacutetica que incitasse ao ato em face da cultura

nociva que envenenaria o sujeito com concepccedilotildees torpes

No entanto natildeo interpreto o pensamento nietzschiano como um discurso de

massa que vise regrar as atitudes dos homens Ao contraacuterio o filoacutesofo instiga seu leitor

a ser autor de sua existecircncia que assuma uma posiccedilatildeo ativa em sua vida e renegue a

mentalidade dominante que o arrebanha e o torna cativo de riacutegidos valores

Uma das metas do autor eacute o surgimento de uma nova estirpe de homem um

indiviacuteduo criador e autocircnomo que atuaria como uma maacutequina de guerra contra a

concepccedilatildeo de mundo orientada por discursos totalizantes que entorpeceriam a potecircncia

criadora singular Para tornar-se livre e independente o sujeito deveria praticar certa

forma de ascese renunciar ao modo de viver comumente aceito recusar e transformar os

haacutebitos que regram a vida coletiva e romper com a visatildeo de mundo pautada nas valoraccedilotildees

engessados pelo costume

As posiccedilotildees filosoacuteficas tomadas por Nietzsche permitem que seja considerado

um herdeiro da corrente ciacutenica na medida em que existem alguns pontos de contato entre

as duas filosofias Portanto poderiacuteamos consideraacute-lo um metaciacutenico visto que realizou

variaccedilotildees e interpretaccedilotildees de alguns preceitos e se apropriou a sua maneira do que

poderia potencializar seu pensamento

Bibliografia

NIETZSCHE Assim falou Zaratustra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011

__________ Ecce Homo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

217

__________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006

__________ Schopenhauer educador Satildeo Paulo Prumo 2012

FOUCAULT A coragem da verdade Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2011

SLOTERDJICK P O quinto ldquoevangelhordquo de Nietzsche Rio de Janeiro Tempo brasileiro 2004

A MODERNIDADE lsquoNArsquo FILOSOFIA DE DESCARTES

A CRIacuteTICA DAS FORMAS SUBSTANCIAIS

William Teixeira1

RESUMO O objetivo desse artigo eacute mostrar como Descartes elaborou sua filosofia mecanicista Assim o primeiro passo para atingir esse objetivo levou Descartes a criticar e abandonar a noccedilatildeo de lsquoforma substancialrsquo a qual era amplamente empregada pelos escolaacutesticos para explicar todos os acontecimentos relativos aos seres naturais de uma maneira qualitativa Tendo descartado as formas substanciais o proacuteximo passo era estabelecer um novo objeto de estudo para a filosofia natural o qual ele encontrou na mateacuteria corpoacuterea (res extensa) e suas propriedades geomeacutetricas Dessas modificaccedilotildees introduzidas por Descartes vai emergir tambeacutem um novo meacutetodo de investigar os fenocircmenos naturais baseado na mediccedilatildeo e precisatildeo matemaacuteticas mais comprometido com a lsquoepistemologia platocircnicarsquo do que com a lsquoepistemologia aristoteacutelicarsquo Noacutes concluiremos afirmando que Descartes estava em acordo com muitos de seus contemporacircneos notavelmente Bacon e Galileu pensadores que estavam engajados em combater a filosofia formalista de Aristoacuteteles Junto com eles Descartes deu sua contribuiccedilatildeo para a renovaccedilatildeo da filosofia ocidental Palavras-chaves Descartes Escolaacutestica Filosofia natural Forma substancial Res extensa ABSTRACT The aim of this paper is to show how Descartes worked out his mechanistic philosophy So the first step to reach this goal led Descartes to criticize and abandon the notion of lsquosubstantial formrsquo which was largely employed by the schoolmen to explain all events concerning natural beings in a qualitative way Having discharged the substantial form the next step was to establish a new subject-matter for natural philosophy which he found in the material body (res extensa) and its geometrical properties From these modifications introduced by Descartes will also emerge a new method of investigating natural phenomena based on mathematical measurement and precision more commited with a lsquoPlatonic epistemologyrsquo than with an lsquoAristotelic onersquo We will conclude by asserting that Descartes was in agreement with many of his contemporaries most notably Bacon and Galileo thinkers who were engaged in fighting against the formalistic philosophy of Aristotle Together with them Descartes has given his contribuition for the renovation of the western philosophy Keywords Descartes Scholasticism Natural philosophy Substantial form Res extensa

1 UnB email williamunbhotmailcom

219

No relato de sua biografia intelectual que se encontra no Discurso do

meacutetodo Descartes se nos apresenta como algueacutem insatisfeito com sua aprendizagem

escolar estimando que haacute pouco valor na formaccedilatildeo que adquiriu em sua juventude

Fui nutrido nas letras desde minha infacircncia e porque me convenceram que atraveacutes delas podia-se adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que eacute uacutetil agrave vida eu tinha um extremo desejo de aprendecirc-las Mas assim que eu conclui todo esse curso de estudos ao fim do qual costuma-se ser acolhido entre os eruditos eu mudei totalmente de opiniatildeo Eu me encontrava pois embarassado por tantas duacutevidas e erros de modo que eu parecia natildeo ter obtido nenhum benefiacutecio ao me instruir a natildeo ser ter descoberto mais e mais minha ignoracircncia2

Como eacute bem sabido Descartes estudou no renomado coleacutegio jesuiacuteta de La

Flegraveche que era de acordo com seu proacuteprio parecer ldquo[] uma das mais ceacutelebres escolas

de Europardquo3 onde acreditava ldquo[] haver homens saacutebiosrdquo4 Nessa instituiccedilatildeo ele se

aprofundou no estudo da filosofia escolaacutestica siacutentese elaborada por Santo Tomaacutes de

Aquino no seacuteculo XIII da teologia cristatilde com o pensamento de Aristoacuteteles Visto ser

este o responsaacutevel principal de suas frustraccedilotildees acadecircmicas eacute pois precisamente contra

o aristotelismo que se encontrava vigorosamente estabelecido ainda na primeira metade

do seacuteculo XVII que Descartes se insurge de modo mais veemente5

Dentre as disciplinas baseadas diretamente nas obras de Aristoacuteteles6 e

sendo ministradas como comentaacuterios a estas agraves quais Descartes foi submetido durante

2 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 4 lsquoATrsquo refere-se a DESCARTES Reneacute Oeuvres de Descartes (publieacutees par Charles Adam amp Paul Tannery) Todas as referecircncias agraves obras de Descartes seratildeo feitas dessa maneira seguindo procedimento usual entre estudiosos desse autor ldquoJrsquoai eacuteteacute nourri aux lettres degraves mon enfance et parce qursquoon me persuadait que par le moyen on pouvait acquerir une connaissance claire et assurreacutee de tout ce qursquoil est utile agrave la vie jrsquoavais un extreme deacutesir de les apprendre Mais sitocirct que jrsquoeus acheveacute tout ce cours de eacutetudes au bout duquel on a coucirctume drsquoecirctre reccedilu au rang des doctes je changeai entiegraverement drsquoopinion Car je me trouvais embarasseacute de tant de doutes et drsquoerreurs qursquoil me semblait nrsquoavoir fait autre profit en tacircchant de mrsquoinstruir sinon que jrsquoavais deacutecourvert de plus en plus mon ignorancerdquo 3 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 5 ldquo[] lrsquoune des plus celegravebres eacutecoles de lrsquoEuroperdquo 4 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 5 ldquo[] avoir de savants hommesrdquo 5 A respeito desse fato eacute oportuno observar que Descartes natildeo era o uacutenico estudante incomodado com o conteuacutedo demasiadamente aristoteacutelico ministrado pelas Escolas e universidades da eacutepoca Locke e Hobbes por exemplo tambeacutem se sentiam deveras incomodados com o formalismo inoacutecuo das obras de Aristoacuteteles Leibniz em contrapartida natildeo compartilhava o mesmo niacutevel de exasperaccedilatildeo de seus contemporacircneos em relaccedilatildeo aos escolaacutesticos embora consideresse que certos equiacutevocos por eles cometidos devessem ser corrigidos (cf LEIBNIZ Metaphysische abhandlung pp 24-25) 6 Cf ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 60 ldquoEm La Flegraveche como em outros coleacutegios jesuiacutetas da eacutepoca o curriacuteculo [do curso] de filosofia durava trecircs anos ( os trecircs uacuteltimos anos de formaccedilatildeo do estudante a partir do 15 anos de idade) Ele consistia em preleccedilotildees duas vezes por dia com a duraccedilatildeo de duas horas baseadas primariamente nas obras de Aristoacuteteles e Tomas de Aquino No tempo de Descartes o primeiro ano era devotado agrave loacutegica e agrave eacutetica consistindo em comentaacuterios e questotildees baseadas na Isagoge de Porfiacuterio e nas Categorias no Sobre a interpretaccedilatildeo nos Primeiros analiacuteticos nos Toacutepicos nos Segundos analiacuteticos e na Eacutetica a Nicocircmacos de Aristoacuteteles O segundo ano era devotado agrave fiacutesica e agrave metafiacutesica baseado primariamente na Fiacutesica no

220

seus anos de aprendizagem aquela que mais lhe desagradou ou ao menos contra a qual

ele se opocircs de modo mais enfaacutetico foi agrave filosofia natural7 Essa disciplina escolaacutestica agrave

qual Descartes foi apresentado por seus mestres jesuiacutetas em La Flegraveche era praticamente

a mesma que era ensinada nas universidades francesas do seacuteculo XIII e XIV isto eacute o

sistema de explicaccedilatildeo da natureza herdado da Idade Meacutedia pelos jesuiacutetas continuava

intacto ainda no seacuteculo XVII8 seacuteculo este que paradoxalmente assistia agrave emergecircnica da

Revoluccedilatildeo Cientiacutefica da qual Descartes seraacute um dos principais esteios

A filosofia natural escolaacutestica em suas explanaccedilotildees sustentava-se

amplamente em justificaccedilotildees de caraacuteter qualitativo O mundo segundo essa

interpretaccedilatildeo era formado por uma grande diversidade de substacircncias cada qual com

suas proacuteprias qualidades ou essecircncias Nesse sistema os objetos do mundo fiacutesico

tinham sua especificidade determinada por um elemento lsquoformalrsquo que compunha sua

estrutura presidia sua atividade e definia seus caracteres acidentais Eis um exemplo

proveniente de um famoso pesquisador da filosofia medieval ldquoO peso e a leveza

tornam-se pois qualidades decorrentes de faculdades que derivam da forma substancial

que a causa geradora do corpo lhe conferiurdquo9 Tomaacutes de Aquino justifica esse fato

assim ldquoCom efeito todo corpo natural tem alguma forma substancial determinada e

visto que agrave forma substancial sigam-se os acidentes eacute necessaacuterio que a determinada

forma sigam-se determinados acidentesrdquo10 Assim a verdadeira natureza de cada corpo

natural eacute a sua lsquoformarsquo de modo que seguindo-se a doutrina hilemoacuterfica de Aristoacuteteles

Sobre o ceacuteu no livro I do Sobre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo e no livros I 2 e II da Metafiacutesica O terceiro ano do [curso de] filosofia era o ano das matemaacuteticas consistindo em aritmeacutetica geometria muacutesica e astronomia [hellip]rdquo ldquoAt La Flegraveche as in other Jesuit colleges of the time the curriculum in philosophy would have lasted three years (the final three years of a studentrsquos education from about the age of fifteen on) It would have consisted of lectures twice a day in sessions lasting two hours each from a set curriculum based primarily on Aristotle and Thomas Aquinas During Descartesrsquo time the first year was devoted to logic and ethics consisting of commentaries and questions based on Porphyryrsquos Isagoge and Aristotlersquos Categories On Interpretation Prior Analytics Topics Posterior Analytics and Nicomachean Ethics The second year was devoted to physics and metaphysics based primarily on Aristotlersquos Physics De Caelo On Generation and Corruption book I and Metaphysics book I 2 and II The third year of philosophy was a year of mathematics consisting of arithmetics geometry music and astronomy [hellip] 7 Cf MENN Descartes and Augustine p 4 ldquoA atitude de Descartes em relaccedilatildeo agrave filosofia escolaacutestica eacute claramente hostil Especialmente em sua fiacutesica sua filosofia vai diretamente de encontro agrave filosofia de Aristoacuteteles a qual ele espera substituir nas Escolasrdquo ldquoDescartesrsquo attitude towards scholasticism is clearly hostile Especially in its physics his philosophy runs directly counter to the philosophy of Aristotle which he hopes to replace in the schoolsrdquo 8 Cf GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 143 9 GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 161 ldquoLa lourdeur et la leacutegegravereteacute deviennent donc des qualiteacutes dues agrave des faculteacutes qui deacuterivent de la forme substantielle que la cause geacuteneacuteratrice du corps lui a confeacutereacuteerdquo 10 AQUINO Summa theologiae I q 7 art 3 ldquoNam omne corpus naturale aliquam formam substantialem habet determinatam cum igitur ad formam substantialem consequantur accidentia necesse est quod ad determinatam formam consequantur determinata accidentiardquo

221

quando esta se une a aquele ao corpo entendido como princiacutepio material de

individuaccedilatildeo tem-se uma lsquoforma substancialrsquo o que constitui o princiacutepio de movimento

ou mudanccedila (κίνησις na terminologia do Estagirita11) dos entes que existem por

natureza (τὰ φύσει ὄντα)12 a qual no homem por exemplo identifica-se com a alma

racional ou espiacuterito13 Desse modo a fiacutesica escolaacutestica14 que fora ensinada ao jovem

Descartes em seu profundo acordo com o pensamento de Aristoacuteteles se atribuiacutea como

tarefa primaacuteria a identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo das lsquoformas substanciaisrsquo15 isto eacute da

natureza (φύσις) ou essecircncia dos entes corpoacutereos elementos estes vale dizer

eminentemente qualitativos

Eacute pois agrave noccedilatildeo de lsquoforma substancialrsquo que Descartes dirigiraacute sua criacutetica

mais severa16 uma vez que era sobre ela que repousava todo o sistema da fiacutesica

escolaacutestico-aristoteacutelica Sua supressatildeo determinaria necessariamente a ruiacutena de toda

aquela ciecircncia e ao mesmo tempo condicionaria a proacutepria elaboraccedilatildeo da fiacutesica

cartesiana que deveria lhe substituir17 Com efeito Descartes considerava a fiacutesica que

lhe fora ensinada inaceitaacutevel Para ele uma ciecircncia que se baseava sobre um tal

princiacutepio como o de forma substancial natildeo possuiacutea nenhum poder real de explicaccedilatildeo ou

11 Aristotle Physics II 1 192b12-15 12 Aquino endossa essa opiniatildeo de Aristoacuteteles ldquo[] Muitas coisas existem por natureza uma vez que tecircm o princiacutepio de seu movimento em sirdquo (AQUINO Commentaria in libros physicorum II l 1 n 8) ldquo[] Multa sunt a natura quae habent principium sui motus in serdquo 13 ldquoPortanto esse princiacutepio pelo qual primeiramente entendemos que ele seja nomeado intelecto ou alma intelectiva eacute a forma do corpordquo (AQUINO Summa theologicae I q 76 art 1) ldquoHoc ergo principium quo primo intelligimus sive dicatur intellectus sive anima intellectiva est forma corporisrdquo Esta seraacute com efeito a uacutenica forma substancial que Descartes admitiraacute em seu sistema elevada entretanto ao status de substacircncia ndash a res cogitans 14 Eacute importante ter em mente que essa exposiccedilatildeo da fiacutesica escolaacutestica se pretende apenas como um esboccedilo para melhor situar a criacutetica de Descartes agraves formas substacircncias natildeo sendo de nenhum modo exaustiva ou completa 15 A fiacutesica escolaacutestica era efetivamente uma disciplina ldquotaxonocircmicardquo descrevendo e classificando os fenocircmenos mas nunca capaz de descobrir leis gerais que desse conta da explicaccedilatildeo e previsibilidade da natureza dos mesmos assim como o foi a historia natural em especial a biologia ateacute o princiacutepio do seculo XIX 16 ldquo[] Todas as qualidades e formas agraves quais tenho horror []rdquo (DESCARTES Correspondecircncia a Ciermans AT 2 p 74) ldquo[] Qualitates omnes et formas a quibus abhorreo []rdquo 17 A criacutetica agraves formas substanciais na verdade ocupa um lugar fundamental em todo o sistema de Descartes natildeo se restringindo meramente agrave refutaccedilatildeo da filosofia natural escolaacutestica isto eacute a uma disciplina particular ldquo[] A criacutetica agraves formas substanciais confere seu sentido pleno agraves Meditaccedilotildees metafiacutesicas por completo porque integralmente centradas na distinccedilatildeo real da alma e do corpo elas contecircm precisamente aquilo que era necessaacuterio para estabelecer essa conclusatildeo da metafiacutesica que eacute ao mesmo tempo o princiacutepio de uma fiacutesica do movimento e da extensatildeordquo (GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 189) ldquo[] La critique de formes substantielles donne son sens plein aux Meacuteditations meacutetaphysiques tout entiegraveres parce que inteacutegralement centreacutees sur la distinction reacuteele de lrsquoacircme et du corps elles ne contiennent que ce qursquoil fallait pour eacutetablir cette conclusion de la meacutetaphysique qui est en mecircme temps le principe drsquoune physique de lrsquoeacutetendue et du mouvementrdquo

222

de prediccedilatildeo18 dado que ldquo[] a Forma se torna uma espeacutecie de tela invisiacutevel entre o

observador e seu objeto de estudo a qual impede-no de agarraacute-lo mensuraacute-lo e pesaacute-

lordquo19 Em sua visatildeo inversamente era necessaacuteria uma abordagem que focasse natildeo em

variaacuteveis qualitativas mas em fatores quantitativos e passiacuteveis de mensuraccedilatildeo Dessa

perspectiva ao inveacutes das lsquoformas substanciaisrsquo e lsquoqualidades reaisformas acidentaisrsquo o

universo cartesiano seraacute constituiacutedo apoacutes a supressatildeo do hilemorfismo aristoteacutelico

representado por seu famoso lsquodualismorsquo corpo-alma20 por um material singular e

homogecircneo ao qual ele denominaraacute res extensa21 Assim Descartes recusa a noccedilatildeo de

forma substancial como princiacutepio explicativo do mundo natural e em seu lugar vai

estabelecer um princiacutepio puramente material representado pela noccedilatildeo de res extensa

com as consequentes qualidades primaacuterias que considera ser-lhe inerente ndash figura

movimento grandeza nuacutemero ndash como objeto de estudo da filosofia natural reduzindo

assim o objeto da fiacutesica agrave geometria

18 Leibniz apesar de contrariado com o fato de as formas substanciais se encontrarem tatildeo desacreditadas uma vez que as considera diferentemente de Descartes uacuteteis em seu aspecto lsquometafiacutesicorsquo afirma por outro lado em acordo com Descartes que a consideraccedilatildeo dessas formas em nada serve ao pormenor da fiacutesica natildeo se devendo por isso empregaacute-las para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos particulares ldquoOs escolaacutesticos e os meacutedicos do passado a exemplo deles falharam ao acreditar fornecer a razatildeo das propriedades dos corpos recorrendo agraves formas e agraves qualidades sem se darem ao trabalho de examinar sua maneira de operaccedilatildeo como se algueacutem se contentasse em dizer que um reloacutegio tem a qualidade de indicar as horas devido a sua forma [substancial] sem considerar em que isto consisterdquo (LEIBNIZ Metaphysische abhandlung pp 20-22) rdquoEt crsquoest en quoi nos scholastiques ont manqueacute et les Meacutedecins du temps passeacute agrave leur exemple croyant de rendre raison des proprieteacutes des corps em faisant mention des formes et des qualiteacutes sans se mettre en peine drsquoexaminer la maniegravere de lrsquooperation comme si on se voulait contenter de dire qursquoune horloge a la qualiteacute horodictique provenante de sa forme sans considerer en quoi tout cela consisterdquo 19 ALLAN The philosophy of Aristotle p 115 ldquo[] the Form becomes a kind of invisible screen between the observer and the object of his study which prevents him from grasping and measuring and weighing itrdquo 20 Forlin esclarece as verdadeiras intenccedilotildees de Descartes ao propor o seu lsquodualismorsquo corpo-alma ldquoEacute comum afirmar que quando na Descartes na Meditaccedilatildeo segunda opera uma distinccedilatildeo radical entre corpo e alma o interesse cartesiano seria sobretudo o de mostrar que a alma eacute puramente imaterial e completamente independente do corpo Na verdade Descartes estaacute interessado eacute na contrapartida dessa distinccedilatildeo seu interesse eacute mostrar que o corpo eacute puramente material e completamente independente de qualquer alma ou forma como pressupunham os tomistas-aristoteacutelicos Tal condiccedilatildeo eacute necessaacuteria para se justificar metafiacutesicamente a elaboraccedilatildeo de uma ciecircncia da natureza que tem como objeto apenas a extensatildeo e suas propriedades geomeacutetricas e mecacircnicas ou seja eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para se validar metafisicamente a realizaccedilatildeo de uma fiacutesica-matemaacuteticardquo (FORLIN A metafiacutesica cartesiana e a fundamentaccedilatildeo da fiacutesica moderna p 89) 21Ao recusar as lsquoformas substanciasrsquo e as lsquoqualidades reaisrsquo ou lsquoformas acidentaisrsquo e afirmar que o universo eacute constituiacutedo apenas de res extensa i e de um princiacutepio material Descartes estaacute negando ao mesmo tempo assim como jaacute o fizera Galileu a existecircncia objetiva das lsquoqualidades secundaacuterias nos corpos ndash cores odores sabores etc Estas bem como todas as outras sensaccedilotildees seratildeo excluiacutedas dos objetos e corpos e realocados na mente do sujeito estando na base da inovadora concepccedilatildeo de mente e da revolucionaacuteria teoria da percepccedilatildeo cartesianas todos estes elementos fundamentando o inatismo desse autor A abordagem desses importantes temas cartesianos entretanto natildeo fazem parte do escopo do presente trabalho Para mais detalhes sobre tais questotildees cf TEIXEIRA Teoria das ideias inatismo e teoria da percepccedilatildeo em Descartes pp 487-515

223

O corolaacuterio mais imediato dessa alteraccedilatildeo feita por Descartes no objeto de

estudo da filosofia natural reside no fato que no acircmbito da explicaccedilatildeo dos fenocircmenos

enquanto para os escolaacutesticos agrave maneira peripateacutetica o movimento e a mundaccedila nos

corpos ou entes naturais originavam-se no interior dos mesmos tendo como princiacutepio

originaacuterio a forma substancial que constitue sua essecircncia e determina seus atributos

numa fiacutesica mecanicista de tipo cartesiana movimento e mudanccedila advecircm

exclusivamente da interaccedilatildeo entre os corpos eou das partes constituintes dos mesmos

sendo portanto fatores exteriores a eles donde resulta que todos os fenocircmenos que lhes

satildeo atinentes podem ser explicados segundo padrotildees de causa e efeito empiricamente

verificaacuteveis e sobretudo matematicamente mensuraacuteveis

Na obra Le Monde ou Traiteacute de la Lumiegravere (AT 8) onde Descartes

apresenta as concepccedilotildees de sua filosofia natural ou fisica o que significa dizer

[] uma alternativa completamente mecanicista ao sistema de Aristoacuteteles efetivamente derivando heliocentrismo22 a partir de princiacutepios primeiros oferecendo uma nova e aparentemente viaacutevel concepccedilatildeo de mateacuteria [res extensa] e formulando leis fundamentais do movimento23 ndash leis que satildeo claramente passiacuteveis de quantificaccedilatildeo24

Encontra-se desde o princiacutepio a condenaccedilatildeo que o filoacutesofo francecircs efetua

em relaccedilatildeo agraves formas substanciais considerando-nas o obstaacuteculo que impede aquela

disciplina de se tornar uma verdadeira ciecircncia Nessa obra vecirc-se a recusa de Descartes

em compreender os fenocircmenos fiacutesicos atraveacutes de noccedilotildees como lsquoformarsquo lsquoqualidadersquo

lsquoaccedilatildeorsquo e outras semelhantes tatildeo caras agrave fiacutesica escolaacutestica Para ele uma fiacutesica que se

queira verdadeiramente ciecircncia deve estudar os entes da natureza mediante a anaacutelise de

suas partes extensas e do movimento que se estabelece entre elas

ldquoQue um outro diz ele numa clara alusatildeo aos escolaacutesticos pois imagine se quiser nessa madeira a Forma do fogo a Qualidade do calor e a Accedilatildeo que a queima como coisas totalmente diversas para

22 Agrave ocasiatildeo da condenaccedilatildeo de Galileu pela Inquisiccedilatildeo Descartes escreve a Mersenne acerca do comprometimento do Le Monde com o modelo copernicano ldquo[] Se ele [o movimento da Terra] eacute falso todos os fundamentos de minha Filosofia tambeacutem o satildeo pois ele se demonstra por eles de forma evidente E ele estaacute tatildeo ligado com todas as partes de meu Tratado que eu natildeo o poderia excluir dele sem tornar o restante totalmente defeituosordquo (DESCARTES Correspondecircncia a Mersenne AT 1 p 271) ldquo[] Srsquoil est faux tous les fondements de ma Philosophie le sont aussi car il se demonstre par eux eacutevidemment Et il est teacutellement lieacute avec toutes les parties de mon Traiteacute que je ne lrsquoen saurait deacutetacher sans rendre le reste tout defectueuxrdquo 23 Cf DESCARTES Le Monde AT 11 pp 38 e 41 e Principia AT 8 pp 62-66 24 GAUKROGER Descartesrsquo system of natural philosophy p 18 ldquo[] a fully mechanist alternative to Aristotelian systems one which effectively derives heliocentrism from first principles which offers a novel and apparently viable conception of matter and which formulates fundamental laws of motion ndash laws which are clearly open to quantitative elaborationrdquo

224

mim que temo me enganar se aiacute suponho qualquer coisa aleacutem do que necessariamente deve haver me contento em conceber o movimento de suas partes25rdquo26

Em suma a filosofia natural cartesiana opotildee-se por um lado aos obscuros

princiacutepios que Aristoacuteteles usara na explicaccedilatildeo do mundo fenomenal ndash e que satildeo

sistematica e ostensivamente empregados pelos escolaacutesticos ndash e por outro busca

construir uma sistema de explicaccedilatildeo do mundo natural apelando apenas a princiacutepios

claros e evidentes isto eacute tangiacuteveis e mensuraacuteveis tal como o faria um geocircmetra

Apoiando-se sobre esses pressupostos ele afirma

[] Notei que absolutamente nada pertence agrave natureza do corpo exceto que seja somente uma coisa comprida larga e profunda capaz de vaacuterias figuras e de vaacuterios movimentos e [que] as figuras e os movimentos satildeo apenas modos dele que sem o mesmo atraveacutes de nenhuma [outra] faculdade podem existir27

Desse modo Descartes elimina da ciecircncia natural todas as explicaccedilotildees

baseadas em princiacutepios anticientiacuteficos e obscurantistas tais como lsquoqualidades

sensiacuteveisrsquo lsquofaculdades fiacutesicasrsquo28 e lsquoformas substanciaisrsquo empregados fartamente pelos

escolaacutesticos em suas investigaccedilotildees naturais Em seu lugar surge a mera extensatildeo e as

qualidades primaacuterias como fatores explicativos dos fenocircmenos da natureza de modo

que todo o universo passa a ser visto como um grande ldquoengenho mecacircnicordquo Essas

inovaccedilotildees implementadas por Descartes representaram um enorme ganho de

simplicidade e precisatildeo o que contribuiu significativamente para o estabelecimento da

fiacutesica como uma ciecircncia baseada no meacutetodo experimental e no raciociacutenio matemaacutetico 25 A fiacutesica mecanicista de Descartes estaacute evidentemente comprometida com a teoria do corpuscularismo como se aduz da mencionada passagem Cf DESCARTES Principia AT 8 pp 323-325 26 DESCARTES Le Monde AT 11 p7 ldquoQursquoun autre donc imagine srsquoil veut en ce bois la Forme du feu la Qualiteacute de la chaleur et lrsquoAction que la brucircle comme des choses toutes diverses pour moi qui crains de me tromper si jrsquoy suppose quelque chose de plus que ce que je vois neacutecesseraiment y devoir ecirctre je me contente drsquoy concevoir le mouvement de ses partiesrdquo 27 DESCARTES Meditaccedilotildees acerca da filosofia primeira Sextas respostas AT 7 p 440 e AT 9 p 239 ldquo[] Adverti nihil plane ad rationem corporis pertinere nisi tantum quod sit res longa lata et profunda variarum figurarum variorumque motuum capax ejusque figuras ac motus esse tantum modos qui per nullam potentiam sine ipso possunt existere []rdquo 28 Em Le malade imaginaire (1673) Moliegravere ao lado de Racine La Fontaine Corneille Boileau Bossuet um dos mestres do Classicismo francecircs aquele movimento esteacutetico da literatura francesa de forte inspiraccedilatildeo cartesiana ( com efeito ordem clareza razatildeo anaacutelise verdade equiliacutebrio perfeiccedilatildeo satildeo valores do Classicismo) como que de maneira irocircnica fazendo eco agrave critica de Descartes agrave noccedilatildeo de forma substancial explora os efeitos cocircmicos das explicaccedilotildees escolaacutesticas aplicadas agrave medicina Na cena em questatildeo um futuro bacharel em medicina eacute questionado por um dos membros do corpo docente daquele faculdade a respeito da ldquo[] causa e razatildeo pela qual o oacutepio faz dormir []rdquo Ele lsquoescolasticamentersquo responde ldquoPorque haacute nele uma virtude dormitiva cuja natureza eacute embotar os sentidosrdquo (MOLIEgraveRE Le malade imaginaire scegravene XIV et derniegravere troisiegraveme intermegravede p 70) ldquo[] causam et rationem quare Opium facit dormire [] Quia est in eo [opio] Virtus dormitiva Cujus est natura Sensus assoupirerdquo

225

impulsionando assim sua separaccedilatildeo de sua matriz filosoacutefica29 Ainda que o modelo de

fiacutesica proposto por Descartes tenha sido superado por Newton nos dececircnios seguintes ndash

os Principia do inglecircs foram publicados em 1686 ndash a abordagem matemaacutetico-

quantitativa em oposiccedilatildeo agrave descritivo-qualitativa veiculada pelos escolaacutesticos

permanece incontestavelmente um dos mais importantes pilares da atividade cientiacutefica

Embora veemente e implacaacutevel em sua criacutetica Descartes natildeo foi o primeiro

nem o uacutenico pensador moderno a rejeitar as formas substanciais como fator explicatiacutevo

dos fenocircmenos naturais30 Antes dele as formas substancias jaacute tinham sido execradas

da filosofia natural por pensadores do quilate de Francis Bacon (1561-1626) e Galileu

Galilei (1564-1642) O inglecircs motivado pelo ideal de apresentar um novo meacutetodo para

a ciecircncia propocircs em seu Novum Organum uma completa reforma dos procedimentos

investigativos vigentes que se fundamentavam nos preceitos aristoteacutelicos dando ecircnfase

ao meacutetodo experimental e agrave consequente verificaccedilatildeo empiacuterica dos fatos De acordo com

ele ldquoeacute melhor dissecar a natureza do que abstraiacute-la [] Eacute melhor considerar a mateacuteria

sua conformaccedilatildeo sua accedilatildeo proacutepria e as leis de sua accedilatildeo e movimento pois formas satildeo

uma mera ficccedilatildeo da mente humana a natildeo ser que se chame por esse nome as leis [que

regem sua] accedilatildeordquo31 Natildeo haacute como negar que Descartes em sua criacutetica aos escolaacutesticos

estivesse motivado por priniacutecipios similares aos propostos por Bacon ainda que se deva

conceder que este fiel ao espiacuterito empiricista britacircnico fosse o lsquoarautorsquo do indutivismo

ao passo que Descartes propugnava um meacutetodo mais hipoteacutetico-dedutivo de iacutendole

racionalista O italiano por seu turno ignorou as praacuteticas cientiacuteficas aristoteacutelicas

filiando-se agrave uma epistemologia lsquoplatocircnicarsquo como sustentado pelo renomado historiador

da ciecircncia Alexander Koyreacute por acreditar que ldquoo livro da natureza estaacute escrito em

lingua matemaacuteticardquo32 Ou seja em Galileu assim como em Descartes a quantificaccedilatildeo e

29 A introduccedilatildeo do fator quantitativo cartesiano (e galilaico) em detrimento do fator qualitativo escolaacutestico cria finalmente condiccedilotildees para que a fiacutesica se desvencilhe do ranccedilo aristoteacutelico e possa progredir enquanto ciecircncia ldquoO fato de que ele [Aristoacuteteles] insiste na mudanccedila qualitativa como um dado uacuteltimo e natildeo percebe o valor da mensuraccedilatildeo eacute uma falta grave e uma das principais razotildees para a estagnaccedilatildeo da ciecircncia durante a Idade Meacutediardquo (ALLAN The philosophy of Aristotle 162) ldquo[] The fact that he insists on qualitative change as an ultimate datum and does not realize the value of measurement is a grave fault and is one of the main reasons for the stagnation of science during the Middle Agesrdquo 30 O que diferencia a criacutetica agraves formas substacircncias cartesiana daquela realizada por seus contemporacircneos eacute como observado na nota 16 acima o fato dela servir em Descartes para estabelecer a distinccedilatildeo real entre alma e corpo estando assim na base do argumento do cogito ou em outras palavras na base de sua metafiacutesica e tambeacutem na base da fiacutesica devido ao estabelecimento simultacircneo da res extensa 31 BACON Novum organum I 51 ldquo[] It is better to dissect than abstract nature [] It is best to consider matter its conformation its own action and the law of its action or motion for forms are a mere fiction of the human mind unless you will call the laws of action by that name 32 ldquoA filosofia estaacute escrita nesse grandiacutessimo livro que continuamente abre-se diante de nossos olhos (refiro-me ao universo) mas natildeo se pode entendecirc-lo se antes natildeo se aprende a entender a lingua e

226

a mensuraccedilatildeo em uma palavra a busca por precisatildeo ndash que se realiza atraveacutes da

geometrizaccedilatildeo da natureza ndash satildeo as bases da atividade cientiacutefica33 o que exclui

naturalmente avaliaccedilotildees de caraacuteter qualitativo agrave maneira dos escolaacutesticos

Esse aspecto da obra do filoacutesofo francecircs evidencia aquilo que poderiacuteamos

designar de a modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes Com efeito eacute fato plenamente

reconheciacutevel que Descartes estava tacitamente congregado aos muitos autores

contemporacircneos seus que combatiam o aristotelismo ainda hegemocircnico das Escolas e

universidades de modo que a criacutetica agraves formas substanciais natildeo caracteriza uma

singularidade em sua obra na verdade ela mostra que o nosso autor estava respirando

os novos ares que estavam sendo insuflados na filosofia ocidental Outro aspecto

relevante que situa a modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes eacute a adoccedilatildeo de ferramentas

matemaacutetico-geomeacutetricas para a soluccedilatildeo de problemas de filosofia natural em particular

e ao mesmo tempo conscientemente ou natildeo a tomada de partido a favor da

epistemologia platocircnicarsquo que agrave eacutepoca emergia como um antiacutedoto agrave onipresenccedila do

peripatismo na cultura europeacuteia ndash uma fortaleza quase inexpugnaacutevel34 Nas atuais

circusntacircncias negar Aristoacuteteles significava quase que necessariamente afirmar Platatildeo Natildeo haacute mais que duas grades vias abertas agrave especulaccedilatildeo metafiacutesica a de Platatildeo e a de Aristoacuteteles Pode-se ter uma metafiacutesica do inteligiacutevel que desconfia do sensiacutevel de meacutetodo matemaacutetico e que se prolonga por uma ciecircncia que mede ou uma metafiacutesica do concreto que desconfia do inteligiacutevel de meacutetodo bioloacutegico e que se prolonga por um ciecircncia que classifica [] Como ele tinha acabado de sair do

conhecer os caracteres com os quais estaacute escrito Ele estaacute escrito em lingua matemaacutetica e os caracteres satildeo triacircngulos ciacuterculos e outras figuras geomeacutetricas sem cujos meios eacute impossiacutevel entender por via humana as palavrasrdquo (GALILEU Il saggiatore pp 16-17) ldquoLa filosofia egrave scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli occhi (io dico lrsquouniverso) ma non si puograve intendere se prima non srsquoimpara a intender la lingua e conoscer i caratteri nersquo quali egrave scritto Eggli egrave scritto in lingua matematica e i caratteri son triangoli cerchi ed altre figure geometriche senza i quali mezzi egrave impossibile a intenderne umanamente parolardquo 33 Natildeo obstante sua repreensatildeo agrave ausecircncia de fundamentos metafiacutesicos na filosofia natural de Galileu que este elaborou ldquo[] sem ter considerado as causas primeiras da natureza []rdquo Descartes aquiesce ao modo de proceder do cientista italiano ldquoEu acho que no geral ele filosofa muito melhor que o vulgo ao se afastar o maacuteximo que ele pode dos erros da Escola e se aplicar a examinar as questotildees da fiacutesica atraveacutes de raciociacutenios matemaacuteticos Nisto eu estou inteiramente de acordo com ele e acredito que natildeo haacute outro meio para encontrar a verdaderdquo (DESCARTES Correspondecircncia a Mersenne AT 2 p 380) [] ldquoSans avoir considereacute les causes premiegraveres de la nature []rdquo ldquoJe trouve en geacuteneacuteral qursquoil philosophe beaucoup mieux que le vulgaire en ce qursquoil quitte les plus qursquoil peut les erreurs de lrsquoEacutecole et tacircche agrave examiner les matiegraveres physiques par des raisons matheacutematiques En cela je mrsquoaccorde interiegraverement avec lui et je tiens qursquoil nrsquoy a point drsquoautre moyen pour trouver la veriteacuterdquo 34 ldquoTalvez a mais interessante liccedilatildeo que possa ser aprendida ao observar a relaccedilatildeo de Descartes com a escolaacutestica eacute o absoluto poder e autoridade do aristotelismo durante o seacuteculo dezesseterdquo (ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 58) ldquoPerhaps the most interesting lesson that can be learned by looking at Descartesrsquo relations with scholastics is the sheer power and authority of Aristotelianism during the seventeenth centuryrdquo

227

aristotelismo no qual seus mestres tentaram o engajar Descartes podia apenas dirigir-se ao platonismo []35

Jolley em obra mais recente corrobora essa opiniatildeo ldquoOs filoacutesofos no

periacuteodo [seacuteculo dezessete] natildeo estavam realmente virando as costas agrave tradiccedilatildeo como um

todo eles estavam antes eclipsando Aristoacuteteles para trazer agrave luz Platatildeordquo36

De qualquer modo a partir das consideraccedilotildees feitas acima eacute liacutecito concluir

que Descartes foi um ferrenho criacutetico da tradiccedilatildeo De sua insatisfaccedilatildeo como aprendiz de

filosofia escolaacutestica elevou-se agrave condiccedilatildeo de renovador da filosofia natural aristoteacutelica

que ainda dominava o curriacuteculo acadecircmico na Europa do seacuteculo XVII Com efeito em

sua proacutepria eacutepoca Descartes jaacute era visto como um opositor da filosofia ensinada nas

Escolas o que acabou por resultar na inclusatildeo de suas obra no Index de Livros

Proibidos em 1663 com a seguinte notaccedilatildeo ldquoateacute que sejam corrigidosrdquo37 e na deacutecada

seguinte assistia-se agrave proibiccedilatildeo pelo governo francecircs do ensino das doutrinas

cartesianas Ambas accedilotildees foram impetradas pelos opositores da filosofia de Descartes

Descartes tinha mesmo como objetivo lsquoimplodirrsquo a filosofia escolaacutestica e para tal

propoacutesito chegou a escrever uma obra que pudesse substituir os manuais ateacute entatildeo

utilizados para o ensino da filosofia ndash os Principia Philosophiae (cf AT 8) obra

incompleta que pretendia ser um compilaccedilatildeo de todo o seu sistema de pensamento38

Bibliografia

ALLAN Donald James The philosophy of Aristotle Oxford Oxford University Press

1970 2nd ed

AQUINO Santo Tomaacutes de Commentaria in libros physicorum Disponiacutevel em

lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt 35 GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 199 ldquoIl nrsquoy a guegravere que deux grandes voies ouvertes agrave la speacuteculation meacutetaphysique celle de Platon et celle drsquoAristote On peut avoir une meacutetaphysique de lrsquointelligible meacutefiante agrave lrsquoeacutegard du sensible de meacutethode matheacutematique et se prolongeant par une science qui mesure ou une meacutetaphysique du concret meacutefiante du intelligible de meacutethode biologique et se prolongeant par une science qui classe [] Puisqursquoil venait de sortir de lrsquoaristoteacutelisme ougrave ses maicirctres avaient essayeacute de lrsquoengager Descartes ne pouvait que rentrer dans la platonisme []rdquo 36 JOLLEY The light of the soul Theories of ideas in Leibniz Malebranche and Descartes p 11 ldquophilosophers in the period [seventeenth-century] were not really turning their back on the tradition as a whole rather they were casting down Aristotle in order to raise up Platordquo 37 (ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 80) ldquodonec corriganturrdquo 38 Agradeccedilo ao professor Eneacuteias Forlin da Unicamp pelos comentaacuterios e sugestotildees que muito contribuiacuteram para o aperfeiccediloamento desse texto

228

______ Summa theologiae Disponiacutevel em

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ARIEW Roger ldquoDescartes and scholasticism The Intellectual Background to

Descartesrsquo Thoughtrdquo In COTTINGHAM John (Ed) Cambridge Companion to

Descartes Cambridge Cambrigde University Press 1992

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DAVIES Brian The Thought of Tomas Aquinas Oxford Claredon 1992

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Perspectiva filosoacutesica Vol 2 No 34 (jul-dez 2010) pp 81-95

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systegraveme carteacutesien Paris Librairie Philosophique J Vrin 1951

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Meiner 1962 (Philosophische bibliotek 260)

JOLLEY Nicholas The light of the soul Theories of ideas in Leibniz Malebranche

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MOLIEgraveRE Jean Baptiste Poquelin Le malade imaginaire Disponiacutevel em

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229

TEIXEIRA WilliamldquoTeorias das ideias inatismo e teoria da percepccedilatildeo em Descartesrdquo

Cadernos Espinosanos Satildeo Paulo Grupo de Estudos Espinosanos Ndeg 35 pp 487-515

Jul-Dez 2016

FECHAMENTO EPISTEcircMICO

Steven Luper1

A maioria de noacutes pensa que pode seguramente aumentar a sua base de conhecimento

aceitando coisas que satildeo implicadas (ou logicamente implicadas) por aquilo que sabemos

Aproximadamente falando o conjunto de coisas que sabemos eacute fechado sob implicaccedilatildeo

(ou sob deduccedilatildeo ou implicaccedilatildeo loacutegica) de modo que sabemos que uma determinada

afirmaccedilatildeo eacute verdadeira reconhecendo e como resultado aceitando que ela se segue

daquilo que sabemos Isso natildeo quer dizer que o modo pelo qual usualmente aumentamos

o nosso conhecimento eacute simplesmente atraveacutes do reconhecimento e aceitaccedilatildeo daquilo que

se segue daquilo que jaacute sabiacuteamos Eacute claro que haacute muito mais coisas envolvidas Por

exemplo coletamos dados e construiacutemos explicaccedilotildees para eles e sob circunstacircncias

apropriadas aprendemos com os outros Mais precisamente quando alegamos saber que

alguma proposiccedilatildeo eacute verdadeira essa proacutepria alegaccedilatildeo estaacute sujeita ao erro geralmente

ver aquilo que se segue de uma alegaccedilatildeo de conhecimento nos permite reavaliar e ateacute

mesmo abandonar a nossa alegaccedilatildeo de conhecimento ao inveacutes de concluir que sabemos

aquilo se segue dela Contudo parece razoaacutevel pensar que se de fato sabemos que

alguma proposiccedilatildeo eacute verdadeira entatildeo estamos em posiccedilatildeo de saber que as coisas que se

seguem dessa proposiccedilatildeo satildeo tambeacutem verdadeiras Todavia alguns teoacutericos tecircm negado

que o conhecimento seja fechado sob implicaccedilatildeo loacutegica Os argumentos contra o

fechamento incluem os seguintes

O argumento da anaacutelise do conhecimento dada a anaacutelise correta o

conhecimento natildeo eacute fechado Por exemplo se a anaacutelise correta inclui uma

condiccedilatildeo de rastreamento entatildeo o fechamento falha

1 Traduzido por Luiz H M Segundo Doutorando em epistemologia (UFSC) Departamento de Filosofia (UFOP) email luizhelveciosegundogmailcom Artigo originalmente publicado em LUPER S ldquoEpistemic Closurerdquo The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2016 Edition) Edward N Zalta (ed) Disponiacutevel em httpsplatostanfordeduarchivesspr2016entriesclosure-epistemic

231

O argumento do natildeo-fechamento dos modos de conhecimento uma vez que

os modos de se obter preservar e aumentar o conhecimento tal como a

percepccedilatildeo o testemunho a demonstraccedilatildeo a memoacuteria a indicaccedilatildeo e a

informaccedilatildeo natildeo satildeo individualmente fechados tambeacutem natildeo eacute o

conhecimento

O argumento das proposiccedilotildees incognosciacuteveis (ou natildeo facilmente

conheciacuteveis) certas proposiccedilotildees natildeo podem ser conhecidas (sem meios

especiais) dado o fechamento elas poderiam ser conhecidas (sem

capacidades especiais) a partir da deduccedilatildeo de afirmaccedilotildees mundanas que

sabemos de modo que o conhecimento natildeo eacute fechado

O argumento do ceticismo o ceticismo eacute falso mas seria verdadeiro se o

conhecimento fosse fechado de modo que o conhecimento natildeo eacute fechado

Embora os proponentes do fechamento tenham respostas para esses argumentos eles

tambeacutem argumentam mais ou menos ao estilo de G E Moore (1959) que o fechamento

eacute um dado firme ndash eacute bastante oacutebvio para excluir qualquer compreensatildeo do conhecimento

ou de noccedilotildees correlatas que minem o fechamento

Uma ideia bastante proacutexima eacute a de que nos eacute racional (justificaacutevel) acreditar em tudo

aquilo que se siga daquilo que nos eacute racional acreditar Essa ideia estaacute intimamente

relacionada agrave tese de que o conhecimento eacute fechado uma vez que de acordo com muitos

teoacutericos saber que p implica acreditar justificadamente que p Se o conhecimento implica

a justificaccedilatildeo a falha no fechamento dessa uacuteltima poderia conduzir agrave falha no fechamento

daquele

1 O Fechamento do Conhecimento

O que significa precisamente dizer que o conhecimento eacute fechado sob implicaccedilatildeo Uma

resposta eacute que o seguinte princiacutepio direto de fechamento do conhecimento sob implicaccedilatildeo

eacute verdadeiro

SP Se uma pessoa S sabe que p e p implica q entatildeo S sabe que p

A condicional envolvida no princiacutepio direto poderia ser a condicional

material a condicional subjuntiva ou a implicaccedilatildeo produzindo trecircs

possibilidades cada uma mais forte do que a outra

SP1 S sabe que p e p implica q somente se S sabe que q

SP2 Se S soubesse algo p que implicasse q S saberia que q

232

SP3 Eacute necessariamente o caso que S sabe que p e p implica q somente se S

sabe que q

Poreacutem cada uma das versotildees do princiacutepio direto eacute falsa uma vez que

podemos saber algo p mas natildeo ver que p implica q ou por alguma outra razatildeo natildeo

acreditar em q Uma vez que o conhecimento implica crenccedila (de acordo com quase todos

os teoacutericos) natildeo sabemos que q Uma preocupaccedilatildeo menos oacutebvia eacute que poderiacuteamos

raciocinar mal e vir a acreditar que p implica q Talvez pensemos que p implica q porque

pensamos que qualquer coisa implica qualquer coisa ou porque temos um formigamento

no dedatildeo do peacute Hawthorne (2005) levanta a possibilidade de que ao aprender que p

implica q S deixe de saber que p Ele tambeacutem nota que SP1 eacute defensaacutevel sob a suposiccedilatildeo

(desviante) de que um pensamento p eacute equivalente a outro q se p e q valem em todos

os mundos possiacuteveis Suponha que p implica q Entatildeo p eacute equivalente agrave conjunccedilatildeo de p

e q e assim o pensamento de que p eacute idecircntico ao de que p e q Por conseguinte ao saber

que p S sabe p e q Supondo que ao saber p e q S sabe que p e S sabe que q entatildeo

quando S sabe que p tambeacutem sabe que q como diz SP1

O princiacutepio direto precisa de qualificaccedilatildeo mas natildeo precisamos nos preocupar

com isso jaacute que tais qualificaccedilotildees apresentam-se naturalmente dada a ideia que estamos

tentando captar nomeadamente que podemos aumentar o nosso conhecimento atraveacutes

do reconhecimento e da aceitaccedilatildeo daquelas coisas que se seguem daquilo que sabemos

As qualificaccedilotildees introduzidas no seguinte princiacutepio (interpretado como uma condicional

material) parecem bastante naturais

K Se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que p implica q entatildeo

S sabe que q

Como nota Williamson (2000) a ideia de que podemos aumentar o nosso conhecimento

deduzindo a partir daquilo que sabemos apoia um princiacutepio de fechamento que eacute mais

forte do que K Eacute um princiacutepio que diz que sabemos coisas que acreditamos com base em

serem conjuntamente implicados por vaacuterios itens que sabemos separadamente Suponha

que eu saiba que Maria seja alta e que eacute canhota K natildeo nos autoriza a juntar esses dois

itens de conhecimentos de modo a saber que Maria eacute alta e eacute canhota Mas o seguinte

princiacutepio generalizado de fechamento cobre deduccedilotildees envolvendo itens conhecidos

separados

GK Se ao saber vaacuterias proposiccedilotildees S acredita que p porque S sabe que elas

implicam p entatildeo S sabe que p

233

Alguns teoacutericos distinguem entre agravequilo que chamam ldquofechamento de premissa uacutenicardquo

daquilo a que chamam ldquofechamento de muacuteltiplas premissasrdquo Tais teoacutericos negariam que

K capte o fechamento de ldquopremissa uacutenicardquo pois K diz que S sabe que q se S sabe que

duas coisas satildeo verdadeiras que p eacute verdadeira tanto quanto p implica q O fechamento

de ldquopremissa uacutenicardquo eacute geralmente formulado como se segue (seguindo Williamson 2002

e Hawthorne 2004)

SPK Se ao saber que p S acredita que q por deduzir competentemente q a

partir de p entatildeo S sabe que q

Estaacute longe de ser claro poreacutem que podemos deduzir competentemente q a partir de p

sem depender de qualquer conhecimento afora p Felizmente parece que nada depende

dessa possibilidade exceto talvez para aqueles que estejam interessados em se podemos

identificar algo que possa ser apropriadamente chamado de ldquoprinciacutepio de fechamento de

premissa uacutenicardquo

Os proponentes do fechamento poderiam aceitar tanto K quanto GK talvez

qualificados de modo natural (mas poderiam natildeo aceitar veja as questotildees sobre o

fechamento da justificaccedilatildeo na seccedilatildeo 6) Em contraste Fred Dretske e Robert Nozick

rejeitam K e GK Eles rejeitam qualquer princiacutepio de fechamento natildeo importa o quatildeo

restrito que garanta que saibamos que hipoacuteteses ceacuteticas (eg de que sou um ceacuterebro numa

cuba) sejam falsas com base em alegaccedilotildees mundanas de conhecimento (eg que natildeo estou

numa cuba) Aleacutem de rejeitarem K e GK eles negam o fechamento do conhecimento na

instanciaccedilatildeo e na simplificaccedilatildeo embora natildeo na equivalecircncia (Nozick 1981 227-229)

KI Se ao saber que todas as coisas satildeo F S acreditar que uma coisa particular

a eacute F porque S sabe que isso eacute implicado pelo fato de que todas as coisas satildeo

F entatildeo S sabe que a eacute F

KS Se ao saber que p e q S acredita que q porque S sabe que q eacute implicado

por p e q entatildeo S sabe que q

KE Se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que q eacute equivalente a

p entatildeo S sabe que q

Voltemo-nos para seus argumentos

2 O Argumento a partir da Anaacutelise do Conhecimento

234

O argumento a partir da anaacutelise do conhecimento diz que a abordagem correta do

conhecimento leva agrave falha de K Podemos distinguir duas versotildees De acordo com a

primeira K falha porque o conhecimento requer rastreamento de crenccedila De acordo com

a segunda qualquer abordagem das alternativas relevantes tal com as de Dretske e

Nozick leva agrave falha de K De acordo com Dretske (2003 112-3 2005 19) qualquer

abordagem das alternativas relevantes conduz ldquonaturalmenterdquo embora ldquonatildeo

inevitavelmenterdquo agrave falha de K

21 Falhas de Fechamento devido agrave Condiccedilatildeo de Rastreamento ao Conhecimento

Em linhas gerais a primeira versatildeo envolve a defesa da anaacutelise rastreadora

do conhecimento de Dretske ou de Nozick e em seguida mostra-se que ela mina K

(versotildees da abordagem rastreadora satildeo tambeacutem defendidas por Becker 2009 Murphy e

Black 2007 e Roush 2005 esse uacuteltimo modifica a abordagem rastreadora de modo a

preservar o fechamento para criacuteticas veja Brueckner 2012) Podemos pular a defesa que

consiste amplamente em mostrar que o rastreamento se sai melhor em lidar com as nossas

intuiccedilotildees epistecircmicas em casos de suposto conhecimento do que seus competidores

Podemos tambeacutem simplificar as anaacutelises De acordo com Nozick saber que p eacute grosso

modo (ignorando sua amplamente desacreditada quarta condiccedilatildeo criticada eg em

Luper 1984 e 2009 e em Kripke 2011) ter uma crenccedila de que p que satisfaccedila a seguinte

condiccedilatildeo (ldquoBTrdquo para crenccedila rastreadora [tracking belief])

BT fosse p falsa S natildeo acreditaria que p

Isto eacute nos mundos mais proacuteximos ao atual nos quais natildeo-p eacute o caso S natildeo acredita que

p O mundo atual eacute a situaccedilatildeo em que algueacutem se encontra quando adquire a crenccedila de que

p BT exige que em todos os mundos natildeo-p proacuteximos S natildeo acredite que p (A semacircntica

das condicionais subjuntivas eacute clarificada em Stalnaker 1968 Lewis 1973 e modificada

por Nozick 1981 nota 8) De acordo com a perspectiva de Dretske saber que p eacute

aproximadamente uma questatildeo de ter uma razatildeo R para acreditar que p que satisfaz a

seguinte condiccedilatildeo (ldquoCRrdquo para razatildeo conclusiva)

CR fosse p falsa R natildeo seria o caso

Isto eacute nos mundos proacuteximos ao atual em que natildeo-p eacute o caso R natildeo eacute o caso Quando R

satisfaz essa condiccedilatildeo Dretske diz que R eacute uma razatildeo conclusiva para acreditar que p

Dretske observa (2003 n 9 2005 n 4) que a sua perspectiva natildeo enfrenta

uma das objeccedilotildees que Saul Kripke (2011 162-224 Dretske tinha acesso a um rascunho

235

que circulava anterior agrave sua publicaccedilatildeo) apresenta contra a abordagem de Nozick

Suponha que eu esteja dirigindo por uma vizinhanccedila na qual desconhecido a mim

celeiros de papel machecirc estatildeo espalhados e que eu vejo que o objeto agrave minha frente eacute um

celeiro Tambeacutem noto que eacute vermelho Porque tenho perceptos diante de mim que satildeo

como celeiros acredito que celeiro o objeto diante de mim eacute um celeiro (comum) (o

exemplo eacute atribuiacutedo a Ginet em Goldman 1976) As nossas intuiccedilotildees sugerem que natildeo sei

que celeiro E assim dizem BT e CR Mas suponha agora que a vizinhanccedila natildeo tenha

quaisquer celeiros falsos vermelhos apenas os azuis satildeo falsos (Chamemos de caso do

celeiro vermelho) Assim de acordo com a perspectiva de Nozick posso rastrear o fato

de que haacute um celeiro vermelho uma vez que eu natildeo acreditaria que houvesse um celeiro

vermelho (via perceptos de celeiros vermelhos) caso natildeo houvesse qualquer celeiro

vermelho muito embora eu natildeo possa rastrear o fato de que haacute um celeiro uma vez que

eu poderia acreditar que houvesse um celeiro (via perceptos de celeiros azuis) ainda que

natildeo houvesse qualquer celeiro Dretske disse que essa justaposiccedilatildeo na qual sei algo e

mesmo assim natildeo sei uma segunda coisa que estaacute intimamente relacionada agrave primeira

(haver um celeiro vermelho o que sei implica haver um celeiro o que natildeo sei) ldquoeacute um

embaraccedilordquo e quanto a isso pensava ele a sua perspectiva eacute superior agrave de Nozick Seja

R a minha base para a crenccedila o fato de que tenho perceptos de celeiros vermelhos Se

natildeo houvesse qualquer celeiro R natildeo seria o caso de modo que sei que haacute um celeiro

Aleacutem disso se natildeo houvesse qualquer celeiro vermelho R ainda natildeo seria o caso de

modo que sei que haacute um celeiro vermelho Desse modo Dretske consegue evitar a

justaposiccedilatildeo objetaacutevel Contudo eacute surpreendente que Drestske cite o caso do celeiro

vermelho como base para se preferir a sua versatildeo do rastreamento em detrimento da de

Nozick Primeiro o proacuteprio Dretske aceitou justaposiccedilotildees de conhecimento e ignoracircncia

que satildeo pelo menos tatildeo bizarras quanto como veremos Segundo Nozick evita a proacutepria

justaposiccedilatildeo discutida por Dretske ajustando sua abordagem de modo a fazer referecircncia

aos meacutetodos pelos quais viemos a acreditar nas coisas (Hawthorne 2005) De acordo com

uma versatildeo mais polida Nozick disse que saber que p eacute grosso modo ter uma crenccedila de

que p obtida atraveacutes de um meacutetodo M que satisfaz a seguinte condiccedilatildeo (ldquoBMTrdquo para

rastreamento do meacutetodo da crenccedila)

BMT fosse p falsa S natildeo acreditaria que p via M

Se natildeo houvesse qualquer celeiro vermelho eu natildeo acreditaria nem que houvesse um

celeiro e nem que houvesse um celeiro vermelho via perceptos de celeiros vermelhos

236

Terceiro o caso do celeiro vermelho eacute um caso em que as intuiccedilotildees variam

Natildeo eacute oacutebvio que eu saiba haver um celeiro vermelho nas circunstacircncias que Dretske

esboccedila que diferem das do exemplo original de Ginet (em que consigo saber celeiro)

apenas nas estipulaccedilotildees de que vejo um celeiro vermelho e que nenhuns dos simulacros

de celeiro satildeo vermelhos Aleacutem do mais ambas as abordagens de Dretske e Nozick tecircm

a estranha implicaccedilatildeo de que sei que haacute um celeiro caso eu baseie a minha crenccedila nos

perceptos de celeiro vermelho e que natildeo sei quando ao baseaacute-la em meus perceptos de

celeiro ignoro a cor do celeiro Presumivelmente a cor do celeiro natildeo eacute relevante para

que ele seja um celeiro

As abordagens rastreadoras permitem contraexemplos a K A ilustraccedilatildeo mais

conhecida de Dretske eacute o caso da zebra suponha que vocecirc estaacute num zooloacutegico em

condiccedilotildees comuns de fronte a uma jaula marcada ldquozebrardquo o animal na jaula eacute uma zebra

e vocecirc acredita que zeb o animal na jaula eacute uma zebra pois vocecirc tem perceptos visuais

de uma zebre na jaula Ocorre a vocecirc que zeb implica natildeo-mula natildeo eacute o caso que o animal

na jaula seja uma mula disfarccedilada ao inveacutes de uma zebra Vocecirc entatildeo acredita que natildeo-

mula deduzindo-a de zeb Vocecirc sabe isso Vocecirc sabe zeb uma vez que se zeb fosse falsa

vocecirc natildeo teria perceptos visuais de uma zebre na jaula ao inveacutes vocecirc teria perceptos de

uma jaula vazia ou perceptos de um oricteacuteropo ou algo parecido Vocecirc sabe que natildeo-

mula Se natildeo-mula fosse falsa vocecirc ainda teria perceptos visuais de uma zebre na jaula

(e vocecirc ainda acreditaria que zeb e ainda acreditaria que natildeo-mula deduzindo-a de zeb)

Assim vocecirc natildeo sabe que natildeo-mula Mas note que temos

a Vocecirc sabe que zeb

b Vocecirc acredita que natildeo-mula por reconhecer que zeb implica natildeo-mula

c Vocecirc natildeo sabe que natildeo-mula

Por conta de (a)-(c) temos um contraexemplo a K que implica que se (a) vocecirc sabe que

zeb e (b) vocecirc acredita que natildeo-mula por reconhecer que zeb implica natildeo-mula entatildeo

vocecirc sabe natildeo-mula contraacuterio a (c)

Tendo rejeitado K e negado que sabemos coisas como natildeo-mula Nozick

tambeacutem negou o fechamento atraveacutes da simplificaccedilatildeo Pois se alguma proposiccedilatildeo p

implica outra proposiccedilatildeo q entatildeo p eacute equivalente agrave conjunccedilatildeo p amp q de acordo com isso

dado o fechamento atraveacutes da equivalecircncia que Nozick aceita se sabemos que zeb

podemos saber a conjunccedilatildeo zeb amp natildeo-mula mas se tambeacutem aceitamos o fechamento

atraveacutes da simplificaccedilatildeo seremos capazes de saber que natildeo-mula

237

Em resposta agrave primeira versatildeo do argumento da anaacutelise do conhecimento

alguns teoacutericos (eg Luper 1984 BonJour 1987 DeRose 1995) argumentaram que K eacute

tatildeo plausiacutevel (o que Dretske reconheceu em 2005 18) que soacute deveria ser abandonado

frente a razotildees fortes muito embora natildeo haja tais razotildees

A fim de mostrar que natildeo haacute fortes razotildees para abandonar K os teoacutericos tecircm

fornecido abordagens do conhecimento que (a) lidam com as nossas intuiccedilotildees pelo menos

tatildeo bem quanto as anaacutelises rastreadoras e ainda (b) subscrevem K Uma maneira de ser

fazer isso eacute enfraquecer as anaacutelises rastreadoras de modo que saibamos as coisas que

rastreamos ou que acreditamos porque sabemos que se seguem de coisas que rastreamos

(esse tipo de opccedilatildeo foi usada contra Nozick por vaacuterios teoacutericos Roush a defende em 2005

41-51) Outra abordagem eacute a que se segue Saber que p eacute grosso modo uma questatildeo de

ter uma razatildeo R para acreditar que p que satisfaz a seguinte condiccedilatildeo (ldquoSIrdquo para indicaccedilatildeo

segura [safe indication])

SI se R fosse o caso p seria o caso

SI requer que p seja verdadeira nos mundos R proacuteximos Quando R satisfaz essa

condiccedilatildeo dizemos que R eacute um indicador seguro de que p eacute verdadeiro (Versotildees

diferentes da condiccedilatildeo de seguranccedila tecircm sido defendidas veja por exemplo Luper 1984

Sosa 1999 2003 2007 2009 Williamson 2000 e Pritchard 2007) SI eacute a contraposiccedilao

de CR embora a contraposiccedilatildeo de uma condicional subjuntiva natildeo seja equivalente agrave

original

Suponhamos sem um argumento que SI daacute conta dos casos de conhecimento

e ignoracircncia assim como intuitivamente CR daacute Por que dizer que SI subscreve K O

ponto principal eacute que se R indica seguramente que p eacute verdadeira entatildeo indica

seguramente que q eacute verdadeira quando q eacute alguma das consequecircncias de p Posto de

outro modo o ponto eacute que o seguinte raciociacutenio eacute vaacutelido (sendo uma instacircncia do

fortalecimento da consequecircncia)

1 Se R fosse o caso p seria verdadeiro (ie R indica seguramente que p)

2 p implica q

3 Assim se R fosse o caso q seria verdadeiro (ie R indica seguramente que

q)

Assim se uma pessoa S sabe que p com base em R S estaacute em posiccedilatildeo de saber que q com

base em R quando q se segue de p S estaacute tambeacutem em posiccedilatildeo de saber que q com base

na conjunccedilatildeo de R junto do fato de que p implica q Assim se S sabe que p com base em

238

R e acredita em q com base em R (em que p repousa) junto do fato que p implica q entatildeo

S sabe que q Novamente se

(a) S sabe que p (com base em R) e

(b) S acredita que q por reconhecer que p implica q (de modo que S acredita

que q com base em R em que p repousa junto do fato de que p implica q)

entatildeo

(c) S sabe que q (com base em R e o fato de que p implica q) como K requer

Para ilustrar usemos o exemplo de Dretske Tendo baseado a sua crenccedila de

que zeb em seus perceptos de zebra na jaula vocecirc sabe zeb de acordo com SI

dadas suas circunstacircncias tivesse vocecirc outros perceptos zeb seria verdadeira

Aleacutem do mais quando vocecirc acredita que natildeo-mula por primeiro acreditar que

zeb com base nos seus perceptos de zebra na jaula e entatildeo deduz natildeo-mula de

zeb vocecirc sabe natildeo-mula de acordo com SI se vocecirc tivesse esses perceptos

natildeo apenas zeb seria o caso como tambeacutem sua consequecircncia natildeo-mula

Desviemo-nos um pouco a fim de notar que algumas versotildees da abordagem

da seguranccedila natildeo preservam o fechamento (Murphy 2005 apresenta essa objeccedilatildeo contra

a versatildeo de Sosa da abordagem da seguranccedila) Por exemplo ateacute certo ponto Ernest Sosa

discutiu a seguinte versatildeo da condiccedilatildeo

Se S acreditasse que p p seria verdadeira

Isso eacute exigir que a crenccedila de uma pessoa indique seguramente a sua verdade Contudo eacute

inteiramente possiacutevel estar numa situaccedilatildeo em que a crenccedila indique seguramente a sua

verdade muito embora a condiccedilatildeo exigida natildeo seja satisfeita para algo que se siga de tal

crenccedila O ponto pode ser ilustrado atraveacutes de uma versatildeo do caso do celeiro vermelho

Suponha que (com base em meus perceptos de celeiro vermelho) acredito que celeiro

vermelho haacute um celeiro vermelho em minha frente Suponha tambeacutem que haacute de fato um

celeiro vermelho em minha frente Contudo (vocecirc adivinhou) muitos celeiros falsos foram

espalhados pela vizinhanccedila todos eles azuis e natildeo vermelhos Nos mundos proacuteximos nos

quais acredito que celeiro vermelho estou correto e portanto satisfaccedilo a condiccedilatildeo

exigida para saber celeiro vermelho que eacute a de minha crenccedila em celeiro vermelho indicar

seguramente a sua proacutepria verdade Ora celeiro vermelho implica celeiro haacute um celeiro

em minha frente Mas de acordo com a perspectiva proposta a condiccedilatildeo exigida para

saber celeiro natildeo eacute que a minha crenccedila de que celeiro vermelho indique seguramente que

celeiro eacute o caso O que eacute exigido ao inveacutes eacute que a minha crenccedila de que celeiro indique

seguramente sua proacutepria verdade Supondo que eu acreditasse que celeiro caso eu visse

239

um dos celeiros azuis falsos entatildeo a minha crenccedila de que celeiro natildeo indica seguramente

sua verdade

Retomando K falha se o conhecimento implica CR mas natildeo se o

conhecimento implica SI mas pode natildeo ser possiacutevel subscrever K meramente por

substituir CR por SI uma vez que alguma outra condiccedilatildeo para o conhecimento poderia

bloquear o fechamento Podemos subscrever o fechamento se supusermos que acreditar

que p em bases ldquosegurasrdquo eacute suficiente para saber que p mas essa suposiccedilatildeo eacute duvidosa

Do modo como entendemos a seguranccedila podemos acreditar nas coisas com bases seguras

sem as saber Um exemplo oacutebvio eacute qualquer verdade necessaacuteria porque elas satildeo o caso

em todos os mundos possiacuteveis podemos acreditar seguramente nelas por qualquer razatildeo

Como outro exemplo lembre-se do caso de celeiro vermelho discutido anteriormente a

despeito dos muitos celeiros azuis falsos na vizinhanccedila os meus perceptos de celeiro

vermelho satildeo indicadores seguros de que o objeto em minha frente eacute um celeiro e que eacute

um celeiro vermelho de modo que nenhuma justaposiccedilatildeo objetaacutevel (tal como sei que haacute

um celeiro vermelho mas natildeo sei que haacute um celeiro) ocorre embora alguns teoacutericos

insistiratildeo que nas circunstacircncias delineadas natildeo sei nem que o objeto eacute um celeiro nem

que eacute um celeiro vermelho

22 Falhas do Fechamento de acordo com a Abordagem das Alternativas Relevantes

A segunda versatildeo do argumento a partir da anaacutelise do conhecimento diz que

qualquer perspectiva das alternativas relevantes natildeo apenas as abordagens rastreadoras

estaacute em tensatildeo com K Uma anaacutelise eacute uma abordagem das alternativas relevantes quando

satisfaz duas condiccedilotildees Primeiro produz uma compreensatildeo apropriada de ldquoalternativa

relevanterdquo A abordagem de Dretske se qualifica assim uma vez que ela nos permite dizer

que uma alternativa A a p eacute relevante se e somente se

CRA fosse p falsa A poderia ser o caso

De acordo com a segunda condiccedilatildeo a anaacutelise tem de dizer que saber que p requer excluir

todas as alternativas relevantes a p mas natildeo todas as alternativas a p A abordagem de

Dretske se qualifica como tal novamente Ele diz que uma alternativa A eacute excluiacuteda com

base em R se e somente se a seguinte condiccedilatildeo eacute satisfeita

CRR se A fosse o caso R natildeo seria o caso

E de acordo com a abordagem de Dretske uma alternativa A tem de ser excluiacuteda se e

somente se A satisfaz CRA

240

Assim a abordagem rastreadora eacute uma abordagem das alternativas relevantes

Mas por que dizer que as abordagens das alternativas relevantes ao conhecimento estatildeo

em tensatildeo com K Diremos isso se como Dretske aceitarmos o seguinte princiacutepio

crucial a negaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo p eacute automaticamente uma alternativa relevante a p

(natildeo importa o quatildeo bizarra ou remota natildeo-p possa ser) embora geralmente natildeo seja uma

alternativa relevante agraves coisas que implicam p Para um teoacuterico das alternativas

relevantes esse princiacutepio sugere que podemos saber que p somente se pudermos excluir

natildeo-p mas podemos saber coisas que implicam p ainda que natildeo possamos excluir natildeo-p

o que abre a possibilidade de haver casos que violem K Pois embora a nossa

incapacidade de excluir natildeo-p nos impeccedila de saber que p ela natildeo nos impede de saber

coisas que impliquem p E jaacute temos um exemplo pronto em matildeos o caso da zebra Talvez

vocecirc natildeo possa excluir mula mas isso lhe impede de saber que natildeo-mula natildeo que saiba

zeb Esses pontos podem ser reformulados em termos da abordagem das razotildees

conclusivas Para Dretske a negaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo p eacute automaticamente uma

alternativa relevante uma vez que a condiccedilatildeo CRA eacute automaticamente satisfeita isto eacute

eacute vacuamente verdadeiro que

Fosse p falsa natildeo-p poderia ser o caso

Portanto mula eacute uma alternativa relevante a natildeo-mula Ademais vocecirc natildeo saberaacute natildeo-

mula uma vez que natildeo puder excluir mula vocecirc acredita que natildeo-mula com base em seus

perceptos de zebra na jaula mas ainda os teria caso mula fosse o caso contraacuterio a CRR

Contudo vocecirc sabe zeb a despeito de sua incapacidade de excluir mula pois fosse zeb

falsa vocecirc natildeo teria os perceptos de zebra na jaula

De acordo com a segunda versatildeo do argumento da anaacutelise do conhecimento

qualquer perspectiva das alternativas relevantes estaacute em tensatildeo com K O quatildeo persuasivo

eacute esse argumento Como reconheceu Dretske (2003) eacute de fato um ataque fraco a K uma

vez que algumas abordagens das alternativas relevantes satildeo completamente consistentes

com K Como exemplo temos apenas de adaptar a perspectiva da indicaccedilatildeo segura

tornando claro que ela eacute uma abordagem das alternativas relevantes (Luper 1984 1987c

2006)

A perspectiva da indicaccedilatildeo segura pode ser adaptada em dois passos

Primeiro dizemos que uma alternativa a p A eacute relevante se e somente se a seguinte

condiccedilatildeo eacute satisfeita

SRA Nas circunstacircncias de S A poderia ser o caso

241

Assim qualquer possibilidade que seja remota eacute automaticamente irrelevante falhando

SRA Segundo dizemos que A eacute excluiacuteda com base em R se e somente se a seguinte

condiccedilatildeo eacute satisfeita

SIR fosse R o caso A natildeo seria o caso

Esse modo de entender as alternativas relevantes manteacutem K O ponto central

eacute que se S sabe que p com base em R e eacute por isso capaz de excluir as alternativas

relevantes a p entatildeo S pode tambeacutem excluir as alternativas relevantes a q em que q eacute

algo implicado por p Se R natildeo fosse o caso as alternativas a q natildeo seriam tambeacutem

Aparentemente a abordagem das alternativas relevantes pode ser interpretada

de modo que apoie K tanto quanto de modo que natildeo apoie Assim Dretske natildeo estaacute na

melhor posiccedilatildeo ao dizer que a perspectiva das alternativas relevantes leva ldquonaturalmenterdquo

agrave falha do fechamento

23 Fechamento e Confiabilismo

De acordo com uma versatildeo do confiabilismo (defendida por Ramsey 1931 e

Armstrong 1973 dentre outros) algueacutem sabe que p se e somente se adquire (ou sustenta)

a crenccedila de que p atraveacutes de um meacutetodo confiaacutevel Estaacute o confiabilista comprometido

com K A resposta depende precisamente de como a noccedilatildeo relevante do confiabilismo eacute

entendida Se entendermos a confiabilidade como os teoacutericos do rastreamento entendem

rejeitaremos o fechamento Mas haacute outras versotildees do confiabilismo que sustentam K Por

exemplo a abordagem da indicaccedilatildeo segura eacute um tipo de confiabilismo Poderiacuteamos

tambeacutem dizer que uma crenccedila verdadeira de que p eacute confiavelmente formada se e

somente se for baseada num evento que geralmente ocorreria somente se p (ou uma

crenccedila do tipo p) fosse verdadeira Nesse sentido qualquer evento que indique

confiavelmente que p eacute verdadeira tambeacutem indicaraacute confiavelmente que as consequumlecircncias

de p satildeo verdadeiras

3 O Argumento do Natildeo-Fechamento dos Modos de Conhecimento

Dretske argumentou (2003 2005) que deveriacuteamos esperar que K falhe porque nenhum

dos modos de obter preservar e aumentar o conhecimento satildeo individualmente fechados

Dretske apresenta seu argumento na forma de uma pergunta retoacuterica ldquode que modo

242

algueacutem poderia fechar algo quando todos os modos de obtecirc-lo estendecirc-lo e preservaacute-lo

estatildeo em abertordquo (2003 113-4)

31 Modos de Conhecimento e Natildeo-Fechamento

Como exemplos de modos de obter sustentar e aumentar o conhecimento

Dretske sugeriu a percepccedilatildeo o testemunho a demonstraccedilatildeo a memoacuteria a indicaccedilatildeo e a

informaccedilatildeo Dizer que esses itens natildeo satildeo individualmente fechados eacute dizer que os

seguintes princiacutepios de fechamento para modos com ou sem qualificaccedilotildees parenteacuteticas

satildeo falsos

PC Se S percebe que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica q

entatildeo S percebe q

TC Se S recebeu o testemunho de que p e (S acredita que q porque S sabe

que) p implica q entatildeo S recebeu o testemunho de que q

OC Se S demonstrou que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica

q entatildeo S demonstrou que q

RC Se S se lembra que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica

q entatildeo S se lembra de q

IC Se R indica que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica q

entatildeo R indica que q

NC Se R carrega a informaccedilatildeo de que p e (S acredita que q porque S sabe

que) p implica q entatildeo R carrega a informaccedilatildeo de que q

E de acordo com Dretske cada um desses princiacutepios eacute falso Podemos perceber que

temos matildeos por exemplo sem perceber que haacute coisas fiacutesicas

32 Respostas a Dretske

Houve vaacuterias reacuteplicas ao argumento de Dretske contra o fechamento com base

nos modos de conhecimento

Primeiro a falha de um ou mais princiacutepios de fechamento para modos natildeo

implica que K falhe O que importa eacute se os vaacuterios modos de conhecimento discutidos por

Dretske nos deixam em posiccedilatildeo de saber as consequecircncias das coisas que sabemos Em

outras palavras a questatildeo eacute se o seguinte princiacutepio eacute verdadeiro

243

T Se ao saber que p via percepccedilatildeo testemunho demonstraccedilatildeo memoacuteria ou

algo que indique ou carregue a informaccedilatildeo de que p S acredita que q porque

p implica q entatildeo S sabe que q

Segundo os teoacutericos tecircm defendido alguns princiacutepios de fechamento para

modos tais como PC IC e NC Dretske rejeita esses trecircs princiacutepios porque pensa que a

percepccedilatildeo a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo satildeo melhores analisados em termos de razotildees

conclusivas o que mina o fechamento Mas os trecircs princiacutepios (ou algo muito proacuteximos

deles) podem ser defendidos se analisarmos a percepccedilatildeo a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo em

termos de indicaccedilatildeo segura Considere IC e NC Ambos satildeo verdadeiros se analisarmos

a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo como se segue

R indica p sse p seria verdadeiro se R fosse o caso

R carrega a informaccedilatildeo de que p sse p seria verdadeiro se R fosse o caso

Uma versatildeo de PC pode ser defendida se fizermos uso da noccedilatildeo de percepccedilatildeo do proacuteprio

Dretske (1969) Considere um cientista que estuda o comportamento de eleacutetrons atraveacutes

da observaccedilatildeo das bolhas que eles deixam para traacutes numa cacircmara de nuvens Os eleacutetrons

em si satildeo invisiacuteveis mas o cientista pode perceber que os eleacutetrons (invisiacuteveis) estatildeo se

movendo de certos modos por perceber que as bolhas (visiacuteveis) deixadas para traacutes estatildeo

dispostas de maneiras especiacuteficas O que percebemos diretamente nos coloca em posiccedilatildeo

de perceber vaacuterias coisas indiretamente Suponha pois que quando percebemos que p

direta ou indiretamente e isso nos causa a crenccedila de que q quando p implica q somos

deixados numa posiccedilatildeo de perceber q indiretamente Assim estamos corretos ao aceitar

alguma versatildeo de PC como por exemplo

SPC Se S percebe que p e isso causa em S a crenccedila de que q entatildeo S percebe

que q

4 O Argumento das Proposiccedilotildees Natildeo (Facilmente) Conheciacuteveis

Outro argumento antifechamento eacute o de que haacute alguns tipos de proposiccedilotildees que natildeo

sabemos a menos que tenhamos capacidades extraordinaacuterias embora essas proposiccedilotildees

sejam implicadas por afirmaccedilotildees mundanas cuja verdade sabemos Uma vez que isso seria

impossiacutevel caso K estivesse correto K tem de ser falso A mesma dificuldade eacute agraves vezes

discutida sob o roacutetulo de problema do conhecimento faacutecil uma vez que alguns teoacutericos

(Cohen 2002) acreditam que certas coisas satildeo difiacuteceis de conhecer no sentido de que natildeo

podem ser conhecidas por deduccedilatildeo a partir de conhecimento banal O argumento tem

244

diferentes versotildees dependendo de que proposiccedilotildees dizemos serem difiacuteceis de conhecer

De acordo com Dretske (e talvez Nozick) natildeo podemos saber facilmente que proposiccedilotildees

restritivas ou proposiccedilotildees de grande porte satildeo verdadeiras Essas proposiccedilotildees se

assemelham agraves proposiccedilotildees que Moore (1959) considerou verdadeiras com certeza e que

Wittgenstein (1969) declarou serem incognosciacuteveis (mas Wittgenstein as considerou

incognosciacuteveis com base nas duacutebias razotildees de que elas tecircm de ser verdadeiras caso

tenhamos de evitar duacutevidas) Outra possibilidade eacute que natildeo podemos facilmente saber

proposiccedilotildees loteacutericas Um caso especial do argumento das proposiccedilotildees incognosciacuteveis

comeccedila com a alegaccedilatildeo de que natildeo podemos saber a falsidade de hipoacuteteses ceacuteticas

Consideraremos essa terceira perspectiva na proacutexima seccedilatildeo

41 O Argumento das Proposiccedilotildees Restritivas

Dretske natildeo delineou claramente a classe das proposiccedilotildees a que chamou

ldquorestritivasrdquo (em 2003) ou ldquode grande porterdquo (em 2005) Alguns dos exemplos fornecidos

por ele satildeo ldquoHaacute um passadordquo ldquoHaacute objetos fiacutesicosrdquo e ldquoNatildeo estou sendo tapeado por uma

ilusatildeo engenhosardquo Ele parecia pensar que essas proposiccedilotildees tecircm uma propriedade a que

podemos chamar ldquoesquividaderdquo em que p eacute esquiva para mim se e somente se a falsidade

de p natildeo mudaria minhas experiecircncias Mas ser restritivo natildeo coincide com ser esquivo

Se natildeo houvesse objetos fiacutesicos as minhas experiecircncias seriam dramaticamente alteradas

uma vez que eu natildeo existiria Assim algumas proposiccedilotildees restritivas natildeo satildeo esquivas Eacute

difiacutecil dizer poreacutem se todas as afirmaccedilotildees esquivas satildeo restritivas por causa da

maleabilidade do termo ldquorestritivordquo Natildeo-mula eacute esquiva mas seraacute restritiva

Natildeo podemos saber proposiccedilotildees restritivas Se natildeo e se sabemos coisas que

as implicam Drestke pensou tivesse apoio adicional para a sua abordagem das razotildees

conclusivas supondo como ele fez que a sua abordagem exclui o conhecimento de

proposiccedilotildees restritivas (embora permita o conhecimento de coisas que as implicam)

Contudo essa suposiccedilatildeo eacute falsa (Hawthorne 2005 Luper 2006) Temos razatildeo conclusiva

para acreditar em algumas proposiccedilotildees restritivas tal como a de que haacute objetos fiacutesicos

Contudo Drestke poderia abandonar a noccedilatildeo de proposiccedilatildeo restritiva em favor da noccedilatildeo

de proposiccedilatildeo esquiva e citar em favor de sua abordagem das razotildees conclusivas e contra

K os fatos de que natildeo sabemos afirmaccedilotildees esquivas mas que podemos saber coisas que

as impliquem

245

A fim de excluir o conhecimento de proposiccedilotildees restritivasesquivas Dretske

ofereceu dois tipos de argumento aos quais podemos chamar o argumento da percepccedilatildeo

e o argumento da pseudocircularidade

O argumento da percepccedilatildeo comeccedila com as afirmaccedilotildees de que (a) natildeo

percebemos que afirmaccedilotildees restritivasesquivas satildeo o caso e (b) que natildeo sabemos via

percepccedilatildeo que afirmaccedilotildees restritivasesquivas satildeo o caso Uma vez que eacute difiacutecil ver como

de que modo mais poderiacuteamos saber proposiccedilotildees restritivasesquivas (a) e (b) satildeo boas

bases para se concluir que simplesmente natildeo sabemos que elas satildeo o caso

Sem duacutevida (a) e (b) tecircm uma plausibilidade consideraacutevel Natildeo obstante satildeo

controversas Para explicar a verdade de (a) e (b) Dretske contou com sua anaacutelise da

percepccedilatildeo baseada nas razotildees conclusivas Os seus criacuteticos podem citar a abordagem da

indicaccedilatildeo segura da percepccedilatildeo como base para a rejeiccedilatildeo de (a) e (b) Luper (2006) por

exemplo argumentou contra ambas principalmente com base na razatildeo de que podemos

indiretamente perceber e saber algumas afirmaccedilotildees esquivas (tal como natildeo-mula) por

perceber diretamente afirmaccedilotildees (como zeb) que as implicam

Dretske sugeriu outra razatildeo par excluir o conhecimento de afirmaccedilotildees

restritivasesquivas Ele pensa que podemos saber fatos banais (por ex tomamos cafeacute da

manhatilde) sem saber as afirmaccedilotildees restritivasesquivas implicadas por eles (por exo

passado eacute real) na medida em que tais afirmaccedilotildees restritivasesquivas satildeo verdadeiras

mas natildeo podemos inverter as coisas e empregar as primeiras como base para saber as

uacuteltimas Suponha que consideremos saber alguma afirmaccedilatildeo q inferindo-a de outra

proposiccedilatildeo p que sabemos mas que o nosso conhecimento de p depende em primeiro

lugar da verdade de q Chamemos a isso raciociacutenio pseudocircular De acordo com

Dretske o raciociacutenio pseudocircular eacute inaceitaacutevel e contudo eacute precisamente nele que

nos apoiamos ao tentar saber afirmaccedilotildees restritivasesquivas tal como a negaccedilatildeo das

hipoacuteteses ceacuteticas deduzindo-as de alegaccedilotildees comuns de conhecimento que as implicam

natildeo saberemos essas uacuteltimas para iniacutecio de conversa a menos que as primeiras sejam

verdadeiras O problema que Dretske levantou aqui foi apresentado anteriormente pelos

criacuteticos das abordagens confiabilistas mais amplas do conhecimento como Richard

Fumerton (1995 178) Jonathan Vogel (2000) a discute sobe o roacutetulo de facilitaccedilatildeo

[bootstrapping] o procedimento empregado quando eg algueacutem que natildeo tem evidecircncia

inicial sobre a confiabilidade de um medidor de gasolina vem a acreditar que p em vaacuterias

ocasiotildees diferentes porque o medidor indica que p e atraveacutes disso sabe que p de acordo

com as abordagens confiabilistas do conhecimento e entatildeo infere indutivamente que o

246

medidor eacute confiaacutevel Atraveacutes da facilitaccedilatildeo podemos passar ndash ilegitimamente de acordo

com Vogel ndash de crenccedilas formadas por um processo confiaacutevel ao conhecimento de que

aquelas crenccedilas foram obtidas por um processo confiaacutevel Algueacutem pode saber que p

usando um medidor somente se o medidor for confiaacutevel por conseguinte concluir que

ele eacute confiaacutevel com base somente em seus registros envolve raciociacutenio pseudocircular

Haacute muito se tem objetado contra alegaccedilotildees de conhecimento cuja verdade

depende de um fato que natildeo tenha sido estabelecido especialmente se esse fato eacute

meramente tomado por garantido Eacute tambeacutem comum rejeitar qualquer alegaccedilatildeo de

conhecimento cujo pedigree cheire a circularidade Ambas as preocupaccedilotildees surgem

quando alegamos saber que uma proposiccedilatildeo q eacute verdadeira com base nela ser implicada

por uma segunda proposiccedilatildeo p muito embora a verdade de q tenha sido tomada por

garantida para se saber que p eacute verdadeira Muitos teoacutericos rejeitaratildeo o raciociacutenio

pseudocircular precisamente por essa razatildeo tradicional Dretske natildeo partilha da primeira

preocupaccedilatildeo mas levantou a segunda a do raciociacutenio pseudocircular Haacute contudo um

crescente nuacutemero de trabalhos que rompe com a tradiccedilatildeo e defende algumas formas de

circularidade epistecircmica (esse trabalho eacute fortemente criticado por sua vez na medida em

que estaacute aberto a versotildees das objeccedilotildees tradicionais) Max Black (1949) e Nelson

Goodman (1955) satildeo exemplos iniciais outros incluem Van Cleve (1979 e 2003) Luper

(2004) Papineau (1992) e Alston (1993) O proacuteprio Dretske rompe com a tradiccedilatildeo ao

escrever sob a flacircmula do ldquoexternismordquo Ele explicitamente disse que a maior parte se

natildeo todas as nossas alegaccedilotildees mundanas de conhecimento dependem de fatos que natildeo

estabelecemos Na verdade ele citou isso como uma virtude da sua teoria das razotildees

conclusivas Contudo nada na natureza da abordagem das razotildees conclusivas exclui o

nosso conhecimento das proposiccedilotildees restritivas usar o raciociacutenio pseudocircular o que

deixa suas recomendaccedilotildees misteriosas Um conjunto de experiecircncias de potes pode

constituir uma razatildeo conclusiva para se acreditar em pote um pote de biscoitos estaacute em

minha frente Se eu entatildeo acredito que objetos haacute objetos fiacutesicos porque eacute implicada por

pote tenho uma razatildeo conclusiva para acreditar em objetos uma proposiccedilatildeo restritiva

(Se objetos fosse falsa pote tambeacutem seria e eu natildeo teria as experiecircncias de pote)

Dretske poderia ter lanccedilado matildeo da perspectiva que a abordagem das razotildees

conclusivas exclui o conhecimento de afirmaccedilotildees esquivas como opostas agraves restritivas

atraveacutes do raciociacutenio pseudocircular pois carecemos de razotildees conclusivas para

afirmaccedilotildees esquivas natildeo importa que tipo de raciociacutenio empreguemos Mas isso natildeo

coloca a abordagem de Dretske em perigo no que diz respeito ao raciociacutenio

247

pseudocircular E mesmo essa posiccedilatildeo mais restrita pode ser desafiada (adaptando-se um

ataque contra Nozick em Shatz 1987) Poderiacuteamos insistir que a proacutepria p eacute uma razatildeo

conclusiva par se acreditar que q quando sabemos que p e que p implica q Afinal

supondo que p implique q se q fosse falsa tambeacutem o seria p De acordo com essa

estrateacutegia temos um argumento adicional a favor de K se S sabe que p (com base em

alguma razatildeo conclusiva R) e S acredita que q porque S sabe que p implica q S tem uma

razatildeo conclusiva para acreditar que q a saber p (ao inveacutes de R) e por conseguinte S

sabe que q

Outra duacutevida sobre conhecer afirmaccedilotildees esquivas dedutivamente via

afirmaccedilotildees mundanas eacute que essa manobra eacute ampliativa de maneira improacutepria Cohen diz

que saber que a mesa eacute vermelha natildeo nos coloca em posiccedilatildeo de saber ldquoNatildeo sou um ceacuterebro

numa cuba sendo enganado para acreditar que a mesa eacute vermelhardquo nem ldquonatildeo eacute o caso que

a mesa seja branca iluminada por luzes vermelhasrdquo (2002 313) Na transiccedilatildeo da primeira

agrave uacuteltima o nosso conhecimento parece ter sido ampliado de maneira improacutepria Essa

preocupaccedilatildeo pode ser devido pelo menos em grande parte agrave falta de precisatildeo na

aplicaccedilatildeo do acarretamento ou implicaccedilatildeo dedutiva (Klein 2004) Seja vermelho a

proposiccedilatildeo de que a mesa eacute vermelha branco a proposiccedilatildeo de que a mesa eacute branca e luz

a proposiccedilatildeo de que a mesa estaacute sendo iluminada por uma luz vermelha Vermelho nada

implica sobre as condiccedilotildees sob as quais a mesa eacute iluminada Em particular natildeo implica a

conjunccedilatildeo luz amp natildeo-vermelho O maacuteximo que podemos inferir eacute que a conjunccedilatildeo branco

amp luz eacute falsa e isso natildeo nos daacute qualquer informaccedilatildeo sobre as condiccedilotildees de iluminaccedilatildeo da

mesa Poder-se-ia facilmente inferir a falsidade da conjunccedilatildeo branco amp natildeo-luz

Nenhuma ampliaccedilatildeo da proposiccedilatildeo conhecida original vermelho veio agrave tona

42 O Argumento das Proposiccedilotildees Loteacutericas

Parece claro que natildeo sei que natildeo-ganho natildeo ganharei a loteria estadual esta

noite muito embora as chances de eu acertar o resultado sejam ridiculamente pequenas

Mas suponha que desejo profundamente possuir uma casa de campo de 10 milhotildees de

doacutelares na Riviera Francesa Parece plausiacutevel dizer que sei que natildeo-compro natildeo

comprarei essa casa de campo amanhatilde uma vez que careccedilo de recursos e sei a

condicional se ganho entatildeo compro ie amanhatilde comprarei a casa de campo se eu ganhar

na loteria estadual esta noite Da condicional e natildeo-compro segue-se que natildeo-ganho e

assim dado o fechamento saber a condicional e natildeo-compro me deixa em posiccedilatildeo de

248

saber natildeo-ganho Como esse raciociacutenio mostra a incognoscibilidade de afirmaccedilotildees como

natildeo-ganho mais a cognoscibilidade de afirmaccedilotildees como natildeo-compro nos deixa em

posiccedilatildeo de lanccedilar outro ataque ao fechamento

Seja uma proposiccedilatildeo loteacuterica uma proposiccedilatildeo assim como natildeo-ganho que

pode (pelo menos normalmente) ser apoiada em bases cuja probabilidade eacute bem alta mas

menor que 1 Vogel (1990 2004) e Hawthorne (2004 2005) notaram que um grande

nuacutemero de proposiccedilotildees que natildeo envolvem efetivamente loterias se assemelham a

proposiccedilotildees loteacutericas por possuiacuterem uma probabilidade proacutexima mas menor que 1 Tais

proposiccedilotildees poderiam ser descritas como loteriescas Os eventos mencionados numa

afirmaccedilatildeo podem ser subsumidos sob indefinidamente muitas classes de referecircncia e natildeo

haacute uma maneira precisa de se escolher qual dentre elas determina a probabilidade dos

eventos subsumidos Ao selecionar cuidadosamente alguma dessas classes podemos

geralmente encontrar modos de sugerir que a probabilidade de uma afirmaccedilatildeo eacute menor

do que 1 Considere por exemplo natildeo-roubado a proposiccedilatildeo de que o carro que vocecirc haacute

pouco estacionou de fronte agrave casa natildeo foi roubado selecionando-se a classe carros

vermelhos roubados de fronte agrave sua casa na uacuteltima hora podemos representar a

probabilidade estatiacutestica de natildeo-roubado como 1 Mas selecionando carros roubados nos

EUA podemos representar a probabilidade como significativamente menor que 1 Se

como as proposiccedilotildees loteacutericas as proposiccedilotildees loteriescas natildeo satildeo facilmente conhecidas

elas aumentam a pressatildeo contra o princiacutepio de fechamento uma vez que satildeo implicadas

por uma ampla gama de proposiccedilotildees mundanas que se tornam incognosciacuteveis dado o

fechamento

O quatildeo ameaccediladoras satildeo as proposiccedilotildees loteacutericas e loteriescas a K (e GK)

A questatildeo eacute um tanto controversa Haacute poreacutem muito a ser dito sobre tratar as proposiccedilotildees

loteacutericas por um lado e as proposiccedilotildees loteriescas de outro

Quanto agraves proposiccedilotildees loteacutericas vaacuterios teoacutericos sugerem que de fato natildeo

sabemos que satildeo verdadeiras porque sabecirc-las requer acreditar nelas atraveacutes de algo que

estabelece a sua verdade e noacutes (normalmente) natildeo podemos estabelecer a verdade de

proposiccedilotildees loteacutericas Haacute vaacuterios modos de entender o que se quer dizer por ldquoestabelecerrdquo

a verdade de uma afirmaccedilatildeo Dretske como vimos pensa que o conhecimento implica

ter uma razatildeo conclusiva para pensar como pensamos David Armstron (1973 187) disse

que o conhecimento implica ter um estado de crenccedila que ldquoassegurardquo a verdade Os

teoacutericos da indicaccedilatildeo segura sugerem que sabemos coisas quando acreditamos nelas por

conta de algo que seguramente indica a sua verdade E Harman e Sherman (2004 492)

249

dizem que o conhecimento requer acreditar em alguma coisa por conta de algo ldquoque

determina a verdade dessa crenccedilardquo De acordo com essas quatro perspectivas natildeo

sabemos que uma afirmaccedilatildeo eacute verdadeira quando as nossas uacutenicas bases para crer eacute que

ela eacute altamente provaacutevel Contudo a incognoscibilidade das proposiccedilotildees loteacutericas natildeo eacute

uma ameaccedila substancial ao fechamento uma vez que natildeo eacute oacutebvio que haja proposiccedilotildees

que sejam tanto conhecidas como verdadeiras quanto que impliquem proposiccedilotildees

loteacutericas Considere por exemplo a discutida anteriormente a condicional se ganhou

entatildeo comprou mais natildeo-comprou Se sei essas duas entatildeo por GK sei que natildeo-ganhou

uma proposiccedilatildeo loteacuterica Mas eacute bastante plausiacutevel negar que as sei Afinal eu poderia ter

ganhado na loteria

Considere agora as proposiccedilotildees loteriescas Natildeo podemos defender o

fechamento negando que sabemos alguma proposiccedilatildeo mundana que implica uma

proposiccedilatildeo loteriesca uma vez que eacute claro que sabemos muitas coisas que satildeo verdadeiras

que implicam proposiccedilotildees loteriescas Para defender o fechamento temos ao inveacutes de

dizer que as proposiccedilotildees loteriescas satildeo conheciacuteveis Elas diferem das proposiccedilotildees

loteacutericas genuiacutenas por poderem ser apoiadas em bases que estabelecem a sua verdade Se

baseio a minha crenccedila de que natildeo-roubado apenas em estatiacutesticas criminais natildeo saberei

se ela eacute verdadeira Mas posso ao inveacutes baseaacute-la em observaccedilotildees tais como a de ter

estacionado em minha garagem e assim por diante que sob certas circunstacircncias

estabelece que natildeo-roubado eacute o caso

5 O Argumento do Ceticismo

De acordo com Dretske e Nozick podemos dar conta do apelo do ceticismo e explicar

onde ele erra se aceitarmos as suas perspectivas do conhecimento e rejeitar K Rejeitar o

fechamento do conhecimento eacute portanto a chave para resolver o ceticismo Dada a

importacircncia do insight no problema do ceticismo eles pareciam ter uma boa razatildeo para

negar o fechamento Consideremos o caso que eles apresentam e alguns problemas com

sua aceitabilidade

51 O Ceticismo e o Anticeticismo

Dretske e Nozick se focaram numa forma de ceticismo que combina K com

a suposiccedilatildeo de que natildeo sabemos que as hipoacuteteses ceacuteticas satildeo falsas Por exemplo natildeo sei

250

que natildeo-biv natildeo sou um ceacuterebro numa cuba num planeta distante da terra sendo enganado

por cientistas alieniacutegenas Dada a forccedila dessas suposiccedilotildees os ceacuteticos argumentam que

natildeo sabemos todo o tipo de afirmaccedilotildees do senso comum que implicam a falsidade das

hipoacuteteses ceacuteticas Por exemplo uma vez que natildeo-biv eacute implicada por h estou em Santo

Antocircnio os ceacuteticos podem argumentar como se segue

(1) K eacute verdadeiro ie se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que

p implica q entatildeo S sabe que q

(2) h implica natildeo-biv

(3) Assim se sei que h e acredito que natildeo-biv porque sei que eacute implicada por

h entatildeo sei que natildeo-biv

(4) Mas natildeo sei que natildeo-biv

(5) Portanto natildeo sei que h

Dretske e Nozick estavam cientes de que esse argumento pode ser revertido

(1) K eacute verdadeiro ie se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que

p implica q entatildeo S sabe que q

(2) h implica natildeo-biv

(3) Assim se sei que h e acredito que natildeo-biv porque sei que eacute implicada por

h entatildeo sei que natildeo-biv

(4) Sei que h

(5) Portanto sei que natildeo-biv

Virar o jogo contra o ceacutetico desse modo foi o que fez mais ou menos a estrateacutegia anticeacutetica

de Moore (1959) (Tendenciosamente alguns autores chamam agora tal estrateacutegia de

dogmatismo) Contudo ao inveacutes de K Moore pressupocircs a verdade de um princiacutepio mais

forte

PK Se ao saber que p S acredita que q porque sabe que q eacute implicada por S

saber que p entatildeo S sabe que q

Ao contraacuterio de K PK subscreve o famoso argumento de Moore Moore sabe que ele

estaacute de peacute ele saber que estaacute de peacute implica que ele natildeo estaacute sonhando portanto ele sabe

(ou pelo menos estaacute em posiccedilatildeo de saber) que natildeo estaacute sonhando

52 Rastreamento e Ceticismo

De acordo com Dretske e Nozick o ceticismo eacute atraente porque os ceacuteticos

estatildeo parcialmente corretos Eles estatildeo corretos quando dizem que natildeo sabemos que as

251

hipoacuteteses ceacuteticas natildeo satildeo o caso Pois natildeo rastreio natildeo-biv se biv fosse verdadeira eu

ainda teria as experiecircncias que me levam a acreditar que biv eacute falsa Algo similar pode

ser dito sobre o anticeticismo os anticeacuteticos estatildeo corretos quando dizem que sabemos

todo o tipo de afirmaccedilotildees de senso comum que implicam a falsidade de hipoacuteteses ceacuteticas

Tendo ido longe demais poreacutem os ceacuteticos recorrem a K e argumentam que uma vez que

eu saberia que natildeo-biv caso soubesse h entatildeo natildeo sei h no fim das contas ao passo que

os anticeacuteticos agrave la Moore recorrem a K a fim de concluir que sei que natildeo-biv Mas eacute

precisamente aqui que os ceacuteticos e os anticeacuteticos estatildeo igualmente errados pois K eacute falso

Considere a posiccedilatildeo do ceacutetico Tendo aceitado a perspectiva rastreadora ndash como fazem

ao negar que sabemos que as hipoacuteteses ceacuteticas satildeo falsas ndash os ceacuteticos natildeo podem apelar

para o princiacutepio de fechamento que eacute falso de acordo com a teoria rastreadora

Rastreamos (e portanto sabemos) a verdade de alegaccedilotildees comuns de conhecimento

embora natildeo rastreamos (ou sabemos) a verdade das coisas que se seguem delas tal como

a de que hipoacuteteses ceacuteticas incompatiacuteveis satildeo falsas

Um resultado desse caso eacute que ele natildeo consegue lidar com todos os tipos de

ceticismo Haacute duas principais formas de ceticismo (e vaacuterias subcategorias) o ceticismo

do regresso (ou pirrocircnico) e o ceticismo da indiscernibilidade (cartesiano) Na melhor

das hipoacuteteses Dretske e Nozick forneceram uma maneira de lidar com o uacuteltimo

Outra preocupaccedilatildeo com a resposta de Dretske e Nozick ao ceticismo

cartesiano eacute que ela nos forccedila a abandonar K (tanto quando GK e o fechamento atraveacutes

da instanciaccedilatildeo e da simplificaccedilatildeo) Dado o apelo intuitivo desses princiacutepios alguns

teoacutericos tecircm procurado por modos alternativos de explicar o ceticismo oferecendo-os

entatildeo como superior com base em natildeo violarem K Consideraremos duas possibilidades

uma oferecida pelos defensores da teoria da indicaccedilatildeo segura e outra pelos

contextualistas

53 Indicaccedilatildeo Segura e Ceticismo

Os defensores da teoria da indicaccedilatildeo segura aceitam o ponto central da

explicaccedilatildeo que o teoacuterico do rastreamento daacute para o apelo do ceticismo mas manteacutem o

princiacutepio do fechamento Uma razatildeo pela qual o ceticismo nos tenta eacute que tendemos a

confundir CR com SI (Sosa 1999 Luper 1984 1987c 2003a) Afinal CR ndash se p fosse

falsa R natildeo seria o caso ndash se assemelha intimamente a SI ndash R seria o caso somente se p

fosse verdadeira Quando colocamos as duas juntas agraves vezes aplicamos CR e concluiacutemos

252

que natildeo sabemos que os cenaacuterios ceacuteticos natildeo satildeo o caso Entatildeo voltamos agrave abordagem

da indicaccedilatildeo segura e concordamos com os ceacuteticos quando apelam ao princiacutepio de

acarretamento que eacute mantido pela abordagem da indicaccedilatildeo segura e concluiacutemos que as

alegaccedilotildees comuns de conhecimento satildeo falsas Poreacutem como Moore afirmou os ceacuteticos

estatildeo errados quando dizem que natildeo sabemos que as hipoacuteteses ceacuteticas satildeo falsas Grosso

modo sabemos que as possibilidades ceacuteticas natildeo satildeo o caso uma vez que (dadas as nossas

circunstacircncias) satildeo remotas

O ceticismo poderia tambeacutem resultar da suposiccedilatildeo de que se um meacutetodo de

formaccedilatildeo de crenccedila M estivesse em alguma situaccedilatildeo a produzir uma crenccedila sem nos

permitir saber a verdade dessa crenccedila entatildeo natildeo pode gerar sequer conhecimento bona

fide (desse tipo de crenccedila) natildeo importa em que circunstacircncias ele eacute usado (M tem de ser

reforccedilado de algum modo com um meacutetodo suplementar ou com evidecircncias sobre as

circunstacircncias disponiacuteveis caso se granjeie conhecimento) Essa suposiccedilatildeo poderia

repousar na ideia de que qualquer crenccedila que M produza seja na melhor das hipoacuteteses

acidentalmente correta caso em algumas circunstacircncias M produza uma crenccedila falsa ou

acidentalmente correta (Luper 1987c) De acordo com essa suposiccedilatildeo podemos excluir

um meacutetodo de formaccedilatildeo de crenccedila M como uma fonte de conhecimento apenas por

esboccedilar circunstacircncias nas quais M produz uma crenccedila que eacute falsa ou acidentalmente

correta Os cenaacuterios ceacuteticos tradicionais satildeo suficientes e tambeacutem situaccedilotildees gettierescas

Os teoacutericos externistas rejeitam essa suposiccedilatildeo dizendo que M pode gerar conhecimento

quando usado em circunstacircncias sob as quais a crenccedila produzida natildeo eacute acidentalmente

correta Em circunstacircncias altamente gettierizadas M tem de nos deixar numa posiccedilatildeo

epistecircmica especialmente forte caso gere conhecimento em circunstacircncias comuns

meacutetodos menos exatos podem produzir conhecimento Os padrotildees que um meacutetodo tem

de cumprir para produzir conhecimento dependem do contexto no qual eacute usado Essa

perspectiva segundo a qual as exigecircncias para um sujeito ou agente S saiba que p variam

com o contexto de S (eg o quatildeo exato o meacutetodo de formaccedilatildeo de crenccedila de S tem de ser

para produzir conhecimento depende das circunstacircncias de S) poderia ser chamada de

contextualismo centrado no agente (ou sujeito) Tanto os teoacutericos do rastreamento quanto

os da indicaccedilatildeo segura defendem o contextualismo centrado no agente

54 Contextualismo e Ceticismo

253

Os teoacutericos que escrevem sob o roacutetulo ldquocontextualismordquo como David Lewis

(1979 1996) Stewart Cohen (1988 1999) e Keith DeRose (1995) oferecem uma maneira

relacionada de explicar o ceticismo sem negar o fechamento Por clareza poderiacuteamos

chamaacute-los de contextualistas centrados no falante (ou atribuidor) uma vez que

contrastam sua posiccedilatildeo com o contextualismo centrado no agente De acordo com os

contextualistas (centrados no falante) se eacute correto para um juiz atribuir conhecimento a

algueacutem dependeraacute do contexto desse juiz e os padrotildees para o conhecimento diferem de

contexto para contexto Quando o homem nas ruas julga o conhecimento os padrotildees

aplicaacuteveis satildeo relativamente modestos Mas um epistemoacutelogo leva a seacuterio todo o tipo de

possibilidades que satildeo ignoradas pelas pessoas comuns e por isso tecircm de aplicar padrotildees

mais severos a fim de alcanccedilar as avaliaccedilotildees corretas O que passa por conhecimento em

contextos comuns natildeo se qualifica como conhecimento em contextos em que criteacuterios

elevados se aplicam O ceticismo eacute explicado pelo fato de que a variaccedilatildeo contextual dos

padrotildees epistecircmicos eacute facilmente negligenciada Os ceacuteticos notam que no contexto

epistecircmico eacute inapropriado conceder conhecimento a algueacutem Poreacutem os ceacuteticos supotildeem ndash

falsamente ndash que aquilo que vale no contexto epistecircmico vale em todos os contextos Eles

supotildeem que uma vez que aqueles que levam o ceticismo a seacuterio tecircm de negar

conhecimento a algueacutem entatildeo deveriam negar conhecimento a despeito do contexto a

todos Poreacutem as pessoas em contextos comuns estatildeo perfeitamente corretas em afirmar

que sabem todo o tipo de coisas

Ademais o princiacutepio de fechamento estaacute correto dizem os contextualistas de

modo que tem de ser entendido como operando dentro de determinados contextos natildeo

atraveacutes de contextos Isto eacute na medida em que permanecemos dentro de um determinado

contexto sabemos as coisas que deduzimos daquilo que jaacute sabemos Mas se estou num

contexto comum e sei que estou em Santo Antocircnio natildeo posso vir a saber via deduccedilatildeo

que natildeo sou um ceacuterebro numa cuba num planeta distante jaacute que quando levo a seacuterio a

hipoacutetese ceacutetica transformo meu contexto num contexto no qual padrotildees epistecircmicos

elevados se aplicam Quando levo a seacuterio a possibilidade da cuba tenho de lidar com os

padrotildees exigentes que excluem o meu conhecimento de que natildeo sou um ceacuterebro numa

cuba Do mesmo modo esses padrotildees impendem que eu saiba que estou em Santo

Antocircnio Pensar a seacuterio sobre o conhecimento mina o nosso conhecimento

6 Fechamento e Crenccedila Racional

254

Dizer que a crenccedila justificada eacute fechada sob implicaccedilatildeo eacute dizer que algo como

um dos seguintes princiacutepios eacute correto (ou que ambos satildeo)

J Se ao acreditar justificadamente que p S acredita que q porque S sabe que

p implica q entatildeo S acredita justificadamente que q

GJ Se ao acreditar justificadamente em vaacuterias proposiccedilotildees S acredita que p

porque S sabe que elas implicam q entatildeo S acredita justificadamente que p

Contudo GJ gera paradoxos (Kyburg 1961) Para ver por que note que se as chances de

ganhar na loteria satildeo suficientemente remotas estou justificado em acreditar que o meu

bilhete o bilhete 1 natildeo eacute o premiado Estou tambeacutem justificado em acreditar que o bilhete

2 natildeo eacute o premiado e que o 3 natildeo eacute o premiado e assim por diante Contudo natildeo estou

justificado em acreditar na conjunccedilatildeo dessas proposiccedilotildees Se estivesse eu acreditaria

justificadamente que nenhum bilhete eacute o premiado Se uma proposiccedilatildeo estiver justificada

quando for bastante provaacutevel o exemplo da loteria mina GJ Natildeo importa quatildeo alta seja

a probabilidade suficiente para a justificaccedilatildeo a menos que a probabilidade seja 1 em

algumas loterias estaremos justificados em acreditar para qualquer bilhete arbitraacuterio que

ele natildeo eacute o bilhete premiado e por conseguinte por GJ estaremos justificados em

acreditar que todos os bilhetes natildeo satildeo o premiado

Ainda que rejeitemos GJ natildeo se segue que temos de rejeitar GK que diz

respeito ao fechamento do conhecimento Considere o exemplo da loteria novamente O

quatildeo justificados estamos em acreditar que o bilhete 1 natildeo eacute o premiado dependeraacute do

quatildeo provaacutevel seraacute ele natildeo ser premiado Ora a probabilidade de que o bilhete 2 natildeo seja

o premiado eacute igual agrave probabilidade de que o bilhete 1 natildeo eacute o premiado O mesmo vale

para qualquer outro bilhete Contudo considere a conjunccedilatildeo O bilhete 1 natildeo eacute o

premiado amp o bilhete 2 natildeo eacute o premiado A probabilidade dessa proposiccedilatildeo conjuntiva

eacute menor do que a probabilidade de suas conjuntas separadamente Suponha que

continuemos a adicionar conjuntas Por exemplo a proacutexima seraacute O bilhete 1 natildeo eacute o

premiado amp o bilhete 2 natildeo eacute o premiado amp o bilhete 3 natildeo eacute o premiado A cada vez

que uma nova conjunta eacute adicionada a probabilidade da proposiccedilatildeo resultante diminui

ainda mais Isso ilustra o fato de que podemos comeccedilar com uma coleccedilatildeo de proposiccedilotildees

cada uma delas excedendo o limiar da justificaccedilatildeo (seja laacute o que for que seja necessaacuterio

para que uma crenccedila conte como ldquojustificadardquo de acordo com GJ) e ao conjuntaacute-las

podemos terminar com uma proposiccedilatildeo abaixo do limiar de justificaccedilatildeo Podemos

ldquoacreditar justificadamenterdquo em cada conjunta mas natildeo na conjunccedilatildeo e portanto GJ

falha Contudo natildeo precisamos rejeitar GK por essa razatildeo Ainda que concedamos que

255

acreditamos justificadamente que O bilhete 1 natildeo eacute o premiado eacute verdadeira poderiacuteamos

negar que sabemos que essa proposiccedilatildeo seja verdadeira Poderiacuteamos assumir a posiccedilatildeo

de que se acreditamos em alguma proposiccedilatildeo p com base em sua probabilidade nada

menos do que uma probabilidade 1 seraacute suficiente para nos permitir saber que eacute

verdadeira Nesse caso GK natildeo sucumbiraacute agrave nossa objeccedilatildeo a GJ pois se a probabilidade

de duas ou mais proposiccedilotildees eacute 1 entatildeo a probabilidade de sua conjunccedilatildeo tambeacutem eacute 1

Podemos rejeitar GJ Deveriacuteamos tambeacutem rejeitar J O status desse princiacutepio

eacute muito mais controverso Alguns teoacutericos argumentam contra ele usando contraexemplos

como o caso da zebra de Dretske porque a zebra estaacute em condiccedilotildees de visatildeo satisfatoacuterias

vocecirc parece estar plenamente justificado em acreditar que zeb mas natildeo eacute tatildeo claro que

vocecirc esteja justificado em acreditar que natildeo-mula ainda que deduza essa crenccedila de zeb

Algueacutem que rejeite K com base em K sancionar o conhecimento de proposiccedilotildees

restritivas ou de grande porte (discutidas anteriormente) provavelmente rejeitaraacute J por

razotildees similares acreditar justificadamente que temos matildeos poderia parecer natildeo nos

coloca em posiccedilatildeo de acreditar justificadamente que haacute objetos fiacutesicos ainda que vejamos

que a primeira implica a uacuteltima

Uma resposta eacute que casos como o de Dretske natildeo contam contra J mas antes

contra o seguinte princiacutepio (de transmissibilidade da evidecircncia)

E Se e eacute evidecircncia para p e p implica q entatildeo e eacute evidecircncia para q

Ainda que rejeitemos esse princiacutepio natildeo se segue que a justificaccedilatildeo natildeo seja fechada sob

a implicaccedilatildeo como Peter Klein (1981) apontou Defensavelmente tudo o que eacute

necessaacuterio para o fechamento da justificaccedilatildeo eacute que quando dada toda a nossa evidecircncia

e relevante estamos justificados em acreditar que p tambeacutem temos justificaccedilatildeo suficiente

para acreditar em cada uma das consequumlecircncias de p A nossa justificaccedilatildeo para as

consequumlecircncias de p natildeo precisa ser e Ao inveacutes poderia se a proacutepria p que eacute afinal uma

crenccedila justificada E uma vez que p implica suas consequumlecircncias eacute suficiente para

justificaacute-las Aleacutem do mais qualquer boa evidecircncia que temos contra uma consequumlecircncia

de p conta contra a proacutepria p nos impossibilitando de estar justificado em acreditar que

p de modo que se estamos justificados em acreditar que p levando em conta toda nossa

evidecircncia proacute e contra natildeo teremos evidecircncias fortes contra as proposiccedilotildees implicadas

por p (Uma manobra similar poderia ser defendida contra os teoacutericos do rastreamento

quando eles negam o fechamento do conhecimento se rastreamos p e acreditamos que q

por deduzi-la de p entatildeo rastreamos q se tomamos p como nossa base para acreditar que

q) Visto desse acircngulo J parece plausiacutevel (Haacute um bibliografia substancial sobre a

256

transmissibilidade de evidecircncia e sua falha veja por exemplo Crispin Wright (1985) e

Martin Davies (1998)

Algumas observaccedilotildees finais podem ser feitas usando a distinccedilatildeo de Roderick

Firth (1978) entre justificaccedilatildeo proposicional e doxaacutestica Uma proposiccedilatildeo p tem

justificaccedilatildeo proposicional para S se e somente se dada a base que S possui p contaria

como racional Que p tenha justificaccedilatildeo proposicional para S natildeo requer que S

efetivamente baseie a sua crenccedila nessa base ou mesmo que S acredite que p Se a crenccedila

de S tem justificaccedilatildeo doxaacutestica depende das bases efetivas de S para acreditar que p se

nessas bases p contaria como racional entatildeo p possui justificaccedilatildeo doxaacutestica Considere

os seguintes princiacutepios

JD Se p estaacute doxasticamente justificada para S e p implica q entatildeo q estaacute

doxasticamente justificado para S

JP Se p estaacute proposicionalmente justificada para S e p implica q entatildeo q

estaacute proposicionalmente justificada para S

JD claramente enfrenta duas objeccedilotildees fatais Primeiro poderiacuteamos natildeo acreditar em

algumas das coisas implicadas por nossas crenccedilas Segundo podemos ter razotildees

perfeitamente respeitaacuteveis para acreditar que p e contudo natildeo vendo que p implica q

poderiacuteamos natildeo estar cientes de quaisquer bases para acreditar que q ou pior poderiacuteamos

acreditar que q por razotildees espuacuterias Contudo nenhuma dessas dificuldades ameaccedila JP

Primeiro a justificaccedilatildeo proposicional natildeo implica crenccedila Segundo S poderia estar

proposicionalmente justificado com base em p deixe ou natildeo de ver que p implica q e

ainda que S acredite que q por razotildees espuacuterias Como apoio adicional para JP poderiacuteamos

citar o fato de que se p implica q o que quer que conte contra q conta contra p

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o u t r a m a rg e mr e v i s t a d e f i l o s o f i a

Page 2: outra margem - periodicos.ufmg.br

sumaacuterio

editorial | editorial

Diversidade na Adversidade

Gabriel Almeida Assumpccedilatildeo (UFMG)

artigos | papers

A Pragmaacutetica do Discurso de Foucault

Ceciacutelia de Sousa Neves (UFMG)

Leibniz e a Criacutetica ao Espaccedilo Tota Simul Newtoniano a mocircnada como

causa imediata do movimento

Cloves Thiago Dias Freire (UFS)

A Questatildeo do Dualismo e da Linguagem em Bergson

Edvan Aragatildeo Santos (USP)

Do Niilismo agrave Experiecircncia Totalitaacuteria

Elvis de Oliveira Mendes (UFPE)

Funccedilatildeo Personalidade em Devir ndash um olhar da teoria do self

Fabio Henrique Medeiros Bogo (UFSC)

Praacuteticas de Cuidado de Si na Antiguidade

Felipe Gustavo Soares da Silva (UFPE)

Do Amor Platocircnico ao Crush a filosofia entre adolescentes ndash toacutepicos de

ensino de filosofia

Gabriel R Rocha (PUC-RS)

A Subjetividade e a Busca pela Felicidade no Pensamento de Blaise

Pascal

Jean Vargas (UFMG)

O Possiacutevel Metafoacuterico Segundo Tomaacutes De Aquino

Matheus Henrique Gomes Monteiro (UNICAMP)

De Descartes a Frege os avanccedilos epistemoloacutegicos do meacutetodo

Michelle Cardoso Montoya (UFRJ)

Dois Sentidos de Participaccedilatildeo em Platatildeo

Otacilio Luciano de Sousa Neto (UFC)

ano 4 mdash no 6 mdash 1 O S E M E S T R E D E 2 0 1 7

Sobre o Tempo uma questatildeo fundamental

Paulo Seacutergio Calvet Ribeiro Filho (PUC-RIO)

Zaratustra Metaciacutenico

Rafael Rocha da Rosa (UERJ)

A Modernidade lsquonarsquo Filosofia de Descartes a criacutetica das formas

substanciais

William Teixeira (UnB)

entrevista | interview

ldquoFechamento epistecircmicordquo de Steven Luper

Luiz H M Segundo (UFSC)

sumaacuterio

DIVERSIDADE NA ADVERSIDADE

Gabriel Almeida Assumpccedilatildeo (UFMG)

O sexto nuacutemero da Outramargem Revista de Filosofia retrata a

diversidade da produccedilatildeo acadecircmica nacional em filosofia multiplicidade essa que se daacute

tanto do ponto de vista histoacuterico quanto do ponto de vista sistemaacutetico Como resultado

temos artigos em filosofia antiga medieval moderna e contemporacircnea Os materiais

variam natildeo soacute no que tange ao periacuteodo da histoacuteria da filosofia mas tambeacutem no que diz

respeito agrave aacuterea da filosofia eacutetica metafiacutesica filosofia da linguagem epistemologia

poliacutetica e filosofia da natureza

Tambeacutem chama atenccedilatildeo o fato de que haacute contribuiccedilotildees de pesquisadores de

vaacuterios estados diferentes o que aponta para um momento de expansatildeo do perioacutedico

cuja amplitude geograacutefica e temaacutetica atinge novos niacuteveis Em um momento da histoacuteria

do Paiacutes no qual os investimentos em ciecircncia e educaccedilatildeo tecircm sido cada vez mais

escassos mostra-se de grande importacircncia continuar o esforccedilo de pesquisa e

valorizarmos a produccedilatildeo dos colegas pois eacute especialmente nos momentos de

adversidade que natildeo devemos desistir da busca do saber e da troca de conhecimentos

As situaccedilotildees de escassez e crise foram e continuaratildeo sendo fonte de inspiraccedilatildeo e

mudanccedila e com esse intuito apresentamos um panorama do que tem sido pesquisado

em vaacuterias universidades do Brasil

O artigo de Paulo S C Ribeiro Filho (PUC-RJ) ldquoSobre o tempo uma

questatildeo fundamentalrdquo traz um debate sobre um dos temas mais complexos e aporeacuteticos

da filosofia o tempo Esse enigma filosoacutefico abordado por filoacutesofos tatildeo distintos como

Aristoacuteteles Plotino e Kant eacute aqui elaborado a partir de quatro pensadores Agostinho

Borges Agamben e Heidegger Outro texto que abrange mais de um periacuteodo da histoacuteria

da filosofia eacute o de Felipe Gustavo S da Silva (UFPE) com ldquoPraacuteticas de Cuidado de si

na Antiguidaderdquo em que Foucault eacute o referencial para uma investigaccedilatildeo histoacuterico-

criacutetica do pensamento antigo especialmente Platatildeo Mais um artigo no qual a relaccedilatildeo de

Michel Foucault com os antigos se faz presente eacute ldquoZaratustra metaciacutenicordquo de Rafael R

da Rosa (UERJ) O autor discute o tema claacutessico da transvaloraccedilatildeo dos valores por

2

Nietzsche mas sob lentes foucaultianas em diaacutelogo com uma tradiccedilatildeo marginal o

cinismo

Em termos de pesquisa que envolve mais de um momento da histoacuteria da

filosofia temos ldquoDe Descartes a Frege os avanccedilos epistemoloacutegicos do meacutetodordquo escrito

por Michelle C Montoya (PPGLM-UFRJ) A contribuiccedilatildeo da autora eacute uma apreciaccedilatildeo

histoacuterica do problema do meacutetodo no pensamento moderno com a indicaccedilatildeo posterior de

como G Frege apresentou respostas mais fecundas a esse problema ainda que portando

certa ldquocontinuidaderdquo com a proposta cartesiana

No acircmbito da filosofia antiga temos dois artigos o de Gabriel R Rocha

(PUC-RS) ldquoDo amor platocircnico ao crush a filosofia entre adolescentes ndash toacutepicos de

ensino de filosofiardquo e o de Otacilio L de S Neto (UFC) ldquoDois sentidos de participaccedilatildeo

em Platatildeordquo No caso de Rocha trata-se de um esforccedilo interdisciplinar de refletir sobre o

Eros platocircnico e diferenccedilas e semelhanccedilas com maneiras contemporacircneas de lidar com a

vida afetiva e o desejo com ecircnfase na giacuteria crush usada por jovens e adolescentes

recorrendo a teoacutericos como Z Bauman A MacIntyre e E Cassirer O texto de Neto

por sua vez consiste em rigorosa exegese de trechos do Parmecircnides e do Feacutedon

platocircnico diferenciando duas nuances do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo em Platatildeo Essa

retomada de um problema claacutessico na histoacuteria da filosofia atenta para a polissemia tatildeo

recorrente em conceitos de filosofia antiga

Ainda na aacuterea da metafiacutesica mas no acircmbito da filosofia medieval cujos

estudos tecircm crescido no paiacutes temos a contribuiccedilatildeo de Matheus Monteiro (UNICAMP)

ldquoO possiacutevel metafoacuterico segundo Tomaacutes de Aquinordquo Nesse artigo o autor expotildee o

conceito de possiacutevel metafoacuterico e o problematiza de modo criacutetico para que

medievalistas possam discutir o tema ainda mais a fundo

No acircmbito da filosofia moderna haacute o artigo de William Teixeira (UnB) ldquoA

modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes a criacutetica das formas substanciaisrdquo O texto

mostra como Descartes partiu da criacutetica agrave noccedilatildeo escolaacutestica de lsquoforma substancialrsquo para

uma concepccedilatildeo mecanicista dos fenocircmenos naturais baseado em medidas e na

matemaacutetica Com essa atitude o filoacutesofo estaria proacuteximo de Bacon e Galileu portanto

inserido em um contexto moderno

Tambeacutem na filosofia moderna temos ldquoA subjetividade e a busca pela

felicidade no pensamento de Blaise Pascalrdquo artigo de Jean Vargas (UFMG) que

articula condiccedilatildeo humana e subjetividade humana tratando-se de importante reflexatildeo de

cunho antropoloacutegico agrave luz das ideias de teacutedio esquecimento de si amor-proacuteprio e

3

divertissement Cloves T D Freire (UFS) por sua vez escreveu ldquoLeibniz e a criacutetica ao

espaccedilo tota simul newtoniano a mocircnada como causa imediata do movimentordquo artigo

no qual se confronta dois grandes ldquorivaisrdquo no pensamento moderno cuja disputa pela

autoria do caacutelculo eacute famosa I Newton e G Leibniz No caso do texto de Freire Leibniz

critica a ideia de espaccedilo absoluto de Newton com base na noccedilatildeo de mocircnada e de sua

capacidade de aperceccedilatildeo e nos princiacutepios de razatildeo suficiente e identidade dos

indiscerniacuteveis

Ainda no acircmbito de reflexotildees acerca do eu mas sob um ponto de vista da

filosofia contemporacircnea temos ldquoFunccedilatildeo personalidade em devir ndash um olhar da teoria do

selfrdquo por Faacutebio H M Bogo (UFSC) O material em questatildeo se baseia na psicanaacutelise e

especialmente na esquizoanaacutelise de Deleuze e Guatarri Aqui natildeo se trata de uma

filosofia da subjetividade mas de uma filosofia da dissoluccedilatildeo do eu que passa a ser

pensado como funccedilatildeo e natildeo como estrutura

No acircmbito da filosofia poliacutetica temos a contribuiccedilatildeo de Elvis de O Mendes

(UFPE) intitulada ldquoDo niilismo agrave experiecircncia totalitaacuteriardquo Trata-se de um artigo focado

no pensamento de Leo Strauss e na abordagem que este faz agrave tirania como fenocircmeno

histoacuterico Jaacute ldquoA pragmaacutetica do discurso de Foucaultrdquo por Ceciacutelia de S Neves (UFMG)

o foco reside no tema da linguagem atentando para suas dimensotildees poliacuteticas chamando

atenccedilatildeo para como ler Foucault pensando na atualidade

A linguagem tambeacutem eacute tema do trabalho de Edvan Aragatildeo Santos (USP)

ldquoA questatildeo do dualismo e da linguagem em Bergsonrdquo artigo no qual se relacionam

linguagem consciecircncia e apreensatildeo da realidade Nosso nuacutemero tambeacutem contempla a

traduccedilatildeo de Epistemic closure ldquoFechamento epistecircmicordquo de Steven Luper por Luiz H

M Segundo (UFSC) que nos permitiu acesso em liacutengua portuguesa a uma importante

contribuiccedilatildeo em filosofia analiacutetica

Que esse rico panorama da pesquisa filosoacutefica dos poacutes-graduandos

brasileiros sirva de incentivo em tempos tatildeo duros Esperamos que as contribuiccedilotildees

continuem em qualidade e em quantidade

Boa leitura

Gabriel Assumpccedilatildeo

Errata No vol 3 n 5 (2ordm semestre de 2016) na entrevista com Ivan

Domingues chamada ldquoFilosofia como Resistecircnciardquo na paacutegina 3 onde estaacute ldquoDavid

4

Emanuel Carneirordquo leia-se ldquoDavid Emanuel Coelhordquo Pedimos desculpas aos leitores e

ao David pelo erro

A PRAGMAacuteTICA DO DISCURSO DE FOUCAULT

Ceciacutelia de Sousa Neves1

RESUMO Objetiva-se esclarecer o horizonte no qual surge a anaacutelise pragmaacutetica do discurso de Foucault inserindo-a no percurso da reflexatildeo filosoacutefica acerca da linguagem assim como seu significado e potencial poliacutetico Para isso nos serviremos principalmente das obras A ordem do discurso e Arqueologia do saber O artigo compotildee-se de duas partes na primeira inscreveremos Foucault no registro de duas grandes rupturas na investigaccedilatildeo acerca da linguagem a ruptura platocircnica com o pensamento preacute-socraacutetico e a ruptura operada por Saussure em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo em seguida esclareceremos o significado da anaacutelise do discurso de Foucault e como ela serve a um projeto poliacutetico emancipador Buscamos com isso reeditar o convite que esse filoacutesofo fascinante ainda hoje nos endereccedila a saber o de adentrarmos na ordem arriscada do discurso que embora tenha sido durante tanto tempo considerada pela tradiccedilatildeo como o inimigo a ser abatido natildeo apenas obedece a leis e regularidades que ainda estatildeo para serem descobertas como nos abre um mundo novo de possibilidades Palavras-chave Discurso Pragmaacutetica Foucault ABSTRACT This paper aims at clarifying the horizon in which the pragmatic analysis of Foucaults discourse arises inserting it in the course of philosophical reflection on language as well as its meaning and political potential For this we will focus on the following Foucalultrsquos works The order of discourse and Archeology of knowledge This paper is composed of two parts in the first part we will register Foucault in the two major ruptures in the investigation of language the Platonic rupture with pre-Socratic thought and the rupture operated by Saussure in relation to tradition Then we will clarify the meaning of Foucaults discourse analysis and how it serves as an emancipatory political project Thereby we intend to reissue the invitation that this fascinating philosopher still addresses to us which is the entering into the risky order of discourse that although it has been for so long considered by tradition as an enemy to be slaughtered not only obeys laws and Regularities that are yet to be discovered as well as it opens to us a new world of possibilities Keywords Discourse Pragmatic Foucault

Introduccedilatildeo

1 Doutoranda do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFMG Bolsista Capes E-mail de contato cecilianeves2003yahoocombr

6

A reflexatildeo acerca da linguagem do seu estatuto e funccedilatildeo ou posiccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao pensamento conhecimento e agrave praacutexis confunde-se com a proacutepria filosofia Natildeo

por acaso a filosofia se concretiza na ruptura iniciada por Platatildeo e sistematizada por

Aristoacuteteles com o discurso dos preacute-socraacuteticos poetas e sofistas gregos Foucault2 elabora

essa ruptura em termos da instituiccedilatildeo de uma nova e decisiva oposiccedilatildeo entre discurso

verdadeiro e falso Se para os poetas gregos o discurso verdadeiro ndash desejaacutevel e investido

pelo poder natildeo somente de anunciar mas realizar o destino e provocar a adesatildeo ndash consistia

no ato ritualizado de enunciaccedilatildeo de modo que a linguagem se identificava com a

realidade caracteriacutestica de uma perspectiva ontoloacutegica da linguagem a partir de Platatildeo

um discurso verdadeiro diz respeito agrave justeza ou exata aplicaccedilatildeo dos nomes ou seja

desloca-se para o enunciado o qual tem o papel de traduzir (ou intermediar por meio de

signos) o pensamento caracterizando portanto uma perspectiva instrumental da

linguagem O movimento que funda as bases ou o mainstream da ordem do discurso

filosoacutefico ocidental ou seja que delineia nos termos foucaultianos uma ldquovontade de

saberrdquo cujas caracteriacutesticas gerais ainda hoje nos determina consiste nesta reconfiguraccedilatildeo

da relaccedilatildeo entre linguagem e realidade Assim toda a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental

pode ser lida enquanto resposta a essa racionalizaccedilatildeo do discurso operada pelo

platonismo ou seja ldquopropondo uma verdade ideal como lei do discurso e uma

racionalidade imanente como princiacutepio de seu desenvolvimentordquo3

A ideia quixotesca de que a formalizaccedilatildeo do discurso promove sua depuraccedilatildeo

do lastro do desejo e do poder da contingecircncia e relatividade tem como principal

consequecircncia a supressatildeo da realidade do discurso Esta negaccedilatildeo da realidade especiacutefica

do discurso seu afastamento da contingecircncia das praacuteticas como seu princiacutepio constituinte

como indicamos tomaraacute muitas formas na histoacuteria do pensamento e da filosofia Em

relaccedilatildeo agrave filosofia podemos falar de dois caminhos principais o primeiro e hegemocircnico

diz respeito agravequele que reforccedila essa supressatildeo atraveacutes de que Foucault denomina como

uma filosofia do idecircntico que defende uma providecircncia preacute-discursiva do sentido o

destino da racionalidade ou teleologia do devir uma histoacuteria contiacutenua o retorno

compulsivo agraves origens as totalizaccedilotildees e uma filosofia do sujeito o segundo marginal e

maldito visa desvelar a ilegitimidade e arbitrariedade dessa construccedilatildeo atraveacutes da anaacutelise

do mecanismo proacuteprio da linguagem em nome de uma filosofia da diferenccedila cuja

principal caracteriacutestica eacute o descentramento face agrave soberania do sujeito e as figuras gecircmeas

2 FOUCAULT A ordem do discurso p13 3 FOUCAULT A ordem do discurso p43

7

da antropologia e do humanismo Eacute nesta segunda via aberta pela criacutetica radical de autores

como Nietzsche Artaud e Bataille que se inscreve a anaacutelise pragmaacutetica do discurso de

Foucault Anaacutelise que por sua vez elege um ponto de partida original para a abordagem

filosoacutefica acerca da linguagem natildeo o pensamento como fez a tradiccedilatildeo nem a linguagem

como fez Saussure mas o espaccedilo contingente em que desenvolvem os acontecimentos

discursivos Foucault visa desvelaacute-los em sua pureza sem a mediaccedilatildeo de operadores de

siacutentese eou psicoloacutegicos a serviccedilo da continuidade e identidade a fim de abrir novas

potencialidades para a anaacutelise histoacuterica dos discursos tais como a descriccedilatildeo de outras

formas de regularidade e jogos de relaccedilotildees

Uma imagem singular que descreve muito bem o pensamento de Foucault eacute

a de canteiro de obras Na medida em que este pensamento se revela imperativamente

experimental e ensaiacutestico Foucault nos adverte a possibilidade de que ao final ldquoem lugar

de dar fundamento ao que jaacute existe () sejamos obrigados a continuar fora das paisagens

familiares longe das garantias a que estamos habituados em um terreno ainda natildeo

esquadrinhado e na direccedilatildeo de um final que natildeo eacute faacutecil preverrdquo4 Esta observaccedilatildeo importa

na medida em que previne o leitor e o estudioso acerca do que se deve e natildeo se deve

esperar de sua obra espere encontrar exemplos impressionantes de anaacutelises e criacuteticas

filosoacuteficas apuradas e detalhadas mas natildeo espere respostas e teorias conclusivas e

sistemaacuteticas Outra questatildeo que orientaraacute nosso exame eacute o fato de que esta filosofia da

diferenccedila eacute indissociaacutevel de um projeto poliacutetico que confia no esclarecimento como a via

privilegiada da liberdade Ao buscar esclarecer as condiccedilotildees de funcionamento

contingecircncias histoacutericas e a legalidade especiacutefica do campo em que se desenvolvem os

acontecimentos discursivos Foucault quer sobretudo ldquomostrar que o que eacute jamais foi

ou seja eacute sempre na confluecircncia dos encontros dos acasos no curso da histoacuteria fraacutegil

precaacuteria que satildeo formadas as coisas que nos datildeo a impressatildeo de serem as mais

evidentesrdquo5

1 As duas rupturas Platatildeo e Saussure

O texto seminal que inaugura a reflexatildeo filosoacutefica acerca da linguagem eacute o

diaacutelogo platocircnico chamado Craacutetilo Aqui se formula o problema nuclear que serviraacute de

eixo em torno do qual o pensamento sobre a linguagem se desenvolveraacute Trata-se de

4 FOUCAULT A arqueologia do saber p44 5 FOUCAULT Estruturalismo e poacutes-estruturalismo p 325

8

justificar racionalmente em que consiste a ldquoexata aplicaccedilatildeo dos nomesrdquo ou a ldquojusteza dos

nomesrdquo em outras palavras busca-se esclarecer qual eacute o fundamento da relaccedilatildeo entre

signo e referente nome e objeto forma e conteuacutedo ou ainda entre as palavras e as coisas

O que estaacute em jogo nesse problema eacute a proacutepria possibilidade do conhecimento verdadeiro

O diaacutelogo consiste na investigaccedilatildeo de Soacutecrates das teses opostas de Hermoacutegenes para

quem a origem e natureza das denominaccedilotildees satildeo puramente convencionais e Craacutetilo para

quem cada coisa tem por natureza um nome apropriado

Face ao relativismo da tese de Hermoacutegenes ndash segundo a qual se a verdade eacute o

que parece a cada um natildeo apenas toda designaccedilatildeo estaacute correta como natildeo haacute diferenccedila

entre verdadeiro e falso viacutecio e virtude ou razatildeo e loucura ndash Soacutecrates afirma um dos

pressupostos baacutesicos da doutrina platocircnica a saber que as coisas e suas accedilotildees (inclusive

o ato de falar e nomear) possuem uma ldquoessecircncia permanenterdquo6 isto eacute uma existecircncia

natural e transcendente que funciona como criteacuterio de verdade da coisa e de sua maneira

de ser Assim o nome ldquoeacute a imitaccedilatildeo vocal da coisa imitadardquo7 de modo que nomear

corretamente implica exprimir com signos a ideia fundamental da coisa Nesse sentido

como afirma Soacutecrates Craacutetilo tem razatildeo pois os nomes derivam da natureza das coisas e

bem aplicados revelam o caraacuteter o modo de ser ou a natureza proacutepria de algo Mas Craacutetilo

erra ao explicar em que consiste a atribuiccedilatildeo dos nomes agraves coisas Isso porque o criteacuterio

para a correccedilatildeo da imagem ou imitaccedilatildeo natildeo estaacute no fato de ela ser exatamente igual agrave

coisa designada como o quer Craacutetilo ou seja natildeo eacute possiacutevel identificar nome e coisa

pois a princiacutepio uma imagem natildeo possui a mesma propriedade dos originais e se possuiacutesse

seria mera duplicaccedilatildeo logo seria impossiacutevel distinguir uma da outra Portanto para o

nome ser bem formado eacute preciso apenas que ele contenha a imagem fundamental de cada

coisa razatildeo pela qual pode variar as letras

A tese de Craacutetilo ao afirmar que um nome imita perfeitamente a coisa

simplesmente por ser nome defende que atraveacutes do nome eu conheccedilo a coisa assim como

conhecendo as coisas descobrimos seu nome O problema eacute que se por um lado os nomes

dizem a verdade acerca da coisa que designam de modo que para atribuir o nome eacute

preciso conhecer as coisas por outro lado para conhecer as coisas eacute preciso jaacute deter os

nomes ao menos os nomes primitivos A questatildeo que coloca a tese de Craacutetilo em apuros

concerne agrave origem mesma da linguagem ou seja como os primeiros legisladores

apreenderam e designaram as coisas se os nomes primitivos necessaacuterios para isso natildeo

6 PLATAtildeO Craacutetilo 386 e 7 PLATAtildeO Craacutetilo 423 b

9

tinham sido fixados e se para fixar os nomes eacute preciso apreender as coisas Para resolver

essa aporia da origem da linguagem a qual Soacutecrates conduziu a tese de Craacutetilo Soacutecrates

daacute um passo aleacutem daquele que eacute dado na investigaccedilatildeo da tese de Hermoacutegenes ndash em que

se chegou agrave conclusatildeo que a designaccedilatildeo seraacute verdadeira se imita a essecircncia da coisa e

falsa se natildeo Esse passo corresponde agrave instituiccedilatildeo do criteacuterio de verdade para essa

designaccedilatildeo criteacuterio esse que natildeo se encontra na imanecircncia da linguagem mas seraacute situado

em um registro ontologicamente independente da experiecircncia concreta dos indiviacuteduos

Portanto eacute um criteacuterio transcendente que autoriza e fundamenta a ligaccedilatildeo entre signo e o

referente entre nome e o objeto forma e conteuacutedo as palavras e as coisas O modo mais

natural seguro e belo de conhecer algo eacute partindo de sua proacutepria verdade natildeo de suas

imagens secundaacuterias Ou seja ldquonatildeo eacute por meio de seus nomes que devemos procurar

conhecer ou estudar as coisas mas de preferecircncia por meio delas proacutepriasrdquo8 Eacute a partir

dessa verdade intelectual que vamos avaliar a representaccedilatildeo da verdade por suas imagens

(nomes) natildeo o inverso

A principal consequecircncia desse diaacutelogo razatildeo pela qual esta obra inaugura a

reflexatildeo filosoacutefica sobre a linguagem estaacute na reduccedilatildeo do discurso agrave condiccedilatildeo de mero

suporte entre pensar e falar simples instrumento de traduccedilatildeo do pensamento A partir de

Platatildeo torna-se lugar comum a pressuposiccedilatildeo de um horizonte de significaccedilatildeo contiacutenua

de sentido ou seja anterior ao uso dos nomes existe uma verdade absoluta e necessaacuteria

em relaccedilatildeo a qual ao discurso soacute cabe encadeaacute-la refleti-la desdobrar seu sentido do

interior ao exterior A linguagem serve como um instrumento para compartilhar

informaccedilotildees e distinguir as coisas De modo que o discurso verdadeiro e a possibilidade

de conhecimento se reduzem agrave forma correta do enunciado proposicional que nos permite

nomear ou designar as coisas ou seja ldquodizer por meio das palavras o que eacute e o que natildeo

eacuterdquo9 Digno de nota eacute o fato de que nesta passagem Platatildeo formula explicitamente pela

primeira vez o conceito de verdade como correspondecircncia isto eacute funda no ser o criteacuterio

que garante e justifica a verdade do discurso

A ideia de que haacute uma essecircncia fundamental (por exemplo uma cadeira ideal

ontologicamente independente da nossa experiecircncia) que as palavras (associadas a um

conceito intelectual) rotulam constitui como sugere Derrida o nuacutecleo metafiacutesico do

pensamento ocidental O enquadramento do discurso no esquema analiacutetico da

racionalidade (e de seu criteacuterio de verdade transcendente) eacute a resposta platocircnica agrave ldquoluta

8 PLATAtildeO Craacutetilo 439 b 9 PLATAtildeO Craacutetilo 385 b

10

contra o enfeiticcedilamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagemrdquo10 de que

falou Wittgenstein Ela tambeacutem seraacute a matriz de outras saiacutedas claacutessicas do acircmbito

movediccedilo do discurso formado pelas palavras como o cogito de Descartes o amor

intelectualis Dei de Spinoza a analiacutetica de Kant e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica de Husserl

A recusa da ideia de que a linguagem eacute um meio transparente de pensamento

se consolida na virada linguiacutestica movimento iniciado no seacuteculo XX e idealizado por

Wittgenstein Aqui localizamos a segunda ruptura em relaccedilatildeo ao pensamento da

linguagem O que estaacute em jogo neste giro linguiacutestico eacute a consideraccedilatildeo da linguagem como

paradigma isto eacute como eixo constituinte do pensamento

Se na filosofia platocircnica o criteacuterio da verdade da relaccedilatildeo de referecircncia (entre

signonome e referenteobjeto) e o que autoriza o significado ou o sentido (a dimensatildeo

semacircntica) eacute a essecircncia ou o ser pode-se dizer que haacute um niacutevel intermediaacuterio entre signo

e referente que autoriza um modo de determinaccedilatildeo do referente Portanto a questatildeo do

valor referencial do signo (ou seja de como o signo pode representar aspectos da

realidade) se daacute formula na condiccedilatildeo de que o signo deve ser representaccedilatildeo natildeo da

realidade mas uma imagem do modo de ser proacuteprio de algo Um possiacutevel esquema seria

signo ndash ideia ndash coisa

Em Saussure a preocupaccedilatildeo com a fundamentaccedilatildeo da referecircncia entre signo

e realidade (ou seja a preocupaccedilatildeo em fornecer aos signos um conteuacutedo para justificar

como eles podem representar aspectos da realidade ou como ele pode ser aplicado aos

objetos) eacute excluiacuteda Trata-se de descrever os significados e sentido dos signos (objeto do

linguista) sem se preocupar com o referente (com o que pode lhe corresponder no mundo)

mas apenas em funccedilatildeo das relaccedilotildees que os signos tecircm uns com os outros no interior da

liacutengua concebida como um sistema autocircnomo de diferenccedilas O esquema saussuriano seria

restrito ao signo ndash significadosignificante Saussure natildeo se preocupa em articular signo

e mundo pois a semacircntica da linguagem eacute autocircnoma Ao definir o signo natildeo como o que

une uma coisa e um nome mas como a uniatildeo de conceito (significado sentido) e

significante (som) Saussure diz que o conceito de algo natildeo eacute definido positivamente pelo

seu conteuacutedo (referente) ndash ou seja natildeo satildeo descriccedilotildees de objetos reais por isso natildeo tem

nada a ver com as ciecircncias naturais ndash mas negativamente atraveacutes de suas relaccedilotildees

diferenciais com os outros termos no interior do sistema simboacutelico da linguagem Isso

significa que soacute existe uma cadeira real no interior de um sistema simboacutelico que a

10 WITTGENSTEIN Investigaccedilotildees filosoacuteficas sect 109

11

diferencia de todo o resto Diferentemente da tradiccedilatildeo especialmente de Platatildeo para quem

o pensamento antecede a linguagem cabendo a essa apenas expressaacute-lo ou desdobrar um

sentido que lhe eacute anterior para Saussure e a partir da virada linguiacutestica do XX eacute a

linguagem que estrutura nossa percepccedilatildeo constroi a realidade e possibilita o

conhecimento permanecendo tudo o que estaacute fora da linguagem no domiacutenio do

inconcebiacutevel Se em Platatildeo pensamos para falar para Saussure falamos para pensar

Ao inscrever o fundamento do significado na imanecircncia da linguagem

Saussure patrocina um movimento fundamental na ruptura com o nuacutecleo metafiacutesico da

tradiccedilatildeo Poreacutem embora Saussure natildeo considere a liacutengua como traduccedilatildeo ou instrumento

do pensamento mas da comunicaccedilatildeo ao priorizar a liacutengua (forma) prescindindo da fala

(evento) pode-se dizer que ele manteacutem a elisatildeo da realidade do discurso na medida em

que exclui da estrutura da liacutengua a dinacircmica histoacuterica e social Eacute exatamente aqui na

necessidade de se pensar o discurso aleacutem da linguagem mas na sua verdade e realidade

proacuteprias que inscrevemos Foucault A anaacutelise do discurso de Foucault eacute original porque

toma como ponto de partida a perspectiva dos saberes e praacuteticas discursivas inscrevendo

radicalmente as ordens do discurso no plano das formas histoacutericas e contingentes A

inquietaccedilatildeo que move Foucault no caminho de uma anaacutelise filosoacutefica do discurso eacute a

ldquoinquietaccedilatildeo diante do que eacute o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada

ou escritardquo11

2 A pragmaacutetica do discurso de Foucault

Esse deslocamento da abordagem acerca da questatildeo da linguagem ndash que a

interpela natildeo a partir do seu papel coadjuvante de traduccedilatildeo do pensamento como logos

identificado com a realidade ou como sistema linguiacutestico autocircnomo mas a partir de sua

materialidade isto eacute enquanto existecircncia transitoacuteria e contingente com a qual o discurso

irrompe num ato arbitraacuterio e violento nos jogos do pensamento e da linguagem ndash eacute o que

caracteriza a singularidade da anaacutelise do discurso feita por Foucault e a razatildeo pela qual

esta se apresenta como pragmaacutetica do discurso Pois trata-se para o filoacutesofo de

acolher cada momento do discurso em sua irrupccedilatildeo de acontecimentos nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersatildeo temporal que lhe permite ser repetido sabido esquecido transformado apagado ateacute nos menores traccedilos escondido bem longe de todos os olhares na poeira dos

11 FOUCAULT A ordem do discurso p8

12

livros Natildeo eacute preciso remeter o discurso agrave longiacutenqua presenccedila da origem eacute preciso trataacute-lo no jogo de sua instacircncia12

Mas prossegue Foucault ldquoo que haacute enfim de tatildeo perigoso no fato de as

pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente Onde afinal estaacute o

perigordquo13 Por que e a serviccedilo de quais interesses a materialidade do discurso ou seja

sua realidade especiacutefica foi negada e marginalizada pela perspectiva dominante na

tradiccedilatildeo filosoacutefica O que significa o deslocamento operado por Foucault Por que essa

mudanccedila caracteriza a singularidade de sua filosofia e quais as potencialidades que abre

Essas perguntas nos conduzem ao trabalho negativo ou criacutetico da anaacutelise

pragmaacutetica do discurso de Foucault que seraacute desenvolvida nas obras A ordem do discurso

e Arqueologia do saber No livro A ordem do discurso o proacuteprio filoacutesofo postula seu

ponto de partida

Eis a hipoacutetese que gostaria de apresentar esta noite para fixar o lugar ndash ou talvez o teatro muito provisoacuterio ndash do trabalho que faccedilo suponho que em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos que tecircm por funccedilatildeo conjurar seus poderes e perigos dominar seu acontecimento aleatoacuterio esquivar sua pesada e temiacutevel materialidade14

Gostariacuteamos de chamar atenccedilatildeo para duas questotildees essenciais para a

compreensatildeo da problemaacutetica instaurada pelo toacutepico da pragmaacutetica do discurso de

Foucault em primeiro lugar a questatildeo de que em toda sociedade a produccedilatildeo e os poderes

do discurso satildeo controlados atraveacutes de procedimentos especiacuteficos em segundo lugar o

fato de que esses jogos de delimitaccedilatildeo e exclusatildeo visam em uacuteltima instacircncia banir a sua

materialidade Tratam-se de questotildees acerca da espeacutecie destes procedimentos e sobre a

razatildeo pela qual a materialidade do discurso eacute o inimigo a ser combatido em nome da

proacutepria sociabilidade ou seja por que eacute preciso suprimir a realidade do discurso

No livro a Ordem do discurso Foucault analisaraacute tais procedimentos de

controle de dominaccedilatildeo e limitaccedilatildeo dos poderes e da produccedilatildeo do discurso Cada um dos

trecircs sistemas de restriccedilatildeo identificados visa controlar uma dimensatildeo do discurso o

primeiro grupo exerce sobre o este uma coerccedilatildeo exterior que visa limitar seus poderes

operando atraveacutes de trecircs princiacutepios a saber a interdiccedilatildeo (qualquer pessoa natildeo pode dizer

qualquer coisa em qualquer circunstacircncia) a separaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo (cesura entre a loucura

12 FOUCAULT A arqueologia do saber p28 13 FOUCAULT A ordem do discurso p8 14 FOUCAULT A ordem do discurso p8-9

13

e a razatildeo) e a oposiccedilatildeo do verdadeiro e do falso (a questatildeo da vontade de verdade) o

segundo grupo configura dispositivos que do interior do proacuteprio discurso visam

estabilizar a aleatoriedade de sua apariccedilatildeo satildeo eles o princiacutepio do comentaacuterio (limita o

acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repeticcedilatildeo e do

mesmo) o princiacutepio do autor (limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que

teria a forma da individualidade e do eu) e princiacutepio da organizaccedilatildeo das disciplinas (limita

o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualizaccedilatildeo

permanente das regras) o uacuteltimo conjunto de jogos de coerccedilatildeo tem como objetivo

selecionar os sujeitos que falam por meio de mecanismos que podem ser designados como

ritual (define o conjunto de signos papeis gestos circunstacircncias nas quais o discurso eacute

proferido) sociedade de discurso (visa conservar a produccedilatildeo dos discursos fazendo-os

circular num espaccedilo fechado) doutrinas (visa a manutenccedilatildeo de um discurso atraveacutes da

ortodoxia) e educaccedilatildeo (seleciona e distribui os discursos para puacuteblicos determinados)

Tais princiacutepios de rarefaccedilatildeo do discurso respondem a trecircs criteacuterios fundamentais satildeo

arbitraacuterios e histoacutericos ieacute satildeo contingentes e modificaacuteveis apoiam-se sobre um suporte

institucional ou seja satildeo reforccedilados por uma espessura de praacuteticas e reconduzidos pelo

modo como o saber eacute aplicado valorizado e distribuiacutedo em uma sociedade por isso

exercem-se sob pressatildeo e violecircncia assim como desempenham um poder coercitivo sobre

os outros discursos

Esses jogos de limitaccedilotildees e exclusotildees ressoam na filosofia a partir de um

conjunto de temas que contribuem para justificaacute-los e reforccedilaacute-los a despeito da aparente

ldquologofiliardquo que caracteriza a tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental Os temas dizem respeito agrave

filosofia do sujeito fundante (que postula um sujeito metafiacutesico que funda o horizonte de

significaccedilatildeo um fundamento uacuteltimo do qual se deduz todas as proposiccedilotildees e que tem no

cogito cartesiano uma de suas formulaccedilotildees mais contundentes) o tema da experiecircncia

originaacuteria (que traduz um conjunto de significaccedilotildees ou representaccedilotildees anteriores que jaacute

dispotildeem o mundo para noacutes a qual tambeacutem podemos remeter a Descartes e aos princiacutepios

a priori da razatildeo de Kant) e o tema da mediaccedilatildeo universal (que encontra um logos em

todas as coisas e acontecimentos transformando a realidade em discurso isto eacute a filosofia

da histoacuteria hegeliana)

Analogamente na obra Arqueologia do saber Foucault direciona sua anaacutelise

para todo um ldquojogo de noccedilotildees que diversificam cada uma agrave sua maneira o tema da

14

continuidaderdquo15 a noccedilatildeo de tradiccedilatildeo de influecircncia desenvolvimento e evoluccedilatildeo

mentalidade e espiacuterito recortes e agrupamentos familiares e por fim a ficccedilatildeo da unidade

do livro e da obra Estas assim como os princiacutepios de coerccedilatildeo do discurso analisados em

A ordem do discurso tambeacutem cumprem a funccedilatildeo precisa de enquadrar o discurso em uma

histoacuteria contiacutenua progressiva e teleoloacutegica da racionalidade controlar a dispersatildeo e

remeter a relatividade a um fundo de permanecircncia a um uacutenico e mesmo princiacutepio de

organizaccedilatildeo e coerecircncia Em suma todos esses recursos visam conjurar a ameaccedila e o

perigo da abertura e da materialidade do discurso sua irrupccedilatildeo contingencial e

descontiacutenua que se daacute no campo das praacuteticas em nome de unidades ou conjuntos

discursivos nos quais todos os enunciados se desdobram dedutivamente a partir de um

uacutenico nuacutecleo ou princiacutepio unificador

O objetivo de ambas as anaacutelises promovidas por Foucault eacute desmistificar a

autoevidecircncia destes temas e noccedilotildees com a qual eles se impotildeem e se furtam a

questionamentos a fim de liberar os problemas que atravessam essas ldquocontinuidades

irrefletidas pelas quais se organizam de antematildeo os discursos que se pretende analisarrdquo16

Na esteira da criacutetica nietzschiana da linguagem que desvelou por traacutes da fixidez da

linguagem uma dinacircmica de luta por precedecircncia e poder entre quanta de forccedilas Foucault

recoloca o questionamento acerca destas

formas preacutevias de continuidade todas essas siacutenteses que natildeo problematizamos e que deixamos valer de pleno eacute preciso pois mantecirc-las em suspenso Natildeo se trata eacute claro de recusaacute-las definitivamente mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos mostrar que elas natildeo se justificam por si mesmas que satildeo sempre o efeito de uma construccedilatildeo cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas definir em que condiccedilotildees e em vista de que anaacutelises algumas satildeo legiacutetimas indicar as que de qualquer forma natildeo podem mais ser admitidas17

Em suma trata-se de suspender provisoriamente (procedimento semelhante agrave

duacutevida cartesiana ou a suspensatildeo fenomenoloacutegica) a validade destas siacutenteses com as quais

operamos organizamos e articulamos ateacute agora automaticamente nossos discursos

Foucault mostra que longe de serem o que se acreditava que fossem agrave primeira vista elas

ldquoexigem uma teoria e que essa teoria natildeo pode ser elaborada sem que apareccedila em sua

pureza natildeo sinteacutetica o campo dos fatos do discurso a partir do qual satildeo construiacutedasrdquo18

15 FOUCAULT A arqueologia do saber p23 16 FOUCAULT A arqueologia do saber p27 17 FOUCAULT A arqueologia do saber p28 18 FOUCAULT A arqueologia do saber p29

15

O que autoriza a criacutetica dessas siacutenteses inteiramente formadas eacute sua remissatildeo

ao campo dos ldquofatos de discursordquo isto eacute ao pano de fundo histoacuterico e contingencial dos

acontecimentos ou praacuteticas discursivas no qual essas unidades emergem elas mesmas

como fatos a serem analisados ao lado de outros A intenccedilatildeo de Foucault por traacutes dessa

reduccedilatildeo eacute testar ndash no acircmbito do discurso eixo sobre o qual gravita seu pensamento na

deacutecada de 60 ndash um meacutetodo de anaacutelise histoacuterica isento de qualquer antropologismo e

humanismo portanto livre das teleologias e totalizaccedilotildees Por isso a anaacutelise do discurso

opera essa reduccedilatildeo pragmaacutetica desses grandes conjuntos enunciativos que se apresentam

como unidades autoacutectones e universalmente reconheciacuteveis assim como dos jogos de

noccedilotildees (categorias reflexivas princiacutepios de classificaccedilatildeo regras normativas) que os

constituem agrave dinacircmica especiacutefica do campo dos fatos do discurso em que eles surgem e

se constroem a partir de relaccedilotildees complexas com outros fatos

Uma vez suspensos esses princiacutepios formas e temas que controlam os

discursos em uma sociedade todo um domiacutenio encontra-se liberado Este domiacutenio eacute

constituiacutedo pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (falados ou escritos) em sua

dispersatildeo de acontecimentos e na instacircncia proacutepria de cada um A anaacutelise do discurso de

Foucault desemboca na descoberta de uma populaccedilatildeo de acontecimentos no espaccedilo do

discurso em geral Esse registro eacute anaacutelogo ao que Foucault designa como ldquoepistemerdquo na

obra As palavras e as coisas de forma que assim como esta ele funciona como um ldquoa

priori histoacutericordquo Este eacute precisamente o solo do qual parte a pragmaacutetica discursiva de

Foucault concebida enquanto o ldquoprojeto de uma descriccedilatildeo dos acontecimentos

discursivos como horizonte para a busca das unidades que aiacute se formamrdquo19 Portanto a

anaacutelise do discurso natildeo mais se pautaraacute na remissatildeo do discurso a um conjunto de

significaccedilotildees anteriores que ao discurso cabe explicitar mas na remissatildeo a sua proacutepria

materialidade anterior agrave formalizaccedilatildeo A questatildeo a ser respondida natildeo eacute mais ldquoo que se

dizia no que estava ditordquo e sim ldquoque singular existecircncia eacute esta que vem agrave tona no que se

diz e em nenhuma outra parterdquo20

Poreacutem Foucault natildeo visa apenas liberar a instacircncia do acontecimento

enunciativo da liacutengua e do pensamento assim como de todos os grupamentos

considerados como unidades naturais imediatas e universais O trabalho natildeo se esgota no

seu papel negativo ou criacutetico Como indicamos a suspensatildeo da validade ldquoautoevidenterdquo

desses conjuntos eacute apenas provisoacuteria longe de ser uma denegaccedilatildeo dogmaacutetica trata-se de

19 FOUCAULT A arqueologia do saber p30 20 FOUCAULT A arqueologia do saber p31

16

desfazecirc-los para posteriormente ldquosaber se podemos recompocirc-los legitimamenterdquo

Foucault pretende lanccedilar as bases teoacutericas de um novo meacutetodo de anaacutelise histoacuterica cuja

face positiva e afirmativa fica patente na recomendaccedilatildeo que nos faz por questotildees de

meacutetodo da necessidade de se adotar algumas disposiccedilotildees procedimentos e noccedilotildees do

pensamento que embora incocircmodos porque pouco familiares satildeo potencialmente

reveladores de outras formas de regularidade jogos de relaccedilotildees e unidades

Primeiramente deve-se adotar um princiacutepio de inversatildeo que significa

reconhecer nas figuras e formas nas quais a tradiccedilatildeo situou a fonte e o princiacutepio de

desenvolvimento dos discursos ndash como o princiacutepio do autor disciplina comentaacuterio

unidade da obra etc ndash jogos de coerccedilatildeo estrateacutegias artificiais de controle do discurso e

exorcismo da sua materialidade Tais jogos adverte Foucault devem ser analisados eles

mesmos enquanto fatos do discurso

Em segundo lugar a adoccedilatildeo de um princiacutepio de descontinuidade diz respeito

agrave decisatildeo deliberada segundo a qual ldquoos discursos devem ser tratados como praacuteticas

descontiacutenuas que se cruzam por vezes mas tambeacutem se ignoram ou se excluemrdquo21 Nas

palavras de Foucault ldquodecidi-me a natildeo negligenciar nenhuma forma de descontinuidade

de corte limiar ou de limite Decidi-me a descrever enunciados no campo do discurso e

as relaccedilotildees de que satildeo suscetiacuteveisrdquo22 Esta disposiccedilatildeo metodoloacutegica possibilita a criacutetica da

vontade de verdade que mascara sob a necessidade da forma a origem arbitraacuteria

convencionada e contingente a saturaccedilatildeo de desejo e poder indissociaacuteveis do discurso

bem como ratifica a rejeiccedilatildeo da tentaccedilatildeo habitual de querer reencontrar por baixo daqueles

sistemas de rarefaccedilatildeo ou por traacutes de todas as formas e acontecimentos da realidade um

grande discurso contiacutenuo ilimitado e silencioso que se deveria articular ou pensar Outro

aspecto fundamental da noccedilatildeo de descontinuidade eacute a possibilidade de romper com a

compulsiva remissatildeo do discurso a uma origem secreta e originaacuteria a um ponto

indefinidamente recuado e portanto inalcanccedilaacutevel Pois eacute precisamente esse expediente

proacuteprio das tradicionais filosofias da histoacuteria que torna impossiacutevel assinalar na ordem

do discurso a irrupccedilatildeo de um acontecimento verdadeiro no ldquojogo de sua instacircnciardquo

considerando-se sua aleatoriedade materialidade e singularidade Ao situar a

descontinuidade no fato do enunciado no ato de sua irrupccedilatildeo histoacuterica ou de sua

irredutiacutevel emergecircncia Foucault restitui ao enunciado sua singularidade de

acontecimento e tambeacutem restaura a noccedilatildeo de descontinuidade como um dos elementos

21 FOUCAULT A ordem do discurso p50 22 FOUCAULT A arqueologia do saber p35

17

fundamentais da nova anaacutelise histoacuterica advogada pelo filoacutesofo A descontinuidade deixa

de ser considerada como ldquoo estigma da dispersatildeo temporal que o historiador se

encarregava de suprimir da histoacuteriardquo a fatalidade e o fracasso da leitura histoacuterica como

compreendia a histoacuteria tradicional para se tornar na perspectiva da ldquohistoacuteria novardquo o

elemento positivo fundamental da anaacutelise histoacuterica um conceito operatoacuterio integrado ao

discurso e agrave praacutetica do historiador De forma que o fato dessa mutaccedilatildeo epistemoloacutegica

natildeo ter sido suficientemente explicitada ou compreendida deve-se agrave dificuldade em se

formular uma ldquoteoria geral da descontinuidade das seacuteries dos limites das unidades das

ordens especiacuteficas das autonomias e das dependecircncias diferenciadasrdquo23 Dificuldade que

apenas se explica na medida em que manifesta uma ldquorepugnacircncia singular em pensar a

diferenccedila em descrever os afastamentos e as dispersotildees em desintegrar a forma

tranquilizadora do idecircnticordquo24 Portanto eacute o medo de pensar o outro que nos manteacutem

acorrentados a um pensamento da histoacuteria como o lugar das continuidades ininterruptas

discurso do contiacutenuo e garantia da soberania do sujeito em suma da antropologia e do

humanismo

Uma terceira disposiccedilatildeo de meacutetodo diz respeito agrave admissatildeo de um princiacutepio

de especificidade a fim de garantir a restituiccedilatildeo ao discurso da sua realidade especiacutefica a

saber seu caraacuteter de acontecimento Trata-se de esquivar-se do amparo fornecido pelo

recurso a uma providecircncia preacute-discursiva e com isso suspender a ldquosoberania do

significanterdquo25 O discurso deve ser concebido como ldquouma violecircncia que fazemos agraves

coisas como uma praacutetica que lhes impomos em todo o caso e eacute nesta praacutetica que os

acontecimentos do discurso encontram o princiacutepio de sua regularidaderdquo26

Uma quarta recomendaccedilatildeo concerne agrave adoccedilatildeo irrevogaacutevel da perspectiva da

exterioridade do discurso Foucault nos alerta que natildeo devemos passar do discurso para

seu nuacutecleo interior acircmago de um pensamento ou significaccedilatildeo anterior mas partir do

proacuteprio discurso para suas condiccedilotildees externas de possibilidade e regularidade dimensatildeo

a partir da qual eacute possiacutevel responder agrave pergunta pela sua singularidade

Aleacutem disso Foucault desloca as noccedilotildees que devem servir como princiacutepios

reguladores da anaacutelise As noccedilotildees de criaccedilatildeo unidade originalidade e significaccedilatildeo que

animaram a histoacuteria tradicional das ideias satildeo substituiacutedas ponto por ponto na nova

23 FOUCAULT A arqueologia do saber p13 24 FOUCAULT A arqueologia do saber p13-14 25 FOUCAULT A ordem do discurso p48 26 FOUCAULT A ordem do discurso p50

18

anaacutelise histoacuterica promovida por Foucault pelas noccedilotildees de acontecimento seacuterie

regularidade e condiccedilatildeo de possibilidade O postulado de um princiacutepio de agrupamento

do discurso que garanta sua unidade e originalidade criativa funcionando como princiacutepio

de sua coerecircncia e nuacutecleo de sua significaccedilatildeo eacute deslocado e substituiacutedo pela abordagem

do discurso em sua irrupccedilatildeo dispersiva como acontecimento registro onde se buscaratildeo a

partir de suas redes de contingecircncias os princiacutepios de sua regularidade e condiccedilotildees de

possibilidade As noccedilotildees de consciecircncia e continuidade (com seus problemas correlatos

ieacute da liberdade e da causalidade) assim como as noccedilotildees de signo e estrutura perdem a

centralidade em nome das noccedilotildees de seacuterie e descontinuidade Ao inveacutes de buscar

reconstituir outro discurso a palavra muda o texto invisiacutevel o sentido precedente por

traacutes do discurso Foucault orienta sua anaacutelise dos discursos pela necessidade de

compreender o enunciado na sua estreiteza e singularidade de sua situaccedilatildeo descrever as

formas de regularidades e o jogo de correlaccedilotildees com outros enunciados ldquoestabelecer as

seacuteries diversas entrecruzadas divergentes muitas vezes mas natildeo autocircnomas que

permitem circunscrever o lsquolugarrsquo do acontecimento as margens de sua contingecircncia as

condiccedilotildees de sua apariccedilatildeordquo27 Por mais efecircmero e banal um enunciado eacute um

acontecimento inesgotaacutevel paradoxal na medida em que eacute uacutenico e ao mesmo tempo

aberto agrave repeticcedilatildeo e transformaccedilatildeo

Conclusatildeo

A segunda imagem que se ajusta ao pensamento de Foucault eacute o modo como

ele se articula como uma verdadeira maacutequina de guerra A criacutetica agrave tradiccedilatildeo eacute um dos

eixos motores dessa filosofia da diferenccedila apresentando-se nesta sob muacuteltiplos registros

aspectos e com vaacuterias consequecircncias A criacutetica se dirige por exemplo ao historicismo (e

filosofias da histoacuteria) humanismos psicologismos antropologismos agrave fenomenologia e

ao estruturalismo embora a relaccedilatildeo com este seja essencialmente ambiacutegua No entanto

Foucault natildeo se encontra sozinho na tradiccedilatildeo do pensamento ele toma a via aberta por

Marx Nietzsche Artaud Bataille e de certo modo Spinoza aleacutem de resgatar vozes a

muito tempo banidas do discurso autorizado a saber o louco o monstruoso o criminoso

o irredutivelmente disperso Eacute atraveacutes desse caleidoscoacutepio de relaccedilotildees que o filoacutesofo nos

convida a acompanhaacute-lo no desafio de adentrar no universo proacuteprio do discurso para

27 FOUCAULT A ordem do discurso p53

19

pensaacute-lo em sua materialidade depuraacute-lo das marcas da identidade e da eternidade com

as quais a tradiccedilatildeo tentou impor-lhe uma ilegiacutetima estabilidade e objetividade Trata-se

portanto de abordar o discurso tal como ele eacute realmente atravessado por lutas vitoacuterias

ferimentos servidotildees dominaccedilotildees perigos e poderes que a tradiccedilatildeo jurou conjurar

atraveacutes do controle

Pode-se dizer que um dos objetivos de Foucault eacute abrir epistemologicamente

o caminho agrave criaccedilatildeo acolhendo a diferenccedila e seu potencial desestabilizador no interior da

sua filosofia Nas palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoEste tecircnue deslocamento temo

reconhecer nele como que uma pequena (e talvez odiosa) engrenagem que permite

introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso o descontiacutenuo e a materialidaderdquo28

Poreacutem o deslocamento operado por sua anaacutelise histoacuterica aqui examinada em relaccedilatildeo ao

discurso ultrapassa o domiacutenio da linguiacutestica e abre o caminho para uma filosofia de

caraacuteter eminentemente poliacutetico Na qual para concluir gostariacuteamos de inscrever a anaacutelise

pragmaacutetica do discurso do qual examinamos alguns pontos

Em Foucault a luta para produzir e defender a diferenccedila serve a um projeto

poliacutetico que vecirc no esclarecimento uma das vias privilegiadas para a conquista da

liberdade Na medida em que nossa experiecircncia individual e social eacute construiacuteda nesse

campo discursivo do qual Foucault busca apreender a lei depreende-se que eacute por meio da

libertaccedilatildeo do discurso das unidades e dos sistemas de controle e coerccedilatildeo que sobre ele se

impotildeem restringindo a aacuterea de legitimidade do discurso que eacute possiacutevel criar uma nova

realidade mais livre e condizente agrave pluralidade dos indiviacuteduos No cerne desse ativismo

filosoacutefico-poliacutetico de Foucault podemos situar a famosa frase de Wittgenstein que no

ponto 56 do Tractatus afirmou ldquoos limites de minha linguagem significam os limites de

meu mundordquo29

Um dos exemplos mais persuasivos da reaccedilatildeo extremamente violenta agrave qual

estatildeo sujeitos todos os discursos que excedem os limites prescritos pelos mecanismos de

coerccedilatildeo e exclusatildeo que atuam nas sociedades eacute a excomunhatildeo de Spinoza em 1656 pelos

judeus da Sinagoga Portuguesa de Amsterdatilde O banimento do jovem Spinoza entatildeo com

apenas 23 anos da comunidade judia revela-nos algo importante acerca do motivo pelo

qual todas as sociedades operam com tais sistemas de controle do discurso como indicou

Foucault O discurso ultrajante e blasfemo de Spinoza ao desrespeitar um dogma

fundador do judaiacutesmo deve ser punido com a expulsatildeo da comunidade porque ameaccedila

28 FOUCAULT A ordem do discurso p56 29 WITTGENSTEIN Tractatus Logico-Philosophicus p245

20

sua coesatildeo e unidade O terror que se quer comunicar por meio de semelhante condenaccedilatildeo

se baseia no medo arcaico da espeacutecie humana que durante milhares de anos associou o

banimento social agrave certeza da morte Este evento reedita tal temor e serve para alertar

todos os componentes de um grupo social qual eacute o destino dos transgressores (e seus

discursos potencialmente revolucionaacuterios) a saber o exiacutelio um dos siacutembolos primaacuterios

da morte Essa ferocidade pode ser visualizada no trecho seguinte trecho da carta

() Com a sentenccedila dos Anjos e dos Santos com o consentimento do Deus Bendito e com o consentimento de toda esta Congregaccedilatildeo diante destes santos Livros noacutes heremizamos expulsamos amaldiccediloamos e esconjuramos Baruch de Spinoza com os seiscentos e treze preceitos que estatildeo escritos neles com o Herem com que Josueacute excomungou Jericoacute com a maldiccedilatildeo com que Elias amaldiccediloou os moccedilos e com todas as maldiccedilotildees que estatildeo escritas na Lei Maldito seja de dia e maldito seja de noite maldito seja em seu deitar maldito seja em seu levantar maldito seja em seu sair e maldito seja em seu entrar () [Herem ndash anaacutetema ndash pronunciado contra Spinoza em 27 de julho de 1656]

Foucault se coloca na posiccedilatildeo de Espinosa poreacutem totalmente consciente da

razatildeo e dos mecanismos de autoproteccedilatildeo dos discursos hegemocircnicos E sua filosofia

desponta como instrumento de ativismo ou ainda a filosofia se converte ela mesma em

ativismo poliacutetico na medida em que a criacutetica filosoacutefica se dirige agrave anaacutelise de problemas

pontuais sendo sempre orientada pelo presente e irremediavelmente histoacuterica Eacute na

articulaccedilatildeo entre filosofia histoacuteria e atualidade que Foucault desloca a pergunta de Kant

pelos limites que a razatildeo deve respeitar para assegurar sua legitimidade para a pergunta

pelos limites ilegiacutetimos a serem questionados e transgredidos pois ldquoo trabalho do

intelectual eacute certamente em um sentido dizer o que existe fazendo-o aparecer como

podendo natildeo ser ou podendo natildeo ser como ele eacuterdquo30

Usando a filosofia para tensionar as verdades instituiacutedas desvelando sua

histoacuteria e como elas escondem hierarquizaccedilotildees de poder Foucault participou teoacuterica e

praticamente de movimentos vanguardistas de contestaccedilatildeo como a luta antimanicomial

(Histoacuteria da loucura) a criacutetica ao sistema prisional (Vigiar e Punir) movimento gay

(Histoacuteria da sexualidade) entre outros Portanto sua anaacutelise do discurso eacute tambeacutem uma

demanda de liberdade no campo da linguagem pois com ela Foucault quer ldquoMostrar agraves

pessoas que elas satildeo muito mais livres do que pensam que elas tomam por verdadeiro

30 FOUCAULT Estruturalismo e poacutes-estruturalismo p 325

21

por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da histoacuteria e que essa

pretensa evidecircncia pode ser criticada e destruiacutedardquo

REFEREcircNCIAS

FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural no Collegravege de France

pronunciada em 2 de dezembro de 1970 Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014

______ A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009

______ Estruturalismo e poacutes-estruturalismo (1983) In FOUCAULT Michel Ditos e

Escritos II Arqueologia das ciecircncias e histoacuteria dos sistemas de Pensamento Rio de

Janeiro Forense Universitaacuteria 2005

PLATAtildeO Craacutetilo In PLATAtildeO Teeteto-Craacutetilo Beleacutem Universidade Federal do Paraacute

1988 p 101-177

SPINOZA Benedictus de Eacutetica Belo Horizonte Autecircntica Editora 2010

WITTGENSTEIN Ludwig Investigaccedilotildees filosoacuteficas Petroacutepolis Vozes 2009

______ Tractatus Logico-Philosophicus Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo

Paulo 2001

LEIBNIZ E A CRIacuteTICA AO ESPACcedilO TOTA SIMUL NEWTONIANO A

MOcircNADA COMO CAUSA IMEDIATA DO MOVIMENTO

Cloves Thiago Dias Freire1

RESUMO Neste artigo pretendemos recompor a argumentaccedilatildeo que sustenta a criacutetica de Leibniz a noccedilatildeo de espaccedilo tota simul newtoniano com vistas a mostrar que segundo o pressuposto leibniziano a verdadeira causa imediata do movimento deve residir na noccedilatildeo verdadeira de substacircncia ou Mocircnada e natildeo como defendia Newton na noccedilatildeo de um espaccedilo totalmente semelhante e indiscerniacutevel Segundo o filoacutesofo alematildeo a noccedilatildeo de um espaccedilo que possui realidade per se implicaria na impossibilidade da correta caracterizaccedilatildeo do movimento dos corpos posto que esta noccedilatildeo violaria os princiacutepios da razatildeo suficiente e da identidade dos indiscerniacuteveis Neste sentido o fundamento do movimento natildeo estaria na existecircncia de um espaccedilo absoluto mas no registro intriacutenseco da mudanccedila e do movimento pela apercepccedilatildeo individualizada da Mocircnada Palavras-chave Newton Leibniz Espaccedilo Movimento ABSTRACT In this article we intended to recompose the argument that sustains the critic of Leibniz the notion of Newtonian space tota simul in order to show that according to the Leibnizian presupposition the real immediate cause of the movement should live in the true notion of substance or Monad and no as it defended Newton in the notion of a space totally similar and undiscernible According to the German philosopher the notion of a space that possesses reality per se would be implicated in the impossibility of the correct characterization of movement of the bodies position that this notion would violate the principles of sufficient reason and of the identity of the undiscernible In this sense the foundation of movement would not be in the existence of an absolute space but in the intrinsic registration of the change and of the movement for the individualized apperception of the Monad Keywords Newton Leibniz Space Movement

1 Consideraccedilotildees iniciais

Isaac Newton ao postular sua noccedilatildeo de espaccedilo absoluto tota simul com o

intuito de superar os entraves da noccedilatildeo cartesiana de movimento propocircs a dissociaccedilatildeo

ontoloacutegica entre espaccedilo e corpomateacuteria tornando o espaccedilo absoluto um referencial

inercial para a correta descriccedilatildeo da mecacircnica do mundo

1 Mestre em filosofia (PPGF-UFS) email Thiagodfreire1gmailcom

23

Todavia na opiniatildeo de Leibniz esta noccedilatildeo de espaccedilo demandaria

inconsistecircncias metafiacutesicas insoluacuteveis para a filosofia do movimento pois num espaccedilo

tota simul indiscerniacutevel seria impossiacutevel observar a mudanccedila de relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos

corpos o que implicaria na violaccedilatildeo dos princiacutepios da razatildeo suficiente e da identidade

dos indiscerniacuteveis O espaccedilo absoluto seria para o alematildeo apenas uma consideraccedilatildeo uacutetil

pois o registro da mudanccedila e do movimento natildeo estaria no espaccedilo propriamente dito mas

intrinsecamente na noccedilatildeo verdadeira de substacircncia ou mocircnada

Como pretendemos mostrar para Leibniz se aceitarmos a noccedilatildeo de espaccedilo

absoluto newtoniano como uma teoria consistente teremos de admitir como

consequecircncia a impossibilidade da correta designaccedilatildeo do movimento dos corpos uma

vez que num espaccedilo tota simul seria impossiacutevel determinar quando um corpo muda de

relaccedilatildeo de situaccedilatildeo com outros corpos

Esta opiniatildeo estaacute amparada em grande medida no disposto do sect 8 da

Monadologia muito provavelmente porque seraacute ali que Leibniz ao caracterizar a

natureza desta nova substacircncia ou mocircnada problematizaraacute a consequente designaccedilatildeo do

movimento questatildeo das mais fundamentais do iniacutecio da filosofia moderna

Dito isto pretendemos compreender de que forma a noccedilatildeo de substacircncia

apresentada na Monadologia e retomada na Correspondecircncia com Clarke seraacute

fundamental para compreendermos a criacutetica empreendida por Leibniz a noccedilatildeo newtoniana

de espaccedilo absoluto e por conseguinte a noccedilatildeo de movimento

Assim para recompor este debate desenvolveremos este artigo em trecircs

momentos argumentativos Primeiramente tentaremos caracterizar a noccedilatildeo de espaccedilo e

de movimento na filosofia newtoniana tendo como referecircncia os textos De gravitatione

e Principia mathematica No segundo momento analisaremos a Correspondecircncia

Leibniz-Clarke com o propoacutesito de compreender os fundamentos da criacutetica estabelecida

por Leibniz agrave noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano Por fim nos apoiando nos Princiacutepios

da filosofia ditos a Monadologia sustentaremos que para Leibniz a verdadeira

designaccedilatildeo das causas da mudanccedila e do movimento deve ser atribuiacuteda a noccedilatildeo verdadeira

de substacircncia ou Mocircnada e natildeo a existecircncia de um espaccedilo que possui realidade per se

2 Newton e o espaccedilo absoluto tota simul

Eacute possiacutevel dizer que a filosofia natural newtoniana tenha sido pensada como

uma resposta direta as inconsistecircncias do modo cartesiano de pensar a descriccedilatildeo dos

24

eventos no mundo das coisas materiais Esta assertiva pode ser corroborada por um texto

escrito ao que tudo indica entre os anos de 1664 e 1668 denominado De gravitatione et

aequipondio fluidorum2 que data da mesma eacutepoca em que Newton ainda era um estudante

no Trinity College3 Grosso modo podemos caracterizaacute-lo como uma criacutetica direta a

filosofia natural cartesiana especificamente as premissas dos Princiacutepios da filosofia

(1644)

Em De gravitatione jaacute se apresentavam a geacutenese das futuras noccedilotildees de espaccedilo

absoluto e movimento absoluto pensadas como resposta as inconsistecircncias das definiccedilotildees

cartesianas de espaccedilo e movimento Segundo Descartes a definiccedilatildeo de movimento

verdadeiro (motus proprie sumptus) seraacute expressa no famoso art 25 parte II dos

Princiacutepios escreve ele

[] o movimento eacute a translaccedilatildeo [translationem] de uma parte da mateacuteria ou de um corpo da proximidade daqueles que lhe satildeo imediatamente contiacuteguos ndash e que consideramos em repouso ndash para a proximidade de outros4

Todavia para Newton como consequecircncia desta definiccedilatildeo de movimento ao

fim do deslocamento de um determinado corpo no espaccedilo eacute impossiacutevel determinar o lugar

no qual o corpo se encontrava antes de iniciar tal movimento Isto eacute ocasionado pois o

movimento eacute referenciado aos corpos contiacuteguos e ao teacutermino de um movimento os corpos

contiacuteguos natildeo permanecem na mesma relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que se encontravam

anteriormente Na letra de Newton

Natildeo existe base alguma a partir da qual possamos no momento encontrar um lugar que existiu no passado ou dizer que tal lugar ainda pode ser descoberto na natureza Com efeito uma vez que segundo Descartes o lugar natildeo eacute outra coisa senatildeo a superfiacutecie dos corpos adjacentes ou a posiccedilatildeo entre alguns outros corpos mais distantes eacute impossiacutevel ndash conforme esta doutrina ndash que o lugar exista durante um periacuteodo de tempo mais longo do que aquele durante o qual esses corpos mantecircm as mesmas posiccedilotildees do qual o Filoacutesofo deriva a denominaccedilatildeo individual5

Ora se eacute impossiacutevel determinar o lugar ou seja o ponto (situs) do espaccedilo em

que se inicia o movimento entatildeo natildeo se pode determinar sua velocidade pois esta

2 Sobre o peso e o equiliacutebrio dos fluidos 3 O Trinity College foi fundado por Henrique VIII em 1546 como parte da Universidade de Cambridge na cidade de Cambridge Reino Unido A eacutepoca de Newton o Trinity College tinha forte influecircncia dos chamados platocircnicos de Cambridge liderados por figuras como Ralph Cudworth e Henry More 4 DESCARTES Princiacutepios da filosofia 2015 p 70 5 NEWTON O peso e o equiliacutebrio dos fluidos 1983 p 69 grifo nosso

25

depende da distacircncia percorrida por um determinado corpo no espaccedilo Logo para

Newton pode-se concluir que no universo cartesiano nada se move apesar das aparecircncias

em contraacuterio Conclusatildeo que seraacute mais bem compreendida quando do registro da seguinte

passagem em De gravitatione diz ele

Do que ficou dito se infere indubitavelmente que o movimento cartesiano natildeo eacute movimento pois natildeo tem velocidade nem definiccedilatildeo natildeo havendo tampouco espaccedilo ou distacircncia percorridos por ele Por conseguinte eacute necessaacuterio que a definiccedilatildeo de lugares e consequentemente tambeacutem dos movimentos locais seja referida a alguma coisa destituiacuteda de movimento tal como a extensatildeo sozinha ou o espaccedilo na medida em que se vecirc que este se distingue dos corpos6

Segundo Newton o grande erro da definiccedilatildeo cartesiana de movimento foi

referenciar a mudanccedila de situaccedilatildeo com relaccedilatildeo a corpos contiacuteguos todavia conforme a

citaccedilatildeo acima a correta definiccedilatildeo do movimento deveria considerar o espaccedilo enquanto

destituiacutedo de movimento e distinto dos corpos o que possibilitaria sua atuaccedilatildeo como um

referencial inercial para o movimento dos corpos Referencial que seraacute definitivamente

formalizado com a publicaccedilatildeo de seu tratado mais importante Principia mathematica

A obra Philosophiae naturalis principia Mathematica doravante

denominada Principia foi editada pela primeira vez em 1686 Neste tratado Newton

expotildee seu grande projeto de filosofia natural que tem como objetivo metodoloacutegico derivar

as causas dos eventos fiacutesicos a partir do estudo dos fenocircmenos meacutetodo sintetizado em

seu famoso postulado ldquohipotheses non fingordquo Muito provavelmente este texto lanccedila as

bases da mecacircnica claacutessica que se tornaraacute o modelo de comunicaccedilatildeo cientiacutefica nos seacuteculos

posteriores

No tratado Newton daraacute nova definiccedilatildeo agraves quantidades fiacutesicas consideradas

por ele mais desconhecidas e reafirmaraacute aquelas jaacute desenvolvidas em De gravitatione

tais como tempo espaccedilo lugar e movimento Contudo acredita ser necessaacuterio realizar a

correta distinccedilatildeo entre as quantidades absolutas e relativas verdadeiras e aparentes

matemaacuteticas e vulgares pois assevera que o leigo (vulgus) natildeo conhece essas quantidades

sob outras noccedilotildees a natildeo ser a partir de suas relaccedilotildees com os objetos tangiacuteveis

Portanto conforme o postulado newtoniano a correta compreensatildeo de sua

noccedilatildeo de espaccedilo demandaraacute dos sujeitos um processo de abstraccedilatildeo dos sentidos que possa

fazer distinguir entre o espaccedilo absoluto matemaacutetico e verdadeiro do espaccedilo relativo e

6 Ibid p 69 grifo nosso

26

vulgar Eacute o que podemos observar nas seguintes definiccedilotildees do primeiro Escoacutelio dos

Principia

II O espaccedilo absoluto [spatium absolutum] por sua natureza sem nenhuma relaccedilatildeo [relatione] com algo externo permanece sempre semelhante e imoacutevel [similare amp immobile] o relativo eacute certa medida (mesura) ou dimensatildeo [dimensio] moacutevel desse espaccedilo a qual nossos sentidos definem por sua situaccedilatildeo [situm] relativamente aos corpos e que a plebe [vulgo] emprega em vez do espaccedilo imoacutevel [] III O lugar [locus] eacute uma parte do espaccedilo que um corpo ocupa e com relaccedilatildeo ao espaccedilo eacute absoluto ou relativo Digo uma parte do espaccedilo e natildeo a situaccedilatildeo do corpo [situs corporis] ou a superficie ambiente [superficiem ambientem] Com efeito os lugares dos soacutelidos iguais satildeo sempre iguais mas as superfiacutecies satildeo quase sempre desiguais por causa da dessemelhanccedila das figuras as situaccedilotildees [situs] poreacutem natildeo tecircm propriamente falando quantidade sendo antes afecccedilotildees dos lugares [affectiones locorum] que os proacuteprios lugares7

Neste sentido Newton propotildee que o espaccedilo absoluto verdadeiro e matemaacutetico

possui natureza distinta dos corpos que o ocupam adequadamente (ou uniformemente)

permanecendo sempre semelhante e imoacutevel e o lugar eacute uma parte deste espaccedilo e natildeo eacute a

situaccedilatildeo dos corpos com relaccedilatildeo a outros corpos contiacuteguos como pensara Descartes no

famoso sect 25 dos Princiacutepios Assim as relaccedilotildees de situaccedilatildeo dos corpos no espaccedilo seratildeo

apenas afecccedilotildees dos lugares sem qualquer possibilidade de quantificaccedilatildeo

Isto posto o movimento absoluto ldquoeacute a translaccedilatildeo de um corpo e um lugar

absoluto para outro absoluto ao passo que o relativo eacute a translaccedilatildeo de um lugar relativo

para outro relativordquo8 Consequentemente o movimento relativo seria a translaccedilatildeo de um

corpo de um lugar relativo para outro

Ademais assim como as partes do tempo satildeo imutaacuteveis tambeacutem eacute a ordem

do espaccedilo uma vez que a essecircncia das partes do espaccedilo eacute ser lugar e os lugares primaacuterios

natildeo se movem Por isso para Newton a causa imediata da designaccedilatildeo da

mudanccedilamovimento deve ser relacionada ao modo vulgar de considerar o lugar e

consequentemente o movimento pois

[] como essas partes do espaccedilo natildeo podem ser vistas e distinguidas umas das outras por nossos sentidos usamos em lugar delas medidas sensiacuteveis Com efeito definimos todos os lugares [loca universa] pelas posiccedilotildees [positionibus] e distacircncias das coisas em relaccedilatildeo a um determinado corpo que consideramos imoacutevel a seguir

7 NEWTON Princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural 1983 p 8 grifo nosso 8 Ibid p 9

27

tambeacutem calculamos todos os movimentos relativamente a esses lugares enquanto concebemos os corpos como transferidos destes9

Neste sentido para Newton por sermos incapazes de pelos sentidos ver e

distinguir as partes das coisas imoacuteveis matemaacutetica verdadeira e absoluta ou seja devido

a nossa incapacidade de distinguir o verdadeiro espaccedilo definimos todo espaccedilo em relaccedilatildeo

agrave posiccedilatildeo e distacircncia das coisas vinculadas a um determinado corpo que consideramos

imoacutevel Parece-nos que apesar de possuir realidade per se este espaccedilo absoluto

matemaacutetico e verdadeiro deve possuir um estatuto ontoloacutegico proacuteprio pois a

caracterizaccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico deve se referenciar sempre aos lugares relativos e natildeo ao

absoluto

Na opiniatildeo de Newton se considerarmos o movimento em sua natureza

geomeacutetrica e verdadeiramente determinada a partir do transporte ou translaccedilatildeo de um

corpo de sua vizinhanccedila imoacutevel para a vizinhanccedila de outros sem referecircncia a nada que

esteja verdadeiramente imoacutevel perderemos o que eacute proacuteprio do movimento pois como ele

afirma

Eacute propriedade do movimento [motus proprietas est] que as partes que guardam as posiccedilotildees dadas em relaccedilatildeo a seus todos participam dos movimentos desses todos Logo movidos os corpos ambientes as coisas que em redor estatildeo relativamente em repouso se moveratildeo10

Uma consequecircncia desta proposiccedilatildeo eacute que o movimento verdadeiro e absoluto

natildeo pode ser definido pela translaccedilatildeo a partir dos corpos vizinhos que satildeo vistos parados

pois tomando os corpos ambientes como referencial ao moverem-se os corpos ambientes

as coisas em seu redor relativamente em repouso se moveratildeo

Se o movimento for referenciado pelo lugar quando o lugar se move

juntamente se move seu conteuacutedo por isso um corpo que se move de um lugar em

movimento participa tambeacutem de seu conteuacutedo consequentemente

[] movimentos integrais e absolutos natildeo podem definir-se senatildeo pelos lugares imoacuteveis e por isso acima os referi a esses lugares mas referi os movimentos relativos aos lugares moacuteveis Ora lugares imoacuteveis natildeo satildeo senatildeo aqueles que por toda infinidade conservam as posiccedilotildees muacutetuas pelo que sempre permanecem imoacuteveis constituindo o espaccedilo que chamo imoacutevel11

9 Ibid p 10 grifo nosso 10 Ibid p 10 grifo nosso 11 Ibid p 11 grifo nosso

28

Aleacutem disso o que distingue o movimento relativo e o movimento absoluto

satildeo as causas impressas nos corpos pois o movimento verdadeiro natildeo eacute gerado nem se

muda senatildeo por forccedilas impressas nos proacuteprios corpos Jaacute o movimento relativo pode ser

gerado sem forccedilas impressas neste corpo bastando para isto que se imprimam forccedilas em

outros corpos com os quais exerce relaccedilatildeo de contiguidade

Newton assevera que as definiccedilotildees das quantidades fiacutesicas por se apoiarem

no mundo das coisas sensiacuteveis se referem sempre a seu aspecto relativo ou vulgar mas

nunca as quantidades efetivamente verdadeiras e absolutas Todavia dado que o espaccedilo

eacute composto de partes imoacuteveis indistintas e intangiacuteveis eacute dificiacutelimo conhecer os

verdadeiros movimentos de cada corpo e distingui-los dos movimentos relativos

A efetiva distinccedilatildeo entre movimento absoluto e movimento relativo seraacute a

pedra angular da mecacircnica newtoniana dos Principia Esta distinccedilatildeo soacute seraacute possiacutevel

tomando como referencial para o movimento uma noccedilatildeo de espaccedilo que eacute naturalmente

imoacutevel indistinto e intangiacutevel Como jaacute assinalamos este projeto jaacute se apresentava desde

o De gravitatione

Mas seraacute com as proposiccedilotildees registradas no texto final dos Principia

denominado ldquoEscoacutelio geralrdquo e adicionado agrave obra somente a partir da 2ordf ediccedilatildeo de 1713

que a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto ganharaacute contornos problemaacuteticos muito em funccedilatildeo do

abandono de seu projeto inicial de se desvencilhar de pressupostos metafiacutesicos na

fundamentaccedilatildeo de sua filosofia natural No Escoacutelio geral Newton fundamentaraacute em

concepccedilotildees metafiacutesicas a ordem e manutenccedilatildeo do universo regido por um Deus ou Ser

inteligente que emana de seu ser o proacuteprio espaccedilo enquanto um Sensorium Dei

Em De gravitatione Newton postula que se soacute existe aquilo que estaacute no

espaccedilo e jaacute que Deus existe deve necessariamente existir no espaccedilo Logo se eacute de sua

natureza ser infinito deve estaacute em todo lugar natildeo somente em accedilatildeo mas tambeacutem

essencialmente Isto quer dizer que Deus estaacute no espaccedilo agrave medida que o espaccedilo estaacute

contido em sua substacircncia presente Neste sentido assinala Newton que ldquonele satildeo todas

as coisas contidas e movidas todavia nenhum afeta o outro Deus natildeo sofre nada do

movimento dos corpos os corpos natildeo encontram nenhuma resistecircncia da onipresenccedila de

Deusrdquo12

Ocorre que apesar de estar no espaccedilo sempre e em todos os lugares

substancialmente Deus natildeo eacute humano nem em absoluto corpoacutereo ldquoEle eacute completamente

12 Ibid p 21

29

destituiacutedo de todo corpo e figura corporal e natildeo pode portanto nem ser visto nem

ouvido nem tocado nem deve ser ele adorado sob a representaccedilatildeo de qualquer coisa

corporalrdquo13

Todavia apesar de natildeo ser corpoacutereo eacute extenso por estar no espaccedilo mas

incorpoacutereo por conter virtualmente o proacuteprio espaccedilo em seu Ser Contudo da substacircncia

de Deus Newton afirma que soacute conhecemos suas criaccedilotildees enquanto resultado de suas

causas finais

Do que depreendemos ateacute aqui o conceito de espaccedilo na filosofia de Newton

serviu como suporte para a elaboraccedilatildeo de sua filosofia do movimento entretanto esta

formulaccedilatildeo seraacute contestada por Leibniz muito em funccedilatildeo das consequentes implicaccedilotildees

metafisicas Por esse motivo dando prosseguimento agrave nossa anaacutelise dos conceitos de

espaccedilo e movimento tentaremos mostrar como se posiciona o filoacutesofo alematildeo frente a

estes postulados no acircmbito da correspondecircncia com Samuel Clarke

3 Leibniz e o real atributo do espaccedilo a correspondecircncia com Clarke

Newton no escoacutelio agrave VIII definiccedilatildeo dos Principia postula que o espaccedilo em

sua definiccedilatildeo absoluta possui natureza proacutepria sem relaccedilatildeo com qualquer coisa externa

permanecendo sempre similar e imoacutevel Esta noccedilatildeo como mostramos tinha o objetivo

de estabelecer um referencial inercial para a descriccedilatildeo de corpos em movimento O que

segundo o inglecircs seria impossiacutevel determinar na filosofia natural cartesiana que associava

ontologicamente espaccedilo e mateacuteria Daiacute a necessidade de um referencial que natildeo se

confundisse com a natureza corpoacuterea

Entretanto Leibniz se oporaacute frontalmente a realidade per se de um espaccedilo

totalmente semelhante imoacutevel e independente dos corpos pois em seu ponto de vista o

espaccedilo natildeo eacute senatildeo a ordem de coexistecircncia das coisas notadas simultaneamente

Contrapondo assim a noccedilatildeo de um espaccedilo homogecircneo e indiscerniacutevel por uma

consequente designaccedilatildeo heterogecircnea e relacional do espaccedilo

Dito isto nos voltaremos para compreender os fundamentos da criacutetica

leibniziana a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano Com tal propoacutesito analisaremos a

primeira parte da quinta carta de Leibniz a Clarke com vistas a entender as razotildees que

levaram Leibniz a se opor agravequela noccedilatildeo de espaccedilo defendida por Newton Aleacutem disso

13 NEWTON loc cit

30

pretendemos compreender as consequecircncias da admissatildeo de um espaccedilo tota simul para a

correta designaccedilatildeo dos corpos em movimento

A correspondecircncia Leibniz-Clarke se inicia imediatamente apoacutes Leibniz

enviar excertos de uma missiva agrave Princesa Carolina de Gales14 que por sua vez a envia

ao teoacutelogo newtoniano Samuel Clarke O conjunto da correspondecircncia eacute composto por

cinco cartas de Leibniz e cinco cartas de Clarke trocadas entre 1715 e 1716 portanto

muito proacuteximo da morte de Leibniz

A primeira carta daraacute o tom do debate e trata latu sensu de filosofia e teologia

natural com ecircnfase na discussatildeo sobre o real atributo do espaccedilo e do tempo Para fins de

nossa anaacutelise nos concentraremos na primeira parte (sectsect 1-53) da quinta carta de Leibniz

ou resposta agrave quarta carta reacuteplica de Clarke Nesta carta acreditamos que Leibniz sintetiza

as principais proposiccedilotildees de sua criacutetica a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano assim

como tambeacutem caracteriza sua proacutepria noccedilatildeo de espaccedilo relacional Boa parte desta criacutetica

se fundamentaraacute sobre a violaccedilatildeo do princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis

Mas antes de analisarmos a quinta carta voltemos um pouco pois em sua

quarta reacuteplica a Leibniz (sectsect 3-4) Clarke registra a respeito da identidade dos

indiscerniacuteveis que quanto aos corpos compostos natildeo haveria a possibilidade de existirem

dois sujeitos perfeitamente semelhantes contudo quanto agraves partes da mateacuteria simples

seria possiacutevel a Deus criar duas partes semelhantes em tudo Isto natildeo implicaria diz ele

ser a mesma coisa pois ldquoacrescento que o lugar de uma dessas gotas natildeo seria o da outra

embora a situaccedilatildeo delas fosse uma coisa absolutamente indiferenterdquo15

Ao admitir a possibilidade de que Deus traga a existecircncia duas porccedilotildees de

mateacuteria em situaccedilotildees totalmente indiscerniacuteveis Clarke propotildee que a situaccedilatildeo destes

corpos seria discerniacutevel em funccedilatildeo apenas de suas posiccedilotildees no espaccedilo ou seja de seu

lugar especiacutefico fazendo do lugar um predicado (ou afecccedilatildeo) dos corpos a maneira

newtoniana Leibniz por sua vez se posicionaraacute contrariamente a estaacute afirmaccedilatildeo

sustentando sua argumentaccedilatildeo como mostraremos na violaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo

suficiente e do princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis

Em resposta a esta carta de Clarke Leibniz assinala que a filosofia primeira

foi pouco fecunda e demonstrativa devido ao fato de que os filoacutesofos embora

reconhecessem a importacircncia do princiacutepio da razatildeo suficiente assim como do princiacutepio

14 Guilhermina Carlota Carolina (1683 ndash1737) foi esposa do rei Jorge II e rainha consorte do Reino da Gratilde-Bretanha e do Reino da Irlanda de 1727 ateacute sua morte 15 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 188

31

da identidade dos indiscerniacuteveis estes natildeo foram razoavelmente empregados Do

princiacutepio da razatildeo suficiente se infere que todo acontecimento soacute vem a ser em virtude de

uma causa ou razatildeo Leibniz considera que se este princiacutepio fosse empregado

adequadamente natildeo seria asseverada a existecircncia de dois sujeitos absolutamente

indiscerniacuteveis pois como ele descreve no sect 21 da referida carta ldquose existissem [dois seres

iguais] Deus e a natureza agiriam sem razatildeo tratando a um de outro jeito que a outro

Assim pois Deus natildeo produz duas porccedilotildees de mateacuteria perfeitamente iguais e

semelhantesrdquo16

Este argumento se coloca frontalmente em oposiccedilatildeo a filosofia dos aacutetomos e

do vazio defendida tanto por Newton quanto pelos newtonianos Primeiramente porque

se natildeo eacute compatiacutevel com a sabedoria divina criar duas porccedilotildees de mateacuteria sejam elas

gotas ou aacutetomos exatamente iguais entatildeo aceitar a existecircncia de aacutetomos sem nenhuma

variedade ou movimento particular seria contraacuterio ao grande princiacutepio da razatildeo suficiente

Em segundo lugar porque sustenta que cada porccedilatildeo da mateacuteria pode ser

subdivida em outras movidas de modo diferente e nenhuma destas partes parece

inteiramente uma com a outra Desta forma o princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis17

contestaria a possibilidade de se encontrar na natureza dois corpos inteiramente

semelhantes Princiacutepio que tambeacutem refutaria a existecircncia de um espaccedilo totalmente

similar e mutualmente congruente onde natildeo seria possiacutevel distinguir uma parte da outra

Em vista disto para Leibniz o espaccedilo natildeo eacute mais que a ordem da coexistecircncia

das coisas notadas na simultaneidade delas O que implica na impossibilidade de um

universo material finito existir e se movimentar num espaccedilo infinito tal qual o espaccedilo

newtoniano pois como escreve ele no sect 29 da referida correspondecircncia

De fato aleacutem de natildeo haver espaccedilo real fora do universo material semelhante accedilatildeo seria sem finalidade seria trabalhar sem fazer nada agendo nihil agere Natildeo se produziria nenhuma mudanccedila observaacutevel fosse por quem fosse Satildeo imaginaccedilotildees dos filoacutesofos de noccedilotildees incompletas que fazem do espaccedilo uma realidade absoluta18

Agora de acordo com as premissas asseveradas por Leibniz se aceitarmos a

noccedilatildeo do espaccedilo absoluto newtoniano este espaccedilo fora do universo material (espaccedilo

vazio) seria indiscerniacutevel logo natildeo sendo possiacutevel atestar o movimento dos corpos posto

que o movimento seja a mudanccedila de situaccedilatildeo em relaccedilatildeo a alguma outra coisa chegando

16 Ibid p 196 17 Principium identitatis indiscernibilium 18 LEIBNIZ op cit p 198 grifo nosso

32

a um estado discerniacutevel do primeiro Se assim natildeo fosse o movimento seria apenas uma

ficccedilatildeo

Segundo Raquel Sapunaru em O conceito leibniziano de espaccedilo eacute

importante destacar que o conceito de situaccedilatildeo eacute fundamental para a anaacutelise do espaccedilo

leibniziano pois se deve atentar para o fato de que a situaccedilatildeo e o lugar satildeo apenas

abstraccedilotildees ou seja a situaccedilatildeo eacute apenas um modo do espaccedilo e o lugar seria uma

identificaccedilatildeo quantitativa desses modos ou das situaccedilotildees19

Por conseguinte o espaccedilo natildeo depende da situaccedilatildeo dos corpos mas eacute a ordem

da coexistecircncia que faz com que os corpos sejam situaacuteveis e pelos quais possuem uma

relaccedilatildeo de situaccedilatildeo entre si ao existirem20

Leibniz considera que assim como o tempo o espaccedilo soacute pode ser tomado na

sua idealidade ou seja o espaccedilo soacute ldquoexisterdquo enquanto ente de razatildeo por isto sua

existecircncia para aleacutem do mundo material deve ser interpretada como uma imaginaccedilatildeo isto

eacute uma ficccedilatildeo Pelas mesmas razotildees a existecircncia do espaccedilo vazio deve ser tambeacutem

objetada

Tal como Descartes Leibniz tambeacutem sustenta um espeacutecie de plenismo

cosmoloacutegico onde nenhum corpo pode ser movido senatildeo por outro corpo que o impele

sem interstiacutecio vazio Portanto qualquer operaccedilatildeo sobre um corpo que natildeo decorra da

atuaccedilatildeo material seraacute ou milagrosa ou imaginaacuteria21

Com tal caracteriacutestica compreender o espaccedilo como algo absoluto e

desprovido de corpos seria concebecirc-lo impassiacutevel e independente de Deus Se assim o

for o espaccedilo natildeo poderia ser entendido como uma propriedade de Deus ou ao modo

newtoniano como um Sensorium Dei Na mesma perspectiva o filoacutesofo alematildeo

questiona

Se o espaccedilo eacute a propriedade ou a afecccedilatildeo da substacircncia que estaacute no espaccedilo ele seraacute ora a afecccedilatildeo de um corpo ora de um outro corpo ora de uma substacircncia imaterial ora quando vazio de toda outra substacircncia material ou imaterial talvez do proacuteprio Deus Mas que estranha propriedade ou afecccedilatildeo que passa de sujeito para sujeito Assim sendo os sujeitos deixaratildeo seus acidentes como se fossem um haacutebito a fim de que outros sujeitos possam se revestir com eles Como pois se distinguiratildeo os acidentes e as substacircncias22

19 SAPUNARU O conceito leibniziano de espaccedilo 2012 p 91 20 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 186 21 Ibid p 199 22 Ibid p 200 grifo nosso

33

Neste momento Leibniz estaacute questionando aqui qual o estatuto predicativo

que estaacute associado a esta noccedilatildeo de espaccedilo independente pois se o espaccedilo deve ser

compreendido como uma propriedade ou afecccedilatildeo do que estaacute no espaccedilo logo (1) deve

ser material ou imaterial (2) se for material deve ser a afecccedilatildeo ora de um corpo ora de

outro (3) se for imaterial deve ser a afecccedilatildeo ora do vazio ou ateacute mesmo do proacuteprio Deus

Entretanto para o alematildeo a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto de Newton viola gravemente o

sistema predicativo da loacutegica claacutessica onde as substacircncias devem fazer deduzir de si

todos os predicados do sujeito a que se atribui esta noccedilatildeo Na loacutegica predicativa de

Leibniz o conceito do atributo ou predicado deve jaacute estaacute contido no sujeito Portanto

como assinala Raquel Sapunaru

[] toda predicaccedilatildeo mesmo relacional se verdadeira deve estar fundada em algum ponto da seacuterie de predicados que define esta substacircncia Inversamente natildeo eacute possiacutevel considerar que duas substacircncias diferentes tenham a mesma relaccedilatildeo de coexistecircncia com as outras substacircncias pois isso seria idecircntico a aceitar que o mesmo predicado se encontra simultaneamente em duas substacircncias23

Nesta esteira Leibniz assinala que tornar o espaccedilo uma propriedade de Deus

eacute abusar dos termos pois se o espaccedilo eacute a propriedade de Deus e se Deus estaacute no espaccedilo

entatildeo o sujeito estaria contido na propriedade Afirmar isto eacute extrapolar os limites do

raciociacutenio e da razatildeo posto que Deus natildeo poderia ser extenso E isso afetaria frontalmente

o esquema predicativo sujeito-predicado S estaacute em P ou P conteacutem S24

Assim para Leibniz o espaccedilo eacute o conjunto dos lugares compreendidos a

partir da razatildeo estabelecida entre os coexistentes com respeito a um determinado nuacutemero

de corpos que se mantecircm na mesma relaccedilatildeo de situaccedilatildeo Considerando que esta ordem de

relaccedilatildeo eacute estabelecida puramente no domiacutenio do ideal a noccedilatildeo enganosa de espaccedilo

absoluto eacute formada pelos homens segundo uma necessidade de encontrar fora da ordem

dos coexistentes uma identidade formal Como Leibniz descreve no famoso sect 47 da quinta

carta a Clarke

Eis como os homens chegam a formar a noccedilatildeo de espaccedilo Consideram que muitas coisas existem simultaneamente e acham nelas certa ordem de coexistecircncia segundo a qual a relaccedilatildeo entre umas e outras eacute mais ou menos simples eacute sua situaccedilatildeo ou distacircncia Quando acontece que um desses coexistentes modifica essa relaccedilatildeo a uma multidatildeo de outros sem que estes mudem entre si e que um receacutem-vindo adquire a relaccedilatildeo que o primeiro tivera com os outros diz-se que

23 SAPUNARU O conceito leibniziano de espaccedilo 2012 p 95 24 Cf Discurso de metafisica sect 8

34

veio ocupar seu lugar chama-se essa transformaccedilatildeo um movimento que se acha naquele que estaacute agrave causa imediata da transformaccedilatildeo E quando muitos ou mesmo todos mudassem conforme certas regras conhecidas de direccedilatildeo e velocidade poder-se-ia sempre determinar a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que cada um adquiriria para com o outro e mesmo a relaccedilatildeo que qualquer outro teria ou que ele teria para com outro qualquer se natildeo tivesse mudado ou o tivesse feito de outro modo Supondo e fingindo que entre esses coexistentes haja um nuacutemero suficiente de alguns que natildeo tenham tido transformaccedilatildeo em si dir-se-aacute que os que tem uma relaccedilatildeo com esses existentes fixos como outros anteriormente ocupam o mesmo lugar que estes uacuteltimos tinham tido Ora o que abrange todos esses lugares eacute que se chama espaccedilo Isso demonstra que para ter a ideia do lugar e por consequecircncia do espaccedilo basta considerar essas relaccedilotildees e as regras de suas transformaccedilotildees sem necessidade de imaginar aqui nenhuma realidade absoluta fora das coisas cuja situaccedilatildeo se considera E para dar uma espeacutecie de definiccedilatildeo lugar eacute aquilo que se diz ser o mesmo em relaccedilatildeo a A e a B quando a relaccedilatildeo de coexistecircncia de B com C E F G etc conveacutem inteiramente com a relaccedilatildeo de coexistecircncia que A tivera com os mesmos supondo-se que natildeo tenha havido nenhuma causa de mudanccedila em C E F G etc25

Portanto para Leibniz o espaccedilo eacute o resultado dos lugares tomados

conjuntamente na medida em que satildeo pensados por noacutes somente enquanto entes de razatildeo

Deve-se ainda considerar que o lugar difere da relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que

ocupa o lugar Tanto o corpo A quanto o corpo B ocupam o mesmo lugar Todavia a

relaccedilatildeo de A para com os corpos fixos natildeo seraacute igual agraves relaccedilotildees estabelecidas entre B

que tomaraacute seu lugar com esses mesmos corpos fixos Isto porque corpos diferentes natildeo

poderiam ter as mesmas relaccedilotildees individuais pois as relaccedilotildees devem se referenciar pelas

qualidades intriacutensecas das substacircncias individuais ou Mocircnadas26

4 A Mocircnada como causa imediata da mudanccedila e do movimento

Para o filoacutesofo de Leipzig os homens formam a noccedilatildeo de espaccedilo atraveacutes da

criaccedilatildeo de identidades e compreendem estas relaccedilotildees como independentes e extriacutensecas

aos sujeitos chamando a isto de lugar e de espaccedilo Entretanto esta aplicaccedilatildeo do espiacuterito

que considera as relaccedilotildees de coexistecircncia enquanto certa ordem externa aos corpos natildeo

poderia se dar senatildeo no domiacutenio dos entes de razatildeo Por isso ao natildeo se tratar nem de

substacircncia nem de acidentes o espaccedilo deve ser uma denominaccedilatildeo puramente ideal cuja

consideraccedilatildeo natildeo deixa de ser uacutetil

25 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 201 grifo nosso 26 Ibid p 202

35

Todavia para ele se aceitarmos a noccedilatildeo de um espaccedilo tota simul newtoniano

teremos dificuldades para a correta designaccedilatildeo sobre quais corpos se encontram em

movimento num dado lugar do espaccedilo Neste sentido Leibniz esclarece ao final do jaacute

referido sect 47 sobre as consequecircncias da adoccedilatildeo desta noccedilatildeo incorreta uma vez que

[] os vestiacutegios [les traces] dos moacuteveis que eles deixam agraves vezes nos imoacuteveis sobre os quais exercem seu movimento deram agrave imaginaccedilatildeo dos homens a ocasiatildeo de conceber essa ideia como se restasse ainda algum vestiacutegio mesmo sem a existecircncia de qualquer coisa imoacutevel mas isso natildeo eacute senatildeo ideal e traz somente como consequecircncia que se existisse algum imoacutevel a gente o poderia designar [deacutesigner] E eacute essa analogia que faz com que se imaginem lugares vestiacutegios e espaccedilos ainda que essas coisas natildeo passem na verdade de relaccedilotildees e de forma alguma natildeo sejam uma realidade absoluta 27

Nestes termos Leibniz se contrapotildee a finitude do universo material e a

realidade absoluta do espaccedilo desprovido de corpos agrave moda newtoniana principalmente

porque a proposiccedilatildeo de um espaccedilo absoluto implicaria na impossibilidade da observaccedilatildeo

do movimento das coisas materiais pois nesta hipoacutetese natildeo haveria mudanccedila de situaccedilatildeo

observaacutevel Assim se o universo material for finito e capaz de passear no espaccedilo infinito

tal deslocamento natildeo poderia ser observado uma vez que natildeo haveria mudanccedila de

situaccedilatildeo dos corpos neste espaccedilo homogecircneo e infinito

Necessitariacuteamos para determinar verdadeiramente o movimento da

manutenccedilatildeo dos vestiacutegios a partir das partes imutaacuteveis do espaccedilo e do tempo Todavia

para Leibniz foram estas noccedilotildees incompletas que deram aos homens a imaginaccedilatildeo de

conceber aquela ideia de espaccedilo per se

O movimento por sua vez soacute poderia ser observaacutevel na hipoacutetese de mudanccedila

de situaccedilatildeo entre os corpos no espaccedilo isto quer dizer mudanccedila de situaccedilatildeo na ordem das

relaccedilotildees Por este acircngulo para o alematildeo ldquoo movimento eacute independente da observaccedilatildeo

mas natildeo da observabilidade Natildeo haacute movimento quando natildeo existe mudanccedila observaacutevel

E mesmo quando natildeo haacute mudanccedila observaacutevel natildeo haacute mudanccedila de modo algumrdquo28

Leibniz destaca no sect 53 da quinta carta a Clarke que a partir da leitura dos

Principia VIII definiccedilatildeo e de seu respectivo escoacutelio natildeo foi possiacutevel provar e

demonstrar o espaccedilo absoluto como uma realidade independe dos corpos como propotildee

Newton Sustenta entatildeo que o espaccedilo eacute puramente uma consequecircncia das relaccedilotildees de

situaccedilatildeo que pertencem ao domiacutenio do ideal enquanto entes de razatildeo

27 Ibid p 202-203 grifo nosso 28 Ibid p 204

36

Assim o primeiro ponto de divergecircncia entre as noccedilotildees de espaccedilo defendidas

por Leibniz e Newton se concentra na real atribuiccedilatildeo do espaccedilo Para Newton o espaccedilo

eacute absoluto homogecircneo e infinito para aleacutem da mateacuteria do mundo Por seu turno para

Leibniz natildeo eacute possiacutevel falar de espaccedilo ou lugar real desprovido de mateacuteria

Como jaacute anotado Leibniz concentra fundamentalmente sua criacutetica apoiado

em dois princiacutepios estruturantes de seu pensamento O princiacutepio da razatildeo suficiente e o

princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis No primeiro se postula que nada vem a ser

senatildeo por uma causa ou razatildeo suficiente tendo como causa uacuteltima agrave sabedoria divina O

segundo derivado do primeiro afirma que natildeo pode haver na natureza duas coisas que

diferem solo numero

Ademais argumenta que natildeo podem existir na natureza duas coisas que sejam

qualitativamente iguais e quantitativamente diferentes pois soacute eacute possiacutevel observar a

diferenccedila quantitativa ao passo que se observa as diferenccedilas qualitativas

Consequentemente soacute eacute possiacutevel observar a mudanccedila quando se observa a causa imediata

da transformaccedilatildeo ou a verdadeira causa da mudanccedila Proposiccedilatildeo que se apresenta em

conformidade com sua noccedilatildeo de substacircncia completa onde os acidentes natildeo passeiam

fora dos sujeitos

A noccedilatildeo leibniziana de substacircncia teraacute sua formulaccedilatildeo definitiva em um dos

uacuteltimos tratados produzidos na fase madura de Leibniz e provavelmente seu texto mais

conhecido denominado de Princiacutepios da filosofia ditos a Monadologia escrito em

francecircs no ano de 1714 Este texto apresenta os temas essenciais da filosofia leibniziana

fundamentada no novo conceito de substacircncia ou Mocircnadas

Leibniz afirma que por serem substacircncias simples que entram nos compostos

as mocircnadas satildeo fechadas natildeo podendo ser alterada nem modificada por outra substacircncia

Como ele descreve no sect 7 da Monadologia

As Mocircnadas natildeo tecircm janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou sair Os acidentes natildeo podem destacar-se nem passear fora das substacircncias como outrora as espeacutecies dos Escolaacutesticos Assim nem substacircncia nem acidente podem vir de fora para dentro da Mocircnada29

Dessa forma se as mocircnadas satildeo substacircncias simples inextensas e sem forma

necessitam de algo que as diferencie umas das outras jaacute que natildeo devem diferir solo

29 LEIBNIZ A monadologia 1983 p 105

37

numero Eacute necessaacuterio portanto que as mocircnadas difiram entre si uma vez que segundo

Leibniz na natureza natildeo haacute dois sujeitos iguais

Neste sentido as mudanccedilas nas mocircnadas devem ter origem num princiacutepio

interno que consiste na especificaccedilatildeo da variedade e da mudanccedila que promove

naturalmente e gradativamente tais desdobramentos Portanto o conceito de substacircncia

deve envolver trecircs caracteriacutesticas baacutesicas unidade independecircncia e identidade na

mudanccedila

Tendo isto em vista aquilo que denominariacuteamos de espaccedilo fiacutesico eacute a ordem

de relaccedilatildeo das coexistecircncias e o movimento dos corpos eacute discerniacutevel natildeo por

caracteriacutesticas extriacutensecas como o espaccedilo absoluto newtoniano mas decorrentes das

qualidades originariamente intriacutensecas das substacircncias

Portanto na opiniatildeo de Leibniz se admitiacutessemos a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto

newtoniano como possiacutevel teriacuteamos que reconhecer como consequecircncia que o universo

criado ocuparia um espaccedilo homogecircneo e natildeo haveria razatildeo para Deus criar uma coisa

aqui e natildeo ali Por outro lado aderindo a sua noccedilatildeo de espaccedilo relacional o universo seria

ocupado heterogeneamente e haveria uma razatildeo suficiente para a criaccedilatildeo de um sujeito

num determinado lugar (locus) com determinada relaccedilatildeo de situaccedilatildeo (situs) no espaccedilo

Condiccedilatildeo que permitiria a observaccedilatildeo de corpos em movimento pois os traccedilos da

mudanccedila natildeo estatildeo no espaccedilo tomado em sua forma absoluta mas na causa imediata da

mudanccedila e do movimento ou seja na proacutepria substacircncia ou Mocircnada

5 Consideraccedilotildees finais

A partir da argumentaccedilatildeo que desenvolvemos eacute possiacutevel dizer que Newton

assenta sua filosofia do espaccedilo e do movimento contrariando os princiacutepios da razatildeo

suficiente e da identidade dos indiscerniacuteveis O que na opiniatildeo de Leibniz demandaria a

impossibilidade da observaccedilatildeo do movimento e se o movimento natildeo pode ser observado

entatildeo natildeo haacute movimento real

Por outro lado se o espaccedilo como assinala Leibniz eacute a ordem de coexistecircncia

entre os corpos entatildeo o movimento seraacute uma mudanccedila relativa de situaccedilatildeo de um corpo

com respeito a outros corpos fixos chegando a uma situaccedilatildeo discerniacutevel da primeira Esta

relaccedilatildeo de situaccedilatildeo natildeo se daacute extrinsecamente pois segue das expressivas determinaccedilotildees

intriacutensecas da substacircncia ou Mocircnada

38

Em vista disto estamos agora em condiccedilotildees de compreender aquilo que

Leibniz postulara no sect 8 da Monadologia onde propotildee que o movimento soacute pode ser

observado levando-se em consideraccedilatildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas da substacircncia diz

ele

Se as substacircncias simples em nada diferissem [diffeacuteraient] pelas suas qualidades [qualiteacutes] natildeo haveria meio de se aperceber qualquer modificaccedilatildeo [ou movimento] nas coisas ([changement dans les choses] pois o que estaacute no composto natildeo pode vir senatildeo dos ingredientes simples e as Mocircnadas natildeo tendo qualidades seriam indistinguiacuteveis [indistinguables] umas das outras visto natildeo diferirem tambeacutem em quantidade e por conseguinte admitido o pleno cada lugar receberia sempre no movimento soacute o equivalente do que antes contivera e um estado de coisas seria portanto indiscerniacutevel de outro30

Ora parece que Leibniz esta sinalizando aqui para a necessidade de

observarmos que se as substacircncias simples natildeo se distinguirem de alguma forma toda a

descriccedilatildeo dos eventos fiacutesicos estaria prejudicada posto que natildeo seria possiacutevel discernir

entre os diversos estados de coisas em um sistema cosmoloacutegico pleno

Neste sentido para Leibniz a consideraccedilatildeo do movimento deve fundar-se nas

qualidades intriacutensecas das mocircnadas pois estatildeo nelas agraves particularidades reais que as

tornam discerniacuteveis umas das outras o que nos permite distinguir as mudanccedilas de estado

ou de movimento Por isto as mocircnadas satildeo aquilo que confere alguma ldquosubstacircnciardquo aos

corpos que estatildeo em constante transformaccedilatildeo e mudanccedila

Ademais se as mocircnadas satildeo fechadas e as mudanccedilas de estado ou movimento

de cada corpo diz respeito necessariamente as mocircnadas entatildeo soacute pode residir nela agrave causa

imediata da mudanccedila e do movimento Portanto natildeo seria necessaacuterio como pensara

Newton recorrer ao espaccedilo absoluto como fundamento proacuteprio do movimento onde seria

registrada a continuidade das vaacuterias mudanccedilas das relaccedilotildees de situaccedilotildees dos corpos

Com tal caracteriacutestica o vestiacutegio da continuidade das vaacuterias mudanccedilas seria

registrado pela apercepccedilatildeo do que se passa nos corpos sob o ponto de vista

individualizado das mocircnadas Dito de outra maneira as mocircnadas lembram quando o

corpo saiu do lugar e espelham as mudanccedilas do estado de coisas Portanto as mocircnadas

satildeo a causa imediata ou proacutexima da transformaccedilatildeo satildeo a causa proacutepria da mudanccedila ou

do movimento como Leibniz jaacute havia assinalado no sect 47 da quinta carta a Clarke

30 LEIBNIZ A monadologia 1983 p 105 grifo nosso

39

Referecircncias bibliograacuteficas BENIacuteTEZ Laura ROBLES Joseacute A De newton y los newtonianos entre descartes y berkeley Bernal Universidade Nacional de Quilmes 2006 DESCARTES Reneacute Princiacutepios da filosofia Traduccedilatildeo Heloisa da Graccedila Burati Satildeo Paulo Rideel 2005 ______ Meditaccedilotildees sobre filosofia primeira Traduccedilatildeo Fausto Castilho Campinas editora Unicamp 2004 LEIBNIZ G W A Monadologia e Correspondecircncia com Clarke In Coleccedilatildeo Os Pensadores Traduccedilatildeo de Marilena de Souza Chauiacute Satildeo Paulo Abril cultural 1983 PERKINS Franklin Compreender Leibniz Traduccedilatildeo de Marcus Penchel Petroacutepolis Vozes 2009 NEWTON Isaac Principia princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural - I Traduccedilatildeo Andreacute Koch Torres Assis e outros 2ordf ed Satildeo Paulo Edusp 2012 ______ Principia princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural - II Traduccedilatildeo Andreacute Koch Torres Assis e outros Satildeo Paulo Edusp 2012 ______ O peso e o equiliacutebrio dos fluidos e outros In Coleccedilatildeo Os Pensadores Traduccedilatildeo Luiz Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Nova Cultural 1983 RUSSEL Bertrand A critical exposition of the Philosophy of Leibniz New York Routledge 1996 SAPUNARU Anna Raquel O conceito leibniziano de espaccedilo distacircncias metafiacutesicas e proximidades fiacutesicas do conceito newtoniano (Coleccedilatildeo teses) Satildeo Paulo Editora Livraria da Fiacutesica 2012

A QUESTAtildeO DO DUALISMO E DA LINGUAGEM EM BERGSON

Edvan Aragatildeo Santos1

RESUMO O objetivo central neste artigo eacute trazer agrave tona o debate sobre a questatildeo da linguagem na filosofia de Henri Bergson Para tanto traccedilaremos nosso percurso a partir do notoacuterio estabelecimento da diferenccedila de natureza entre espaccedilo e tempo e o consequente reconhecimento das duas esferas da subjetividade Ao apresentar a problemaacutetica do dualismo na subjetividade e a cisatildeo entre nossa consciecircncia e o objeto Bergson tem como querela a dificuldade da linguagem abstrata e espacial em apreender a realidade da duraccedilatildeo do nosso eu mais profundo Palavras-chave Linguagem Dualismo Subjetividade Duraccedilatildeo Espaccedilo

ABSTRACT The central aim of this article is to bring to the fore the debate on the question of language in the philosophy of Henri Bergson To do so we will trace our route from the notorious establishment of the difference in nature between space and time and the consequent recognition of the two spheres of subjectivity In presenting the problem of dualism in subjectivity and the split between consciousness and the object Bergson has as focus of his discussion the difficulty of abstract and spatial language in apprehend the reality of the duration of our deepest self Keywords Language Dualism Subjectivity Duration Space

Qual o limite de nossa linguagem Ela expressa de fato a realidade das coisas

Estas questotildees moveram os debates em muitos momentos da filosofia bergsoniana o

posicionando quase sempre em um empasse no qual ficou evidente a dificuldade de

encontrar uma linguagem adequada ao fazer filosoacutefico Veremos que para o filoacutesofo a

linguagem sobretudo no seu livro Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia ganha

um sentido funcional ao mesmo tempo que um obstaacuteculo agrave apreensatildeo da nossa natureza

mais profunda requerendo para tanto um verdadeiro exerciacutecio de desconstruccedilatildeo do seu

sentido usual Esta problemaacutetica se dirige diretamente ao problema do dualismo subjetivo

neste mesmo livro e a notoacuteria distinccedilatildeo entre espaccedilo e tempo problema tatildeo caro agrave sua

obra

Para Bergson lidamos em geral com uma noccedilatildeo de tempo espacial em nossa

vida cotidiana e praacutetica que viabiliza nossa accedilatildeo no mundo a organizaccedilatildeo da vida Mas

1 Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Satildeo Paulo edvanaragaosantosgmailcom

41

findamos por ampliar o alcance da mistura entre espaccedilo2 e tempo de tal modo que a

realidade pura da duraccedilatildeo aquela que nos habita e que constitui o que haacute de mais genuiacuteno

em noacutes passa a ser apreendida por esse prisma Desse modo eacute a um eu homogecircneo claro

e dotado de uma multiplicidade quantitativa poderiacuteamos dizer que normalmente nos

referimos quando pensamos em noacutes mesmos Dito de outro modo eacute sob a eacutegide de um eu

espacializado e simboacutelico que nos conhecemos Certamente trata-se de um recurso da

consciecircncia para assimilar em sua proacutepria interioridade o que na verdade lhe eacute

ininteligiacutevel procedimento que natildeo erradica a realidade pungente da duraccedilatildeo em suas

instacircncias mais recocircnditas Ela continua laacute enquanto dados que lhe satildeo imediatos mas

cada vez mais inacessiacuteveis Natildeo obstante essa estrateacutegia tem consequecircncias e elas

repercutem drasticamente em nossa vida Nessa perspectiva Bergson se debruccedila sobre um

outro dualismo que irrompe no acircmago de nossa subjetividade

Para nos remeter a essa cisatildeo no interior da vida psicoloacutegica a anaacutelise

bergsoniana retomando as conclusotildees de seu percurso volta a problematizar a radical

diferenccedila entre a multiplicidade pertinente agrave consciecircncia pura e aquela clara e distinta que

encontramos na representaccedilatildeo do tempo homogecircneo ldquoEm siacutentese seria preciso admitir

duas espeacutecies de multiplicidade dois sentidos possiacuteveis da palavra distinguir duas

concepccedilotildees uma qualitativa e outra qualitativa da diferenccedila entre o mesmo e o outrordquo3

No entanto argumenta ele estamos habituados a tomar uma multiplicidade pela outra ndash ou

o mesmo pelo outro ndash equiacutevoco que nos defronta com a problemaacutetica da linguagem

Afinal esse haacutebito de confundir as multiplicidades correlaciona-se com a dificuldade que

encontramos para expressar linguisticamente a diferenccedila entre ambas Eacute indubitaacutevel o

enlace entre linguagem e espaccedilo dado que o segundo eacute pressuposto para o advento da

primeira a qual nos eacute imprescindiacutevel para pensar e para conviver Daiacute deriva que ao nos

empenharmos em expressar as realidades muacuteltiplas e indistintas ou seja aquelas que

duram tal como os nossos estados de alma terminamos por distinguir os elementos que as

constituem exteriorizando-os e tratamos de pensaacute-las como se elas se apresentassem jaacute

feitas estanques em estado de pleno acabamento Assim quando nos remetemos agrave

heterogeneidade dos vaacuterios estados de consciecircncia - mesmo se experimentamos uma

2 Nos referimos aqui ao debate claacutessico bergsoniano no qual o tempo enquanto duraccedilatildeo se distingue do espaccedilo no entanto nossa experiecircncia na vida cotidiana nos remete a um misto entre tempo e espaccedilo e portanto costumeiramente temos uma visatildeo deturpada pelo espaccedilo da experiecircncia do tempo real tal como podemos observar na relaccedilatildeo entre uma marcaccedilatildeo dos ponteiros do reloacutegio e o tempo da nossa consciecircncia interior 3 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 85 Grifo do autor

42

organizaccedilatildeo contiacutenua de elementos que se interpenetram transmudam-se e crescem - ao

traduzi-los em discurso verbal acabamos por desnaturaacute-los Por essa razatildeo diz Bergson

ao utilizar o termo vaacuterios jaacute exteriorizamos os instantes justapomos os momentos

transmudando em multiplicidade numeacuterica a multiplicidade qualitativa pertinente agrave

experiecircncia que temos com a representaccedilatildeo das realidades externas Numa palavra ainda

que tenhamos a experiecircncia iacutentima da fusatildeo da transformaccedilatildeo e da indistinccedilatildeo ao pensar

a nossa interioridade e ao traduzi-la em discurso enfim ao representaacute-la aprendemos pelo

espaccedilo um real que eacute apenas tempo Nos termos do autor

Eacute a imagem deste desenvolvimento uma vez efectuado que atribuiacutemos necessariamente os termos destinados a expressar o estado de uma alma que ainda o natildeo tivesse efectuado estes termos estatildeo pois manchados por um viacutecio original e a representaccedilatildeo de uma multiplicidade sem relaccedilatildeo com o nuacutemero e com o espaccedilo ainda que clara para um pensamento que entra em si e se abstrai natildeo pode traduzir-se para a linguagem do senso-comum4

A despeito das dificuldades com que a linguagem nos defronta eacute preciso

insistir na diferenccedila de natureza entre esses dois tipos de multiplicidades Tarefa ante a qual

o autor natildeo vacila e que procuramos acompanhar nessas paacuteginas Natildeo obstante malgrado

esse esforccedilo de inspeccedilatildeo teoacuterica vimos que na praacutetica a ideia da multiplicidade distinta

estaacute sempre permeada pela multiplicidade qualitativa de modo que natildeo podemos pensar a

primeira sem que a outra desponte ou se aninhe sutilmente na intimidade da alma

Persistecircncia que se verifica insiste o filoacutesofo mesmo quando contamos unidades eis

porque findamos por dar a elas ndash agraves unidades - um dinamismo e por integraacute-las numa

continuidade quase afetiva Ou seja nesse processo mesmo desenhando as partes

exteriores umas agraves outras distinguindo-as no fundo atinamos a uma continuidade ou a uma

possiacutevel relaccedilatildeo entre as partes que viabiliza a apreensatildeo de uma continuidade de modo

que seria liacutecito dizer que agrave multiplicidade homogecircnea acompanha sempre o espectro da

multiplicidade do tipo heterogecircnea Remetendo-nos agrave anaacutelise do nuacutemero anteriormente

tecida Bergson afirmaraacute

Em siacutentese o processo pelo qual contamos as unidades e com elas formamos uma multiplicidade distinta apresenta um duplo aspecto por um lado supomo-las idecircnticas o que natildeo se pode conceber a natildeo ser com a condiccedilatildeo de que estas unidades se alinhem num meio homogecircneo mas por outro lado a terceira unidade por exemplo ao acrescentar-se agraves outras duas modifica a natureza o aspecto e como que o ritmo do conjunto sem esta muacutetua penetraccedilatildeo e este processo de

4 Ibidem p 86

43

certo modo qualitativo natildeo haveria adiccedilatildeo possiacutevel ndash Eacute pois graccedilas agrave qualidade da quantidade que formamos a ideia de uma quantidade sem qualidade5

No que concerne agraves realidades temporais noacutes o vimos essa transposiccedilatildeo para

uma natureza quantitativa soacute ocorreraacute com o exerciacutecio de figuraccedilatildeo simboacutelica No entanto

natildeo eacute preciso muito esforccedilo para chegar a essa figuraccedilatildeo que violenta a natureza essencial

da duraccedilatildeo e daacute a ela uma conotaccedilatildeo similar agrave da multiplicidade quantitativa Normalmente

graccedilas a um processo em que colocamos como concomitantes e mesmo como anaacutelogos os

dois tipos de multiplicidades consideramos a adiccedilatildeo como um fenocircmeno que permite tanto

o dado qualitativo que promove a mudanccedila da totalidade quanto o aspecto quantitativo

projetado na forma numeacuterica de um espaccedilo Em virtude dessa identificaccedilatildeo assinala

Bergson lanccedilamos com muita facilidade a multiplicidade indistinta no espaccedilo

conformando-a aos moldes da multiplicidade numeacuterica e lidamos com ambas como se natildeo

houvesse entre elas profundas diferenccedilas de natureza ldquoDaiacute a possibilidade de desdobrar no

espaccedilo sob a forma de multiplicidade numeacuterica o que chamamos uma multiplicidade

qualitativa e de considerar uma como equivalente da outrardquo6 Essa possibilidade de

equivalecircncia entre as duas multiplicidades eacute bastante factiacutevel insiste o autor quando se

trata de um fenocircmeno exterior Isto porque para noacutes ele toma a forma tambeacutem de um

movimento mesmo que homogecircneo porque a siacutentese que nossa consciecircncia opera ao dotar

de continuidade o passado com o presente permite que esses fenocircmenos exteriores ganhem

qualidade e duraccedilatildeo Daiacute que tanto a projeccedilatildeo do tempo no espaccedilo quanto a percepccedilatildeo dos

dados exteriores formam na consciecircncia o mesmo modo de representaccedilatildeo Em imagens

bergsonianas

Assim quando ouvimos uma seacuterie de pancadas de martelo os sons formam uma melodia indivisiacutevel enquanto sensaccedilotildees puras e datildeo ainda origem ao que chamamos um progresso dinacircmico mas sabendo que a mesma causa objectiva age decompomos este progresso em fase que consideramos entatildeo como idecircnticas e desta multiplicidade de termos idecircnticos que natildeo se podem conceber senatildeo pelo desdobramento no espaccedilo chegamos ainda necessariamente agrave ideia de um tempo homogecircneo imagem simboacutelica da duraccedilatildeo real7

Ao voltar a esta anaacutelise da mistura entre duraccedilatildeo espaccedilo Bergson nos conduz

a um importante momento de seu primeiro livro Trata-se do modo pelo qual essa

5 Ibidem p 86 e 87 6 Ibidem p 87 7 Ibidem p 87 e 88

44

permissibilidade entre as duas multiplicidades repercutiraacute na vivecircncia de nossa intimidade

Ou seja estabelece-se uma relaccedilatildeo entre as duas formas de multiplicidade e as dimensotildees

de nosso proacuteprio eu Como assinala o autor a interioridade de cada um de noacutes acaba

revestindo-se tambeacutem dessa dupla direccedilatildeo Destarte haacute o eu que toca a superfiacutecie da

realidade obtendo algo dessa exterioridade das coisas isto eacute encontrando esse tempo

homogecircneo essa realidade simboacutelica na qual nossas sensaccedilotildees sucessivas conservam e se

assemelham a algo dessa exterioridade o que permite a concomitacircncia entre nossas

sensaccedilotildees e as coisas Esta dimensatildeo superficial do eu espelha com muita coerecircncia o

modo pelo qual representamos as coisas fora de noacutes e revela uma interioridade tatildeo distinta

justaposta e exteriorizada quanto elas Nesse sentido podemos afirmar que o contato e a

relaccedilatildeo com as coisas exteriores reverbera sobre as camadas mais superficiais de nossa

subjetividade de sorte que nela se reflete a exterioridade ldquoreciacuteproca que caracteriza

objetivamente as suas causasrdquo8 Assim como apreendemos as coisas materiais num meio

homogecircneo configura-se uma interioridade tambeacutem lanccedilada num quadro vazio que eacute

vislumbrada como se materialidade fosse Um eu simboacutelico assim aflora Mas para aleacutem

dessa subjetividade exteriorizada um outro eu atesta sua presenccedila nas dimensotildees mais

distantes da exterioridade haacute um eu profundo que sente e delibera isto eacute aquele em que

os estados de alma estatildeo imbricados uns aos outros Aqui delineia-se um interioridade que

eacute puro devir progresso ininterrupto e auto-organizaccedilatildeo constante Totalmente distinta

pois dessa simbolizaccedilatildeo do eu superficial

No entanto parece sempre que o eu superficial e o eu profundo misturam-se

um ao outro a ponto de terem uma mesma duraccedilatildeo tal como fundimos as duas formas de

multiplicidade Haacute portanto uma extrapolaccedilatildeo da representaccedilatildeo simboacutelica que apreende

em seus tentaacuteculos realidades que a ela natildeo se coadunam Bergson assevera ldquoO que

demonstra perfeitamente que a nossa concepccedilatildeo ordinaacuteria da duraccedilatildeo se deve a uma

invasatildeo gradual do espaccedilo no domiacutenio da consciecircncia pura ()rdquo9 Para fundamentar essa

invasatildeo Bergson alude ainda a situaccedilotildees do nosso cotidiano nas quais podemos distinguir

dois modos de apreensatildeo do tempo aquele imediato o da duraccedilatildeo-qualidade em que

percepcionamos o sentimento da totalidade da mudanccedila sutil e qualitativa tal qual o

exemplo da sinfonia e aquele materializado contado em que numeramos os momentos

distintos um dos outros Ele volta assim ao exemplo do reloacutegio

8 Ibidem p 88 9 Ibidem p 88

45

No momento em que escrevo estas linhas o reloacutegio ao lado bate as horas mas o meu ouvido distraiacutedo soacute se apercebe depois de algumas terem soado portanto natildeo as contei E no entanto basta-me um esforccedilo de atenccedilatildeo retrospectiva para somar as quatro batidas jaacute produzidas e acrescenta-las agraves que ouccedilo Se entrando em mim me interrogo mais cuidadosamente sobre o que acaba de acontecer caio na conta de que os quatro primeiros sons impressionaram o meu ouvido e ateacute emocionaram minha consciecircncia mas que as sensaccedilotildees produzidas por cada um deles em vez de se justaporem se fundiram umas com as outras de maneira a dotar o conjunto de um aspecto proacuteprio de maneira a fazer dele uma espeacutecie de frase musical10

Desse modo nesse exemplo das toadas do reloacutegio similar ao do sino vemos

que ao percepcionar distraidamente as pancadas dos sons ao meu ouvido mesmo

colocando o elemento da conta na lembranccedila da sensaccedilatildeo essa sucessotildees natildeo nos aparecem

sobre a forma da justaposiccedilatildeo mas enquanto mudanccedila qualitativa como um transcorrer

em que o proacuteprio nuacutemero e sua contagem ganha um aspecto qualitativo Assim temos a

multiplicidade distinta em que percebemos os sons e ao mesmo tempo a memoacuteria de cada

uma delas nos permite apreendecirc-las como continuidade como se prolongassem umas nas

outras Eacute por esses dois aspectos que se fundem mas que satildeo distintos quanto agrave sua

natureza que Bergson postula que duas espeacutecies de multiplicidades se inscreveratildeo no eu

de cada um de noacutes Destarte eacute sob a siacutentese operada pela consciecircncia que nos deparamos

com uma versatildeo simboacutelica e homogecircnea do nossa vida interna

Ocorre que o eu superficial que eacute internamente distinto tal como os pontos

lanccedilados no espaccedilo e que reflete o modo pelo qual representamos a exterioridade finda por

projetar-se sobre as dimensotildees mais profundas da interioridade aquela que eacute puramente

temporal Essa tendecircncia acaba por camuflar esse eu fundamental que eacute de fato nossa

natureza substancial

Sem duacutevida tanto o eu superficial quanto o profundo nos satildeo constitutivos

mas eacute o primeiro que seraacute eleito como prioritaacuterio revestindo-se de uma relevacircncia absoluta

Ele seraacute via de regra concebido com a totalidade do que somos figurando simbolicamente

a dimensatildeo profunda do eu Processo em que a organicidade e o dinamismo profundo de

nossos estados de alma e dos afetos com sua densidade e sua vitalidade escapa-nos por

completo O espaccedilo adentra pois a dimensatildeo da duraccedilatildeo pura que nos habita de modo que

passamos a nos representar tal como representamos as coisas Em uacuteltima instacircncia o nosso

eu assume a tocircnica da interioridade inspecionada por uma psicologia desatenta e mesmo

10 Ibidem p 89

46

os afetos intensos os estados de alma que nada devem a exterioridade adquirem sua versatildeo

homogecircnea Mas como este eu mais profundo natildeo faz senatildeo uma uacutenica e mesma pessoa com o eu superficial parecem necessariamente duram da mesma maneira () nossa concepccedilatildeo ordinaacuteria da duraccedilatildeo se deve a uma invasatildeo gradual do espaccedilo no domiacutenio da consciecircncia pura ()11

Cumpre frisar como reconhece o autor que esse processo de subversatildeo e perda

de noacutes mesmos digamos assim constitui um caminho do qual natildeo podemos nos esquivar

Afinal como tantas vezes sustentado nos textos bergsonianos antes de sonhar o homem

precisa viver Para viver cumpre comunicar organizar a vida agir no mundo com os outros

conviver tolerar negociar ceder Ou seja se de direito a consciecircncia eacute pura

temporalidade fusatildeo e organizaccedilatildeo progressiva de si de fato eacute o eu homogecircneo que nos

permite viver e sobreviver eacute por meio da dimensatildeo superficial de nossa subjetividade que

alicerccedilamos nossa inserccedilatildeo no mundo humano O texto

A razatildeo estaacute em que a nossa vida exterior e por assim dizer social tem para noacutes mais importacircncia praacutetica do que a nossa existecircncia interior e individual Tendemos instintivamente a solidificar as nossas impressotildees para as exprimir mediante a linguagem Daqui confundirmos o proacuteprio sentimento que estaacute em perpetua mudanccedila com o seu objecto exterior permanente e sobretudo com a palavra que exprime esse objecto12

Essas consideraccedilotildees atestam pois que eacute o eu simboacutelico que prevalece eacute ele

que priorizamos e que temos em mente quando alimentamos a ideacuteia de que somos um

sujeito de que o conhecemos clara e distintamente Eacute ele que atesta a materialidade de

nossas vidas e que nos abre as vias da exploraccedilatildeo e do conhecimento do mundo Dada a

prioridade deste eu matemaacutetico e numeacuterico em nossas urgecircncias ligadas agrave sobrevivecircncia

ampliamos o seu alcance Sem este eu solidificado de fato a vida humana natildeo se

constituiria Bergson interroga ldquoSe cada um de noacutes vivesse uma vida puramente

individual se natildeo houvesse nem sociedade e nem linguagem a nossa consciecircncia captaria

sob esta forma indistinta a seacuterie de estados internosrdquo13 A resposta eacute peremptoriamente

negativa Mesmo destituiacutedos desses atributos ainda alinhariacuteamos estes estados em um

meio homogecircneo A intuiccedilatildeo de um espaccedilo homogecircneo pontua fortemente o autor

constitui uma preparaccedilatildeo para a sociabilidade ela nos diferencia dos animais consolida

11 Ibidem p 88 12 Ibidem p 91 13 Ibidem p 95

47

nossa capacidade de abstraccedilatildeo de representaccedilatildeo desse meio exterior permitindo que ele

se torne para noacutes objeto de conhecimento e locus de accedilatildeo

Mas Bergson natildeo deixa de apontar que para aleacutem da absoluta necessidade eacute

tambeacutem por comodidade que repousamos mais facilmente nessa dimensatildeo superficial do

eu a qual assume comumente o perfil das conveniecircncias e das frivolidades sociais Sem

duacutevida eacute cocircmodo alinhar os objetos colocando-os uns distintos uns dos outros o

alinhamento dos objetos e a utilizaccedilatildeo da linguagem dotadas de sentidos fixos e

consensuais facilita enormemente nosso controle sobre as coisas Ademais a percepccedilatildeo da

duraccedilatildeo pura eacute algo muito nebuloso obscuro exige um esforccedilo que nada tem a ver com a

loacutegica da eficaacutecia que pauta a operacionalizaccedilatildeo da vida Nesse sentido a capacidade de

espacializaccedilatildeo cauciona-nos para a vida praacutetica e abre-nos um leque infinito de

possibilidades de construccedilatildeo do mundo humano Aspecto que Bergson de modo algum

negligencia e que aprofundaraacute em seus trabalhos posteriores

No momento entretanto importa considerar o fato de que esses aspectos

justificam nossa preferecircncia pela representaccedilatildeo superficial do eu em detrimento das

instacircncias mais inacessiacuteveis as quais aos olhos da inteligecircncia regida pela faculdade da

espacializaccedilatildeo seratildeo sempre indiacutecios de confusatildeo de estranhamento e de eficiecircncia nula

Mas a despeito dos imperativos e das veleidades que nos fazem priorizar o eu superficial e

tomaacute-lo pela totalidade do que somos por mais que o eu simboacutelico prevaleccedila e atue como

um verdadeiro simulacro de nossa profundidade Bergson sublinha que essa realidade

heterogecircnea natildeo pode ser erradicada Ela viceja em noacutes e nos eacute sempre presente tal como

a multiplicidade qualitativa que ronda multiplicidade quantitativa O que ocorre eacute que a

consciecircncia anseia pela representaccedilatildeo simboacutelica de si ao priorizaacute-la finda por se afastar do

que traz em si de mais fundamental distanciando-se de uma realidade que lhe deveria ser

imediata Mas ela natildeo logra pulverizar ou minimizar a natureza de sua mais profunda

intimidade Bergson o assinala com um texto lapidar

Distingamos pois para concluir duas formas da multiplicidade duas apreciaccedilotildees muito diferentes da duraccedilatildeo dois aspectos da vida consciente Sob a duraccedilatildeo homogecircnea siacutembolo extensivo da duraccedilatildeo verdadeira uma psicologia atenta separa uma duraccedilatildeo cujos momentos heterogecircneos se penetram sob a multiplicidade numeacuterica dos estados conscientes uma multiplicidade qualitativa sob o eu dos estados bem definidos um em que sucessatildeo implica fusatildeo e organizaccedilatildeo Mas quase sempre nos contentamos como primeiro isto eacute com a sombra do eu projetado no espaccedilo homogecircneo14

14 Ibidem p 90

48

O que esse percurso um tanto quanto vagaroso pela reflexatildeo tecida em Os

dados imediatos nos revela eacute que a despeito da obstinaccedilatildeo prevalente da inteligecircncia em

optar pelo conforto do siacutembolo este eu fundamental pode ser reencontrado Mas para

ultrapassar esse eu distorcido por esse eu superficial e por uma consciecircncia

substancialmente compromissada com a praacutexis eacute necessaacuterio um verdadeiro esforccedilo do

pensar que evadindo-se das formas habituais de anaacutelise pemite que os limites entre as

duas esferas da subjetividade sejam depuradas afastando assim essa nossa interioridade

exteriorizada a qual guiada pelas convenccedilotildees pelos pensamentos formalizados e prontos

assemelha-se a folhas mortas na superfiacutecie de um lago Com esse esforccedilo de anaacutelise que

busca afastar os viacutecios da consciecircncia reflexa que olha criticamente seu modo de operar e

descreve o movimento genuiacuteno dos estados de alma o qual afinal eacute realizado pelo autor

de Os dados imediatos torna-se possiacutevel vislumbrar o eu revolto que pulsa no fundo das

aacuteguas Bergson assim coloca

Por outras palavras as nossas percepccedilotildees sensaccedilotildees emoccedilotildees e ideias apresentam-se sob um duplo aspecto um niacutetido preciso mas impessoal o outro confuso infinitamente moacutevel e inexprimiacutevel porque a linguagem natildeo o pode captar sem lhe fixar a mobilidade nem adaptar a sua forma banal sem o fazer descer ao domiacutenio comum15

Com efeito a dificuldade para encontrar esse eu fundamental reside justamente

no fato de que ele se apresenta sobre um aspecto antinocircmico agrave loacutegica que nos guia no

mundo praacutetico sua natureza movente revolta e que natildeo para de se transformar contradita

o eu superficial que se encontra coadunado com as representaccedilotildees espaciais e se constitui

em conformidade com as exigecircncias do mundo social Inequivocamente as exigecircncias da

praacutexis acabam por ofuscar essa natureza mais profunda Se ela natildeo pode erradicaacute-la logra

tornaacute-la ainda mais oculta Processo que se consolida com a traduccedilatildeo desses estados pelo

discurso linguiacutestico e que tem consequecircncias nefastas porquanto passamos a viver no

acircmbito de uma sombra da nossa subjetividade e a tomamos como o que haacute de mais genuiacuteno

em noacutes Como jaacute insinuamos diversas vezes nessas linhas a linguagem tem um papel

determinante da estruturaccedilatildeo desse eu quantitativo e espacializado Ela viabilizaraacute a vida

praacutetica mas natildeo o faraacute sem operar uma certa perda no limite ela se constituiraacute como um

obstaacuteculo ao acesso do eu profundo Voltemos pois agrave problemaacutetica da linguagem

15 Opus citatum

49

Enquanto signo de precisatildeo e modelo estaacutetico de pensamento as recursos

linguiacutesticos natildeo conseguem imprimir essa mobilidade da duraccedilatildeo-qualidade que eacute interior

a noacutes Ao traduzi-la acaba cristalizando-a em sentidos comuns e banais os quais suprimem

a unicidade e a singularidade dos afetos e dos estados de alma Isso porque ao dar

expressividade a nossos afetos e agraves vivecircncias profundas ao designar sentimentos uacutenicos

com siacutembolos gerais que se ajustam agraves mais distintas realidades o pensamento discursivo

opera uma solidificaccedilatildeo das nossas impressotildees uma retenccedilatildeo do progresso ininterrupto que

norteia o amadurecimento de sentimentos e ideias Deste modo ao ser nomeado o processo

temporal ou a mobilidade afetiva que constitui o eu adquire a tocircnica do imutaacutevel de modo

que nossos estados de almas se congelam e parecem natildeo mais sujeitos agrave modificaccedilatildeo

Bergson pontua

As nossas sensaccedilotildees simples consideradas no seu estado natural ofereceriam menos consistecircncia ainda Este sabor aquele perfume agradaram-me quando crianccedila e hoje repugnam-me Contudo dou ainda o mesmo nome agrave sensaccedilatildeo experimentada e falo como se o perfume e o sabor fossem idecircnticos quando soacute os meus gostos mudaram Portanto ainda cristalizo essa sensaccedilatildeo e quando a sua mobilidade adquire uma tal evidencia que me eacute possiacutevel reconhececirc-la retiro esta mobilidade para lhe dar um nome a parte e cristaliza-la por sua vez sob a forma de gosto16

Assim ainda que nossas percepccedilotildees sobre as coisas ou sobre os nossos estados

aniacutemicos mudem persistimos em classificaacute-los com o mesmo nome isto eacute recorremos agrave

linguagem que produz uma representaccedilatildeo artificial da multiplicidade das impressotildees e das

experiecircncias No entanto para aleacutem de uma simples maacute representaccedilatildeo da sensaccedilatildeo por noacutes

experimentada para Bergson a linguagem nos induz por vezes ao erro Suas imagens

luminosas o precisam

Assim quando como uma iguaria rara o seu nome enriquecido com a provaccedilatildeo que se lhe daacute interpotildee-se entre a minha sensaccedilatildeo e a minha consciecircncia poderei acreditar que o sabor me agrada quando um simples esforccedilo de atenccedilatildeo me provaria o contraacuterio Em siacutentese a palavra com contornos bem definidos a palavra em bruto que armazena o que haacute se estaacutevel de comum e por conseguinte de impessoal nas impressotildees da humanidade esmaga ou pelo menos encobre as impressotildees delicadas e fugitivas da nossa consciecircncia individual17

16 Ibidem p 91 Grifo do autor 17 Ibidem p 92

50

Tambeacutem na impressatildeo comum do dia a dia deparamo-nos com os mesmos

objetos os quais com o passar do tempo comeccedilam a ganhar uma familiaridade para noacutes

no entanto a despeito de tal familiaridade um dia percebemos uma mudanccedila singular e

parece que eles se modificaram e envelheceram tal como noacutes Mas as mudanccedilas satildeo

percebidas em bloco jamais em sua processualidade Ora o modo pelo qual a linguagem

capta a mudanccedila fora de noacutes na vida praacutetica eacute correlato ao modo pelo qual apreendemos

sempre o nosso eu como algo solidificado que nos parece imutaacutevel - ou cujas

transmutaccedilotildees percebemos com jaacute concluiacutedas visto que a percepccedilatildeo da mudanccedila seja nas

coisas seja em noacutes nos escapa invariavelmente Isso tem a ver com as necessidades da

nossa vida social isto eacute com um eu que estaacute imerso na superficialidade das coisas e da

vida social e que estendemos para a totalidade de nossa vida psicoloacutegica Ou seja

acabamos por aprendecirc-lo apenas em sua dimensatildeo superficial como se assim o nosso eu se

nos revelasse por inteiro Em suma em virtude das acomodaccedilotildees da vida praacutetica tendemos

a estabilizar nossas impressotildees profundas e internas solidificando nossas impressotildees em

um eu exterior imerso no mundo social Daiacute resulta a cristalizaccedilatildeo das impressotildees voluacuteveis

da alma e o fato de que nos restringimos a uma visatildeo imoacutevel da mobilidade

Inequivocamente a linguagem opera essa ilusatildeo ela natildeo soacute daacute estabilidade ao que eacute

instaacutevel tirando a essecircncia movente das impressotildees mas para aleacutem disso tem o poder de

manipular e de distorcer o sentido das impressotildees Atendo-nos agraves representaccedilotildees que com

ela construiacutemos os dados que nos satildeo imediatos distanciam-se perdemo-nos de noacutes

mesmo Dito de outro modo esse instrumento que nos eacute primordial e imprescindiacutevel finda

por prejudicar a apreensatildeo imediata dessa experiecircncia interior pois existe de fato uma

discordacircncia entre aquilo que formulamos em termos de linguagem e a realidade interior

da duraccedilatildeo Tal problema tem sua origem numa inadequaccedilatildeo entre os siacutembolos linguiacutesticos

estaacuteticos e fixos ndash que natildeo se dissociam do pensar voltado para a accedilatildeo ou seja da natureza

da inteligecircncia - e dos quais nos servimos para nomear o real e a realidade fluiacuteda e interior

da duraccedilatildeo Problema que Bergson jaacute estampava no prefaacutecio de Os dados Imediatos

A consciecircncia atormentada por um desejo insaciaacutevel de distinguir substitui o siacutembolo pela realidade ou natildeo percepciona a realidade atraveacutes do siacutembolo Com o eu assim refractado e por isso mesmo subdividido se presta infinitamente melhor agraves exigecircncias da vida social em geral e da linguagem em particular ela prefere-o e perde pouco a pouco de vista o eu fundamental18

18 Ibidem p 9

51

No limiar da obra Bergson jaacute admite uma inadequaccedilatildeo entre nossos recursos

de expressatildeo e a duraccedilatildeo interior pois tendemos pelas exigecircncias da vida social a usar

uma linguagem estaacutetica tendo como norte nossa adaptaccedilatildeo agrave vida praacutetica19 Essa

linguagem ao ter em vista a utilidade da praacutexis esfera em que tudo eacute representado como

espacialmente disposto provoca um distanciamento em relaccedilatildeo agrave duraccedilatildeo interior ou seja

produz um vazio estabelecido entre nossa representaccedilatildeo da consciecircncia e as suas instacircncias

mais profundas Instaura-se assim uma profunda discordacircncia entre aquilo que

formulamos em termos de linguagem e a realidade interior que se quer exprimir20 Tal

problema tem sua origem numa inadequaccedilatildeo entre a nossa linguagem estaacutetica e fixa e a

natureza da realidade que viceja em nossa interioridade universo onde podemos sentir os

estados que se entrelaccedilam na duraccedilatildeo contiacutenua quando por exemplo tocamos no fundo

de noacutes mesmo apreendendo assim algo da proacutepria totalidade que nos perpassa a qual se

perde ao ser traduzida pelas ferramentas que nos permitem a elocuccedilatildeo Cumpre observar

que este aspecto impregnaraacute tanto os modos de expressatildeo comuns quanto aqueles que

prevalecem no discurso cientiacutefico Ainda no Prefaacutecio de Os dados imediatos Bergson

observa

Exprimimo-nos necessariamente por palavras e pensamentos quase sempre no espaccedilo Isto eacute a linguagem exige que estabeleccedilamos entre as nossas ideias as mesmas distinccedilotildees niacutetidas e precisas a mesma descontinuidade que entre os objetos materiais Essa assimilaccedilatildeo eacute uacutetil na vida praacutetica e necessaacuteria na maioria das ciecircncias Mas poder-se-ia perguntar se as dificuldades insuperaacuteveis que certos problemas filosoacuteficos levantam natildeo advecircm por teimarmos em justapor no espaccedilo fenocircmenos que natildeo ocupam espaccedilo e se abstraindo das grosseiras imagens em torno das quais se polemiza natildeo lhes poriacuteamos termo21

Vemos aqui o autor tomar como foco central o desajuste entre nossa forma de

pensar que eacute viabilizada pelos signos linguiacutesticos e os elementos da pura duraccedilatildeo que ao

19 ldquoA continuidade da filosofia de Bergson trataraacute de mostrar que a apreensatildeo dos objetos materiais isolados eacute relativa aos nossos haacutebitos intelectuais derivados da apreensatildeo praacutetica do real efetivada pela percepccedilatildeo ndash que eacute um processo essencialmente destinado agrave accedilatildeo ndash e elaborada pelo trabalho de abstraccedilatildeo da inteligecircncia (e da linguagem) Eacute a aplicaccedilatildeo sem limites e sem criacutetica dos processos intelectuais derivados da praacutexis aos questionamentos metafiacutesicos que acaba por afirmar a existecircncia e a essecircncia da mateacuteria como objeto materialrdquo (PINTO Bergson e os dualismos p 5) A pesquisadora Deacutebora Morato trata aqui de um problema que seraacute melhor fundamento em Mateacuteria e Memoacuteria e que tange agrave elevaccedilatildeo da representaccedilatildeo ao modelo fundamental de conhecimento Consequecircncia sobretudo da maneira como apreendemos o mundo pela exterioridade espacial - sendo a representaccedilatildeo como consequecircncia da nossa adaptaccedilatildeo agrave exterioridade 20 ldquoEvidencia-se nessa medida o sentido dos dois primeiros capiacutetulos aqueles que aparentemente mais se aproximam de um dualismo (instituiacutedo via dissociaccedilatildeo da experiecircncia) a apreensatildeo de uma das dimensotildees da experiecircncia real que cotidiana e regularmente se oculta pelas necessidades da praxis e cujo ocultamento eacute a mola mestra do pensamento conceitual quer ele se manifeste no senso comum na ciecircncia ou na metafiacutesicardquo (PINTO Bergson e os dualismos p 4) 21 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 9

52

serem traduzidos pelo pensamento satildeo justapostos de modo descontinuado no espaccedilo

Mas essa passagem na abertura do livro alude ao ponto que por todo o livro estaraacute sob o

fogo criacutetico do filoacutesofo quer dizer o fato de que ao voltarmos nossa atenccedilatildeo agrave vida praacutetica

produzimos gradativamente uma ciecircncia que ratifica esse modelo espacial de apreender a

realidade Criacutetica que se estende igualmente agrave filosofia Vale notar que no decorrer de sua

obra Bergson natildeo deixaraacute de apontar a dificuldade e a necessidade da sua e de toda a

filosofia em encontrar uma expressividade adequada ao seu objeto22 Como nota F Worms

ao pontuar nossa limitaccedilatildeo perante a linguagem e o modo pelo qual espacializamos

realidades imateriais aos nomeaacute-las e distingui-las segundo os recursos simboacutelicos

Bergson mostra que eacute daiacute que se originam os grandes falsos problemas filosoacuteficos Afinal

com a linguagem criamos os conceitos as teorias que instauram um universo abstrato

fixando e coisificando em quadros simboacutelicos a experiecircncia moacutevel e temporal da

realidade23 No caso da psicologia esse processo culmina na coisificaccedilatildeo do eu em sua

22 Todavia a criacutetica ao alcance da linguagem e a discussatildeo acerca da possibilidade de rompimento de sua superficialidade no que tange agrave apreensatildeo da duraccedilatildeo em sua forma pura natildeo eacute resolvido com facilidade Justamente em virtude desse caraacuteter necessaacuterio a linguagem enquanto condiccedilatildeo empiacuterica circunscreve nossa relaccedilatildeo objetiva e exterior ao objeto de uma maneira instrumental Diz-nos o filosofo que se tiveacutessemos todo o conhecimento ilimitado na percepccedilatildeo natildeo teriacuteamos necessidade da concepccedilatildeo cuja explicitaccedilatildeo natildeo se daacute sem a linguagem Atentemos ao texto ldquoConceber eacute um paliativo quando natildeo eacute dado perceber e o raciociacutenio eacute feito para colmatar os vazios da percepccedilatildeo ou para estender o seu alcance Natildeo nego a utilidade das ideias abstratas e gerais ndash como tatildeo pouco contesto o valor do papel-moeda Mas assim como papel moeda natildeo eacute mais que uma promessa de ouro assim tambeacutem uma concepccedilatildeo soacute vale pelas percepccedilotildees possiacuteveis que representardquo (BERGSON O Pensamento e o Movente p 151) Observemos que aqui se revela uma sutileza retoacuterica ou seja concebemos porque natildeo alcanccedilamos um conhecimento ilimitado na percepccedilatildeo e por isso mesmo nossa linguagem se apresenta como uma mediaccedilatildeo paliativa um deacuteficit perante nossa insuficiente compreensatildeo revelando um fosso entre nossa representaccedilatildeo e os objetos Desse modo eacute no intuito de resolver essa inadequaccedilatildeo de nossa representaccedilatildeo que se faz necessaacuteria uma criacutetica ao seu alcance mostrando que ao contraacuterio da uma visatildeo imperante na tradiccedilatildeo metafiacutesica sobretudo a moderna podemos nos voltar para um conhecimento imediato distinto da posiccedilatildeo reflexiva da inteligecircncia 23 Seguindo o comentador notemos que tais problemas se evidenciam sobretudo nos paradoxos encontrados nas disputas das argumentaccedilotildees relativas aos problemas filosoacuteficos Um problema que se constroacutei no acircmbito da disputa fundada por uma linguagem abstrata nunca explicita o seu nuacutecleo o qual inversamente em sua efetividade poderia ser apreendido numa intuiccedilatildeo simples e uacutenica Para Bergson a linguagem se apresenta sobretudo como um paradoxo visto que ela nunca logra representar a intuiccedilatildeo simples da duraccedilatildeo a qual se revela de fato intraduziacutevel Desse modo um discurso calcado no puro jogo argumentativo ndash e portanto dissociado dos dados concretos e imediatos - nunca alcanccedila a natureza real do problema Por essa razatildeo Bergson afirma que os debates retoacutericos e argumentativos que se desdobram ao longo da histoacuteria da filosofia restritos ao plano da especulaccedilatildeo natildeo passam de debates pautados numa linguagem que os manteacutem na exterioridade do problema central e portanto em grande parte desprovidos de sentido ldquoEis entatildeo a questatildeo que se potildee e que tomo por essencial Uma vez que toda tentativa de filosofia puramente conceitual suscita tentativas antagocircnicas e que no terreno na dialeacutetica pura natildeo haacute sistema ao qual natildeo se possa opor a outro iremos noacutes permanecer nesse terreno ou seraacute que natildeo deveriacuteamos antes (sem renunciar nem eacute preciso dizecirc-lo ao exerciacutecio das faculdades de concepccedilatildeo e de raciociacutenio) voltar agrave percepccedilatildeo conseguir dela que se dilate e estenda (BERGSON O Pensamento e o Movente p 154) Isso natildeo impede que em seu desdobramento sua filosofia enfatize a urgecircncia de uma linguagem outra capaz de atingir o objeto no que ele tem de particular absorvendo seu significado mais autecircntico Sobre este ponto Leopoldo e Silva acrescenta Qual eacute a linguagem da filosofia Se tomarmos esta pergunta como criteacuterio orientador para uma leitura da obra bergsoniana chegaremos ao final do percurso sem encontrar

53

matematizaccedilatildeo Eis o que revelam as anaacutelises tecidas pelo autor em Os dados imediatos

texto no qual a reflexatildeo bergsoniana problematiza a razatildeo pela qual a interioridade se oculta

ou se perde ante uma ciecircncia que se arvora na condiccedilatildeo de defini-la e no limite de adestraacute-

la evidenciando o papel que os recursos da expressatildeo e do pensamento assumem neste

desvio Afinal como sustenta o autor em outro lugar a inteligecircncia ldquo() se manifesta por

uma atividade que eacute um preluacutedio agrave arte mecacircnica e por uma linguagem que anuncia a

ciecircnciardquo24 Explicita-se assim o caraacuteter puramente simboacutelico das ciecircncias matemaacuteticas e

das ciecircncias que nela se espelham mesmo aquela que se aventura pela alma humana as

quais em vez de apreenderem o proacuteprio objeto o representam por meio de uma ferramenta

abstrata que o fragmenta e o espacializa Esta tendecircncia sem duacutevida perpetua as praacuteticas

do senso comum o qual ao atrelar-se agrave percepccedilatildeo praacutetica e por estar voltado agrave vida social

natildeo almeja o alargamento da apreensatildeo do real em sua dimensatildeo imediata Ademais

lembremos que a questatildeo central no primeiro livro de Bergson concerne justamente a um

problema metafiacutesico a liberdade o qual natildeo seraacute devidamente compreendido quando

enfrentado dentro dos paracircmetros fixos da linguagem cientiacutefica ou filosoacutefica

Notadamente essa eacute uma questatildeo fundamental do bergsonismo e ela

reapareceraacute em nosso percurso Por ora uma vez que eacute a discussatildeo tecida no primeiro livro

o nosso foco a referecircncia a essa problemaacutetica vem aqui apenas esclarecer o modo pelo

qual a linguagem seja ela cientiacutefica ou natildeo ao mesmo tempo em que se associa ao espaccedilo

viabilizando a sociabilidade e a organizaccedilatildeo do mundo nos impede de apreender a

realidade dos afetos O que escapa assim eacute a dimensatildeo ontoloacutegica do eu aquela que se

confunde com o tempo e que se opotildee a toda materialidade uma vez que ao fragmentaacute-la e

ao dar a ela a inteligibilidade dos siacutembolos findamos por sacrificaacute-la coisificando-a

Decerto o que persiste em nossa interioridade profunda eacute um progresso

constante uma subjetividade movente e temporal cujos momentos natildeo apenas mudam

permanentemente mas ao mudarem operam uma transformaccedilatildeo na totalidade do que

somos e dos momentos antecedentes Daiacute que seja impossiacutevel a delimitaccedilatildeo em blocos

estanques dos elementos que a constituem O que existe em noacutes profundamente eacute a duraccedilatildeo

da qual nos afastamos devido agrave nossa inserccedilatildeo no universo representacional e discursivo

Instaura-se pois uma distacircncia entre essa realidade e a forma pela qual a linguagem e o

uma resposta efetiva Esta ausecircncia decorre do caraacuteter que Bergson atribui agrave linguagem produto da inteligecircncia concebida como faculdade instrumental A inteligecircncia eacute o meio de que a natureza nos dotou para triunfar sobre a mateacuteria e organizar o mundo da perspectiva das necessidades humanas (LEOPOLDO E SILVA Intuiccedilatildeo e Discurso Filosoacutefico p 9) 24 BERGSON O Pensamento e o Movente p 84

54

conceito com a solidez que lhes eacute peculiar acabam por exprimir esse progresso o que

deturpa essa natureza e impregna de fixidez as nossas formas de sentir e ver o mundo dentro

e fora de noacutes

A evidecircncia da diferenccedila e do hiato que se instaura entre a representaccedilatildeo da

linguagem e a experiecircncia concreta fica mais clara no caso dos sentimentos realidades que

atingem as mais variadas gradaccedilotildees e nuances sensiacuteveis as quais satildeo inapreensiacuteveis agrave

delimitaccedilatildeo conceitual Eacute da natureza do sentimento crescer se desenvolver sua natureza

eacute a da constante transformaccedilatildeo da mutabilidade das gradaccedilotildees que se delineiam

incessantemente Eis a coloraccedilatildeo de sua originalidade a qual perde seus tons e sua

concentraccedilatildeo ao ser conceitualizada Um caminhar constante e elaacutestico dos momentos que

eacute a cor proacutepria do sentimento Remetendo-nos agraves primeiras paacuteginas de sua investigaccedilatildeo

Bergson escreve

Um amor violento uma melancolia profunda invadindo a nossa alma satildeo infindos elementos diversos que se fundam se penetram sem contornos precisos sem a menor tendecircncia a experiorizarem-se uns relativamente aos outros a sua originalidade tem esse preccedilo25

Eis a vida que eacute a proacutepria natureza do afeto tal qual o tempo ininterrupto da

vivecircncia pura em que os momentos do tempo se interpenetram A evoluccedilatildeo afetiva

destarte aproxima-se do amadurecimento na escolha de uma resoluccedilatildeo Bergson

acrescenta

O proacuteprio sentimento eacute um ser que vive se desenvolve e consequentemente muda sem cessar caso contraacuterio natildeo se compreenderia como nos levou pouco a pouco a uma resoluccedilatildeo a nossa resoluccedilatildeo seria imediatamente tomada26

Vale ratificar ao expor essa realidade afetiva em espaccedilos justapostos acabamos

por esterilizar a singularidade de sua coloraccedilatildeo e damos a ela um sentido comum e

coloquial Impessoal portanto O que se perde eacute o caraacuteter proacuteprio e vivo da vida interior a

vivacidade dos estados que se interpenetram e a compotildeem O que se perde eacute a dinamicidade

do eu profundo A incapacidade de apreender a natureza de nossos afetos e de nossos

estados drsquoalma se confunde com a incapacidade para apreendermos o nosso proacuteprio eu o

qual concebido simbolicamente eacute tatildeo descolorido quanto sentimentos justapostos e

destituiacutedos de sua heterogeneidade Assim como desnaturalizamos nossos afetos ao

25 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 92 26 Ibidem p 92

55

traduzi-los em palavras cujos significados gerais foram socialmente convencionados e

transformados em gecircneros desconhecemo-nos quando segmentamos e discursamos acerca

do dinamismo orgacircnico de nosso eu profundo Condenados a lidar com nossos afetos como

se coisas fossem a apreender apenas a sombra exteriorizada de nosso eu convencional

vislumbrando-o pelas vias dos siacutembolos que o desnaturalizam enquanto experiecircncia

muacuteltipla essa supressatildeo da experiecircncia ininterrupta acaba por nos distanciar em uacuteltimo

caso de noacutes mesmos A percepccedilatildeo da multiplicidade qualitativa que neles viceja e que nos

constitui a experiecircncia imediata dessa sutileza infinita de mutaccedilotildees e transformaccedilotildees dos

nossos estados de alma nos daria uma visatildeo mais proacutexima da nossa experiecircncia real Isso

faria o romancista cujas palavras deslocadas de seus sentidos utilitaacuterios talvez nos

desvelassem natildeo a justaposiccedilatildeo dos estados de alma e dos elementos constitutivos do eu

mas a ldquointerpenetraccedilatildeo infinita de mil impressotildees diversas que jaacute deixaram de o ser na

altura que os nomeamosrdquo27 Esse artista audacioso sustenta Bergson conseguiria nos

compreender mais do que noacutes mesmos

Provavelmente a experiecircncia profunda e a compreensatildeo efetiva dessa natureza

do nosso eu iacutentimo natildeo possa se dar em um profundo espanto um estranhamento que eacute

tambeacutem a aventura de mergulhar numa realidade distinta daquela que nos eacute habitual Para

tanto seria preciso abandonar a zona de conforto em que a linguagem usual nos deixa e

lutar contra a nossa da obsessatildeo pela figuraccedilatildeo espacial Dito de outro modo para que o eu

se deixasse viver em sua dimensatildeo autecircntica seria preciso entender que quando trocamos

as experiecircncias por siacutembolos acomodados pela linguagem comum acabamos por deturpar

a natureza vivida da experiecircncia interior Seria preciso ainda ousar o desajuste em relaccedilatildeo

agraves formas de pensar e de sentir generalizadas o que nos colocaria em descompasso com o

comportamento comum Sim porque certos pensamentos que parecem mesclados aos

afetos que por vezes nos assaltam e impregnam a totalidade de nosso eu com um ldquoardor

irrefletidordquo se constituem como ideias que nada tem de justapostas mas que expressam a

interpenetraccedilatildeo constante de nossos estados de alma Esses pensamentos nos arrebatam

porque trazem neles algo do que haacute de mais intenso em cada um de noacutes Bergson assinala

As opiniotildees que mais nos agarramos satildeo as que explicamos com mais dificuldade e as razotildees com que as justificamos raramente satildeo as que nos levaram a adoptaacute-las Em certo sentido adoptaacutemo-las sem razatildeo porque aos nossos olhos o seu valor reside em que o seu cambiante

27 Ibidem p 93

56

corresponde agrave coloraccedilatildeo comum de todas as nossas ideias porque logo de iniacutecio vimos nelas algo de noacutes28

Tais pensamentos ou ideias natildeo admitem a tocircnica comum das palavras jaacute

imbuiacutedas de sentidos cristalizados Ao serem expressos ainda que o sejam pelas palavras

comuns a todos eles de algum modo revelam a riqueza da experiecircncia interior que ao se

expandir para a totalidade do nosso eu ofuscando a sua dimensatildeo simboacutelica enchem de

vida as nossas ideias e permitem que com elas advenha um sentido novo e original Ao

aflorar esse pensamento novo integra-se agrave totalidade de nossa alma a qual modificada e

em estado de vibraccedilatildeo nos impregna por completo Sem duacutevida satildeo esses os momentos

em que o ldquoeu se deixa viverrdquo29

Claro que esse natildeo eacute o modo habitual pelo qual opera nosso pensamento natildeo

eacute assim que comumente produzimos ideias Em geral elas nos chegam jaacute prontas adquirem

uma aparecircncia de imobilidade sem a vivacidade pessoal ou a plenitude do eu De fato

quanto mais exprimirmos nossas ideias de modo espacializado na exterioridade proacutepria da

linguagem comum mais impessoal se sem vida elas se revelaratildeo Por isso para o filoacutesofo

as ideias mais proacuteprias e vivas satildeo as mais difiacuteceis de se expressar com as palavras as

ideias que nos chegam prontas desde jaacute utilizadas e utilizaacuteveis pela linguagem comum

satildeo obviamente as mais faacuteceis de serem expressas Satildeo essas as ideias que afloram na

dimensatildeo mais superficial de nosso eu ideias inertes e impessoais cuja natureza clara e

distinta assemelha-se ao nuacutemero Eacute a elas que se aplicam a teoria associacionista que se

propotildee a conhecer cientificamente a realidade subjetiva o homem o nosso eu No entanto

lembremos que ao apreendermos a multiplicidade quantitativa ao adicionar seus elementos

e vislumbrarmos nesse processo alguma dinamicidade ressoa de um fundo natildeo claro uma

multiplicidade qualitativa que nos constitui profundamente Sem duacutevida os pensamentos

e as ideias que facilmente verbalizamos aquelas que se apresentam imoacuteveis e justapostos

uns aos outros exteriorizados em formas soacutelidas e conceituais habitam as camadas mais

superficiais da consciecircncia e refletem aquelas produzidas pela sociedade pelo contato do

eu com o mundo exterior Por detraacutes delas caso fosse possiacutevel ter essa visatildeo veriacuteamos as

ideias e pensamentos se fundirem o que nos remeteria a uma inteligecircncia viva cujas ideias

natildeo se distinguem dos estados aniacutemicos que se interpenetram e se recriam

28 Ibidem p 94 29 Ibidem p 72

57

permanentemente Assim adviria um pensamento inquieto mutante imageacutetico do qual

por vezes o sonho nos aproxima

A imaginaccedilatildeo do sonhador isolada do mundo externo reproduz em imagens simples e parodia agrave sua maneira o trabalho que incessantemente se prossegue sobre as ideias nas regiotildees mais profundas da vida intelectual30

Em suma com esses argumentos Bergson ratifica que nossa vida interna

apresenta duas esferas uma voltada agrave exterioridade movida por um tempo homogecircneo

cujos elementos apresentam-se enquanto quantidade enquanto dados exteriores uns aos

outros a outra impulsionada por uma vida movente e profunda em que os momentos se

fundem e nos datildeo a visatildeo de um movimento progressivo e orgacircnico dos estados que se

amalgamam e que se recriam continuamente Aqui prevalece a pura duraccedilatildeo O eu

interior que constitui de fato nossas impressotildees reais e vivas das coisas eacute ofuscado pela

exteriorizaccedilatildeo operada pela representaccedilatildeo espacial e pela linguagem em prol da

sociabilidade a qual insistimos nos eacute imprescindiacutevel Mas o meio homogecircneo e a

linguagem a despeito do triunfo social que viabilizam acabam por camuflar a natureza

do eu interior que nos desvela o que haacute de mais denso profundo e vital em noacutes que nos

revela afinal o ser em noacutes o que haacute de absoluto e ontoloacutegico em nossa existecircncia Assim

se o eu espacializado nos insere numa vida social necessaacuteria e eficaz quando tomado

pela totalidade de nossa vida subjetiva ele nos condena a uma vida inferior Eacute ao eu

habitante desta vida que a psicologia desatenta ou associacionista se restringe Seria

preciso superaacute-la para compreender que o descolorido o banal a frivolidade a vida

convencional natildeo eacute o uacutenico registro de nossa interioridade natildeo eacute tampouco o destino

inexoraacutevel do eu de cada um de noacutes Ele pode tambeacutem aceder a uma existecircncia mais

profunda a qual viabilizaria a experiecircncia da autonomia numa palavra agrave liberdade

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BERGSON Henri Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciecircncia Lisboa Ediccedilotildees 70 1988

_______________ O Pensamento e o Movente Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

30 Ibidem p 95

58

LEOPOLDO E SILVA Franklin Bergson Intuiccedilatildeo e Discurso Filosoacutefico Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1994

PINTO Deacutebora Bergson e os dualismos Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophppid=S010131732004000100007ampscript=sci_arttextamptlng=pt 2013

WORMS Freacutedeacuteric Bergson ou os dois sentidos da vida Satildeo Paulo Editora Unifesp 2010

DO NIILISMO Agrave EXPERIEcircNCIA TOTALITAacuteRIA

Elvis de Oliveira Mendes1

RESUMO O presente artigo pretende mostrar de que maneira o filoacutesofo poliacutetico teuto americano Leo Strauss tenta por meio de uma reflexatildeo acerca do fenocircmeno histoacuterico da tirania desenvolver uma compreensatildeo maior do advento dos totalitarismos do seacuteculo XX o que o filoacutesofo veio a chamar de ldquotirania de nossos temposrdquo Deste modo o esforccedilo empreendido aqui por Strauss eacute o de traccedilar uma espeacutecie de leitura sobre ou uma investigaccedilatildeo de quais seriam por assim dizer as raiacutezes intelectuais dos regimes totalitaacuterios e sobretudo do nazismo Palavras-chave Niilismo Leo Strauss Tirania Totalitarismos Nazismo ABSTRACT The present article aims to show how the Teutonic American political philosopher Leo Strauss tries by means of a reflection on the historical phenomenon of the tyranny to develop a greater understanding of the advent of the totalitarianisms of the twentieth century what the philosopher came to call tyranny of our times Thus Strausss effort here is to trace a kind of reading about or an inquiry into what are so to speak the intellectual roots of totalitarian regimes and above all of Nazism Keywords Nihilism Leo Strauss Tyranny Totalitarianism Nazism

Introduccedilatildeo

A escolha de um nome como o de Leo Strauss para efetuar uma abordagem

seacuteria de um dos mais importantes complexos e polecircmicos temas da histoacuteria recente natildeo

eacute de maneira alguma uma escolha arbitraacuteria ou inoacutecua De fato a escolha de uma das mais

importantes mentes da filosofia poliacutetica do seacuteculo XX se daacute devido agrave magnitude da

reflexatildeo por ela produzida reflexatildeo esta que o presente ensaio pretende analisar em um

de seus aspectos Ora para dar iniacutecio adequadamente a esse procedimento eacute preciso

compreender que estamos diante de um filoacutesofo alematildeo de origem judaica filho de uma

Alemanha em que os judeus viveram um periacuteodo profundamente marcado por um

sentimento de esperanccedila e prosperidade o sonho de uma vida nova de um futuro melhor

para seus filhos e netos sentimento sem precedentes para o povo judeu cuja histoacuteria havia

sido marcada ateacute aquela eacutepoca pela vida nos cativeiros e guetos Natildeo obstante o sonho

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (elvisoliverlivecom) Meus agradecimentos ao prof Dr Richard Romeiro Oliveira (UFSJ) pela revisatildeo final deste artigo

60

de um lar para quae beata vita viria a se tornar um pesadelo marcado pela perseguiccedilatildeo

humilhaccedilatildeo tortura e morte em massa Esse episoacutedio obscuro e brutal que marca

fatalmente natildeo apenas a histoacuteria da Europa mas a histoacuteria da humanidade eacute de igual

maneira uma paacutegina triste que marca diretamente e de forma seminal toda a vida de

Strauss jaacute que os acontecimentos funestos da Alemanha da deacutecada de 1930 foram

sentidos como ldquonavalha na carnerdquo desse ateacute entatildeo desconhecido acadecircmico alematildeo que

posteriormente viria a se tornar um dos maiores teoacutericos poliacuteticos do seacuteculo XX2

Neste contexto os eventos ocorridos na deacutecada referida mudaram

indubitavelmente para sempre o curso da vida de Strauss e pode-se dizer que tal

mudanccedila de curso deu novos contornos ao seu pensamento o que se desvela como fator

decisivo para o entendimento da construccedilatildeo de sua obra intelectual Ora com a ascenccedilatildeo

do nacional socialismo alematildeo em 1933 Strauss por sua descendecircncia judaica se tornara

persona nom grata em plena terra natal Diante deste cenaacuterio fugir para longe dali assim

como deixar parentes e amigos para traacutes se configurou como uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia A exemplo de outros germans eacutemigreacutes como Arendt Voegelin Loumlwith e

vaacuterios outros que fugiram da perseguiccedilatildeo de cunho antissemita que se propagou pela

Europa Strauss recebeu natildeo apenas exiacutelio nos EUA mas uma nova paacutetria que o acolheu

e forneceu as condiccedilotildees necessaacuterias para a continuaccedilatildeo e posterior florescimento de um

edifiacutecio intelectual grandioso3

Assim levando em conta esses elementos nosso objetivo aqui seraacute o de tentar

refletir agrave luz das contribuiccedilotildees deste filoacutesofo poliacutetico sobre algumas importantes e difiacuteceis

questotildees acerca da ascensatildeo e legitimaccedilatildeo dos regimes totalitaacuterios e das poliacuteticas

extremas da primeira metade do seacuteculo passado no intuito de refletir acerca de algumas

questotildees centrais como quais fatores causaram isso Como todos foram convencidos

Quem autorizou esses regimes Que fatores emocionais contribuiacuteram para tal

Evidentemente natildeo eacute a pretensatildeo do presente ensaio responder a cada uma dessas

questotildees de forma exaustiva pois isso exigiria a efetuaccedilatildeo de desenvolvimentos analiacuteticos

que natildeo caberiam nos limites deste breve ensaio A nossa pretensatildeo aqui eacute ao contraacuterio

de certa maneira bem mais modesta o que natildeo quer dizer menos complexa qual seja

refletir a partir da visatildeo straussiana acerca das raiacutezes intelectuais que tornaram a crenccedila

2 Ver sobre isso VILLA D The Philosopher versus the Citizen Arendt Strauss and Socrates In VILLA D Politics Philosophy Terror Princeton Princeton University Press 1999 pp 155-179 3 Sobre a trajetoacuteria de Strauss ver BLOOM A ldquoLeo Strauss September 20 1889 ndash October 18 1973rdquo Political Theory v 2 no 4 (1974) p 372-392

61

nos regimes totalitaacuterios uma crenccedila consistente Sendo assim as questotildees

supramencionadas nos serviratildeo portanto de fio condutor e de objeto para nossa

abordagem

Como jaacute foi mencionado anteriormente tentaremos refletir acerca dessas

difiacuteceis questotildees tendo como horizonte norteador o pensamento filosoacutefico de Leo Strauss

Recorrendo a esse referencial straussiano tentaremos seguir outra direccedilatildeo ou melhor

tentaremos buscar outra forma de abordagem desse polecircmico assunto forma de

abordagem que de certa maneira natildeo se limite apenas a uma busca de culpados monstros

e criminosos Definitivamente o esforccedilo empreendido aqui tentaraacute ir aleacutem das

interpretaccedilotildees ordinaacuterias (historicizantes) comumente elaboradas que quase em sua

totalidade reduzem os debates acerca desse assunto a uma espeacutecie de ldquocaccedila agraves bruxasrdquo

ou de ldquodemonizaccedilatildeordquo do passado ou se se preferir de crucificaccedilatildeo dos culpados

procedimento que quase sempre com rariacutessimas exceccedilotildees desemboca em um

anacronismo de caraacuteter totalmente maniqueiacutesta Definitivamente natildeo eacute esse nosso

objetivo aqui

Neste sentido no que diz respeito ao fenocircmeno dos totalitarismos Strauss

parece ser bastante realista evitando assim o jaacute mencionado reducionismo histoacuterico De

toda sorte o professor de Chicago natildeo busca culpados mas tenta compreender a

totalidade do fenocircmeno em seus vaacuterios desdobramentos Seguindo esta orientaccedilatildeo

tentaremos antes de tudo entender o tipo de sociedade e o tipo de homem que surge com

o advento da modernidade Ora para Strauss para compreender minimamente os fatores

que geraram a conditio sine qua non que guiou o mundo agrave loucura de duas guerras

mundiais e ao banho de sangue que marcam o seacuteculo XX tal compreensatildeo soacute eacute possiacutevel

se entendermos a raison decirctre das ideologias que brotam com a consolidaccedilatildeo das ciecircncias

modernas Para Strauss parece claro que os valores e crenccedilas cultivados pelo homem

moderno ou pelo Zeitgeist da modernidade4 quais sejam as crenccedilas no ldquomito do

progressordquo no racionalismo exacerbado e na supervalorizaccedilatildeo da ciecircncia e da teacutecnica

somadas ao forte sentimento de ovaccedilatildeo das identidades nacionais (volkgeist) e clamor de

teorias igualitaristas de caraacuteter fortemente salviacutefico e messiacircnico foram alguns dos

elementos necessaacuterios para a configuraccedilatildeo dos eventos nefastos que estariam por eclodir

Observando esses elementos Strauss julga que sua combinaccedilatildeo estava fadada a culminar

no espetaacuteculo mais brutal da histoacuteria

4 Ler sobre isso ROSEN Stanley Leo Strauss and the Problem of the Modern In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 119-136

62

Dando desenvolvimento agrave nossa anaacutelise podemos dizer que na medida em

que a experiecircncia das poliacuteticas extremas marca de forma decisiva a filosofia poliacutetica de

Leo Strauss natildeo nos surpreende que o mesmo tenha dedicado parte de sua obra ao tema

da perseguiccedilatildeo e ao problema das relaccedilotildees entre a poliacutetica e a filosofia no intuito de

evidenciar o conflito entre o filoacutesofo e a cidade5 e com isso ressaltar a periculosidade

das ideias filosoacuteficas quando transformadas em um instrumento meramente pragmaacutetico e

poliacutetico isto eacute quando convertidas em uma praacutetica mundana ativista e interessada

levada agraves uacuteltimas consequecircncias Embora Strauss natildeo possua nenhuma obra dedicada

exclusivamente ao tema dos totalitarismos esse tema natildeo obstante aparece ora

tacitamente ora explicitamente em muitos de seus escritos de forma fragmentaacuteria o que

natildeo diminui o seu rigor filosoacutefico no trato do assunto sobretudo no que diz respeito ao

trabalho de compreensatildeo do nazismo do fascismo e do comunismo entre outros assuntos

anaacutelogos Pode-se dizer assim que Strauss em sua carreira intelectual se dedicou de

forma comprometida e insistente a uma aguda reflexatildeo acerca do fenocircmeno totalitaacuterio o

qual pretendeu caracterizar com o nome de ldquotirania modernardquo Ora tal dedicaccedilatildeo

consequentemente lhe rendeu uma fecunda e frutiacutefera produccedilatildeo de escritos que nos

oferecem interpretaccedilotildees seacuterias e sobretudo capazes de insights originais

A Modernidade e a Gecircnese do ideal totalitaacuterio

Na carreira intelectual de Strauss eacute facilmente constatado em suas obras sua

insistecircncia no tema da ldquocrise da modernidaderdquo ou no que ele veio a chamar de ldquocrise de

nosso tempordquo ou ldquocrise da civilizaccedilatildeo ocidentalrdquo De fato estes termos satildeo comuns e

aparecem de forma visiacutevel em seus escritos Ao ver de Strauss a pretensatildeo de construccedilatildeo

de um mundo melhor fundado unicamente pela racionalidade livre das desigualdades e

das mazelas humanas um paraiacuteso construiacutedo neste mundo atraveacutes da ciecircncia e do advento

da razatildeo filosoacutefica se mostrou como um empreendimento problemaacutetico por ser resultado

de um desejo ingecircnuo e imprudente que gerou consequecircncias catastroacuteficas para

humanidade fracassando em suas principais promessas6 Ainda neste mesmo sentido

vale observar que para Strauss esta crise foi diagnosticada adequadamente no tempo da

5 Sobre isso considerar a introduccedilatildeo e o capiacutetulo I de STRAUSS L Perseguiccedilatildeo e a arte de escrever e outros ensaios de filosofia poliacutetica Trad Hugo Lagone ndash 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 pp17-30 6 Ler sobre isso STRAUSS L The City and Man Chicago The University of Chicago Press 1992 (1964) p 1-12

63

primeira guerra mundial pelo historiador alematildeo Oswald Spengler como a decadecircncia ou

decliacutenio do Ocidente Tal fenocircmeno estaacute associado em consideraacutevel medida com a perda

dos desiacutegnios ou melhor com a perda de direccedilatildeo dos homens que fazem parte da

civilizaccedilatildeo ocidental7 Sobre isso Strauss explica que A crise da modernidade se revela no fato ou consiste no fato de que o homem ocidental moderno natildeo sabe mais o que ele quer - que ele natildeo acredita mais que possa saber o que eacute o bem e o mal o que eacute o certo e o errado Ateacute poucas geraccedilotildees atraacutes era geralmente tido como garantido que o homem poderia saber o que eacute o certo e o errado o que eacute o justo ou o bem ou a melhor ordem social ndash em suma acreditava-se que a filosofia poliacutetica era possiacutevel e necessaacuteria Em nosso tempo essa crenccedila perdeu seu poder8

Dito isto Strauss nos mostra toda problematicidade relacionada ao advento

da decadecircncia da filosofia poliacutetica a partir dos uacuteltimos focirclegos da modernidade Para ele

a ascensatildeo e consolidaccedilatildeo de correntes de pensamento como o positivismo e o

historicismo teriam eclipsado completamente a possibilidade da filosofia poliacutetica se natildeo

a possibilidade da proacutepria filosofia9 Mas que relaccedilatildeo existiria entre a ldquomorte da filosofia

poliacuteticardquo e o surgimento e legitimaccedilatildeo dos regimes totalitaacuterios Ora para responder a essa

importante questatildeo eacute necessaacuterio esclarecer antes de mais nada que para Strauss esses

dois acontecimentos estatildeo intrinsecamente ligados uma vez que para o filoacutesofo a crise da

civilizaccedilatildeo ocidental estaacute intimamente conectada com o fenocircmeno do niilismo moderno

Todavia o niilismo eacute um dos aspectos mais corrosivos e devastadores que implode o

edifiacutecio moral do establishment social do Ocidente porque ataca diretamente a tradiccedilatildeo

e todos os valores e verdades morais sobre os quais a sociedade ocidental ateacute entatildeo se

assentou

Diante disso o niilismo desvelado pelas correntes racionalistas oriundas do

pensamento moderno jaacute citadas a saber o positivismo e o historicismo tornou acessiacutevel

ao homem comum toda falta de sentido e orientaccedilatildeo da vida humana Este fenocircmeno na

7 STRAUSS L An Introduction to Political Philosophy Ten essays by Leo Strauss [Ed Hilail Gildin] Detroit Wayne State University Press 1989 p 81-82 8 Ibidem p 81 ldquoThe crisis of modernity reveals itself in the fact or consists in the fact that modern western man no longer knows what he wants ndash that he no longer believes that he can know what is good and bad what is right and wrong Until a few generations ago it was generally taken for granted that man can know what is right and wrong what is just or the good or the best order of society ndash in a word that political philosophy is possible and necessary In our time this faith has lost its powerrdquo (Traduccedilatildeo livre) 9 Cf STRAUSS L Direito natural e histoacuteria Trad Bruno Costa Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 p 17-18

64

visatildeo de Strauss acabou com qualquer possibilidade de se distinguir entre o bem e o mal

o justo e o injusto o certo e o errado entre outros valores que possibilitariam a busca

racional do melhor regime ou da boa sociedade assim como quae optimae leges quae

optimae respublica Sendo assim o vaacutecuo deixado pelo niilismo e pelo caraacuteter

estritamente cientiacutefico caracteriacutestico da modernidade gerou as bases necessaacuterias para uma

mudanccedila radical na mentalidade do homem comum cultivando um terreno feacutertil para a

consolidaccedilatildeo de ideologias e crenccedilas de construccedilatildeo da sociedade perfeita a qualquer

custo no seio do imaginaacuterio popular Sendo entatildeo a construccedilatildeo de uma sociedade

perfeita algo possiacutevel atraveacutes da racionalidade cientiacutefico-filosoacutefica uacutenica e

exclusivamente qualquer projeto poliacutetico poderia ser de fato confabulado sobretudo

apoiado e legitimado por maioria popular o que torna os meios para alcanccedila-lo algo de

segundo plano ou sem importacircncia alguma diante de seus fins a saber um ganho social

grandioso e inestimaacutevel10

Ora para Strauss o cientificismo moderno eacute responsaacutevel por uma ruptura

radical com o modo antigo ou preacute-moderno de ver o mundo qualquer explicaccedilatildeo

metafiacutesica ou religiosa perdeu completamente seu esteio diante das respostas

paradigmaacuteticas que surgem com os avanccedilos incontestaacuteveis da nuova scienza Diante

disto paulatinamente essa substituiccedilatildeo das verdades morais pela cientificidade (neutra

em relaccedilatildeo a valores) abriu a brecha necessaacuteria para o esvaziamento de sentido da

existecircncia humana e levou consequentemente ao desenvolvimento de um galopante e

devastador relativismo nos mais variados acircmbitos das sociedades ocidentais

contemporacircneas11 Assim os regimes totalitaacuterios teriam aparecido como alternativa de

preenchimento deste vaacutecuo na maioria dos casos impulsionados por um discurso

carismaacutetico e substancialmente moralista marcado por um pathos salviacutefico e gerador de

uma caricatura messiacircnica defensora da classe trabalhadora da famiacutelia da igualdade e

do amor patrioacutetico De fato em vaacuterias partes do mundo a crenccedila nas poliacuteticas extremas e

na figura do chefe nacional do liacuteder ou do pai acolhedor foi o fio de esperanccedila que

iluminaria o caminho do povo rumo a um futuro de progresso prosperidade e abundacircncia

Vale dizer que os totalitarismos surgem e ganham muita forccedila em um periacuteodo

de muitas dificuldades sociais e econocircmicas De fato sabe-se que o periacuteodo entre guerras

em paiacuteses como Alemanha e Itaacutelia eacute caracterizado por grandes dificuldades financeiras

humilhaccedilatildeo (como o tratado de Versalhes por exemplo) e descrenccedila em todas as

10 Cf STRAUSS L What is Political Philosophy Chicago University of Chicago Press 1988 p 26-27 11 Ler o que Strauss diz sobre isso em STRAUSS L Direito Natural e Histoacuteria pp 43-96

65

instituiccedilotildees representativas Neste contexto qualquer aspiraccedilatildeo liberal ou democraacutetica jaacute

natildeo fazia mais sentido nenhum no contexto do caos vivido nas sociedades Europeias do

periacuteodo poacutes-primeira guerra As sociedades ocidentais pareciam sinalizar ter assim

perdido seu norte o que fez a crenccedila nas ideologias ldquosalvadorasrdquo da naccedilatildeo parecer uma

saiacuteda real elemento que se configurou como necessaacuterio para a ascensatildeo de poliacuteticas

extremas com forte aprovaccedilatildeo e clamor popular

Sendo assim para Strauss os tristes episoacutedios que deram contornos ao

espetaacuteculo de horror da primeira metade do seacuteculo XX natildeo se explicam exclusivamente

como produto de mentes moacuterbidas ou de personalidades problemaacuteticas donas dos mais

soacuterdidos desejos Na verdade a experiecircncia totalitaacuteria seria um fenocircmeno social e poliacutetico

complexo e de difiacutecil compreensatildeo sobretudo quando levamos em consideraccedilatildeo a

aprovaccedilatildeo da maioria popular Para Strauss como jaacute foi mencionado anteriormente a

permissatildeo popular para a consolidaccedilatildeo dos totalitarismos eacute em consideraacutevel sentido

consequecircncia do niilismo moderno efeito de um vazio ou de uma falta de sentido total

para a vida humana o qual se explica pelo eclipse da metafiacutesica e das explicaccedilotildees

teoloacutegicas Sobre isso a comentadora canadense Shadia Drury explica que na visatildeo de

Strauss O Ocidente estaacute em decliacutenio por que se tornou presa do niilismo O niilismo eacute simplesmente a crenccedila que todos os valores ou fins satildeo de igual valia ou que natildeo existe nada intrinsecamente mais nobre ou bom em detrimento de outro Os valores de nossa proacutepria civilizaccedilatildeo natildeo satildeo superiores a nenhum outro por que todos os valores satildeo igualmente infundados e assim igualmente sem valia Todos os valores satildeo convenccedilotildees ideologias interpretaccedilotildees ficccedilotildees ou produtos da vontade de poder Niilismo eacute uma profunda indiferenccedila com as distinccedilotildees entre bem e mal nobre e baixo12

Ainda de acordo com Drury Strauss natildeo estaacute sugerindo que para ser saudaacutevel

uma sociedade deve acreditar na viabilidade de uma sociedade universal e proacutespera

Antes a visatildeo straussiana eacute de que a higidez de uma ordem social depende do fato de que

ela acredite em seus proacuteprios ideais e princiacutepios13 Natildeo obstante se o niilismo moderno eacute

12 DRURY S The Political Ideas of Leo Strauss Updated Edition Lexington Palgrave Macmillan 2005 (1987) p 162 ldquoThe West is in decline because it has fallen prey to nihilism Nihilism is simply the belief that all values or ends are of equal worth or that there is nothing intrinsically more noble or good than any other The values of our own civilization are not superior to those of any other because all values are equally groundless and hence equally worthless All values are conventions ideologies interpretations fictions or products of will to power Nihilism is a profound indifference to the distinctions between good and evil noble and baserdquo (Traduccedilatildeo livre) 13 Cf Ibidem p 162

66

a fonte desta falta de sentido ou desta falta de direccedilatildeo dos homens a raiz do problema

estaria na questatildeo como o niilismo foi desvelado Para Strauss a fonte do niilismo

moderno ou de seu desvelamento estaacute no historicismo ou no forte caraacuteter idealista do

pensamento moderno como jaacute podemos perceber na criacutetica de FH Jacobi ao idealismo

Alematildeo14 Antes de Nietzsche Jacobi em suas Cartas sobre o Niilismo apontou assim

para os perigos do niilismo moderno Observando isso percebemos que natildeo eacute agrave toa que

Strauss agraves vezes usa os termos historicismo niilismo e relativismo como sinocircnimos como

se ele descrevesse um ou o mesmo fenocircmeno15 Portanto para ele (Strauss) o historicismo

eacute amplamente responsaacutevel pelo niilismo moderno ou por seu desvelamento e assim pela

crise moderna16

O Niilismo alematildeo e o Nacional Socialismo

O fenocircmeno dos totalitarismos por motivos oacutebvios natildeo eacute de fato um

fenocircmeno exclusivamente alematildeo de forma que natildeo se trata aqui de reduzir esses

acontecimentos ao contexto da histoacuteria alematilde No entanto para que natildeo fiquemos

caminhando em ciacuterculos neste momento nos deteremos em uma expressatildeo fundamental

na visatildeo de Strauss para a compreensatildeo de um fenocircmeno ainda mais primevo e central a

saber o niilismo alematildeo17

Para Strauss a ascensatildeo do nacional socialismo alematildeo eacute antes de tudo uma

consequecircncia de um fenocircmeno muito maior e complexo chamado niilismo alematildeo Para

Strauss o niilismo tem raiacutezes muito mais profundas que os discursos de Hitler a derrota

da Alemanha na Guerra Mundial e tudo que se relaciona com isso18 O nacional

socialismo seria entatildeo apenas uma forma politizada de niilismo uma forma de niilismo

vulgar que se tornou mais famosa e popular Decerto a fim de iluminar nosso caminho

em direccedilatildeo a uma melhor compreensatildeo deste fenocircmeno devemos entender de forma mais

adequada o que eacute niilismo Ora esclarece Strauss por niilismo entenda-se o velle nihil o

querer o nada ou a vontade de nada a destruiccedilatildeo de tudo inclusive de si mesmo e

14 Ler JACOBI Friedrich Heinrich Cartas a Mendelssohn David Hume Carta a Fichte Trad Joseacute Luis Villacantildeas Barcelona Ciacuterculo de Lectores 1996 15 DRURY S The Political Ideas of Leo Strauss p 163 16 Ibidem p 163 17 Strauss possui um longo e esclarecedor ensaio sobre esse assunto escrito em 1941 em plena Segunda Guerra Mundial no iniacutecio de seu exiacutelio nos EUA este ensaio foi publicado mais recentemente pela Interpretation ndash a journal of political philosophy em 1999 Consultar STRAUSS L German Nihilism Editado por David Janssens e Daniel Tanguay Interpretation Spring 1999 vol 26 ndeg 3 18 STRAUSS L German Nihilism p 357

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portanto primariamente a vontade de autodestruiccedilatildeo19 Esse sintoma se revelaria na

corrida armamentista caracteriacutestica do fim do seacuteculo XIX e comeccedilo do seacuteculo XX o que

resulta segundo Strauss na radicalizaccedilatildeo do Militarismo e do fortalecimento de valores

beacutelicos (Warlike ideals)

Entretanto para Strauss o niilismo alematildeo natildeo eacute um niilismo absoluto isto

eacute o desejo de destruiccedilatildeo de tudo inclusive de si mesmo mas a destruiccedilatildeo de algo

especiacutefico da civilizaccedilatildeo moderna20 Mas isso torna o niilismo alematildeo quase um niilismo

absoluto pois embora o niilismo alematildeo fosse por assim dizer um tipo limitado de

niilismo sua negaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo moderna natildeo eacute guiada ou acompanhada por nenhuma

concepccedilatildeo positiva clara21 O problema ou o mal-estar que gera o niilismo alematildeo eacute um

problema de caraacuteter moral22 Sendo assim o moralismo eacute um sintoma preponderante e

decisivo dos discursos totalitaacuterios como o proacuteprio Strauss explica na seguinte passagem

O niilismo alematildeo deseja a destruiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo moderna como tal a civilizaccedilatildeo tem um significado moral Como qualquer um sabe ele natildeo faz muita objeccedilatildeo aos artifiacutecios da teacutecnica moderna Este significado moral da civilizaccedilatildeo moderna ao que os niilistas alematildees se opotildeem eacute expresso em formulaccedilotildees tal como estas para socorrer o estado de homem ou para salvaguardar os direitos do homem ou a maior felicidade possiacutevel do maior nuacutemero possiacutevel Qual eacute o motivo subjacente do protesto contra a civilizaccedilatildeo moderna contra o espiacuterito do ocidente e em particular do ocidente anglo-saxatildeo23

Apresentado tal questionamento o fator a ser levantado e melhor esclarecido

a partir daqui eacute entatildeo por que o Ocidente seria um inimigo maior a ser destruiacutedo Ora

para Strauss

A resposta deve ser eacute um protesto moral Este protesto procede da convicccedilatildeo que o internacionalismo inerente agrave civilizaccedilatildeo moderna ou mais precisamente que o estabelecimento de uma sociedade perfeitamente aberta como eacute a meta da civilizaccedilatildeo moderna e portanto todas as aspiraccedilotildees dirigidas em direccedilatildeo a esta meta satildeo irreconciliaacuteveis

19 Ibidem p 357 20 Ibidem p 357 21 Ibidem p 357 22 Ler sobre isso SHELL Susan ldquoTo Spare the Vanquished and Crush the Arrogantrdquo Leo Straussrsquos Lecture on ldquoGerman Nihilismrdquo In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 171-192 23 Ibidem p 358 ldquoGerman nihilism desires the destruction of modem civililsquosrsquoation as far as modern civililsquosrsquoation has a moral meaning As everyone knows it does not object so much to modem technical devices That moral meaning of modem civilization to which the German nihilists object is expressed in formulations such as these to relieve mans estate or to safeguard the rights of man or the greatest possible happiness of the greatest possible number What is the motive underlying the protest against modem civilisation against the spirit of the West and in particular of the Anglo-Saxon Westrdquo (Traduccedilatildeo livre)

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com as demandas baacutesicas da vida moral O protesto procede da convicccedilatildeo que a raiz de toda vida moral eacute essencialmente e portanto eternamente a sociedade fechada da convicccedilatildeo que a sociedade aberta estaacute fadada a ser se natildeo imoral no miacutenimo amoral o lugar de encontro dos perseguidores do prazer do lucro do poder irresponsaacutevel de fato de qualquer tipo de irresponsabilidade e falta de seriedade24

Dito isto percebe-se que ao ver de Strauss o rechaccedilo agrave cultura ocidental

constroacutei as bases de seu edifiacutecio a partir de um argumento de cunho moral Nesse sentido

ldquoo niilismo alematildeo eacute uma forma radicalizada de militarismo alematildeordquo mais precisamente

um conflito que apenas a priori e de certa maneira aparece como uma guerra de

princiacutepios e que paulatinamente se configura como um sentimento de amor agrave guerra De

fato as emoccedilotildees e os sentimentos gerados no acircmago do povo pelos fatiacutedicos

acontecimentos relacionados agrave Guerra Mundial ao vazio e total falta de sentido

caracteriacutestico do mundo poacutes-guerra parecem ter achado um terreno feacutertil para o cultivo

da paixatildeo pela destruiccedilatildeo do mundo da forma que se apresentara A paixatildeo pelo novo e a

ruptura com o passado ou melhor a destruiccedilatildeo da tradiccedilatildeo para a construccedilatildeo de algo

totalmente novo um novo que teria como fim a redenccedilatildeo o Estado perfeito a paz O

preccedilo por esse esplendor entatildeo foi visto como incomensuraacutevel e o meio soacute seria possiacutevel

atraveacutes das armas atraveacutes da guerra total Nesse sentido Strauss afirma que

indubitavelmente

ningueacutem poderia estar satisfeito com o mundo poacutes-guerra A democracia liberal alematilde de todas as descriccedilotildees parecia para muitas pessoas ser absolutamente incapaz de lidar com as dificuldades com as quais a Alemanha foi confrontada25

Sendo assim para Strauss uma atmosfera de desconfianccedila e incredulidade

com relaccedilatildeo a qualquer regime de aspiraccedilatildeo democraacutetica se tornara ainda mais forte com

o passar do tempo e em virtude do abismo social em que Alemanha se encontrara Ainda

nesse mesmo sentido essa atmosfera contribuiu diretamente segundo Strauss para o

24 Ibidem p 358 ldquoThe answer must be it is a moral protest That protest proceeds from the conviction that the internationalism inherent in modem civililsquosrsquoation or more precisely that the establishment of a perfectly open society which is as it were the goal of modem civililsquosrsquoation and therefore all aspirations directed toward that goal are irreconcilable with the basic demands of moral life That protest proceeds from the conviction that the root of all moral life is essentially and therefore eternally the closed society from the conviction that the open society is bound to be if not immoral at least amoral the meeting ground of seekers of pleasure of gain of irresponsible power indeed of any kind of irresponsibility and lack of seriousnessrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 25 Ibidem p 359 ldquoNo one could be satisfied with the post-war world German liberal democracy of all descriptions seemed to many people to be absolutely unable to cope with the difficulties with which Germany was confrontedrdquo (Traduccedilatildeo livre)

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surgimento de um profundo preconceito ou para a confirmaccedilatildeo de um profundo

preconceito jaacute existente contra a democracia liberal26 Diante deste cenaacuterio duas

alternativas agrave democracia liberal foram abertas a primeira aparentemente pretendia

retornar a um contexto preacute-guerra a segunda por outro lado via nos acontecimentos do

presente o prenuacutencio da revoluccedilatildeo ou o caminho rumo agrave revoluccedilatildeo uma consequente e

inevitaacutevel nova guerra mundial Com efeito esta segunda alternativa pareceu mais

interessante ao povo alematildeo na medida em que estava sustentada numa crenccedila jaacute

envelhecida em ldquoum levante do proletariado e dos estratos proletaacuterios da sociedade que

conduziria ao desaparecimento do Estado agrave sociedade sem classes agrave aboliccedilatildeo de toda

exploraccedilatildeo e injusticcedila agrave era da paz finalrdquo27 Portanto ldquofoi essa perspectiva pelo menos

tanto quanto o presente desesperado que conduziu ao niilismordquo28

Neste contexto ldquoa perspectiva de um planeta pacificado sem opressores e

oprimidos de uma sociedade devotada agrave produccedilatildeo e consumo apenasrdquo29 foi amplamente

acreditada mas natildeo como processo paulatino e sim para jaacute a partir da crenccedila de que isso

podia ser construiacutedo aqui e agora se tornou predominante para grande parte da juventude

alematilde certamente pelo fato de estarem os jovens preocupados com suas proacuteprias posiccedilotildees

social e econocircmica30 Mas isso por outro lado gerou uma espeacutecie de ldquoateiacutesmo juvenilrdquo

no mundo tal como se apresentara o que acabou por tornar as alternativas intoleraacuteveis

pelo jovem alematildeo Com efeito se por um lado a democracia liberal natildeo inspirava

confianccedila Strauss explica que por outro

o que para os comunistas parecia o cumprimento do sonho da humanidade parecia para os jovens alematildees como a maior degradaccedilatildeo da humanidade como a vinda do fim da humanidade como a chegada do ultimo homem31

Embora a juventude alematilde natildeo soubesse bem o que queriam construir no

lugar do presente ela estava compelida a destruir o mundo tal como era levada por aquilo

26 Ibidem p 359 27 Ibidem p 359-360 ldquohellipa rising of the proletariat and of the proletarianized strata of society which would usher in the withering away of the State the classless society the abolition of all exploitation and injustice the era of final peacerdquo (Traduccedilatildeo livre) 28 Ibidem p 360 ldquoIt was this prospect at least as much as the desperate present which led to nihilismrdquo (Traduccedilatildeo livre) 29 Ibidem p 360 ldquoThe prospect of a pacified planet without rulers and ruled of a planetary society devoted to production and consumption onlyhelliprdquo (Traduccedilatildeo livre) 30 Ibidem p 360 31 Ibidem p 360 ldquoWhat to the communists appeared to be the fulfilment of the dream of mankind appeared to those young Germans as the greatest debasement of humanity as the coming of the end of humanity as the arrival of the latest manrdquo (Traduccedilatildeo livre)

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que Strauss nomeia como ldquoonda do futurordquo (wave of the future) ndash mesmo que a ideia de

futuro natildeo fosse nada clara ou talvez nem mesmo existisse

Para Strauss o que estaacute em jogo eacute o fato de que a juventude alematilde natildeo

acreditava mais na possiblidade dos instrumentos poliacuteticos e ideoloacutegicos de seu tempo

por que foram de fato instrumentos forjados pelos homens velhos A emancipaccedilatildeo dos

jovens eacute uma caracteriacutestica central da Alemanha poacutes-primeira guerra E se o idealismo

alematildeo caminhou em direccedilatildeo ao teiacutesmo ou ao panteiacutesmo nesse novo momento essa

juventude seraacute tomada por um sentimento ateiacutesta Segundo Strauss isso se daacute pela

influecircncia radical do pensamento de Schopenhauer e sobretudo de Nietzsche sobre a

mente do jovem alematildeo do periacuteodo poacutes-primeira guerra Nesse sentido o proacuteprio Strauss

faz a seguinte colocaccedilatildeo ldquoSchopenhauer foi no meu conhecimento o primeiro filoacutesofo

alematildeo natildeo materialista e conservador que professou abertamente seu ateiacutesmordquo32 No

entanto para Strauss a influecircncia de Schopenhauer em nada se compara com o poder e o

fasciacutenio exercido pelo pensamento de Nietzsche sobre parte da juventude alematilde33 Ora

segundo Strauss ldquoNietzsche afirmou que a aceitaccedilatildeo ateiacutesta natildeo eacute reconciliaacutevel com mas

indispensaacutevel para uma poliacutetica antidemocraacutetica antissocialista e antipacifista de acordo

com ele toda crenccedila comunista eacute apenas uma forma de teiacutesmo de crenccedila na

providecircnciardquo34

Mas como sabemos Nietzsche jaacute estava morto haacute algumas deacutecadas No

entanto o sucesso e a propagaccedilatildeo de suas ideias dependia da explicaccedilatildeo dos grandes

professores da eacutepoca (e em alguns casos especiacuteficos de sua deturpaccedilatildeo) natildeo menos que

nomes como os de Spengler Moeller van den Bruck Carl Schmitt Ernst Junger e

Heidegger entre outros segundo Strauss teriam aberto de forma consciente ou natildeo um

caminho para Hitler35 Diante disso o nazismo surgiu como resposta ao vazio radical

vivido por uma juventude niilista Um fio de esperanccedila que seria anunciada por um ceacuteu

nebuloso e obscuro seguido de uma tempestade devastadora que seria semelhante ao fim

do mundo mas que na verdade deveria ser compreendida como o fim de uma era

32 Ibidem p 361 ldquoSchopenhauer was to my knowledge the first non-materialist and conservative German philosopher who openly professed his atheismrdquo (Traduccedilatildeo livre) 33 O proacuteprio Strauss em suas correspondecircncias com Karl Loumlwith fala sobre seu fasciacutenio pela obra de Nietzsche quando jovem afirma que entre seus 20 e 30 anos de idade foi ldquoenfeiticcediladordquo pelas palavras daquele homem chegando a acreditar em tudo que conseguia entender de Nietzsche Cf Leo Strauss to Karl Loumlwith 23 June 1935 in ―Correspondence of Karl Loumlwith and Leo Strauss trans George Elliot Tucker Independent Journal of Philosophy 56 (1988) 182ndash83 34 Ibidem p 361-362 ldquoNietzsche asserted that the atheist assumption is not only reconcilable with but indispensable for a radical anti-democratic anti-socialist and anti-pacifist policy according to him even the communist creed is only a secularized form of theism of the belief in providencerdquo (Traduccedilatildeo livre) 35 Cf Ibidem p 362

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Com efeito explica Strauss que ldquose o niilismo eacute a rejeiccedilatildeo dos princiacutepios da

civilizaccedilatildeo como tal e se a civilizaccedilatildeo eacute baseada no reconhecimento do fato que o sujeito

da civilizaccedilatildeo eacute o homem como homem toda interpretaccedilatildeo da ciecircncia e moral em termos

de raccedila ou naccedilotildees ou de culturas eacute estritamente niilistardquo36 De fato ela estaraacute sempre

dentro de um contexto histoacuterico relativo e determinado por vaacuterios fatores quais sejam

local eacutepoca e os desenvolvimentos de cada cultura Portanto o que Strauss tenta mostrar

eacute que haacute uma distinccedilatildeo entre dois tipos de niilismo o niilismo em geral e o niilismo

alematildeo O niilismo em geral rejeita os valores humanos a civilizaccedilatildeo como um todo o

niilismo alematildeo por sua vez rejeita o ideal moderno de civilizaccedilatildeo rejeita um tipo

especiacutefico de civilizaccedilatildeo37 por isso acredita na guerra crenccedila esta alimentada por um

pathos salviacutefico De fato o niilismo alematildeo rejeita os princiacutepios da civilizaccedilatildeo tal como

eacute em favor da guerra e da conquista em favor das virtudes guerreiras O niilismo alematildeo

eacute portanto parente do militarismo alematildeo38

A Ciecircncia Poliacutetica Moderna e a ldquoTirania de nossos temposrdquo

De acordo com Strauss a ciecircncia poliacutetica moderna eacute niilista porque

abandonou o seu objetivo normativo mais alto de fato o seu caraacuteter deontoloacutegico morreu

com os antigos os quais foram acusados pelos pensadores modernos de serem

demasiados utoacutepicos ou se se preferir ingenuamente romacircnticos Isso significa que a

ciecircncia poliacutetica morreu quando abdicou da exigecircncia de refletir seriamente sobre o melhor

regime e sobre a necessidade de se buscar racionalmente a verdade acerca do bem do

justo e do belo Portanto a ciecircncia poliacutetica morreu quando abdicou da tarefa de legislar

para apenas descrever Em outras palavras a ciecircncia poliacutetica moderna abandonou o ideal

antigo e sua busca pelo ldquodever serrdquo e pelas virtudes para se limitar a dizer ldquoo que eacuterdquo Tal

postura supostamente mais realista surge jaacute no tempo da renascenccedila segundo Strauss eacute

com Maquiavel de fato que brotam as raiacutezes do plano poliacutetico moderno39 Poreacutem mesmo

sendo o autor de O Priacutencipe o responsaacutevel direto por uma negaccedilatildeo radical da filosofia

36 Ibidem p 366 ldquoIf nihilism is the rejection of the principles of civilisation as such and if civilisation is based on recognition of the fact that the subject of civilisation is man as man every interpretation of science and morals in terms of races or of nations or of cultures is strictly speaking nihilisticrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 37 Cf Ibidem p 367 38 Ibidem p 369 ldquoGerman nihilism rejects then the principles of civilisation as such in favor of war and conquest in favor of the warlike virtues German nihilism is therefore akin to German militarismrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 39 Cf STRAUSS L What is Political Philosophy And Other Studies p 40

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poliacutetica tal como era concebida por Platatildeo e Aristoacuteteles eacute Hobbes o grande mentor

intelectual da modernidade uma vez que eacute Hobbes que aplicando o meacutetodo matemaacutetico

agrave filosofia poliacutetica elevou a filosofia poliacutetica ao status de ciecircncia em sua acepccedilatildeo

moderna

De fato para Strauss a filosofia poliacutetica moderna possui suas bases na

exatidatildeo matemaacutetica isto eacute num conhecimento indiferente agraves paixotildees humanas Poreacutem

a opiniatildeo quase sempre possui sua origem em alguma paixatildeo humana e por ser assim a

filosofia poliacutetica a partir da modernidade teria se tornado incapaz de refletir sobre as

coisas poliacuteticas no seu acircmbito mais originaacuterio que eacute justamente o acircmbito da opiniatildeo

Segundo Strauss isso explicaria por que a filosofia poliacutetica moderna teria se tornado

incapaz de compreender entre outras coisas o fenocircmeno da tirania40 Esse fato

justificaria talvez a insistecircncia de Strauss em seu movimento de retorno aos preacute-

modernos a seu ver a ciecircncia poliacutetica tradicional possui elementos que possibilitam uma

melhor compreensatildeo do fenocircmeno da tirania jaacute que o mundo antigo conviveu durante

longos periacuteodos e de forma distinta sob a eacutegide desse tipo de regime Isso eacute perceptiacutevel

em sua obra On Tiranny41 (Sobre a Tirania) onde Strauss exerce uma leitura do Hieron

de Xonofonte referente ao diaacutelogo entre o tirano Hieron e o poeta Simonides sobre a

tirania e mesmo sob a forma de um diaacutelogo eleganter eacute possiacutevel perceber que o objetivo

de Strauss eacute refletir sobre a tirania do passado a fim de mostrar que a ciecircncia poliacutetica

moderna natildeo eacute capaz de compreender o fenocircmeno da tirania tal como ele se apresenta em

nosso tempo qual seja a experiecircncia totalitaacuteria Como podemos perceber no comentaacuterio

de Strauss Uma ciecircncia social que natildeo pode falar da tirania com a mesma propriedade com que a medicina fala por exemplo de cacircncer natildeo pode entender o fenocircmeno social tal o que ele eacute Isto eacute portanto natildeo cientiacutefico A ciecircncia social de nossos dias encontra-se nesta condiccedilatildeo Se for verdade que a ciecircncia social atual eacute o resultado inevitaacutevel da ciecircncia social moderna e da filosofia moderna uma delas eacute forccedilada a pensar a restauraccedilatildeo da ciecircncia social claacutessica Uma vez que noacutes aprendermos novamente com os claacutessicos o que eacute a tirania noacutes seremos capacitados e compelidos a diagnosticar com as tiranias um nuacutemero de regimes contemporacircneos que aparecem no disfarce das ditaduras Este diagnoacutestico pode apenas ser o primeiro passo em direccedilatildeo a uma anaacutelise

40 Cf STRAUSS L A Filosofia Poliacutetica de Hobbes Suas bases e sua gecircnese Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2016 p188 - 189 41 STRAUSS L On Tyranny Chicago The University of Chicago Press 2000

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exata da tirania dos dias atuais pois a tirania dos dias atuais eacute fundamentalmente diferente da tirania analisada pelos claacutessicos42

Sendo assim logo de partida em primeiro lugar Strauss aponta para um

aspecto seminal que eacute o fato de que a tirania antiga e a tirania moderna satildeo distintas em

essecircncia jaacute que a perspectiva moderna de tirania tem como fundamentos preciacutepuos o mito

do progresso (ilimitado) e a conquista e dominaccedilatildeo total da natureza elementos que

representam algo que se opotildee diametralmente ao projeto de aprimoramento da vida e

correccedilatildeo das sociedades proposto pelas ciecircncias modernas Eis por que Strauss vecirc no

cientista social moderno uma figura vendada e incapaz de captar a essecircncia mesma do

que eacute a tirania Sobre isso Strauss afirma que

O fato de que existe uma diferenccedila fundamental entre a tirania claacutessica e a tirania dos dias atuais ou que os claacutessicos nem sonharam com a tirania atual natildeo eacute uma razatildeo boa ou suficiente para abandonar a referecircncia do sistema claacutessico Pois este fato eacute perfeitamente compatiacutevel com a possibilidade que a tirania dos dias atuais encontra seu lugar dentro do sistema claacutessico ie isto natildeo pode ser compreendido adequadamente exceto dentro da estrutura claacutessica A diferenccedila entre a tirania dos dias atuais e a tirania claacutessica tem sua raiz na diferenccedila entre a noccedilatildeo moderna de filosofia ou ciecircncia e a noccedilatildeo claacutessica de filosofia ou ciecircncia A tirania dos dias atuais em contradiccedilatildeo a tirania claacutessica eacute baseada no progresso ilimitado e na ldquoconquista da naturezardquo que se tornou possiacutevel atraveacutes da ciecircncia moderna assim como na popularizaccedilatildeo ou difusatildeo do conhecimento filosoacutefico ou cientiacutefico43

Ora embora Sobre a tirania seja apenas um comentaacuterio o insight filosoacutefico

trazido por ele eacute fecundo e original e se trata por assim dizer de uma criacutetica agrave maneira

42 STRAUSS L On Tyranny p 177 ldquoA social science that cannot speak of tyranny with the same confidence with which medicine speaks for example of cancer cannot understand social phenomena as what they are It is therefore not scientific Present-day social science finds itself in this condition If it is true that present-day social science is the inevitable result of modern social science and of modern philosophy one is forced to think of the restoration of classical social science Once we have learned again from the classics what tyranny is we shall be enabled and compelled to diagnose as tyrannies a number of contemporary regimes which appear in the guise of dictatorships This diagnosis can only be the first step toward an exact analysis of present ndashday tyranny for present-day tyranny is fundamentally different from the tyranny analyzed by the classicsrdquo (Traduccedilatildeo livre) 43 STRAUSS L On Tyranny p 177 ldquoA social science that cannot speak of tyranny with the same confidence with which medicine speaks for example of cancer cannot understand social phenomena as what they are It is therefore not scientific Present-day social science finds itself in this condition If it is true that present-day social science is the inevitable result of modern social science and of modern philosophy one is forced to think of the restoration of classical social science Once we have learned again from the classics what tyranny is we shall be enabled and compelled to diagnose as tyrannies a number of contemporary regimes which appear in the guise of dictatorships This diagnosis can only be the first step toward an exact analysis of present ndashday tyranny for present-day tyranny is fundamentally different from the tyranny analyzed by the classicsrdquo (Traduccedilatildeo livre)

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por meio da qual a ciecircncia poliacutetica moderna lida com o fenocircmeno do totalitarismo Pois

para Strauss a pretensatildeo moderna de construccedilatildeo de uma repuacuteblica universal um estado

igualitaacuterio livre das desigualdades homogecircneo e feliz consiste na realidade na

consolidaccedilatildeo de uma tirania Portanto ainda na oacutetica straussiana a ciecircncia poliacutetica

moderna fez de sua utopia morada e ao fazer isso transformou a construccedilatildeo de seu

paraiacuteso um inferno de violecircncia e destruiccedilatildeo movida por ideais de mundo que de tatildeo

perfeitos cegaram a razatildeo abrindo passagem para oportunistas sanguinaacuterios

Em resumo Strauss indica uma resposta indireta ao problema se

posicionando inclusive no contexto da filosofia poliacutetica em relaccedilatildeo ao problema da

finitude e do esgotamento das formas poliacuteticas e ao fazer isso preserva o termo tirania

para descrever um fenocircmeno dos nossos tempos Importante observar a aposta de Strauss

de por meio de uma anaacutelise ou melhor atraveacutes da escuta atenta ao que os antigos tecircm a

nos dizer encontrar importantes ensinamentos sobre as tiranias antigas e modernas

valorizando o legado filosoacutefico dos escritores do passado cujas obras permitem iluminar

uma melhor compreensatildeo daquilo que podemos nomear como ldquoinvestidas tiracircnicas dos

nossos temposrdquo

Parece ter sido o esforccedilo de Strauss nos fazer refletir acerca do perigo das

promessas e dos mais lindos devaneios de redenccedilatildeo da razatildeo humana ou acerca das

pretensotildees das ideologias de transformar este mundo na morada perfeita para os homens

De fato como foi dito ainda na introduccedilatildeo deste ensaio natildeo era a intenccedilatildeo deste propor

nem mesmo uma iacutenfima interpretaccedilatildeo acerca dos acontecimentos funestos do breve mas

conturbado seacuteculo XX Talvez natildeo fosse apresentado algo de realmente novo e original

quase certamente que natildeo No entanto por outro lado o insight de Strauss que deve ser

colocado aqui no cerne da discussatildeo eacute que este filoacutesofo vivendo em plena guerra em seu

exiacutelio nos EUA conseguiu nos presentear com uma profunda reflexatildeo de sobriedade

incriacutevel encarando os fatos poliacuteticos catastroacuteficos do seacuteculo XX em seu alto grau de

complexidade e amplitude

Nesse sentido devemos meditar acerca da necessidade de estarmos sempre

em alerta frente ao perigo da crenccedila na poliacutetica como esperanccedila do risco sorrateiro que

rodeia e estaacute sempre agrave espreita dos discursos de caraacuteter salviacutefico de forte apelo

messiacircnico Em outras palavras essa crenccedila que sempre retorna nos momentos mais

difiacuteceis e que usa o grande clamor popular como instrumento de manobra para legitimar

suas ldquomelhores intenccedilotildeesrdquo e funciona muitas vezes como uma espeacutecie de guia das

75

multidotildees que sedentas por justiccedila e igualdade marcham rumo a um futuro proacutespero de

paz para todos os povos

De fato eacute a partir da memoacuteria dos acontecimentos do passado que devemos

estar conscientes do perigo de tais promessas sempre forjadas com um alto teor

racionalista Com isso seremos capazes de manter a desconfianccedila em relaccedilatildeo aos

fantasmas da histoacuteria lembrando que as grandes trageacutedias possuiacuteam quase sempre por

traacutes de si fortes evidecircncias de sua benevolecircncia baseada e garantida pela razatildeo Eacute para o

que nos alerta Roger Scruton de forma bastante contemporacircnea quando nos lembra que

ldquoa liquidaccedilatildeo dos Kulaks foi justificada pela lsquociecircncia marxistarsquo as doutrinas racistas dos

nazistas foram propostas como eugenia cientiacutefica e lsquoO Grande Salto para o Futurorsquo de

Mao Tseacute Tung foi considerado a simples aplicaccedilatildeo de leis comprovadas da histoacuteriardquo44

Ora esses satildeo alguns dos muitos acontecimentos catastroacuteficos que foram legitimados

escolhidos e executados em nome da razatildeo

Em suma o que Strauss tenta tornar patente por meio de uma reflexatildeo densa

e rigorosa eacute de fato o perigo que nos espreita quando a crenccedila na razatildeo se torna

edificante e pretende se fazer construtora de um mundo melhor ou ainda o risco contido

na transformaccedilatildeo da visatildeo fria do especialista em guia de uma sociedade Em outras

palavras trata-se da tentaccedilatildeo do otimismo racional que se aventura a prometer aquilo que

a racionalidade filosoacutefico-cientiacutefica em essecircncia natildeo eacute capaz de produzir45 a saber paz e

igualdade entre os homens se convertendo no contraacuterio ao mostrar seu lado sombrio e

seu elatilde destruidor Em ultima anaacutelise Strauss apesar de ter toda sua famiacutelia totalmente

destruiacuteda e sua vida quase ceifada de forma violenta e prematura natildeo se preocupou em

apontar culpados evitando a ordinaacuteria reductio ad Hitlerum (tatildeo comum entre

socioacutelogos historiadores e psicoacutelogos de nossa eacutepoca) mas tentou entender antes quais

os elementos e atores foram necessaacuterios para que a razatildeo se tornasse autodestrutiva

Inequivocamente eacute necessaacuterio observar o passado e estarmos atentos ao fato de que

sempre que algueacutem ou alguma classe social afirmou saber o caminho do melhor estava

ali a se desvelar a face horrenda de uma nova tirania

44 SCRUTON R As Vantagens do Pessimismo e o perigo da falsa esperanccedila Trad Faacutebio Faria 1 Ed Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 p 8 45 Para Strauss o conhecimento filosoacutefico possui em si um caraacuteter corrosivo e subversivo destruidor de todas as verdades morais e tradiccedilotildees sendo entatildeo incapaz de trazer paz e felicidade aos homens Pelo contraacuterio a filosofia possui um caraacuteter perturbador e inquietante por desvelar toda falta de sentido da existecircncia humana tornando assim essa vida algo de insuportaacutevel para a maioria dos homens e sobretudo tornando impossiacutevel a manutenccedilatildeo da ordem civil Sobre isso ler o que Strauss diz em STRAUSS L Liberalism Ancient and Modern University of Chicago Press Edition 1995 p 83-85

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Referecircncias

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VILLA D The Philosopher versus the Citizen Arendt Strauss and Socrates In VILLA D Politics Philosophy Terror Princeton Princeton University Press 1999 pp 155-179

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FUNCcedilAtildeO PERSONALIDADE EM DEVIR ndash UM OLHAR DA TEORIA DO

SELF

Fabio Henrique Medeiros Bogo1

RESUMO A partir da Teoria do Self em articulaccedilatildeo com as contribuiccedilotildees da psicanaacutelise e do escrutiacutenio anticapitalista de Deleuze e Guattari lanccedila-se um olhar ontoloacutegico-gestaacuteltico sobre o sujeito que outrora tido como estruturado teve o primado de sua racionalidade destronado pelas revoluccedilotildees de pensamento do seacuteculo XX Numa dinacircmica anaacuteloga agrave noccedilatildeo Deleuziana de ritornelo o Self estabelece laccedilos com o Outro no processo de contato como efeito tardio estas experiecircncias satildeo registradas linguiacutestica e conceitualmente compondo totalidades de sentido agraves quais o Self possa se identificar O que se produz eacute algo que se pode nomear como Personalidade que opera como funccedilatildeo de devir e natildeo como estrutura fixa exceto nos casos em que arbitrariamente se cristaliza com fins de evitaccedilatildeo do contato Palavras-chave Self personalidade ritornelo ontologia ABSTRACT Through the Theory of Self in articulation with the contributions of psychoanalysis and the anti-capitalist scrutiny of Deleuze and Guattari the article depicts an ontological-gestaltic view over the subject which otherwise conceived as structured has had the primacy of its rationality dethroned by the revolutions of thought of the 20th century By means of dynamics which are similar to Deleuzersquos notion of ritornello the Self establishes bonds with the Other during the process of contact as a late effect these experiences are registered linguistically and conceptually in a way that produces totalities of meaning to which it can identify What is produced is something that might be named as Personality which operates as a function of becoming and not a fixed structure with the exception of the cases in which it arbitrarily crystallizes as a means to avoid contact Keyword Self personality ritornello ontology

Introduccedilatildeo

As antropologias filosoacuteficas construiacutedas no iacutenterim da efervescecircncia poacutes-

modernista do seacuteculo XX denotavam uma distinta orientaccedilatildeo revisionista com relaccedilatildeo agraves

convencionadas estruturas de personalidade psicologistas Uma vez que a ldquocrise das

ciecircncias europeiasrdquo havia sido denunciada por Husserl2 e principalmente apoacutes as duas

1 Psicoacutelogo Mestre e Doutorando em Filosofia (UFSC) pela linha de pesquisa Ontologia Mente e Metapsicologia Orientando do Prof Dr Marcos Joseacute Muumlller fabiohbogogmailcom 2 HUSSERL A crise das ciecircncias europeias e a fenomenologia transcendental

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grandes guerras mundiais evidenciarem que a era moderna da razatildeo natildeo fora capaz de

neutralizar o afatilde humano pelo conflito jaacute natildeo se podia ignorar a necessidade de lanccedilar

novo olhar aos modos de produccedilatildeo de saber e de cultura As teorias criacuteticas surgidas em

Frankfurt e os gritos estudantis de Maio de 1968 na Franccedila foram fenocircmenos progecircnitos

destes tempos de inegaacutevel revoluccedilatildeo de pensamento e natildeo foi diferente com as teorias

sobre a identidade O desafio consistia em elaborar uma articulaccedilatildeo teoacuterica que

prescindisse em absoluto da loacutegica positivista de modo a natildeo incorrer em uma tipificaccedilatildeo

remanescente das teorias humorais do periacuteodo medieval com classificaccedilotildees

personaliacutesticas circunscritas na loacutegica autorreferente de suas estruturas Este caminho

seria rejeitado em favor de uma nova noccedilatildeo de Personalidade que contemplasse a gecircnese

da identidade na participaccedilatildeo coletiva das representaccedilotildees agraves quais o sujeito se identifica

Mesmo o conceito de representaccedilatildeo precisou ser ressignificado ao menos no

tangente de seu papel constitutivo da identidade sob pena de ser equivocadamente

tomada por metaacutefora as representaccedilotildees natildeo configuram meras abstraccedilotildees ideativas

sendo antes simulaccedilotildees que o sujeito engendra em suas apropriaccedilotildees de sentido

realidades construiacutedas simbolicamente e experienciadas por inteiro com todo o corpo

Mais precisamente as simulaccedilotildees operam a escrita das identificaccedilotildees no proacuteprio real O

sujeito que ldquofingerdquo ser um danccedilarino nesse processo danccedila de verdade A simulaccedilatildeo eacute

nesta analogia de Deleuze e Guattari3 uma re-produccedilatildeo uma coacutepia que deveacutem real A

literatura recente das ciecircncias humanas e da filosofia particularmente apoacutes a ldquorevoluccedilatildeo

copernicana inacabadardquo4 operada pela psicanaacutelise de Freud vem tateando a ideia do fim

da metafiacutesica e da superaccedilatildeo do sujeito autocontido do Eu (Moi) que eacute ldquoeu substancialrdquo

do Ser capaz de dobrar-se sobre si e adquirir certeza de si Em lugar disso assume-se um

ser que recebe seu sentido inteligiacutevel no seio da imersatildeo cultural isto equivale a dizer que

o sujeito foi tornado enunciado e substituiacutedo pela Arte Ciecircncia Religiatildeo Economia

Poliacutetica Miacutedia ndash enfim pela cultura

Os fatores supracitados indicam possiacutevel convergecircncia em uma figura de

sujeito que passa a ser concebida na fronteira de contato do campo de presenccedila

intersubjetivo do desejo onde as vivecircncias satildeo moldadas pela atualidade da experiecircncia

na realidade imanente Trata-se de uma ideia cuja fundaccedilatildeo estaacute agraves avessas ldquode fora para

dentrordquo no sentido ambiente-organismo e em que a Personalidade eacute tomada jaacute natildeo mais

como estrutura mas como funccedilatildeo de estabelecimento de laccedilo social Eacute assim que opera

3 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p121 4 LAPLANCHE La reacutevolution copernicienne inacheveacutee

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por exemplo a teoria do Self construiacuteda por Fritz Perls Ralph Hefferline e o

fenomenoacutelogo Paul Goodman5 para sustentar a praacutetica cliacutenica da Gestalt-terapia6

Por oferecer uma leitura temporal da experiecircncia do sujeito que contemple

tanto sua participaccedilatildeo na realidade atual quanto a copresenccedila das inatualidades de seus

afetos e seus projetos-de-ser tanto a vivecircncia mais iacutentima de seu estranhamento quanto a

sua partilha na complexa trama do patrimocircnio de significaccedilotildees da humanidade tanto sua

existecircncia na qualidade de organismo em contato com o ambiente visando crescimento e

conservaccedilatildeo condiccedilatildeo que ele compartilha com toda a biosfera terrestre quanto sua

condiccedilatildeo particular de Ser posto-em-questatildeo e submetido agrave marca indeleacutevel da cultura a

teoria do Self seraacute utilizada aqui como chave maior de anaacutelise A partir dela eacute que seratildeo

estabelecidas as interlocuccedilotildees com as demais contribuiccedilotildees aqui tomadas de empreacutestimo

para matizar a diversidade que a anaacutelise requer procurando manter viva a voz que as

profere sem forccedilar uma siacutentese neutralizadora das diferenccedilas A teoria do Self eacute inclusiva

e heterogecircnea nascida ela proacutepria na confluecircncia da psicanaacutelise da fenomenologia e da

Gestalttheorie e a aceitaccedilatildeo do conflito aberto eacute sua parte integrante Somente pela sua

assincronia eacute que um todo gestaacuteltico7 logra preservar a multiplicidade da experiecircncia de

ser

Dimensatildeo reflexiva do sistema-funccedilatildeo self a personalidade

Parte da riqueza da teoria do Self construiacuteda por Perls Hefferline e Goodman

diz respeito agrave possibilidade de contemplar o sujeito a partir de pontos de vista distintos

Por meio da anatomofisiologia chega-se a um sujeito como conjunto das funccedilotildees de

percepccedilatildeo propriocepccedilatildeo musculatura motricidade autorregulaccedilatildeo organiacutesmica etc

que natildeo eacute menos factiacutevel que uma definiccedilatildeo da ordem de uma psicodinacircmica funcional ndash

funccedilotildees de Id Ego e Personalidade ndash ou temporal ndash relacionada agraves etapas do processo de

contato distintas apenas com fins elucidativos Em suma conceber o sujeito como um

gestalt eacute admitir que todos estes pontos de vista tornem manifesta uma ou outra dimensatildeo

5 PERLS Fritz HEFFERLINE Ralph GOODMAN Paul Gestalt-terapia 6 No decorrer deste texto os autores seratildeo referenciados como ldquoPHGrdquo para fins de praticidade 7 A noccedilatildeo mereoloacutegica intencionada no uso do termo alematildeo ldquogestaltrdquo de difiacutecil traduccedilatildeo eacute a de uma totalidade composta por partes assinteacuteticas alternando o status de figura e fundo em funccedilatildeo da mirada do observador cuja participaccedilatildeo eacute sine qua non neste processo Atentar para um dos aspectos deste todo eacute conferir-lhe prioridade e evidenciaacute-lo como ldquofigurardquo enquanto os demais mantecircm o status de ldquofundordquo Da mesma forma apreender intencionalmente um ldquotodordquo eacute perder de vista as nuances de suas ldquopartesrdquo componentes e vice-versa

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deste sujeito sem jamais esgotaacute-lo ou tampouco estabelecer muacutetua complementaridade

Porquanto seja ontologia a teoria do Self eacute inexoravelmente plural ndash e paradoxalmente

o Self eacute o integrador o correlato da unidade sinteacutetica Kantiana Em concordacircncia com a

letra de Merleau-Ponty em sua leitura de Kurt Goldstein8 o ldquoeurdquo do Self eacute um ldquoeu-

engajadordquo uma vez que

[hellip] a consciecircncia projeta-se em um mundo fiacutesico e tem um corpo assim como ela se projeta em um mundo cultural e tem haacutebitos porque ela soacute pode ser consciecircncia jogando com significaccedilotildees dadas no passado absoluto da natureza ou em seu passado pessoal e porque toda forma vivida tende para uma certa generalidade seja a de nossos haacutebitos seja a de nossas ldquofunccedilotildees corporaisrdquo 9

A teoria do Self trata de um corpo de atos ndash o da anatomia e da fisiologia

capaz de respostas sensoriais e motoras ndash que eacute atravessado por um corpo outro preacute-

pessoal o corpo de haacutebitos Ambos corpo anatomofisioloacutegico e corpo habitual se

expressam no contato e a impessoalidade dos haacutebitos garante uma perspectiva de falta

(de sentido) Encobrindo-os estaacute a dimensatildeo antropoloacutegica Imaginaacuteria do contato alccedilada

em significaccedilotildees Eis a relaccedilatildeo com a noccedilatildeo de corpo-sem-oacutergatildeos como encontrada

originalmente na obra de Antonin Artaud10 de um corpo uacutenico organismo preacute-reflexivo

que pulsa e contata antes de ser dilacerado por sua ldquofragmentaccedilatildeo em oacutergatildeosrdquo uma

referecircncia agrave sectarizaccedilatildeo em conceitos do intelecto Eacute assim que Artaud conclui seu

manifesto ldquoPara acabar com o julgamento de Deusrdquo transmitido pelo raacutedio em 1948

O homem eacute enfermo porque eacute mal construiacutedo Temos que nos decidir a desnudaacute-lo para raspar esse animaluacuteculo que o corroacutei mortalmente 2 deus e juntamente com deus os seus oacutergatildeos Se quiserem podem meter-me numa camisa de forccedila mas natildeo existe coisa mais inuacutetil que um oacutergatildeo Quando tiverem conseguido um corpo sem oacutergatildeos entatildeo o teratildeo libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade Entatildeo poderatildeo ensinaacute-lo a danccedilar agraves avessas como no deliacuterio dos bailes populares e esse avesso seraacute seu verdadeiro lugar

Na medida em que eacute composta de objetos do conhecimento que o sujeito

agrega e compotildee para tecer uma sorte de discurso sobre si de certo modo a funccedilatildeo

Personalidade eacute construiacuteda agrave maneira de uma narrativa ela eacute naturalmente uma

construccedilatildeo tardia do processo de contato que eacute posterior agrave apropriaccedilatildeo linguiacutestico-

8 O neurologista e psiquiatra Kurt Goldstein foi uma das mais importantes influecircncias para o casal Fritz e Laura Perls na ocasiatildeo da criaccedilatildeo da Gestalt-terapia e da Teoria do Self em conjunto com Paul Goodman 9 MERLEAU-PONTY Fenomenologia da percepccedilatildeo p192 10 ARTAUD Antonin Para acabar com o julgamento de Deus p42

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reflexiva do que foi experienciado em ato e que se presta agrave participaccedilatildeo na comunidade

de sentidos da cultura Em outras palavras o que a funccedilatildeo Personalidade produz eacute ldquouma

formaccedilatildeo do Self por uma atitude social compartilhadardquo11 Na medida em que deveacutem o

Self ndash de cuja integralidade participam tambeacutem o corpo de haacutebitos e a funccedilatildeo de ato ndash eacute

uma poesia arriacutetmica e fadada agrave incompletude Em comparaccedilatildeo a ldquopessoardquo que resulta

do trabalho da Personalidade eacute uma prosa razoavelmente inteligiacutevel

Ademais dentre tais muacuteltiplos vieses possiacuteveis a cliacutenica gestaacuteltica desde o

princiacutepio se apresentou como uma empresa de atenccedilatildeo agrave awareness isto eacute agrave emergecircncia

de excitamentos no fundo de passado e a formulaccedilatildeo de desejos de protensatildeo futura a

partir das atualidades O fluxo de awareness se traduz como a proacutepria criaccedilatildeo (protensatildeo

e realizaccedilatildeo) e destruiccedilatildeo (assimilaccedilatildeo e repeticcedilatildeo) de gestalten de maneira quase anaacuteloga

agrave dinacircmica das pulsotildees de vida e de morte A awareness sensorial manifesta-se como

dinacircmica de conservaccedilatildeo a assimilaccedilatildeo da dimensatildeo de ldquomais-gozarrdquo de cada ato e sua

repeticcedilatildeo como haacutebitos motores ou verbais que natildeo se confundem com a memoacuteria nem

com os sentimentos do ego psicofiacutesico substanciado pois tratam do atravessamento do

corpo ldquoporosordquo do sujeito por um passado impessoal da ordem do gozo como outrem

sem motivo ou criteacuterios de manifestaccedilatildeo precisos e que soacute se deixam apreender a

posteriori pelo rastro de excitamento que deixam no corpo A awareness deliberada por

sua vez manifesta-se como dinacircmica de crescimento as accedilotildees individuais respostas

motoras e verbais orientadas pelas inatualidades de passado habitual e futuro

possibiliacutestico constituem uma totalidade presuntiva uma gestalt sob a forma de desejo

por ser o correlato atual do contato a awareness deliberada daacute abertura para a experiecircncia

individual do sujeito unitaacuterio sempre dinacircmica e em devir orientada no sentido de um

realizar-se12

Na dinacircmica do desejo o sujeito vivencia um todo presuntivo que representa

uma representaccedilatildeo futura que o sujeito viraacute-a-ser Haacute neste apanhado imbuiacutedo de

inteligibilidade um terceiro desdobramento tardio na forma da awareness reflexiva

proacuteprio agrave condiccedilatildeo humana pois depende da faculdade de consciecircncia reflexiva e da

aquisiccedilatildeo da linguagem Este desdobramento tem a ver com os juiacutezos intelectuais que o

sujeito estabelece sobre suas proacuteprias sensaccedilotildees e accedilotildees Como dinacircmica de

autoconsistecircncia imaginaacuteria a awareness reflexiva envolve o processo de ldquodar-se contardquo

11 PHG Gestalt-terapia p123 12 MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Cliacutenicas gestaacutelticas sentido eacutetico poliacutetico e antropoloacutegico da teoria do Self p32

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ou ldquoter consciecircnciardquo de si em correspondecircncia com a intencionalidade categorial de

Husserl que resulta na construccedilatildeo de uma ficccedilatildeo inteligiacutevel sobre a experiecircncia ontoloacutegica

do sujeito Eis a dimensatildeo do fluxo de awareness que receberaacute maior ecircnfase em uma

observaccedilatildeo do sujeito do ponto de vista de sua Personalidade

As instacircncias de existecircncia do sujeito descrevem essencialmente trecircs

funccedilotildees de operaccedilatildeo intencional temporal ou funccedilotildees do Self correspondentes agraves trecircs

formas de awareness sensorial na Funccedilatildeo Id relativa agrave copresenccedila do excitamento

deliberada na funccedilatildeo Ato relativa agrave resposta motora desejante e reflexiva na funccedilatildeo

Personalidade relativa agrave atribuiccedilatildeo de unidade da experiecircncia Estas natildeo satildeo senatildeo trecircs

perspectivas para um fenocircmeno comum e soacute se distinguem a partir dos marcos

diferenciais que o observador elege como figura Sob este paradigma torna-se

incongruente pensar em qualquer coisa que se assemelhasse a estruturas egoacuteicas ou

personaliacutesticas do Self salvo como construccedilatildeo tardia e derivativa do awareness com fins

de estabelecimento de laccedilos sociais Deveras haacute pouco lugar para a ipseidade identitaacuteria

na teoria do Self Se a funccedilatildeo Id eacute caracterizada pela generalidade no acircmbito das formas

ou haacutebitos na funccedilatildeo Personalidade por sua vez satildeo os conteuacutedos produzidos que satildeo

compartilhados em caraacuteter de generalidade Aleacutem disso se o Id confere ambiguidade ao

sujeito a Personalidade lhe confere humanidade valores e cidadania seu status de

semelhante A awareness deliberada da funccedilatildeo de ato possibilita o reconhecimento da

ipseidade e da perspectiva de autoria de comportamento mas esta experiecircncia eacute efecircmera

a awareness reflexiva constitutiva da funccedilatildeo Personalidade eacute quem lhe confere

durabilidade e constroacutei a narrativa identitaacuteria do eu

Na epocheacute Husserliana apoacutes isolar todas as contingecircncias da realidade

empiacuterica o sujeito chegaria ao ldquosi-mesmo incontestaacutevelrdquo que processa todas as vivecircncias

um ser coincidente consigo mesmo monaacutedico e auto-evidente Husserl concebeu em sua

doutrina fenomenoloacutegica uma instacircncia que ocupasse o lugar de epicentro da visada

noeacutetico-noemaacutetica o ego transcendental dotado de um vieacutes apodiacutetico a partir do qual

observaria os fenocircmenos como espectador imparcial sem jamais confundir-se com os

objetos visados Ele operaria como polo sinteacutetico de toda a experiecircncia o que significa

que articularia a organizaccedilatildeo de todos os vividos ordenando-os em um sistema orgacircnico

transcendente A identidade uacuteltima para Husserl estaria mais aleacutem da imanecircncia da

inserccedilatildeo fenotiacutepica no lebenswelt ou dizendo o mesmo pelo seu avesso a experiecircncia

concreta natildeo seria capaz de afetar a transcendecircncia do ldquoeurdquo Assim o que se chama de

subjetividade monaacutedica em Husserl indica a soma ou confluecircncia entre o Ego como

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funccedilatildeo sintetizadora da experiecircncia e as informaccedilotildees personaliacutesticas dos vividos retidos

(que seriam anaacutelogas agraves representaccedilotildees que posteriormente PHG atribuiriam agrave funccedilatildeo

Personalidade)

A questatildeo das instacircncias imanentes e transcendentes do eu eacute tangenciada na

leitura de Deleuze sobre filosofia Kantiana da razatildeo a partir do enunciado filosoacutefico ldquoEu

eacute um outrordquo Deleuze13 mostra como Kant agrave guisa de apreciaccedilatildeo criacutetica do Cogito

Cartesiano estabelece um ldquoeurdquo ativo capaz de afetar o tempo e o espaccedilo e que por sua

vez determina a existecircncia de um ldquoeurdquo que muda no tempo e apresenta a cada instante

um grau de consciecircncia Tem-se entatildeo o Eu (Moi) como aspecto passivo e autorreferencial

de um organismo reconhece a si na passagem do tempo e o Eu (Je) tido como funccedilatildeo de

ato que determina no tempo a existecircncia desse organismo Eacute soacute a partir do Eu (Moi) que

podemos nos reconhecer e mesmo assim nos damos conta dele quase como espectadores

sofrendo a estranheza da determinaccedilatildeo por esse Eu (Je) numa condiccedilatildeo de alteridade que

nos soa como outro Os juiacutezos esteacuteticos seriam o ldquoponto fora da curvardquo na epistemologia

de Kant jaacute que o que neles se obteacutem natildeo eacute um objeto de conhecimento mas antes um de

complacecircncia e prazerdesprazer pelo qual eacute responsaacutevel a proacutepria unidade indeterminada

ndash em ldquolivre e harmonioso jogordquo ndash das faculdades do acircnimo (Gemuumltskrafte)14

Personalidade em ritornelo

Do fato de ser o Eu (Moi) entendido como passivo natildeo se pode derivar que

seja estaacutevel ou estaacutetico Este natildeo eacute senatildeo o resultado de um sem-nuacutemero de

ressignificaccedilotildees das vivecircncias do organismo em sua experiecircncia cotidiana vivecircncias que

devecircm registros de sentido que na teoria de Deleuze caracterizam as siacutenteses conjuntivas

Estas satildeo incorporadas na biografia do sujeito que passa a saber algo de si A dimensatildeo

personaliacutestica eacute caracterizada por um movimento de adoccedilatildeo e abandono de unidades

discursivas investidas de potencial identitaacuterio Deleuze e Guatarri tratam deste fenocircmeno

em termos geoeacuteticos15 isto eacute sob a forma de desterritorializaccedilatildeo harr reterritorializaccedilatildeo de

espaccedilos existenciais e o denominam de ritornelo Tais espaccedilos existenciais logram a

funccedilatildeo antropoloacutegica de viabilizar inobstante de maneira absolutamente transitoacuteria e

13 DELEUZE Criacutetica e Cliacutenica p43 14 KANT Criacutetica da faculdade do juiacutezo sect9 p54 15 Uma etimologia do termo revela os radicais ldquogeacuteo-ldquo referindo-se agrave distribuiccedilatildeo espacial pela terra e ldquoecircthosrdquo grafado ldquoήθοςrdquo que significa ldquomoradardquo ou ldquohabitaccedilatildeordquo O esclarecimento eacute vaacutelido para que natildeo haja confusatildeo com o termo oriundo do radical ldquoeacutethosrdquo grafado έθος significando ldquocostumerdquo

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efecircmera um grau de autorreconhecimento minimamente suficiente para que o sujeito decirc

conta da participaccedilatildeo cotidiana na realidade social

Tradicionalmente uma marcaccedilatildeo musical que marca o refratildeo de uma melodia

considerada o aacutepice de uma composiccedilatildeo e que se repete algumas vezes na partitura o

ritornelo eacute utilizado na filosofia de Deleuze para descrever uma relaccedilatildeo de busca alternada

por seguranccedila e por novidade no mundo eacute a criaccedilatildeo de um plano de existecircncia sobre a

indiferenciaccedilatildeo do caos a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio que faccedila as funccedilotildees de ldquomoradardquo

provisoacuteria e subsequentemente um lanccedilar-se no mundo que abre espaccedilo para a

improvisaccedilatildeo e o ajustamento criativo em face do acontecimento Durante a seacuterie de

entrevistas que Deleuze concedeu a Claire Parnet entre 1988 e 1989 lanccedilada

posteriormente em viacutedeo e transcriccedilatildeo como ldquoLrsquoAbeacuteceacutedaire de Gilles Deleuzerdquo o autor

comenta

Criamos ao menos um conceito muito importante o de ritornelo Para mim o ritornelo [] estaacute ligado ao problema do territoacuterio da saiacuteda ou entrada ao territoacuterio ou seja ao problema da desterritorializaccedilatildeo Volto para o meu territoacuterio que eu conheccedilo ou entatildeo me desterritorializo ou seja parto saio do meu territoacuterio16

Na mesma ocasiatildeo Deleuze define o ritornelo em termos muitos simples

como um ldquotraacute-laacute-laacuterdquo um cantarolar tranquilizante que se murmura quando em casa

durante os afazeres domeacutesticos ou nos casos opostos quando se estaacute fora de casa

cantarola-se para aplacar a tensatildeo de estar voltando da rua ao fim do dia de trabalho ou

entatildeo partindo (para onde) Em suma a incessante dinacircmica de ocupaccedilatildeo e desocupaccedilatildeo

de territoacuterios existenciais o tracircnsito alternado em meio agraves inuacutemeras totalidades de sentido

compartilhadas pela linguagem eacute o que atribui a qualquer coisa que se possa pensar como

uma personalidade a natureza de algo vazado e centriacutefugo A autocontinecircncia imaginaacuteria

prenunciada pela territorializaccedilatildeo nunca se faz completa pois eacute sempre atravessada por

I) novas intensidades da produccedilatildeo desejante isto eacute posteriores situaccedilotildees concretas de

contato deste organismo com o ambiente de modo a operar a criaccedilatildeo de novas articulaccedilotildees

de realidade e II) por um universo de haacutebitos ou excitamentos preacute-pessoais

experienciados pelo sujeito como alteridade radical agrave qual ele eacute passivo Neste sentido o

conceito do movimento de ritornelo estaacute em confronto direto com a ideia da fixidez

personaliacutestica estruturada e autocontida como paracircmetro de regularidade Nos termos da

16 DELEUZE O abecedaacuterio de Gilles Deleuze Seccedilatildeo ldquolsquoOrsquo de lsquoOacuteperarsquordquo

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Teoria do Self isto equivale simplesmente a afirmar que a funccedilatildeo Personalidade estaacute em

articulaccedilatildeo com as demais funccedilotildees de Ato e de Id

Independentemente de se analisar do ponto de vista de algo que falte ao

territoacuterio de sentido do sujeito como faz a psicanaacutelise ou do ponto de vista de algo que

lhe sobre que sobrevenha ao territoacuterio como acoplamento maquiacutenico excessivo

obrigando-o a uma reconfiguraccedilatildeo o efeito eacute o mesmo compelido pela protensatildeo a uma

virtualidade o sujeito se percebe em anguacutestia tendo que descentrar-se e vir a ocupar uma

nova posiccedilatildeo no mundo Ora nada haacute aqui para condenar ateacute porque o que o territoacuterio

tem de reconfortante tem tambeacutem de opressivamente ansiogecircnico Da mesma forma se

a desterritorializaccedilatildeo eacute promotora de anguacutestia ela corresponde todavia ao movimento

autopoieacutetico do proacuteprio bios que permite em seu processo autorreprodutivo a agecircncia do

caos e da transformaccedilatildeo

A situaccedilatildeo vem a se agravar entretanto nos casos em que o eixo

desterritorializante do ritornelo se torna a diretriz predominante A perda de polos

territoriais de seguranccedila e autorreconhecimento eacute abordada por PHG17 no texto original

pelo uso da palavra misery traduziacutevel como ldquoafliccedilatildeordquo ou ldquosofrimentordquo Em outras

palavras a experiecircncia de misery eacute provocada pela ldquofalta de um lugar eacutetico em que

possamos estabelecer relaccedilotildees poliacuteticas e antropoloacutegicasrdquo18 Eis o momento da elaboraccedilatildeo

de luto pelos territoacuterios perdidos e do resgate do movimento de ritornelo em seu eixo

oposto o da reterritorializaccedilatildeo ndash incumbecircncia dos membros da rede de apoio do sujeito

em sofrimento como familiares profissionais e demais viacutenculos de afeto Assim acontece

na produccedilatildeo da subjetividade quando se volta para o territoacuterio que se supunha conhecido

o que se experimenta eacute uma novidade O sujeito muda o territoacuterio muda e o paradoxo eacute

que mesmo a busca pela constacircncia se daacute na mudanccedila jaacute que a geoeacutetica eacute um plano-triacuteade

de experimentaccedilatildeo prudecircncia e improvisaccedilatildeo19

Este modelo geoeacutetico encontra consonacircncia na obra de PHG (1951) que

atribuem natildeo apenas agrave gestalt-terapia mas agrave proacutepria psicologia a funccedilatildeo de investigar a

operaccedilatildeo da fronteira de contato no campo organismoambiente Sejam os conceitos e

terminologias abandonados e fiquem os fenocircmenos aos quais eles se referem de fato a

psicologia se encarrega da relaccedilatildeo dos sujeitos uns com os outros e com o mundo natural

17 PHG Gestalt-terapia 18 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p284 19 COSTA O ritornelo em Deleuze- Guattari e as trecircs eacuteticas possiacuteveis In II Seminaacuterio Nacional de Filosofia e Educaccedilatildeo Confluecircncias 2006 Santa Maria

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De todo modo agrave diferenccedila das perspectivas estruturalistas a gestalt-terapia natildeo funda sua

ontologia sobre a fixaccedilatildeo identitaacuteria de um ego circunscrito em si proacuteprio O ldquoeu

reconheciacutevelrdquo da gestalt-terapia natildeo eacute uma instacircncia estaacutetica que tendo atingido a

maturaccedilatildeo natildeo mais se transformaria quando muito expandiria aqui e ali e que atuaria

como mera depositaacuteria das experiecircncias que vive e assimila Ao contraacuterio trata-se de uma

instacircncia intermitente em constante atualizaccedilatildeo de modo a ser jamais a mesma

A funccedilatildeo Personalidade esta funccedilatildeo de individuaccedilatildeo ontoloacutegica

territorializante eacute ldquoa proacutepria presenccedila do outro social como mediaccedilatildeo geneacuterica e

determinada entre dois atos distintosrdquo20 A mediaccedilatildeo geneacuterica de que se fala eacute da ordem

da comunicaccedilatildeo ao outro social nas palavras de PHG21 a Personalidade eacute o correlato

descritiacutevel ou reacuteplica verbal das vivecircncias de contato do Self Precisamente por esta razatildeo

a Personalidade eacute dinacircmica e mutaacutevel ela estaacute em funccedilatildeo dos atravessamentos habituais

e eacute constantemente sobrescrito pelas criaccedilotildees da funccedilatildeo de ato Em suma ela funciona

reescrevendo a si mesma em consonacircncia com a maneira como Lacan22 no Seminaacuterio

XX descreve o domiacutenio Imaginaacuterio que ldquonatildeo para de se escreverrdquo Porquanto funccedilatildeo a

Personalidade eacute movida pelas aacuteguas do rio de Heraacuteclito que seguem dia apoacutes dia um

curso semelhante ndash permitindo a um observador constatar que ainda se trata do mesmo

rio ndash sem jamais permanecer exatamente idecircntico em dois momentos seguidos ela opera

dinamicamente pela coadunaccedilatildeo dos objetos de realidade com os quais o sujeito se

identifica um emprego a preferecircncia por praia ou montanha a apreciaccedilatildeo por um artista

uma nacionalidade um hobby um aprendizado um juiacutezo loacutegico23

A Personalidade eacute o resultado do contato social criativo Os atos que

desempenhamos satildeo recebidos pelo outro social ndash e tambeacutem por noacutes mesmos na

alteridade do Eu (Je) que eacute capaz de observar o Eu (Moi) de uma perspectiva externa ndash

como objetos do intelecto produccedilotildees duraacuteveis da ordem do Imaginaacuterio que permanecem

como identidades As criaccedilotildees da funccedilatildeo de ato convertem-se em significantes

estabelecidos como pensamento Nesse sentido o outro social com o qual a Personalidade

dialoga funciona como ldquoespelho dos atosrdquo24 uma vez mais ecoando a descriccedilatildeo do

20 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p286 21 PHG Gestalt-terapia 22 LACAN O Seminaacuterio livro XX Mais ainda p127 23 Natildeo obstante do fato da constituiccedilatildeo subjetiva dos organismos caracterizar-se como devir processual natildeo se pode derivar que ele seja ldquoincompletordquo o sujeito eacute por inteiro valendo-se de quaisquer recursos dos quais disponha na atualidade para (re)construir-se agrave medida que a demanda do Outro se transmuta 24 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p286

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domiacutenio Imaginaacuterio que Lacan traduz como ldquoreflexo do semelhante ao semelhanterdquo 25

Isto serve para alertar que este processo natildeo pode ser tomado do ponto de vista solipsista

apenas a partir dos laccedilos sociais eacute que a Personalidade faz sentido jaacute que eacute o relato (ao

Outro) das vivecircncias a partir das representaccedilotildees intersubjetivas (entre eu e o Outro) e por

meio de significaccedilotildees linguiacutesticas (na liacutengua do Outro) Natildeo se trata de um evento

privado subjetivo mas do resultado de interaccedilotildees e viacutenculos estabelecidos no ambiente

e determinados por este mesmo ambiente em suma a constituiccedilatildeo da personalidade eacute um

fenocircmeno de aprendizagem

A presenccedila do outro social na gecircnese da dinacircmica e da fixidez personaliacutestica

Na medida em que toma parte do continuum da awareness o Self natildeo se

encontra nem na voz ativa entendendo o sujeito como autor da accedilatildeo nem tampouco na

voz passiva em que o sujeito tenha sofrido a accedilatildeo sobre si No entendimento dos gestalt-

terapeutas o Self ocorre na ldquovoz meacutediardquo em que o sujeito ldquoexperimenta a si mesmo na

accedilatildeordquo26 O que parece ao menos eacute que os autores admitem a ldquovoz meacutediardquo como um eixo

de equiliacutebrio ideal do qual o Self frequentemente se desvia em virtude de seus dispositivos

de autoconquista ou autossabotagem Eacute no Self bem-definido repleto de identificaccedilotildees e

alienaccedilotildees que lhe satildeo preciosas que se percebe a disfunccedilatildeo O ego cristalizado boicota

a novidade e a espontaneidade e preza pela autoconsistecircncia pela fixidez personaliacutestica

Embora a noccedilatildeo tradicional de uma estrutura personaliacutestica venha a ser

ressignificada em vista de uma funccedilatildeo Personalidade fluida este novo construto estaacute

longe de contemplar a integridade do estar-no-mundo de um organismo Falar de um eu-

mesmo ndash ou Self ndash eacute falar de um sistema de funccedilotildees de contato do presente transiente

concreto um fluxo de conscientizaccedilatildeo ndash ou de awareness Nesse iacutenterim a funccedilatildeo

Personalidade natildeo eacute senatildeo o paraacutegrafo final de uma declaraccedilatildeo ontoloacutegica extensa eacute a

dimensatildeo mais facilmente acessiacutevel e comunicaacutevel do sistema Self natildeo soacute para outrem

como para o proacuteprio organismo simplesmente porque se fundamenta na awareness

reflexiva do contato que o organismo estabelece com o ambiente atual ao seu redor Self

eacute uma agecircncia de crescimento por meio do contato portanto se eacute de fato necessaacuterio

atribuir-lhe uma localizaccedilatildeo toacutepica para compreensibilizaacute-lo natildeo se localizaraacute este

sistema no interior intimista do sujeito mas na sua fronteira de contato com o mundo

25 LACAN O Seminaacuterio livro XX Mais ainda p111 26 PHG Gestalt-terapia p43

89

externo pertencendo a ambos ambiente e organismo E natildeo poderia ser diferente

sabendo-se que o que fazemos durante todo o percurso da vida eacute experimentar eventos no

ambiente externo e participar deles doando-lhes o que temos a oferecer a saber o efeito

destas experiecircncias mesmas em nosso proacuteprio corpo passivo e nosso poder ativo e

desejante de manipulaccedilatildeo e produccedilatildeo da realidade

A passagem do ego monaacutedico para esse Self tornado funccedilatildeo de ajustamento ndash

produccedilatildeo ndash no mundo um recorte de siacutenteses conjuntivas da intrincada rede de

multideterminaccedilotildees descentralizadas e emergentes sugere que o foco da anaacutelise

ontoloacutegica do antropos seja deslocado para esse feixe de fenocircmenos subjetivos que nos

compotildee As construccedilotildees identitaacuterias todas funcionam como simulacros da verdade

existencial subjetiva sem que nenhuma delas a esgote ou menos ainda funcione como

eidos egoacuteico ldquoQual nosso rosto genuiacutenordquo perguntam PHG sabendo que natildeo seria outra

coisa senatildeo ldquouma resposta a uma situaccedilatildeo presenterdquo 27 Contatar a realidade presente e

disponibilizar a emergecircncia de gestalten permitindo-se devir eacute o modo gestaacuteltico de

responder agrave convocaccedilatildeo Nietzscheana do ldquotorna-te quem tu eacutesrdquo ndash e mesmo esta eacute

enganadora quando concentra sua awareness na situaccedilatildeo presente o organismo pulveriza

as certezas do passado em possibilidades futuras e contempla o potencial destas se

realizarem ldquoSeja vocecirc mesmordquo ou ldquosejardquo coisa qualquer eacute no melhor dos casos uma

exortaccedilatildeo ansiogecircnica agrave identificaccedilatildeo com uma das possibilidades futuras ainda

indefinidas ldquotorna-te quem tu eacutesrdquo no pior dos casos eacute uma demanda por

previsibilidade personaliacutestica por meio da fixaccedilatildeo em identificaccedilotildees passadas ldquoseja

aquilo que sempre esperei que vocecirc fosserdquo

A vida social de contato pleno gera integraccedilatildeo de valores e identificaccedilotildees

pertinentes para o sujeito mas no contato interrompido este imita e repete de forma

alienada Traccedilos personaliacutesticos crenccedilas valores escolhas frequentemente satildeo vividas

como estados de crescimento que um dia foram atuais mas perduraram aleacutem de seu

tempo ateacute que natildeo sejam mais funcionais Quando satildeo enfim abandonados com certo

desprezo ou rejeiccedilatildeo violenta denotam que a situaccedilatildeo ainda estaacute inacabada PHG afirmam

que vivecircncias passadas que foram resolvidas surgem como memoacuterias serenas sem

acarretar grande mobilizaccedilatildeo de tensatildeo por jaacute terem sido integradas ao Self e resolvidas

Via de regra contudo as relaccedilotildees que o sujeito estabelece no meio cultural que viratildeo a

delinear sua constituiccedilatildeo identitaacuteria natildeo satildeo de outra natureza senatildeo intervenccedilotildees sofridas

27 PHG Gestalt-terapia p179

90

por um corpo pelos fluxos da maacutequina-socius que o atravessam de todos os lados desde

o nascimento

Se nos primeiros meses da vida a crianccedila se daacute conta da presenccedila de uma

alteridade ndash o adulto ndash que opera a mediaccedilatildeo contingente dos atos ora oferecendo as

condiccedilotildees para possibilitaacute-los ora coibindo-os por volta dos 18 meses comeccedila a

reconhecer uma outra forma de alteridade que eacute o Outro social das representaccedilotildees e da

linguagem (MUumlLLER-GRANZOTTO 2012a) A aquisiccedilatildeo das formas linguajeiras

permitem agrave crianccedila utilizar seu crescente vocabulaacuterio para construccedilatildeo de unidades de

sentido destinadas a comunicar algo ao semelhante A partir desta etapa a crianccedila pode

entatildeo ingressar neste jogo de interaccedilotildees sociais do qual os adultos participam e identificar

o valor social atribuiacutedo agraves coisas e aos atos isto eacute a demanda por identidade impliacutecita em

cada laccedilo social ldquoHaacute por detraacutes da pergunta dirigida a mim algueacutem que quer saber de

mim e provavelmente um lsquoalgueacutem que sou eursquo por detraacutes da minha respostardquo28

Sua existecircncia motora passa a ter uma autoria uma figura Imaginaacuteria de

referecircncia e de interlocuccedilatildeo entre as demais unidades Imaginaacuterias Satildeo estas outras

unidades isto eacute eacute o olhar do outro social que referenda e legitima a existecircncia da unidade

personaliacutestica Por isso o Outro ndash seja uma pessoa um desenho em um livro ou uma roupa

na vitrine de uma loja ndash cumpre para ela a funccedilatildeo de espelho de confirmaccedilatildeo da

representaccedilatildeo imageacutetica Se eacute proacuteprio do bios que seu crescimento se decirc pela exposiccedilatildeo

agraves contingecircncias ambientais no caso da humanidade a autorregulaccedilatildeo organiacutesmica se

traduz com veemecircncia na exposiccedilatildeo ao feixe de marcas culturais pelos quais os

dispositivos maquiacutenicos de subjetivaccedilatildeo operam a simbolizaccedilatildeo dos corpos Em meio a

essa miriacuteade de universos incorporais de valor as cadeias discursivas (religiosas

poliacuteticas ideoloacutegicas enunciados cientiacuteficos ritornelos ou formas que se repetem etc)

servem para organizar um sentido de identidade mais palpaacutevel delimitar um territoacuterio de

existecircncia reconheciacutevel com fronteiras de ego liacutequidas

Feacutelix Guattari29 aponta como o mapeamento dos territoacuterios existenciais eacute

sentido como marca no corpo e se daacute pela via dos dispositivos maquiacutenicos de

subjetivaccedilatildeo em massa O que se precisa salientar a respeito do maquinismo como

apropriado por Guattari eacute que as maacutequinas subjetivantes tecem a trama social produzem

desejos coletivos forjam afetos comuns e engendram complexas redes de significaccedilatildeo

28 MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Cliacutenicas gestaacutelticas sentido eacutetico poliacutetico e antropoloacutegico da teoria do Self p237 29 GUATTARI Caosmose p60

91

compartilhada Se Nietzsche podia dizer que ldquocada nome da histoacuteria sou eurdquo30 eacute porque

ele assumia a transitoriedade de suas identificaccedilotildees com estes personagens Os nomes

proacuteprios satildeo mais que representaccedilotildees Antes satildeo demarcaccedilotildees territoriais domiacutenios

significantes engendrados pela semiologia dos equipamentos coletivos dos quais a

maacutequina social dispotildee atravessamentos de intensidades diversas que datildeo sentido(s) ao

corpo que operam um efeito sobre a memoacuteria a inteligecircncia a sensorialidade e os afetos

Esta accedilatildeo eacute anterior mesmo a uma semiologia significante os sentidos e as denotaccedilotildees

em princiacutepio escapam ao sentido linguiacutestico comum e funcionam de maneira paralela e

independente entre si A partir das siacutenteses disjuntivas entre as diferentes significaccedilotildees

surge um terceiro termo derivativo A este eacute que se daacute o nome de corpo-sem-oacutergatildeos ou

corpo pleno ou ainda quando se trata da produccedilatildeo social socius Por este terceiro termo

de inicial indiferenciaccedilatildeo eacute que correm os fluxos de intensidades formando planos

imanentes de existecircncia neles eacute que as maacutequinas desejantes operam cortes31 e fazem

distinccedilotildees que datildeo forma aos objetos do mundo

Os equipamentos coletivos satildeo tambeacutem maacutequinas teacutecnico-sociais e a elas

cabe a mesma leitura poliacutetica no tangente agrave virtualidade de sua aplicaccedilatildeo a praacutetica

esportiva endossa a autossuperaccedilatildeo e outorga ao sujeito maior controle sobre seu corpo

tautocronicamente serve de perfeito ldquopatildeo-e-circordquo agrave massa que lhe devota sua atenccedilatildeo e

permanece alheia ao que de fato importa no tracircmite das instacircncias deliberativas A miacutedia

potencializada pela televisatildeo e pela internet horizontaliza o acesso agrave informaccedilatildeo ao

mesmo tempo em que vomita uma abundacircncia de alimento para a banalidade e desobriga

a populaccedilatildeo para seu aliacutevio de decidir por si mesma Assim o eacute para onde quer que se

olhe o sistema educacional as estrateacutegias de planejamento urbano a religiatildeo e mesmo a

arte Esse efeito em si dispotildee de um potencial homogeneizante pois a sociedade

axiomatizada pelo capital precisa atribuir valor de troca agraves suas produccedilotildees Este e aquele

produto precisam ter seus respectivos valores correspondentes a uma mesma unidade de

medida Essa eacute sua poderosa estrateacutegia de apropriaccedilatildeo de toda a produccedilatildeo desejante que

eacute domada homogeneizada e redirecionada no sentido da produccedilatildeo da mais-valia

A homogecircnese alienante no entanto natildeo eacute a uacutenica possibilidade de

investimento para a produccedilatildeo de sujeitos A subjetivaccedilatildeo maquiacutenica tambeacutem pode ter um

potencial emancipatoacuterio promotor de heterogecircnese O que Guattari defende eacute a

30 NIETZSCHE em carta enviada a Jacob Burckhardt em Janeiro de 1889 In ALMEIDA Nietzsche e o paradoxo p 141 31 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p16

92

emancipaccedilatildeo dos territoacuterios fixos tanto para a intervenccedilatildeo social quanto para o contexto

cliacutenico O programa teleoloacutegico de ldquocurardquo por um meacutetodo fixo eacute descartado em favor de

uma perspectiva eacutetico-esteacutetica de promoccedilatildeo da experiecircncia do espontacircneo no campo de

presenccedila cliacutenico O eixo de desterritorializaccedilatildeo do ritornelo subjetivante adquire aqui um

novo sentido cliacutenico uma vez feita a associaccedilatildeo entre crescimento organiacutesmico produccedilatildeo

desejante de realidade e ocupaccedilatildeo de novos territoacuterios de sentido receacutem-inventados

Nesse mesmo sentido a cliacutenica gestaacuteltica esquiva-se de assumir a diacuteade normal-anormal

como ocupaccedilotildees de territoacuterios existenciais identitaacuterios32 Roacutetulos como ldquosaudaacutevelrdquo ou

ldquodoenterdquo satildeo exiacutemias ferramentas de homogeneizaccedilatildeo mas prestam um desserviccedilo como

registros da experiecircncia subjetiva neles natildeo cabe o sujeito Em vez disso a gestalt-terapia

encontra uma alternativa mais parcimoniosa na anaacutelise funcional dos ajustamentos de

contato na fronteira organismo-ambiente e transita por entre o eixo ldquocontato bomrdquo ndash

ldquocontato falhordquo e mesmo nestes casos nas funccedilotildees de defesa supressatildeo isolamento

repeticcedilatildeo etc haacute sempre um aspecto criativo e adaptativo particularmente funcionais

numa sociedade intrinsecamente neuroacutetica como a que aqui se desvela

Natildeo eacute surpresa que a questatildeo da sujeiccedilatildeo agrave demanda impessoal do Outro

social (ldquosejardquo) leve naturalmente ao tema da neurose Sobretudo cabe ressaltar o

seguinte o problema da concepccedilatildeo psicologizante de que o neuroacutetico estaria ldquoprivado de

sua natureza humanardquo e que ela precisaria ser ldquorecuperadardquo eacute justamente o fato de que o

consulente de um processo terapecircutico eacute um sujeito em devir que constroacutei para si

identidades conforme sua conveniecircncia para as demandas ambientais agraves quais esteja

exposto Eis inclusive a justificativa de PHG para o estabelecimento da gestalt-terapia

como uma abordagem terapecircutica natildeo-normativa que estabeleccedila o menos possiacutevel uma

meta a ser atingida A claacutessica explicaccedilatildeo psicanaliacutetica eacute de que o sintoma eacute duplamente

uma defesa contra a vitalidade mas tambeacutem uma demonstraccedilatildeo de vitalidade A questatildeo

eacute que o sintoma eacute tambeacutem um esforccedilo organiacutesmico mas dedicado agrave repressatildeo do proacuteprio

Self ao inveacutes da resoluccedilatildeo de situaccedilotildees inacabadas na atualidade O sintoma eacute constitutivo

da funccedilatildeo Personalidade torna o sujeito autorreferente e reconheciacutevel como haacutebito que

eacute Sobretudo trata-se de uma criaccedilatildeo da funccedilatildeo de ato e de uma expressatildeo da

singularidade do sujeito Destarte a neurose cumpre uma funccedilatildeo em vez de um ldquomal-a-

ser-combatidordquo talvez ela se aproxime mais da ideia de um ldquomal necessaacuteriordquo Os efeitos

negativos da neurose a saber o embotamento do contato e da awareness a normatizaccedilatildeo

32 PHG Gestalt-terapia p44

93

a supressatildeo do estado oscilante de emergecircncia ndash relaxamento e sua conversatildeo em um

estado riacutegido de moderada ansiedade satildeo justamente o que faz o cotidiano estaacutevel e

territorializado do sujeito

A timidez eacute um dos exemplos apresentados por PHG33 de manifestaccedilatildeo de

defesa do Self contra a anguacutestia da desterritorializaccedilatildeo Ousar sair do conforto do status

quo e confrontar-se com o excitamento eacute muitas vezes uma experiecircncia aterradora em

face da qual a seguranccedila do conhecido parece ser uma alternativa mais favoraacutevel ldquoO que

temos que entenderrdquo dizem os autores ldquoeacute que natildeo existe algo como uma seguranccedila

verdadeira porque nesse caso o Self seria uma fixidezrdquo Uma vez que se esteja de acordo

com essa afirmaccedilatildeo de PHG soacute entatildeo eacute cabiacutevel preconizar que a postura conservativa de

seguranccedila personaliacutestica ndash saber com certeza dizer quem se eacute ndash seja abandonada em

proveito de uma postura de adaptabilidade e aceitaccedilatildeo espontacircnea das oportunidades de

crescimento orientadas pelo eixo da autorregulaccedilatildeo organiacutesmica

A prerrogativa da subjetivaccedilatildeo maquiacutenica autopoieacutetica faz eco com o sentido

dado aqui ao parecircnklisis de Epicuro que serve de instrumento agrave cliacutenica promotora de

desvios do clinamen fundada na Teoria do Self O aspecto de singularizaccedilatildeo que subjaz

nessa ontologia indica que a subjetivaccedilatildeo natildeo eacute senatildeo um enriquecimento de virtualidades

aliado agrave progressiva difusatildeo de um territoacuterio existencial de autorreconhecimento que eacute

por natureza vazado O que o faz vazar eacute exatamente a promoccedilatildeo do desvio condiccedilatildeo

sine qua non para o organismo contatar o mundo A desterritorializaccedilatildeo eacute um ajustamento

criativo que eacute biologicamente adaptativo assim como sua contraparte de ocupaccedilatildeo de

novos territoacuterios ndash isto eacute a adoccedilatildeo de novas significaccedilotildees provindas da cultura ndash tambeacutem

o eacute porquanto a divisatildeo entre intrapessoal e interpessoal eacute superada pela constataccedilatildeo de

que ldquotoda personalidade individual e toda sociedade organizada se desenvolvem a partir

de funccedilotildees de coesatildeo que satildeo essenciais tanto para a pessoa quanto para a sociedaderdquo34

Natildeo obstante esta seria uma afirmaccedilatildeo ingecircnua dos gestalt-terapeutas se natildeo fosse

ressaltado uma vez mais que aqui se trata de uma faceta heterogeneizante da

subjetivaccedilatildeo e que ao contraacuterio na loacutegica capitalista a reciprocidade entre

desenvolvimento do indiviacuteduo e do socius eacute um conceito distorcido pelo efeito da

axiomatizaccedilatildeo e do primado da mais-valia

Uma anaacutelise mais minuciosa do escrutiacutenio feito por Deleuze e Guattari sobre

a loacutegica capitalista seria tema de outro texto Todavia eacute necessaacuterio ao menos mencionar

33 PHG Gestalt-terapia p218 34 PHG Gestalt-terapia p162

94

o papel do capitalismo como grande constituinte da subjetividade privatizada da

contemporaneidade e explorar brevemente o modus operandi de seu vasto mecanismo

axiomatizante Foucault apontou como a passagem do regime feudal para o regime

disciplinar provocou uma inversatildeo na piracircmide identitaacuteria do poder Inicialmente a

vassalagem majoritariamente anocircnima estava engajada em uma relaccedilatildeo de subserviecircncia

ascendente para com a figura opulenta do monarca Em um regime disciplinar por sua

vez35 ldquo[] a individualizaccedilatildeo em contrapartida eacute lsquodescendentersquo Agrave medida que o poder

se torna mais anocircnimo e mais funcional aqueles sobre quem ele se exerce tendem a ser

mais fortemente individualizados36 O poder pulverizado e microfiacutesico que descreve

Foucault natildeo eacute senatildeo a inversatildeo do socius despoacutetico objetivamente codificado Por meio

deste exerciacutecio complexo de poder o regime capitalista abre matildeo de todos os coacutedigos e

permite que a proacutepria diversidade de identidades trabalhe a seu favor porquanto adquira

valor de troca O assim chamado (sarcasticamente afirmam Deleuze e Guattari) ldquopoder

de comprardquo natildeo eacute senatildeo um ldquofluxo verdadeiramente impotencializado que representa a

impotecircncia absoluta do assalariado assim como a dependecircncia relativa do capitalismo

industrialrdquo37 ndash trata-se portanto de um expediente antiprodutivo por excelecircncia

Em princiacutepio anteriormente a qualquer codificaccedilatildeo devimos todos os nomes

da histoacuteria fomos o mesmo ser em toda parte matildee pai chefe amigo inimigo filho

mito anocircnimo Todos estes desdobramentos repousariam como pura potencialidade sobre

o socius corpo pleno de antiproduccedilatildeo da terra inengendrada que remeteria a uma origem

anagoacutegica ou vale o acreacutescimo uma origem psicanaliacutetica A referecircncia ao socius

virginal preacutevio agrave marcaccedilatildeo cultural vale soacute como nostalgia seja ela nostalgia do Uno

holiacutestico ou nostalgia do ldquoS1rdquo forcluiacutedo a homeostase da indiferenciaccedilatildeo matildee-bebecirc

Isto em termos ontogeneacuteticos contudo nossa filogecircnese natildeo eacute diferente O

sistema nervoso motoacuterico-muscular humano desenvolveu-se evolutivamente de modo a

funcionar separado do pensamento cognitivo e sensorial (PHG 1951 p121) Mover-se e

raciocinar satildeo processos diferentes e independentes para o homo sapiens o que natildeo eacute

verdade para a maioria dos mamiacuteferos Uma vez mais a marca neuroacutetica da cultura

acentua a dissonacircncia entre sentidos e motricidade para impedir a espontaneidade Laccedilos

mais primitivos como sexo e alimentaccedilatildeo satildeo aleacutem de preacute-verbais preacute-pessoais O outro

35 Traduccedilatildeo livre No original ldquo[hellip] lrsquoindividualisation em revanche est lsquodescendantersquo agrave mesure que le pouvoir devient plus anonyme et plus fonctionnel ceux sur qui il srsquoexerce tendent agrave ecirctre plus fortement individualiseacutesrdquo 36 FOUCAULT Surveiller et punir p194 37 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p317

95

natildeo aparece como pessoa mas como ldquoalgordquo a ser contatado O que se distingue como

ldquopessoardquo seratildeo as posteriores criaccedilotildees das identidades culturais produto da inserccedilatildeo na

teia de fluxos subjetivantes do socius e das relaccedilotildees de alianccedila ou laccedilos sociais

Destarte a passagem dos registros intensivos no socius para os papeacuteis

identitaacuterios reificados eacute o ponto de partida da codificaccedilatildeo social A maacutequina capitalista

inobstante vem surgir na modernidade como inversatildeo deste processo ela opera

unidirecionalmente no sentido da total descodificaccedilatildeo dos fluxos O capital depende de

trabalhadores livres e da virtualidade do dinheiro (especulaccedilatildeo) e por isso natildeo daacute conta

de abranger todo o campo social Pelo contraacuterio soacute tem a ganhar se deixar que este fluxo

corra desterritorializado e cada vez mais intensificado O modus operandi da maacutequina

capitalista sua descodificaccedilatildeo dos fluxos implica a ruptura do Urstaat Imaginaacuterio como

referecircncia ao Estado ideal Nada mais eacute sacralizado Todavia no capitalismo apesar de

estarem descodificados os fluxos estatildeo capturados em uma orientaccedilatildeo axiomaacutetica Por

vias escusas que os fluxos esquizofrenicamente talham no socius por meio de crises

desarranjos e vertigens protoemancipatoacuterias eles cinicamente ndash a ponto de afirmarem que

parte nenhuma ali estaacute sendo lesada ndash convergem a um ponto comum que eacute

inexoravelmente o da proacutepria subsistecircncia do capital

Conclusatildeo

A breve menccedilatildeo agrave anaacutelise de Deleuze e Guattari sobre o capitalismo serve de

contraponto ao que foi exposto anteriormente sobre a Personalidade em devir justamente

por ser seu desdouro inerente A reinvenccedilatildeo criativa das narrativas sobre o Self estaacute com

relativa frequecircncia alienada agrave funccedilatildeo de autossubsistecircncia do capital todavia ela tem

igualmente o potencial para ser emancipatoacuteria e heterogeneizante Lanccedilar luz agrave distinccedilatildeo

entre uma e outra forma eacute um trabalho eacutetico em progresso cuja relevacircncia eacute justificada

pelo proacuteprio reconhecimento das capacidades dos seres desejantes em criar possibilidades

de existecircncia e por vecirc-las amordaccediladas pela vida inautecircntica

Levada ao extremo a criaccedilatildeo das identidades na cultura desprende-se da crua

veracidade de animais em contato e se sublima em nuvens de abstraccedilotildees de acuacutemulos

de significantes de dados que porventura venham a descrever um sujeito individualizado

Quando se crecircem absolutamente associados a determinadas identificaccedilotildees culturais os

organismos deixam de fazer uso instrumental e criativo da Personalidade doam seus

corpos para a territorializaccedilatildeo institucional e outorgam agrave autoridade do Outro poder de

96

ldquoexploraccedilatildeo do homem pelo homem e de muitos pelo todordquo38

Neste sentido a Teoria do Self principalmente graccedilas ao diaacutelogo que ela

permite estabelecer com outras antropologias revela uma forccedila poliacutetica a ser reconhecida

em sua expressividade Por meio dos marcos diferenciais que evidenciam no sujeito a

primazia do contato e da awareness ela se apresenta como uma ferramenta meritoacuteria

para o resgate da accedilatildeo criadora dos corpos e consequentemente para uma sutil revoluccedilatildeo

nas dinacircmicas de exerciacutecio de poder subjacentes nos laccedilos entre sujeito e Outro social

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terapia Satildeo Paulo Summus 2007

MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Cliacutenicas gestaacutelticas sentido

eacutetico poliacutetico e antropoloacutegico da teoria do self Satildeo Paulo Summus 2012a

MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Psicose e Sofrimento Satildeo

Paulo Summus 2012b

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2002

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Traduccedilatildeo Fernando Rosa Ribeiro Satildeo Paulo Summus 1997

SANTOS Leonel Ribeiro dos Regresso a Kant Eacutetica Esteacutetica Filosofia Poliacutetica

Lisboa UED ndash Universidade Editorial 2012

PRAacuteTICAS DE CUIDADO DE SI NA ANTIGUIDADE1

Felipe Gustavo Soares da Silva2

RESUMO O presente trabalho faz anaacutelise histoacuterico-filosoacutefica do tema do cuidado de si a partir de suas praacuteticas nas figuras mais representativas do mundo grego desde o periacuteodo preacute-filosoacutefico ateacute Platatildeo demonstrando como as praacuteticas do cuidado representam um modo de viver ordenado e ainda mais caracterizam o pensar e o agir de uma eacutepoca ilustre da Histoacuteria e da Filosofia grega Por fim o trabalho apresente o cume filosoacutefico do tema do cuidado na antiguidade na personificaccedilatildeo de Soacutecrates conforme retratado pelos diaacutelogos platocircnicos PALAVRAS-CHAVE Antiguidade grega Cuidado de si Paideia ABSTRACT The present work performs an historical and philosophical analysis of the theme ldquocare of the selfrdquo through the prism of its practices by the most representative figures of the Greek world starting from pre-philosophical period until Plato demonstrating how the practices of the care represents an ordained way of life and more represents the thinking and the acting of an illustrious time of the History and the Greek Philosophy At last this work presents the philosophical apex of the theme care in ancient times personified by Socrates as portrayed by Platonic dialogues KEY-WORDS Greek antiquity Care of self Paideia

1 Introduccedilatildeo

A antiguidade grega eacute marcada fortemente por uma cultura de

autoaprimoramento do proacuteprio homem O processo educativo do homem natildeo dispensa

ao lado da tarefa do educador o papel do educando como primordial e diante disto cuidar

de si representa a praacutetica agrave qual era atarefado o educando O cuidado de si imperativo do

mundo antigo trata-se de uma seacuterie de praacuteticas que conduzem o homem a uma cultura de

si mesmo a uma vigilacircncia sobre suas accedilotildees e uma contiacutenua reflexatildeo sobre elas que tem

como finalidade uacuteltima para a vida humana o alcance da Excelecircncia

O cuidado de si eacute comumente estudado em diversas aacutereas sobretudo na

educaccedilatildeo na poliacutetica e na sauacutede obviamente pela influecircncia dos estudos realizados

recentemente por M Foucault que busca identificar as raiacutezes da subjetivaccedilatildeo na

1 Dedico este trabalho agrave profa Ana Cristina Machado pela parceria e amizade sempre presente 2 Mestre em filosofia (UFPE) Especialista em educaccedilatildeo pobreza e desigualdade social (UFPE) e-mail felipegustavopxhotmailcom

100

antiguidade sendo ele um dos mais importantes estudiosos do tema na

contemporaneidade Em seu segundo volume da Histoacuteria da sexualidade3 Foucault

aborda em um capiacutetulo especiacutefico o que ele chamada de uso dos prazeres a forma pela

qual o homem antigo relacionava-se com seus desejos e as praacuteticas ou o uso que faz deles

Jaacute no recuo histoacuterico ao mundo grego realizado em sua Hermenecircutica do sujeito4

descreve o que seria o cuidado de si e em que consistem as diversas accedilotildees praticadas pelo

homem grego Mesmo natildeo se tratando de uma anaacutelise teacutecnica da obra platocircnica mas uma

anaacutelise da questatildeo do cuidado diante do que ele chama de lsquotecnologias de sirsquo Foucault

traz uma anaacutelise importante para que possamos conceituar o cuidado de si para o modo

de viver dos gregos

Primeiramente o tema de uma atitude geral um certo modo de encarar as coisas de estar no mundo de praticar accedilotildees de ter relaccedilotildees com o outro A epimeleacuteia heautou eacute uma atitude para consigo para com os outros para com o mundo Em segundo lugar a epimeleacuteia heautou eacute tambeacutem uma certa forma de atenccedilatildeo de olhar Cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar que se o conduza do exterior paraeu ia dizer ldquoo interiorrdquo deixemos de lado esta palavra (que como sabemos coloca muitos problemas) e digamos simplesmente que eacute preciso converter o olhar do exterior dos outros do mundo etc para si ldquomesmordquo O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento Haacute um parentesco da palavra epimeleacuteia com meleacutete que quer dizer ao mesmo tempo exerciacutecio e meditaccedilatildeo Em terceiro lugar a noccedilatildeo de epimeleacuteia natildeo designa simplesmente esta atitude geral ou esta forma de atenccedilatildeo voltada para si Tambeacutem designa sempre algumas accedilotildees accedilotildees que satildeo exercidas de si para consigo accedilotildees pelas quais nos assumimos nos modificamos nos purificamos nos transformamos e nos transfiguramos Daiacute uma seacuterie de praacuteticas que satildeo na sua maioria exerciacutecios cujo destino (na histoacuteria da cultura da filosofia da moral da espiritualidade ocidentais) seraacute bem longo (FOUCAULT 2014p14-15)

Nos seus estudos Foucault trata de examinar a noccedilatildeo de cuidado apontando

trecircs dimensotildees principais em que o cuidado de si relaciona-se primeiramente a

pedagogia depois a poliacutetica e por fim a Eroacutetica (FOUCAULT M 2014 p52) O autor

centraliza sua abordagem do cuidado de si no Alcibiacuteades primeiro onde analisa o cuidado

da alma como principal objetivo do diaacutelogo O estudo realizado por Foucault natildeo pode

ser desprezado visto sua atualidade e significaccedilatildeo para o estudo atual da noccedilatildeo do cuidado

e visto sua descriccedilatildeo sobre o que significavam as diversas praacuteticas vividas e

3 FOUCAULT M A hermenecircutica do sujeito Trad de Maacutercio Alves da Fonseca Salma Tannus Nuchail Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 4 FOUCAULT Michel Histoacuteria da Sexualidade 3 - o cuidado de si Rio de Janeiro Graal 2002

101

compartilhadas pelo homem grego poreacutem adverte-nos Deleuze que Foucault natildeo

pretende rever os gregos mas observar os modos de constituiccedilatildeo do sujeito (moderno)

noccedilatildeo totalmente distinta do mundo antigo (DELEUZE1996 p 115) O proacuteprio Foucault

nos adverte que as praacuteticas de cuidado (de si) na antiguidade natildeo satildeo exclusividade do

momento filosoacutefico (FOUCAULT 2014) Mesmo antes dos grandes mestres da Filosofia

antiga jaacute havia uma espeacutecie de preocupaccedilatildeo do homem na forma de viver no mundo e se

relacionar com o que o envolvia seja um deus seja os outros homens seja a proacutepria vida

que ele encara e as situaccedilotildees diversas que nela encontra As situaccedilotildees nas quais os homens

se encontraram mesmo no momento preacute-filosoacutefico onde ainda natildeo havia um saber

racional estabelecido e praticado sinalizam a preocupaccedilatildeo em viver bem e natildeo de qualquer

maneira no mundo Algumas destas situaccedilotildees satildeo trazidas ao leitor neste texto procurando

evidenciar como a responsabilidade e o dever do cuidado representam um fator marcante

na histoacuteria da humanidade encontrando o aacutepice de suas recomendaccedilotildees na Filosofia de

Soacutecrates e Platatildeo

Para demonstrarmos o que ora propomos iremos demonstrar algumas

praacuteticas do homem no momento preacute-filosoacutefico e percorrer algumas passagens de quatro

diaacutelogos de Platatildeo em que o tema do cuidado eacute recorrente Apologia Alcibiacuteades

Repuacuteblica e Leis Estes quatro diaacutelogos iratildeo sinalizar tanto o pensamento socraacutetico

exposto por Platatildeo em torno do tema do cuidado e que ao mesmo tempo representa o

aacutepice de noccedilatildeo de cuidar de si mesmo na antiguidade

2 Praacuteticas no momento preacute-filosoacutefico

Encontramos no discurso mitoloacutegico ou seja ainda num momento anterior

ao discurso e reflexatildeo filosoacutefica sinais das praacuteticas de cuidado Neste momento a forma

pela qual o homem relacionava-se com uma determinada divindade influenciava

diretamente no percurso da poacutelis e do seu desenvolvimento sendo necessaacuterio uma espeacutecie

de cuidado nas praacuteticas a serem desenvolvidas nos cultos prestados aos deuses e na forma

pela qual o homem manifestava-se religiosamente atribuindo seu destino agraves matildeos e agraves

vontades dos deuses vemos ainda na poesia de Homero base da educaccedilatildeo grega Arcaica

um apelo a uma espeacutecie de cuidado a partir da ideia de virtude e de educaccedilatildeo Essa forma

de cuidar pode ser verificada por uma espeacutecie de exame e guiada pelo exemplo do heroacutei

veja-se que a Iliacuteada narra a guerra de Troacuteia tendo dentre os principais personagens o

guerreiro Aquiles responsaacutevel pela vitoacuteria dos gregos matando Heitor priacutencipe de Troacuteia

102

Num cenaacuterio beacutelico o vigor fiacutesico e a honra satildeo os valores que o poema incita O homem

natildeo se destina a uma vida puacuteblica mas agrave guerra e a guerra seria assim como o heroiacutesmo

o conteuacutedo praacutetico da vida humana A Odisseacuteia por sua vez conta a saga do heroacutei grego

Ulisses apoacutes a guerra de Troacuteia narrando as dificuldades encontradas na volta para casa

onde ele conta com o auxiacutelio da deusa Atena que lhe daacute proteccedilatildeo e o ajuda a reassumir

seu trono A Odisseacuteia traz entatildeo os elementos de uma civilizaccedilatildeo regida por leis que

adequam-se agrave sociedade e traz a imagem de um heroacutei a ser seguido um modelo de

heroiacutesmo Aqui o heroacutei estaacute jaacute inserido em uma civilizaccedilatildeo evoluiacuteda natildeo se trata mais de

um heroacutei de guerra mas de um cidadatildeo afaacutevel Poreacutem apesar da separaccedilatildeo do local no

qual estatildeo inseridos os dois heroacuteis o ideal do heroiacutesmo eacute o mesmo eacute ele o modelo da

educaccedilatildeo e o caminho a ser seguido para a Excelecircncia o que denota a existecircncia de uma

espeacutecie de cuidado voltada para o seguimento do exemplo do heroacutei que consequentemente

conduziria o homem agrave virtude

O modelo de educaccedilatildeo homeacuterica funda-se no comportamento virtuoso do heroacutei O comportamento dos heroacuteis representados por personagens humanas excepcionais aristocratas e nobres servia de modelo de comportamento para todos A virtude que os heroacuteis ostentavam atraveacutes de suas atitudes era chamada de arete(GOERGEN P 2006 P 185-186)

Tambeacutem importante para realccedilar o cuidado de si na antiguidade eacute o tema

trabalhado por Hesiacuteodo em Trabalhos e dias (HESIacuteODO 1996) Hesiacuteodo eacute assim como

Homero um grande poeta arcaico que contribui para moldar o pensamento moral e

religioso da Greacutecia tradicional Haacute entatildeo em Hesiacuteodo uma mudanccedila simboacutelica em relaccedilatildeo

a Homero do heroacutei valente e destemido do campo de batalha ao homem que centra a sua

forccedila no trabalho e produz para suprir as necessidades vitais da poacutelis Em Trabalhos e

dias Hesiacuteodo faz uma anaacutelise de uma das caracteriacutesticas fundamentais do mundo grego

que eacute o cultivo do espiacuterito agocircnico como caminho de atingir a sabedoria nos campos

poliacutetico e artiacutestico Para ele o trabalho eacute base da justiccedila entre os homens Esta disposiccedilatildeo

agoniacutestica em Hesiacuteodo se manifesta em Trabalhos e dias mediante o elogio da ldquoBoa Eacuterisrdquo

que atraveacutes de um saudaacutevel instinto de rivalidade entre os homens faz com eles se

esforcem perenemente pelo aprimoramento pessoal pois com o desenvolvimento das

suas respectivas qualidades perpetuaria infinitamente a vida humana e

consequentemente beneficiaria a proacutepria coletividade Quando fala sobre as qualidades

divinas da ldquoBoa Eacuterisrdquo em relaccedilatildeo agrave promoccedilatildeo do trabalho Hesiacuteodo afirma que ela

103

() estimula ao trabalho mesmo quem seja indolente Na verdade sente incentivo ao trabalho quem vecirc rica a pessoa que se afadiga a arar a terra a plantar a bem dispor a casa o vizinho inveja o vizinho que busca a abundacircncia Boa eacute esta Luta para os mortais O oleiro eacute ecircmulo do oleiro o artesatildeo do artesatildeo e o pobre inveja o pobre e o aedo o aedo (HESIacuteODO sect 20-26)

Haacute que se ressaltar que na poesia de Hesiacuteodo ocorre uma sutil diferenciaccedilatildeo

entre Ergon (o trabalho criativo cujo esforccedilo empreendido dignifica o homem) e Ponos

(a labuta sofrida extenuante) O cuidado seraacute representado exatamente pelo Ergon que

por sua vez conduziraacute ao homem agrave arete Hesiacuteodo nos demonstra atraveacutes de uma rica

reflexatildeo moral fundada na recusa da desmedida (Hyacutebris) e na celebraccedilatildeo da justiccedila e da

excelecircncia com o objetivo de delinear um modelo de virtude e aperfeiccediloamento Pelo

trabalho os homens renunciam agrave Hyacutebris e exercita-se na ponderaccedilatildeo da ldquojusta medidardquo

no empenho das energias corporais necessaacuterias para a realizaccedilatildeo de suas atividades A

postura do poeta seraacute de oferecer uma alternativa agrave eacutetica cavalheiresca preconizada nos

poemas homeacutericos vendo no exerciacutecio do trabalho o caminho para evitar a injusticcedila e se

alcanccedilar a virtude sendo assim a obra demonstra um conteuacutedo importante para se pensar

a praacutetica e a preocupaccedilatildeo com o cuidado de si na eacutepoca arcaica O trabalho humano

enquanto esforccedilo representa uma praacutetica de cuidado no momento preacute-filosoacutefico descrito

por Hesiacuteodo

Pelo trabalho eacute que os homens enriquecem em gados e bens E aqueles que trabalharem satildeo muito mais caros aos imortais Trabalho natildeo eacute vileza vileza eacute natildeo trabalhar Se trabalhares em breve o indolente te inveja a prosperidade Da riqueza eacute companheira o meacuterito e a gloacuteria Na situaccedilatildeo que te deram os deuses o melhor eacute trabalhar Cuida da tua vida desviando o teu acircnimo insensato das alheias riquezas para o trabalho como eu te exorto Uma vergonha pouco recomendaacutevel acompanha o indigente A vergonha estaacute junto da desgraccedila a confianccedila da felicidade (HESIacuteODO sect 308-316)

Chama agrave atenccedilatildeo ainda os festejos teatrais nos quais se via as peccedilas de gecircnero

traacutegico ou cocircmico aqui nos importa dizer que as trageacutedias especificamente eram

voltadas para uma purificaccedilatildeo uma catarse da alma Quando nos teatros as pessoas se

comoviam diante das cenas traacutegicas encenadas tinha-se entatildeo um sinal da presenccedila dos

deuses no lugar Parece que o ideal de purificaccedilatildeo representava uma espeacutecie de cuidado

impliacutecito agrave trageacutedia onde a catarse representava o encontro do homem consigo mesmo e

uma revisatildeo de vida que possibilitava entatildeo a sua purificaccedilatildeo pelo exame da proacutepria vida

104

3 A noccedilatildeo filosoacutefica do cuidado Soacutecrates e seu retrato em Platatildeo

O tema do cuidado nos remete diretamente agrave figura de Soacutecrates na

antiguidade Eacute Platatildeo que mais claramente traz em seus diaacutelogos a principal mensagem

filosoacutefica de seu mestre e que representa a mais estudada e fundamentada noccedilatildeo de

cuidado na antiguidade Aqui iremos verificar como o tema do cuidado aparece nos

principais diaacutelogos platocircnicos representando a preocupaccedilatildeo do autor em mostrar como

seu mestre Soacutecrates preocupava-se com a praacutetica do cuidado e em que medida essa

noccedilatildeo elevada filosoficamente pode contribuir para a Excelecircncia humana

Soacutecrates aparece nos diaacutelogos de Platatildeo sempre como aquele que

recomendara a praacutetica do cuidado ou pelo menos incitando a ela quando fala da

Excelecircncia sendo esta a finalidade uacuteltima da noccedilatildeo de cuidado Ora o cuidado a que ele

incita aos jovens eacute o cuidado da alma eacute este o objeto do cuidado eacute da alma que devemos

cuidar eacute sobre ela que o homem deve debruccedilar-se para poder enfim alcanccedilar a excelecircncia

O cuidado de si ou mais especificamente o cuidado da alma pode ser interpretada como

a grande mensagem trazida por Soacutecrates e testemunhada pelos diaacutelogos Platocircnicos este

cuidado teraacute como veremos uma dimensatildeo extremamente voltada para poliacutetica natildeo

podendo separar-se o individual e o coletivo neste primeiro momento ou seja o cuidado

da alma possibilitaraacute ao homem viver bem em meio aos outros homens a governar e a

ser governado e a alcanccedilar a excelecircncia na poacutelis Se o homem grego prezava pelo cuidado

de si como uma maneira de vida traduzida em todos os atos a liccedilatildeo de Soacutecrates eacute dar a

esta maneira de viver uma finalidade uacuteltima e mais nobre que eacute o cuidado da alma como

elemento mais nobre a ser cuidado pelo homem

Na maioria dos diaacutelogos platocircnicos em que o cuidado aparece como tema

recorrente vemos Soacutecrates como o mestre do cuidar eacute ele que incita cidadatildeos em geral e

de maneira particular o proacuteprio filoacutesofo a cuidar de si Aparece ainda o cuidado da cidade

e sobre ele nos diz-nos Hadot (2008) que haacute em Soacutecrates um aspecto missionaacuterio e

popular neste sentido entendemos que se abre a possiblidade do cuidado de si ser um

cuidado dos outros e um consequente cuidado de um organismo bem maior que eacute a cidade

O exame da proacutepria vida e a preocupaccedilatildeo com a relaccedilatildeo agir-falar exprime a

preocupaccedilatildeo da moral socraacutetica em demonstrar o papel da racionalidade da alma Esta

seraacute a instacircncia final do cuidado que veremos ao analisar como o cuidado de si aparece

na obra platocircnica em siacutentese a vida filosoficamente examinada encontra um caminho

possiacutevel pelo cuidado de si que incitara ao homem rever seus proacuteprios valores sua

105

maneira de agir cotidiana e longe de afastar-se da cidade deve nela proporcionar com os

outros homens que tambeacutem busquem cuidar de si aquilo que a Repuacuteblica apareceraacute

definido como a harmonia da cidade a justiccedila Vejamos estes diaacutelogos

31 A Apologia O mandamento Socraacutetico levado agraves uacuteltimas consequecircncias

Na Apologia5 na narraccedilatildeo da defesa proferida por Soacutecrates ante a sua

condenaccedilatildeo vemos um relato sobre a personificaccedilatildeo do cuidado de si na figura de

Soacutecrates Cuidar de si eacute o mandamento de Soacutecrates e ele o faz como objeto indispensaacutevel

para a vida A preocupaccedilatildeo com a riqueza deve ser afastada do homem mas busca-se a

virtude a partir de uma atenccedilatildeo consigo mesmo Primeiramente eacute bom situar que a defesa

de Soacutecrates daacute-se por ser acusado de corromper a sociedade sobretudo a juventude a

partir do mandamento do cuidado (Apol 25c)

Homens de Atenas contais com meu respeito e minha amizade mas acatarei ao deus de preferencia a voacutes e por quanto durar minha existecircncia e for eu capaz de prosseguir jamais renunciarei agrave filosofia e cessarei de vos exortar e de meu modo costumeiro com qualquer um de voacutes que venha a topar no meu caminho salientar ldquohomem excelente sendo como eacutes um cidadatildeo de atenas a maior das cidades-estado e a mais notoacuteria por sua sabedoria e poder natildeo te sentes envergonhado por te preocupares com a aquisiccedilatildeo de riqueza reputaccedilatildeo e honras enquanto natildeo te importas e nem te atentas para a sabedoria a verdade e o aperfeiccediloamento de tua almardquo E entatildeo se qualquer um de voacutes contestar o teor de minhas palavras e afirmar que realmente se importa natildeo permitirei que vaacute embora dispondo-me sim a interrogaacute-lo examinaacute-lo e submetecirc-lo a testese se apurar que natildeo eacute detentor da virtude a despeito de afirmar que o eacute o censurarei por desprezar coisas de maacuteximas importacircncia enquanto se importa com coisas secundaacuterias Assim agirei com todo aquele que encontrar jovem e velho estrangeiro e concidadatildeo poreacutem mais especificamente com os concidadatildeos porquanto sois ligados mais estreitamente a mim Certificai-vos de que assim o deus me ordena a fazer e creio natildeo haver nenhum outro benefiacutecio concedido a esta cidade do que o serviccedilo que presto ao deus Pois tudo que faccedilo em minhas andanccedilas eacute vos instar jovens e velhos entre voacutes a natildeo zelardes por vossos corpos ou vossas riquezas mais do que pela perfeiccedilatildeo possiacutevel de vossas almas e vos digo que a riqueza natildeo gera a virtude mas esta gera a riqueza e todos os demais bens aos seres humanos tanto os benefiacutecios privados quanto os puacuteblicos (Apol 29d ndash 30b)

5 Para nossa anaacutelise a principal traduccedilatildeo fora PLATAtildeO Apologia de Soacutecrates Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 2011

106

A Apologia nos revela o cuidado como o ensinamento socraacutetico que mais

caracteriza o personagem Soacutecrates eacute aquele que se preocupa consigo e preocupa-se com

os outros e diante disto devota toda a sua vida a exortar os homens a cuidarem de si

porque ele acredita que este eacute o caminho para o homem cidadatildeo e para a cidade alcanccedilar

a virtude Portanto Soacutecrates ataca o cultivo dos bens exteriores em detrimento da virtude

As praacuteticas de si visam a excelecircncia uma transformaccedilatildeo na vida daqueles que vivem de

qualquer maneira sem preocupar-se com a ela mas estatildeo ligados apenas aos bens

materiais e exteriores como a riqueza a beleza corporal e o poder Veja-se que Platatildeo

nos sugere que Soacutecrates levara o cuidado de si ateacute as uacuteltimas consequecircncias

consequecircncias de morte sem dar nenhuma justificativa para isto mas apenas como tarefa

confiada pelo deus e maneira uacutenica de dar sentido agrave proacutepria vida (Apol38 a)

Diante da morte de Soacutecrates vemos o testemunho de que o cuidado carece de

um outro e quem eacute esse outro senatildeo o mestre Eacute o mestre que vai cuidar do cuidado que

o outro vai ter de si neste sentido o diaacutelogo abre o debate para a ideia de que o cuidado

de si longe de ser um individualismo eacute uma atitude de si para o outro e neste sentido

reforccedila-se a necessidade do outro para que haja entatildeo o cuidado Ao mesmo tempo

reforccedila-se com a leitura da Apologia que o tema do cuidado eacute um tema socraacutetico e que eacute

proacuteprio da personagem incitar em suas oportunidades que os homens pratiquem o cuidado

de si Na apologia Soacutecrates daacute testemunho de toda sua atividade filosoacutefica em recomendar

aos jovens uma vida filosoficamente examinada ou seja uma vida em consonacircncia com

o cuidado de si aqui o cuidado aparece como condiccedilatildeo para os governantes e de fato o

tema tem lugar especiacutefico e fundamental quando se trata de governar os outros cuidar

dos outros parece uma tarefa bem maior que cuidar de si mesmo apenas e nisto estaacute a

liccedilatildeo do diaacutelogo ainda que natildeo pertenccedila a Platatildeo deve-se comeccedilar o cuidado por si

mesmo para poder cuidar dos outros

32 O Alcibiacuteades Primeiro o cuidado de si como cuidado dos outros6

O cuidado de si na Filosofia de Platatildeo eacute comumente estudado a partir do

diaacutelogo Alcibiacuteades primeiro7 onde de fato o tema do cuidado aparece de maneira clara

6 Para nossa anaacutelise a principal traduccedilatildeo fora PLATAtildeO O primeiro Alcibiacuteades In Fedro Cartas o primeiro Alcebiacuteades Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 2007 7 Eacute nesta obra que Foucault constroacutei essencialmente sua leitura da noccedilatildeo de cuidado na antiguidade mas especificamente ele constroacutei o curso no colleacutege de France fazendo leitura deste diaacutelogo e relacionando-os aos processos de subjetivaccedilatildeo num contexto de educaccedilatildeo e espiritualidade

107

como tema central e o cuidado eacute estabelecido como necessaacuterio como condiccedilatildeo para

governo da cidade ou seja como tema poliacutetico mas sem desprezar o cuidado de si

daquele que governa que deve cuidar da proacutepria alma antes da pretensatildeo de cuidar dos

outros (Alc134e) Essencialmente o cuidado de si eacute o tema da obra e quanto a isso

observa J Paviani que

o cuidado de si eacute examinado no Alcibiacuteades Primeiro na perspectiva da formaccedilatildeo social e poliacutetica do cidadatildeo Ele refere-se ao indiviacuteduo (e aos outros) e tambeacutem ao cuidado da cidade () A techne terapecircutica socraacutetica tem como objetivo a natureza humana isto eacute a alma a partir do cuidado que exige o conhecer-se a si mesmo A meta eacute a vida feliz do ser humano e do cidadatildeo (PAVIANI 2010 p 38)

O diaacutelogo estabelecido entre Soacutecrates e Alcibiacuteades eacute voltado para uma

questatildeo poliacutetica onde a preocupaccedilatildeo do jovem eacute de governar a cidade governar aos

outros e Soacutecrates lhe impotildee a tarefa de cuidar de si Esforccedila-te para te tornares cada vez

mais belo (Alc 131 d )

O que se deve cuidar Qual o objeto do cuidado A resposta eacute clara deve-se

cuidar da alma essa eacute a noccedilatildeo preliminar que orienta o governo de si e possibilita o

governo dos outros possibilita entatildeo a poliacutetica Esta eacute a dimensatildeo do cuidado tratada no

diaacutelogo como governar os outros senatildeo pela anterior e constante praacutetica do cuidado de si

mesmo

33 A Repuacuteblica e a dimensatildeo pedagoacutegica do cuidado8

Aqui importa destacar que visto em relaccedilatildeo agrave triparticcedilatildeo da alma cabe a cada

parte da alma um cuidado especiacutefico sendo a ideia de justiccedila enquanto virtude de todo

cidadatildeo e natildeo apenas de uma classe especiacutefica o cuidado enquanto fruto de todos os

outros cuidados que se manifesta como uma espeacutecie de moderaccedilatildeo Vejamos como isso

se desenvolve e aqui utilizaremos como exemplo a educaccedilatildeo dos guardiotildees e a forma

que lhes eacute recomendado o cuidar de si

Na Repuacuteblica Platatildeo defende que o filoacutesofo eacute quem deve governar Mas por

quecirc A resposta eacute bem simples Porque ele tem uma vida filosoficamente examinada

porque sua parte racional ordena agraves demais a si Ademais porque o Filoacutesofo da Repuacuteblica

8 PLATAtildeO A Repuacuteblica Ou sobre a justiccedila diaacutelogo poliacutetico Traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

108

cumpre aquilo que deve ser a condiccedilatildeo daquele que pretende governar aos outros Ele

governa a si mesmo Mas e o que dizer em relaccedilatildeo agraves demais classes de cidadatildeos Ora o

cuidado de si aparece de maneira discreta mas bem praacutetica na Repuacuteblica sob a oacutetica de

uma dimensatildeo pedagoacutegica mais especificamente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo da alma onde a

educaccedilatildeo de cada classe de cidadatildeo proporcionaraacute ao homem e agrave cidade a Virtude da

Justiccedila O cuidado de si aparece como uma espeacutecie de moderaccedilatildeo dever da educaccedilatildeo em

proporcionar ao homem a plena harmonia entre as partes de sua alma estendendo-se agrave

cidade a harmonia e a consequente justiccedila

A Soprosyne (σωφροσύνη) aparece como uma virtude que tem um uma

atenccedilatildeo especial pelo autor no contexto da triparticcedilatildeo da alma e da analogia agrave cidade a

moderaccedilatildeo ou temperanccedila a virtude que deve estar natildeo em uma parte especiacutefica da alma

mas em toda a cidade Toda educaccedilatildeo da Repuacuteblica tem a intenccedilatildeo de proporcionar uma

cidade justa na qual cada classe de cidadatildeo pratique sua virtude especiacutefica mas que seja

tambeacutem moderado e o ponto de chegada dessa conclusatildeo eacute que ldquoassim como soacute a razatildeo

pode governar o homem soacute o filoacutesofo eacute capaz de orientar os destinos da cidaderdquo (DOS

SANTOS 2008 P89) Vemos aiacute como o conceito de moderaccedilatildeo aparece como um domiacutenio

de si num contexto pedagoacutegico de formaccedilatildeo de cada classe de cidadatildeo e da cidade ideal

De maneira geral Platatildeo combate a questatildeo da submissatildeo do homem a toda sorte de

prazeres e

descreve de um modo traacutegico a existecircncia daqueles que pautam sua vida segundo o imperativo do prazer vivem errantes satildeo incapazes de ultrapassar o limite do prazer e elevar-se ateacute o verdadeiro ser nem podem provar o que seja um prazer soacutelido e puro Engordam e acasalam-se semelhante aos animais vivem pela cupidez dos sentidos dilaceram-se e batem uns nos outros matando-se por causa do seu apetite insaciaacutevel Passam a vida em prazeres misturados com sofrimentos satildeo fantasmas do prazer verdadeiro Satildeo insaciaacuteveis porquanto natildeo encham de alimentos consistentes a parte real e estanque de si mesmos (TEIXEIRA 2006 p30)

A moderaccedilatildeo eacute uma espeacutecie de domiacutenio de si e estes termos estatildeo ligados

diretamente agraves praacuteticas prescritas pelo ideal grego do cuidado A moderaccedilatildeo iraacute gerar na

alma humana uma harmonia diante dos prazeres e do desejo o que representa na

linguagem de Platatildeo o domiacutenio da parte superior da alma sobre as demais

Mas aparentemente o objetivo dessas expressotildees eacute tentar indicar que haacute na alma dessa mesma pessoa uma parte melhor e uma pior e que toda vez que a parte naturalmente melhor estaacute no controle da pior isto eacute expresso declarando-se que a pessoa eacute autocontrolada ou tem domiacutenio

109

de si mesma De qualquer modo a expressatildeo domiacutenio de si mesmo ou autocontrole eacute um termo de louvor Mas quando ao contraacuterio a parte melhor (que eacute menor) eacute dominada pela pior (que eacute a maior) devido a uma maacute criaccedilatildeo ou maacutes companhias isto eacute designado como descontrole ou licenciosidade e constitui uma censura (Rep431 a)

Na educaccedilatildeo proposta pela Repuacuteblica a harmonia na alma representa a

finalidade da educaccedilatildeo do homem a qual pretende que ele seja justo e consequentemente

a cidade tambeacutem o seja e desta forma que cada um ocupe-se com o que lhe foi destinado

pela natureza ldquoPara Platatildeo a moderaccedilatildeo eacute essencial para o desenvolvimento da sabedoria

e aperfeiccediloamento da alma A alma sem cultura e sem graccedila senatildeo tende para a falta de

comedimento A verdade eacute aparentada com o comedimento e natildeo com a falta delerdquo

(TEIXEIRA 2006 P39)

Eacute bom lembrar que aqui natildeo pretendemos demonstrar a estrutura da educaccedilatildeo

platocircnica descrita na Repuacuteblica poreacutem gostariacuteamos de exemplificar a questatildeo a partir da

educaccedilatildeo dos guerreiros voltada para o desenvolvimento da virtude da coragem e

demonstrar como a noccedilatildeo de cuidado aparece como imperativo de todos os homens

visando o bem da poacutelis e atividade poliacutetica A virtude especiacutefica para essa classe de

cidadatildeos eacute bem definida no livro IV da Repuacuteblica ldquoesse poder de preservar diante de

tudo a crenccedila correta e inculcada pela lei sobre o que deve ser temido e o que natildeo deve eacute

o que chamo de coragemrdquo (Rep430b) Para isso a formaccedilatildeo dos futuros guardiotildees

cultivava tambeacutem a opiniatildeo (δόξα) do jovem para que fosse reta incluindo a educaccedilatildeo

da muacutesica da poesia das faacutebulas e da ginaacutestica Soacutecrates deixa manifesto que a Paideacuteia

tem como objetivo a formaccedilatildeo de homens livres que enquanto tais natildeo precisam de medos

infundados mas que eles devem temer a escravidatildeo sob todas as suas formas9 Aqui

interessa demonstrar que nesse contexto surge a necessidade de formar um guardiatildeo

moderado em suas accedilotildees e que saiba cuidar de si O autocontrole eacute uma expressatildeo dessa

moderaccedilatildeo e aparece como tarefa a ser cultivada no futuro guardiatildeo que natildeo deveria temer

nada nem a morte (Rep390c) mas afastar-se de todas as ilusotildees ateacute mesmo as do

dinheiro e dos presentes (Rep390d) enfim de tudo fosse desmedido e exagerado O que

se deve cuidar na perspectiva da Repuacuteblica Sem duacutevida a alma poreacutem natildeo se prescinde

do corpo e este aparece como objeto da educaccedilatildeo da Paideia o cuidado com o gosto

musical com a poesia com o corpo pela ginaacutestica satildeo elementos que atestam que a

9 Sobre a questatildeo da liberdade na Repuacuteblica Cf ARAUacuteJO JUacuteNIOR Anastaacutecio Borges de ldquoOs sentidos da Eleutheriacutea na Repuacuteblica de Platatildeordquo Archai n 9 jul-dez 2012 pp 27-36

110

Repuacuteblica sugere e reflete aquela preocupaccedilatildeo do grego com a maneira pela qual o

homem relaciona-se com as coisas ao seu redor bem como a medida de tudo isso

Natildeo haacute como pensar a Repuacuteblica separando sua proposta pedagoacutegica de

cuidado Nela o cuidado do homem individual prepara-o para viver na poacutelis atraveacutes da

moderaccedilatildeo ou temperanccedila que seraacute a virtude que deveraacute estar em toda a cidade em cada

classe de cidadatildeos e natildeo apenas em uma especiacutefica

34 As Leis e o cuidado dos outros pelo cuidado de si10

As Leis11 enquanto um diaacutelogo da maturidade de Platatildeo apresenta a noccedilatildeo de

cuidado voltado para muitas direccedilotildees e destacamos aqui a dimensatildeo poliacutetica descrita na

obra e que retoma a analogia da alma agrave cidade conforme elaborado na Repuacuteblica Neste

diaacutelogo a lei eacute concebida como essencialmente divina (OLIVEIRA RR 2007 p337) e

a poliacutetica aparece como uma arte

Isso por conseguinte quer dizer a descoberta das naturezas e disposiccedilotildees das almas humanas - se revelaraacute como uma das coisas mais uacuteteis para a arte cuja incumbecircncia eacute delas tratar E esta arte eacute (como presumo que o diriacuteamos) a poliacutetica natildeo eacute mesmo (Leg 650b)

Esta arte eacute definida nas Leis como a ldquoarte de cuidar da almardquo sendo este o

criteacuterio que qualifica o homem para governar os outros homens Veja-se que a obra versa

sobre como governar mas tambeacutem como ser governado O governo de si eacute fruto da noccedilatildeo

de cuidado O tema do trabalho da alma eacute uma praacutetica que revela o cuidado e seu

direcionamento para a relaccedilatildeo com os outros atraveacutes da poliacutetica Isto nos mostra que a

noccedilatildeo de cuidado de si realmente difere-se de um individualismo de um egoiacutesmo mas

refere-se a uma atitude para o outro assim como na poliacutetica O que se deve cuidar a partir

da perspectiva das Leis eacute a alma12 E se eacute contestada a autenticidade do Alcibiacuteades

primeiro parece que as Leis eacute uma oportunidade para revermos a dimensatildeo poliacutetica do

cuidado longe dos problemas hermenecircuticos

10 Sobre o estudo das Leis importa destacar o trabalho de OLIVEIRA R R Demiurgia Poliacutetica as relaccedilotildees entre a razatildeo e a cidade nas Leis de Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2011 11 Para nossa pesquisa utilizamos a seguinte traduccedilatildeo PLATAtildeO Leis Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980 12 Como dissemos anteriormente este eacute o tema central do Alcibiacuteades primeiro Aqui faremos apenas essa referecircncia vista a problemaacutetica da autoria da obra Poreacutem destacamos aqui o mandamento de Soacutecrates a Alcebiacuteades mestra obra que eacute de cuidar de sua proacutepria alma como tarefa que precede o governo dos outros (132b) A felicidade da alma dependeraacute da virtude dos homens (134b) e portanto quem natildeo conhecer as coisas a seu respeito natildeo poderaacute conhecer tambeacutem as coisas a respeito dos outros (133e)

111

A noccedilatildeo de cuidar aqui apareceraacute envolvendo o papel do legislador daquele

que comanda a cidade e os cidadatildeos O filoacutesofo nas Leis torna-se o legislador e a

educaccedilatildeo entrelaccedila-se com a poliacutetica natildeo sendo mais a educaccedilatildeo de cada classe de

cidadatildeos mas a educaccedilatildeo de todos pelo imperativo de cuidar da alma e saber lidar pela

educaccedilatildeo com tudo aquilo que possa causar-lhe mau Trata-se de alcanccedilar uma totalidade

da virtude (Leg 630 e)Natildeo se trata de afastar o homem de seus desejos e sim de educa-

lo para lidar com eles Eacute o filoacutesofo que cuida do cuidado que os outros deveratildeo ter de si

O cuidado aparece tematizado como o cuidado pelo outro a partir da educaccedilatildeo e da Lei

Natildeo vemos no diaacutelogo uma exortaccedilatildeo socraacutetica agrave revisatildeo da proacutepria vida a um

conhecimento de si vemos na verdade a construccedilatildeo de um processo educativo onde pela

accedilatildeo do legislador o homem alcanccedilaria a excelecircncia Vejamos as palavras do diaacutelogo que

sugerem a proposta educativa das Leis

A educaccedilatildeo a que nos referimos eacute o treinamento desde a infacircncia na virtude o que torna o individuo entusiasticamente desejoso de se converter num cidadatildeo perfeito o qual possui uma compreensatildeo tanto de governar como a de ser governado com justiccedila Esta eacute a forma especiacutefica da formaccedilatildeo agrave qual suponho nossa discussatildeo em pauta restringiria ao termo educaccedilatildeo enquanto seria vulgar servil e inteiramente indigno de chamar de educaccedilatildeo uma formaccedilatildeo que visa somente agrave aquisiccedilatildeo do dinheiro do vigor fiacutesico ou mesmo alguma habilidade mental destituiacuteda de sabedoria e justiccedila (Leg 644 a-b)

O filoacutesofo assume o papel de cuidar pela educaccedilatildeo A noccedilatildeo de cuidar eacute impliacutecita

eacute necessaacuterio compreender que governar a cidade natildeo tem um outro caminho senatildeo

governar seus cidadatildeos e educa-los desde a mais tenra infacircncia voltando tudo para uma

essecircncia divina daiacute o ideal de que na Repuacuteblica aparece como ideia de Bem e nas Leis

aparece como sendo Deus a meta para onde tudo deve direcionar-se (Leg 716 c 717 a)

Quanto a questatildeo Jaeger afirma que

O filoacutesofo torna-se por meio da legislaccedilatildeo o demiurgo do cosmos da comunidade humana que deve ser integrado dentro daquele cosmos mais vasto e o impeacuterio de Deus realiza-se pela aplicaccedilatildeo consciente que o homem ser racional faz do logos divino (JAEGER 2011 p 1343)

Obviamente o cuidado surge nesta perspectiva que demonstramos como um

cuidado pelo outro sem desprezar a noccedilatildeo de cuidar de si mesmo O legislador filoacutesofo

na intenccedilatildeo de governar de legislar eficazmente e com justiccedila busca assemelhar-se do

divino e nisto consiste o seu especiacutefico cuidado consigo mesmo Veja-se que ele sugere

que soacute um Deus poderia possuir um conhecimento poliacutetico competente e concebe o

112

processo poliacutetico em uma continuidade ou seja os sucessores poderatildeo corrigir possiacuteveis

erros de seus antecessores por isso a legislaccedilatildeo eacute comparada por ele agrave uma obra de arte

(Leg 769c) O paracircmetro do cuidado eacute o cuidado com a cidade A poliacutetica consistiraacute

portanto em cuidar dos outros pelo processo educativo e pelas leis (noacutemoi) sendo papel

do legislador incumbir nos outros homens alguma sabedoria (Leg 687d) visando formar

o eacutethos dos homens e conduzi-los agrave uma virtude Esta virtude meta do projeto poliacutetico

das Leis tem relaccedilatildeo com a racionalidade e pode ser exemplificada com a passagem que

segue

Ograve estrangeiro natildeo eacute por acaso que as leis dos cretenses gozam de excelentiacutessima reputaccedilatildeo entre todos os helenos satildeo leis justas porquanto produzem o bem-estar daqueles que a utilizam proporcionando todas as coisas que satildeo boas Ora os bens satildeo de duas espeacutecies a saber humanos e divinos os bens humanos dependem dos divinos e aquele que recebe o maior bem adquire igualmente o menor caso contraacuterio eacute privado de ambos Entre os bens menores a sauacutede vem em primeiro lugar a beleza em segundo o vigor em terceiro necessaacuterio agrave corrida e a todos os demais exerciacutecios corporais segue-se o quarto bem a riqueza natildeo a riqueza cega mas aquela de visatildeo aguda que tem a sabedoria por companheira A sabedoria a proposito ocupa o primeiro lugar entre os bens que satildeo divinos vindo a racional moderaccedilatildeo da alma em segundo lugar da uniatildeo destas duas com a coragem nasce a justiccedila ou seja o terceiro bem divino seguido pelo quarto que eacute a coragem (Leg 631 b-d)

Veja-se que a meta (skopoacutes) da legislaccedilatildeo natildeo eacute algo vazio tem uma

finalidade a virtude e como dissemos relaciona-se com a racionalidade contribuindo

para o bem individualmente do cidadatildeo e coletivamente da poacutelis A educaccedilatildeo eacute o

caminho proposto para aquisiccedilatildeo da virtude pelo homem da poacutelis desde a mais tenra

infacircncia

Entendo assim por educaccedilatildeo a primeira aquisiccedilatildeo que a crianccedila faz da virtude Quando o prazer o amor a dor e o oacutedio nascem com justeza nas almas antes do despertar da razatildeo e uma vez a razatildeo desperta os sentimentos se harmonizam com ela no reconhecimento de que foram bem treinados pelas praacuteticas adequadas correspondentes essa harmonizaccedilatildeo vista como um todo constitui a virtude (Leg 653b)

4 Conclusatildeo

Podemos concluir que as praacuteticas dos homens no momento preacute-filosoacutefico

demonstram o cuidado de si nas mais diversas situaccedilotildees vividas sobretudo pelo

113

relacionamento com os deuses da mitologia aos quais se atribuiacutea o destino e governo do

universo bem como o fim uacuteltimo do homem

No processo de evoluccedilatildeo do conceito encontramos em Soacutecrates encontramos

o aacutepice da noccedilatildeo filosoacutefica do cuidado direcionando o dever do cuidar de si mesmo para

a alma do homem pela busca da virtude Esse aacutepice chega ateacute noacutes pela filosofia de Platatildeo

nela encontramos o ideal e a proposta de vida refletida e submetida agrave razatildeo que caracteriza

a praacutetica do cuidado de si tatildeo pregada por Soacutecrates e ora testemunhado pelos diaacutelogos de

Platatildeo Os diaacutelogos de Platatildeo satildeo marcados pela noccedilatildeo do cuidado impliacutecita nos ideais e

nas formas propostas de educaccedilatildeo para o homem O pensamento de Platatildeo eacute situado numa

eacutepoca em que esse cuidar era um elemento primordial na vida do homem Ademais ele

testemunha em seus escritos a sua eacutepoca e a eacutepoca do mestre Soacutecrates a quem devemos

o fato de elevar o cuidado a um status filosoacutefico e tornaacute-lo objeto de reflexatildeo para a vida

e para a felicidade do homem

O estudo das praacuteticas de cuidado na antiguidade nos leva a concluir toda a

importacircncia da educaccedilatildeo na antiguidade a busca pela virtude e pela vida feliz atraveacutes da

vivecircncia do cuidado de si mesmo e reflexatildeo sobre as proacuteprias accedilotildees e suas consequecircncias

No sentido filosoacutefico a predominacircncia da razatildeo frente aos desejos inferiores do homem

era o objetivo das praacuteticas de cuidado que coletivamente representavam uma accedilatildeo

poliacutetica onde todos eram beneficiados por esse elemento educativo de si mesmo e no

fundo da coletividade

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARAUacuteJO JUacuteNIOR Anastaacutecio Borges de ldquoOs sentidos da Eleutheriacutea na Repuacuteblica de Platatildeordquo Archai n 9 jul-dez 2012 pp 27-36 DELEUZE G Conversaccedilotildees Rio de Janeiro Editora 34 1996 DOS SANTOS Joseacute trindade Para ler Platatildeo A ontoepistemologia dos diaacutelogos socraacuteticos Satildeo Paulo Loyola 2008 FOUCAULT M A hermenecircutica do sujeito Trad de Maacutercio Alves da Fonseca Salma Tannus Nuchail Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 _______ FOUCAULT Michel Histoacuteria da Sexualidade 3 - o cuidado de si Rio de Janeiro Graal 2002

114

GAZOLLA Raquel A tirania na Repuacuteblica ndash o outro em si mesmo Rev Filosofiacutea Univ Costa Rica XLVI (117118)87-93 Enero-Agosto 2008 p 91 GOERGEN Pedro De Homero e Hesiacuteodo ou das origens da filosofia e da educaccedilatildeo Pro-posiccedilotildees v 17 n 3 (51) - setdes 2006 P 185-186 HADOT Pierre O que eacute a Filosofia Antiga3ordf ed Satildeo Paulo Loyola 2008 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias 3ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Loyola 1996 HOMERO Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Antocircnio Pinto de Carvalho Satildeo Paulo Abril 1978 ________ Iliacuteada Traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Abril 2009 JAEGER Werner Paideia a formaccedilatildeo do homem grego 5ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Martins fontes 2011 TEIXEIRA Evilaacutesio F Borges A educaccedilatildeo da alma segundo Platatildeo 4ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Paulus 2006 PAVIANI Jaime Platatildeo a educaccedilatildeo e o cuidado de si a recepccedilatildeo de Foucault Satildeo Paulo Hypnos nuacutemero 24 1ordm semestre 2010 PLATAtildeO A Repuacuteblica Ou sobre a justiccedila diaacutelogo poliacutetico Traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 _______ Apologia de Soacutecrates Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 2011 _______ Leis Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute1980

_______ O primeiro Alcibiacuteades In Fedro Cartas o primeiro Alcibiacuteades Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 2007

DO AMOR PLATOcircNICO AO CRUSH A FILOSOFIA ENTRE

ADOLESCENTES ndash TOacutePICOS DE ENSINO DE FILOSOFIA

Gabriel R Rocha1

RESUMO O artigo demonstra a relaccedilatildeo de equivalecircncia possiacutevel entre o amor platocircnico e o significado da giacuteria crush usualmente muito utilizada entre os adolescentes Natildeo obstante a equivalecircncia demonstrou-se falsa pois que o objeto do amor platocircnico consoante ao entendimento apresentado ao Banquete de Platatildeo difere do objeto de desejo expresso no signo crush No entanto apesar de diferir quanto ao fim o crush eacute passiacutevel de ser compreendido como etapa inicial no processo ascendente em relaccedilatildeo ao amor verdadeiro Pondera-se sobre o crush em sua correlaccedilatildeo ao contexto sociocultural contemporacircneo neste fim utiliza-se de autores como Pierre Leacutevy Ernest Cassirer Zygmunt Bauman e Alasdair MacIntyre justapondo-se sempre que possiacutevel e necessaacuterio a aspectos determinantes da filosofia platocircnica em correspondecircncia ao tema proposto Aleacutem de contar com uma breve introduccedilatildeo e consideraccedilotildees finais optou-se por uma seccedilatildeo uacutenica em contribuiccedilatildeo ao estudo qualitativo do tema Ademais o estudo reafirma a utilidade da filosofia como constituiacuteda de saber fortemente contributivo ao pensar rigoroso criacutetico e plural sobre as diferentes expressotildees que caracterizam o modo de ser contemporacircneo particularmente em relaccedilatildeo ao modo de ser do jovem adolescente imerso em um mundo cada vez mais multicultural global e inter-relacionado em rede Palavras-chave Amor platocircnico Beleza Crush Desejo Eros ABSTRACT The article demonstrates the possible equivalence relationship between platonic love and the meaning of the commonly used slang crush among teenagers Nonetheless the equivalence proved to be false since the object of Platonic Love according to the understanding presented of Platos Symposium differs from the object of desire expressed in the mark crush However despite differing in the end the crush is likely to be understood as the initial step in the ascending process in relation to true love It is based on crush in its correlation with the contemporary social and cultural context in this end it uses authors like Pierre Leacutevy Ernst Cassirer Zygmunt Bauman and Alasdair MacIntyre juxtaposing whenever possible and necessary to determinant aspects of the Platonic philosophy in correspondence to the proposed theme In addition to having a brief introduction and final considerations a single section was chosen contributing to the qualitative study of the theme In addition the study reaffirms the usefulness of philosophy as consisting of highly contributory knowledge in rigorous critical and plural thinking about the different expressions that characterize the contemporary way of being particularly in relation to the way of being of the young adolescent immersed in a world increasingly multicultural global and interrelated within a network Key-words Platonic love Beauty Crush Desire Eros

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Professor de Filosofia na educaccedilatildeo baacutesica email gabiphilo78gmailcom

116

Introduccedilatildeo

Entre muitos aspectos comuns que caracterizam a adolescecircncia2 a utilizaccedilatildeo

de giacuterias compotildee o que poder-se-ia chamar de ldquomodo de ser adolescenterdquo Este uso

particular da linguagem entre os jovens adolescentes natildeo se restringe a determinados

locais de livre convivecircncia mas perpassa tambeacutem o meio educacional ou seja o espaccedilo

de relaccedilatildeo e formaccedilatildeo que eacute a escola Da mesma forma em que tambeacutem se encontra

manifestadamente presente no mundo virtual ou ciberespaccedilo3

Evidente que nenhum professor estimula o uso de giacuterias em sala de aula

espaccedilo em que prioritariamente deve-se aprender e fazer uso de certas regras quanto agrave

utilizaccedilatildeo e compreensatildeo da linguagem seja esta miacutetica ou religiosa esteacutetica ou

cientiacutefica histoacuterica ou geograacutefica expressadas na oralidade ou na simbologia no desenho

ou na cartografia e claro na escrita Entrementes as giacuterias expotildeem particularidades natildeo

somente restritas a simples expressotildees verbais embora sejam estas o meio de sua

manifestaccedilatildeo mas expotildeem sobretudo caracteres comportamentais e eacuteticos culturais

esteacuteticos e sociais especiacuteficos agrave determinada geraccedilatildeo4

Resulta assim que se torna possiacutevel a identificaccedilatildeo de caraacuteter geracional

mediante agrave observaccedilatildeo cautelosa quanto ao uso de determinadas giacuterias quando aquele

que agrave expressa revela mesmo sem intencionalidade a qual geraccedilatildeo se vincula i eacute haacute

qual geraccedilatildeo pertencia quando do periacuteodo de sua juventude

Evidencia-se no interior desta perspectiva que existem giacuterias mais

universalizaacuteveis do que outras em que seu uso claramente ultrapassam aspectos mais

restritivos a grupos determinados Por exemplo haacute giacuterias que servem para identificar

certo grupo social ou agraves chamadas ldquotribos urbanasrdquo como as usadas entre os skatistas e

os punks mas a outras que nitidamente identificam todo um conjunto sociocultural e

mesmo histoacuterico de uma determinada geraccedilatildeo sobressaindo-se de maneira mais

2 No Brasil o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Lei Federal nordm 8 069 de 13 de julho de 1990) em seu artigo 2ordm assere o seguinte ldquoConsidera-se crianccedila para os efeitos da Lei a pessoa ateacute doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idaderdquo 3 LEacuteVY P Cibercultura p 157 o ldquociberespaccedilo eacute o espaccedilo das comunicaccedilotildees por redes de computaccedilatildeordquo 4 Este amplo aspecto que revela a abrangecircncia de uma giacuteria expotildee o desejo de socializaccedilatildeo inerente a qualquer ser humano Conforme assere ROCHER Guy Introduccioacuten a la sociologiacutea general p 23 ldquoA socializaccedilatildeo eacute o processo por meio do qual a pessoa aprende e interioriza no transcurso de sua vida os elementos socioculturais de seu meio ambiente integra-os na estrutura de sua personalidade sob a influecircncia da experiecircncia e de agentes sociais significativos e se adapta assim ao entorno social em cujo seio deve viverrdquo

117

abrangente Este parece ser o caso da giacuteria aqui escolhida para anaacutelise e reflexatildeo

filosoacutefica o ldquocrushrdquo

Natildeo causa estranheza que em um mundo cada vez mais globalizado e em rede

o que eacute tido como local rapidamente ultrapassa a sua origem geograacutefica ou histoacuterico-

cultural e assim estenda-se ao globo Se esta velocidade de inter-relaccedilatildeo e

interdependecircncia existe entre economias nacionais organizaccedilotildees paiacuteses e suas

instituiccedilotildees ainda mais velozmente se identifica esta ausecircncia de zonas limiacutetrofes ao que

refere ao mundo jovem adolescente

Em consequecircncia livros tornados ldquoBest-sellersrdquo filmes ldquoBlockbustersrdquo

seacuteries televisivas canais por assinatura vestuaacuterio acessoacuterios alimentaccedilatildeo ldquoblogsrdquo sites

de busca e pesquisa redes sociais ldquogamesrdquo entre outros identificam o comum modo de

ser caracteriacutestico deste periacuteodo existencial em nossa contemporaneidade mundial

Por conseguinte o objetivo primordial proposto deste artigo daacute-se no esforccedilo

compreensivo de a partir de uma giacuteria atualmente utilizada e disseminada entre a

juventude adolescente o ldquocrushrdquo promover o exerciacutecio reflexivo sobre certos aspectos

da filosofia platocircnica bem como ponderar sobre a possibilidade - em verdade

considerada como sempre necessaacuteria - da interferecircncia filosoacutefica no espaccedilo comum de

comunicaccedilatildeo e convivecircncia que se caracteriza a sala de aula

Neste intuito escolhe-se um termo que ultrapassou o discurso puramente

acadecircmico o de ldquoamor platocircnicordquo e sua possiacutevel relaccedilatildeo de equivalecircncia ou natildeo entre

esta expressatildeo e a giacuteria ldquocrushrdquo Assim resulta que o tema proposto sugere aproximar o

discurso produzido no texto filosoacutefico neste caso o texto dialoacutegico de Platatildeo sobretudo

o diaacutelogo Banquete e a expressatildeo ldquocrushrdquo atualmente usual entre os jovens adolescentes

em clara referecircncia no dizer deles mesmos ao objeto de seus desejos

Crush e amor platocircnico

Como anteriormente mencionado ldquocrushrdquo eacute uma giacuteria Mas ao que se refere

E neste sentido porque se revela plausiacutevel propor pensa-la filosoficamente justapondo-a

ao chamado ldquoamor platocircnicordquo

Antes de esclarecer-se os questionamentos referidos acima eacute necessaacuterio

adicionar agrave compreensatildeo proposta a seguinte contribuiccedilatildeo de Ernst Cassirer sobre o

conceito de siacutembolo Observa-se o seguinte

118

[] O sinal eacute uma parte do mundo fiacutesico do ser o siacutembolo eacute uma parte do mundo humano do sentido Os sinais satildeo lsquooperadoresrsquo os siacutembolos satildeo lsquodesignadoresrsquo [] Um siacutembolo natildeo eacute apenas universal poreacutem extremamente variaacutevel Posso expressar o mesmo significado em vaacuterios idiomas e ateacute mesmo dentro dos limites de uma uacutenica liacutengua o mesmo pensamento ou ideia pode ser expresso em termos muito diferentes [] Um siacutembolo genuiacuteno natildeo se caracteriza pela uniformidade mas pela versatilidade Natildeo eacute riacutegido nem inflexiacutevel eacute moacutevel5

Consoante a referendada citaccedilatildeo compreende-se o siacutembolo como elemento

que designa a realidade embora natildeo seja a realidade poreacutem oferta-lhe sentido A giacuteria

portanto eacute um siacutembolo e natildeo somente um sinal ou uma pantomima porque nela se

manifesta via linguagem todo o imageacutetico caracteriacutestico de um signo6 A giacuteria portanto

o ldquocrushrdquo expressa uma mediaccedilatildeo simboacutelica entre o real e o ideal sendo dotada de

significado e propiciadora de entendimento intersubjetivo

Termo de origem inglesa natildeo haacute traduccedilatildeo de ldquocrushrdquo enquanto giacuteria7 pois

ldquocrushrdquo eacute ldquocrushrdquo e assim expressa uma cultura linguiacutestica comum entre os adolescentes

qual seja a manifestaccedilatildeo do desejo amoroso a pessoas proacuteximas ou natildeo fisicamente mas

que sempre correspondam ou ao menos venham a corresponder ao imageacutetico erotizante

juvenil

Resulta do precedente que quando o (a) jovem adolescente afirma ldquoEle ou

ela eacute meu crushrdquo significa natildeo somente e necessariamente uma relaccedilatildeo direta e pessoal

poreacutem uma relaccedilatildeo de desejo idealizado em cuja principal forccedila motriz parece constituir-

se na beleza fiacutesica

Em consequecircncia tem-se duas possibilidades de equivalecircncia ao ldquoamor

platocircnico8rdquo a primeira eacute quanto a idealizaccedilatildeo do objeto de desejo a segunda daacute-se na

5 CASSIRER E Antropologia Filosoacutefica ndash ensaio sobre o homem introduccedilatildeo a uma filosofia da cultura humana p67 6 A tese principal de Cassirer eacute que toda relaccedilatildeo do homem com o mundo eacute mediada por um sistema de signos Esses sistemas podem ser linguiacutesticos artiacutesticos matemaacuteticos etc antes do homem ser racional ou poliacutetico ou faber ele eacute symbolicum 7 Diz-se ldquoenquanto giacuteriardquo porquanto a palavra crush significa literalmente ldquoesmagarrdquo ldquomoerrdquo mas tambeacutem traz consigo este significado de ldquopaixatildeo passageira e ou idealizadardquo por exemplo a expressatildeo ldquoShe has a crush for yourdquo (ldquoela tem uma quedinha por vocecircrdquo) Assim ao se analisar a giacuteria esta enquanto giacuteria e expressatildeo verbal entre os adolescentes natildeo recebe traduccedilatildeo embora todos saibam o seu significado quando transliterado agrave liacutengua portuguesa 8 Conforme o Dicionaacuterio Oxford de Filosofia p 148 verbete Ficino Marsiacutelio (1433-99) diz-se deste ldquoque seus comentaacuterios ao Banquete de Platatildeo satildeo a fonte da expressatildeo corrente ldquoamor platocircnicordquo com o sentido de um amor que natildeo procura expressatildeo sexual contentando-se antes unicamente com a apreciaccedilatildeo das formas que o ser amado exemplificardquo Marsiacutelio Ficino foi o principal representante do platonismo e neoplatonismo renascentista fundador e diretor da Academia de Florenccedila eacute sua a numeraccedilatildeo mundialmente conhecida que serve para a organizaccedilatildeo catalogaccedilatildeo e citaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo ldquoEm 1484 foi publicada sua traduccedilatildeo integral dos diaacutelogos de Platatildeordquo Id ibid p 148

119

relaccedilatildeo entre desejo e beleza i eacute o desejo pelo belo Todavia antes da necessaacuteria

continuidade investigativa desta equivalecircncia possiacutevel torna-se vaacutelido acrescentar o que

se segue

Quando na deacutecada de 1990 surgira entre os adolescentes o uso da giacuteria ldquoficarrdquo

esta trazia como significado simboacutelico o fato de realmente ter beijado algueacutem por

exemplo ldquofiqueirdquo com ldquoelardquo ou com ldquoelerdquo em uma festa Assim o ldquoficarrdquo natildeo equivaleria

a namoro i eacute um compromisso fixo com outra pessoa ldquoficarrdquo era somente ldquoficarrdquo

mesmo que houvesse a possibilidade do ldquoficarrdquo se efetivar em namoro ou em algum

compromisso monogacircmico

Da mesma forma o ldquocrushrdquo natildeo eacute necessariamente ldquoficarrdquo e muito menos

namorar mas sobretudo manifesta-se como ato de desejo ou de se encontrar enamorado

por algueacutem que pode ou natildeo ser de relaccedilatildeo fisicamente aproximada

Chega-se assim a primeira possiacutevel conclusatildeo o ldquocrushrdquo pode corresponder

a ldquoamor platocircnicordquo se e somente se pensado conforme o senso comum em sua

manifestaccedilatildeo de desejo amoroso idealizado mas natildeo realizaacutevel Portanto natildeo

expressando equivalecircncia com a proposta filosoacutefica de Platatildeo quanto ao amor Pois como

seraacute demonstrado o amor idealizado em Platatildeo eacute realizaacutevel constituindo-se no amor pelo

ldquoBelo em sirdquo sempre correlato ao amor pelo Bem logo ele natildeo eacute idealizado mas

plenamente atingiacutevel na contemplaccedilatildeo

Nestes termos o ldquocrushrdquo natildeo eacute passiacutevel de satisfazer tamanha exigecircncia

platocircnica entretanto ainda assim pode-se considerar o ldquocrushrdquo como equivalente da

primeira manifestaccedilatildeo pelo desejo do belo uma primeira etapa quanto a real beleza e o

verdadeiro amor que natildeo eacute e natildeo pode ser em Platatildeo somente amor pelos belos corpos9

Adentra-se pois ao tema da educaccedilatildeo10 do desejo de valor inestimaacutevel agrave Platatildeo

Se somente se deseja com o corpo (socircma) natildeo eacute possiacutevel agravequele que assim

procede desvincular-se de ldquoprazeres menoresrdquo Entretanto estes prazeres menores natildeo

satildeo isentos de intensidade ao contraacuterio por serem intensos e passiacuteveis de causarem

desregramento interno aos indiviacuteduos que justamente a estes prazeres haacute submissatildeo

9 Argumento que segue a loacutegica dos enunciados correspondente ao diaacutelogo Banquete contudo tambeacutem correlato ao diaacutelogo Fedro O tema seraacute desenvolvido mais adiante 10 Educaccedilatildeo natildeo tem sentido de instrumentalizaccedilatildeo teacutecnica mas sobretudo condiz com agrave educaccedilatildeo moral da psycheacute educar para a formaccedilatildeo e desenvolvimento das virtudes ou excelecircncias (aretai) morais Consultar diaacutelogo Leis 643e-644a-b Sobre esta questatildeo assere JAEGER Paideacuteia p 336 ldquoA educaccedilatildeo profissional herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofiacutecio ou a induacutestria natildeo se podia comparar agrave educaccedilatildeo total de espiacuterito e de corpo do nobre καλὸς κᾀγαϑός baseada numa concepccedilatildeo total do Homemrdquo

120

podendo efetivamente manifestar o domiacutenio do desejo de prazer sobre outras faculdades

ou tendecircncias internas da psycheacute11 (alma) humana o que por sua vez ocasionaraacute

indiviacuteduos compromissados somente com agrave satisfaccedilatildeo dos sentidos12

Para Platatildeo eacute preciso educar a faculdade desejante (epithymiacutea) opondo-lhe a

faculdade da razatildeo (logistikoacuten) e a esta acrescentando-lhe uma virtude ou excelecircncia

(areteacute) fundamental a temperanccedila (sophrosyacutenecirc)13 Observa-se o exposto seguinte no

diaacutelogo Fedro

[] em cada um de noacutes existem dois princiacutepios de forma e de conduta que seguimos para onde eles nos conduzem um inato eacute o desejo de prazer (ἐπιθυμία ἡδονῶν) outro adquirido que aspira sempre ao melhor Por vezes estas duas tendecircncias concordam em noacutes mas em certas ocasiotildees verificamos que entram em guerra em que uma vez sai vencedora a primeira outra vez a segunda Posto isto assentemos em que quando sai vencedora a forma orientada pela razatildeo essa forma chama-se temperanccedila quando eacute o desejo que destituiacutedo de razatildeo nos arrasta para os prazeres chama-se gula []14

Embora o desejo de prazer seja inato aos homens eacute necessaacuterio educaacute-lo

oferecer-lhe agrave correta direccedilatildeo caso contraacuterio natildeo se torna possiacutevel trilhar um caminho

ascendente do corpoacutereo ao racional diga-se espiritualizar a relaccedilatildeo com os objetos de

desejo bem como na relaccedilatildeo mesma com o proacuteprio desejo inato de prazer15

11 O termo alma do grego ψιχή eacute conceito fundamental em Platatildeo Considera-se aqui como termo alma a sede da inteligecircncia e da moral Conforme propotildee TRABATONNI Platatildeo p 131-32 ldquoDesde os tempos de Homero a alma representava a vida do corpo Todavia Platatildeo aceita a provaacutevel posiccedilatildeo do Soacutecrates histoacuterico que abandona o aspecto fisioloacutegico (alma como apenas o que manteacutem o corpo vivo) para uma imagem espiritual a alma eacute antes de tudo a sede do intelecto e da consciecircncia e eacute o sujeito das accedilotildees e dos valores moraisrdquo 12 Como assere GRUBE El pensamiento de Platoacuten p 130 ldquoDo ponto de vista da intensidade os maiores prazeres satildeo fiacutesicos [] se o que buscamos eacute a intensidade nunca a encontraremos na sauacutede ou na moderaccedilatildeordquo 13 Conforme o argumento apresentado corrobora ROWE Introduccioacuten a la eacutetica griega p 253 ldquoA sophrosyacutenecirc eacute a sujeiccedilatildeo harmoniosa das duas partes inferiores da alma agrave parte racional dominanterdquo Para Rowe sem a temperanccedila natildeo eacute possiacutevel agrave faculdade racional (logistikoacuten) da psycheacute dominar as funccedilotildees que lhe satildeo inferiores 14 PLATAtildeO Fedro 237e-238a Observa-se no Fedro 238a o trecho seguinte ldquo[] quando eacute o desejo que destituiacutedo de razatildeo nos arrasta aos prazeres e nos conduz a seu belo talante essa forma chama-se gulardquo Na traduccedilatildeo do diaacutelogo para a liacutengua inglesa tem-se o termo ldquoexcessrdquo a significar ldquoem demasiardquo ldquoem excessordquo In Plato in Twelve Volumes 1925 Questatildeo de amplo interesse cuja problemaacutetica adentra-se agrave psicanaacutelise Conforme MASCARENHAS Emoccedilotildees no Divatilde pp 216-19 ldquoa gula relaciona-se com a voracidade fissura mesma Por isso eacute insaciaacutevel ademais refere-se a todo tipo de excesso natildeo somente portanto aos apetites culinaacuteriosrdquo Assim tanto o termo gula da traduccedilatildeo para o portuguecircs quanto o termo excess em inglecircs ambos parecem adequados e expressam coerecircncia ao pensamento (notavelmente originaacuterio) de Platatildeo 15 REIS M Por uma nova interpretaccedilatildeo das doutrinas escritas a filosofia de Platatildeo eacute triaacutedica p 385 nota 11 argumenta o seguinte ldquoNa filosofia platocircnica o uso de epithymiacutea (apetite de algo) distingue-se daquele do eacuteros (desejo amor) O sentido do primeiro termo eacute mais restrito que o do segundo A epithymiacutea refere-se a um tipo de iacutempeto proacuteprio agrave parte apetitiva da alma voltado para determinado objeto (apetite de algo) ligado agraves experiecircncias de carecircncia e suprimento de prazer e dor Jaacute o eros refere-se ao impulso da

121

Platatildeo argumenta que natildeo eacute condizente com agrave razatildeo e com agrave virtude satisfazer-

se em um modo de ser conduzido por um hedonismo absoluto ainda mais quando os

objetos de prazer natildeo se elevam para aleacutem da sensaccedilatildeo16 O diaacutelogo Fedro na passagem

seguinte corrobora com agraves inferecircncias apresentadas

O desejo que desprovido de razatildeo atrofia a alma (psycheacute) e esmaga o prazer (hecircdonecirc) do bem e se dirige exclusivamente para os desejos proacuteprios da sua natureza cujo uacutenico objetivo17 eacute a beleza corporal quando se lanccedila impudicamente sobre ela comporta-se de tal maneira que se torna irresistiacutevel e eacute dessa irresistibilidade dessa forccedila destemperada que ele recebe a denominaccedilatildeo de Eros ou de Amor18

Embora o final da citaccedilatildeo conclua negativamente quanto agrave ldquoforccedila

destemperadardquo de Eros torna-se plausiacutevel quando adicionado a outros argumentos do

proacuteprio Fedro compreender que Eros quando desprovido de razatildeo e desprovido de

temperanccedila eacute somente forccedila impulsiva sem o devido direcionamento assim justifica-se

o educar daquele que deseja e somente assim eacute possiacutevel agrave alma (psycheacute) e natildeo ao corpo

amar o que verdadeiramente eacute digno de amor19

Entrementes antes de merecida e continuada anaacutelise qualitativa sobre Eros e

sobre determinados conceitos agrave compreensatildeo almejada eacute imprescindiacutevel somar-se mais

algumas consideraccedilotildees sobre o ldquocrushrdquo enquanto possibilidade de exprimir a mentalidade

cultural20 do jovem adolescente

totalidade da alma (e natildeo de parte dela) seu eacutelan vital movimento que conduz a alma agrave continuidade agrave unidade bem como elemento unificador do muacuteltiplordquo Este argumento embora forte eacute passiacutevel de refutaccedilatildeo na proacutepria passagem referendada no texto do diaacutelogo Fedro 238c Poreacutem o argumento estaacute correto quanto a caracterizaccedilatildeo de eros como forccedila propulsora agrave totalidade da alma (por isso aqui apresenta-se a interpretaccedilatildeo de eros como caminho ascendente em direccedilatildeo agrave Beleza em si consoante ao diaacutelogo Banquete da mesma forma considera-se que ldquocrushrdquo natildeo pode significar equivalecircncia a amor platocircnico como amor ideal justamente devido ao objeto de amor do amante Como elemento metafiacutesico de unificaccedilatildeo creia-se que estaacute mais para o Bem do que para Eros Quanto agrave questatildeo de carecircncia ou falta temos o desejo pela beleza assim como temos pela sabedoria ou pelo gozo fiacutesico o que difere eacute o objeto e natildeo a faculdade desejante Por isso educar a razatildeo de quem deseja e adicionar a virtude da temperanccedila 16 Isto eacute como ato de sentir aiacutesthesis 17 No original grego tem-se a expressatildeo ἐπιθυμιῶν ἐπὶ σωμάτων κάλλος assim a melhor traduccedilatildeo seria infere-se ldquocujo uacutenico desejo eacute a beleza corporalrdquo 18 PLATAtildeO Fedro 238c 19 Crecirc-se evidente que em Platatildeo natildeo haacute negaccedilatildeo do desejo de prazer A proacutepria felicidade (eudaimoniacutea) natildeo eacute a ausecircncia de desejos como pensaram os epicuristas ao contraacuterio a felicidade consoante Platatildeo eacute o domiacutenio sobre si i eacute o equiliacutebrio entre as faculdades da psycheacute embora seja sempre preferiacutevel o predomiacutenio da razatildeo como garantia da proacutepria harmonia Contribui GRUBE El Pensamiento de Platoacuten p 117 no seguinte ldquoPlatatildeo afirma que o prazer e dor satildeo estados de atividade rechaccedilando assim a confusatildeo de uma felicidade como mera imperturbabilidade e ausecircncia de todos desejos estado negativo e passivo que constituiria o ideal dos epicuristasrdquo Tambeacutem em referecircncia ao Filebo GRUBE (Ibid p 123) ldquoUma vida boa deve conter para tanto certa mescla de conhecimento e sentimento de intelecto e prazerrdquo 20 Conceito relevante agrave histoacuteria e agrave antropologia mentalidade cultural significa infere-se ao que caracteriza um modo de ser especiacutefico dentro de determinado contexto histoacuterico-social todavia natildeo restrito necessariamente a um tempo e espaccedilo determinado e especiacutefico pois que seu objeto eacute sobretudo o mental

122

Supotildee-se que a utilizaccedilatildeo de giacuterias entre os jovens adolescentes caso em que

o ldquocrushrdquo eacute somente mais uma dentre inuacutemeras acabam por atuar como ldquoidentificadoresrdquo

ou como ldquoagentes sociaisrdquo em que determinados grupos expressam seus valores e sua

mentalidade cultural comum logo identificaccedilatildeo essa fortemente relacionada agrave

coletividade Por paradoxal que inicialmente possa parecer o uso de giacuterias revela uma

possiacutevel contraposiccedilatildeo ao individualismo ou a individuaccedilatildeo marca indeleacutevel de nossa

eacutepoca

O socioacutelogo polonecircs Zygmunt Bauman assim define o conceito de

individualizaccedilatildeo ldquoO que a ideacuteia de lsquoindividualizaccedilatildeorsquo traz eacute a emancipaccedilatildeo do indiviacuteduo

da determinaccedilatildeo atribuiacuteda herdada e inata do caraacuteter social dele ou dela uma separaccedilatildeo

corretamente vista como uma caracteriacutestica muito clara e seminal da condiccedilatildeo

moderna21rdquo

Procede assim que o individualismo atua como desagregador do sujeito na

medida em que o dissocia do todo social promovendo o rompimento com a histoacuteria e

com a heranccedila familiar e comunitaacuteria22 Por conseguinte as giacuterias em geral acabam por

constituiacuterem-se como agentes de identificaccedilatildeo social estimulando agrave convivecircncia e agraves

relaccedilotildees intersubjetivas

Entretanto quando aplicado agrave especificidade da giacuteria ldquocrushrdquo natildeo se pode

inferir que haacute um efetivo movimento de socializaccedilatildeo Pois quando certo aluno relata que

possui diferentes ldquocrushrdquo em diferentes locais o referido espaccedilo23 natildeo eacute necessariamente

embora em direta relaccedilatildeo com o que eacute tipicamente social O historiador Ronaldo Vainfas em artigo intitulado Histoacuteria das Mentalidades e Histoacuteria Cultural p 148-49 corrobora em nossa elaboraccedilatildeo asserindo o seguinte [] lsquoNova Histoacuteria Culturalrsquo distinta da antiga lsquohistoacuteria da culturarsquo disciplina acadecircmica ou gecircnero historiograacutefico dedicado a estudar manifestaccedilotildees lsquooficiaisrsquo ou lsquoformasrsquo da cultura de determinada sociedade as artes a literatura a filosofia etc A chamada Nova Histoacuteria Cultural natildeo recusa de modo algum as expressotildees culturais das elites ou classes lsquoletradasrsquo mas revela especial apreccedilo tal como a histoacuteria das mentalidades pelas manifestaccedilotildees das massas anocircnimas as festas as resistecircncias as crenccedilas heterodoxas Em uma palavra a Nova Histoacuteria Cultural revela uma especial afeiccedilatildeo pelo informal e sobretudo pelo popularrdquo Nota-se portanto que o trabalho aqui proposto embora se relacione com que poder-se-ia chamar de ldquohistoacuteria das ideiasrdquo porquanto vinculado o tema a um grande expoente do pensamento filosoacutefico Platatildeo tem no entanto como ponto de partida de sua pretensa problematizaccedilatildeo algo que pertence agrave ldquocultura simplesrdquo informal expressatildeo de um modo de ser em que o uso da giacuteria serve como caracterizaccedilatildeo Ademais evidencia-se o tema como objeto passiacutevel de diferentes abordagens teoacutericas o que contribuiria por si soacute a produtivo trabalho interdisciplinar em sala de aula e natildeo somente na alcunha Ciecircncias Humanas mas tambeacutem notadamente em relaccedilatildeo agraves Linguagens e suas tecnologias 21 BAUMAN Z A sociedade individualizada p 183 22 Pensa de maneira correlata Alasdair MacIntyre em criacutetica agraves eacuteticas individualistas e em defesa da perspectiva apresentada pelo comunitarismo eacutetico do qual comunga Consultar entre outras obras After Virtue 1981 23 Natildeo adentraremos ateacute por falta de competecircncia socioloacutegica para fazecirc-lo na especiacutefica problemaacutetica quanto aos conceitos de espaccedilo Todavia apresenta-se sobre o tema o seguinte esclarecimento de BAUMAN Eacutetica Poacutes-Moderna p 167 ldquoMuito se escreveu sobre a distinccedilatildeo entre espaccedilo lsquofiacutesicorsquo mdash espaccedilo lsquoobjetivorsquo lsquoespaccedilo como talrsquo - e espaccedilo social Em geral existe acordo em que ambos se acham em

123

fiacutesico em verdade na maioria natildeo o eacute e nisto entra-se na questatildeo do distanciamento

promovido pelo mundo ldquoonlinerdquo e neste sentido ocorreria natildeo um estiacutemulo agrave

socializaccedilatildeo ao contraacuterio haveria estiacutemulo ao individualismo excludente24

A relaccedilatildeo com o virtual eacute inegaacutevel se nisto existe a promoccedilatildeo para o

retrocesso nas relaccedilotildees humanas ou abertura agrave socializaccedilatildeo todavia esta questatildeo longe

se encontra de mostrar-se conclusiva Natildeo obstante o aspecto mais estritamente filosoacutefico

ao tema talvez se revele no seguinte questionamento O que caracteriza agraves relaccedilotildees

humanas

Se agraves relaccedilotildees humanas estiverem restritas agrave socializaccedilatildeo e agrave vida coletiva ao

encontro com o outro em espaccedilo determinado no tempo e no espaccedilo sem duacutevida o mundo

ldquoonlinerdquo eacute seguramente expressatildeo de empobrecimento da existecircncia humana Por outro

lado se a virtualidade do espaccedilo em rede propicia relaccedilotildees humanas qualitativas entatildeo

haacute outras formas possiacuteveis de caracterizar os relacionamentos humanos Esta segunda

perspectiva positiva quanto agraves relaccedilotildees ciberneacuteticas parece colocar-se de acordo com o

pensamento do filoacutesofo francecircs Pierre Leacutevy

Para Leacutevy em obra intitulada Cibercultura ldquoeacute virtual toda entidade

lsquodesterritorializadarsquo capaz de gerar diversas manifestaccedilotildees concretas em diferentes

momentos e locais determinados sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou

tempo determinadordquo25 Se conforme assere trata-se de ldquomanifestaccedilotildees concretasrdquo a

realidade virtual eacute tatildeo composta de realidade quanto ao que se restringe a empiria das

relaccedilotildees humanas ideia ao que parece condizente com o conceito de

ldquodesterritorializaccedilatildeordquo

Nestes termos a giacuteria ldquocrushrdquo manifesta algo real embora o objeto desejado

seja uma simples reproduccedilatildeo imageacutetica Quando por exemplo jovens tornam-se

ldquoseguidoresrdquo nas redes sociais ndash que satildeo globais eacute vaacutelido frisar ndash de outros jovens que de

relacionamento metafoacuterico um com o outro De um lado falamos de espaccedilo social usando os termos cunhados para a distacircncia e proximidade lsquofiacutesicasrsquo lsquoobjetivasrsquo e mensuraacuteveis Mas de outro lado pode-se tambeacutem frisar que soacute se pocircde chegar agrave ideacuteia desse lsquoespaccedilo fiacutesicorsquo pela reduccedilatildeo fenomenoloacutegica da experiecircncia diaacuteria agrave pura quantidade durante a qual a distacircncia eacute lsquodespovoadarsquo e lsquoextemporalizadarsquo ou seja sistematicamente limpada de todos os traccedilos contingentes e transitoacuterios somente no fim dessa reduccedilatildeo eacute que se pode conceber o espaccedilo objetivo o espaccedilo como tal como lsquoespaccedilo purorsquo lsquoespaccedilo vaziorsquo espaccedilo destituiacutedo de qualquer conteuacutedo relativo a tempo e circunstacircncia Sob esse outro ponto de vista o espaccedilo fiacutesico eacute uma abstraccedilatildeo que natildeo se pode experimentar diretamente captamos o espaccedilo fiacutesico intelectualmente com a ajuda de noccedilotildees que se cunharam originalmente para lsquomapearrsquo qualitativamente relaccedilotildees diversificadas com outros homensrdquo 24 Tal inferecircncia coloca-se de acordo com o pensamento de Bauman em cuja criacutetica agraves redes sociais e ao mundo virtual perpassa quase a integridade de suas obras Cabe-nos ressaltar que de maneira oposta apresenta-se as ideias de Pierre Leacutevy 25 LEacuteVY P Cibercultura p 47

124

certa forma lhe representam ideais entre os quais o de beleza a consequecircncia desta

relaccedilatildeo se manifestaraacute no comportamento gerando-se assim atitudes e modos de

proceder crenccedilas e ideias portanto se a relaccedilatildeo em si mesma natildeo eacute necessariamente

social seus impactos seratildeo sentidos no interior das sociedades

Torna-se compreensiacutevel agrave valorizaccedilatildeo excessiva da beleza fiacutesica o culto aos

corpos trabalhados em esforccedilos contiacutenuos em horas de academia Natildeo se intenciona

criticar a valorizaccedilatildeo da sauacutede e do esporte mas sim o elevado status quo sociocultural

que impera em torno do corpo O chamado ldquopadrotildees de belezardquo que se encontram

reforccedilados na grande miacutedia formam modelos idealizados sobre o que melhor

representaria os ideais de belo

Neste panorama desenvolvem-se valores outros que natildeo correspondem aos

valores morais Ao valorar em demasia tudo o que se encontra atrelado ao corpoacutereo i eacute

aos valores materiais em consequecircncia desvaloriza-se princiacutepios necessaacuterios que

deveriam nortear a vida humana e as sociedades assim natildeo eacute por acaso que todas as

grandes crises da contemporaneidade mundial propotildee-se possuam como causa primaacuteria

a falta de virtudes26

O filoacutesofo Alasdair MacIntyre ao analisar agrave eacutetica tomista e a diferenciaccedilatildeo

proposta entre bens exteriores e bens interiores denota que as sociedades ocidentais

materialmente desenvolvidas excluiacuteram as virtudes em detrimento da valorizaccedilatildeo

somente dos bens exteriores

Neste sentido acrescentar-se-ia a identificaccedilatildeo do belo ao corpo com a

supremacia da imagem e da propaganda a promover a supraexcitaccedilatildeo dos sentidos tatildeo

bem explorada pelo ldquoshow businessrdquo e admirado pela ldquosociedade do espetaacuteculo27rdquo

privilegiando-se o desejo de prazer ao que eacute satisfeito apenas pelos sentidos que como

referido anteriormente coloca-se em oposiccedilatildeo ao que propusera o pensamento platocircnico

Assim a simbologia do ldquocrushrdquo relaciona-se diretamente portanto com a

imagem em um contexto que privilegia o espetaacuteculo Como proposto de forma notaacutevel

26 Cf MAcINTYRE Depois da virtude p 340-341 ldquoSe natildeo houver um telos que transcenda os bens limitados das praacuteticas constituindo o bem de toda a vida humana o bem da vida humana concebido como uma unidade faraacute com que certas arbitrariedades subversivas invadam a vida moral e sejamos incapazes de especificar adequadamente o contexto de certas virtudesrdquo 27 Tiacutetulo da obra de Guy Debord La Societeacute du spectacle publicada pela primeira vez em 1967 em Paris

125

por Guy Debord ldquoO espetaacuteculo natildeo eacute um conjunto de imagens mas uma relaccedilatildeo social

entre pessoas mediatizada por imagens28rdquo

A definiccedilatildeo de espetaacuteculo conforme se nos apresenta Debord acaba por

adentrar-se na anaacutelise desenvolvida porquanto o ldquocrushrdquo demonstra justamente as

relaccedilotildees que em grande medida satildeo mediatizadas pela imagem imagens estas que

representam os estereoacutetipos de beleza produzidos pela induacutestria cultural na

retroalimentaccedilatildeo dos proacuteprios valores das sociedades industrializadas contemporacircneas

Se de fato vivenciamos uma sociedade do espetaacuteculo isto tambeacutem significa

que vivenciamos uma sociedade da primazia dos sentidos e avessa ao pensamento

abstrato agrave contemplaccedilatildeo e agrave reflexatildeo

Para Platatildeo29 os sentidos satildeo considerados insuficientes e incapazes para

compreender a realidade primeira do inteligiacutevel e portanto a realidade e universalidade

dos princiacutepios originaacuterios (archaiacute) representados nas Ideias do Justo do Belo e

sobretudo a do Bem30 conforme evidencia-se no diaacutelogo Repuacuteblica

E que existe o belo em si e o bom em si e do mesmo modo relativamente a todas as coisas que entatildeo postulamos como muacuteltiplas e inversamente postulamos que a cada uma corresponde uma ideia que eacute uacutenica e chamamos-lhe a sua essecircncia [] E diremos ainda que aquelas satildeo visiacuteveis mas natildeo inteligiacuteveis ao passo que as ideias satildeo inteligiacuteveis mas natildeo visiacuteveis31

Do que se segue que em Platatildeo as artes em geral bem como os indiviacuteduos

que a expressam estatildeo somente utilizando-se de opiniotildees (doxai) sobre a realidade e natildeo

portanto com o conhecimento (episteacuteme) desta A imagem (eiacutedolon) que funciona como

representaccedilatildeo do sensiacutevel e revela o senso esteacutetico eacute uma coacutepia de algo que em si mesmo

eacute uma imitaccedilatildeo (miacutemesis) Logo natildeo haacute aproximaccedilatildeo ao que eacute verdadeiramente real e ao

que verdadeiramente possui valor ou deveria possuir valor ao ser humano32 Natildeo obstante

28 DEBORD La Societeacute du spectacle tese 58 Livre traduccedilatildeo do francecircs Vale a ressalva que o autor faleceu em 1994 antes portanto do acesso global agrave rede mundial de computadores (Internet) tambeacutem portanto antes do surgimento das redes sociais 29 O filoacutesofo propotildee uma relaccedilatildeo do homem com o todo coacutesmico universal O mundo fiacutesico e a vida fiacutesica que haacute neste somente expressa uma particularidade existencial mas se encontra neste plano os princiacutepios que o fundamentam A filosofia de Platatildeo promove a espiritualidade no humano e portanto vinculada ao impereciacutevel e permanente ao que em suma verdadeiramente eacute 30 Compreende-se que o Bem (Agathoacuten) natildeo eacute uma Ideia (Idea ou Eiacutedos) mas estaacute aleacutem destas conforme depreende-se do exposto seguinte Repuacuteblica 509c ldquo[] apesar do bem natildeo ser uma essecircncia (ousiacutea) mas estar acima e para aleacutem da essecircncia (hyperousiacutea) pela sua dignidade e poderrdquo 31 PLATAtildeO Repuacuteblica 507b 32 Tal raciociacutenio revela-se coerente ao sugestionado na ldquoteoria da Linhardquo no livro VI de A Repuacuteblica em que eacute se evidencia os diferentes niacuteveis hieraacuterquicos de realidade e a adequaccedilatildeo dos saberes apresentados de forma ascendente de maneira que cabe a psycheacute ascender da multiplicidade agraves essecircncias e ainda sobre

126

caberia ainda questionar Mas estas imagens representaccedilotildees do belo nos corpos belos

atuam propedecircuticamente em sentido ascendente agrave Beleza em si mesma

Chega-se novamente ao anteriormente proposto ou seja embora o desejo aos

corpos belos possa atuar como primeira etapa ao verdadeiramente Belo consoante ao que

eacute asserido no diaacutelogo Banquete a ausecircncia de valores que possam corresponder ao natildeo

corpoacutereo e a invisibilidade nas sociedades contemporacircneas acabam por atuar como fortes

empecilhos para este caminho ascendente em direccedilatildeo ao inteligiacutevel e portanto natildeo

correspondem agrave realidade do ldquoamor platocircnicordquo

No contexto mercadoloacutegico das sociedades industrializadas cujo mote

econocircmico eacute o consumo os objetos de desejo satildeo produzidos sobretudo no olhar eacute a

partir deste sentido corpoacutereo que aquele que deseja assim vislumbra os possiacuteveis prazeres

proporcionados na aquisiccedilatildeo de algum bem exterior

Eacute notaacutevel que nrsquoA Repuacuteblica33 confere-se agrave educaccedilatildeo o atributo de

justamente caracterizar-se a correta orientaccedilatildeo dada ao olhar Ora se se olha somente

tendo em vista as coisas materiais a faculdade que deseja iraacute preponderar fortemente

sobre a racionalidade e sobre qualquer virtude que a psycheacute possa apresentar e

desenvolver

Do que se segue que o olhar da psycheacute quando corretamente educado volta-

se agrave interioridade de si mesmo assim transcendendo agraves imperfeitas representaccedilotildees do

visiacutevel Contudo se o olho como oacutergatildeo humano pudesse indicar algo em direccedilatildeo agrave perfeita

beleza indubitavelmente encontrar-se-ia o ceacuteu ou mesmo o aleacutem do ceacuteu agraves galaacutexias e os

objetos do universo o grau maior de aproximaccedilatildeo quanto ao que eacute realmente Belo

Justifica-se pois o distanciamento quanto agrave simples beleza encontra nos corpos belos e

por conseguinte a ruptura entre o que chamar-se-ia de ldquocrushrdquo e o ldquoamor platocircnicordquo

Na atualidade de nossas sociedades a educaccedilatildeo subtraiu o olhar agrave

interioridade ao conhecimento de si mesmo eacute este sobretudo o sentido da correta

orientaccedilatildeo do olhar para Platatildeo Em suma este eacute caminho interno das virtudes dos bens

interiores como propunha a eacutetica tomista Infelizmente tudo parece indicar que se

caminha em sentido contraacuterio a estes bens impereciacuteveis e natildeo descartaacuteveis ao espiacuterito

humano

estas o Bem (este representado no simbolismo do Sol) Consultar tambeacutem o livro X da referida obra sobretudo a passagem de 597a-598e ss 33 PLATAtildeO Repuacuteblica 518d

127

A ldquomodernidade liacutequidardquo como a cunhou Bauman como sendo ldquoa civilizaccedilatildeo

do excesso da superfluidade do refugo e da sua remoccedilatildeo34rdquo eacute a civilizaccedilatildeo dos bens

exteriores da moda do supeacuterfluo e da mutabilidade constante assim em certo sentido o

ldquocrushrdquo representa somente esta necessidade de preencher-se de algo que provavelmente

natildeo duraraacute ateacute agrave proacutexima estaccedilatildeo

Da mesma forma se haacute uma civilizaccedilatildeo do excesso longe nos encontramos

consoante a eacutetica aristoteacutelica35 da virtude Tem-se o excesso do descartaacutevel e do

momentacircneo assim como haacute deficiecircncia do que se constitui como permanente e

duradouro daquilo que sempre eacute Sem duacutevida esta foi uma seacuteria preocupaccedilatildeo para Platatildeo

A beleza dos corpos degenera-se envelhece morre e decompotildee-se mas a

Beleza em si mesma encontra-se em tudo o que eacute belo e se belo tambeacutem bom porque

tudo verdadeiramente bom haacute de ser belo36 Do que se segue que as virtudes sempre satildeo

em si mesmas virtudes talvez seja este o teacutelos grego que precisa ser reconstruiacutedo37

O simbolismo do ldquocrushrdquo portanto expressa esta superficialidade indeleacutevel

ou esta ldquoliquidezrdquo nos dizeres de Bauman sobre agraves relaccedilotildees humanas nas sociedades

contemporacircneas E se estes desejos amorosos pelos belos corpos e das belas

representaccedilotildees das imagens ainda sim podem servir como indiacutecios de uma continuidade

ascendente agrave Beleza verdadeira e primeira neste caso se correto for haacute possiblidade de

se restaurar o humano em sua proacutepria humanidade

Em estudo sobre o diaacutelogo Banquete38 o notaacutevel historiador da filosofia e

helenista italiano Giovanni Reale comenta

34 BAUMAN Z Vidas Desperdiccediladas p 120 35 ldquo[] a virtude moral eacute um meio-termo e em que sentido devemos entender essa expressatildeo e que eacute um meio-termo entre dois viacutecios um dos quais envolve excesso e o outro deficiecircncia e isso porque a sua natureza eacute visar agrave mediania nas paixotildees e nos atosrdquo (Eacutetica agrave Nicocircmaco II 1109 a 20) 36 No texto platocircnico do diaacutelogo Hiacutepias Maior cujo principal objeto eacute a anaacutelise do conceito de Belo em uma busca marcadamente propedecircutica pela definiccedilatildeo do ldquoBelo em sirdquo apresenta-se embora o diaacutelogo seja aporeacutetico a equivalecircncia entre o Bem (Agathoacuten) e o Belo (Kaacutelon) neste sentido algo natildeo pode ser bom sem ser belo e belo sem ser bom Conforme o texto Hiacutepias Maior 297b assere Soacutecrates ldquoNa mesma ordem de ideias se o belo eacute causa do bem eacute porque o bem soacute pode ser originado pelo belo E aiacute estaacute salvo erro a razatildeo de nos empenharmos na sabedoria e em todas as demais coisas belas eacute que o seu produto o seu lsquorebentorsquo ndash ou seja o bem ndash eacute digno do nosso empenho e satildeo porventura elas que nos levam a descobri o belo como uma espeacutecie de lsquopairsquo do bemrdquo No diaacutelogo Repuacuteblica 506e-507c tem-se o inverso na relaccedilatildeo porquanto o Bem aparece como o ldquopairdquo do Belo Consultar entre outras obras fundamentais G M A Grube Platorsquos thought London University Press 1970 37 Neste sentido corrobora MAcINTYRE Depois da virtude p 368-69 ldquoAs virtudes devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior bem como um conhecimento do bem cada vez maiorrdquo 38 ldquoAs obras filosoacuteficas e eruditas em cujo tiacutetulo aparece a palavra banquete tatildeo abundantes na literatura grega poacutes-platocircnica atestam a grande influecircncia que a penetraccedilatildeo do espirito filosoacutefico e dos seus

128

[] a temaacutetica do eros e do amor deve ser entendido como forccedila mediadora entre o sensiacutevel e o suprassensiacutevel uma forccedila que daacute asas e eleva atraveacutes dos diversos graus da beleza agrave Beleza meta-empiacuterica em si mesma E jaacute que o Belo para o grego coincide com o Bem ou em todo caso eacute um aspecto do Bem assim Eros eacute uma forccedila que eleva ao Bem39

Eros ocupa um lugar de suma importacircncia porque atua exatamente na

distacircncia entre o mundo corpoacutereo sensiacutevel e o mundo verdadeiramente real ou

inteligiacutevel Por isso Eros eacute como o filoacutesofo Pois embora este ame o inteligiacutevel e tudo o

que lhe corresponde a virtude o Belo a sabedoria (sophiacutea) seu amor nunca eacute plenamente

satisfeito Por conseguinte sempre haveraacute uma ausecircncia a ser preenchida sempre haveraacute

necessidade de contiacutenuos esforccedilos para afastar-se da ignoracircncia (amathiacutea)

Do que pondera Reale o Amor eacute um daiacutemon40 entre outros que atuam entre

os deuses e os homens Filho de Penia (pobreza) e Poros (abundacircncia) o Amor ou Eros

tem dupla natureza estando no meio entre a ignoracircncia e a sapiecircncia41

Por sua vez Bauman apresenta o seguinte comentaacuterio ao diaacutelogo Banquete

[] Como sempre Soacutecrates se esforccedila para elevar a mera descriccedilatildeo agrave categoria de lei da loacutegica ao substituir provaacutevel por necessaacuterio natildeo eacute necessaacuterio que aquele que deseja deseje o que lhe falta ou natildeo deseje o que natildeo lhe falta Para que natildeo haja lugar para adivinhaccedilotildees e erros de julgamento Soacutecrates resume todos que desejam desejam o que natildeo estaacute em sua possessatildeo o que natildeo tecircm o que natildeo satildeo e o que lhes falta Isto eacute ele insiste o que chamamos de desejo ou seja o que o desejo deve ser a natildeo ser que seja outra coisa que natildeo o desejo42

Assim considera-se que o desejo eacute existente enquanto natildeo se possui o que se

deseja43 Logo infere-se que o problema eacutetico-filosoacutefico natildeo se encontra na faculdade de

desejar mas sim nos objetos aos quais se direciona a faculdade desejante

profundos problemas exerceu neste tipo de reuniatildeo Eacute Platatildeo o criador da nova forma filosoacutefica do banquete A narraccedilatildeo literaacuteria e a nova interpretaccedilatildeo filosoacutefica da antiga praacutetica social associam-se nele agrave organizaccedilatildeo da vida espiritual na sua escola rdquo JAEGER Paideia p722-23 39 REALE G Platatildeo p 217 40 Eacute vaacutelido elucidar que o termo grego daiacutemonδαίμων natildeo possui entre os gregos o sentido imaginaacuterio de anjo decaiacutedo entidade maligna que habita o inferno Ora o daiacutemon eacute identificado como espeacutecie de guia zeloso como aparece nas palavras de Soacutecrates (consultar Apologia de Soacutecrates) e ainda como aqui estaacute sendo utilizado no sentido de deuses menores (mortais) como eacute o caso do referido Eros 41 REALE ibid p 218-219 Consultar tambeacutem o diaacutelogo Banquete 202e-203a 42 BAUMAN A sociedade individualizada p 207-08 43 Assim pondera TRABATTONI Platatildeo p 147 ldquoO conceito de eros natildeo somente para Platatildeo revela um dado essencial da natureza humana ou seja a sua tensatildeo dinacircmica para a obtenccedilatildeo de um determinado objetivo Em outras palavras essa vontade pode ser chamada de lsquotensatildeorsquo ou lsquodesejorsquordquo

129

Em consequecircncia a proposta de Platatildeo quanto ao desejo eacute educar o agente

desejante i eacute a psycheacute humana Porquanto conforme for o direcionamento do ldquoolharrdquo

ter-se-aacute consigo agraves consequecircncias em relaccedilatildeo ao que se deseja Encontra-se assim a

funccedilatildeo paideiacutestica da filosofia mas tambeacutem a responsabilidade educativa do profissional

de educaccedilatildeo e ainda o dever educativo de pais e familiares como da sociedade em geral

em relaccedilatildeo ao comportamento e aos valores apresentados aos jovens e agraves geraccedilotildees futuras

Por conseguinte deve-se propor lucidez quanto aos objetos de desejo pois

naquilo em que hipoteticamente se encontra carente seria de fato necessaacuterio ou

simplesmente correspondente do supeacuterfluo O desejo apresentado se restringe agrave

satisfaccedilatildeo do corpo da vaidade do orgulho de si ou almeja uma satisfaccedilatildeo mais profunda

e elevada que inclusive pode ser considerada digna de equivalecircncia aos bens interiores

da psycheacute e assim tidos como universalizaacuteveis Retorna-se agrave problemaacutetica referida mais

acima quanto ao que se deve valorar ou ao o que estaacute sendo valorado nas sociedades

contemporacircneas

Socialmente ou culturalmente natildeo haacute grandes problemas quanto ao desejo

pelos belos corpos pela admiraccedilatildeo do vigor da juventude igualmente agrave procura de

experiecircncias diversas que objetivam formar a proacutepria identidade e o enriquecimento das

proacuteprias relaccedilotildees humanas Todavia a questatildeo eacute mais profunda e diz respeito a modos

de ser e valores equivocados que se tem cultuado na contemporaneidade mundial seja

esta uma ldquosociedade do espetaacuteculordquo como propotildee Debord ou uma ldquocivilizaccedilatildeo do

excessordquo como interpreta Bauman

O ldquocrushrdquo pode expressar culturalmente algo natural ao ser humano como

asseria Platatildeo i eacute o desejo de prazer Se no entanto este desejo de prazer restringir-se

somente ao corpoacutereo sem avanccedilar agrave formas e expressotildees mais elevadas e portanto

tambeacutem a prazeres mais qualificados em nada se avanccedila em sentido educacional e

mesmo civilizatoacuterio

Como assere Reale ldquoo amor eacute desejo do belo do bem da sapiecircncia da

felicidade da imortalidade44rdquo no entanto crecirc-se que este sentido ou esta direccedilatildeo dada ao

amor natildeo eacute natural mas sim consequecircncia adquirida na experiecircncia educativa de si

mesmo em correlata relaccedilatildeo ao mundo em que se vivencia agrave proacutepria existecircncia45

44 Cf REALE op cit p 219 45 Como eacute possiacutevel depreender-se da magistral passagem do diaacutelogo Banquete 210a-e 211c-d ldquo[] deve com efeito comeccedilou ela (Diotima) o que corretamente se encaminha a esse fim comeccedilar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos e em primeiro lugar se corretamente o dirige seu dirigente deve ele amar um soacute corpo e entatildeo gerar belos discursos pois deve compreender que a beleza em qualquer corpo eacute irmatilde

130

Do que se segue que na relaccedilatildeo de ensino e aprendizagem quando a atenccedilatildeo

do professor se direciona natildeo somente agrave conteuacutedos poreacutem permitindo a abertura para a

vivecircncia dos proacuteprios educandos promove-se assim o compreender de novos horizontes

educativos que se integram aos conteuacutedos necessaacuterios todavia acrescentando-lhes

sentidos qualitativos que dignificam e enobrecem a proacutepria relaccedilatildeo entre professores e

alunos

Considerado o ldquocrushrdquo como possiacutevel expressatildeo de primeira etapa do amor

o amor pela particular beleza manifestada em um corpo belo pode-se ponderar em

aproximada consonacircncia agrave proacutepria descriccedilatildeo de amor apresentada por Diotima propondo

assim um caminho ascendente de contemplaccedilatildeo da beleza Sem duacutevida a apresentaccedilatildeo de

um novo arcabouccedilo de valores se apresentam indispensaacuteveis e eacute neste novo caminho

propositivo que os belos discursos se tornam imprescindiacuteveis agrave formaccedilatildeo educativa e

filosoacutefica

Neste propoacutesito o direcionamento do olhar amoroso agraves coisas

verdadeiramente belas a procura ao mais belo indubitavelmente conduziraacute ao encontro

com as virtudes e sobretudo ao Bem46 Vislumbra-se assim a inegaacutevel probabilidade

quanto aos provaacuteveis benefiacutecios a serem produzidos nas relaccedilotildees humanas e na vida em

sociedade

Resulta-se assim do exposto precedente a plausibilidade ndash embora soe pueril

ndash de maior apreccedilo agrave filosofia ou ao amor agrave filosofia Natildeo obstante o despertar para este

amor natildeo se encontra restringido no desejo aos corpos belos mas o bom uso desta forccedila

impulsiva de Eros adicionando-lhe o melhor uso de uma racionalidade que enfim

compreenda a ausecircncia de desejo agrave sabedoria nas sociedades contemporacircneas pois como

da que estaacute em qualquer outro e que se deve procurar o belo na forma muita tolice seria natildeo considerar uma soacute e mesma beleza em todos os corpos e depois de entender isso deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um soacute [] depois disso a beleza que estaacute nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo de modo que mesmo se algueacutem de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto contente-se ele ame e se interesse e procura e produza discursos tais que tornem melhores os jovens para que entatildeo seja obrigado a contemplar o belo nos ofiacutecios e nas leis e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum e julgue de pouca monta o belo no corpo depois dos ofiacutecios eacute para o conhecimento que eacute preciso transportaacute-lo a fim que veja tambeacutem a beleza das ciecircncias e olhando para o belo jaacute muito sem mais amor como um domeacutestico a beleza individual de uma crianccedila de um homem ou de um soacute costume natildeo seja ele nessa escravidatildeo miseraacutevel e um mesquinho discursador mas voltado ao vasto oceano do belo e contemplando-o muitos discursos belos produza e reflexotildees em inesgotaacutevel amor agrave sabedoria [] Eis com efeito em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir em comeccedilar do que aqui eacute belo e em vista daquele belo subir sempre como servindo-se de degraus [] e conheccedila enfim o que em si eacute belordquo 46 ldquoPara Platatildeo o conceito de eros torna-se assim a suma e o compecircndio da aspiraccedilatildeo humana ao bemrdquo JAEGER ibid p 738

131

exorta o Banquete47 ldquoUma das coisas mais belas eacute a sabedoria e o Amor eacute amor pelo

belo de modo que eacute forccediloso o Amor ser filoacutesofo e sendo filoacutesofo estar entre o saacutebio e o

ignoranterdquo

Consideraccedilotildees finais

Ao longo do texto houveram algumas conclusotildees que denotaram certo grau

de pessimismo em referecircncia a giacuteria ldquocrushrdquo Pois o seu mais direto significado se

identifica com um modo de ser puramente relacionado ao efecircmero e supeacuterfluo sendo

mais uma expressatildeo de sujeiccedilatildeo do poder constante da imagem e aos ininterruptos

estiacutemulos visuais aos quais todos noacutes encontramo-nos submetidos na

contemporaneidade

Se por um lado eacute na juventude que devemos adquirir certos valores essenciais

agraves necessaacuterias relaccedilotildees humanas eacute tambeacutem o periacuteodo existencial que manifesta grandes

sonhos e ideais de uma incerteza otimista quanto ao futuro ndash como se em outro periacuteodo

existencial se tornasse possiacutevel haver certezas ndash e a crenccedila frequente de que tudo eacute

realmente viaacutevel de ser realizado Triste seria segundo esta linha argumentativa de uma

juventude isenta de idealismo do querer um amor ideal de desejar o que causa prazer e

negar o que eacute motivo de dor Entrementes natildeo se pode confundir ideais com ilusotildees da

mesma que natildeo eacute possiacutevel equivaler submissatildeo a padrotildees como livre-arbiacutetrio

A contemporaneidade possui certos aspectos comuns devido mesmo a

internacionalizaccedilatildeo cultural em que estamos inseridos i eacute o local de alguma forma

sempre estaacute imerso ao global A rede mundial de computadores as redes sociais

ldquodesterritorializaramrdquo agraves relaccedilotildees humanas consoante ao demonstrado no pensamento de

Pierre Leacutevy Para o filoacutesofo francecircs ampliou-se positivamente a comunicaccedilatildeo e o homem

ganhou novos horizontes e possibilidades que lhe enriquecem a existecircncia

Em forma distinta o socioacutelogo polonecircs Zygmunt Bauman deduz que as

relaccedilotildees humanas se tornaram empobrecidas fluidas sem portanto a necessaacuteria

consistecircncia qualitativa que deveriam sustentar agraves relaccedilotildees humanas Encontramo-nos

carentes de sabedoria e distanciados do que os gregos chamaram de bem viver ou boa

vida

47 PLATAtildeO op cit 204b

132

De maneira similar embora de outra perspectiva argumentativa Alasdair

MacIntyre propotildee que a grave ausecircncia de virtudes nas sociedades ocidentais eacute

consequecircncia do individualismo das eacuteticas modernas e do emotivismo encontrado nas

eacuteticas contemporacircneas Eacute novamente preciso aproximarmo-nos enquanto sociedades

desenvolvidas e industrializadas dos ideais de virtude bem como encontrarmos um teacutelos

que corresponda aos anseios da proacutepria racionalidade

Mediante a toda esta complexidade tem-se em Platatildeo algumas possibilidades

para repensarmos o nosso comportamento e nossos valores Entrementes natildeo se trata de

acordarmos em absoluto com o pensamento platocircnico e nem de crermos na possibilidade

de haver na obra do filoacutesofo grego todas as respostas que procuramos em nossas

inquiriccedilotildees Natildeo obstante a maneira como Platatildeo propotildee agrave filosofia i eacute como amor ao

saber que forma o homem de maneira marcadamente espiritual ou seja do homem

integrado ao cosmo e em correspondecircncia a um ideal de perfeiccedilatildeo beleza e sabedoria

manifesta uma maneira de ser ou um modo de vida que se opotildee ao materialismo

existencial vigente

Os filoacutesofos os professores os pesquisadores das ciecircncias humanas natildeo

podem omitir-se quanto agrave formaccedilatildeo moral ciacutevica poliacutetica e comportamental da juvenil

adolescecircncia Pois muito se instrui o intelecto mas pouco ainda se faz em relaccedilatildeo agrave

verdadeira educaccedilatildeo que como propusera Platatildeo eacute educaccedilatildeo para as virtudes Contudo

conforme asserido natildeo eacute possiacutevel educar para as virtudes se natildeo valoramos os bens

internos ao espiacuterito humano

Eacute preciso dizer com coragem agraves sociedades e agraves instituiccedilotildees muitas das quais

instituiccedilotildees educacionais nem tudo que parece ter valor eacute digno de ser valorado Tal

assertiva inclusive revela o sentido aproximado expresso no seguinte ldquoTudo me eacute liacutecito

mas nem tudo conveacutem procuro natildeo me deixar dominar por nada48rdquo

A exortaccedilatildeo do apoacutestolo Paulo nos revela algo importante para ainda

pensarmos nestas palavras finais de encerramento O ser humano independente da eacutepoca

e do contexto histoacuterico e independentemente de qualquer possiacutevel determinismo

geograacutefico ou cultural possui em si mesmo certas tendecircncias internas devendo-se educar

lhe para natildeo se perder no excesso de suas imperfeiccedilotildees morais ou na carecircncia do que lhe

eacute oposto ou seja a virtude

48 PAULO 1 Carta aos Coriacutentios 6 12

133

Como considerado tem-se o excesso de bens materiais e superabundacircncia do

supeacuterfluo e do descartaacutevel em patoloacutegica valorizaccedilatildeo agrave objetos que promovam o prazer

somente ao corpoacutereo e aos sentidos natildeo obstante eacute desvelada a factual ausecircncia de

virtudes de satisfaccedilatildeo de si de prazeres qualificados que enobreccedilam e que ofertem reais

sentidos agrave existecircncia para aleacutem da aparecircncia fiacutesica e da transitoriedade de bens de

consumo

Platatildeo propunha que todo ser humano eacute detentor de um defeito inato ldquoo amor

excessivo de si mesmordquo como tambeacutem a existecircncia do desejo inato de prazer Logo se

natildeo oferecermos aos adolescentes e agraves crianccedilas aos jovens enfim a ldquosolidezrdquo portanto

em oposiccedilatildeo a ldquoliquidezrdquo quanto a maneiras corretas de se proceder e de agir consigo

mesmo e com os outros as novas geraccedilotildees correm o risco de tornarem-se incapazes de

desejarem o que natildeo se vecirc com os olhos do corpo

Eacute este o sentido que o ldquocrushrdquo natildeo poderia somente ser embora o seja i eacute

o desejo pelo belo sem nenhuma intencionalidade de procurar o mais Belo natildeo havendo

assim uma verticalidade dialeacutetica ascendente tudo se daacute no corpoacutereo e neste permanece

Eacute somente neste sentido que se pode permitir equivalecircncia entre ldquocrushrdquo e ldquoamor

platocircnicordquo ou seja somente na concepccedilatildeo common sense do termo porquanto o ldquoamor

platocircnicordquo repete-se natildeo eacute idealizado no sentido comum de entendimento da expressatildeo

de inalcanccedilabilidade de desejo poreacutem apenas ao que manifesta corporeidade

O outro provaacutevel sentido de ldquocrushrdquo e sua equivalecircncia ao ldquoamor platocircnicordquo

natildeo o do senso comum mas o da tradiccedilatildeo de Eros como forccedila impulsiva que direciona agrave

Verdade (Aleacutetheia) e agrave Sabedoria (Sophiacutea) torna-se possiacutevel apenas quando partiacutecipe da

educaccedilatildeo Nisto a funccedilatildeo do filoacutesofo do professor para entatildeo corrigir e orientar em

suma para conduzir (psicagogiacutea) o olhar da psycheacute do jovem ao incessante procurar do

mais Belo que necessariamente tem de se vincular agrave abstrata imaterialidade logo

condizente assim a universalidade do Justo e do Bem

Do que se conclui em sentido abrangente que a exigecircncia platocircnica de amor

ao Belo eacute constituiacutedo de um convite e de um aviso Convite porque convida-nos agrave

procura de uma Beleza que natildeo se encontra na transitoriedade daquilo que perece

envelhece morre Aviso ou alerta porquanto se natildeo aceitarmos o convite possivelmente

estejamos fadados a incapacidade de nunca contemplarmos o Belo assim contentando-

nos agraves aparecircncias como se estas fossem a realidade originaacuteria exatamente como

prisioneiros em uma caverna pouco iluminada

134

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS CASSIRER E Antropologia Filosoacutefica ndash ensaio sobre o homem introduccedilatildeo a uma filosofia da cultura humana Trad Vicente Feacutelix de Queiroz 2 ed Satildeo Paulo Mestre Jou 1977 BAUMAN Z A sociedade individualizada vidas contadas e histoacuterias vividas Trad Joseacute Gradel Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2008 _____ Vidas Desperdiccediladas Trad Carlos Medeiros Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2005 _____ Eacutetica Poacutes-Moderna Trad Joatildeo Rezende Costa Satildeo Paulo Paulus 1997 BLACKBURN S Dicionaacuterio Oxford de Filosofia Trad Desideacuterio Murcho et al consultoria da ediccedilatildeo brasileira Danilo Marcondes Rio de Janeiro Zahar 1997 DEBORD G La Societeacute du spectacle Paris Gallimard 1992 GRUBE G M A El pensamiento de Platoacuten Trad Tomaacutes Calvo Martiacutenez Madrid Editorial Gredos S A 1987 JAEGER W Paideacuteia a formaccedilatildeo do Homem grego Trad Artur M Parreira Revisatildeo do texto grego Gilson Ceacutesar Cardoso de Souza 4 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 LEacuteVY P Cibercultura Trad Carlos Irineu da Costa Satildeo Paulo Editora 34 2009 MAcINTYRE A Depois da virtude Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo EDUSC 2001 (Coleccedilatildeo Filosofia amp Poliacutetica) _____ After Virtue Notre Dame University of Notre Dame Press 1984 MOURA M O simboacutelico em Cassirer Revista Ideaccedilatildeo Feira de Santana n 5 2000 PLATO In Twelve Volumes Vol 9 translated by Harold N Fowler Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1925 PLATAtildeO A Repuacuteblica Trad Maria Helena da Rocha Pereira 11 ed Portugal Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2008 _____ O Banquete Trad Introduccedilatildeo e notas do Prof J Cavalcante de Souza 9 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999 _____ Fedro Trad Pinharanda Gomes Lisboa Portugal Guimaratildees Editores 1989 REALE G Platatildeo Trad Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Nova ediccedilatildeo corrigida Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007

135

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A SUBJETIVIDADE E A BUSCA PELA FELICIDADE NO PENSAMENTO DE

BLAISE PASCAL

JeanVargas1

RESUMO Considerando as ideias de teacutedio divertissement esquecimento de si e amor-proacuteprio este texto pretende mostrar em que medida a busca do eu pela felicidade aponta para um problema de fundo qual seja o do eu diante de seu criador Argumenta-se aqui que a condiccedilatildeo humana tal como Pascal a entende eacute crucial para se pensar a questatildeo da subjetividade humana Nesse sentido o objetivo do texto eacute destacar as tensotildees entre o teacutedio e a subjetividade Palavras-chave felicidade subjetividade teacutedio ABSTRACT Considering the concepts of boredom divertissement self forgetfulness and self-love this text intends to show how the search of the self for happiness leads to a fundamental problem that of the self in front of its creator It is argued here that the human condition as Pascal understands it is crucial to thinking about the question of human subjectivity Thus the purpose of the text is highlight the tensions between boredom and subjectivity Keywords happiness subjectivity boredom

Introduccedilatildeo

O problema da subjetividade se coloca para Blaise Pascal (1623-1662) sob

o registro relacional entre o eu e Deus A questatildeo fundamental parece ser expressa da

seguinte maneira como o eu pode ser diante de Deus Dito de outro modo em que

medida este eu pode se colocar haja vista o horizonte de alteridade relacional com o

criador

Como se sabe Pascal nos deixou em sua obra principal denominada

Pensamentos tatildeo somente reflexotildees avulsas com um estilo fragmentaacuterio e assistemaacutetico

1 Doutorando no curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFMG E-mail de contato jean_sv07hotmailcom

137

de escrita filosoacutefica O que significa que estaacute a cargo de seus inteacuterpretes o ocircnus de articular

minimamente as reflexotildees soltas afim de que elas soem como um todo coeso2

Eacute evidente que esta tarefa pode ser malsucedida de modo que trair as

intenccedilotildees do autor eacute sempre uma preocupaccedilatildeo latente Todavia a partir da reflexatildeo

pascalina eacute permitido ao leitor um certo protagonismo pois o modo como os pensamentos

satildeo articulados podem oferecer respostas mais ou menos elaboradas

Eacute diante deste cenaacuterio que este artigo se presta natildeo apenas a vincular os

pensamentos soltos do autor propiciando uma certa simetria agrave reflexatildeo pascalina como

pretende tambeacutem tensionar a relaccedilatildeo entre os pressupostos sobre a subjetividade

(impliacutecitos e expliacutecitos na obra do pensador francecircs) com o olhar antropoloacutegico sobre o

problema da condiccedilatildeo humana Para tanto o texto eacute divido em trecircs momentos quais

sejam 1) O diagnoacutestico sobre a condiccedilatildeo humana em Pascal 2) a subjetividade e o

problema da busca pela felicidade e 3) o esquecimento de si o teacutedio e o divertissement

Primeiro momento O diagnoacutestico sobre a condiccedilatildeo humana em Pascal

A ideia de que o ser humano possui uma natureza traacutegica transita ao longo de

toda a reflexatildeo pascalina3 Em certo sentido a noccedilatildeo de natureza humana em nosso autor

pode ser rastreada ateacute Santo Agostinho passando por Tomaacutes de Aquino e mesmo pelo

Jansenismo4 O lastro que explicita a natureza humana eacute a narrativa da queda e natildeo uma

metafiacutesica de elucubraccedilatildeo filosoacutefica

Esta narrativa da queda natildeo se presta a provar todavia a razoabilidade da

perspectiva cristatilde de Pascal isto eacute natildeo se pretende derivar daiacute um conjunto de provas

robustas sobre o cristianismo A narrativa da queda se configura como o pilar pelo qual

se ergue todo o edifiacutecio argumentativo do filoacutesofo francecircs Mas se por um lado a

narrativa da queda natildeo se presta a provar no sentido forte os pressupostos da

antropologia cristatilde por outro lado ela eacute imprescindiacutevel a uma apologia do cristianismo

na medida em que a situaccedilatildeo humana eacute de forma tal que seria mais misteriosa sem este

misteacuterio Nesse sentido a narrativa da queda tratar-se-ia da melhor chave explicativa para

acessar a condiccedilatildeo humana

2 Com esta observaccedilatildeo natildeo pretendo pressupor que este tipo de literatura assistemaacutetica seja por si soacute insuficiente ou pouco interessante O que pretendi destacar eacute que se o interprete aspirar um todo coeso entatildeo cabe a ele o ocircnus de juntar as peccedilas do quebra-cabeccedila pois o autor prescinde da tarefa de fazecirc-lo 3 GOLDMAN apud BIRCHAL A marca do vazio reflexotildees sobre a subjetividade em Blaise Pascal p 51 4 Ver OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana pp 367-408

138

Mas que condiccedilatildeo seria esta A condiccedilatildeo humana fundamental eacute marcada

pela concupiscecircncia enquanto princiacutepio de todos os movimentos humanos5 A condiccedilatildeo

humana tal qual aparece nos Pensamentos coloca o ser humano diante de Deus a quem

todo amor eacute devido Assim a natureza humana estaacute radicalmente ainda que natildeo

completamente corrompida em funccedilatildeo do pecado original Isto implica em dizer que

embora a criaccedilatildeo de Deus seja melhor do que efetivamente se apresenta soacute conhecemos

de fato sua versatildeo decaiacuteda Natildeo obstante este quadro pessimista algumas caracteriacutesticas

da condiccedilatildeo original satildeo preservadas como por exemplo a possibilidade de acesso ao

conhecimento Natildeo se trata do conhecimento no mais eminente sentido entretanto

conhecer ainda eacute um resquiacutecio de um atributo comunicaacutevel de DeusOu seja dada a atual

condiccedilatildeo eacute vedada ao homem a capacidade de conhecimento pleno Mas o fato de ainda

poder conhecer algo o remete a uma qualidade de sua natureza originaacuteria que eacute por isso

mesmo preacute-queda Trata-se de uma natureza originaacuteria portanto que de certo modo

ainda subjaz

Ora neste sentido o tema do amor-proacuteprio6 eacute significativo para se

compreender o problema da subjetividade em Pascal O amor de si permite ao ser humano

centralizar suas accedilotildees e buscar atender agraves demandas do seu eu De acordo com o proacuteprio

filoacutesofo ldquonuma palavra o eu tem duas qualidades eacute injusto em si fazendo-se centro de

tudo eacute incocircmodo aos outros querendo sujeitaacute-los pois cada eu eacute o inimigo e desejaria

ser o tirano de todos os outrosrdquo7

Eacute como se o eu fosse por assim dizer um ldquoburaco negrordquo insaciaacutevel que natildeo

quer saber a verdade sobre si Por isso muitos se prestam a criar um eu imaginaacuterio pois

estatildeo excessivamente preocupados com a imagem puacuteblica de si8Assim seria preferiacutevel

agraves pessoas comuns melhorarem e reforccedilarem sua imagem puacuteblica a ponto de optarem por

morrer do que efetivamente pensar a si mesmas

O amor-proacuteprio este excessivo de si eacute reduzido a uma modalidade de

concupiscecircncia o que permite a Pascal denunciar os mecanismos que por meio do nosso

eu imaginaacuterio9 acaba por abrir as portas para escamotear a proacutepria subjetividade De

acordo com Pascal conforme observa Luiacutes Oliva ldquoo amor-proacuteprio desmedido (devido ao

5 ARMOGATHE Pascal e o amor-proacuteprio p 232 6 O tema do amor-proacuteprio eacute bastante relevante para Pascal contudo natildeo se trata de um tema exclusivamente cristatildeo Na eacutetica nicomaqueacuteia Aristoacuteteles jaacute abordava esta temaacutetica 7 PASCAL apud OLIVAAntecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 399 8 PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 978 9 IDEM Fr 806

139

deslocamento do centro para a concupiscecircncia o transitoacuterio) fez que o homem mentisse

se mascarasse e se revestisse de qualidades ilusoacuterias para obter poder e estimardquo10

Por isso a relaccedilatildeo vertical do homem com Deus mais do que a relaccedilatildeo

horizontal do eu com os outros eus precisa ser retomada Conforme notou Gouhier ldquotrata-

se da relaccedilatildeo do eu com Deus e natildeo do eu com outros eus Todavia quando o eu se faz

ldquocentro de tudordquo faz tambeacutem girar em torno de si todos os outros eusrdquo11 Graccedilas agrave

concupiscecircncia presente na natureza humana desde a queda o amor deixa de ser

endereccedilado exclusivamente ao criador e passa a lidar com a concorrecircncia do amor-

proacuteprio cuja tendecircncia eacute colocar seus proacuteprios interesses como o centro de suas accedilotildees e

ao fazecirc-lo acaba por travar uma relaccedilatildeo de controle e imposiccedilotildees quando diante do outro

Os problemas denunciados por Pascal decorrentes do ato do amor de si levam

ao tema do eu odioso Este eu que pretende ser o centro da subjetividade precisa ser

aniquilado ou ainda reduzido a nada diante de Deus este outro Absoluto A ideia de

odiar a si mesmo natildeo eacute um exagero pois trata-se de uma expressatildeo literal Gouhier coloca

nesses termos

natildeo basta ldquonatildeo amar a si mesmordquo como recomenda o autor da Imitaccedilatildeo O ldquooacutedio de sirdquo natildeo eacute uma hipeacuterbole a expressatildeo deve ser tomada literalmente ela evoca a um soacute tempo o sentimento e o dever que resultam o amor de Deus12

Deve-se odiar o eu porque este imerso na concupiscecircncia pretende rivalizar

e em uacuteltima anaacutelise procura reivindicar um lugar que eacute exclusivo de Deus O amor de si

eacute abusivo mas natildeo basta tatildeo somente impor limites a ele O ato da conversatildeo precisa

corrigir algo distorcido na natureza humana O centro da subjetividade natildeo pode ser outro

senatildeo o proacuteprio Deus Daiacute a necessidade de odiar a si mesmo na medida em que a

subjetividade corrompida por sua natureza pecaminosa quer ocupar a posiccedilatildeo que

originalmente pertence exclusivamente a Deus

Nosso autor soacute pode adentrar na reflexatildeo sobre o eu que precisa ser odiado

porque parte dos pressupostos acerca da condiccedilatildeo humana Trata-se como mostramos

de uma condiccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais a original mas que todavia natildeo deixou de ser

completamente Jaacute natildeo eacute mais a mesma mas ainda natildeo deixou de ter resquiacutecios da marca

de Deus Desse modo temos aqui uma tensatildeo antropoloacutegica entre o jaacute e o ainda natildeo o

10 OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 400 11 GOUHIER Blaise Pascal conversatildeo e apologeacutetica p 82 12IDEM pp 77-78

140

que torna o cenaacuterio cocircmodo para que Pascal posso diagnosticar o homem como aquele

entre a grandeza e a miseacuteria Desse modo podemos verificar em que medida o problema

do teacutedio e o divertimento corroboram para evitar que o homem retome a relaccedilatildeo

extraviada com o seu criador

Segundo momento A subjetividade e o problema da busca pela felicidade

Ao tratar da questatildeo da subjetividade eacute atribuiacutedo a Pascal a substantivaccedilatildeo

do eu na modernidade13Isto significa dizer que foi o autor dos Pensamentos quem em

suas interlocuccedilotildees com seus antecessores mais notadamente Agostinho Montaigne e

Descartes nos conduziu agrave reflexatildeo sobre a subjetividade enquanto um ente substantivo

Embora Pascal fale de algo como ldquoo eurdquo daiacute natildeo se segue entretanto que ele

tenha predicados exaustivos para propor-nos uma definiccedilatildeo da subjetividade Muito pelo

contraacuterio Se tomarmos o trecho mais frequentado pelos estudiosos para tratar o problema

do sujeito em nosso autor verificamos o cuidado que Pascal tem antes de formular

definiccedilotildees positivas sobre o eu o que eacute o eu

Um homem que se potildee na janela para ver as pessoas que passam se passo por ali posso dizer que ele se pocircs na janela para me ver Natildeo porque ele natildeo estaacute pensando em mim particularmente mas quem ama algueacutem por causa de sua beleza ama mesmo Natildeo porque as bexigas que mataratildeo a beleza sem matar a pessoa faratildeo com que ele natildeo a ame mais

E se me amam pelo meu juiacutezo por minha proacutepria memoacuteria amam me mesmo A mim Natildeo pois posso perder essas qualidades sem perder-me a mim mesmo Onde estaacute entatildeo esse eu se natildeo estaacute no corpo nem na alma E como amar o corpo ou a alma senatildeo por essas qualidades que natildeo satildeo o que fazem o eu pois que satildeo pereciacuteveis Porque algueacutem amaria a substacircncia da alma de uma pessoa abstratamente e algumas qualidades nela existentes Isso natildeo eacute possiacutevel e seria injusto Portanto nunca se ama ningueacutem mas somente qualidades

Natildeo se zombe mais entatildeo daqueles que se fazem honrar por cargos e ofiacutecios pois natildeo se ama ningueacutem a natildeo ser por qualidades posticcedilas14

Apesar de comeccedilar com uma interrogaccedilatildeo Pascal natildeo oferece definiccedilotildees

positivas sobre o eu O fragmento acima nos remete a uma provaacutevel interlocuccedilatildeo com

Descartes O eu em Pascal natildeo converge com a posiccedilatildeo sustentada pelo pensador do

13 DESCOMBESLe parler de soi p 84 14PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 688

141

Coacutegito pois as qualidades posticcedilas aqui embora pereciacuteveis possuem primazia sobre a

substacircncia pensante Como Telma Birchal observou

Neste fragmento que alude sem duacutevidas ao Coacutegito Pascal mostra que a reduccedilatildeo cartesiana tem consequecircncias impraticaacuteveis a seguir numa reviravolta caracteriacutestica de seu pensamento manteacutem a exigecircncia de que o Eu deva ser realmente algo que escape ao domiacutenio do pereciacutevel para terminar afirmando a supremacia das qualidades sobre a substacircncia15

Ora o movimento pascalino longe de admitir ideias claras e distintas

pretende retomar a perspectiva do homem comum e da doacutexa onde as qualidades posticcedilas

satildeo formadoras de opiniatildeo sobre a subjetividade alheia O ponto de Pascal natildeo eacute postular

que as qualidades tomadas de empreacutestimo constituam o eu Pelo contraacuterio esta

perspectiva eacute problematizada No entanto o autor dos Pensamentos tambeacutem parece

descredenciar as articulaccedilotildees que pretendem propor um discurso elaborado sobre a

subjetividade a partir de uma razatildeo especulativa ndash e aqui a interlocuccedilatildeo parece ser mais

uma vez claramente com Descartes como notou Carraud16

Pascal natildeo trata o eu de maneira desencarnada aos moldes de uma

experiecircncia mental O que se pensa ser o eu no fim das contas natildeo passa de um complexo

de qualidades posticcedilas o que nos impede de criticar o homem comum quando este ama

algueacutem por estas mesmas qualidades O eu natildeo estaacute na alma nem no corpo e desta

perspectiva nunca se ama ningueacutem senatildeo a atributos Desenvolveremos mais este ponto

adiante

Por ora resta notar que desse ponto de vista o acesso agrave subjetividade requer

natildeo uma razatildeo especulativa que existe enquanto pensa e somente enquanto pensa A

primazia do acesso agrave interioridade natildeo eacute clara e distinta na medida em que se daacute por meio

do sentimento pois ldquoo coraccedilatildeo possui razotildees que a proacutepria razatildeo desconhecerdquo Ao

introduzir o sentimento como um meio de acesso mais fidedigno agrave interioridade e em

segundo lugar dado o quadro da natureza humana decaiacuteda Pascal tem as ferramentas

necessaacuterias para nos conduzir ao elemento que o interessa de fato qual seja o de uma

intencionalidade da subjetividade Para Pascal mais importante do que a pergunta pelo

que significa o eu em seu sentido metafiacutesico eacute a reflexatildeo moral que estaacute em jogo ndash e aqui

de novo a perspectiva dos filoacutesofos eacute contraposta a do homem ordinaacuterio

15BIRCHAL A marca do vazio reflexotildees sobre a subjetividade em Blaise Pascal p 53 16 CARRAUD Linventiondu moi p 30

142

O que eacute comum na busca de todos os homens Pascal responde ldquotodos os

homens procuram ser felizes () eacute o motivo de todas as accedilotildees de todos os homens ateacute

daqueles que vatildeo se enforcarrdquo17 A busca pela felicidade constitui entatildeo aquilo que ao

fim e ao cabo todos almejam Ora tanto os filoacutesofos quanto os homens comuns jaacute

notaram esta busca incessante Pascal identifica duas opiniotildees que nos conduzem ao

anseio humano da felicidade A opiniatildeo 1) dos homens comuns que buscam a felicidade

no movimento nas coisas e nos objetos externos a noacutes e 2) a dos filoacutesofos que criticam o

homem comum pois a felicidade uacuteltima estaria tatildeo somente no repouso

Pascal argumenta a partir disso que o homem comum tem fortes razotildees para

fazer o que faz Entre ir para a guerra e pensar em si mesmo o homem ordinaacuterio prefere

ir para a guerra Ele procura eacute a caccedila (o movimento) e natildeo exatamente a presa

Todo este movimento para fora de noacutes indica a nossa dificuldade de nos

mantermos em repouso As pessoas tecircm razotildees (motivos) em buscar as coisas Mas

nenhuma dessas coisas externas nos conduz agrave felicidade pois ser feliz (e aiacute os filoacutesofos

tem razatildeo) natildeo estaacute no movimento mas sim no repouso As pessoas passam de coisas

para coisas o que denuncia a nossa condiccedilatildeo de incompletude

Os filoacutesofos nesse sentido acertam na teoria de que a busca dos objetos natildeo

traz felicidade Acontece que os filoacutesofos se equivocam ao sustentarem que o problema

que leva o homem ordinaacuterio agrave busca incessante pelos objetos externos seja motivado por

certa ignoracircncia Para Pascal natildeo se trata de uma ignoracircncia simplista como supotildeem os

filoacutesofos A ignoracircncia eacute de outra ordem e sequer estes grandes pensadores da histoacuteria da

humanidade conseguiram uma soluccedilatildeo eficaz

De fato o remeacutedio oferecido pelos filoacutesofos eacute quase tatildeo ruim quanto a proacutepria

doenccedila Natildeo eacute o dobramento sobre si de acordo com Pascal que resolveraacute o drama

humano pela busca da felicidade Este eacute um paliativo falso O homem comum faz o que

faz porque de alguma maneira sabe que a panaceia da tranquilidade da alma da ataraxia

e de outras tantas foacutermulas de repouso natildeo satisfazem a condiccedilatildeo de incompletude18

Assim podemos formular a questatildeo nesses termos ao se verificar mais

detidamente sobre a razatildeo dos efeitos nota-se que os filoacutesofos acertam na teoria e erram

17 PASCAL apud BIRCHAL Aquele que busca a Deus o increacutedulo e o honnecircte-homme natureza e sobrenatureza nestes trecircs tipos de homem p339 18 Conforme explica Maria Isabel Limongi ldquocomo natildeo se pode encontrar a felicidade que estaacute em Deus nos objetos que deleitam agrave vontade natildeo haacute alternativa senatildeo deixar-se determinar pela imaginaccedilatildeo imaginando que os prazeres sensiacuteveis possam trazer a felicidade que de fato natildeo trazemrdquo LIMONGI Pascal e a ordem da concupiscecircncia p 332

143

na praacutetica pois a felicidade de fato natildeo estaacute no movimento Jaacute o homem comum por sua

vez erra na teoria mas acerta na praacutetica visto que viver na busca dos objetos exteriores

eacute esperado porquanto o repouso de se voltar para si fracassa em sua tentativa de frear a

incontornaacutevel carecircncia do humano pela felicidade Cada uma dessas posiccedilotildees estaacute

parcialmente certa mas eacute preciso compreender a razatildeo dos efeitos A busca interminaacutevel

eacute um efeito que precisa ser explicado

Pascal sugere a partir disso uma terceira posiccedilatildeo que seria preferiacutevel agraves

outras duas Ao juntar a teoria dos filoacutesofos com a praacutetica do homem comum chegamos

ao cristianismo Ora eacute o cristianismo que revela a dupla natureza do homem O homem

eacute um ser miseraacutevel decaiacutedo pois possui um instinto secreto que nos vincula agrave busca

incessante Mas haacute outro instinto secreto que aponta para o fato de que a felicidade como

os filoacutesofos perceberam estaacute no repouso Poreacutem natildeo seria como querem os filoacutesofos um

repouso interior Antes seria um repouso que estaacute fora de noacutes O repouso estaacute em Deus19

(muito embora em certo sentido Deus esteja fora e dentro de noacutes)

O homem eacute um ser contraditoacuterio com duas naturezas quais sejam a marca

de Deus e a marca do vazio Somente Deus completaria o nosso vazio Nesse sentido eacute

preciso compreender que a vida eacute uma busca que o eu soacute pode ser diante de Deus e que

justamente o cristianismo melhor do que a percepccedilatildeo dos filoacutesofos e do homem comum

aponta para este diagnoacutestico A fragilidade humana consiste em querer-se grande mas se

vecirc pequeno em querer ser feliz mas vecirc-se miseraacutevel20

Terceiro momento O esquecimento de si o teacutedio e o divertissement

A proposta de Pascal seguindo a esteira de Platatildeo recomenda que o homem

conheccedila a si mesmo ainda que esta atitude natildeo se preste de modo imediato ao acesso agrave

verdade Nos termos de Pascal ldquoEacute necessaacuterio conhecer-se a si mesmo Ainda que isso

natildeo servisse para encontrar a verdade pelo menos serve para regrar a proacutepria vida e nada

haacute de mais justordquo21

19Segundo Luiacutes Oliva ldquoo repouso soacute viraacute quando a capacidade do homem para o infinito for preenchida novamente ou seja quando o homem se reunir a Deus O pecado foi uma tentativa do homem constituir-se em totalidade proacutepria abandonando o seu verdadeiro centro que eacute Deusrdquo OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 406 20 Ver ANJOSBLAISE PASCAL O DIVERTIMENTO E O CONHECIMENTO DE SI p 363 21PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 72

144

Conhecer a si mesmo implica em pensar em si poreacutem este ato conforme

mostra Pascal eacute evitado a todo o custo na medida em que ldquonatildeo podendo os homens curar

a morte a miseacuteria a ignoracircncia resolveram para ficar felizes natildeo mais pensar nissordquo22

Pensar em si inviabiliza o acesso agrave felicidade mesmo que se trate de uma felicidade fugaz

e efecircmera pois a verdadeira felicidade como jaacute assinalamos soacute Deus a pode conceder

Pois bem o ato de pensar em si mesmo desemboca na natureza precaacuteria do

homem pois se depara com sua condiccedilatildeo miseraacutevel e fraacutegil Mas como os humanos

insistem em tentar suprir sua carecircncia pelos mais diversos meios que natildeo a busca de Deus

eles acabam praticando exatamente o contraacuterio da recomendaccedilatildeo de autoconhecimento

Eles se engajam na empreitada de esquecer-se de si Para obter sucesso nessa tarefa

lanccedilam matildeo do divertissement preenchendo todo o tempo com infindaacuteveis afazeres tais

como denuncia Pascal sobrecarregam os homens desde a infacircncia com o cuidado de sua honra dos bens dos amigos e ainda dos bens e honra dos amigos cumulam-nos de afazeres de aprendizado das liacutenguas e de exerciacutecios e se lhes daacute a entender que natildeo conseguiriam ser felizes sem que a sua sauacutede honra e fortuna e a de seus amigos estivessem em bom estado e que a falta de uma uacutenica coisa dessas os tornaraacute infelizes () E eis por que depois de preparar-lhes tantos afazeres se ainda tiverem algum tempo livre aconselha-se que o empreguem em se divertir e jogar e ocupar-se sempre por inteiro Como o coraccedilatildeo do homem eacute oco e cheio de lixo23

O divertimento ocupa e desvia os homens de pensar naquilo que satildeo O

divertimento funciona como um mecanismo de alienaccedilatildeo porquanto eacute a uacutenica coisa que

consola o ser humano de sua miseacuteria A uacutenica coisa que nos consola de nossas miseacuterias eacute a diversatildeo E no entanto eacute a maior de nossas miseacuterias Porque eacute ela que nos impede principalmente de pensar em noacutes que nos potildee a perder insensivelmente Sem ela ficariacuteamos entediados e esse teacutedio nos levaria a buscar um meio mais soacutelido de sair dele mas a diversatildeo nos entreteacutem e nos faz chegar insensivelmente agrave morte24

Quando cessa a diversatildeo resta apenas o teacutedio e isso vale inclusive para os

grandes homens como o rei por exemplo que ldquo estaacute cercado por pessoas que soacute pensam

em diverti-lo e impedi-lo de pensar em si mesmo Porque ele fica infeliz embora seja rei

22 IDEM Fr 133 23 IDEM Fr139 24 IDEM Fr 414

145

se pensar em sirdquo25 Se por algum motivo a diversatildeo natildeo ocorre eis entatildeo uma vez mais

o homem a soacutes consigo mesmo O proacuteximo passo eacute a emergecircncia do teacutedio este negrume

oriundo do fundo da alma esta tristeza esta maacutegoa este despeito este desespero26

Temos aqui como chama a atenccedilatildeo Carraud um novo sentido de pensar em

si diferente daquele sentido cartesiano

Pensar em si natildeo eacute mais pensar no conceito de si (res cogitans) em Deus como seu autor e seu fim mas em si socialmente e existencialmente em si como rei e como homem que natildeo se divertindo seca-se no teacutedio27

Portanto a tarefa de conhecer-se a si mesmo passa pela ideia de pensar a si

Natildeo se trata contudo de abordar o problema da subjetividade aos moldes cartesianos

Pensar a si eacute pensar esta subjetividade no mundo da vida e sua condiccedilatildeo existencial qual

seja a de buscar a felicidade

Poreacutem pensar a si tem como apanaacutegio a miseacuteria humana daquele que se sabe

mortal28A busca se torna ainda mais obstinada pois a felicidade eacute sempre um ideal

longiacutenquo a ser alcanccedilado Esta busca por ser feliz da perspectiva do homem comum

quanto mais obstinada for mais precisa praticar o esquecimento de si a fim de escapar a

sua condiccedilatildeo decaiacuteda Ora mas esquecer-se de si requer o preenchimento do tempo com

as futilidades e tarefas do cotidiano Mesmo os momentos de lazer satildeo preenchidos com

muito movimento e barulho para garantir que a proximidade com a morte seja discreta

sem se aperceber de fazecirc-lo portanto29 Manter a vida ocupada permite tambeacutem o

afastamento da mais insuportaacutevel companhia o teacutedio

Entediar-se eacute se sentir a soacutes consigo mesmo e lembrar da condiccedilatildeo humana

no mundo Nesse sentido se algueacutem sente teacutedio estaacute prestes a pensar em si mesmo Este

repouso no teacutedio poreacutem pode ser interrompido com a diversatildeo Divertir-se garante a

dissipaccedilatildeo do teacutedio e o retorno agrave situaccedilatildeo alienante do primeiro momento Assim o eu

evita ser diante de Deus e se empenha em ser um eu imaginaacuterio cuja busca da felicidade

se centra nos objetos externos Esta busca motivada pela carecircncia humana leva as

25 IDEM Fr 136 26 IDEM Fr 622 27 CARRAUDObservaccedilotildees sobre a segunda antropologia o pensamento como alienaccedilatildeo p 315 28 Como afirma IvonilParraz ldquoConhecendo sua contingecircncia considerando os acasos que envolvem sua existecircncia o eu ldquoque pensardquo descobre-se natildeo como um eu sou mas como um ser natildeo necessaacuterio nem eterno nem infinito A sua proacutepria condiccedilatildeo no interior do tempo leva-o a descobrir sua finituderdquo PARRAZ O disfarce da forccedila p175 29PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 414

146

pessoas a um trabalho de Siacutesifo visto que a subjetividade soacute pode acessar a completude

diante do repouso em seu criador Ou ainda dito de outro jeito para Pascal o eu autecircntico

soacute pode ser (no mais eminente sentido do termo) se e somente se for um eu em relaccedilatildeo

com Deus

Conclusatildeo

O tema da subjetividade em Pascal aparece ao longo dos Pensamentos como

um centro de gravidade onde muitas outras temaacuteticas flutuam tais como a busca pela

felicidade o divertimento e o teacutedio para ficar em poucos exemplos Pascal sabe que natildeo

estaacute inaugurando a discussatildeo e sabe especialmente que muito jaacute foi dito sobre este

problema

Todavia o legado pascalino consiste sobretudo em tratar o eu de maneira

substantiva para pensaacute-lo natildeo tanto enquanto uma subjetividade ontoloacutegica mas sim

antropoloacutegica e moral De fato Agostinho jaacute havia tratado do tema a partir deste recorte

mas natildeo nos mesmos moldes em que coloca Pascal Falar do divertimento enquanto

mecanismo de alienaccedilatildeo e da tentativa de evitar o teacutedio com o esquecimento de si tendo

como pano de fundo o problema da natureza humana constitui o esteio pascalino do qual

se pode erigir toda a sua reflexatildeo filosoacutefica

Neste artigo foram precisamente estes os passos adotados para estabelecer o

fio condutor de nossa discussatildeo qual seja o problema da subjetividade Procuramos

mostrar que o pressuposto antropoloacutegico por detraacutes da reflexatildeo de nosso autor passa

tambeacutem por consideraccedilotildees teoloacutegicas amalgamadas na tradiccedilatildeo cristatilde Reconhecer a

condiccedilatildeo humana bem como o que se deriva a partir daiacute mais notadamente a ideia de

concupiscecircncia e amor-proacuteprio permitem ao nosso autor se mover tendo como leitmotiv

a alteridade relacional entre o eu e Deus

No segundo momento destacamos a temaacutetica do eu e sua condiccedilatildeo de

incompletude o que abre o campo para a jornada humana em direccedilatildeo agrave busca pela

felicidade Ora buscar a felicidade conforme procuramos mostrar tanto pela via do

homem ordinaacuterio quanto pela via dos filoacutesofos fracassam em suas tentativas seja porque

acertam na teoria e erram na praacutetica (os filoacutesofos) seja porque acertam na praacutetica mas

erram na teoria (os homens comuns) O eu soacute satisfaz a sua carecircncia quando procura a

felicidade no repouso Este entretanto natildeo estaacute no interior da proacutepria subjetividade pois

estaacute em outra subjetividade alheia a si Estaacute a saber no proacuteprio Deus

147

Muitos satildeo os empecilhos para se alcanccedilar a felicidade O primeiro passo seria

conhecer-se a si mesmo cujo desdobramento implica em pensar em si e por conseguinte

em mergulhar no teacutedio Acontece que as pessoas procuram evitar o teacutedio a todo custo

visto que entediar-se parece estar na contramatildeo de uma vida feliz Ou seja eacute contra

intuitivo supor em princiacutepio que o teacutedio seja preacute-condiccedilatildeo para o acesso agrave felicidade

Um grande mecanismo para evitar que o homem pense em sua condiccedilatildeo e natildeo acesse o

teacutedio eacute o divertimento Divertir-se ou ainda atarefar-se tem como efeito colateral o

esquecimento de si Portanto por meio do divertimento e do esquecimento de si o eu se

aliena do seu criador e soacute conhece a fugacidade da vida sem alcanccedilar a felicidade ulterior

propiciada apenas por Deus

Tratava-se neste artigo portanto de descrever os meandros e caminhos pelos

quais a subjetividade humana escapa a uma condiccedilatildeo autecircntica Esta condiccedilatildeo soacute pode se

dar como chamamos atenccedilatildeo em seu sentido relacional com o criador O cenaacuterio em que

nos coloca Pascal reflete sobre o problema da condiccedilatildeo humana ou como diria o proacuteprio

pensador francecircs sobre a nossa condiccedilatildeo de miseacuteria na qual noacutes humanos meros

ldquocaniccedilosrdquo pensantes nos deparamos

O homem natildeo eacute senatildeo um caniccedilo o mais fraco da natureza mas eacute um caniccedilo pensante Natildeo eacute preciso que o universo inteiro se arme para esmagaacute-lo um vapor uma gota de aacutegua basta para mataacute-lo Mas ainda que o universo o esmagasse o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata pois ele sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele O universo de nada sabe

Toda a nossa dignidade consiste pois no pensamento Eacute daiacute que temos de nos elevar e natildeo do espaccedilo e da duraccedilatildeo que natildeo conseguiriacuteamos preencher Trabalhemos pois para pensar bem eis aiacute o princiacutepio da moral30

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O POSSIacuteVEL METAFOacuteRICO SEGUNDO TOMAacuteS DE AQUINO

Matheus Henrique Gomes Monteiro1

RESUMO O presente artigo tem o objetivo de discutir o conceito de possiacutevel metafoacuterico e suas ocorrecircncias na filosofia de Tomaacutes de Aquino Primeiro apresenta os aspectos gerais do que eacute ldquoser possiacutevelrdquo considerando a obra tomasiana como um todo Segundo situa o possiacutevel metafoacuterico analisando as informaccedilotildees dadas pelo filoacutesofo para definir o conceito Ao longo do artigo ateacute a conclusatildeo apresentam-se questotildees a serem desenvolvidas ulteriormente por pesquisadores da aacuterea como parte da presente discussatildeo Palavras-chave possiacutevel metaacutefora matemaacutetica Filosofia Medieval

ABSTRACT This paper discusses the concept of metaphorical possible and its developments in the philosophy of Thomas Aquinas Firstly I show the main aspects of what means ldquoto be possiblerdquo in Aquinasrsquo philosophical system by considering the thomasic opera as a whole Secondly I locate the metaphorical possible in the divisions of being possible by analyzing the elements given by the philosopher in order to define the concept In the paper specially at the end I suggest some questions to be developed by colleagues and other scholars based on the discussion started Keywords possible metaphor mathematics Medieval Philosophy

Na discussatildeo sobre o que Deus pode fazer e o que pode ser feito Tomaacutes de

Aquino distinguiu vaacuterios modos de dizer ldquoser possiacutevelrdquo entre eles o possiacutevel metafoacuterico

Nos diversos textos em que o conceito aparece o filoacutesofo ele mesmo natildeo o desenvolve

muito com a justificativa de que para tratar dos problemas concernentes ao poder de

Deus o possiacutevel metafoacuterico ldquofoge ao assuntordquo Haacute inclusive textos voltados ao debate

sobre o que eacute possiacutevel por exemplo Sobre a eternidade do mundo de 1271 em que o

possiacutevel metafoacuterico nem mesmo eacute mencionado Muitos comentadores que se dedicaram

a estudar esses temas reconhecem que o filoacutesofo distingue um modo de dizer ldquoser

possiacutevelrdquo metaforicamente e ateacute datildeo a ele uma vaga definiccedilatildeo poreacutem nenhum deles

aprofundou a reflexatildeo sobre o seu significado nem pretendeu compreender a razatildeo por

que Tomaacutes de Aquino o pocircs de lado em tantos debates e sem maiores explicaccedilotildees2

1 Doutorando em filosofia pela UnicampCAPES e-mail Mhgmonteirogmailcom 2 Smith (1943) Dewan (1974) Wippel (1981 p 26) Veldhuijsen (1990 p 31) Wilks (1994) Storlarski (2001 p 97) Storck (2003) Estes autores mencionam o possiacutevel metafoacuterico poreacutem natildeo se concentram em

150

Neste artigo pretende-se apresentar os aspectos gerais do que Tomaacutes de

Aquino discute sobre o ldquoser possiacutevelrdquo e com base neles situar o possiacutevel metafoacuterico em

sua filosofia Por meio desse trabalho espera-se despertar nos estudiosos do pensamento

tomasiano o interesse pelo tema e considerar as questotildees que ele suscita no

prosseguimento das suas investigaccedilotildees3

Nas questotildees Sobre a potecircncia de Deus quando discute sobre o poder divino

e o que pode ser feito o filoacutesofo faz menccedilotildees breves ao conceito de possiacutevel metafoacuterico

contudo ele desenvolve-o com mais detalhe no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica nas partes sobre

os modos de dizer possiacutevel Em resumo Tomaacutes de Aquino diz que o possiacutevel metafoacuterico

eacute segundo nenhuma potecircncia e por isso eacute dito possiacutevel metaforicamente e em sentido

equiacutevoco Aleacutem disso diz que ele pertence ao domiacutenio da matemaacutetica (aritmeacutetica e

geometria) e que ele eacute uma potecircncia racional e uma potecircncia matemaacutetica4 Para haver

melhor compreensatildeo sobre o significado de cada um desses pontos eacute necessaacuterio voltar-

se para a doutrina geral a respeito do ldquoser possiacutevelrdquo em Tomaacutes de Aquino

Em filosofia Tomaacutes de Aquino reserva um importante papel para a accedilatildeo de

dizer (dicere) o que eacute evidente na grande ocorrecircncia desse verbo na articulaccedilatildeo dos

argumentos O recurso agrave fala na qual ele supotildee as intenccedilotildees entre apreensatildeo inteligecircncia

e comunicaccedilatildeo situa o debate sobre o possiacutevel e a possibilidade nos diversos acircmbitos do

discurso5

Em geral o nome possiacutevel (possibilis ou possibile) pode significar os entes

corpoacutereos contingentes os quais podem ser ou natildeo ser segundo a mudanccedila isto eacute podem

ser de um modo agora e de outro depois (alteraccedilatildeo aumento e diminuiccedilatildeo) ou podem vir

a ser (geraccedilatildeo) ou deixar de ser (corrupccedilatildeo) aleacutem desses haacute os entes criados inclusive

esclarececirc-lo Haacute ainda os que abordam questotildees relativas ao possiacutevel na filosofia de Tomaacutes de Aquino poreacutem natildeo mencionam o possiacutevel metafoacuterico Por fim haacute alguma bibliografia sobre a metaacutefora na filosofia tomasiana poreacutem circunscrita ao seu uso na teologia De fato ainda natildeo encontrei pesquisadores interessados em estudar o possiacutevel metafoacuterico no acircmbito da matemaacutetica onde ele eacute situado por Tomaacutes de Aquino Espero que este artigo seja um incentivo para pesquisas sobre o assunto 3 Uma das questotildees que precisam ser esclarecidas eacute se o possiacutevel metafoacuterico era de fato um conceito que Tomaacutes de Aquino integrava ao seu pensamento ou se ele era um conceito de Aristoacuteteles presente na Metafiacutesica o qual devido agrave empresa de comentar a obra do estagirita Tomaacutes de Aquino teve de explicar e ao qual fez referecircncias pontuais em debates ulteriores ateacute que natildeo visse mais justificativa para ele em sua proacutepria filosofia De todo modo para enfrentar essa questatildeo antes eacute necessaacuterio fazer o levantamento das ocorrecircncias do conceito na filosofia tomasiana e analisar qual eacute o seu papel local (no texto em que estaacute presente) e tambeacutem o global no pensamento do filoacutesofo como um todo mdash etapa que este artigo se propotildee a comeccedilar 4 A siacutentese apresentada tem por base as passagens Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp q 3 a 14 resp Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 5 De Grijs (1990 p 5ndash6) observa o mesmo de modo especial com respeito ao opuacutesculo Sobre a eternidade do mundo

151

os corpos celestes e os anjos cuja essecircncia e ato de ser dependem da accedilatildeo criadora de

Deus por fim os possiacuteveis natildeo-criados que podem ser algum verbo mental que o ser

humano supotildee ao raciocinar sobre a onipotecircncia de Deus e que este conhece estar em seu

poder fazer embora (por assim dizer) natildeo os tenha feito nem venha a fazer

No acircmbito da loacutegica esses significados estatildeo implicados na locuccedilatildeo ser

possiacutevel (esse possibile) segundo a qual Tomaacutes de Aquino distingue entre um modo da

verdade e um modo de ser A primeira alternativa eacute o modal que modificando a coacutepula

entre o termo-sujeito e o termo-predicado significa que o contraacuterio do que eacute enunciado

tambeacutem pode ser verdadeiro6 A segunda alternativa eacute na realidade um ente que eacute em

potecircncia sob determinado aspecto7 e na inteligecircncia um conceito que tem ratio

possibilis ou possibilitas que eacute um princiacutepio explicativo da possibilidade no conceito

do por que o possiacutevel eacute possiacutevel sob o aspecto considerado8 O possiacutevel tem uma ratio

possibilis quando eacute considerado segundo alguma potecircncia e outra quando eacute considerado

segundo nenhuma potecircncia9

No primeiro caso o ser possiacutevel significa o objeto de uma potecircncia Para

melhor entender isso pode-se recorrer agrave abordagem de Tomaacutes de Aquino nos Escritos

sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 resp segundo a qual o verbo poder cujo formato

nominal eacute potecircncia divide-se em potente e possiacutevel Essa divisatildeo eacute simeacutetrica agravequela entre

agente e paciente e agravequela entre causa e efeito Como o que eacute em ato age sobre o que eacute

em potecircncia resultando em um efeito em ato tal que o primeiro (em ato) seja sua causa

eficiente e o segundo (em potecircncia) sua causa material assim tambeacutem a potecircncia do

agente eacute ativa e princiacutepio de accedilatildeo sobre outro enquanto outro e a potecircncia do paciente eacute

passiva e princiacutepio de sofrer accedilatildeo de outro Porque o ser em ato no agente eacute anterior ao

ser em potecircncia no paciente a potecircncia se diz primeira e propriamente da potecircncia ativa

e por analogia da potecircncia passiva10

6 No acircmbito da loacutegica o modal ser possiacutevel modifica as sentenccedilas sob as formas gerais S eacute P ou S natildeo eacute P significando que o contraacuterio do que elas enunciam pode ser verdadeiro Ele eacute unilateral quando se opotildee apenas a ser impossiacutevel ou eacute bilateral quando se opotildee a ser necessaacuterio e a ser impossiacutevel Cf Aristoacuteteles Sobre a interpretaccedilatildeo II 21a34ndash23a23 Tomaacutes de Aquino Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 Ver tambeacutem KNNUTTILA 1988 p 342ndash81 7 Nesse caso haacute uma potecircncia correspondente ao ato primeiro que eacute a forma e outra correspondente ao ato segundo que eacute a operaccedilatildeo A primeira potecircncia eacute chamada de potecircncia passiva e a segunda de potecircncia ativa Cf Sobre a potecircncia de Deus q 1 a 1 resp 8 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 resp 9 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I d 42 q 1 a 1 Suma contra os gentios II c 6 Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp e q 3 a 14 resp Suma de teologia Ia q 9 a 2 resp Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 e IX l 1 Comentaacuterio a Sobre o ceacuteu I l 25 10 No Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 Tomaacutes de Aquino explica sobre a potecircncia passiva que ldquoPossiacuteveis

152

Por sua vez o possiacutevel corresponde ao efeito em potecircncia que se encontra na

potecircncia ativa do agente mais precisamente ele eacute o objeto da potecircncia Assim quando o

possiacutevel eacute considerado numa ordem com respeito agrave potecircncia11 sua ratio possibilis eacute a

ratio do ato pelo qual a causa produz seu efeito12 Por exemplo o inflamaacutevel eacute objeto da

potecircncia ativa do fogo e por parte desse ser em ato sua ratio possibilis eacute o quente da

accedilatildeo de queimar Poreacutem tratando-se de movimento para produzir um efeito eacute necessaacuteria

a mateacuteria o paciente Dessa maneira em segundo lugar o possiacutevel tem ratio possibilis

pela causa material que eacute a potecircncia passiva13

No segundo caso quando o ser possiacutevel eacute considerado segundo nenhuma

potecircncia14 ele eacute separado desse conceito e eacute chamado equivocamente de ldquopossiacutevelrdquo

Nesse sentido ou o possiacutevel eacute absoluto pois natildeo eacute autocontraditoacuterio e pode ter ratio entis

ou ratio non entis isto eacute pode-se dizer que ldquoisso eacute de algum modordquo ou que ldquoisso natildeo eacute

de algum modordquo15 ou ele eacute metafoacuterico devido a certa semelhanccedila e aplica-se a um objeto

da ciecircncia matemaacutetica (aritmeacutetica ou geometria)

Poreacutem outros se dizem possiacuteveis ou potecircncia natildeo por algum princiacutepio que tenham em si e deles a potecircncia se diz equivocamente [] Pois nesses a potecircncia se diz natildeo por algum princiacutepio que tenham poreacutem por certa semelhanccedila assim como nas [figuras] geomeacutetricas16

e impossiacuteveis dizem-se com efeito desses que tecircm em si mesmos algum princiacutepio e isso segundo certos modos segundo os quais as potecircncias se dizem natildeo equivocamente mas sim analogamenterdquo pouco mais adiante ele prossegue mostrando a reduccedilatildeo das potecircncias agrave potecircncia ativa ldquoPortanto deve-se fazer consideraccedilatildeo sobre as potecircncias que se reduzem a uma espeacutecie pois qualquer uma delas eacute certo princiacutepio e todas as potecircncias se dizem reduzidas a algum princiacutepio do qual se dizem todas as outras E esse eacute o princiacutepio ativo que eacute o princiacutepio de accedilatildeo de mudanccedila sobre outro enquanto eacute outrordquo 11 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 3 resp 12 ldquoA cada potecircncia ativa corresponde um possiacutevel como seu objeto proacuteprio segundo o princiacutepio (rationem) daquele ato em que se funda a potecircncia ativardquo (Suma de teologia Ia q 25 a 3 resp) 13 Pois algo eacute uma potecircncia passiva porque estaacute em potecircncia para sofrer accedilatildeo de um outro que estaacute em ato A sua passividade natildeo eacute explicada pela potecircncia ativa Algo pode sofrer accedilatildeo de outro pois eacute em potecircncia No entanto a sua passividade natildeo eacute aberta a qualquer accedilatildeo mas a determinada accedilatildeo de certa potecircncia ativa Essa restriccedilatildeo explica-se pela ratio do ato no qual se baseia a potecircncia ativa a mesma ratio que tambeacutem delimita o objeto dessa potecircncia Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 14 ldquoQuando se diz que algo eacute possiacutevel natildeo segundo alguma potecircncia [isso se diz] ou metaforicamente [] ou absolutamenterdquo (Sobre a potecircncia de Deus q 3 a 14) 15 Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 Nesse paraacutegrafo para efeito de sistematizaccedilatildeo natildeo considero o problema dos possiacuteveis natildeo-criados pois ao consideraacute-los deve-se acrescentar agrave ausecircncia de contradiccedilatildeo em si proacuteprio e agrave enunciabilidade jaacute explicadas a ratio de poder ser um verbo mental (conceptibilidade) Os possiacuteveis natildeo-criados natildeo satildeo conceitos com essecircncia presente e delimitada na inteligecircncia humana mas satildeo uma suposiccedilatildeo na medida em que o ser humano raciocina sobre a onipotecircncia de Deus Dizer que eles tecircm a ratio de conceptibilidade se deve agrave consideraccedilatildeo de que embora natildeo sejam um conceito na inteligecircncia humana eles satildeo alguma ideacuteia na inteligecircncia divina que vecirc em seu poder tudo o que pode fazer Devolvo mais detalhadamente esse assunto em MONTEIRO 2014 16 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 As traduccedilotildees dos textos de Tomaacutes de Aquino satildeo feitas por mim o Comentaacuterio agrave Metafiacutesica com base na ediccedilatildeo do texto latino Parma t 20 1871 o Sobre a potecircncia de Deus

153

Em uacuteltima anaacutelise todo possiacutevel eacute um possiacutevel absoluto que deve satisfazer

a condiccedilatildeo de natildeo ser autocontraditoacuterio e de poder ter ratio entis ou ratio non entis Esse

possiacutevel pode ser considerado em si segundo a ratio possibilis da ausecircncia de contradiccedilatildeo

em si proacuteprio e da enunciabilidade ou pode ser considerado numa ordem com respeito a

uma potecircncia ou causa segundo a ratio possibilis da potecircncia passiva ou da potecircncia

ativa17

Diante desse quadro geral eacute preciso reconhecer duas dificuldades A primeira

delas concerne a situaccedilatildeo do possiacutevel metafoacuterico dentro da divisatildeo geral sobre o ser

possiacutevel que foi exposta anteriormente

Em Sobre a potecircncia q 3 a 14 resp o possiacutevel metafoacuterico eacute considerado

segundo nenhuma potecircncia Todavia em uma parte anterior q 1 a 3 resp Tomaacutes de

Aquino natildeo o potildee dentro da divisatildeo ldquosegundo nenhuma potecircnciardquo mas apresenta-o como

um terceiro modo de dizer o possiacutevel

Segundo o filoacutesofo Aristoacuteteles possiacutevel e impossiacutevel se dizem de trecircs modos De um modo segundo alguma potecircncia ativa ou passiva assim se diz que eacute possiacutevel para o homem andar segundo a potecircncia locomotiva poreacutem que eacute impossiacutevel para ele voar De outro modo natildeo segundo alguma potecircncia poreacutem segundo si mesmo assim como dizemos que o possiacutevel eacute o que natildeo eacute impossiacutevel de ser e que o impossiacutevel eacute o que eacute necessaacuterio natildeo ser Do terceiro modo o possiacutevel se diz segundo a potecircncia matemaacutetica que estaacute nas [figuras] geomeacutetricas []

Apoacutes a leitura fica a questatildeo afinal o possiacutevel metafoacuterico tem ou natildeo tem

uma ratio possibilis de alguma potecircncia Como todo possiacutevel o possiacutevel metafoacuterico eacute

um conceito que tem ratio possibilis e para efeito loacutegico no miacutenimo esta deve ser a

ausecircncia de contradiccedilatildeo em si proacuteprio e a enunciabilidade18 Nos exemplos dados por

Tomaacutes de Aquino o possiacutevel metafoacuterico significa nuacutemeros e figuras geomeacutetricas que satildeo

abstraccedilotildees do numeraacutevel e do volume pertencentes agrave forma quantitativa nos corpos Eles

dependem dos corpos para ser mas natildeo dependem deles para serem conhecidos e

definidos Na matemaacutetica os nuacutemeros e as figuras geomeacutetricas natildeo tecircm ser em potecircncia

igual os corpos natildeo se movem nem satildeo gerados nem se corrompem como os corpos

com base na ediccedilatildeo Parma t 8 1856 a Suma de teologia com base na ediccedilatildeo Leonina t 4 1888 e a Suma contra os gentios com base na ediccedilatildeo Leonina t 13 1918 17 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 3 resp 18 Uma das consequumlecircncias disso eacute que o possiacutevel metafoacuterico natildeo pode pertencer ao discurso poeacutetico que admite a contradiccedilatildeo na forma de paradoxos e oximoros por exemplo Esta pode ser uma razatildeo forte para depois delimitar o possiacutevel metafoacuterico no acircmbito da matemaacutetica

154

pois natildeo tecircm mateacuteria sensiacutevel19

Assim eles natildeo satildeo objeto de uma potecircncia fora da alma humana mas

enquanto conceitos eles satildeo objetos da inteligecircncia (potecircncia da alma) e satildeo objetos de

uma ciecircncia a matemaacutetica Do primeiro modo eles satildeo inteligiacuteveis pois podem ser

conhecidos Do segundo modo eles satildeo matematizaacuteveis pois podem ser explicados pelos

princiacutepios matemaacuteticos

Entretanto em nada disso se manifesta em que consiste a metaacutefora muito

menos sua aplicaccedilatildeo aos casos em que a linha eacute potecircncia do comensuraacutevel20 e em que

nuacutemeros e figuras multiplicados por eles mesmos podem fazer um quadrado21 ao que

Tomaacutes de Aquino chama de potecircncia matemaacutetica e o que parece equivalente a elevar um

nuacutemero ao quadrado na matemaacutetica atual

Para esclarecer esses pontos deve-se proceder agrave segunda dificuldade que diz

respeito agrave diferenccedila entre metaacutefora e analogia22 Nessa dificuldade eacute necessaacuterio recordar-

se de que o possiacutevel se diz segundo alguma potecircncia ou segundo nenhuma potecircncia e que

na primeira consideraccedilatildeo a palavra potecircncia se diz primeira e propriamente da potecircncia

ativa e por analogia da potecircncia passiva mas na segunda consideraccedilatildeo essa palavra se

diz equivocamente do possiacutevel metafoacuterico e do possiacutevel absoluto pois natildeo haacute neles

princiacutepio de agir nem de sofrer accedilatildeo

Embora Owens (1962 p 310 n 28) reconheccedila que na letra do texto Tomaacutes de

Aquino exclua a metaacutefora como uma forma de analogia ele defende que aleacutem da literalidade

ldquode um ponto de vista filosoacutefico portanto natildeo eacute necessaacuteria qualquer hesitaccedilatildeo em ver a

metaacutefora como um tipo de analogiardquo pois tal como o pensador entende ldquo[] Na metaacutefora

o sentido de um termo eacute transferido para outro com base na analogiardquo Stolarski (2001 p

97) tambeacutem entende que ldquometaforicamenterdquo eacute um tipo de analogia

Ao menos esse entendimento parece estar em sintonia com o pensamento de

19 Cf Comentaacuterio a Sobre a Trindade de Boeacutecio q 5 a 1 resp 20 ldquo[] se diz possiacutevel segundo potecircncia matemaacutetica que estaacute entre as geometrias porque a linha eacute dita potecircncia do comensuraacutevel pois o quadrado dela eacute comensuraacutevelrdquo (Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp) 21 Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 e IX l 1 22 Na filosofia de Tomaacutes de Aquino a analogia eacute um dos conceitos mais centrais e tambeacutem um dos mais controversos Neste artigo natildeo o desenvolverei em detalhes embora reconheccedila a sua importacircncia para a discussatildeo por vir Contudo o debate entre os comentadores sobre o assunto permite trabalhar minimamente com as definiccedilotildees presentes em Escritos sobre as Sentenccedilas I d 19 q 5 a 2 ad 1 e em Sobre a verdade q 2 a 11 a saber a distinccedilatildeo entre a analogia de proporccedilatildeo e a analogia de proporcionalidade Tanto uma quanto outra no emprego da palavra na sentenccedila tecircm a intenccedilatildeo de abranger entre univocidade ateacute a completa equivocidade Enquanto houver alguma proporccedilatildeo entre as palavras haacute alguma analogia entre elas Cf OWENS 1962 Ver tambeacutem ELDERS 2009 p 53ndash75

155

Aristoacuteteles em Poeacutetica 21 1457b16ndash3023 Nessa obra o estagirita distingue quatro

empregos para a metaacutefora quando haacute transferecircncia de ldquoum nome alheiordquo do gecircnero para a

espeacutecie ou quando haacute da espeacutecie para o gecircnero ou quando haacute de uma espeacutecie para outra ou

por fim quando haacute por via de analogia No uacuteltimo caso entende que haacute duas proporccedilotildees uma

de um termo a com um termo b e outra de um termo c com um termo d24

119886119886119887119887 mdash 119888119888

119889119889

Segundo Aristoacuteteles o poeta pode ver senatildeo uma identidade ao menos uma

semelhanccedila entre as proporccedilotildees e entatildeo substituir a por c ou b por d O termo a e o termo

c natildeo satildeo necessariamente da mesma espeacutecie nem do mesmo gecircnero Eles se assemelham

um ao outro em razatildeo da relaccedilatildeo que mantecircm com os outros termos b e d os quais

tambeacutem natildeo pertencem necessariamente agraves mesmas categorias O exemplo dado por

Aristoacuteteles eacute

dia

tarde mdash vidavelhice

Na metaacutefora por via da analogia tem-se que ldquoA tarde eacute a velhice do diardquo ou

ldquoA velhice eacute a tarde da vidardquo Sobre sentenccedilas como essas cabe ressaltar que em Sobre

a interpretaccedilatildeo 4 17a1ndash6 Aristoacuteteles diz claramente que o discurso poeacutetico natildeo eacute

declarativo pois natildeo afirma nem nega segundo o verdadeiro ou o falso

Poreacutem o problema eacute que natildeo haacute indiacutecios de que Tomaacutes de Aquino tivesse

acesso agrave Poeacutetica senatildeo por meio de fragmentos reproduzidos ou comentaacuterios indiretos

feitos em textos dos filoacutesofos aacuterabes traduzidos para o latim A Poeacutetica soacute ganharia

publicaccedilatildeo em grego e versatildeo latina a partir do seacuteculo XVI25

Contudo a falta de acesso agrave Poeacutetica natildeo impediu que Tomaacutes de Aquino

23 Baseio-me nas traduccedilotildees para o portuguecircs de Eudoro de Sousa (2003) e de Jaime Bruna (2014) 24 Haacute ainda um outro modo de metaacutefora por via de analogia quando o poeta nega um dos nomes alheios Um exemplo dado por Aristoacuteteles eacute a taccedila de Dioniso e o escudo de Ares Em vez de declarar que ldquoA taccedila de Dioniso natildeo eacute o escudo de Aresrdquo o poeta pode dizer ldquoO escudo de Ares eacute taccedila sem vinhordquo Entendo que esse modo de metaacutefora natildeo contribui para a discussatildeo adiante por isso natildeo o desenvolvi no corpo do texto 25 As primeiras ediccedilotildees em grego dos livros Retoacuterica e Poeacutetica foram publicadas por Aldo Manuacutecio em 1508 em Veneza Haacute tambeacutem vaacuterios estudos sobre a publicaccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles e dos comentadores antigos nos seacuteculos XV e XVI entre os quais recomendo KRAYE 2002 p 189ndash211 e SELLARS 2004 p 239ndash68

156

desenvolvesse um conceito de metaacutefora bastante semelhante ao de Aristoacuteteles Aquino

natildeo dedicou agrave metaacutefora uma questatildeo ou um livro poreacutem abordou-a suscintamente em

outras discussotildees como em Suma de teologia Ia q 1 a 9 a respeito do seu uso na

interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ldquoa poeacutetica [fala] por metaacuteforas por causa da

representaccedilatildeo pois esta eacute naturalmente deleitaacutevel para o homemrdquo26

Na metaacutefora os termos tornam presente ao intelecto um conceito sob uma

imagem proacutexima da experiecircncia mdash uma representaccedilatildeo Nesse sentido a metaacutefora eacute

equiacutevoca pois os termos que satildeo empregados nas sentenccedilas natildeo tecircm o sentido proacuteprio

segundo o qual nas diversas ciecircncias teoreacuteticas referem-se agraves coisas (res) mas eles satildeo

apresentados em um sentido diverso atrelado agrave imagem que representam na imaginaccedilatildeo

Consequentemente a metaacutefora eacute indiferente para o discurso declarativo porque ela ldquonatildeo

afirma sobre a coisa mas somente sobre a imaginaccedilatildeordquo27

Por exemplo nos debates sobre a criaccedilatildeo e a duraccedilatildeo do mundo Tomaacutes de

Aquino enfrenta vaacuterios argumentos de adversaacuterios e os problemas que eles apresentam a

respeito do tempo e do lugar recorrendo agrave metaacutefora28 Aquino diz que nos dois casos do

tempo e do lugar a imaginaccedilatildeo pode acrescentar alguma medida agrave coisa existente29 Esse

recurso eacute usado pelo filoacutesofo na discussatildeo sobre o sentido de ldquoacima derdquo no contexto da

uacuteltima esfera celeste mdash cabe recordar-se de que a cosmologia tomasiana assim como a

aristoteacutelica afirmava a existecircncia de um universo finito constituiacutedo de esferas cristalinas

concecircntricas fora das quais nada existiria Contudo com base na metaacutefora Tomaacutes de

Aquino argumenta

Assim quando se diz que natildeo haacute nada acima do ceacuteu o acima designa um lugar imaginado enquanto possa se imaginar outras dimensotildees sobrepostas agraves dimensotildees dos corpos celestes30

Ademais na discussatildeo sobre a criaccedilatildeo Tomaacutes de Aquino diz que post (depois)

em ldquocreatum habere esse post non esserdquo natildeo significa a sucessatildeo proacutepria do movimento

segundo o antes e o depois A criaccedilatildeo eacute uma operaccedilatildeo divina que eacute realizada da eternidade

O proacuteprio tempo segundo o qual se diz o antes o agora e o depois eacute criado por Deus Natildeo

obstante segundo a metaacutefora diz-se que a criaccedilatildeo eacute a mudanccedila pela qual Deus produz o

26 ldquopoetica autem metaphoris propter representationem repraesentatio enim naturaliter homini delectabilis estrdquo 27 ldquonon ponit [] in re sed solum in imaginationerdquo (Suma contra os gentios II c 36) 28 Cf Suma de teologia Ia q 46 a 1 ad 8 29 Suma contra os gentios II c 36 30 Suma de teologia Ia q 46 a 1 ad 8

157

mundo do natildeo-ser para o ser31 Em Suma de teologia Ia q 45 a 2 ad 2 o filoacutesofo atribui

enunciados como esse ao modo humano de conhecer

Na passagem da Suma de teologia em que fala sobre o uso da metaacutefora na

teologia Tomaacutes de Aquino explica que a metaacutefora toma um conceito que eacute abstrato um

conceito que seja difiacutecil de ser compreendido e torna-o presente agrave inteligecircncia sob alguma

imagem que eacute mais faacutecil de ser conhecida porque eacute mais proacutexima da experiecircncia Esse

conceito sob a imagem embora se torne mais faacutecil fica mais confuso tambeacutem pois aquilo

a que ele refere natildeo eacute o mesmo que a imagem significa originalmente Nesse sentido ele

precisa ser reelaborado considerando-se aquilo que o difere da imagem (o que ele natildeo eacute)

bem como o seu grau de abstraccedilatildeo

Dessa exposiccedilatildeo geral e certamente insuficiente a respeito da metaacutefora ao

menos se pode notar que o desenvolvimento tomasiano desse conceito aproxima-se em

vaacuterios pontos da definiccedilatildeo aristoteacutelica mas natildeo o bastante para incluir a metaacutefora na

analogia Na filosofia de Tomaacutes de Aquino enquanto a analogia corresponde ao uso das

palavras no acircmbito factual e real no discurso verdadeiro ou falso a metaacutefora corresponde

ao uso delas no acircmbito fictiacutecio e imaginaacuterio no discurso verossiacutemil Natildeo obstante

Aquino estaacute agrave vontade para empregar a metaacutefora como um auxiacutelio nos raciociacutenios por

exemplo fazendo comparaccedilotildees didaacuteticas ou dando inteligibilidade a uma suposiccedilatildeo irreal

(o momento antes do tempo o lugar fora do mundo)

Apoacutes considerar essas dificuldades fica mais claro o que Tomaacutes de Aquino

explica nos textos a seguir

[Aristoacuteteles] diz que na geometria a potecircncia se diz segundo metaacutefora Na geometria a potecircncia da linha se diz quadrado da linha por meio desta semelhanccedila porque como disto que eacute em potecircncia se faz aquilo que eacute em ato assim de uma linha multiplicada por si mesma resulta o quadrado dela assim tambeacutem se disseacutessemos que o trecircs eacute possiacutevel no nove porque o nove se segue de trecircs multiplicado por si mesmo Pois trecircs vezes trecircs satildeo nove Poreacutem como o impossiacutevel tomado do segundo modo natildeo se diz segundo alguma impotecircncia assim tambeacutem os modos de possiacutevel afirmados por uacuteltimo [o possiacutevel metafoacuterico e o possiacutevel absoluto] natildeo se dizem segundo alguma potecircncia mas segundo semelhanccedila ou segundo modo de verdadeiro ou falso32

Poreacutem outros se dizem possiacuteveis ou potecircncia natildeo por algum princiacutepio que tenham em si e deles a potecircncia se diz equivocamente [] Pois nesses a potecircncia se diz natildeo por algum princiacutepio que tenham poreacutem por certa semelhanccedila assim como nas [figuras] geomeacutetricas Pois eacute dito que

31 Cf Suma contra os gentios II c 37 32 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14

158

a potecircncia de alguma linha eacute o quadrado dela e eacute dito que a linha eacute possiacutevel em seu quadrado De modo semelhante pode-se dizer nos nuacutemeros que o trecircs eacute possiacutevel no nove que eacute o quadrado de trecircs pois do trecircs multiplicado por si mesmo se faz o nove Pois trecircs vezes trecircs fazem nove Tambeacutem da linha que eacute a raiz do quadrado multiplicada por si mesma se faz um quadrado Entre os nuacutemeros eacute semelhante Daiacute que a raiz do quadrado tem alguma semelhanccedila com a mateacuteria da qual se faz uma coisa Por isso tambeacutem por alguma semelhanccedila diz-se potente no quadrado assim como se diz a mateacuteria potente na coisa33

Os exemplos do possiacutevel metafoacuterico satildeo de potenciaccedilatildeo o nuacutemero ou a linha

que eacute multiplicado por si mesmo e resulta no quadrado e inversamente de radiciaccedilatildeo o

nuacutemero ou linha que eacute raiz quadrada Nos textos reproduzidos Tomaacutes de Aquino faz

duas declaraccedilotildees fundamentais

1) ldquoA raiz do quadrado tem alguma semelhanccedila com a mateacuteriardquo

2) ldquoComo do que eacute em potecircncia se faz o que eacute em ato

assim da multiplicaccedilatildeo da linha (ou do nuacutemero) por ela mesma resulta o quadradordquo

De acordo com essas declaraccedilotildees o possiacutevel metafoacuterico tem ratio possibilis

na semelhanccedila com a mateacuteria Natildeo se trata da potecircncia passiva nem da potecircncia

intelectual nem de um princiacutepio matemaacutetico mas da semelhanccedila entre duas proporccedilotildees

um nuacutemero ou linha proporcional a outro e a mateacuteria ou ser em potecircncia proporcional

a uma coisa ou ser em ato

nuacutemerolinha

quadrado mdash mateacuteriaser em potecircncia coisaser em ato

De um lado nuacutemero linha quadrado natildeo tecircm mateacuteria sensiacutevel e satildeo objetos

da ciecircncia matemaacutetica De outro lado mateacuteria coisa ser em potecircncia ser em ato podem

referir-se ao acircmbito da fiacutesica ou ao dos singulares incluindo a mateacuteria sensiacutevel ou a

mateacuteria sinalada aleacutem do movimento Tambeacutem a proporccedilatildeo que eacute multiplicaccedilatildeo do

nuacutemero ou linha por ele mesmo natildeo eacute igual nem se relaciona a algo comum agrave proporccedilatildeo

que eacute passagem da potecircncia para o ato no movimento Fica evidente que a potecircncia que

significa a multiplicaccedilatildeo de nuacutemero e figuras eacute dita equivocamente em comparaccedilatildeo agrave

potecircncia que significa a mateacuteria (potecircncia passiva) por analogia agrave potecircncia ativa

Contudo haacute ainda uma semelhanccedila e uma transferecircncia pela metaacutefora Diz-

se que ldquoa coisa eacute feita da mateacuteriardquo materia ex qua fit res tambeacutem se diz que ldquoo quadrado

33 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1

159

eacute feito da linhardquo e que ldquo9 eacute feito de 3rdquo pois tanto a linha quanto o nuacutemero 3 satildeo tomados

e postos sob uma operaccedilatildeo da inteligecircncia que resulta em um quadrado ou no nuacutemero 9

Assim ex ductu ternarii in seipsum facit nouenarium ou seja trecircs vezes trecircs resulta em

nove34 O emprego da preposiccedilatildeo ex (de) e do verbo facere (fazer) sugere uma semelhanccedila

entre o que estaacute no acircmbito da fiacutesica e o que estaacute no acircmbito da matemaacutetica poreacutem como

foi analisado natildeo haacute nada em comum senatildeo semelhanccedila acidental por assim dizer

Contudo haacute uma transferecircncia de um acircmbito para o outro assim como haacute na teologia

uma transferecircncia de atributos sensiacuteveis para falar de Deus por meio da metaacutefora

Por fim em Sobre a potecircncia q 3 a 14 resp Tomaacutes de Aquino acrescenta

um novo aspecto ao possiacutevel metafoacuterico a noccedilatildeo de ldquopotecircncia racionalrdquo

Poreacutem diz-se na circunstacircncia de algo possiacutevel natildeo segundo alguma potecircncia ou metaforicamente assim como nas geometrias se diz que alguma linha eacute potecircncia racional ou absolutamente

Como foi visto a linha assim como o nuacutemero natildeo tem propriamente uma

potecircncia poreacutem tanto uma quanto outro satildeo abstraccedilotildees e objetos da inteligecircncia satildeo

inteligiacuteveis cujo ato procede da inteligecircncia que os apreendeu abstraiu e conheceu Desse

modo quando Tomaacutes de Aquino diz ldquopotecircncia racionalrdquo ou estaacute dizendo que a linha e o

nuacutemero satildeo objetos de uma potecircncia racional (a inteligecircncia que pode raciocionar) ou

estaacute dizendo que semelhantemente a uma potecircncia racional eles satildeo princiacutepios dos quais

pode se seguir um de dois efeitos contraacuterios35 Poreacutem se a linha e o nuacutemero fossem

entendidos como princiacutepios restaria esclarecer quais satildeo os contraacuterios que se seguiriam

deles mdash o quadrado (resultado da multiplicaccedilatildeo) seria um deles ou seria o uacutenico

Haacute ainda de questionar-se a razatildeo por que Tomaacutes de Aquino apenas utiliza

exemplos de potenciaccedilatildeo e de radiciaccedilatildeo Outras operaccedilotildees de multiplicaccedilatildeo ateacute mesmo

outras operaccedilotildees matemaacuteticas (a soma a subtraccedilatildeo e a divisatildeo) natildeo teriam imagens ou

semelhanccedilas com algum termo fora do acircmbito da matemaacutetica A metaacutefora eacute empregada

em todos os juiacutezos de possibilidade na matemaacutetica A imaginaccedilatildeo tem algum papel

importante no conhecimento ou nas operaccedilotildees matemaacuteticas Seraacute que na rigidez dos

axiomas e na exatidatildeo dos caacutelculos sob a superfiacutecie de definiccedilotildees claras e de raciociacutenios

necessaacuterios Tomaacutes de Aquino captou a voz meloacutedica vinda das musas de Hesiacuteodo a

contar mentiras semelhantes a verdades

34 Mais informaccedilotildees sobre o vocabulaacuterio matemaacutetico medieval ver SMITH 1953 p 101ndash28 35 Para uma definiccedilatildeo de potecircncia racional Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 2

160

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DE DESCARTES A FREGE OS AVANCcedilOS EPISTEMOLOacuteGICOS DO

MEacuteTODO

Michelle Cardoso Montoya1

RESUMO O presente artigo pretende expor superficialmente alguns avanccedilos epistemoloacutegicos acerca do uso do meacutetodo para alcanccedilar a verdade cientiacutefica considerando-se perspectivas pontuais de Descartes Bacon e Hobbes ao longo da modernidade Tanto o meacutetodo proposto por Renegrave Descartes (1596-1650) quanto o por Francis Bacon (1561-1625) visavam primordialmente orientar qual seria o uso adequado da razatildeo e dos sentidos nos processos epistemoloacutegicos A partir do bom uso da razatildeo no caso cartesiano e de ambos no caso baconiano obtermos fundamentos soacutelidos para investigaccedilatildeo de verdades especialmente as que condizem com a ciecircncia Com Francis Bacon e Thomas Hobbes (1558-1679) verificaremos avanccedilos quanto ao uso epistemoloacutegico do meacutetodo todavia ainda insuficientes para lidar com o que intitularemos por ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo Contudo tentaremos sustentar que as maiores inovaccedilotildees acerca do uso epistemoloacutegico do meacutetodo foram feitas de fato por Gottlob Frege (1848-1925) em sua Conceitografia A partir disto demonstraremos como podemos considerar a conceitografia fregeana como uma espeacutecie de ldquocontinuidaderdquo do meacutetodo cartesiano Palavras-chave Meacutetodo Verdade Cientiacutefica Espaccedilo Epistecircmico ABSTRACT The present article is intended to superficially expose some epistemological advances on the use of the method to reach a scientific truth considering the punctual perspectives of Descartes Bacon and Hobbes throughout modernity Both the method proposed by Reneacute Descartes (1596-1650) and Francis Bacon (1561-1625) aimed primarily at guiding the proper use of reason and senses in epistemological processes From the good use of reason in the Cartesian case and both in the case of the Baconian we obtain solid foundations for the investigation of truths especially those that correspond to science With Francis Bacon and Thomas Hobbes (1558-1679) we will see advances in the epistemological use of the method yet still insufficient to deal with what we will call the problem of epistemic space However we will try to argue that the greatest innovations about the epistemological use of the method were actually made by Gottlob Frege (1848-1925) in his Ideography From this we will demonstrate how we can consider Fregean conception as a kind of continuity of the Cartesian method Keywords Method Scientific truth Epistemic space

1 Mestranda em Filosofia pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGLM-UFRJ) e-mail Michelle_montoyaiduffbr

163

Tanto o meacutetodo proposto por Reneacute Descartes (1596-1650) quanto o por

Francis Bacon (1561-1625) visavam primordialmente orientar qual seria o uso adequado

da razatildeo e dos sentidos nos processos epistemoloacutegicos A partir do bom uso da razatildeo no

caso cartesiano e de ambos no caso baconiano obteriacuteamos fundamentos soacutelidos para

investigaccedilatildeo de verdades especialmente das que condizem com a ciecircncia Descartes em

Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito afirma que nossa faculdade do entendimento seria

composta por dois atos intelectuais a saber a intuiccedilatildeo e a deduccedilatildeo A faculdade do

entendimento embora natildeo fosse a uacutenica responsaacutevel pelo processo de conhecimento e o

raciociacutenio jaacute que operaria de acordo com o res cogitam cartesiano isto eacute com a

substacircncia intelectual A intuiccedilatildeo numa certa perspectiva era dita comumente como

independente jaacute que natildeo dependeria de nenhuma outra certeza aleacutem do que estaria

inserido em seu proacuteprio conteuacutedo

A deduccedilatildeo por sua vez seria dependente da intuiccedilatildeo ou mesmo de deduccedilotildees

menos complexas que a proacutepria em questatildeo Logo o processo de conhecimento genuiacuteno

no sistema cartesiano seria baseado em pressupostos de natildeo imediatidade isto eacute para

chegarmos a emitir um juiacutezo certo e indubitaacutevel precisariacuteamos percorrer com nosso

entendimento diversas etapas que com certa praacutetica executariacuteamos numa velocidade

quase imperceptiacutevel Uma vez que para Descartes o entendimento soacute operaria em

conformidade com o intelecto natildeo se fiando nos sentidos para garantir certezas pois estes

seriam enganosos podemos dizer que ocorre o que chamaremos daqui para frente de

ldquoaniquilamento do corpordquo que significa justamente o abandono do conhecimento

imediato proporcionado pelos sentidos como certo e inquestionaacutevel No lugar deste

aniquilamento veremos que restaraacute uma ldquoracionalizaccedilatildeo dos processos epistemoloacutegicosrdquo

fortemente marcada pelo exerciacutecio de uma atividade intelectual que toma por fundamento

de busca pela verdade os atos do entendimento jaacute citados Todavia ao se considerar o ato

da deduccedilatildeo verificaremos que ainda haveraacute um problema lacunar que intitularemos por

ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo jaacute que conforme perceberemos restaratildeo espaccedilos entre

uma deduccedilatildeo e outra que passaratildeo sequencialmente desapercebidos O autor em questatildeo

tentou apresentar meios de solucionar esse problema poreacutem visivelmente ineficientes

Com Francis Bacon observaremos um avanccedilo epistemoloacutegico quanto ao

emprego do meacutetodo que eacute uma ldquoreconciliaccedilatildeo do corpo com o espiacuteritordquo ou se

preferirmos com a alma No Novo Oacuterganon ele proporaacute um meacutetodo empiacutericonatural

embasado nos sentidos Neste momento a razatildeo por si soacute natildeo poderaacute mais operar

sozinha sem ferramentas entatildeo teremos a ldquoressucitaccedilatildeo do corpo nos processos

164

epistemoloacutegicosrdquoA partir de Thomas Hobbes (1558-1679) observaremos outros avanccedilos

epistemoloacutegicos interessantes acerca do uso do meacutetodo na investigaccedilatildeo da verdade

partindo de uma cooperaccedilatildeo natural entre corpo e espiacuterito inseridos numa situaccedilatildeo mais

praacutetica a da vida poliacutetica O meacutetodo seraacute utilizado com a finalidade de se estabelecer uma

vida poliacutetica mais sustentaacutevel Todavia neste artigo tentaremos sustentar que as maiores

inovaccedilotildees acerca do meacutetodo foram feitas de fato por Gottlob Frege (1848-1925) em sua

Conceitografia

A fim de banir o problema das lacunas que pudessem eventualmente estarem

presentes nas cadeias inferenciais que aqui consideraremos como uma nova acepccedilatildeo mais

contemporacircnea ao que Descartes considerava como cadeias dedutivas Frege

provavelmente numa certa via deu continuidade aos avanccedilos epistemoloacutegicos quanto ao

uso do meacutetodo Sendo assim neste artigo vamos expor os avanccedilos epistemoloacutegicos no

que diz respeito a utilizaccedilatildeo do meacutetodo de forma pontual ao longo da modernidade a

comeccedilar de Descartes Bacon e Hobbes Daiacute apontaremos alguns indiacutecios sobre como

Frege tentou lidar com o problema do espaccedilo epistecircmico que assolou o meacutetodo ao longo

da modernidade bem como sob qual(is) aspecto(s) podemos considerar a conceitografia

fregeana como uma continuidade do meacutetodo cartesiano ainda que de forma natildeo

conclusiva

Consideraccedilotildees acerca do dualismo cartesiano corpo e espiacuterito

Neste ponto faz-se importante comentar o que Reneacute Descartes entendia por

corpo e espiacuterito 2No sexto paraacutegrafo da ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo o autor nos oferece uma

noccedilatildeo de corpo

ldquo (hellip) por corpo entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaccedilo de tal sorte que todo outro corpo dele seja excluiacutedo que pode ser sentido ou pelo tato ou pela visatildeo ou pela audiccedilatildeo ou pelo olfato que pode ser movido de muitas maneiras natildeo por si mesmo mas por algo de alheio pelo qual seja tocado e do qual receba a impressatildeordquo3

O corpo no sistema cartesiano eacute tido como uma substacircncia material sujeita

a afetaccedilotildees por parte de objetos dos quais detenha percepccedilotildees por meio de um processo

2 Procuraremos aqui tratar ldquoespiacuteritordquo e ldquoalmardquo como sinocircnimos no sistema cartesiano Logo o dualismo corpo-alma e corpo-espiacuterito significaratildeo a mesma coisa 3 DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo sect6 p 127

165

imediato4 Ele ocuparia um lugar no espaccedilo por isso seria considerado mateacuteria O calor

interno que circula dentro de noacutes ao realizarmos movimentos bem como todas as nossas

funccedilotildees fisioloacutegicas estariam sob responsabilidade do corpo Logo quando este se

corrompe seus movimentos cessam jaacute que natildeo seriam condizentes com a alma Sendo

assim nossa mortalidade estaria atrelada ao corpoque seria uma extensatildeo delimitada e

finita Nossos sentidos especialmente no processo de conhecimento soacute poderiam ser

exercidos mediante a accedilatildeo do corpo que nos transmitiria por meio de interaccedilotildees nervosas

internas as percepccedilotildees a alma Desse modo nossas accedilotildees seriam regidas pelo corpo que

por vezes dependeriam das paixotildees para ocorrer ou seja da almaporeacutem nem sempre

ldquo () devemos crer que todo calor e todos os movimentos em noacutes existentes na medida

em que natildeo dependem do pensamento pertencem apenas ao corpo5rdquoPor meio de uma

fisiologia largamente detalhada Descartes busca explicitar as funccedilotildees do corpo em As

Paixotildees da Alma tal como o movimento do coraccedilatildeo o percurso dos espiacuteritos animais e

suas contribuiccedilotildees para a movimentaccedilatildeo corporal e o exerciacutecio dos sentidos No entanto

neste artigo evitaremos entrar nestes meacuteritos por julgarmos como irrelevantes para

presente discussatildeo que estaacute sendo desenvolvida

A alma por sua vez estaria detida dentro de uma ldquomaacutequina corporalrdquo natildeo

sendo responsaacutevel nem por sua formaccedilatildeo tampouco por sua conservaccedilatildeo Corresponderia

a uma substacircncia intelectual da qual o pensamento dependeria Sua funccedilatildeo eacute lidar com

dois gecircneros de pensamentos as accedilotildees da alma (ou intelectivas) e as paixotildees Entatildeo o

fim do corpo natildeo determinaria o fim da alma embora se comuniquem entre si Ao findar

o corpo este tatildeo somente se separa da alma revelando sua natureza de efemeridade que

aprisiona dentro de si o que possui caracteriacutesticas capazes de contemplar o que eacute eterno

Sendo assim falar de dualismo cartesiano eacute mostrar como essa conjugaccedilatildeo interativa

ldquoalma-corpordquo se revela em seu aspecto determinista mais fundamental Isto eacute a

mortalidade humana bem como sua capacidade finita seria determinada pelo corpo Jaacute a

alma sendo dotada de ideias inatas de perfeiccedilatildeo e infinitude por exemplo possibilitaria

a contemplaccedilatildeo humana do infinito mesmo aprisionada num lugar de finitude Desse

modo por conseguir transcender as limitaccedilotildees do espaccedilo a alma conseguiria possibilitar

a humanidade a expectativa de ajuizar acerca do universal por mais que natildeo se saiba a

medida exata da proacutepria universalidade E neste ponto eacute de suma importacircncia ter feito

4 Ver mais em DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo 5 DESCARTES As Paixotildees da Alma ldquoPrimeira Parterdquo artigo 4 p296

166

essas consideraccedilotildees acerca do dualismo cartesiano para compreendermos o

funcionamento do meacutetodo

O meacutetodo cartesiano

Em Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito vemos que o meacutetodo eacute um conjunto

de regras a serem observadas durante o processo de conhecimento e descoberta da

verdade especialmente no caso cientiacutefico O meacutetodo seria inerente a nossa natureza

humana e nosso entendimento operaria em conformidade com ele Por sua vezo meacutetodo

seria aplicaacutevel a todas as ciecircncias em conjunto de forma indissociaacutevel de maneira

idecircntica e universal ou seja de acordo com a mathesis universalis Na ldquoRegra Irdquo da

obra mencionada o autor defende que as ciecircncias ao contraacuterio das artes seriam

inseparaacuteveis podendo ateacute mesmo serem exercidas com excelecircncia em conjunto

diferentemente das artes mecacircnicas e manuais que exigiriam extrema especializaccedilatildeo Daiacute

adviria a possibilidade dessa mathesis isto eacute de uma universalizaccedilatildeo das ciecircncias no

sentido de existir um conjunto de regras (meacutetodo) passiacutevel de ser aplicado a todas elas

Logo as ciecircncias natildeo deveriam ser mutuamente exclusivas Ao se conhecer a verdade de

uma determinada ciecircncia esta nos ajudaria a alcanccedilar a verdade de uma outra ciecircncia

O meacutetodo seria necessaacuterio para dirigir a razatildeo em busca pela verdade Por

meio dele poderiacuteamos atingir a formulaccedilatildeo de juiacutezos firmes e verdadeiros Nossa razatildeo

neste sistema ainda deveria estar subordinada ao que Descartes chamava de ldquobom sensordquo

ou ldquouniversal sabedoriardquo que estabeleceria os limites maacuteximos de ateacute onde podemos

conhecer Contudo ele ressalta que deveriacuteamos retomar a praacutetica contemplativa de

ldquoconhecer por conhecerrdquo ou seja ldquodevemos apreciar as coisas por si mesmas e natildeo por

sua contribuiccedilatildeordquo6 Isso quer dizer que natildeo deveriacuteamos empenhar forccedilas em descobrir

verdades em face de algum aspecto utilitaacuterio mas sim exercer a atividade intelectual por

exercer por mera contemplaccedilatildeo e amor ao saber em conformidade com o ldquobom sensordquoO

meacutetodo tambeacutem orientaria como o espiacuterito deveria se valer da intuiccedilatildeo e deduccedilatildeo no

processo de conhecimento

As deduccedilotildees seriam certezas extraiacutedas da intuiccedilatildeo caracterizadas por serem

complexas e dependentes de outras deduccedilotildees ou intuiccedilatildeo Nenhuma deduccedilatildeo teria

evidecircncia atual e permitiria a construccedilatildeo da cadeia de conhecimentos ou se preferirmos

6 DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra IIrdquo

167

dizer de verdades ou num termo mais contemporacircneo de inferecircncias Seria responsaacutevel

tambeacutem pela apreensatildeo dos objetos do conhecimento bem como das relaccedilotildees cognitivas

entre os objetos no interior de um campo cientiacutefico por exemplo A intuiccedilatildeo seria o que

haacute de mais simples a primeira certeza capaz de inaugurar uma cadeia de deduccedilotildees

concebida como pura e distinta pelo espiacuterito proveniente da ldquoluz da razatildeordquo7A intuiccedilatildeo

por ser mais simples que a deduccedilatildeo eacute mais indubitaacutevel

O meacutetodo cartesiano portanto seria por fim o resultado de uma reflexatildeo

profunda de forma elaborada e natildeo espontacircnea daiacute seu caraacuteter natildeo imediato Por isso

representa o prolongamento dos poderes naturais da razatildeo presentes em noacutes E ainda de

acordo com Descartes o meacutetodo operaraacute de acordo com dois movimentos do espiacuterito e

satildeo eles a anaacutelise e a siacutentese Tais movimentos jaacute teriam sido vistos e ilustrados pela

matemaacutetica grega a partir de Pappus e Diophanto8 No entanto eacute vaacutelido ressaltar que

embora pudessem ser considerados em conjunto um tipo de meacutetodo combinado 9

devemos lembrar que sua essencialidade quanto agrave aplicaccedilatildeo natildeo eacute vaacutelida exclusivamente

para matemaacutetica Tendo em vista que a aritmeacutetica e a geometria seriam tidas como

ciecircncias simples foi possiacutevel se perceber com mais clareza que o meacutetodo isto eacute operar

de acordo com ele faz parte de nossa natureza humana sendo um princiacutepio inato

Descartes retoma o meacutetodo combinado a fim de propor uma aplicaccedilatildeo do mesmo

uniforme e universalmente possiacutevel a todas as ciecircncias Para tanto retoma-se a anaacutelise

problemaacutetica a teoacuterica e a siacutentese

Segundo Descartes embora o espiacuterito humano tivesse o haacutebito de

desvencilhar do que eacute simples e faacutecil haveria dois fatores essenciais para se garantir o

bom funcionamento do meacutetodo a fim de que nossa ldquoluz naturalrdquo ou ldquouniversal sabedoriardquo

natildeo fosse ofuscada a ordem e a medida A ordem porque nosso intelecto deveria partir

de objetos simples ateacute chegar aos mais complexos isto considerando todas as suas partes

e etapas de acordo com os movimentos antes jaacute ilustrados pela matemaacutetica A medida

seria uma caracteriacutestica tiacutepica da mathesis universalis (Matemaacutetica Universal) que

estipularia criteacuterios de homogenizaccedilatildeo dos objetos entre si em disposiccedilatildeo com as ciecircncias

jaacute que teriam a mesma natureza comum reconheciacutevel Sendo assim tanto a ordem quanto

a inteligibilidade seriam requisitos baacutesicos para que todo e qualquer objeto pudesse ser

7 Significava o mesmo que Descartes chamava de ldquoluz naturalrdquo 8 DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra VIrdquo Ver mais detalhes sobre o meacutetodo de anaacutelise e siacutentese em Pappus e Diophanto em HEATH A History of Greek Mathematics pp 400-405 9 LOPARIC Descartes Heuriacutestico pp 136-142

168

tratado pelo intelecto Neste sentido conhecer de acordo com o meacutetodo significaria

ordenar e medir os objetos com a razatildeo Logo deveriam permitir serem homogenizados

pela ldquoluz da razatildeordquo bem como o conhecimento natildeo poderia ultrapassar as delimitaccedilotildees

colocadas pela ordem e medida uma vez que estas satildeo imprescindiacuteveis ao funcionamento

adequado do meacutetodo

Vimos no ponto anterior que por meio de certas da alma poderiacuteamos

contemplar a infinitude estando na finitude o que nos possibilitaria a contemplaccedilatildeo da

universalidade que seria tida como simples e absoluta por ser faacutecil ou ao menos

alimentaria em noacutes estas expectativas de conhecimento Todavia agora observamos que

a nossa razatildeo nos processos epistemoloacutegicos natildeo deve exceder a certos limites pois caso

contraacuterio poderaacute infringir o meacutetodo Sendo assim cabe ressaltar aqui que temos apenas

a possibilidade de contemplar a ideia de infinitude e aspectos de universalidade contudo

isto natildeo significa ajuizar acerca do que natildeo eacute alcanccedilaacutevel pela nossa razatildeo Esta

possibilidade simbolizaria antes de mais nada a nossa capacidade de contemplar certas

ideias condizentes com a imortalidade mesmo aprisionados num corpo mortal sem

evidecircncias claras jaacute que este corpo eacute regido pelos sentidos que conforme visto nas

Meditaccedilotildees Metafiacutesicas seriam enganosos e ilusoacuterios10 capazes de deturpar a razatildeo se

esta natildeo estivesse agindo de acordo com o bom senso A fim de fomentar esse engano

mediante a colocaccedilatildeo estrateacutegica da Duacutevida Hiperboacutelica na obra citada Descartes incorre

num ceticismo radical negador do corpo Isto eacute que rejeita como certo e indubitaacutevel todo

e qualquer conhecimento adquirido por meio dos sentidos

No entanto considerando-se a contemplaccedilatildeo como mera possibilidade vecirc-se

um impasse no sistema cartesiano como afirmar que se pode alcanccedilar a certeza e a

evidecircncia tendo um intelecto preso ao corpo No comeccedilo deste artigo abordamos esta

questatildeo sob um outro acircngulo quando foi abordado o ldquoaniquilamento do corpo nos

processos epistemoloacutegicosrdquo Eis a resoluccedilatildeo para esse impasse racionalizar o processo

de conhecimento desconsiderando os possiacuteveis ludibriamentos que os nossos sentidos

podem imprimir em noacutes por meio da materialidade Assim se daraacute esse aniquilamento

No entanto verificaremos mais adiante com o meacutetodo empiacutericonatural de Bacon que o

ldquoaniquilamento do corpo nos processos epistemoloacutegicosrdquo de forma integral se apresenta

como algo inviaacutevel Temos assim uma marca de avanccedilo traga pelo meacutetodo baconiano a

ldquoressuscitaccedilatildeo do corpordquo e seu casamento com o espiacuterito

10 DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo

169

O problema do espaccedilo epistecircmico

Segundo Descartes o meacutetodo em si natildeo apresentaria problemas tampouco

existiria a possibilidade de se fazer intelectualmente uma deduccedilatildeo mal feita se

operaacutessemos o meacutetodo detendo-nos em coisas faacuteceis jaacute que seriam mais acessiacuteveis pelo

espiacuterito Aqui deve-se entender por faacutecil aquilo que natildeo eacute composto mas sim

independente Nenhuma concepccedilatildeo duvidosa poderia surgir jaacute que de acordo com nossa

proacutepria natureza agiriacuteamos conforme o meacutetodo e o ldquobom sensordquo a natildeo ser que os

suspendecircssemos Aleacutem disso nos processos epistemoloacutegicos em conformidade com o

meacutetodo temos a recomendaccedilatildeo cartesiana de natildeo prosseguirmos diante de algo complexo

caso ainda tenhamos duacutevida quanto sua natureza11 Contudo apesar desses pressupostos

e recomendaccedilotildees vemos que ainda natildeo haacute clareza quanto ao ordenamento das cadeias

dedutivas cartesianas Chamarei essa falta de clareza de ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo

Numa cadeia cartesiana de deduccedilotildees podemos perceber uma certa ausecircncia

de clareza quanto ao limite seguro espacial que uma deduccedilatildeo deve ter em relaccedilatildeo a outra

Por mais que tentemos clarificar a natureza de todas as coisas envolvidas no processo

dedutivo nos deparamos com a ausecircncia de um criteacuterio espacial bem delimitado e preciso

quanto a distacircncia que uma deduccedilatildeo deve ter da outra Se por exemplo quisermos

determinar se a velocidade da luz eacute a mais raacutepida se demandaria a investigaccedilatildeo de vaacuterias

outras naturezas tais como a da luz a velocidade a da rapidez e entre outras Cada

natureza analisada provavelmente demandaria a anaacutelise de uma outra natureza No fim

de nossa anaacutelise eacute quase certo que a encerrariacuteamos sem a certeza absoluta de que estamos

certos e de que atingimos algum grau de verdade Quantas deduccedilotildees precisariacuteamos fazer

para chegar a criteacuterios seguros quanto a velocidade da luz Isto parece a primeira vista

bastante incerto aleacutem de demandar outros criteacuterios mais seguros que determinem o

espaccedilo que deve haver entre uma deduccedilatildeo e outra Veremos a seguir que Bacon natildeo faraacute

muitos avanccedilos quanto a esta questatildeo especificamente contudo seus adendos

colaboraratildeo para a nossa hipoacutetese inicial de um avanccedilo gradual quanto a aplicabilidade

epistemoloacutegica do meacutetodo O ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo seraacute solucionado com

mais clareza a partir das inovaccedilotildees fregeanas apresentadas na Conceitografia

11 BACON Novo Oacuterganon ldquoPrefaacuteciordquo

170

O meacutetodo empiacutericonatural

O meacutetodo empiacutericonatural de Bacon buscou conciliar o papel do corpo e do

espiacuterito nos processos epistemoloacutegicos promovendo o ldquoeterno casamentordquo das

faculdades racionais com os sentidos ressuscitando o corpo O principal movimento do

corpo e do espiacuterito quanto a esse meacutetodo seraacute a induccedilatildeo Aqui ela teraacute uma acepccedilatildeo

distinta da enumeraccedilatildeo suficiente jaacute vista no sistema cartesiano12 Seraacute tida como o meio

mais adequado de conduzir o corpo e o espiacuterito natildeo soacute por respeitar o papel dos sentidos

no processo de conhecimento como por tornar o ser humano obediente a natureza O

intelecto por natildeo ter contato imediato com a natureza que eacute a nossa uacutenica possibilidade

concreta de conhecimento perfeito seria mais propenso a erros do que os sentidos A

partir disso Bacon inauguraraacute um modo de operar o conhecimento mais condizente com

as limitaccedilotildees de nossa mortalidade e humanidade que tem por marca a inacessibilidade

imediata frente ao universal e o infinito Logo estabeleceraacute que na verdade ao contraacuterio

do que se pressupunha no meacutetodo cartesiano devemos partir dos particulares e natildeo dos

universais jaacute que estes natildeo seriam condizentes com os limites humanos dos sentidos

A induccedilatildeo baconiana aleacutem de seguir um movimento oposto ao da

demonstraccedilatildeo convencional valia-se de axiomas para compor por etapas a passagem dos

conhecimentos particulares aos universais isto eacute das proposiccedilotildees mais complexas as

mais simples de ordem geral De acordo com Bacon por meio da deduccedilatildeo natildeo

conseguiriacuteamos conhecer a natureza com clareza jaacute que esta pressuporia o ldquointelecto nurdquo

ou seja despido dos sentidos A induccedilatildeo deveria ser tomada como ponto de partida do

conhecimento sem a expectativa de se deparar apenas com a simplicidade ordenadora

tal como a do meacutetodo cartesiano Conhecer a natureza natildeo seria faacutecil todavia com o

meacutetodo indutivo conseguiriacuteamos dividir o todo complexo que se apresenta diante de noacutes

em partes possibilitando deste modo uma anaacutelise mais minuciosa e em seguida o acesso

a conhecer as coisas

O intelecto por ser afetaacutevel por emoccedilotildees e crenccedilas seria tatildeo duvidoso quanto

os sentidos13 Diga-se de passagem que dado o distanciamento do intelecto em relaccedilatildeo a

natureza este chegaria seria ainda mais propenso a erros que os sentidos Dada a relaccedilatildeo

intriacutenseca do conhecimento com a natureza no sistema baconiano ao contraacuterio do

12 Ver mais sobre enumeraccedilatildeo suficiente em DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra VIrdquo E a criacutetica de Bacon a enumeraccedilatildeo suficiente em BACON Novo Oacuterganon ldquoPlano da Obrardquo sect1 13 BACON Novo Oacuterganon ldquoLivro Irdquo ldquoAforismo XLIXrdquo

171

ldquoconhecimento por conhecerrdquo proposto pelo sistema cartesiano teremos um

ldquoconhecimento parardquo o que significa obter conhecimento visando fins utilitaacuterios Um

desses fins que podemos observar no ldquoPrefaacuteciordquo do Novo Oacuterganon seraacute o de usar o

conhecimento em benefiacutecio da vida para conduzi-la com caridade isto eacute de acordo com

os valores eacuteticos morais e cristatildeos Logo o conhecimento estaria relacionado agrave aquisiccedilatildeo

desses valores a fim de se conduzir a vida humana com mais dignidade

A deduccedilatildeo no sistema baconiano poderia nos conduzir ao ldquoobscurecimento

do globo celesterdquo jaacute que utilizariacuteamos o intelecto de forma especulativa ignorando os

sentidos que satildeo capazes de acessar a natureza diretamente Somente por meio da

empiria que direcionariacuteamos a nossa razatildeo por vias seguras condizentes com a sabedoria

universal que teria um quecirc de divino Natildeo respeitar a ordem natural significaria

obscurecer os processos epistemoloacutegicos optando por vias especulativas Num certo

aspecto o meacutetodo baconiano limitaria o exerciacutecio de nossa razatildeo jaacute que ela teria de

exercer ser esforccedilo intelectual a partir da natureza Outro objetivo desse meacutetodo aleacutem da

conciliaccedilatildeo mencionada foi o de eliminar os iacutedolos14

Os iacutedolos poderiam ser entendidos por ilusotildees impressas na razatildeo

principalmente quando a mente 15 sofre alteraccedilotildees em seu funcionamento graccedilas a

afetaccedilotildees oriundas das percepccedilotildees adquiridas a partir dos sentidos podendo ser inatos ou

artificiais Os inatos seriam inerentes ao proacuteprio intelecto enquanto os artificiais inseridos

na mente humana a partir de doutrinaccedilotildees externas e crenccedilas Os iacutedolos inatos segundo

Bacon natildeo poderiam ser eliminados da mente daiacute a importacircncia de um meacutetodo

empiacutericonatural indutivo que concilie as faculdades empiacutericas com as racionais O

meacutetodo baconiano seraacute chamado pelo proacuteprio autor de Interpretaccedilatildeo da Natureza

enquanto o ldquomeacutetodo antigordquo de Antecipaccedilatildeo da Mente

Um dos avanccedilos que o meacutetodo baconiano nos trouxe foi o de tomar a

particularidade como ponto de partida para a anaacutelise da verdade e a aquisiccedilatildeo de

conhecimento mesmo diante de uma complexidade residida na necessidade de um certo

nuacutemero de axiomas para tornar um dado processo epistemoloacutegico mais gradual Tal

avanccedilo eacute importante pois veremos que no sistema de Frege a necessidade de um mesmo

ponto de partida especialmente se considerarmos sua teoria da prova Outros avanccedilos

14 Traduccedilatildeo do termo baconiano idola Podemos tambeacutem traduzir este termo por ldquoilusatildeordquo pois significaria justamente a aquisiccedilatildeo de uma ideia fictiacutecia proveniente de um certo ludibriamento sofrido pela razatildeo 15 Mente em Bacon natildeo se diferencia muito de razatildeo por isso tomarei ambos termos como sinocircnimos um do outro Podemos dizer de forma redundante que a mente para ele eacute a razatildeo em exerciacutecio

172

importantes que podemos verificar eacute o reconhecimento dos possiacuteveis impasses que a

linguagem natural pode incutir no meacutetodo a partir de sua utilizaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do

que eacute exterior a noacutes intervir no bom curso e exerciacutecio da razatildeo

No ldquoAforismo XLIVrdquo do ldquoLivro Irdquo de Novo Oacuterganon Bacon jaacute enunciaraacute um

dos maiores impasses que a linguagem colocaraacute ao meacutetodo a imprecisatildeo terminoloacutegica

O silogismo por ser composto de proposiccedilotildees que consistem de palavras de acordo com

o autor seriam pouco seguros caso fossem tomados por fundamento jaacute que satildeo

permutaacuteveis por noccedilotildees que podem ser abstratas e pouco claras para a ciecircncia Por isso

a induccedilatildeo se faria necessaacuteria uma vez que o silogismo natildeo se referia as coisas em si mas

a seus roacutetulos Logo o silogismo natildeo seria uacutetil para se investigar a verdade

O meacutetodo hobbesiano

O meacutetodo hobbesiano buscou retomar o status prioritaacuterio da razatildeo nos

processos epistemoloacutegicos contudo sem ldquoaniquilar o corpordquo A razatildeo ganha um papel de

destaque ao ser igualada a proacutepria Filosofia que estaria inserida dentro de noacutes Propondo

um meacutetodo condizente com a criaccedilatildeo do mundo isto eacute que seguia a ordem da criaccedilatildeo

(luz distinccedilatildeo entre dia e noite firmamento criaturas celestes criaturas sensiacuteveis e

homem) Hobbes buscou estabelecer uma ordem contemplativa que nos fosse adequada

para o exerciacutecio explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo de nossa sabedoria de forma analoacutegica a

estrutura do mundo A Filosofia em sua maacutexima seria consoante ao meacutetodo jaacute que teria

por pressuposto principal a ldquouniatildeo eterna e vigorosa com o mundordquo De acordo com

Hobbes a Filosofia eacute inata em todos os homens jaacute que corresponde a razatildeo natural

contudo para que esta natildeo se desvie dos caminhos corretos precisaria de um meacutetodo

efetivo Muitas vezes como os homens se contentam com a experiecircncia cotidiana como

fundamento para uma indubitabilidade um meacutetodo seria posto de lado o que eacute uma falha

O autor nos oferece uma definiccedilatildeo de Filosofia em Do Corpo dizendo que

ela eacute o conhecimento adquirido pelo reto raciociacutenio dos Efeitos ou Fenocircmenos a partir

das Causas e Geraccedilotildees e vice-versa Haveriam coisas importantes a serem analisadas

nessa definiccedilatildeo todavia ficaremos apenas com a primeira delas onde se dariam essas

Causas e Efeitos Hobbes nos diz que natildeo haacute nada inteiramente imaterial tudo precisa de

um corpo para ser passiacutevel de ser reconhecido ainda que natildeo estejamos falando

exatamente de um corpo fiacutesico Sem corpo natildeo pode haver raciociacutenio pois o princiacutepio

baacutesico que todas as ciecircncias deviam dominar era de como se mede os corpos e seus

173

respectivos movimentos A Filosofia seria uma ferramenta uacutetil para usarmos os Efeitos

dos corpos com comodidade16Em seu exerciacutecio ela pressuporia raciociacutenio que eacute visto

como um caacutelculo onde as principais operaccedilotildees da razatildeo a fim de que ela aja de acordo

com o meacutetodo seraacute a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo Por isso podemos chamar o meacutetodo

hobbesiano de racionalizante Um raciociacutenio neste meacutetodo natildeo tomaria por base apenas

palavras ou nuacutemeros mas corpos movimentos tempos graus e entre outros A adiccedilatildeo e

a subtraccedilatildeo serviriam para reunir distinguir e separar conceitos Para ilustrar isso na

primeira parte de Do Corpo Hobbes nos daacute o exemplo de ldquohomem racionalrdquo que pode

ser desdobrado pelo proacuteprio meacutetodo racionalizante que ele propotildee por meio da

decomposiccedilatildeo dos conceitos ldquohomemrdquo ldquoanimadordquo e ldquoracionalrdquo que juntos somados pela

adiccedilatildeo formam uma soacute noccedilatildeo ldquohomem racionalrdquo

O meacutetodo racionalizante nos traraacute algumas inovaccedilotildees Primeiro a

consideraccedilatildeo de que o que eacute adquirido de forma imediata pela natureza natildeo eacute raciociacutenio

porque a conquista da verdade e firmeza da razatildeo depende da Filosofia atrelada a um bom

meacutetodo Segundo que a experiecircncia natildeo pode ser equiparaacutevel ao raciociacutenio jaacute que eacute soacute

memoacuteria e natildeo consegue reunir ou compor conceitos Terceiro o rompimento com

aspectos teoloacutegicos jaacute que as divindades natildeo poderiam ser conhecidas pela razatildeo mas

eram relativas a questotildees de feacute Tambeacutem natildeo poderiacuteamos aplicar nenhum tipo de anaacutelise

baseada em divisatildeo ou decomposiccedilatildeo de partes jaacute que nada originariamente as concebem

As inovaccedilotildees da conceitografia fregeana quanto meacutetodo

Frege no ldquoPrefaacuteciordquo da Conceitografia ressalta que a linguagem formular do

pensamento puro ou ideografia tem em sua execuccedilatildeo o intento de atender a certos

propoacutesitos cientiacuteficos um deles a saber seria o de minorizar as mazelas da linguagem

natural que possivelmente estaria permeando o discurso cientiacutefico Portanto tal ideografia

natildeo deveria ser posta de lado caso natildeo servisse como ldquomeacutetodordquo para outras finalidades17

Logo busca delimitar seu uso de modo a consideraacute-la como ferramenta uacutetil para

examinar de forma mais detida e detalhada cadeias de inferecircncia sem que estas sejam

obscurecidas pelos obstaacuteculos impostos a algum grau de precisatildeo e clareza colocados pela

linguagem corrente (natural) jaacute que ela deixaria lacunas inevitaacuteveis Nisto Frege propocircs

16 HOBBES Do Corpo ldquoparte 1- Caacuteculo ou Loacutegicardquo capiacutetulo 1 sect 6 a 8

17 FREGE Conceitografia ldquoPrefaacuteciordquo

174

a elaboraccedilatildeo de uma linguagem formular para o pensamento puro que trata de conteuacutedos

conceituais a fim de desfazer a ambiguidade gerada a partir do uso equiacutevoco de sinais

que pudessem designar tanto um conceito quanto o objeto que recaiacutesse sobre um conceito

Desse modo elaborou-se uma lingua characterica onde signos especiacuteficos pudessem ser

manipulados de acordo com regras definidas Juntamente com a concepccedilatildeo desta

linguagem busca-se novos fundamentos para uma ldquonova Sintaxerdquo isto eacute o abandono da

estrutura claacutessica sujeito-predicado aristoteacutelica em prol da noccedilatildeo de funccedilatildeo e argumento

a fim de aumentar ainda mais a precisatildeo discursiva especialmente no que tange o discurso

cientiacutefico

Ao realizar as devidas correccedilotildees quanto aos equiacutevocos comumente expressos

pela linguagem Frege procurou estabelecer um sistema que natildeo soacute desse conta da

imprecisatildeo vista na linguagem natural como tambeacutem de fundamentar uma base

epistemoloacutegica soacutelida para a ciecircncia Essa base ao se valer de um pressuposto de

particularidade foi extremamente uacutetil para solucionar o problema do espaccedilo epistecircmico

suscitado desde o iniacutecio do meacutetodo cartesiano Ao considerarmos a hipoacutetese natildeo

conclusiva de que a conceitografia fregeana serviria como uma restriccedilatildeo provisoacuteria tanto

para pretensotildees universalistas quanto para a fundamentaccedilatildeo mais soacutelida da ciecircncia a

partir de uma particularidade escapando desde da mathesis universalis cartesiana ao

ldquodescobrir facilmente algordquo de Bacon constataremos que Frege por meio do

oferecimento de ferramentas que combatem a proacutepria insuficiecircncia da linguagem natural

em lidar com o problema lacunar (isto principalmente se considerarmos o emprego da

deduccedilatildeo nos processos epistemoloacutegicos) trouxe uma das maiores inovaccedilotildees quanto ao

uso do meacutetodo jaacute vistas a restriccedilatildeo provisoacuteria

Entendemos aqui a restriccedilatildeo provisoacuteria pela limitaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de um

sistema em foacutermulas e escopos especiacuteficos a fim de evitar eventuais problemas que

possam surgir numa aplicaccedilatildeo mais aberta o que foi feito por Frege em seu sistema

supracitado Por meio dela ainda foi possiacutevel deslocar a linguagem de um patamar

gramatical para o das leis loacutegicas em busca de precisatildeo que livre conclusotildees de alguma

generalidade pois construiu-se uma linguagem mais estaacutevel e menos evolutiva Frege

realizou isto valendo-se da palavra escrita jaacute que ela teria mais permanecircncia

possibilitando sua anaacutelise quantas vezes fosse necessaacuterio

Deste modo que o que chamamos de ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo na

verdade era um problema linguiacutestico que foi mais esclarecido a partir do uso de regras

especiacuteficas de manipulaccedilatildeo de signos presentes na conceitografia fregeana que visava

175

atingir um niacutevel de precisatildeo ao ponto de conseguir identificar lacunas presentes em nossas

cadeias inferenciais a fim de contornaacute-las Sendo assim encerraremos nossa exposiccedilatildeo

jaacute que o nosso maior objetivo era indicar apontamentos de motivos pelos quais podemos

considerar ou natildeo a conceitografia fregeana como meacutetodo sem pretensotildees de

elaborarmos conclusotildees mais definitivas

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BACON F Novo Oacuterganon (Instauratio Magna)Satildeo Paulo Edipro 2014

DESCARTESRObra Escolhida Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1962

DESCARTESR Regras para a Direccedilatildeo do EspiacuteritoSatildeo Paulo Cultura Moderna 1938

FREGEG Loacutegica e filosofia da linguagem Satildeo Paulo CultrixEdusp 1978

HEATH TA History of Greek Mathematics (vol II)Nova York Dover 1981

HOBBES T Do Corpo Parte 1 ndash Caacutelculo e LoacutegicaSatildeo Paulo Unicamp 2009

LOPARIC Z Descartes Heuriacutestico Satildeo Paulo IFCH Unicamp 1997

DOIS SENTIDOS DE PARTICIPACcedilAtildeO EM PLATAtildeO

Otacilio Luciano de Sousa Neto1

RESUMO Este artigo visa observar a ocorrecircncia dos termos que dizem participaccedilatildeo nos passos 130b e 130e do Parmecircnides de Platatildeo com a finalidade de distinguir duas concepccedilotildees pouco explanadas nos estudos da ontologia platocircnica um sentido de participaccedilatildeo mutaacutevel no qual um ente pode tornar a participar de uma Forma e possuir um predicado e outro sentido de participaccedilatildeo eterno no qual um participante possui eternamente um predicado (eg o trecircs eacute sempre iacutempar) respectivamente associados aos termos μεταλαμβάνοντα e μετέχοντα Esta distinccedilatildeo se torna mais clara em 155e e pode ser encontrada em outros momentos dos diaacutelogos platocircnicos como por exemplo no Feacutedon Palavras-chave Platatildeo Parmecircnides participaccedilatildeo

ABSTRACT This paper aims to observe the occurrence of terms that say participation in steps 130b and 130e of Platos Parmenides in order to distinguish two conceptions poorly explained in the studies of Platonic ontology a sense of changeable participation which an entity can begin to partake in a Form and get a predicate and another sense of eternal participation in which a participant eternally possesses a predicate (eg three is always odd) respectively associated with the terms μεταλαμβάνοντα and μετέχοντα This distinction becomes clearer in 155e and can be found elsewhere in the Platonic dialogues as for example in the Phaedo Keywords Plato Parmenides participation

Satildeo curiosas as maneiras que aparecem os termos participaccedilatildeo nas passagens

das aporias da participaccedilatildeo e no Parmecircnides como um todo Assim sendo nossa tarefa

eacute investigar estes termos questionando o que eacute participaccedilatildeo

Para que se entenda a participaccedilatildeo jaacute de iniacutecio eacute interessante observar certas

passagens nas quais Parmecircnides pergunta a Soacutecrates como se daacute a participaccedilatildeo Lecirc-se

Mas dize-me tu mesmo assim fizeste a divisatildeo tal como falas de um lado certas formas mesmas de outro as coisas que delas participam E te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada do que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo2 (PLATAtildeO Parmecircnides 130b)

1 Mestrando em filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute 2 καί μοι εἰπέ αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς μὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ μετέχοντα καί τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁμοιότης χωρὶς ἧς ἡμεῖς ὁμοιότητος ἔχομεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες

177

De antematildeo eacute possiacutevel homologar uma determinada concepccedilatildeo questionada

por Parmecircnides As Formas estatildeo separadas [χωρὶς] das coisas de que delas participam

Parmecircnides pergunta se as Formas satildeo separadas dos entes que delas participam A

resposta de Soacutecrates eacute afirmativa e portanto eacute posiccedilatildeo de Soacutecrates que as Formas satildeo

separadas dos participantes Isto natildeo quer dizer necessariamente que as Formas satildeo de

fato separadas dos itens que delas participam apenas quer dizer que Soacutecrates aceita tal

concepccedilatildeo neste momento do diaacutelogo

O problema da separaccedilatildeo em Platatildeo eacute muito discutido e nas proacuteximas

palavras natildeo cabe levantar novamente este problema3 Entretanto a passagem apresenta

que haacute Formas e coisas que delas participam [μετέχοντα] O termo μετέχοντα eacute particiacutepio

presente portanto natildeo indica necessariamente entes sensiacuteveis mas quaisquer coisas que

possa participar das Formas sejam entes sensiacuteveis accedilotildees e outras Formas4

Nada obstante algumas palavras depois a pergunta eacute refeita com algumas

alteraccedilotildees Vecirc-se

[hellip] Mas dize-me o seguinte parece-te como dizes haver certas formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na grandeza grandes se no belo e na justiccedila justas e belas5 (PLATAtildeO Parmecircnides 130e - 131a)

Nesta nova passagem novidades satildeo expressas A primeira nova eacute de que as

coisas que participam das Formas recebem delas denominaccedilotildees [ἐπωνυμίας] Assim eacute

importante lembrar quando algo participa da Semelhanccedila este se torna semelhante

quando participa da Grandeza recebe o predicado grande e na Beleza e na Justiccedila recebe

os adjetivos belo e justo A outra novidade eacute o termo usado para dizer participaccedilatildeo

μεταλαμβάνοντα

Mas podem dois termos dizer o mesmo

Μεταμβάνειν eacute verbo na terceira pessoa do singular do presente do indicativo

da voz ativa originaacuterio do termo μεταλαμβάνω O termo μεταλαμβάνω pode ser

entendido primeiramente por ldquoter ou obter uma parte participarrdquo Este sentido guarda a

3 Para ampliar a discussatildeo deste problema conferir FUJISAWA 1974 Conferir tambeacutem FINE 2003 pp 252-301 NETO 2016 4 Cf PLATAtildeO Repuacuteblica 476a 5 τόδε δ᾽ οὖν μοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα μεταλαμβάνοντα τὰς ἐπωνυμίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁμοιότητος μὲν μεταλαβόντα ὅμοια μεγέθους δὲ μεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι

178

possibilidade de ler μεταλαμβάνω apontando para ldquouma parte recebida ou adicionadardquo

Um segundo sentido aponta para algo que se ldquorecebe em sucessatildeo ou posteriormenterdquo

Outro sentido refere-se a algo que ldquose toma como alternativa que se toma em troca que

substituirdquo E em seu quarto sentido ldquoser mudadordquo6

Para μετέχειν natildeo aparecem tantos sentidos e os que aparecem natildeo satildeo

claramente uacuteteis O termo μετέχειν eacute o infinitivo presente da voz ativa do termo μετέχω

O termo μετέχω por sua vez tem como primeiro sentido apresentado ldquoparticipar ou

compartilhar emrdquo em outro sentido refere-se agraves ldquopartes adicionadasrdquo e mesmo ainda diz

respeito a ldquoser um parceirordquo7

Eacute claramente reconheciacutevel a gecircnese do termo μεταλαμβάνω como a junccedilatildeo

do prefixo ldquoμετάrdquo ao verbo ldquoλαμβάνωrdquo Tambeacutem eacute visiacutevel a associaccedilatildeo entre μετέχω

como a junccedilatildeo do termo ldquoμετάrdquo ao termo ldquoἔχωrdquo O prefixo ldquoμετάrdquo traz o sentido de

ldquojuntamente com entre pelo auxiacutelio derdquo O verbo ldquoλαμβάνωrdquo tem o sentido de ldquoagarrar

segurar levar consigo como precircmio ou espoacutelio pegar tomar em matildeos receber tomar

posse de apreender obter a posse derdquo O verbo ldquoἔχωrdquo traz entre seus sentidos ldquoter

segurar como uso mais comum possuir propriedade manter sustentar reter suportar ou

segurar para si mesmordquo

Sobre a distinccedilatildeo de μετέχω e μεταλαμβάνω satildeo pouquiacutessimas as palavras

que se podem facilmente encontrar Satildeo uacuteteis para o trabalho neste sentido apenas as

palavras de Cornford e Scolnicov8 Lecirc-se

Como no Feacutedon μεταλαμβάνειν (μετάσχεσις Feacutedon 101c μετάληψις Parm 131 a Aristotle cotado abaixo p 79) significa comeccedilar a participar quando a coisa se torna como (γίγνεσθαι) por outro lado μετέχειν eacute usado para ter uma participaccedilatildeo e corresponde a ser como (εἶναι) Mετέχειν e μεταλαμβάνειν satildeo claramente distinguidos novamente em 155E 11-156A 1 (CORNFORD F M 1939 p69 TRADUCcedilAtildeO NOSSA)9 Μεταλαμβάνει eacute o equivalente platonico a lsquotornar-sersquo jaacute enquanto μετέχει lsquotomar parte emrsquo ou lsquoparticipar emrsquo eacute equivalente ao predicado lsquoeacutersquo Eacute claro na tese de Soacutecrates(cf 128e5 ff acima p48) somente sensiacuteveis podem lsquovir a tomar parte emrsquo algo ou seja nas

6 CfLIDDEL H G SCOOT R 1996 7 IDEM ibidem 8 Fujisawa parece elucidar o problema Entretanto a distinccedilatildeo ressaltada por Fujisawa se daacute em maior forccedila para distinguir ἔχειν de μετέχειν e μεταλαμβάνειν E a distinccedilatildeo e o problema se daacute para defender a tese de caracteres imanentes e natildeo parece tratar profundamente sobre o problema da predicaccedilatildeo Cf FUSISAWA 1974 9 CORNFORD F M Plato and The Parmenides and Parmenidesrsquo Ways of Truth translation with a running comment p 69

179

Formas as quais satildeo diferentes deles (SCOLNICOV 2001 p56 TRADUCcedilAtildeO NOSSA)10

Na apresentaccedilatildeo de Scolnicov eacute claro que para o Soacutecrates do diaacutelogo a

participaccedilatildeo se daacute apenas em entes sensiacuteveis Entretanto natildeo se vecirc que esta tese pode ser

defendida por Parmecircnides uma vez que em suas perguntas ele apenas pergunta acerca

ldquodos participantesrdquo ou das ldquocoisas que das Formas participamrdquo Ainda assim Scolnicov

distingue μεταλαμβάνει de μετέχει associando o primeiro a ldquotornar-serdquo e o segundo a

ldquoserrdquo em sentido predicativo Natildeo suficiente as distinccedilotildees lexicais apresentadas por

Cornford nos termos μετέχω e μεταλαμβάνω relacionam μεταλαμβάνω a γίγνεσθαι e

μετέχω a εἶναι Presumivelmente Cornford e Scolnicov apresentam a mesma distinccedilatildeo e

mesma posiccedilatildeo acerca do problema Entretanto deve-se perguntar quais as razotildees que

fundamentam esta relaccedilatildeo

[155e] O um se eacute tal como discorremos sendo tanto um quanto muacuteltiplas coisas e natildeo sendo nem um nem muacuteltiplas coisas e participando do tempo [μετέχον] natildeo eacute necessaacuterio que ora porque eacute um participe [μετέχειν] da essecircncia [οὐσίας] e ora por outro lado porque natildeo eacute natildeo participe [μετέχειν] da essecircncia [οὐσίας] Eacute necessaacuterio Assim sendo quando participa [μετέχει] poderaacute nesse momento natildeo participar [μετέχειν] ou quando natildeo participa [μετέχει] participar [μετέχειν] Natildeo poderaacute Logo eacute em um tempo que ele participa [μετέχει] e eacute em outro que natildeo participa [μετέχοι] Pois somente desse modo poderia participar e natildeo participar [μετέχοι] [156a]Correto Assim sendo natildeo haveraacute tambeacutem aquele tempo em que ele entra em participaccedilatildeo [μεταλαμβάνει] com o ser e em que dele se afasta Ou como seraacute possiacutevel ora ter [ἔχειν] e ora natildeo ter [μὴ ἔχειν] a mesma coisa se jamais ele a apanhar [λαμβάνῃ] ou largar [ἀφίῃ] De modo nenhum seraacute possiacutevel E o entrar em participaccedilatildeo [μεταλαμβάνειν] com a essecircncia natildeo chamas vir-a-ser [γίγνεσθαι] Sim perfeitamente

10 SCOLNICOV Samuel Platorsquos Parmenides p 56

180

O um entatildeo como parece apanhando [λαμβάνον] e largando [ἀφιὲν] a essecircncia tanto vem a ser quanto perece (PLATAtildeO Parmecircnides 155e-156a)

A passagem acima apresenta um problema que poderia ser uma insoluacutevel

aporia da participaccedilatildeo

O que eacute apresentado de iniacutecio eacute uma determinada concepccedilatildeo acerca do um

o qual pode ser entendido ou bem ora como um ou bem ora como muitos ou muacuteltiplos

(πολλὰ) Todavia se o um pode ser ora entendido como um e ora como πολλὰ ora ele

pode natildeo ser entendido como um ora natildeo pode ser entendido como πολλὰ E participando

do tempo eacute necessaacuterio admitir que algum tipo de mudanccedila uma vez que um item (x) que

participa da forma (F) ora pode ser retentor de um predicado (f) em razatildeo da participaccedilatildeo

ora pode natildeo ter mais tal predicado (f) e portanto natildeo ser mais um participante da Forma

(F) O que se diz precisamente eacute o participante do tempo (μετέχον χρόνου) a um tempo

participa de uma propriedade (οὐσίας μετέχειν ποτέ) a outro tempo natildeo participa da

propriedade (μὴ μετέχειν αὖ ποτε οὐσίας)11

Seguindo esta anaacutelise o participante do tempo (μετέχον χρόνου) tendo como

motivo um soacute aspecto ser participante do tempo (μετέχον χρόνου) ora eacute participante ora

natildeo eacute participante da propriedade (οὐσίας) Isto eacute semelhante a posiccedilatildeo de Zenatildeo no

iniacutecio do diaacutelogo impossiacutevel Isto eacute impossiacutevel uma vez que eacute uma contradiccedilatildeo sob o

mesmo aspecto ser participante do tempo o participante eacute e natildeo eacute participante da

propriedade (οὐσίας) Assim sendo o tempo eacute causa de um participante possuir alguma

propriedade (beleza justiccedila etc) e natildeo possuir esta mesma propriedade Eacute claro como eacute

afirmado no diaacutelogo que natildeo poderaacute ldquoquando participa (μετέχει) () natildeo participar

(μετέχειν) ou quando natildeo participa (μετέχει) participar (μετέχειν) (PLATAtildeO

Parmecircnides 155e) rdquo

Eis uma aporia da participaccedilatildeo por participar no tempo algo eacute e natildeo eacute

Entretanto para esta haacute soluccedilatildeo A soluccedilatildeo eacute a instauraccedilatildeo de dois momentos temporais

(i) o momento em que participa e (ii) o momento em que natildeo participa O instaurar destes

dois momentos resolve a contradiccedilatildeo pois eacute em um momento que se diz que participa e

em outro momento distinto se diz que natildeo participa

11 Eacute possiacutevel entender a partir da Repuacuteblica 476a que aleacutem de entes sensiacuteveis eacute possiacutevel que accedilotildees Formas e predicados participem de Formas Neste caso contudo entende-se que participar em uma propriedade [οὐσίας] natildeo eacute outra coisa que natildeo possuir [ἔχειν] uma determinada propriedade em razatildeo da participaccedilatildeo na Forma Cf FUJISAWA 1974 Conferir tambeacutem NETO 2016

181

Ateacute entatildeo o uacutenico termo usado para dizer participaccedilatildeo nesta passagem eacute

μετέχω em suas devidas conjugaccedilotildees e ou declinaccedilotildees E eacute brilhante pois em grego a

uacuteltima palavra usada em 155e eacute μετέχοι Eis que acaba 155e comeccedila 156a e o termo

μετέχω nem mais iraacute surgir no argumento O termo usado agora para dizer participaccedilatildeo eacute

μεταλαμβάνω

Relembra-se μεταλαμβάνειν eacute distinto de μετέχειν O primeiro sob anaacutelise

lexical teria um sentido aproximado de ldquojuntamente com o agarrarrdquo o segundo

ldquojuntamente com o possuirrdquo Em contraposiccedilatildeo ao apanhar (λαμβάνω) tem-se o largar

(ἀφω)

Assim o ente entra em participaccedilatildeo (μεταλαμβάνει) e com isso ele apanha

(λαμβάνει) por participar (μεταλαμβάνει) determinada propriedade (οὐσία) e tecircm essa

propriedade (ἔχει) mas natildeo eternamente (como em μετέχω) mas por um tempo efecircmero

que dura apenas ateacute largar (ἀφει) a propriedade que retecircm na participaccedilatildeo e a participaccedilatildeo

(μεταλαμβάνει) cessar

Este sentido de participaccedilatildeo fugaz apresenta claramente a presenccedila do

conceito de ldquovir-a-serrdquo para a compreensatildeo de seu sentido e por vezes este conceito se

daacute grafado em grego atraveacutes do termo γίγνομαι Este caso certamente se daacute no Feacutedon

na emblemaacutetica passagem que parece ser a capital para entender a participaccedilatildeo em Platatildeo

O que me parece eacute que se existe algo belo aleacutem do belo em si soacute poderaacute ser belo por participar desse belo em si O mesmo afirmo de tudo o mais Admites essa espeacutecie de causa Admito respondeu Entatildeo jaacute natildeo compreendo continuou as outras causas de pura erudiccedilatildeo e nem consigo explicaacute-las E se para justificar a beleza de alguma coisa algueacutem me falar da sua cor brilhante ou da forma ou do que quer que seja deixo tudo o mais de lado que soacute contribui para atrapalhar-me e me atenho uacutenica e simplesmente talvez mesmo com uma boa dose de ingenuidade ao meu ponto de vista a saber que nada mais a deixa bela senatildeo tatildeo soacute a presenccedila ou comunicaccedilatildeo daquela beleza em si qualquer que seja o meio ou caminho de lhe acrescentar De tudo o mais natildeo faccedilo grande cabedal o que digo eacute que eacute soacute pela beleza em si que as coisas belas satildeo belas Na minha opiniatildeo essa eacute a maneira mais certa de responder tanto a mim mesmo como aos outros Firmando-me nessa posiccedilatildeo tenho certeza de natildeo vir a cair e de que tanto eu como qualquer pessoa em idecircnticas circunstacircncias poderaacute responder com seguranccedila que eacute pela beleza que as coisas belas satildeo belas12 (PLATAtildeO Feacutedon 100c-e NEGRITOS NOSSOS)

12 φαίνεται γάρ μοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι᾽ ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι μετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω τῇ τοιᾷδε αἰτίᾳ συγχωρεῖς

182

O termo que se grafa em grego eacute γίγνεται e natildeo haacute duacutevidas que o termo tem

o sentido de ldquovir a ser13rdquo Por este motivo discordamos aqui da presente traduccedilatildeo uma

vez que o que Soacutecrates diz que eacute pela Beleza que as coisas se tornam belas

Eacute claro que a acepccedilatildeo Socraacutetica natildeo parece como afirma o proacuteprio Soacutecrates

indubitaacutevel jaacute que o proacuteprio personagem que profere as palavras afirma que pode haver

nele uma boa dose de ingenuidade ao defender a participaccedilatildeo Natildeo obstante como eacute

possiacutevel que o personagem que muitiacutessimas vezes eacute o baluarte da discussatildeo nos diaacutelogos

platocircnicos natildeo estar seguro de uma tatildeo importante doutrina O fato eacute que mesmo que

Soacutecrates possa parecer seguro acerca da existecircncia das Formas ele natildeo parece seguro de

como funciona as relaccedilotildees que se datildeo onde as Formas satildeo elementos de relaccedilatildeo

Nos mais importantes diaacutelogos para a participaccedilatildeo ndash os considerados por noacutes

os mais importantes objetos de pesquisa ndash a saber Feacutedon Parmecircnides e Sofista Soacutecrates

em momento algum parece estar totalmente seguro acerca de alguma relaccedilatildeo que se daacute

entre Forma e quaisquer itens que dela participar o que natildeo impede o personagem de

homologar ou propor fortiacutessimos aspectos acerca da participaccedilatildeo No Feacutedon mesmo que

assuma que possa estar sendo ingecircnuo ele assume um sentido de participaccedilatildeo que

apresenta a possibilidade de transiccedilatildeo de um item que natildeo eacute portador de um predicado e

pela participaccedilatildeo na Forma pode se tornar retentor de um predicado conferido pela

Forma14 No Parmecircnides Soacutecrates apenas nos passos 129a-e iraacute proferir as palavras que

dizem participaccedilatildeo μετέχειν μεταλαμβάνειν e em momento algum do diaacutelogo iraacute dizecirc-

las novamente apenas aceitaraacute ou recusaraacute as perguntas feitas pelo personagem

Parmecircnides Este uacuteltimo no entanto atraveacutes de suas questotildees iraacute tratar de importantes

aspectos da participaccedilatildeo Jaacute no Sofista Soacutecrates se cala logo no iniacutecio do diaacutelogo e caberaacute

ao Estrangeiro de Eleacuteia apresentar a teia de conexotildees que haacute entre Formas (συμπλοκὴ τῶν

εἰδῶν)15

Entranto mesmo que Soacutecrates seja um personagem que legitima toda a

compreensatildeo sobre a participaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel que seja alvo de contenda o sentido de

participaccedilatildeo tanto no Feacutedon como no Parmecircnides que traga consigo a noccedilatildeo de ldquotornar-

serdquo fazendo com que um item que natildeo eacute x possa vir-a-ser x por participar de uma Forma

X ldquojuntamente com o agarrarrdquo da propriedade Obstante Platatildeo natildeo deixa de escrever

13 Cf LIDDEL H G SCOOT R 1996 14 Soacutecrates inseguro e ousado ainda iraacute apresentar um exemplo de outro sentido de participaccedilatildeo 15 Cf PECK A L Platos Sophist The συμπλοϰὴ τῶν εἰδῶν 1962

183

Mas estou certo de que tambeacutem admites que nunca poderaacute a neve como neve conforme dissemos haacute pouco depois de receber o calor continuar a ser o que era neve com calor Com a aproximaccedilatildeo do calor ou ela se retira ou vem a fenecer Perfeitamente Tal qual o fogo com a chegada do frio retira-se ou perece de jeito nenhum depois de receber o frio se atreveria a ser o que antes era fogo a um tempo e frio Falaste com muito acerto observou Pode acontecer continuou nalguns exemplos desse tipo que natildeo somente a ideia em si mesma tenha o direito de conservar eternamente o mesmo nome como tambeacutem algo que diferente que sem ser aquela ideia apresenta-se enquanto existe com sua forma Eacute possiacutevel que com o seguinte exemplo eu deixe mais claro meu pensamento O nuacutemero iacutempar teraacute de conservar sempre esse nome com o que o designamos Ou natildeo Perfeitamente [] Seja como for de tal modo eacute construiacuteda a natureza do trecircs do cinco e de toda uma metade de nuacutemeros que apesar de cada um deles natildeo ser a mesma coisa que o iacutempar sempre teraacute de ser iacutempar O mesmo passa com o dois o quatro e toda a outra metade dos nuacutemeros que sem serem o par sempre teratildeo de ser pares Admites isso ou natildeo Como natildeo admitir Foi a sua resposta16 (PLATAtildeO Feacutedon 103d-104b)

16 ἀλλὰ τόδε γ᾽ οἶμαι δοκεῖ σοι οὐδέποτε χιόνα γ᾽ οὖσαν δεξαμένην τὸ θερμόν ὥσπερ ἐν τοῖς πρόσθεν ἐλέγομεν ἔτι ἔσεσθαι ὅπερ ἦν χιόνα καὶ θερμόν ἀλλὰ προσιόντος τοῦ θερμοῦ ἢ ὑπεκχωρήσειν αὐτῷ ἢ ἀπολεῖσθαι πάνυ γε καὶ τὸ πῦρ γε αὖ προσιόντος τοῦ ψυχροῦ αὐτῷ ἢ ὑπεξιέναι ἢ ἀπολεῖσθαι οὐ μέντοι ποτὲ τολμήσειν δεξάμενον τὴν ψυχρότητα ἔτι εἶναι ὅπερ ἦν πῦρ καὶ ψυχρόν ἀληθῆ ἔφη λέγεις ἔστιν ἄρα ἦ δ᾽ ὅς περὶ ἔνια τῶν τοιούτων ὥστε μὴ μόνον αὐτὸ τὸ εἶδος ἀξιοῦσθαι τοῦ αὑτοῦ ὀνόματος εἰς τὸν ἀεὶ χρόνον ἀλλὰ καὶ ἄλλο τι ὃ ἔστι μὲν οὐκ ἐκεῖνο ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν ἀεί ὅτανπερ ᾖ ἔτι δὲ ἐν τῷδε ἴσως ἔσται σαφέστερον ὃ λέγω τὸ γὰρ περιττὸν ἀεί που δεῖ τούτου τοῦ ὀνόματος τυγχάνειν ὅπερ νῦν λέγομεν ἢ οὔ πάνυ γε ἆρα μόνον τῶν ὄντωνmdashτοῦτο γὰρ ἐρωτῶmdashἢ καὶ ἄλλο τι ὃ ἔστι μὲν οὐχ ὅπερ τὸ περιττόν ὅμως δὲ δεῖ αὐτὸ μετὰ τοῦ ἑαυτοῦ ὀνόματος καὶ τοῦτο καλεῖν ἀεὶ διὰ τὸ οὕτω πεφυκέναι ὥστε τοῦ περιττοῦ μηδέποτε ἀπολείπεσθαι λέγω δὲ αὐτὸ εἶναι οἷον καὶ ἡ τριὰς πέπονθε καὶ ἄλλα πολλά σκόπει δὲ περὶ τῆς τριάδος ἆρα οὐ δοκεῖ σοι τῷ τε αὑτῆς ὀνόματι ἀεὶ προσαγορευτέα εἶναι καὶ τῷ τοῦ περιττοῦ ὄντος οὐχ ὅπερ τῆς τριάδος ἀλλ᾽ ὅμως οὕτως πέφυκε καὶ ἡ τριὰς καὶ ἡ πεμπτὰς καὶ ὁ ἥμισυς τοῦ ἀριθμοῦ ἅπας ὥστεοὐκ ὢν ὅπερ τὸ περιττὸν ἀεὶ ἕκαστος αὐτῶν ἐστι περιττός καὶ αὖ τὰ δύο καὶ τὰ τέτταρα καὶ ἅπας ὁ ἕτερος αὖ στίχος τοῦ ἀριθμοῦ οὐκ ὢν ὅπερ τὸ ἄρτιον ὅμως ἕκαστος αὐτῶν ἄρτιός ἐστιν ἀεί συγχωρεῖς ἢ οὔ

184

Para analisar a passagem do Feacutedon eacute necessaacuterio relembrar alguns pontos

Primeiro de que a Forma se relaciona com outros entes sejam eles entes sensiacuteveis ou

mesmo outras Formas Quando uma Forma tem relaccedilatildeo com um ente sensiacutevel e o ente

sensiacutevel nesta relaccedilatildeo reteacutem (ἔχει) uma propriedade (οὐσία) chamamos isso de

participaccedilatildeo Antes foi visto que um ente pode possuir uma propriedade e em outro

momento natildeo mais a possuir quando isto acontece dizemos participaccedilatildeo atraveacutes do

termo μεταλαμβάνω

Contudo o sentido de participaccedilatildeo aferido no Feacutedon (130d-104b) eacute outro

Eacute sabido que em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo agravequilo que participa da Forma

possui (ἔχειν) ou melhor agarra (λαμβάνειν) uma propriedade (ὀυσια) em razatildeo da

participaccedilatildeo Viu-se que um ente pode vir a tornar-se retentor de um predicado caso venha

a ser (γίγνεται) participante da Forma e pode muito bem natildeo reter mais o predicado caso

a participaccedilatildeo cesse Entretanto eacute possiacutevel pensar em alguma participaccedilatildeo que jamais

cesse apontando uma propriedade tatildeo duradoura quanto a proacutepria existecircncia essencial do

ente

De antematildeo este tipo de participaccedilatildeo seria impossiacutevel pois os entes

sensiacuteveis mutaacuteveis que satildeo jamais se conservam idecircnticos nem a si mesmos e nem em

relaccedilatildeo aos outros (Feacutedon 78a-79b) Tal mutabilidade poderia muito bem indicar que

nenhum tipo de participaccedilatildeo poderia se dar eternamente ndash ou necessariamente enquanto

o proacuteprio participante existisse

O que se apresenta entretanto no Feacutedon (130d-104b) eacute outro tipo de relaccedilatildeo

necessaacuteria e eterna em que algo que eacute diferente da Forma da qual participa conserva

durante toda a sua existecircncia a relaccedilatildeo que haacute com tal diferente Forma Assim sendo um

ente seria enquanto existente retentor de um predicado x por participar de uma Forma

X Forma esta a qual eacute totalmente divergente do ente De tal maneira um ente que

relaciona com a Forma e possui dela propriedades predicados pode se conservar durante

toda sua existecircncia retentor de determinada propriedade nunca apanhando (λαμβάνον)

mas sempre a possuindo (ἔχει) e nunca largando (ἀφιὲν) Assim seria necessaacuterio dizer

que ele eacute (ἐστιν) belo justo bom ou quaisquer coisas que seja por participar da Forma

e natildeo eacute possiacutevel dizer que ele se tornou (γίγνεται) belo justo bom (ou quaisquer

πῶς γὰρ οὔκ ἔφη

185

predicados cabiacuteveis) pois se ele se tornou eacute necessaacuterio afirmar que antes natildeo era

Contudo desde sua existecircncia sempre foi retentor de tal predicado

Certamente eacute possiacutevel pensar que justo belo e bom satildeo predicados

transitoacuterios podendo assim um item se tornar justo belo ou bom e em algum momento

natildeo o ser mais Natildeo pensamos aqui a possibilidade de algum ente seja justo

essencialmente e participe da justiccedila sem nunca a agarrar mas sendo justo por possuir a

justiccedila17

Como exemplos Soacutecrates apresenta o caso do fogo que enquanto existir seraacute

quente Se natildeo for mais quente natildeo existe e natildeo eacute mais fogo A neve enquanto neve eacute

fria e se natildeo for mais fria natildeo seraacute mais neve O nuacutemero trecircs eacute iacutempar e natildeo pode acontecer

de existir um trecircs natildeo iacutempar e que seja par

Entretanto os exemplos dados por Soacutecrates divergem acerca do objeto de que

tratam No primeiro caso a neve e o fogo ambos satildeo entes sensiacuteveis que podem ser

captados pela senso-percepccedilatildeo De tal modo mesmo que estes entes sensiacuteveis nunca

permaneccedilam idecircnticos a si mesmos e nem aos outros (Feacutedon 78a-79b) eles tecircm um tipo

de participaccedilatildeo que permanece enquanto permanece a proacutepria existecircncia do ente a neve

enquanto a neve (χιόνα) deveraacute possuir (ἔχει) o predicado frio (ψυχροῦ) sob pena de natildeo

mais existir enquanto neve caso a participaccedilatildeo cesse o fogo (τὸ πῦρ) por sua vez deveraacute

ser sempre quente (θερμόν) sob pena de natildeo ser mais fogo se a participaccedilatildeo cessar Natildeo

caberaacute de maneira alguma agrave neve ser quente ndash uma vez que natildeo existiraacute mais ndash e nem

caberaacute ao fogo ser frio Estas participaccedilotildees embora se deem entre entes mutaacuteveis duram

enquanto existir o ente

Todavia distinto eacute o caso do nuacutemero trecircs uma vez que trecircs natildeo parece ser um

ente um ente sensiacutevel Pensa-se duas maneiras de entender o numeral trecircs (i) ou bem trecircs

eacute predicado de algo (eg Soacutecrates eacute trecircs por possuir trecircs partes cabeccedila tronco e

membros) ou (ii) bem trecircs poderaacute ser uma Forma abstrata que confere predicados Igual

seria o caso do Um do Cinco e de demais nuacutemeros Se pensarmos o primeiro ponto (i)

deveraacute haver uma Forma Triacuteade que possibilite que algo seja trecircs pois todos os

17 Platatildeo de fato natildeo deixa de investigar como seria possiacutevel que um ente participe (μετέχει) de uma determinada Forma que lhe confesse um predicado virtuoso tal como o exemplo da Justiccedila usado acima De fato tal relaccedilatildeo eacute objeto de investigaccedilatildeo no livro II da Repuacuteblica (359c em diante) A investigaccedilatildeo de Soacutecrates e Glauco eacute sobre a possibilidade de haver um homem justo de tal maneira que continuasse justo mesmo de posse de ilimitado poder alegoricamente apresentado como anel de Giges ou de quaisquer peripeacutecias que podem se dar no tempo Portanto a busca de Soacutecrates e Glaacuteuco no livro II da Repuacuteblica eacute por um tipo de participaccedilatildeo (μετέχειν) neste sentido um homem que eacute (ἐστιν) justo e jamais poderaacute vir a ser (γίγνεται) injusto

186

predicados precisar tem uma Forma para haver o predicado Todo trecircs portanto eacute iacutempar

Poreacutem iacutempar eacute um predicado entatildeo haacute a Forma Iacutempar que lhe confere predicado Assim

sendo todo predicado trecircs deveraacute participar do Iacutempar e ser predicado de iacutempar Logo

todo item que tiver o predicado de trecircs deveraacute tambeacutem ser iacutempar pois o predicado trecircs

participa necessariamente (μετέχει) do Iacutempar Sob o segundo aspecto (ii) para pensar

tem-se que Trecircs eacute uma Forma abstrata que confere predicado trecircs aos entes que dela

participa poreacutem eacute necessaacuterio assumir que Trecircs eacute iacutempar e eacute iacutempar por participar do Iacutempar

Nesta participaccedilatildeo entre Formas Trecircs (ou Triacuteade) que participa de Iacutempar se faz

necessaacuterio dizer que todo item que participa do Trecircs deveraacute ser iacutempar porque a proacutepria

Triacuteade participa do Iacutempar

Neste tipo de participaccedilatildeo ndash sendo tomado como objeto o fogo a neve o trecircs

etc ndash o item eacute [εἶναι] ldquojuntamente comrdquo [μετά] o possuir [ἔχει] a propriedade [οὐσία]

denominado a partir da Forma e natildeo se torna [γίγνεσθαι] algo ldquojuntamente comrdquo [μετά]

o apanhar [λαμβάνω] daquela propriedade

Atraveacutes da anaacutelise dos passos 155e-156a do Parmecircnides eacute perceptiacutevel que

μεταλαμβάνω eacute associaacutevel a uma participaccedilatildeo mutaacutevel que ora pode ser e pode natildeo ser

E μεταλαμβάνω eacute apresentado para resolver o problema que traz outro tipo de participar

[μετέχω] onde o ente eacute por participar na Forma e natildeo eacute possiacutevel se tornar porque ou bem

participa ou bem natildeo participa e natildeo pode participar natildeo participando e nem mesmo natildeo

participando participar Assim μετέχω natildeo explica todos os casos de relaccedilotildees entre

Formas e entes sensiacuteveis pois existem as relaccedilotildees que iniciam e cessam que se dizem

atraveacutes de μεταλαμβάνω O participar de μετέχω eacute o participar no qual o ente eacute [εἶναι]

por participar da Forma e sendo natildeo pode natildeo ser e definitivamente possui [ἔχει] a

propriedade [οὐσία]

Por analogia eacute possiacutevel perceber que este eacute o caso 103d-104b no Feacutedon pois

o numeral trecircs juntamente com o possuir [μετέχει] a propriedade [οὐσία] do Iacutempar eacute

[εἶναι] trecircs E natildeo pode ele largar [ἀφει] o iacutempar pois assim deixaria de existir e de ser

trecircs O mesmo ocorre com a neve e o frio o fogo e o calor

Mesmo outros pesquisadores de Platatildeo parecem ter se deparado com o

problema Trindade Santos em sua introduccedilatildeo ao Sofista revisa concepccedilotildees de

participaccedilatildeo presentes em Platatildeo Dentre elas a do Feacutedon No texto eacute possiacutevel ler

Por exemplo no caso da alma os predicados ldquomotalimportalrdquo satildeo atribuiacutedos em funccedilatildeo da participaccedilatildeo da alma noutra entidade que a inclui (seja ldquo a Forma da Vidardquo Feacuted 106d vide 103a-105e) Todavia

187

no caso da atribuiccedilatildeo da ldquoalturapequenezrdquo a Siacutemias esses predicados satildeo atribuiacutedos pela comparaccedilatildeo de altura de Siacutemias com as de Soacutecrates e de Feacutedon o que implica legitimar a predicaccedilatildeo de acordo com a observaccedilatildeo casuiacutestica da variaccedilatildeo relacional

Sendo ldquoXrdquo diferente de ldquoalgordquo (ou o ldquoeacuterdquo expressaria uma identidade) ldquoalto temrdquo (pelo menos) momentaneamente um ldquoxrdquo mediante a participaccedilatildeo nele da Forma ldquoXrdquo No entanto contextos relacionais (ldquox tem algordquo agora mas natildeo antes ou depois para uns mas natildeo para outros em relaccedilatildeo a uns mas uma propriedade ldquoxrdquo a um sensiacutevel depende de factores externos excepto no caso de se tratar de uma propriedade essencial de ldquoalgo ser xrdquo (102b-c) (SANTOS 2011 p139)18

Certamente vemos o assunto de outra maneira que natildeo a de Trindade Santos

ao pensar que a retenccedilatildeo de uma propriedade poder-se-ia ser causada por factores

externos que parecem ser simplesmente frutos da contingecircncia Vemos assim pois

pensamos que natildeo eacute por outro motivo se natildeo a participaccedilatildeo na Forma que um ente poderaacute

vir-a-ser portador de um predicado (Feacutedon 100c-e) Entretanto o que Trindade Santos

natildeo mencionou ndash mas certamente tinha consciecircncia soacute natildeo o fez uma vez que natildeo era o

escopo do trabalho o qual estava a realizar no Sofista ndash eacute que sua distinccedilatildeo entre

participaccedilatildeo que apresenta uma propriedade essencial e uma participaccedilatildeo que se daacute

juntamente com fatores externos (ou seja fatores temporais ou seja uma participaccedilatildeo

que reteacutem predicados participando do tempo 19) eacute exatamente esta distinccedilatildeo traccedilada entre

μετέχειν e μεταλαμβάνειν

Eacute interessante apresentar que esta distinccedilatildeo eacute corrente em todo diaacutelogo

Parmecircnides sendo respeitada na maioria dos casos As uacutenicas exceccedilotildees nas quais

μετέχειν e εἶναι aparecem juntas no diaacutelogo satildeo

1 Na fala de Soacutecrates em 128a9 Soacutecrates associa μετέχειν a εἶναι Eacute importante

entatildeo lembrar que Soacutecrates eacute apresentado no diaacutelogo e em alguns outros

momentos como um personagem ainda inseguro acerca da relaccedilatildeo entre Formas

e participantes

2 Em 155c-d μετέχειν eacute associado a εἶναι Este eacute o uacutenico passo que poderia

apresentar quaisquer problemas agrave tese dos dois sentidos de participaccedilatildeo pela

presenccedila de μετέχειν e εἶναι Mesmo que um haacutebil argumentador possa utilizar

18 SANTOS 2011 Introduccedilatildeo ao Sofista EM PLATAtildeO Sofista Traduccedilatildeo de Henrique Murachco

Juvino Maia Jr Joseacute Gabriel Trindade dos Santos Introduccedilatildeo e apecircndice de Joseacute Gabriel Trindade Santos

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2011

19 Cf PLATAtildeO Parmecircnides 155e-156ordf

188

essa passagem para ir contra a presente tese acredita-se que natildeo haveraacute vantagem

alguma pois natildeo eacute exequiacutevel pensar contraacuterio a presente tese Na passagem ndash

como em muitos momentos da segunda parte do diaacutelogo ndash o Um estaacute sendo

associado ao Ser ou desassociado com o intuito de ser objeto de investigaccedilatildeo

Em 155c-d a uacutenica associaccedilatildeo eacute que se diz que o tempo participa do um que eacute e

do tornar-se mais velho e mais jovem (χρόνου μετέχει τὸ ἓν πρεσβύτερόν τε καὶ

νεώτερον γίγνεσθαι) e natildeo aferimos quaisquer maneiras de que a passagem possa

efetivamente trazer problemas agrave tese

3 Nas demais apariccedilotildees dos termos μεταλαμβάνω no Parmecircnides ou bem surge

acompanhado do termo γίγνεσθαι ou bem natildeo eacute acompanhado de nenhum tempo

que possa associaacute-lo ao ldquoserrdquo ou ao ldquotornar-serdquo Semelhantemente μετέχω ou bem

iraacute surgir ao lado de εἶναι ou natildeo indicaraacute o ldquoserrdquo ou o ldquotornar-serdquo Interpretamos

que quando natildeo indicado a associaccedilatildeo a ldquovir-a-serrdquo ou ao ldquoserrdquo natildeo eacute interessante

ao argumento trabalhado pelos personagens

Visto isso eacute possiacutevel concluir que haacute uma distinccedilatildeo entre μετέχω e

μεταλαμβάνω no Parmecircnides Essa distinccedilatildeo tal qual descrita eacute concordante com a que

Cornford traccedila em apenas quatro linhas20 Natildeo tatildeo soacute esta distinccedilatildeo reverbera em outros

diaacutelogos pelo menos no Feacutedon 130d-104b

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

CORNFORD FM Plato and the Parmenides Parmenidesrsquo Way of Truth and Platorsquos

Parmenides translated with an introduction and a running commentary London

Routledge amp Kegan Paul 1939

LIDDEL H G SCOTT R Greek-English Lexicon - With a revised suplement Oxford

Clarendo Press 1996

PLATAtildeO Parmecircnides Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maura Iglesias e Fernando

Rodrigues Rio de Janeiro Editora PUC-Rio e Ediccedilotildees Loyola 2003

20 Cf CORNFORD F M 1939 p 69

189

_______ Feacutedon Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem EDUFPA 2011

_______ Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira 5 ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbbenkian 1949

_______ Sofista Traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr Joseacute Gabriel

Trindade dos Santos Introduccedilatildeo e apecircndice de Joseacute Gabriel Trindade Santos Lisboa F

Calouste Gulbenkian 2011

SCOLNICOV Samuel Platorsquos Parmenides Translated with Introduction and commentary Berkley Los Angeles London University of Caloforn

SOBRE O TEMPO UMA QUESTAtildeO FUNDAMENTAL

Paulo Seacutergio Calvet Ribeiro Filho1

RESUMO O texto aborda alguns desdobramentos acerca da questatildeo fundamental ldquoque eacute o tempordquo Seratildeo contempladas1) a interpretaccedilatildeo de Jeanne Marie Gagnebin acerca do Livro XI das Confissotildees de Agostinho apresentada na obra Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria 2) trecircs palestras de Jorge Luiacutes Borges a respeito do tema chamadas ldquoO livrordquo ldquoO tempordquoe ldquoA imortalidaderdquo inseridas em Cinco visotildees pessoais 3) as ideias apresentadas no ensaio de Giorgio Agamben intitulado ldquoO que eacute o contemporacircneordquo 4) uma conferecircncia de Martin Heidegger chamada ldquoO Conceito de tempordquo Palavras-chave Tempo Finitude Contemporacircneo ABSTRACT The text approaches some deployments about the fundamental question ldquowhat is timerdquo There will be contemplated 1) The interpretation of Jeanne Marie Gagnebin about the book XI of Confessions by Augustine presented in the work Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria 2) Three Jorge Luis Borgesrsquo lectures related to this theme entitled ldquoO livrordquo ldquoO tempordquo and ldquoA imortalidaderdquo inserted in Cinco visotildees pessoais 3) The ideas presented in the essay of Giorgio Agamben entitled ldquoO que eacute contemporacircneordquo 4) one conference of Martin Heidegger called ldquoO conceito do tempordquo Keywords Time Finiteness Contemporary

Introduccedilatildeo

Haacute um problema insanaacutevel mas fundamental Muitos filoacutesofos se intrigaram

com ele aleacutem de poetas e compositores2 cineastas e escritores Cada um interage com

ele agrave sua maneira nos bares muito se fala em falta de tempo nos sindicatos a jornada

de trabalho eacute debatida nas escolas e universidades discutem a carga horaacuteria o tempo

devido a cada disciplina professores muacutesicos cuidadores muitas vezes satildeo pagos por

hora

Contudo o problema fundamental natildeo se limita a este aspecto menor ndash o vieacutes

econocircmico da questatildeo ldquoTempo eacute dinheirordquo Neste velho ditado estaacute impliacutecita uma

1 Mestre em filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro e graduando em histoacuteria pela Universidade Estadual do Maranhatildeo 2 Como natildeo lembrar de ldquoOraccedilatildeo ao tempordquo de Caetano Veloso Ou mesmo da angustiante ldquoSinal fechadordquo de Paulinho da Viola

191

maneira de concebecirc-lo curta e miacuteope Sob este acircngulo na verdade a indagaccedilatildeo essencial

nem mesmo fora colocada Tal frase feita eacute como uma daquelas respostas sem pergunta

um clichecirc enfim

Sobre o que trataraacute esse escrito Sobre uma das questotildees mais pungentes que

jaacute foram elaboradas e que pode ser colocada assim que eacute o tempo Tem-se nada mais

nada menos do que toda a tradiccedilatildeo ocidental transpassada por respostas Algumas satildeo

dignas de nota Deter-se-aacute aqui apenas na anaacutelise de algumas delas

De iniacutecio seraacute abordada a interpretaccedilatildeo de Jeanne Marie Gagnebin acerca do

Livro XI das Confissotildees de Agostinho Optou-se por contemplaacute-la por ela fazer uma

leitura original de um autor por sua vez original Em seguida seratildeo analisadas trecircs

palestras de Jorge Luiacutes Borges aqui expostas por ele fazer uma espeacutecie de retrospectiva

das respostas mais famosas sobre a questatildeo que aqui serve de guia aleacutem de ter uma

posiccedilatildeo peculiar como se veraacute Em um terceiro momento tal temaacutetica seraacute desdobrada e

seraacute trazido agrave baila um pensador contemporacircneo que reflete a respeito do proacuteprio conceito

de contemporacircneo Giorgio Agamben Sua indagaccedilatildeo eacute urgente e por isso figuraraacute neste

trabalho Por fim a conferecircncia O Conceito de tempo de Martin Heidegger seraacute

analisada

O Agostinho de Jeanne Marie Gagnebin

Agrave quarta aula de um conjunto de sete Jeanne Marie Gagnebin nomeia Dizer

o tempo3 Ali a autora se ateacutem entre outras coisas agrave famosa reflexatildeo de Agostinho

presente no Livro XI de suas Confissotildees Partindo de uma interpretaccedilatildeo de Paul Ricouer

afirma a autora que a novidade que o filoacutesofo de Hipona apresenta eacute uma concepccedilatildeo

diferenciada sobre a temporalidade qual seja o tempo eacute inseparaacutevel da interioridade

psiacutequica

Destarte tem-se uma inovaccedilatildeo pois esta resposta se opotildee agraves tentativas da

filosofia antiga principalmente Platatildeo e Aristoacuteteles que definiam o tempo em funccedilatildeo do

movimento dos corpos externos

Tempo como distentio animi ndash distensatildeo da almado espiacuterito Por mais que

Agostinho um religioso fale muitas vezes em Eternidade sua inquietaccedilatildeo e sua proposta

satildeo eminentemente seculares pois

3 GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria p 67-79

192

Ao propor uma definiccedilatildeo de tempo como inseparaacutevel da interioridade psiacutequica Agostinho abre um novo campo de reflexatildeo o da temporalidade da nossa condiccedilatildeo especiacutefica de seres que natildeo soacute nascem e morrem ldquonordquo tempo mas sobretudo que sabem que tem consciecircncia dessa sua condiccedilatildeo temporal e mortal4

A partir desse ponto de vista a temporalidade aparece como atributo da alma5

que se sabe e se percebe assim e por isso mesmo se sente fustigada pela vontade de

querer saber a respeito da natureza de sua finitude

O problema fundamental em Agostinho vai aleacutem pois este passa a se

questionar inclusive a respeito da linguagem Jeanne Marie destaca dois

posicionamentos Ao primeiro chama de ldquoreflexatildeo criacutetica sobre nossa linguagemrdquo

(GAGNEBIN 2005 p 70) Trata-se de uma problematizaccedilatildeo presente desde o Livro X

das Confissotildees que afirma que a propensatildeo quase natural de falar do tempo em termos

espaciais atrapalha a reflexatildeo sobre sua natureza

Ao segundo posicionamento a autora faz menccedilatildeo ao que chama de

ldquoargumentaccedilatildeo pragmaacuteticardquo (idem) Nela Agostinho natildeo critica apenas certas categorias

linguiacutesticas mas sim o uso que se faz da linguagem Nesse sentido ao pensar o tempo

se pensa quase inevitavelmente a respeito da linguagem

Assim no correr de seu pensamento o autor de Confissotildees

natildeo tenta mais falar de fora sobre o objeto tempo mas sim descrever ladeando com o pensar o pensar o proacuteprio pensamento nossa experiecircncia do tempo Ora essa se diz natildeo em termos espaciais objetivos mas em termos ativos de esticamento de dilaceraccedilatildeo de tensatildeo entre o lembrar e o esperar6

Ressalta a autora partindo das Confissotildees que nossa experiecircncia do tempo

estaacute associada agrave experiecircncia narrativa e esta se apresenta como tensatildeo existente entre o

lembrar (tensatildeo entre o presente do presente e o presente do passado) e o esperar (tensatildeo

entre o presente do presente e o presente do futuro) O que significa que o problema do

tempo sempre se desdobra no problema do dizerescrever E esta eacute uma leitura original

de Agostinho

Jeanne Marie Gagnebin ao final da aula intitulada Dizer o tempo parece estar

4GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria p 68 5 Quanto agrave ideacuteia de alma em Santo Agostinho eacute preciso ter em vista que se trata pelo menos neste momento de suas reflexotildees a respeito do tempo de um princiacutepio psiacutequico que se desdobra em temporalidade O que tem como implicaccedilatildeo que a alma humana justamente por experimentar sua finitude atraveacutes do tempo distingue-se de Deus que eacute eterno 6GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteriap 75

193

inquieta e reticente Afirma que hoje natildeo se pode mais acreditar que ldquoo Outro do nosso

tempo seja a eternidade divinardquo 7 Natildeo eacute possiacutevel furtar-se contudo de refletir a respeito

de Confissotildees

Que se passe agora a outra resposta ndash a de um argentino que tem uma

perspectiva sui generis acerca do tempo e inclusive da imortalidade

Jorge Luiacutes Borges ndash o livro o tempo e a imortalidade

Se o uso corrente da linguagem natildeo pode dar conta de certos temas como

acima fora exposto a partir do Agostinho de Jeanne Marie Gagnebin existe um

instrumento que pode lidar bem com esta limitaccedilatildeo poetizando-a estendendo-a A

interioridade psiacutequica da temporalidade humana pode ter seus passos ldquoregistradosrdquo e

podem ser garantidas agraves geraccedilotildees vindouras reflexotildees seculares atraveacutes de seu uso e

usufruto

O livro eacute esse instrumento singular quase maacutegico Assim falou

Jorge Luiacutes Borges Este trecho teraacute por como base trecircs palestras ndash chamadas O livro O

tempo e A imortalidade ndash proferidas em junho de 1978 na Universidade de Belgrano

quando fora inaugurada8

O que diz a respeito do tempo Primeiramente que se pode prescindir do

espaccedilo mas natildeo do tempo9 Para dar seguimento a defesa deste enunciado propotildee um

experimento mental ndash sugere que se imagine um mundo onde soacute existisse um uacutenico

sentido o da audiccedilatildeo Ali tudo estaria transformado inclusive a linguagem Ali se teria

esquecido o espaccedilo mas o tempo nunca

Por isso o problema aqui tratado eacute para Borges um problema essencial ldquo()

quero dizer que natildeo podemos prescindir do tempo Nossa consciecircncia estaacute continuamente

passando de um estado a outro e isso eacute o tempo uma sucessatildeordquo (idem)

Ali apresentado entatildeo ainda a partir de uma interioridade psiacutequica Vale

frisar ademais que esta sucessatildeo defendida natildeo eacute mera sucessatildeo linear homogecircnea mas

interior O problema do tempo partindo do ponto de vista adotado pelo referido autor

natildeo pode ser resolvido todavia podem ser revistas as soluccedilotildees apresentadas

Partindo da soluccedilatildeo de Platatildeo ndash que afirma que o tempo eacute a imagem imoacutevel

7GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteriap 77 8 BORGES Cinco visotildees pessoais p 13-32 e 61-73 9BORGES Cinco visotildees pessoais p 62

194

da eternidade ndash Borges acaba afirmando que a eternidade eacute uma de nossas mais belas

invenccedilotildees Em seguida afirma que Aristoacuteteles tambeacutem errara pois ldquoTambeacutem eacute um erro

dizer como Aristoacuteteles que o tempo eacute a medida do movimento pois o movimento

acontece no tempo e natildeo pode explicar o tempordquo10 Isto quer dizer que a temporalidade

natildeo pode ser refeacutem explicativa do movimento mas deve-se dar o contraacuterio Adiante deter-

se-aacute mais nesta problemaacutetica

Ainda pouco se afirmou na esteira do argentino que a indagaccedilatildeo essencial

natildeo pode ser resolvida O interessante eacute perceber que mesmo sem se dar conta ele aponta

uma soluccedilatildeo Onde ele a encontra Na imortalidade

Antes que o leitor contemporacircneo se contorccedila eacute importante ressaltar que

Borges nega uma imortalidade individual ldquoEu natildeo quero continuar sendo Jorge Luiacutes

Borges quero ser outra pessoa Espero que minha morte seja total espero morrer no corpo

e na almardquo 11

Fica evidente que se trata de uma imortalidade transubjetiva Nomeada aqui

dessa forma por ir aleacutem da pessoalidade visto que ldquocada um de noacutes eacute de alguma forma

todos os homens que morreram antesrdquo 12 Eacute nesse sentido especiacutefico que o homem eacute

imortal ldquoO importante eacute a imortalidade Essa imortalidade concretiza-nos nas obras que

deixamos na memoacuteria que algueacutem deixa nos outrosrdquo13 Assim ao opor uma imortalidade

individual a uma que chama coacutesmica Borges fornece uma concepccedilatildeo original uma

resposta original agrave indagaccedilatildeo que eacute o tempo

Por isso em O livro afirma que este eacute uma extensatildeo de nossa memoacuteria e de

nossa imaginaccedilatildeo14 Aleacutem do que ldquoo livro eacute lido para eternizar a memoacuteriardquo 15 Percebe-se

que este instrumento singular ocupa um papel relevante no drama dessa imortalidade

transubjetiva

Agamben e o contemporacircneo in between

Uma pergunta cabe em outra tal como uma aacutervore imensa cabe no ponto da

semente Assim a partir de ldquoque eacute o tempordquo Giorgio Agamben faz germinar ldquoDe quem

10BORGES Cinco visotildees pessoais p 66 11BORGES Cinco visotildees pessoais p 23 12BORGES Cinco visotildees pessoais p 31 13Idem 14BORGES Cinco visotildees pessoais p 13 15BORGES Cinco visotildees pessoais p 19

195

e do que somos contemporacircneos () o que significa ser contemporacircneordquo16

Eacute preciso frisar logo de saiacuteda que natildeo se trata apenas de estar ldquocom o tempordquo

de ser coetacircneo Natildeo se trata apenas do tempo presente Natildeo eacute mera inserccedilatildeo numa eacutepoca

Nesse sentido o autor italiano segue uma indicaccedilatildeo de Nietzsche presente na Segunda

consideraccedilatildeo intempestiva texto de 1874 Orientaccedilatildeo que atravessaraacute toda sua reflexatildeo que

afirma em suma que o pertencimento verdadeiro a uma eacutepoca estaacute relacionado natildeo a

uma concordacircncia plena com as opiniotildees ali vigentes mas sim a certa dose de

inatualidade17 Explica-se para ser contemporacircneo segundo o Nietzsche lido por

Agamben eacute preciso aderir e tomar distacircncia em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio tempo o que se

daacute pari passu O contemporacircneo estaacute in between por assim dizer

O bom poeta entatildeo segundo o autor italiano manteacutem o olhar fixo no seu

tempo e tambeacutem se torce em busca do passado o que para ele eacute uma atitude

eminentemente contemporacircnea Dessas premissas brota uma segunda definiccedilatildeo ldquoo

contemporacircneo eacute aquele que manteacutem fixo o olhar no seu tempo para nele perceber natildeo

as luzes mas o escurordquo 18

Perceber o escuro natildeo eacute apenas vislumbrar vazios natildeo eacute inatividade ndash notar

o escuro eacute um exerciacutecio que vai buscar as natildeo-explicaccedilotildees pois todas as eacutepocas tecircm suas

luzes e penumbras Levar isso em conta exige coragem eacute uma tarefa Os contemporacircneos

satildeo raros esses exegetas da dimensatildeo temporal em que estatildeo inseridos esses meacutedicos

forenses que catam vestiacutegios de tempos idos esses ldquobioacutegrafosrdquo que se inquietam com a

vida mesma de seu proacuteprio presente contudo transcendendo-o no sentido em que

extrapolam os limites temporais

Para que essa tarefa essa exigecircncia seja executada o contemporacircneo tem

que se dar conta que ldquoa chave do moderno estaacute escondida no imemorial e no preacute-

histoacutericordquo19 Isto eacute para interagir com seu tempo modificando-o eacute preciso ter uma atitude

especiacutefica para com o passado eacute preciso trazecirc-lo agrave baila Textos quadros obrasmuacutesicas

poemas ndash natildeo importa de onde partam ndash devem fomentar o pensar contemporacircneoSer

contemporacircneo eacute permanecer in between numa interzone temporal

Heidegger e o conceito de tempo

16AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 57 17AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 58 18AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 62 19AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 70

196

Para estudantes e professores da Faculdade de Teologia da Universidade de

Marburgo Martin Heidegger profere em 25 de julho de 1924 a conferecircncia intitulada O

conceito de tempo

Tendo em vista seu puacuteblico comeccedila sua exposiccedilatildeo justificando que seu

posicionamento em relaccedilatildeo ao tempo natildeo tem por baliza a eternidade pois ldquose o filoacutesofo

se interroga acerca do tempo eacute porque estaacute decidido a compreender o tempo a partir do

tempordquo 20 Isto eacute o filoacutesofo deve tentar compreender essa questatildeo cabal a partir de sua

proacutepria dimensatildeo temporal natildeo tendo por base a eternidade Por isso a conferecircncia natildeo

assume uma conotaccedilatildeo teoloacutegica

Quando acima fora mencionado Jorge Luiacutes Borges a quem o tempo natildeo pode

ser refeacutem explicativo do movimento fora dito que o argentino se opunha assim a uma

concepccedilatildeo aristoteacutelica fundada no movimento Fora dito tambeacutem um pouco antes disso

que Agostinho jaacute se opusera a essa concepccedilatildeo da filosofia antiga inaugurando uma esfera

de reflexatildeo que se baseara numa interioridade psiacutequica da temporalidade

Pois bem Heidegger vai mais longe em suas consideraccedilotildees pois coloca boa

parte da tradiccedilatildeo ocidental de Aristoacuteteles a Einstein21 sob a eacutegide do conceito que ele

chama ldquotempo da natureza e do mundordquo22 Partindo desse enfoque o filoacutesofo alematildeo diz

ser problemaacutetica esta perspectiva visto que nela se origina uma reflexatildeo falseada na

nascente

O tempo natildeo precisa ser definido pelo homem porquanto o homem eacute tempo

natildeo pode ser circunscrito numa simples mediccedilatildeo porque ao tomar o tempo apenas como

medida o homem se afasta de si mesmo e perde sua autenticidade O reloacutegio neste

sentido eacute o objeto que o transforma em objeto distanciando o homem de seu modo

proacuteprio de ser

Heidegger talvez se aproxime de Henry David Thoreau quando este afirma

que ldquoO homem se tornou o instrumento de seus instrumentosrdquo23 De fato o homem tem

20HEIDEGGER O conceito de tempop 21 21Tal afirmaccedilatildeo nos pareceu de iniacutecio duvidosa Contudo refizemos algumas leituras e encontramos a seguinte assertiva de um fiacutesico que reafirma a tese de Heidegger ldquoDe acordo com a teoria da relatividade o espaccedilo natildeo eacute tridimensional e o tempo natildeo constitui uma entidade isolada Ambos acham- se intimamente vinculados formando um continuum quadridimensional o lsquoespaccedilo-temporsquo Na teoria da relatividade portanto nunca podemos falar acerca do espaccedilo sem falar acerca do tempo e vice-versardquo CAPRA O Tao da fiacutesica p 54 22HEIDEGGER O conceito de tempo p 25 23 THOREAU Walden and Civil Disobedience p 29

197

se transformado em instrumento de seus instrumentos A humanidade estaacute como refeacutem

do reloacutegio e da concepccedilatildeo que afirma que o tempo eacute homogecircneo um amontoado de

porccedilotildees iguais entre si e por isso mesmo indiferentes umas agraves outras

ldquoO reloacutegio indica o tempordquo 24 natildeo eacute ele mesmo o tempo Este na verdade

por marcar o instante acaba ldquopondo no mesmo sacordquo todos os outros momentos

homogeneizando-os

Afinal qual seria o caminho apontado por Heidegger para que se fuja ou

melhor para que se enfrente esta concepccedilatildeo do tempo da natureza e do mundo Segundo

ele soacute se pode colocar corretamente a questatildeo do tempo se se puser no jogo isto eacute se se

partir do proacuteprio horizonte da finitude25 Por ser o homem finito e por saber mesmo sem

querer desta condiccedilatildeo acaba-se tendo abertura para colocar o problema neste acircmbito A

morte aponta essa possibilidade O que eacute ter-em-todo-caso a proacutepria morte Eacute o correr antecipativo do ser-aiacute para o seu tracircnsito enquanto possibilidade extrema e iminente ndash sabida com certeza e com completa indeterminabilidade ndash de si-mesmo O ser-aiacute enquanto vida humana eacute primordialmente ser- possiacutevel o ser da possibilidade do tracircnsito certo e no entanto indeterminado26

A morte neste sentido eacute como uma exigecircncia exigecircncia no sequestro

filosoacutefico que tira da quotidianidade A morte Heidegger eacute enfaacutetico ao afirmar estaacute

presente mesmo que natildeo se pense a respeito dela27 A morte eacute de certa forma condiccedilatildeo

fundante do modo de ser proacuteprio eacute partiacutecipe no Dasein

O homem soacute natildeo se tem tempo28porque se prende ao trivial ldquoNatildeo ter tempo

significa lanccedilar o tempo no presente reles do quotidianordquo 29

24HEIDEGGER O conceito de tempo p 27 25Aqui se aproxima em certa medida de Agostinho como jaacute expusemos Chegando a citaacute-lo inclusive 26HEIDEGGER O conceito de tempop 47 27Eacute interessante notar que Montaigne em pleno seacuteculo XVI jaacute se inquietava de uma maneira similar a de Heidegger ldquo() como eacute possiacutevel conseguirmos nos desfazer do pensamento da morte e que a cada instante natildeo nos pareccedila que ela nos agarra pela golardquo Ou ainda ldquoTiremos-lhe a estranheza [da morte] frequentemo-la acostumemo-nos com ela natildeo tenhamos nada de tatildeo presente na cabeccedila como a morte ()rdquo Ainda uma vez ldquoEacute incerto onde a morte nos espera aguardemo-la em toda parte Meditar previamente sobre a morte eacute meditar previamente sobre a liberdaderdquo MONTAIGNE Os ensaios uma seleccedilatildeo p 66 68 e 69 respectivamente Grifo nosso 28A conferecircncia fora proferida em 1924 e de laacute para caacute a exclamaccedilatildeo ldquoNatildeo tenho tempordquo estaacute voando cada vez mais de boca em boca em todos os lugares e setores Heidegger fora aliaacutes como em muitas vezes profeacutetico em relaccedilatildeo a algumas questotildees Natildeo eacute nem preciso dizer que ele chamou de teacutecnica estaacute vencendo nas querelas ideoloacutegicas do presente 29HEIDEGGER O conceito de tempo p 51

198

Somos o tempo mesmo isso eacute nossa condiccedilatildeo de ser Devemos pois evitar

que o tempo do reloacutegio impeccedila com que busquemos e vivenciemos o tempo em seu

sentido originaacuterio Por isso Heidegger nos momentos finais de sua conferecircncia

transforma a pergunta ldquoque eacute o tempordquo em ldquoquem eacute o tempordquo Somos

REFEREcircNCIAS

AGAMBEN Giorgio O que eacute o contemporacircneo Chapecoacute SC Argos 2009 BORGES Jorge Luiacutes Cinco visotildees pessoais Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2002 CAPRA Fritjof O Tao da fiacutesica Satildeo Paulo Cultrix 2006 ENDE Michael Momo e o senhor do tempo Satildeo Paulo Martins Fontes 1996 GAGNEBIN Jeanne Marie Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria Rio de Janeiro Imago 2005 HEIDEGGER Martin O conceito de tempo Lisboa Fim de Seacuteculo 1998 MONTAIGNE Michel de Os ensaios uma seleccedilatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 THOREAU Henry David Walden and Civil Disobedience United States of America Sterling Publishing Co 2012

ZARATUSTRA METACIacuteNICO

Rafael Rocha da Rosa1

RESUMO O objetivo deste artigo eacute cotejar a interpretaccedilatildeo foucaultiana sobre o cinismo com a criacutetica nietzschiana agrave cultura e seu projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores A partir de uma anedota sobre Dioacutegenes o ciacutenico Foucault desenvolve suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica tendo como ponto de partida o imperativo de transfigurar o valor da moeda Nessa tarefa eacute crucial a relaccedilatildeo que o autor estabelece entre moeda valores e normas posto que o cinismo efetivamente assume determinada posiccedilatildeo contra as convenccedilotildees diametralmente avessa aos haacutebitos e aos costumes sociais Haveria no cinismo um impulso destruidor de convencionalismos e das rotas culturais dominantes estabelecidas para e pela coletividade Assim a vida ciacutenica exprimiria um modo de viver transfigurando os valores e estilos de vida convencionais Portanto creio que haja uma feacutertil proximidade entre essas concepccedilotildees e o posicionamento filosoacutefico de Nietzsche com sua criacutetica agrave cultura e a afirmaccedilatildeo de uma transvaloraccedilatildeo dos valores Palavras-chave Cinismo Nietzsche Foucault Valor Cultura ABSTRACT The purpose of this article is to compare the foucaultian interpretation of cynicism with the Nietzschersquos critique of culture and his project of transvaluation of values From an anecdote on Diogenes the cynic Foucault develops his hypotheses about the true cynical life starting from the imperative to change the value of the currency In this task the relation that the author establishes between currency values and norms is crucial since cynicism effectively assumes a certain position against conventions diametrically averse to social habits and customs There would be in cynicism a destructive impulse to conventions and dominant cultural routes established for and by the collectivity Thus the cynical life would express a way of living transfiguring conventional values and lifestyles I therefore believe there is a fertile closeness between these conceptions and Nietzsches philosophical positioning his critique of culture and the affirmation of a revaluation of values Keywords Cynism Nietzsche Foucault Value Culture

Introduccedilatildeo

Ao abordar o tema da parresiacutea em A coragem da verdade Foucault encontra

no cinismo seu exemplo mais potente Entre os diversos exemplos utilizados pelo autor

no desenvolvimento de suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica destaco a famosa

1 Doutorando em Filosofia pela UERJ bolsista CAPES Contato rafael_rocha1yahoocombr

200

anedota sobre Dioacutegenes o Ciacutenico a respeito do imperativo de transfigurar o valor da

moeda Este ponto eacute rico de possibilidades interpretativas para o estabelecimento de um

viacutenculo entre o cinismo e o pensamento nietzschiano como a questatildeo da transvaloraccedilatildeo

de todos os valores2 malgrado as distinccedilotildees caracteriacutesticas de ambos

Creio que o filoacutesofo alematildeo interpretou alterou e agregou aspectos do

cinismo que seriam interessasses agrave elaboraccedilatildeo de seu proacuteprio pensamento o que o tornaria

herdeiro dessa corrente filosoacutefica Considerando o cinismo sob a oacutetica de Foucault

acredito que a principal personagem de Nietzsche Zaratustra possibilitaria essa chave de

leitura Nesse sentido o uso do prefixo grego meta cabe perfeitamente para nossos

propoacutesitos haja vista que eacute utilizado para indicar mudanccedila transformaccedilatildeo transposiccedilatildeo

Zaratustra seria um homem que vivenciaria na praacutetica as concepccedilotildees

filosoacuteficas de Nietzsche que passaria pelos processos patoloacutegicos do niilismo o

afastamento asceacutetico da cultura degenerada a afirmaccedilatildeo criadora de si a confecccedilatildeo de

novos valores e a sua difusatildeo para os homens superarem a condiccedilatildeo decadente Se

nenhum indiviacuteduo foi capaz ateacute entatildeo de passar pelas experiecircncias e pelos estaacutegios que

Nietzsche postula em sua filosofia o autor se viu obrigado a criar uma personagem que

tenha passado por esse percurso

Para compreendermos essa aproximaccedilatildeo entre o pensamento nietzschiano e o

cinismo cumpre abordar inicialmente a interpretaccedilatildeo foucaultiana sobre os mesmos

A arte de viver do asceta ciacutenico

Em seu uacuteltimo curso ministrado no Collegravege de France Foucault abordou a

relaccedilatildeo entre sujeito e verdade a questatildeo da fala franca a parresiacutea especificamente

Nessas liccedilotildees em oposiccedilatildeo agraves estruturas epistemoloacutegicas voltadas para a anaacutelise do

discurso verdadeiro o autor direciona sua atenccedilatildeo para o que denominou formas

aletuacutergicas ou seja os atos que caracterizam o sujeito que diz a verdade as formas e

modos de viver que tornam o indiviacuteduo reconheciacutevel pelos outros enquanto aquele que

pratica a fala franca que produz e diz a verdade

Apesar de ser uma noccedilatildeo fundamentalmente poliacutetica a parresiacutea possibilita a

Foucault abordar a relaccedilatildeo entre sujeito e verdade sob a oacutetica da accedilatildeo examinando as

2 Hipoacutetese abordada por Peter Sloterdjick em O quinto ldquoevangelhordquo de Nietzsche

201

praacuteticas de si e os modos de veridicccedilatildeo temas caros ao autor3 Isto eacute os saberes e as

relaccedilotildees de poder nos procedimentos que governam a conduta dos homens e como os

sujeitos satildeo constituiacutedos atraveacutes das praacuteticas de si Desse modo o filoacutesofo francecircs analisa

o eixo eacutetico do dizer-a-verdade em oposiccedilatildeo agrave dimensatildeo exclusivamente poliacutetica O autor

justifica essa escolha pela crise das instituiccedilotildees poliacuteticas enquanto lugar de praacutetica da

parresiacutea4 Assim a partir da parresiacutea como um modo de viver Foucault coloca a questatildeo

sobre como conduzir-se identificando nessa atitude a possibilidade do sujeito livre

autogovernar-se

Contudo a praacutetica da parresiacutea teria duas acepccedilotildees distintas uma negativa e

outra positiva O aspecto pejorativo seria o caso do parresiasta que eacute incapaz de conter e

filtrar sua fala descolando seu discurso de uma racionalidade e da verdade dizendo tudo

que vem agrave cabeccedila sem criteacuterios falando qualquer coisa que o instigue e motive O outro

caso seria o discurso fruto da racionalidade o dizer tudo anexado agrave verdade sem

mascarar dissimular ou ocultar nada a seu respeito e acreditando efetivamente naquilo

que eacute dito de modo que a fala corresponda de fato agrave opiniatildeo pessoal ou seja eacute

estritamente necessaacuterio um viacutenculo entre a verdade falada o pensamento daquele que diz

e seus atos

Outro ponto que o filoacutesofo francecircs destaca eacute a ameaccedila inerente agrave fala franca

A veracidade do parresiasta o situa numa tensatildeo com o ouvinte ameaccedilando-o a se tornar

viacutetima da reaccedilatildeo violenta daquele a que se dirige Assim a coragem de aventurar-se na

praacutetica da fala franca eacute determinante e teria duas faces a de assumir os riscos de colocar

em xeque a relaccedilatildeo com aquele que ouve e de arriscar a proacutepria vida ao dizer a verdade

Segue-se a definiccedilatildeo foucaultiana sobre a parresiacutea como a coragem da

verdade daquele que assume o risco seja ele qual for de dizer sua opiniatildeo seu

pensamento com toda a franqueza E o ouvinte eacute parte integrante desse jogo parresiaacutestico

na medida em que tambeacutem tem a coragem de ouvir a franqueza de seu interlocutor Desse

modo o dizer-a-verdade da parresiacutea eacute distinto das outras modalidades identificadas pelo

autor do teacutecnico do saacutebio e do profeta presentes na aleturgia socraacutetica Poreacutem a fala

franca de Soacutecrates seria marcada por especificidades que a distinguiria malgrado a

semelhanccedila das outras formas aletuacutergicas No entanto devido agraves limitaccedilotildees estruturais

deste artigo natildeo aprofundarei a discussatildeo sobre este ponto

3 ldquoA articulaccedilatildeo entre os modos de veridicccedilatildeo as teacutecnicas de governamentabilidade e as praacuteticas de si eacute no fundo o que sempre procurei fazerrdquo FOUCAULT A coragem da verdade p8 4 FOUCAULT A coragem da verdade p 63

202

Segundo Foucault mesmo que possua algumas caracteriacutesticas em comum

com as outras formas de dizer-a-verdade o estilo socraacutetico seria distinto delas pelos

fatores mencionados acima e principalmente pela coragem necessaacuteria agrave fala franca E

esse seria o fator capital que separaria a parresiacutea eacutetica da poliacutetica visto que Soacutecrates

distingue radicalmente seu proacuteprio dizer-a-verdade das trecircs outras grandes modalidades do dizer-a-verdade (profecia sabedoria ensino) segundo [] nessa forma de veridicccedilatildeo a parresiacutea a coragem eacute necessaacuteria [] Essa coragem da verdade ele deve exercer na forma de uma parresiacutea natildeo poliacutetica uma parresiacutea que se desenrolaraacute pela prova da alma Seraacute uma parresiacutea eacutetica5

Alcanccedilar conceitualmente a parresiacutea eacutetica eacute justamente um dos principais

propoacutesitos do autor pois dela parte a questatildeo do cuidado de si Por meio da harmonia

entre a maneira como se vive e a palavra dita articula-se a fala franca a um estilo de vida

Segue-se o interesse foucaultiano em Soacutecrates enquanto parresiasta haja vista que seu

modo de viver e seu discurso estariam arraigados expressando o princiacutepio do cuidado e

da praacutetica de si Por isso o filoacutesofo francecircs compreende a parresiacutea socraacutetica natildeo

pertencendo ao domiacutenio exclusivo da poliacutetica e sim da eacutetica cujos interesses seriam os

modos de vida

Ademais a existecircncia adquiriu uma dimensatildeo esteacutetica a partir da parresiacutea

socraacutetica6 A coragem de pocircr agrave prova seu modo de viver levou ao processo de dar forma

e estilo agrave vida que o autor denominou sem primazia de esteacutetica da existecircncia E Foucault

captou o momento em que foi instituiacutedo um nexo entre a aleturgia e a estetizaccedilatildeo da vida7

com Soacutecrates

Ao aceder ao tema da estiliacutestica da existecircncia o filoacutesofo francecircs passa entatildeo

a tratar da praacutetica ciacutenica que expressaria uma forma aletuacutergica extraordinaacuteria onde a

maneira como se vive estaria intrinsecamente atrelada agrave fala franca Este seria o tema

central de A coragem da verdade Ao ocupar-se da parresiacutea de Soacutecrates dos modos de

viver Foucault estaria preparando o terreno para sua questatildeo nevraacutelgica o cinismo

enquanto modo de vida extremamente singular articulado visceralmente ao imperativo

de dizer-a-verdade corajosamente

5 FOUCAULT A coragem da verdade p76 6 ldquopela emergecircncia e pela fundaccedilatildeo da parresiacutea socraacutetica a existecircncia foi constituiacuteda no pensamento grego como um objeto esteacutetico como objeto de percepccedilatildeo esteacutetica o biacuteos como obra de arterdquo FOUCAULT A coragem da verdade p141 7 ldquocomo o dizer-a-verdade nessa modalidade eacutetica que aparece com Soacutecrates no iniacutecio da filosofia ocidental interferiu com o princiacutepio da existecircncia como obra a ser modelada em toda sua perfeiccedilatildeo possiacutevelrdquo Ibid p 144

203

Para o autor ldquonatildeo se trata de competecircncia natildeo se trata de teacutecnica natildeo se trata

de mestre nem de obra De que se trata Trata-se [] da maneira como se viverdquo8 Por

conseguinte o cinismo seria o exemplo primaacuterio de uma filosofia que teria como ponto

de partida a vida como objeto de diligecircncia de uma praacutetica que incitaria os homens agrave arte

de si agrave elaboraccedilatildeo de certo modo de viver A atitude ciacutenica expressaria em uacuteltima

instacircncia o imperativo do cuidado de si

O uso da palavra ldquopraacuteticardquo justifica-se devido agrave liberdade inerente ao cinismo

que o torna refrataacuterio aos moldes da filosofia tradicional Seu teor de ensinamento oral

enquanto maneira de ser implicou em pouco material textual com parco delineamento

teoacuterico Sobreviveu como modo de vida atitude e natildeo doutrina escrita Seus adeptos

teriam a atenccedilatildeo voltada ao viver e natildeo agrave elaboraccedilatildeo de um manual tratado ou livro que

definisse conceitos temas hipoacuteteses sobre o cinismo O que natildeo evitou que alguns de

seus praticantes deixassem alguns escritos legados para a posteridade9 Natildeo obstante seja

pela praacutetica seja pela fraca teoria a tradiccedilatildeo ciacutenica foi popularizada na Antiguidade por

sua forma de disseminaccedilatildeo

Cumpre destacar a dimensatildeo asceacutetica da existecircncia ciacutenica A apropriaccedilatildeo

seguida da modificaccedilatildeo dessa noccedilatildeo implicaria na renuacutencia de convenccedilotildees e haacutebitos

sociais o que culminaria num tipo peculiar de ascese inerente ao cinismo

A ascese ciacutenica teria algumas especificidades Primeiramente ela extrapolaria

os limites entre a vida puacuteblica e privada posto que o ciacutenico natildeo teria segredos ou

privacidade sua existecircncia seria completamente desnudada aos olhos de todos

Despojado de casa lugar de intimidade e isolamento de roupas total ou parcialmente

ele satisfaz suas necessidades fisioloacutegicas na rua espaccedilo coletivo Em sua vida nada seria

oculto tudo seria drasticamente exposto A aplicaccedilatildeo extrema de natildeo ocultamento como

forma de conduta derrubaria e alteraria a moralizaccedilatildeo e o pudor convencional sobre os

haacutebitos naturais dos homens

Segundo seria o modo de viver sem misturas dependecircncias ou viacutenculos eacute

extremada no cinismo com a pobreza tomada como um componente da verdadeira vida

completamente desprovida de luxos e riquezas Haacute uma reduccedilatildeo ao miacutenimo das posses

concretas de modo que a inoacutepia seria tanto fiacutesica quanto mental natildeo sendo meramente

8 Ibid p 126 9 Consoante o filoacutesofo francecircs ldquoa tradiccedilatildeo ciacutenica natildeo comporta textos teoacutericos ou muitiacutessimo poucos Digamos em todo caso que o arcabouccedilo doutrinal do cinismo parece ter sido bem rudimentar [] Em todo caso o fato eacute atestado o cinismo foi uma filosofia por um lado de ampla implantaccedilatildeo social e por outro de um arcabouccedilo teoacuterico estreito exiacuteguo e elementarrdquo FOUCAULT A coragem da verdade p179

204

um ldquodesprendimento da almardquo Vale ressaltar que este ponto seria uma escolha isto eacute

atitude ativa e natildeo indiferenccedila resignada de uma condiccedilatildeo mediacuteocre Nas palavras do

autor ldquoela eacute uma elaboraccedilatildeo de si mesmo na forma de pobreza visiacutevel [] ela eacute uma

conduta efetiva de pobrezardquo10 Aleacutem disso haveria um imperativo para o desprendimento

uma busca por libertar-se de todo bem por mais iacutenfimo que este seja como uma simples

tigela para beber aacutegua jaacute que podemos juntar as matildeos em forma de cuia para reter ali o

liacutequido e leva-lo agrave boca11

Terceiro o da vida reta em conformidade com determinados costumes e

regras coletivas eacute retomado pelo ciacutenico e transmutado em sua base Ainda haacute a

conformidade mas natildeo ao que eacute cultural e criado pelo homem e sim ao que eacute oriundo da

natureza Ou seja o princiacutepio ao qual o cinismo concorda em sua existecircncia eacute a lei natural

e natildeo humana Segue-se a recusa agrave moral do grupo agraves convenccedilotildees sociais como a

constituiccedilatildeo de uma famiacutelia e os haacutebitos e tabus alimentares A concepccedilatildeo ciacutenica de

retidatildeo estaria inserida em uma dimensatildeo natural animal portanto O que geraria o efeito

escandaloso dessa praacutetica ao se contrapor ao elogio da razatildeo caracteriacutestico da

Antiguidade que a partir da animalidade atribuiacutea um valor de distinccedilatildeo para o humano

Por fim o quarto a vida soberana eacute retomada e revertida em uma forma

insolente a realeza ciacutenica um dos pontos nevraacutelgicos do cinismo segundo Foucault

ldquotemos aiacute nessa ideia do filoacutesofo como antirrei algo que estaacute no proacuteprio centro da

experiecircncia ciacutenica e da vida ciacutenica como verdadeira vida e outra vida e do ciacutenico como

verdadeiro rei e outro reirdquo12 Ao se proclamar rei o ciacutenico contesta os monarcas coroados

em seus tronos agindo como sua contraparte destacando acintosamente o quatildeo oco e

precaacuterio eles seriam A agudeza dessa posiccedilatildeo antagocircnica faz dele um antirrei por

descortinar os elementos fraacutegeis que embasam a soberania dos homens comuns

Para exercer seu domiacutenio o rei dependeria de uma seacuterie de fatores a educaccedilatildeo

e hereditariedade que garanta o acesso ao trono um exeacutercito para manter e expandir suas

terras aliados para garantir a coesatildeo de suas conquistas o triunfo sobre seus inimigos e

por uacuteltimo o fator acaso a que o monarca estaacute exposto e que pode arrebatar sua

monarquia Jaacute a forma reacutegia de cinismo o ciacutenico-rei seria um monarca autecircntico sua

vida seria de fato soberana assim como sua ldquorealezardquo Ele seria efetivamente

10 Ibid p227 11 Exemplo dado por Foucault sobre famosa anedota de Dioacutegenes o Ciacutenico 12 FOUCAULT A coragem da verdade p242

205

independente dispensando todos os elementos supracitados acima que sustentam outras

realezas

Aleacutem disso a praacutetica ciacutenica operaria uma radicalizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave

preocupaccedilatildeo e ao cuidado com o outro caracteriacutestico da vida soberana No cinismo tanto

os discursos quanto as liccedilotildees satildeo dispensadas alcanccedilando o limite do autossacrifiacutecio para

ocupar-se dos outros passando do gozo de si para certa renuacutencia de si Assim sua tarefa

assumiria uma feiccedilatildeo belicosa tanto interna quanto externa atacar e enfrentar os haacutebitos

as convenccedilotildees as instituiccedilotildees purgando os viacutecios que afetam a humanidade e enfrentar

a si mesmo seus proacuteprios desejos e paixotildees Portanto o ciacutenico seria um tipo de rei que

combateria por si pelos outros e desse modo sua maneira de viver conduziria agrave felicidade

e agrave plenitude de sua existecircncia

Essas alteraccedilotildees efetuadas na concepccedilatildeo de verdadeira vida expressam um

traccedilo crucial do cinismo a maacutexima ldquoalterar a moedardquo Um dos principais episoacutedios a

respeito de Dioacutegenes o Ciacutenico menciona o conselho dado a ele pelo oraacuteculo de Delfos

que o instigou a alterar o valor da moeda Tal liccedilatildeo ganha forccedila devido a duas versotildees

biograacuteficas sobre Dioacutegenes era filho de um banqueiro ou cambista algueacutem que

trabalhava com compra venda e troca de dinheiro cunhado e um ou outro foram acusados

de falsificaccedilatildeo dos valores monetaacuterios sendo expulsos de Sinope local onde viviam E a

partir dessa anedota Foucault desenvolve suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica

tendo como ponto de partida o imperativo de transfigurar o valor da moeda

O problema da verdadeira vida ciacutenica eacute [] a aproximaccedilatildeo que haacute [] entre moeda e costume regra lei Nomisma eacute a moeda Noacutemos eacute a lei Mudar o valor da moeda eacute tambeacutem eacute tomar certa atitude em relaccedilatildeo ao que eacute convenccedilatildeo regra lei [] eles vatildeo modificar a efiacutegie [] vatildeo fazer aparecer uma vida que eacute precisamente o contraacuterio do que era reconhecido tradicionalmente como a verdadeira vida [] o cinismo como careta da verdadeira vida13

O preceito de ldquoalterar o valor da moedardquo seria um fundamento primordial do

cinismo Este imperativo incitaria o sujeito ao cuidado e agrave praacutetica si reavaliando a forma

como vive e os valores adotados que foram estabelecidos e avaliados pelos outros Tal

maacutexima impele a uma tomada de posiccedilatildeo radical em relaccedilatildeo agrave forma como se vive

colocando em xeque as atitudes padronizadas por determinado valor coletivo

Nessa tarefa eacute crucial a relaccedilatildeo que o autor estabelece entre moeda valores

e normas posto que o cinismo efetivamente assume determinada posiccedilatildeo contra as

13 FOUCAULT A coragem da verdade p199-200

206

convenccedilotildees diametralmente avessa aos haacutebitos e agraves concepccedilotildees sociais Segundo

Foucault ldquoos ciacutenicos se opotildeem agraves leis divinas agraves leis humanas e a toda forma de

tradicionalidade ou de organizaccedilatildeo socialrdquo14 Isto eacute haveria um impulso destruidor de

convencionalismos e das rotas culturais dominantes estabelecidas para a coletividade E

tambeacutem a recusa de qualquer sofrimento ou accedilatildeo em prol da comunidade da poliacutetica da

religiatildeo da economia ou da famiacutelia Portanto o ciacutenico teria uma eacutetica singular

Assim o princiacutepio fundamental do cinismo de ldquoalterar o valor da moedardquo

conduz agrave radicalizaccedilatildeo de um estilo de vida livre que se distancia das artificias valoraccedilotildees

tradicionais dos costumes da moral vigente colocando em xeque o modo de viver

adotado pela cultura massificada dominante Esse seria um dos elementos mais marcantes

da praacutetica ciacutenica e que afetaria sua aleturgia

De acordo com o filoacutesofo francecircs as caracteriacutesticas do cinismo expressariam

uma forma privilegiada de parresiacutea haja vista que eacute no modo de viver que o dizer-a-

verdade se manifesta Ou seja para o ciacutenico eacute a proacutepria existecircncia e natildeo o discurso que

critica e potildee em xeque a sociedade e a cultura em que vive A liberdade e a autonomia de

suas praacuteticas seriam refrataacuterias agraves valoraccedilotildees normatizadoras dos costumes que submetem

os indiviacuteduos No cinismo a proacutepria existecircncia seria como uma imagem caricatural e

impertinente dos valores seguidos por determinada sociedade no paradoxo de sua adesatildeo

e ruptura imediata a estes

A esse agir contraditoacuterio segue-se um tema caro a Foucault a dimensatildeo

ciacutenica da coragem da verdade Isto eacute pocircr a vida em risco para mostrar aos homens o

quanto eles seriam paradoxais por estimarem determinados valores no campo teoacuterico e o

rechaccedilam no espaccedilo praacutetico Ou seja o ciacutenico faz atraveacutes da maneira como vive com

que os indiviacuteduos condenem e rejeitem as accedilotildees do que eles mesmos valorizam e prezam

em pensamento Consequentemente a existecircncia no cinismo eacute exposta ao perigo pelo

ato e natildeo pelo discurso

E esta seria uma das argumentaccedilotildees que justificariam a hipoacutetese foucaultiana

ldquoeis por que o cinismo [] se relaciona agrave questatildeo das praacuteticas e das artes da existecircncia eacute

que ele foi a forma ao mesmo tempo mais rudimentar e mais radical na qual se colocou a

questatildeo dessa forma particular de vida [] que eacute a vida filosoacuteficardquo15 A verdadeira vida

ciacutenica concebe a filosofia enquanto exerciacutecio para a existecircncia e natildeo mera teoria

dissociada da praacutetica No cinismo o filosofar natildeo seria um campo estritamente discursivo

14 FOUCAULT A coragem da verdade Ibid p175 15 Ibid p208

207

e conceitual seria uma forma de viver que exigira a coragem de viver efetivamente suas

verdades

Tal estilo de vida seria marcado como vimos acima por suas praacuteticas

asceacuteticas Entrementes natildeo seria um ascetismo provocado por nenhuma divindade por

sinais externos e espirituais com uma finalidade religiosa Ao contraacuterio o objetivo seria

o modo de viver dos homens nessa existecircncia natildeo em outra tanto que o ciacutenico visa a

mudanccedila dos valores que influenciam a sociedade em que estaacute marginalmente inserido

E a escolha por essa maneira de viver seria individual se daria a partir do momento em

que o sujeito flagrasse em si sua propensatildeo Nas palavras do autor

a missatildeo ciacutenica soacute seraacute reconhecida na praacutetica da aacuteskesis A ascese o exerciacutecio a proacutepria praacutetica de toda resistecircncia que faz viver na natildeo dissimulaccedilatildeo na natildeo dependecircncia na diacriacutetica entre o que eacute bom e o que eacute ruim tudo isso vai ser o proacuteprio sinal da missatildeo ciacutenica Ningueacutem eacute chamado ao cinismo como Soacutecrates foi pelo deus de Delfos que lhe mandou um sinal nem como seratildeo os apoacutestolos pelo dom das liacutenguas que teratildeo recebido O ciacutenico se reconhece a si mesmo e ele estaacute sozinho consigo mesmo para se reconhecer na prova que faz da vida ciacutenica16

Essa relaccedilatildeo entre cinismo e ascese eacute vital Foucault aponta determinadas

vertentes do cristianismo que teriam sido responsaacuteveis pela propagaccedilatildeo do modo de viver

ciacutenico na Europa17A pobreza o despojamento o afastamento e a renuacutencia implicam

certa forma de ascetismo que foi adotado por alguns segmentos do cristianismo como

os franciscanos e dominicanos18

O ascetismo seria inerente agrave estilizaccedilatildeo da existecircncia por meio das praacuteticas

ciacutenicas A seacuterie de exerciacutecios corporais mentais o afastamento dos haacutebitos culturais

como vestimenta alimentaccedilatildeo e relaccedilotildees sociais demarcam bem essa ligaccedilatildeo O modo

de vida ciacutenico seria alcanccedilado por certa forma de ascese que purgaria o corpo e a mente

dos adeptos das convenccedilotildees e costumes tradicionais possibilitando a parresiacutea um viver

independente e coerente com a verdade

Conforme o autor no cinismo ldquoo ensino filosoacutefico natildeo tinha essencialmente

como funccedilatildeo transmitir conhecimentos [] Tratava-se de armaacute-los para a vida para que

16 FOUCAULT A coragem da verdade p263 17 ldquoO primeiro suporte da transferecircncia e da penetraccedilatildeo do modo de ser ciacutenico na Europa cristatilde foi constituiacutedo eacute claro pela proacutepria cultura cristatilde e pelas praacuteticas e pelas instituiccedilotildees do ascetismordquo Ibid p158 18 ldquoOs franciscanos com seu despojamento sua erracircncia sua pobreza sua mendicidade satildeo ateacute certo ponto os ciacutenicos da cristandade medieval Quanto aos dominicanos pois bem vocecircs sabem que eles proacuteprios se chamavam de Domini canes (os catildees do Senhor)rdquo Ibid p160

208

pudessem enfrentar os acontecimentosrdquo19 Isto eacute o sentido de suas praacuteticas estaria voltado

para o corpo fiacutesico e para a vida neste mundo Logo seria uma ascese imanente natildeo seria

uma ponte para outra existecircncia Utilizando a linguagem nietzschiana seria um ascetismo

intramundano e natildeo trasmundano natildeo teria o sentido do ceacuteu teria o sentido da Terra

Logo a verdadeira vida ciacutenica consolidaria entatildeo uma soberania asceacutetica de

si estetizando a existecircncia troccedilando da cultura e dos modos de viver civilizados

rechaccedilando-os e transfigurando seus valores Assim acredito que haja uma proximidade

entre essas concepccedilotildees e a filosofia nietzschiana com sua criacutetica agrave metafiacutesica agrave cultura e

a afirmaccedilatildeo de uma transvaloraccedilatildeo dos valores E a principal personagem de Nietzsche

Zaratustra expressaria esse ascetismo ciacutenico Na parte que segue me deterei nessa

hipoacutetese

Cinismo de Zaratustra

Ao estabelecer um viacutenculo entre o pensamento nietzschiano e o cinismo

cumpre destacar que Nietzsche natildeo repete e adota incondicionalmente os preceitos da

tradiccedilatildeo ciacutenica Ele se apropria do cinismo enquanto um modo de vida filosoacutefico que

aponta para um desdobramento praacutetico e natildeo soacute discursivo e a utiliza para a elaboraccedilatildeo

de sua proacutepria visatildeo de mundo e para a estruturaccedilatildeo de seu pensamento Algo

extremamente importante para sua reflexatildeo Desse modo meu objetivo eacute captar traccedilos do

cinismo antigo que foram anexados pelo autor de Zaratustra na composiccedilatildeo de sua

filosofia

Em minha hipoacutetese a ascese ciacutenica seria um elemento determinante para o

projeto nietzschiano de transvaloraccedilatildeo e interpreto Zaratustra como um ciacutenico de acordo

com a perspectiva foucaultiana expressa em A coragem da verdade Contudo o filoacutesofo

francecircs natildeo estabeleceu esse viacutenculo entre sua interpretaccedilatildeo do cinismo e o pensamento

nietzschiano poreacutem o diaacutelogo entre ambos eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre as

posiccedilotildees filosoacuteficas

Logo no iniacutecio da obra que leva o nome do protagonista ele inicia sua jornada

apartando-se do conviacutevio em sociedade e por dez anos mantem-se afastado dos homens

19 FOUCAULT A coragem da verdade p181

209

e de seu modo de viver20 Contudo tal distanciamento eacute sazonal como o leitor descobre

ao longo do livro sendo fundamental para purgar a personagem do miasma intriacutenseco aos

valores da cultura em que vivia E tambeacutem para que ele se fortaleccedila e confeccione novos

valores para depois retornar aos indiviacuteduos e propagar sua contra doutrina colocando em

xeque aquelas valoraccedilotildees niilistas

Tal postura itinerante seria semelhante agrave metaacutefora de Epicteto adotada por

Foucault ao compreender o ciacutenico como uma espeacutecie de batedor enviado agrave frente da

humanidade para avaliar as condiccedilotildees de hostilidade ou de favorecimento para sua vida

no mundo E posteriormente retornaria agrave sociedade para comunicar e anunciar a verdade

do que descobriu Esse movimento de afastamento e proximidade eacute caracteriacutestico de

Zaratustra ao longo de sua obra Ao final dos capiacutetulos depois de ter com os homens ele

volta agrave solidatildeo para apoacutes certa passagem de tempo regressar agrave civilizaccedilatildeo

A recusa ciacutenica aos costumes o rompimento com as convenccedilotildees sociais e

haacutebitos culturais seriam os primeiros passos dados por Zaratustra E o longo periacuteodo de

solidatildeo que possibilitou o cultivo de sua gaia sabedoria o transformou profundamente

Assim que desce a montanha e deixa de lado o isolamento ele encontra um velho santo

que o reconhece e percebe imediatamente sua mudanccedila

Natildeo me eacute estranho esse andarilho por aqui passou haacute muitos anos Chamava-se Zaratustra mas estaacute mudado Naquele tempo levava tuas cinzas para os montes queres agora levar teu fogo para os vales Natildeo temes o castigo para o incendiaacuterio Sim reconheccedilo Zaratustra Puro eacute seu olhar e sua boca natildeo esconde nenhum nojo Natildeo caminha ele como um danccedilarino Mudado estaacute Zaratustra tornou-se uma crianccedila Zaratustra um despertado eacute Zaratustra que queres agora com os que dormem 21

Essa passagem eacute bastante feacutertil sobre alguns dos efeitos que o ascetismo tem

sobre Zaratustra A renuacutencia ao conviacutevio foi responsaacutevel pela depuraccedilatildeo do grande asco

agrave vida um sentimento niilista22 e por meio da solidatildeo asceacutetica o vazio inerente aos valores

20 ldquoAos trinta anos de idade Zaratustra deixou sua paacutetria e o lago de sua paacutetria e foi para as montanhas Ali gozou do seu espiacuterito e da sua solidatildeo e durante dez anos natildeo se cansou Mas enfim seu coraccedilatildeo mudourdquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoProacutelogordquo sect1 p11 21 Ibid ldquoProacutelogordquo sect2 p 11 22 Nessa passagem Nietzsche estabelece uma relaccedilatildeo direta entre nojo e niilismo sendo aquele um sentimento de asco que afeta o indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave vida ao ser acometido pelo segundo O niilismo seria o efeito nocivo que aflige o homem ao ser destituiacutedo de valores incondicionais que orientem sua existecircncia deixando-o desnorteado como um barco em um mar revolto ldquoquando vos mandei destroccedilar os bons e as taacutebuas dos bons somente entatildeo embarquei o homem para seu alto-mar E somente agora lhe vem o grande pavor o grande olhar ao redor a grande doenccedila o grande nojo o grande enjoo do marrdquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDas velhas e novas taacutebuasrdquo sect28 p204

210

decadentes da sociedade foi superado A renuacutencia agrave cultura eacute determinante para a tarefa

criadora de novas apreciaccedilotildees23 Esse eacute o fogo que a personagem quer levar aos homens

incendiar aquele modo decadente de viver destruir e queimar suas taacutebuas de valores24

Nessa mudanccedila por que passou o protagonista tornou-se leve e apto para superar o pesado

espiacuterito de gravidade que conspurca a vida e o mundo25 que as concebe enquanto

sofrimento e doenccedila Ao praticar determinada ascese o bufatildeo de Nietzsche torna-se

crianccedila novamente alcanccedila a pureza necessaacuteria agrave plena adesatildeo ao jogo incessante de

destruiccedilatildeo e criaccedilatildeo de novas metas e perspectivas para a existecircncia constantemente

significando e ressignificando a si mesmo26

O trecho supracitado mostra o estado em que Zaratustra se encontrava ao fugir

da civilizaccedilatildeo ldquonaquele tempo levava tuas cinzas para os montesrdquo diz o velho santo

Cinzas satildeo resiacuteduos de um corpo queimado e tambeacutem podem ser restos mortais Entatildeo a

personagem estava ferida fiacutesica ou mentalmente de tal modo que buscou convalescer no

isolamento Natildeo suportou continuar entre os homens Por quecirc O que motivou essa recusa

ao conviacutevio humano O que o afetou desse modo deixando-o em tal estado A resposta

definitiva natildeo eacute dada pelo livro O que possibilita o infinito exerciacutecio interpretativo

A constataccedilatildeo da fraqueza e dependecircncia de seus contemporacircneos de sua

incapacidade para viver uma vida autocircnoma e livre poderia responder a essas indagaccedilotildees

Por meio de sua contra doutrina o protagonista mostra-se avesso agrave nociva vontade de

verdade que apascentou e reduziu o homem a um animal de rebanho que o tornou crente

e dependente de valores absolutos que garantissem alguma seguranccedila para sua existecircncia

Sua aversatildeo eacute tamanha que ao dirigir-se agraves pessoas na cidade mais proacutexima

que encontrou umas das primeiras coisas ditas por Zaratustra foi ldquoo homem eacute algo a ser

superadordquo27 Ou seja ele afirma a necessidade de ultrapassar o atual estado das coisas

visto que permanecer fiel agravequele modo de viver seria a ruiacutena do homem pois seus valores

estariam fatalmente comprometidos

23 ldquolonge do mercado e da fama se passa tudo que eacute grande longe do mercado e da fama habitaram desde sempre os inventores de novos valores [] foge meu amigo para tua solidatildeo e para onde o ar eacute rude e forterdquo Ibid ldquoDas moscas do mercadordquo p53 24 ldquoOacute meus irmatildeos destroccedilai destroccedilai as velhas taacutebuas de valoresrdquo Ibid ldquoDas velhas e novas taacutebuasrdquo sect10 p193 25 ldquoPesadas satildeo para ele a terra e a vida e assim quer o espiacuterito de gravidade [] demasiados valores e palavras pesadas potildee ele sobre si ndash e entatildeo a vida lhe parece um desertordquo Ibid ldquoDo espiacuterito de gravidaderdquo sect2 p184 26 ldquoInocecircncia eacute a crianccedila e esquecimento um novo comeccedilo um jogo [] sim para o jogo da criaccedilatildeo meus irmatildeos eacute preciso um sagrado dizer-simrdquo Ibid ldquoDas trecircs metamorfosesrdquo p29 27 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoProacutelogordquo sect3 p13

211

Entrementes essa tarefa seria perigosa posto que colocaria sua proacutepria vida

em risco Tanto que ao expor sua contra doutrina agraves pessoas da cidade foi execrado e

ameaccedilado de morte ldquoVai-te embora desta cidade oacute Zaratustra muitos te odeiam

Odeiam-te os bons e os justos e te chamam de seu inimigo e desprezador odeiam-te os

crentes da verdadeira feacute e te chama de perigo para a multidatildeo [] Tua sorte foi que te

juntaste ao cachorro morto ao te rebaixares assim te salvaste por hoje Mas deixa esta

cidade ndash ou amanhatilde salto sobre ti um vivo sobre um mortordquo28 Essa passagem expressa

o efeito da contra doutrina de Zaratustra nos adeptos da vontade de verdade O

protagonista expocircs sua criacutetica agrave cultura dos homens e pocircs-se em perigo de morte ao fazecirc-

lo Tal qual o ciacutenico que arrisca a proacutepria vida em sua tarefa de alterar a moeda ou seja

transformar os valores que regram a existecircncia dos indiviacuteduos O bufatildeo de Nietzsche

almeja suplantar a cultura vigente e para esse fito tem a coragem de se colocar em risco

Assim a coragem eacute atributo imprescindiacutevel no projeto de transvaloraccedilatildeo

Coragem para romper com as relaccedilotildees sociais com o conviacutevio humano com os haacutebitos

com os costumes com certo modo caduco de viver Ter a coragem de reconfigurar e

orientar sua existecircncia ao sabor de sua proacutepria verdade seria tarefa para os raros ldquoser

verdadeiro ndash poucos satildeo capazes dissordquo29 Esse foi o primeiro passo dado por Zaratustra

em sua jornada para se tornar o mestre do eterno retorno Ou seja ele assumiu os riscos

de iniciar uma vida asceacutetica ao renunciar ao modo de viver predominante em sua cultura

e seus valores supremos

O evento catastroacutefico da Modernidade a ruiacutena da velha divindade solapa

definitivamente a posiccedilatildeo suprema e incondicional atribuiacuteda agrave verdade donde emanava

valores e sentidos absolutos Em face desse vazio angustiante fruto da ausecircncia de alento

transcendental a praacutetica de si eacute capital o cuidado de si eacute tarefa aacuterdua do indiviacuteduo No

entanto a verdade singular e provisoacuteria ainda seria possiacutevel no que Nietzsche denominou

esteacutetica da existecircncia atividade artesanal de lidar com o teor plaacutestico da vida

Tal concepccedilatildeo eacute parte determinante da contra doutrina de Zaratustra ensinar

os homens a cuidarem de si em uma terra ausente de um Pai transcendental que zelaria

por todos Por isso a personagem incita os indiviacuteduos a acordarem para a infinita liberdade

oriunda da morte de Deus instiga-os agrave felicidade proveniente da capacidade readquirida

de criar novos soacuteis e mundos para viver A natildeo desprezar o corpo e os afetos pois eacute a

28 Ibid ldquoProacutelogordquo p21-22 29 Ibid ldquoDe velhas e novas taacutebuasrdquo p191

212

partir deles que teriacuteamos nossa criadora paleta de cores30 Essa nova atitude tornaria o

sujeito capaz de criar e avaliar novamente rechaccedilando as estimaccedilotildees e apreciaccedilotildees alheias

e afirmando as suas proacuteprias E fatalmente destruir os antigos valores arraigados pela

cultura pelo costume pelas convenccedilotildees31

A postura de Zaratustra remonta agrave do ciacutenico cujo estilo de vida independente

e livre coloca em xeque os valores que orientam a maneira com as pessoas vivem Este

por meio de uma conduta asceacutetica primorosa zelaria por todos propagando o cuidado de

si pela preocupaccedilatildeo com os homens mostrando pelo exemplo de sua proacutepria existecircncia

o quatildeo paradoxal seria o modo de viver dominante O bufatildeo de Nietzsche diz ldquoeu amo

os homensrdquo e ldquoquero ensinar aos homens o sentido do seu serrdquo32 Ou seja o protagonista

natildeo fica isolado em sua montanha ele desce para compartilhar seu leve saber alegre

explicitando sua diligecircncia com os indiviacuteduos ldquoposso novamente descer para junto de

meus amigos e inimigos Zaratustra pode novamente falar e presentear e fazer o melhor

para os que mais amardquo33 Logo a ascese ciacutenica eacute livremente apropriada pelo filoacutesofo

alematildeo e inserida na contra doutrina de seu principal personagem que mesmo agrave margem

da sociedade zela por ela cuidando de seus integrantes Mas natildeo para manter o estado

vigente de sua cultura e sim para sua radical variaccedilatildeo dado que ldquoo homem eacute algo que

deve ser superadordquo34

Assim a esteacutetica da existecircncia seria um ponto vital do pensamento

nietzschiano Apoacutes a morte de Deus Nietzsche conduz suas reflexotildees de modo a orientar

inuacutemeros modos de vidas possiacuteveis Seu pensamento postula o juacutebilo diante da nova

liberdade e de uma vida prenhe de significaccedilotildees possiacuteveis em detrimento de uma tristeza

niilista que acomete os fracos acovardados que se massificam em rebanho e que recusam

a pluralidade de sua potecircncia criadora

Estetizar a existecircncia seria cuidar de si nesse novo mundo plural assumir os

riscos e lidar com todo acaso e adversidade inerente agrave vida Viver de modo a repetir sua

existecircncia infinitas vezes afirmando suas escolhas e todo acontecimento nocivo ou natildeo

dado que toda experiecircncia por que passa o indiviacuteduo eacute determinante para sua composiccedilatildeo

30 ldquoO corpo eacute uma grande razatildeo uma multiplicidade [] haacute mais razatildeo em teu corpo do que em tua melhor sabedoriardquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDos desprezadores do corpordquo p35 31 ldquoApenas atraveacutes do estimar existe valor e sem o estimar seria oca a noz da existecircncia Escutai oacute criadores Mudanccedila nos valores ndash isso eacute mudanccedila nos criadores Quem tem de ser um criador sempre destroacuteirdquo Ibid ldquoDas mil metas e uma soacute metardquo p58 32 Ibid ldquoProacutelogordquo sect2 e sect7 p12 e p21 33 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoO menino com o espelhordquo p80 34 Ibid ldquoProacutelogordquo sect3 p13

213

No pensamento nietzschiano esse cuidado para consigo seria necessaacuterio

dado que a fonte que atribuiacutera tais valores secou Assim certa ascese eacute crucial para o

indiviacuteduo recuperar sua potecircncia criadora dado que os valores degenerados da cultura

embotaram tal capacidade

O ascetismo de Zaratustra como do ciacutenico seria despojado de qualquer

conotaccedilatildeo trasmundana Para o Nietzsche uma das questotildees mais candentes seria o modo

de viver em um mundo cujo encanto se perdeu cujo valor transcendental se apagou Para

Foucault a soberania da existecircncia ciacutenica expressaria tal ventura dado que exprime ldquoa

alegria de quem aceita seu destino e natildeo conhece por conseguinte nenhuma falta

nenhuma tristeza e nenhum temor Tudo o que eacute dureza de existecircncia tudo que eacute privaccedilatildeo

e frustraccedilatildeo tudo isso se reverte num exerciacutecio de soberania sobre sirdquo35 Essa postura eacute

cara ao nietzschianismo expressa na concepccedilatildeo do amor fati36 a plena adesatildeo agrave vida

aceitando-a e afirmando-a sem descontos com tudo que for caracteriacutestico da mesma dor

sofrimento prazer juacutebilo

Ambas apontam para a celebraccedilatildeo de um viver autocircnomo livre de valoraccedilotildees

ou significaccedilotildees supremas que zelem e orientem a vida dos homens O devir inerente ao

mundo seria vivenciado independente de seus efeitos negativos ou positivos e natildeo

controlado por alguma instacircncia suprema A postura afirmativa de lidar com a

adversidade aponta para a potencializaccedilatildeo das capacidades do sujeito expresso na

maacutexima nietzschiana ldquoo que natildeo me mata me fortalecerdquo37 e na interpretaccedilatildeo foucaultiana

ldquoas pancadas portanto fazem crescer Elas potildeem a prova treinam aperfeiccediloamrdquo38

Assim o viacutenculo entre a contra doutrina de Zaratustra e o cinismo eacute prenhe de

possibilidades

Segundo Foucault um dos traccedilos caracteriacutesticos do cinismo eacute sua dimensatildeo

praacutetica enquanto modo de viver Tal posiccedilatildeo eacute cara agrave Nietzsche que incita seus leitores

a assumirem uma posiccedilatildeo ativa em relaccedilatildeo a suas vidas ldquosomente quem faz aprenderdquo 39

Ou seja a aprendizagem de seu pensamento se daria pela accedilatildeo e natildeo soacute pelo discurso

Apesar de o filoacutesofo alematildeo ter professado seu pensamento por escritos a questatildeo eacutetica

35 FOUCAULT A coragem da verdade p272 36 ldquominha foacutermula para a grandeza no homem eacute amor fati nada querer diferente seja para traacutes seja para frente seja em toda a eternidade Natildeo apenas suportar o necessaacuterio menos ainda ocultaacute-lo [] mas amaacute-lordquo NIETZSCHE Ecce Homo ldquoPor que sobu tatildeo inteligenterdquo sect10 p49 37 NIETZSCHE Crepuacutesculo dos iacutedolos ldquoMaacuteximas e Flechasrdquo sect8 p10 38 FOUCAULT A coragem da verdade p 264 39 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoO mais feio dos homensrdquo p 253

214

eacute um de seus principais interesses Ademais o autor elegeu para sua filosofia qualidades

praacuteticas que conduzam agrave accedilatildeo e agrave transformaccedilatildeo do proacuteprio modo de viver

Estimo um filoacutesofo na medida em que ele pode dar um exemplo [] mas este exemplo deve ser dado natildeo somente por livros mas pela vida cotidiana como os filoacutesofos gregos ensinaram pela expressatildeo do rosto atitude o vestuaacuterio o regime alimentar os costumes muito mais do que pelo que se diz pelo que se escreve Como noacutes estamos ainda longe na Alemanha de poder realizar essa corajosa evidecircncia de uma vida filosoacutefica40

Esse trecho possibilita o estabelecimento de uma relaccedilatildeo direta com o

cinismo Vimos anteriormente de que maneira a vida filosoacutefica ciacutenica conteacutem as

caracteriacutesticas elogiadas por Nietzsche na citaccedilatildeo acima O filoacutesofo alematildeo almejou

elaborar um pensamento que conduzisse a uma vida filosoacutefica potente o suficiente para

confrontar-se com a ordem cultural estabelecida Daiacute a coragem inerente a essa atitude

posto que todo seu agir deveria ser um ataque agrave sociedade a fim de transformaacute-la

As reflexotildees nietzschianas questionavam valores totalizantes colocando em

xeque as verdades incondicionais que massificaram os homens em rebanhos Assim o

leve saber alegre de seu principal personagem seria refrataacuterio agraves tradicionais formas de

conhecimento Tanto que Zaratustra visa a autonomia e independecircncia dos indiviacuteduos

ldquoEste eacute o meu caminho ndash qual eacute o vosso Assim respondi aos que me perguntaram pelo

lsquocaminhorsquo Pois o caminho ndash natildeo existerdquo41 Desse modo Nietzsche propotildee uma filosofia

que enfatiza a singularidade evitando novos dogmas conceituais e discursivos dado que

seu interesse eacute que seu leitor se torne quem ele eacute soberano de si

Nesse sentido forccedila e luta satildeo traccedilos decisivos no projeto nietzschiano de

transvaloraccedilatildeo dos valores para postular novas formas de viver Os fracos desejariam a

antiga existecircncia agrilhoada agrave velha divindade agrave obsoleta forma de vida pautada nas

valoraccedilotildees incondicionais e ser despojado dessa base tornaacute-lo-ia triste niilista Somente

os fortes celebrariam a ventura desse novo mundo a felicidade de se pocircr agrave prova e

enfrentar a decadente cultura vigente

Tal caracteriacutestica eacute intriacutenseca ao cinismo conforme Foucault afirma ldquoo

ciacutenico eacute um filoacutesofo em guerrardquo42 Ele assume por seu estilo singular de viver um ataque

direto agrave cultura de sua sociedade ldquoo combate dos ciacutenicos [] eacute um combate contra

40 NIETZSCHE Schopenhauer educador p 350 41 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDo espiacuterito de gravidaderdquo p118 42 FOUCAULT A coragem da verdade p264

215

costumes contra convenccedilotildees contra instituiccedilotildees contra leis contra todo um estado da

humanidaderdquo43 A praacutetica ciacutenica exige forccedila e domiacutenio de si para o enfrentamento

incessante ao modo de vida dominante e para a renuacutencia dos haacutebitos sociais

convencionais Assim ele encontra sua felicidade ao se ocupar de si e dos outros O ciacutenico

luta pelos homens pela humanidade dispensando a doutrina e sem massificar os

indiviacuteduos com discursos totalizantes A ascese da vida ciacutenica visa agrave transformaccedilatildeo pelo

exemplo de sua singularidade

Logo o tema nietzschiano da esteacutetica da existecircncia conduziria a uma

dimensatildeo praacutetica agrave luz das hipoacuteteses foucaultianas sobre o cinismo As reflexotildees do

filoacutesofo francecircs abrem novas perspectivas de interpretaccedilatildeo sobre o pensamento de

Nietzsche na medida em que via Foucault seria possiacutevel compreender Zaratustra

enquanto asceta Algo de suma importacircncia e contraditoacuterio agrave primeira vista devido agrave

terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da moral

A hipoacutetese da ascese de Zaratustra salta aos olhos logo no iniacutecio da jornada

da referida personagem no entanto a oposiccedilatildeo ao ascetismo feita pelo autor na obra

supracitada impede o desenvolvimento dessa argumentaccedilatildeo Todavia a interpretaccedilatildeo de

Foucault sobre o cinismo abre a possibilidade de lermos o bufatildeo de Nietzsche enquanto

um asceta ciacutenico A renuacutencia ao estilo de vida predominante em sua eacutepoca assim como

a negaccedilatildeo radical dos valores estanques que orientaram seus contemporacircneos conduzem

a certa forma de ascetismo Eacute contra essa sociedade pautada na consolaccedilatildeo proveniente

dos discursos totalizantes que o filoacutesofo alematildeo se afasta e declara guerra

Ao cotejar A coragem da verdade com Assim falou Zaratustra a riqueza

oriunda das semelhanccedilas eacute imensa Malgrado as distinccedilotildees dos contextos histoacutericos e

filosoacuteficos e com as devidas ressalvas conceituais estabelecer um diaacutelogo entre ambos eacute

possiacutevel e fundamental para a compreensatildeo de alguns pontos do pensamento

nietzschiano como a dimensatildeo praacutetica de sua contra doutrina do leve saber alegre

Conclusatildeo

Nietzsche posterga a confianccedila de uma vida orientada por valores irrestritos

e anuncia a morte de Deus acontecimento dramaacutetico da Modernidade que lanccedilaria os

43 Ibid p247

216

indiviacuteduos em mundo de caos e puro devir O resultado fisioloacutegico imediato seria o

niilismo negaccedilatildeo da vontade e a anguacutestia em face de um horizonte ausente de sentido

Para superar o niilismo e suplantar a cultura decadente de sua eacutepoca o autor

apresenta seu leve saber alegre a contra doutrina de Zaratustra Esse novo conhecimento

afirmaria a celebraccedilatildeo total da vida e da liberdade proveniente do ocaso da velha

divindade Destituiacutedo de valores supremos que encerraram sua existecircncia o indiviacuteduo

encontraria a ventura de viver em um lugar com infinitas possibilidades

Assim as reflexotildees de Nietzsche conduziriam a uma eacutetica a um modo de

viver nesse mundo ausente de discursos totalizantes O autor se preocupou em exprimir

uma filosofia que tivesse uma dimensatildeo praacutetica que incitasse ao ato em face da cultura

nociva que envenenaria o sujeito com concepccedilotildees torpes

No entanto natildeo interpreto o pensamento nietzschiano como um discurso de

massa que vise regrar as atitudes dos homens Ao contraacuterio o filoacutesofo instiga seu leitor

a ser autor de sua existecircncia que assuma uma posiccedilatildeo ativa em sua vida e renegue a

mentalidade dominante que o arrebanha e o torna cativo de riacutegidos valores

Uma das metas do autor eacute o surgimento de uma nova estirpe de homem um

indiviacuteduo criador e autocircnomo que atuaria como uma maacutequina de guerra contra a

concepccedilatildeo de mundo orientada por discursos totalizantes que entorpeceriam a potecircncia

criadora singular Para tornar-se livre e independente o sujeito deveria praticar certa

forma de ascese renunciar ao modo de viver comumente aceito recusar e transformar os

haacutebitos que regram a vida coletiva e romper com a visatildeo de mundo pautada nas valoraccedilotildees

engessados pelo costume

As posiccedilotildees filosoacuteficas tomadas por Nietzsche permitem que seja considerado

um herdeiro da corrente ciacutenica na medida em que existem alguns pontos de contato entre

as duas filosofias Portanto poderiacuteamos consideraacute-lo um metaciacutenico visto que realizou

variaccedilotildees e interpretaccedilotildees de alguns preceitos e se apropriou a sua maneira do que

poderia potencializar seu pensamento

Bibliografia

NIETZSCHE Assim falou Zaratustra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011

__________ Ecce Homo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

217

__________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006

__________ Schopenhauer educador Satildeo Paulo Prumo 2012

FOUCAULT A coragem da verdade Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2011

SLOTERDJICK P O quinto ldquoevangelhordquo de Nietzsche Rio de Janeiro Tempo brasileiro 2004

A MODERNIDADE lsquoNArsquo FILOSOFIA DE DESCARTES

A CRIacuteTICA DAS FORMAS SUBSTANCIAIS

William Teixeira1

RESUMO O objetivo desse artigo eacute mostrar como Descartes elaborou sua filosofia mecanicista Assim o primeiro passo para atingir esse objetivo levou Descartes a criticar e abandonar a noccedilatildeo de lsquoforma substancialrsquo a qual era amplamente empregada pelos escolaacutesticos para explicar todos os acontecimentos relativos aos seres naturais de uma maneira qualitativa Tendo descartado as formas substanciais o proacuteximo passo era estabelecer um novo objeto de estudo para a filosofia natural o qual ele encontrou na mateacuteria corpoacuterea (res extensa) e suas propriedades geomeacutetricas Dessas modificaccedilotildees introduzidas por Descartes vai emergir tambeacutem um novo meacutetodo de investigar os fenocircmenos naturais baseado na mediccedilatildeo e precisatildeo matemaacuteticas mais comprometido com a lsquoepistemologia platocircnicarsquo do que com a lsquoepistemologia aristoteacutelicarsquo Noacutes concluiremos afirmando que Descartes estava em acordo com muitos de seus contemporacircneos notavelmente Bacon e Galileu pensadores que estavam engajados em combater a filosofia formalista de Aristoacuteteles Junto com eles Descartes deu sua contribuiccedilatildeo para a renovaccedilatildeo da filosofia ocidental Palavras-chaves Descartes Escolaacutestica Filosofia natural Forma substancial Res extensa ABSTRACT The aim of this paper is to show how Descartes worked out his mechanistic philosophy So the first step to reach this goal led Descartes to criticize and abandon the notion of lsquosubstantial formrsquo which was largely employed by the schoolmen to explain all events concerning natural beings in a qualitative way Having discharged the substantial form the next step was to establish a new subject-matter for natural philosophy which he found in the material body (res extensa) and its geometrical properties From these modifications introduced by Descartes will also emerge a new method of investigating natural phenomena based on mathematical measurement and precision more commited with a lsquoPlatonic epistemologyrsquo than with an lsquoAristotelic onersquo We will conclude by asserting that Descartes was in agreement with many of his contemporaries most notably Bacon and Galileo thinkers who were engaged in fighting against the formalistic philosophy of Aristotle Together with them Descartes has given his contribuition for the renovation of the western philosophy Keywords Descartes Scholasticism Natural philosophy Substantial form Res extensa

1 UnB email williamunbhotmailcom

219

No relato de sua biografia intelectual que se encontra no Discurso do

meacutetodo Descartes se nos apresenta como algueacutem insatisfeito com sua aprendizagem

escolar estimando que haacute pouco valor na formaccedilatildeo que adquiriu em sua juventude

Fui nutrido nas letras desde minha infacircncia e porque me convenceram que atraveacutes delas podia-se adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que eacute uacutetil agrave vida eu tinha um extremo desejo de aprendecirc-las Mas assim que eu conclui todo esse curso de estudos ao fim do qual costuma-se ser acolhido entre os eruditos eu mudei totalmente de opiniatildeo Eu me encontrava pois embarassado por tantas duacutevidas e erros de modo que eu parecia natildeo ter obtido nenhum benefiacutecio ao me instruir a natildeo ser ter descoberto mais e mais minha ignoracircncia2

Como eacute bem sabido Descartes estudou no renomado coleacutegio jesuiacuteta de La

Flegraveche que era de acordo com seu proacuteprio parecer ldquo[] uma das mais ceacutelebres escolas

de Europardquo3 onde acreditava ldquo[] haver homens saacutebiosrdquo4 Nessa instituiccedilatildeo ele se

aprofundou no estudo da filosofia escolaacutestica siacutentese elaborada por Santo Tomaacutes de

Aquino no seacuteculo XIII da teologia cristatilde com o pensamento de Aristoacuteteles Visto ser

este o responsaacutevel principal de suas frustraccedilotildees acadecircmicas eacute pois precisamente contra

o aristotelismo que se encontrava vigorosamente estabelecido ainda na primeira metade

do seacuteculo XVII que Descartes se insurge de modo mais veemente5

Dentre as disciplinas baseadas diretamente nas obras de Aristoacuteteles6 e

sendo ministradas como comentaacuterios a estas agraves quais Descartes foi submetido durante

2 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 4 lsquoATrsquo refere-se a DESCARTES Reneacute Oeuvres de Descartes (publieacutees par Charles Adam amp Paul Tannery) Todas as referecircncias agraves obras de Descartes seratildeo feitas dessa maneira seguindo procedimento usual entre estudiosos desse autor ldquoJrsquoai eacuteteacute nourri aux lettres degraves mon enfance et parce qursquoon me persuadait que par le moyen on pouvait acquerir une connaissance claire et assurreacutee de tout ce qursquoil est utile agrave la vie jrsquoavais un extreme deacutesir de les apprendre Mais sitocirct que jrsquoeus acheveacute tout ce cours de eacutetudes au bout duquel on a coucirctume drsquoecirctre reccedilu au rang des doctes je changeai entiegraverement drsquoopinion Car je me trouvais embarasseacute de tant de doutes et drsquoerreurs qursquoil me semblait nrsquoavoir fait autre profit en tacircchant de mrsquoinstruir sinon que jrsquoavais deacutecourvert de plus en plus mon ignorancerdquo 3 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 5 ldquo[] lrsquoune des plus celegravebres eacutecoles de lrsquoEuroperdquo 4 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 5 ldquo[] avoir de savants hommesrdquo 5 A respeito desse fato eacute oportuno observar que Descartes natildeo era o uacutenico estudante incomodado com o conteuacutedo demasiadamente aristoteacutelico ministrado pelas Escolas e universidades da eacutepoca Locke e Hobbes por exemplo tambeacutem se sentiam deveras incomodados com o formalismo inoacutecuo das obras de Aristoacuteteles Leibniz em contrapartida natildeo compartilhava o mesmo niacutevel de exasperaccedilatildeo de seus contemporacircneos em relaccedilatildeo aos escolaacutesticos embora consideresse que certos equiacutevocos por eles cometidos devessem ser corrigidos (cf LEIBNIZ Metaphysische abhandlung pp 24-25) 6 Cf ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 60 ldquoEm La Flegraveche como em outros coleacutegios jesuiacutetas da eacutepoca o curriacuteculo [do curso] de filosofia durava trecircs anos ( os trecircs uacuteltimos anos de formaccedilatildeo do estudante a partir do 15 anos de idade) Ele consistia em preleccedilotildees duas vezes por dia com a duraccedilatildeo de duas horas baseadas primariamente nas obras de Aristoacuteteles e Tomas de Aquino No tempo de Descartes o primeiro ano era devotado agrave loacutegica e agrave eacutetica consistindo em comentaacuterios e questotildees baseadas na Isagoge de Porfiacuterio e nas Categorias no Sobre a interpretaccedilatildeo nos Primeiros analiacuteticos nos Toacutepicos nos Segundos analiacuteticos e na Eacutetica a Nicocircmacos de Aristoacuteteles O segundo ano era devotado agrave fiacutesica e agrave metafiacutesica baseado primariamente na Fiacutesica no

220

seus anos de aprendizagem aquela que mais lhe desagradou ou ao menos contra a qual

ele se opocircs de modo mais enfaacutetico foi agrave filosofia natural7 Essa disciplina escolaacutestica agrave

qual Descartes foi apresentado por seus mestres jesuiacutetas em La Flegraveche era praticamente

a mesma que era ensinada nas universidades francesas do seacuteculo XIII e XIV isto eacute o

sistema de explicaccedilatildeo da natureza herdado da Idade Meacutedia pelos jesuiacutetas continuava

intacto ainda no seacuteculo XVII8 seacuteculo este que paradoxalmente assistia agrave emergecircnica da

Revoluccedilatildeo Cientiacutefica da qual Descartes seraacute um dos principais esteios

A filosofia natural escolaacutestica em suas explanaccedilotildees sustentava-se

amplamente em justificaccedilotildees de caraacuteter qualitativo O mundo segundo essa

interpretaccedilatildeo era formado por uma grande diversidade de substacircncias cada qual com

suas proacuteprias qualidades ou essecircncias Nesse sistema os objetos do mundo fiacutesico

tinham sua especificidade determinada por um elemento lsquoformalrsquo que compunha sua

estrutura presidia sua atividade e definia seus caracteres acidentais Eis um exemplo

proveniente de um famoso pesquisador da filosofia medieval ldquoO peso e a leveza

tornam-se pois qualidades decorrentes de faculdades que derivam da forma substancial

que a causa geradora do corpo lhe conferiurdquo9 Tomaacutes de Aquino justifica esse fato

assim ldquoCom efeito todo corpo natural tem alguma forma substancial determinada e

visto que agrave forma substancial sigam-se os acidentes eacute necessaacuterio que a determinada

forma sigam-se determinados acidentesrdquo10 Assim a verdadeira natureza de cada corpo

natural eacute a sua lsquoformarsquo de modo que seguindo-se a doutrina hilemoacuterfica de Aristoacuteteles

Sobre o ceacuteu no livro I do Sobre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo e no livros I 2 e II da Metafiacutesica O terceiro ano do [curso de] filosofia era o ano das matemaacuteticas consistindo em aritmeacutetica geometria muacutesica e astronomia [hellip]rdquo ldquoAt La Flegraveche as in other Jesuit colleges of the time the curriculum in philosophy would have lasted three years (the final three years of a studentrsquos education from about the age of fifteen on) It would have consisted of lectures twice a day in sessions lasting two hours each from a set curriculum based primarily on Aristotle and Thomas Aquinas During Descartesrsquo time the first year was devoted to logic and ethics consisting of commentaries and questions based on Porphyryrsquos Isagoge and Aristotlersquos Categories On Interpretation Prior Analytics Topics Posterior Analytics and Nicomachean Ethics The second year was devoted to physics and metaphysics based primarily on Aristotlersquos Physics De Caelo On Generation and Corruption book I and Metaphysics book I 2 and II The third year of philosophy was a year of mathematics consisting of arithmetics geometry music and astronomy [hellip] 7 Cf MENN Descartes and Augustine p 4 ldquoA atitude de Descartes em relaccedilatildeo agrave filosofia escolaacutestica eacute claramente hostil Especialmente em sua fiacutesica sua filosofia vai diretamente de encontro agrave filosofia de Aristoacuteteles a qual ele espera substituir nas Escolasrdquo ldquoDescartesrsquo attitude towards scholasticism is clearly hostile Especially in its physics his philosophy runs directly counter to the philosophy of Aristotle which he hopes to replace in the schoolsrdquo 8 Cf GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 143 9 GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 161 ldquoLa lourdeur et la leacutegegravereteacute deviennent donc des qualiteacutes dues agrave des faculteacutes qui deacuterivent de la forme substantielle que la cause geacuteneacuteratrice du corps lui a confeacutereacuteerdquo 10 AQUINO Summa theologiae I q 7 art 3 ldquoNam omne corpus naturale aliquam formam substantialem habet determinatam cum igitur ad formam substantialem consequantur accidentia necesse est quod ad determinatam formam consequantur determinata accidentiardquo

221

quando esta se une a aquele ao corpo entendido como princiacutepio material de

individuaccedilatildeo tem-se uma lsquoforma substancialrsquo o que constitui o princiacutepio de movimento

ou mudanccedila (κίνησις na terminologia do Estagirita11) dos entes que existem por

natureza (τὰ φύσει ὄντα)12 a qual no homem por exemplo identifica-se com a alma

racional ou espiacuterito13 Desse modo a fiacutesica escolaacutestica14 que fora ensinada ao jovem

Descartes em seu profundo acordo com o pensamento de Aristoacuteteles se atribuiacutea como

tarefa primaacuteria a identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo das lsquoformas substanciaisrsquo15 isto eacute da

natureza (φύσις) ou essecircncia dos entes corpoacutereos elementos estes vale dizer

eminentemente qualitativos

Eacute pois agrave noccedilatildeo de lsquoforma substancialrsquo que Descartes dirigiraacute sua criacutetica

mais severa16 uma vez que era sobre ela que repousava todo o sistema da fiacutesica

escolaacutestico-aristoteacutelica Sua supressatildeo determinaria necessariamente a ruiacutena de toda

aquela ciecircncia e ao mesmo tempo condicionaria a proacutepria elaboraccedilatildeo da fiacutesica

cartesiana que deveria lhe substituir17 Com efeito Descartes considerava a fiacutesica que

lhe fora ensinada inaceitaacutevel Para ele uma ciecircncia que se baseava sobre um tal

princiacutepio como o de forma substancial natildeo possuiacutea nenhum poder real de explicaccedilatildeo ou

11 Aristotle Physics II 1 192b12-15 12 Aquino endossa essa opiniatildeo de Aristoacuteteles ldquo[] Muitas coisas existem por natureza uma vez que tecircm o princiacutepio de seu movimento em sirdquo (AQUINO Commentaria in libros physicorum II l 1 n 8) ldquo[] Multa sunt a natura quae habent principium sui motus in serdquo 13 ldquoPortanto esse princiacutepio pelo qual primeiramente entendemos que ele seja nomeado intelecto ou alma intelectiva eacute a forma do corpordquo (AQUINO Summa theologicae I q 76 art 1) ldquoHoc ergo principium quo primo intelligimus sive dicatur intellectus sive anima intellectiva est forma corporisrdquo Esta seraacute com efeito a uacutenica forma substancial que Descartes admitiraacute em seu sistema elevada entretanto ao status de substacircncia ndash a res cogitans 14 Eacute importante ter em mente que essa exposiccedilatildeo da fiacutesica escolaacutestica se pretende apenas como um esboccedilo para melhor situar a criacutetica de Descartes agraves formas substacircncias natildeo sendo de nenhum modo exaustiva ou completa 15 A fiacutesica escolaacutestica era efetivamente uma disciplina ldquotaxonocircmicardquo descrevendo e classificando os fenocircmenos mas nunca capaz de descobrir leis gerais que desse conta da explicaccedilatildeo e previsibilidade da natureza dos mesmos assim como o foi a historia natural em especial a biologia ateacute o princiacutepio do seculo XIX 16 ldquo[] Todas as qualidades e formas agraves quais tenho horror []rdquo (DESCARTES Correspondecircncia a Ciermans AT 2 p 74) ldquo[] Qualitates omnes et formas a quibus abhorreo []rdquo 17 A criacutetica agraves formas substanciais na verdade ocupa um lugar fundamental em todo o sistema de Descartes natildeo se restringindo meramente agrave refutaccedilatildeo da filosofia natural escolaacutestica isto eacute a uma disciplina particular ldquo[] A criacutetica agraves formas substanciais confere seu sentido pleno agraves Meditaccedilotildees metafiacutesicas por completo porque integralmente centradas na distinccedilatildeo real da alma e do corpo elas contecircm precisamente aquilo que era necessaacuterio para estabelecer essa conclusatildeo da metafiacutesica que eacute ao mesmo tempo o princiacutepio de uma fiacutesica do movimento e da extensatildeordquo (GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 189) ldquo[] La critique de formes substantielles donne son sens plein aux Meacuteditations meacutetaphysiques tout entiegraveres parce que inteacutegralement centreacutees sur la distinction reacuteele de lrsquoacircme et du corps elles ne contiennent que ce qursquoil fallait pour eacutetablir cette conclusion de la meacutetaphysique qui est en mecircme temps le principe drsquoune physique de lrsquoeacutetendue et du mouvementrdquo

222

de prediccedilatildeo18 dado que ldquo[] a Forma se torna uma espeacutecie de tela invisiacutevel entre o

observador e seu objeto de estudo a qual impede-no de agarraacute-lo mensuraacute-lo e pesaacute-

lordquo19 Em sua visatildeo inversamente era necessaacuteria uma abordagem que focasse natildeo em

variaacuteveis qualitativas mas em fatores quantitativos e passiacuteveis de mensuraccedilatildeo Dessa

perspectiva ao inveacutes das lsquoformas substanciaisrsquo e lsquoqualidades reaisformas acidentaisrsquo o

universo cartesiano seraacute constituiacutedo apoacutes a supressatildeo do hilemorfismo aristoteacutelico

representado por seu famoso lsquodualismorsquo corpo-alma20 por um material singular e

homogecircneo ao qual ele denominaraacute res extensa21 Assim Descartes recusa a noccedilatildeo de

forma substancial como princiacutepio explicativo do mundo natural e em seu lugar vai

estabelecer um princiacutepio puramente material representado pela noccedilatildeo de res extensa

com as consequentes qualidades primaacuterias que considera ser-lhe inerente ndash figura

movimento grandeza nuacutemero ndash como objeto de estudo da filosofia natural reduzindo

assim o objeto da fiacutesica agrave geometria

18 Leibniz apesar de contrariado com o fato de as formas substanciais se encontrarem tatildeo desacreditadas uma vez que as considera diferentemente de Descartes uacuteteis em seu aspecto lsquometafiacutesicorsquo afirma por outro lado em acordo com Descartes que a consideraccedilatildeo dessas formas em nada serve ao pormenor da fiacutesica natildeo se devendo por isso empregaacute-las para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos particulares ldquoOs escolaacutesticos e os meacutedicos do passado a exemplo deles falharam ao acreditar fornecer a razatildeo das propriedades dos corpos recorrendo agraves formas e agraves qualidades sem se darem ao trabalho de examinar sua maneira de operaccedilatildeo como se algueacutem se contentasse em dizer que um reloacutegio tem a qualidade de indicar as horas devido a sua forma [substancial] sem considerar em que isto consisterdquo (LEIBNIZ Metaphysische abhandlung pp 20-22) rdquoEt crsquoest en quoi nos scholastiques ont manqueacute et les Meacutedecins du temps passeacute agrave leur exemple croyant de rendre raison des proprieteacutes des corps em faisant mention des formes et des qualiteacutes sans se mettre en peine drsquoexaminer la maniegravere de lrsquooperation comme si on se voulait contenter de dire qursquoune horloge a la qualiteacute horodictique provenante de sa forme sans considerer en quoi tout cela consisterdquo 19 ALLAN The philosophy of Aristotle p 115 ldquo[] the Form becomes a kind of invisible screen between the observer and the object of his study which prevents him from grasping and measuring and weighing itrdquo 20 Forlin esclarece as verdadeiras intenccedilotildees de Descartes ao propor o seu lsquodualismorsquo corpo-alma ldquoEacute comum afirmar que quando na Descartes na Meditaccedilatildeo segunda opera uma distinccedilatildeo radical entre corpo e alma o interesse cartesiano seria sobretudo o de mostrar que a alma eacute puramente imaterial e completamente independente do corpo Na verdade Descartes estaacute interessado eacute na contrapartida dessa distinccedilatildeo seu interesse eacute mostrar que o corpo eacute puramente material e completamente independente de qualquer alma ou forma como pressupunham os tomistas-aristoteacutelicos Tal condiccedilatildeo eacute necessaacuteria para se justificar metafiacutesicamente a elaboraccedilatildeo de uma ciecircncia da natureza que tem como objeto apenas a extensatildeo e suas propriedades geomeacutetricas e mecacircnicas ou seja eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para se validar metafisicamente a realizaccedilatildeo de uma fiacutesica-matemaacuteticardquo (FORLIN A metafiacutesica cartesiana e a fundamentaccedilatildeo da fiacutesica moderna p 89) 21Ao recusar as lsquoformas substanciasrsquo e as lsquoqualidades reaisrsquo ou lsquoformas acidentaisrsquo e afirmar que o universo eacute constituiacutedo apenas de res extensa i e de um princiacutepio material Descartes estaacute negando ao mesmo tempo assim como jaacute o fizera Galileu a existecircncia objetiva das lsquoqualidades secundaacuterias nos corpos ndash cores odores sabores etc Estas bem como todas as outras sensaccedilotildees seratildeo excluiacutedas dos objetos e corpos e realocados na mente do sujeito estando na base da inovadora concepccedilatildeo de mente e da revolucionaacuteria teoria da percepccedilatildeo cartesianas todos estes elementos fundamentando o inatismo desse autor A abordagem desses importantes temas cartesianos entretanto natildeo fazem parte do escopo do presente trabalho Para mais detalhes sobre tais questotildees cf TEIXEIRA Teoria das ideias inatismo e teoria da percepccedilatildeo em Descartes pp 487-515

223

O corolaacuterio mais imediato dessa alteraccedilatildeo feita por Descartes no objeto de

estudo da filosofia natural reside no fato que no acircmbito da explicaccedilatildeo dos fenocircmenos

enquanto para os escolaacutesticos agrave maneira peripateacutetica o movimento e a mundaccedila nos

corpos ou entes naturais originavam-se no interior dos mesmos tendo como princiacutepio

originaacuterio a forma substancial que constitue sua essecircncia e determina seus atributos

numa fiacutesica mecanicista de tipo cartesiana movimento e mudanccedila advecircm

exclusivamente da interaccedilatildeo entre os corpos eou das partes constituintes dos mesmos

sendo portanto fatores exteriores a eles donde resulta que todos os fenocircmenos que lhes

satildeo atinentes podem ser explicados segundo padrotildees de causa e efeito empiricamente

verificaacuteveis e sobretudo matematicamente mensuraacuteveis

Na obra Le Monde ou Traiteacute de la Lumiegravere (AT 8) onde Descartes

apresenta as concepccedilotildees de sua filosofia natural ou fisica o que significa dizer

[] uma alternativa completamente mecanicista ao sistema de Aristoacuteteles efetivamente derivando heliocentrismo22 a partir de princiacutepios primeiros oferecendo uma nova e aparentemente viaacutevel concepccedilatildeo de mateacuteria [res extensa] e formulando leis fundamentais do movimento23 ndash leis que satildeo claramente passiacuteveis de quantificaccedilatildeo24

Encontra-se desde o princiacutepio a condenaccedilatildeo que o filoacutesofo francecircs efetua

em relaccedilatildeo agraves formas substanciais considerando-nas o obstaacuteculo que impede aquela

disciplina de se tornar uma verdadeira ciecircncia Nessa obra vecirc-se a recusa de Descartes

em compreender os fenocircmenos fiacutesicos atraveacutes de noccedilotildees como lsquoformarsquo lsquoqualidadersquo

lsquoaccedilatildeorsquo e outras semelhantes tatildeo caras agrave fiacutesica escolaacutestica Para ele uma fiacutesica que se

queira verdadeiramente ciecircncia deve estudar os entes da natureza mediante a anaacutelise de

suas partes extensas e do movimento que se estabelece entre elas

ldquoQue um outro diz ele numa clara alusatildeo aos escolaacutesticos pois imagine se quiser nessa madeira a Forma do fogo a Qualidade do calor e a Accedilatildeo que a queima como coisas totalmente diversas para

22 Agrave ocasiatildeo da condenaccedilatildeo de Galileu pela Inquisiccedilatildeo Descartes escreve a Mersenne acerca do comprometimento do Le Monde com o modelo copernicano ldquo[] Se ele [o movimento da Terra] eacute falso todos os fundamentos de minha Filosofia tambeacutem o satildeo pois ele se demonstra por eles de forma evidente E ele estaacute tatildeo ligado com todas as partes de meu Tratado que eu natildeo o poderia excluir dele sem tornar o restante totalmente defeituosordquo (DESCARTES Correspondecircncia a Mersenne AT 1 p 271) ldquo[] Srsquoil est faux tous les fondements de ma Philosophie le sont aussi car il se demonstre par eux eacutevidemment Et il est teacutellement lieacute avec toutes les parties de mon Traiteacute que je ne lrsquoen saurait deacutetacher sans rendre le reste tout defectueuxrdquo 23 Cf DESCARTES Le Monde AT 11 pp 38 e 41 e Principia AT 8 pp 62-66 24 GAUKROGER Descartesrsquo system of natural philosophy p 18 ldquo[] a fully mechanist alternative to Aristotelian systems one which effectively derives heliocentrism from first principles which offers a novel and apparently viable conception of matter and which formulates fundamental laws of motion ndash laws which are clearly open to quantitative elaborationrdquo

224

mim que temo me enganar se aiacute suponho qualquer coisa aleacutem do que necessariamente deve haver me contento em conceber o movimento de suas partes25rdquo26

Em suma a filosofia natural cartesiana opotildee-se por um lado aos obscuros

princiacutepios que Aristoacuteteles usara na explicaccedilatildeo do mundo fenomenal ndash e que satildeo

sistematica e ostensivamente empregados pelos escolaacutesticos ndash e por outro busca

construir uma sistema de explicaccedilatildeo do mundo natural apelando apenas a princiacutepios

claros e evidentes isto eacute tangiacuteveis e mensuraacuteveis tal como o faria um geocircmetra

Apoiando-se sobre esses pressupostos ele afirma

[] Notei que absolutamente nada pertence agrave natureza do corpo exceto que seja somente uma coisa comprida larga e profunda capaz de vaacuterias figuras e de vaacuterios movimentos e [que] as figuras e os movimentos satildeo apenas modos dele que sem o mesmo atraveacutes de nenhuma [outra] faculdade podem existir27

Desse modo Descartes elimina da ciecircncia natural todas as explicaccedilotildees

baseadas em princiacutepios anticientiacuteficos e obscurantistas tais como lsquoqualidades

sensiacuteveisrsquo lsquofaculdades fiacutesicasrsquo28 e lsquoformas substanciaisrsquo empregados fartamente pelos

escolaacutesticos em suas investigaccedilotildees naturais Em seu lugar surge a mera extensatildeo e as

qualidades primaacuterias como fatores explicativos dos fenocircmenos da natureza de modo

que todo o universo passa a ser visto como um grande ldquoengenho mecacircnicordquo Essas

inovaccedilotildees implementadas por Descartes representaram um enorme ganho de

simplicidade e precisatildeo o que contribuiu significativamente para o estabelecimento da

fiacutesica como uma ciecircncia baseada no meacutetodo experimental e no raciociacutenio matemaacutetico 25 A fiacutesica mecanicista de Descartes estaacute evidentemente comprometida com a teoria do corpuscularismo como se aduz da mencionada passagem Cf DESCARTES Principia AT 8 pp 323-325 26 DESCARTES Le Monde AT 11 p7 ldquoQursquoun autre donc imagine srsquoil veut en ce bois la Forme du feu la Qualiteacute de la chaleur et lrsquoAction que la brucircle comme des choses toutes diverses pour moi qui crains de me tromper si jrsquoy suppose quelque chose de plus que ce que je vois neacutecesseraiment y devoir ecirctre je me contente drsquoy concevoir le mouvement de ses partiesrdquo 27 DESCARTES Meditaccedilotildees acerca da filosofia primeira Sextas respostas AT 7 p 440 e AT 9 p 239 ldquo[] Adverti nihil plane ad rationem corporis pertinere nisi tantum quod sit res longa lata et profunda variarum figurarum variorumque motuum capax ejusque figuras ac motus esse tantum modos qui per nullam potentiam sine ipso possunt existere []rdquo 28 Em Le malade imaginaire (1673) Moliegravere ao lado de Racine La Fontaine Corneille Boileau Bossuet um dos mestres do Classicismo francecircs aquele movimento esteacutetico da literatura francesa de forte inspiraccedilatildeo cartesiana ( com efeito ordem clareza razatildeo anaacutelise verdade equiliacutebrio perfeiccedilatildeo satildeo valores do Classicismo) como que de maneira irocircnica fazendo eco agrave critica de Descartes agrave noccedilatildeo de forma substancial explora os efeitos cocircmicos das explicaccedilotildees escolaacutesticas aplicadas agrave medicina Na cena em questatildeo um futuro bacharel em medicina eacute questionado por um dos membros do corpo docente daquele faculdade a respeito da ldquo[] causa e razatildeo pela qual o oacutepio faz dormir []rdquo Ele lsquoescolasticamentersquo responde ldquoPorque haacute nele uma virtude dormitiva cuja natureza eacute embotar os sentidosrdquo (MOLIEgraveRE Le malade imaginaire scegravene XIV et derniegravere troisiegraveme intermegravede p 70) ldquo[] causam et rationem quare Opium facit dormire [] Quia est in eo [opio] Virtus dormitiva Cujus est natura Sensus assoupirerdquo

225

impulsionando assim sua separaccedilatildeo de sua matriz filosoacutefica29 Ainda que o modelo de

fiacutesica proposto por Descartes tenha sido superado por Newton nos dececircnios seguintes ndash

os Principia do inglecircs foram publicados em 1686 ndash a abordagem matemaacutetico-

quantitativa em oposiccedilatildeo agrave descritivo-qualitativa veiculada pelos escolaacutesticos

permanece incontestavelmente um dos mais importantes pilares da atividade cientiacutefica

Embora veemente e implacaacutevel em sua criacutetica Descartes natildeo foi o primeiro

nem o uacutenico pensador moderno a rejeitar as formas substanciais como fator explicatiacutevo

dos fenocircmenos naturais30 Antes dele as formas substancias jaacute tinham sido execradas

da filosofia natural por pensadores do quilate de Francis Bacon (1561-1626) e Galileu

Galilei (1564-1642) O inglecircs motivado pelo ideal de apresentar um novo meacutetodo para

a ciecircncia propocircs em seu Novum Organum uma completa reforma dos procedimentos

investigativos vigentes que se fundamentavam nos preceitos aristoteacutelicos dando ecircnfase

ao meacutetodo experimental e agrave consequente verificaccedilatildeo empiacuterica dos fatos De acordo com

ele ldquoeacute melhor dissecar a natureza do que abstraiacute-la [] Eacute melhor considerar a mateacuteria

sua conformaccedilatildeo sua accedilatildeo proacutepria e as leis de sua accedilatildeo e movimento pois formas satildeo

uma mera ficccedilatildeo da mente humana a natildeo ser que se chame por esse nome as leis [que

regem sua] accedilatildeordquo31 Natildeo haacute como negar que Descartes em sua criacutetica aos escolaacutesticos

estivesse motivado por priniacutecipios similares aos propostos por Bacon ainda que se deva

conceder que este fiel ao espiacuterito empiricista britacircnico fosse o lsquoarautorsquo do indutivismo

ao passo que Descartes propugnava um meacutetodo mais hipoteacutetico-dedutivo de iacutendole

racionalista O italiano por seu turno ignorou as praacuteticas cientiacuteficas aristoteacutelicas

filiando-se agrave uma epistemologia lsquoplatocircnicarsquo como sustentado pelo renomado historiador

da ciecircncia Alexander Koyreacute por acreditar que ldquoo livro da natureza estaacute escrito em

lingua matemaacuteticardquo32 Ou seja em Galileu assim como em Descartes a quantificaccedilatildeo e

29 A introduccedilatildeo do fator quantitativo cartesiano (e galilaico) em detrimento do fator qualitativo escolaacutestico cria finalmente condiccedilotildees para que a fiacutesica se desvencilhe do ranccedilo aristoteacutelico e possa progredir enquanto ciecircncia ldquoO fato de que ele [Aristoacuteteles] insiste na mudanccedila qualitativa como um dado uacuteltimo e natildeo percebe o valor da mensuraccedilatildeo eacute uma falta grave e uma das principais razotildees para a estagnaccedilatildeo da ciecircncia durante a Idade Meacutediardquo (ALLAN The philosophy of Aristotle 162) ldquo[] The fact that he insists on qualitative change as an ultimate datum and does not realize the value of measurement is a grave fault and is one of the main reasons for the stagnation of science during the Middle Agesrdquo 30 O que diferencia a criacutetica agraves formas substacircncias cartesiana daquela realizada por seus contemporacircneos eacute como observado na nota 16 acima o fato dela servir em Descartes para estabelecer a distinccedilatildeo real entre alma e corpo estando assim na base do argumento do cogito ou em outras palavras na base de sua metafiacutesica e tambeacutem na base da fiacutesica devido ao estabelecimento simultacircneo da res extensa 31 BACON Novum organum I 51 ldquo[] It is better to dissect than abstract nature [] It is best to consider matter its conformation its own action and the law of its action or motion for forms are a mere fiction of the human mind unless you will call the laws of action by that name 32 ldquoA filosofia estaacute escrita nesse grandiacutessimo livro que continuamente abre-se diante de nossos olhos (refiro-me ao universo) mas natildeo se pode entendecirc-lo se antes natildeo se aprende a entender a lingua e

226

a mensuraccedilatildeo em uma palavra a busca por precisatildeo ndash que se realiza atraveacutes da

geometrizaccedilatildeo da natureza ndash satildeo as bases da atividade cientiacutefica33 o que exclui

naturalmente avaliaccedilotildees de caraacuteter qualitativo agrave maneira dos escolaacutesticos

Esse aspecto da obra do filoacutesofo francecircs evidencia aquilo que poderiacuteamos

designar de a modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes Com efeito eacute fato plenamente

reconheciacutevel que Descartes estava tacitamente congregado aos muitos autores

contemporacircneos seus que combatiam o aristotelismo ainda hegemocircnico das Escolas e

universidades de modo que a criacutetica agraves formas substanciais natildeo caracteriza uma

singularidade em sua obra na verdade ela mostra que o nosso autor estava respirando

os novos ares que estavam sendo insuflados na filosofia ocidental Outro aspecto

relevante que situa a modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes eacute a adoccedilatildeo de ferramentas

matemaacutetico-geomeacutetricas para a soluccedilatildeo de problemas de filosofia natural em particular

e ao mesmo tempo conscientemente ou natildeo a tomada de partido a favor da

epistemologia platocircnicarsquo que agrave eacutepoca emergia como um antiacutedoto agrave onipresenccedila do

peripatismo na cultura europeacuteia ndash uma fortaleza quase inexpugnaacutevel34 Nas atuais

circusntacircncias negar Aristoacuteteles significava quase que necessariamente afirmar Platatildeo Natildeo haacute mais que duas grades vias abertas agrave especulaccedilatildeo metafiacutesica a de Platatildeo e a de Aristoacuteteles Pode-se ter uma metafiacutesica do inteligiacutevel que desconfia do sensiacutevel de meacutetodo matemaacutetico e que se prolonga por uma ciecircncia que mede ou uma metafiacutesica do concreto que desconfia do inteligiacutevel de meacutetodo bioloacutegico e que se prolonga por um ciecircncia que classifica [] Como ele tinha acabado de sair do

conhecer os caracteres com os quais estaacute escrito Ele estaacute escrito em lingua matemaacutetica e os caracteres satildeo triacircngulos ciacuterculos e outras figuras geomeacutetricas sem cujos meios eacute impossiacutevel entender por via humana as palavrasrdquo (GALILEU Il saggiatore pp 16-17) ldquoLa filosofia egrave scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli occhi (io dico lrsquouniverso) ma non si puograve intendere se prima non srsquoimpara a intender la lingua e conoscer i caratteri nersquo quali egrave scritto Eggli egrave scritto in lingua matematica e i caratteri son triangoli cerchi ed altre figure geometriche senza i quali mezzi egrave impossibile a intenderne umanamente parolardquo 33 Natildeo obstante sua repreensatildeo agrave ausecircncia de fundamentos metafiacutesicos na filosofia natural de Galileu que este elaborou ldquo[] sem ter considerado as causas primeiras da natureza []rdquo Descartes aquiesce ao modo de proceder do cientista italiano ldquoEu acho que no geral ele filosofa muito melhor que o vulgo ao se afastar o maacuteximo que ele pode dos erros da Escola e se aplicar a examinar as questotildees da fiacutesica atraveacutes de raciociacutenios matemaacuteticos Nisto eu estou inteiramente de acordo com ele e acredito que natildeo haacute outro meio para encontrar a verdaderdquo (DESCARTES Correspondecircncia a Mersenne AT 2 p 380) [] ldquoSans avoir considereacute les causes premiegraveres de la nature []rdquo ldquoJe trouve en geacuteneacuteral qursquoil philosophe beaucoup mieux que le vulgaire en ce qursquoil quitte les plus qursquoil peut les erreurs de lrsquoEacutecole et tacircche agrave examiner les matiegraveres physiques par des raisons matheacutematiques En cela je mrsquoaccorde interiegraverement avec lui et je tiens qursquoil nrsquoy a point drsquoautre moyen pour trouver la veriteacuterdquo 34 ldquoTalvez a mais interessante liccedilatildeo que possa ser aprendida ao observar a relaccedilatildeo de Descartes com a escolaacutestica eacute o absoluto poder e autoridade do aristotelismo durante o seacuteculo dezesseterdquo (ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 58) ldquoPerhaps the most interesting lesson that can be learned by looking at Descartesrsquo relations with scholastics is the sheer power and authority of Aristotelianism during the seventeenth centuryrdquo

227

aristotelismo no qual seus mestres tentaram o engajar Descartes podia apenas dirigir-se ao platonismo []35

Jolley em obra mais recente corrobora essa opiniatildeo ldquoOs filoacutesofos no

periacuteodo [seacuteculo dezessete] natildeo estavam realmente virando as costas agrave tradiccedilatildeo como um

todo eles estavam antes eclipsando Aristoacuteteles para trazer agrave luz Platatildeordquo36

De qualquer modo a partir das consideraccedilotildees feitas acima eacute liacutecito concluir

que Descartes foi um ferrenho criacutetico da tradiccedilatildeo De sua insatisfaccedilatildeo como aprendiz de

filosofia escolaacutestica elevou-se agrave condiccedilatildeo de renovador da filosofia natural aristoteacutelica

que ainda dominava o curriacuteculo acadecircmico na Europa do seacuteculo XVII Com efeito em

sua proacutepria eacutepoca Descartes jaacute era visto como um opositor da filosofia ensinada nas

Escolas o que acabou por resultar na inclusatildeo de suas obra no Index de Livros

Proibidos em 1663 com a seguinte notaccedilatildeo ldquoateacute que sejam corrigidosrdquo37 e na deacutecada

seguinte assistia-se agrave proibiccedilatildeo pelo governo francecircs do ensino das doutrinas

cartesianas Ambas accedilotildees foram impetradas pelos opositores da filosofia de Descartes

Descartes tinha mesmo como objetivo lsquoimplodirrsquo a filosofia escolaacutestica e para tal

propoacutesito chegou a escrever uma obra que pudesse substituir os manuais ateacute entatildeo

utilizados para o ensino da filosofia ndash os Principia Philosophiae (cf AT 8) obra

incompleta que pretendia ser um compilaccedilatildeo de todo o seu sistema de pensamento38

Bibliografia

ALLAN Donald James The philosophy of Aristotle Oxford Oxford University Press

1970 2nd ed

AQUINO Santo Tomaacutes de Commentaria in libros physicorum Disponiacutevel em

lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt 35 GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 199 ldquoIl nrsquoy a guegravere que deux grandes voies ouvertes agrave la speacuteculation meacutetaphysique celle de Platon et celle drsquoAristote On peut avoir une meacutetaphysique de lrsquointelligible meacutefiante agrave lrsquoeacutegard du sensible de meacutethode matheacutematique et se prolongeant par une science qui mesure ou une meacutetaphysique du concret meacutefiante du intelligible de meacutethode biologique et se prolongeant par une science qui classe [] Puisqursquoil venait de sortir de lrsquoaristoteacutelisme ougrave ses maicirctres avaient essayeacute de lrsquoengager Descartes ne pouvait que rentrer dans la platonisme []rdquo 36 JOLLEY The light of the soul Theories of ideas in Leibniz Malebranche and Descartes p 11 ldquophilosophers in the period [seventeenth-century] were not really turning their back on the tradition as a whole rather they were casting down Aristotle in order to raise up Platordquo 37 (ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 80) ldquodonec corriganturrdquo 38 Agradeccedilo ao professor Eneacuteias Forlin da Unicamp pelos comentaacuterios e sugestotildees que muito contribuiacuteram para o aperfeiccediloamento desse texto

228

______ Summa theologiae Disponiacutevel em

lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt

ARIEW Roger ldquoDescartes and scholasticism The Intellectual Background to

Descartesrsquo Thoughtrdquo In COTTINGHAM John (Ed) Cambridge Companion to

Descartes Cambridge Cambrigde University Press 1992

ARISTOTLE Physics Disponiacutevel em lthttpwwwloebclassicscomviewaristotle-

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BACON Francis Advancement of learning Novum organum New atlantis Chicago

Encyclopaedia Britannica (Great books of the Western world 28) 1994 2 ed

DAVIES Brian The Thought of Tomas Aquinas Oxford Claredon 1992

DESCARTES Reneacute Oeuvres de Descartes (publieacutees par Charles Adam amp Paul

Tannery) Disponiacutevel em

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FORLIN Eneacuteias ldquoA metafiacutesica cartesiana e a fundamentaccedilatildeo da fiacutesica modernardquo

Perspectiva filosoacutesica Vol 2 No 34 (jul-dez 2010) pp 81-95

GALILEU Galilei Il saggiatore Disponiacutevel em

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Cambridge University Press 2002

GILSON Eacutetienne Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du

systegraveme carteacutesien Paris Librairie Philosophique J Vrin 1951

LEIBNIZ Gottfried Wilhelm Metaphysische abhandlung Hamburg Verlag von Felix

Meiner 1962 (Philosophische bibliotek 260)

JOLLEY Nicholas The light of the soul Theories of ideas in Leibniz Malebranche

and Descartes New York Oxford University Press 1998

MOLIEgraveRE Jean Baptiste Poquelin Le malade imaginaire Disponiacutevel em

lthttpwwwtoutmolierenetoeuvreshtmlgt

229

TEIXEIRA WilliamldquoTeorias das ideias inatismo e teoria da percepccedilatildeo em Descartesrdquo

Cadernos Espinosanos Satildeo Paulo Grupo de Estudos Espinosanos Ndeg 35 pp 487-515

Jul-Dez 2016

FECHAMENTO EPISTEcircMICO

Steven Luper1

A maioria de noacutes pensa que pode seguramente aumentar a sua base de conhecimento

aceitando coisas que satildeo implicadas (ou logicamente implicadas) por aquilo que sabemos

Aproximadamente falando o conjunto de coisas que sabemos eacute fechado sob implicaccedilatildeo

(ou sob deduccedilatildeo ou implicaccedilatildeo loacutegica) de modo que sabemos que uma determinada

afirmaccedilatildeo eacute verdadeira reconhecendo e como resultado aceitando que ela se segue

daquilo que sabemos Isso natildeo quer dizer que o modo pelo qual usualmente aumentamos

o nosso conhecimento eacute simplesmente atraveacutes do reconhecimento e aceitaccedilatildeo daquilo que

se segue daquilo que jaacute sabiacuteamos Eacute claro que haacute muito mais coisas envolvidas Por

exemplo coletamos dados e construiacutemos explicaccedilotildees para eles e sob circunstacircncias

apropriadas aprendemos com os outros Mais precisamente quando alegamos saber que

alguma proposiccedilatildeo eacute verdadeira essa proacutepria alegaccedilatildeo estaacute sujeita ao erro geralmente

ver aquilo que se segue de uma alegaccedilatildeo de conhecimento nos permite reavaliar e ateacute

mesmo abandonar a nossa alegaccedilatildeo de conhecimento ao inveacutes de concluir que sabemos

aquilo se segue dela Contudo parece razoaacutevel pensar que se de fato sabemos que

alguma proposiccedilatildeo eacute verdadeira entatildeo estamos em posiccedilatildeo de saber que as coisas que se

seguem dessa proposiccedilatildeo satildeo tambeacutem verdadeiras Todavia alguns teoacutericos tecircm negado

que o conhecimento seja fechado sob implicaccedilatildeo loacutegica Os argumentos contra o

fechamento incluem os seguintes

O argumento da anaacutelise do conhecimento dada a anaacutelise correta o

conhecimento natildeo eacute fechado Por exemplo se a anaacutelise correta inclui uma

condiccedilatildeo de rastreamento entatildeo o fechamento falha

1 Traduzido por Luiz H M Segundo Doutorando em epistemologia (UFSC) Departamento de Filosofia (UFOP) email luizhelveciosegundogmailcom Artigo originalmente publicado em LUPER S ldquoEpistemic Closurerdquo The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2016 Edition) Edward N Zalta (ed) Disponiacutevel em httpsplatostanfordeduarchivesspr2016entriesclosure-epistemic

231

O argumento do natildeo-fechamento dos modos de conhecimento uma vez que

os modos de se obter preservar e aumentar o conhecimento tal como a

percepccedilatildeo o testemunho a demonstraccedilatildeo a memoacuteria a indicaccedilatildeo e a

informaccedilatildeo natildeo satildeo individualmente fechados tambeacutem natildeo eacute o

conhecimento

O argumento das proposiccedilotildees incognosciacuteveis (ou natildeo facilmente

conheciacuteveis) certas proposiccedilotildees natildeo podem ser conhecidas (sem meios

especiais) dado o fechamento elas poderiam ser conhecidas (sem

capacidades especiais) a partir da deduccedilatildeo de afirmaccedilotildees mundanas que

sabemos de modo que o conhecimento natildeo eacute fechado

O argumento do ceticismo o ceticismo eacute falso mas seria verdadeiro se o

conhecimento fosse fechado de modo que o conhecimento natildeo eacute fechado

Embora os proponentes do fechamento tenham respostas para esses argumentos eles

tambeacutem argumentam mais ou menos ao estilo de G E Moore (1959) que o fechamento

eacute um dado firme ndash eacute bastante oacutebvio para excluir qualquer compreensatildeo do conhecimento

ou de noccedilotildees correlatas que minem o fechamento

Uma ideia bastante proacutexima eacute a de que nos eacute racional (justificaacutevel) acreditar em tudo

aquilo que se siga daquilo que nos eacute racional acreditar Essa ideia estaacute intimamente

relacionada agrave tese de que o conhecimento eacute fechado uma vez que de acordo com muitos

teoacutericos saber que p implica acreditar justificadamente que p Se o conhecimento implica

a justificaccedilatildeo a falha no fechamento dessa uacuteltima poderia conduzir agrave falha no fechamento

daquele

1 O Fechamento do Conhecimento

O que significa precisamente dizer que o conhecimento eacute fechado sob implicaccedilatildeo Uma

resposta eacute que o seguinte princiacutepio direto de fechamento do conhecimento sob implicaccedilatildeo

eacute verdadeiro

SP Se uma pessoa S sabe que p e p implica q entatildeo S sabe que p

A condicional envolvida no princiacutepio direto poderia ser a condicional

material a condicional subjuntiva ou a implicaccedilatildeo produzindo trecircs

possibilidades cada uma mais forte do que a outra

SP1 S sabe que p e p implica q somente se S sabe que q

SP2 Se S soubesse algo p que implicasse q S saberia que q

232

SP3 Eacute necessariamente o caso que S sabe que p e p implica q somente se S

sabe que q

Poreacutem cada uma das versotildees do princiacutepio direto eacute falsa uma vez que

podemos saber algo p mas natildeo ver que p implica q ou por alguma outra razatildeo natildeo

acreditar em q Uma vez que o conhecimento implica crenccedila (de acordo com quase todos

os teoacutericos) natildeo sabemos que q Uma preocupaccedilatildeo menos oacutebvia eacute que poderiacuteamos

raciocinar mal e vir a acreditar que p implica q Talvez pensemos que p implica q porque

pensamos que qualquer coisa implica qualquer coisa ou porque temos um formigamento

no dedatildeo do peacute Hawthorne (2005) levanta a possibilidade de que ao aprender que p

implica q S deixe de saber que p Ele tambeacutem nota que SP1 eacute defensaacutevel sob a suposiccedilatildeo

(desviante) de que um pensamento p eacute equivalente a outro q se p e q valem em todos

os mundos possiacuteveis Suponha que p implica q Entatildeo p eacute equivalente agrave conjunccedilatildeo de p

e q e assim o pensamento de que p eacute idecircntico ao de que p e q Por conseguinte ao saber

que p S sabe p e q Supondo que ao saber p e q S sabe que p e S sabe que q entatildeo

quando S sabe que p tambeacutem sabe que q como diz SP1

O princiacutepio direto precisa de qualificaccedilatildeo mas natildeo precisamos nos preocupar

com isso jaacute que tais qualificaccedilotildees apresentam-se naturalmente dada a ideia que estamos

tentando captar nomeadamente que podemos aumentar o nosso conhecimento atraveacutes

do reconhecimento e da aceitaccedilatildeo daquelas coisas que se seguem daquilo que sabemos

As qualificaccedilotildees introduzidas no seguinte princiacutepio (interpretado como uma condicional

material) parecem bastante naturais

K Se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que p implica q entatildeo

S sabe que q

Como nota Williamson (2000) a ideia de que podemos aumentar o nosso conhecimento

deduzindo a partir daquilo que sabemos apoia um princiacutepio de fechamento que eacute mais

forte do que K Eacute um princiacutepio que diz que sabemos coisas que acreditamos com base em

serem conjuntamente implicados por vaacuterios itens que sabemos separadamente Suponha

que eu saiba que Maria seja alta e que eacute canhota K natildeo nos autoriza a juntar esses dois

itens de conhecimentos de modo a saber que Maria eacute alta e eacute canhota Mas o seguinte

princiacutepio generalizado de fechamento cobre deduccedilotildees envolvendo itens conhecidos

separados

GK Se ao saber vaacuterias proposiccedilotildees S acredita que p porque S sabe que elas

implicam p entatildeo S sabe que p

233

Alguns teoacutericos distinguem entre agravequilo que chamam ldquofechamento de premissa uacutenicardquo

daquilo a que chamam ldquofechamento de muacuteltiplas premissasrdquo Tais teoacutericos negariam que

K capte o fechamento de ldquopremissa uacutenicardquo pois K diz que S sabe que q se S sabe que

duas coisas satildeo verdadeiras que p eacute verdadeira tanto quanto p implica q O fechamento

de ldquopremissa uacutenicardquo eacute geralmente formulado como se segue (seguindo Williamson 2002

e Hawthorne 2004)

SPK Se ao saber que p S acredita que q por deduzir competentemente q a

partir de p entatildeo S sabe que q

Estaacute longe de ser claro poreacutem que podemos deduzir competentemente q a partir de p

sem depender de qualquer conhecimento afora p Felizmente parece que nada depende

dessa possibilidade exceto talvez para aqueles que estejam interessados em se podemos

identificar algo que possa ser apropriadamente chamado de ldquoprinciacutepio de fechamento de

premissa uacutenicardquo

Os proponentes do fechamento poderiam aceitar tanto K quanto GK talvez

qualificados de modo natural (mas poderiam natildeo aceitar veja as questotildees sobre o

fechamento da justificaccedilatildeo na seccedilatildeo 6) Em contraste Fred Dretske e Robert Nozick

rejeitam K e GK Eles rejeitam qualquer princiacutepio de fechamento natildeo importa o quatildeo

restrito que garanta que saibamos que hipoacuteteses ceacuteticas (eg de que sou um ceacuterebro numa

cuba) sejam falsas com base em alegaccedilotildees mundanas de conhecimento (eg que natildeo estou

numa cuba) Aleacutem de rejeitarem K e GK eles negam o fechamento do conhecimento na

instanciaccedilatildeo e na simplificaccedilatildeo embora natildeo na equivalecircncia (Nozick 1981 227-229)

KI Se ao saber que todas as coisas satildeo F S acreditar que uma coisa particular

a eacute F porque S sabe que isso eacute implicado pelo fato de que todas as coisas satildeo

F entatildeo S sabe que a eacute F

KS Se ao saber que p e q S acredita que q porque S sabe que q eacute implicado

por p e q entatildeo S sabe que q

KE Se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que q eacute equivalente a

p entatildeo S sabe que q

Voltemo-nos para seus argumentos

2 O Argumento a partir da Anaacutelise do Conhecimento

234

O argumento a partir da anaacutelise do conhecimento diz que a abordagem correta do

conhecimento leva agrave falha de K Podemos distinguir duas versotildees De acordo com a

primeira K falha porque o conhecimento requer rastreamento de crenccedila De acordo com

a segunda qualquer abordagem das alternativas relevantes tal com as de Dretske e

Nozick leva agrave falha de K De acordo com Dretske (2003 112-3 2005 19) qualquer

abordagem das alternativas relevantes conduz ldquonaturalmenterdquo embora ldquonatildeo

inevitavelmenterdquo agrave falha de K

21 Falhas de Fechamento devido agrave Condiccedilatildeo de Rastreamento ao Conhecimento

Em linhas gerais a primeira versatildeo envolve a defesa da anaacutelise rastreadora

do conhecimento de Dretske ou de Nozick e em seguida mostra-se que ela mina K

(versotildees da abordagem rastreadora satildeo tambeacutem defendidas por Becker 2009 Murphy e

Black 2007 e Roush 2005 esse uacuteltimo modifica a abordagem rastreadora de modo a

preservar o fechamento para criacuteticas veja Brueckner 2012) Podemos pular a defesa que

consiste amplamente em mostrar que o rastreamento se sai melhor em lidar com as nossas

intuiccedilotildees epistecircmicas em casos de suposto conhecimento do que seus competidores

Podemos tambeacutem simplificar as anaacutelises De acordo com Nozick saber que p eacute grosso

modo (ignorando sua amplamente desacreditada quarta condiccedilatildeo criticada eg em

Luper 1984 e 2009 e em Kripke 2011) ter uma crenccedila de que p que satisfaccedila a seguinte

condiccedilatildeo (ldquoBTrdquo para crenccedila rastreadora [tracking belief])

BT fosse p falsa S natildeo acreditaria que p

Isto eacute nos mundos mais proacuteximos ao atual nos quais natildeo-p eacute o caso S natildeo acredita que

p O mundo atual eacute a situaccedilatildeo em que algueacutem se encontra quando adquire a crenccedila de que

p BT exige que em todos os mundos natildeo-p proacuteximos S natildeo acredite que p (A semacircntica

das condicionais subjuntivas eacute clarificada em Stalnaker 1968 Lewis 1973 e modificada

por Nozick 1981 nota 8) De acordo com a perspectiva de Dretske saber que p eacute

aproximadamente uma questatildeo de ter uma razatildeo R para acreditar que p que satisfaz a

seguinte condiccedilatildeo (ldquoCRrdquo para razatildeo conclusiva)

CR fosse p falsa R natildeo seria o caso

Isto eacute nos mundos proacuteximos ao atual em que natildeo-p eacute o caso R natildeo eacute o caso Quando R

satisfaz essa condiccedilatildeo Dretske diz que R eacute uma razatildeo conclusiva para acreditar que p

Dretske observa (2003 n 9 2005 n 4) que a sua perspectiva natildeo enfrenta

uma das objeccedilotildees que Saul Kripke (2011 162-224 Dretske tinha acesso a um rascunho

235

que circulava anterior agrave sua publicaccedilatildeo) apresenta contra a abordagem de Nozick

Suponha que eu esteja dirigindo por uma vizinhanccedila na qual desconhecido a mim

celeiros de papel machecirc estatildeo espalhados e que eu vejo que o objeto agrave minha frente eacute um

celeiro Tambeacutem noto que eacute vermelho Porque tenho perceptos diante de mim que satildeo

como celeiros acredito que celeiro o objeto diante de mim eacute um celeiro (comum) (o

exemplo eacute atribuiacutedo a Ginet em Goldman 1976) As nossas intuiccedilotildees sugerem que natildeo sei

que celeiro E assim dizem BT e CR Mas suponha agora que a vizinhanccedila natildeo tenha

quaisquer celeiros falsos vermelhos apenas os azuis satildeo falsos (Chamemos de caso do

celeiro vermelho) Assim de acordo com a perspectiva de Nozick posso rastrear o fato

de que haacute um celeiro vermelho uma vez que eu natildeo acreditaria que houvesse um celeiro

vermelho (via perceptos de celeiros vermelhos) caso natildeo houvesse qualquer celeiro

vermelho muito embora eu natildeo possa rastrear o fato de que haacute um celeiro uma vez que

eu poderia acreditar que houvesse um celeiro (via perceptos de celeiros azuis) ainda que

natildeo houvesse qualquer celeiro Dretske disse que essa justaposiccedilatildeo na qual sei algo e

mesmo assim natildeo sei uma segunda coisa que estaacute intimamente relacionada agrave primeira

(haver um celeiro vermelho o que sei implica haver um celeiro o que natildeo sei) ldquoeacute um

embaraccedilordquo e quanto a isso pensava ele a sua perspectiva eacute superior agrave de Nozick Seja

R a minha base para a crenccedila o fato de que tenho perceptos de celeiros vermelhos Se

natildeo houvesse qualquer celeiro R natildeo seria o caso de modo que sei que haacute um celeiro

Aleacutem disso se natildeo houvesse qualquer celeiro vermelho R ainda natildeo seria o caso de

modo que sei que haacute um celeiro vermelho Desse modo Dretske consegue evitar a

justaposiccedilatildeo objetaacutevel Contudo eacute surpreendente que Drestske cite o caso do celeiro

vermelho como base para se preferir a sua versatildeo do rastreamento em detrimento da de

Nozick Primeiro o proacuteprio Dretske aceitou justaposiccedilotildees de conhecimento e ignoracircncia

que satildeo pelo menos tatildeo bizarras quanto como veremos Segundo Nozick evita a proacutepria

justaposiccedilatildeo discutida por Dretske ajustando sua abordagem de modo a fazer referecircncia

aos meacutetodos pelos quais viemos a acreditar nas coisas (Hawthorne 2005) De acordo com

uma versatildeo mais polida Nozick disse que saber que p eacute grosso modo ter uma crenccedila de

que p obtida atraveacutes de um meacutetodo M que satisfaz a seguinte condiccedilatildeo (ldquoBMTrdquo para

rastreamento do meacutetodo da crenccedila)

BMT fosse p falsa S natildeo acreditaria que p via M

Se natildeo houvesse qualquer celeiro vermelho eu natildeo acreditaria nem que houvesse um

celeiro e nem que houvesse um celeiro vermelho via perceptos de celeiros vermelhos

236

Terceiro o caso do celeiro vermelho eacute um caso em que as intuiccedilotildees variam

Natildeo eacute oacutebvio que eu saiba haver um celeiro vermelho nas circunstacircncias que Dretske

esboccedila que diferem das do exemplo original de Ginet (em que consigo saber celeiro)

apenas nas estipulaccedilotildees de que vejo um celeiro vermelho e que nenhuns dos simulacros

de celeiro satildeo vermelhos Aleacutem do mais ambas as abordagens de Dretske e Nozick tecircm

a estranha implicaccedilatildeo de que sei que haacute um celeiro caso eu baseie a minha crenccedila nos

perceptos de celeiro vermelho e que natildeo sei quando ao baseaacute-la em meus perceptos de

celeiro ignoro a cor do celeiro Presumivelmente a cor do celeiro natildeo eacute relevante para

que ele seja um celeiro

As abordagens rastreadoras permitem contraexemplos a K A ilustraccedilatildeo mais

conhecida de Dretske eacute o caso da zebra suponha que vocecirc estaacute num zooloacutegico em

condiccedilotildees comuns de fronte a uma jaula marcada ldquozebrardquo o animal na jaula eacute uma zebra

e vocecirc acredita que zeb o animal na jaula eacute uma zebra pois vocecirc tem perceptos visuais

de uma zebre na jaula Ocorre a vocecirc que zeb implica natildeo-mula natildeo eacute o caso que o animal

na jaula seja uma mula disfarccedilada ao inveacutes de uma zebra Vocecirc entatildeo acredita que natildeo-

mula deduzindo-a de zeb Vocecirc sabe isso Vocecirc sabe zeb uma vez que se zeb fosse falsa

vocecirc natildeo teria perceptos visuais de uma zebre na jaula ao inveacutes vocecirc teria perceptos de

uma jaula vazia ou perceptos de um oricteacuteropo ou algo parecido Vocecirc sabe que natildeo-

mula Se natildeo-mula fosse falsa vocecirc ainda teria perceptos visuais de uma zebre na jaula

(e vocecirc ainda acreditaria que zeb e ainda acreditaria que natildeo-mula deduzindo-a de zeb)

Assim vocecirc natildeo sabe que natildeo-mula Mas note que temos

a Vocecirc sabe que zeb

b Vocecirc acredita que natildeo-mula por reconhecer que zeb implica natildeo-mula

c Vocecirc natildeo sabe que natildeo-mula

Por conta de (a)-(c) temos um contraexemplo a K que implica que se (a) vocecirc sabe que

zeb e (b) vocecirc acredita que natildeo-mula por reconhecer que zeb implica natildeo-mula entatildeo

vocecirc sabe natildeo-mula contraacuterio a (c)

Tendo rejeitado K e negado que sabemos coisas como natildeo-mula Nozick

tambeacutem negou o fechamento atraveacutes da simplificaccedilatildeo Pois se alguma proposiccedilatildeo p

implica outra proposiccedilatildeo q entatildeo p eacute equivalente agrave conjunccedilatildeo p amp q de acordo com isso

dado o fechamento atraveacutes da equivalecircncia que Nozick aceita se sabemos que zeb

podemos saber a conjunccedilatildeo zeb amp natildeo-mula mas se tambeacutem aceitamos o fechamento

atraveacutes da simplificaccedilatildeo seremos capazes de saber que natildeo-mula

237

Em resposta agrave primeira versatildeo do argumento da anaacutelise do conhecimento

alguns teoacutericos (eg Luper 1984 BonJour 1987 DeRose 1995) argumentaram que K eacute

tatildeo plausiacutevel (o que Dretske reconheceu em 2005 18) que soacute deveria ser abandonado

frente a razotildees fortes muito embora natildeo haja tais razotildees

A fim de mostrar que natildeo haacute fortes razotildees para abandonar K os teoacutericos tecircm

fornecido abordagens do conhecimento que (a) lidam com as nossas intuiccedilotildees pelo menos

tatildeo bem quanto as anaacutelises rastreadoras e ainda (b) subscrevem K Uma maneira de ser

fazer isso eacute enfraquecer as anaacutelises rastreadoras de modo que saibamos as coisas que

rastreamos ou que acreditamos porque sabemos que se seguem de coisas que rastreamos

(esse tipo de opccedilatildeo foi usada contra Nozick por vaacuterios teoacutericos Roush a defende em 2005

41-51) Outra abordagem eacute a que se segue Saber que p eacute grosso modo uma questatildeo de

ter uma razatildeo R para acreditar que p que satisfaz a seguinte condiccedilatildeo (ldquoSIrdquo para indicaccedilatildeo

segura [safe indication])

SI se R fosse o caso p seria o caso

SI requer que p seja verdadeira nos mundos R proacuteximos Quando R satisfaz essa

condiccedilatildeo dizemos que R eacute um indicador seguro de que p eacute verdadeiro (Versotildees

diferentes da condiccedilatildeo de seguranccedila tecircm sido defendidas veja por exemplo Luper 1984

Sosa 1999 2003 2007 2009 Williamson 2000 e Pritchard 2007) SI eacute a contraposiccedilao

de CR embora a contraposiccedilatildeo de uma condicional subjuntiva natildeo seja equivalente agrave

original

Suponhamos sem um argumento que SI daacute conta dos casos de conhecimento

e ignoracircncia assim como intuitivamente CR daacute Por que dizer que SI subscreve K O

ponto principal eacute que se R indica seguramente que p eacute verdadeira entatildeo indica

seguramente que q eacute verdadeira quando q eacute alguma das consequecircncias de p Posto de

outro modo o ponto eacute que o seguinte raciociacutenio eacute vaacutelido (sendo uma instacircncia do

fortalecimento da consequecircncia)

1 Se R fosse o caso p seria verdadeiro (ie R indica seguramente que p)

2 p implica q

3 Assim se R fosse o caso q seria verdadeiro (ie R indica seguramente que

q)

Assim se uma pessoa S sabe que p com base em R S estaacute em posiccedilatildeo de saber que q com

base em R quando q se segue de p S estaacute tambeacutem em posiccedilatildeo de saber que q com base

na conjunccedilatildeo de R junto do fato de que p implica q Assim se S sabe que p com base em

238

R e acredita em q com base em R (em que p repousa) junto do fato que p implica q entatildeo

S sabe que q Novamente se

(a) S sabe que p (com base em R) e

(b) S acredita que q por reconhecer que p implica q (de modo que S acredita

que q com base em R em que p repousa junto do fato de que p implica q)

entatildeo

(c) S sabe que q (com base em R e o fato de que p implica q) como K requer

Para ilustrar usemos o exemplo de Dretske Tendo baseado a sua crenccedila de

que zeb em seus perceptos de zebra na jaula vocecirc sabe zeb de acordo com SI

dadas suas circunstacircncias tivesse vocecirc outros perceptos zeb seria verdadeira

Aleacutem do mais quando vocecirc acredita que natildeo-mula por primeiro acreditar que

zeb com base nos seus perceptos de zebra na jaula e entatildeo deduz natildeo-mula de

zeb vocecirc sabe natildeo-mula de acordo com SI se vocecirc tivesse esses perceptos

natildeo apenas zeb seria o caso como tambeacutem sua consequecircncia natildeo-mula

Desviemo-nos um pouco a fim de notar que algumas versotildees da abordagem

da seguranccedila natildeo preservam o fechamento (Murphy 2005 apresenta essa objeccedilatildeo contra

a versatildeo de Sosa da abordagem da seguranccedila) Por exemplo ateacute certo ponto Ernest Sosa

discutiu a seguinte versatildeo da condiccedilatildeo

Se S acreditasse que p p seria verdadeira

Isso eacute exigir que a crenccedila de uma pessoa indique seguramente a sua verdade Contudo eacute

inteiramente possiacutevel estar numa situaccedilatildeo em que a crenccedila indique seguramente a sua

verdade muito embora a condiccedilatildeo exigida natildeo seja satisfeita para algo que se siga de tal

crenccedila O ponto pode ser ilustrado atraveacutes de uma versatildeo do caso do celeiro vermelho

Suponha que (com base em meus perceptos de celeiro vermelho) acredito que celeiro

vermelho haacute um celeiro vermelho em minha frente Suponha tambeacutem que haacute de fato um

celeiro vermelho em minha frente Contudo (vocecirc adivinhou) muitos celeiros falsos foram

espalhados pela vizinhanccedila todos eles azuis e natildeo vermelhos Nos mundos proacuteximos nos

quais acredito que celeiro vermelho estou correto e portanto satisfaccedilo a condiccedilatildeo

exigida para saber celeiro vermelho que eacute a de minha crenccedila em celeiro vermelho indicar

seguramente a sua proacutepria verdade Ora celeiro vermelho implica celeiro haacute um celeiro

em minha frente Mas de acordo com a perspectiva proposta a condiccedilatildeo exigida para

saber celeiro natildeo eacute que a minha crenccedila de que celeiro vermelho indique seguramente que

celeiro eacute o caso O que eacute exigido ao inveacutes eacute que a minha crenccedila de que celeiro indique

seguramente sua proacutepria verdade Supondo que eu acreditasse que celeiro caso eu visse

239

um dos celeiros azuis falsos entatildeo a minha crenccedila de que celeiro natildeo indica seguramente

sua verdade

Retomando K falha se o conhecimento implica CR mas natildeo se o

conhecimento implica SI mas pode natildeo ser possiacutevel subscrever K meramente por

substituir CR por SI uma vez que alguma outra condiccedilatildeo para o conhecimento poderia

bloquear o fechamento Podemos subscrever o fechamento se supusermos que acreditar

que p em bases ldquosegurasrdquo eacute suficiente para saber que p mas essa suposiccedilatildeo eacute duvidosa

Do modo como entendemos a seguranccedila podemos acreditar nas coisas com bases seguras

sem as saber Um exemplo oacutebvio eacute qualquer verdade necessaacuteria porque elas satildeo o caso

em todos os mundos possiacuteveis podemos acreditar seguramente nelas por qualquer razatildeo

Como outro exemplo lembre-se do caso de celeiro vermelho discutido anteriormente a

despeito dos muitos celeiros azuis falsos na vizinhanccedila os meus perceptos de celeiro

vermelho satildeo indicadores seguros de que o objeto em minha frente eacute um celeiro e que eacute

um celeiro vermelho de modo que nenhuma justaposiccedilatildeo objetaacutevel (tal como sei que haacute

um celeiro vermelho mas natildeo sei que haacute um celeiro) ocorre embora alguns teoacutericos

insistiratildeo que nas circunstacircncias delineadas natildeo sei nem que o objeto eacute um celeiro nem

que eacute um celeiro vermelho

22 Falhas do Fechamento de acordo com a Abordagem das Alternativas Relevantes

A segunda versatildeo do argumento a partir da anaacutelise do conhecimento diz que

qualquer perspectiva das alternativas relevantes natildeo apenas as abordagens rastreadoras

estaacute em tensatildeo com K Uma anaacutelise eacute uma abordagem das alternativas relevantes quando

satisfaz duas condiccedilotildees Primeiro produz uma compreensatildeo apropriada de ldquoalternativa

relevanterdquo A abordagem de Dretske se qualifica assim uma vez que ela nos permite dizer

que uma alternativa A a p eacute relevante se e somente se

CRA fosse p falsa A poderia ser o caso

De acordo com a segunda condiccedilatildeo a anaacutelise tem de dizer que saber que p requer excluir

todas as alternativas relevantes a p mas natildeo todas as alternativas a p A abordagem de

Dretske se qualifica como tal novamente Ele diz que uma alternativa A eacute excluiacuteda com

base em R se e somente se a seguinte condiccedilatildeo eacute satisfeita

CRR se A fosse o caso R natildeo seria o caso

E de acordo com a abordagem de Dretske uma alternativa A tem de ser excluiacuteda se e

somente se A satisfaz CRA

240

Assim a abordagem rastreadora eacute uma abordagem das alternativas relevantes

Mas por que dizer que as abordagens das alternativas relevantes ao conhecimento estatildeo

em tensatildeo com K Diremos isso se como Dretske aceitarmos o seguinte princiacutepio

crucial a negaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo p eacute automaticamente uma alternativa relevante a p

(natildeo importa o quatildeo bizarra ou remota natildeo-p possa ser) embora geralmente natildeo seja uma

alternativa relevante agraves coisas que implicam p Para um teoacuterico das alternativas

relevantes esse princiacutepio sugere que podemos saber que p somente se pudermos excluir

natildeo-p mas podemos saber coisas que implicam p ainda que natildeo possamos excluir natildeo-p

o que abre a possibilidade de haver casos que violem K Pois embora a nossa

incapacidade de excluir natildeo-p nos impeccedila de saber que p ela natildeo nos impede de saber

coisas que impliquem p E jaacute temos um exemplo pronto em matildeos o caso da zebra Talvez

vocecirc natildeo possa excluir mula mas isso lhe impede de saber que natildeo-mula natildeo que saiba

zeb Esses pontos podem ser reformulados em termos da abordagem das razotildees

conclusivas Para Dretske a negaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo p eacute automaticamente uma

alternativa relevante uma vez que a condiccedilatildeo CRA eacute automaticamente satisfeita isto eacute

eacute vacuamente verdadeiro que

Fosse p falsa natildeo-p poderia ser o caso

Portanto mula eacute uma alternativa relevante a natildeo-mula Ademais vocecirc natildeo saberaacute natildeo-

mula uma vez que natildeo puder excluir mula vocecirc acredita que natildeo-mula com base em seus

perceptos de zebra na jaula mas ainda os teria caso mula fosse o caso contraacuterio a CRR

Contudo vocecirc sabe zeb a despeito de sua incapacidade de excluir mula pois fosse zeb

falsa vocecirc natildeo teria os perceptos de zebra na jaula

De acordo com a segunda versatildeo do argumento da anaacutelise do conhecimento

qualquer perspectiva das alternativas relevantes estaacute em tensatildeo com K O quatildeo persuasivo

eacute esse argumento Como reconheceu Dretske (2003) eacute de fato um ataque fraco a K uma

vez que algumas abordagens das alternativas relevantes satildeo completamente consistentes

com K Como exemplo temos apenas de adaptar a perspectiva da indicaccedilatildeo segura

tornando claro que ela eacute uma abordagem das alternativas relevantes (Luper 1984 1987c

2006)

A perspectiva da indicaccedilatildeo segura pode ser adaptada em dois passos

Primeiro dizemos que uma alternativa a p A eacute relevante se e somente se a seguinte

condiccedilatildeo eacute satisfeita

SRA Nas circunstacircncias de S A poderia ser o caso

241

Assim qualquer possibilidade que seja remota eacute automaticamente irrelevante falhando

SRA Segundo dizemos que A eacute excluiacuteda com base em R se e somente se a seguinte

condiccedilatildeo eacute satisfeita

SIR fosse R o caso A natildeo seria o caso

Esse modo de entender as alternativas relevantes manteacutem K O ponto central

eacute que se S sabe que p com base em R e eacute por isso capaz de excluir as alternativas

relevantes a p entatildeo S pode tambeacutem excluir as alternativas relevantes a q em que q eacute

algo implicado por p Se R natildeo fosse o caso as alternativas a q natildeo seriam tambeacutem

Aparentemente a abordagem das alternativas relevantes pode ser interpretada

de modo que apoie K tanto quanto de modo que natildeo apoie Assim Dretske natildeo estaacute na

melhor posiccedilatildeo ao dizer que a perspectiva das alternativas relevantes leva ldquonaturalmenterdquo

agrave falha do fechamento

23 Fechamento e Confiabilismo

De acordo com uma versatildeo do confiabilismo (defendida por Ramsey 1931 e

Armstrong 1973 dentre outros) algueacutem sabe que p se e somente se adquire (ou sustenta)

a crenccedila de que p atraveacutes de um meacutetodo confiaacutevel Estaacute o confiabilista comprometido

com K A resposta depende precisamente de como a noccedilatildeo relevante do confiabilismo eacute

entendida Se entendermos a confiabilidade como os teoacutericos do rastreamento entendem

rejeitaremos o fechamento Mas haacute outras versotildees do confiabilismo que sustentam K Por

exemplo a abordagem da indicaccedilatildeo segura eacute um tipo de confiabilismo Poderiacuteamos

tambeacutem dizer que uma crenccedila verdadeira de que p eacute confiavelmente formada se e

somente se for baseada num evento que geralmente ocorreria somente se p (ou uma

crenccedila do tipo p) fosse verdadeira Nesse sentido qualquer evento que indique

confiavelmente que p eacute verdadeira tambeacutem indicaraacute confiavelmente que as consequumlecircncias

de p satildeo verdadeiras

3 O Argumento do Natildeo-Fechamento dos Modos de Conhecimento

Dretske argumentou (2003 2005) que deveriacuteamos esperar que K falhe porque nenhum

dos modos de obter preservar e aumentar o conhecimento satildeo individualmente fechados

Dretske apresenta seu argumento na forma de uma pergunta retoacuterica ldquode que modo

242

algueacutem poderia fechar algo quando todos os modos de obtecirc-lo estendecirc-lo e preservaacute-lo

estatildeo em abertordquo (2003 113-4)

31 Modos de Conhecimento e Natildeo-Fechamento

Como exemplos de modos de obter sustentar e aumentar o conhecimento

Dretske sugeriu a percepccedilatildeo o testemunho a demonstraccedilatildeo a memoacuteria a indicaccedilatildeo e a

informaccedilatildeo Dizer que esses itens natildeo satildeo individualmente fechados eacute dizer que os

seguintes princiacutepios de fechamento para modos com ou sem qualificaccedilotildees parenteacuteticas

satildeo falsos

PC Se S percebe que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica q

entatildeo S percebe q

TC Se S recebeu o testemunho de que p e (S acredita que q porque S sabe

que) p implica q entatildeo S recebeu o testemunho de que q

OC Se S demonstrou que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica

q entatildeo S demonstrou que q

RC Se S se lembra que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica

q entatildeo S se lembra de q

IC Se R indica que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica q

entatildeo R indica que q

NC Se R carrega a informaccedilatildeo de que p e (S acredita que q porque S sabe

que) p implica q entatildeo R carrega a informaccedilatildeo de que q

E de acordo com Dretske cada um desses princiacutepios eacute falso Podemos perceber que

temos matildeos por exemplo sem perceber que haacute coisas fiacutesicas

32 Respostas a Dretske

Houve vaacuterias reacuteplicas ao argumento de Dretske contra o fechamento com base

nos modos de conhecimento

Primeiro a falha de um ou mais princiacutepios de fechamento para modos natildeo

implica que K falhe O que importa eacute se os vaacuterios modos de conhecimento discutidos por

Dretske nos deixam em posiccedilatildeo de saber as consequecircncias das coisas que sabemos Em

outras palavras a questatildeo eacute se o seguinte princiacutepio eacute verdadeiro

243

T Se ao saber que p via percepccedilatildeo testemunho demonstraccedilatildeo memoacuteria ou

algo que indique ou carregue a informaccedilatildeo de que p S acredita que q porque

p implica q entatildeo S sabe que q

Segundo os teoacutericos tecircm defendido alguns princiacutepios de fechamento para

modos tais como PC IC e NC Dretske rejeita esses trecircs princiacutepios porque pensa que a

percepccedilatildeo a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo satildeo melhores analisados em termos de razotildees

conclusivas o que mina o fechamento Mas os trecircs princiacutepios (ou algo muito proacuteximos

deles) podem ser defendidos se analisarmos a percepccedilatildeo a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo em

termos de indicaccedilatildeo segura Considere IC e NC Ambos satildeo verdadeiros se analisarmos

a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo como se segue

R indica p sse p seria verdadeiro se R fosse o caso

R carrega a informaccedilatildeo de que p sse p seria verdadeiro se R fosse o caso

Uma versatildeo de PC pode ser defendida se fizermos uso da noccedilatildeo de percepccedilatildeo do proacuteprio

Dretske (1969) Considere um cientista que estuda o comportamento de eleacutetrons atraveacutes

da observaccedilatildeo das bolhas que eles deixam para traacutes numa cacircmara de nuvens Os eleacutetrons

em si satildeo invisiacuteveis mas o cientista pode perceber que os eleacutetrons (invisiacuteveis) estatildeo se

movendo de certos modos por perceber que as bolhas (visiacuteveis) deixadas para traacutes estatildeo

dispostas de maneiras especiacuteficas O que percebemos diretamente nos coloca em posiccedilatildeo

de perceber vaacuterias coisas indiretamente Suponha pois que quando percebemos que p

direta ou indiretamente e isso nos causa a crenccedila de que q quando p implica q somos

deixados numa posiccedilatildeo de perceber q indiretamente Assim estamos corretos ao aceitar

alguma versatildeo de PC como por exemplo

SPC Se S percebe que p e isso causa em S a crenccedila de que q entatildeo S percebe

que q

4 O Argumento das Proposiccedilotildees Natildeo (Facilmente) Conheciacuteveis

Outro argumento antifechamento eacute o de que haacute alguns tipos de proposiccedilotildees que natildeo

sabemos a menos que tenhamos capacidades extraordinaacuterias embora essas proposiccedilotildees

sejam implicadas por afirmaccedilotildees mundanas cuja verdade sabemos Uma vez que isso seria

impossiacutevel caso K estivesse correto K tem de ser falso A mesma dificuldade eacute agraves vezes

discutida sob o roacutetulo de problema do conhecimento faacutecil uma vez que alguns teoacutericos

(Cohen 2002) acreditam que certas coisas satildeo difiacuteceis de conhecer no sentido de que natildeo

podem ser conhecidas por deduccedilatildeo a partir de conhecimento banal O argumento tem

244

diferentes versotildees dependendo de que proposiccedilotildees dizemos serem difiacuteceis de conhecer

De acordo com Dretske (e talvez Nozick) natildeo podemos saber facilmente que proposiccedilotildees

restritivas ou proposiccedilotildees de grande porte satildeo verdadeiras Essas proposiccedilotildees se

assemelham agraves proposiccedilotildees que Moore (1959) considerou verdadeiras com certeza e que

Wittgenstein (1969) declarou serem incognosciacuteveis (mas Wittgenstein as considerou

incognosciacuteveis com base nas duacutebias razotildees de que elas tecircm de ser verdadeiras caso

tenhamos de evitar duacutevidas) Outra possibilidade eacute que natildeo podemos facilmente saber

proposiccedilotildees loteacutericas Um caso especial do argumento das proposiccedilotildees incognosciacuteveis

comeccedila com a alegaccedilatildeo de que natildeo podemos saber a falsidade de hipoacuteteses ceacuteticas

Consideraremos essa terceira perspectiva na proacutexima seccedilatildeo

41 O Argumento das Proposiccedilotildees Restritivas

Dretske natildeo delineou claramente a classe das proposiccedilotildees a que chamou

ldquorestritivasrdquo (em 2003) ou ldquode grande porterdquo (em 2005) Alguns dos exemplos fornecidos

por ele satildeo ldquoHaacute um passadordquo ldquoHaacute objetos fiacutesicosrdquo e ldquoNatildeo estou sendo tapeado por uma

ilusatildeo engenhosardquo Ele parecia pensar que essas proposiccedilotildees tecircm uma propriedade a que

podemos chamar ldquoesquividaderdquo em que p eacute esquiva para mim se e somente se a falsidade

de p natildeo mudaria minhas experiecircncias Mas ser restritivo natildeo coincide com ser esquivo

Se natildeo houvesse objetos fiacutesicos as minhas experiecircncias seriam dramaticamente alteradas

uma vez que eu natildeo existiria Assim algumas proposiccedilotildees restritivas natildeo satildeo esquivas Eacute

difiacutecil dizer poreacutem se todas as afirmaccedilotildees esquivas satildeo restritivas por causa da

maleabilidade do termo ldquorestritivordquo Natildeo-mula eacute esquiva mas seraacute restritiva

Natildeo podemos saber proposiccedilotildees restritivas Se natildeo e se sabemos coisas que

as implicam Drestke pensou tivesse apoio adicional para a sua abordagem das razotildees

conclusivas supondo como ele fez que a sua abordagem exclui o conhecimento de

proposiccedilotildees restritivas (embora permita o conhecimento de coisas que as implicam)

Contudo essa suposiccedilatildeo eacute falsa (Hawthorne 2005 Luper 2006) Temos razatildeo conclusiva

para acreditar em algumas proposiccedilotildees restritivas tal como a de que haacute objetos fiacutesicos

Contudo Drestke poderia abandonar a noccedilatildeo de proposiccedilatildeo restritiva em favor da noccedilatildeo

de proposiccedilatildeo esquiva e citar em favor de sua abordagem das razotildees conclusivas e contra

K os fatos de que natildeo sabemos afirmaccedilotildees esquivas mas que podemos saber coisas que

as impliquem

245

A fim de excluir o conhecimento de proposiccedilotildees restritivasesquivas Dretske

ofereceu dois tipos de argumento aos quais podemos chamar o argumento da percepccedilatildeo

e o argumento da pseudocircularidade

O argumento da percepccedilatildeo comeccedila com as afirmaccedilotildees de que (a) natildeo

percebemos que afirmaccedilotildees restritivasesquivas satildeo o caso e (b) que natildeo sabemos via

percepccedilatildeo que afirmaccedilotildees restritivasesquivas satildeo o caso Uma vez que eacute difiacutecil ver como

de que modo mais poderiacuteamos saber proposiccedilotildees restritivasesquivas (a) e (b) satildeo boas

bases para se concluir que simplesmente natildeo sabemos que elas satildeo o caso

Sem duacutevida (a) e (b) tecircm uma plausibilidade consideraacutevel Natildeo obstante satildeo

controversas Para explicar a verdade de (a) e (b) Dretske contou com sua anaacutelise da

percepccedilatildeo baseada nas razotildees conclusivas Os seus criacuteticos podem citar a abordagem da

indicaccedilatildeo segura da percepccedilatildeo como base para a rejeiccedilatildeo de (a) e (b) Luper (2006) por

exemplo argumentou contra ambas principalmente com base na razatildeo de que podemos

indiretamente perceber e saber algumas afirmaccedilotildees esquivas (tal como natildeo-mula) por

perceber diretamente afirmaccedilotildees (como zeb) que as implicam

Dretske sugeriu outra razatildeo par excluir o conhecimento de afirmaccedilotildees

restritivasesquivas Ele pensa que podemos saber fatos banais (por ex tomamos cafeacute da

manhatilde) sem saber as afirmaccedilotildees restritivasesquivas implicadas por eles (por exo

passado eacute real) na medida em que tais afirmaccedilotildees restritivasesquivas satildeo verdadeiras

mas natildeo podemos inverter as coisas e empregar as primeiras como base para saber as

uacuteltimas Suponha que consideremos saber alguma afirmaccedilatildeo q inferindo-a de outra

proposiccedilatildeo p que sabemos mas que o nosso conhecimento de p depende em primeiro

lugar da verdade de q Chamemos a isso raciociacutenio pseudocircular De acordo com

Dretske o raciociacutenio pseudocircular eacute inaceitaacutevel e contudo eacute precisamente nele que

nos apoiamos ao tentar saber afirmaccedilotildees restritivasesquivas tal como a negaccedilatildeo das

hipoacuteteses ceacuteticas deduzindo-as de alegaccedilotildees comuns de conhecimento que as implicam

natildeo saberemos essas uacuteltimas para iniacutecio de conversa a menos que as primeiras sejam

verdadeiras O problema que Dretske levantou aqui foi apresentado anteriormente pelos

criacuteticos das abordagens confiabilistas mais amplas do conhecimento como Richard

Fumerton (1995 178) Jonathan Vogel (2000) a discute sobe o roacutetulo de facilitaccedilatildeo

[bootstrapping] o procedimento empregado quando eg algueacutem que natildeo tem evidecircncia

inicial sobre a confiabilidade de um medidor de gasolina vem a acreditar que p em vaacuterias

ocasiotildees diferentes porque o medidor indica que p e atraveacutes disso sabe que p de acordo

com as abordagens confiabilistas do conhecimento e entatildeo infere indutivamente que o

246

medidor eacute confiaacutevel Atraveacutes da facilitaccedilatildeo podemos passar ndash ilegitimamente de acordo

com Vogel ndash de crenccedilas formadas por um processo confiaacutevel ao conhecimento de que

aquelas crenccedilas foram obtidas por um processo confiaacutevel Algueacutem pode saber que p

usando um medidor somente se o medidor for confiaacutevel por conseguinte concluir que

ele eacute confiaacutevel com base somente em seus registros envolve raciociacutenio pseudocircular

Haacute muito se tem objetado contra alegaccedilotildees de conhecimento cuja verdade

depende de um fato que natildeo tenha sido estabelecido especialmente se esse fato eacute

meramente tomado por garantido Eacute tambeacutem comum rejeitar qualquer alegaccedilatildeo de

conhecimento cujo pedigree cheire a circularidade Ambas as preocupaccedilotildees surgem

quando alegamos saber que uma proposiccedilatildeo q eacute verdadeira com base nela ser implicada

por uma segunda proposiccedilatildeo p muito embora a verdade de q tenha sido tomada por

garantida para se saber que p eacute verdadeira Muitos teoacutericos rejeitaratildeo o raciociacutenio

pseudocircular precisamente por essa razatildeo tradicional Dretske natildeo partilha da primeira

preocupaccedilatildeo mas levantou a segunda a do raciociacutenio pseudocircular Haacute contudo um

crescente nuacutemero de trabalhos que rompe com a tradiccedilatildeo e defende algumas formas de

circularidade epistecircmica (esse trabalho eacute fortemente criticado por sua vez na medida em

que estaacute aberto a versotildees das objeccedilotildees tradicionais) Max Black (1949) e Nelson

Goodman (1955) satildeo exemplos iniciais outros incluem Van Cleve (1979 e 2003) Luper

(2004) Papineau (1992) e Alston (1993) O proacuteprio Dretske rompe com a tradiccedilatildeo ao

escrever sob a flacircmula do ldquoexternismordquo Ele explicitamente disse que a maior parte se

natildeo todas as nossas alegaccedilotildees mundanas de conhecimento dependem de fatos que natildeo

estabelecemos Na verdade ele citou isso como uma virtude da sua teoria das razotildees

conclusivas Contudo nada na natureza da abordagem das razotildees conclusivas exclui o

nosso conhecimento das proposiccedilotildees restritivas usar o raciociacutenio pseudocircular o que

deixa suas recomendaccedilotildees misteriosas Um conjunto de experiecircncias de potes pode

constituir uma razatildeo conclusiva para se acreditar em pote um pote de biscoitos estaacute em

minha frente Se eu entatildeo acredito que objetos haacute objetos fiacutesicos porque eacute implicada por

pote tenho uma razatildeo conclusiva para acreditar em objetos uma proposiccedilatildeo restritiva

(Se objetos fosse falsa pote tambeacutem seria e eu natildeo teria as experiecircncias de pote)

Dretske poderia ter lanccedilado matildeo da perspectiva que a abordagem das razotildees

conclusivas exclui o conhecimento de afirmaccedilotildees esquivas como opostas agraves restritivas

atraveacutes do raciociacutenio pseudocircular pois carecemos de razotildees conclusivas para

afirmaccedilotildees esquivas natildeo importa que tipo de raciociacutenio empreguemos Mas isso natildeo

coloca a abordagem de Dretske em perigo no que diz respeito ao raciociacutenio

247

pseudocircular E mesmo essa posiccedilatildeo mais restrita pode ser desafiada (adaptando-se um

ataque contra Nozick em Shatz 1987) Poderiacuteamos insistir que a proacutepria p eacute uma razatildeo

conclusiva par se acreditar que q quando sabemos que p e que p implica q Afinal

supondo que p implique q se q fosse falsa tambeacutem o seria p De acordo com essa

estrateacutegia temos um argumento adicional a favor de K se S sabe que p (com base em

alguma razatildeo conclusiva R) e S acredita que q porque S sabe que p implica q S tem uma

razatildeo conclusiva para acreditar que q a saber p (ao inveacutes de R) e por conseguinte S

sabe que q

Outra duacutevida sobre conhecer afirmaccedilotildees esquivas dedutivamente via

afirmaccedilotildees mundanas eacute que essa manobra eacute ampliativa de maneira improacutepria Cohen diz

que saber que a mesa eacute vermelha natildeo nos coloca em posiccedilatildeo de saber ldquoNatildeo sou um ceacuterebro

numa cuba sendo enganado para acreditar que a mesa eacute vermelhardquo nem ldquonatildeo eacute o caso que

a mesa seja branca iluminada por luzes vermelhasrdquo (2002 313) Na transiccedilatildeo da primeira

agrave uacuteltima o nosso conhecimento parece ter sido ampliado de maneira improacutepria Essa

preocupaccedilatildeo pode ser devido pelo menos em grande parte agrave falta de precisatildeo na

aplicaccedilatildeo do acarretamento ou implicaccedilatildeo dedutiva (Klein 2004) Seja vermelho a

proposiccedilatildeo de que a mesa eacute vermelha branco a proposiccedilatildeo de que a mesa eacute branca e luz

a proposiccedilatildeo de que a mesa estaacute sendo iluminada por uma luz vermelha Vermelho nada

implica sobre as condiccedilotildees sob as quais a mesa eacute iluminada Em particular natildeo implica a

conjunccedilatildeo luz amp natildeo-vermelho O maacuteximo que podemos inferir eacute que a conjunccedilatildeo branco

amp luz eacute falsa e isso natildeo nos daacute qualquer informaccedilatildeo sobre as condiccedilotildees de iluminaccedilatildeo da

mesa Poder-se-ia facilmente inferir a falsidade da conjunccedilatildeo branco amp natildeo-luz

Nenhuma ampliaccedilatildeo da proposiccedilatildeo conhecida original vermelho veio agrave tona

42 O Argumento das Proposiccedilotildees Loteacutericas

Parece claro que natildeo sei que natildeo-ganho natildeo ganharei a loteria estadual esta

noite muito embora as chances de eu acertar o resultado sejam ridiculamente pequenas

Mas suponha que desejo profundamente possuir uma casa de campo de 10 milhotildees de

doacutelares na Riviera Francesa Parece plausiacutevel dizer que sei que natildeo-compro natildeo

comprarei essa casa de campo amanhatilde uma vez que careccedilo de recursos e sei a

condicional se ganho entatildeo compro ie amanhatilde comprarei a casa de campo se eu ganhar

na loteria estadual esta noite Da condicional e natildeo-compro segue-se que natildeo-ganho e

assim dado o fechamento saber a condicional e natildeo-compro me deixa em posiccedilatildeo de

248

saber natildeo-ganho Como esse raciociacutenio mostra a incognoscibilidade de afirmaccedilotildees como

natildeo-ganho mais a cognoscibilidade de afirmaccedilotildees como natildeo-compro nos deixa em

posiccedilatildeo de lanccedilar outro ataque ao fechamento

Seja uma proposiccedilatildeo loteacuterica uma proposiccedilatildeo assim como natildeo-ganho que

pode (pelo menos normalmente) ser apoiada em bases cuja probabilidade eacute bem alta mas

menor que 1 Vogel (1990 2004) e Hawthorne (2004 2005) notaram que um grande

nuacutemero de proposiccedilotildees que natildeo envolvem efetivamente loterias se assemelham a

proposiccedilotildees loteacutericas por possuiacuterem uma probabilidade proacutexima mas menor que 1 Tais

proposiccedilotildees poderiam ser descritas como loteriescas Os eventos mencionados numa

afirmaccedilatildeo podem ser subsumidos sob indefinidamente muitas classes de referecircncia e natildeo

haacute uma maneira precisa de se escolher qual dentre elas determina a probabilidade dos

eventos subsumidos Ao selecionar cuidadosamente alguma dessas classes podemos

geralmente encontrar modos de sugerir que a probabilidade de uma afirmaccedilatildeo eacute menor

do que 1 Considere por exemplo natildeo-roubado a proposiccedilatildeo de que o carro que vocecirc haacute

pouco estacionou de fronte agrave casa natildeo foi roubado selecionando-se a classe carros

vermelhos roubados de fronte agrave sua casa na uacuteltima hora podemos representar a

probabilidade estatiacutestica de natildeo-roubado como 1 Mas selecionando carros roubados nos

EUA podemos representar a probabilidade como significativamente menor que 1 Se

como as proposiccedilotildees loteacutericas as proposiccedilotildees loteriescas natildeo satildeo facilmente conhecidas

elas aumentam a pressatildeo contra o princiacutepio de fechamento uma vez que satildeo implicadas

por uma ampla gama de proposiccedilotildees mundanas que se tornam incognosciacuteveis dado o

fechamento

O quatildeo ameaccediladoras satildeo as proposiccedilotildees loteacutericas e loteriescas a K (e GK)

A questatildeo eacute um tanto controversa Haacute poreacutem muito a ser dito sobre tratar as proposiccedilotildees

loteacutericas por um lado e as proposiccedilotildees loteriescas de outro

Quanto agraves proposiccedilotildees loteacutericas vaacuterios teoacutericos sugerem que de fato natildeo

sabemos que satildeo verdadeiras porque sabecirc-las requer acreditar nelas atraveacutes de algo que

estabelece a sua verdade e noacutes (normalmente) natildeo podemos estabelecer a verdade de

proposiccedilotildees loteacutericas Haacute vaacuterios modos de entender o que se quer dizer por ldquoestabelecerrdquo

a verdade de uma afirmaccedilatildeo Dretske como vimos pensa que o conhecimento implica

ter uma razatildeo conclusiva para pensar como pensamos David Armstron (1973 187) disse

que o conhecimento implica ter um estado de crenccedila que ldquoassegurardquo a verdade Os

teoacutericos da indicaccedilatildeo segura sugerem que sabemos coisas quando acreditamos nelas por

conta de algo que seguramente indica a sua verdade E Harman e Sherman (2004 492)

249

dizem que o conhecimento requer acreditar em alguma coisa por conta de algo ldquoque

determina a verdade dessa crenccedilardquo De acordo com essas quatro perspectivas natildeo

sabemos que uma afirmaccedilatildeo eacute verdadeira quando as nossas uacutenicas bases para crer eacute que

ela eacute altamente provaacutevel Contudo a incognoscibilidade das proposiccedilotildees loteacutericas natildeo eacute

uma ameaccedila substancial ao fechamento uma vez que natildeo eacute oacutebvio que haja proposiccedilotildees

que sejam tanto conhecidas como verdadeiras quanto que impliquem proposiccedilotildees

loteacutericas Considere por exemplo a discutida anteriormente a condicional se ganhou

entatildeo comprou mais natildeo-comprou Se sei essas duas entatildeo por GK sei que natildeo-ganhou

uma proposiccedilatildeo loteacuterica Mas eacute bastante plausiacutevel negar que as sei Afinal eu poderia ter

ganhado na loteria

Considere agora as proposiccedilotildees loteriescas Natildeo podemos defender o

fechamento negando que sabemos alguma proposiccedilatildeo mundana que implica uma

proposiccedilatildeo loteriesca uma vez que eacute claro que sabemos muitas coisas que satildeo verdadeiras

que implicam proposiccedilotildees loteriescas Para defender o fechamento temos ao inveacutes de

dizer que as proposiccedilotildees loteriescas satildeo conheciacuteveis Elas diferem das proposiccedilotildees

loteacutericas genuiacutenas por poderem ser apoiadas em bases que estabelecem a sua verdade Se

baseio a minha crenccedila de que natildeo-roubado apenas em estatiacutesticas criminais natildeo saberei

se ela eacute verdadeira Mas posso ao inveacutes baseaacute-la em observaccedilotildees tais como a de ter

estacionado em minha garagem e assim por diante que sob certas circunstacircncias

estabelece que natildeo-roubado eacute o caso

5 O Argumento do Ceticismo

De acordo com Dretske e Nozick podemos dar conta do apelo do ceticismo e explicar

onde ele erra se aceitarmos as suas perspectivas do conhecimento e rejeitar K Rejeitar o

fechamento do conhecimento eacute portanto a chave para resolver o ceticismo Dada a

importacircncia do insight no problema do ceticismo eles pareciam ter uma boa razatildeo para

negar o fechamento Consideremos o caso que eles apresentam e alguns problemas com

sua aceitabilidade

51 O Ceticismo e o Anticeticismo

Dretske e Nozick se focaram numa forma de ceticismo que combina K com

a suposiccedilatildeo de que natildeo sabemos que as hipoacuteteses ceacuteticas satildeo falsas Por exemplo natildeo sei

250

que natildeo-biv natildeo sou um ceacuterebro numa cuba num planeta distante da terra sendo enganado

por cientistas alieniacutegenas Dada a forccedila dessas suposiccedilotildees os ceacuteticos argumentam que

natildeo sabemos todo o tipo de afirmaccedilotildees do senso comum que implicam a falsidade das

hipoacuteteses ceacuteticas Por exemplo uma vez que natildeo-biv eacute implicada por h estou em Santo

Antocircnio os ceacuteticos podem argumentar como se segue

(1) K eacute verdadeiro ie se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que

p implica q entatildeo S sabe que q

(2) h implica natildeo-biv

(3) Assim se sei que h e acredito que natildeo-biv porque sei que eacute implicada por

h entatildeo sei que natildeo-biv

(4) Mas natildeo sei que natildeo-biv

(5) Portanto natildeo sei que h

Dretske e Nozick estavam cientes de que esse argumento pode ser revertido

(1) K eacute verdadeiro ie se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que

p implica q entatildeo S sabe que q

(2) h implica natildeo-biv

(3) Assim se sei que h e acredito que natildeo-biv porque sei que eacute implicada por

h entatildeo sei que natildeo-biv

(4) Sei que h

(5) Portanto sei que natildeo-biv

Virar o jogo contra o ceacutetico desse modo foi o que fez mais ou menos a estrateacutegia anticeacutetica

de Moore (1959) (Tendenciosamente alguns autores chamam agora tal estrateacutegia de

dogmatismo) Contudo ao inveacutes de K Moore pressupocircs a verdade de um princiacutepio mais

forte

PK Se ao saber que p S acredita que q porque sabe que q eacute implicada por S

saber que p entatildeo S sabe que q

Ao contraacuterio de K PK subscreve o famoso argumento de Moore Moore sabe que ele

estaacute de peacute ele saber que estaacute de peacute implica que ele natildeo estaacute sonhando portanto ele sabe

(ou pelo menos estaacute em posiccedilatildeo de saber) que natildeo estaacute sonhando

52 Rastreamento e Ceticismo

De acordo com Dretske e Nozick o ceticismo eacute atraente porque os ceacuteticos

estatildeo parcialmente corretos Eles estatildeo corretos quando dizem que natildeo sabemos que as

251

hipoacuteteses ceacuteticas natildeo satildeo o caso Pois natildeo rastreio natildeo-biv se biv fosse verdadeira eu

ainda teria as experiecircncias que me levam a acreditar que biv eacute falsa Algo similar pode

ser dito sobre o anticeticismo os anticeacuteticos estatildeo corretos quando dizem que sabemos

todo o tipo de afirmaccedilotildees de senso comum que implicam a falsidade de hipoacuteteses ceacuteticas

Tendo ido longe demais poreacutem os ceacuteticos recorrem a K e argumentam que uma vez que

eu saberia que natildeo-biv caso soubesse h entatildeo natildeo sei h no fim das contas ao passo que

os anticeacuteticos agrave la Moore recorrem a K a fim de concluir que sei que natildeo-biv Mas eacute

precisamente aqui que os ceacuteticos e os anticeacuteticos estatildeo igualmente errados pois K eacute falso

Considere a posiccedilatildeo do ceacutetico Tendo aceitado a perspectiva rastreadora ndash como fazem

ao negar que sabemos que as hipoacuteteses ceacuteticas satildeo falsas ndash os ceacuteticos natildeo podem apelar

para o princiacutepio de fechamento que eacute falso de acordo com a teoria rastreadora

Rastreamos (e portanto sabemos) a verdade de alegaccedilotildees comuns de conhecimento

embora natildeo rastreamos (ou sabemos) a verdade das coisas que se seguem delas tal como

a de que hipoacuteteses ceacuteticas incompatiacuteveis satildeo falsas

Um resultado desse caso eacute que ele natildeo consegue lidar com todos os tipos de

ceticismo Haacute duas principais formas de ceticismo (e vaacuterias subcategorias) o ceticismo

do regresso (ou pirrocircnico) e o ceticismo da indiscernibilidade (cartesiano) Na melhor

das hipoacuteteses Dretske e Nozick forneceram uma maneira de lidar com o uacuteltimo

Outra preocupaccedilatildeo com a resposta de Dretske e Nozick ao ceticismo

cartesiano eacute que ela nos forccedila a abandonar K (tanto quando GK e o fechamento atraveacutes

da instanciaccedilatildeo e da simplificaccedilatildeo) Dado o apelo intuitivo desses princiacutepios alguns

teoacutericos tecircm procurado por modos alternativos de explicar o ceticismo oferecendo-os

entatildeo como superior com base em natildeo violarem K Consideraremos duas possibilidades

uma oferecida pelos defensores da teoria da indicaccedilatildeo segura e outra pelos

contextualistas

53 Indicaccedilatildeo Segura e Ceticismo

Os defensores da teoria da indicaccedilatildeo segura aceitam o ponto central da

explicaccedilatildeo que o teoacuterico do rastreamento daacute para o apelo do ceticismo mas manteacutem o

princiacutepio do fechamento Uma razatildeo pela qual o ceticismo nos tenta eacute que tendemos a

confundir CR com SI (Sosa 1999 Luper 1984 1987c 2003a) Afinal CR ndash se p fosse

falsa R natildeo seria o caso ndash se assemelha intimamente a SI ndash R seria o caso somente se p

fosse verdadeira Quando colocamos as duas juntas agraves vezes aplicamos CR e concluiacutemos

252

que natildeo sabemos que os cenaacuterios ceacuteticos natildeo satildeo o caso Entatildeo voltamos agrave abordagem

da indicaccedilatildeo segura e concordamos com os ceacuteticos quando apelam ao princiacutepio de

acarretamento que eacute mantido pela abordagem da indicaccedilatildeo segura e concluiacutemos que as

alegaccedilotildees comuns de conhecimento satildeo falsas Poreacutem como Moore afirmou os ceacuteticos

estatildeo errados quando dizem que natildeo sabemos que as hipoacuteteses ceacuteticas satildeo falsas Grosso

modo sabemos que as possibilidades ceacuteticas natildeo satildeo o caso uma vez que (dadas as nossas

circunstacircncias) satildeo remotas

O ceticismo poderia tambeacutem resultar da suposiccedilatildeo de que se um meacutetodo de

formaccedilatildeo de crenccedila M estivesse em alguma situaccedilatildeo a produzir uma crenccedila sem nos

permitir saber a verdade dessa crenccedila entatildeo natildeo pode gerar sequer conhecimento bona

fide (desse tipo de crenccedila) natildeo importa em que circunstacircncias ele eacute usado (M tem de ser

reforccedilado de algum modo com um meacutetodo suplementar ou com evidecircncias sobre as

circunstacircncias disponiacuteveis caso se granjeie conhecimento) Essa suposiccedilatildeo poderia

repousar na ideia de que qualquer crenccedila que M produza seja na melhor das hipoacuteteses

acidentalmente correta caso em algumas circunstacircncias M produza uma crenccedila falsa ou

acidentalmente correta (Luper 1987c) De acordo com essa suposiccedilatildeo podemos excluir

um meacutetodo de formaccedilatildeo de crenccedila M como uma fonte de conhecimento apenas por

esboccedilar circunstacircncias nas quais M produz uma crenccedila que eacute falsa ou acidentalmente

correta Os cenaacuterios ceacuteticos tradicionais satildeo suficientes e tambeacutem situaccedilotildees gettierescas

Os teoacutericos externistas rejeitam essa suposiccedilatildeo dizendo que M pode gerar conhecimento

quando usado em circunstacircncias sob as quais a crenccedila produzida natildeo eacute acidentalmente

correta Em circunstacircncias altamente gettierizadas M tem de nos deixar numa posiccedilatildeo

epistecircmica especialmente forte caso gere conhecimento em circunstacircncias comuns

meacutetodos menos exatos podem produzir conhecimento Os padrotildees que um meacutetodo tem

de cumprir para produzir conhecimento dependem do contexto no qual eacute usado Essa

perspectiva segundo a qual as exigecircncias para um sujeito ou agente S saiba que p variam

com o contexto de S (eg o quatildeo exato o meacutetodo de formaccedilatildeo de crenccedila de S tem de ser

para produzir conhecimento depende das circunstacircncias de S) poderia ser chamada de

contextualismo centrado no agente (ou sujeito) Tanto os teoacutericos do rastreamento quanto

os da indicaccedilatildeo segura defendem o contextualismo centrado no agente

54 Contextualismo e Ceticismo

253

Os teoacutericos que escrevem sob o roacutetulo ldquocontextualismordquo como David Lewis

(1979 1996) Stewart Cohen (1988 1999) e Keith DeRose (1995) oferecem uma maneira

relacionada de explicar o ceticismo sem negar o fechamento Por clareza poderiacuteamos

chamaacute-los de contextualistas centrados no falante (ou atribuidor) uma vez que

contrastam sua posiccedilatildeo com o contextualismo centrado no agente De acordo com os

contextualistas (centrados no falante) se eacute correto para um juiz atribuir conhecimento a

algueacutem dependeraacute do contexto desse juiz e os padrotildees para o conhecimento diferem de

contexto para contexto Quando o homem nas ruas julga o conhecimento os padrotildees

aplicaacuteveis satildeo relativamente modestos Mas um epistemoacutelogo leva a seacuterio todo o tipo de

possibilidades que satildeo ignoradas pelas pessoas comuns e por isso tecircm de aplicar padrotildees

mais severos a fim de alcanccedilar as avaliaccedilotildees corretas O que passa por conhecimento em

contextos comuns natildeo se qualifica como conhecimento em contextos em que criteacuterios

elevados se aplicam O ceticismo eacute explicado pelo fato de que a variaccedilatildeo contextual dos

padrotildees epistecircmicos eacute facilmente negligenciada Os ceacuteticos notam que no contexto

epistecircmico eacute inapropriado conceder conhecimento a algueacutem Poreacutem os ceacuteticos supotildeem ndash

falsamente ndash que aquilo que vale no contexto epistecircmico vale em todos os contextos Eles

supotildeem que uma vez que aqueles que levam o ceticismo a seacuterio tecircm de negar

conhecimento a algueacutem entatildeo deveriam negar conhecimento a despeito do contexto a

todos Poreacutem as pessoas em contextos comuns estatildeo perfeitamente corretas em afirmar

que sabem todo o tipo de coisas

Ademais o princiacutepio de fechamento estaacute correto dizem os contextualistas de

modo que tem de ser entendido como operando dentro de determinados contextos natildeo

atraveacutes de contextos Isto eacute na medida em que permanecemos dentro de um determinado

contexto sabemos as coisas que deduzimos daquilo que jaacute sabemos Mas se estou num

contexto comum e sei que estou em Santo Antocircnio natildeo posso vir a saber via deduccedilatildeo

que natildeo sou um ceacuterebro numa cuba num planeta distante jaacute que quando levo a seacuterio a

hipoacutetese ceacutetica transformo meu contexto num contexto no qual padrotildees epistecircmicos

elevados se aplicam Quando levo a seacuterio a possibilidade da cuba tenho de lidar com os

padrotildees exigentes que excluem o meu conhecimento de que natildeo sou um ceacuterebro numa

cuba Do mesmo modo esses padrotildees impendem que eu saiba que estou em Santo

Antocircnio Pensar a seacuterio sobre o conhecimento mina o nosso conhecimento

6 Fechamento e Crenccedila Racional

254

Dizer que a crenccedila justificada eacute fechada sob implicaccedilatildeo eacute dizer que algo como

um dos seguintes princiacutepios eacute correto (ou que ambos satildeo)

J Se ao acreditar justificadamente que p S acredita que q porque S sabe que

p implica q entatildeo S acredita justificadamente que q

GJ Se ao acreditar justificadamente em vaacuterias proposiccedilotildees S acredita que p

porque S sabe que elas implicam q entatildeo S acredita justificadamente que p

Contudo GJ gera paradoxos (Kyburg 1961) Para ver por que note que se as chances de

ganhar na loteria satildeo suficientemente remotas estou justificado em acreditar que o meu

bilhete o bilhete 1 natildeo eacute o premiado Estou tambeacutem justificado em acreditar que o bilhete

2 natildeo eacute o premiado e que o 3 natildeo eacute o premiado e assim por diante Contudo natildeo estou

justificado em acreditar na conjunccedilatildeo dessas proposiccedilotildees Se estivesse eu acreditaria

justificadamente que nenhum bilhete eacute o premiado Se uma proposiccedilatildeo estiver justificada

quando for bastante provaacutevel o exemplo da loteria mina GJ Natildeo importa quatildeo alta seja

a probabilidade suficiente para a justificaccedilatildeo a menos que a probabilidade seja 1 em

algumas loterias estaremos justificados em acreditar para qualquer bilhete arbitraacuterio que

ele natildeo eacute o bilhete premiado e por conseguinte por GJ estaremos justificados em

acreditar que todos os bilhetes natildeo satildeo o premiado

Ainda que rejeitemos GJ natildeo se segue que temos de rejeitar GK que diz

respeito ao fechamento do conhecimento Considere o exemplo da loteria novamente O

quatildeo justificados estamos em acreditar que o bilhete 1 natildeo eacute o premiado dependeraacute do

quatildeo provaacutevel seraacute ele natildeo ser premiado Ora a probabilidade de que o bilhete 2 natildeo seja

o premiado eacute igual agrave probabilidade de que o bilhete 1 natildeo eacute o premiado O mesmo vale

para qualquer outro bilhete Contudo considere a conjunccedilatildeo O bilhete 1 natildeo eacute o

premiado amp o bilhete 2 natildeo eacute o premiado A probabilidade dessa proposiccedilatildeo conjuntiva

eacute menor do que a probabilidade de suas conjuntas separadamente Suponha que

continuemos a adicionar conjuntas Por exemplo a proacutexima seraacute O bilhete 1 natildeo eacute o

premiado amp o bilhete 2 natildeo eacute o premiado amp o bilhete 3 natildeo eacute o premiado A cada vez

que uma nova conjunta eacute adicionada a probabilidade da proposiccedilatildeo resultante diminui

ainda mais Isso ilustra o fato de que podemos comeccedilar com uma coleccedilatildeo de proposiccedilotildees

cada uma delas excedendo o limiar da justificaccedilatildeo (seja laacute o que for que seja necessaacuterio

para que uma crenccedila conte como ldquojustificadardquo de acordo com GJ) e ao conjuntaacute-las

podemos terminar com uma proposiccedilatildeo abaixo do limiar de justificaccedilatildeo Podemos

ldquoacreditar justificadamenterdquo em cada conjunta mas natildeo na conjunccedilatildeo e portanto GJ

falha Contudo natildeo precisamos rejeitar GK por essa razatildeo Ainda que concedamos que

255

acreditamos justificadamente que O bilhete 1 natildeo eacute o premiado eacute verdadeira poderiacuteamos

negar que sabemos que essa proposiccedilatildeo seja verdadeira Poderiacuteamos assumir a posiccedilatildeo

de que se acreditamos em alguma proposiccedilatildeo p com base em sua probabilidade nada

menos do que uma probabilidade 1 seraacute suficiente para nos permitir saber que eacute

verdadeira Nesse caso GK natildeo sucumbiraacute agrave nossa objeccedilatildeo a GJ pois se a probabilidade

de duas ou mais proposiccedilotildees eacute 1 entatildeo a probabilidade de sua conjunccedilatildeo tambeacutem eacute 1

Podemos rejeitar GJ Deveriacuteamos tambeacutem rejeitar J O status desse princiacutepio

eacute muito mais controverso Alguns teoacutericos argumentam contra ele usando contraexemplos

como o caso da zebra de Dretske porque a zebra estaacute em condiccedilotildees de visatildeo satisfatoacuterias

vocecirc parece estar plenamente justificado em acreditar que zeb mas natildeo eacute tatildeo claro que

vocecirc esteja justificado em acreditar que natildeo-mula ainda que deduza essa crenccedila de zeb

Algueacutem que rejeite K com base em K sancionar o conhecimento de proposiccedilotildees

restritivas ou de grande porte (discutidas anteriormente) provavelmente rejeitaraacute J por

razotildees similares acreditar justificadamente que temos matildeos poderia parecer natildeo nos

coloca em posiccedilatildeo de acreditar justificadamente que haacute objetos fiacutesicos ainda que vejamos

que a primeira implica a uacuteltima

Uma resposta eacute que casos como o de Dretske natildeo contam contra J mas antes

contra o seguinte princiacutepio (de transmissibilidade da evidecircncia)

E Se e eacute evidecircncia para p e p implica q entatildeo e eacute evidecircncia para q

Ainda que rejeitemos esse princiacutepio natildeo se segue que a justificaccedilatildeo natildeo seja fechada sob

a implicaccedilatildeo como Peter Klein (1981) apontou Defensavelmente tudo o que eacute

necessaacuterio para o fechamento da justificaccedilatildeo eacute que quando dada toda a nossa evidecircncia

e relevante estamos justificados em acreditar que p tambeacutem temos justificaccedilatildeo suficiente

para acreditar em cada uma das consequumlecircncias de p A nossa justificaccedilatildeo para as

consequumlecircncias de p natildeo precisa ser e Ao inveacutes poderia se a proacutepria p que eacute afinal uma

crenccedila justificada E uma vez que p implica suas consequumlecircncias eacute suficiente para

justificaacute-las Aleacutem do mais qualquer boa evidecircncia que temos contra uma consequumlecircncia

de p conta contra a proacutepria p nos impossibilitando de estar justificado em acreditar que

p de modo que se estamos justificados em acreditar que p levando em conta toda nossa

evidecircncia proacute e contra natildeo teremos evidecircncias fortes contra as proposiccedilotildees implicadas

por p (Uma manobra similar poderia ser defendida contra os teoacutericos do rastreamento

quando eles negam o fechamento do conhecimento se rastreamos p e acreditamos que q

por deduzi-la de p entatildeo rastreamos q se tomamos p como nossa base para acreditar que

q) Visto desse acircngulo J parece plausiacutevel (Haacute um bibliografia substancial sobre a

256

transmissibilidade de evidecircncia e sua falha veja por exemplo Crispin Wright (1985) e

Martin Davies (1998)

Algumas observaccedilotildees finais podem ser feitas usando a distinccedilatildeo de Roderick

Firth (1978) entre justificaccedilatildeo proposicional e doxaacutestica Uma proposiccedilatildeo p tem

justificaccedilatildeo proposicional para S se e somente se dada a base que S possui p contaria

como racional Que p tenha justificaccedilatildeo proposicional para S natildeo requer que S

efetivamente baseie a sua crenccedila nessa base ou mesmo que S acredite que p Se a crenccedila

de S tem justificaccedilatildeo doxaacutestica depende das bases efetivas de S para acreditar que p se

nessas bases p contaria como racional entatildeo p possui justificaccedilatildeo doxaacutestica Considere

os seguintes princiacutepios

JD Se p estaacute doxasticamente justificada para S e p implica q entatildeo q estaacute

doxasticamente justificado para S

JP Se p estaacute proposicionalmente justificada para S e p implica q entatildeo q

estaacute proposicionalmente justificada para S

JD claramente enfrenta duas objeccedilotildees fatais Primeiro poderiacuteamos natildeo acreditar em

algumas das coisas implicadas por nossas crenccedilas Segundo podemos ter razotildees

perfeitamente respeitaacuteveis para acreditar que p e contudo natildeo vendo que p implica q

poderiacuteamos natildeo estar cientes de quaisquer bases para acreditar que q ou pior poderiacuteamos

acreditar que q por razotildees espuacuterias Contudo nenhuma dessas dificuldades ameaccedila JP

Primeiro a justificaccedilatildeo proposicional natildeo implica crenccedila Segundo S poderia estar

proposicionalmente justificado com base em p deixe ou natildeo de ver que p implica q e

ainda que S acredite que q por razotildees espuacuterias Como apoio adicional para JP poderiacuteamos

citar o fato de que se p implica q o que quer que conte contra q conta contra p

Bibliografia

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o u t r a m a rg e mr e v i s t a d e f i l o s o f i a

Page 3: outra margem - periodicos.ufmg.br

Sobre o Tempo uma questatildeo fundamental

Paulo Seacutergio Calvet Ribeiro Filho (PUC-RIO)

Zaratustra Metaciacutenico

Rafael Rocha da Rosa (UERJ)

A Modernidade lsquonarsquo Filosofia de Descartes a criacutetica das formas

substanciais

William Teixeira (UnB)

entrevista | interview

ldquoFechamento epistecircmicordquo de Steven Luper

Luiz H M Segundo (UFSC)

sumaacuterio

DIVERSIDADE NA ADVERSIDADE

Gabriel Almeida Assumpccedilatildeo (UFMG)

O sexto nuacutemero da Outramargem Revista de Filosofia retrata a

diversidade da produccedilatildeo acadecircmica nacional em filosofia multiplicidade essa que se daacute

tanto do ponto de vista histoacuterico quanto do ponto de vista sistemaacutetico Como resultado

temos artigos em filosofia antiga medieval moderna e contemporacircnea Os materiais

variam natildeo soacute no que tange ao periacuteodo da histoacuteria da filosofia mas tambeacutem no que diz

respeito agrave aacuterea da filosofia eacutetica metafiacutesica filosofia da linguagem epistemologia

poliacutetica e filosofia da natureza

Tambeacutem chama atenccedilatildeo o fato de que haacute contribuiccedilotildees de pesquisadores de

vaacuterios estados diferentes o que aponta para um momento de expansatildeo do perioacutedico

cuja amplitude geograacutefica e temaacutetica atinge novos niacuteveis Em um momento da histoacuteria

do Paiacutes no qual os investimentos em ciecircncia e educaccedilatildeo tecircm sido cada vez mais

escassos mostra-se de grande importacircncia continuar o esforccedilo de pesquisa e

valorizarmos a produccedilatildeo dos colegas pois eacute especialmente nos momentos de

adversidade que natildeo devemos desistir da busca do saber e da troca de conhecimentos

As situaccedilotildees de escassez e crise foram e continuaratildeo sendo fonte de inspiraccedilatildeo e

mudanccedila e com esse intuito apresentamos um panorama do que tem sido pesquisado

em vaacuterias universidades do Brasil

O artigo de Paulo S C Ribeiro Filho (PUC-RJ) ldquoSobre o tempo uma

questatildeo fundamentalrdquo traz um debate sobre um dos temas mais complexos e aporeacuteticos

da filosofia o tempo Esse enigma filosoacutefico abordado por filoacutesofos tatildeo distintos como

Aristoacuteteles Plotino e Kant eacute aqui elaborado a partir de quatro pensadores Agostinho

Borges Agamben e Heidegger Outro texto que abrange mais de um periacuteodo da histoacuteria

da filosofia eacute o de Felipe Gustavo S da Silva (UFPE) com ldquoPraacuteticas de Cuidado de si

na Antiguidaderdquo em que Foucault eacute o referencial para uma investigaccedilatildeo histoacuterico-

criacutetica do pensamento antigo especialmente Platatildeo Mais um artigo no qual a relaccedilatildeo de

Michel Foucault com os antigos se faz presente eacute ldquoZaratustra metaciacutenicordquo de Rafael R

da Rosa (UERJ) O autor discute o tema claacutessico da transvaloraccedilatildeo dos valores por

2

Nietzsche mas sob lentes foucaultianas em diaacutelogo com uma tradiccedilatildeo marginal o

cinismo

Em termos de pesquisa que envolve mais de um momento da histoacuteria da

filosofia temos ldquoDe Descartes a Frege os avanccedilos epistemoloacutegicos do meacutetodordquo escrito

por Michelle C Montoya (PPGLM-UFRJ) A contribuiccedilatildeo da autora eacute uma apreciaccedilatildeo

histoacuterica do problema do meacutetodo no pensamento moderno com a indicaccedilatildeo posterior de

como G Frege apresentou respostas mais fecundas a esse problema ainda que portando

certa ldquocontinuidaderdquo com a proposta cartesiana

No acircmbito da filosofia antiga temos dois artigos o de Gabriel R Rocha

(PUC-RS) ldquoDo amor platocircnico ao crush a filosofia entre adolescentes ndash toacutepicos de

ensino de filosofiardquo e o de Otacilio L de S Neto (UFC) ldquoDois sentidos de participaccedilatildeo

em Platatildeordquo No caso de Rocha trata-se de um esforccedilo interdisciplinar de refletir sobre o

Eros platocircnico e diferenccedilas e semelhanccedilas com maneiras contemporacircneas de lidar com a

vida afetiva e o desejo com ecircnfase na giacuteria crush usada por jovens e adolescentes

recorrendo a teoacutericos como Z Bauman A MacIntyre e E Cassirer O texto de Neto

por sua vez consiste em rigorosa exegese de trechos do Parmecircnides e do Feacutedon

platocircnico diferenciando duas nuances do termo ldquoparticipaccedilatildeordquo em Platatildeo Essa

retomada de um problema claacutessico na histoacuteria da filosofia atenta para a polissemia tatildeo

recorrente em conceitos de filosofia antiga

Ainda na aacuterea da metafiacutesica mas no acircmbito da filosofia medieval cujos

estudos tecircm crescido no paiacutes temos a contribuiccedilatildeo de Matheus Monteiro (UNICAMP)

ldquoO possiacutevel metafoacuterico segundo Tomaacutes de Aquinordquo Nesse artigo o autor expotildee o

conceito de possiacutevel metafoacuterico e o problematiza de modo criacutetico para que

medievalistas possam discutir o tema ainda mais a fundo

No acircmbito da filosofia moderna haacute o artigo de William Teixeira (UnB) ldquoA

modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes a criacutetica das formas substanciaisrdquo O texto

mostra como Descartes partiu da criacutetica agrave noccedilatildeo escolaacutestica de lsquoforma substancialrsquo para

uma concepccedilatildeo mecanicista dos fenocircmenos naturais baseado em medidas e na

matemaacutetica Com essa atitude o filoacutesofo estaria proacuteximo de Bacon e Galileu portanto

inserido em um contexto moderno

Tambeacutem na filosofia moderna temos ldquoA subjetividade e a busca pela

felicidade no pensamento de Blaise Pascalrdquo artigo de Jean Vargas (UFMG) que

articula condiccedilatildeo humana e subjetividade humana tratando-se de importante reflexatildeo de

cunho antropoloacutegico agrave luz das ideias de teacutedio esquecimento de si amor-proacuteprio e

3

divertissement Cloves T D Freire (UFS) por sua vez escreveu ldquoLeibniz e a criacutetica ao

espaccedilo tota simul newtoniano a mocircnada como causa imediata do movimentordquo artigo

no qual se confronta dois grandes ldquorivaisrdquo no pensamento moderno cuja disputa pela

autoria do caacutelculo eacute famosa I Newton e G Leibniz No caso do texto de Freire Leibniz

critica a ideia de espaccedilo absoluto de Newton com base na noccedilatildeo de mocircnada e de sua

capacidade de aperceccedilatildeo e nos princiacutepios de razatildeo suficiente e identidade dos

indiscerniacuteveis

Ainda no acircmbito de reflexotildees acerca do eu mas sob um ponto de vista da

filosofia contemporacircnea temos ldquoFunccedilatildeo personalidade em devir ndash um olhar da teoria do

selfrdquo por Faacutebio H M Bogo (UFSC) O material em questatildeo se baseia na psicanaacutelise e

especialmente na esquizoanaacutelise de Deleuze e Guatarri Aqui natildeo se trata de uma

filosofia da subjetividade mas de uma filosofia da dissoluccedilatildeo do eu que passa a ser

pensado como funccedilatildeo e natildeo como estrutura

No acircmbito da filosofia poliacutetica temos a contribuiccedilatildeo de Elvis de O Mendes

(UFPE) intitulada ldquoDo niilismo agrave experiecircncia totalitaacuteriardquo Trata-se de um artigo focado

no pensamento de Leo Strauss e na abordagem que este faz agrave tirania como fenocircmeno

histoacuterico Jaacute ldquoA pragmaacutetica do discurso de Foucaultrdquo por Ceciacutelia de S Neves (UFMG)

o foco reside no tema da linguagem atentando para suas dimensotildees poliacuteticas chamando

atenccedilatildeo para como ler Foucault pensando na atualidade

A linguagem tambeacutem eacute tema do trabalho de Edvan Aragatildeo Santos (USP)

ldquoA questatildeo do dualismo e da linguagem em Bergsonrdquo artigo no qual se relacionam

linguagem consciecircncia e apreensatildeo da realidade Nosso nuacutemero tambeacutem contempla a

traduccedilatildeo de Epistemic closure ldquoFechamento epistecircmicordquo de Steven Luper por Luiz H

M Segundo (UFSC) que nos permitiu acesso em liacutengua portuguesa a uma importante

contribuiccedilatildeo em filosofia analiacutetica

Que esse rico panorama da pesquisa filosoacutefica dos poacutes-graduandos

brasileiros sirva de incentivo em tempos tatildeo duros Esperamos que as contribuiccedilotildees

continuem em qualidade e em quantidade

Boa leitura

Gabriel Assumpccedilatildeo

Errata No vol 3 n 5 (2ordm semestre de 2016) na entrevista com Ivan

Domingues chamada ldquoFilosofia como Resistecircnciardquo na paacutegina 3 onde estaacute ldquoDavid

4

Emanuel Carneirordquo leia-se ldquoDavid Emanuel Coelhordquo Pedimos desculpas aos leitores e

ao David pelo erro

A PRAGMAacuteTICA DO DISCURSO DE FOUCAULT

Ceciacutelia de Sousa Neves1

RESUMO Objetiva-se esclarecer o horizonte no qual surge a anaacutelise pragmaacutetica do discurso de Foucault inserindo-a no percurso da reflexatildeo filosoacutefica acerca da linguagem assim como seu significado e potencial poliacutetico Para isso nos serviremos principalmente das obras A ordem do discurso e Arqueologia do saber O artigo compotildee-se de duas partes na primeira inscreveremos Foucault no registro de duas grandes rupturas na investigaccedilatildeo acerca da linguagem a ruptura platocircnica com o pensamento preacute-socraacutetico e a ruptura operada por Saussure em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo em seguida esclareceremos o significado da anaacutelise do discurso de Foucault e como ela serve a um projeto poliacutetico emancipador Buscamos com isso reeditar o convite que esse filoacutesofo fascinante ainda hoje nos endereccedila a saber o de adentrarmos na ordem arriscada do discurso que embora tenha sido durante tanto tempo considerada pela tradiccedilatildeo como o inimigo a ser abatido natildeo apenas obedece a leis e regularidades que ainda estatildeo para serem descobertas como nos abre um mundo novo de possibilidades Palavras-chave Discurso Pragmaacutetica Foucault ABSTRACT This paper aims at clarifying the horizon in which the pragmatic analysis of Foucaults discourse arises inserting it in the course of philosophical reflection on language as well as its meaning and political potential For this we will focus on the following Foucalultrsquos works The order of discourse and Archeology of knowledge This paper is composed of two parts in the first part we will register Foucault in the two major ruptures in the investigation of language the Platonic rupture with pre-Socratic thought and the rupture operated by Saussure in relation to tradition Then we will clarify the meaning of Foucaults discourse analysis and how it serves as an emancipatory political project Thereby we intend to reissue the invitation that this fascinating philosopher still addresses to us which is the entering into the risky order of discourse that although it has been for so long considered by tradition as an enemy to be slaughtered not only obeys laws and Regularities that are yet to be discovered as well as it opens to us a new world of possibilities Keywords Discourse Pragmatic Foucault

Introduccedilatildeo

1 Doutoranda do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFMG Bolsista Capes E-mail de contato cecilianeves2003yahoocombr

6

A reflexatildeo acerca da linguagem do seu estatuto e funccedilatildeo ou posiccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao pensamento conhecimento e agrave praacutexis confunde-se com a proacutepria filosofia Natildeo

por acaso a filosofia se concretiza na ruptura iniciada por Platatildeo e sistematizada por

Aristoacuteteles com o discurso dos preacute-socraacuteticos poetas e sofistas gregos Foucault2 elabora

essa ruptura em termos da instituiccedilatildeo de uma nova e decisiva oposiccedilatildeo entre discurso

verdadeiro e falso Se para os poetas gregos o discurso verdadeiro ndash desejaacutevel e investido

pelo poder natildeo somente de anunciar mas realizar o destino e provocar a adesatildeo ndash consistia

no ato ritualizado de enunciaccedilatildeo de modo que a linguagem se identificava com a

realidade caracteriacutestica de uma perspectiva ontoloacutegica da linguagem a partir de Platatildeo

um discurso verdadeiro diz respeito agrave justeza ou exata aplicaccedilatildeo dos nomes ou seja

desloca-se para o enunciado o qual tem o papel de traduzir (ou intermediar por meio de

signos) o pensamento caracterizando portanto uma perspectiva instrumental da

linguagem O movimento que funda as bases ou o mainstream da ordem do discurso

filosoacutefico ocidental ou seja que delineia nos termos foucaultianos uma ldquovontade de

saberrdquo cujas caracteriacutesticas gerais ainda hoje nos determina consiste nesta reconfiguraccedilatildeo

da relaccedilatildeo entre linguagem e realidade Assim toda a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental

pode ser lida enquanto resposta a essa racionalizaccedilatildeo do discurso operada pelo

platonismo ou seja ldquopropondo uma verdade ideal como lei do discurso e uma

racionalidade imanente como princiacutepio de seu desenvolvimentordquo3

A ideia quixotesca de que a formalizaccedilatildeo do discurso promove sua depuraccedilatildeo

do lastro do desejo e do poder da contingecircncia e relatividade tem como principal

consequecircncia a supressatildeo da realidade do discurso Esta negaccedilatildeo da realidade especiacutefica

do discurso seu afastamento da contingecircncia das praacuteticas como seu princiacutepio constituinte

como indicamos tomaraacute muitas formas na histoacuteria do pensamento e da filosofia Em

relaccedilatildeo agrave filosofia podemos falar de dois caminhos principais o primeiro e hegemocircnico

diz respeito agravequele que reforccedila essa supressatildeo atraveacutes de que Foucault denomina como

uma filosofia do idecircntico que defende uma providecircncia preacute-discursiva do sentido o

destino da racionalidade ou teleologia do devir uma histoacuteria contiacutenua o retorno

compulsivo agraves origens as totalizaccedilotildees e uma filosofia do sujeito o segundo marginal e

maldito visa desvelar a ilegitimidade e arbitrariedade dessa construccedilatildeo atraveacutes da anaacutelise

do mecanismo proacuteprio da linguagem em nome de uma filosofia da diferenccedila cuja

principal caracteriacutestica eacute o descentramento face agrave soberania do sujeito e as figuras gecircmeas

2 FOUCAULT A ordem do discurso p13 3 FOUCAULT A ordem do discurso p43

7

da antropologia e do humanismo Eacute nesta segunda via aberta pela criacutetica radical de autores

como Nietzsche Artaud e Bataille que se inscreve a anaacutelise pragmaacutetica do discurso de

Foucault Anaacutelise que por sua vez elege um ponto de partida original para a abordagem

filosoacutefica acerca da linguagem natildeo o pensamento como fez a tradiccedilatildeo nem a linguagem

como fez Saussure mas o espaccedilo contingente em que desenvolvem os acontecimentos

discursivos Foucault visa desvelaacute-los em sua pureza sem a mediaccedilatildeo de operadores de

siacutentese eou psicoloacutegicos a serviccedilo da continuidade e identidade a fim de abrir novas

potencialidades para a anaacutelise histoacuterica dos discursos tais como a descriccedilatildeo de outras

formas de regularidade e jogos de relaccedilotildees

Uma imagem singular que descreve muito bem o pensamento de Foucault eacute

a de canteiro de obras Na medida em que este pensamento se revela imperativamente

experimental e ensaiacutestico Foucault nos adverte a possibilidade de que ao final ldquoem lugar

de dar fundamento ao que jaacute existe () sejamos obrigados a continuar fora das paisagens

familiares longe das garantias a que estamos habituados em um terreno ainda natildeo

esquadrinhado e na direccedilatildeo de um final que natildeo eacute faacutecil preverrdquo4 Esta observaccedilatildeo importa

na medida em que previne o leitor e o estudioso acerca do que se deve e natildeo se deve

esperar de sua obra espere encontrar exemplos impressionantes de anaacutelises e criacuteticas

filosoacuteficas apuradas e detalhadas mas natildeo espere respostas e teorias conclusivas e

sistemaacuteticas Outra questatildeo que orientaraacute nosso exame eacute o fato de que esta filosofia da

diferenccedila eacute indissociaacutevel de um projeto poliacutetico que confia no esclarecimento como a via

privilegiada da liberdade Ao buscar esclarecer as condiccedilotildees de funcionamento

contingecircncias histoacutericas e a legalidade especiacutefica do campo em que se desenvolvem os

acontecimentos discursivos Foucault quer sobretudo ldquomostrar que o que eacute jamais foi

ou seja eacute sempre na confluecircncia dos encontros dos acasos no curso da histoacuteria fraacutegil

precaacuteria que satildeo formadas as coisas que nos datildeo a impressatildeo de serem as mais

evidentesrdquo5

1 As duas rupturas Platatildeo e Saussure

O texto seminal que inaugura a reflexatildeo filosoacutefica acerca da linguagem eacute o

diaacutelogo platocircnico chamado Craacutetilo Aqui se formula o problema nuclear que serviraacute de

eixo em torno do qual o pensamento sobre a linguagem se desenvolveraacute Trata-se de

4 FOUCAULT A arqueologia do saber p44 5 FOUCAULT Estruturalismo e poacutes-estruturalismo p 325

8

justificar racionalmente em que consiste a ldquoexata aplicaccedilatildeo dos nomesrdquo ou a ldquojusteza dos

nomesrdquo em outras palavras busca-se esclarecer qual eacute o fundamento da relaccedilatildeo entre

signo e referente nome e objeto forma e conteuacutedo ou ainda entre as palavras e as coisas

O que estaacute em jogo nesse problema eacute a proacutepria possibilidade do conhecimento verdadeiro

O diaacutelogo consiste na investigaccedilatildeo de Soacutecrates das teses opostas de Hermoacutegenes para

quem a origem e natureza das denominaccedilotildees satildeo puramente convencionais e Craacutetilo para

quem cada coisa tem por natureza um nome apropriado

Face ao relativismo da tese de Hermoacutegenes ndash segundo a qual se a verdade eacute o

que parece a cada um natildeo apenas toda designaccedilatildeo estaacute correta como natildeo haacute diferenccedila

entre verdadeiro e falso viacutecio e virtude ou razatildeo e loucura ndash Soacutecrates afirma um dos

pressupostos baacutesicos da doutrina platocircnica a saber que as coisas e suas accedilotildees (inclusive

o ato de falar e nomear) possuem uma ldquoessecircncia permanenterdquo6 isto eacute uma existecircncia

natural e transcendente que funciona como criteacuterio de verdade da coisa e de sua maneira

de ser Assim o nome ldquoeacute a imitaccedilatildeo vocal da coisa imitadardquo7 de modo que nomear

corretamente implica exprimir com signos a ideia fundamental da coisa Nesse sentido

como afirma Soacutecrates Craacutetilo tem razatildeo pois os nomes derivam da natureza das coisas e

bem aplicados revelam o caraacuteter o modo de ser ou a natureza proacutepria de algo Mas Craacutetilo

erra ao explicar em que consiste a atribuiccedilatildeo dos nomes agraves coisas Isso porque o criteacuterio

para a correccedilatildeo da imagem ou imitaccedilatildeo natildeo estaacute no fato de ela ser exatamente igual agrave

coisa designada como o quer Craacutetilo ou seja natildeo eacute possiacutevel identificar nome e coisa

pois a princiacutepio uma imagem natildeo possui a mesma propriedade dos originais e se possuiacutesse

seria mera duplicaccedilatildeo logo seria impossiacutevel distinguir uma da outra Portanto para o

nome ser bem formado eacute preciso apenas que ele contenha a imagem fundamental de cada

coisa razatildeo pela qual pode variar as letras

A tese de Craacutetilo ao afirmar que um nome imita perfeitamente a coisa

simplesmente por ser nome defende que atraveacutes do nome eu conheccedilo a coisa assim como

conhecendo as coisas descobrimos seu nome O problema eacute que se por um lado os nomes

dizem a verdade acerca da coisa que designam de modo que para atribuir o nome eacute

preciso conhecer as coisas por outro lado para conhecer as coisas eacute preciso jaacute deter os

nomes ao menos os nomes primitivos A questatildeo que coloca a tese de Craacutetilo em apuros

concerne agrave origem mesma da linguagem ou seja como os primeiros legisladores

apreenderam e designaram as coisas se os nomes primitivos necessaacuterios para isso natildeo

6 PLATAtildeO Craacutetilo 386 e 7 PLATAtildeO Craacutetilo 423 b

9

tinham sido fixados e se para fixar os nomes eacute preciso apreender as coisas Para resolver

essa aporia da origem da linguagem a qual Soacutecrates conduziu a tese de Craacutetilo Soacutecrates

daacute um passo aleacutem daquele que eacute dado na investigaccedilatildeo da tese de Hermoacutegenes ndash em que

se chegou agrave conclusatildeo que a designaccedilatildeo seraacute verdadeira se imita a essecircncia da coisa e

falsa se natildeo Esse passo corresponde agrave instituiccedilatildeo do criteacuterio de verdade para essa

designaccedilatildeo criteacuterio esse que natildeo se encontra na imanecircncia da linguagem mas seraacute situado

em um registro ontologicamente independente da experiecircncia concreta dos indiviacuteduos

Portanto eacute um criteacuterio transcendente que autoriza e fundamenta a ligaccedilatildeo entre signo e o

referente entre nome e o objeto forma e conteuacutedo as palavras e as coisas O modo mais

natural seguro e belo de conhecer algo eacute partindo de sua proacutepria verdade natildeo de suas

imagens secundaacuterias Ou seja ldquonatildeo eacute por meio de seus nomes que devemos procurar

conhecer ou estudar as coisas mas de preferecircncia por meio delas proacutepriasrdquo8 Eacute a partir

dessa verdade intelectual que vamos avaliar a representaccedilatildeo da verdade por suas imagens

(nomes) natildeo o inverso

A principal consequecircncia desse diaacutelogo razatildeo pela qual esta obra inaugura a

reflexatildeo filosoacutefica sobre a linguagem estaacute na reduccedilatildeo do discurso agrave condiccedilatildeo de mero

suporte entre pensar e falar simples instrumento de traduccedilatildeo do pensamento A partir de

Platatildeo torna-se lugar comum a pressuposiccedilatildeo de um horizonte de significaccedilatildeo contiacutenua

de sentido ou seja anterior ao uso dos nomes existe uma verdade absoluta e necessaacuteria

em relaccedilatildeo a qual ao discurso soacute cabe encadeaacute-la refleti-la desdobrar seu sentido do

interior ao exterior A linguagem serve como um instrumento para compartilhar

informaccedilotildees e distinguir as coisas De modo que o discurso verdadeiro e a possibilidade

de conhecimento se reduzem agrave forma correta do enunciado proposicional que nos permite

nomear ou designar as coisas ou seja ldquodizer por meio das palavras o que eacute e o que natildeo

eacuterdquo9 Digno de nota eacute o fato de que nesta passagem Platatildeo formula explicitamente pela

primeira vez o conceito de verdade como correspondecircncia isto eacute funda no ser o criteacuterio

que garante e justifica a verdade do discurso

A ideia de que haacute uma essecircncia fundamental (por exemplo uma cadeira ideal

ontologicamente independente da nossa experiecircncia) que as palavras (associadas a um

conceito intelectual) rotulam constitui como sugere Derrida o nuacutecleo metafiacutesico do

pensamento ocidental O enquadramento do discurso no esquema analiacutetico da

racionalidade (e de seu criteacuterio de verdade transcendente) eacute a resposta platocircnica agrave ldquoluta

8 PLATAtildeO Craacutetilo 439 b 9 PLATAtildeO Craacutetilo 385 b

10

contra o enfeiticcedilamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagemrdquo10 de que

falou Wittgenstein Ela tambeacutem seraacute a matriz de outras saiacutedas claacutessicas do acircmbito

movediccedilo do discurso formado pelas palavras como o cogito de Descartes o amor

intelectualis Dei de Spinoza a analiacutetica de Kant e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica de Husserl

A recusa da ideia de que a linguagem eacute um meio transparente de pensamento

se consolida na virada linguiacutestica movimento iniciado no seacuteculo XX e idealizado por

Wittgenstein Aqui localizamos a segunda ruptura em relaccedilatildeo ao pensamento da

linguagem O que estaacute em jogo neste giro linguiacutestico eacute a consideraccedilatildeo da linguagem como

paradigma isto eacute como eixo constituinte do pensamento

Se na filosofia platocircnica o criteacuterio da verdade da relaccedilatildeo de referecircncia (entre

signonome e referenteobjeto) e o que autoriza o significado ou o sentido (a dimensatildeo

semacircntica) eacute a essecircncia ou o ser pode-se dizer que haacute um niacutevel intermediaacuterio entre signo

e referente que autoriza um modo de determinaccedilatildeo do referente Portanto a questatildeo do

valor referencial do signo (ou seja de como o signo pode representar aspectos da

realidade) se daacute formula na condiccedilatildeo de que o signo deve ser representaccedilatildeo natildeo da

realidade mas uma imagem do modo de ser proacuteprio de algo Um possiacutevel esquema seria

signo ndash ideia ndash coisa

Em Saussure a preocupaccedilatildeo com a fundamentaccedilatildeo da referecircncia entre signo

e realidade (ou seja a preocupaccedilatildeo em fornecer aos signos um conteuacutedo para justificar

como eles podem representar aspectos da realidade ou como ele pode ser aplicado aos

objetos) eacute excluiacuteda Trata-se de descrever os significados e sentido dos signos (objeto do

linguista) sem se preocupar com o referente (com o que pode lhe corresponder no mundo)

mas apenas em funccedilatildeo das relaccedilotildees que os signos tecircm uns com os outros no interior da

liacutengua concebida como um sistema autocircnomo de diferenccedilas O esquema saussuriano seria

restrito ao signo ndash significadosignificante Saussure natildeo se preocupa em articular signo

e mundo pois a semacircntica da linguagem eacute autocircnoma Ao definir o signo natildeo como o que

une uma coisa e um nome mas como a uniatildeo de conceito (significado sentido) e

significante (som) Saussure diz que o conceito de algo natildeo eacute definido positivamente pelo

seu conteuacutedo (referente) ndash ou seja natildeo satildeo descriccedilotildees de objetos reais por isso natildeo tem

nada a ver com as ciecircncias naturais ndash mas negativamente atraveacutes de suas relaccedilotildees

diferenciais com os outros termos no interior do sistema simboacutelico da linguagem Isso

significa que soacute existe uma cadeira real no interior de um sistema simboacutelico que a

10 WITTGENSTEIN Investigaccedilotildees filosoacuteficas sect 109

11

diferencia de todo o resto Diferentemente da tradiccedilatildeo especialmente de Platatildeo para quem

o pensamento antecede a linguagem cabendo a essa apenas expressaacute-lo ou desdobrar um

sentido que lhe eacute anterior para Saussure e a partir da virada linguiacutestica do XX eacute a

linguagem que estrutura nossa percepccedilatildeo constroi a realidade e possibilita o

conhecimento permanecendo tudo o que estaacute fora da linguagem no domiacutenio do

inconcebiacutevel Se em Platatildeo pensamos para falar para Saussure falamos para pensar

Ao inscrever o fundamento do significado na imanecircncia da linguagem

Saussure patrocina um movimento fundamental na ruptura com o nuacutecleo metafiacutesico da

tradiccedilatildeo Poreacutem embora Saussure natildeo considere a liacutengua como traduccedilatildeo ou instrumento

do pensamento mas da comunicaccedilatildeo ao priorizar a liacutengua (forma) prescindindo da fala

(evento) pode-se dizer que ele manteacutem a elisatildeo da realidade do discurso na medida em

que exclui da estrutura da liacutengua a dinacircmica histoacuterica e social Eacute exatamente aqui na

necessidade de se pensar o discurso aleacutem da linguagem mas na sua verdade e realidade

proacuteprias que inscrevemos Foucault A anaacutelise do discurso de Foucault eacute original porque

toma como ponto de partida a perspectiva dos saberes e praacuteticas discursivas inscrevendo

radicalmente as ordens do discurso no plano das formas histoacutericas e contingentes A

inquietaccedilatildeo que move Foucault no caminho de uma anaacutelise filosoacutefica do discurso eacute a

ldquoinquietaccedilatildeo diante do que eacute o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada

ou escritardquo11

2 A pragmaacutetica do discurso de Foucault

Esse deslocamento da abordagem acerca da questatildeo da linguagem ndash que a

interpela natildeo a partir do seu papel coadjuvante de traduccedilatildeo do pensamento como logos

identificado com a realidade ou como sistema linguiacutestico autocircnomo mas a partir de sua

materialidade isto eacute enquanto existecircncia transitoacuteria e contingente com a qual o discurso

irrompe num ato arbitraacuterio e violento nos jogos do pensamento e da linguagem ndash eacute o que

caracteriza a singularidade da anaacutelise do discurso feita por Foucault e a razatildeo pela qual

esta se apresenta como pragmaacutetica do discurso Pois trata-se para o filoacutesofo de

acolher cada momento do discurso em sua irrupccedilatildeo de acontecimentos nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersatildeo temporal que lhe permite ser repetido sabido esquecido transformado apagado ateacute nos menores traccedilos escondido bem longe de todos os olhares na poeira dos

11 FOUCAULT A ordem do discurso p8

12

livros Natildeo eacute preciso remeter o discurso agrave longiacutenqua presenccedila da origem eacute preciso trataacute-lo no jogo de sua instacircncia12

Mas prossegue Foucault ldquoo que haacute enfim de tatildeo perigoso no fato de as

pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente Onde afinal estaacute o

perigordquo13 Por que e a serviccedilo de quais interesses a materialidade do discurso ou seja

sua realidade especiacutefica foi negada e marginalizada pela perspectiva dominante na

tradiccedilatildeo filosoacutefica O que significa o deslocamento operado por Foucault Por que essa

mudanccedila caracteriza a singularidade de sua filosofia e quais as potencialidades que abre

Essas perguntas nos conduzem ao trabalho negativo ou criacutetico da anaacutelise

pragmaacutetica do discurso de Foucault que seraacute desenvolvida nas obras A ordem do discurso

e Arqueologia do saber No livro A ordem do discurso o proacuteprio filoacutesofo postula seu

ponto de partida

Eis a hipoacutetese que gostaria de apresentar esta noite para fixar o lugar ndash ou talvez o teatro muito provisoacuterio ndash do trabalho que faccedilo suponho que em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos que tecircm por funccedilatildeo conjurar seus poderes e perigos dominar seu acontecimento aleatoacuterio esquivar sua pesada e temiacutevel materialidade14

Gostariacuteamos de chamar atenccedilatildeo para duas questotildees essenciais para a

compreensatildeo da problemaacutetica instaurada pelo toacutepico da pragmaacutetica do discurso de

Foucault em primeiro lugar a questatildeo de que em toda sociedade a produccedilatildeo e os poderes

do discurso satildeo controlados atraveacutes de procedimentos especiacuteficos em segundo lugar o

fato de que esses jogos de delimitaccedilatildeo e exclusatildeo visam em uacuteltima instacircncia banir a sua

materialidade Tratam-se de questotildees acerca da espeacutecie destes procedimentos e sobre a

razatildeo pela qual a materialidade do discurso eacute o inimigo a ser combatido em nome da

proacutepria sociabilidade ou seja por que eacute preciso suprimir a realidade do discurso

No livro a Ordem do discurso Foucault analisaraacute tais procedimentos de

controle de dominaccedilatildeo e limitaccedilatildeo dos poderes e da produccedilatildeo do discurso Cada um dos

trecircs sistemas de restriccedilatildeo identificados visa controlar uma dimensatildeo do discurso o

primeiro grupo exerce sobre o este uma coerccedilatildeo exterior que visa limitar seus poderes

operando atraveacutes de trecircs princiacutepios a saber a interdiccedilatildeo (qualquer pessoa natildeo pode dizer

qualquer coisa em qualquer circunstacircncia) a separaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo (cesura entre a loucura

12 FOUCAULT A arqueologia do saber p28 13 FOUCAULT A ordem do discurso p8 14 FOUCAULT A ordem do discurso p8-9

13

e a razatildeo) e a oposiccedilatildeo do verdadeiro e do falso (a questatildeo da vontade de verdade) o

segundo grupo configura dispositivos que do interior do proacuteprio discurso visam

estabilizar a aleatoriedade de sua apariccedilatildeo satildeo eles o princiacutepio do comentaacuterio (limita o

acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repeticcedilatildeo e do

mesmo) o princiacutepio do autor (limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que

teria a forma da individualidade e do eu) e princiacutepio da organizaccedilatildeo das disciplinas (limita

o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualizaccedilatildeo

permanente das regras) o uacuteltimo conjunto de jogos de coerccedilatildeo tem como objetivo

selecionar os sujeitos que falam por meio de mecanismos que podem ser designados como

ritual (define o conjunto de signos papeis gestos circunstacircncias nas quais o discurso eacute

proferido) sociedade de discurso (visa conservar a produccedilatildeo dos discursos fazendo-os

circular num espaccedilo fechado) doutrinas (visa a manutenccedilatildeo de um discurso atraveacutes da

ortodoxia) e educaccedilatildeo (seleciona e distribui os discursos para puacuteblicos determinados)

Tais princiacutepios de rarefaccedilatildeo do discurso respondem a trecircs criteacuterios fundamentais satildeo

arbitraacuterios e histoacutericos ieacute satildeo contingentes e modificaacuteveis apoiam-se sobre um suporte

institucional ou seja satildeo reforccedilados por uma espessura de praacuteticas e reconduzidos pelo

modo como o saber eacute aplicado valorizado e distribuiacutedo em uma sociedade por isso

exercem-se sob pressatildeo e violecircncia assim como desempenham um poder coercitivo sobre

os outros discursos

Esses jogos de limitaccedilotildees e exclusotildees ressoam na filosofia a partir de um

conjunto de temas que contribuem para justificaacute-los e reforccedilaacute-los a despeito da aparente

ldquologofiliardquo que caracteriza a tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental Os temas dizem respeito agrave

filosofia do sujeito fundante (que postula um sujeito metafiacutesico que funda o horizonte de

significaccedilatildeo um fundamento uacuteltimo do qual se deduz todas as proposiccedilotildees e que tem no

cogito cartesiano uma de suas formulaccedilotildees mais contundentes) o tema da experiecircncia

originaacuteria (que traduz um conjunto de significaccedilotildees ou representaccedilotildees anteriores que jaacute

dispotildeem o mundo para noacutes a qual tambeacutem podemos remeter a Descartes e aos princiacutepios

a priori da razatildeo de Kant) e o tema da mediaccedilatildeo universal (que encontra um logos em

todas as coisas e acontecimentos transformando a realidade em discurso isto eacute a filosofia

da histoacuteria hegeliana)

Analogamente na obra Arqueologia do saber Foucault direciona sua anaacutelise

para todo um ldquojogo de noccedilotildees que diversificam cada uma agrave sua maneira o tema da

14

continuidaderdquo15 a noccedilatildeo de tradiccedilatildeo de influecircncia desenvolvimento e evoluccedilatildeo

mentalidade e espiacuterito recortes e agrupamentos familiares e por fim a ficccedilatildeo da unidade

do livro e da obra Estas assim como os princiacutepios de coerccedilatildeo do discurso analisados em

A ordem do discurso tambeacutem cumprem a funccedilatildeo precisa de enquadrar o discurso em uma

histoacuteria contiacutenua progressiva e teleoloacutegica da racionalidade controlar a dispersatildeo e

remeter a relatividade a um fundo de permanecircncia a um uacutenico e mesmo princiacutepio de

organizaccedilatildeo e coerecircncia Em suma todos esses recursos visam conjurar a ameaccedila e o

perigo da abertura e da materialidade do discurso sua irrupccedilatildeo contingencial e

descontiacutenua que se daacute no campo das praacuteticas em nome de unidades ou conjuntos

discursivos nos quais todos os enunciados se desdobram dedutivamente a partir de um

uacutenico nuacutecleo ou princiacutepio unificador

O objetivo de ambas as anaacutelises promovidas por Foucault eacute desmistificar a

autoevidecircncia destes temas e noccedilotildees com a qual eles se impotildeem e se furtam a

questionamentos a fim de liberar os problemas que atravessam essas ldquocontinuidades

irrefletidas pelas quais se organizam de antematildeo os discursos que se pretende analisarrdquo16

Na esteira da criacutetica nietzschiana da linguagem que desvelou por traacutes da fixidez da

linguagem uma dinacircmica de luta por precedecircncia e poder entre quanta de forccedilas Foucault

recoloca o questionamento acerca destas

formas preacutevias de continuidade todas essas siacutenteses que natildeo problematizamos e que deixamos valer de pleno eacute preciso pois mantecirc-las em suspenso Natildeo se trata eacute claro de recusaacute-las definitivamente mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos mostrar que elas natildeo se justificam por si mesmas que satildeo sempre o efeito de uma construccedilatildeo cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas definir em que condiccedilotildees e em vista de que anaacutelises algumas satildeo legiacutetimas indicar as que de qualquer forma natildeo podem mais ser admitidas17

Em suma trata-se de suspender provisoriamente (procedimento semelhante agrave

duacutevida cartesiana ou a suspensatildeo fenomenoloacutegica) a validade destas siacutenteses com as quais

operamos organizamos e articulamos ateacute agora automaticamente nossos discursos

Foucault mostra que longe de serem o que se acreditava que fossem agrave primeira vista elas

ldquoexigem uma teoria e que essa teoria natildeo pode ser elaborada sem que apareccedila em sua

pureza natildeo sinteacutetica o campo dos fatos do discurso a partir do qual satildeo construiacutedasrdquo18

15 FOUCAULT A arqueologia do saber p23 16 FOUCAULT A arqueologia do saber p27 17 FOUCAULT A arqueologia do saber p28 18 FOUCAULT A arqueologia do saber p29

15

O que autoriza a criacutetica dessas siacutenteses inteiramente formadas eacute sua remissatildeo

ao campo dos ldquofatos de discursordquo isto eacute ao pano de fundo histoacuterico e contingencial dos

acontecimentos ou praacuteticas discursivas no qual essas unidades emergem elas mesmas

como fatos a serem analisados ao lado de outros A intenccedilatildeo de Foucault por traacutes dessa

reduccedilatildeo eacute testar ndash no acircmbito do discurso eixo sobre o qual gravita seu pensamento na

deacutecada de 60 ndash um meacutetodo de anaacutelise histoacuterica isento de qualquer antropologismo e

humanismo portanto livre das teleologias e totalizaccedilotildees Por isso a anaacutelise do discurso

opera essa reduccedilatildeo pragmaacutetica desses grandes conjuntos enunciativos que se apresentam

como unidades autoacutectones e universalmente reconheciacuteveis assim como dos jogos de

noccedilotildees (categorias reflexivas princiacutepios de classificaccedilatildeo regras normativas) que os

constituem agrave dinacircmica especiacutefica do campo dos fatos do discurso em que eles surgem e

se constroem a partir de relaccedilotildees complexas com outros fatos

Uma vez suspensos esses princiacutepios formas e temas que controlam os

discursos em uma sociedade todo um domiacutenio encontra-se liberado Este domiacutenio eacute

constituiacutedo pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (falados ou escritos) em sua

dispersatildeo de acontecimentos e na instacircncia proacutepria de cada um A anaacutelise do discurso de

Foucault desemboca na descoberta de uma populaccedilatildeo de acontecimentos no espaccedilo do

discurso em geral Esse registro eacute anaacutelogo ao que Foucault designa como ldquoepistemerdquo na

obra As palavras e as coisas de forma que assim como esta ele funciona como um ldquoa

priori histoacutericordquo Este eacute precisamente o solo do qual parte a pragmaacutetica discursiva de

Foucault concebida enquanto o ldquoprojeto de uma descriccedilatildeo dos acontecimentos

discursivos como horizonte para a busca das unidades que aiacute se formamrdquo19 Portanto a

anaacutelise do discurso natildeo mais se pautaraacute na remissatildeo do discurso a um conjunto de

significaccedilotildees anteriores que ao discurso cabe explicitar mas na remissatildeo a sua proacutepria

materialidade anterior agrave formalizaccedilatildeo A questatildeo a ser respondida natildeo eacute mais ldquoo que se

dizia no que estava ditordquo e sim ldquoque singular existecircncia eacute esta que vem agrave tona no que se

diz e em nenhuma outra parterdquo20

Poreacutem Foucault natildeo visa apenas liberar a instacircncia do acontecimento

enunciativo da liacutengua e do pensamento assim como de todos os grupamentos

considerados como unidades naturais imediatas e universais O trabalho natildeo se esgota no

seu papel negativo ou criacutetico Como indicamos a suspensatildeo da validade ldquoautoevidenterdquo

desses conjuntos eacute apenas provisoacuteria longe de ser uma denegaccedilatildeo dogmaacutetica trata-se de

19 FOUCAULT A arqueologia do saber p30 20 FOUCAULT A arqueologia do saber p31

16

desfazecirc-los para posteriormente ldquosaber se podemos recompocirc-los legitimamenterdquo

Foucault pretende lanccedilar as bases teoacutericas de um novo meacutetodo de anaacutelise histoacuterica cuja

face positiva e afirmativa fica patente na recomendaccedilatildeo que nos faz por questotildees de

meacutetodo da necessidade de se adotar algumas disposiccedilotildees procedimentos e noccedilotildees do

pensamento que embora incocircmodos porque pouco familiares satildeo potencialmente

reveladores de outras formas de regularidade jogos de relaccedilotildees e unidades

Primeiramente deve-se adotar um princiacutepio de inversatildeo que significa

reconhecer nas figuras e formas nas quais a tradiccedilatildeo situou a fonte e o princiacutepio de

desenvolvimento dos discursos ndash como o princiacutepio do autor disciplina comentaacuterio

unidade da obra etc ndash jogos de coerccedilatildeo estrateacutegias artificiais de controle do discurso e

exorcismo da sua materialidade Tais jogos adverte Foucault devem ser analisados eles

mesmos enquanto fatos do discurso

Em segundo lugar a adoccedilatildeo de um princiacutepio de descontinuidade diz respeito

agrave decisatildeo deliberada segundo a qual ldquoos discursos devem ser tratados como praacuteticas

descontiacutenuas que se cruzam por vezes mas tambeacutem se ignoram ou se excluemrdquo21 Nas

palavras de Foucault ldquodecidi-me a natildeo negligenciar nenhuma forma de descontinuidade

de corte limiar ou de limite Decidi-me a descrever enunciados no campo do discurso e

as relaccedilotildees de que satildeo suscetiacuteveisrdquo22 Esta disposiccedilatildeo metodoloacutegica possibilita a criacutetica da

vontade de verdade que mascara sob a necessidade da forma a origem arbitraacuteria

convencionada e contingente a saturaccedilatildeo de desejo e poder indissociaacuteveis do discurso

bem como ratifica a rejeiccedilatildeo da tentaccedilatildeo habitual de querer reencontrar por baixo daqueles

sistemas de rarefaccedilatildeo ou por traacutes de todas as formas e acontecimentos da realidade um

grande discurso contiacutenuo ilimitado e silencioso que se deveria articular ou pensar Outro

aspecto fundamental da noccedilatildeo de descontinuidade eacute a possibilidade de romper com a

compulsiva remissatildeo do discurso a uma origem secreta e originaacuteria a um ponto

indefinidamente recuado e portanto inalcanccedilaacutevel Pois eacute precisamente esse expediente

proacuteprio das tradicionais filosofias da histoacuteria que torna impossiacutevel assinalar na ordem

do discurso a irrupccedilatildeo de um acontecimento verdadeiro no ldquojogo de sua instacircnciardquo

considerando-se sua aleatoriedade materialidade e singularidade Ao situar a

descontinuidade no fato do enunciado no ato de sua irrupccedilatildeo histoacuterica ou de sua

irredutiacutevel emergecircncia Foucault restitui ao enunciado sua singularidade de

acontecimento e tambeacutem restaura a noccedilatildeo de descontinuidade como um dos elementos

21 FOUCAULT A ordem do discurso p50 22 FOUCAULT A arqueologia do saber p35

17

fundamentais da nova anaacutelise histoacuterica advogada pelo filoacutesofo A descontinuidade deixa

de ser considerada como ldquoo estigma da dispersatildeo temporal que o historiador se

encarregava de suprimir da histoacuteriardquo a fatalidade e o fracasso da leitura histoacuterica como

compreendia a histoacuteria tradicional para se tornar na perspectiva da ldquohistoacuteria novardquo o

elemento positivo fundamental da anaacutelise histoacuterica um conceito operatoacuterio integrado ao

discurso e agrave praacutetica do historiador De forma que o fato dessa mutaccedilatildeo epistemoloacutegica

natildeo ter sido suficientemente explicitada ou compreendida deve-se agrave dificuldade em se

formular uma ldquoteoria geral da descontinuidade das seacuteries dos limites das unidades das

ordens especiacuteficas das autonomias e das dependecircncias diferenciadasrdquo23 Dificuldade que

apenas se explica na medida em que manifesta uma ldquorepugnacircncia singular em pensar a

diferenccedila em descrever os afastamentos e as dispersotildees em desintegrar a forma

tranquilizadora do idecircnticordquo24 Portanto eacute o medo de pensar o outro que nos manteacutem

acorrentados a um pensamento da histoacuteria como o lugar das continuidades ininterruptas

discurso do contiacutenuo e garantia da soberania do sujeito em suma da antropologia e do

humanismo

Uma terceira disposiccedilatildeo de meacutetodo diz respeito agrave admissatildeo de um princiacutepio

de especificidade a fim de garantir a restituiccedilatildeo ao discurso da sua realidade especiacutefica a

saber seu caraacuteter de acontecimento Trata-se de esquivar-se do amparo fornecido pelo

recurso a uma providecircncia preacute-discursiva e com isso suspender a ldquosoberania do

significanterdquo25 O discurso deve ser concebido como ldquouma violecircncia que fazemos agraves

coisas como uma praacutetica que lhes impomos em todo o caso e eacute nesta praacutetica que os

acontecimentos do discurso encontram o princiacutepio de sua regularidaderdquo26

Uma quarta recomendaccedilatildeo concerne agrave adoccedilatildeo irrevogaacutevel da perspectiva da

exterioridade do discurso Foucault nos alerta que natildeo devemos passar do discurso para

seu nuacutecleo interior acircmago de um pensamento ou significaccedilatildeo anterior mas partir do

proacuteprio discurso para suas condiccedilotildees externas de possibilidade e regularidade dimensatildeo

a partir da qual eacute possiacutevel responder agrave pergunta pela sua singularidade

Aleacutem disso Foucault desloca as noccedilotildees que devem servir como princiacutepios

reguladores da anaacutelise As noccedilotildees de criaccedilatildeo unidade originalidade e significaccedilatildeo que

animaram a histoacuteria tradicional das ideias satildeo substituiacutedas ponto por ponto na nova

23 FOUCAULT A arqueologia do saber p13 24 FOUCAULT A arqueologia do saber p13-14 25 FOUCAULT A ordem do discurso p48 26 FOUCAULT A ordem do discurso p50

18

anaacutelise histoacuterica promovida por Foucault pelas noccedilotildees de acontecimento seacuterie

regularidade e condiccedilatildeo de possibilidade O postulado de um princiacutepio de agrupamento

do discurso que garanta sua unidade e originalidade criativa funcionando como princiacutepio

de sua coerecircncia e nuacutecleo de sua significaccedilatildeo eacute deslocado e substituiacutedo pela abordagem

do discurso em sua irrupccedilatildeo dispersiva como acontecimento registro onde se buscaratildeo a

partir de suas redes de contingecircncias os princiacutepios de sua regularidade e condiccedilotildees de

possibilidade As noccedilotildees de consciecircncia e continuidade (com seus problemas correlatos

ieacute da liberdade e da causalidade) assim como as noccedilotildees de signo e estrutura perdem a

centralidade em nome das noccedilotildees de seacuterie e descontinuidade Ao inveacutes de buscar

reconstituir outro discurso a palavra muda o texto invisiacutevel o sentido precedente por

traacutes do discurso Foucault orienta sua anaacutelise dos discursos pela necessidade de

compreender o enunciado na sua estreiteza e singularidade de sua situaccedilatildeo descrever as

formas de regularidades e o jogo de correlaccedilotildees com outros enunciados ldquoestabelecer as

seacuteries diversas entrecruzadas divergentes muitas vezes mas natildeo autocircnomas que

permitem circunscrever o lsquolugarrsquo do acontecimento as margens de sua contingecircncia as

condiccedilotildees de sua apariccedilatildeordquo27 Por mais efecircmero e banal um enunciado eacute um

acontecimento inesgotaacutevel paradoxal na medida em que eacute uacutenico e ao mesmo tempo

aberto agrave repeticcedilatildeo e transformaccedilatildeo

Conclusatildeo

A segunda imagem que se ajusta ao pensamento de Foucault eacute o modo como

ele se articula como uma verdadeira maacutequina de guerra A criacutetica agrave tradiccedilatildeo eacute um dos

eixos motores dessa filosofia da diferenccedila apresentando-se nesta sob muacuteltiplos registros

aspectos e com vaacuterias consequecircncias A criacutetica se dirige por exemplo ao historicismo (e

filosofias da histoacuteria) humanismos psicologismos antropologismos agrave fenomenologia e

ao estruturalismo embora a relaccedilatildeo com este seja essencialmente ambiacutegua No entanto

Foucault natildeo se encontra sozinho na tradiccedilatildeo do pensamento ele toma a via aberta por

Marx Nietzsche Artaud Bataille e de certo modo Spinoza aleacutem de resgatar vozes a

muito tempo banidas do discurso autorizado a saber o louco o monstruoso o criminoso

o irredutivelmente disperso Eacute atraveacutes desse caleidoscoacutepio de relaccedilotildees que o filoacutesofo nos

convida a acompanhaacute-lo no desafio de adentrar no universo proacuteprio do discurso para

27 FOUCAULT A ordem do discurso p53

19

pensaacute-lo em sua materialidade depuraacute-lo das marcas da identidade e da eternidade com

as quais a tradiccedilatildeo tentou impor-lhe uma ilegiacutetima estabilidade e objetividade Trata-se

portanto de abordar o discurso tal como ele eacute realmente atravessado por lutas vitoacuterias

ferimentos servidotildees dominaccedilotildees perigos e poderes que a tradiccedilatildeo jurou conjurar

atraveacutes do controle

Pode-se dizer que um dos objetivos de Foucault eacute abrir epistemologicamente

o caminho agrave criaccedilatildeo acolhendo a diferenccedila e seu potencial desestabilizador no interior da

sua filosofia Nas palavras do proacuteprio filoacutesofo ldquoEste tecircnue deslocamento temo

reconhecer nele como que uma pequena (e talvez odiosa) engrenagem que permite

introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso o descontiacutenuo e a materialidaderdquo28

Poreacutem o deslocamento operado por sua anaacutelise histoacuterica aqui examinada em relaccedilatildeo ao

discurso ultrapassa o domiacutenio da linguiacutestica e abre o caminho para uma filosofia de

caraacuteter eminentemente poliacutetico Na qual para concluir gostariacuteamos de inscrever a anaacutelise

pragmaacutetica do discurso do qual examinamos alguns pontos

Em Foucault a luta para produzir e defender a diferenccedila serve a um projeto

poliacutetico que vecirc no esclarecimento uma das vias privilegiadas para a conquista da

liberdade Na medida em que nossa experiecircncia individual e social eacute construiacuteda nesse

campo discursivo do qual Foucault busca apreender a lei depreende-se que eacute por meio da

libertaccedilatildeo do discurso das unidades e dos sistemas de controle e coerccedilatildeo que sobre ele se

impotildeem restringindo a aacuterea de legitimidade do discurso que eacute possiacutevel criar uma nova

realidade mais livre e condizente agrave pluralidade dos indiviacuteduos No cerne desse ativismo

filosoacutefico-poliacutetico de Foucault podemos situar a famosa frase de Wittgenstein que no

ponto 56 do Tractatus afirmou ldquoos limites de minha linguagem significam os limites de

meu mundordquo29

Um dos exemplos mais persuasivos da reaccedilatildeo extremamente violenta agrave qual

estatildeo sujeitos todos os discursos que excedem os limites prescritos pelos mecanismos de

coerccedilatildeo e exclusatildeo que atuam nas sociedades eacute a excomunhatildeo de Spinoza em 1656 pelos

judeus da Sinagoga Portuguesa de Amsterdatilde O banimento do jovem Spinoza entatildeo com

apenas 23 anos da comunidade judia revela-nos algo importante acerca do motivo pelo

qual todas as sociedades operam com tais sistemas de controle do discurso como indicou

Foucault O discurso ultrajante e blasfemo de Spinoza ao desrespeitar um dogma

fundador do judaiacutesmo deve ser punido com a expulsatildeo da comunidade porque ameaccedila

28 FOUCAULT A ordem do discurso p56 29 WITTGENSTEIN Tractatus Logico-Philosophicus p245

20

sua coesatildeo e unidade O terror que se quer comunicar por meio de semelhante condenaccedilatildeo

se baseia no medo arcaico da espeacutecie humana que durante milhares de anos associou o

banimento social agrave certeza da morte Este evento reedita tal temor e serve para alertar

todos os componentes de um grupo social qual eacute o destino dos transgressores (e seus

discursos potencialmente revolucionaacuterios) a saber o exiacutelio um dos siacutembolos primaacuterios

da morte Essa ferocidade pode ser visualizada no trecho seguinte trecho da carta

() Com a sentenccedila dos Anjos e dos Santos com o consentimento do Deus Bendito e com o consentimento de toda esta Congregaccedilatildeo diante destes santos Livros noacutes heremizamos expulsamos amaldiccediloamos e esconjuramos Baruch de Spinoza com os seiscentos e treze preceitos que estatildeo escritos neles com o Herem com que Josueacute excomungou Jericoacute com a maldiccedilatildeo com que Elias amaldiccediloou os moccedilos e com todas as maldiccedilotildees que estatildeo escritas na Lei Maldito seja de dia e maldito seja de noite maldito seja em seu deitar maldito seja em seu levantar maldito seja em seu sair e maldito seja em seu entrar () [Herem ndash anaacutetema ndash pronunciado contra Spinoza em 27 de julho de 1656]

Foucault se coloca na posiccedilatildeo de Espinosa poreacutem totalmente consciente da

razatildeo e dos mecanismos de autoproteccedilatildeo dos discursos hegemocircnicos E sua filosofia

desponta como instrumento de ativismo ou ainda a filosofia se converte ela mesma em

ativismo poliacutetico na medida em que a criacutetica filosoacutefica se dirige agrave anaacutelise de problemas

pontuais sendo sempre orientada pelo presente e irremediavelmente histoacuterica Eacute na

articulaccedilatildeo entre filosofia histoacuteria e atualidade que Foucault desloca a pergunta de Kant

pelos limites que a razatildeo deve respeitar para assegurar sua legitimidade para a pergunta

pelos limites ilegiacutetimos a serem questionados e transgredidos pois ldquoo trabalho do

intelectual eacute certamente em um sentido dizer o que existe fazendo-o aparecer como

podendo natildeo ser ou podendo natildeo ser como ele eacuterdquo30

Usando a filosofia para tensionar as verdades instituiacutedas desvelando sua

histoacuteria e como elas escondem hierarquizaccedilotildees de poder Foucault participou teoacuterica e

praticamente de movimentos vanguardistas de contestaccedilatildeo como a luta antimanicomial

(Histoacuteria da loucura) a criacutetica ao sistema prisional (Vigiar e Punir) movimento gay

(Histoacuteria da sexualidade) entre outros Portanto sua anaacutelise do discurso eacute tambeacutem uma

demanda de liberdade no campo da linguagem pois com ela Foucault quer ldquoMostrar agraves

pessoas que elas satildeo muito mais livres do que pensam que elas tomam por verdadeiro

30 FOUCAULT Estruturalismo e poacutes-estruturalismo p 325

21

por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da histoacuteria e que essa

pretensa evidecircncia pode ser criticada e destruiacutedardquo

REFEREcircNCIAS

FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural no Collegravege de France

pronunciada em 2 de dezembro de 1970 Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014

______ A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009

______ Estruturalismo e poacutes-estruturalismo (1983) In FOUCAULT Michel Ditos e

Escritos II Arqueologia das ciecircncias e histoacuteria dos sistemas de Pensamento Rio de

Janeiro Forense Universitaacuteria 2005

PLATAtildeO Craacutetilo In PLATAtildeO Teeteto-Craacutetilo Beleacutem Universidade Federal do Paraacute

1988 p 101-177

SPINOZA Benedictus de Eacutetica Belo Horizonte Autecircntica Editora 2010

WITTGENSTEIN Ludwig Investigaccedilotildees filosoacuteficas Petroacutepolis Vozes 2009

______ Tractatus Logico-Philosophicus Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo

Paulo 2001

LEIBNIZ E A CRIacuteTICA AO ESPACcedilO TOTA SIMUL NEWTONIANO A

MOcircNADA COMO CAUSA IMEDIATA DO MOVIMENTO

Cloves Thiago Dias Freire1

RESUMO Neste artigo pretendemos recompor a argumentaccedilatildeo que sustenta a criacutetica de Leibniz a noccedilatildeo de espaccedilo tota simul newtoniano com vistas a mostrar que segundo o pressuposto leibniziano a verdadeira causa imediata do movimento deve residir na noccedilatildeo verdadeira de substacircncia ou Mocircnada e natildeo como defendia Newton na noccedilatildeo de um espaccedilo totalmente semelhante e indiscerniacutevel Segundo o filoacutesofo alematildeo a noccedilatildeo de um espaccedilo que possui realidade per se implicaria na impossibilidade da correta caracterizaccedilatildeo do movimento dos corpos posto que esta noccedilatildeo violaria os princiacutepios da razatildeo suficiente e da identidade dos indiscerniacuteveis Neste sentido o fundamento do movimento natildeo estaria na existecircncia de um espaccedilo absoluto mas no registro intriacutenseco da mudanccedila e do movimento pela apercepccedilatildeo individualizada da Mocircnada Palavras-chave Newton Leibniz Espaccedilo Movimento ABSTRACT In this article we intended to recompose the argument that sustains the critic of Leibniz the notion of Newtonian space tota simul in order to show that according to the Leibnizian presupposition the real immediate cause of the movement should live in the true notion of substance or Monad and no as it defended Newton in the notion of a space totally similar and undiscernible According to the German philosopher the notion of a space that possesses reality per se would be implicated in the impossibility of the correct characterization of movement of the bodies position that this notion would violate the principles of sufficient reason and of the identity of the undiscernible In this sense the foundation of movement would not be in the existence of an absolute space but in the intrinsic registration of the change and of the movement for the individualized apperception of the Monad Keywords Newton Leibniz Space Movement

1 Consideraccedilotildees iniciais

Isaac Newton ao postular sua noccedilatildeo de espaccedilo absoluto tota simul com o

intuito de superar os entraves da noccedilatildeo cartesiana de movimento propocircs a dissociaccedilatildeo

ontoloacutegica entre espaccedilo e corpomateacuteria tornando o espaccedilo absoluto um referencial

inercial para a correta descriccedilatildeo da mecacircnica do mundo

1 Mestre em filosofia (PPGF-UFS) email Thiagodfreire1gmailcom

23

Todavia na opiniatildeo de Leibniz esta noccedilatildeo de espaccedilo demandaria

inconsistecircncias metafiacutesicas insoluacuteveis para a filosofia do movimento pois num espaccedilo

tota simul indiscerniacutevel seria impossiacutevel observar a mudanccedila de relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos

corpos o que implicaria na violaccedilatildeo dos princiacutepios da razatildeo suficiente e da identidade

dos indiscerniacuteveis O espaccedilo absoluto seria para o alematildeo apenas uma consideraccedilatildeo uacutetil

pois o registro da mudanccedila e do movimento natildeo estaria no espaccedilo propriamente dito mas

intrinsecamente na noccedilatildeo verdadeira de substacircncia ou mocircnada

Como pretendemos mostrar para Leibniz se aceitarmos a noccedilatildeo de espaccedilo

absoluto newtoniano como uma teoria consistente teremos de admitir como

consequecircncia a impossibilidade da correta designaccedilatildeo do movimento dos corpos uma

vez que num espaccedilo tota simul seria impossiacutevel determinar quando um corpo muda de

relaccedilatildeo de situaccedilatildeo com outros corpos

Esta opiniatildeo estaacute amparada em grande medida no disposto do sect 8 da

Monadologia muito provavelmente porque seraacute ali que Leibniz ao caracterizar a

natureza desta nova substacircncia ou mocircnada problematizaraacute a consequente designaccedilatildeo do

movimento questatildeo das mais fundamentais do iniacutecio da filosofia moderna

Dito isto pretendemos compreender de que forma a noccedilatildeo de substacircncia

apresentada na Monadologia e retomada na Correspondecircncia com Clarke seraacute

fundamental para compreendermos a criacutetica empreendida por Leibniz a noccedilatildeo newtoniana

de espaccedilo absoluto e por conseguinte a noccedilatildeo de movimento

Assim para recompor este debate desenvolveremos este artigo em trecircs

momentos argumentativos Primeiramente tentaremos caracterizar a noccedilatildeo de espaccedilo e

de movimento na filosofia newtoniana tendo como referecircncia os textos De gravitatione

e Principia mathematica No segundo momento analisaremos a Correspondecircncia

Leibniz-Clarke com o propoacutesito de compreender os fundamentos da criacutetica estabelecida

por Leibniz agrave noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano Por fim nos apoiando nos Princiacutepios

da filosofia ditos a Monadologia sustentaremos que para Leibniz a verdadeira

designaccedilatildeo das causas da mudanccedila e do movimento deve ser atribuiacuteda a noccedilatildeo verdadeira

de substacircncia ou Mocircnada e natildeo a existecircncia de um espaccedilo que possui realidade per se

2 Newton e o espaccedilo absoluto tota simul

Eacute possiacutevel dizer que a filosofia natural newtoniana tenha sido pensada como

uma resposta direta as inconsistecircncias do modo cartesiano de pensar a descriccedilatildeo dos

24

eventos no mundo das coisas materiais Esta assertiva pode ser corroborada por um texto

escrito ao que tudo indica entre os anos de 1664 e 1668 denominado De gravitatione et

aequipondio fluidorum2 que data da mesma eacutepoca em que Newton ainda era um estudante

no Trinity College3 Grosso modo podemos caracterizaacute-lo como uma criacutetica direta a

filosofia natural cartesiana especificamente as premissas dos Princiacutepios da filosofia

(1644)

Em De gravitatione jaacute se apresentavam a geacutenese das futuras noccedilotildees de espaccedilo

absoluto e movimento absoluto pensadas como resposta as inconsistecircncias das definiccedilotildees

cartesianas de espaccedilo e movimento Segundo Descartes a definiccedilatildeo de movimento

verdadeiro (motus proprie sumptus) seraacute expressa no famoso art 25 parte II dos

Princiacutepios escreve ele

[] o movimento eacute a translaccedilatildeo [translationem] de uma parte da mateacuteria ou de um corpo da proximidade daqueles que lhe satildeo imediatamente contiacuteguos ndash e que consideramos em repouso ndash para a proximidade de outros4

Todavia para Newton como consequecircncia desta definiccedilatildeo de movimento ao

fim do deslocamento de um determinado corpo no espaccedilo eacute impossiacutevel determinar o lugar

no qual o corpo se encontrava antes de iniciar tal movimento Isto eacute ocasionado pois o

movimento eacute referenciado aos corpos contiacuteguos e ao teacutermino de um movimento os corpos

contiacuteguos natildeo permanecem na mesma relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que se encontravam

anteriormente Na letra de Newton

Natildeo existe base alguma a partir da qual possamos no momento encontrar um lugar que existiu no passado ou dizer que tal lugar ainda pode ser descoberto na natureza Com efeito uma vez que segundo Descartes o lugar natildeo eacute outra coisa senatildeo a superfiacutecie dos corpos adjacentes ou a posiccedilatildeo entre alguns outros corpos mais distantes eacute impossiacutevel ndash conforme esta doutrina ndash que o lugar exista durante um periacuteodo de tempo mais longo do que aquele durante o qual esses corpos mantecircm as mesmas posiccedilotildees do qual o Filoacutesofo deriva a denominaccedilatildeo individual5

Ora se eacute impossiacutevel determinar o lugar ou seja o ponto (situs) do espaccedilo em

que se inicia o movimento entatildeo natildeo se pode determinar sua velocidade pois esta

2 Sobre o peso e o equiliacutebrio dos fluidos 3 O Trinity College foi fundado por Henrique VIII em 1546 como parte da Universidade de Cambridge na cidade de Cambridge Reino Unido A eacutepoca de Newton o Trinity College tinha forte influecircncia dos chamados platocircnicos de Cambridge liderados por figuras como Ralph Cudworth e Henry More 4 DESCARTES Princiacutepios da filosofia 2015 p 70 5 NEWTON O peso e o equiliacutebrio dos fluidos 1983 p 69 grifo nosso

25

depende da distacircncia percorrida por um determinado corpo no espaccedilo Logo para

Newton pode-se concluir que no universo cartesiano nada se move apesar das aparecircncias

em contraacuterio Conclusatildeo que seraacute mais bem compreendida quando do registro da seguinte

passagem em De gravitatione diz ele

Do que ficou dito se infere indubitavelmente que o movimento cartesiano natildeo eacute movimento pois natildeo tem velocidade nem definiccedilatildeo natildeo havendo tampouco espaccedilo ou distacircncia percorridos por ele Por conseguinte eacute necessaacuterio que a definiccedilatildeo de lugares e consequentemente tambeacutem dos movimentos locais seja referida a alguma coisa destituiacuteda de movimento tal como a extensatildeo sozinha ou o espaccedilo na medida em que se vecirc que este se distingue dos corpos6

Segundo Newton o grande erro da definiccedilatildeo cartesiana de movimento foi

referenciar a mudanccedila de situaccedilatildeo com relaccedilatildeo a corpos contiacuteguos todavia conforme a

citaccedilatildeo acima a correta definiccedilatildeo do movimento deveria considerar o espaccedilo enquanto

destituiacutedo de movimento e distinto dos corpos o que possibilitaria sua atuaccedilatildeo como um

referencial inercial para o movimento dos corpos Referencial que seraacute definitivamente

formalizado com a publicaccedilatildeo de seu tratado mais importante Principia mathematica

A obra Philosophiae naturalis principia Mathematica doravante

denominada Principia foi editada pela primeira vez em 1686 Neste tratado Newton

expotildee seu grande projeto de filosofia natural que tem como objetivo metodoloacutegico derivar

as causas dos eventos fiacutesicos a partir do estudo dos fenocircmenos meacutetodo sintetizado em

seu famoso postulado ldquohipotheses non fingordquo Muito provavelmente este texto lanccedila as

bases da mecacircnica claacutessica que se tornaraacute o modelo de comunicaccedilatildeo cientiacutefica nos seacuteculos

posteriores

No tratado Newton daraacute nova definiccedilatildeo agraves quantidades fiacutesicas consideradas

por ele mais desconhecidas e reafirmaraacute aquelas jaacute desenvolvidas em De gravitatione

tais como tempo espaccedilo lugar e movimento Contudo acredita ser necessaacuterio realizar a

correta distinccedilatildeo entre as quantidades absolutas e relativas verdadeiras e aparentes

matemaacuteticas e vulgares pois assevera que o leigo (vulgus) natildeo conhece essas quantidades

sob outras noccedilotildees a natildeo ser a partir de suas relaccedilotildees com os objetos tangiacuteveis

Portanto conforme o postulado newtoniano a correta compreensatildeo de sua

noccedilatildeo de espaccedilo demandaraacute dos sujeitos um processo de abstraccedilatildeo dos sentidos que possa

fazer distinguir entre o espaccedilo absoluto matemaacutetico e verdadeiro do espaccedilo relativo e

6 Ibid p 69 grifo nosso

26

vulgar Eacute o que podemos observar nas seguintes definiccedilotildees do primeiro Escoacutelio dos

Principia

II O espaccedilo absoluto [spatium absolutum] por sua natureza sem nenhuma relaccedilatildeo [relatione] com algo externo permanece sempre semelhante e imoacutevel [similare amp immobile] o relativo eacute certa medida (mesura) ou dimensatildeo [dimensio] moacutevel desse espaccedilo a qual nossos sentidos definem por sua situaccedilatildeo [situm] relativamente aos corpos e que a plebe [vulgo] emprega em vez do espaccedilo imoacutevel [] III O lugar [locus] eacute uma parte do espaccedilo que um corpo ocupa e com relaccedilatildeo ao espaccedilo eacute absoluto ou relativo Digo uma parte do espaccedilo e natildeo a situaccedilatildeo do corpo [situs corporis] ou a superficie ambiente [superficiem ambientem] Com efeito os lugares dos soacutelidos iguais satildeo sempre iguais mas as superfiacutecies satildeo quase sempre desiguais por causa da dessemelhanccedila das figuras as situaccedilotildees [situs] poreacutem natildeo tecircm propriamente falando quantidade sendo antes afecccedilotildees dos lugares [affectiones locorum] que os proacuteprios lugares7

Neste sentido Newton propotildee que o espaccedilo absoluto verdadeiro e matemaacutetico

possui natureza distinta dos corpos que o ocupam adequadamente (ou uniformemente)

permanecendo sempre semelhante e imoacutevel e o lugar eacute uma parte deste espaccedilo e natildeo eacute a

situaccedilatildeo dos corpos com relaccedilatildeo a outros corpos contiacuteguos como pensara Descartes no

famoso sect 25 dos Princiacutepios Assim as relaccedilotildees de situaccedilatildeo dos corpos no espaccedilo seratildeo

apenas afecccedilotildees dos lugares sem qualquer possibilidade de quantificaccedilatildeo

Isto posto o movimento absoluto ldquoeacute a translaccedilatildeo de um corpo e um lugar

absoluto para outro absoluto ao passo que o relativo eacute a translaccedilatildeo de um lugar relativo

para outro relativordquo8 Consequentemente o movimento relativo seria a translaccedilatildeo de um

corpo de um lugar relativo para outro

Ademais assim como as partes do tempo satildeo imutaacuteveis tambeacutem eacute a ordem

do espaccedilo uma vez que a essecircncia das partes do espaccedilo eacute ser lugar e os lugares primaacuterios

natildeo se movem Por isso para Newton a causa imediata da designaccedilatildeo da

mudanccedilamovimento deve ser relacionada ao modo vulgar de considerar o lugar e

consequentemente o movimento pois

[] como essas partes do espaccedilo natildeo podem ser vistas e distinguidas umas das outras por nossos sentidos usamos em lugar delas medidas sensiacuteveis Com efeito definimos todos os lugares [loca universa] pelas posiccedilotildees [positionibus] e distacircncias das coisas em relaccedilatildeo a um determinado corpo que consideramos imoacutevel a seguir

7 NEWTON Princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural 1983 p 8 grifo nosso 8 Ibid p 9

27

tambeacutem calculamos todos os movimentos relativamente a esses lugares enquanto concebemos os corpos como transferidos destes9

Neste sentido para Newton por sermos incapazes de pelos sentidos ver e

distinguir as partes das coisas imoacuteveis matemaacutetica verdadeira e absoluta ou seja devido

a nossa incapacidade de distinguir o verdadeiro espaccedilo definimos todo espaccedilo em relaccedilatildeo

agrave posiccedilatildeo e distacircncia das coisas vinculadas a um determinado corpo que consideramos

imoacutevel Parece-nos que apesar de possuir realidade per se este espaccedilo absoluto

matemaacutetico e verdadeiro deve possuir um estatuto ontoloacutegico proacuteprio pois a

caracterizaccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico deve se referenciar sempre aos lugares relativos e natildeo ao

absoluto

Na opiniatildeo de Newton se considerarmos o movimento em sua natureza

geomeacutetrica e verdadeiramente determinada a partir do transporte ou translaccedilatildeo de um

corpo de sua vizinhanccedila imoacutevel para a vizinhanccedila de outros sem referecircncia a nada que

esteja verdadeiramente imoacutevel perderemos o que eacute proacuteprio do movimento pois como ele

afirma

Eacute propriedade do movimento [motus proprietas est] que as partes que guardam as posiccedilotildees dadas em relaccedilatildeo a seus todos participam dos movimentos desses todos Logo movidos os corpos ambientes as coisas que em redor estatildeo relativamente em repouso se moveratildeo10

Uma consequecircncia desta proposiccedilatildeo eacute que o movimento verdadeiro e absoluto

natildeo pode ser definido pela translaccedilatildeo a partir dos corpos vizinhos que satildeo vistos parados

pois tomando os corpos ambientes como referencial ao moverem-se os corpos ambientes

as coisas em seu redor relativamente em repouso se moveratildeo

Se o movimento for referenciado pelo lugar quando o lugar se move

juntamente se move seu conteuacutedo por isso um corpo que se move de um lugar em

movimento participa tambeacutem de seu conteuacutedo consequentemente

[] movimentos integrais e absolutos natildeo podem definir-se senatildeo pelos lugares imoacuteveis e por isso acima os referi a esses lugares mas referi os movimentos relativos aos lugares moacuteveis Ora lugares imoacuteveis natildeo satildeo senatildeo aqueles que por toda infinidade conservam as posiccedilotildees muacutetuas pelo que sempre permanecem imoacuteveis constituindo o espaccedilo que chamo imoacutevel11

9 Ibid p 10 grifo nosso 10 Ibid p 10 grifo nosso 11 Ibid p 11 grifo nosso

28

Aleacutem disso o que distingue o movimento relativo e o movimento absoluto

satildeo as causas impressas nos corpos pois o movimento verdadeiro natildeo eacute gerado nem se

muda senatildeo por forccedilas impressas nos proacuteprios corpos Jaacute o movimento relativo pode ser

gerado sem forccedilas impressas neste corpo bastando para isto que se imprimam forccedilas em

outros corpos com os quais exerce relaccedilatildeo de contiguidade

Newton assevera que as definiccedilotildees das quantidades fiacutesicas por se apoiarem

no mundo das coisas sensiacuteveis se referem sempre a seu aspecto relativo ou vulgar mas

nunca as quantidades efetivamente verdadeiras e absolutas Todavia dado que o espaccedilo

eacute composto de partes imoacuteveis indistintas e intangiacuteveis eacute dificiacutelimo conhecer os

verdadeiros movimentos de cada corpo e distingui-los dos movimentos relativos

A efetiva distinccedilatildeo entre movimento absoluto e movimento relativo seraacute a

pedra angular da mecacircnica newtoniana dos Principia Esta distinccedilatildeo soacute seraacute possiacutevel

tomando como referencial para o movimento uma noccedilatildeo de espaccedilo que eacute naturalmente

imoacutevel indistinto e intangiacutevel Como jaacute assinalamos este projeto jaacute se apresentava desde

o De gravitatione

Mas seraacute com as proposiccedilotildees registradas no texto final dos Principia

denominado ldquoEscoacutelio geralrdquo e adicionado agrave obra somente a partir da 2ordf ediccedilatildeo de 1713

que a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto ganharaacute contornos problemaacuteticos muito em funccedilatildeo do

abandono de seu projeto inicial de se desvencilhar de pressupostos metafiacutesicos na

fundamentaccedilatildeo de sua filosofia natural No Escoacutelio geral Newton fundamentaraacute em

concepccedilotildees metafiacutesicas a ordem e manutenccedilatildeo do universo regido por um Deus ou Ser

inteligente que emana de seu ser o proacuteprio espaccedilo enquanto um Sensorium Dei

Em De gravitatione Newton postula que se soacute existe aquilo que estaacute no

espaccedilo e jaacute que Deus existe deve necessariamente existir no espaccedilo Logo se eacute de sua

natureza ser infinito deve estaacute em todo lugar natildeo somente em accedilatildeo mas tambeacutem

essencialmente Isto quer dizer que Deus estaacute no espaccedilo agrave medida que o espaccedilo estaacute

contido em sua substacircncia presente Neste sentido assinala Newton que ldquonele satildeo todas

as coisas contidas e movidas todavia nenhum afeta o outro Deus natildeo sofre nada do

movimento dos corpos os corpos natildeo encontram nenhuma resistecircncia da onipresenccedila de

Deusrdquo12

Ocorre que apesar de estar no espaccedilo sempre e em todos os lugares

substancialmente Deus natildeo eacute humano nem em absoluto corpoacutereo ldquoEle eacute completamente

12 Ibid p 21

29

destituiacutedo de todo corpo e figura corporal e natildeo pode portanto nem ser visto nem

ouvido nem tocado nem deve ser ele adorado sob a representaccedilatildeo de qualquer coisa

corporalrdquo13

Todavia apesar de natildeo ser corpoacutereo eacute extenso por estar no espaccedilo mas

incorpoacutereo por conter virtualmente o proacuteprio espaccedilo em seu Ser Contudo da substacircncia

de Deus Newton afirma que soacute conhecemos suas criaccedilotildees enquanto resultado de suas

causas finais

Do que depreendemos ateacute aqui o conceito de espaccedilo na filosofia de Newton

serviu como suporte para a elaboraccedilatildeo de sua filosofia do movimento entretanto esta

formulaccedilatildeo seraacute contestada por Leibniz muito em funccedilatildeo das consequentes implicaccedilotildees

metafisicas Por esse motivo dando prosseguimento agrave nossa anaacutelise dos conceitos de

espaccedilo e movimento tentaremos mostrar como se posiciona o filoacutesofo alematildeo frente a

estes postulados no acircmbito da correspondecircncia com Samuel Clarke

3 Leibniz e o real atributo do espaccedilo a correspondecircncia com Clarke

Newton no escoacutelio agrave VIII definiccedilatildeo dos Principia postula que o espaccedilo em

sua definiccedilatildeo absoluta possui natureza proacutepria sem relaccedilatildeo com qualquer coisa externa

permanecendo sempre similar e imoacutevel Esta noccedilatildeo como mostramos tinha o objetivo

de estabelecer um referencial inercial para a descriccedilatildeo de corpos em movimento O que

segundo o inglecircs seria impossiacutevel determinar na filosofia natural cartesiana que associava

ontologicamente espaccedilo e mateacuteria Daiacute a necessidade de um referencial que natildeo se

confundisse com a natureza corpoacuterea

Entretanto Leibniz se oporaacute frontalmente a realidade per se de um espaccedilo

totalmente semelhante imoacutevel e independente dos corpos pois em seu ponto de vista o

espaccedilo natildeo eacute senatildeo a ordem de coexistecircncia das coisas notadas simultaneamente

Contrapondo assim a noccedilatildeo de um espaccedilo homogecircneo e indiscerniacutevel por uma

consequente designaccedilatildeo heterogecircnea e relacional do espaccedilo

Dito isto nos voltaremos para compreender os fundamentos da criacutetica

leibniziana a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano Com tal propoacutesito analisaremos a

primeira parte da quinta carta de Leibniz a Clarke com vistas a entender as razotildees que

levaram Leibniz a se opor agravequela noccedilatildeo de espaccedilo defendida por Newton Aleacutem disso

13 NEWTON loc cit

30

pretendemos compreender as consequecircncias da admissatildeo de um espaccedilo tota simul para a

correta designaccedilatildeo dos corpos em movimento

A correspondecircncia Leibniz-Clarke se inicia imediatamente apoacutes Leibniz

enviar excertos de uma missiva agrave Princesa Carolina de Gales14 que por sua vez a envia

ao teoacutelogo newtoniano Samuel Clarke O conjunto da correspondecircncia eacute composto por

cinco cartas de Leibniz e cinco cartas de Clarke trocadas entre 1715 e 1716 portanto

muito proacuteximo da morte de Leibniz

A primeira carta daraacute o tom do debate e trata latu sensu de filosofia e teologia

natural com ecircnfase na discussatildeo sobre o real atributo do espaccedilo e do tempo Para fins de

nossa anaacutelise nos concentraremos na primeira parte (sectsect 1-53) da quinta carta de Leibniz

ou resposta agrave quarta carta reacuteplica de Clarke Nesta carta acreditamos que Leibniz sintetiza

as principais proposiccedilotildees de sua criacutetica a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto newtoniano assim

como tambeacutem caracteriza sua proacutepria noccedilatildeo de espaccedilo relacional Boa parte desta criacutetica

se fundamentaraacute sobre a violaccedilatildeo do princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis

Mas antes de analisarmos a quinta carta voltemos um pouco pois em sua

quarta reacuteplica a Leibniz (sectsect 3-4) Clarke registra a respeito da identidade dos

indiscerniacuteveis que quanto aos corpos compostos natildeo haveria a possibilidade de existirem

dois sujeitos perfeitamente semelhantes contudo quanto agraves partes da mateacuteria simples

seria possiacutevel a Deus criar duas partes semelhantes em tudo Isto natildeo implicaria diz ele

ser a mesma coisa pois ldquoacrescento que o lugar de uma dessas gotas natildeo seria o da outra

embora a situaccedilatildeo delas fosse uma coisa absolutamente indiferenterdquo15

Ao admitir a possibilidade de que Deus traga a existecircncia duas porccedilotildees de

mateacuteria em situaccedilotildees totalmente indiscerniacuteveis Clarke propotildee que a situaccedilatildeo destes

corpos seria discerniacutevel em funccedilatildeo apenas de suas posiccedilotildees no espaccedilo ou seja de seu

lugar especiacutefico fazendo do lugar um predicado (ou afecccedilatildeo) dos corpos a maneira

newtoniana Leibniz por sua vez se posicionaraacute contrariamente a estaacute afirmaccedilatildeo

sustentando sua argumentaccedilatildeo como mostraremos na violaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo

suficiente e do princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis

Em resposta a esta carta de Clarke Leibniz assinala que a filosofia primeira

foi pouco fecunda e demonstrativa devido ao fato de que os filoacutesofos embora

reconhecessem a importacircncia do princiacutepio da razatildeo suficiente assim como do princiacutepio

14 Guilhermina Carlota Carolina (1683 ndash1737) foi esposa do rei Jorge II e rainha consorte do Reino da Gratilde-Bretanha e do Reino da Irlanda de 1727 ateacute sua morte 15 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 188

31

da identidade dos indiscerniacuteveis estes natildeo foram razoavelmente empregados Do

princiacutepio da razatildeo suficiente se infere que todo acontecimento soacute vem a ser em virtude de

uma causa ou razatildeo Leibniz considera que se este princiacutepio fosse empregado

adequadamente natildeo seria asseverada a existecircncia de dois sujeitos absolutamente

indiscerniacuteveis pois como ele descreve no sect 21 da referida carta ldquose existissem [dois seres

iguais] Deus e a natureza agiriam sem razatildeo tratando a um de outro jeito que a outro

Assim pois Deus natildeo produz duas porccedilotildees de mateacuteria perfeitamente iguais e

semelhantesrdquo16

Este argumento se coloca frontalmente em oposiccedilatildeo a filosofia dos aacutetomos e

do vazio defendida tanto por Newton quanto pelos newtonianos Primeiramente porque

se natildeo eacute compatiacutevel com a sabedoria divina criar duas porccedilotildees de mateacuteria sejam elas

gotas ou aacutetomos exatamente iguais entatildeo aceitar a existecircncia de aacutetomos sem nenhuma

variedade ou movimento particular seria contraacuterio ao grande princiacutepio da razatildeo suficiente

Em segundo lugar porque sustenta que cada porccedilatildeo da mateacuteria pode ser

subdivida em outras movidas de modo diferente e nenhuma destas partes parece

inteiramente uma com a outra Desta forma o princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis17

contestaria a possibilidade de se encontrar na natureza dois corpos inteiramente

semelhantes Princiacutepio que tambeacutem refutaria a existecircncia de um espaccedilo totalmente

similar e mutualmente congruente onde natildeo seria possiacutevel distinguir uma parte da outra

Em vista disto para Leibniz o espaccedilo natildeo eacute mais que a ordem da coexistecircncia

das coisas notadas na simultaneidade delas O que implica na impossibilidade de um

universo material finito existir e se movimentar num espaccedilo infinito tal qual o espaccedilo

newtoniano pois como escreve ele no sect 29 da referida correspondecircncia

De fato aleacutem de natildeo haver espaccedilo real fora do universo material semelhante accedilatildeo seria sem finalidade seria trabalhar sem fazer nada agendo nihil agere Natildeo se produziria nenhuma mudanccedila observaacutevel fosse por quem fosse Satildeo imaginaccedilotildees dos filoacutesofos de noccedilotildees incompletas que fazem do espaccedilo uma realidade absoluta18

Agora de acordo com as premissas asseveradas por Leibniz se aceitarmos a

noccedilatildeo do espaccedilo absoluto newtoniano este espaccedilo fora do universo material (espaccedilo

vazio) seria indiscerniacutevel logo natildeo sendo possiacutevel atestar o movimento dos corpos posto

que o movimento seja a mudanccedila de situaccedilatildeo em relaccedilatildeo a alguma outra coisa chegando

16 Ibid p 196 17 Principium identitatis indiscernibilium 18 LEIBNIZ op cit p 198 grifo nosso

32

a um estado discerniacutevel do primeiro Se assim natildeo fosse o movimento seria apenas uma

ficccedilatildeo

Segundo Raquel Sapunaru em O conceito leibniziano de espaccedilo eacute

importante destacar que o conceito de situaccedilatildeo eacute fundamental para a anaacutelise do espaccedilo

leibniziano pois se deve atentar para o fato de que a situaccedilatildeo e o lugar satildeo apenas

abstraccedilotildees ou seja a situaccedilatildeo eacute apenas um modo do espaccedilo e o lugar seria uma

identificaccedilatildeo quantitativa desses modos ou das situaccedilotildees19

Por conseguinte o espaccedilo natildeo depende da situaccedilatildeo dos corpos mas eacute a ordem

da coexistecircncia que faz com que os corpos sejam situaacuteveis e pelos quais possuem uma

relaccedilatildeo de situaccedilatildeo entre si ao existirem20

Leibniz considera que assim como o tempo o espaccedilo soacute pode ser tomado na

sua idealidade ou seja o espaccedilo soacute ldquoexisterdquo enquanto ente de razatildeo por isto sua

existecircncia para aleacutem do mundo material deve ser interpretada como uma imaginaccedilatildeo isto

eacute uma ficccedilatildeo Pelas mesmas razotildees a existecircncia do espaccedilo vazio deve ser tambeacutem

objetada

Tal como Descartes Leibniz tambeacutem sustenta um espeacutecie de plenismo

cosmoloacutegico onde nenhum corpo pode ser movido senatildeo por outro corpo que o impele

sem interstiacutecio vazio Portanto qualquer operaccedilatildeo sobre um corpo que natildeo decorra da

atuaccedilatildeo material seraacute ou milagrosa ou imaginaacuteria21

Com tal caracteriacutestica compreender o espaccedilo como algo absoluto e

desprovido de corpos seria concebecirc-lo impassiacutevel e independente de Deus Se assim o

for o espaccedilo natildeo poderia ser entendido como uma propriedade de Deus ou ao modo

newtoniano como um Sensorium Dei Na mesma perspectiva o filoacutesofo alematildeo

questiona

Se o espaccedilo eacute a propriedade ou a afecccedilatildeo da substacircncia que estaacute no espaccedilo ele seraacute ora a afecccedilatildeo de um corpo ora de um outro corpo ora de uma substacircncia imaterial ora quando vazio de toda outra substacircncia material ou imaterial talvez do proacuteprio Deus Mas que estranha propriedade ou afecccedilatildeo que passa de sujeito para sujeito Assim sendo os sujeitos deixaratildeo seus acidentes como se fossem um haacutebito a fim de que outros sujeitos possam se revestir com eles Como pois se distinguiratildeo os acidentes e as substacircncias22

19 SAPUNARU O conceito leibniziano de espaccedilo 2012 p 91 20 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 186 21 Ibid p 199 22 Ibid p 200 grifo nosso

33

Neste momento Leibniz estaacute questionando aqui qual o estatuto predicativo

que estaacute associado a esta noccedilatildeo de espaccedilo independente pois se o espaccedilo deve ser

compreendido como uma propriedade ou afecccedilatildeo do que estaacute no espaccedilo logo (1) deve

ser material ou imaterial (2) se for material deve ser a afecccedilatildeo ora de um corpo ora de

outro (3) se for imaterial deve ser a afecccedilatildeo ora do vazio ou ateacute mesmo do proacuteprio Deus

Entretanto para o alematildeo a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto de Newton viola gravemente o

sistema predicativo da loacutegica claacutessica onde as substacircncias devem fazer deduzir de si

todos os predicados do sujeito a que se atribui esta noccedilatildeo Na loacutegica predicativa de

Leibniz o conceito do atributo ou predicado deve jaacute estaacute contido no sujeito Portanto

como assinala Raquel Sapunaru

[] toda predicaccedilatildeo mesmo relacional se verdadeira deve estar fundada em algum ponto da seacuterie de predicados que define esta substacircncia Inversamente natildeo eacute possiacutevel considerar que duas substacircncias diferentes tenham a mesma relaccedilatildeo de coexistecircncia com as outras substacircncias pois isso seria idecircntico a aceitar que o mesmo predicado se encontra simultaneamente em duas substacircncias23

Nesta esteira Leibniz assinala que tornar o espaccedilo uma propriedade de Deus

eacute abusar dos termos pois se o espaccedilo eacute a propriedade de Deus e se Deus estaacute no espaccedilo

entatildeo o sujeito estaria contido na propriedade Afirmar isto eacute extrapolar os limites do

raciociacutenio e da razatildeo posto que Deus natildeo poderia ser extenso E isso afetaria frontalmente

o esquema predicativo sujeito-predicado S estaacute em P ou P conteacutem S24

Assim para Leibniz o espaccedilo eacute o conjunto dos lugares compreendidos a

partir da razatildeo estabelecida entre os coexistentes com respeito a um determinado nuacutemero

de corpos que se mantecircm na mesma relaccedilatildeo de situaccedilatildeo Considerando que esta ordem de

relaccedilatildeo eacute estabelecida puramente no domiacutenio do ideal a noccedilatildeo enganosa de espaccedilo

absoluto eacute formada pelos homens segundo uma necessidade de encontrar fora da ordem

dos coexistentes uma identidade formal Como Leibniz descreve no famoso sect 47 da quinta

carta a Clarke

Eis como os homens chegam a formar a noccedilatildeo de espaccedilo Consideram que muitas coisas existem simultaneamente e acham nelas certa ordem de coexistecircncia segundo a qual a relaccedilatildeo entre umas e outras eacute mais ou menos simples eacute sua situaccedilatildeo ou distacircncia Quando acontece que um desses coexistentes modifica essa relaccedilatildeo a uma multidatildeo de outros sem que estes mudem entre si e que um receacutem-vindo adquire a relaccedilatildeo que o primeiro tivera com os outros diz-se que

23 SAPUNARU O conceito leibniziano de espaccedilo 2012 p 95 24 Cf Discurso de metafisica sect 8

34

veio ocupar seu lugar chama-se essa transformaccedilatildeo um movimento que se acha naquele que estaacute agrave causa imediata da transformaccedilatildeo E quando muitos ou mesmo todos mudassem conforme certas regras conhecidas de direccedilatildeo e velocidade poder-se-ia sempre determinar a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que cada um adquiriria para com o outro e mesmo a relaccedilatildeo que qualquer outro teria ou que ele teria para com outro qualquer se natildeo tivesse mudado ou o tivesse feito de outro modo Supondo e fingindo que entre esses coexistentes haja um nuacutemero suficiente de alguns que natildeo tenham tido transformaccedilatildeo em si dir-se-aacute que os que tem uma relaccedilatildeo com esses existentes fixos como outros anteriormente ocupam o mesmo lugar que estes uacuteltimos tinham tido Ora o que abrange todos esses lugares eacute que se chama espaccedilo Isso demonstra que para ter a ideia do lugar e por consequecircncia do espaccedilo basta considerar essas relaccedilotildees e as regras de suas transformaccedilotildees sem necessidade de imaginar aqui nenhuma realidade absoluta fora das coisas cuja situaccedilatildeo se considera E para dar uma espeacutecie de definiccedilatildeo lugar eacute aquilo que se diz ser o mesmo em relaccedilatildeo a A e a B quando a relaccedilatildeo de coexistecircncia de B com C E F G etc conveacutem inteiramente com a relaccedilatildeo de coexistecircncia que A tivera com os mesmos supondo-se que natildeo tenha havido nenhuma causa de mudanccedila em C E F G etc25

Portanto para Leibniz o espaccedilo eacute o resultado dos lugares tomados

conjuntamente na medida em que satildeo pensados por noacutes somente enquanto entes de razatildeo

Deve-se ainda considerar que o lugar difere da relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que

ocupa o lugar Tanto o corpo A quanto o corpo B ocupam o mesmo lugar Todavia a

relaccedilatildeo de A para com os corpos fixos natildeo seraacute igual agraves relaccedilotildees estabelecidas entre B

que tomaraacute seu lugar com esses mesmos corpos fixos Isto porque corpos diferentes natildeo

poderiam ter as mesmas relaccedilotildees individuais pois as relaccedilotildees devem se referenciar pelas

qualidades intriacutensecas das substacircncias individuais ou Mocircnadas26

4 A Mocircnada como causa imediata da mudanccedila e do movimento

Para o filoacutesofo de Leipzig os homens formam a noccedilatildeo de espaccedilo atraveacutes da

criaccedilatildeo de identidades e compreendem estas relaccedilotildees como independentes e extriacutensecas

aos sujeitos chamando a isto de lugar e de espaccedilo Entretanto esta aplicaccedilatildeo do espiacuterito

que considera as relaccedilotildees de coexistecircncia enquanto certa ordem externa aos corpos natildeo

poderia se dar senatildeo no domiacutenio dos entes de razatildeo Por isso ao natildeo se tratar nem de

substacircncia nem de acidentes o espaccedilo deve ser uma denominaccedilatildeo puramente ideal cuja

consideraccedilatildeo natildeo deixa de ser uacutetil

25 LEIBNIZ Correspondecircncia com Clarke 1983 p 201 grifo nosso 26 Ibid p 202

35

Todavia para ele se aceitarmos a noccedilatildeo de um espaccedilo tota simul newtoniano

teremos dificuldades para a correta designaccedilatildeo sobre quais corpos se encontram em

movimento num dado lugar do espaccedilo Neste sentido Leibniz esclarece ao final do jaacute

referido sect 47 sobre as consequecircncias da adoccedilatildeo desta noccedilatildeo incorreta uma vez que

[] os vestiacutegios [les traces] dos moacuteveis que eles deixam agraves vezes nos imoacuteveis sobre os quais exercem seu movimento deram agrave imaginaccedilatildeo dos homens a ocasiatildeo de conceber essa ideia como se restasse ainda algum vestiacutegio mesmo sem a existecircncia de qualquer coisa imoacutevel mas isso natildeo eacute senatildeo ideal e traz somente como consequecircncia que se existisse algum imoacutevel a gente o poderia designar [deacutesigner] E eacute essa analogia que faz com que se imaginem lugares vestiacutegios e espaccedilos ainda que essas coisas natildeo passem na verdade de relaccedilotildees e de forma alguma natildeo sejam uma realidade absoluta 27

Nestes termos Leibniz se contrapotildee a finitude do universo material e a

realidade absoluta do espaccedilo desprovido de corpos agrave moda newtoniana principalmente

porque a proposiccedilatildeo de um espaccedilo absoluto implicaria na impossibilidade da observaccedilatildeo

do movimento das coisas materiais pois nesta hipoacutetese natildeo haveria mudanccedila de situaccedilatildeo

observaacutevel Assim se o universo material for finito e capaz de passear no espaccedilo infinito

tal deslocamento natildeo poderia ser observado uma vez que natildeo haveria mudanccedila de

situaccedilatildeo dos corpos neste espaccedilo homogecircneo e infinito

Necessitariacuteamos para determinar verdadeiramente o movimento da

manutenccedilatildeo dos vestiacutegios a partir das partes imutaacuteveis do espaccedilo e do tempo Todavia

para Leibniz foram estas noccedilotildees incompletas que deram aos homens a imaginaccedilatildeo de

conceber aquela ideia de espaccedilo per se

O movimento por sua vez soacute poderia ser observaacutevel na hipoacutetese de mudanccedila

de situaccedilatildeo entre os corpos no espaccedilo isto quer dizer mudanccedila de situaccedilatildeo na ordem das

relaccedilotildees Por este acircngulo para o alematildeo ldquoo movimento eacute independente da observaccedilatildeo

mas natildeo da observabilidade Natildeo haacute movimento quando natildeo existe mudanccedila observaacutevel

E mesmo quando natildeo haacute mudanccedila observaacutevel natildeo haacute mudanccedila de modo algumrdquo28

Leibniz destaca no sect 53 da quinta carta a Clarke que a partir da leitura dos

Principia VIII definiccedilatildeo e de seu respectivo escoacutelio natildeo foi possiacutevel provar e

demonstrar o espaccedilo absoluto como uma realidade independe dos corpos como propotildee

Newton Sustenta entatildeo que o espaccedilo eacute puramente uma consequecircncia das relaccedilotildees de

situaccedilatildeo que pertencem ao domiacutenio do ideal enquanto entes de razatildeo

27 Ibid p 202-203 grifo nosso 28 Ibid p 204

36

Assim o primeiro ponto de divergecircncia entre as noccedilotildees de espaccedilo defendidas

por Leibniz e Newton se concentra na real atribuiccedilatildeo do espaccedilo Para Newton o espaccedilo

eacute absoluto homogecircneo e infinito para aleacutem da mateacuteria do mundo Por seu turno para

Leibniz natildeo eacute possiacutevel falar de espaccedilo ou lugar real desprovido de mateacuteria

Como jaacute anotado Leibniz concentra fundamentalmente sua criacutetica apoiado

em dois princiacutepios estruturantes de seu pensamento O princiacutepio da razatildeo suficiente e o

princiacutepio da identidade dos indiscerniacuteveis No primeiro se postula que nada vem a ser

senatildeo por uma causa ou razatildeo suficiente tendo como causa uacuteltima agrave sabedoria divina O

segundo derivado do primeiro afirma que natildeo pode haver na natureza duas coisas que

diferem solo numero

Ademais argumenta que natildeo podem existir na natureza duas coisas que sejam

qualitativamente iguais e quantitativamente diferentes pois soacute eacute possiacutevel observar a

diferenccedila quantitativa ao passo que se observa as diferenccedilas qualitativas

Consequentemente soacute eacute possiacutevel observar a mudanccedila quando se observa a causa imediata

da transformaccedilatildeo ou a verdadeira causa da mudanccedila Proposiccedilatildeo que se apresenta em

conformidade com sua noccedilatildeo de substacircncia completa onde os acidentes natildeo passeiam

fora dos sujeitos

A noccedilatildeo leibniziana de substacircncia teraacute sua formulaccedilatildeo definitiva em um dos

uacuteltimos tratados produzidos na fase madura de Leibniz e provavelmente seu texto mais

conhecido denominado de Princiacutepios da filosofia ditos a Monadologia escrito em

francecircs no ano de 1714 Este texto apresenta os temas essenciais da filosofia leibniziana

fundamentada no novo conceito de substacircncia ou Mocircnadas

Leibniz afirma que por serem substacircncias simples que entram nos compostos

as mocircnadas satildeo fechadas natildeo podendo ser alterada nem modificada por outra substacircncia

Como ele descreve no sect 7 da Monadologia

As Mocircnadas natildeo tecircm janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou sair Os acidentes natildeo podem destacar-se nem passear fora das substacircncias como outrora as espeacutecies dos Escolaacutesticos Assim nem substacircncia nem acidente podem vir de fora para dentro da Mocircnada29

Dessa forma se as mocircnadas satildeo substacircncias simples inextensas e sem forma

necessitam de algo que as diferencie umas das outras jaacute que natildeo devem diferir solo

29 LEIBNIZ A monadologia 1983 p 105

37

numero Eacute necessaacuterio portanto que as mocircnadas difiram entre si uma vez que segundo

Leibniz na natureza natildeo haacute dois sujeitos iguais

Neste sentido as mudanccedilas nas mocircnadas devem ter origem num princiacutepio

interno que consiste na especificaccedilatildeo da variedade e da mudanccedila que promove

naturalmente e gradativamente tais desdobramentos Portanto o conceito de substacircncia

deve envolver trecircs caracteriacutesticas baacutesicas unidade independecircncia e identidade na

mudanccedila

Tendo isto em vista aquilo que denominariacuteamos de espaccedilo fiacutesico eacute a ordem

de relaccedilatildeo das coexistecircncias e o movimento dos corpos eacute discerniacutevel natildeo por

caracteriacutesticas extriacutensecas como o espaccedilo absoluto newtoniano mas decorrentes das

qualidades originariamente intriacutensecas das substacircncias

Portanto na opiniatildeo de Leibniz se admitiacutessemos a noccedilatildeo de espaccedilo absoluto

newtoniano como possiacutevel teriacuteamos que reconhecer como consequecircncia que o universo

criado ocuparia um espaccedilo homogecircneo e natildeo haveria razatildeo para Deus criar uma coisa

aqui e natildeo ali Por outro lado aderindo a sua noccedilatildeo de espaccedilo relacional o universo seria

ocupado heterogeneamente e haveria uma razatildeo suficiente para a criaccedilatildeo de um sujeito

num determinado lugar (locus) com determinada relaccedilatildeo de situaccedilatildeo (situs) no espaccedilo

Condiccedilatildeo que permitiria a observaccedilatildeo de corpos em movimento pois os traccedilos da

mudanccedila natildeo estatildeo no espaccedilo tomado em sua forma absoluta mas na causa imediata da

mudanccedila e do movimento ou seja na proacutepria substacircncia ou Mocircnada

5 Consideraccedilotildees finais

A partir da argumentaccedilatildeo que desenvolvemos eacute possiacutevel dizer que Newton

assenta sua filosofia do espaccedilo e do movimento contrariando os princiacutepios da razatildeo

suficiente e da identidade dos indiscerniacuteveis O que na opiniatildeo de Leibniz demandaria a

impossibilidade da observaccedilatildeo do movimento e se o movimento natildeo pode ser observado

entatildeo natildeo haacute movimento real

Por outro lado se o espaccedilo como assinala Leibniz eacute a ordem de coexistecircncia

entre os corpos entatildeo o movimento seraacute uma mudanccedila relativa de situaccedilatildeo de um corpo

com respeito a outros corpos fixos chegando a uma situaccedilatildeo discerniacutevel da primeira Esta

relaccedilatildeo de situaccedilatildeo natildeo se daacute extrinsecamente pois segue das expressivas determinaccedilotildees

intriacutensecas da substacircncia ou Mocircnada

38

Em vista disto estamos agora em condiccedilotildees de compreender aquilo que

Leibniz postulara no sect 8 da Monadologia onde propotildee que o movimento soacute pode ser

observado levando-se em consideraccedilatildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas da substacircncia diz

ele

Se as substacircncias simples em nada diferissem [diffeacuteraient] pelas suas qualidades [qualiteacutes] natildeo haveria meio de se aperceber qualquer modificaccedilatildeo [ou movimento] nas coisas ([changement dans les choses] pois o que estaacute no composto natildeo pode vir senatildeo dos ingredientes simples e as Mocircnadas natildeo tendo qualidades seriam indistinguiacuteveis [indistinguables] umas das outras visto natildeo diferirem tambeacutem em quantidade e por conseguinte admitido o pleno cada lugar receberia sempre no movimento soacute o equivalente do que antes contivera e um estado de coisas seria portanto indiscerniacutevel de outro30

Ora parece que Leibniz esta sinalizando aqui para a necessidade de

observarmos que se as substacircncias simples natildeo se distinguirem de alguma forma toda a

descriccedilatildeo dos eventos fiacutesicos estaria prejudicada posto que natildeo seria possiacutevel discernir

entre os diversos estados de coisas em um sistema cosmoloacutegico pleno

Neste sentido para Leibniz a consideraccedilatildeo do movimento deve fundar-se nas

qualidades intriacutensecas das mocircnadas pois estatildeo nelas agraves particularidades reais que as

tornam discerniacuteveis umas das outras o que nos permite distinguir as mudanccedilas de estado

ou de movimento Por isto as mocircnadas satildeo aquilo que confere alguma ldquosubstacircnciardquo aos

corpos que estatildeo em constante transformaccedilatildeo e mudanccedila

Ademais se as mocircnadas satildeo fechadas e as mudanccedilas de estado ou movimento

de cada corpo diz respeito necessariamente as mocircnadas entatildeo soacute pode residir nela agrave causa

imediata da mudanccedila e do movimento Portanto natildeo seria necessaacuterio como pensara

Newton recorrer ao espaccedilo absoluto como fundamento proacuteprio do movimento onde seria

registrada a continuidade das vaacuterias mudanccedilas das relaccedilotildees de situaccedilotildees dos corpos

Com tal caracteriacutestica o vestiacutegio da continuidade das vaacuterias mudanccedilas seria

registrado pela apercepccedilatildeo do que se passa nos corpos sob o ponto de vista

individualizado das mocircnadas Dito de outra maneira as mocircnadas lembram quando o

corpo saiu do lugar e espelham as mudanccedilas do estado de coisas Portanto as mocircnadas

satildeo a causa imediata ou proacutexima da transformaccedilatildeo satildeo a causa proacutepria da mudanccedila ou

do movimento como Leibniz jaacute havia assinalado no sect 47 da quinta carta a Clarke

30 LEIBNIZ A monadologia 1983 p 105 grifo nosso

39

Referecircncias bibliograacuteficas BENIacuteTEZ Laura ROBLES Joseacute A De newton y los newtonianos entre descartes y berkeley Bernal Universidade Nacional de Quilmes 2006 DESCARTES Reneacute Princiacutepios da filosofia Traduccedilatildeo Heloisa da Graccedila Burati Satildeo Paulo Rideel 2005 ______ Meditaccedilotildees sobre filosofia primeira Traduccedilatildeo Fausto Castilho Campinas editora Unicamp 2004 LEIBNIZ G W A Monadologia e Correspondecircncia com Clarke In Coleccedilatildeo Os Pensadores Traduccedilatildeo de Marilena de Souza Chauiacute Satildeo Paulo Abril cultural 1983 PERKINS Franklin Compreender Leibniz Traduccedilatildeo de Marcus Penchel Petroacutepolis Vozes 2009 NEWTON Isaac Principia princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural - I Traduccedilatildeo Andreacute Koch Torres Assis e outros 2ordf ed Satildeo Paulo Edusp 2012 ______ Principia princiacutepios matemaacuteticos de filosofia natural - II Traduccedilatildeo Andreacute Koch Torres Assis e outros Satildeo Paulo Edusp 2012 ______ O peso e o equiliacutebrio dos fluidos e outros In Coleccedilatildeo Os Pensadores Traduccedilatildeo Luiz Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Nova Cultural 1983 RUSSEL Bertrand A critical exposition of the Philosophy of Leibniz New York Routledge 1996 SAPUNARU Anna Raquel O conceito leibniziano de espaccedilo distacircncias metafiacutesicas e proximidades fiacutesicas do conceito newtoniano (Coleccedilatildeo teses) Satildeo Paulo Editora Livraria da Fiacutesica 2012

A QUESTAtildeO DO DUALISMO E DA LINGUAGEM EM BERGSON

Edvan Aragatildeo Santos1

RESUMO O objetivo central neste artigo eacute trazer agrave tona o debate sobre a questatildeo da linguagem na filosofia de Henri Bergson Para tanto traccedilaremos nosso percurso a partir do notoacuterio estabelecimento da diferenccedila de natureza entre espaccedilo e tempo e o consequente reconhecimento das duas esferas da subjetividade Ao apresentar a problemaacutetica do dualismo na subjetividade e a cisatildeo entre nossa consciecircncia e o objeto Bergson tem como querela a dificuldade da linguagem abstrata e espacial em apreender a realidade da duraccedilatildeo do nosso eu mais profundo Palavras-chave Linguagem Dualismo Subjetividade Duraccedilatildeo Espaccedilo

ABSTRACT The central aim of this article is to bring to the fore the debate on the question of language in the philosophy of Henri Bergson To do so we will trace our route from the notorious establishment of the difference in nature between space and time and the consequent recognition of the two spheres of subjectivity In presenting the problem of dualism in subjectivity and the split between consciousness and the object Bergson has as focus of his discussion the difficulty of abstract and spatial language in apprehend the reality of the duration of our deepest self Keywords Language Dualism Subjectivity Duration Space

Qual o limite de nossa linguagem Ela expressa de fato a realidade das coisas

Estas questotildees moveram os debates em muitos momentos da filosofia bergsoniana o

posicionando quase sempre em um empasse no qual ficou evidente a dificuldade de

encontrar uma linguagem adequada ao fazer filosoacutefico Veremos que para o filoacutesofo a

linguagem sobretudo no seu livro Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia ganha

um sentido funcional ao mesmo tempo que um obstaacuteculo agrave apreensatildeo da nossa natureza

mais profunda requerendo para tanto um verdadeiro exerciacutecio de desconstruccedilatildeo do seu

sentido usual Esta problemaacutetica se dirige diretamente ao problema do dualismo subjetivo

neste mesmo livro e a notoacuteria distinccedilatildeo entre espaccedilo e tempo problema tatildeo caro agrave sua

obra

Para Bergson lidamos em geral com uma noccedilatildeo de tempo espacial em nossa

vida cotidiana e praacutetica que viabiliza nossa accedilatildeo no mundo a organizaccedilatildeo da vida Mas

1 Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Satildeo Paulo edvanaragaosantosgmailcom

41

findamos por ampliar o alcance da mistura entre espaccedilo2 e tempo de tal modo que a

realidade pura da duraccedilatildeo aquela que nos habita e que constitui o que haacute de mais genuiacuteno

em noacutes passa a ser apreendida por esse prisma Desse modo eacute a um eu homogecircneo claro

e dotado de uma multiplicidade quantitativa poderiacuteamos dizer que normalmente nos

referimos quando pensamos em noacutes mesmos Dito de outro modo eacute sob a eacutegide de um eu

espacializado e simboacutelico que nos conhecemos Certamente trata-se de um recurso da

consciecircncia para assimilar em sua proacutepria interioridade o que na verdade lhe eacute

ininteligiacutevel procedimento que natildeo erradica a realidade pungente da duraccedilatildeo em suas

instacircncias mais recocircnditas Ela continua laacute enquanto dados que lhe satildeo imediatos mas

cada vez mais inacessiacuteveis Natildeo obstante essa estrateacutegia tem consequecircncias e elas

repercutem drasticamente em nossa vida Nessa perspectiva Bergson se debruccedila sobre um

outro dualismo que irrompe no acircmago de nossa subjetividade

Para nos remeter a essa cisatildeo no interior da vida psicoloacutegica a anaacutelise

bergsoniana retomando as conclusotildees de seu percurso volta a problematizar a radical

diferenccedila entre a multiplicidade pertinente agrave consciecircncia pura e aquela clara e distinta que

encontramos na representaccedilatildeo do tempo homogecircneo ldquoEm siacutentese seria preciso admitir

duas espeacutecies de multiplicidade dois sentidos possiacuteveis da palavra distinguir duas

concepccedilotildees uma qualitativa e outra qualitativa da diferenccedila entre o mesmo e o outrordquo3

No entanto argumenta ele estamos habituados a tomar uma multiplicidade pela outra ndash ou

o mesmo pelo outro ndash equiacutevoco que nos defronta com a problemaacutetica da linguagem

Afinal esse haacutebito de confundir as multiplicidades correlaciona-se com a dificuldade que

encontramos para expressar linguisticamente a diferenccedila entre ambas Eacute indubitaacutevel o

enlace entre linguagem e espaccedilo dado que o segundo eacute pressuposto para o advento da

primeira a qual nos eacute imprescindiacutevel para pensar e para conviver Daiacute deriva que ao nos

empenharmos em expressar as realidades muacuteltiplas e indistintas ou seja aquelas que

duram tal como os nossos estados de alma terminamos por distinguir os elementos que as

constituem exteriorizando-os e tratamos de pensaacute-las como se elas se apresentassem jaacute

feitas estanques em estado de pleno acabamento Assim quando nos remetemos agrave

heterogeneidade dos vaacuterios estados de consciecircncia - mesmo se experimentamos uma

2 Nos referimos aqui ao debate claacutessico bergsoniano no qual o tempo enquanto duraccedilatildeo se distingue do espaccedilo no entanto nossa experiecircncia na vida cotidiana nos remete a um misto entre tempo e espaccedilo e portanto costumeiramente temos uma visatildeo deturpada pelo espaccedilo da experiecircncia do tempo real tal como podemos observar na relaccedilatildeo entre uma marcaccedilatildeo dos ponteiros do reloacutegio e o tempo da nossa consciecircncia interior 3 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 85 Grifo do autor

42

organizaccedilatildeo contiacutenua de elementos que se interpenetram transmudam-se e crescem - ao

traduzi-los em discurso verbal acabamos por desnaturaacute-los Por essa razatildeo diz Bergson

ao utilizar o termo vaacuterios jaacute exteriorizamos os instantes justapomos os momentos

transmudando em multiplicidade numeacuterica a multiplicidade qualitativa pertinente agrave

experiecircncia que temos com a representaccedilatildeo das realidades externas Numa palavra ainda

que tenhamos a experiecircncia iacutentima da fusatildeo da transformaccedilatildeo e da indistinccedilatildeo ao pensar

a nossa interioridade e ao traduzi-la em discurso enfim ao representaacute-la aprendemos pelo

espaccedilo um real que eacute apenas tempo Nos termos do autor

Eacute a imagem deste desenvolvimento uma vez efectuado que atribuiacutemos necessariamente os termos destinados a expressar o estado de uma alma que ainda o natildeo tivesse efectuado estes termos estatildeo pois manchados por um viacutecio original e a representaccedilatildeo de uma multiplicidade sem relaccedilatildeo com o nuacutemero e com o espaccedilo ainda que clara para um pensamento que entra em si e se abstrai natildeo pode traduzir-se para a linguagem do senso-comum4

A despeito das dificuldades com que a linguagem nos defronta eacute preciso

insistir na diferenccedila de natureza entre esses dois tipos de multiplicidades Tarefa ante a qual

o autor natildeo vacila e que procuramos acompanhar nessas paacuteginas Natildeo obstante malgrado

esse esforccedilo de inspeccedilatildeo teoacuterica vimos que na praacutetica a ideia da multiplicidade distinta

estaacute sempre permeada pela multiplicidade qualitativa de modo que natildeo podemos pensar a

primeira sem que a outra desponte ou se aninhe sutilmente na intimidade da alma

Persistecircncia que se verifica insiste o filoacutesofo mesmo quando contamos unidades eis

porque findamos por dar a elas ndash agraves unidades - um dinamismo e por integraacute-las numa

continuidade quase afetiva Ou seja nesse processo mesmo desenhando as partes

exteriores umas agraves outras distinguindo-as no fundo atinamos a uma continuidade ou a uma

possiacutevel relaccedilatildeo entre as partes que viabiliza a apreensatildeo de uma continuidade de modo

que seria liacutecito dizer que agrave multiplicidade homogecircnea acompanha sempre o espectro da

multiplicidade do tipo heterogecircnea Remetendo-nos agrave anaacutelise do nuacutemero anteriormente

tecida Bergson afirmaraacute

Em siacutentese o processo pelo qual contamos as unidades e com elas formamos uma multiplicidade distinta apresenta um duplo aspecto por um lado supomo-las idecircnticas o que natildeo se pode conceber a natildeo ser com a condiccedilatildeo de que estas unidades se alinhem num meio homogecircneo mas por outro lado a terceira unidade por exemplo ao acrescentar-se agraves outras duas modifica a natureza o aspecto e como que o ritmo do conjunto sem esta muacutetua penetraccedilatildeo e este processo de

4 Ibidem p 86

43

certo modo qualitativo natildeo haveria adiccedilatildeo possiacutevel ndash Eacute pois graccedilas agrave qualidade da quantidade que formamos a ideia de uma quantidade sem qualidade5

No que concerne agraves realidades temporais noacutes o vimos essa transposiccedilatildeo para

uma natureza quantitativa soacute ocorreraacute com o exerciacutecio de figuraccedilatildeo simboacutelica No entanto

natildeo eacute preciso muito esforccedilo para chegar a essa figuraccedilatildeo que violenta a natureza essencial

da duraccedilatildeo e daacute a ela uma conotaccedilatildeo similar agrave da multiplicidade quantitativa Normalmente

graccedilas a um processo em que colocamos como concomitantes e mesmo como anaacutelogos os

dois tipos de multiplicidades consideramos a adiccedilatildeo como um fenocircmeno que permite tanto

o dado qualitativo que promove a mudanccedila da totalidade quanto o aspecto quantitativo

projetado na forma numeacuterica de um espaccedilo Em virtude dessa identificaccedilatildeo assinala

Bergson lanccedilamos com muita facilidade a multiplicidade indistinta no espaccedilo

conformando-a aos moldes da multiplicidade numeacuterica e lidamos com ambas como se natildeo

houvesse entre elas profundas diferenccedilas de natureza ldquoDaiacute a possibilidade de desdobrar no

espaccedilo sob a forma de multiplicidade numeacuterica o que chamamos uma multiplicidade

qualitativa e de considerar uma como equivalente da outrardquo6 Essa possibilidade de

equivalecircncia entre as duas multiplicidades eacute bastante factiacutevel insiste o autor quando se

trata de um fenocircmeno exterior Isto porque para noacutes ele toma a forma tambeacutem de um

movimento mesmo que homogecircneo porque a siacutentese que nossa consciecircncia opera ao dotar

de continuidade o passado com o presente permite que esses fenocircmenos exteriores ganhem

qualidade e duraccedilatildeo Daiacute que tanto a projeccedilatildeo do tempo no espaccedilo quanto a percepccedilatildeo dos

dados exteriores formam na consciecircncia o mesmo modo de representaccedilatildeo Em imagens

bergsonianas

Assim quando ouvimos uma seacuterie de pancadas de martelo os sons formam uma melodia indivisiacutevel enquanto sensaccedilotildees puras e datildeo ainda origem ao que chamamos um progresso dinacircmico mas sabendo que a mesma causa objectiva age decompomos este progresso em fase que consideramos entatildeo como idecircnticas e desta multiplicidade de termos idecircnticos que natildeo se podem conceber senatildeo pelo desdobramento no espaccedilo chegamos ainda necessariamente agrave ideia de um tempo homogecircneo imagem simboacutelica da duraccedilatildeo real7

Ao voltar a esta anaacutelise da mistura entre duraccedilatildeo espaccedilo Bergson nos conduz

a um importante momento de seu primeiro livro Trata-se do modo pelo qual essa

5 Ibidem p 86 e 87 6 Ibidem p 87 7 Ibidem p 87 e 88

44

permissibilidade entre as duas multiplicidades repercutiraacute na vivecircncia de nossa intimidade

Ou seja estabelece-se uma relaccedilatildeo entre as duas formas de multiplicidade e as dimensotildees

de nosso proacuteprio eu Como assinala o autor a interioridade de cada um de noacutes acaba

revestindo-se tambeacutem dessa dupla direccedilatildeo Destarte haacute o eu que toca a superfiacutecie da

realidade obtendo algo dessa exterioridade das coisas isto eacute encontrando esse tempo

homogecircneo essa realidade simboacutelica na qual nossas sensaccedilotildees sucessivas conservam e se

assemelham a algo dessa exterioridade o que permite a concomitacircncia entre nossas

sensaccedilotildees e as coisas Esta dimensatildeo superficial do eu espelha com muita coerecircncia o

modo pelo qual representamos as coisas fora de noacutes e revela uma interioridade tatildeo distinta

justaposta e exteriorizada quanto elas Nesse sentido podemos afirmar que o contato e a

relaccedilatildeo com as coisas exteriores reverbera sobre as camadas mais superficiais de nossa

subjetividade de sorte que nela se reflete a exterioridade ldquoreciacuteproca que caracteriza

objetivamente as suas causasrdquo8 Assim como apreendemos as coisas materiais num meio

homogecircneo configura-se uma interioridade tambeacutem lanccedilada num quadro vazio que eacute

vislumbrada como se materialidade fosse Um eu simboacutelico assim aflora Mas para aleacutem

dessa subjetividade exteriorizada um outro eu atesta sua presenccedila nas dimensotildees mais

distantes da exterioridade haacute um eu profundo que sente e delibera isto eacute aquele em que

os estados de alma estatildeo imbricados uns aos outros Aqui delineia-se um interioridade que

eacute puro devir progresso ininterrupto e auto-organizaccedilatildeo constante Totalmente distinta

pois dessa simbolizaccedilatildeo do eu superficial

No entanto parece sempre que o eu superficial e o eu profundo misturam-se

um ao outro a ponto de terem uma mesma duraccedilatildeo tal como fundimos as duas formas de

multiplicidade Haacute portanto uma extrapolaccedilatildeo da representaccedilatildeo simboacutelica que apreende

em seus tentaacuteculos realidades que a ela natildeo se coadunam Bergson assevera ldquoO que

demonstra perfeitamente que a nossa concepccedilatildeo ordinaacuteria da duraccedilatildeo se deve a uma

invasatildeo gradual do espaccedilo no domiacutenio da consciecircncia pura ()rdquo9 Para fundamentar essa

invasatildeo Bergson alude ainda a situaccedilotildees do nosso cotidiano nas quais podemos distinguir

dois modos de apreensatildeo do tempo aquele imediato o da duraccedilatildeo-qualidade em que

percepcionamos o sentimento da totalidade da mudanccedila sutil e qualitativa tal qual o

exemplo da sinfonia e aquele materializado contado em que numeramos os momentos

distintos um dos outros Ele volta assim ao exemplo do reloacutegio

8 Ibidem p 88 9 Ibidem p 88

45

No momento em que escrevo estas linhas o reloacutegio ao lado bate as horas mas o meu ouvido distraiacutedo soacute se apercebe depois de algumas terem soado portanto natildeo as contei E no entanto basta-me um esforccedilo de atenccedilatildeo retrospectiva para somar as quatro batidas jaacute produzidas e acrescenta-las agraves que ouccedilo Se entrando em mim me interrogo mais cuidadosamente sobre o que acaba de acontecer caio na conta de que os quatro primeiros sons impressionaram o meu ouvido e ateacute emocionaram minha consciecircncia mas que as sensaccedilotildees produzidas por cada um deles em vez de se justaporem se fundiram umas com as outras de maneira a dotar o conjunto de um aspecto proacuteprio de maneira a fazer dele uma espeacutecie de frase musical10

Desse modo nesse exemplo das toadas do reloacutegio similar ao do sino vemos

que ao percepcionar distraidamente as pancadas dos sons ao meu ouvido mesmo

colocando o elemento da conta na lembranccedila da sensaccedilatildeo essa sucessotildees natildeo nos aparecem

sobre a forma da justaposiccedilatildeo mas enquanto mudanccedila qualitativa como um transcorrer

em que o proacuteprio nuacutemero e sua contagem ganha um aspecto qualitativo Assim temos a

multiplicidade distinta em que percebemos os sons e ao mesmo tempo a memoacuteria de cada

uma delas nos permite apreendecirc-las como continuidade como se prolongassem umas nas

outras Eacute por esses dois aspectos que se fundem mas que satildeo distintos quanto agrave sua

natureza que Bergson postula que duas espeacutecies de multiplicidades se inscreveratildeo no eu

de cada um de noacutes Destarte eacute sob a siacutentese operada pela consciecircncia que nos deparamos

com uma versatildeo simboacutelica e homogecircnea do nossa vida interna

Ocorre que o eu superficial que eacute internamente distinto tal como os pontos

lanccedilados no espaccedilo e que reflete o modo pelo qual representamos a exterioridade finda por

projetar-se sobre as dimensotildees mais profundas da interioridade aquela que eacute puramente

temporal Essa tendecircncia acaba por camuflar esse eu fundamental que eacute de fato nossa

natureza substancial

Sem duacutevida tanto o eu superficial quanto o profundo nos satildeo constitutivos

mas eacute o primeiro que seraacute eleito como prioritaacuterio revestindo-se de uma relevacircncia absoluta

Ele seraacute via de regra concebido com a totalidade do que somos figurando simbolicamente

a dimensatildeo profunda do eu Processo em que a organicidade e o dinamismo profundo de

nossos estados de alma e dos afetos com sua densidade e sua vitalidade escapa-nos por

completo O espaccedilo adentra pois a dimensatildeo da duraccedilatildeo pura que nos habita de modo que

passamos a nos representar tal como representamos as coisas Em uacuteltima instacircncia o nosso

eu assume a tocircnica da interioridade inspecionada por uma psicologia desatenta e mesmo

10 Ibidem p 89

46

os afetos intensos os estados de alma que nada devem a exterioridade adquirem sua versatildeo

homogecircnea Mas como este eu mais profundo natildeo faz senatildeo uma uacutenica e mesma pessoa com o eu superficial parecem necessariamente duram da mesma maneira () nossa concepccedilatildeo ordinaacuteria da duraccedilatildeo se deve a uma invasatildeo gradual do espaccedilo no domiacutenio da consciecircncia pura ()11

Cumpre frisar como reconhece o autor que esse processo de subversatildeo e perda

de noacutes mesmos digamos assim constitui um caminho do qual natildeo podemos nos esquivar

Afinal como tantas vezes sustentado nos textos bergsonianos antes de sonhar o homem

precisa viver Para viver cumpre comunicar organizar a vida agir no mundo com os outros

conviver tolerar negociar ceder Ou seja se de direito a consciecircncia eacute pura

temporalidade fusatildeo e organizaccedilatildeo progressiva de si de fato eacute o eu homogecircneo que nos

permite viver e sobreviver eacute por meio da dimensatildeo superficial de nossa subjetividade que

alicerccedilamos nossa inserccedilatildeo no mundo humano O texto

A razatildeo estaacute em que a nossa vida exterior e por assim dizer social tem para noacutes mais importacircncia praacutetica do que a nossa existecircncia interior e individual Tendemos instintivamente a solidificar as nossas impressotildees para as exprimir mediante a linguagem Daqui confundirmos o proacuteprio sentimento que estaacute em perpetua mudanccedila com o seu objecto exterior permanente e sobretudo com a palavra que exprime esse objecto12

Essas consideraccedilotildees atestam pois que eacute o eu simboacutelico que prevalece eacute ele

que priorizamos e que temos em mente quando alimentamos a ideacuteia de que somos um

sujeito de que o conhecemos clara e distintamente Eacute ele que atesta a materialidade de

nossas vidas e que nos abre as vias da exploraccedilatildeo e do conhecimento do mundo Dada a

prioridade deste eu matemaacutetico e numeacuterico em nossas urgecircncias ligadas agrave sobrevivecircncia

ampliamos o seu alcance Sem este eu solidificado de fato a vida humana natildeo se

constituiria Bergson interroga ldquoSe cada um de noacutes vivesse uma vida puramente

individual se natildeo houvesse nem sociedade e nem linguagem a nossa consciecircncia captaria

sob esta forma indistinta a seacuterie de estados internosrdquo13 A resposta eacute peremptoriamente

negativa Mesmo destituiacutedos desses atributos ainda alinhariacuteamos estes estados em um

meio homogecircneo A intuiccedilatildeo de um espaccedilo homogecircneo pontua fortemente o autor

constitui uma preparaccedilatildeo para a sociabilidade ela nos diferencia dos animais consolida

11 Ibidem p 88 12 Ibidem p 91 13 Ibidem p 95

47

nossa capacidade de abstraccedilatildeo de representaccedilatildeo desse meio exterior permitindo que ele

se torne para noacutes objeto de conhecimento e locus de accedilatildeo

Mas Bergson natildeo deixa de apontar que para aleacutem da absoluta necessidade eacute

tambeacutem por comodidade que repousamos mais facilmente nessa dimensatildeo superficial do

eu a qual assume comumente o perfil das conveniecircncias e das frivolidades sociais Sem

duacutevida eacute cocircmodo alinhar os objetos colocando-os uns distintos uns dos outros o

alinhamento dos objetos e a utilizaccedilatildeo da linguagem dotadas de sentidos fixos e

consensuais facilita enormemente nosso controle sobre as coisas Ademais a percepccedilatildeo da

duraccedilatildeo pura eacute algo muito nebuloso obscuro exige um esforccedilo que nada tem a ver com a

loacutegica da eficaacutecia que pauta a operacionalizaccedilatildeo da vida Nesse sentido a capacidade de

espacializaccedilatildeo cauciona-nos para a vida praacutetica e abre-nos um leque infinito de

possibilidades de construccedilatildeo do mundo humano Aspecto que Bergson de modo algum

negligencia e que aprofundaraacute em seus trabalhos posteriores

No momento entretanto importa considerar o fato de que esses aspectos

justificam nossa preferecircncia pela representaccedilatildeo superficial do eu em detrimento das

instacircncias mais inacessiacuteveis as quais aos olhos da inteligecircncia regida pela faculdade da

espacializaccedilatildeo seratildeo sempre indiacutecios de confusatildeo de estranhamento e de eficiecircncia nula

Mas a despeito dos imperativos e das veleidades que nos fazem priorizar o eu superficial e

tomaacute-lo pela totalidade do que somos por mais que o eu simboacutelico prevaleccedila e atue como

um verdadeiro simulacro de nossa profundidade Bergson sublinha que essa realidade

heterogecircnea natildeo pode ser erradicada Ela viceja em noacutes e nos eacute sempre presente tal como

a multiplicidade qualitativa que ronda multiplicidade quantitativa O que ocorre eacute que a

consciecircncia anseia pela representaccedilatildeo simboacutelica de si ao priorizaacute-la finda por se afastar do

que traz em si de mais fundamental distanciando-se de uma realidade que lhe deveria ser

imediata Mas ela natildeo logra pulverizar ou minimizar a natureza de sua mais profunda

intimidade Bergson o assinala com um texto lapidar

Distingamos pois para concluir duas formas da multiplicidade duas apreciaccedilotildees muito diferentes da duraccedilatildeo dois aspectos da vida consciente Sob a duraccedilatildeo homogecircnea siacutembolo extensivo da duraccedilatildeo verdadeira uma psicologia atenta separa uma duraccedilatildeo cujos momentos heterogecircneos se penetram sob a multiplicidade numeacuterica dos estados conscientes uma multiplicidade qualitativa sob o eu dos estados bem definidos um em que sucessatildeo implica fusatildeo e organizaccedilatildeo Mas quase sempre nos contentamos como primeiro isto eacute com a sombra do eu projetado no espaccedilo homogecircneo14

14 Ibidem p 90

48

O que esse percurso um tanto quanto vagaroso pela reflexatildeo tecida em Os

dados imediatos nos revela eacute que a despeito da obstinaccedilatildeo prevalente da inteligecircncia em

optar pelo conforto do siacutembolo este eu fundamental pode ser reencontrado Mas para

ultrapassar esse eu distorcido por esse eu superficial e por uma consciecircncia

substancialmente compromissada com a praacutexis eacute necessaacuterio um verdadeiro esforccedilo do

pensar que evadindo-se das formas habituais de anaacutelise pemite que os limites entre as

duas esferas da subjetividade sejam depuradas afastando assim essa nossa interioridade

exteriorizada a qual guiada pelas convenccedilotildees pelos pensamentos formalizados e prontos

assemelha-se a folhas mortas na superfiacutecie de um lago Com esse esforccedilo de anaacutelise que

busca afastar os viacutecios da consciecircncia reflexa que olha criticamente seu modo de operar e

descreve o movimento genuiacuteno dos estados de alma o qual afinal eacute realizado pelo autor

de Os dados imediatos torna-se possiacutevel vislumbrar o eu revolto que pulsa no fundo das

aacuteguas Bergson assim coloca

Por outras palavras as nossas percepccedilotildees sensaccedilotildees emoccedilotildees e ideias apresentam-se sob um duplo aspecto um niacutetido preciso mas impessoal o outro confuso infinitamente moacutevel e inexprimiacutevel porque a linguagem natildeo o pode captar sem lhe fixar a mobilidade nem adaptar a sua forma banal sem o fazer descer ao domiacutenio comum15

Com efeito a dificuldade para encontrar esse eu fundamental reside justamente

no fato de que ele se apresenta sobre um aspecto antinocircmico agrave loacutegica que nos guia no

mundo praacutetico sua natureza movente revolta e que natildeo para de se transformar contradita

o eu superficial que se encontra coadunado com as representaccedilotildees espaciais e se constitui

em conformidade com as exigecircncias do mundo social Inequivocamente as exigecircncias da

praacutexis acabam por ofuscar essa natureza mais profunda Se ela natildeo pode erradicaacute-la logra

tornaacute-la ainda mais oculta Processo que se consolida com a traduccedilatildeo desses estados pelo

discurso linguiacutestico e que tem consequecircncias nefastas porquanto passamos a viver no

acircmbito de uma sombra da nossa subjetividade e a tomamos como o que haacute de mais genuiacuteno

em noacutes Como jaacute insinuamos diversas vezes nessas linhas a linguagem tem um papel

determinante da estruturaccedilatildeo desse eu quantitativo e espacializado Ela viabilizaraacute a vida

praacutetica mas natildeo o faraacute sem operar uma certa perda no limite ela se constituiraacute como um

obstaacuteculo ao acesso do eu profundo Voltemos pois agrave problemaacutetica da linguagem

15 Opus citatum

49

Enquanto signo de precisatildeo e modelo estaacutetico de pensamento as recursos

linguiacutesticos natildeo conseguem imprimir essa mobilidade da duraccedilatildeo-qualidade que eacute interior

a noacutes Ao traduzi-la acaba cristalizando-a em sentidos comuns e banais os quais suprimem

a unicidade e a singularidade dos afetos e dos estados de alma Isso porque ao dar

expressividade a nossos afetos e agraves vivecircncias profundas ao designar sentimentos uacutenicos

com siacutembolos gerais que se ajustam agraves mais distintas realidades o pensamento discursivo

opera uma solidificaccedilatildeo das nossas impressotildees uma retenccedilatildeo do progresso ininterrupto que

norteia o amadurecimento de sentimentos e ideias Deste modo ao ser nomeado o processo

temporal ou a mobilidade afetiva que constitui o eu adquire a tocircnica do imutaacutevel de modo

que nossos estados de almas se congelam e parecem natildeo mais sujeitos agrave modificaccedilatildeo

Bergson pontua

As nossas sensaccedilotildees simples consideradas no seu estado natural ofereceriam menos consistecircncia ainda Este sabor aquele perfume agradaram-me quando crianccedila e hoje repugnam-me Contudo dou ainda o mesmo nome agrave sensaccedilatildeo experimentada e falo como se o perfume e o sabor fossem idecircnticos quando soacute os meus gostos mudaram Portanto ainda cristalizo essa sensaccedilatildeo e quando a sua mobilidade adquire uma tal evidencia que me eacute possiacutevel reconhececirc-la retiro esta mobilidade para lhe dar um nome a parte e cristaliza-la por sua vez sob a forma de gosto16

Assim ainda que nossas percepccedilotildees sobre as coisas ou sobre os nossos estados

aniacutemicos mudem persistimos em classificaacute-los com o mesmo nome isto eacute recorremos agrave

linguagem que produz uma representaccedilatildeo artificial da multiplicidade das impressotildees e das

experiecircncias No entanto para aleacutem de uma simples maacute representaccedilatildeo da sensaccedilatildeo por noacutes

experimentada para Bergson a linguagem nos induz por vezes ao erro Suas imagens

luminosas o precisam

Assim quando como uma iguaria rara o seu nome enriquecido com a provaccedilatildeo que se lhe daacute interpotildee-se entre a minha sensaccedilatildeo e a minha consciecircncia poderei acreditar que o sabor me agrada quando um simples esforccedilo de atenccedilatildeo me provaria o contraacuterio Em siacutentese a palavra com contornos bem definidos a palavra em bruto que armazena o que haacute se estaacutevel de comum e por conseguinte de impessoal nas impressotildees da humanidade esmaga ou pelo menos encobre as impressotildees delicadas e fugitivas da nossa consciecircncia individual17

16 Ibidem p 91 Grifo do autor 17 Ibidem p 92

50

Tambeacutem na impressatildeo comum do dia a dia deparamo-nos com os mesmos

objetos os quais com o passar do tempo comeccedilam a ganhar uma familiaridade para noacutes

no entanto a despeito de tal familiaridade um dia percebemos uma mudanccedila singular e

parece que eles se modificaram e envelheceram tal como noacutes Mas as mudanccedilas satildeo

percebidas em bloco jamais em sua processualidade Ora o modo pelo qual a linguagem

capta a mudanccedila fora de noacutes na vida praacutetica eacute correlato ao modo pelo qual apreendemos

sempre o nosso eu como algo solidificado que nos parece imutaacutevel - ou cujas

transmutaccedilotildees percebemos com jaacute concluiacutedas visto que a percepccedilatildeo da mudanccedila seja nas

coisas seja em noacutes nos escapa invariavelmente Isso tem a ver com as necessidades da

nossa vida social isto eacute com um eu que estaacute imerso na superficialidade das coisas e da

vida social e que estendemos para a totalidade de nossa vida psicoloacutegica Ou seja

acabamos por aprendecirc-lo apenas em sua dimensatildeo superficial como se assim o nosso eu se

nos revelasse por inteiro Em suma em virtude das acomodaccedilotildees da vida praacutetica tendemos

a estabilizar nossas impressotildees profundas e internas solidificando nossas impressotildees em

um eu exterior imerso no mundo social Daiacute resulta a cristalizaccedilatildeo das impressotildees voluacuteveis

da alma e o fato de que nos restringimos a uma visatildeo imoacutevel da mobilidade

Inequivocamente a linguagem opera essa ilusatildeo ela natildeo soacute daacute estabilidade ao que eacute

instaacutevel tirando a essecircncia movente das impressotildees mas para aleacutem disso tem o poder de

manipular e de distorcer o sentido das impressotildees Atendo-nos agraves representaccedilotildees que com

ela construiacutemos os dados que nos satildeo imediatos distanciam-se perdemo-nos de noacutes

mesmo Dito de outro modo esse instrumento que nos eacute primordial e imprescindiacutevel finda

por prejudicar a apreensatildeo imediata dessa experiecircncia interior pois existe de fato uma

discordacircncia entre aquilo que formulamos em termos de linguagem e a realidade interior

da duraccedilatildeo Tal problema tem sua origem numa inadequaccedilatildeo entre os siacutembolos linguiacutesticos

estaacuteticos e fixos ndash que natildeo se dissociam do pensar voltado para a accedilatildeo ou seja da natureza

da inteligecircncia - e dos quais nos servimos para nomear o real e a realidade fluiacuteda e interior

da duraccedilatildeo Problema que Bergson jaacute estampava no prefaacutecio de Os dados Imediatos

A consciecircncia atormentada por um desejo insaciaacutevel de distinguir substitui o siacutembolo pela realidade ou natildeo percepciona a realidade atraveacutes do siacutembolo Com o eu assim refractado e por isso mesmo subdividido se presta infinitamente melhor agraves exigecircncias da vida social em geral e da linguagem em particular ela prefere-o e perde pouco a pouco de vista o eu fundamental18

18 Ibidem p 9

51

No limiar da obra Bergson jaacute admite uma inadequaccedilatildeo entre nossos recursos

de expressatildeo e a duraccedilatildeo interior pois tendemos pelas exigecircncias da vida social a usar

uma linguagem estaacutetica tendo como norte nossa adaptaccedilatildeo agrave vida praacutetica19 Essa

linguagem ao ter em vista a utilidade da praacutexis esfera em que tudo eacute representado como

espacialmente disposto provoca um distanciamento em relaccedilatildeo agrave duraccedilatildeo interior ou seja

produz um vazio estabelecido entre nossa representaccedilatildeo da consciecircncia e as suas instacircncias

mais profundas Instaura-se assim uma profunda discordacircncia entre aquilo que

formulamos em termos de linguagem e a realidade interior que se quer exprimir20 Tal

problema tem sua origem numa inadequaccedilatildeo entre a nossa linguagem estaacutetica e fixa e a

natureza da realidade que viceja em nossa interioridade universo onde podemos sentir os

estados que se entrelaccedilam na duraccedilatildeo contiacutenua quando por exemplo tocamos no fundo

de noacutes mesmo apreendendo assim algo da proacutepria totalidade que nos perpassa a qual se

perde ao ser traduzida pelas ferramentas que nos permitem a elocuccedilatildeo Cumpre observar

que este aspecto impregnaraacute tanto os modos de expressatildeo comuns quanto aqueles que

prevalecem no discurso cientiacutefico Ainda no Prefaacutecio de Os dados imediatos Bergson

observa

Exprimimo-nos necessariamente por palavras e pensamentos quase sempre no espaccedilo Isto eacute a linguagem exige que estabeleccedilamos entre as nossas ideias as mesmas distinccedilotildees niacutetidas e precisas a mesma descontinuidade que entre os objetos materiais Essa assimilaccedilatildeo eacute uacutetil na vida praacutetica e necessaacuteria na maioria das ciecircncias Mas poder-se-ia perguntar se as dificuldades insuperaacuteveis que certos problemas filosoacuteficos levantam natildeo advecircm por teimarmos em justapor no espaccedilo fenocircmenos que natildeo ocupam espaccedilo e se abstraindo das grosseiras imagens em torno das quais se polemiza natildeo lhes poriacuteamos termo21

Vemos aqui o autor tomar como foco central o desajuste entre nossa forma de

pensar que eacute viabilizada pelos signos linguiacutesticos e os elementos da pura duraccedilatildeo que ao

19 ldquoA continuidade da filosofia de Bergson trataraacute de mostrar que a apreensatildeo dos objetos materiais isolados eacute relativa aos nossos haacutebitos intelectuais derivados da apreensatildeo praacutetica do real efetivada pela percepccedilatildeo ndash que eacute um processo essencialmente destinado agrave accedilatildeo ndash e elaborada pelo trabalho de abstraccedilatildeo da inteligecircncia (e da linguagem) Eacute a aplicaccedilatildeo sem limites e sem criacutetica dos processos intelectuais derivados da praacutexis aos questionamentos metafiacutesicos que acaba por afirmar a existecircncia e a essecircncia da mateacuteria como objeto materialrdquo (PINTO Bergson e os dualismos p 5) A pesquisadora Deacutebora Morato trata aqui de um problema que seraacute melhor fundamento em Mateacuteria e Memoacuteria e que tange agrave elevaccedilatildeo da representaccedilatildeo ao modelo fundamental de conhecimento Consequecircncia sobretudo da maneira como apreendemos o mundo pela exterioridade espacial - sendo a representaccedilatildeo como consequecircncia da nossa adaptaccedilatildeo agrave exterioridade 20 ldquoEvidencia-se nessa medida o sentido dos dois primeiros capiacutetulos aqueles que aparentemente mais se aproximam de um dualismo (instituiacutedo via dissociaccedilatildeo da experiecircncia) a apreensatildeo de uma das dimensotildees da experiecircncia real que cotidiana e regularmente se oculta pelas necessidades da praxis e cujo ocultamento eacute a mola mestra do pensamento conceitual quer ele se manifeste no senso comum na ciecircncia ou na metafiacutesicardquo (PINTO Bergson e os dualismos p 4) 21 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 9

52

serem traduzidos pelo pensamento satildeo justapostos de modo descontinuado no espaccedilo

Mas essa passagem na abertura do livro alude ao ponto que por todo o livro estaraacute sob o

fogo criacutetico do filoacutesofo quer dizer o fato de que ao voltarmos nossa atenccedilatildeo agrave vida praacutetica

produzimos gradativamente uma ciecircncia que ratifica esse modelo espacial de apreender a

realidade Criacutetica que se estende igualmente agrave filosofia Vale notar que no decorrer de sua

obra Bergson natildeo deixaraacute de apontar a dificuldade e a necessidade da sua e de toda a

filosofia em encontrar uma expressividade adequada ao seu objeto22 Como nota F Worms

ao pontuar nossa limitaccedilatildeo perante a linguagem e o modo pelo qual espacializamos

realidades imateriais aos nomeaacute-las e distingui-las segundo os recursos simboacutelicos

Bergson mostra que eacute daiacute que se originam os grandes falsos problemas filosoacuteficos Afinal

com a linguagem criamos os conceitos as teorias que instauram um universo abstrato

fixando e coisificando em quadros simboacutelicos a experiecircncia moacutevel e temporal da

realidade23 No caso da psicologia esse processo culmina na coisificaccedilatildeo do eu em sua

22 Todavia a criacutetica ao alcance da linguagem e a discussatildeo acerca da possibilidade de rompimento de sua superficialidade no que tange agrave apreensatildeo da duraccedilatildeo em sua forma pura natildeo eacute resolvido com facilidade Justamente em virtude desse caraacuteter necessaacuterio a linguagem enquanto condiccedilatildeo empiacuterica circunscreve nossa relaccedilatildeo objetiva e exterior ao objeto de uma maneira instrumental Diz-nos o filosofo que se tiveacutessemos todo o conhecimento ilimitado na percepccedilatildeo natildeo teriacuteamos necessidade da concepccedilatildeo cuja explicitaccedilatildeo natildeo se daacute sem a linguagem Atentemos ao texto ldquoConceber eacute um paliativo quando natildeo eacute dado perceber e o raciociacutenio eacute feito para colmatar os vazios da percepccedilatildeo ou para estender o seu alcance Natildeo nego a utilidade das ideias abstratas e gerais ndash como tatildeo pouco contesto o valor do papel-moeda Mas assim como papel moeda natildeo eacute mais que uma promessa de ouro assim tambeacutem uma concepccedilatildeo soacute vale pelas percepccedilotildees possiacuteveis que representardquo (BERGSON O Pensamento e o Movente p 151) Observemos que aqui se revela uma sutileza retoacuterica ou seja concebemos porque natildeo alcanccedilamos um conhecimento ilimitado na percepccedilatildeo e por isso mesmo nossa linguagem se apresenta como uma mediaccedilatildeo paliativa um deacuteficit perante nossa insuficiente compreensatildeo revelando um fosso entre nossa representaccedilatildeo e os objetos Desse modo eacute no intuito de resolver essa inadequaccedilatildeo de nossa representaccedilatildeo que se faz necessaacuteria uma criacutetica ao seu alcance mostrando que ao contraacuterio da uma visatildeo imperante na tradiccedilatildeo metafiacutesica sobretudo a moderna podemos nos voltar para um conhecimento imediato distinto da posiccedilatildeo reflexiva da inteligecircncia 23 Seguindo o comentador notemos que tais problemas se evidenciam sobretudo nos paradoxos encontrados nas disputas das argumentaccedilotildees relativas aos problemas filosoacuteficos Um problema que se constroacutei no acircmbito da disputa fundada por uma linguagem abstrata nunca explicita o seu nuacutecleo o qual inversamente em sua efetividade poderia ser apreendido numa intuiccedilatildeo simples e uacutenica Para Bergson a linguagem se apresenta sobretudo como um paradoxo visto que ela nunca logra representar a intuiccedilatildeo simples da duraccedilatildeo a qual se revela de fato intraduziacutevel Desse modo um discurso calcado no puro jogo argumentativo ndash e portanto dissociado dos dados concretos e imediatos - nunca alcanccedila a natureza real do problema Por essa razatildeo Bergson afirma que os debates retoacutericos e argumentativos que se desdobram ao longo da histoacuteria da filosofia restritos ao plano da especulaccedilatildeo natildeo passam de debates pautados numa linguagem que os manteacutem na exterioridade do problema central e portanto em grande parte desprovidos de sentido ldquoEis entatildeo a questatildeo que se potildee e que tomo por essencial Uma vez que toda tentativa de filosofia puramente conceitual suscita tentativas antagocircnicas e que no terreno na dialeacutetica pura natildeo haacute sistema ao qual natildeo se possa opor a outro iremos noacutes permanecer nesse terreno ou seraacute que natildeo deveriacuteamos antes (sem renunciar nem eacute preciso dizecirc-lo ao exerciacutecio das faculdades de concepccedilatildeo e de raciociacutenio) voltar agrave percepccedilatildeo conseguir dela que se dilate e estenda (BERGSON O Pensamento e o Movente p 154) Isso natildeo impede que em seu desdobramento sua filosofia enfatize a urgecircncia de uma linguagem outra capaz de atingir o objeto no que ele tem de particular absorvendo seu significado mais autecircntico Sobre este ponto Leopoldo e Silva acrescenta Qual eacute a linguagem da filosofia Se tomarmos esta pergunta como criteacuterio orientador para uma leitura da obra bergsoniana chegaremos ao final do percurso sem encontrar

53

matematizaccedilatildeo Eis o que revelam as anaacutelises tecidas pelo autor em Os dados imediatos

texto no qual a reflexatildeo bergsoniana problematiza a razatildeo pela qual a interioridade se oculta

ou se perde ante uma ciecircncia que se arvora na condiccedilatildeo de defini-la e no limite de adestraacute-

la evidenciando o papel que os recursos da expressatildeo e do pensamento assumem neste

desvio Afinal como sustenta o autor em outro lugar a inteligecircncia ldquo() se manifesta por

uma atividade que eacute um preluacutedio agrave arte mecacircnica e por uma linguagem que anuncia a

ciecircnciardquo24 Explicita-se assim o caraacuteter puramente simboacutelico das ciecircncias matemaacuteticas e

das ciecircncias que nela se espelham mesmo aquela que se aventura pela alma humana as

quais em vez de apreenderem o proacuteprio objeto o representam por meio de uma ferramenta

abstrata que o fragmenta e o espacializa Esta tendecircncia sem duacutevida perpetua as praacuteticas

do senso comum o qual ao atrelar-se agrave percepccedilatildeo praacutetica e por estar voltado agrave vida social

natildeo almeja o alargamento da apreensatildeo do real em sua dimensatildeo imediata Ademais

lembremos que a questatildeo central no primeiro livro de Bergson concerne justamente a um

problema metafiacutesico a liberdade o qual natildeo seraacute devidamente compreendido quando

enfrentado dentro dos paracircmetros fixos da linguagem cientiacutefica ou filosoacutefica

Notadamente essa eacute uma questatildeo fundamental do bergsonismo e ela

reapareceraacute em nosso percurso Por ora uma vez que eacute a discussatildeo tecida no primeiro livro

o nosso foco a referecircncia a essa problemaacutetica vem aqui apenas esclarecer o modo pelo

qual a linguagem seja ela cientiacutefica ou natildeo ao mesmo tempo em que se associa ao espaccedilo

viabilizando a sociabilidade e a organizaccedilatildeo do mundo nos impede de apreender a

realidade dos afetos O que escapa assim eacute a dimensatildeo ontoloacutegica do eu aquela que se

confunde com o tempo e que se opotildee a toda materialidade uma vez que ao fragmentaacute-la e

ao dar a ela a inteligibilidade dos siacutembolos findamos por sacrificaacute-la coisificando-a

Decerto o que persiste em nossa interioridade profunda eacute um progresso

constante uma subjetividade movente e temporal cujos momentos natildeo apenas mudam

permanentemente mas ao mudarem operam uma transformaccedilatildeo na totalidade do que

somos e dos momentos antecedentes Daiacute que seja impossiacutevel a delimitaccedilatildeo em blocos

estanques dos elementos que a constituem O que existe em noacutes profundamente eacute a duraccedilatildeo

da qual nos afastamos devido agrave nossa inserccedilatildeo no universo representacional e discursivo

Instaura-se pois uma distacircncia entre essa realidade e a forma pela qual a linguagem e o

uma resposta efetiva Esta ausecircncia decorre do caraacuteter que Bergson atribui agrave linguagem produto da inteligecircncia concebida como faculdade instrumental A inteligecircncia eacute o meio de que a natureza nos dotou para triunfar sobre a mateacuteria e organizar o mundo da perspectiva das necessidades humanas (LEOPOLDO E SILVA Intuiccedilatildeo e Discurso Filosoacutefico p 9) 24 BERGSON O Pensamento e o Movente p 84

54

conceito com a solidez que lhes eacute peculiar acabam por exprimir esse progresso o que

deturpa essa natureza e impregna de fixidez as nossas formas de sentir e ver o mundo dentro

e fora de noacutes

A evidecircncia da diferenccedila e do hiato que se instaura entre a representaccedilatildeo da

linguagem e a experiecircncia concreta fica mais clara no caso dos sentimentos realidades que

atingem as mais variadas gradaccedilotildees e nuances sensiacuteveis as quais satildeo inapreensiacuteveis agrave

delimitaccedilatildeo conceitual Eacute da natureza do sentimento crescer se desenvolver sua natureza

eacute a da constante transformaccedilatildeo da mutabilidade das gradaccedilotildees que se delineiam

incessantemente Eis a coloraccedilatildeo de sua originalidade a qual perde seus tons e sua

concentraccedilatildeo ao ser conceitualizada Um caminhar constante e elaacutestico dos momentos que

eacute a cor proacutepria do sentimento Remetendo-nos agraves primeiras paacuteginas de sua investigaccedilatildeo

Bergson escreve

Um amor violento uma melancolia profunda invadindo a nossa alma satildeo infindos elementos diversos que se fundam se penetram sem contornos precisos sem a menor tendecircncia a experiorizarem-se uns relativamente aos outros a sua originalidade tem esse preccedilo25

Eis a vida que eacute a proacutepria natureza do afeto tal qual o tempo ininterrupto da

vivecircncia pura em que os momentos do tempo se interpenetram A evoluccedilatildeo afetiva

destarte aproxima-se do amadurecimento na escolha de uma resoluccedilatildeo Bergson

acrescenta

O proacuteprio sentimento eacute um ser que vive se desenvolve e consequentemente muda sem cessar caso contraacuterio natildeo se compreenderia como nos levou pouco a pouco a uma resoluccedilatildeo a nossa resoluccedilatildeo seria imediatamente tomada26

Vale ratificar ao expor essa realidade afetiva em espaccedilos justapostos acabamos

por esterilizar a singularidade de sua coloraccedilatildeo e damos a ela um sentido comum e

coloquial Impessoal portanto O que se perde eacute o caraacuteter proacuteprio e vivo da vida interior a

vivacidade dos estados que se interpenetram e a compotildeem O que se perde eacute a dinamicidade

do eu profundo A incapacidade de apreender a natureza de nossos afetos e de nossos

estados drsquoalma se confunde com a incapacidade para apreendermos o nosso proacuteprio eu o

qual concebido simbolicamente eacute tatildeo descolorido quanto sentimentos justapostos e

destituiacutedos de sua heterogeneidade Assim como desnaturalizamos nossos afetos ao

25 BERGSON Ensaio sobre os dados imediatos da consciecircncia p 92 26 Ibidem p 92

55

traduzi-los em palavras cujos significados gerais foram socialmente convencionados e

transformados em gecircneros desconhecemo-nos quando segmentamos e discursamos acerca

do dinamismo orgacircnico de nosso eu profundo Condenados a lidar com nossos afetos como

se coisas fossem a apreender apenas a sombra exteriorizada de nosso eu convencional

vislumbrando-o pelas vias dos siacutembolos que o desnaturalizam enquanto experiecircncia

muacuteltipla essa supressatildeo da experiecircncia ininterrupta acaba por nos distanciar em uacuteltimo

caso de noacutes mesmos A percepccedilatildeo da multiplicidade qualitativa que neles viceja e que nos

constitui a experiecircncia imediata dessa sutileza infinita de mutaccedilotildees e transformaccedilotildees dos

nossos estados de alma nos daria uma visatildeo mais proacutexima da nossa experiecircncia real Isso

faria o romancista cujas palavras deslocadas de seus sentidos utilitaacuterios talvez nos

desvelassem natildeo a justaposiccedilatildeo dos estados de alma e dos elementos constitutivos do eu

mas a ldquointerpenetraccedilatildeo infinita de mil impressotildees diversas que jaacute deixaram de o ser na

altura que os nomeamosrdquo27 Esse artista audacioso sustenta Bergson conseguiria nos

compreender mais do que noacutes mesmos

Provavelmente a experiecircncia profunda e a compreensatildeo efetiva dessa natureza

do nosso eu iacutentimo natildeo possa se dar em um profundo espanto um estranhamento que eacute

tambeacutem a aventura de mergulhar numa realidade distinta daquela que nos eacute habitual Para

tanto seria preciso abandonar a zona de conforto em que a linguagem usual nos deixa e

lutar contra a nossa da obsessatildeo pela figuraccedilatildeo espacial Dito de outro modo para que o eu

se deixasse viver em sua dimensatildeo autecircntica seria preciso entender que quando trocamos

as experiecircncias por siacutembolos acomodados pela linguagem comum acabamos por deturpar

a natureza vivida da experiecircncia interior Seria preciso ainda ousar o desajuste em relaccedilatildeo

agraves formas de pensar e de sentir generalizadas o que nos colocaria em descompasso com o

comportamento comum Sim porque certos pensamentos que parecem mesclados aos

afetos que por vezes nos assaltam e impregnam a totalidade de nosso eu com um ldquoardor

irrefletidordquo se constituem como ideias que nada tem de justapostas mas que expressam a

interpenetraccedilatildeo constante de nossos estados de alma Esses pensamentos nos arrebatam

porque trazem neles algo do que haacute de mais intenso em cada um de noacutes Bergson assinala

As opiniotildees que mais nos agarramos satildeo as que explicamos com mais dificuldade e as razotildees com que as justificamos raramente satildeo as que nos levaram a adoptaacute-las Em certo sentido adoptaacutemo-las sem razatildeo porque aos nossos olhos o seu valor reside em que o seu cambiante

27 Ibidem p 93

56

corresponde agrave coloraccedilatildeo comum de todas as nossas ideias porque logo de iniacutecio vimos nelas algo de noacutes28

Tais pensamentos ou ideias natildeo admitem a tocircnica comum das palavras jaacute

imbuiacutedas de sentidos cristalizados Ao serem expressos ainda que o sejam pelas palavras

comuns a todos eles de algum modo revelam a riqueza da experiecircncia interior que ao se

expandir para a totalidade do nosso eu ofuscando a sua dimensatildeo simboacutelica enchem de

vida as nossas ideias e permitem que com elas advenha um sentido novo e original Ao

aflorar esse pensamento novo integra-se agrave totalidade de nossa alma a qual modificada e

em estado de vibraccedilatildeo nos impregna por completo Sem duacutevida satildeo esses os momentos

em que o ldquoeu se deixa viverrdquo29

Claro que esse natildeo eacute o modo habitual pelo qual opera nosso pensamento natildeo

eacute assim que comumente produzimos ideias Em geral elas nos chegam jaacute prontas adquirem

uma aparecircncia de imobilidade sem a vivacidade pessoal ou a plenitude do eu De fato

quanto mais exprimirmos nossas ideias de modo espacializado na exterioridade proacutepria da

linguagem comum mais impessoal se sem vida elas se revelaratildeo Por isso para o filoacutesofo

as ideias mais proacuteprias e vivas satildeo as mais difiacuteceis de se expressar com as palavras as

ideias que nos chegam prontas desde jaacute utilizadas e utilizaacuteveis pela linguagem comum

satildeo obviamente as mais faacuteceis de serem expressas Satildeo essas as ideias que afloram na

dimensatildeo mais superficial de nosso eu ideias inertes e impessoais cuja natureza clara e

distinta assemelha-se ao nuacutemero Eacute a elas que se aplicam a teoria associacionista que se

propotildee a conhecer cientificamente a realidade subjetiva o homem o nosso eu No entanto

lembremos que ao apreendermos a multiplicidade quantitativa ao adicionar seus elementos

e vislumbrarmos nesse processo alguma dinamicidade ressoa de um fundo natildeo claro uma

multiplicidade qualitativa que nos constitui profundamente Sem duacutevida os pensamentos

e as ideias que facilmente verbalizamos aquelas que se apresentam imoacuteveis e justapostos

uns aos outros exteriorizados em formas soacutelidas e conceituais habitam as camadas mais

superficiais da consciecircncia e refletem aquelas produzidas pela sociedade pelo contato do

eu com o mundo exterior Por detraacutes delas caso fosse possiacutevel ter essa visatildeo veriacuteamos as

ideias e pensamentos se fundirem o que nos remeteria a uma inteligecircncia viva cujas ideias

natildeo se distinguem dos estados aniacutemicos que se interpenetram e se recriam

28 Ibidem p 94 29 Ibidem p 72

57

permanentemente Assim adviria um pensamento inquieto mutante imageacutetico do qual

por vezes o sonho nos aproxima

A imaginaccedilatildeo do sonhador isolada do mundo externo reproduz em imagens simples e parodia agrave sua maneira o trabalho que incessantemente se prossegue sobre as ideias nas regiotildees mais profundas da vida intelectual30

Em suma com esses argumentos Bergson ratifica que nossa vida interna

apresenta duas esferas uma voltada agrave exterioridade movida por um tempo homogecircneo

cujos elementos apresentam-se enquanto quantidade enquanto dados exteriores uns aos

outros a outra impulsionada por uma vida movente e profunda em que os momentos se

fundem e nos datildeo a visatildeo de um movimento progressivo e orgacircnico dos estados que se

amalgamam e que se recriam continuamente Aqui prevalece a pura duraccedilatildeo O eu

interior que constitui de fato nossas impressotildees reais e vivas das coisas eacute ofuscado pela

exteriorizaccedilatildeo operada pela representaccedilatildeo espacial e pela linguagem em prol da

sociabilidade a qual insistimos nos eacute imprescindiacutevel Mas o meio homogecircneo e a

linguagem a despeito do triunfo social que viabilizam acabam por camuflar a natureza

do eu interior que nos desvela o que haacute de mais denso profundo e vital em noacutes que nos

revela afinal o ser em noacutes o que haacute de absoluto e ontoloacutegico em nossa existecircncia Assim

se o eu espacializado nos insere numa vida social necessaacuteria e eficaz quando tomado

pela totalidade de nossa vida subjetiva ele nos condena a uma vida inferior Eacute ao eu

habitante desta vida que a psicologia desatenta ou associacionista se restringe Seria

preciso superaacute-la para compreender que o descolorido o banal a frivolidade a vida

convencional natildeo eacute o uacutenico registro de nossa interioridade natildeo eacute tampouco o destino

inexoraacutevel do eu de cada um de noacutes Ele pode tambeacutem aceder a uma existecircncia mais

profunda a qual viabilizaria a experiecircncia da autonomia numa palavra agrave liberdade

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BERGSON Henri Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciecircncia Lisboa Ediccedilotildees 70 1988

_______________ O Pensamento e o Movente Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

30 Ibidem p 95

58

LEOPOLDO E SILVA Franklin Bergson Intuiccedilatildeo e Discurso Filosoacutefico Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1994

PINTO Deacutebora Bergson e os dualismos Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophppid=S010131732004000100007ampscript=sci_arttextamptlng=pt 2013

WORMS Freacutedeacuteric Bergson ou os dois sentidos da vida Satildeo Paulo Editora Unifesp 2010

DO NIILISMO Agrave EXPERIEcircNCIA TOTALITAacuteRIA

Elvis de Oliveira Mendes1

RESUMO O presente artigo pretende mostrar de que maneira o filoacutesofo poliacutetico teuto americano Leo Strauss tenta por meio de uma reflexatildeo acerca do fenocircmeno histoacuterico da tirania desenvolver uma compreensatildeo maior do advento dos totalitarismos do seacuteculo XX o que o filoacutesofo veio a chamar de ldquotirania de nossos temposrdquo Deste modo o esforccedilo empreendido aqui por Strauss eacute o de traccedilar uma espeacutecie de leitura sobre ou uma investigaccedilatildeo de quais seriam por assim dizer as raiacutezes intelectuais dos regimes totalitaacuterios e sobretudo do nazismo Palavras-chave Niilismo Leo Strauss Tirania Totalitarismos Nazismo ABSTRACT The present article aims to show how the Teutonic American political philosopher Leo Strauss tries by means of a reflection on the historical phenomenon of the tyranny to develop a greater understanding of the advent of the totalitarianisms of the twentieth century what the philosopher came to call tyranny of our times Thus Strausss effort here is to trace a kind of reading about or an inquiry into what are so to speak the intellectual roots of totalitarian regimes and above all of Nazism Keywords Nihilism Leo Strauss Tyranny Totalitarianism Nazism

Introduccedilatildeo

A escolha de um nome como o de Leo Strauss para efetuar uma abordagem

seacuteria de um dos mais importantes complexos e polecircmicos temas da histoacuteria recente natildeo

eacute de maneira alguma uma escolha arbitraacuteria ou inoacutecua De fato a escolha de uma das mais

importantes mentes da filosofia poliacutetica do seacuteculo XX se daacute devido agrave magnitude da

reflexatildeo por ela produzida reflexatildeo esta que o presente ensaio pretende analisar em um

de seus aspectos Ora para dar iniacutecio adequadamente a esse procedimento eacute preciso

compreender que estamos diante de um filoacutesofo alematildeo de origem judaica filho de uma

Alemanha em que os judeus viveram um periacuteodo profundamente marcado por um

sentimento de esperanccedila e prosperidade o sonho de uma vida nova de um futuro melhor

para seus filhos e netos sentimento sem precedentes para o povo judeu cuja histoacuteria havia

sido marcada ateacute aquela eacutepoca pela vida nos cativeiros e guetos Natildeo obstante o sonho

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (elvisoliverlivecom) Meus agradecimentos ao prof Dr Richard Romeiro Oliveira (UFSJ) pela revisatildeo final deste artigo

60

de um lar para quae beata vita viria a se tornar um pesadelo marcado pela perseguiccedilatildeo

humilhaccedilatildeo tortura e morte em massa Esse episoacutedio obscuro e brutal que marca

fatalmente natildeo apenas a histoacuteria da Europa mas a histoacuteria da humanidade eacute de igual

maneira uma paacutegina triste que marca diretamente e de forma seminal toda a vida de

Strauss jaacute que os acontecimentos funestos da Alemanha da deacutecada de 1930 foram

sentidos como ldquonavalha na carnerdquo desse ateacute entatildeo desconhecido acadecircmico alematildeo que

posteriormente viria a se tornar um dos maiores teoacutericos poliacuteticos do seacuteculo XX2

Neste contexto os eventos ocorridos na deacutecada referida mudaram

indubitavelmente para sempre o curso da vida de Strauss e pode-se dizer que tal

mudanccedila de curso deu novos contornos ao seu pensamento o que se desvela como fator

decisivo para o entendimento da construccedilatildeo de sua obra intelectual Ora com a ascenccedilatildeo

do nacional socialismo alematildeo em 1933 Strauss por sua descendecircncia judaica se tornara

persona nom grata em plena terra natal Diante deste cenaacuterio fugir para longe dali assim

como deixar parentes e amigos para traacutes se configurou como uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia A exemplo de outros germans eacutemigreacutes como Arendt Voegelin Loumlwith e

vaacuterios outros que fugiram da perseguiccedilatildeo de cunho antissemita que se propagou pela

Europa Strauss recebeu natildeo apenas exiacutelio nos EUA mas uma nova paacutetria que o acolheu

e forneceu as condiccedilotildees necessaacuterias para a continuaccedilatildeo e posterior florescimento de um

edifiacutecio intelectual grandioso3

Assim levando em conta esses elementos nosso objetivo aqui seraacute o de tentar

refletir agrave luz das contribuiccedilotildees deste filoacutesofo poliacutetico sobre algumas importantes e difiacuteceis

questotildees acerca da ascensatildeo e legitimaccedilatildeo dos regimes totalitaacuterios e das poliacuteticas

extremas da primeira metade do seacuteculo passado no intuito de refletir acerca de algumas

questotildees centrais como quais fatores causaram isso Como todos foram convencidos

Quem autorizou esses regimes Que fatores emocionais contribuiacuteram para tal

Evidentemente natildeo eacute a pretensatildeo do presente ensaio responder a cada uma dessas

questotildees de forma exaustiva pois isso exigiria a efetuaccedilatildeo de desenvolvimentos analiacuteticos

que natildeo caberiam nos limites deste breve ensaio A nossa pretensatildeo aqui eacute ao contraacuterio

de certa maneira bem mais modesta o que natildeo quer dizer menos complexa qual seja

refletir a partir da visatildeo straussiana acerca das raiacutezes intelectuais que tornaram a crenccedila

2 Ver sobre isso VILLA D The Philosopher versus the Citizen Arendt Strauss and Socrates In VILLA D Politics Philosophy Terror Princeton Princeton University Press 1999 pp 155-179 3 Sobre a trajetoacuteria de Strauss ver BLOOM A ldquoLeo Strauss September 20 1889 ndash October 18 1973rdquo Political Theory v 2 no 4 (1974) p 372-392

61

nos regimes totalitaacuterios uma crenccedila consistente Sendo assim as questotildees

supramencionadas nos serviratildeo portanto de fio condutor e de objeto para nossa

abordagem

Como jaacute foi mencionado anteriormente tentaremos refletir acerca dessas

difiacuteceis questotildees tendo como horizonte norteador o pensamento filosoacutefico de Leo Strauss

Recorrendo a esse referencial straussiano tentaremos seguir outra direccedilatildeo ou melhor

tentaremos buscar outra forma de abordagem desse polecircmico assunto forma de

abordagem que de certa maneira natildeo se limite apenas a uma busca de culpados monstros

e criminosos Definitivamente o esforccedilo empreendido aqui tentaraacute ir aleacutem das

interpretaccedilotildees ordinaacuterias (historicizantes) comumente elaboradas que quase em sua

totalidade reduzem os debates acerca desse assunto a uma espeacutecie de ldquocaccedila agraves bruxasrdquo

ou de ldquodemonizaccedilatildeordquo do passado ou se se preferir de crucificaccedilatildeo dos culpados

procedimento que quase sempre com rariacutessimas exceccedilotildees desemboca em um

anacronismo de caraacuteter totalmente maniqueiacutesta Definitivamente natildeo eacute esse nosso

objetivo aqui

Neste sentido no que diz respeito ao fenocircmeno dos totalitarismos Strauss

parece ser bastante realista evitando assim o jaacute mencionado reducionismo histoacuterico De

toda sorte o professor de Chicago natildeo busca culpados mas tenta compreender a

totalidade do fenocircmeno em seus vaacuterios desdobramentos Seguindo esta orientaccedilatildeo

tentaremos antes de tudo entender o tipo de sociedade e o tipo de homem que surge com

o advento da modernidade Ora para Strauss para compreender minimamente os fatores

que geraram a conditio sine qua non que guiou o mundo agrave loucura de duas guerras

mundiais e ao banho de sangue que marcam o seacuteculo XX tal compreensatildeo soacute eacute possiacutevel

se entendermos a raison decirctre das ideologias que brotam com a consolidaccedilatildeo das ciecircncias

modernas Para Strauss parece claro que os valores e crenccedilas cultivados pelo homem

moderno ou pelo Zeitgeist da modernidade4 quais sejam as crenccedilas no ldquomito do

progressordquo no racionalismo exacerbado e na supervalorizaccedilatildeo da ciecircncia e da teacutecnica

somadas ao forte sentimento de ovaccedilatildeo das identidades nacionais (volkgeist) e clamor de

teorias igualitaristas de caraacuteter fortemente salviacutefico e messiacircnico foram alguns dos

elementos necessaacuterios para a configuraccedilatildeo dos eventos nefastos que estariam por eclodir

Observando esses elementos Strauss julga que sua combinaccedilatildeo estava fadada a culminar

no espetaacuteculo mais brutal da histoacuteria

4 Ler sobre isso ROSEN Stanley Leo Strauss and the Problem of the Modern In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 119-136

62

Dando desenvolvimento agrave nossa anaacutelise podemos dizer que na medida em

que a experiecircncia das poliacuteticas extremas marca de forma decisiva a filosofia poliacutetica de

Leo Strauss natildeo nos surpreende que o mesmo tenha dedicado parte de sua obra ao tema

da perseguiccedilatildeo e ao problema das relaccedilotildees entre a poliacutetica e a filosofia no intuito de

evidenciar o conflito entre o filoacutesofo e a cidade5 e com isso ressaltar a periculosidade

das ideias filosoacuteficas quando transformadas em um instrumento meramente pragmaacutetico e

poliacutetico isto eacute quando convertidas em uma praacutetica mundana ativista e interessada

levada agraves uacuteltimas consequecircncias Embora Strauss natildeo possua nenhuma obra dedicada

exclusivamente ao tema dos totalitarismos esse tema natildeo obstante aparece ora

tacitamente ora explicitamente em muitos de seus escritos de forma fragmentaacuteria o que

natildeo diminui o seu rigor filosoacutefico no trato do assunto sobretudo no que diz respeito ao

trabalho de compreensatildeo do nazismo do fascismo e do comunismo entre outros assuntos

anaacutelogos Pode-se dizer assim que Strauss em sua carreira intelectual se dedicou de

forma comprometida e insistente a uma aguda reflexatildeo acerca do fenocircmeno totalitaacuterio o

qual pretendeu caracterizar com o nome de ldquotirania modernardquo Ora tal dedicaccedilatildeo

consequentemente lhe rendeu uma fecunda e frutiacutefera produccedilatildeo de escritos que nos

oferecem interpretaccedilotildees seacuterias e sobretudo capazes de insights originais

A Modernidade e a Gecircnese do ideal totalitaacuterio

Na carreira intelectual de Strauss eacute facilmente constatado em suas obras sua

insistecircncia no tema da ldquocrise da modernidaderdquo ou no que ele veio a chamar de ldquocrise de

nosso tempordquo ou ldquocrise da civilizaccedilatildeo ocidentalrdquo De fato estes termos satildeo comuns e

aparecem de forma visiacutevel em seus escritos Ao ver de Strauss a pretensatildeo de construccedilatildeo

de um mundo melhor fundado unicamente pela racionalidade livre das desigualdades e

das mazelas humanas um paraiacuteso construiacutedo neste mundo atraveacutes da ciecircncia e do advento

da razatildeo filosoacutefica se mostrou como um empreendimento problemaacutetico por ser resultado

de um desejo ingecircnuo e imprudente que gerou consequecircncias catastroacuteficas para

humanidade fracassando em suas principais promessas6 Ainda neste mesmo sentido

vale observar que para Strauss esta crise foi diagnosticada adequadamente no tempo da

5 Sobre isso considerar a introduccedilatildeo e o capiacutetulo I de STRAUSS L Perseguiccedilatildeo e a arte de escrever e outros ensaios de filosofia poliacutetica Trad Hugo Lagone ndash 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 pp17-30 6 Ler sobre isso STRAUSS L The City and Man Chicago The University of Chicago Press 1992 (1964) p 1-12

63

primeira guerra mundial pelo historiador alematildeo Oswald Spengler como a decadecircncia ou

decliacutenio do Ocidente Tal fenocircmeno estaacute associado em consideraacutevel medida com a perda

dos desiacutegnios ou melhor com a perda de direccedilatildeo dos homens que fazem parte da

civilizaccedilatildeo ocidental7 Sobre isso Strauss explica que A crise da modernidade se revela no fato ou consiste no fato de que o homem ocidental moderno natildeo sabe mais o que ele quer - que ele natildeo acredita mais que possa saber o que eacute o bem e o mal o que eacute o certo e o errado Ateacute poucas geraccedilotildees atraacutes era geralmente tido como garantido que o homem poderia saber o que eacute o certo e o errado o que eacute o justo ou o bem ou a melhor ordem social ndash em suma acreditava-se que a filosofia poliacutetica era possiacutevel e necessaacuteria Em nosso tempo essa crenccedila perdeu seu poder8

Dito isto Strauss nos mostra toda problematicidade relacionada ao advento

da decadecircncia da filosofia poliacutetica a partir dos uacuteltimos focirclegos da modernidade Para ele

a ascensatildeo e consolidaccedilatildeo de correntes de pensamento como o positivismo e o

historicismo teriam eclipsado completamente a possibilidade da filosofia poliacutetica se natildeo

a possibilidade da proacutepria filosofia9 Mas que relaccedilatildeo existiria entre a ldquomorte da filosofia

poliacuteticardquo e o surgimento e legitimaccedilatildeo dos regimes totalitaacuterios Ora para responder a essa

importante questatildeo eacute necessaacuterio esclarecer antes de mais nada que para Strauss esses

dois acontecimentos estatildeo intrinsecamente ligados uma vez que para o filoacutesofo a crise da

civilizaccedilatildeo ocidental estaacute intimamente conectada com o fenocircmeno do niilismo moderno

Todavia o niilismo eacute um dos aspectos mais corrosivos e devastadores que implode o

edifiacutecio moral do establishment social do Ocidente porque ataca diretamente a tradiccedilatildeo

e todos os valores e verdades morais sobre os quais a sociedade ocidental ateacute entatildeo se

assentou

Diante disso o niilismo desvelado pelas correntes racionalistas oriundas do

pensamento moderno jaacute citadas a saber o positivismo e o historicismo tornou acessiacutevel

ao homem comum toda falta de sentido e orientaccedilatildeo da vida humana Este fenocircmeno na

7 STRAUSS L An Introduction to Political Philosophy Ten essays by Leo Strauss [Ed Hilail Gildin] Detroit Wayne State University Press 1989 p 81-82 8 Ibidem p 81 ldquoThe crisis of modernity reveals itself in the fact or consists in the fact that modern western man no longer knows what he wants ndash that he no longer believes that he can know what is good and bad what is right and wrong Until a few generations ago it was generally taken for granted that man can know what is right and wrong what is just or the good or the best order of society ndash in a word that political philosophy is possible and necessary In our time this faith has lost its powerrdquo (Traduccedilatildeo livre) 9 Cf STRAUSS L Direito natural e histoacuteria Trad Bruno Costa Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 p 17-18

64

visatildeo de Strauss acabou com qualquer possibilidade de se distinguir entre o bem e o mal

o justo e o injusto o certo e o errado entre outros valores que possibilitariam a busca

racional do melhor regime ou da boa sociedade assim como quae optimae leges quae

optimae respublica Sendo assim o vaacutecuo deixado pelo niilismo e pelo caraacuteter

estritamente cientiacutefico caracteriacutestico da modernidade gerou as bases necessaacuterias para uma

mudanccedila radical na mentalidade do homem comum cultivando um terreno feacutertil para a

consolidaccedilatildeo de ideologias e crenccedilas de construccedilatildeo da sociedade perfeita a qualquer

custo no seio do imaginaacuterio popular Sendo entatildeo a construccedilatildeo de uma sociedade

perfeita algo possiacutevel atraveacutes da racionalidade cientiacutefico-filosoacutefica uacutenica e

exclusivamente qualquer projeto poliacutetico poderia ser de fato confabulado sobretudo

apoiado e legitimado por maioria popular o que torna os meios para alcanccedila-lo algo de

segundo plano ou sem importacircncia alguma diante de seus fins a saber um ganho social

grandioso e inestimaacutevel10

Ora para Strauss o cientificismo moderno eacute responsaacutevel por uma ruptura

radical com o modo antigo ou preacute-moderno de ver o mundo qualquer explicaccedilatildeo

metafiacutesica ou religiosa perdeu completamente seu esteio diante das respostas

paradigmaacuteticas que surgem com os avanccedilos incontestaacuteveis da nuova scienza Diante

disto paulatinamente essa substituiccedilatildeo das verdades morais pela cientificidade (neutra

em relaccedilatildeo a valores) abriu a brecha necessaacuteria para o esvaziamento de sentido da

existecircncia humana e levou consequentemente ao desenvolvimento de um galopante e

devastador relativismo nos mais variados acircmbitos das sociedades ocidentais

contemporacircneas11 Assim os regimes totalitaacuterios teriam aparecido como alternativa de

preenchimento deste vaacutecuo na maioria dos casos impulsionados por um discurso

carismaacutetico e substancialmente moralista marcado por um pathos salviacutefico e gerador de

uma caricatura messiacircnica defensora da classe trabalhadora da famiacutelia da igualdade e

do amor patrioacutetico De fato em vaacuterias partes do mundo a crenccedila nas poliacuteticas extremas e

na figura do chefe nacional do liacuteder ou do pai acolhedor foi o fio de esperanccedila que

iluminaria o caminho do povo rumo a um futuro de progresso prosperidade e abundacircncia

Vale dizer que os totalitarismos surgem e ganham muita forccedila em um periacuteodo

de muitas dificuldades sociais e econocircmicas De fato sabe-se que o periacuteodo entre guerras

em paiacuteses como Alemanha e Itaacutelia eacute caracterizado por grandes dificuldades financeiras

humilhaccedilatildeo (como o tratado de Versalhes por exemplo) e descrenccedila em todas as

10 Cf STRAUSS L What is Political Philosophy Chicago University of Chicago Press 1988 p 26-27 11 Ler o que Strauss diz sobre isso em STRAUSS L Direito Natural e Histoacuteria pp 43-96

65

instituiccedilotildees representativas Neste contexto qualquer aspiraccedilatildeo liberal ou democraacutetica jaacute

natildeo fazia mais sentido nenhum no contexto do caos vivido nas sociedades Europeias do

periacuteodo poacutes-primeira guerra As sociedades ocidentais pareciam sinalizar ter assim

perdido seu norte o que fez a crenccedila nas ideologias ldquosalvadorasrdquo da naccedilatildeo parecer uma

saiacuteda real elemento que se configurou como necessaacuterio para a ascensatildeo de poliacuteticas

extremas com forte aprovaccedilatildeo e clamor popular

Sendo assim para Strauss os tristes episoacutedios que deram contornos ao

espetaacuteculo de horror da primeira metade do seacuteculo XX natildeo se explicam exclusivamente

como produto de mentes moacuterbidas ou de personalidades problemaacuteticas donas dos mais

soacuterdidos desejos Na verdade a experiecircncia totalitaacuteria seria um fenocircmeno social e poliacutetico

complexo e de difiacutecil compreensatildeo sobretudo quando levamos em consideraccedilatildeo a

aprovaccedilatildeo da maioria popular Para Strauss como jaacute foi mencionado anteriormente a

permissatildeo popular para a consolidaccedilatildeo dos totalitarismos eacute em consideraacutevel sentido

consequecircncia do niilismo moderno efeito de um vazio ou de uma falta de sentido total

para a vida humana o qual se explica pelo eclipse da metafiacutesica e das explicaccedilotildees

teoloacutegicas Sobre isso a comentadora canadense Shadia Drury explica que na visatildeo de

Strauss O Ocidente estaacute em decliacutenio por que se tornou presa do niilismo O niilismo eacute simplesmente a crenccedila que todos os valores ou fins satildeo de igual valia ou que natildeo existe nada intrinsecamente mais nobre ou bom em detrimento de outro Os valores de nossa proacutepria civilizaccedilatildeo natildeo satildeo superiores a nenhum outro por que todos os valores satildeo igualmente infundados e assim igualmente sem valia Todos os valores satildeo convenccedilotildees ideologias interpretaccedilotildees ficccedilotildees ou produtos da vontade de poder Niilismo eacute uma profunda indiferenccedila com as distinccedilotildees entre bem e mal nobre e baixo12

Ainda de acordo com Drury Strauss natildeo estaacute sugerindo que para ser saudaacutevel

uma sociedade deve acreditar na viabilidade de uma sociedade universal e proacutespera

Antes a visatildeo straussiana eacute de que a higidez de uma ordem social depende do fato de que

ela acredite em seus proacuteprios ideais e princiacutepios13 Natildeo obstante se o niilismo moderno eacute

12 DRURY S The Political Ideas of Leo Strauss Updated Edition Lexington Palgrave Macmillan 2005 (1987) p 162 ldquoThe West is in decline because it has fallen prey to nihilism Nihilism is simply the belief that all values or ends are of equal worth or that there is nothing intrinsically more noble or good than any other The values of our own civilization are not superior to those of any other because all values are equally groundless and hence equally worthless All values are conventions ideologies interpretations fictions or products of will to power Nihilism is a profound indifference to the distinctions between good and evil noble and baserdquo (Traduccedilatildeo livre) 13 Cf Ibidem p 162

66

a fonte desta falta de sentido ou desta falta de direccedilatildeo dos homens a raiz do problema

estaria na questatildeo como o niilismo foi desvelado Para Strauss a fonte do niilismo

moderno ou de seu desvelamento estaacute no historicismo ou no forte caraacuteter idealista do

pensamento moderno como jaacute podemos perceber na criacutetica de FH Jacobi ao idealismo

Alematildeo14 Antes de Nietzsche Jacobi em suas Cartas sobre o Niilismo apontou assim

para os perigos do niilismo moderno Observando isso percebemos que natildeo eacute agrave toa que

Strauss agraves vezes usa os termos historicismo niilismo e relativismo como sinocircnimos como

se ele descrevesse um ou o mesmo fenocircmeno15 Portanto para ele (Strauss) o historicismo

eacute amplamente responsaacutevel pelo niilismo moderno ou por seu desvelamento e assim pela

crise moderna16

O Niilismo alematildeo e o Nacional Socialismo

O fenocircmeno dos totalitarismos por motivos oacutebvios natildeo eacute de fato um

fenocircmeno exclusivamente alematildeo de forma que natildeo se trata aqui de reduzir esses

acontecimentos ao contexto da histoacuteria alematilde No entanto para que natildeo fiquemos

caminhando em ciacuterculos neste momento nos deteremos em uma expressatildeo fundamental

na visatildeo de Strauss para a compreensatildeo de um fenocircmeno ainda mais primevo e central a

saber o niilismo alematildeo17

Para Strauss a ascensatildeo do nacional socialismo alematildeo eacute antes de tudo uma

consequecircncia de um fenocircmeno muito maior e complexo chamado niilismo alematildeo Para

Strauss o niilismo tem raiacutezes muito mais profundas que os discursos de Hitler a derrota

da Alemanha na Guerra Mundial e tudo que se relaciona com isso18 O nacional

socialismo seria entatildeo apenas uma forma politizada de niilismo uma forma de niilismo

vulgar que se tornou mais famosa e popular Decerto a fim de iluminar nosso caminho

em direccedilatildeo a uma melhor compreensatildeo deste fenocircmeno devemos entender de forma mais

adequada o que eacute niilismo Ora esclarece Strauss por niilismo entenda-se o velle nihil o

querer o nada ou a vontade de nada a destruiccedilatildeo de tudo inclusive de si mesmo e

14 Ler JACOBI Friedrich Heinrich Cartas a Mendelssohn David Hume Carta a Fichte Trad Joseacute Luis Villacantildeas Barcelona Ciacuterculo de Lectores 1996 15 DRURY S The Political Ideas of Leo Strauss p 163 16 Ibidem p 163 17 Strauss possui um longo e esclarecedor ensaio sobre esse assunto escrito em 1941 em plena Segunda Guerra Mundial no iniacutecio de seu exiacutelio nos EUA este ensaio foi publicado mais recentemente pela Interpretation ndash a journal of political philosophy em 1999 Consultar STRAUSS L German Nihilism Editado por David Janssens e Daniel Tanguay Interpretation Spring 1999 vol 26 ndeg 3 18 STRAUSS L German Nihilism p 357

67

portanto primariamente a vontade de autodestruiccedilatildeo19 Esse sintoma se revelaria na

corrida armamentista caracteriacutestica do fim do seacuteculo XIX e comeccedilo do seacuteculo XX o que

resulta segundo Strauss na radicalizaccedilatildeo do Militarismo e do fortalecimento de valores

beacutelicos (Warlike ideals)

Entretanto para Strauss o niilismo alematildeo natildeo eacute um niilismo absoluto isto

eacute o desejo de destruiccedilatildeo de tudo inclusive de si mesmo mas a destruiccedilatildeo de algo

especiacutefico da civilizaccedilatildeo moderna20 Mas isso torna o niilismo alematildeo quase um niilismo

absoluto pois embora o niilismo alematildeo fosse por assim dizer um tipo limitado de

niilismo sua negaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo moderna natildeo eacute guiada ou acompanhada por nenhuma

concepccedilatildeo positiva clara21 O problema ou o mal-estar que gera o niilismo alematildeo eacute um

problema de caraacuteter moral22 Sendo assim o moralismo eacute um sintoma preponderante e

decisivo dos discursos totalitaacuterios como o proacuteprio Strauss explica na seguinte passagem

O niilismo alematildeo deseja a destruiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo moderna como tal a civilizaccedilatildeo tem um significado moral Como qualquer um sabe ele natildeo faz muita objeccedilatildeo aos artifiacutecios da teacutecnica moderna Este significado moral da civilizaccedilatildeo moderna ao que os niilistas alematildees se opotildeem eacute expresso em formulaccedilotildees tal como estas para socorrer o estado de homem ou para salvaguardar os direitos do homem ou a maior felicidade possiacutevel do maior nuacutemero possiacutevel Qual eacute o motivo subjacente do protesto contra a civilizaccedilatildeo moderna contra o espiacuterito do ocidente e em particular do ocidente anglo-saxatildeo23

Apresentado tal questionamento o fator a ser levantado e melhor esclarecido

a partir daqui eacute entatildeo por que o Ocidente seria um inimigo maior a ser destruiacutedo Ora

para Strauss

A resposta deve ser eacute um protesto moral Este protesto procede da convicccedilatildeo que o internacionalismo inerente agrave civilizaccedilatildeo moderna ou mais precisamente que o estabelecimento de uma sociedade perfeitamente aberta como eacute a meta da civilizaccedilatildeo moderna e portanto todas as aspiraccedilotildees dirigidas em direccedilatildeo a esta meta satildeo irreconciliaacuteveis

19 Ibidem p 357 20 Ibidem p 357 21 Ibidem p 357 22 Ler sobre isso SHELL Susan ldquoTo Spare the Vanquished and Crush the Arrogantrdquo Leo Straussrsquos Lecture on ldquoGerman Nihilismrdquo In Smith Steven B (ed) The Cambridge companion to Leo Strauss Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 171-192 23 Ibidem p 358 ldquoGerman nihilism desires the destruction of modem civililsquosrsquoation as far as modern civililsquosrsquoation has a moral meaning As everyone knows it does not object so much to modem technical devices That moral meaning of modem civilization to which the German nihilists object is expressed in formulations such as these to relieve mans estate or to safeguard the rights of man or the greatest possible happiness of the greatest possible number What is the motive underlying the protest against modem civilisation against the spirit of the West and in particular of the Anglo-Saxon Westrdquo (Traduccedilatildeo livre)

68

com as demandas baacutesicas da vida moral O protesto procede da convicccedilatildeo que a raiz de toda vida moral eacute essencialmente e portanto eternamente a sociedade fechada da convicccedilatildeo que a sociedade aberta estaacute fadada a ser se natildeo imoral no miacutenimo amoral o lugar de encontro dos perseguidores do prazer do lucro do poder irresponsaacutevel de fato de qualquer tipo de irresponsabilidade e falta de seriedade24

Dito isto percebe-se que ao ver de Strauss o rechaccedilo agrave cultura ocidental

constroacutei as bases de seu edifiacutecio a partir de um argumento de cunho moral Nesse sentido

ldquoo niilismo alematildeo eacute uma forma radicalizada de militarismo alematildeordquo mais precisamente

um conflito que apenas a priori e de certa maneira aparece como uma guerra de

princiacutepios e que paulatinamente se configura como um sentimento de amor agrave guerra De

fato as emoccedilotildees e os sentimentos gerados no acircmago do povo pelos fatiacutedicos

acontecimentos relacionados agrave Guerra Mundial ao vazio e total falta de sentido

caracteriacutestico do mundo poacutes-guerra parecem ter achado um terreno feacutertil para o cultivo

da paixatildeo pela destruiccedilatildeo do mundo da forma que se apresentara A paixatildeo pelo novo e a

ruptura com o passado ou melhor a destruiccedilatildeo da tradiccedilatildeo para a construccedilatildeo de algo

totalmente novo um novo que teria como fim a redenccedilatildeo o Estado perfeito a paz O

preccedilo por esse esplendor entatildeo foi visto como incomensuraacutevel e o meio soacute seria possiacutevel

atraveacutes das armas atraveacutes da guerra total Nesse sentido Strauss afirma que

indubitavelmente

ningueacutem poderia estar satisfeito com o mundo poacutes-guerra A democracia liberal alematilde de todas as descriccedilotildees parecia para muitas pessoas ser absolutamente incapaz de lidar com as dificuldades com as quais a Alemanha foi confrontada25

Sendo assim para Strauss uma atmosfera de desconfianccedila e incredulidade

com relaccedilatildeo a qualquer regime de aspiraccedilatildeo democraacutetica se tornara ainda mais forte com

o passar do tempo e em virtude do abismo social em que Alemanha se encontrara Ainda

nesse mesmo sentido essa atmosfera contribuiu diretamente segundo Strauss para o

24 Ibidem p 358 ldquoThe answer must be it is a moral protest That protest proceeds from the conviction that the internationalism inherent in modem civililsquosrsquoation or more precisely that the establishment of a perfectly open society which is as it were the goal of modem civililsquosrsquoation and therefore all aspirations directed toward that goal are irreconcilable with the basic demands of moral life That protest proceeds from the conviction that the root of all moral life is essentially and therefore eternally the closed society from the conviction that the open society is bound to be if not immoral at least amoral the meeting ground of seekers of pleasure of gain of irresponsible power indeed of any kind of irresponsibility and lack of seriousnessrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 25 Ibidem p 359 ldquoNo one could be satisfied with the post-war world German liberal democracy of all descriptions seemed to many people to be absolutely unable to cope with the difficulties with which Germany was confrontedrdquo (Traduccedilatildeo livre)

69

surgimento de um profundo preconceito ou para a confirmaccedilatildeo de um profundo

preconceito jaacute existente contra a democracia liberal26 Diante deste cenaacuterio duas

alternativas agrave democracia liberal foram abertas a primeira aparentemente pretendia

retornar a um contexto preacute-guerra a segunda por outro lado via nos acontecimentos do

presente o prenuacutencio da revoluccedilatildeo ou o caminho rumo agrave revoluccedilatildeo uma consequente e

inevitaacutevel nova guerra mundial Com efeito esta segunda alternativa pareceu mais

interessante ao povo alematildeo na medida em que estava sustentada numa crenccedila jaacute

envelhecida em ldquoum levante do proletariado e dos estratos proletaacuterios da sociedade que

conduziria ao desaparecimento do Estado agrave sociedade sem classes agrave aboliccedilatildeo de toda

exploraccedilatildeo e injusticcedila agrave era da paz finalrdquo27 Portanto ldquofoi essa perspectiva pelo menos

tanto quanto o presente desesperado que conduziu ao niilismordquo28

Neste contexto ldquoa perspectiva de um planeta pacificado sem opressores e

oprimidos de uma sociedade devotada agrave produccedilatildeo e consumo apenasrdquo29 foi amplamente

acreditada mas natildeo como processo paulatino e sim para jaacute a partir da crenccedila de que isso

podia ser construiacutedo aqui e agora se tornou predominante para grande parte da juventude

alematilde certamente pelo fato de estarem os jovens preocupados com suas proacuteprias posiccedilotildees

social e econocircmica30 Mas isso por outro lado gerou uma espeacutecie de ldquoateiacutesmo juvenilrdquo

no mundo tal como se apresentara o que acabou por tornar as alternativas intoleraacuteveis

pelo jovem alematildeo Com efeito se por um lado a democracia liberal natildeo inspirava

confianccedila Strauss explica que por outro

o que para os comunistas parecia o cumprimento do sonho da humanidade parecia para os jovens alematildees como a maior degradaccedilatildeo da humanidade como a vinda do fim da humanidade como a chegada do ultimo homem31

Embora a juventude alematilde natildeo soubesse bem o que queriam construir no

lugar do presente ela estava compelida a destruir o mundo tal como era levada por aquilo

26 Ibidem p 359 27 Ibidem p 359-360 ldquohellipa rising of the proletariat and of the proletarianized strata of society which would usher in the withering away of the State the classless society the abolition of all exploitation and injustice the era of final peacerdquo (Traduccedilatildeo livre) 28 Ibidem p 360 ldquoIt was this prospect at least as much as the desperate present which led to nihilismrdquo (Traduccedilatildeo livre) 29 Ibidem p 360 ldquoThe prospect of a pacified planet without rulers and ruled of a planetary society devoted to production and consumption onlyhelliprdquo (Traduccedilatildeo livre) 30 Ibidem p 360 31 Ibidem p 360 ldquoWhat to the communists appeared to be the fulfilment of the dream of mankind appeared to those young Germans as the greatest debasement of humanity as the coming of the end of humanity as the arrival of the latest manrdquo (Traduccedilatildeo livre)

70

que Strauss nomeia como ldquoonda do futurordquo (wave of the future) ndash mesmo que a ideia de

futuro natildeo fosse nada clara ou talvez nem mesmo existisse

Para Strauss o que estaacute em jogo eacute o fato de que a juventude alematilde natildeo

acreditava mais na possiblidade dos instrumentos poliacuteticos e ideoloacutegicos de seu tempo

por que foram de fato instrumentos forjados pelos homens velhos A emancipaccedilatildeo dos

jovens eacute uma caracteriacutestica central da Alemanha poacutes-primeira guerra E se o idealismo

alematildeo caminhou em direccedilatildeo ao teiacutesmo ou ao panteiacutesmo nesse novo momento essa

juventude seraacute tomada por um sentimento ateiacutesta Segundo Strauss isso se daacute pela

influecircncia radical do pensamento de Schopenhauer e sobretudo de Nietzsche sobre a

mente do jovem alematildeo do periacuteodo poacutes-primeira guerra Nesse sentido o proacuteprio Strauss

faz a seguinte colocaccedilatildeo ldquoSchopenhauer foi no meu conhecimento o primeiro filoacutesofo

alematildeo natildeo materialista e conservador que professou abertamente seu ateiacutesmordquo32 No

entanto para Strauss a influecircncia de Schopenhauer em nada se compara com o poder e o

fasciacutenio exercido pelo pensamento de Nietzsche sobre parte da juventude alematilde33 Ora

segundo Strauss ldquoNietzsche afirmou que a aceitaccedilatildeo ateiacutesta natildeo eacute reconciliaacutevel com mas

indispensaacutevel para uma poliacutetica antidemocraacutetica antissocialista e antipacifista de acordo

com ele toda crenccedila comunista eacute apenas uma forma de teiacutesmo de crenccedila na

providecircnciardquo34

Mas como sabemos Nietzsche jaacute estava morto haacute algumas deacutecadas No

entanto o sucesso e a propagaccedilatildeo de suas ideias dependia da explicaccedilatildeo dos grandes

professores da eacutepoca (e em alguns casos especiacuteficos de sua deturpaccedilatildeo) natildeo menos que

nomes como os de Spengler Moeller van den Bruck Carl Schmitt Ernst Junger e

Heidegger entre outros segundo Strauss teriam aberto de forma consciente ou natildeo um

caminho para Hitler35 Diante disso o nazismo surgiu como resposta ao vazio radical

vivido por uma juventude niilista Um fio de esperanccedila que seria anunciada por um ceacuteu

nebuloso e obscuro seguido de uma tempestade devastadora que seria semelhante ao fim

do mundo mas que na verdade deveria ser compreendida como o fim de uma era

32 Ibidem p 361 ldquoSchopenhauer was to my knowledge the first non-materialist and conservative German philosopher who openly professed his atheismrdquo (Traduccedilatildeo livre) 33 O proacuteprio Strauss em suas correspondecircncias com Karl Loumlwith fala sobre seu fasciacutenio pela obra de Nietzsche quando jovem afirma que entre seus 20 e 30 anos de idade foi ldquoenfeiticcediladordquo pelas palavras daquele homem chegando a acreditar em tudo que conseguia entender de Nietzsche Cf Leo Strauss to Karl Loumlwith 23 June 1935 in ―Correspondence of Karl Loumlwith and Leo Strauss trans George Elliot Tucker Independent Journal of Philosophy 56 (1988) 182ndash83 34 Ibidem p 361-362 ldquoNietzsche asserted that the atheist assumption is not only reconcilable with but indispensable for a radical anti-democratic anti-socialist and anti-pacifist policy according to him even the communist creed is only a secularized form of theism of the belief in providencerdquo (Traduccedilatildeo livre) 35 Cf Ibidem p 362

71

Com efeito explica Strauss que ldquose o niilismo eacute a rejeiccedilatildeo dos princiacutepios da

civilizaccedilatildeo como tal e se a civilizaccedilatildeo eacute baseada no reconhecimento do fato que o sujeito

da civilizaccedilatildeo eacute o homem como homem toda interpretaccedilatildeo da ciecircncia e moral em termos

de raccedila ou naccedilotildees ou de culturas eacute estritamente niilistardquo36 De fato ela estaraacute sempre

dentro de um contexto histoacuterico relativo e determinado por vaacuterios fatores quais sejam

local eacutepoca e os desenvolvimentos de cada cultura Portanto o que Strauss tenta mostrar

eacute que haacute uma distinccedilatildeo entre dois tipos de niilismo o niilismo em geral e o niilismo

alematildeo O niilismo em geral rejeita os valores humanos a civilizaccedilatildeo como um todo o

niilismo alematildeo por sua vez rejeita o ideal moderno de civilizaccedilatildeo rejeita um tipo

especiacutefico de civilizaccedilatildeo37 por isso acredita na guerra crenccedila esta alimentada por um

pathos salviacutefico De fato o niilismo alematildeo rejeita os princiacutepios da civilizaccedilatildeo tal como

eacute em favor da guerra e da conquista em favor das virtudes guerreiras O niilismo alematildeo

eacute portanto parente do militarismo alematildeo38

A Ciecircncia Poliacutetica Moderna e a ldquoTirania de nossos temposrdquo

De acordo com Strauss a ciecircncia poliacutetica moderna eacute niilista porque

abandonou o seu objetivo normativo mais alto de fato o seu caraacuteter deontoloacutegico morreu

com os antigos os quais foram acusados pelos pensadores modernos de serem

demasiados utoacutepicos ou se se preferir ingenuamente romacircnticos Isso significa que a

ciecircncia poliacutetica morreu quando abdicou da exigecircncia de refletir seriamente sobre o melhor

regime e sobre a necessidade de se buscar racionalmente a verdade acerca do bem do

justo e do belo Portanto a ciecircncia poliacutetica morreu quando abdicou da tarefa de legislar

para apenas descrever Em outras palavras a ciecircncia poliacutetica moderna abandonou o ideal

antigo e sua busca pelo ldquodever serrdquo e pelas virtudes para se limitar a dizer ldquoo que eacuterdquo Tal

postura supostamente mais realista surge jaacute no tempo da renascenccedila segundo Strauss eacute

com Maquiavel de fato que brotam as raiacutezes do plano poliacutetico moderno39 Poreacutem mesmo

sendo o autor de O Priacutencipe o responsaacutevel direto por uma negaccedilatildeo radical da filosofia

36 Ibidem p 366 ldquoIf nihilism is the rejection of the principles of civilisation as such and if civilisation is based on recognition of the fact that the subject of civilisation is man as man every interpretation of science and morals in terms of races or of nations or of cultures is strictly speaking nihilisticrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 37 Cf Ibidem p 367 38 Ibidem p 369 ldquoGerman nihilism rejects then the principles of civilisation as such in favor of war and conquest in favor of the warlike virtues German nihilism is therefore akin to German militarismrdquo (Traduccedilatildeo Livre) 39 Cf STRAUSS L What is Political Philosophy And Other Studies p 40

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poliacutetica tal como era concebida por Platatildeo e Aristoacuteteles eacute Hobbes o grande mentor

intelectual da modernidade uma vez que eacute Hobbes que aplicando o meacutetodo matemaacutetico

agrave filosofia poliacutetica elevou a filosofia poliacutetica ao status de ciecircncia em sua acepccedilatildeo

moderna

De fato para Strauss a filosofia poliacutetica moderna possui suas bases na

exatidatildeo matemaacutetica isto eacute num conhecimento indiferente agraves paixotildees humanas Poreacutem

a opiniatildeo quase sempre possui sua origem em alguma paixatildeo humana e por ser assim a

filosofia poliacutetica a partir da modernidade teria se tornado incapaz de refletir sobre as

coisas poliacuteticas no seu acircmbito mais originaacuterio que eacute justamente o acircmbito da opiniatildeo

Segundo Strauss isso explicaria por que a filosofia poliacutetica moderna teria se tornado

incapaz de compreender entre outras coisas o fenocircmeno da tirania40 Esse fato

justificaria talvez a insistecircncia de Strauss em seu movimento de retorno aos preacute-

modernos a seu ver a ciecircncia poliacutetica tradicional possui elementos que possibilitam uma

melhor compreensatildeo do fenocircmeno da tirania jaacute que o mundo antigo conviveu durante

longos periacuteodos e de forma distinta sob a eacutegide desse tipo de regime Isso eacute perceptiacutevel

em sua obra On Tiranny41 (Sobre a Tirania) onde Strauss exerce uma leitura do Hieron

de Xonofonte referente ao diaacutelogo entre o tirano Hieron e o poeta Simonides sobre a

tirania e mesmo sob a forma de um diaacutelogo eleganter eacute possiacutevel perceber que o objetivo

de Strauss eacute refletir sobre a tirania do passado a fim de mostrar que a ciecircncia poliacutetica

moderna natildeo eacute capaz de compreender o fenocircmeno da tirania tal como ele se apresenta em

nosso tempo qual seja a experiecircncia totalitaacuteria Como podemos perceber no comentaacuterio

de Strauss Uma ciecircncia social que natildeo pode falar da tirania com a mesma propriedade com que a medicina fala por exemplo de cacircncer natildeo pode entender o fenocircmeno social tal o que ele eacute Isto eacute portanto natildeo cientiacutefico A ciecircncia social de nossos dias encontra-se nesta condiccedilatildeo Se for verdade que a ciecircncia social atual eacute o resultado inevitaacutevel da ciecircncia social moderna e da filosofia moderna uma delas eacute forccedilada a pensar a restauraccedilatildeo da ciecircncia social claacutessica Uma vez que noacutes aprendermos novamente com os claacutessicos o que eacute a tirania noacutes seremos capacitados e compelidos a diagnosticar com as tiranias um nuacutemero de regimes contemporacircneos que aparecem no disfarce das ditaduras Este diagnoacutestico pode apenas ser o primeiro passo em direccedilatildeo a uma anaacutelise

40 Cf STRAUSS L A Filosofia Poliacutetica de Hobbes Suas bases e sua gecircnese Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2016 p188 - 189 41 STRAUSS L On Tyranny Chicago The University of Chicago Press 2000

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exata da tirania dos dias atuais pois a tirania dos dias atuais eacute fundamentalmente diferente da tirania analisada pelos claacutessicos42

Sendo assim logo de partida em primeiro lugar Strauss aponta para um

aspecto seminal que eacute o fato de que a tirania antiga e a tirania moderna satildeo distintas em

essecircncia jaacute que a perspectiva moderna de tirania tem como fundamentos preciacutepuos o mito

do progresso (ilimitado) e a conquista e dominaccedilatildeo total da natureza elementos que

representam algo que se opotildee diametralmente ao projeto de aprimoramento da vida e

correccedilatildeo das sociedades proposto pelas ciecircncias modernas Eis por que Strauss vecirc no

cientista social moderno uma figura vendada e incapaz de captar a essecircncia mesma do

que eacute a tirania Sobre isso Strauss afirma que

O fato de que existe uma diferenccedila fundamental entre a tirania claacutessica e a tirania dos dias atuais ou que os claacutessicos nem sonharam com a tirania atual natildeo eacute uma razatildeo boa ou suficiente para abandonar a referecircncia do sistema claacutessico Pois este fato eacute perfeitamente compatiacutevel com a possibilidade que a tirania dos dias atuais encontra seu lugar dentro do sistema claacutessico ie isto natildeo pode ser compreendido adequadamente exceto dentro da estrutura claacutessica A diferenccedila entre a tirania dos dias atuais e a tirania claacutessica tem sua raiz na diferenccedila entre a noccedilatildeo moderna de filosofia ou ciecircncia e a noccedilatildeo claacutessica de filosofia ou ciecircncia A tirania dos dias atuais em contradiccedilatildeo a tirania claacutessica eacute baseada no progresso ilimitado e na ldquoconquista da naturezardquo que se tornou possiacutevel atraveacutes da ciecircncia moderna assim como na popularizaccedilatildeo ou difusatildeo do conhecimento filosoacutefico ou cientiacutefico43

Ora embora Sobre a tirania seja apenas um comentaacuterio o insight filosoacutefico

trazido por ele eacute fecundo e original e se trata por assim dizer de uma criacutetica agrave maneira

42 STRAUSS L On Tyranny p 177 ldquoA social science that cannot speak of tyranny with the same confidence with which medicine speaks for example of cancer cannot understand social phenomena as what they are It is therefore not scientific Present-day social science finds itself in this condition If it is true that present-day social science is the inevitable result of modern social science and of modern philosophy one is forced to think of the restoration of classical social science Once we have learned again from the classics what tyranny is we shall be enabled and compelled to diagnose as tyrannies a number of contemporary regimes which appear in the guise of dictatorships This diagnosis can only be the first step toward an exact analysis of present ndashday tyranny for present-day tyranny is fundamentally different from the tyranny analyzed by the classicsrdquo (Traduccedilatildeo livre) 43 STRAUSS L On Tyranny p 177 ldquoA social science that cannot speak of tyranny with the same confidence with which medicine speaks for example of cancer cannot understand social phenomena as what they are It is therefore not scientific Present-day social science finds itself in this condition If it is true that present-day social science is the inevitable result of modern social science and of modern philosophy one is forced to think of the restoration of classical social science Once we have learned again from the classics what tyranny is we shall be enabled and compelled to diagnose as tyrannies a number of contemporary regimes which appear in the guise of dictatorships This diagnosis can only be the first step toward an exact analysis of present ndashday tyranny for present-day tyranny is fundamentally different from the tyranny analyzed by the classicsrdquo (Traduccedilatildeo livre)

74

por meio da qual a ciecircncia poliacutetica moderna lida com o fenocircmeno do totalitarismo Pois

para Strauss a pretensatildeo moderna de construccedilatildeo de uma repuacuteblica universal um estado

igualitaacuterio livre das desigualdades homogecircneo e feliz consiste na realidade na

consolidaccedilatildeo de uma tirania Portanto ainda na oacutetica straussiana a ciecircncia poliacutetica

moderna fez de sua utopia morada e ao fazer isso transformou a construccedilatildeo de seu

paraiacuteso um inferno de violecircncia e destruiccedilatildeo movida por ideais de mundo que de tatildeo

perfeitos cegaram a razatildeo abrindo passagem para oportunistas sanguinaacuterios

Em resumo Strauss indica uma resposta indireta ao problema se

posicionando inclusive no contexto da filosofia poliacutetica em relaccedilatildeo ao problema da

finitude e do esgotamento das formas poliacuteticas e ao fazer isso preserva o termo tirania

para descrever um fenocircmeno dos nossos tempos Importante observar a aposta de Strauss

de por meio de uma anaacutelise ou melhor atraveacutes da escuta atenta ao que os antigos tecircm a

nos dizer encontrar importantes ensinamentos sobre as tiranias antigas e modernas

valorizando o legado filosoacutefico dos escritores do passado cujas obras permitem iluminar

uma melhor compreensatildeo daquilo que podemos nomear como ldquoinvestidas tiracircnicas dos

nossos temposrdquo

Parece ter sido o esforccedilo de Strauss nos fazer refletir acerca do perigo das

promessas e dos mais lindos devaneios de redenccedilatildeo da razatildeo humana ou acerca das

pretensotildees das ideologias de transformar este mundo na morada perfeita para os homens

De fato como foi dito ainda na introduccedilatildeo deste ensaio natildeo era a intenccedilatildeo deste propor

nem mesmo uma iacutenfima interpretaccedilatildeo acerca dos acontecimentos funestos do breve mas

conturbado seacuteculo XX Talvez natildeo fosse apresentado algo de realmente novo e original

quase certamente que natildeo No entanto por outro lado o insight de Strauss que deve ser

colocado aqui no cerne da discussatildeo eacute que este filoacutesofo vivendo em plena guerra em seu

exiacutelio nos EUA conseguiu nos presentear com uma profunda reflexatildeo de sobriedade

incriacutevel encarando os fatos poliacuteticos catastroacuteficos do seacuteculo XX em seu alto grau de

complexidade e amplitude

Nesse sentido devemos meditar acerca da necessidade de estarmos sempre

em alerta frente ao perigo da crenccedila na poliacutetica como esperanccedila do risco sorrateiro que

rodeia e estaacute sempre agrave espreita dos discursos de caraacuteter salviacutefico de forte apelo

messiacircnico Em outras palavras essa crenccedila que sempre retorna nos momentos mais

difiacuteceis e que usa o grande clamor popular como instrumento de manobra para legitimar

suas ldquomelhores intenccedilotildeesrdquo e funciona muitas vezes como uma espeacutecie de guia das

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multidotildees que sedentas por justiccedila e igualdade marcham rumo a um futuro proacutespero de

paz para todos os povos

De fato eacute a partir da memoacuteria dos acontecimentos do passado que devemos

estar conscientes do perigo de tais promessas sempre forjadas com um alto teor

racionalista Com isso seremos capazes de manter a desconfianccedila em relaccedilatildeo aos

fantasmas da histoacuteria lembrando que as grandes trageacutedias possuiacuteam quase sempre por

traacutes de si fortes evidecircncias de sua benevolecircncia baseada e garantida pela razatildeo Eacute para o

que nos alerta Roger Scruton de forma bastante contemporacircnea quando nos lembra que

ldquoa liquidaccedilatildeo dos Kulaks foi justificada pela lsquociecircncia marxistarsquo as doutrinas racistas dos

nazistas foram propostas como eugenia cientiacutefica e lsquoO Grande Salto para o Futurorsquo de

Mao Tseacute Tung foi considerado a simples aplicaccedilatildeo de leis comprovadas da histoacuteriardquo44

Ora esses satildeo alguns dos muitos acontecimentos catastroacuteficos que foram legitimados

escolhidos e executados em nome da razatildeo

Em suma o que Strauss tenta tornar patente por meio de uma reflexatildeo densa

e rigorosa eacute de fato o perigo que nos espreita quando a crenccedila na razatildeo se torna

edificante e pretende se fazer construtora de um mundo melhor ou ainda o risco contido

na transformaccedilatildeo da visatildeo fria do especialista em guia de uma sociedade Em outras

palavras trata-se da tentaccedilatildeo do otimismo racional que se aventura a prometer aquilo que

a racionalidade filosoacutefico-cientiacutefica em essecircncia natildeo eacute capaz de produzir45 a saber paz e

igualdade entre os homens se convertendo no contraacuterio ao mostrar seu lado sombrio e

seu elatilde destruidor Em ultima anaacutelise Strauss apesar de ter toda sua famiacutelia totalmente

destruiacuteda e sua vida quase ceifada de forma violenta e prematura natildeo se preocupou em

apontar culpados evitando a ordinaacuteria reductio ad Hitlerum (tatildeo comum entre

socioacutelogos historiadores e psicoacutelogos de nossa eacutepoca) mas tentou entender antes quais

os elementos e atores foram necessaacuterios para que a razatildeo se tornasse autodestrutiva

Inequivocamente eacute necessaacuterio observar o passado e estarmos atentos ao fato de que

sempre que algueacutem ou alguma classe social afirmou saber o caminho do melhor estava

ali a se desvelar a face horrenda de uma nova tirania

44 SCRUTON R As Vantagens do Pessimismo e o perigo da falsa esperanccedila Trad Faacutebio Faria 1 Ed Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 p 8 45 Para Strauss o conhecimento filosoacutefico possui em si um caraacuteter corrosivo e subversivo destruidor de todas as verdades morais e tradiccedilotildees sendo entatildeo incapaz de trazer paz e felicidade aos homens Pelo contraacuterio a filosofia possui um caraacuteter perturbador e inquietante por desvelar toda falta de sentido da existecircncia humana tornando assim essa vida algo de insuportaacutevel para a maioria dos homens e sobretudo tornando impossiacutevel a manutenccedilatildeo da ordem civil Sobre isso ler o que Strauss diz em STRAUSS L Liberalism Ancient and Modern University of Chicago Press Edition 1995 p 83-85

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Referecircncias

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STRAUSS Leo A Filosofia Poliacutetica de Hobbes Suas bases e sua gecircnese Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2016

___ An Introduction to Political Philosophy Ten essays by Leo Strauss [Ed Hilail Gildin] Detroit Wayne State University Press 1989 ___ Leo Strauss ldquoCorrespondencerdquo Independent Journal of Philosophy 5ndash6 (1988) ___ Liberalism Ancient and Modern Leo Strauss foreword by Allan Bloom University of Chicago Press Edition 1995 ___ Natural Right and History Chicago The University of Chicago Press 1971 (1953) Traduccedilatildeo para o portuguecircs Brasileiro de Bruno Costa Simotildees Direito Natural e Histoacuteria Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 ___ On Tyranny Chicago The University of Chicago Press 2000 ___ Persecution and The Art of Writing Chicago The University of Chicago Press 1988 (1952) Traduccedilatildeo em portuguecircs Brasileiro de Hugo Lagone Perseguiccedilatildeo e a arte de escrever e outros ensaios de filosofia poliacutetica Leo Strauss ndash 1 Ed ndash Satildeo Paulo Eacute Realizaccedilotildees 2015 ___ The City and Man Chicago The University of Chicago Press 1992 (1964) ___ What is Political Philosophy Chicago University of Chicago Press 1988

VILLA D The Philosopher versus the Citizen Arendt Strauss and Socrates In VILLA D Politics Philosophy Terror Princeton Princeton University Press 1999 pp 155-179

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FUNCcedilAtildeO PERSONALIDADE EM DEVIR ndash UM OLHAR DA TEORIA DO

SELF

Fabio Henrique Medeiros Bogo1

RESUMO A partir da Teoria do Self em articulaccedilatildeo com as contribuiccedilotildees da psicanaacutelise e do escrutiacutenio anticapitalista de Deleuze e Guattari lanccedila-se um olhar ontoloacutegico-gestaacuteltico sobre o sujeito que outrora tido como estruturado teve o primado de sua racionalidade destronado pelas revoluccedilotildees de pensamento do seacuteculo XX Numa dinacircmica anaacuteloga agrave noccedilatildeo Deleuziana de ritornelo o Self estabelece laccedilos com o Outro no processo de contato como efeito tardio estas experiecircncias satildeo registradas linguiacutestica e conceitualmente compondo totalidades de sentido agraves quais o Self possa se identificar O que se produz eacute algo que se pode nomear como Personalidade que opera como funccedilatildeo de devir e natildeo como estrutura fixa exceto nos casos em que arbitrariamente se cristaliza com fins de evitaccedilatildeo do contato Palavras-chave Self personalidade ritornelo ontologia ABSTRACT Through the Theory of Self in articulation with the contributions of psychoanalysis and the anti-capitalist scrutiny of Deleuze and Guattari the article depicts an ontological-gestaltic view over the subject which otherwise conceived as structured has had the primacy of its rationality dethroned by the revolutions of thought of the 20th century By means of dynamics which are similar to Deleuzersquos notion of ritornello the Self establishes bonds with the Other during the process of contact as a late effect these experiences are registered linguistically and conceptually in a way that produces totalities of meaning to which it can identify What is produced is something that might be named as Personality which operates as a function of becoming and not a fixed structure with the exception of the cases in which it arbitrarily crystallizes as a means to avoid contact Keyword Self personality ritornello ontology

Introduccedilatildeo

As antropologias filosoacuteficas construiacutedas no iacutenterim da efervescecircncia poacutes-

modernista do seacuteculo XX denotavam uma distinta orientaccedilatildeo revisionista com relaccedilatildeo agraves

convencionadas estruturas de personalidade psicologistas Uma vez que a ldquocrise das

ciecircncias europeiasrdquo havia sido denunciada por Husserl2 e principalmente apoacutes as duas

1 Psicoacutelogo Mestre e Doutorando em Filosofia (UFSC) pela linha de pesquisa Ontologia Mente e Metapsicologia Orientando do Prof Dr Marcos Joseacute Muumlller fabiohbogogmailcom 2 HUSSERL A crise das ciecircncias europeias e a fenomenologia transcendental

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grandes guerras mundiais evidenciarem que a era moderna da razatildeo natildeo fora capaz de

neutralizar o afatilde humano pelo conflito jaacute natildeo se podia ignorar a necessidade de lanccedilar

novo olhar aos modos de produccedilatildeo de saber e de cultura As teorias criacuteticas surgidas em

Frankfurt e os gritos estudantis de Maio de 1968 na Franccedila foram fenocircmenos progecircnitos

destes tempos de inegaacutevel revoluccedilatildeo de pensamento e natildeo foi diferente com as teorias

sobre a identidade O desafio consistia em elaborar uma articulaccedilatildeo teoacuterica que

prescindisse em absoluto da loacutegica positivista de modo a natildeo incorrer em uma tipificaccedilatildeo

remanescente das teorias humorais do periacuteodo medieval com classificaccedilotildees

personaliacutesticas circunscritas na loacutegica autorreferente de suas estruturas Este caminho

seria rejeitado em favor de uma nova noccedilatildeo de Personalidade que contemplasse a gecircnese

da identidade na participaccedilatildeo coletiva das representaccedilotildees agraves quais o sujeito se identifica

Mesmo o conceito de representaccedilatildeo precisou ser ressignificado ao menos no

tangente de seu papel constitutivo da identidade sob pena de ser equivocadamente

tomada por metaacutefora as representaccedilotildees natildeo configuram meras abstraccedilotildees ideativas

sendo antes simulaccedilotildees que o sujeito engendra em suas apropriaccedilotildees de sentido

realidades construiacutedas simbolicamente e experienciadas por inteiro com todo o corpo

Mais precisamente as simulaccedilotildees operam a escrita das identificaccedilotildees no proacuteprio real O

sujeito que ldquofingerdquo ser um danccedilarino nesse processo danccedila de verdade A simulaccedilatildeo eacute

nesta analogia de Deleuze e Guattari3 uma re-produccedilatildeo uma coacutepia que deveacutem real A

literatura recente das ciecircncias humanas e da filosofia particularmente apoacutes a ldquorevoluccedilatildeo

copernicana inacabadardquo4 operada pela psicanaacutelise de Freud vem tateando a ideia do fim

da metafiacutesica e da superaccedilatildeo do sujeito autocontido do Eu (Moi) que eacute ldquoeu substancialrdquo

do Ser capaz de dobrar-se sobre si e adquirir certeza de si Em lugar disso assume-se um

ser que recebe seu sentido inteligiacutevel no seio da imersatildeo cultural isto equivale a dizer que

o sujeito foi tornado enunciado e substituiacutedo pela Arte Ciecircncia Religiatildeo Economia

Poliacutetica Miacutedia ndash enfim pela cultura

Os fatores supracitados indicam possiacutevel convergecircncia em uma figura de

sujeito que passa a ser concebida na fronteira de contato do campo de presenccedila

intersubjetivo do desejo onde as vivecircncias satildeo moldadas pela atualidade da experiecircncia

na realidade imanente Trata-se de uma ideia cuja fundaccedilatildeo estaacute agraves avessas ldquode fora para

dentrordquo no sentido ambiente-organismo e em que a Personalidade eacute tomada jaacute natildeo mais

como estrutura mas como funccedilatildeo de estabelecimento de laccedilo social Eacute assim que opera

3 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p121 4 LAPLANCHE La reacutevolution copernicienne inacheveacutee

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por exemplo a teoria do Self construiacuteda por Fritz Perls Ralph Hefferline e o

fenomenoacutelogo Paul Goodman5 para sustentar a praacutetica cliacutenica da Gestalt-terapia6

Por oferecer uma leitura temporal da experiecircncia do sujeito que contemple

tanto sua participaccedilatildeo na realidade atual quanto a copresenccedila das inatualidades de seus

afetos e seus projetos-de-ser tanto a vivecircncia mais iacutentima de seu estranhamento quanto a

sua partilha na complexa trama do patrimocircnio de significaccedilotildees da humanidade tanto sua

existecircncia na qualidade de organismo em contato com o ambiente visando crescimento e

conservaccedilatildeo condiccedilatildeo que ele compartilha com toda a biosfera terrestre quanto sua

condiccedilatildeo particular de Ser posto-em-questatildeo e submetido agrave marca indeleacutevel da cultura a

teoria do Self seraacute utilizada aqui como chave maior de anaacutelise A partir dela eacute que seratildeo

estabelecidas as interlocuccedilotildees com as demais contribuiccedilotildees aqui tomadas de empreacutestimo

para matizar a diversidade que a anaacutelise requer procurando manter viva a voz que as

profere sem forccedilar uma siacutentese neutralizadora das diferenccedilas A teoria do Self eacute inclusiva

e heterogecircnea nascida ela proacutepria na confluecircncia da psicanaacutelise da fenomenologia e da

Gestalttheorie e a aceitaccedilatildeo do conflito aberto eacute sua parte integrante Somente pela sua

assincronia eacute que um todo gestaacuteltico7 logra preservar a multiplicidade da experiecircncia de

ser

Dimensatildeo reflexiva do sistema-funccedilatildeo self a personalidade

Parte da riqueza da teoria do Self construiacuteda por Perls Hefferline e Goodman

diz respeito agrave possibilidade de contemplar o sujeito a partir de pontos de vista distintos

Por meio da anatomofisiologia chega-se a um sujeito como conjunto das funccedilotildees de

percepccedilatildeo propriocepccedilatildeo musculatura motricidade autorregulaccedilatildeo organiacutesmica etc

que natildeo eacute menos factiacutevel que uma definiccedilatildeo da ordem de uma psicodinacircmica funcional ndash

funccedilotildees de Id Ego e Personalidade ndash ou temporal ndash relacionada agraves etapas do processo de

contato distintas apenas com fins elucidativos Em suma conceber o sujeito como um

gestalt eacute admitir que todos estes pontos de vista tornem manifesta uma ou outra dimensatildeo

5 PERLS Fritz HEFFERLINE Ralph GOODMAN Paul Gestalt-terapia 6 No decorrer deste texto os autores seratildeo referenciados como ldquoPHGrdquo para fins de praticidade 7 A noccedilatildeo mereoloacutegica intencionada no uso do termo alematildeo ldquogestaltrdquo de difiacutecil traduccedilatildeo eacute a de uma totalidade composta por partes assinteacuteticas alternando o status de figura e fundo em funccedilatildeo da mirada do observador cuja participaccedilatildeo eacute sine qua non neste processo Atentar para um dos aspectos deste todo eacute conferir-lhe prioridade e evidenciaacute-lo como ldquofigurardquo enquanto os demais mantecircm o status de ldquofundordquo Da mesma forma apreender intencionalmente um ldquotodordquo eacute perder de vista as nuances de suas ldquopartesrdquo componentes e vice-versa

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deste sujeito sem jamais esgotaacute-lo ou tampouco estabelecer muacutetua complementaridade

Porquanto seja ontologia a teoria do Self eacute inexoravelmente plural ndash e paradoxalmente

o Self eacute o integrador o correlato da unidade sinteacutetica Kantiana Em concordacircncia com a

letra de Merleau-Ponty em sua leitura de Kurt Goldstein8 o ldquoeurdquo do Self eacute um ldquoeu-

engajadordquo uma vez que

[hellip] a consciecircncia projeta-se em um mundo fiacutesico e tem um corpo assim como ela se projeta em um mundo cultural e tem haacutebitos porque ela soacute pode ser consciecircncia jogando com significaccedilotildees dadas no passado absoluto da natureza ou em seu passado pessoal e porque toda forma vivida tende para uma certa generalidade seja a de nossos haacutebitos seja a de nossas ldquofunccedilotildees corporaisrdquo 9

A teoria do Self trata de um corpo de atos ndash o da anatomia e da fisiologia

capaz de respostas sensoriais e motoras ndash que eacute atravessado por um corpo outro preacute-

pessoal o corpo de haacutebitos Ambos corpo anatomofisioloacutegico e corpo habitual se

expressam no contato e a impessoalidade dos haacutebitos garante uma perspectiva de falta

(de sentido) Encobrindo-os estaacute a dimensatildeo antropoloacutegica Imaginaacuteria do contato alccedilada

em significaccedilotildees Eis a relaccedilatildeo com a noccedilatildeo de corpo-sem-oacutergatildeos como encontrada

originalmente na obra de Antonin Artaud10 de um corpo uacutenico organismo preacute-reflexivo

que pulsa e contata antes de ser dilacerado por sua ldquofragmentaccedilatildeo em oacutergatildeosrdquo uma

referecircncia agrave sectarizaccedilatildeo em conceitos do intelecto Eacute assim que Artaud conclui seu

manifesto ldquoPara acabar com o julgamento de Deusrdquo transmitido pelo raacutedio em 1948

O homem eacute enfermo porque eacute mal construiacutedo Temos que nos decidir a desnudaacute-lo para raspar esse animaluacuteculo que o corroacutei mortalmente 2 deus e juntamente com deus os seus oacutergatildeos Se quiserem podem meter-me numa camisa de forccedila mas natildeo existe coisa mais inuacutetil que um oacutergatildeo Quando tiverem conseguido um corpo sem oacutergatildeos entatildeo o teratildeo libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade Entatildeo poderatildeo ensinaacute-lo a danccedilar agraves avessas como no deliacuterio dos bailes populares e esse avesso seraacute seu verdadeiro lugar

Na medida em que eacute composta de objetos do conhecimento que o sujeito

agrega e compotildee para tecer uma sorte de discurso sobre si de certo modo a funccedilatildeo

Personalidade eacute construiacuteda agrave maneira de uma narrativa ela eacute naturalmente uma

construccedilatildeo tardia do processo de contato que eacute posterior agrave apropriaccedilatildeo linguiacutestico-

8 O neurologista e psiquiatra Kurt Goldstein foi uma das mais importantes influecircncias para o casal Fritz e Laura Perls na ocasiatildeo da criaccedilatildeo da Gestalt-terapia e da Teoria do Self em conjunto com Paul Goodman 9 MERLEAU-PONTY Fenomenologia da percepccedilatildeo p192 10 ARTAUD Antonin Para acabar com o julgamento de Deus p42

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reflexiva do que foi experienciado em ato e que se presta agrave participaccedilatildeo na comunidade

de sentidos da cultura Em outras palavras o que a funccedilatildeo Personalidade produz eacute ldquouma

formaccedilatildeo do Self por uma atitude social compartilhadardquo11 Na medida em que deveacutem o

Self ndash de cuja integralidade participam tambeacutem o corpo de haacutebitos e a funccedilatildeo de ato ndash eacute

uma poesia arriacutetmica e fadada agrave incompletude Em comparaccedilatildeo a ldquopessoardquo que resulta

do trabalho da Personalidade eacute uma prosa razoavelmente inteligiacutevel

Ademais dentre tais muacuteltiplos vieses possiacuteveis a cliacutenica gestaacuteltica desde o

princiacutepio se apresentou como uma empresa de atenccedilatildeo agrave awareness isto eacute agrave emergecircncia

de excitamentos no fundo de passado e a formulaccedilatildeo de desejos de protensatildeo futura a

partir das atualidades O fluxo de awareness se traduz como a proacutepria criaccedilatildeo (protensatildeo

e realizaccedilatildeo) e destruiccedilatildeo (assimilaccedilatildeo e repeticcedilatildeo) de gestalten de maneira quase anaacuteloga

agrave dinacircmica das pulsotildees de vida e de morte A awareness sensorial manifesta-se como

dinacircmica de conservaccedilatildeo a assimilaccedilatildeo da dimensatildeo de ldquomais-gozarrdquo de cada ato e sua

repeticcedilatildeo como haacutebitos motores ou verbais que natildeo se confundem com a memoacuteria nem

com os sentimentos do ego psicofiacutesico substanciado pois tratam do atravessamento do

corpo ldquoporosordquo do sujeito por um passado impessoal da ordem do gozo como outrem

sem motivo ou criteacuterios de manifestaccedilatildeo precisos e que soacute se deixam apreender a

posteriori pelo rastro de excitamento que deixam no corpo A awareness deliberada por

sua vez manifesta-se como dinacircmica de crescimento as accedilotildees individuais respostas

motoras e verbais orientadas pelas inatualidades de passado habitual e futuro

possibiliacutestico constituem uma totalidade presuntiva uma gestalt sob a forma de desejo

por ser o correlato atual do contato a awareness deliberada daacute abertura para a experiecircncia

individual do sujeito unitaacuterio sempre dinacircmica e em devir orientada no sentido de um

realizar-se12

Na dinacircmica do desejo o sujeito vivencia um todo presuntivo que representa

uma representaccedilatildeo futura que o sujeito viraacute-a-ser Haacute neste apanhado imbuiacutedo de

inteligibilidade um terceiro desdobramento tardio na forma da awareness reflexiva

proacuteprio agrave condiccedilatildeo humana pois depende da faculdade de consciecircncia reflexiva e da

aquisiccedilatildeo da linguagem Este desdobramento tem a ver com os juiacutezos intelectuais que o

sujeito estabelece sobre suas proacuteprias sensaccedilotildees e accedilotildees Como dinacircmica de

autoconsistecircncia imaginaacuteria a awareness reflexiva envolve o processo de ldquodar-se contardquo

11 PHG Gestalt-terapia p123 12 MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Cliacutenicas gestaacutelticas sentido eacutetico poliacutetico e antropoloacutegico da teoria do Self p32

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ou ldquoter consciecircnciardquo de si em correspondecircncia com a intencionalidade categorial de

Husserl que resulta na construccedilatildeo de uma ficccedilatildeo inteligiacutevel sobre a experiecircncia ontoloacutegica

do sujeito Eis a dimensatildeo do fluxo de awareness que receberaacute maior ecircnfase em uma

observaccedilatildeo do sujeito do ponto de vista de sua Personalidade

As instacircncias de existecircncia do sujeito descrevem essencialmente trecircs

funccedilotildees de operaccedilatildeo intencional temporal ou funccedilotildees do Self correspondentes agraves trecircs

formas de awareness sensorial na Funccedilatildeo Id relativa agrave copresenccedila do excitamento

deliberada na funccedilatildeo Ato relativa agrave resposta motora desejante e reflexiva na funccedilatildeo

Personalidade relativa agrave atribuiccedilatildeo de unidade da experiecircncia Estas natildeo satildeo senatildeo trecircs

perspectivas para um fenocircmeno comum e soacute se distinguem a partir dos marcos

diferenciais que o observador elege como figura Sob este paradigma torna-se

incongruente pensar em qualquer coisa que se assemelhasse a estruturas egoacuteicas ou

personaliacutesticas do Self salvo como construccedilatildeo tardia e derivativa do awareness com fins

de estabelecimento de laccedilos sociais Deveras haacute pouco lugar para a ipseidade identitaacuteria

na teoria do Self Se a funccedilatildeo Id eacute caracterizada pela generalidade no acircmbito das formas

ou haacutebitos na funccedilatildeo Personalidade por sua vez satildeo os conteuacutedos produzidos que satildeo

compartilhados em caraacuteter de generalidade Aleacutem disso se o Id confere ambiguidade ao

sujeito a Personalidade lhe confere humanidade valores e cidadania seu status de

semelhante A awareness deliberada da funccedilatildeo de ato possibilita o reconhecimento da

ipseidade e da perspectiva de autoria de comportamento mas esta experiecircncia eacute efecircmera

a awareness reflexiva constitutiva da funccedilatildeo Personalidade eacute quem lhe confere

durabilidade e constroacutei a narrativa identitaacuteria do eu

Na epocheacute Husserliana apoacutes isolar todas as contingecircncias da realidade

empiacuterica o sujeito chegaria ao ldquosi-mesmo incontestaacutevelrdquo que processa todas as vivecircncias

um ser coincidente consigo mesmo monaacutedico e auto-evidente Husserl concebeu em sua

doutrina fenomenoloacutegica uma instacircncia que ocupasse o lugar de epicentro da visada

noeacutetico-noemaacutetica o ego transcendental dotado de um vieacutes apodiacutetico a partir do qual

observaria os fenocircmenos como espectador imparcial sem jamais confundir-se com os

objetos visados Ele operaria como polo sinteacutetico de toda a experiecircncia o que significa

que articularia a organizaccedilatildeo de todos os vividos ordenando-os em um sistema orgacircnico

transcendente A identidade uacuteltima para Husserl estaria mais aleacutem da imanecircncia da

inserccedilatildeo fenotiacutepica no lebenswelt ou dizendo o mesmo pelo seu avesso a experiecircncia

concreta natildeo seria capaz de afetar a transcendecircncia do ldquoeurdquo Assim o que se chama de

subjetividade monaacutedica em Husserl indica a soma ou confluecircncia entre o Ego como

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funccedilatildeo sintetizadora da experiecircncia e as informaccedilotildees personaliacutesticas dos vividos retidos

(que seriam anaacutelogas agraves representaccedilotildees que posteriormente PHG atribuiriam agrave funccedilatildeo

Personalidade)

A questatildeo das instacircncias imanentes e transcendentes do eu eacute tangenciada na

leitura de Deleuze sobre filosofia Kantiana da razatildeo a partir do enunciado filosoacutefico ldquoEu

eacute um outrordquo Deleuze13 mostra como Kant agrave guisa de apreciaccedilatildeo criacutetica do Cogito

Cartesiano estabelece um ldquoeurdquo ativo capaz de afetar o tempo e o espaccedilo e que por sua

vez determina a existecircncia de um ldquoeurdquo que muda no tempo e apresenta a cada instante

um grau de consciecircncia Tem-se entatildeo o Eu (Moi) como aspecto passivo e autorreferencial

de um organismo reconhece a si na passagem do tempo e o Eu (Je) tido como funccedilatildeo de

ato que determina no tempo a existecircncia desse organismo Eacute soacute a partir do Eu (Moi) que

podemos nos reconhecer e mesmo assim nos damos conta dele quase como espectadores

sofrendo a estranheza da determinaccedilatildeo por esse Eu (Je) numa condiccedilatildeo de alteridade que

nos soa como outro Os juiacutezos esteacuteticos seriam o ldquoponto fora da curvardquo na epistemologia

de Kant jaacute que o que neles se obteacutem natildeo eacute um objeto de conhecimento mas antes um de

complacecircncia e prazerdesprazer pelo qual eacute responsaacutevel a proacutepria unidade indeterminada

ndash em ldquolivre e harmonioso jogordquo ndash das faculdades do acircnimo (Gemuumltskrafte)14

Personalidade em ritornelo

Do fato de ser o Eu (Moi) entendido como passivo natildeo se pode derivar que

seja estaacutevel ou estaacutetico Este natildeo eacute senatildeo o resultado de um sem-nuacutemero de

ressignificaccedilotildees das vivecircncias do organismo em sua experiecircncia cotidiana vivecircncias que

devecircm registros de sentido que na teoria de Deleuze caracterizam as siacutenteses conjuntivas

Estas satildeo incorporadas na biografia do sujeito que passa a saber algo de si A dimensatildeo

personaliacutestica eacute caracterizada por um movimento de adoccedilatildeo e abandono de unidades

discursivas investidas de potencial identitaacuterio Deleuze e Guatarri tratam deste fenocircmeno

em termos geoeacuteticos15 isto eacute sob a forma de desterritorializaccedilatildeo harr reterritorializaccedilatildeo de

espaccedilos existenciais e o denominam de ritornelo Tais espaccedilos existenciais logram a

funccedilatildeo antropoloacutegica de viabilizar inobstante de maneira absolutamente transitoacuteria e

13 DELEUZE Criacutetica e Cliacutenica p43 14 KANT Criacutetica da faculdade do juiacutezo sect9 p54 15 Uma etimologia do termo revela os radicais ldquogeacuteo-ldquo referindo-se agrave distribuiccedilatildeo espacial pela terra e ldquoecircthosrdquo grafado ldquoήθοςrdquo que significa ldquomoradardquo ou ldquohabitaccedilatildeordquo O esclarecimento eacute vaacutelido para que natildeo haja confusatildeo com o termo oriundo do radical ldquoeacutethosrdquo grafado έθος significando ldquocostumerdquo

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efecircmera um grau de autorreconhecimento minimamente suficiente para que o sujeito decirc

conta da participaccedilatildeo cotidiana na realidade social

Tradicionalmente uma marcaccedilatildeo musical que marca o refratildeo de uma melodia

considerada o aacutepice de uma composiccedilatildeo e que se repete algumas vezes na partitura o

ritornelo eacute utilizado na filosofia de Deleuze para descrever uma relaccedilatildeo de busca alternada

por seguranccedila e por novidade no mundo eacute a criaccedilatildeo de um plano de existecircncia sobre a

indiferenciaccedilatildeo do caos a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio que faccedila as funccedilotildees de ldquomoradardquo

provisoacuteria e subsequentemente um lanccedilar-se no mundo que abre espaccedilo para a

improvisaccedilatildeo e o ajustamento criativo em face do acontecimento Durante a seacuterie de

entrevistas que Deleuze concedeu a Claire Parnet entre 1988 e 1989 lanccedilada

posteriormente em viacutedeo e transcriccedilatildeo como ldquoLrsquoAbeacuteceacutedaire de Gilles Deleuzerdquo o autor

comenta

Criamos ao menos um conceito muito importante o de ritornelo Para mim o ritornelo [] estaacute ligado ao problema do territoacuterio da saiacuteda ou entrada ao territoacuterio ou seja ao problema da desterritorializaccedilatildeo Volto para o meu territoacuterio que eu conheccedilo ou entatildeo me desterritorializo ou seja parto saio do meu territoacuterio16

Na mesma ocasiatildeo Deleuze define o ritornelo em termos muitos simples

como um ldquotraacute-laacute-laacuterdquo um cantarolar tranquilizante que se murmura quando em casa

durante os afazeres domeacutesticos ou nos casos opostos quando se estaacute fora de casa

cantarola-se para aplacar a tensatildeo de estar voltando da rua ao fim do dia de trabalho ou

entatildeo partindo (para onde) Em suma a incessante dinacircmica de ocupaccedilatildeo e desocupaccedilatildeo

de territoacuterios existenciais o tracircnsito alternado em meio agraves inuacutemeras totalidades de sentido

compartilhadas pela linguagem eacute o que atribui a qualquer coisa que se possa pensar como

uma personalidade a natureza de algo vazado e centriacutefugo A autocontinecircncia imaginaacuteria

prenunciada pela territorializaccedilatildeo nunca se faz completa pois eacute sempre atravessada por

I) novas intensidades da produccedilatildeo desejante isto eacute posteriores situaccedilotildees concretas de

contato deste organismo com o ambiente de modo a operar a criaccedilatildeo de novas articulaccedilotildees

de realidade e II) por um universo de haacutebitos ou excitamentos preacute-pessoais

experienciados pelo sujeito como alteridade radical agrave qual ele eacute passivo Neste sentido o

conceito do movimento de ritornelo estaacute em confronto direto com a ideia da fixidez

personaliacutestica estruturada e autocontida como paracircmetro de regularidade Nos termos da

16 DELEUZE O abecedaacuterio de Gilles Deleuze Seccedilatildeo ldquolsquoOrsquo de lsquoOacuteperarsquordquo

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Teoria do Self isto equivale simplesmente a afirmar que a funccedilatildeo Personalidade estaacute em

articulaccedilatildeo com as demais funccedilotildees de Ato e de Id

Independentemente de se analisar do ponto de vista de algo que falte ao

territoacuterio de sentido do sujeito como faz a psicanaacutelise ou do ponto de vista de algo que

lhe sobre que sobrevenha ao territoacuterio como acoplamento maquiacutenico excessivo

obrigando-o a uma reconfiguraccedilatildeo o efeito eacute o mesmo compelido pela protensatildeo a uma

virtualidade o sujeito se percebe em anguacutestia tendo que descentrar-se e vir a ocupar uma

nova posiccedilatildeo no mundo Ora nada haacute aqui para condenar ateacute porque o que o territoacuterio

tem de reconfortante tem tambeacutem de opressivamente ansiogecircnico Da mesma forma se

a desterritorializaccedilatildeo eacute promotora de anguacutestia ela corresponde todavia ao movimento

autopoieacutetico do proacuteprio bios que permite em seu processo autorreprodutivo a agecircncia do

caos e da transformaccedilatildeo

A situaccedilatildeo vem a se agravar entretanto nos casos em que o eixo

desterritorializante do ritornelo se torna a diretriz predominante A perda de polos

territoriais de seguranccedila e autorreconhecimento eacute abordada por PHG17 no texto original

pelo uso da palavra misery traduziacutevel como ldquoafliccedilatildeordquo ou ldquosofrimentordquo Em outras

palavras a experiecircncia de misery eacute provocada pela ldquofalta de um lugar eacutetico em que

possamos estabelecer relaccedilotildees poliacuteticas e antropoloacutegicasrdquo18 Eis o momento da elaboraccedilatildeo

de luto pelos territoacuterios perdidos e do resgate do movimento de ritornelo em seu eixo

oposto o da reterritorializaccedilatildeo ndash incumbecircncia dos membros da rede de apoio do sujeito

em sofrimento como familiares profissionais e demais viacutenculos de afeto Assim acontece

na produccedilatildeo da subjetividade quando se volta para o territoacuterio que se supunha conhecido

o que se experimenta eacute uma novidade O sujeito muda o territoacuterio muda e o paradoxo eacute

que mesmo a busca pela constacircncia se daacute na mudanccedila jaacute que a geoeacutetica eacute um plano-triacuteade

de experimentaccedilatildeo prudecircncia e improvisaccedilatildeo19

Este modelo geoeacutetico encontra consonacircncia na obra de PHG (1951) que

atribuem natildeo apenas agrave gestalt-terapia mas agrave proacutepria psicologia a funccedilatildeo de investigar a

operaccedilatildeo da fronteira de contato no campo organismoambiente Sejam os conceitos e

terminologias abandonados e fiquem os fenocircmenos aos quais eles se referem de fato a

psicologia se encarrega da relaccedilatildeo dos sujeitos uns com os outros e com o mundo natural

17 PHG Gestalt-terapia 18 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p284 19 COSTA O ritornelo em Deleuze- Guattari e as trecircs eacuteticas possiacuteveis In II Seminaacuterio Nacional de Filosofia e Educaccedilatildeo Confluecircncias 2006 Santa Maria

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De todo modo agrave diferenccedila das perspectivas estruturalistas a gestalt-terapia natildeo funda sua

ontologia sobre a fixaccedilatildeo identitaacuteria de um ego circunscrito em si proacuteprio O ldquoeu

reconheciacutevelrdquo da gestalt-terapia natildeo eacute uma instacircncia estaacutetica que tendo atingido a

maturaccedilatildeo natildeo mais se transformaria quando muito expandiria aqui e ali e que atuaria

como mera depositaacuteria das experiecircncias que vive e assimila Ao contraacuterio trata-se de uma

instacircncia intermitente em constante atualizaccedilatildeo de modo a ser jamais a mesma

A funccedilatildeo Personalidade esta funccedilatildeo de individuaccedilatildeo ontoloacutegica

territorializante eacute ldquoa proacutepria presenccedila do outro social como mediaccedilatildeo geneacuterica e

determinada entre dois atos distintosrdquo20 A mediaccedilatildeo geneacuterica de que se fala eacute da ordem

da comunicaccedilatildeo ao outro social nas palavras de PHG21 a Personalidade eacute o correlato

descritiacutevel ou reacuteplica verbal das vivecircncias de contato do Self Precisamente por esta razatildeo

a Personalidade eacute dinacircmica e mutaacutevel ela estaacute em funccedilatildeo dos atravessamentos habituais

e eacute constantemente sobrescrito pelas criaccedilotildees da funccedilatildeo de ato Em suma ela funciona

reescrevendo a si mesma em consonacircncia com a maneira como Lacan22 no Seminaacuterio

XX descreve o domiacutenio Imaginaacuterio que ldquonatildeo para de se escreverrdquo Porquanto funccedilatildeo a

Personalidade eacute movida pelas aacuteguas do rio de Heraacuteclito que seguem dia apoacutes dia um

curso semelhante ndash permitindo a um observador constatar que ainda se trata do mesmo

rio ndash sem jamais permanecer exatamente idecircntico em dois momentos seguidos ela opera

dinamicamente pela coadunaccedilatildeo dos objetos de realidade com os quais o sujeito se

identifica um emprego a preferecircncia por praia ou montanha a apreciaccedilatildeo por um artista

uma nacionalidade um hobby um aprendizado um juiacutezo loacutegico23

A Personalidade eacute o resultado do contato social criativo Os atos que

desempenhamos satildeo recebidos pelo outro social ndash e tambeacutem por noacutes mesmos na

alteridade do Eu (Je) que eacute capaz de observar o Eu (Moi) de uma perspectiva externa ndash

como objetos do intelecto produccedilotildees duraacuteveis da ordem do Imaginaacuterio que permanecem

como identidades As criaccedilotildees da funccedilatildeo de ato convertem-se em significantes

estabelecidos como pensamento Nesse sentido o outro social com o qual a Personalidade

dialoga funciona como ldquoespelho dos atosrdquo24 uma vez mais ecoando a descriccedilatildeo do

20 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p286 21 PHG Gestalt-terapia 22 LACAN O Seminaacuterio livro XX Mais ainda p127 23 Natildeo obstante do fato da constituiccedilatildeo subjetiva dos organismos caracterizar-se como devir processual natildeo se pode derivar que ele seja ldquoincompletordquo o sujeito eacute por inteiro valendo-se de quaisquer recursos dos quais disponha na atualidade para (re)construir-se agrave medida que a demanda do Outro se transmuta 24 MULLER-GRANZOTTO Psicose e Sofrimento p286

88

domiacutenio Imaginaacuterio que Lacan traduz como ldquoreflexo do semelhante ao semelhanterdquo 25

Isto serve para alertar que este processo natildeo pode ser tomado do ponto de vista solipsista

apenas a partir dos laccedilos sociais eacute que a Personalidade faz sentido jaacute que eacute o relato (ao

Outro) das vivecircncias a partir das representaccedilotildees intersubjetivas (entre eu e o Outro) e por

meio de significaccedilotildees linguiacutesticas (na liacutengua do Outro) Natildeo se trata de um evento

privado subjetivo mas do resultado de interaccedilotildees e viacutenculos estabelecidos no ambiente

e determinados por este mesmo ambiente em suma a constituiccedilatildeo da personalidade eacute um

fenocircmeno de aprendizagem

A presenccedila do outro social na gecircnese da dinacircmica e da fixidez personaliacutestica

Na medida em que toma parte do continuum da awareness o Self natildeo se

encontra nem na voz ativa entendendo o sujeito como autor da accedilatildeo nem tampouco na

voz passiva em que o sujeito tenha sofrido a accedilatildeo sobre si No entendimento dos gestalt-

terapeutas o Self ocorre na ldquovoz meacutediardquo em que o sujeito ldquoexperimenta a si mesmo na

accedilatildeordquo26 O que parece ao menos eacute que os autores admitem a ldquovoz meacutediardquo como um eixo

de equiliacutebrio ideal do qual o Self frequentemente se desvia em virtude de seus dispositivos

de autoconquista ou autossabotagem Eacute no Self bem-definido repleto de identificaccedilotildees e

alienaccedilotildees que lhe satildeo preciosas que se percebe a disfunccedilatildeo O ego cristalizado boicota

a novidade e a espontaneidade e preza pela autoconsistecircncia pela fixidez personaliacutestica

Embora a noccedilatildeo tradicional de uma estrutura personaliacutestica venha a ser

ressignificada em vista de uma funccedilatildeo Personalidade fluida este novo construto estaacute

longe de contemplar a integridade do estar-no-mundo de um organismo Falar de um eu-

mesmo ndash ou Self ndash eacute falar de um sistema de funccedilotildees de contato do presente transiente

concreto um fluxo de conscientizaccedilatildeo ndash ou de awareness Nesse iacutenterim a funccedilatildeo

Personalidade natildeo eacute senatildeo o paraacutegrafo final de uma declaraccedilatildeo ontoloacutegica extensa eacute a

dimensatildeo mais facilmente acessiacutevel e comunicaacutevel do sistema Self natildeo soacute para outrem

como para o proacuteprio organismo simplesmente porque se fundamenta na awareness

reflexiva do contato que o organismo estabelece com o ambiente atual ao seu redor Self

eacute uma agecircncia de crescimento por meio do contato portanto se eacute de fato necessaacuterio

atribuir-lhe uma localizaccedilatildeo toacutepica para compreensibilizaacute-lo natildeo se localizaraacute este

sistema no interior intimista do sujeito mas na sua fronteira de contato com o mundo

25 LACAN O Seminaacuterio livro XX Mais ainda p111 26 PHG Gestalt-terapia p43

89

externo pertencendo a ambos ambiente e organismo E natildeo poderia ser diferente

sabendo-se que o que fazemos durante todo o percurso da vida eacute experimentar eventos no

ambiente externo e participar deles doando-lhes o que temos a oferecer a saber o efeito

destas experiecircncias mesmas em nosso proacuteprio corpo passivo e nosso poder ativo e

desejante de manipulaccedilatildeo e produccedilatildeo da realidade

A passagem do ego monaacutedico para esse Self tornado funccedilatildeo de ajustamento ndash

produccedilatildeo ndash no mundo um recorte de siacutenteses conjuntivas da intrincada rede de

multideterminaccedilotildees descentralizadas e emergentes sugere que o foco da anaacutelise

ontoloacutegica do antropos seja deslocado para esse feixe de fenocircmenos subjetivos que nos

compotildee As construccedilotildees identitaacuterias todas funcionam como simulacros da verdade

existencial subjetiva sem que nenhuma delas a esgote ou menos ainda funcione como

eidos egoacuteico ldquoQual nosso rosto genuiacutenordquo perguntam PHG sabendo que natildeo seria outra

coisa senatildeo ldquouma resposta a uma situaccedilatildeo presenterdquo 27 Contatar a realidade presente e

disponibilizar a emergecircncia de gestalten permitindo-se devir eacute o modo gestaacuteltico de

responder agrave convocaccedilatildeo Nietzscheana do ldquotorna-te quem tu eacutesrdquo ndash e mesmo esta eacute

enganadora quando concentra sua awareness na situaccedilatildeo presente o organismo pulveriza

as certezas do passado em possibilidades futuras e contempla o potencial destas se

realizarem ldquoSeja vocecirc mesmordquo ou ldquosejardquo coisa qualquer eacute no melhor dos casos uma

exortaccedilatildeo ansiogecircnica agrave identificaccedilatildeo com uma das possibilidades futuras ainda

indefinidas ldquotorna-te quem tu eacutesrdquo no pior dos casos eacute uma demanda por

previsibilidade personaliacutestica por meio da fixaccedilatildeo em identificaccedilotildees passadas ldquoseja

aquilo que sempre esperei que vocecirc fosserdquo

A vida social de contato pleno gera integraccedilatildeo de valores e identificaccedilotildees

pertinentes para o sujeito mas no contato interrompido este imita e repete de forma

alienada Traccedilos personaliacutesticos crenccedilas valores escolhas frequentemente satildeo vividas

como estados de crescimento que um dia foram atuais mas perduraram aleacutem de seu

tempo ateacute que natildeo sejam mais funcionais Quando satildeo enfim abandonados com certo

desprezo ou rejeiccedilatildeo violenta denotam que a situaccedilatildeo ainda estaacute inacabada PHG afirmam

que vivecircncias passadas que foram resolvidas surgem como memoacuterias serenas sem

acarretar grande mobilizaccedilatildeo de tensatildeo por jaacute terem sido integradas ao Self e resolvidas

Via de regra contudo as relaccedilotildees que o sujeito estabelece no meio cultural que viratildeo a

delinear sua constituiccedilatildeo identitaacuteria natildeo satildeo de outra natureza senatildeo intervenccedilotildees sofridas

27 PHG Gestalt-terapia p179

90

por um corpo pelos fluxos da maacutequina-socius que o atravessam de todos os lados desde

o nascimento

Se nos primeiros meses da vida a crianccedila se daacute conta da presenccedila de uma

alteridade ndash o adulto ndash que opera a mediaccedilatildeo contingente dos atos ora oferecendo as

condiccedilotildees para possibilitaacute-los ora coibindo-os por volta dos 18 meses comeccedila a

reconhecer uma outra forma de alteridade que eacute o Outro social das representaccedilotildees e da

linguagem (MUumlLLER-GRANZOTTO 2012a) A aquisiccedilatildeo das formas linguajeiras

permitem agrave crianccedila utilizar seu crescente vocabulaacuterio para construccedilatildeo de unidades de

sentido destinadas a comunicar algo ao semelhante A partir desta etapa a crianccedila pode

entatildeo ingressar neste jogo de interaccedilotildees sociais do qual os adultos participam e identificar

o valor social atribuiacutedo agraves coisas e aos atos isto eacute a demanda por identidade impliacutecita em

cada laccedilo social ldquoHaacute por detraacutes da pergunta dirigida a mim algueacutem que quer saber de

mim e provavelmente um lsquoalgueacutem que sou eursquo por detraacutes da minha respostardquo28

Sua existecircncia motora passa a ter uma autoria uma figura Imaginaacuteria de

referecircncia e de interlocuccedilatildeo entre as demais unidades Imaginaacuterias Satildeo estas outras

unidades isto eacute eacute o olhar do outro social que referenda e legitima a existecircncia da unidade

personaliacutestica Por isso o Outro ndash seja uma pessoa um desenho em um livro ou uma roupa

na vitrine de uma loja ndash cumpre para ela a funccedilatildeo de espelho de confirmaccedilatildeo da

representaccedilatildeo imageacutetica Se eacute proacuteprio do bios que seu crescimento se decirc pela exposiccedilatildeo

agraves contingecircncias ambientais no caso da humanidade a autorregulaccedilatildeo organiacutesmica se

traduz com veemecircncia na exposiccedilatildeo ao feixe de marcas culturais pelos quais os

dispositivos maquiacutenicos de subjetivaccedilatildeo operam a simbolizaccedilatildeo dos corpos Em meio a

essa miriacuteade de universos incorporais de valor as cadeias discursivas (religiosas

poliacuteticas ideoloacutegicas enunciados cientiacuteficos ritornelos ou formas que se repetem etc)

servem para organizar um sentido de identidade mais palpaacutevel delimitar um territoacuterio de

existecircncia reconheciacutevel com fronteiras de ego liacutequidas

Feacutelix Guattari29 aponta como o mapeamento dos territoacuterios existenciais eacute

sentido como marca no corpo e se daacute pela via dos dispositivos maquiacutenicos de

subjetivaccedilatildeo em massa O que se precisa salientar a respeito do maquinismo como

apropriado por Guattari eacute que as maacutequinas subjetivantes tecem a trama social produzem

desejos coletivos forjam afetos comuns e engendram complexas redes de significaccedilatildeo

28 MULLER-GRANZOTTO Marcos Joseacute amp Rosane Lorena Cliacutenicas gestaacutelticas sentido eacutetico poliacutetico e antropoloacutegico da teoria do Self p237 29 GUATTARI Caosmose p60

91

compartilhada Se Nietzsche podia dizer que ldquocada nome da histoacuteria sou eurdquo30 eacute porque

ele assumia a transitoriedade de suas identificaccedilotildees com estes personagens Os nomes

proacuteprios satildeo mais que representaccedilotildees Antes satildeo demarcaccedilotildees territoriais domiacutenios

significantes engendrados pela semiologia dos equipamentos coletivos dos quais a

maacutequina social dispotildee atravessamentos de intensidades diversas que datildeo sentido(s) ao

corpo que operam um efeito sobre a memoacuteria a inteligecircncia a sensorialidade e os afetos

Esta accedilatildeo eacute anterior mesmo a uma semiologia significante os sentidos e as denotaccedilotildees

em princiacutepio escapam ao sentido linguiacutestico comum e funcionam de maneira paralela e

independente entre si A partir das siacutenteses disjuntivas entre as diferentes significaccedilotildees

surge um terceiro termo derivativo A este eacute que se daacute o nome de corpo-sem-oacutergatildeos ou

corpo pleno ou ainda quando se trata da produccedilatildeo social socius Por este terceiro termo

de inicial indiferenciaccedilatildeo eacute que correm os fluxos de intensidades formando planos

imanentes de existecircncia neles eacute que as maacutequinas desejantes operam cortes31 e fazem

distinccedilotildees que datildeo forma aos objetos do mundo

Os equipamentos coletivos satildeo tambeacutem maacutequinas teacutecnico-sociais e a elas

cabe a mesma leitura poliacutetica no tangente agrave virtualidade de sua aplicaccedilatildeo a praacutetica

esportiva endossa a autossuperaccedilatildeo e outorga ao sujeito maior controle sobre seu corpo

tautocronicamente serve de perfeito ldquopatildeo-e-circordquo agrave massa que lhe devota sua atenccedilatildeo e

permanece alheia ao que de fato importa no tracircmite das instacircncias deliberativas A miacutedia

potencializada pela televisatildeo e pela internet horizontaliza o acesso agrave informaccedilatildeo ao

mesmo tempo em que vomita uma abundacircncia de alimento para a banalidade e desobriga

a populaccedilatildeo para seu aliacutevio de decidir por si mesma Assim o eacute para onde quer que se

olhe o sistema educacional as estrateacutegias de planejamento urbano a religiatildeo e mesmo a

arte Esse efeito em si dispotildee de um potencial homogeneizante pois a sociedade

axiomatizada pelo capital precisa atribuir valor de troca agraves suas produccedilotildees Este e aquele

produto precisam ter seus respectivos valores correspondentes a uma mesma unidade de

medida Essa eacute sua poderosa estrateacutegia de apropriaccedilatildeo de toda a produccedilatildeo desejante que

eacute domada homogeneizada e redirecionada no sentido da produccedilatildeo da mais-valia

A homogecircnese alienante no entanto natildeo eacute a uacutenica possibilidade de

investimento para a produccedilatildeo de sujeitos A subjetivaccedilatildeo maquiacutenica tambeacutem pode ter um

potencial emancipatoacuterio promotor de heterogecircnese O que Guattari defende eacute a

30 NIETZSCHE em carta enviada a Jacob Burckhardt em Janeiro de 1889 In ALMEIDA Nietzsche e o paradoxo p 141 31 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p16

92

emancipaccedilatildeo dos territoacuterios fixos tanto para a intervenccedilatildeo social quanto para o contexto

cliacutenico O programa teleoloacutegico de ldquocurardquo por um meacutetodo fixo eacute descartado em favor de

uma perspectiva eacutetico-esteacutetica de promoccedilatildeo da experiecircncia do espontacircneo no campo de

presenccedila cliacutenico O eixo de desterritorializaccedilatildeo do ritornelo subjetivante adquire aqui um

novo sentido cliacutenico uma vez feita a associaccedilatildeo entre crescimento organiacutesmico produccedilatildeo

desejante de realidade e ocupaccedilatildeo de novos territoacuterios de sentido receacutem-inventados

Nesse mesmo sentido a cliacutenica gestaacuteltica esquiva-se de assumir a diacuteade normal-anormal

como ocupaccedilotildees de territoacuterios existenciais identitaacuterios32 Roacutetulos como ldquosaudaacutevelrdquo ou

ldquodoenterdquo satildeo exiacutemias ferramentas de homogeneizaccedilatildeo mas prestam um desserviccedilo como

registros da experiecircncia subjetiva neles natildeo cabe o sujeito Em vez disso a gestalt-terapia

encontra uma alternativa mais parcimoniosa na anaacutelise funcional dos ajustamentos de

contato na fronteira organismo-ambiente e transita por entre o eixo ldquocontato bomrdquo ndash

ldquocontato falhordquo e mesmo nestes casos nas funccedilotildees de defesa supressatildeo isolamento

repeticcedilatildeo etc haacute sempre um aspecto criativo e adaptativo particularmente funcionais

numa sociedade intrinsecamente neuroacutetica como a que aqui se desvela

Natildeo eacute surpresa que a questatildeo da sujeiccedilatildeo agrave demanda impessoal do Outro

social (ldquosejardquo) leve naturalmente ao tema da neurose Sobretudo cabe ressaltar o

seguinte o problema da concepccedilatildeo psicologizante de que o neuroacutetico estaria ldquoprivado de

sua natureza humanardquo e que ela precisaria ser ldquorecuperadardquo eacute justamente o fato de que o

consulente de um processo terapecircutico eacute um sujeito em devir que constroacutei para si

identidades conforme sua conveniecircncia para as demandas ambientais agraves quais esteja

exposto Eis inclusive a justificativa de PHG para o estabelecimento da gestalt-terapia

como uma abordagem terapecircutica natildeo-normativa que estabeleccedila o menos possiacutevel uma

meta a ser atingida A claacutessica explicaccedilatildeo psicanaliacutetica eacute de que o sintoma eacute duplamente

uma defesa contra a vitalidade mas tambeacutem uma demonstraccedilatildeo de vitalidade A questatildeo

eacute que o sintoma eacute tambeacutem um esforccedilo organiacutesmico mas dedicado agrave repressatildeo do proacuteprio

Self ao inveacutes da resoluccedilatildeo de situaccedilotildees inacabadas na atualidade O sintoma eacute constitutivo

da funccedilatildeo Personalidade torna o sujeito autorreferente e reconheciacutevel como haacutebito que

eacute Sobretudo trata-se de uma criaccedilatildeo da funccedilatildeo de ato e de uma expressatildeo da

singularidade do sujeito Destarte a neurose cumpre uma funccedilatildeo em vez de um ldquomal-a-

ser-combatidordquo talvez ela se aproxime mais da ideia de um ldquomal necessaacuteriordquo Os efeitos

negativos da neurose a saber o embotamento do contato e da awareness a normatizaccedilatildeo

32 PHG Gestalt-terapia p44

93

a supressatildeo do estado oscilante de emergecircncia ndash relaxamento e sua conversatildeo em um

estado riacutegido de moderada ansiedade satildeo justamente o que faz o cotidiano estaacutevel e

territorializado do sujeito

A timidez eacute um dos exemplos apresentados por PHG33 de manifestaccedilatildeo de

defesa do Self contra a anguacutestia da desterritorializaccedilatildeo Ousar sair do conforto do status

quo e confrontar-se com o excitamento eacute muitas vezes uma experiecircncia aterradora em

face da qual a seguranccedila do conhecido parece ser uma alternativa mais favoraacutevel ldquoO que

temos que entenderrdquo dizem os autores ldquoeacute que natildeo existe algo como uma seguranccedila

verdadeira porque nesse caso o Self seria uma fixidezrdquo Uma vez que se esteja de acordo

com essa afirmaccedilatildeo de PHG soacute entatildeo eacute cabiacutevel preconizar que a postura conservativa de

seguranccedila personaliacutestica ndash saber com certeza dizer quem se eacute ndash seja abandonada em

proveito de uma postura de adaptabilidade e aceitaccedilatildeo espontacircnea das oportunidades de

crescimento orientadas pelo eixo da autorregulaccedilatildeo organiacutesmica

A prerrogativa da subjetivaccedilatildeo maquiacutenica autopoieacutetica faz eco com o sentido

dado aqui ao parecircnklisis de Epicuro que serve de instrumento agrave cliacutenica promotora de

desvios do clinamen fundada na Teoria do Self O aspecto de singularizaccedilatildeo que subjaz

nessa ontologia indica que a subjetivaccedilatildeo natildeo eacute senatildeo um enriquecimento de virtualidades

aliado agrave progressiva difusatildeo de um territoacuterio existencial de autorreconhecimento que eacute

por natureza vazado O que o faz vazar eacute exatamente a promoccedilatildeo do desvio condiccedilatildeo

sine qua non para o organismo contatar o mundo A desterritorializaccedilatildeo eacute um ajustamento

criativo que eacute biologicamente adaptativo assim como sua contraparte de ocupaccedilatildeo de

novos territoacuterios ndash isto eacute a adoccedilatildeo de novas significaccedilotildees provindas da cultura ndash tambeacutem

o eacute porquanto a divisatildeo entre intrapessoal e interpessoal eacute superada pela constataccedilatildeo de

que ldquotoda personalidade individual e toda sociedade organizada se desenvolvem a partir

de funccedilotildees de coesatildeo que satildeo essenciais tanto para a pessoa quanto para a sociedaderdquo34

Natildeo obstante esta seria uma afirmaccedilatildeo ingecircnua dos gestalt-terapeutas se natildeo fosse

ressaltado uma vez mais que aqui se trata de uma faceta heterogeneizante da

subjetivaccedilatildeo e que ao contraacuterio na loacutegica capitalista a reciprocidade entre

desenvolvimento do indiviacuteduo e do socius eacute um conceito distorcido pelo efeito da

axiomatizaccedilatildeo e do primado da mais-valia

Uma anaacutelise mais minuciosa do escrutiacutenio feito por Deleuze e Guattari sobre

a loacutegica capitalista seria tema de outro texto Todavia eacute necessaacuterio ao menos mencionar

33 PHG Gestalt-terapia p218 34 PHG Gestalt-terapia p162

94

o papel do capitalismo como grande constituinte da subjetividade privatizada da

contemporaneidade e explorar brevemente o modus operandi de seu vasto mecanismo

axiomatizante Foucault apontou como a passagem do regime feudal para o regime

disciplinar provocou uma inversatildeo na piracircmide identitaacuteria do poder Inicialmente a

vassalagem majoritariamente anocircnima estava engajada em uma relaccedilatildeo de subserviecircncia

ascendente para com a figura opulenta do monarca Em um regime disciplinar por sua

vez35 ldquo[] a individualizaccedilatildeo em contrapartida eacute lsquodescendentersquo Agrave medida que o poder

se torna mais anocircnimo e mais funcional aqueles sobre quem ele se exerce tendem a ser

mais fortemente individualizados36 O poder pulverizado e microfiacutesico que descreve

Foucault natildeo eacute senatildeo a inversatildeo do socius despoacutetico objetivamente codificado Por meio

deste exerciacutecio complexo de poder o regime capitalista abre matildeo de todos os coacutedigos e

permite que a proacutepria diversidade de identidades trabalhe a seu favor porquanto adquira

valor de troca O assim chamado (sarcasticamente afirmam Deleuze e Guattari) ldquopoder

de comprardquo natildeo eacute senatildeo um ldquofluxo verdadeiramente impotencializado que representa a

impotecircncia absoluta do assalariado assim como a dependecircncia relativa do capitalismo

industrialrdquo37 ndash trata-se portanto de um expediente antiprodutivo por excelecircncia

Em princiacutepio anteriormente a qualquer codificaccedilatildeo devimos todos os nomes

da histoacuteria fomos o mesmo ser em toda parte matildee pai chefe amigo inimigo filho

mito anocircnimo Todos estes desdobramentos repousariam como pura potencialidade sobre

o socius corpo pleno de antiproduccedilatildeo da terra inengendrada que remeteria a uma origem

anagoacutegica ou vale o acreacutescimo uma origem psicanaliacutetica A referecircncia ao socius

virginal preacutevio agrave marcaccedilatildeo cultural vale soacute como nostalgia seja ela nostalgia do Uno

holiacutestico ou nostalgia do ldquoS1rdquo forcluiacutedo a homeostase da indiferenciaccedilatildeo matildee-bebecirc

Isto em termos ontogeneacuteticos contudo nossa filogecircnese natildeo eacute diferente O

sistema nervoso motoacuterico-muscular humano desenvolveu-se evolutivamente de modo a

funcionar separado do pensamento cognitivo e sensorial (PHG 1951 p121) Mover-se e

raciocinar satildeo processos diferentes e independentes para o homo sapiens o que natildeo eacute

verdade para a maioria dos mamiacuteferos Uma vez mais a marca neuroacutetica da cultura

acentua a dissonacircncia entre sentidos e motricidade para impedir a espontaneidade Laccedilos

mais primitivos como sexo e alimentaccedilatildeo satildeo aleacutem de preacute-verbais preacute-pessoais O outro

35 Traduccedilatildeo livre No original ldquo[hellip] lrsquoindividualisation em revanche est lsquodescendantersquo agrave mesure que le pouvoir devient plus anonyme et plus fonctionnel ceux sur qui il srsquoexerce tendent agrave ecirctre plus fortement individualiseacutesrdquo 36 FOUCAULT Surveiller et punir p194 37 DELEUZE Gilles GUATTARI Felix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia p317

95

natildeo aparece como pessoa mas como ldquoalgordquo a ser contatado O que se distingue como

ldquopessoardquo seratildeo as posteriores criaccedilotildees das identidades culturais produto da inserccedilatildeo na

teia de fluxos subjetivantes do socius e das relaccedilotildees de alianccedila ou laccedilos sociais

Destarte a passagem dos registros intensivos no socius para os papeacuteis

identitaacuterios reificados eacute o ponto de partida da codificaccedilatildeo social A maacutequina capitalista

inobstante vem surgir na modernidade como inversatildeo deste processo ela opera

unidirecionalmente no sentido da total descodificaccedilatildeo dos fluxos O capital depende de

trabalhadores livres e da virtualidade do dinheiro (especulaccedilatildeo) e por isso natildeo daacute conta

de abranger todo o campo social Pelo contraacuterio soacute tem a ganhar se deixar que este fluxo

corra desterritorializado e cada vez mais intensificado O modus operandi da maacutequina

capitalista sua descodificaccedilatildeo dos fluxos implica a ruptura do Urstaat Imaginaacuterio como

referecircncia ao Estado ideal Nada mais eacute sacralizado Todavia no capitalismo apesar de

estarem descodificados os fluxos estatildeo capturados em uma orientaccedilatildeo axiomaacutetica Por

vias escusas que os fluxos esquizofrenicamente talham no socius por meio de crises

desarranjos e vertigens protoemancipatoacuterias eles cinicamente ndash a ponto de afirmarem que

parte nenhuma ali estaacute sendo lesada ndash convergem a um ponto comum que eacute

inexoravelmente o da proacutepria subsistecircncia do capital

Conclusatildeo

A breve menccedilatildeo agrave anaacutelise de Deleuze e Guattari sobre o capitalismo serve de

contraponto ao que foi exposto anteriormente sobre a Personalidade em devir justamente

por ser seu desdouro inerente A reinvenccedilatildeo criativa das narrativas sobre o Self estaacute com

relativa frequecircncia alienada agrave funccedilatildeo de autossubsistecircncia do capital todavia ela tem

igualmente o potencial para ser emancipatoacuteria e heterogeneizante Lanccedilar luz agrave distinccedilatildeo

entre uma e outra forma eacute um trabalho eacutetico em progresso cuja relevacircncia eacute justificada

pelo proacuteprio reconhecimento das capacidades dos seres desejantes em criar possibilidades

de existecircncia e por vecirc-las amordaccediladas pela vida inautecircntica

Levada ao extremo a criaccedilatildeo das identidades na cultura desprende-se da crua

veracidade de animais em contato e se sublima em nuvens de abstraccedilotildees de acuacutemulos

de significantes de dados que porventura venham a descrever um sujeito individualizado

Quando se crecircem absolutamente associados a determinadas identificaccedilotildees culturais os

organismos deixam de fazer uso instrumental e criativo da Personalidade doam seus

corpos para a territorializaccedilatildeo institucional e outorgam agrave autoridade do Outro poder de

96

ldquoexploraccedilatildeo do homem pelo homem e de muitos pelo todordquo38

Neste sentido a Teoria do Self principalmente graccedilas ao diaacutelogo que ela

permite estabelecer com outras antropologias revela uma forccedila poliacutetica a ser reconhecida

em sua expressividade Por meio dos marcos diferenciais que evidenciam no sujeito a

primazia do contato e da awareness ela se apresenta como uma ferramenta meritoacuteria

para o resgate da accedilatildeo criadora dos corpos e consequentemente para uma sutil revoluccedilatildeo

nas dinacircmicas de exerciacutecio de poder subjacentes nos laccedilos entre sujeito e Outro social

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SANTOS Leonel Ribeiro dos Regresso a Kant Eacutetica Esteacutetica Filosofia Poliacutetica

Lisboa UED ndash Universidade Editorial 2012

PRAacuteTICAS DE CUIDADO DE SI NA ANTIGUIDADE1

Felipe Gustavo Soares da Silva2

RESUMO O presente trabalho faz anaacutelise histoacuterico-filosoacutefica do tema do cuidado de si a partir de suas praacuteticas nas figuras mais representativas do mundo grego desde o periacuteodo preacute-filosoacutefico ateacute Platatildeo demonstrando como as praacuteticas do cuidado representam um modo de viver ordenado e ainda mais caracterizam o pensar e o agir de uma eacutepoca ilustre da Histoacuteria e da Filosofia grega Por fim o trabalho apresente o cume filosoacutefico do tema do cuidado na antiguidade na personificaccedilatildeo de Soacutecrates conforme retratado pelos diaacutelogos platocircnicos PALAVRAS-CHAVE Antiguidade grega Cuidado de si Paideia ABSTRACT The present work performs an historical and philosophical analysis of the theme ldquocare of the selfrdquo through the prism of its practices by the most representative figures of the Greek world starting from pre-philosophical period until Plato demonstrating how the practices of the care represents an ordained way of life and more represents the thinking and the acting of an illustrious time of the History and the Greek Philosophy At last this work presents the philosophical apex of the theme care in ancient times personified by Socrates as portrayed by Platonic dialogues KEY-WORDS Greek antiquity Care of self Paideia

1 Introduccedilatildeo

A antiguidade grega eacute marcada fortemente por uma cultura de

autoaprimoramento do proacuteprio homem O processo educativo do homem natildeo dispensa

ao lado da tarefa do educador o papel do educando como primordial e diante disto cuidar

de si representa a praacutetica agrave qual era atarefado o educando O cuidado de si imperativo do

mundo antigo trata-se de uma seacuterie de praacuteticas que conduzem o homem a uma cultura de

si mesmo a uma vigilacircncia sobre suas accedilotildees e uma contiacutenua reflexatildeo sobre elas que tem

como finalidade uacuteltima para a vida humana o alcance da Excelecircncia

O cuidado de si eacute comumente estudado em diversas aacutereas sobretudo na

educaccedilatildeo na poliacutetica e na sauacutede obviamente pela influecircncia dos estudos realizados

recentemente por M Foucault que busca identificar as raiacutezes da subjetivaccedilatildeo na

1 Dedico este trabalho agrave profa Ana Cristina Machado pela parceria e amizade sempre presente 2 Mestre em filosofia (UFPE) Especialista em educaccedilatildeo pobreza e desigualdade social (UFPE) e-mail felipegustavopxhotmailcom

100

antiguidade sendo ele um dos mais importantes estudiosos do tema na

contemporaneidade Em seu segundo volume da Histoacuteria da sexualidade3 Foucault

aborda em um capiacutetulo especiacutefico o que ele chamada de uso dos prazeres a forma pela

qual o homem antigo relacionava-se com seus desejos e as praacuteticas ou o uso que faz deles

Jaacute no recuo histoacuterico ao mundo grego realizado em sua Hermenecircutica do sujeito4

descreve o que seria o cuidado de si e em que consistem as diversas accedilotildees praticadas pelo

homem grego Mesmo natildeo se tratando de uma anaacutelise teacutecnica da obra platocircnica mas uma

anaacutelise da questatildeo do cuidado diante do que ele chama de lsquotecnologias de sirsquo Foucault

traz uma anaacutelise importante para que possamos conceituar o cuidado de si para o modo

de viver dos gregos

Primeiramente o tema de uma atitude geral um certo modo de encarar as coisas de estar no mundo de praticar accedilotildees de ter relaccedilotildees com o outro A epimeleacuteia heautou eacute uma atitude para consigo para com os outros para com o mundo Em segundo lugar a epimeleacuteia heautou eacute tambeacutem uma certa forma de atenccedilatildeo de olhar Cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar que se o conduza do exterior paraeu ia dizer ldquoo interiorrdquo deixemos de lado esta palavra (que como sabemos coloca muitos problemas) e digamos simplesmente que eacute preciso converter o olhar do exterior dos outros do mundo etc para si ldquomesmordquo O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento Haacute um parentesco da palavra epimeleacuteia com meleacutete que quer dizer ao mesmo tempo exerciacutecio e meditaccedilatildeo Em terceiro lugar a noccedilatildeo de epimeleacuteia natildeo designa simplesmente esta atitude geral ou esta forma de atenccedilatildeo voltada para si Tambeacutem designa sempre algumas accedilotildees accedilotildees que satildeo exercidas de si para consigo accedilotildees pelas quais nos assumimos nos modificamos nos purificamos nos transformamos e nos transfiguramos Daiacute uma seacuterie de praacuteticas que satildeo na sua maioria exerciacutecios cujo destino (na histoacuteria da cultura da filosofia da moral da espiritualidade ocidentais) seraacute bem longo (FOUCAULT 2014p14-15)

Nos seus estudos Foucault trata de examinar a noccedilatildeo de cuidado apontando

trecircs dimensotildees principais em que o cuidado de si relaciona-se primeiramente a

pedagogia depois a poliacutetica e por fim a Eroacutetica (FOUCAULT M 2014 p52) O autor

centraliza sua abordagem do cuidado de si no Alcibiacuteades primeiro onde analisa o cuidado

da alma como principal objetivo do diaacutelogo O estudo realizado por Foucault natildeo pode

ser desprezado visto sua atualidade e significaccedilatildeo para o estudo atual da noccedilatildeo do cuidado

e visto sua descriccedilatildeo sobre o que significavam as diversas praacuteticas vividas e

3 FOUCAULT M A hermenecircutica do sujeito Trad de Maacutercio Alves da Fonseca Salma Tannus Nuchail Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 4 FOUCAULT Michel Histoacuteria da Sexualidade 3 - o cuidado de si Rio de Janeiro Graal 2002

101

compartilhadas pelo homem grego poreacutem adverte-nos Deleuze que Foucault natildeo

pretende rever os gregos mas observar os modos de constituiccedilatildeo do sujeito (moderno)

noccedilatildeo totalmente distinta do mundo antigo (DELEUZE1996 p 115) O proacuteprio Foucault

nos adverte que as praacuteticas de cuidado (de si) na antiguidade natildeo satildeo exclusividade do

momento filosoacutefico (FOUCAULT 2014) Mesmo antes dos grandes mestres da Filosofia

antiga jaacute havia uma espeacutecie de preocupaccedilatildeo do homem na forma de viver no mundo e se

relacionar com o que o envolvia seja um deus seja os outros homens seja a proacutepria vida

que ele encara e as situaccedilotildees diversas que nela encontra As situaccedilotildees nas quais os homens

se encontraram mesmo no momento preacute-filosoacutefico onde ainda natildeo havia um saber

racional estabelecido e praticado sinalizam a preocupaccedilatildeo em viver bem e natildeo de qualquer

maneira no mundo Algumas destas situaccedilotildees satildeo trazidas ao leitor neste texto procurando

evidenciar como a responsabilidade e o dever do cuidado representam um fator marcante

na histoacuteria da humanidade encontrando o aacutepice de suas recomendaccedilotildees na Filosofia de

Soacutecrates e Platatildeo

Para demonstrarmos o que ora propomos iremos demonstrar algumas

praacuteticas do homem no momento preacute-filosoacutefico e percorrer algumas passagens de quatro

diaacutelogos de Platatildeo em que o tema do cuidado eacute recorrente Apologia Alcibiacuteades

Repuacuteblica e Leis Estes quatro diaacutelogos iratildeo sinalizar tanto o pensamento socraacutetico

exposto por Platatildeo em torno do tema do cuidado e que ao mesmo tempo representa o

aacutepice de noccedilatildeo de cuidar de si mesmo na antiguidade

2 Praacuteticas no momento preacute-filosoacutefico

Encontramos no discurso mitoloacutegico ou seja ainda num momento anterior

ao discurso e reflexatildeo filosoacutefica sinais das praacuteticas de cuidado Neste momento a forma

pela qual o homem relacionava-se com uma determinada divindade influenciava

diretamente no percurso da poacutelis e do seu desenvolvimento sendo necessaacuterio uma espeacutecie

de cuidado nas praacuteticas a serem desenvolvidas nos cultos prestados aos deuses e na forma

pela qual o homem manifestava-se religiosamente atribuindo seu destino agraves matildeos e agraves

vontades dos deuses vemos ainda na poesia de Homero base da educaccedilatildeo grega Arcaica

um apelo a uma espeacutecie de cuidado a partir da ideia de virtude e de educaccedilatildeo Essa forma

de cuidar pode ser verificada por uma espeacutecie de exame e guiada pelo exemplo do heroacutei

veja-se que a Iliacuteada narra a guerra de Troacuteia tendo dentre os principais personagens o

guerreiro Aquiles responsaacutevel pela vitoacuteria dos gregos matando Heitor priacutencipe de Troacuteia

102

Num cenaacuterio beacutelico o vigor fiacutesico e a honra satildeo os valores que o poema incita O homem

natildeo se destina a uma vida puacuteblica mas agrave guerra e a guerra seria assim como o heroiacutesmo

o conteuacutedo praacutetico da vida humana A Odisseacuteia por sua vez conta a saga do heroacutei grego

Ulisses apoacutes a guerra de Troacuteia narrando as dificuldades encontradas na volta para casa

onde ele conta com o auxiacutelio da deusa Atena que lhe daacute proteccedilatildeo e o ajuda a reassumir

seu trono A Odisseacuteia traz entatildeo os elementos de uma civilizaccedilatildeo regida por leis que

adequam-se agrave sociedade e traz a imagem de um heroacutei a ser seguido um modelo de

heroiacutesmo Aqui o heroacutei estaacute jaacute inserido em uma civilizaccedilatildeo evoluiacuteda natildeo se trata mais de

um heroacutei de guerra mas de um cidadatildeo afaacutevel Poreacutem apesar da separaccedilatildeo do local no

qual estatildeo inseridos os dois heroacuteis o ideal do heroiacutesmo eacute o mesmo eacute ele o modelo da

educaccedilatildeo e o caminho a ser seguido para a Excelecircncia o que denota a existecircncia de uma

espeacutecie de cuidado voltada para o seguimento do exemplo do heroacutei que consequentemente

conduziria o homem agrave virtude

O modelo de educaccedilatildeo homeacuterica funda-se no comportamento virtuoso do heroacutei O comportamento dos heroacuteis representados por personagens humanas excepcionais aristocratas e nobres servia de modelo de comportamento para todos A virtude que os heroacuteis ostentavam atraveacutes de suas atitudes era chamada de arete(GOERGEN P 2006 P 185-186)

Tambeacutem importante para realccedilar o cuidado de si na antiguidade eacute o tema

trabalhado por Hesiacuteodo em Trabalhos e dias (HESIacuteODO 1996) Hesiacuteodo eacute assim como

Homero um grande poeta arcaico que contribui para moldar o pensamento moral e

religioso da Greacutecia tradicional Haacute entatildeo em Hesiacuteodo uma mudanccedila simboacutelica em relaccedilatildeo

a Homero do heroacutei valente e destemido do campo de batalha ao homem que centra a sua

forccedila no trabalho e produz para suprir as necessidades vitais da poacutelis Em Trabalhos e

dias Hesiacuteodo faz uma anaacutelise de uma das caracteriacutesticas fundamentais do mundo grego

que eacute o cultivo do espiacuterito agocircnico como caminho de atingir a sabedoria nos campos

poliacutetico e artiacutestico Para ele o trabalho eacute base da justiccedila entre os homens Esta disposiccedilatildeo

agoniacutestica em Hesiacuteodo se manifesta em Trabalhos e dias mediante o elogio da ldquoBoa Eacuterisrdquo

que atraveacutes de um saudaacutevel instinto de rivalidade entre os homens faz com eles se

esforcem perenemente pelo aprimoramento pessoal pois com o desenvolvimento das

suas respectivas qualidades perpetuaria infinitamente a vida humana e

consequentemente beneficiaria a proacutepria coletividade Quando fala sobre as qualidades

divinas da ldquoBoa Eacuterisrdquo em relaccedilatildeo agrave promoccedilatildeo do trabalho Hesiacuteodo afirma que ela

103

() estimula ao trabalho mesmo quem seja indolente Na verdade sente incentivo ao trabalho quem vecirc rica a pessoa que se afadiga a arar a terra a plantar a bem dispor a casa o vizinho inveja o vizinho que busca a abundacircncia Boa eacute esta Luta para os mortais O oleiro eacute ecircmulo do oleiro o artesatildeo do artesatildeo e o pobre inveja o pobre e o aedo o aedo (HESIacuteODO sect 20-26)

Haacute que se ressaltar que na poesia de Hesiacuteodo ocorre uma sutil diferenciaccedilatildeo

entre Ergon (o trabalho criativo cujo esforccedilo empreendido dignifica o homem) e Ponos

(a labuta sofrida extenuante) O cuidado seraacute representado exatamente pelo Ergon que

por sua vez conduziraacute ao homem agrave arete Hesiacuteodo nos demonstra atraveacutes de uma rica

reflexatildeo moral fundada na recusa da desmedida (Hyacutebris) e na celebraccedilatildeo da justiccedila e da

excelecircncia com o objetivo de delinear um modelo de virtude e aperfeiccediloamento Pelo

trabalho os homens renunciam agrave Hyacutebris e exercita-se na ponderaccedilatildeo da ldquojusta medidardquo

no empenho das energias corporais necessaacuterias para a realizaccedilatildeo de suas atividades A

postura do poeta seraacute de oferecer uma alternativa agrave eacutetica cavalheiresca preconizada nos

poemas homeacutericos vendo no exerciacutecio do trabalho o caminho para evitar a injusticcedila e se

alcanccedilar a virtude sendo assim a obra demonstra um conteuacutedo importante para se pensar

a praacutetica e a preocupaccedilatildeo com o cuidado de si na eacutepoca arcaica O trabalho humano

enquanto esforccedilo representa uma praacutetica de cuidado no momento preacute-filosoacutefico descrito

por Hesiacuteodo

Pelo trabalho eacute que os homens enriquecem em gados e bens E aqueles que trabalharem satildeo muito mais caros aos imortais Trabalho natildeo eacute vileza vileza eacute natildeo trabalhar Se trabalhares em breve o indolente te inveja a prosperidade Da riqueza eacute companheira o meacuterito e a gloacuteria Na situaccedilatildeo que te deram os deuses o melhor eacute trabalhar Cuida da tua vida desviando o teu acircnimo insensato das alheias riquezas para o trabalho como eu te exorto Uma vergonha pouco recomendaacutevel acompanha o indigente A vergonha estaacute junto da desgraccedila a confianccedila da felicidade (HESIacuteODO sect 308-316)

Chama agrave atenccedilatildeo ainda os festejos teatrais nos quais se via as peccedilas de gecircnero

traacutegico ou cocircmico aqui nos importa dizer que as trageacutedias especificamente eram

voltadas para uma purificaccedilatildeo uma catarse da alma Quando nos teatros as pessoas se

comoviam diante das cenas traacutegicas encenadas tinha-se entatildeo um sinal da presenccedila dos

deuses no lugar Parece que o ideal de purificaccedilatildeo representava uma espeacutecie de cuidado

impliacutecito agrave trageacutedia onde a catarse representava o encontro do homem consigo mesmo e

uma revisatildeo de vida que possibilitava entatildeo a sua purificaccedilatildeo pelo exame da proacutepria vida

104

3 A noccedilatildeo filosoacutefica do cuidado Soacutecrates e seu retrato em Platatildeo

O tema do cuidado nos remete diretamente agrave figura de Soacutecrates na

antiguidade Eacute Platatildeo que mais claramente traz em seus diaacutelogos a principal mensagem

filosoacutefica de seu mestre e que representa a mais estudada e fundamentada noccedilatildeo de

cuidado na antiguidade Aqui iremos verificar como o tema do cuidado aparece nos

principais diaacutelogos platocircnicos representando a preocupaccedilatildeo do autor em mostrar como

seu mestre Soacutecrates preocupava-se com a praacutetica do cuidado e em que medida essa

noccedilatildeo elevada filosoficamente pode contribuir para a Excelecircncia humana

Soacutecrates aparece nos diaacutelogos de Platatildeo sempre como aquele que

recomendara a praacutetica do cuidado ou pelo menos incitando a ela quando fala da

Excelecircncia sendo esta a finalidade uacuteltima da noccedilatildeo de cuidado Ora o cuidado a que ele

incita aos jovens eacute o cuidado da alma eacute este o objeto do cuidado eacute da alma que devemos

cuidar eacute sobre ela que o homem deve debruccedilar-se para poder enfim alcanccedilar a excelecircncia

O cuidado de si ou mais especificamente o cuidado da alma pode ser interpretada como

a grande mensagem trazida por Soacutecrates e testemunhada pelos diaacutelogos Platocircnicos este

cuidado teraacute como veremos uma dimensatildeo extremamente voltada para poliacutetica natildeo

podendo separar-se o individual e o coletivo neste primeiro momento ou seja o cuidado

da alma possibilitaraacute ao homem viver bem em meio aos outros homens a governar e a

ser governado e a alcanccedilar a excelecircncia na poacutelis Se o homem grego prezava pelo cuidado

de si como uma maneira de vida traduzida em todos os atos a liccedilatildeo de Soacutecrates eacute dar a

esta maneira de viver uma finalidade uacuteltima e mais nobre que eacute o cuidado da alma como

elemento mais nobre a ser cuidado pelo homem

Na maioria dos diaacutelogos platocircnicos em que o cuidado aparece como tema

recorrente vemos Soacutecrates como o mestre do cuidar eacute ele que incita cidadatildeos em geral e

de maneira particular o proacuteprio filoacutesofo a cuidar de si Aparece ainda o cuidado da cidade

e sobre ele nos diz-nos Hadot (2008) que haacute em Soacutecrates um aspecto missionaacuterio e

popular neste sentido entendemos que se abre a possiblidade do cuidado de si ser um

cuidado dos outros e um consequente cuidado de um organismo bem maior que eacute a cidade

O exame da proacutepria vida e a preocupaccedilatildeo com a relaccedilatildeo agir-falar exprime a

preocupaccedilatildeo da moral socraacutetica em demonstrar o papel da racionalidade da alma Esta

seraacute a instacircncia final do cuidado que veremos ao analisar como o cuidado de si aparece

na obra platocircnica em siacutentese a vida filosoficamente examinada encontra um caminho

possiacutevel pelo cuidado de si que incitara ao homem rever seus proacuteprios valores sua

105

maneira de agir cotidiana e longe de afastar-se da cidade deve nela proporcionar com os

outros homens que tambeacutem busquem cuidar de si aquilo que a Repuacuteblica apareceraacute

definido como a harmonia da cidade a justiccedila Vejamos estes diaacutelogos

31 A Apologia O mandamento Socraacutetico levado agraves uacuteltimas consequecircncias

Na Apologia5 na narraccedilatildeo da defesa proferida por Soacutecrates ante a sua

condenaccedilatildeo vemos um relato sobre a personificaccedilatildeo do cuidado de si na figura de

Soacutecrates Cuidar de si eacute o mandamento de Soacutecrates e ele o faz como objeto indispensaacutevel

para a vida A preocupaccedilatildeo com a riqueza deve ser afastada do homem mas busca-se a

virtude a partir de uma atenccedilatildeo consigo mesmo Primeiramente eacute bom situar que a defesa

de Soacutecrates daacute-se por ser acusado de corromper a sociedade sobretudo a juventude a

partir do mandamento do cuidado (Apol 25c)

Homens de Atenas contais com meu respeito e minha amizade mas acatarei ao deus de preferencia a voacutes e por quanto durar minha existecircncia e for eu capaz de prosseguir jamais renunciarei agrave filosofia e cessarei de vos exortar e de meu modo costumeiro com qualquer um de voacutes que venha a topar no meu caminho salientar ldquohomem excelente sendo como eacutes um cidadatildeo de atenas a maior das cidades-estado e a mais notoacuteria por sua sabedoria e poder natildeo te sentes envergonhado por te preocupares com a aquisiccedilatildeo de riqueza reputaccedilatildeo e honras enquanto natildeo te importas e nem te atentas para a sabedoria a verdade e o aperfeiccediloamento de tua almardquo E entatildeo se qualquer um de voacutes contestar o teor de minhas palavras e afirmar que realmente se importa natildeo permitirei que vaacute embora dispondo-me sim a interrogaacute-lo examinaacute-lo e submetecirc-lo a testese se apurar que natildeo eacute detentor da virtude a despeito de afirmar que o eacute o censurarei por desprezar coisas de maacuteximas importacircncia enquanto se importa com coisas secundaacuterias Assim agirei com todo aquele que encontrar jovem e velho estrangeiro e concidadatildeo poreacutem mais especificamente com os concidadatildeos porquanto sois ligados mais estreitamente a mim Certificai-vos de que assim o deus me ordena a fazer e creio natildeo haver nenhum outro benefiacutecio concedido a esta cidade do que o serviccedilo que presto ao deus Pois tudo que faccedilo em minhas andanccedilas eacute vos instar jovens e velhos entre voacutes a natildeo zelardes por vossos corpos ou vossas riquezas mais do que pela perfeiccedilatildeo possiacutevel de vossas almas e vos digo que a riqueza natildeo gera a virtude mas esta gera a riqueza e todos os demais bens aos seres humanos tanto os benefiacutecios privados quanto os puacuteblicos (Apol 29d ndash 30b)

5 Para nossa anaacutelise a principal traduccedilatildeo fora PLATAtildeO Apologia de Soacutecrates Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 2011

106

A Apologia nos revela o cuidado como o ensinamento socraacutetico que mais

caracteriza o personagem Soacutecrates eacute aquele que se preocupa consigo e preocupa-se com

os outros e diante disto devota toda a sua vida a exortar os homens a cuidarem de si

porque ele acredita que este eacute o caminho para o homem cidadatildeo e para a cidade alcanccedilar

a virtude Portanto Soacutecrates ataca o cultivo dos bens exteriores em detrimento da virtude

As praacuteticas de si visam a excelecircncia uma transformaccedilatildeo na vida daqueles que vivem de

qualquer maneira sem preocupar-se com a ela mas estatildeo ligados apenas aos bens

materiais e exteriores como a riqueza a beleza corporal e o poder Veja-se que Platatildeo

nos sugere que Soacutecrates levara o cuidado de si ateacute as uacuteltimas consequecircncias

consequecircncias de morte sem dar nenhuma justificativa para isto mas apenas como tarefa

confiada pelo deus e maneira uacutenica de dar sentido agrave proacutepria vida (Apol38 a)

Diante da morte de Soacutecrates vemos o testemunho de que o cuidado carece de

um outro e quem eacute esse outro senatildeo o mestre Eacute o mestre que vai cuidar do cuidado que

o outro vai ter de si neste sentido o diaacutelogo abre o debate para a ideia de que o cuidado

de si longe de ser um individualismo eacute uma atitude de si para o outro e neste sentido

reforccedila-se a necessidade do outro para que haja entatildeo o cuidado Ao mesmo tempo

reforccedila-se com a leitura da Apologia que o tema do cuidado eacute um tema socraacutetico e que eacute

proacuteprio da personagem incitar em suas oportunidades que os homens pratiquem o cuidado

de si Na apologia Soacutecrates daacute testemunho de toda sua atividade filosoacutefica em recomendar

aos jovens uma vida filosoficamente examinada ou seja uma vida em consonacircncia com

o cuidado de si aqui o cuidado aparece como condiccedilatildeo para os governantes e de fato o

tema tem lugar especiacutefico e fundamental quando se trata de governar os outros cuidar

dos outros parece uma tarefa bem maior que cuidar de si mesmo apenas e nisto estaacute a

liccedilatildeo do diaacutelogo ainda que natildeo pertenccedila a Platatildeo deve-se comeccedilar o cuidado por si

mesmo para poder cuidar dos outros

32 O Alcibiacuteades Primeiro o cuidado de si como cuidado dos outros6

O cuidado de si na Filosofia de Platatildeo eacute comumente estudado a partir do

diaacutelogo Alcibiacuteades primeiro7 onde de fato o tema do cuidado aparece de maneira clara

6 Para nossa anaacutelise a principal traduccedilatildeo fora PLATAtildeO O primeiro Alcibiacuteades In Fedro Cartas o primeiro Alcebiacuteades Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 2007 7 Eacute nesta obra que Foucault constroacutei essencialmente sua leitura da noccedilatildeo de cuidado na antiguidade mas especificamente ele constroacutei o curso no colleacutege de France fazendo leitura deste diaacutelogo e relacionando-os aos processos de subjetivaccedilatildeo num contexto de educaccedilatildeo e espiritualidade

107

como tema central e o cuidado eacute estabelecido como necessaacuterio como condiccedilatildeo para

governo da cidade ou seja como tema poliacutetico mas sem desprezar o cuidado de si

daquele que governa que deve cuidar da proacutepria alma antes da pretensatildeo de cuidar dos

outros (Alc134e) Essencialmente o cuidado de si eacute o tema da obra e quanto a isso

observa J Paviani que

o cuidado de si eacute examinado no Alcibiacuteades Primeiro na perspectiva da formaccedilatildeo social e poliacutetica do cidadatildeo Ele refere-se ao indiviacuteduo (e aos outros) e tambeacutem ao cuidado da cidade () A techne terapecircutica socraacutetica tem como objetivo a natureza humana isto eacute a alma a partir do cuidado que exige o conhecer-se a si mesmo A meta eacute a vida feliz do ser humano e do cidadatildeo (PAVIANI 2010 p 38)

O diaacutelogo estabelecido entre Soacutecrates e Alcibiacuteades eacute voltado para uma

questatildeo poliacutetica onde a preocupaccedilatildeo do jovem eacute de governar a cidade governar aos

outros e Soacutecrates lhe impotildee a tarefa de cuidar de si Esforccedila-te para te tornares cada vez

mais belo (Alc 131 d )

O que se deve cuidar Qual o objeto do cuidado A resposta eacute clara deve-se

cuidar da alma essa eacute a noccedilatildeo preliminar que orienta o governo de si e possibilita o

governo dos outros possibilita entatildeo a poliacutetica Esta eacute a dimensatildeo do cuidado tratada no

diaacutelogo como governar os outros senatildeo pela anterior e constante praacutetica do cuidado de si

mesmo

33 A Repuacuteblica e a dimensatildeo pedagoacutegica do cuidado8

Aqui importa destacar que visto em relaccedilatildeo agrave triparticcedilatildeo da alma cabe a cada

parte da alma um cuidado especiacutefico sendo a ideia de justiccedila enquanto virtude de todo

cidadatildeo e natildeo apenas de uma classe especiacutefica o cuidado enquanto fruto de todos os

outros cuidados que se manifesta como uma espeacutecie de moderaccedilatildeo Vejamos como isso

se desenvolve e aqui utilizaremos como exemplo a educaccedilatildeo dos guardiotildees e a forma

que lhes eacute recomendado o cuidar de si

Na Repuacuteblica Platatildeo defende que o filoacutesofo eacute quem deve governar Mas por

quecirc A resposta eacute bem simples Porque ele tem uma vida filosoficamente examinada

porque sua parte racional ordena agraves demais a si Ademais porque o Filoacutesofo da Repuacuteblica

8 PLATAtildeO A Repuacuteblica Ou sobre a justiccedila diaacutelogo poliacutetico Traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

108

cumpre aquilo que deve ser a condiccedilatildeo daquele que pretende governar aos outros Ele

governa a si mesmo Mas e o que dizer em relaccedilatildeo agraves demais classes de cidadatildeos Ora o

cuidado de si aparece de maneira discreta mas bem praacutetica na Repuacuteblica sob a oacutetica de

uma dimensatildeo pedagoacutegica mais especificamente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo da alma onde a

educaccedilatildeo de cada classe de cidadatildeo proporcionaraacute ao homem e agrave cidade a Virtude da

Justiccedila O cuidado de si aparece como uma espeacutecie de moderaccedilatildeo dever da educaccedilatildeo em

proporcionar ao homem a plena harmonia entre as partes de sua alma estendendo-se agrave

cidade a harmonia e a consequente justiccedila

A Soprosyne (σωφροσύνη) aparece como uma virtude que tem um uma

atenccedilatildeo especial pelo autor no contexto da triparticcedilatildeo da alma e da analogia agrave cidade a

moderaccedilatildeo ou temperanccedila a virtude que deve estar natildeo em uma parte especiacutefica da alma

mas em toda a cidade Toda educaccedilatildeo da Repuacuteblica tem a intenccedilatildeo de proporcionar uma

cidade justa na qual cada classe de cidadatildeo pratique sua virtude especiacutefica mas que seja

tambeacutem moderado e o ponto de chegada dessa conclusatildeo eacute que ldquoassim como soacute a razatildeo

pode governar o homem soacute o filoacutesofo eacute capaz de orientar os destinos da cidaderdquo (DOS

SANTOS 2008 P89) Vemos aiacute como o conceito de moderaccedilatildeo aparece como um domiacutenio

de si num contexto pedagoacutegico de formaccedilatildeo de cada classe de cidadatildeo e da cidade ideal

De maneira geral Platatildeo combate a questatildeo da submissatildeo do homem a toda sorte de

prazeres e

descreve de um modo traacutegico a existecircncia daqueles que pautam sua vida segundo o imperativo do prazer vivem errantes satildeo incapazes de ultrapassar o limite do prazer e elevar-se ateacute o verdadeiro ser nem podem provar o que seja um prazer soacutelido e puro Engordam e acasalam-se semelhante aos animais vivem pela cupidez dos sentidos dilaceram-se e batem uns nos outros matando-se por causa do seu apetite insaciaacutevel Passam a vida em prazeres misturados com sofrimentos satildeo fantasmas do prazer verdadeiro Satildeo insaciaacuteveis porquanto natildeo encham de alimentos consistentes a parte real e estanque de si mesmos (TEIXEIRA 2006 p30)

A moderaccedilatildeo eacute uma espeacutecie de domiacutenio de si e estes termos estatildeo ligados

diretamente agraves praacuteticas prescritas pelo ideal grego do cuidado A moderaccedilatildeo iraacute gerar na

alma humana uma harmonia diante dos prazeres e do desejo o que representa na

linguagem de Platatildeo o domiacutenio da parte superior da alma sobre as demais

Mas aparentemente o objetivo dessas expressotildees eacute tentar indicar que haacute na alma dessa mesma pessoa uma parte melhor e uma pior e que toda vez que a parte naturalmente melhor estaacute no controle da pior isto eacute expresso declarando-se que a pessoa eacute autocontrolada ou tem domiacutenio

109

de si mesma De qualquer modo a expressatildeo domiacutenio de si mesmo ou autocontrole eacute um termo de louvor Mas quando ao contraacuterio a parte melhor (que eacute menor) eacute dominada pela pior (que eacute a maior) devido a uma maacute criaccedilatildeo ou maacutes companhias isto eacute designado como descontrole ou licenciosidade e constitui uma censura (Rep431 a)

Na educaccedilatildeo proposta pela Repuacuteblica a harmonia na alma representa a

finalidade da educaccedilatildeo do homem a qual pretende que ele seja justo e consequentemente

a cidade tambeacutem o seja e desta forma que cada um ocupe-se com o que lhe foi destinado

pela natureza ldquoPara Platatildeo a moderaccedilatildeo eacute essencial para o desenvolvimento da sabedoria

e aperfeiccediloamento da alma A alma sem cultura e sem graccedila senatildeo tende para a falta de

comedimento A verdade eacute aparentada com o comedimento e natildeo com a falta delerdquo

(TEIXEIRA 2006 P39)

Eacute bom lembrar que aqui natildeo pretendemos demonstrar a estrutura da educaccedilatildeo

platocircnica descrita na Repuacuteblica poreacutem gostariacuteamos de exemplificar a questatildeo a partir da

educaccedilatildeo dos guerreiros voltada para o desenvolvimento da virtude da coragem e

demonstrar como a noccedilatildeo de cuidado aparece como imperativo de todos os homens

visando o bem da poacutelis e atividade poliacutetica A virtude especiacutefica para essa classe de

cidadatildeos eacute bem definida no livro IV da Repuacuteblica ldquoesse poder de preservar diante de

tudo a crenccedila correta e inculcada pela lei sobre o que deve ser temido e o que natildeo deve eacute

o que chamo de coragemrdquo (Rep430b) Para isso a formaccedilatildeo dos futuros guardiotildees

cultivava tambeacutem a opiniatildeo (δόξα) do jovem para que fosse reta incluindo a educaccedilatildeo

da muacutesica da poesia das faacutebulas e da ginaacutestica Soacutecrates deixa manifesto que a Paideacuteia

tem como objetivo a formaccedilatildeo de homens livres que enquanto tais natildeo precisam de medos

infundados mas que eles devem temer a escravidatildeo sob todas as suas formas9 Aqui

interessa demonstrar que nesse contexto surge a necessidade de formar um guardiatildeo

moderado em suas accedilotildees e que saiba cuidar de si O autocontrole eacute uma expressatildeo dessa

moderaccedilatildeo e aparece como tarefa a ser cultivada no futuro guardiatildeo que natildeo deveria temer

nada nem a morte (Rep390c) mas afastar-se de todas as ilusotildees ateacute mesmo as do

dinheiro e dos presentes (Rep390d) enfim de tudo fosse desmedido e exagerado O que

se deve cuidar na perspectiva da Repuacuteblica Sem duacutevida a alma poreacutem natildeo se prescinde

do corpo e este aparece como objeto da educaccedilatildeo da Paideia o cuidado com o gosto

musical com a poesia com o corpo pela ginaacutestica satildeo elementos que atestam que a

9 Sobre a questatildeo da liberdade na Repuacuteblica Cf ARAUacuteJO JUacuteNIOR Anastaacutecio Borges de ldquoOs sentidos da Eleutheriacutea na Repuacuteblica de Platatildeordquo Archai n 9 jul-dez 2012 pp 27-36

110

Repuacuteblica sugere e reflete aquela preocupaccedilatildeo do grego com a maneira pela qual o

homem relaciona-se com as coisas ao seu redor bem como a medida de tudo isso

Natildeo haacute como pensar a Repuacuteblica separando sua proposta pedagoacutegica de

cuidado Nela o cuidado do homem individual prepara-o para viver na poacutelis atraveacutes da

moderaccedilatildeo ou temperanccedila que seraacute a virtude que deveraacute estar em toda a cidade em cada

classe de cidadatildeos e natildeo apenas em uma especiacutefica

34 As Leis e o cuidado dos outros pelo cuidado de si10

As Leis11 enquanto um diaacutelogo da maturidade de Platatildeo apresenta a noccedilatildeo de

cuidado voltado para muitas direccedilotildees e destacamos aqui a dimensatildeo poliacutetica descrita na

obra e que retoma a analogia da alma agrave cidade conforme elaborado na Repuacuteblica Neste

diaacutelogo a lei eacute concebida como essencialmente divina (OLIVEIRA RR 2007 p337) e

a poliacutetica aparece como uma arte

Isso por conseguinte quer dizer a descoberta das naturezas e disposiccedilotildees das almas humanas - se revelaraacute como uma das coisas mais uacuteteis para a arte cuja incumbecircncia eacute delas tratar E esta arte eacute (como presumo que o diriacuteamos) a poliacutetica natildeo eacute mesmo (Leg 650b)

Esta arte eacute definida nas Leis como a ldquoarte de cuidar da almardquo sendo este o

criteacuterio que qualifica o homem para governar os outros homens Veja-se que a obra versa

sobre como governar mas tambeacutem como ser governado O governo de si eacute fruto da noccedilatildeo

de cuidado O tema do trabalho da alma eacute uma praacutetica que revela o cuidado e seu

direcionamento para a relaccedilatildeo com os outros atraveacutes da poliacutetica Isto nos mostra que a

noccedilatildeo de cuidado de si realmente difere-se de um individualismo de um egoiacutesmo mas

refere-se a uma atitude para o outro assim como na poliacutetica O que se deve cuidar a partir

da perspectiva das Leis eacute a alma12 E se eacute contestada a autenticidade do Alcibiacuteades

primeiro parece que as Leis eacute uma oportunidade para revermos a dimensatildeo poliacutetica do

cuidado longe dos problemas hermenecircuticos

10 Sobre o estudo das Leis importa destacar o trabalho de OLIVEIRA R R Demiurgia Poliacutetica as relaccedilotildees entre a razatildeo e a cidade nas Leis de Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2011 11 Para nossa pesquisa utilizamos a seguinte traduccedilatildeo PLATAtildeO Leis Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1980 12 Como dissemos anteriormente este eacute o tema central do Alcibiacuteades primeiro Aqui faremos apenas essa referecircncia vista a problemaacutetica da autoria da obra Poreacutem destacamos aqui o mandamento de Soacutecrates a Alcebiacuteades mestra obra que eacute de cuidar de sua proacutepria alma como tarefa que precede o governo dos outros (132b) A felicidade da alma dependeraacute da virtude dos homens (134b) e portanto quem natildeo conhecer as coisas a seu respeito natildeo poderaacute conhecer tambeacutem as coisas a respeito dos outros (133e)

111

A noccedilatildeo de cuidar aqui apareceraacute envolvendo o papel do legislador daquele

que comanda a cidade e os cidadatildeos O filoacutesofo nas Leis torna-se o legislador e a

educaccedilatildeo entrelaccedila-se com a poliacutetica natildeo sendo mais a educaccedilatildeo de cada classe de

cidadatildeos mas a educaccedilatildeo de todos pelo imperativo de cuidar da alma e saber lidar pela

educaccedilatildeo com tudo aquilo que possa causar-lhe mau Trata-se de alcanccedilar uma totalidade

da virtude (Leg 630 e)Natildeo se trata de afastar o homem de seus desejos e sim de educa-

lo para lidar com eles Eacute o filoacutesofo que cuida do cuidado que os outros deveratildeo ter de si

O cuidado aparece tematizado como o cuidado pelo outro a partir da educaccedilatildeo e da Lei

Natildeo vemos no diaacutelogo uma exortaccedilatildeo socraacutetica agrave revisatildeo da proacutepria vida a um

conhecimento de si vemos na verdade a construccedilatildeo de um processo educativo onde pela

accedilatildeo do legislador o homem alcanccedilaria a excelecircncia Vejamos as palavras do diaacutelogo que

sugerem a proposta educativa das Leis

A educaccedilatildeo a que nos referimos eacute o treinamento desde a infacircncia na virtude o que torna o individuo entusiasticamente desejoso de se converter num cidadatildeo perfeito o qual possui uma compreensatildeo tanto de governar como a de ser governado com justiccedila Esta eacute a forma especiacutefica da formaccedilatildeo agrave qual suponho nossa discussatildeo em pauta restringiria ao termo educaccedilatildeo enquanto seria vulgar servil e inteiramente indigno de chamar de educaccedilatildeo uma formaccedilatildeo que visa somente agrave aquisiccedilatildeo do dinheiro do vigor fiacutesico ou mesmo alguma habilidade mental destituiacuteda de sabedoria e justiccedila (Leg 644 a-b)

O filoacutesofo assume o papel de cuidar pela educaccedilatildeo A noccedilatildeo de cuidar eacute impliacutecita

eacute necessaacuterio compreender que governar a cidade natildeo tem um outro caminho senatildeo

governar seus cidadatildeos e educa-los desde a mais tenra infacircncia voltando tudo para uma

essecircncia divina daiacute o ideal de que na Repuacuteblica aparece como ideia de Bem e nas Leis

aparece como sendo Deus a meta para onde tudo deve direcionar-se (Leg 716 c 717 a)

Quanto a questatildeo Jaeger afirma que

O filoacutesofo torna-se por meio da legislaccedilatildeo o demiurgo do cosmos da comunidade humana que deve ser integrado dentro daquele cosmos mais vasto e o impeacuterio de Deus realiza-se pela aplicaccedilatildeo consciente que o homem ser racional faz do logos divino (JAEGER 2011 p 1343)

Obviamente o cuidado surge nesta perspectiva que demonstramos como um

cuidado pelo outro sem desprezar a noccedilatildeo de cuidar de si mesmo O legislador filoacutesofo

na intenccedilatildeo de governar de legislar eficazmente e com justiccedila busca assemelhar-se do

divino e nisto consiste o seu especiacutefico cuidado consigo mesmo Veja-se que ele sugere

que soacute um Deus poderia possuir um conhecimento poliacutetico competente e concebe o

112

processo poliacutetico em uma continuidade ou seja os sucessores poderatildeo corrigir possiacuteveis

erros de seus antecessores por isso a legislaccedilatildeo eacute comparada por ele agrave uma obra de arte

(Leg 769c) O paracircmetro do cuidado eacute o cuidado com a cidade A poliacutetica consistiraacute

portanto em cuidar dos outros pelo processo educativo e pelas leis (noacutemoi) sendo papel

do legislador incumbir nos outros homens alguma sabedoria (Leg 687d) visando formar

o eacutethos dos homens e conduzi-los agrave uma virtude Esta virtude meta do projeto poliacutetico

das Leis tem relaccedilatildeo com a racionalidade e pode ser exemplificada com a passagem que

segue

Ograve estrangeiro natildeo eacute por acaso que as leis dos cretenses gozam de excelentiacutessima reputaccedilatildeo entre todos os helenos satildeo leis justas porquanto produzem o bem-estar daqueles que a utilizam proporcionando todas as coisas que satildeo boas Ora os bens satildeo de duas espeacutecies a saber humanos e divinos os bens humanos dependem dos divinos e aquele que recebe o maior bem adquire igualmente o menor caso contraacuterio eacute privado de ambos Entre os bens menores a sauacutede vem em primeiro lugar a beleza em segundo o vigor em terceiro necessaacuterio agrave corrida e a todos os demais exerciacutecios corporais segue-se o quarto bem a riqueza natildeo a riqueza cega mas aquela de visatildeo aguda que tem a sabedoria por companheira A sabedoria a proposito ocupa o primeiro lugar entre os bens que satildeo divinos vindo a racional moderaccedilatildeo da alma em segundo lugar da uniatildeo destas duas com a coragem nasce a justiccedila ou seja o terceiro bem divino seguido pelo quarto que eacute a coragem (Leg 631 b-d)

Veja-se que a meta (skopoacutes) da legislaccedilatildeo natildeo eacute algo vazio tem uma

finalidade a virtude e como dissemos relaciona-se com a racionalidade contribuindo

para o bem individualmente do cidadatildeo e coletivamente da poacutelis A educaccedilatildeo eacute o

caminho proposto para aquisiccedilatildeo da virtude pelo homem da poacutelis desde a mais tenra

infacircncia

Entendo assim por educaccedilatildeo a primeira aquisiccedilatildeo que a crianccedila faz da virtude Quando o prazer o amor a dor e o oacutedio nascem com justeza nas almas antes do despertar da razatildeo e uma vez a razatildeo desperta os sentimentos se harmonizam com ela no reconhecimento de que foram bem treinados pelas praacuteticas adequadas correspondentes essa harmonizaccedilatildeo vista como um todo constitui a virtude (Leg 653b)

4 Conclusatildeo

Podemos concluir que as praacuteticas dos homens no momento preacute-filosoacutefico

demonstram o cuidado de si nas mais diversas situaccedilotildees vividas sobretudo pelo

113

relacionamento com os deuses da mitologia aos quais se atribuiacutea o destino e governo do

universo bem como o fim uacuteltimo do homem

No processo de evoluccedilatildeo do conceito encontramos em Soacutecrates encontramos

o aacutepice da noccedilatildeo filosoacutefica do cuidado direcionando o dever do cuidar de si mesmo para

a alma do homem pela busca da virtude Esse aacutepice chega ateacute noacutes pela filosofia de Platatildeo

nela encontramos o ideal e a proposta de vida refletida e submetida agrave razatildeo que caracteriza

a praacutetica do cuidado de si tatildeo pregada por Soacutecrates e ora testemunhado pelos diaacutelogos de

Platatildeo Os diaacutelogos de Platatildeo satildeo marcados pela noccedilatildeo do cuidado impliacutecita nos ideais e

nas formas propostas de educaccedilatildeo para o homem O pensamento de Platatildeo eacute situado numa

eacutepoca em que esse cuidar era um elemento primordial na vida do homem Ademais ele

testemunha em seus escritos a sua eacutepoca e a eacutepoca do mestre Soacutecrates a quem devemos

o fato de elevar o cuidado a um status filosoacutefico e tornaacute-lo objeto de reflexatildeo para a vida

e para a felicidade do homem

O estudo das praacuteticas de cuidado na antiguidade nos leva a concluir toda a

importacircncia da educaccedilatildeo na antiguidade a busca pela virtude e pela vida feliz atraveacutes da

vivecircncia do cuidado de si mesmo e reflexatildeo sobre as proacuteprias accedilotildees e suas consequecircncias

No sentido filosoacutefico a predominacircncia da razatildeo frente aos desejos inferiores do homem

era o objetivo das praacuteticas de cuidado que coletivamente representavam uma accedilatildeo

poliacutetica onde todos eram beneficiados por esse elemento educativo de si mesmo e no

fundo da coletividade

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARAUacuteJO JUacuteNIOR Anastaacutecio Borges de ldquoOs sentidos da Eleutheriacutea na Repuacuteblica de Platatildeordquo Archai n 9 jul-dez 2012 pp 27-36 DELEUZE G Conversaccedilotildees Rio de Janeiro Editora 34 1996 DOS SANTOS Joseacute trindade Para ler Platatildeo A ontoepistemologia dos diaacutelogos socraacuteticos Satildeo Paulo Loyola 2008 FOUCAULT M A hermenecircutica do sujeito Trad de Maacutercio Alves da Fonseca Salma Tannus Nuchail Satildeo Paulo Martins Fontes 2014 _______ FOUCAULT Michel Histoacuteria da Sexualidade 3 - o cuidado de si Rio de Janeiro Graal 2002

114

GAZOLLA Raquel A tirania na Repuacuteblica ndash o outro em si mesmo Rev Filosofiacutea Univ Costa Rica XLVI (117118)87-93 Enero-Agosto 2008 p 91 GOERGEN Pedro De Homero e Hesiacuteodo ou das origens da filosofia e da educaccedilatildeo Pro-posiccedilotildees v 17 n 3 (51) - setdes 2006 P 185-186 HADOT Pierre O que eacute a Filosofia Antiga3ordf ed Satildeo Paulo Loyola 2008 HESIacuteODO Os trabalhos e os dias 3ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Loyola 1996 HOMERO Odisseacuteia Traduccedilatildeo de Antocircnio Pinto de Carvalho Satildeo Paulo Abril 1978 ________ Iliacuteada Traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes Satildeo Paulo Abril 2009 JAEGER Werner Paideia a formaccedilatildeo do homem grego 5ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Martins fontes 2011 TEIXEIRA Evilaacutesio F Borges A educaccedilatildeo da alma segundo Platatildeo 4ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Paulus 2006 PAVIANI Jaime Platatildeo a educaccedilatildeo e o cuidado de si a recepccedilatildeo de Foucault Satildeo Paulo Hypnos nuacutemero 24 1ordm semestre 2010 PLATAtildeO A Repuacuteblica Ou sobre a justiccedila diaacutelogo poliacutetico Traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 _______ Apologia de Soacutecrates Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 2011 _______ Leis Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem Universidade Federal do Paraacute1980

_______ O primeiro Alcibiacuteades In Fedro Cartas o primeiro Alcibiacuteades Trad de Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 2007

DO AMOR PLATOcircNICO AO CRUSH A FILOSOFIA ENTRE

ADOLESCENTES ndash TOacutePICOS DE ENSINO DE FILOSOFIA

Gabriel R Rocha1

RESUMO O artigo demonstra a relaccedilatildeo de equivalecircncia possiacutevel entre o amor platocircnico e o significado da giacuteria crush usualmente muito utilizada entre os adolescentes Natildeo obstante a equivalecircncia demonstrou-se falsa pois que o objeto do amor platocircnico consoante ao entendimento apresentado ao Banquete de Platatildeo difere do objeto de desejo expresso no signo crush No entanto apesar de diferir quanto ao fim o crush eacute passiacutevel de ser compreendido como etapa inicial no processo ascendente em relaccedilatildeo ao amor verdadeiro Pondera-se sobre o crush em sua correlaccedilatildeo ao contexto sociocultural contemporacircneo neste fim utiliza-se de autores como Pierre Leacutevy Ernest Cassirer Zygmunt Bauman e Alasdair MacIntyre justapondo-se sempre que possiacutevel e necessaacuterio a aspectos determinantes da filosofia platocircnica em correspondecircncia ao tema proposto Aleacutem de contar com uma breve introduccedilatildeo e consideraccedilotildees finais optou-se por uma seccedilatildeo uacutenica em contribuiccedilatildeo ao estudo qualitativo do tema Ademais o estudo reafirma a utilidade da filosofia como constituiacuteda de saber fortemente contributivo ao pensar rigoroso criacutetico e plural sobre as diferentes expressotildees que caracterizam o modo de ser contemporacircneo particularmente em relaccedilatildeo ao modo de ser do jovem adolescente imerso em um mundo cada vez mais multicultural global e inter-relacionado em rede Palavras-chave Amor platocircnico Beleza Crush Desejo Eros ABSTRACT The article demonstrates the possible equivalence relationship between platonic love and the meaning of the commonly used slang crush among teenagers Nonetheless the equivalence proved to be false since the object of Platonic Love according to the understanding presented of Platos Symposium differs from the object of desire expressed in the mark crush However despite differing in the end the crush is likely to be understood as the initial step in the ascending process in relation to true love It is based on crush in its correlation with the contemporary social and cultural context in this end it uses authors like Pierre Leacutevy Ernst Cassirer Zygmunt Bauman and Alasdair MacIntyre juxtaposing whenever possible and necessary to determinant aspects of the Platonic philosophy in correspondence to the proposed theme In addition to having a brief introduction and final considerations a single section was chosen contributing to the qualitative study of the theme In addition the study reaffirms the usefulness of philosophy as consisting of highly contributory knowledge in rigorous critical and plural thinking about the different expressions that characterize the contemporary way of being particularly in relation to the way of being of the young adolescent immersed in a world increasingly multicultural global and interrelated within a network Key-words Platonic love Beauty Crush Desire Eros

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Professor de Filosofia na educaccedilatildeo baacutesica email gabiphilo78gmailcom

116

Introduccedilatildeo

Entre muitos aspectos comuns que caracterizam a adolescecircncia2 a utilizaccedilatildeo

de giacuterias compotildee o que poder-se-ia chamar de ldquomodo de ser adolescenterdquo Este uso

particular da linguagem entre os jovens adolescentes natildeo se restringe a determinados

locais de livre convivecircncia mas perpassa tambeacutem o meio educacional ou seja o espaccedilo

de relaccedilatildeo e formaccedilatildeo que eacute a escola Da mesma forma em que tambeacutem se encontra

manifestadamente presente no mundo virtual ou ciberespaccedilo3

Evidente que nenhum professor estimula o uso de giacuterias em sala de aula

espaccedilo em que prioritariamente deve-se aprender e fazer uso de certas regras quanto agrave

utilizaccedilatildeo e compreensatildeo da linguagem seja esta miacutetica ou religiosa esteacutetica ou

cientiacutefica histoacuterica ou geograacutefica expressadas na oralidade ou na simbologia no desenho

ou na cartografia e claro na escrita Entrementes as giacuterias expotildeem particularidades natildeo

somente restritas a simples expressotildees verbais embora sejam estas o meio de sua

manifestaccedilatildeo mas expotildeem sobretudo caracteres comportamentais e eacuteticos culturais

esteacuteticos e sociais especiacuteficos agrave determinada geraccedilatildeo4

Resulta assim que se torna possiacutevel a identificaccedilatildeo de caraacuteter geracional

mediante agrave observaccedilatildeo cautelosa quanto ao uso de determinadas giacuterias quando aquele

que agrave expressa revela mesmo sem intencionalidade a qual geraccedilatildeo se vincula i eacute haacute

qual geraccedilatildeo pertencia quando do periacuteodo de sua juventude

Evidencia-se no interior desta perspectiva que existem giacuterias mais

universalizaacuteveis do que outras em que seu uso claramente ultrapassam aspectos mais

restritivos a grupos determinados Por exemplo haacute giacuterias que servem para identificar

certo grupo social ou agraves chamadas ldquotribos urbanasrdquo como as usadas entre os skatistas e

os punks mas a outras que nitidamente identificam todo um conjunto sociocultural e

mesmo histoacuterico de uma determinada geraccedilatildeo sobressaindo-se de maneira mais

2 No Brasil o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Lei Federal nordm 8 069 de 13 de julho de 1990) em seu artigo 2ordm assere o seguinte ldquoConsidera-se crianccedila para os efeitos da Lei a pessoa ateacute doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idaderdquo 3 LEacuteVY P Cibercultura p 157 o ldquociberespaccedilo eacute o espaccedilo das comunicaccedilotildees por redes de computaccedilatildeordquo 4 Este amplo aspecto que revela a abrangecircncia de uma giacuteria expotildee o desejo de socializaccedilatildeo inerente a qualquer ser humano Conforme assere ROCHER Guy Introduccioacuten a la sociologiacutea general p 23 ldquoA socializaccedilatildeo eacute o processo por meio do qual a pessoa aprende e interioriza no transcurso de sua vida os elementos socioculturais de seu meio ambiente integra-os na estrutura de sua personalidade sob a influecircncia da experiecircncia e de agentes sociais significativos e se adapta assim ao entorno social em cujo seio deve viverrdquo

117

abrangente Este parece ser o caso da giacuteria aqui escolhida para anaacutelise e reflexatildeo

filosoacutefica o ldquocrushrdquo

Natildeo causa estranheza que em um mundo cada vez mais globalizado e em rede

o que eacute tido como local rapidamente ultrapassa a sua origem geograacutefica ou histoacuterico-

cultural e assim estenda-se ao globo Se esta velocidade de inter-relaccedilatildeo e

interdependecircncia existe entre economias nacionais organizaccedilotildees paiacuteses e suas

instituiccedilotildees ainda mais velozmente se identifica esta ausecircncia de zonas limiacutetrofes ao que

refere ao mundo jovem adolescente

Em consequecircncia livros tornados ldquoBest-sellersrdquo filmes ldquoBlockbustersrdquo

seacuteries televisivas canais por assinatura vestuaacuterio acessoacuterios alimentaccedilatildeo ldquoblogsrdquo sites

de busca e pesquisa redes sociais ldquogamesrdquo entre outros identificam o comum modo de

ser caracteriacutestico deste periacuteodo existencial em nossa contemporaneidade mundial

Por conseguinte o objetivo primordial proposto deste artigo daacute-se no esforccedilo

compreensivo de a partir de uma giacuteria atualmente utilizada e disseminada entre a

juventude adolescente o ldquocrushrdquo promover o exerciacutecio reflexivo sobre certos aspectos

da filosofia platocircnica bem como ponderar sobre a possibilidade - em verdade

considerada como sempre necessaacuteria - da interferecircncia filosoacutefica no espaccedilo comum de

comunicaccedilatildeo e convivecircncia que se caracteriza a sala de aula

Neste intuito escolhe-se um termo que ultrapassou o discurso puramente

acadecircmico o de ldquoamor platocircnicordquo e sua possiacutevel relaccedilatildeo de equivalecircncia ou natildeo entre

esta expressatildeo e a giacuteria ldquocrushrdquo Assim resulta que o tema proposto sugere aproximar o

discurso produzido no texto filosoacutefico neste caso o texto dialoacutegico de Platatildeo sobretudo

o diaacutelogo Banquete e a expressatildeo ldquocrushrdquo atualmente usual entre os jovens adolescentes

em clara referecircncia no dizer deles mesmos ao objeto de seus desejos

Crush e amor platocircnico

Como anteriormente mencionado ldquocrushrdquo eacute uma giacuteria Mas ao que se refere

E neste sentido porque se revela plausiacutevel propor pensa-la filosoficamente justapondo-a

ao chamado ldquoamor platocircnicordquo

Antes de esclarecer-se os questionamentos referidos acima eacute necessaacuterio

adicionar agrave compreensatildeo proposta a seguinte contribuiccedilatildeo de Ernst Cassirer sobre o

conceito de siacutembolo Observa-se o seguinte

118

[] O sinal eacute uma parte do mundo fiacutesico do ser o siacutembolo eacute uma parte do mundo humano do sentido Os sinais satildeo lsquooperadoresrsquo os siacutembolos satildeo lsquodesignadoresrsquo [] Um siacutembolo natildeo eacute apenas universal poreacutem extremamente variaacutevel Posso expressar o mesmo significado em vaacuterios idiomas e ateacute mesmo dentro dos limites de uma uacutenica liacutengua o mesmo pensamento ou ideia pode ser expresso em termos muito diferentes [] Um siacutembolo genuiacuteno natildeo se caracteriza pela uniformidade mas pela versatilidade Natildeo eacute riacutegido nem inflexiacutevel eacute moacutevel5

Consoante a referendada citaccedilatildeo compreende-se o siacutembolo como elemento

que designa a realidade embora natildeo seja a realidade poreacutem oferta-lhe sentido A giacuteria

portanto eacute um siacutembolo e natildeo somente um sinal ou uma pantomima porque nela se

manifesta via linguagem todo o imageacutetico caracteriacutestico de um signo6 A giacuteria portanto

o ldquocrushrdquo expressa uma mediaccedilatildeo simboacutelica entre o real e o ideal sendo dotada de

significado e propiciadora de entendimento intersubjetivo

Termo de origem inglesa natildeo haacute traduccedilatildeo de ldquocrushrdquo enquanto giacuteria7 pois

ldquocrushrdquo eacute ldquocrushrdquo e assim expressa uma cultura linguiacutestica comum entre os adolescentes

qual seja a manifestaccedilatildeo do desejo amoroso a pessoas proacuteximas ou natildeo fisicamente mas

que sempre correspondam ou ao menos venham a corresponder ao imageacutetico erotizante

juvenil

Resulta do precedente que quando o (a) jovem adolescente afirma ldquoEle ou

ela eacute meu crushrdquo significa natildeo somente e necessariamente uma relaccedilatildeo direta e pessoal

poreacutem uma relaccedilatildeo de desejo idealizado em cuja principal forccedila motriz parece constituir-

se na beleza fiacutesica

Em consequecircncia tem-se duas possibilidades de equivalecircncia ao ldquoamor

platocircnico8rdquo a primeira eacute quanto a idealizaccedilatildeo do objeto de desejo a segunda daacute-se na

5 CASSIRER E Antropologia Filosoacutefica ndash ensaio sobre o homem introduccedilatildeo a uma filosofia da cultura humana p67 6 A tese principal de Cassirer eacute que toda relaccedilatildeo do homem com o mundo eacute mediada por um sistema de signos Esses sistemas podem ser linguiacutesticos artiacutesticos matemaacuteticos etc antes do homem ser racional ou poliacutetico ou faber ele eacute symbolicum 7 Diz-se ldquoenquanto giacuteriardquo porquanto a palavra crush significa literalmente ldquoesmagarrdquo ldquomoerrdquo mas tambeacutem traz consigo este significado de ldquopaixatildeo passageira e ou idealizadardquo por exemplo a expressatildeo ldquoShe has a crush for yourdquo (ldquoela tem uma quedinha por vocecircrdquo) Assim ao se analisar a giacuteria esta enquanto giacuteria e expressatildeo verbal entre os adolescentes natildeo recebe traduccedilatildeo embora todos saibam o seu significado quando transliterado agrave liacutengua portuguesa 8 Conforme o Dicionaacuterio Oxford de Filosofia p 148 verbete Ficino Marsiacutelio (1433-99) diz-se deste ldquoque seus comentaacuterios ao Banquete de Platatildeo satildeo a fonte da expressatildeo corrente ldquoamor platocircnicordquo com o sentido de um amor que natildeo procura expressatildeo sexual contentando-se antes unicamente com a apreciaccedilatildeo das formas que o ser amado exemplificardquo Marsiacutelio Ficino foi o principal representante do platonismo e neoplatonismo renascentista fundador e diretor da Academia de Florenccedila eacute sua a numeraccedilatildeo mundialmente conhecida que serve para a organizaccedilatildeo catalogaccedilatildeo e citaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo ldquoEm 1484 foi publicada sua traduccedilatildeo integral dos diaacutelogos de Platatildeordquo Id ibid p 148

119

relaccedilatildeo entre desejo e beleza i eacute o desejo pelo belo Todavia antes da necessaacuteria

continuidade investigativa desta equivalecircncia possiacutevel torna-se vaacutelido acrescentar o que

se segue

Quando na deacutecada de 1990 surgira entre os adolescentes o uso da giacuteria ldquoficarrdquo

esta trazia como significado simboacutelico o fato de realmente ter beijado algueacutem por

exemplo ldquofiqueirdquo com ldquoelardquo ou com ldquoelerdquo em uma festa Assim o ldquoficarrdquo natildeo equivaleria

a namoro i eacute um compromisso fixo com outra pessoa ldquoficarrdquo era somente ldquoficarrdquo

mesmo que houvesse a possibilidade do ldquoficarrdquo se efetivar em namoro ou em algum

compromisso monogacircmico

Da mesma forma o ldquocrushrdquo natildeo eacute necessariamente ldquoficarrdquo e muito menos

namorar mas sobretudo manifesta-se como ato de desejo ou de se encontrar enamorado

por algueacutem que pode ou natildeo ser de relaccedilatildeo fisicamente aproximada

Chega-se assim a primeira possiacutevel conclusatildeo o ldquocrushrdquo pode corresponder

a ldquoamor platocircnicordquo se e somente se pensado conforme o senso comum em sua

manifestaccedilatildeo de desejo amoroso idealizado mas natildeo realizaacutevel Portanto natildeo

expressando equivalecircncia com a proposta filosoacutefica de Platatildeo quanto ao amor Pois como

seraacute demonstrado o amor idealizado em Platatildeo eacute realizaacutevel constituindo-se no amor pelo

ldquoBelo em sirdquo sempre correlato ao amor pelo Bem logo ele natildeo eacute idealizado mas

plenamente atingiacutevel na contemplaccedilatildeo

Nestes termos o ldquocrushrdquo natildeo eacute passiacutevel de satisfazer tamanha exigecircncia

platocircnica entretanto ainda assim pode-se considerar o ldquocrushrdquo como equivalente da

primeira manifestaccedilatildeo pelo desejo do belo uma primeira etapa quanto a real beleza e o

verdadeiro amor que natildeo eacute e natildeo pode ser em Platatildeo somente amor pelos belos corpos9

Adentra-se pois ao tema da educaccedilatildeo10 do desejo de valor inestimaacutevel agrave Platatildeo

Se somente se deseja com o corpo (socircma) natildeo eacute possiacutevel agravequele que assim

procede desvincular-se de ldquoprazeres menoresrdquo Entretanto estes prazeres menores natildeo

satildeo isentos de intensidade ao contraacuterio por serem intensos e passiacuteveis de causarem

desregramento interno aos indiviacuteduos que justamente a estes prazeres haacute submissatildeo

9 Argumento que segue a loacutegica dos enunciados correspondente ao diaacutelogo Banquete contudo tambeacutem correlato ao diaacutelogo Fedro O tema seraacute desenvolvido mais adiante 10 Educaccedilatildeo natildeo tem sentido de instrumentalizaccedilatildeo teacutecnica mas sobretudo condiz com agrave educaccedilatildeo moral da psycheacute educar para a formaccedilatildeo e desenvolvimento das virtudes ou excelecircncias (aretai) morais Consultar diaacutelogo Leis 643e-644a-b Sobre esta questatildeo assere JAEGER Paideacuteia p 336 ldquoA educaccedilatildeo profissional herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofiacutecio ou a induacutestria natildeo se podia comparar agrave educaccedilatildeo total de espiacuterito e de corpo do nobre καλὸς κᾀγαϑός baseada numa concepccedilatildeo total do Homemrdquo

120

podendo efetivamente manifestar o domiacutenio do desejo de prazer sobre outras faculdades

ou tendecircncias internas da psycheacute11 (alma) humana o que por sua vez ocasionaraacute

indiviacuteduos compromissados somente com agrave satisfaccedilatildeo dos sentidos12

Para Platatildeo eacute preciso educar a faculdade desejante (epithymiacutea) opondo-lhe a

faculdade da razatildeo (logistikoacuten) e a esta acrescentando-lhe uma virtude ou excelecircncia

(areteacute) fundamental a temperanccedila (sophrosyacutenecirc)13 Observa-se o exposto seguinte no

diaacutelogo Fedro

[] em cada um de noacutes existem dois princiacutepios de forma e de conduta que seguimos para onde eles nos conduzem um inato eacute o desejo de prazer (ἐπιθυμία ἡδονῶν) outro adquirido que aspira sempre ao melhor Por vezes estas duas tendecircncias concordam em noacutes mas em certas ocasiotildees verificamos que entram em guerra em que uma vez sai vencedora a primeira outra vez a segunda Posto isto assentemos em que quando sai vencedora a forma orientada pela razatildeo essa forma chama-se temperanccedila quando eacute o desejo que destituiacutedo de razatildeo nos arrasta para os prazeres chama-se gula []14

Embora o desejo de prazer seja inato aos homens eacute necessaacuterio educaacute-lo

oferecer-lhe agrave correta direccedilatildeo caso contraacuterio natildeo se torna possiacutevel trilhar um caminho

ascendente do corpoacutereo ao racional diga-se espiritualizar a relaccedilatildeo com os objetos de

desejo bem como na relaccedilatildeo mesma com o proacuteprio desejo inato de prazer15

11 O termo alma do grego ψιχή eacute conceito fundamental em Platatildeo Considera-se aqui como termo alma a sede da inteligecircncia e da moral Conforme propotildee TRABATONNI Platatildeo p 131-32 ldquoDesde os tempos de Homero a alma representava a vida do corpo Todavia Platatildeo aceita a provaacutevel posiccedilatildeo do Soacutecrates histoacuterico que abandona o aspecto fisioloacutegico (alma como apenas o que manteacutem o corpo vivo) para uma imagem espiritual a alma eacute antes de tudo a sede do intelecto e da consciecircncia e eacute o sujeito das accedilotildees e dos valores moraisrdquo 12 Como assere GRUBE El pensamiento de Platoacuten p 130 ldquoDo ponto de vista da intensidade os maiores prazeres satildeo fiacutesicos [] se o que buscamos eacute a intensidade nunca a encontraremos na sauacutede ou na moderaccedilatildeordquo 13 Conforme o argumento apresentado corrobora ROWE Introduccioacuten a la eacutetica griega p 253 ldquoA sophrosyacutenecirc eacute a sujeiccedilatildeo harmoniosa das duas partes inferiores da alma agrave parte racional dominanterdquo Para Rowe sem a temperanccedila natildeo eacute possiacutevel agrave faculdade racional (logistikoacuten) da psycheacute dominar as funccedilotildees que lhe satildeo inferiores 14 PLATAtildeO Fedro 237e-238a Observa-se no Fedro 238a o trecho seguinte ldquo[] quando eacute o desejo que destituiacutedo de razatildeo nos arrasta aos prazeres e nos conduz a seu belo talante essa forma chama-se gulardquo Na traduccedilatildeo do diaacutelogo para a liacutengua inglesa tem-se o termo ldquoexcessrdquo a significar ldquoem demasiardquo ldquoem excessordquo In Plato in Twelve Volumes 1925 Questatildeo de amplo interesse cuja problemaacutetica adentra-se agrave psicanaacutelise Conforme MASCARENHAS Emoccedilotildees no Divatilde pp 216-19 ldquoa gula relaciona-se com a voracidade fissura mesma Por isso eacute insaciaacutevel ademais refere-se a todo tipo de excesso natildeo somente portanto aos apetites culinaacuteriosrdquo Assim tanto o termo gula da traduccedilatildeo para o portuguecircs quanto o termo excess em inglecircs ambos parecem adequados e expressam coerecircncia ao pensamento (notavelmente originaacuterio) de Platatildeo 15 REIS M Por uma nova interpretaccedilatildeo das doutrinas escritas a filosofia de Platatildeo eacute triaacutedica p 385 nota 11 argumenta o seguinte ldquoNa filosofia platocircnica o uso de epithymiacutea (apetite de algo) distingue-se daquele do eacuteros (desejo amor) O sentido do primeiro termo eacute mais restrito que o do segundo A epithymiacutea refere-se a um tipo de iacutempeto proacuteprio agrave parte apetitiva da alma voltado para determinado objeto (apetite de algo) ligado agraves experiecircncias de carecircncia e suprimento de prazer e dor Jaacute o eros refere-se ao impulso da

121

Platatildeo argumenta que natildeo eacute condizente com agrave razatildeo e com agrave virtude satisfazer-

se em um modo de ser conduzido por um hedonismo absoluto ainda mais quando os

objetos de prazer natildeo se elevam para aleacutem da sensaccedilatildeo16 O diaacutelogo Fedro na passagem

seguinte corrobora com agraves inferecircncias apresentadas

O desejo que desprovido de razatildeo atrofia a alma (psycheacute) e esmaga o prazer (hecircdonecirc) do bem e se dirige exclusivamente para os desejos proacuteprios da sua natureza cujo uacutenico objetivo17 eacute a beleza corporal quando se lanccedila impudicamente sobre ela comporta-se de tal maneira que se torna irresistiacutevel e eacute dessa irresistibilidade dessa forccedila destemperada que ele recebe a denominaccedilatildeo de Eros ou de Amor18

Embora o final da citaccedilatildeo conclua negativamente quanto agrave ldquoforccedila

destemperadardquo de Eros torna-se plausiacutevel quando adicionado a outros argumentos do

proacuteprio Fedro compreender que Eros quando desprovido de razatildeo e desprovido de

temperanccedila eacute somente forccedila impulsiva sem o devido direcionamento assim justifica-se

o educar daquele que deseja e somente assim eacute possiacutevel agrave alma (psycheacute) e natildeo ao corpo

amar o que verdadeiramente eacute digno de amor19

Entrementes antes de merecida e continuada anaacutelise qualitativa sobre Eros e

sobre determinados conceitos agrave compreensatildeo almejada eacute imprescindiacutevel somar-se mais

algumas consideraccedilotildees sobre o ldquocrushrdquo enquanto possibilidade de exprimir a mentalidade

cultural20 do jovem adolescente

totalidade da alma (e natildeo de parte dela) seu eacutelan vital movimento que conduz a alma agrave continuidade agrave unidade bem como elemento unificador do muacuteltiplordquo Este argumento embora forte eacute passiacutevel de refutaccedilatildeo na proacutepria passagem referendada no texto do diaacutelogo Fedro 238c Poreacutem o argumento estaacute correto quanto a caracterizaccedilatildeo de eros como forccedila propulsora agrave totalidade da alma (por isso aqui apresenta-se a interpretaccedilatildeo de eros como caminho ascendente em direccedilatildeo agrave Beleza em si consoante ao diaacutelogo Banquete da mesma forma considera-se que ldquocrushrdquo natildeo pode significar equivalecircncia a amor platocircnico como amor ideal justamente devido ao objeto de amor do amante Como elemento metafiacutesico de unificaccedilatildeo creia-se que estaacute mais para o Bem do que para Eros Quanto agrave questatildeo de carecircncia ou falta temos o desejo pela beleza assim como temos pela sabedoria ou pelo gozo fiacutesico o que difere eacute o objeto e natildeo a faculdade desejante Por isso educar a razatildeo de quem deseja e adicionar a virtude da temperanccedila 16 Isto eacute como ato de sentir aiacutesthesis 17 No original grego tem-se a expressatildeo ἐπιθυμιῶν ἐπὶ σωμάτων κάλλος assim a melhor traduccedilatildeo seria infere-se ldquocujo uacutenico desejo eacute a beleza corporalrdquo 18 PLATAtildeO Fedro 238c 19 Crecirc-se evidente que em Platatildeo natildeo haacute negaccedilatildeo do desejo de prazer A proacutepria felicidade (eudaimoniacutea) natildeo eacute a ausecircncia de desejos como pensaram os epicuristas ao contraacuterio a felicidade consoante Platatildeo eacute o domiacutenio sobre si i eacute o equiliacutebrio entre as faculdades da psycheacute embora seja sempre preferiacutevel o predomiacutenio da razatildeo como garantia da proacutepria harmonia Contribui GRUBE El Pensamiento de Platoacuten p 117 no seguinte ldquoPlatatildeo afirma que o prazer e dor satildeo estados de atividade rechaccedilando assim a confusatildeo de uma felicidade como mera imperturbabilidade e ausecircncia de todos desejos estado negativo e passivo que constituiria o ideal dos epicuristasrdquo Tambeacutem em referecircncia ao Filebo GRUBE (Ibid p 123) ldquoUma vida boa deve conter para tanto certa mescla de conhecimento e sentimento de intelecto e prazerrdquo 20 Conceito relevante agrave histoacuteria e agrave antropologia mentalidade cultural significa infere-se ao que caracteriza um modo de ser especiacutefico dentro de determinado contexto histoacuterico-social todavia natildeo restrito necessariamente a um tempo e espaccedilo determinado e especiacutefico pois que seu objeto eacute sobretudo o mental

122

Supotildee-se que a utilizaccedilatildeo de giacuterias entre os jovens adolescentes caso em que

o ldquocrushrdquo eacute somente mais uma dentre inuacutemeras acabam por atuar como ldquoidentificadoresrdquo

ou como ldquoagentes sociaisrdquo em que determinados grupos expressam seus valores e sua

mentalidade cultural comum logo identificaccedilatildeo essa fortemente relacionada agrave

coletividade Por paradoxal que inicialmente possa parecer o uso de giacuterias revela uma

possiacutevel contraposiccedilatildeo ao individualismo ou a individuaccedilatildeo marca indeleacutevel de nossa

eacutepoca

O socioacutelogo polonecircs Zygmunt Bauman assim define o conceito de

individualizaccedilatildeo ldquoO que a ideacuteia de lsquoindividualizaccedilatildeorsquo traz eacute a emancipaccedilatildeo do indiviacuteduo

da determinaccedilatildeo atribuiacuteda herdada e inata do caraacuteter social dele ou dela uma separaccedilatildeo

corretamente vista como uma caracteriacutestica muito clara e seminal da condiccedilatildeo

moderna21rdquo

Procede assim que o individualismo atua como desagregador do sujeito na

medida em que o dissocia do todo social promovendo o rompimento com a histoacuteria e

com a heranccedila familiar e comunitaacuteria22 Por conseguinte as giacuterias em geral acabam por

constituiacuterem-se como agentes de identificaccedilatildeo social estimulando agrave convivecircncia e agraves

relaccedilotildees intersubjetivas

Entretanto quando aplicado agrave especificidade da giacuteria ldquocrushrdquo natildeo se pode

inferir que haacute um efetivo movimento de socializaccedilatildeo Pois quando certo aluno relata que

possui diferentes ldquocrushrdquo em diferentes locais o referido espaccedilo23 natildeo eacute necessariamente

embora em direta relaccedilatildeo com o que eacute tipicamente social O historiador Ronaldo Vainfas em artigo intitulado Histoacuteria das Mentalidades e Histoacuteria Cultural p 148-49 corrobora em nossa elaboraccedilatildeo asserindo o seguinte [] lsquoNova Histoacuteria Culturalrsquo distinta da antiga lsquohistoacuteria da culturarsquo disciplina acadecircmica ou gecircnero historiograacutefico dedicado a estudar manifestaccedilotildees lsquooficiaisrsquo ou lsquoformasrsquo da cultura de determinada sociedade as artes a literatura a filosofia etc A chamada Nova Histoacuteria Cultural natildeo recusa de modo algum as expressotildees culturais das elites ou classes lsquoletradasrsquo mas revela especial apreccedilo tal como a histoacuteria das mentalidades pelas manifestaccedilotildees das massas anocircnimas as festas as resistecircncias as crenccedilas heterodoxas Em uma palavra a Nova Histoacuteria Cultural revela uma especial afeiccedilatildeo pelo informal e sobretudo pelo popularrdquo Nota-se portanto que o trabalho aqui proposto embora se relacione com que poder-se-ia chamar de ldquohistoacuteria das ideiasrdquo porquanto vinculado o tema a um grande expoente do pensamento filosoacutefico Platatildeo tem no entanto como ponto de partida de sua pretensa problematizaccedilatildeo algo que pertence agrave ldquocultura simplesrdquo informal expressatildeo de um modo de ser em que o uso da giacuteria serve como caracterizaccedilatildeo Ademais evidencia-se o tema como objeto passiacutevel de diferentes abordagens teoacutericas o que contribuiria por si soacute a produtivo trabalho interdisciplinar em sala de aula e natildeo somente na alcunha Ciecircncias Humanas mas tambeacutem notadamente em relaccedilatildeo agraves Linguagens e suas tecnologias 21 BAUMAN Z A sociedade individualizada p 183 22 Pensa de maneira correlata Alasdair MacIntyre em criacutetica agraves eacuteticas individualistas e em defesa da perspectiva apresentada pelo comunitarismo eacutetico do qual comunga Consultar entre outras obras After Virtue 1981 23 Natildeo adentraremos ateacute por falta de competecircncia socioloacutegica para fazecirc-lo na especiacutefica problemaacutetica quanto aos conceitos de espaccedilo Todavia apresenta-se sobre o tema o seguinte esclarecimento de BAUMAN Eacutetica Poacutes-Moderna p 167 ldquoMuito se escreveu sobre a distinccedilatildeo entre espaccedilo lsquofiacutesicorsquo mdash espaccedilo lsquoobjetivorsquo lsquoespaccedilo como talrsquo - e espaccedilo social Em geral existe acordo em que ambos se acham em

123

fiacutesico em verdade na maioria natildeo o eacute e nisto entra-se na questatildeo do distanciamento

promovido pelo mundo ldquoonlinerdquo e neste sentido ocorreria natildeo um estiacutemulo agrave

socializaccedilatildeo ao contraacuterio haveria estiacutemulo ao individualismo excludente24

A relaccedilatildeo com o virtual eacute inegaacutevel se nisto existe a promoccedilatildeo para o

retrocesso nas relaccedilotildees humanas ou abertura agrave socializaccedilatildeo todavia esta questatildeo longe

se encontra de mostrar-se conclusiva Natildeo obstante o aspecto mais estritamente filosoacutefico

ao tema talvez se revele no seguinte questionamento O que caracteriza agraves relaccedilotildees

humanas

Se agraves relaccedilotildees humanas estiverem restritas agrave socializaccedilatildeo e agrave vida coletiva ao

encontro com o outro em espaccedilo determinado no tempo e no espaccedilo sem duacutevida o mundo

ldquoonlinerdquo eacute seguramente expressatildeo de empobrecimento da existecircncia humana Por outro

lado se a virtualidade do espaccedilo em rede propicia relaccedilotildees humanas qualitativas entatildeo

haacute outras formas possiacuteveis de caracterizar os relacionamentos humanos Esta segunda

perspectiva positiva quanto agraves relaccedilotildees ciberneacuteticas parece colocar-se de acordo com o

pensamento do filoacutesofo francecircs Pierre Leacutevy

Para Leacutevy em obra intitulada Cibercultura ldquoeacute virtual toda entidade

lsquodesterritorializadarsquo capaz de gerar diversas manifestaccedilotildees concretas em diferentes

momentos e locais determinados sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou

tempo determinadordquo25 Se conforme assere trata-se de ldquomanifestaccedilotildees concretasrdquo a

realidade virtual eacute tatildeo composta de realidade quanto ao que se restringe a empiria das

relaccedilotildees humanas ideia ao que parece condizente com o conceito de

ldquodesterritorializaccedilatildeordquo

Nestes termos a giacuteria ldquocrushrdquo manifesta algo real embora o objeto desejado

seja uma simples reproduccedilatildeo imageacutetica Quando por exemplo jovens tornam-se

ldquoseguidoresrdquo nas redes sociais ndash que satildeo globais eacute vaacutelido frisar ndash de outros jovens que de

relacionamento metafoacuterico um com o outro De um lado falamos de espaccedilo social usando os termos cunhados para a distacircncia e proximidade lsquofiacutesicasrsquo lsquoobjetivasrsquo e mensuraacuteveis Mas de outro lado pode-se tambeacutem frisar que soacute se pocircde chegar agrave ideacuteia desse lsquoespaccedilo fiacutesicorsquo pela reduccedilatildeo fenomenoloacutegica da experiecircncia diaacuteria agrave pura quantidade durante a qual a distacircncia eacute lsquodespovoadarsquo e lsquoextemporalizadarsquo ou seja sistematicamente limpada de todos os traccedilos contingentes e transitoacuterios somente no fim dessa reduccedilatildeo eacute que se pode conceber o espaccedilo objetivo o espaccedilo como tal como lsquoespaccedilo purorsquo lsquoespaccedilo vaziorsquo espaccedilo destituiacutedo de qualquer conteuacutedo relativo a tempo e circunstacircncia Sob esse outro ponto de vista o espaccedilo fiacutesico eacute uma abstraccedilatildeo que natildeo se pode experimentar diretamente captamos o espaccedilo fiacutesico intelectualmente com a ajuda de noccedilotildees que se cunharam originalmente para lsquomapearrsquo qualitativamente relaccedilotildees diversificadas com outros homensrdquo 24 Tal inferecircncia coloca-se de acordo com o pensamento de Bauman em cuja criacutetica agraves redes sociais e ao mundo virtual perpassa quase a integridade de suas obras Cabe-nos ressaltar que de maneira oposta apresenta-se as ideias de Pierre Leacutevy 25 LEacuteVY P Cibercultura p 47

124

certa forma lhe representam ideais entre os quais o de beleza a consequecircncia desta

relaccedilatildeo se manifestaraacute no comportamento gerando-se assim atitudes e modos de

proceder crenccedilas e ideias portanto se a relaccedilatildeo em si mesma natildeo eacute necessariamente

social seus impactos seratildeo sentidos no interior das sociedades

Torna-se compreensiacutevel agrave valorizaccedilatildeo excessiva da beleza fiacutesica o culto aos

corpos trabalhados em esforccedilos contiacutenuos em horas de academia Natildeo se intenciona

criticar a valorizaccedilatildeo da sauacutede e do esporte mas sim o elevado status quo sociocultural

que impera em torno do corpo O chamado ldquopadrotildees de belezardquo que se encontram

reforccedilados na grande miacutedia formam modelos idealizados sobre o que melhor

representaria os ideais de belo

Neste panorama desenvolvem-se valores outros que natildeo correspondem aos

valores morais Ao valorar em demasia tudo o que se encontra atrelado ao corpoacutereo i eacute

aos valores materiais em consequecircncia desvaloriza-se princiacutepios necessaacuterios que

deveriam nortear a vida humana e as sociedades assim natildeo eacute por acaso que todas as

grandes crises da contemporaneidade mundial propotildee-se possuam como causa primaacuteria

a falta de virtudes26

O filoacutesofo Alasdair MacIntyre ao analisar agrave eacutetica tomista e a diferenciaccedilatildeo

proposta entre bens exteriores e bens interiores denota que as sociedades ocidentais

materialmente desenvolvidas excluiacuteram as virtudes em detrimento da valorizaccedilatildeo

somente dos bens exteriores

Neste sentido acrescentar-se-ia a identificaccedilatildeo do belo ao corpo com a

supremacia da imagem e da propaganda a promover a supraexcitaccedilatildeo dos sentidos tatildeo

bem explorada pelo ldquoshow businessrdquo e admirado pela ldquosociedade do espetaacuteculo27rdquo

privilegiando-se o desejo de prazer ao que eacute satisfeito apenas pelos sentidos que como

referido anteriormente coloca-se em oposiccedilatildeo ao que propusera o pensamento platocircnico

Assim a simbologia do ldquocrushrdquo relaciona-se diretamente portanto com a

imagem em um contexto que privilegia o espetaacuteculo Como proposto de forma notaacutevel

26 Cf MAcINTYRE Depois da virtude p 340-341 ldquoSe natildeo houver um telos que transcenda os bens limitados das praacuteticas constituindo o bem de toda a vida humana o bem da vida humana concebido como uma unidade faraacute com que certas arbitrariedades subversivas invadam a vida moral e sejamos incapazes de especificar adequadamente o contexto de certas virtudesrdquo 27 Tiacutetulo da obra de Guy Debord La Societeacute du spectacle publicada pela primeira vez em 1967 em Paris

125

por Guy Debord ldquoO espetaacuteculo natildeo eacute um conjunto de imagens mas uma relaccedilatildeo social

entre pessoas mediatizada por imagens28rdquo

A definiccedilatildeo de espetaacuteculo conforme se nos apresenta Debord acaba por

adentrar-se na anaacutelise desenvolvida porquanto o ldquocrushrdquo demonstra justamente as

relaccedilotildees que em grande medida satildeo mediatizadas pela imagem imagens estas que

representam os estereoacutetipos de beleza produzidos pela induacutestria cultural na

retroalimentaccedilatildeo dos proacuteprios valores das sociedades industrializadas contemporacircneas

Se de fato vivenciamos uma sociedade do espetaacuteculo isto tambeacutem significa

que vivenciamos uma sociedade da primazia dos sentidos e avessa ao pensamento

abstrato agrave contemplaccedilatildeo e agrave reflexatildeo

Para Platatildeo29 os sentidos satildeo considerados insuficientes e incapazes para

compreender a realidade primeira do inteligiacutevel e portanto a realidade e universalidade

dos princiacutepios originaacuterios (archaiacute) representados nas Ideias do Justo do Belo e

sobretudo a do Bem30 conforme evidencia-se no diaacutelogo Repuacuteblica

E que existe o belo em si e o bom em si e do mesmo modo relativamente a todas as coisas que entatildeo postulamos como muacuteltiplas e inversamente postulamos que a cada uma corresponde uma ideia que eacute uacutenica e chamamos-lhe a sua essecircncia [] E diremos ainda que aquelas satildeo visiacuteveis mas natildeo inteligiacuteveis ao passo que as ideias satildeo inteligiacuteveis mas natildeo visiacuteveis31

Do que se segue que em Platatildeo as artes em geral bem como os indiviacuteduos

que a expressam estatildeo somente utilizando-se de opiniotildees (doxai) sobre a realidade e natildeo

portanto com o conhecimento (episteacuteme) desta A imagem (eiacutedolon) que funciona como

representaccedilatildeo do sensiacutevel e revela o senso esteacutetico eacute uma coacutepia de algo que em si mesmo

eacute uma imitaccedilatildeo (miacutemesis) Logo natildeo haacute aproximaccedilatildeo ao que eacute verdadeiramente real e ao

que verdadeiramente possui valor ou deveria possuir valor ao ser humano32 Natildeo obstante

28 DEBORD La Societeacute du spectacle tese 58 Livre traduccedilatildeo do francecircs Vale a ressalva que o autor faleceu em 1994 antes portanto do acesso global agrave rede mundial de computadores (Internet) tambeacutem portanto antes do surgimento das redes sociais 29 O filoacutesofo propotildee uma relaccedilatildeo do homem com o todo coacutesmico universal O mundo fiacutesico e a vida fiacutesica que haacute neste somente expressa uma particularidade existencial mas se encontra neste plano os princiacutepios que o fundamentam A filosofia de Platatildeo promove a espiritualidade no humano e portanto vinculada ao impereciacutevel e permanente ao que em suma verdadeiramente eacute 30 Compreende-se que o Bem (Agathoacuten) natildeo eacute uma Ideia (Idea ou Eiacutedos) mas estaacute aleacutem destas conforme depreende-se do exposto seguinte Repuacuteblica 509c ldquo[] apesar do bem natildeo ser uma essecircncia (ousiacutea) mas estar acima e para aleacutem da essecircncia (hyperousiacutea) pela sua dignidade e poderrdquo 31 PLATAtildeO Repuacuteblica 507b 32 Tal raciociacutenio revela-se coerente ao sugestionado na ldquoteoria da Linhardquo no livro VI de A Repuacuteblica em que eacute se evidencia os diferentes niacuteveis hieraacuterquicos de realidade e a adequaccedilatildeo dos saberes apresentados de forma ascendente de maneira que cabe a psycheacute ascender da multiplicidade agraves essecircncias e ainda sobre

126

caberia ainda questionar Mas estas imagens representaccedilotildees do belo nos corpos belos

atuam propedecircuticamente em sentido ascendente agrave Beleza em si mesma

Chega-se novamente ao anteriormente proposto ou seja embora o desejo aos

corpos belos possa atuar como primeira etapa ao verdadeiramente Belo consoante ao que

eacute asserido no diaacutelogo Banquete a ausecircncia de valores que possam corresponder ao natildeo

corpoacutereo e a invisibilidade nas sociedades contemporacircneas acabam por atuar como fortes

empecilhos para este caminho ascendente em direccedilatildeo ao inteligiacutevel e portanto natildeo

correspondem agrave realidade do ldquoamor platocircnicordquo

No contexto mercadoloacutegico das sociedades industrializadas cujo mote

econocircmico eacute o consumo os objetos de desejo satildeo produzidos sobretudo no olhar eacute a

partir deste sentido corpoacutereo que aquele que deseja assim vislumbra os possiacuteveis prazeres

proporcionados na aquisiccedilatildeo de algum bem exterior

Eacute notaacutevel que nrsquoA Repuacuteblica33 confere-se agrave educaccedilatildeo o atributo de

justamente caracterizar-se a correta orientaccedilatildeo dada ao olhar Ora se se olha somente

tendo em vista as coisas materiais a faculdade que deseja iraacute preponderar fortemente

sobre a racionalidade e sobre qualquer virtude que a psycheacute possa apresentar e

desenvolver

Do que se segue que o olhar da psycheacute quando corretamente educado volta-

se agrave interioridade de si mesmo assim transcendendo agraves imperfeitas representaccedilotildees do

visiacutevel Contudo se o olho como oacutergatildeo humano pudesse indicar algo em direccedilatildeo agrave perfeita

beleza indubitavelmente encontrar-se-ia o ceacuteu ou mesmo o aleacutem do ceacuteu agraves galaacutexias e os

objetos do universo o grau maior de aproximaccedilatildeo quanto ao que eacute realmente Belo

Justifica-se pois o distanciamento quanto agrave simples beleza encontra nos corpos belos e

por conseguinte a ruptura entre o que chamar-se-ia de ldquocrushrdquo e o ldquoamor platocircnicordquo

Na atualidade de nossas sociedades a educaccedilatildeo subtraiu o olhar agrave

interioridade ao conhecimento de si mesmo eacute este sobretudo o sentido da correta

orientaccedilatildeo do olhar para Platatildeo Em suma este eacute caminho interno das virtudes dos bens

interiores como propunha a eacutetica tomista Infelizmente tudo parece indicar que se

caminha em sentido contraacuterio a estes bens impereciacuteveis e natildeo descartaacuteveis ao espiacuterito

humano

estas o Bem (este representado no simbolismo do Sol) Consultar tambeacutem o livro X da referida obra sobretudo a passagem de 597a-598e ss 33 PLATAtildeO Repuacuteblica 518d

127

A ldquomodernidade liacutequidardquo como a cunhou Bauman como sendo ldquoa civilizaccedilatildeo

do excesso da superfluidade do refugo e da sua remoccedilatildeo34rdquo eacute a civilizaccedilatildeo dos bens

exteriores da moda do supeacuterfluo e da mutabilidade constante assim em certo sentido o

ldquocrushrdquo representa somente esta necessidade de preencher-se de algo que provavelmente

natildeo duraraacute ateacute agrave proacutexima estaccedilatildeo

Da mesma forma se haacute uma civilizaccedilatildeo do excesso longe nos encontramos

consoante a eacutetica aristoteacutelica35 da virtude Tem-se o excesso do descartaacutevel e do

momentacircneo assim como haacute deficiecircncia do que se constitui como permanente e

duradouro daquilo que sempre eacute Sem duacutevida esta foi uma seacuteria preocupaccedilatildeo para Platatildeo

A beleza dos corpos degenera-se envelhece morre e decompotildee-se mas a

Beleza em si mesma encontra-se em tudo o que eacute belo e se belo tambeacutem bom porque

tudo verdadeiramente bom haacute de ser belo36 Do que se segue que as virtudes sempre satildeo

em si mesmas virtudes talvez seja este o teacutelos grego que precisa ser reconstruiacutedo37

O simbolismo do ldquocrushrdquo portanto expressa esta superficialidade indeleacutevel

ou esta ldquoliquidezrdquo nos dizeres de Bauman sobre agraves relaccedilotildees humanas nas sociedades

contemporacircneas E se estes desejos amorosos pelos belos corpos e das belas

representaccedilotildees das imagens ainda sim podem servir como indiacutecios de uma continuidade

ascendente agrave Beleza verdadeira e primeira neste caso se correto for haacute possiblidade de

se restaurar o humano em sua proacutepria humanidade

Em estudo sobre o diaacutelogo Banquete38 o notaacutevel historiador da filosofia e

helenista italiano Giovanni Reale comenta

34 BAUMAN Z Vidas Desperdiccediladas p 120 35 ldquo[] a virtude moral eacute um meio-termo e em que sentido devemos entender essa expressatildeo e que eacute um meio-termo entre dois viacutecios um dos quais envolve excesso e o outro deficiecircncia e isso porque a sua natureza eacute visar agrave mediania nas paixotildees e nos atosrdquo (Eacutetica agrave Nicocircmaco II 1109 a 20) 36 No texto platocircnico do diaacutelogo Hiacutepias Maior cujo principal objeto eacute a anaacutelise do conceito de Belo em uma busca marcadamente propedecircutica pela definiccedilatildeo do ldquoBelo em sirdquo apresenta-se embora o diaacutelogo seja aporeacutetico a equivalecircncia entre o Bem (Agathoacuten) e o Belo (Kaacutelon) neste sentido algo natildeo pode ser bom sem ser belo e belo sem ser bom Conforme o texto Hiacutepias Maior 297b assere Soacutecrates ldquoNa mesma ordem de ideias se o belo eacute causa do bem eacute porque o bem soacute pode ser originado pelo belo E aiacute estaacute salvo erro a razatildeo de nos empenharmos na sabedoria e em todas as demais coisas belas eacute que o seu produto o seu lsquorebentorsquo ndash ou seja o bem ndash eacute digno do nosso empenho e satildeo porventura elas que nos levam a descobri o belo como uma espeacutecie de lsquopairsquo do bemrdquo No diaacutelogo Repuacuteblica 506e-507c tem-se o inverso na relaccedilatildeo porquanto o Bem aparece como o ldquopairdquo do Belo Consultar entre outras obras fundamentais G M A Grube Platorsquos thought London University Press 1970 37 Neste sentido corrobora MAcINTYRE Depois da virtude p 368-69 ldquoAs virtudes devem ser compreendidas como as disposiccedilotildees que aleacutem de nos sustentar e capacitar para alcanccedilar os bens internos agraves praacuteticas tambeacutem nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem capacitando-nos a superar os males os riscos as tentaccedilotildees e as tensotildees com que nos deparamos e que nos forneceratildeo um autoconhecimento cada vez maior bem como um conhecimento do bem cada vez maiorrdquo 38 ldquoAs obras filosoacuteficas e eruditas em cujo tiacutetulo aparece a palavra banquete tatildeo abundantes na literatura grega poacutes-platocircnica atestam a grande influecircncia que a penetraccedilatildeo do espirito filosoacutefico e dos seus

128

[] a temaacutetica do eros e do amor deve ser entendido como forccedila mediadora entre o sensiacutevel e o suprassensiacutevel uma forccedila que daacute asas e eleva atraveacutes dos diversos graus da beleza agrave Beleza meta-empiacuterica em si mesma E jaacute que o Belo para o grego coincide com o Bem ou em todo caso eacute um aspecto do Bem assim Eros eacute uma forccedila que eleva ao Bem39

Eros ocupa um lugar de suma importacircncia porque atua exatamente na

distacircncia entre o mundo corpoacutereo sensiacutevel e o mundo verdadeiramente real ou

inteligiacutevel Por isso Eros eacute como o filoacutesofo Pois embora este ame o inteligiacutevel e tudo o

que lhe corresponde a virtude o Belo a sabedoria (sophiacutea) seu amor nunca eacute plenamente

satisfeito Por conseguinte sempre haveraacute uma ausecircncia a ser preenchida sempre haveraacute

necessidade de contiacutenuos esforccedilos para afastar-se da ignoracircncia (amathiacutea)

Do que pondera Reale o Amor eacute um daiacutemon40 entre outros que atuam entre

os deuses e os homens Filho de Penia (pobreza) e Poros (abundacircncia) o Amor ou Eros

tem dupla natureza estando no meio entre a ignoracircncia e a sapiecircncia41

Por sua vez Bauman apresenta o seguinte comentaacuterio ao diaacutelogo Banquete

[] Como sempre Soacutecrates se esforccedila para elevar a mera descriccedilatildeo agrave categoria de lei da loacutegica ao substituir provaacutevel por necessaacuterio natildeo eacute necessaacuterio que aquele que deseja deseje o que lhe falta ou natildeo deseje o que natildeo lhe falta Para que natildeo haja lugar para adivinhaccedilotildees e erros de julgamento Soacutecrates resume todos que desejam desejam o que natildeo estaacute em sua possessatildeo o que natildeo tecircm o que natildeo satildeo e o que lhes falta Isto eacute ele insiste o que chamamos de desejo ou seja o que o desejo deve ser a natildeo ser que seja outra coisa que natildeo o desejo42

Assim considera-se que o desejo eacute existente enquanto natildeo se possui o que se

deseja43 Logo infere-se que o problema eacutetico-filosoacutefico natildeo se encontra na faculdade de

desejar mas sim nos objetos aos quais se direciona a faculdade desejante

profundos problemas exerceu neste tipo de reuniatildeo Eacute Platatildeo o criador da nova forma filosoacutefica do banquete A narraccedilatildeo literaacuteria e a nova interpretaccedilatildeo filosoacutefica da antiga praacutetica social associam-se nele agrave organizaccedilatildeo da vida espiritual na sua escola rdquo JAEGER Paideia p722-23 39 REALE G Platatildeo p 217 40 Eacute vaacutelido elucidar que o termo grego daiacutemonδαίμων natildeo possui entre os gregos o sentido imaginaacuterio de anjo decaiacutedo entidade maligna que habita o inferno Ora o daiacutemon eacute identificado como espeacutecie de guia zeloso como aparece nas palavras de Soacutecrates (consultar Apologia de Soacutecrates) e ainda como aqui estaacute sendo utilizado no sentido de deuses menores (mortais) como eacute o caso do referido Eros 41 REALE ibid p 218-219 Consultar tambeacutem o diaacutelogo Banquete 202e-203a 42 BAUMAN A sociedade individualizada p 207-08 43 Assim pondera TRABATTONI Platatildeo p 147 ldquoO conceito de eros natildeo somente para Platatildeo revela um dado essencial da natureza humana ou seja a sua tensatildeo dinacircmica para a obtenccedilatildeo de um determinado objetivo Em outras palavras essa vontade pode ser chamada de lsquotensatildeorsquo ou lsquodesejorsquordquo

129

Em consequecircncia a proposta de Platatildeo quanto ao desejo eacute educar o agente

desejante i eacute a psycheacute humana Porquanto conforme for o direcionamento do ldquoolharrdquo

ter-se-aacute consigo agraves consequecircncias em relaccedilatildeo ao que se deseja Encontra-se assim a

funccedilatildeo paideiacutestica da filosofia mas tambeacutem a responsabilidade educativa do profissional

de educaccedilatildeo e ainda o dever educativo de pais e familiares como da sociedade em geral

em relaccedilatildeo ao comportamento e aos valores apresentados aos jovens e agraves geraccedilotildees futuras

Por conseguinte deve-se propor lucidez quanto aos objetos de desejo pois

naquilo em que hipoteticamente se encontra carente seria de fato necessaacuterio ou

simplesmente correspondente do supeacuterfluo O desejo apresentado se restringe agrave

satisfaccedilatildeo do corpo da vaidade do orgulho de si ou almeja uma satisfaccedilatildeo mais profunda

e elevada que inclusive pode ser considerada digna de equivalecircncia aos bens interiores

da psycheacute e assim tidos como universalizaacuteveis Retorna-se agrave problemaacutetica referida mais

acima quanto ao que se deve valorar ou ao o que estaacute sendo valorado nas sociedades

contemporacircneas

Socialmente ou culturalmente natildeo haacute grandes problemas quanto ao desejo

pelos belos corpos pela admiraccedilatildeo do vigor da juventude igualmente agrave procura de

experiecircncias diversas que objetivam formar a proacutepria identidade e o enriquecimento das

proacuteprias relaccedilotildees humanas Todavia a questatildeo eacute mais profunda e diz respeito a modos

de ser e valores equivocados que se tem cultuado na contemporaneidade mundial seja

esta uma ldquosociedade do espetaacuteculordquo como propotildee Debord ou uma ldquocivilizaccedilatildeo do

excessordquo como interpreta Bauman

O ldquocrushrdquo pode expressar culturalmente algo natural ao ser humano como

asseria Platatildeo i eacute o desejo de prazer Se no entanto este desejo de prazer restringir-se

somente ao corpoacutereo sem avanccedilar agrave formas e expressotildees mais elevadas e portanto

tambeacutem a prazeres mais qualificados em nada se avanccedila em sentido educacional e

mesmo civilizatoacuterio

Como assere Reale ldquoo amor eacute desejo do belo do bem da sapiecircncia da

felicidade da imortalidade44rdquo no entanto crecirc-se que este sentido ou esta direccedilatildeo dada ao

amor natildeo eacute natural mas sim consequecircncia adquirida na experiecircncia educativa de si

mesmo em correlata relaccedilatildeo ao mundo em que se vivencia agrave proacutepria existecircncia45

44 Cf REALE op cit p 219 45 Como eacute possiacutevel depreender-se da magistral passagem do diaacutelogo Banquete 210a-e 211c-d ldquo[] deve com efeito comeccedilou ela (Diotima) o que corretamente se encaminha a esse fim comeccedilar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos e em primeiro lugar se corretamente o dirige seu dirigente deve ele amar um soacute corpo e entatildeo gerar belos discursos pois deve compreender que a beleza em qualquer corpo eacute irmatilde

130

Do que se segue que na relaccedilatildeo de ensino e aprendizagem quando a atenccedilatildeo

do professor se direciona natildeo somente agrave conteuacutedos poreacutem permitindo a abertura para a

vivecircncia dos proacuteprios educandos promove-se assim o compreender de novos horizontes

educativos que se integram aos conteuacutedos necessaacuterios todavia acrescentando-lhes

sentidos qualitativos que dignificam e enobrecem a proacutepria relaccedilatildeo entre professores e

alunos

Considerado o ldquocrushrdquo como possiacutevel expressatildeo de primeira etapa do amor

o amor pela particular beleza manifestada em um corpo belo pode-se ponderar em

aproximada consonacircncia agrave proacutepria descriccedilatildeo de amor apresentada por Diotima propondo

assim um caminho ascendente de contemplaccedilatildeo da beleza Sem duacutevida a apresentaccedilatildeo de

um novo arcabouccedilo de valores se apresentam indispensaacuteveis e eacute neste novo caminho

propositivo que os belos discursos se tornam imprescindiacuteveis agrave formaccedilatildeo educativa e

filosoacutefica

Neste propoacutesito o direcionamento do olhar amoroso agraves coisas

verdadeiramente belas a procura ao mais belo indubitavelmente conduziraacute ao encontro

com as virtudes e sobretudo ao Bem46 Vislumbra-se assim a inegaacutevel probabilidade

quanto aos provaacuteveis benefiacutecios a serem produzidos nas relaccedilotildees humanas e na vida em

sociedade

Resulta-se assim do exposto precedente a plausibilidade ndash embora soe pueril

ndash de maior apreccedilo agrave filosofia ou ao amor agrave filosofia Natildeo obstante o despertar para este

amor natildeo se encontra restringido no desejo aos corpos belos mas o bom uso desta forccedila

impulsiva de Eros adicionando-lhe o melhor uso de uma racionalidade que enfim

compreenda a ausecircncia de desejo agrave sabedoria nas sociedades contemporacircneas pois como

da que estaacute em qualquer outro e que se deve procurar o belo na forma muita tolice seria natildeo considerar uma soacute e mesma beleza em todos os corpos e depois de entender isso deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um soacute [] depois disso a beleza que estaacute nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo de modo que mesmo se algueacutem de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto contente-se ele ame e se interesse e procura e produza discursos tais que tornem melhores os jovens para que entatildeo seja obrigado a contemplar o belo nos ofiacutecios e nas leis e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum e julgue de pouca monta o belo no corpo depois dos ofiacutecios eacute para o conhecimento que eacute preciso transportaacute-lo a fim que veja tambeacutem a beleza das ciecircncias e olhando para o belo jaacute muito sem mais amor como um domeacutestico a beleza individual de uma crianccedila de um homem ou de um soacute costume natildeo seja ele nessa escravidatildeo miseraacutevel e um mesquinho discursador mas voltado ao vasto oceano do belo e contemplando-o muitos discursos belos produza e reflexotildees em inesgotaacutevel amor agrave sabedoria [] Eis com efeito em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir em comeccedilar do que aqui eacute belo e em vista daquele belo subir sempre como servindo-se de degraus [] e conheccedila enfim o que em si eacute belordquo 46 ldquoPara Platatildeo o conceito de eros torna-se assim a suma e o compecircndio da aspiraccedilatildeo humana ao bemrdquo JAEGER ibid p 738

131

exorta o Banquete47 ldquoUma das coisas mais belas eacute a sabedoria e o Amor eacute amor pelo

belo de modo que eacute forccediloso o Amor ser filoacutesofo e sendo filoacutesofo estar entre o saacutebio e o

ignoranterdquo

Consideraccedilotildees finais

Ao longo do texto houveram algumas conclusotildees que denotaram certo grau

de pessimismo em referecircncia a giacuteria ldquocrushrdquo Pois o seu mais direto significado se

identifica com um modo de ser puramente relacionado ao efecircmero e supeacuterfluo sendo

mais uma expressatildeo de sujeiccedilatildeo do poder constante da imagem e aos ininterruptos

estiacutemulos visuais aos quais todos noacutes encontramo-nos submetidos na

contemporaneidade

Se por um lado eacute na juventude que devemos adquirir certos valores essenciais

agraves necessaacuterias relaccedilotildees humanas eacute tambeacutem o periacuteodo existencial que manifesta grandes

sonhos e ideais de uma incerteza otimista quanto ao futuro ndash como se em outro periacuteodo

existencial se tornasse possiacutevel haver certezas ndash e a crenccedila frequente de que tudo eacute

realmente viaacutevel de ser realizado Triste seria segundo esta linha argumentativa de uma

juventude isenta de idealismo do querer um amor ideal de desejar o que causa prazer e

negar o que eacute motivo de dor Entrementes natildeo se pode confundir ideais com ilusotildees da

mesma que natildeo eacute possiacutevel equivaler submissatildeo a padrotildees como livre-arbiacutetrio

A contemporaneidade possui certos aspectos comuns devido mesmo a

internacionalizaccedilatildeo cultural em que estamos inseridos i eacute o local de alguma forma

sempre estaacute imerso ao global A rede mundial de computadores as redes sociais

ldquodesterritorializaramrdquo agraves relaccedilotildees humanas consoante ao demonstrado no pensamento de

Pierre Leacutevy Para o filoacutesofo francecircs ampliou-se positivamente a comunicaccedilatildeo e o homem

ganhou novos horizontes e possibilidades que lhe enriquecem a existecircncia

Em forma distinta o socioacutelogo polonecircs Zygmunt Bauman deduz que as

relaccedilotildees humanas se tornaram empobrecidas fluidas sem portanto a necessaacuteria

consistecircncia qualitativa que deveriam sustentar agraves relaccedilotildees humanas Encontramo-nos

carentes de sabedoria e distanciados do que os gregos chamaram de bem viver ou boa

vida

47 PLATAtildeO op cit 204b

132

De maneira similar embora de outra perspectiva argumentativa Alasdair

MacIntyre propotildee que a grave ausecircncia de virtudes nas sociedades ocidentais eacute

consequecircncia do individualismo das eacuteticas modernas e do emotivismo encontrado nas

eacuteticas contemporacircneas Eacute novamente preciso aproximarmo-nos enquanto sociedades

desenvolvidas e industrializadas dos ideais de virtude bem como encontrarmos um teacutelos

que corresponda aos anseios da proacutepria racionalidade

Mediante a toda esta complexidade tem-se em Platatildeo algumas possibilidades

para repensarmos o nosso comportamento e nossos valores Entrementes natildeo se trata de

acordarmos em absoluto com o pensamento platocircnico e nem de crermos na possibilidade

de haver na obra do filoacutesofo grego todas as respostas que procuramos em nossas

inquiriccedilotildees Natildeo obstante a maneira como Platatildeo propotildee agrave filosofia i eacute como amor ao

saber que forma o homem de maneira marcadamente espiritual ou seja do homem

integrado ao cosmo e em correspondecircncia a um ideal de perfeiccedilatildeo beleza e sabedoria

manifesta uma maneira de ser ou um modo de vida que se opotildee ao materialismo

existencial vigente

Os filoacutesofos os professores os pesquisadores das ciecircncias humanas natildeo

podem omitir-se quanto agrave formaccedilatildeo moral ciacutevica poliacutetica e comportamental da juvenil

adolescecircncia Pois muito se instrui o intelecto mas pouco ainda se faz em relaccedilatildeo agrave

verdadeira educaccedilatildeo que como propusera Platatildeo eacute educaccedilatildeo para as virtudes Contudo

conforme asserido natildeo eacute possiacutevel educar para as virtudes se natildeo valoramos os bens

internos ao espiacuterito humano

Eacute preciso dizer com coragem agraves sociedades e agraves instituiccedilotildees muitas das quais

instituiccedilotildees educacionais nem tudo que parece ter valor eacute digno de ser valorado Tal

assertiva inclusive revela o sentido aproximado expresso no seguinte ldquoTudo me eacute liacutecito

mas nem tudo conveacutem procuro natildeo me deixar dominar por nada48rdquo

A exortaccedilatildeo do apoacutestolo Paulo nos revela algo importante para ainda

pensarmos nestas palavras finais de encerramento O ser humano independente da eacutepoca

e do contexto histoacuterico e independentemente de qualquer possiacutevel determinismo

geograacutefico ou cultural possui em si mesmo certas tendecircncias internas devendo-se educar

lhe para natildeo se perder no excesso de suas imperfeiccedilotildees morais ou na carecircncia do que lhe

eacute oposto ou seja a virtude

48 PAULO 1 Carta aos Coriacutentios 6 12

133

Como considerado tem-se o excesso de bens materiais e superabundacircncia do

supeacuterfluo e do descartaacutevel em patoloacutegica valorizaccedilatildeo agrave objetos que promovam o prazer

somente ao corpoacutereo e aos sentidos natildeo obstante eacute desvelada a factual ausecircncia de

virtudes de satisfaccedilatildeo de si de prazeres qualificados que enobreccedilam e que ofertem reais

sentidos agrave existecircncia para aleacutem da aparecircncia fiacutesica e da transitoriedade de bens de

consumo

Platatildeo propunha que todo ser humano eacute detentor de um defeito inato ldquoo amor

excessivo de si mesmordquo como tambeacutem a existecircncia do desejo inato de prazer Logo se

natildeo oferecermos aos adolescentes e agraves crianccedilas aos jovens enfim a ldquosolidezrdquo portanto

em oposiccedilatildeo a ldquoliquidezrdquo quanto a maneiras corretas de se proceder e de agir consigo

mesmo e com os outros as novas geraccedilotildees correm o risco de tornarem-se incapazes de

desejarem o que natildeo se vecirc com os olhos do corpo

Eacute este o sentido que o ldquocrushrdquo natildeo poderia somente ser embora o seja i eacute

o desejo pelo belo sem nenhuma intencionalidade de procurar o mais Belo natildeo havendo

assim uma verticalidade dialeacutetica ascendente tudo se daacute no corpoacutereo e neste permanece

Eacute somente neste sentido que se pode permitir equivalecircncia entre ldquocrushrdquo e ldquoamor

platocircnicordquo ou seja somente na concepccedilatildeo common sense do termo porquanto o ldquoamor

platocircnicordquo repete-se natildeo eacute idealizado no sentido comum de entendimento da expressatildeo

de inalcanccedilabilidade de desejo poreacutem apenas ao que manifesta corporeidade

O outro provaacutevel sentido de ldquocrushrdquo e sua equivalecircncia ao ldquoamor platocircnicordquo

natildeo o do senso comum mas o da tradiccedilatildeo de Eros como forccedila impulsiva que direciona agrave

Verdade (Aleacutetheia) e agrave Sabedoria (Sophiacutea) torna-se possiacutevel apenas quando partiacutecipe da

educaccedilatildeo Nisto a funccedilatildeo do filoacutesofo do professor para entatildeo corrigir e orientar em

suma para conduzir (psicagogiacutea) o olhar da psycheacute do jovem ao incessante procurar do

mais Belo que necessariamente tem de se vincular agrave abstrata imaterialidade logo

condizente assim a universalidade do Justo e do Bem

Do que se conclui em sentido abrangente que a exigecircncia platocircnica de amor

ao Belo eacute constituiacutedo de um convite e de um aviso Convite porque convida-nos agrave

procura de uma Beleza que natildeo se encontra na transitoriedade daquilo que perece

envelhece morre Aviso ou alerta porquanto se natildeo aceitarmos o convite possivelmente

estejamos fadados a incapacidade de nunca contemplarmos o Belo assim contentando-

nos agraves aparecircncias como se estas fossem a realidade originaacuteria exatamente como

prisioneiros em uma caverna pouco iluminada

134

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS CASSIRER E Antropologia Filosoacutefica ndash ensaio sobre o homem introduccedilatildeo a uma filosofia da cultura humana Trad Vicente Feacutelix de Queiroz 2 ed Satildeo Paulo Mestre Jou 1977 BAUMAN Z A sociedade individualizada vidas contadas e histoacuterias vividas Trad Joseacute Gradel Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2008 _____ Vidas Desperdiccediladas Trad Carlos Medeiros Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2005 _____ Eacutetica Poacutes-Moderna Trad Joatildeo Rezende Costa Satildeo Paulo Paulus 1997 BLACKBURN S Dicionaacuterio Oxford de Filosofia Trad Desideacuterio Murcho et al consultoria da ediccedilatildeo brasileira Danilo Marcondes Rio de Janeiro Zahar 1997 DEBORD G La Societeacute du spectacle Paris Gallimard 1992 GRUBE G M A El pensamiento de Platoacuten Trad Tomaacutes Calvo Martiacutenez Madrid Editorial Gredos S A 1987 JAEGER W Paideacuteia a formaccedilatildeo do Homem grego Trad Artur M Parreira Revisatildeo do texto grego Gilson Ceacutesar Cardoso de Souza 4 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 LEacuteVY P Cibercultura Trad Carlos Irineu da Costa Satildeo Paulo Editora 34 2009 MAcINTYRE A Depois da virtude Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo EDUSC 2001 (Coleccedilatildeo Filosofia amp Poliacutetica) _____ After Virtue Notre Dame University of Notre Dame Press 1984 MOURA M O simboacutelico em Cassirer Revista Ideaccedilatildeo Feira de Santana n 5 2000 PLATO In Twelve Volumes Vol 9 translated by Harold N Fowler Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1925 PLATAtildeO A Repuacuteblica Trad Maria Helena da Rocha Pereira 11 ed Portugal Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2008 _____ O Banquete Trad Introduccedilatildeo e notas do Prof J Cavalcante de Souza 9 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999 _____ Fedro Trad Pinharanda Gomes Lisboa Portugal Guimaratildees Editores 1989 REALE G Platatildeo Trad Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Nova ediccedilatildeo corrigida Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007

135

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A SUBJETIVIDADE E A BUSCA PELA FELICIDADE NO PENSAMENTO DE

BLAISE PASCAL

JeanVargas1

RESUMO Considerando as ideias de teacutedio divertissement esquecimento de si e amor-proacuteprio este texto pretende mostrar em que medida a busca do eu pela felicidade aponta para um problema de fundo qual seja o do eu diante de seu criador Argumenta-se aqui que a condiccedilatildeo humana tal como Pascal a entende eacute crucial para se pensar a questatildeo da subjetividade humana Nesse sentido o objetivo do texto eacute destacar as tensotildees entre o teacutedio e a subjetividade Palavras-chave felicidade subjetividade teacutedio ABSTRACT Considering the concepts of boredom divertissement self forgetfulness and self-love this text intends to show how the search of the self for happiness leads to a fundamental problem that of the self in front of its creator It is argued here that the human condition as Pascal understands it is crucial to thinking about the question of human subjectivity Thus the purpose of the text is highlight the tensions between boredom and subjectivity Keywords happiness subjectivity boredom

Introduccedilatildeo

O problema da subjetividade se coloca para Blaise Pascal (1623-1662) sob

o registro relacional entre o eu e Deus A questatildeo fundamental parece ser expressa da

seguinte maneira como o eu pode ser diante de Deus Dito de outro modo em que

medida este eu pode se colocar haja vista o horizonte de alteridade relacional com o

criador

Como se sabe Pascal nos deixou em sua obra principal denominada

Pensamentos tatildeo somente reflexotildees avulsas com um estilo fragmentaacuterio e assistemaacutetico

1 Doutorando no curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFMG E-mail de contato jean_sv07hotmailcom

137

de escrita filosoacutefica O que significa que estaacute a cargo de seus inteacuterpretes o ocircnus de articular

minimamente as reflexotildees soltas afim de que elas soem como um todo coeso2

Eacute evidente que esta tarefa pode ser malsucedida de modo que trair as

intenccedilotildees do autor eacute sempre uma preocupaccedilatildeo latente Todavia a partir da reflexatildeo

pascalina eacute permitido ao leitor um certo protagonismo pois o modo como os pensamentos

satildeo articulados podem oferecer respostas mais ou menos elaboradas

Eacute diante deste cenaacuterio que este artigo se presta natildeo apenas a vincular os

pensamentos soltos do autor propiciando uma certa simetria agrave reflexatildeo pascalina como

pretende tambeacutem tensionar a relaccedilatildeo entre os pressupostos sobre a subjetividade

(impliacutecitos e expliacutecitos na obra do pensador francecircs) com o olhar antropoloacutegico sobre o

problema da condiccedilatildeo humana Para tanto o texto eacute divido em trecircs momentos quais

sejam 1) O diagnoacutestico sobre a condiccedilatildeo humana em Pascal 2) a subjetividade e o

problema da busca pela felicidade e 3) o esquecimento de si o teacutedio e o divertissement

Primeiro momento O diagnoacutestico sobre a condiccedilatildeo humana em Pascal

A ideia de que o ser humano possui uma natureza traacutegica transita ao longo de

toda a reflexatildeo pascalina3 Em certo sentido a noccedilatildeo de natureza humana em nosso autor

pode ser rastreada ateacute Santo Agostinho passando por Tomaacutes de Aquino e mesmo pelo

Jansenismo4 O lastro que explicita a natureza humana eacute a narrativa da queda e natildeo uma

metafiacutesica de elucubraccedilatildeo filosoacutefica

Esta narrativa da queda natildeo se presta a provar todavia a razoabilidade da

perspectiva cristatilde de Pascal isto eacute natildeo se pretende derivar daiacute um conjunto de provas

robustas sobre o cristianismo A narrativa da queda se configura como o pilar pelo qual

se ergue todo o edifiacutecio argumentativo do filoacutesofo francecircs Mas se por um lado a

narrativa da queda natildeo se presta a provar no sentido forte os pressupostos da

antropologia cristatilde por outro lado ela eacute imprescindiacutevel a uma apologia do cristianismo

na medida em que a situaccedilatildeo humana eacute de forma tal que seria mais misteriosa sem este

misteacuterio Nesse sentido a narrativa da queda tratar-se-ia da melhor chave explicativa para

acessar a condiccedilatildeo humana

2 Com esta observaccedilatildeo natildeo pretendo pressupor que este tipo de literatura assistemaacutetica seja por si soacute insuficiente ou pouco interessante O que pretendi destacar eacute que se o interprete aspirar um todo coeso entatildeo cabe a ele o ocircnus de juntar as peccedilas do quebra-cabeccedila pois o autor prescinde da tarefa de fazecirc-lo 3 GOLDMAN apud BIRCHAL A marca do vazio reflexotildees sobre a subjetividade em Blaise Pascal p 51 4 Ver OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana pp 367-408

138

Mas que condiccedilatildeo seria esta A condiccedilatildeo humana fundamental eacute marcada

pela concupiscecircncia enquanto princiacutepio de todos os movimentos humanos5 A condiccedilatildeo

humana tal qual aparece nos Pensamentos coloca o ser humano diante de Deus a quem

todo amor eacute devido Assim a natureza humana estaacute radicalmente ainda que natildeo

completamente corrompida em funccedilatildeo do pecado original Isto implica em dizer que

embora a criaccedilatildeo de Deus seja melhor do que efetivamente se apresenta soacute conhecemos

de fato sua versatildeo decaiacuteda Natildeo obstante este quadro pessimista algumas caracteriacutesticas

da condiccedilatildeo original satildeo preservadas como por exemplo a possibilidade de acesso ao

conhecimento Natildeo se trata do conhecimento no mais eminente sentido entretanto

conhecer ainda eacute um resquiacutecio de um atributo comunicaacutevel de DeusOu seja dada a atual

condiccedilatildeo eacute vedada ao homem a capacidade de conhecimento pleno Mas o fato de ainda

poder conhecer algo o remete a uma qualidade de sua natureza originaacuteria que eacute por isso

mesmo preacute-queda Trata-se de uma natureza originaacuteria portanto que de certo modo

ainda subjaz

Ora neste sentido o tema do amor-proacuteprio6 eacute significativo para se

compreender o problema da subjetividade em Pascal O amor de si permite ao ser humano

centralizar suas accedilotildees e buscar atender agraves demandas do seu eu De acordo com o proacuteprio

filoacutesofo ldquonuma palavra o eu tem duas qualidades eacute injusto em si fazendo-se centro de

tudo eacute incocircmodo aos outros querendo sujeitaacute-los pois cada eu eacute o inimigo e desejaria

ser o tirano de todos os outrosrdquo7

Eacute como se o eu fosse por assim dizer um ldquoburaco negrordquo insaciaacutevel que natildeo

quer saber a verdade sobre si Por isso muitos se prestam a criar um eu imaginaacuterio pois

estatildeo excessivamente preocupados com a imagem puacuteblica de si8Assim seria preferiacutevel

agraves pessoas comuns melhorarem e reforccedilarem sua imagem puacuteblica a ponto de optarem por

morrer do que efetivamente pensar a si mesmas

O amor-proacuteprio este excessivo de si eacute reduzido a uma modalidade de

concupiscecircncia o que permite a Pascal denunciar os mecanismos que por meio do nosso

eu imaginaacuterio9 acaba por abrir as portas para escamotear a proacutepria subjetividade De

acordo com Pascal conforme observa Luiacutes Oliva ldquoo amor-proacuteprio desmedido (devido ao

5 ARMOGATHE Pascal e o amor-proacuteprio p 232 6 O tema do amor-proacuteprio eacute bastante relevante para Pascal contudo natildeo se trata de um tema exclusivamente cristatildeo Na eacutetica nicomaqueacuteia Aristoacuteteles jaacute abordava esta temaacutetica 7 PASCAL apud OLIVAAntecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 399 8 PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 978 9 IDEM Fr 806

139

deslocamento do centro para a concupiscecircncia o transitoacuterio) fez que o homem mentisse

se mascarasse e se revestisse de qualidades ilusoacuterias para obter poder e estimardquo10

Por isso a relaccedilatildeo vertical do homem com Deus mais do que a relaccedilatildeo

horizontal do eu com os outros eus precisa ser retomada Conforme notou Gouhier ldquotrata-

se da relaccedilatildeo do eu com Deus e natildeo do eu com outros eus Todavia quando o eu se faz

ldquocentro de tudordquo faz tambeacutem girar em torno de si todos os outros eusrdquo11 Graccedilas agrave

concupiscecircncia presente na natureza humana desde a queda o amor deixa de ser

endereccedilado exclusivamente ao criador e passa a lidar com a concorrecircncia do amor-

proacuteprio cuja tendecircncia eacute colocar seus proacuteprios interesses como o centro de suas accedilotildees e

ao fazecirc-lo acaba por travar uma relaccedilatildeo de controle e imposiccedilotildees quando diante do outro

Os problemas denunciados por Pascal decorrentes do ato do amor de si levam

ao tema do eu odioso Este eu que pretende ser o centro da subjetividade precisa ser

aniquilado ou ainda reduzido a nada diante de Deus este outro Absoluto A ideia de

odiar a si mesmo natildeo eacute um exagero pois trata-se de uma expressatildeo literal Gouhier coloca

nesses termos

natildeo basta ldquonatildeo amar a si mesmordquo como recomenda o autor da Imitaccedilatildeo O ldquooacutedio de sirdquo natildeo eacute uma hipeacuterbole a expressatildeo deve ser tomada literalmente ela evoca a um soacute tempo o sentimento e o dever que resultam o amor de Deus12

Deve-se odiar o eu porque este imerso na concupiscecircncia pretende rivalizar

e em uacuteltima anaacutelise procura reivindicar um lugar que eacute exclusivo de Deus O amor de si

eacute abusivo mas natildeo basta tatildeo somente impor limites a ele O ato da conversatildeo precisa

corrigir algo distorcido na natureza humana O centro da subjetividade natildeo pode ser outro

senatildeo o proacuteprio Deus Daiacute a necessidade de odiar a si mesmo na medida em que a

subjetividade corrompida por sua natureza pecaminosa quer ocupar a posiccedilatildeo que

originalmente pertence exclusivamente a Deus

Nosso autor soacute pode adentrar na reflexatildeo sobre o eu que precisa ser odiado

porque parte dos pressupostos acerca da condiccedilatildeo humana Trata-se como mostramos

de uma condiccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais a original mas que todavia natildeo deixou de ser

completamente Jaacute natildeo eacute mais a mesma mas ainda natildeo deixou de ter resquiacutecios da marca

de Deus Desse modo temos aqui uma tensatildeo antropoloacutegica entre o jaacute e o ainda natildeo o

10 OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 400 11 GOUHIER Blaise Pascal conversatildeo e apologeacutetica p 82 12IDEM pp 77-78

140

que torna o cenaacuterio cocircmodo para que Pascal posso diagnosticar o homem como aquele

entre a grandeza e a miseacuteria Desse modo podemos verificar em que medida o problema

do teacutedio e o divertimento corroboram para evitar que o homem retome a relaccedilatildeo

extraviada com o seu criador

Segundo momento A subjetividade e o problema da busca pela felicidade

Ao tratar da questatildeo da subjetividade eacute atribuiacutedo a Pascal a substantivaccedilatildeo

do eu na modernidade13Isto significa dizer que foi o autor dos Pensamentos quem em

suas interlocuccedilotildees com seus antecessores mais notadamente Agostinho Montaigne e

Descartes nos conduziu agrave reflexatildeo sobre a subjetividade enquanto um ente substantivo

Embora Pascal fale de algo como ldquoo eurdquo daiacute natildeo se segue entretanto que ele

tenha predicados exaustivos para propor-nos uma definiccedilatildeo da subjetividade Muito pelo

contraacuterio Se tomarmos o trecho mais frequentado pelos estudiosos para tratar o problema

do sujeito em nosso autor verificamos o cuidado que Pascal tem antes de formular

definiccedilotildees positivas sobre o eu o que eacute o eu

Um homem que se potildee na janela para ver as pessoas que passam se passo por ali posso dizer que ele se pocircs na janela para me ver Natildeo porque ele natildeo estaacute pensando em mim particularmente mas quem ama algueacutem por causa de sua beleza ama mesmo Natildeo porque as bexigas que mataratildeo a beleza sem matar a pessoa faratildeo com que ele natildeo a ame mais

E se me amam pelo meu juiacutezo por minha proacutepria memoacuteria amam me mesmo A mim Natildeo pois posso perder essas qualidades sem perder-me a mim mesmo Onde estaacute entatildeo esse eu se natildeo estaacute no corpo nem na alma E como amar o corpo ou a alma senatildeo por essas qualidades que natildeo satildeo o que fazem o eu pois que satildeo pereciacuteveis Porque algueacutem amaria a substacircncia da alma de uma pessoa abstratamente e algumas qualidades nela existentes Isso natildeo eacute possiacutevel e seria injusto Portanto nunca se ama ningueacutem mas somente qualidades

Natildeo se zombe mais entatildeo daqueles que se fazem honrar por cargos e ofiacutecios pois natildeo se ama ningueacutem a natildeo ser por qualidades posticcedilas14

Apesar de comeccedilar com uma interrogaccedilatildeo Pascal natildeo oferece definiccedilotildees

positivas sobre o eu O fragmento acima nos remete a uma provaacutevel interlocuccedilatildeo com

Descartes O eu em Pascal natildeo converge com a posiccedilatildeo sustentada pelo pensador do

13 DESCOMBESLe parler de soi p 84 14PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 688

141

Coacutegito pois as qualidades posticcedilas aqui embora pereciacuteveis possuem primazia sobre a

substacircncia pensante Como Telma Birchal observou

Neste fragmento que alude sem duacutevidas ao Coacutegito Pascal mostra que a reduccedilatildeo cartesiana tem consequecircncias impraticaacuteveis a seguir numa reviravolta caracteriacutestica de seu pensamento manteacutem a exigecircncia de que o Eu deva ser realmente algo que escape ao domiacutenio do pereciacutevel para terminar afirmando a supremacia das qualidades sobre a substacircncia15

Ora o movimento pascalino longe de admitir ideias claras e distintas

pretende retomar a perspectiva do homem comum e da doacutexa onde as qualidades posticcedilas

satildeo formadoras de opiniatildeo sobre a subjetividade alheia O ponto de Pascal natildeo eacute postular

que as qualidades tomadas de empreacutestimo constituam o eu Pelo contraacuterio esta

perspectiva eacute problematizada No entanto o autor dos Pensamentos tambeacutem parece

descredenciar as articulaccedilotildees que pretendem propor um discurso elaborado sobre a

subjetividade a partir de uma razatildeo especulativa ndash e aqui a interlocuccedilatildeo parece ser mais

uma vez claramente com Descartes como notou Carraud16

Pascal natildeo trata o eu de maneira desencarnada aos moldes de uma

experiecircncia mental O que se pensa ser o eu no fim das contas natildeo passa de um complexo

de qualidades posticcedilas o que nos impede de criticar o homem comum quando este ama

algueacutem por estas mesmas qualidades O eu natildeo estaacute na alma nem no corpo e desta

perspectiva nunca se ama ningueacutem senatildeo a atributos Desenvolveremos mais este ponto

adiante

Por ora resta notar que desse ponto de vista o acesso agrave subjetividade requer

natildeo uma razatildeo especulativa que existe enquanto pensa e somente enquanto pensa A

primazia do acesso agrave interioridade natildeo eacute clara e distinta na medida em que se daacute por meio

do sentimento pois ldquoo coraccedilatildeo possui razotildees que a proacutepria razatildeo desconhecerdquo Ao

introduzir o sentimento como um meio de acesso mais fidedigno agrave interioridade e em

segundo lugar dado o quadro da natureza humana decaiacuteda Pascal tem as ferramentas

necessaacuterias para nos conduzir ao elemento que o interessa de fato qual seja o de uma

intencionalidade da subjetividade Para Pascal mais importante do que a pergunta pelo

que significa o eu em seu sentido metafiacutesico eacute a reflexatildeo moral que estaacute em jogo ndash e aqui

de novo a perspectiva dos filoacutesofos eacute contraposta a do homem ordinaacuterio

15BIRCHAL A marca do vazio reflexotildees sobre a subjetividade em Blaise Pascal p 53 16 CARRAUD Linventiondu moi p 30

142

O que eacute comum na busca de todos os homens Pascal responde ldquotodos os

homens procuram ser felizes () eacute o motivo de todas as accedilotildees de todos os homens ateacute

daqueles que vatildeo se enforcarrdquo17 A busca pela felicidade constitui entatildeo aquilo que ao

fim e ao cabo todos almejam Ora tanto os filoacutesofos quanto os homens comuns jaacute

notaram esta busca incessante Pascal identifica duas opiniotildees que nos conduzem ao

anseio humano da felicidade A opiniatildeo 1) dos homens comuns que buscam a felicidade

no movimento nas coisas e nos objetos externos a noacutes e 2) a dos filoacutesofos que criticam o

homem comum pois a felicidade uacuteltima estaria tatildeo somente no repouso

Pascal argumenta a partir disso que o homem comum tem fortes razotildees para

fazer o que faz Entre ir para a guerra e pensar em si mesmo o homem ordinaacuterio prefere

ir para a guerra Ele procura eacute a caccedila (o movimento) e natildeo exatamente a presa

Todo este movimento para fora de noacutes indica a nossa dificuldade de nos

mantermos em repouso As pessoas tecircm razotildees (motivos) em buscar as coisas Mas

nenhuma dessas coisas externas nos conduz agrave felicidade pois ser feliz (e aiacute os filoacutesofos

tem razatildeo) natildeo estaacute no movimento mas sim no repouso As pessoas passam de coisas

para coisas o que denuncia a nossa condiccedilatildeo de incompletude

Os filoacutesofos nesse sentido acertam na teoria de que a busca dos objetos natildeo

traz felicidade Acontece que os filoacutesofos se equivocam ao sustentarem que o problema

que leva o homem ordinaacuterio agrave busca incessante pelos objetos externos seja motivado por

certa ignoracircncia Para Pascal natildeo se trata de uma ignoracircncia simplista como supotildeem os

filoacutesofos A ignoracircncia eacute de outra ordem e sequer estes grandes pensadores da histoacuteria da

humanidade conseguiram uma soluccedilatildeo eficaz

De fato o remeacutedio oferecido pelos filoacutesofos eacute quase tatildeo ruim quanto a proacutepria

doenccedila Natildeo eacute o dobramento sobre si de acordo com Pascal que resolveraacute o drama

humano pela busca da felicidade Este eacute um paliativo falso O homem comum faz o que

faz porque de alguma maneira sabe que a panaceia da tranquilidade da alma da ataraxia

e de outras tantas foacutermulas de repouso natildeo satisfazem a condiccedilatildeo de incompletude18

Assim podemos formular a questatildeo nesses termos ao se verificar mais

detidamente sobre a razatildeo dos efeitos nota-se que os filoacutesofos acertam na teoria e erram

17 PASCAL apud BIRCHAL Aquele que busca a Deus o increacutedulo e o honnecircte-homme natureza e sobrenatureza nestes trecircs tipos de homem p339 18 Conforme explica Maria Isabel Limongi ldquocomo natildeo se pode encontrar a felicidade que estaacute em Deus nos objetos que deleitam agrave vontade natildeo haacute alternativa senatildeo deixar-se determinar pela imaginaccedilatildeo imaginando que os prazeres sensiacuteveis possam trazer a felicidade que de fato natildeo trazemrdquo LIMONGI Pascal e a ordem da concupiscecircncia p 332

143

na praacutetica pois a felicidade de fato natildeo estaacute no movimento Jaacute o homem comum por sua

vez erra na teoria mas acerta na praacutetica visto que viver na busca dos objetos exteriores

eacute esperado porquanto o repouso de se voltar para si fracassa em sua tentativa de frear a

incontornaacutevel carecircncia do humano pela felicidade Cada uma dessas posiccedilotildees estaacute

parcialmente certa mas eacute preciso compreender a razatildeo dos efeitos A busca interminaacutevel

eacute um efeito que precisa ser explicado

Pascal sugere a partir disso uma terceira posiccedilatildeo que seria preferiacutevel agraves

outras duas Ao juntar a teoria dos filoacutesofos com a praacutetica do homem comum chegamos

ao cristianismo Ora eacute o cristianismo que revela a dupla natureza do homem O homem

eacute um ser miseraacutevel decaiacutedo pois possui um instinto secreto que nos vincula agrave busca

incessante Mas haacute outro instinto secreto que aponta para o fato de que a felicidade como

os filoacutesofos perceberam estaacute no repouso Poreacutem natildeo seria como querem os filoacutesofos um

repouso interior Antes seria um repouso que estaacute fora de noacutes O repouso estaacute em Deus19

(muito embora em certo sentido Deus esteja fora e dentro de noacutes)

O homem eacute um ser contraditoacuterio com duas naturezas quais sejam a marca

de Deus e a marca do vazio Somente Deus completaria o nosso vazio Nesse sentido eacute

preciso compreender que a vida eacute uma busca que o eu soacute pode ser diante de Deus e que

justamente o cristianismo melhor do que a percepccedilatildeo dos filoacutesofos e do homem comum

aponta para este diagnoacutestico A fragilidade humana consiste em querer-se grande mas se

vecirc pequeno em querer ser feliz mas vecirc-se miseraacutevel20

Terceiro momento O esquecimento de si o teacutedio e o divertissement

A proposta de Pascal seguindo a esteira de Platatildeo recomenda que o homem

conheccedila a si mesmo ainda que esta atitude natildeo se preste de modo imediato ao acesso agrave

verdade Nos termos de Pascal ldquoEacute necessaacuterio conhecer-se a si mesmo Ainda que isso

natildeo servisse para encontrar a verdade pelo menos serve para regrar a proacutepria vida e nada

haacute de mais justordquo21

19Segundo Luiacutes Oliva ldquoo repouso soacute viraacute quando a capacidade do homem para o infinito for preenchida novamente ou seja quando o homem se reunir a Deus O pecado foi uma tentativa do homem constituir-se em totalidade proacutepria abandonando o seu verdadeiro centro que eacute Deusrdquo OLIVA Antecedentes filosoacuteficos e teoloacutegicos do conceito pascaliano de natureza humana p 406 20 Ver ANJOSBLAISE PASCAL O DIVERTIMENTO E O CONHECIMENTO DE SI p 363 21PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 72

144

Conhecer a si mesmo implica em pensar em si poreacutem este ato conforme

mostra Pascal eacute evitado a todo o custo na medida em que ldquonatildeo podendo os homens curar

a morte a miseacuteria a ignoracircncia resolveram para ficar felizes natildeo mais pensar nissordquo22

Pensar em si inviabiliza o acesso agrave felicidade mesmo que se trate de uma felicidade fugaz

e efecircmera pois a verdadeira felicidade como jaacute assinalamos soacute Deus a pode conceder

Pois bem o ato de pensar em si mesmo desemboca na natureza precaacuteria do

homem pois se depara com sua condiccedilatildeo miseraacutevel e fraacutegil Mas como os humanos

insistem em tentar suprir sua carecircncia pelos mais diversos meios que natildeo a busca de Deus

eles acabam praticando exatamente o contraacuterio da recomendaccedilatildeo de autoconhecimento

Eles se engajam na empreitada de esquecer-se de si Para obter sucesso nessa tarefa

lanccedilam matildeo do divertissement preenchendo todo o tempo com infindaacuteveis afazeres tais

como denuncia Pascal sobrecarregam os homens desde a infacircncia com o cuidado de sua honra dos bens dos amigos e ainda dos bens e honra dos amigos cumulam-nos de afazeres de aprendizado das liacutenguas e de exerciacutecios e se lhes daacute a entender que natildeo conseguiriam ser felizes sem que a sua sauacutede honra e fortuna e a de seus amigos estivessem em bom estado e que a falta de uma uacutenica coisa dessas os tornaraacute infelizes () E eis por que depois de preparar-lhes tantos afazeres se ainda tiverem algum tempo livre aconselha-se que o empreguem em se divertir e jogar e ocupar-se sempre por inteiro Como o coraccedilatildeo do homem eacute oco e cheio de lixo23

O divertimento ocupa e desvia os homens de pensar naquilo que satildeo O

divertimento funciona como um mecanismo de alienaccedilatildeo porquanto eacute a uacutenica coisa que

consola o ser humano de sua miseacuteria A uacutenica coisa que nos consola de nossas miseacuterias eacute a diversatildeo E no entanto eacute a maior de nossas miseacuterias Porque eacute ela que nos impede principalmente de pensar em noacutes que nos potildee a perder insensivelmente Sem ela ficariacuteamos entediados e esse teacutedio nos levaria a buscar um meio mais soacutelido de sair dele mas a diversatildeo nos entreteacutem e nos faz chegar insensivelmente agrave morte24

Quando cessa a diversatildeo resta apenas o teacutedio e isso vale inclusive para os

grandes homens como o rei por exemplo que ldquo estaacute cercado por pessoas que soacute pensam

em diverti-lo e impedi-lo de pensar em si mesmo Porque ele fica infeliz embora seja rei

22 IDEM Fr 133 23 IDEM Fr139 24 IDEM Fr 414

145

se pensar em sirdquo25 Se por algum motivo a diversatildeo natildeo ocorre eis entatildeo uma vez mais

o homem a soacutes consigo mesmo O proacuteximo passo eacute a emergecircncia do teacutedio este negrume

oriundo do fundo da alma esta tristeza esta maacutegoa este despeito este desespero26

Temos aqui como chama a atenccedilatildeo Carraud um novo sentido de pensar em

si diferente daquele sentido cartesiano

Pensar em si natildeo eacute mais pensar no conceito de si (res cogitans) em Deus como seu autor e seu fim mas em si socialmente e existencialmente em si como rei e como homem que natildeo se divertindo seca-se no teacutedio27

Portanto a tarefa de conhecer-se a si mesmo passa pela ideia de pensar a si

Natildeo se trata contudo de abordar o problema da subjetividade aos moldes cartesianos

Pensar a si eacute pensar esta subjetividade no mundo da vida e sua condiccedilatildeo existencial qual

seja a de buscar a felicidade

Poreacutem pensar a si tem como apanaacutegio a miseacuteria humana daquele que se sabe

mortal28A busca se torna ainda mais obstinada pois a felicidade eacute sempre um ideal

longiacutenquo a ser alcanccedilado Esta busca por ser feliz da perspectiva do homem comum

quanto mais obstinada for mais precisa praticar o esquecimento de si a fim de escapar a

sua condiccedilatildeo decaiacuteda Ora mas esquecer-se de si requer o preenchimento do tempo com

as futilidades e tarefas do cotidiano Mesmo os momentos de lazer satildeo preenchidos com

muito movimento e barulho para garantir que a proximidade com a morte seja discreta

sem se aperceber de fazecirc-lo portanto29 Manter a vida ocupada permite tambeacutem o

afastamento da mais insuportaacutevel companhia o teacutedio

Entediar-se eacute se sentir a soacutes consigo mesmo e lembrar da condiccedilatildeo humana

no mundo Nesse sentido se algueacutem sente teacutedio estaacute prestes a pensar em si mesmo Este

repouso no teacutedio poreacutem pode ser interrompido com a diversatildeo Divertir-se garante a

dissipaccedilatildeo do teacutedio e o retorno agrave situaccedilatildeo alienante do primeiro momento Assim o eu

evita ser diante de Deus e se empenha em ser um eu imaginaacuterio cuja busca da felicidade

se centra nos objetos externos Esta busca motivada pela carecircncia humana leva as

25 IDEM Fr 136 26 IDEM Fr 622 27 CARRAUDObservaccedilotildees sobre a segunda antropologia o pensamento como alienaccedilatildeo p 315 28 Como afirma IvonilParraz ldquoConhecendo sua contingecircncia considerando os acasos que envolvem sua existecircncia o eu ldquoque pensardquo descobre-se natildeo como um eu sou mas como um ser natildeo necessaacuterio nem eterno nem infinito A sua proacutepria condiccedilatildeo no interior do tempo leva-o a descobrir sua finituderdquo PARRAZ O disfarce da forccedila p175 29PASCAL Diversatildeo e teacutedio Fr 414

146

pessoas a um trabalho de Siacutesifo visto que a subjetividade soacute pode acessar a completude

diante do repouso em seu criador Ou ainda dito de outro jeito para Pascal o eu autecircntico

soacute pode ser (no mais eminente sentido do termo) se e somente se for um eu em relaccedilatildeo

com Deus

Conclusatildeo

O tema da subjetividade em Pascal aparece ao longo dos Pensamentos como

um centro de gravidade onde muitas outras temaacuteticas flutuam tais como a busca pela

felicidade o divertimento e o teacutedio para ficar em poucos exemplos Pascal sabe que natildeo

estaacute inaugurando a discussatildeo e sabe especialmente que muito jaacute foi dito sobre este

problema

Todavia o legado pascalino consiste sobretudo em tratar o eu de maneira

substantiva para pensaacute-lo natildeo tanto enquanto uma subjetividade ontoloacutegica mas sim

antropoloacutegica e moral De fato Agostinho jaacute havia tratado do tema a partir deste recorte

mas natildeo nos mesmos moldes em que coloca Pascal Falar do divertimento enquanto

mecanismo de alienaccedilatildeo e da tentativa de evitar o teacutedio com o esquecimento de si tendo

como pano de fundo o problema da natureza humana constitui o esteio pascalino do qual

se pode erigir toda a sua reflexatildeo filosoacutefica

Neste artigo foram precisamente estes os passos adotados para estabelecer o

fio condutor de nossa discussatildeo qual seja o problema da subjetividade Procuramos

mostrar que o pressuposto antropoloacutegico por detraacutes da reflexatildeo de nosso autor passa

tambeacutem por consideraccedilotildees teoloacutegicas amalgamadas na tradiccedilatildeo cristatilde Reconhecer a

condiccedilatildeo humana bem como o que se deriva a partir daiacute mais notadamente a ideia de

concupiscecircncia e amor-proacuteprio permitem ao nosso autor se mover tendo como leitmotiv

a alteridade relacional entre o eu e Deus

No segundo momento destacamos a temaacutetica do eu e sua condiccedilatildeo de

incompletude o que abre o campo para a jornada humana em direccedilatildeo agrave busca pela

felicidade Ora buscar a felicidade conforme procuramos mostrar tanto pela via do

homem ordinaacuterio quanto pela via dos filoacutesofos fracassam em suas tentativas seja porque

acertam na teoria e erram na praacutetica (os filoacutesofos) seja porque acertam na praacutetica mas

erram na teoria (os homens comuns) O eu soacute satisfaz a sua carecircncia quando procura a

felicidade no repouso Este entretanto natildeo estaacute no interior da proacutepria subjetividade pois

estaacute em outra subjetividade alheia a si Estaacute a saber no proacuteprio Deus

147

Muitos satildeo os empecilhos para se alcanccedilar a felicidade O primeiro passo seria

conhecer-se a si mesmo cujo desdobramento implica em pensar em si e por conseguinte

em mergulhar no teacutedio Acontece que as pessoas procuram evitar o teacutedio a todo custo

visto que entediar-se parece estar na contramatildeo de uma vida feliz Ou seja eacute contra

intuitivo supor em princiacutepio que o teacutedio seja preacute-condiccedilatildeo para o acesso agrave felicidade

Um grande mecanismo para evitar que o homem pense em sua condiccedilatildeo e natildeo acesse o

teacutedio eacute o divertimento Divertir-se ou ainda atarefar-se tem como efeito colateral o

esquecimento de si Portanto por meio do divertimento e do esquecimento de si o eu se

aliena do seu criador e soacute conhece a fugacidade da vida sem alcanccedilar a felicidade ulterior

propiciada apenas por Deus

Tratava-se neste artigo portanto de descrever os meandros e caminhos pelos

quais a subjetividade humana escapa a uma condiccedilatildeo autecircntica Esta condiccedilatildeo soacute pode se

dar como chamamos atenccedilatildeo em seu sentido relacional com o criador O cenaacuterio em que

nos coloca Pascal reflete sobre o problema da condiccedilatildeo humana ou como diria o proacuteprio

pensador francecircs sobre a nossa condiccedilatildeo de miseacuteria na qual noacutes humanos meros

ldquocaniccedilosrdquo pensantes nos deparamos

O homem natildeo eacute senatildeo um caniccedilo o mais fraco da natureza mas eacute um caniccedilo pensante Natildeo eacute preciso que o universo inteiro se arme para esmagaacute-lo um vapor uma gota de aacutegua basta para mataacute-lo Mas ainda que o universo o esmagasse o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata pois ele sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele O universo de nada sabe

Toda a nossa dignidade consiste pois no pensamento Eacute daiacute que temos de nos elevar e natildeo do espaccedilo e da duraccedilatildeo que natildeo conseguiriacuteamos preencher Trabalhemos pois para pensar bem eis aiacute o princiacutepio da moral30

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O POSSIacuteVEL METAFOacuteRICO SEGUNDO TOMAacuteS DE AQUINO

Matheus Henrique Gomes Monteiro1

RESUMO O presente artigo tem o objetivo de discutir o conceito de possiacutevel metafoacuterico e suas ocorrecircncias na filosofia de Tomaacutes de Aquino Primeiro apresenta os aspectos gerais do que eacute ldquoser possiacutevelrdquo considerando a obra tomasiana como um todo Segundo situa o possiacutevel metafoacuterico analisando as informaccedilotildees dadas pelo filoacutesofo para definir o conceito Ao longo do artigo ateacute a conclusatildeo apresentam-se questotildees a serem desenvolvidas ulteriormente por pesquisadores da aacuterea como parte da presente discussatildeo Palavras-chave possiacutevel metaacutefora matemaacutetica Filosofia Medieval

ABSTRACT This paper discusses the concept of metaphorical possible and its developments in the philosophy of Thomas Aquinas Firstly I show the main aspects of what means ldquoto be possiblerdquo in Aquinasrsquo philosophical system by considering the thomasic opera as a whole Secondly I locate the metaphorical possible in the divisions of being possible by analyzing the elements given by the philosopher in order to define the concept In the paper specially at the end I suggest some questions to be developed by colleagues and other scholars based on the discussion started Keywords possible metaphor mathematics Medieval Philosophy

Na discussatildeo sobre o que Deus pode fazer e o que pode ser feito Tomaacutes de

Aquino distinguiu vaacuterios modos de dizer ldquoser possiacutevelrdquo entre eles o possiacutevel metafoacuterico

Nos diversos textos em que o conceito aparece o filoacutesofo ele mesmo natildeo o desenvolve

muito com a justificativa de que para tratar dos problemas concernentes ao poder de

Deus o possiacutevel metafoacuterico ldquofoge ao assuntordquo Haacute inclusive textos voltados ao debate

sobre o que eacute possiacutevel por exemplo Sobre a eternidade do mundo de 1271 em que o

possiacutevel metafoacuterico nem mesmo eacute mencionado Muitos comentadores que se dedicaram

a estudar esses temas reconhecem que o filoacutesofo distingue um modo de dizer ldquoser

possiacutevelrdquo metaforicamente e ateacute datildeo a ele uma vaga definiccedilatildeo poreacutem nenhum deles

aprofundou a reflexatildeo sobre o seu significado nem pretendeu compreender a razatildeo por

que Tomaacutes de Aquino o pocircs de lado em tantos debates e sem maiores explicaccedilotildees2

1 Doutorando em filosofia pela UnicampCAPES e-mail Mhgmonteirogmailcom 2 Smith (1943) Dewan (1974) Wippel (1981 p 26) Veldhuijsen (1990 p 31) Wilks (1994) Storlarski (2001 p 97) Storck (2003) Estes autores mencionam o possiacutevel metafoacuterico poreacutem natildeo se concentram em

150

Neste artigo pretende-se apresentar os aspectos gerais do que Tomaacutes de

Aquino discute sobre o ldquoser possiacutevelrdquo e com base neles situar o possiacutevel metafoacuterico em

sua filosofia Por meio desse trabalho espera-se despertar nos estudiosos do pensamento

tomasiano o interesse pelo tema e considerar as questotildees que ele suscita no

prosseguimento das suas investigaccedilotildees3

Nas questotildees Sobre a potecircncia de Deus quando discute sobre o poder divino

e o que pode ser feito o filoacutesofo faz menccedilotildees breves ao conceito de possiacutevel metafoacuterico

contudo ele desenvolve-o com mais detalhe no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica nas partes sobre

os modos de dizer possiacutevel Em resumo Tomaacutes de Aquino diz que o possiacutevel metafoacuterico

eacute segundo nenhuma potecircncia e por isso eacute dito possiacutevel metaforicamente e em sentido

equiacutevoco Aleacutem disso diz que ele pertence ao domiacutenio da matemaacutetica (aritmeacutetica e

geometria) e que ele eacute uma potecircncia racional e uma potecircncia matemaacutetica4 Para haver

melhor compreensatildeo sobre o significado de cada um desses pontos eacute necessaacuterio voltar-

se para a doutrina geral a respeito do ldquoser possiacutevelrdquo em Tomaacutes de Aquino

Em filosofia Tomaacutes de Aquino reserva um importante papel para a accedilatildeo de

dizer (dicere) o que eacute evidente na grande ocorrecircncia desse verbo na articulaccedilatildeo dos

argumentos O recurso agrave fala na qual ele supotildee as intenccedilotildees entre apreensatildeo inteligecircncia

e comunicaccedilatildeo situa o debate sobre o possiacutevel e a possibilidade nos diversos acircmbitos do

discurso5

Em geral o nome possiacutevel (possibilis ou possibile) pode significar os entes

corpoacutereos contingentes os quais podem ser ou natildeo ser segundo a mudanccedila isto eacute podem

ser de um modo agora e de outro depois (alteraccedilatildeo aumento e diminuiccedilatildeo) ou podem vir

a ser (geraccedilatildeo) ou deixar de ser (corrupccedilatildeo) aleacutem desses haacute os entes criados inclusive

esclarececirc-lo Haacute ainda os que abordam questotildees relativas ao possiacutevel na filosofia de Tomaacutes de Aquino poreacutem natildeo mencionam o possiacutevel metafoacuterico Por fim haacute alguma bibliografia sobre a metaacutefora na filosofia tomasiana poreacutem circunscrita ao seu uso na teologia De fato ainda natildeo encontrei pesquisadores interessados em estudar o possiacutevel metafoacuterico no acircmbito da matemaacutetica onde ele eacute situado por Tomaacutes de Aquino Espero que este artigo seja um incentivo para pesquisas sobre o assunto 3 Uma das questotildees que precisam ser esclarecidas eacute se o possiacutevel metafoacuterico era de fato um conceito que Tomaacutes de Aquino integrava ao seu pensamento ou se ele era um conceito de Aristoacuteteles presente na Metafiacutesica o qual devido agrave empresa de comentar a obra do estagirita Tomaacutes de Aquino teve de explicar e ao qual fez referecircncias pontuais em debates ulteriores ateacute que natildeo visse mais justificativa para ele em sua proacutepria filosofia De todo modo para enfrentar essa questatildeo antes eacute necessaacuterio fazer o levantamento das ocorrecircncias do conceito na filosofia tomasiana e analisar qual eacute o seu papel local (no texto em que estaacute presente) e tambeacutem o global no pensamento do filoacutesofo como um todo mdash etapa que este artigo se propotildee a comeccedilar 4 A siacutentese apresentada tem por base as passagens Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp q 3 a 14 resp Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 5 De Grijs (1990 p 5ndash6) observa o mesmo de modo especial com respeito ao opuacutesculo Sobre a eternidade do mundo

151

os corpos celestes e os anjos cuja essecircncia e ato de ser dependem da accedilatildeo criadora de

Deus por fim os possiacuteveis natildeo-criados que podem ser algum verbo mental que o ser

humano supotildee ao raciocinar sobre a onipotecircncia de Deus e que este conhece estar em seu

poder fazer embora (por assim dizer) natildeo os tenha feito nem venha a fazer

No acircmbito da loacutegica esses significados estatildeo implicados na locuccedilatildeo ser

possiacutevel (esse possibile) segundo a qual Tomaacutes de Aquino distingue entre um modo da

verdade e um modo de ser A primeira alternativa eacute o modal que modificando a coacutepula

entre o termo-sujeito e o termo-predicado significa que o contraacuterio do que eacute enunciado

tambeacutem pode ser verdadeiro6 A segunda alternativa eacute na realidade um ente que eacute em

potecircncia sob determinado aspecto7 e na inteligecircncia um conceito que tem ratio

possibilis ou possibilitas que eacute um princiacutepio explicativo da possibilidade no conceito

do por que o possiacutevel eacute possiacutevel sob o aspecto considerado8 O possiacutevel tem uma ratio

possibilis quando eacute considerado segundo alguma potecircncia e outra quando eacute considerado

segundo nenhuma potecircncia9

No primeiro caso o ser possiacutevel significa o objeto de uma potecircncia Para

melhor entender isso pode-se recorrer agrave abordagem de Tomaacutes de Aquino nos Escritos

sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 resp segundo a qual o verbo poder cujo formato

nominal eacute potecircncia divide-se em potente e possiacutevel Essa divisatildeo eacute simeacutetrica agravequela entre

agente e paciente e agravequela entre causa e efeito Como o que eacute em ato age sobre o que eacute

em potecircncia resultando em um efeito em ato tal que o primeiro (em ato) seja sua causa

eficiente e o segundo (em potecircncia) sua causa material assim tambeacutem a potecircncia do

agente eacute ativa e princiacutepio de accedilatildeo sobre outro enquanto outro e a potecircncia do paciente eacute

passiva e princiacutepio de sofrer accedilatildeo de outro Porque o ser em ato no agente eacute anterior ao

ser em potecircncia no paciente a potecircncia se diz primeira e propriamente da potecircncia ativa

e por analogia da potecircncia passiva10

6 No acircmbito da loacutegica o modal ser possiacutevel modifica as sentenccedilas sob as formas gerais S eacute P ou S natildeo eacute P significando que o contraacuterio do que elas enunciam pode ser verdadeiro Ele eacute unilateral quando se opotildee apenas a ser impossiacutevel ou eacute bilateral quando se opotildee a ser necessaacuterio e a ser impossiacutevel Cf Aristoacuteteles Sobre a interpretaccedilatildeo II 21a34ndash23a23 Tomaacutes de Aquino Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 Ver tambeacutem KNNUTTILA 1988 p 342ndash81 7 Nesse caso haacute uma potecircncia correspondente ao ato primeiro que eacute a forma e outra correspondente ao ato segundo que eacute a operaccedilatildeo A primeira potecircncia eacute chamada de potecircncia passiva e a segunda de potecircncia ativa Cf Sobre a potecircncia de Deus q 1 a 1 resp 8 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 resp 9 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I d 42 q 1 a 1 Suma contra os gentios II c 6 Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp e q 3 a 14 resp Suma de teologia Ia q 9 a 2 resp Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 e IX l 1 Comentaacuterio a Sobre o ceacuteu I l 25 10 No Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 Tomaacutes de Aquino explica sobre a potecircncia passiva que ldquoPossiacuteveis

152

Por sua vez o possiacutevel corresponde ao efeito em potecircncia que se encontra na

potecircncia ativa do agente mais precisamente ele eacute o objeto da potecircncia Assim quando o

possiacutevel eacute considerado numa ordem com respeito agrave potecircncia11 sua ratio possibilis eacute a

ratio do ato pelo qual a causa produz seu efeito12 Por exemplo o inflamaacutevel eacute objeto da

potecircncia ativa do fogo e por parte desse ser em ato sua ratio possibilis eacute o quente da

accedilatildeo de queimar Poreacutem tratando-se de movimento para produzir um efeito eacute necessaacuteria

a mateacuteria o paciente Dessa maneira em segundo lugar o possiacutevel tem ratio possibilis

pela causa material que eacute a potecircncia passiva13

No segundo caso quando o ser possiacutevel eacute considerado segundo nenhuma

potecircncia14 ele eacute separado desse conceito e eacute chamado equivocamente de ldquopossiacutevelrdquo

Nesse sentido ou o possiacutevel eacute absoluto pois natildeo eacute autocontraditoacuterio e pode ter ratio entis

ou ratio non entis isto eacute pode-se dizer que ldquoisso eacute de algum modordquo ou que ldquoisso natildeo eacute

de algum modordquo15 ou ele eacute metafoacuterico devido a certa semelhanccedila e aplica-se a um objeto

da ciecircncia matemaacutetica (aritmeacutetica ou geometria)

Poreacutem outros se dizem possiacuteveis ou potecircncia natildeo por algum princiacutepio que tenham em si e deles a potecircncia se diz equivocamente [] Pois nesses a potecircncia se diz natildeo por algum princiacutepio que tenham poreacutem por certa semelhanccedila assim como nas [figuras] geomeacutetricas16

e impossiacuteveis dizem-se com efeito desses que tecircm em si mesmos algum princiacutepio e isso segundo certos modos segundo os quais as potecircncias se dizem natildeo equivocamente mas sim analogamenterdquo pouco mais adiante ele prossegue mostrando a reduccedilatildeo das potecircncias agrave potecircncia ativa ldquoPortanto deve-se fazer consideraccedilatildeo sobre as potecircncias que se reduzem a uma espeacutecie pois qualquer uma delas eacute certo princiacutepio e todas as potecircncias se dizem reduzidas a algum princiacutepio do qual se dizem todas as outras E esse eacute o princiacutepio ativo que eacute o princiacutepio de accedilatildeo de mudanccedila sobre outro enquanto eacute outrordquo 11 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 3 resp 12 ldquoA cada potecircncia ativa corresponde um possiacutevel como seu objeto proacuteprio segundo o princiacutepio (rationem) daquele ato em que se funda a potecircncia ativardquo (Suma de teologia Ia q 25 a 3 resp) 13 Pois algo eacute uma potecircncia passiva porque estaacute em potecircncia para sofrer accedilatildeo de um outro que estaacute em ato A sua passividade natildeo eacute explicada pela potecircncia ativa Algo pode sofrer accedilatildeo de outro pois eacute em potecircncia No entanto a sua passividade natildeo eacute aberta a qualquer accedilatildeo mas a determinada accedilatildeo de certa potecircncia ativa Essa restriccedilatildeo explica-se pela ratio do ato no qual se baseia a potecircncia ativa a mesma ratio que tambeacutem delimita o objeto dessa potecircncia Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 14 ldquoQuando se diz que algo eacute possiacutevel natildeo segundo alguma potecircncia [isso se diz] ou metaforicamente [] ou absolutamenterdquo (Sobre a potecircncia de Deus q 3 a 14) 15 Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 IX l 1 Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 2 Nesse paraacutegrafo para efeito de sistematizaccedilatildeo natildeo considero o problema dos possiacuteveis natildeo-criados pois ao consideraacute-los deve-se acrescentar agrave ausecircncia de contradiccedilatildeo em si proacuteprio e agrave enunciabilidade jaacute explicadas a ratio de poder ser um verbo mental (conceptibilidade) Os possiacuteveis natildeo-criados natildeo satildeo conceitos com essecircncia presente e delimitada na inteligecircncia humana mas satildeo uma suposiccedilatildeo na medida em que o ser humano raciocina sobre a onipotecircncia de Deus Dizer que eles tecircm a ratio de conceptibilidade se deve agrave consideraccedilatildeo de que embora natildeo sejam um conceito na inteligecircncia humana eles satildeo alguma ideacuteia na inteligecircncia divina que vecirc em seu poder tudo o que pode fazer Devolvo mais detalhadamente esse assunto em MONTEIRO 2014 16 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1 As traduccedilotildees dos textos de Tomaacutes de Aquino satildeo feitas por mim o Comentaacuterio agrave Metafiacutesica com base na ediccedilatildeo do texto latino Parma t 20 1871 o Sobre a potecircncia de Deus

153

Em uacuteltima anaacutelise todo possiacutevel eacute um possiacutevel absoluto que deve satisfazer

a condiccedilatildeo de natildeo ser autocontraditoacuterio e de poder ter ratio entis ou ratio non entis Esse

possiacutevel pode ser considerado em si segundo a ratio possibilis da ausecircncia de contradiccedilatildeo

em si proacuteprio e da enunciabilidade ou pode ser considerado numa ordem com respeito a

uma potecircncia ou causa segundo a ratio possibilis da potecircncia passiva ou da potecircncia

ativa17

Diante desse quadro geral eacute preciso reconhecer duas dificuldades A primeira

delas concerne a situaccedilatildeo do possiacutevel metafoacuterico dentro da divisatildeo geral sobre o ser

possiacutevel que foi exposta anteriormente

Em Sobre a potecircncia q 3 a 14 resp o possiacutevel metafoacuterico eacute considerado

segundo nenhuma potecircncia Todavia em uma parte anterior q 1 a 3 resp Tomaacutes de

Aquino natildeo o potildee dentro da divisatildeo ldquosegundo nenhuma potecircnciardquo mas apresenta-o como

um terceiro modo de dizer o possiacutevel

Segundo o filoacutesofo Aristoacuteteles possiacutevel e impossiacutevel se dizem de trecircs modos De um modo segundo alguma potecircncia ativa ou passiva assim se diz que eacute possiacutevel para o homem andar segundo a potecircncia locomotiva poreacutem que eacute impossiacutevel para ele voar De outro modo natildeo segundo alguma potecircncia poreacutem segundo si mesmo assim como dizemos que o possiacutevel eacute o que natildeo eacute impossiacutevel de ser e que o impossiacutevel eacute o que eacute necessaacuterio natildeo ser Do terceiro modo o possiacutevel se diz segundo a potecircncia matemaacutetica que estaacute nas [figuras] geomeacutetricas []

Apoacutes a leitura fica a questatildeo afinal o possiacutevel metafoacuterico tem ou natildeo tem

uma ratio possibilis de alguma potecircncia Como todo possiacutevel o possiacutevel metafoacuterico eacute

um conceito que tem ratio possibilis e para efeito loacutegico no miacutenimo esta deve ser a

ausecircncia de contradiccedilatildeo em si proacuteprio e a enunciabilidade18 Nos exemplos dados por

Tomaacutes de Aquino o possiacutevel metafoacuterico significa nuacutemeros e figuras geomeacutetricas que satildeo

abstraccedilotildees do numeraacutevel e do volume pertencentes agrave forma quantitativa nos corpos Eles

dependem dos corpos para ser mas natildeo dependem deles para serem conhecidos e

definidos Na matemaacutetica os nuacutemeros e as figuras geomeacutetricas natildeo tecircm ser em potecircncia

igual os corpos natildeo se movem nem satildeo gerados nem se corrompem como os corpos

com base na ediccedilatildeo Parma t 8 1856 a Suma de teologia com base na ediccedilatildeo Leonina t 4 1888 e a Suma contra os gentios com base na ediccedilatildeo Leonina t 13 1918 17 Cf Escritos sobre as Sentenccedilas I q 42 q 2 a 3 resp 18 Uma das consequumlecircncias disso eacute que o possiacutevel metafoacuterico natildeo pode pertencer ao discurso poeacutetico que admite a contradiccedilatildeo na forma de paradoxos e oximoros por exemplo Esta pode ser uma razatildeo forte para depois delimitar o possiacutevel metafoacuterico no acircmbito da matemaacutetica

154

pois natildeo tecircm mateacuteria sensiacutevel19

Assim eles natildeo satildeo objeto de uma potecircncia fora da alma humana mas

enquanto conceitos eles satildeo objetos da inteligecircncia (potecircncia da alma) e satildeo objetos de

uma ciecircncia a matemaacutetica Do primeiro modo eles satildeo inteligiacuteveis pois podem ser

conhecidos Do segundo modo eles satildeo matematizaacuteveis pois podem ser explicados pelos

princiacutepios matemaacuteticos

Entretanto em nada disso se manifesta em que consiste a metaacutefora muito

menos sua aplicaccedilatildeo aos casos em que a linha eacute potecircncia do comensuraacutevel20 e em que

nuacutemeros e figuras multiplicados por eles mesmos podem fazer um quadrado21 ao que

Tomaacutes de Aquino chama de potecircncia matemaacutetica e o que parece equivalente a elevar um

nuacutemero ao quadrado na matemaacutetica atual

Para esclarecer esses pontos deve-se proceder agrave segunda dificuldade que diz

respeito agrave diferenccedila entre metaacutefora e analogia22 Nessa dificuldade eacute necessaacuterio recordar-

se de que o possiacutevel se diz segundo alguma potecircncia ou segundo nenhuma potecircncia e que

na primeira consideraccedilatildeo a palavra potecircncia se diz primeira e propriamente da potecircncia

ativa e por analogia da potecircncia passiva mas na segunda consideraccedilatildeo essa palavra se

diz equivocamente do possiacutevel metafoacuterico e do possiacutevel absoluto pois natildeo haacute neles

princiacutepio de agir nem de sofrer accedilatildeo

Embora Owens (1962 p 310 n 28) reconheccedila que na letra do texto Tomaacutes de

Aquino exclua a metaacutefora como uma forma de analogia ele defende que aleacutem da literalidade

ldquode um ponto de vista filosoacutefico portanto natildeo eacute necessaacuteria qualquer hesitaccedilatildeo em ver a

metaacutefora como um tipo de analogiardquo pois tal como o pensador entende ldquo[] Na metaacutefora

o sentido de um termo eacute transferido para outro com base na analogiardquo Stolarski (2001 p

97) tambeacutem entende que ldquometaforicamenterdquo eacute um tipo de analogia

Ao menos esse entendimento parece estar em sintonia com o pensamento de

19 Cf Comentaacuterio a Sobre a Trindade de Boeacutecio q 5 a 1 resp 20 ldquo[] se diz possiacutevel segundo potecircncia matemaacutetica que estaacute entre as geometrias porque a linha eacute dita potecircncia do comensuraacutevel pois o quadrado dela eacute comensuraacutevelrdquo (Sobre a potecircncia q 1 a 3 resp) 21 Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14 e IX l 1 22 Na filosofia de Tomaacutes de Aquino a analogia eacute um dos conceitos mais centrais e tambeacutem um dos mais controversos Neste artigo natildeo o desenvolverei em detalhes embora reconheccedila a sua importacircncia para a discussatildeo por vir Contudo o debate entre os comentadores sobre o assunto permite trabalhar minimamente com as definiccedilotildees presentes em Escritos sobre as Sentenccedilas I d 19 q 5 a 2 ad 1 e em Sobre a verdade q 2 a 11 a saber a distinccedilatildeo entre a analogia de proporccedilatildeo e a analogia de proporcionalidade Tanto uma quanto outra no emprego da palavra na sentenccedila tecircm a intenccedilatildeo de abranger entre univocidade ateacute a completa equivocidade Enquanto houver alguma proporccedilatildeo entre as palavras haacute alguma analogia entre elas Cf OWENS 1962 Ver tambeacutem ELDERS 2009 p 53ndash75

155

Aristoacuteteles em Poeacutetica 21 1457b16ndash3023 Nessa obra o estagirita distingue quatro

empregos para a metaacutefora quando haacute transferecircncia de ldquoum nome alheiordquo do gecircnero para a

espeacutecie ou quando haacute da espeacutecie para o gecircnero ou quando haacute de uma espeacutecie para outra ou

por fim quando haacute por via de analogia No uacuteltimo caso entende que haacute duas proporccedilotildees uma

de um termo a com um termo b e outra de um termo c com um termo d24

119886119886119887119887 mdash 119888119888

119889119889

Segundo Aristoacuteteles o poeta pode ver senatildeo uma identidade ao menos uma

semelhanccedila entre as proporccedilotildees e entatildeo substituir a por c ou b por d O termo a e o termo

c natildeo satildeo necessariamente da mesma espeacutecie nem do mesmo gecircnero Eles se assemelham

um ao outro em razatildeo da relaccedilatildeo que mantecircm com os outros termos b e d os quais

tambeacutem natildeo pertencem necessariamente agraves mesmas categorias O exemplo dado por

Aristoacuteteles eacute

dia

tarde mdash vidavelhice

Na metaacutefora por via da analogia tem-se que ldquoA tarde eacute a velhice do diardquo ou

ldquoA velhice eacute a tarde da vidardquo Sobre sentenccedilas como essas cabe ressaltar que em Sobre

a interpretaccedilatildeo 4 17a1ndash6 Aristoacuteteles diz claramente que o discurso poeacutetico natildeo eacute

declarativo pois natildeo afirma nem nega segundo o verdadeiro ou o falso

Poreacutem o problema eacute que natildeo haacute indiacutecios de que Tomaacutes de Aquino tivesse

acesso agrave Poeacutetica senatildeo por meio de fragmentos reproduzidos ou comentaacuterios indiretos

feitos em textos dos filoacutesofos aacuterabes traduzidos para o latim A Poeacutetica soacute ganharia

publicaccedilatildeo em grego e versatildeo latina a partir do seacuteculo XVI25

Contudo a falta de acesso agrave Poeacutetica natildeo impediu que Tomaacutes de Aquino

23 Baseio-me nas traduccedilotildees para o portuguecircs de Eudoro de Sousa (2003) e de Jaime Bruna (2014) 24 Haacute ainda um outro modo de metaacutefora por via de analogia quando o poeta nega um dos nomes alheios Um exemplo dado por Aristoacuteteles eacute a taccedila de Dioniso e o escudo de Ares Em vez de declarar que ldquoA taccedila de Dioniso natildeo eacute o escudo de Aresrdquo o poeta pode dizer ldquoO escudo de Ares eacute taccedila sem vinhordquo Entendo que esse modo de metaacutefora natildeo contribui para a discussatildeo adiante por isso natildeo o desenvolvi no corpo do texto 25 As primeiras ediccedilotildees em grego dos livros Retoacuterica e Poeacutetica foram publicadas por Aldo Manuacutecio em 1508 em Veneza Haacute tambeacutem vaacuterios estudos sobre a publicaccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles e dos comentadores antigos nos seacuteculos XV e XVI entre os quais recomendo KRAYE 2002 p 189ndash211 e SELLARS 2004 p 239ndash68

156

desenvolvesse um conceito de metaacutefora bastante semelhante ao de Aristoacuteteles Aquino

natildeo dedicou agrave metaacutefora uma questatildeo ou um livro poreacutem abordou-a suscintamente em

outras discussotildees como em Suma de teologia Ia q 1 a 9 a respeito do seu uso na

interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ldquoa poeacutetica [fala] por metaacuteforas por causa da

representaccedilatildeo pois esta eacute naturalmente deleitaacutevel para o homemrdquo26

Na metaacutefora os termos tornam presente ao intelecto um conceito sob uma

imagem proacutexima da experiecircncia mdash uma representaccedilatildeo Nesse sentido a metaacutefora eacute

equiacutevoca pois os termos que satildeo empregados nas sentenccedilas natildeo tecircm o sentido proacuteprio

segundo o qual nas diversas ciecircncias teoreacuteticas referem-se agraves coisas (res) mas eles satildeo

apresentados em um sentido diverso atrelado agrave imagem que representam na imaginaccedilatildeo

Consequentemente a metaacutefora eacute indiferente para o discurso declarativo porque ela ldquonatildeo

afirma sobre a coisa mas somente sobre a imaginaccedilatildeordquo27

Por exemplo nos debates sobre a criaccedilatildeo e a duraccedilatildeo do mundo Tomaacutes de

Aquino enfrenta vaacuterios argumentos de adversaacuterios e os problemas que eles apresentam a

respeito do tempo e do lugar recorrendo agrave metaacutefora28 Aquino diz que nos dois casos do

tempo e do lugar a imaginaccedilatildeo pode acrescentar alguma medida agrave coisa existente29 Esse

recurso eacute usado pelo filoacutesofo na discussatildeo sobre o sentido de ldquoacima derdquo no contexto da

uacuteltima esfera celeste mdash cabe recordar-se de que a cosmologia tomasiana assim como a

aristoteacutelica afirmava a existecircncia de um universo finito constituiacutedo de esferas cristalinas

concecircntricas fora das quais nada existiria Contudo com base na metaacutefora Tomaacutes de

Aquino argumenta

Assim quando se diz que natildeo haacute nada acima do ceacuteu o acima designa um lugar imaginado enquanto possa se imaginar outras dimensotildees sobrepostas agraves dimensotildees dos corpos celestes30

Ademais na discussatildeo sobre a criaccedilatildeo Tomaacutes de Aquino diz que post (depois)

em ldquocreatum habere esse post non esserdquo natildeo significa a sucessatildeo proacutepria do movimento

segundo o antes e o depois A criaccedilatildeo eacute uma operaccedilatildeo divina que eacute realizada da eternidade

O proacuteprio tempo segundo o qual se diz o antes o agora e o depois eacute criado por Deus Natildeo

obstante segundo a metaacutefora diz-se que a criaccedilatildeo eacute a mudanccedila pela qual Deus produz o

26 ldquopoetica autem metaphoris propter representationem repraesentatio enim naturaliter homini delectabilis estrdquo 27 ldquonon ponit [] in re sed solum in imaginationerdquo (Suma contra os gentios II c 36) 28 Cf Suma de teologia Ia q 46 a 1 ad 8 29 Suma contra os gentios II c 36 30 Suma de teologia Ia q 46 a 1 ad 8

157

mundo do natildeo-ser para o ser31 Em Suma de teologia Ia q 45 a 2 ad 2 o filoacutesofo atribui

enunciados como esse ao modo humano de conhecer

Na passagem da Suma de teologia em que fala sobre o uso da metaacutefora na

teologia Tomaacutes de Aquino explica que a metaacutefora toma um conceito que eacute abstrato um

conceito que seja difiacutecil de ser compreendido e torna-o presente agrave inteligecircncia sob alguma

imagem que eacute mais faacutecil de ser conhecida porque eacute mais proacutexima da experiecircncia Esse

conceito sob a imagem embora se torne mais faacutecil fica mais confuso tambeacutem pois aquilo

a que ele refere natildeo eacute o mesmo que a imagem significa originalmente Nesse sentido ele

precisa ser reelaborado considerando-se aquilo que o difere da imagem (o que ele natildeo eacute)

bem como o seu grau de abstraccedilatildeo

Dessa exposiccedilatildeo geral e certamente insuficiente a respeito da metaacutefora ao

menos se pode notar que o desenvolvimento tomasiano desse conceito aproxima-se em

vaacuterios pontos da definiccedilatildeo aristoteacutelica mas natildeo o bastante para incluir a metaacutefora na

analogia Na filosofia de Tomaacutes de Aquino enquanto a analogia corresponde ao uso das

palavras no acircmbito factual e real no discurso verdadeiro ou falso a metaacutefora corresponde

ao uso delas no acircmbito fictiacutecio e imaginaacuterio no discurso verossiacutemil Natildeo obstante

Aquino estaacute agrave vontade para empregar a metaacutefora como um auxiacutelio nos raciociacutenios por

exemplo fazendo comparaccedilotildees didaacuteticas ou dando inteligibilidade a uma suposiccedilatildeo irreal

(o momento antes do tempo o lugar fora do mundo)

Apoacutes considerar essas dificuldades fica mais claro o que Tomaacutes de Aquino

explica nos textos a seguir

[Aristoacuteteles] diz que na geometria a potecircncia se diz segundo metaacutefora Na geometria a potecircncia da linha se diz quadrado da linha por meio desta semelhanccedila porque como disto que eacute em potecircncia se faz aquilo que eacute em ato assim de uma linha multiplicada por si mesma resulta o quadrado dela assim tambeacutem se disseacutessemos que o trecircs eacute possiacutevel no nove porque o nove se segue de trecircs multiplicado por si mesmo Pois trecircs vezes trecircs satildeo nove Poreacutem como o impossiacutevel tomado do segundo modo natildeo se diz segundo alguma impotecircncia assim tambeacutem os modos de possiacutevel afirmados por uacuteltimo [o possiacutevel metafoacuterico e o possiacutevel absoluto] natildeo se dizem segundo alguma potecircncia mas segundo semelhanccedila ou segundo modo de verdadeiro ou falso32

Poreacutem outros se dizem possiacuteveis ou potecircncia natildeo por algum princiacutepio que tenham em si e deles a potecircncia se diz equivocamente [] Pois nesses a potecircncia se diz natildeo por algum princiacutepio que tenham poreacutem por certa semelhanccedila assim como nas [figuras] geomeacutetricas Pois eacute dito que

31 Cf Suma contra os gentios II c 37 32 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica V l 14

158

a potecircncia de alguma linha eacute o quadrado dela e eacute dito que a linha eacute possiacutevel em seu quadrado De modo semelhante pode-se dizer nos nuacutemeros que o trecircs eacute possiacutevel no nove que eacute o quadrado de trecircs pois do trecircs multiplicado por si mesmo se faz o nove Pois trecircs vezes trecircs fazem nove Tambeacutem da linha que eacute a raiz do quadrado multiplicada por si mesma se faz um quadrado Entre os nuacutemeros eacute semelhante Daiacute que a raiz do quadrado tem alguma semelhanccedila com a mateacuteria da qual se faz uma coisa Por isso tambeacutem por alguma semelhanccedila diz-se potente no quadrado assim como se diz a mateacuteria potente na coisa33

Os exemplos do possiacutevel metafoacuterico satildeo de potenciaccedilatildeo o nuacutemero ou a linha

que eacute multiplicado por si mesmo e resulta no quadrado e inversamente de radiciaccedilatildeo o

nuacutemero ou linha que eacute raiz quadrada Nos textos reproduzidos Tomaacutes de Aquino faz

duas declaraccedilotildees fundamentais

1) ldquoA raiz do quadrado tem alguma semelhanccedila com a mateacuteriardquo

2) ldquoComo do que eacute em potecircncia se faz o que eacute em ato

assim da multiplicaccedilatildeo da linha (ou do nuacutemero) por ela mesma resulta o quadradordquo

De acordo com essas declaraccedilotildees o possiacutevel metafoacuterico tem ratio possibilis

na semelhanccedila com a mateacuteria Natildeo se trata da potecircncia passiva nem da potecircncia

intelectual nem de um princiacutepio matemaacutetico mas da semelhanccedila entre duas proporccedilotildees

um nuacutemero ou linha proporcional a outro e a mateacuteria ou ser em potecircncia proporcional

a uma coisa ou ser em ato

nuacutemerolinha

quadrado mdash mateacuteriaser em potecircncia coisaser em ato

De um lado nuacutemero linha quadrado natildeo tecircm mateacuteria sensiacutevel e satildeo objetos

da ciecircncia matemaacutetica De outro lado mateacuteria coisa ser em potecircncia ser em ato podem

referir-se ao acircmbito da fiacutesica ou ao dos singulares incluindo a mateacuteria sensiacutevel ou a

mateacuteria sinalada aleacutem do movimento Tambeacutem a proporccedilatildeo que eacute multiplicaccedilatildeo do

nuacutemero ou linha por ele mesmo natildeo eacute igual nem se relaciona a algo comum agrave proporccedilatildeo

que eacute passagem da potecircncia para o ato no movimento Fica evidente que a potecircncia que

significa a multiplicaccedilatildeo de nuacutemero e figuras eacute dita equivocamente em comparaccedilatildeo agrave

potecircncia que significa a mateacuteria (potecircncia passiva) por analogia agrave potecircncia ativa

Contudo haacute ainda uma semelhanccedila e uma transferecircncia pela metaacutefora Diz-

se que ldquoa coisa eacute feita da mateacuteriardquo materia ex qua fit res tambeacutem se diz que ldquoo quadrado

33 Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 1

159

eacute feito da linhardquo e que ldquo9 eacute feito de 3rdquo pois tanto a linha quanto o nuacutemero 3 satildeo tomados

e postos sob uma operaccedilatildeo da inteligecircncia que resulta em um quadrado ou no nuacutemero 9

Assim ex ductu ternarii in seipsum facit nouenarium ou seja trecircs vezes trecircs resulta em

nove34 O emprego da preposiccedilatildeo ex (de) e do verbo facere (fazer) sugere uma semelhanccedila

entre o que estaacute no acircmbito da fiacutesica e o que estaacute no acircmbito da matemaacutetica poreacutem como

foi analisado natildeo haacute nada em comum senatildeo semelhanccedila acidental por assim dizer

Contudo haacute uma transferecircncia de um acircmbito para o outro assim como haacute na teologia

uma transferecircncia de atributos sensiacuteveis para falar de Deus por meio da metaacutefora

Por fim em Sobre a potecircncia q 3 a 14 resp Tomaacutes de Aquino acrescenta

um novo aspecto ao possiacutevel metafoacuterico a noccedilatildeo de ldquopotecircncia racionalrdquo

Poreacutem diz-se na circunstacircncia de algo possiacutevel natildeo segundo alguma potecircncia ou metaforicamente assim como nas geometrias se diz que alguma linha eacute potecircncia racional ou absolutamente

Como foi visto a linha assim como o nuacutemero natildeo tem propriamente uma

potecircncia poreacutem tanto uma quanto outro satildeo abstraccedilotildees e objetos da inteligecircncia satildeo

inteligiacuteveis cujo ato procede da inteligecircncia que os apreendeu abstraiu e conheceu Desse

modo quando Tomaacutes de Aquino diz ldquopotecircncia racionalrdquo ou estaacute dizendo que a linha e o

nuacutemero satildeo objetos de uma potecircncia racional (a inteligecircncia que pode raciocionar) ou

estaacute dizendo que semelhantemente a uma potecircncia racional eles satildeo princiacutepios dos quais

pode se seguir um de dois efeitos contraacuterios35 Poreacutem se a linha e o nuacutemero fossem

entendidos como princiacutepios restaria esclarecer quais satildeo os contraacuterios que se seguiriam

deles mdash o quadrado (resultado da multiplicaccedilatildeo) seria um deles ou seria o uacutenico

Haacute ainda de questionar-se a razatildeo por que Tomaacutes de Aquino apenas utiliza

exemplos de potenciaccedilatildeo e de radiciaccedilatildeo Outras operaccedilotildees de multiplicaccedilatildeo ateacute mesmo

outras operaccedilotildees matemaacuteticas (a soma a subtraccedilatildeo e a divisatildeo) natildeo teriam imagens ou

semelhanccedilas com algum termo fora do acircmbito da matemaacutetica A metaacutefora eacute empregada

em todos os juiacutezos de possibilidade na matemaacutetica A imaginaccedilatildeo tem algum papel

importante no conhecimento ou nas operaccedilotildees matemaacuteticas Seraacute que na rigidez dos

axiomas e na exatidatildeo dos caacutelculos sob a superfiacutecie de definiccedilotildees claras e de raciociacutenios

necessaacuterios Tomaacutes de Aquino captou a voz meloacutedica vinda das musas de Hesiacuteodo a

contar mentiras semelhantes a verdades

34 Mais informaccedilotildees sobre o vocabulaacuterio matemaacutetico medieval ver SMITH 1953 p 101ndash28 35 Para uma definiccedilatildeo de potecircncia racional Cf Comentaacuterio agrave Metafiacutesica IX l 2

160

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DE DESCARTES A FREGE OS AVANCcedilOS EPISTEMOLOacuteGICOS DO

MEacuteTODO

Michelle Cardoso Montoya1

RESUMO O presente artigo pretende expor superficialmente alguns avanccedilos epistemoloacutegicos acerca do uso do meacutetodo para alcanccedilar a verdade cientiacutefica considerando-se perspectivas pontuais de Descartes Bacon e Hobbes ao longo da modernidade Tanto o meacutetodo proposto por Renegrave Descartes (1596-1650) quanto o por Francis Bacon (1561-1625) visavam primordialmente orientar qual seria o uso adequado da razatildeo e dos sentidos nos processos epistemoloacutegicos A partir do bom uso da razatildeo no caso cartesiano e de ambos no caso baconiano obtermos fundamentos soacutelidos para investigaccedilatildeo de verdades especialmente as que condizem com a ciecircncia Com Francis Bacon e Thomas Hobbes (1558-1679) verificaremos avanccedilos quanto ao uso epistemoloacutegico do meacutetodo todavia ainda insuficientes para lidar com o que intitularemos por ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo Contudo tentaremos sustentar que as maiores inovaccedilotildees acerca do uso epistemoloacutegico do meacutetodo foram feitas de fato por Gottlob Frege (1848-1925) em sua Conceitografia A partir disto demonstraremos como podemos considerar a conceitografia fregeana como uma espeacutecie de ldquocontinuidaderdquo do meacutetodo cartesiano Palavras-chave Meacutetodo Verdade Cientiacutefica Espaccedilo Epistecircmico ABSTRACT The present article is intended to superficially expose some epistemological advances on the use of the method to reach a scientific truth considering the punctual perspectives of Descartes Bacon and Hobbes throughout modernity Both the method proposed by Reneacute Descartes (1596-1650) and Francis Bacon (1561-1625) aimed primarily at guiding the proper use of reason and senses in epistemological processes From the good use of reason in the Cartesian case and both in the case of the Baconian we obtain solid foundations for the investigation of truths especially those that correspond to science With Francis Bacon and Thomas Hobbes (1558-1679) we will see advances in the epistemological use of the method yet still insufficient to deal with what we will call the problem of epistemic space However we will try to argue that the greatest innovations about the epistemological use of the method were actually made by Gottlob Frege (1848-1925) in his Ideography From this we will demonstrate how we can consider Fregean conception as a kind of continuity of the Cartesian method Keywords Method Scientific truth Epistemic space

1 Mestranda em Filosofia pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGLM-UFRJ) e-mail Michelle_montoyaiduffbr

163

Tanto o meacutetodo proposto por Reneacute Descartes (1596-1650) quanto o por

Francis Bacon (1561-1625) visavam primordialmente orientar qual seria o uso adequado

da razatildeo e dos sentidos nos processos epistemoloacutegicos A partir do bom uso da razatildeo no

caso cartesiano e de ambos no caso baconiano obteriacuteamos fundamentos soacutelidos para

investigaccedilatildeo de verdades especialmente das que condizem com a ciecircncia Descartes em

Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito afirma que nossa faculdade do entendimento seria

composta por dois atos intelectuais a saber a intuiccedilatildeo e a deduccedilatildeo A faculdade do

entendimento embora natildeo fosse a uacutenica responsaacutevel pelo processo de conhecimento e o

raciociacutenio jaacute que operaria de acordo com o res cogitam cartesiano isto eacute com a

substacircncia intelectual A intuiccedilatildeo numa certa perspectiva era dita comumente como

independente jaacute que natildeo dependeria de nenhuma outra certeza aleacutem do que estaria

inserido em seu proacuteprio conteuacutedo

A deduccedilatildeo por sua vez seria dependente da intuiccedilatildeo ou mesmo de deduccedilotildees

menos complexas que a proacutepria em questatildeo Logo o processo de conhecimento genuiacuteno

no sistema cartesiano seria baseado em pressupostos de natildeo imediatidade isto eacute para

chegarmos a emitir um juiacutezo certo e indubitaacutevel precisariacuteamos percorrer com nosso

entendimento diversas etapas que com certa praacutetica executariacuteamos numa velocidade

quase imperceptiacutevel Uma vez que para Descartes o entendimento soacute operaria em

conformidade com o intelecto natildeo se fiando nos sentidos para garantir certezas pois estes

seriam enganosos podemos dizer que ocorre o que chamaremos daqui para frente de

ldquoaniquilamento do corpordquo que significa justamente o abandono do conhecimento

imediato proporcionado pelos sentidos como certo e inquestionaacutevel No lugar deste

aniquilamento veremos que restaraacute uma ldquoracionalizaccedilatildeo dos processos epistemoloacutegicosrdquo

fortemente marcada pelo exerciacutecio de uma atividade intelectual que toma por fundamento

de busca pela verdade os atos do entendimento jaacute citados Todavia ao se considerar o ato

da deduccedilatildeo verificaremos que ainda haveraacute um problema lacunar que intitularemos por

ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo jaacute que conforme perceberemos restaratildeo espaccedilos entre

uma deduccedilatildeo e outra que passaratildeo sequencialmente desapercebidos O autor em questatildeo

tentou apresentar meios de solucionar esse problema poreacutem visivelmente ineficientes

Com Francis Bacon observaremos um avanccedilo epistemoloacutegico quanto ao

emprego do meacutetodo que eacute uma ldquoreconciliaccedilatildeo do corpo com o espiacuteritordquo ou se

preferirmos com a alma No Novo Oacuterganon ele proporaacute um meacutetodo empiacutericonatural

embasado nos sentidos Neste momento a razatildeo por si soacute natildeo poderaacute mais operar

sozinha sem ferramentas entatildeo teremos a ldquoressucitaccedilatildeo do corpo nos processos

164

epistemoloacutegicosrdquoA partir de Thomas Hobbes (1558-1679) observaremos outros avanccedilos

epistemoloacutegicos interessantes acerca do uso do meacutetodo na investigaccedilatildeo da verdade

partindo de uma cooperaccedilatildeo natural entre corpo e espiacuterito inseridos numa situaccedilatildeo mais

praacutetica a da vida poliacutetica O meacutetodo seraacute utilizado com a finalidade de se estabelecer uma

vida poliacutetica mais sustentaacutevel Todavia neste artigo tentaremos sustentar que as maiores

inovaccedilotildees acerca do meacutetodo foram feitas de fato por Gottlob Frege (1848-1925) em sua

Conceitografia

A fim de banir o problema das lacunas que pudessem eventualmente estarem

presentes nas cadeias inferenciais que aqui consideraremos como uma nova acepccedilatildeo mais

contemporacircnea ao que Descartes considerava como cadeias dedutivas Frege

provavelmente numa certa via deu continuidade aos avanccedilos epistemoloacutegicos quanto ao

uso do meacutetodo Sendo assim neste artigo vamos expor os avanccedilos epistemoloacutegicos no

que diz respeito a utilizaccedilatildeo do meacutetodo de forma pontual ao longo da modernidade a

comeccedilar de Descartes Bacon e Hobbes Daiacute apontaremos alguns indiacutecios sobre como

Frege tentou lidar com o problema do espaccedilo epistecircmico que assolou o meacutetodo ao longo

da modernidade bem como sob qual(is) aspecto(s) podemos considerar a conceitografia

fregeana como uma continuidade do meacutetodo cartesiano ainda que de forma natildeo

conclusiva

Consideraccedilotildees acerca do dualismo cartesiano corpo e espiacuterito

Neste ponto faz-se importante comentar o que Reneacute Descartes entendia por

corpo e espiacuterito 2No sexto paraacutegrafo da ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo o autor nos oferece uma

noccedilatildeo de corpo

ldquo (hellip) por corpo entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaccedilo de tal sorte que todo outro corpo dele seja excluiacutedo que pode ser sentido ou pelo tato ou pela visatildeo ou pela audiccedilatildeo ou pelo olfato que pode ser movido de muitas maneiras natildeo por si mesmo mas por algo de alheio pelo qual seja tocado e do qual receba a impressatildeordquo3

O corpo no sistema cartesiano eacute tido como uma substacircncia material sujeita

a afetaccedilotildees por parte de objetos dos quais detenha percepccedilotildees por meio de um processo

2 Procuraremos aqui tratar ldquoespiacuteritordquo e ldquoalmardquo como sinocircnimos no sistema cartesiano Logo o dualismo corpo-alma e corpo-espiacuterito significaratildeo a mesma coisa 3 DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo sect6 p 127

165

imediato4 Ele ocuparia um lugar no espaccedilo por isso seria considerado mateacuteria O calor

interno que circula dentro de noacutes ao realizarmos movimentos bem como todas as nossas

funccedilotildees fisioloacutegicas estariam sob responsabilidade do corpo Logo quando este se

corrompe seus movimentos cessam jaacute que natildeo seriam condizentes com a alma Sendo

assim nossa mortalidade estaria atrelada ao corpoque seria uma extensatildeo delimitada e

finita Nossos sentidos especialmente no processo de conhecimento soacute poderiam ser

exercidos mediante a accedilatildeo do corpo que nos transmitiria por meio de interaccedilotildees nervosas

internas as percepccedilotildees a alma Desse modo nossas accedilotildees seriam regidas pelo corpo que

por vezes dependeriam das paixotildees para ocorrer ou seja da almaporeacutem nem sempre

ldquo () devemos crer que todo calor e todos os movimentos em noacutes existentes na medida

em que natildeo dependem do pensamento pertencem apenas ao corpo5rdquoPor meio de uma

fisiologia largamente detalhada Descartes busca explicitar as funccedilotildees do corpo em As

Paixotildees da Alma tal como o movimento do coraccedilatildeo o percurso dos espiacuteritos animais e

suas contribuiccedilotildees para a movimentaccedilatildeo corporal e o exerciacutecio dos sentidos No entanto

neste artigo evitaremos entrar nestes meacuteritos por julgarmos como irrelevantes para

presente discussatildeo que estaacute sendo desenvolvida

A alma por sua vez estaria detida dentro de uma ldquomaacutequina corporalrdquo natildeo

sendo responsaacutevel nem por sua formaccedilatildeo tampouco por sua conservaccedilatildeo Corresponderia

a uma substacircncia intelectual da qual o pensamento dependeria Sua funccedilatildeo eacute lidar com

dois gecircneros de pensamentos as accedilotildees da alma (ou intelectivas) e as paixotildees Entatildeo o

fim do corpo natildeo determinaria o fim da alma embora se comuniquem entre si Ao findar

o corpo este tatildeo somente se separa da alma revelando sua natureza de efemeridade que

aprisiona dentro de si o que possui caracteriacutesticas capazes de contemplar o que eacute eterno

Sendo assim falar de dualismo cartesiano eacute mostrar como essa conjugaccedilatildeo interativa

ldquoalma-corpordquo se revela em seu aspecto determinista mais fundamental Isto eacute a

mortalidade humana bem como sua capacidade finita seria determinada pelo corpo Jaacute a

alma sendo dotada de ideias inatas de perfeiccedilatildeo e infinitude por exemplo possibilitaria

a contemplaccedilatildeo humana do infinito mesmo aprisionada num lugar de finitude Desse

modo por conseguir transcender as limitaccedilotildees do espaccedilo a alma conseguiria possibilitar

a humanidade a expectativa de ajuizar acerca do universal por mais que natildeo se saiba a

medida exata da proacutepria universalidade E neste ponto eacute de suma importacircncia ter feito

4 Ver mais em DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo 5 DESCARTES As Paixotildees da Alma ldquoPrimeira Parterdquo artigo 4 p296

166

essas consideraccedilotildees acerca do dualismo cartesiano para compreendermos o

funcionamento do meacutetodo

O meacutetodo cartesiano

Em Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito vemos que o meacutetodo eacute um conjunto

de regras a serem observadas durante o processo de conhecimento e descoberta da

verdade especialmente no caso cientiacutefico O meacutetodo seria inerente a nossa natureza

humana e nosso entendimento operaria em conformidade com ele Por sua vezo meacutetodo

seria aplicaacutevel a todas as ciecircncias em conjunto de forma indissociaacutevel de maneira

idecircntica e universal ou seja de acordo com a mathesis universalis Na ldquoRegra Irdquo da

obra mencionada o autor defende que as ciecircncias ao contraacuterio das artes seriam

inseparaacuteveis podendo ateacute mesmo serem exercidas com excelecircncia em conjunto

diferentemente das artes mecacircnicas e manuais que exigiriam extrema especializaccedilatildeo Daiacute

adviria a possibilidade dessa mathesis isto eacute de uma universalizaccedilatildeo das ciecircncias no

sentido de existir um conjunto de regras (meacutetodo) passiacutevel de ser aplicado a todas elas

Logo as ciecircncias natildeo deveriam ser mutuamente exclusivas Ao se conhecer a verdade de

uma determinada ciecircncia esta nos ajudaria a alcanccedilar a verdade de uma outra ciecircncia

O meacutetodo seria necessaacuterio para dirigir a razatildeo em busca pela verdade Por

meio dele poderiacuteamos atingir a formulaccedilatildeo de juiacutezos firmes e verdadeiros Nossa razatildeo

neste sistema ainda deveria estar subordinada ao que Descartes chamava de ldquobom sensordquo

ou ldquouniversal sabedoriardquo que estabeleceria os limites maacuteximos de ateacute onde podemos

conhecer Contudo ele ressalta que deveriacuteamos retomar a praacutetica contemplativa de

ldquoconhecer por conhecerrdquo ou seja ldquodevemos apreciar as coisas por si mesmas e natildeo por

sua contribuiccedilatildeordquo6 Isso quer dizer que natildeo deveriacuteamos empenhar forccedilas em descobrir

verdades em face de algum aspecto utilitaacuterio mas sim exercer a atividade intelectual por

exercer por mera contemplaccedilatildeo e amor ao saber em conformidade com o ldquobom sensordquoO

meacutetodo tambeacutem orientaria como o espiacuterito deveria se valer da intuiccedilatildeo e deduccedilatildeo no

processo de conhecimento

As deduccedilotildees seriam certezas extraiacutedas da intuiccedilatildeo caracterizadas por serem

complexas e dependentes de outras deduccedilotildees ou intuiccedilatildeo Nenhuma deduccedilatildeo teria

evidecircncia atual e permitiria a construccedilatildeo da cadeia de conhecimentos ou se preferirmos

6 DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra IIrdquo

167

dizer de verdades ou num termo mais contemporacircneo de inferecircncias Seria responsaacutevel

tambeacutem pela apreensatildeo dos objetos do conhecimento bem como das relaccedilotildees cognitivas

entre os objetos no interior de um campo cientiacutefico por exemplo A intuiccedilatildeo seria o que

haacute de mais simples a primeira certeza capaz de inaugurar uma cadeia de deduccedilotildees

concebida como pura e distinta pelo espiacuterito proveniente da ldquoluz da razatildeordquo7A intuiccedilatildeo

por ser mais simples que a deduccedilatildeo eacute mais indubitaacutevel

O meacutetodo cartesiano portanto seria por fim o resultado de uma reflexatildeo

profunda de forma elaborada e natildeo espontacircnea daiacute seu caraacuteter natildeo imediato Por isso

representa o prolongamento dos poderes naturais da razatildeo presentes em noacutes E ainda de

acordo com Descartes o meacutetodo operaraacute de acordo com dois movimentos do espiacuterito e

satildeo eles a anaacutelise e a siacutentese Tais movimentos jaacute teriam sido vistos e ilustrados pela

matemaacutetica grega a partir de Pappus e Diophanto8 No entanto eacute vaacutelido ressaltar que

embora pudessem ser considerados em conjunto um tipo de meacutetodo combinado 9

devemos lembrar que sua essencialidade quanto agrave aplicaccedilatildeo natildeo eacute vaacutelida exclusivamente

para matemaacutetica Tendo em vista que a aritmeacutetica e a geometria seriam tidas como

ciecircncias simples foi possiacutevel se perceber com mais clareza que o meacutetodo isto eacute operar

de acordo com ele faz parte de nossa natureza humana sendo um princiacutepio inato

Descartes retoma o meacutetodo combinado a fim de propor uma aplicaccedilatildeo do mesmo

uniforme e universalmente possiacutevel a todas as ciecircncias Para tanto retoma-se a anaacutelise

problemaacutetica a teoacuterica e a siacutentese

Segundo Descartes embora o espiacuterito humano tivesse o haacutebito de

desvencilhar do que eacute simples e faacutecil haveria dois fatores essenciais para se garantir o

bom funcionamento do meacutetodo a fim de que nossa ldquoluz naturalrdquo ou ldquouniversal sabedoriardquo

natildeo fosse ofuscada a ordem e a medida A ordem porque nosso intelecto deveria partir

de objetos simples ateacute chegar aos mais complexos isto considerando todas as suas partes

e etapas de acordo com os movimentos antes jaacute ilustrados pela matemaacutetica A medida

seria uma caracteriacutestica tiacutepica da mathesis universalis (Matemaacutetica Universal) que

estipularia criteacuterios de homogenizaccedilatildeo dos objetos entre si em disposiccedilatildeo com as ciecircncias

jaacute que teriam a mesma natureza comum reconheciacutevel Sendo assim tanto a ordem quanto

a inteligibilidade seriam requisitos baacutesicos para que todo e qualquer objeto pudesse ser

7 Significava o mesmo que Descartes chamava de ldquoluz naturalrdquo 8 DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra VIrdquo Ver mais detalhes sobre o meacutetodo de anaacutelise e siacutentese em Pappus e Diophanto em HEATH A History of Greek Mathematics pp 400-405 9 LOPARIC Descartes Heuriacutestico pp 136-142

168

tratado pelo intelecto Neste sentido conhecer de acordo com o meacutetodo significaria

ordenar e medir os objetos com a razatildeo Logo deveriam permitir serem homogenizados

pela ldquoluz da razatildeordquo bem como o conhecimento natildeo poderia ultrapassar as delimitaccedilotildees

colocadas pela ordem e medida uma vez que estas satildeo imprescindiacuteveis ao funcionamento

adequado do meacutetodo

Vimos no ponto anterior que por meio de certas da alma poderiacuteamos

contemplar a infinitude estando na finitude o que nos possibilitaria a contemplaccedilatildeo da

universalidade que seria tida como simples e absoluta por ser faacutecil ou ao menos

alimentaria em noacutes estas expectativas de conhecimento Todavia agora observamos que

a nossa razatildeo nos processos epistemoloacutegicos natildeo deve exceder a certos limites pois caso

contraacuterio poderaacute infringir o meacutetodo Sendo assim cabe ressaltar aqui que temos apenas

a possibilidade de contemplar a ideia de infinitude e aspectos de universalidade contudo

isto natildeo significa ajuizar acerca do que natildeo eacute alcanccedilaacutevel pela nossa razatildeo Esta

possibilidade simbolizaria antes de mais nada a nossa capacidade de contemplar certas

ideias condizentes com a imortalidade mesmo aprisionados num corpo mortal sem

evidecircncias claras jaacute que este corpo eacute regido pelos sentidos que conforme visto nas

Meditaccedilotildees Metafiacutesicas seriam enganosos e ilusoacuterios10 capazes de deturpar a razatildeo se

esta natildeo estivesse agindo de acordo com o bom senso A fim de fomentar esse engano

mediante a colocaccedilatildeo estrateacutegica da Duacutevida Hiperboacutelica na obra citada Descartes incorre

num ceticismo radical negador do corpo Isto eacute que rejeita como certo e indubitaacutevel todo

e qualquer conhecimento adquirido por meio dos sentidos

No entanto considerando-se a contemplaccedilatildeo como mera possibilidade vecirc-se

um impasse no sistema cartesiano como afirmar que se pode alcanccedilar a certeza e a

evidecircncia tendo um intelecto preso ao corpo No comeccedilo deste artigo abordamos esta

questatildeo sob um outro acircngulo quando foi abordado o ldquoaniquilamento do corpo nos

processos epistemoloacutegicosrdquo Eis a resoluccedilatildeo para esse impasse racionalizar o processo

de conhecimento desconsiderando os possiacuteveis ludibriamentos que os nossos sentidos

podem imprimir em noacutes por meio da materialidade Assim se daraacute esse aniquilamento

No entanto verificaremos mais adiante com o meacutetodo empiacutericonatural de Bacon que o

ldquoaniquilamento do corpo nos processos epistemoloacutegicosrdquo de forma integral se apresenta

como algo inviaacutevel Temos assim uma marca de avanccedilo traga pelo meacutetodo baconiano a

ldquoressuscitaccedilatildeo do corpordquo e seu casamento com o espiacuterito

10 DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoMeditaccedilatildeo Segundardquo

169

O problema do espaccedilo epistecircmico

Segundo Descartes o meacutetodo em si natildeo apresentaria problemas tampouco

existiria a possibilidade de se fazer intelectualmente uma deduccedilatildeo mal feita se

operaacutessemos o meacutetodo detendo-nos em coisas faacuteceis jaacute que seriam mais acessiacuteveis pelo

espiacuterito Aqui deve-se entender por faacutecil aquilo que natildeo eacute composto mas sim

independente Nenhuma concepccedilatildeo duvidosa poderia surgir jaacute que de acordo com nossa

proacutepria natureza agiriacuteamos conforme o meacutetodo e o ldquobom sensordquo a natildeo ser que os

suspendecircssemos Aleacutem disso nos processos epistemoloacutegicos em conformidade com o

meacutetodo temos a recomendaccedilatildeo cartesiana de natildeo prosseguirmos diante de algo complexo

caso ainda tenhamos duacutevida quanto sua natureza11 Contudo apesar desses pressupostos

e recomendaccedilotildees vemos que ainda natildeo haacute clareza quanto ao ordenamento das cadeias

dedutivas cartesianas Chamarei essa falta de clareza de ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo

Numa cadeia cartesiana de deduccedilotildees podemos perceber uma certa ausecircncia

de clareza quanto ao limite seguro espacial que uma deduccedilatildeo deve ter em relaccedilatildeo a outra

Por mais que tentemos clarificar a natureza de todas as coisas envolvidas no processo

dedutivo nos deparamos com a ausecircncia de um criteacuterio espacial bem delimitado e preciso

quanto a distacircncia que uma deduccedilatildeo deve ter da outra Se por exemplo quisermos

determinar se a velocidade da luz eacute a mais raacutepida se demandaria a investigaccedilatildeo de vaacuterias

outras naturezas tais como a da luz a velocidade a da rapidez e entre outras Cada

natureza analisada provavelmente demandaria a anaacutelise de uma outra natureza No fim

de nossa anaacutelise eacute quase certo que a encerrariacuteamos sem a certeza absoluta de que estamos

certos e de que atingimos algum grau de verdade Quantas deduccedilotildees precisariacuteamos fazer

para chegar a criteacuterios seguros quanto a velocidade da luz Isto parece a primeira vista

bastante incerto aleacutem de demandar outros criteacuterios mais seguros que determinem o

espaccedilo que deve haver entre uma deduccedilatildeo e outra Veremos a seguir que Bacon natildeo faraacute

muitos avanccedilos quanto a esta questatildeo especificamente contudo seus adendos

colaboraratildeo para a nossa hipoacutetese inicial de um avanccedilo gradual quanto a aplicabilidade

epistemoloacutegica do meacutetodo O ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo seraacute solucionado com

mais clareza a partir das inovaccedilotildees fregeanas apresentadas na Conceitografia

11 BACON Novo Oacuterganon ldquoPrefaacuteciordquo

170

O meacutetodo empiacutericonatural

O meacutetodo empiacutericonatural de Bacon buscou conciliar o papel do corpo e do

espiacuterito nos processos epistemoloacutegicos promovendo o ldquoeterno casamentordquo das

faculdades racionais com os sentidos ressuscitando o corpo O principal movimento do

corpo e do espiacuterito quanto a esse meacutetodo seraacute a induccedilatildeo Aqui ela teraacute uma acepccedilatildeo

distinta da enumeraccedilatildeo suficiente jaacute vista no sistema cartesiano12 Seraacute tida como o meio

mais adequado de conduzir o corpo e o espiacuterito natildeo soacute por respeitar o papel dos sentidos

no processo de conhecimento como por tornar o ser humano obediente a natureza O

intelecto por natildeo ter contato imediato com a natureza que eacute a nossa uacutenica possibilidade

concreta de conhecimento perfeito seria mais propenso a erros do que os sentidos A

partir disso Bacon inauguraraacute um modo de operar o conhecimento mais condizente com

as limitaccedilotildees de nossa mortalidade e humanidade que tem por marca a inacessibilidade

imediata frente ao universal e o infinito Logo estabeleceraacute que na verdade ao contraacuterio

do que se pressupunha no meacutetodo cartesiano devemos partir dos particulares e natildeo dos

universais jaacute que estes natildeo seriam condizentes com os limites humanos dos sentidos

A induccedilatildeo baconiana aleacutem de seguir um movimento oposto ao da

demonstraccedilatildeo convencional valia-se de axiomas para compor por etapas a passagem dos

conhecimentos particulares aos universais isto eacute das proposiccedilotildees mais complexas as

mais simples de ordem geral De acordo com Bacon por meio da deduccedilatildeo natildeo

conseguiriacuteamos conhecer a natureza com clareza jaacute que esta pressuporia o ldquointelecto nurdquo

ou seja despido dos sentidos A induccedilatildeo deveria ser tomada como ponto de partida do

conhecimento sem a expectativa de se deparar apenas com a simplicidade ordenadora

tal como a do meacutetodo cartesiano Conhecer a natureza natildeo seria faacutecil todavia com o

meacutetodo indutivo conseguiriacuteamos dividir o todo complexo que se apresenta diante de noacutes

em partes possibilitando deste modo uma anaacutelise mais minuciosa e em seguida o acesso

a conhecer as coisas

O intelecto por ser afetaacutevel por emoccedilotildees e crenccedilas seria tatildeo duvidoso quanto

os sentidos13 Diga-se de passagem que dado o distanciamento do intelecto em relaccedilatildeo a

natureza este chegaria seria ainda mais propenso a erros que os sentidos Dada a relaccedilatildeo

intriacutenseca do conhecimento com a natureza no sistema baconiano ao contraacuterio do

12 Ver mais sobre enumeraccedilatildeo suficiente em DESCARTES Regras para a Direccedilatildeo do Espiacuterito ldquoRegra VIrdquo E a criacutetica de Bacon a enumeraccedilatildeo suficiente em BACON Novo Oacuterganon ldquoPlano da Obrardquo sect1 13 BACON Novo Oacuterganon ldquoLivro Irdquo ldquoAforismo XLIXrdquo

171

ldquoconhecimento por conhecerrdquo proposto pelo sistema cartesiano teremos um

ldquoconhecimento parardquo o que significa obter conhecimento visando fins utilitaacuterios Um

desses fins que podemos observar no ldquoPrefaacuteciordquo do Novo Oacuterganon seraacute o de usar o

conhecimento em benefiacutecio da vida para conduzi-la com caridade isto eacute de acordo com

os valores eacuteticos morais e cristatildeos Logo o conhecimento estaria relacionado agrave aquisiccedilatildeo

desses valores a fim de se conduzir a vida humana com mais dignidade

A deduccedilatildeo no sistema baconiano poderia nos conduzir ao ldquoobscurecimento

do globo celesterdquo jaacute que utilizariacuteamos o intelecto de forma especulativa ignorando os

sentidos que satildeo capazes de acessar a natureza diretamente Somente por meio da

empiria que direcionariacuteamos a nossa razatildeo por vias seguras condizentes com a sabedoria

universal que teria um quecirc de divino Natildeo respeitar a ordem natural significaria

obscurecer os processos epistemoloacutegicos optando por vias especulativas Num certo

aspecto o meacutetodo baconiano limitaria o exerciacutecio de nossa razatildeo jaacute que ela teria de

exercer ser esforccedilo intelectual a partir da natureza Outro objetivo desse meacutetodo aleacutem da

conciliaccedilatildeo mencionada foi o de eliminar os iacutedolos14

Os iacutedolos poderiam ser entendidos por ilusotildees impressas na razatildeo

principalmente quando a mente 15 sofre alteraccedilotildees em seu funcionamento graccedilas a

afetaccedilotildees oriundas das percepccedilotildees adquiridas a partir dos sentidos podendo ser inatos ou

artificiais Os inatos seriam inerentes ao proacuteprio intelecto enquanto os artificiais inseridos

na mente humana a partir de doutrinaccedilotildees externas e crenccedilas Os iacutedolos inatos segundo

Bacon natildeo poderiam ser eliminados da mente daiacute a importacircncia de um meacutetodo

empiacutericonatural indutivo que concilie as faculdades empiacutericas com as racionais O

meacutetodo baconiano seraacute chamado pelo proacuteprio autor de Interpretaccedilatildeo da Natureza

enquanto o ldquomeacutetodo antigordquo de Antecipaccedilatildeo da Mente

Um dos avanccedilos que o meacutetodo baconiano nos trouxe foi o de tomar a

particularidade como ponto de partida para a anaacutelise da verdade e a aquisiccedilatildeo de

conhecimento mesmo diante de uma complexidade residida na necessidade de um certo

nuacutemero de axiomas para tornar um dado processo epistemoloacutegico mais gradual Tal

avanccedilo eacute importante pois veremos que no sistema de Frege a necessidade de um mesmo

ponto de partida especialmente se considerarmos sua teoria da prova Outros avanccedilos

14 Traduccedilatildeo do termo baconiano idola Podemos tambeacutem traduzir este termo por ldquoilusatildeordquo pois significaria justamente a aquisiccedilatildeo de uma ideia fictiacutecia proveniente de um certo ludibriamento sofrido pela razatildeo 15 Mente em Bacon natildeo se diferencia muito de razatildeo por isso tomarei ambos termos como sinocircnimos um do outro Podemos dizer de forma redundante que a mente para ele eacute a razatildeo em exerciacutecio

172

importantes que podemos verificar eacute o reconhecimento dos possiacuteveis impasses que a

linguagem natural pode incutir no meacutetodo a partir de sua utilizaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do

que eacute exterior a noacutes intervir no bom curso e exerciacutecio da razatildeo

No ldquoAforismo XLIVrdquo do ldquoLivro Irdquo de Novo Oacuterganon Bacon jaacute enunciaraacute um

dos maiores impasses que a linguagem colocaraacute ao meacutetodo a imprecisatildeo terminoloacutegica

O silogismo por ser composto de proposiccedilotildees que consistem de palavras de acordo com

o autor seriam pouco seguros caso fossem tomados por fundamento jaacute que satildeo

permutaacuteveis por noccedilotildees que podem ser abstratas e pouco claras para a ciecircncia Por isso

a induccedilatildeo se faria necessaacuteria uma vez que o silogismo natildeo se referia as coisas em si mas

a seus roacutetulos Logo o silogismo natildeo seria uacutetil para se investigar a verdade

O meacutetodo hobbesiano

O meacutetodo hobbesiano buscou retomar o status prioritaacuterio da razatildeo nos

processos epistemoloacutegicos contudo sem ldquoaniquilar o corpordquo A razatildeo ganha um papel de

destaque ao ser igualada a proacutepria Filosofia que estaria inserida dentro de noacutes Propondo

um meacutetodo condizente com a criaccedilatildeo do mundo isto eacute que seguia a ordem da criaccedilatildeo

(luz distinccedilatildeo entre dia e noite firmamento criaturas celestes criaturas sensiacuteveis e

homem) Hobbes buscou estabelecer uma ordem contemplativa que nos fosse adequada

para o exerciacutecio explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo de nossa sabedoria de forma analoacutegica a

estrutura do mundo A Filosofia em sua maacutexima seria consoante ao meacutetodo jaacute que teria

por pressuposto principal a ldquouniatildeo eterna e vigorosa com o mundordquo De acordo com

Hobbes a Filosofia eacute inata em todos os homens jaacute que corresponde a razatildeo natural

contudo para que esta natildeo se desvie dos caminhos corretos precisaria de um meacutetodo

efetivo Muitas vezes como os homens se contentam com a experiecircncia cotidiana como

fundamento para uma indubitabilidade um meacutetodo seria posto de lado o que eacute uma falha

O autor nos oferece uma definiccedilatildeo de Filosofia em Do Corpo dizendo que

ela eacute o conhecimento adquirido pelo reto raciociacutenio dos Efeitos ou Fenocircmenos a partir

das Causas e Geraccedilotildees e vice-versa Haveriam coisas importantes a serem analisadas

nessa definiccedilatildeo todavia ficaremos apenas com a primeira delas onde se dariam essas

Causas e Efeitos Hobbes nos diz que natildeo haacute nada inteiramente imaterial tudo precisa de

um corpo para ser passiacutevel de ser reconhecido ainda que natildeo estejamos falando

exatamente de um corpo fiacutesico Sem corpo natildeo pode haver raciociacutenio pois o princiacutepio

baacutesico que todas as ciecircncias deviam dominar era de como se mede os corpos e seus

173

respectivos movimentos A Filosofia seria uma ferramenta uacutetil para usarmos os Efeitos

dos corpos com comodidade16Em seu exerciacutecio ela pressuporia raciociacutenio que eacute visto

como um caacutelculo onde as principais operaccedilotildees da razatildeo a fim de que ela aja de acordo

com o meacutetodo seraacute a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo Por isso podemos chamar o meacutetodo

hobbesiano de racionalizante Um raciociacutenio neste meacutetodo natildeo tomaria por base apenas

palavras ou nuacutemeros mas corpos movimentos tempos graus e entre outros A adiccedilatildeo e

a subtraccedilatildeo serviriam para reunir distinguir e separar conceitos Para ilustrar isso na

primeira parte de Do Corpo Hobbes nos daacute o exemplo de ldquohomem racionalrdquo que pode

ser desdobrado pelo proacuteprio meacutetodo racionalizante que ele propotildee por meio da

decomposiccedilatildeo dos conceitos ldquohomemrdquo ldquoanimadordquo e ldquoracionalrdquo que juntos somados pela

adiccedilatildeo formam uma soacute noccedilatildeo ldquohomem racionalrdquo

O meacutetodo racionalizante nos traraacute algumas inovaccedilotildees Primeiro a

consideraccedilatildeo de que o que eacute adquirido de forma imediata pela natureza natildeo eacute raciociacutenio

porque a conquista da verdade e firmeza da razatildeo depende da Filosofia atrelada a um bom

meacutetodo Segundo que a experiecircncia natildeo pode ser equiparaacutevel ao raciociacutenio jaacute que eacute soacute

memoacuteria e natildeo consegue reunir ou compor conceitos Terceiro o rompimento com

aspectos teoloacutegicos jaacute que as divindades natildeo poderiam ser conhecidas pela razatildeo mas

eram relativas a questotildees de feacute Tambeacutem natildeo poderiacuteamos aplicar nenhum tipo de anaacutelise

baseada em divisatildeo ou decomposiccedilatildeo de partes jaacute que nada originariamente as concebem

As inovaccedilotildees da conceitografia fregeana quanto meacutetodo

Frege no ldquoPrefaacuteciordquo da Conceitografia ressalta que a linguagem formular do

pensamento puro ou ideografia tem em sua execuccedilatildeo o intento de atender a certos

propoacutesitos cientiacuteficos um deles a saber seria o de minorizar as mazelas da linguagem

natural que possivelmente estaria permeando o discurso cientiacutefico Portanto tal ideografia

natildeo deveria ser posta de lado caso natildeo servisse como ldquomeacutetodordquo para outras finalidades17

Logo busca delimitar seu uso de modo a consideraacute-la como ferramenta uacutetil para

examinar de forma mais detida e detalhada cadeias de inferecircncia sem que estas sejam

obscurecidas pelos obstaacuteculos impostos a algum grau de precisatildeo e clareza colocados pela

linguagem corrente (natural) jaacute que ela deixaria lacunas inevitaacuteveis Nisto Frege propocircs

16 HOBBES Do Corpo ldquoparte 1- Caacuteculo ou Loacutegicardquo capiacutetulo 1 sect 6 a 8

17 FREGE Conceitografia ldquoPrefaacuteciordquo

174

a elaboraccedilatildeo de uma linguagem formular para o pensamento puro que trata de conteuacutedos

conceituais a fim de desfazer a ambiguidade gerada a partir do uso equiacutevoco de sinais

que pudessem designar tanto um conceito quanto o objeto que recaiacutesse sobre um conceito

Desse modo elaborou-se uma lingua characterica onde signos especiacuteficos pudessem ser

manipulados de acordo com regras definidas Juntamente com a concepccedilatildeo desta

linguagem busca-se novos fundamentos para uma ldquonova Sintaxerdquo isto eacute o abandono da

estrutura claacutessica sujeito-predicado aristoteacutelica em prol da noccedilatildeo de funccedilatildeo e argumento

a fim de aumentar ainda mais a precisatildeo discursiva especialmente no que tange o discurso

cientiacutefico

Ao realizar as devidas correccedilotildees quanto aos equiacutevocos comumente expressos

pela linguagem Frege procurou estabelecer um sistema que natildeo soacute desse conta da

imprecisatildeo vista na linguagem natural como tambeacutem de fundamentar uma base

epistemoloacutegica soacutelida para a ciecircncia Essa base ao se valer de um pressuposto de

particularidade foi extremamente uacutetil para solucionar o problema do espaccedilo epistecircmico

suscitado desde o iniacutecio do meacutetodo cartesiano Ao considerarmos a hipoacutetese natildeo

conclusiva de que a conceitografia fregeana serviria como uma restriccedilatildeo provisoacuteria tanto

para pretensotildees universalistas quanto para a fundamentaccedilatildeo mais soacutelida da ciecircncia a

partir de uma particularidade escapando desde da mathesis universalis cartesiana ao

ldquodescobrir facilmente algordquo de Bacon constataremos que Frege por meio do

oferecimento de ferramentas que combatem a proacutepria insuficiecircncia da linguagem natural

em lidar com o problema lacunar (isto principalmente se considerarmos o emprego da

deduccedilatildeo nos processos epistemoloacutegicos) trouxe uma das maiores inovaccedilotildees quanto ao

uso do meacutetodo jaacute vistas a restriccedilatildeo provisoacuteria

Entendemos aqui a restriccedilatildeo provisoacuteria pela limitaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de um

sistema em foacutermulas e escopos especiacuteficos a fim de evitar eventuais problemas que

possam surgir numa aplicaccedilatildeo mais aberta o que foi feito por Frege em seu sistema

supracitado Por meio dela ainda foi possiacutevel deslocar a linguagem de um patamar

gramatical para o das leis loacutegicas em busca de precisatildeo que livre conclusotildees de alguma

generalidade pois construiu-se uma linguagem mais estaacutevel e menos evolutiva Frege

realizou isto valendo-se da palavra escrita jaacute que ela teria mais permanecircncia

possibilitando sua anaacutelise quantas vezes fosse necessaacuterio

Deste modo que o que chamamos de ldquoproblema do espaccedilo epistecircmicordquo na

verdade era um problema linguiacutestico que foi mais esclarecido a partir do uso de regras

especiacuteficas de manipulaccedilatildeo de signos presentes na conceitografia fregeana que visava

175

atingir um niacutevel de precisatildeo ao ponto de conseguir identificar lacunas presentes em nossas

cadeias inferenciais a fim de contornaacute-las Sendo assim encerraremos nossa exposiccedilatildeo

jaacute que o nosso maior objetivo era indicar apontamentos de motivos pelos quais podemos

considerar ou natildeo a conceitografia fregeana como meacutetodo sem pretensotildees de

elaborarmos conclusotildees mais definitivas

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BACON F Novo Oacuterganon (Instauratio Magna)Satildeo Paulo Edipro 2014

DESCARTESRObra Escolhida Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1962

DESCARTESR Regras para a Direccedilatildeo do EspiacuteritoSatildeo Paulo Cultura Moderna 1938

FREGEG Loacutegica e filosofia da linguagem Satildeo Paulo CultrixEdusp 1978

HEATH TA History of Greek Mathematics (vol II)Nova York Dover 1981

HOBBES T Do Corpo Parte 1 ndash Caacutelculo e LoacutegicaSatildeo Paulo Unicamp 2009

LOPARIC Z Descartes Heuriacutestico Satildeo Paulo IFCH Unicamp 1997

DOIS SENTIDOS DE PARTICIPACcedilAtildeO EM PLATAtildeO

Otacilio Luciano de Sousa Neto1

RESUMO Este artigo visa observar a ocorrecircncia dos termos que dizem participaccedilatildeo nos passos 130b e 130e do Parmecircnides de Platatildeo com a finalidade de distinguir duas concepccedilotildees pouco explanadas nos estudos da ontologia platocircnica um sentido de participaccedilatildeo mutaacutevel no qual um ente pode tornar a participar de uma Forma e possuir um predicado e outro sentido de participaccedilatildeo eterno no qual um participante possui eternamente um predicado (eg o trecircs eacute sempre iacutempar) respectivamente associados aos termos μεταλαμβάνοντα e μετέχοντα Esta distinccedilatildeo se torna mais clara em 155e e pode ser encontrada em outros momentos dos diaacutelogos platocircnicos como por exemplo no Feacutedon Palavras-chave Platatildeo Parmecircnides participaccedilatildeo

ABSTRACT This paper aims to observe the occurrence of terms that say participation in steps 130b and 130e of Platos Parmenides in order to distinguish two conceptions poorly explained in the studies of Platonic ontology a sense of changeable participation which an entity can begin to partake in a Form and get a predicate and another sense of eternal participation in which a participant eternally possesses a predicate (eg three is always odd) respectively associated with the terms μεταλαμβάνοντα and μετέχοντα This distinction becomes clearer in 155e and can be found elsewhere in the Platonic dialogues as for example in the Phaedo Keywords Plato Parmenides participation

Satildeo curiosas as maneiras que aparecem os termos participaccedilatildeo nas passagens

das aporias da participaccedilatildeo e no Parmecircnides como um todo Assim sendo nossa tarefa

eacute investigar estes termos questionando o que eacute participaccedilatildeo

Para que se entenda a participaccedilatildeo jaacute de iniacutecio eacute interessante observar certas

passagens nas quais Parmecircnides pergunta a Soacutecrates como se daacute a participaccedilatildeo Lecirc-se

Mas dize-me tu mesmo assim fizeste a divisatildeo tal como falas de um lado certas formas mesmas de outro as coisas que delas participam E te parece a semelhanccedila mesma ser algo separada do que temos e tambeacutem o um e as muacuteltiplas coisas e todas as coisas que haacute pouco ouviste de Zenatildeo2 (PLATAtildeO Parmecircnides 130b)

1 Mestrando em filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute 2 καί μοι εἰπέ αὐτὸς σὺ οὕτω διῄρησαι ὡς λέγεις χωρὶς μὲν εἴδη αὐτὰ ἄττα χωρὶς δὲ τὰ τούτων αὖ μετέχοντα καί τί σοι δοκεῖ εἶναι αὐτὴ ὁμοιότης χωρὶς ἧς ἡμεῖς ὁμοιότητος ἔχομεν καὶ ἓν δὴ καὶ πολλὰ καὶ πάντα ὅσα νυνδὴ Ζήνωνος ἤκουες

177

De antematildeo eacute possiacutevel homologar uma determinada concepccedilatildeo questionada

por Parmecircnides As Formas estatildeo separadas [χωρὶς] das coisas de que delas participam

Parmecircnides pergunta se as Formas satildeo separadas dos entes que delas participam A

resposta de Soacutecrates eacute afirmativa e portanto eacute posiccedilatildeo de Soacutecrates que as Formas satildeo

separadas dos participantes Isto natildeo quer dizer necessariamente que as Formas satildeo de

fato separadas dos itens que delas participam apenas quer dizer que Soacutecrates aceita tal

concepccedilatildeo neste momento do diaacutelogo

O problema da separaccedilatildeo em Platatildeo eacute muito discutido e nas proacuteximas

palavras natildeo cabe levantar novamente este problema3 Entretanto a passagem apresenta

que haacute Formas e coisas que delas participam [μετέχοντα] O termo μετέχοντα eacute particiacutepio

presente portanto natildeo indica necessariamente entes sensiacuteveis mas quaisquer coisas que

possa participar das Formas sejam entes sensiacuteveis accedilotildees e outras Formas4

Nada obstante algumas palavras depois a pergunta eacute refeita com algumas

alteraccedilotildees Vecirc-se

[hellip] Mas dize-me o seguinte parece-te como dizes haver certas formas em tendo participaccedilatildeo nas quais essas outras coisas aqui recebem suas denominaccedilotildees Por exemplo se tecircm participaccedilatildeo na semelhanccedila as coisas se tornam semelhantes se na grandeza grandes se no belo e na justiccedila justas e belas5 (PLATAtildeO Parmecircnides 130e - 131a)

Nesta nova passagem novidades satildeo expressas A primeira nova eacute de que as

coisas que participam das Formas recebem delas denominaccedilotildees [ἐπωνυμίας] Assim eacute

importante lembrar quando algo participa da Semelhanccedila este se torna semelhante

quando participa da Grandeza recebe o predicado grande e na Beleza e na Justiccedila recebe

os adjetivos belo e justo A outra novidade eacute o termo usado para dizer participaccedilatildeo

μεταλαμβάνοντα

Mas podem dois termos dizer o mesmo

Μεταμβάνειν eacute verbo na terceira pessoa do singular do presente do indicativo

da voz ativa originaacuterio do termo μεταλαμβάνω O termo μεταλαμβάνω pode ser

entendido primeiramente por ldquoter ou obter uma parte participarrdquo Este sentido guarda a

3 Para ampliar a discussatildeo deste problema conferir FUJISAWA 1974 Conferir tambeacutem FINE 2003 pp 252-301 NETO 2016 4 Cf PLATAtildeO Repuacuteblica 476a 5 τόδε δ᾽ οὖν μοι εἰπέ δοκεῖ σοι ὡς φῄς εἶναι εἴδη ἄττα ὧν τάδε τὰ ἄλλα μεταλαμβάνοντα τὰς ἐπωνυμίας αὐτῶν ἴσχειν οἷον ὁμοιότητος μὲν μεταλαβόντα ὅμοια μεγέθους δὲ μεγάλα κάλλους δὲ καὶ δικαιοσύνης δίκαιά τε καὶ καλὰ γίγνεσθαι

178

possibilidade de ler μεταλαμβάνω apontando para ldquouma parte recebida ou adicionadardquo

Um segundo sentido aponta para algo que se ldquorecebe em sucessatildeo ou posteriormenterdquo

Outro sentido refere-se a algo que ldquose toma como alternativa que se toma em troca que

substituirdquo E em seu quarto sentido ldquoser mudadordquo6

Para μετέχειν natildeo aparecem tantos sentidos e os que aparecem natildeo satildeo

claramente uacuteteis O termo μετέχειν eacute o infinitivo presente da voz ativa do termo μετέχω

O termo μετέχω por sua vez tem como primeiro sentido apresentado ldquoparticipar ou

compartilhar emrdquo em outro sentido refere-se agraves ldquopartes adicionadasrdquo e mesmo ainda diz

respeito a ldquoser um parceirordquo7

Eacute claramente reconheciacutevel a gecircnese do termo μεταλαμβάνω como a junccedilatildeo

do prefixo ldquoμετάrdquo ao verbo ldquoλαμβάνωrdquo Tambeacutem eacute visiacutevel a associaccedilatildeo entre μετέχω

como a junccedilatildeo do termo ldquoμετάrdquo ao termo ldquoἔχωrdquo O prefixo ldquoμετάrdquo traz o sentido de

ldquojuntamente com entre pelo auxiacutelio derdquo O verbo ldquoλαμβάνωrdquo tem o sentido de ldquoagarrar

segurar levar consigo como precircmio ou espoacutelio pegar tomar em matildeos receber tomar

posse de apreender obter a posse derdquo O verbo ldquoἔχωrdquo traz entre seus sentidos ldquoter

segurar como uso mais comum possuir propriedade manter sustentar reter suportar ou

segurar para si mesmordquo

Sobre a distinccedilatildeo de μετέχω e μεταλαμβάνω satildeo pouquiacutessimas as palavras

que se podem facilmente encontrar Satildeo uacuteteis para o trabalho neste sentido apenas as

palavras de Cornford e Scolnicov8 Lecirc-se

Como no Feacutedon μεταλαμβάνειν (μετάσχεσις Feacutedon 101c μετάληψις Parm 131 a Aristotle cotado abaixo p 79) significa comeccedilar a participar quando a coisa se torna como (γίγνεσθαι) por outro lado μετέχειν eacute usado para ter uma participaccedilatildeo e corresponde a ser como (εἶναι) Mετέχειν e μεταλαμβάνειν satildeo claramente distinguidos novamente em 155E 11-156A 1 (CORNFORD F M 1939 p69 TRADUCcedilAtildeO NOSSA)9 Μεταλαμβάνει eacute o equivalente platonico a lsquotornar-sersquo jaacute enquanto μετέχει lsquotomar parte emrsquo ou lsquoparticipar emrsquo eacute equivalente ao predicado lsquoeacutersquo Eacute claro na tese de Soacutecrates(cf 128e5 ff acima p48) somente sensiacuteveis podem lsquovir a tomar parte emrsquo algo ou seja nas

6 CfLIDDEL H G SCOOT R 1996 7 IDEM ibidem 8 Fujisawa parece elucidar o problema Entretanto a distinccedilatildeo ressaltada por Fujisawa se daacute em maior forccedila para distinguir ἔχειν de μετέχειν e μεταλαμβάνειν E a distinccedilatildeo e o problema se daacute para defender a tese de caracteres imanentes e natildeo parece tratar profundamente sobre o problema da predicaccedilatildeo Cf FUSISAWA 1974 9 CORNFORD F M Plato and The Parmenides and Parmenidesrsquo Ways of Truth translation with a running comment p 69

179

Formas as quais satildeo diferentes deles (SCOLNICOV 2001 p56 TRADUCcedilAtildeO NOSSA)10

Na apresentaccedilatildeo de Scolnicov eacute claro que para o Soacutecrates do diaacutelogo a

participaccedilatildeo se daacute apenas em entes sensiacuteveis Entretanto natildeo se vecirc que esta tese pode ser

defendida por Parmecircnides uma vez que em suas perguntas ele apenas pergunta acerca

ldquodos participantesrdquo ou das ldquocoisas que das Formas participamrdquo Ainda assim Scolnicov

distingue μεταλαμβάνει de μετέχει associando o primeiro a ldquotornar-serdquo e o segundo a

ldquoserrdquo em sentido predicativo Natildeo suficiente as distinccedilotildees lexicais apresentadas por

Cornford nos termos μετέχω e μεταλαμβάνω relacionam μεταλαμβάνω a γίγνεσθαι e

μετέχω a εἶναι Presumivelmente Cornford e Scolnicov apresentam a mesma distinccedilatildeo e

mesma posiccedilatildeo acerca do problema Entretanto deve-se perguntar quais as razotildees que

fundamentam esta relaccedilatildeo

[155e] O um se eacute tal como discorremos sendo tanto um quanto muacuteltiplas coisas e natildeo sendo nem um nem muacuteltiplas coisas e participando do tempo [μετέχον] natildeo eacute necessaacuterio que ora porque eacute um participe [μετέχειν] da essecircncia [οὐσίας] e ora por outro lado porque natildeo eacute natildeo participe [μετέχειν] da essecircncia [οὐσίας] Eacute necessaacuterio Assim sendo quando participa [μετέχει] poderaacute nesse momento natildeo participar [μετέχειν] ou quando natildeo participa [μετέχει] participar [μετέχειν] Natildeo poderaacute Logo eacute em um tempo que ele participa [μετέχει] e eacute em outro que natildeo participa [μετέχοι] Pois somente desse modo poderia participar e natildeo participar [μετέχοι] [156a]Correto Assim sendo natildeo haveraacute tambeacutem aquele tempo em que ele entra em participaccedilatildeo [μεταλαμβάνει] com o ser e em que dele se afasta Ou como seraacute possiacutevel ora ter [ἔχειν] e ora natildeo ter [μὴ ἔχειν] a mesma coisa se jamais ele a apanhar [λαμβάνῃ] ou largar [ἀφίῃ] De modo nenhum seraacute possiacutevel E o entrar em participaccedilatildeo [μεταλαμβάνειν] com a essecircncia natildeo chamas vir-a-ser [γίγνεσθαι] Sim perfeitamente

10 SCOLNICOV Samuel Platorsquos Parmenides p 56

180

O um entatildeo como parece apanhando [λαμβάνον] e largando [ἀφιὲν] a essecircncia tanto vem a ser quanto perece (PLATAtildeO Parmecircnides 155e-156a)

A passagem acima apresenta um problema que poderia ser uma insoluacutevel

aporia da participaccedilatildeo

O que eacute apresentado de iniacutecio eacute uma determinada concepccedilatildeo acerca do um

o qual pode ser entendido ou bem ora como um ou bem ora como muitos ou muacuteltiplos

(πολλὰ) Todavia se o um pode ser ora entendido como um e ora como πολλὰ ora ele

pode natildeo ser entendido como um ora natildeo pode ser entendido como πολλὰ E participando

do tempo eacute necessaacuterio admitir que algum tipo de mudanccedila uma vez que um item (x) que

participa da forma (F) ora pode ser retentor de um predicado (f) em razatildeo da participaccedilatildeo

ora pode natildeo ter mais tal predicado (f) e portanto natildeo ser mais um participante da Forma

(F) O que se diz precisamente eacute o participante do tempo (μετέχον χρόνου) a um tempo

participa de uma propriedade (οὐσίας μετέχειν ποτέ) a outro tempo natildeo participa da

propriedade (μὴ μετέχειν αὖ ποτε οὐσίας)11

Seguindo esta anaacutelise o participante do tempo (μετέχον χρόνου) tendo como

motivo um soacute aspecto ser participante do tempo (μετέχον χρόνου) ora eacute participante ora

natildeo eacute participante da propriedade (οὐσίας) Isto eacute semelhante a posiccedilatildeo de Zenatildeo no

iniacutecio do diaacutelogo impossiacutevel Isto eacute impossiacutevel uma vez que eacute uma contradiccedilatildeo sob o

mesmo aspecto ser participante do tempo o participante eacute e natildeo eacute participante da

propriedade (οὐσίας) Assim sendo o tempo eacute causa de um participante possuir alguma

propriedade (beleza justiccedila etc) e natildeo possuir esta mesma propriedade Eacute claro como eacute

afirmado no diaacutelogo que natildeo poderaacute ldquoquando participa (μετέχει) () natildeo participar

(μετέχειν) ou quando natildeo participa (μετέχει) participar (μετέχειν) (PLATAtildeO

Parmecircnides 155e) rdquo

Eis uma aporia da participaccedilatildeo por participar no tempo algo eacute e natildeo eacute

Entretanto para esta haacute soluccedilatildeo A soluccedilatildeo eacute a instauraccedilatildeo de dois momentos temporais

(i) o momento em que participa e (ii) o momento em que natildeo participa O instaurar destes

dois momentos resolve a contradiccedilatildeo pois eacute em um momento que se diz que participa e

em outro momento distinto se diz que natildeo participa

11 Eacute possiacutevel entender a partir da Repuacuteblica 476a que aleacutem de entes sensiacuteveis eacute possiacutevel que accedilotildees Formas e predicados participem de Formas Neste caso contudo entende-se que participar em uma propriedade [οὐσίας] natildeo eacute outra coisa que natildeo possuir [ἔχειν] uma determinada propriedade em razatildeo da participaccedilatildeo na Forma Cf FUJISAWA 1974 Conferir tambeacutem NETO 2016

181

Ateacute entatildeo o uacutenico termo usado para dizer participaccedilatildeo nesta passagem eacute

μετέχω em suas devidas conjugaccedilotildees e ou declinaccedilotildees E eacute brilhante pois em grego a

uacuteltima palavra usada em 155e eacute μετέχοι Eis que acaba 155e comeccedila 156a e o termo

μετέχω nem mais iraacute surgir no argumento O termo usado agora para dizer participaccedilatildeo eacute

μεταλαμβάνω

Relembra-se μεταλαμβάνειν eacute distinto de μετέχειν O primeiro sob anaacutelise

lexical teria um sentido aproximado de ldquojuntamente com o agarrarrdquo o segundo

ldquojuntamente com o possuirrdquo Em contraposiccedilatildeo ao apanhar (λαμβάνω) tem-se o largar

(ἀφω)

Assim o ente entra em participaccedilatildeo (μεταλαμβάνει) e com isso ele apanha

(λαμβάνει) por participar (μεταλαμβάνει) determinada propriedade (οὐσία) e tecircm essa

propriedade (ἔχει) mas natildeo eternamente (como em μετέχω) mas por um tempo efecircmero

que dura apenas ateacute largar (ἀφει) a propriedade que retecircm na participaccedilatildeo e a participaccedilatildeo

(μεταλαμβάνει) cessar

Este sentido de participaccedilatildeo fugaz apresenta claramente a presenccedila do

conceito de ldquovir-a-serrdquo para a compreensatildeo de seu sentido e por vezes este conceito se

daacute grafado em grego atraveacutes do termo γίγνομαι Este caso certamente se daacute no Feacutedon

na emblemaacutetica passagem que parece ser a capital para entender a participaccedilatildeo em Platatildeo

O que me parece eacute que se existe algo belo aleacutem do belo em si soacute poderaacute ser belo por participar desse belo em si O mesmo afirmo de tudo o mais Admites essa espeacutecie de causa Admito respondeu Entatildeo jaacute natildeo compreendo continuou as outras causas de pura erudiccedilatildeo e nem consigo explicaacute-las E se para justificar a beleza de alguma coisa algueacutem me falar da sua cor brilhante ou da forma ou do que quer que seja deixo tudo o mais de lado que soacute contribui para atrapalhar-me e me atenho uacutenica e simplesmente talvez mesmo com uma boa dose de ingenuidade ao meu ponto de vista a saber que nada mais a deixa bela senatildeo tatildeo soacute a presenccedila ou comunicaccedilatildeo daquela beleza em si qualquer que seja o meio ou caminho de lhe acrescentar De tudo o mais natildeo faccedilo grande cabedal o que digo eacute que eacute soacute pela beleza em si que as coisas belas satildeo belas Na minha opiniatildeo essa eacute a maneira mais certa de responder tanto a mim mesmo como aos outros Firmando-me nessa posiccedilatildeo tenho certeza de natildeo vir a cair e de que tanto eu como qualquer pessoa em idecircnticas circunstacircncias poderaacute responder com seguranccedila que eacute pela beleza que as coisas belas satildeo belas12 (PLATAtildeO Feacutedon 100c-e NEGRITOS NOSSOS)

12 φαίνεται γάρ μοι εἴ τί ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι᾽ ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ διότι μετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ καὶ πάντα δὴ οὕτως λέγω τῇ τοιᾷδε αἰτίᾳ συγχωρεῖς

182

O termo que se grafa em grego eacute γίγνεται e natildeo haacute duacutevidas que o termo tem

o sentido de ldquovir a ser13rdquo Por este motivo discordamos aqui da presente traduccedilatildeo uma

vez que o que Soacutecrates diz que eacute pela Beleza que as coisas se tornam belas

Eacute claro que a acepccedilatildeo Socraacutetica natildeo parece como afirma o proacuteprio Soacutecrates

indubitaacutevel jaacute que o proacuteprio personagem que profere as palavras afirma que pode haver

nele uma boa dose de ingenuidade ao defender a participaccedilatildeo Natildeo obstante como eacute

possiacutevel que o personagem que muitiacutessimas vezes eacute o baluarte da discussatildeo nos diaacutelogos

platocircnicos natildeo estar seguro de uma tatildeo importante doutrina O fato eacute que mesmo que

Soacutecrates possa parecer seguro acerca da existecircncia das Formas ele natildeo parece seguro de

como funciona as relaccedilotildees que se datildeo onde as Formas satildeo elementos de relaccedilatildeo

Nos mais importantes diaacutelogos para a participaccedilatildeo ndash os considerados por noacutes

os mais importantes objetos de pesquisa ndash a saber Feacutedon Parmecircnides e Sofista Soacutecrates

em momento algum parece estar totalmente seguro acerca de alguma relaccedilatildeo que se daacute

entre Forma e quaisquer itens que dela participar o que natildeo impede o personagem de

homologar ou propor fortiacutessimos aspectos acerca da participaccedilatildeo No Feacutedon mesmo que

assuma que possa estar sendo ingecircnuo ele assume um sentido de participaccedilatildeo que

apresenta a possibilidade de transiccedilatildeo de um item que natildeo eacute portador de um predicado e

pela participaccedilatildeo na Forma pode se tornar retentor de um predicado conferido pela

Forma14 No Parmecircnides Soacutecrates apenas nos passos 129a-e iraacute proferir as palavras que

dizem participaccedilatildeo μετέχειν μεταλαμβάνειν e em momento algum do diaacutelogo iraacute dizecirc-

las novamente apenas aceitaraacute ou recusaraacute as perguntas feitas pelo personagem

Parmecircnides Este uacuteltimo no entanto atraveacutes de suas questotildees iraacute tratar de importantes

aspectos da participaccedilatildeo Jaacute no Sofista Soacutecrates se cala logo no iniacutecio do diaacutelogo e caberaacute

ao Estrangeiro de Eleacuteia apresentar a teia de conexotildees que haacute entre Formas (συμπλοκὴ τῶν

εἰδῶν)15

Entranto mesmo que Soacutecrates seja um personagem que legitima toda a

compreensatildeo sobre a participaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel que seja alvo de contenda o sentido de

participaccedilatildeo tanto no Feacutedon como no Parmecircnides que traga consigo a noccedilatildeo de ldquotornar-

serdquo fazendo com que um item que natildeo eacute x possa vir-a-ser x por participar de uma Forma

X ldquojuntamente com o agarrarrdquo da propriedade Obstante Platatildeo natildeo deixa de escrever

13 Cf LIDDEL H G SCOOT R 1996 14 Soacutecrates inseguro e ousado ainda iraacute apresentar um exemplo de outro sentido de participaccedilatildeo 15 Cf PECK A L Platos Sophist The συμπλοϰὴ τῶν εἰδῶν 1962

183

Mas estou certo de que tambeacutem admites que nunca poderaacute a neve como neve conforme dissemos haacute pouco depois de receber o calor continuar a ser o que era neve com calor Com a aproximaccedilatildeo do calor ou ela se retira ou vem a fenecer Perfeitamente Tal qual o fogo com a chegada do frio retira-se ou perece de jeito nenhum depois de receber o frio se atreveria a ser o que antes era fogo a um tempo e frio Falaste com muito acerto observou Pode acontecer continuou nalguns exemplos desse tipo que natildeo somente a ideia em si mesma tenha o direito de conservar eternamente o mesmo nome como tambeacutem algo que diferente que sem ser aquela ideia apresenta-se enquanto existe com sua forma Eacute possiacutevel que com o seguinte exemplo eu deixe mais claro meu pensamento O nuacutemero iacutempar teraacute de conservar sempre esse nome com o que o designamos Ou natildeo Perfeitamente [] Seja como for de tal modo eacute construiacuteda a natureza do trecircs do cinco e de toda uma metade de nuacutemeros que apesar de cada um deles natildeo ser a mesma coisa que o iacutempar sempre teraacute de ser iacutempar O mesmo passa com o dois o quatro e toda a outra metade dos nuacutemeros que sem serem o par sempre teratildeo de ser pares Admites isso ou natildeo Como natildeo admitir Foi a sua resposta16 (PLATAtildeO Feacutedon 103d-104b)

16 ἀλλὰ τόδε γ᾽ οἶμαι δοκεῖ σοι οὐδέποτε χιόνα γ᾽ οὖσαν δεξαμένην τὸ θερμόν ὥσπερ ἐν τοῖς πρόσθεν ἐλέγομεν ἔτι ἔσεσθαι ὅπερ ἦν χιόνα καὶ θερμόν ἀλλὰ προσιόντος τοῦ θερμοῦ ἢ ὑπεκχωρήσειν αὐτῷ ἢ ἀπολεῖσθαι πάνυ γε καὶ τὸ πῦρ γε αὖ προσιόντος τοῦ ψυχροῦ αὐτῷ ἢ ὑπεξιέναι ἢ ἀπολεῖσθαι οὐ μέντοι ποτὲ τολμήσειν δεξάμενον τὴν ψυχρότητα ἔτι εἶναι ὅπερ ἦν πῦρ καὶ ψυχρόν ἀληθῆ ἔφη λέγεις ἔστιν ἄρα ἦ δ᾽ ὅς περὶ ἔνια τῶν τοιούτων ὥστε μὴ μόνον αὐτὸ τὸ εἶδος ἀξιοῦσθαι τοῦ αὑτοῦ ὀνόματος εἰς τὸν ἀεὶ χρόνον ἀλλὰ καὶ ἄλλο τι ὃ ἔστι μὲν οὐκ ἐκεῖνο ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν ἀεί ὅτανπερ ᾖ ἔτι δὲ ἐν τῷδε ἴσως ἔσται σαφέστερον ὃ λέγω τὸ γὰρ περιττὸν ἀεί που δεῖ τούτου τοῦ ὀνόματος τυγχάνειν ὅπερ νῦν λέγομεν ἢ οὔ πάνυ γε ἆρα μόνον τῶν ὄντωνmdashτοῦτο γὰρ ἐρωτῶmdashἢ καὶ ἄλλο τι ὃ ἔστι μὲν οὐχ ὅπερ τὸ περιττόν ὅμως δὲ δεῖ αὐτὸ μετὰ τοῦ ἑαυτοῦ ὀνόματος καὶ τοῦτο καλεῖν ἀεὶ διὰ τὸ οὕτω πεφυκέναι ὥστε τοῦ περιττοῦ μηδέποτε ἀπολείπεσθαι λέγω δὲ αὐτὸ εἶναι οἷον καὶ ἡ τριὰς πέπονθε καὶ ἄλλα πολλά σκόπει δὲ περὶ τῆς τριάδος ἆρα οὐ δοκεῖ σοι τῷ τε αὑτῆς ὀνόματι ἀεὶ προσαγορευτέα εἶναι καὶ τῷ τοῦ περιττοῦ ὄντος οὐχ ὅπερ τῆς τριάδος ἀλλ᾽ ὅμως οὕτως πέφυκε καὶ ἡ τριὰς καὶ ἡ πεμπτὰς καὶ ὁ ἥμισυς τοῦ ἀριθμοῦ ἅπας ὥστεοὐκ ὢν ὅπερ τὸ περιττὸν ἀεὶ ἕκαστος αὐτῶν ἐστι περιττός καὶ αὖ τὰ δύο καὶ τὰ τέτταρα καὶ ἅπας ὁ ἕτερος αὖ στίχος τοῦ ἀριθμοῦ οὐκ ὢν ὅπερ τὸ ἄρτιον ὅμως ἕκαστος αὐτῶν ἄρτιός ἐστιν ἀεί συγχωρεῖς ἢ οὔ

184

Para analisar a passagem do Feacutedon eacute necessaacuterio relembrar alguns pontos

Primeiro de que a Forma se relaciona com outros entes sejam eles entes sensiacuteveis ou

mesmo outras Formas Quando uma Forma tem relaccedilatildeo com um ente sensiacutevel e o ente

sensiacutevel nesta relaccedilatildeo reteacutem (ἔχει) uma propriedade (οὐσία) chamamos isso de

participaccedilatildeo Antes foi visto que um ente pode possuir uma propriedade e em outro

momento natildeo mais a possuir quando isto acontece dizemos participaccedilatildeo atraveacutes do

termo μεταλαμβάνω

Contudo o sentido de participaccedilatildeo aferido no Feacutedon (130d-104b) eacute outro

Eacute sabido que em uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo agravequilo que participa da Forma

possui (ἔχειν) ou melhor agarra (λαμβάνειν) uma propriedade (ὀυσια) em razatildeo da

participaccedilatildeo Viu-se que um ente pode vir a tornar-se retentor de um predicado caso venha

a ser (γίγνεται) participante da Forma e pode muito bem natildeo reter mais o predicado caso

a participaccedilatildeo cesse Entretanto eacute possiacutevel pensar em alguma participaccedilatildeo que jamais

cesse apontando uma propriedade tatildeo duradoura quanto a proacutepria existecircncia essencial do

ente

De antematildeo este tipo de participaccedilatildeo seria impossiacutevel pois os entes

sensiacuteveis mutaacuteveis que satildeo jamais se conservam idecircnticos nem a si mesmos e nem em

relaccedilatildeo aos outros (Feacutedon 78a-79b) Tal mutabilidade poderia muito bem indicar que

nenhum tipo de participaccedilatildeo poderia se dar eternamente ndash ou necessariamente enquanto

o proacuteprio participante existisse

O que se apresenta entretanto no Feacutedon (130d-104b) eacute outro tipo de relaccedilatildeo

necessaacuteria e eterna em que algo que eacute diferente da Forma da qual participa conserva

durante toda a sua existecircncia a relaccedilatildeo que haacute com tal diferente Forma Assim sendo um

ente seria enquanto existente retentor de um predicado x por participar de uma Forma

X Forma esta a qual eacute totalmente divergente do ente De tal maneira um ente que

relaciona com a Forma e possui dela propriedades predicados pode se conservar durante

toda sua existecircncia retentor de determinada propriedade nunca apanhando (λαμβάνον)

mas sempre a possuindo (ἔχει) e nunca largando (ἀφιὲν) Assim seria necessaacuterio dizer

que ele eacute (ἐστιν) belo justo bom ou quaisquer coisas que seja por participar da Forma

e natildeo eacute possiacutevel dizer que ele se tornou (γίγνεται) belo justo bom (ou quaisquer

πῶς γὰρ οὔκ ἔφη

185

predicados cabiacuteveis) pois se ele se tornou eacute necessaacuterio afirmar que antes natildeo era

Contudo desde sua existecircncia sempre foi retentor de tal predicado

Certamente eacute possiacutevel pensar que justo belo e bom satildeo predicados

transitoacuterios podendo assim um item se tornar justo belo ou bom e em algum momento

natildeo o ser mais Natildeo pensamos aqui a possibilidade de algum ente seja justo

essencialmente e participe da justiccedila sem nunca a agarrar mas sendo justo por possuir a

justiccedila17

Como exemplos Soacutecrates apresenta o caso do fogo que enquanto existir seraacute

quente Se natildeo for mais quente natildeo existe e natildeo eacute mais fogo A neve enquanto neve eacute

fria e se natildeo for mais fria natildeo seraacute mais neve O nuacutemero trecircs eacute iacutempar e natildeo pode acontecer

de existir um trecircs natildeo iacutempar e que seja par

Entretanto os exemplos dados por Soacutecrates divergem acerca do objeto de que

tratam No primeiro caso a neve e o fogo ambos satildeo entes sensiacuteveis que podem ser

captados pela senso-percepccedilatildeo De tal modo mesmo que estes entes sensiacuteveis nunca

permaneccedilam idecircnticos a si mesmos e nem aos outros (Feacutedon 78a-79b) eles tecircm um tipo

de participaccedilatildeo que permanece enquanto permanece a proacutepria existecircncia do ente a neve

enquanto a neve (χιόνα) deveraacute possuir (ἔχει) o predicado frio (ψυχροῦ) sob pena de natildeo

mais existir enquanto neve caso a participaccedilatildeo cesse o fogo (τὸ πῦρ) por sua vez deveraacute

ser sempre quente (θερμόν) sob pena de natildeo ser mais fogo se a participaccedilatildeo cessar Natildeo

caberaacute de maneira alguma agrave neve ser quente ndash uma vez que natildeo existiraacute mais ndash e nem

caberaacute ao fogo ser frio Estas participaccedilotildees embora se deem entre entes mutaacuteveis duram

enquanto existir o ente

Todavia distinto eacute o caso do nuacutemero trecircs uma vez que trecircs natildeo parece ser um

ente um ente sensiacutevel Pensa-se duas maneiras de entender o numeral trecircs (i) ou bem trecircs

eacute predicado de algo (eg Soacutecrates eacute trecircs por possuir trecircs partes cabeccedila tronco e

membros) ou (ii) bem trecircs poderaacute ser uma Forma abstrata que confere predicados Igual

seria o caso do Um do Cinco e de demais nuacutemeros Se pensarmos o primeiro ponto (i)

deveraacute haver uma Forma Triacuteade que possibilite que algo seja trecircs pois todos os

17 Platatildeo de fato natildeo deixa de investigar como seria possiacutevel que um ente participe (μετέχει) de uma determinada Forma que lhe confesse um predicado virtuoso tal como o exemplo da Justiccedila usado acima De fato tal relaccedilatildeo eacute objeto de investigaccedilatildeo no livro II da Repuacuteblica (359c em diante) A investigaccedilatildeo de Soacutecrates e Glauco eacute sobre a possibilidade de haver um homem justo de tal maneira que continuasse justo mesmo de posse de ilimitado poder alegoricamente apresentado como anel de Giges ou de quaisquer peripeacutecias que podem se dar no tempo Portanto a busca de Soacutecrates e Glaacuteuco no livro II da Repuacuteblica eacute por um tipo de participaccedilatildeo (μετέχειν) neste sentido um homem que eacute (ἐστιν) justo e jamais poderaacute vir a ser (γίγνεται) injusto

186

predicados precisar tem uma Forma para haver o predicado Todo trecircs portanto eacute iacutempar

Poreacutem iacutempar eacute um predicado entatildeo haacute a Forma Iacutempar que lhe confere predicado Assim

sendo todo predicado trecircs deveraacute participar do Iacutempar e ser predicado de iacutempar Logo

todo item que tiver o predicado de trecircs deveraacute tambeacutem ser iacutempar pois o predicado trecircs

participa necessariamente (μετέχει) do Iacutempar Sob o segundo aspecto (ii) para pensar

tem-se que Trecircs eacute uma Forma abstrata que confere predicado trecircs aos entes que dela

participa poreacutem eacute necessaacuterio assumir que Trecircs eacute iacutempar e eacute iacutempar por participar do Iacutempar

Nesta participaccedilatildeo entre Formas Trecircs (ou Triacuteade) que participa de Iacutempar se faz

necessaacuterio dizer que todo item que participa do Trecircs deveraacute ser iacutempar porque a proacutepria

Triacuteade participa do Iacutempar

Neste tipo de participaccedilatildeo ndash sendo tomado como objeto o fogo a neve o trecircs

etc ndash o item eacute [εἶναι] ldquojuntamente comrdquo [μετά] o possuir [ἔχει] a propriedade [οὐσία]

denominado a partir da Forma e natildeo se torna [γίγνεσθαι] algo ldquojuntamente comrdquo [μετά]

o apanhar [λαμβάνω] daquela propriedade

Atraveacutes da anaacutelise dos passos 155e-156a do Parmecircnides eacute perceptiacutevel que

μεταλαμβάνω eacute associaacutevel a uma participaccedilatildeo mutaacutevel que ora pode ser e pode natildeo ser

E μεταλαμβάνω eacute apresentado para resolver o problema que traz outro tipo de participar

[μετέχω] onde o ente eacute por participar na Forma e natildeo eacute possiacutevel se tornar porque ou bem

participa ou bem natildeo participa e natildeo pode participar natildeo participando e nem mesmo natildeo

participando participar Assim μετέχω natildeo explica todos os casos de relaccedilotildees entre

Formas e entes sensiacuteveis pois existem as relaccedilotildees que iniciam e cessam que se dizem

atraveacutes de μεταλαμβάνω O participar de μετέχω eacute o participar no qual o ente eacute [εἶναι]

por participar da Forma e sendo natildeo pode natildeo ser e definitivamente possui [ἔχει] a

propriedade [οὐσία]

Por analogia eacute possiacutevel perceber que este eacute o caso 103d-104b no Feacutedon pois

o numeral trecircs juntamente com o possuir [μετέχει] a propriedade [οὐσία] do Iacutempar eacute

[εἶναι] trecircs E natildeo pode ele largar [ἀφει] o iacutempar pois assim deixaria de existir e de ser

trecircs O mesmo ocorre com a neve e o frio o fogo e o calor

Mesmo outros pesquisadores de Platatildeo parecem ter se deparado com o

problema Trindade Santos em sua introduccedilatildeo ao Sofista revisa concepccedilotildees de

participaccedilatildeo presentes em Platatildeo Dentre elas a do Feacutedon No texto eacute possiacutevel ler

Por exemplo no caso da alma os predicados ldquomotalimportalrdquo satildeo atribuiacutedos em funccedilatildeo da participaccedilatildeo da alma noutra entidade que a inclui (seja ldquo a Forma da Vidardquo Feacuted 106d vide 103a-105e) Todavia

187

no caso da atribuiccedilatildeo da ldquoalturapequenezrdquo a Siacutemias esses predicados satildeo atribuiacutedos pela comparaccedilatildeo de altura de Siacutemias com as de Soacutecrates e de Feacutedon o que implica legitimar a predicaccedilatildeo de acordo com a observaccedilatildeo casuiacutestica da variaccedilatildeo relacional

Sendo ldquoXrdquo diferente de ldquoalgordquo (ou o ldquoeacuterdquo expressaria uma identidade) ldquoalto temrdquo (pelo menos) momentaneamente um ldquoxrdquo mediante a participaccedilatildeo nele da Forma ldquoXrdquo No entanto contextos relacionais (ldquox tem algordquo agora mas natildeo antes ou depois para uns mas natildeo para outros em relaccedilatildeo a uns mas uma propriedade ldquoxrdquo a um sensiacutevel depende de factores externos excepto no caso de se tratar de uma propriedade essencial de ldquoalgo ser xrdquo (102b-c) (SANTOS 2011 p139)18

Certamente vemos o assunto de outra maneira que natildeo a de Trindade Santos

ao pensar que a retenccedilatildeo de uma propriedade poder-se-ia ser causada por factores

externos que parecem ser simplesmente frutos da contingecircncia Vemos assim pois

pensamos que natildeo eacute por outro motivo se natildeo a participaccedilatildeo na Forma que um ente poderaacute

vir-a-ser portador de um predicado (Feacutedon 100c-e) Entretanto o que Trindade Santos

natildeo mencionou ndash mas certamente tinha consciecircncia soacute natildeo o fez uma vez que natildeo era o

escopo do trabalho o qual estava a realizar no Sofista ndash eacute que sua distinccedilatildeo entre

participaccedilatildeo que apresenta uma propriedade essencial e uma participaccedilatildeo que se daacute

juntamente com fatores externos (ou seja fatores temporais ou seja uma participaccedilatildeo

que reteacutem predicados participando do tempo 19) eacute exatamente esta distinccedilatildeo traccedilada entre

μετέχειν e μεταλαμβάνειν

Eacute interessante apresentar que esta distinccedilatildeo eacute corrente em todo diaacutelogo

Parmecircnides sendo respeitada na maioria dos casos As uacutenicas exceccedilotildees nas quais

μετέχειν e εἶναι aparecem juntas no diaacutelogo satildeo

1 Na fala de Soacutecrates em 128a9 Soacutecrates associa μετέχειν a εἶναι Eacute importante

entatildeo lembrar que Soacutecrates eacute apresentado no diaacutelogo e em alguns outros

momentos como um personagem ainda inseguro acerca da relaccedilatildeo entre Formas

e participantes

2 Em 155c-d μετέχειν eacute associado a εἶναι Este eacute o uacutenico passo que poderia

apresentar quaisquer problemas agrave tese dos dois sentidos de participaccedilatildeo pela

presenccedila de μετέχειν e εἶναι Mesmo que um haacutebil argumentador possa utilizar

18 SANTOS 2011 Introduccedilatildeo ao Sofista EM PLATAtildeO Sofista Traduccedilatildeo de Henrique Murachco

Juvino Maia Jr Joseacute Gabriel Trindade dos Santos Introduccedilatildeo e apecircndice de Joseacute Gabriel Trindade Santos

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2011

19 Cf PLATAtildeO Parmecircnides 155e-156ordf

188

essa passagem para ir contra a presente tese acredita-se que natildeo haveraacute vantagem

alguma pois natildeo eacute exequiacutevel pensar contraacuterio a presente tese Na passagem ndash

como em muitos momentos da segunda parte do diaacutelogo ndash o Um estaacute sendo

associado ao Ser ou desassociado com o intuito de ser objeto de investigaccedilatildeo

Em 155c-d a uacutenica associaccedilatildeo eacute que se diz que o tempo participa do um que eacute e

do tornar-se mais velho e mais jovem (χρόνου μετέχει τὸ ἓν πρεσβύτερόν τε καὶ

νεώτερον γίγνεσθαι) e natildeo aferimos quaisquer maneiras de que a passagem possa

efetivamente trazer problemas agrave tese

3 Nas demais apariccedilotildees dos termos μεταλαμβάνω no Parmecircnides ou bem surge

acompanhado do termo γίγνεσθαι ou bem natildeo eacute acompanhado de nenhum tempo

que possa associaacute-lo ao ldquoserrdquo ou ao ldquotornar-serdquo Semelhantemente μετέχω ou bem

iraacute surgir ao lado de εἶναι ou natildeo indicaraacute o ldquoserrdquo ou o ldquotornar-serdquo Interpretamos

que quando natildeo indicado a associaccedilatildeo a ldquovir-a-serrdquo ou ao ldquoserrdquo natildeo eacute interessante

ao argumento trabalhado pelos personagens

Visto isso eacute possiacutevel concluir que haacute uma distinccedilatildeo entre μετέχω e

μεταλαμβάνω no Parmecircnides Essa distinccedilatildeo tal qual descrita eacute concordante com a que

Cornford traccedila em apenas quatro linhas20 Natildeo tatildeo soacute esta distinccedilatildeo reverbera em outros

diaacutelogos pelo menos no Feacutedon 130d-104b

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

CORNFORD FM Plato and the Parmenides Parmenidesrsquo Way of Truth and Platorsquos

Parmenides translated with an introduction and a running commentary London

Routledge amp Kegan Paul 1939

LIDDEL H G SCOTT R Greek-English Lexicon - With a revised suplement Oxford

Clarendo Press 1996

PLATAtildeO Parmecircnides Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maura Iglesias e Fernando

Rodrigues Rio de Janeiro Editora PUC-Rio e Ediccedilotildees Loyola 2003

20 Cf CORNFORD F M 1939 p 69

189

_______ Feacutedon Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Beleacutem EDUFPA 2011

_______ Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira 5 ed Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbbenkian 1949

_______ Sofista Traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr Joseacute Gabriel

Trindade dos Santos Introduccedilatildeo e apecircndice de Joseacute Gabriel Trindade Santos Lisboa F

Calouste Gulbenkian 2011

SCOLNICOV Samuel Platorsquos Parmenides Translated with Introduction and commentary Berkley Los Angeles London University of Caloforn

SOBRE O TEMPO UMA QUESTAtildeO FUNDAMENTAL

Paulo Seacutergio Calvet Ribeiro Filho1

RESUMO O texto aborda alguns desdobramentos acerca da questatildeo fundamental ldquoque eacute o tempordquo Seratildeo contempladas1) a interpretaccedilatildeo de Jeanne Marie Gagnebin acerca do Livro XI das Confissotildees de Agostinho apresentada na obra Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria 2) trecircs palestras de Jorge Luiacutes Borges a respeito do tema chamadas ldquoO livrordquo ldquoO tempordquoe ldquoA imortalidaderdquo inseridas em Cinco visotildees pessoais 3) as ideias apresentadas no ensaio de Giorgio Agamben intitulado ldquoO que eacute o contemporacircneordquo 4) uma conferecircncia de Martin Heidegger chamada ldquoO Conceito de tempordquo Palavras-chave Tempo Finitude Contemporacircneo ABSTRACT The text approaches some deployments about the fundamental question ldquowhat is timerdquo There will be contemplated 1) The interpretation of Jeanne Marie Gagnebin about the book XI of Confessions by Augustine presented in the work Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria 2) Three Jorge Luis Borgesrsquo lectures related to this theme entitled ldquoO livrordquo ldquoO tempordquo and ldquoA imortalidaderdquo inserted in Cinco visotildees pessoais 3) The ideas presented in the essay of Giorgio Agamben entitled ldquoO que eacute contemporacircneordquo 4) one conference of Martin Heidegger called ldquoO conceito do tempordquo Keywords Time Finiteness Contemporary

Introduccedilatildeo

Haacute um problema insanaacutevel mas fundamental Muitos filoacutesofos se intrigaram

com ele aleacutem de poetas e compositores2 cineastas e escritores Cada um interage com

ele agrave sua maneira nos bares muito se fala em falta de tempo nos sindicatos a jornada

de trabalho eacute debatida nas escolas e universidades discutem a carga horaacuteria o tempo

devido a cada disciplina professores muacutesicos cuidadores muitas vezes satildeo pagos por

hora

Contudo o problema fundamental natildeo se limita a este aspecto menor ndash o vieacutes

econocircmico da questatildeo ldquoTempo eacute dinheirordquo Neste velho ditado estaacute impliacutecita uma

1 Mestre em filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro e graduando em histoacuteria pela Universidade Estadual do Maranhatildeo 2 Como natildeo lembrar de ldquoOraccedilatildeo ao tempordquo de Caetano Veloso Ou mesmo da angustiante ldquoSinal fechadordquo de Paulinho da Viola

191

maneira de concebecirc-lo curta e miacuteope Sob este acircngulo na verdade a indagaccedilatildeo essencial

nem mesmo fora colocada Tal frase feita eacute como uma daquelas respostas sem pergunta

um clichecirc enfim

Sobre o que trataraacute esse escrito Sobre uma das questotildees mais pungentes que

jaacute foram elaboradas e que pode ser colocada assim que eacute o tempo Tem-se nada mais

nada menos do que toda a tradiccedilatildeo ocidental transpassada por respostas Algumas satildeo

dignas de nota Deter-se-aacute aqui apenas na anaacutelise de algumas delas

De iniacutecio seraacute abordada a interpretaccedilatildeo de Jeanne Marie Gagnebin acerca do

Livro XI das Confissotildees de Agostinho Optou-se por contemplaacute-la por ela fazer uma

leitura original de um autor por sua vez original Em seguida seratildeo analisadas trecircs

palestras de Jorge Luiacutes Borges aqui expostas por ele fazer uma espeacutecie de retrospectiva

das respostas mais famosas sobre a questatildeo que aqui serve de guia aleacutem de ter uma

posiccedilatildeo peculiar como se veraacute Em um terceiro momento tal temaacutetica seraacute desdobrada e

seraacute trazido agrave baila um pensador contemporacircneo que reflete a respeito do proacuteprio conceito

de contemporacircneo Giorgio Agamben Sua indagaccedilatildeo eacute urgente e por isso figuraraacute neste

trabalho Por fim a conferecircncia O Conceito de tempo de Martin Heidegger seraacute

analisada

O Agostinho de Jeanne Marie Gagnebin

Agrave quarta aula de um conjunto de sete Jeanne Marie Gagnebin nomeia Dizer

o tempo3 Ali a autora se ateacutem entre outras coisas agrave famosa reflexatildeo de Agostinho

presente no Livro XI de suas Confissotildees Partindo de uma interpretaccedilatildeo de Paul Ricouer

afirma a autora que a novidade que o filoacutesofo de Hipona apresenta eacute uma concepccedilatildeo

diferenciada sobre a temporalidade qual seja o tempo eacute inseparaacutevel da interioridade

psiacutequica

Destarte tem-se uma inovaccedilatildeo pois esta resposta se opotildee agraves tentativas da

filosofia antiga principalmente Platatildeo e Aristoacuteteles que definiam o tempo em funccedilatildeo do

movimento dos corpos externos

Tempo como distentio animi ndash distensatildeo da almado espiacuterito Por mais que

Agostinho um religioso fale muitas vezes em Eternidade sua inquietaccedilatildeo e sua proposta

satildeo eminentemente seculares pois

3 GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria p 67-79

192

Ao propor uma definiccedilatildeo de tempo como inseparaacutevel da interioridade psiacutequica Agostinho abre um novo campo de reflexatildeo o da temporalidade da nossa condiccedilatildeo especiacutefica de seres que natildeo soacute nascem e morrem ldquonordquo tempo mas sobretudo que sabem que tem consciecircncia dessa sua condiccedilatildeo temporal e mortal4

A partir desse ponto de vista a temporalidade aparece como atributo da alma5

que se sabe e se percebe assim e por isso mesmo se sente fustigada pela vontade de

querer saber a respeito da natureza de sua finitude

O problema fundamental em Agostinho vai aleacutem pois este passa a se

questionar inclusive a respeito da linguagem Jeanne Marie destaca dois

posicionamentos Ao primeiro chama de ldquoreflexatildeo criacutetica sobre nossa linguagemrdquo

(GAGNEBIN 2005 p 70) Trata-se de uma problematizaccedilatildeo presente desde o Livro X

das Confissotildees que afirma que a propensatildeo quase natural de falar do tempo em termos

espaciais atrapalha a reflexatildeo sobre sua natureza

Ao segundo posicionamento a autora faz menccedilatildeo ao que chama de

ldquoargumentaccedilatildeo pragmaacuteticardquo (idem) Nela Agostinho natildeo critica apenas certas categorias

linguiacutesticas mas sim o uso que se faz da linguagem Nesse sentido ao pensar o tempo

se pensa quase inevitavelmente a respeito da linguagem

Assim no correr de seu pensamento o autor de Confissotildees

natildeo tenta mais falar de fora sobre o objeto tempo mas sim descrever ladeando com o pensar o pensar o proacuteprio pensamento nossa experiecircncia do tempo Ora essa se diz natildeo em termos espaciais objetivos mas em termos ativos de esticamento de dilaceraccedilatildeo de tensatildeo entre o lembrar e o esperar6

Ressalta a autora partindo das Confissotildees que nossa experiecircncia do tempo

estaacute associada agrave experiecircncia narrativa e esta se apresenta como tensatildeo existente entre o

lembrar (tensatildeo entre o presente do presente e o presente do passado) e o esperar (tensatildeo

entre o presente do presente e o presente do futuro) O que significa que o problema do

tempo sempre se desdobra no problema do dizerescrever E esta eacute uma leitura original

de Agostinho

Jeanne Marie Gagnebin ao final da aula intitulada Dizer o tempo parece estar

4GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria p 68 5 Quanto agrave ideacuteia de alma em Santo Agostinho eacute preciso ter em vista que se trata pelo menos neste momento de suas reflexotildees a respeito do tempo de um princiacutepio psiacutequico que se desdobra em temporalidade O que tem como implicaccedilatildeo que a alma humana justamente por experimentar sua finitude atraveacutes do tempo distingue-se de Deus que eacute eterno 6GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteriap 75

193

inquieta e reticente Afirma que hoje natildeo se pode mais acreditar que ldquoo Outro do nosso

tempo seja a eternidade divinardquo 7 Natildeo eacute possiacutevel furtar-se contudo de refletir a respeito

de Confissotildees

Que se passe agora a outra resposta ndash a de um argentino que tem uma

perspectiva sui generis acerca do tempo e inclusive da imortalidade

Jorge Luiacutes Borges ndash o livro o tempo e a imortalidade

Se o uso corrente da linguagem natildeo pode dar conta de certos temas como

acima fora exposto a partir do Agostinho de Jeanne Marie Gagnebin existe um

instrumento que pode lidar bem com esta limitaccedilatildeo poetizando-a estendendo-a A

interioridade psiacutequica da temporalidade humana pode ter seus passos ldquoregistradosrdquo e

podem ser garantidas agraves geraccedilotildees vindouras reflexotildees seculares atraveacutes de seu uso e

usufruto

O livro eacute esse instrumento singular quase maacutegico Assim falou

Jorge Luiacutes Borges Este trecho teraacute por como base trecircs palestras ndash chamadas O livro O

tempo e A imortalidade ndash proferidas em junho de 1978 na Universidade de Belgrano

quando fora inaugurada8

O que diz a respeito do tempo Primeiramente que se pode prescindir do

espaccedilo mas natildeo do tempo9 Para dar seguimento a defesa deste enunciado propotildee um

experimento mental ndash sugere que se imagine um mundo onde soacute existisse um uacutenico

sentido o da audiccedilatildeo Ali tudo estaria transformado inclusive a linguagem Ali se teria

esquecido o espaccedilo mas o tempo nunca

Por isso o problema aqui tratado eacute para Borges um problema essencial ldquo()

quero dizer que natildeo podemos prescindir do tempo Nossa consciecircncia estaacute continuamente

passando de um estado a outro e isso eacute o tempo uma sucessatildeordquo (idem)

Ali apresentado entatildeo ainda a partir de uma interioridade psiacutequica Vale

frisar ademais que esta sucessatildeo defendida natildeo eacute mera sucessatildeo linear homogecircnea mas

interior O problema do tempo partindo do ponto de vista adotado pelo referido autor

natildeo pode ser resolvido todavia podem ser revistas as soluccedilotildees apresentadas

Partindo da soluccedilatildeo de Platatildeo ndash que afirma que o tempo eacute a imagem imoacutevel

7GAGNEBIN Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteriap 77 8 BORGES Cinco visotildees pessoais p 13-32 e 61-73 9BORGES Cinco visotildees pessoais p 62

194

da eternidade ndash Borges acaba afirmando que a eternidade eacute uma de nossas mais belas

invenccedilotildees Em seguida afirma que Aristoacuteteles tambeacutem errara pois ldquoTambeacutem eacute um erro

dizer como Aristoacuteteles que o tempo eacute a medida do movimento pois o movimento

acontece no tempo e natildeo pode explicar o tempordquo10 Isto quer dizer que a temporalidade

natildeo pode ser refeacutem explicativa do movimento mas deve-se dar o contraacuterio Adiante deter-

se-aacute mais nesta problemaacutetica

Ainda pouco se afirmou na esteira do argentino que a indagaccedilatildeo essencial

natildeo pode ser resolvida O interessante eacute perceber que mesmo sem se dar conta ele aponta

uma soluccedilatildeo Onde ele a encontra Na imortalidade

Antes que o leitor contemporacircneo se contorccedila eacute importante ressaltar que

Borges nega uma imortalidade individual ldquoEu natildeo quero continuar sendo Jorge Luiacutes

Borges quero ser outra pessoa Espero que minha morte seja total espero morrer no corpo

e na almardquo 11

Fica evidente que se trata de uma imortalidade transubjetiva Nomeada aqui

dessa forma por ir aleacutem da pessoalidade visto que ldquocada um de noacutes eacute de alguma forma

todos os homens que morreram antesrdquo 12 Eacute nesse sentido especiacutefico que o homem eacute

imortal ldquoO importante eacute a imortalidade Essa imortalidade concretiza-nos nas obras que

deixamos na memoacuteria que algueacutem deixa nos outrosrdquo13 Assim ao opor uma imortalidade

individual a uma que chama coacutesmica Borges fornece uma concepccedilatildeo original uma

resposta original agrave indagaccedilatildeo que eacute o tempo

Por isso em O livro afirma que este eacute uma extensatildeo de nossa memoacuteria e de

nossa imaginaccedilatildeo14 Aleacutem do que ldquoo livro eacute lido para eternizar a memoacuteriardquo 15 Percebe-se

que este instrumento singular ocupa um papel relevante no drama dessa imortalidade

transubjetiva

Agamben e o contemporacircneo in between

Uma pergunta cabe em outra tal como uma aacutervore imensa cabe no ponto da

semente Assim a partir de ldquoque eacute o tempordquo Giorgio Agamben faz germinar ldquoDe quem

10BORGES Cinco visotildees pessoais p 66 11BORGES Cinco visotildees pessoais p 23 12BORGES Cinco visotildees pessoais p 31 13Idem 14BORGES Cinco visotildees pessoais p 13 15BORGES Cinco visotildees pessoais p 19

195

e do que somos contemporacircneos () o que significa ser contemporacircneordquo16

Eacute preciso frisar logo de saiacuteda que natildeo se trata apenas de estar ldquocom o tempordquo

de ser coetacircneo Natildeo se trata apenas do tempo presente Natildeo eacute mera inserccedilatildeo numa eacutepoca

Nesse sentido o autor italiano segue uma indicaccedilatildeo de Nietzsche presente na Segunda

consideraccedilatildeo intempestiva texto de 1874 Orientaccedilatildeo que atravessaraacute toda sua reflexatildeo que

afirma em suma que o pertencimento verdadeiro a uma eacutepoca estaacute relacionado natildeo a

uma concordacircncia plena com as opiniotildees ali vigentes mas sim a certa dose de

inatualidade17 Explica-se para ser contemporacircneo segundo o Nietzsche lido por

Agamben eacute preciso aderir e tomar distacircncia em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio tempo o que se

daacute pari passu O contemporacircneo estaacute in between por assim dizer

O bom poeta entatildeo segundo o autor italiano manteacutem o olhar fixo no seu

tempo e tambeacutem se torce em busca do passado o que para ele eacute uma atitude

eminentemente contemporacircnea Dessas premissas brota uma segunda definiccedilatildeo ldquoo

contemporacircneo eacute aquele que manteacutem fixo o olhar no seu tempo para nele perceber natildeo

as luzes mas o escurordquo 18

Perceber o escuro natildeo eacute apenas vislumbrar vazios natildeo eacute inatividade ndash notar

o escuro eacute um exerciacutecio que vai buscar as natildeo-explicaccedilotildees pois todas as eacutepocas tecircm suas

luzes e penumbras Levar isso em conta exige coragem eacute uma tarefa Os contemporacircneos

satildeo raros esses exegetas da dimensatildeo temporal em que estatildeo inseridos esses meacutedicos

forenses que catam vestiacutegios de tempos idos esses ldquobioacutegrafosrdquo que se inquietam com a

vida mesma de seu proacuteprio presente contudo transcendendo-o no sentido em que

extrapolam os limites temporais

Para que essa tarefa essa exigecircncia seja executada o contemporacircneo tem

que se dar conta que ldquoa chave do moderno estaacute escondida no imemorial e no preacute-

histoacutericordquo19 Isto eacute para interagir com seu tempo modificando-o eacute preciso ter uma atitude

especiacutefica para com o passado eacute preciso trazecirc-lo agrave baila Textos quadros obrasmuacutesicas

poemas ndash natildeo importa de onde partam ndash devem fomentar o pensar contemporacircneoSer

contemporacircneo eacute permanecer in between numa interzone temporal

Heidegger e o conceito de tempo

16AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 57 17AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 58 18AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 62 19AGAMBEN O que eacute o contemporacircneo e outros ensaios p 70

196

Para estudantes e professores da Faculdade de Teologia da Universidade de

Marburgo Martin Heidegger profere em 25 de julho de 1924 a conferecircncia intitulada O

conceito de tempo

Tendo em vista seu puacuteblico comeccedila sua exposiccedilatildeo justificando que seu

posicionamento em relaccedilatildeo ao tempo natildeo tem por baliza a eternidade pois ldquose o filoacutesofo

se interroga acerca do tempo eacute porque estaacute decidido a compreender o tempo a partir do

tempordquo 20 Isto eacute o filoacutesofo deve tentar compreender essa questatildeo cabal a partir de sua

proacutepria dimensatildeo temporal natildeo tendo por base a eternidade Por isso a conferecircncia natildeo

assume uma conotaccedilatildeo teoloacutegica

Quando acima fora mencionado Jorge Luiacutes Borges a quem o tempo natildeo pode

ser refeacutem explicativo do movimento fora dito que o argentino se opunha assim a uma

concepccedilatildeo aristoteacutelica fundada no movimento Fora dito tambeacutem um pouco antes disso

que Agostinho jaacute se opusera a essa concepccedilatildeo da filosofia antiga inaugurando uma esfera

de reflexatildeo que se baseara numa interioridade psiacutequica da temporalidade

Pois bem Heidegger vai mais longe em suas consideraccedilotildees pois coloca boa

parte da tradiccedilatildeo ocidental de Aristoacuteteles a Einstein21 sob a eacutegide do conceito que ele

chama ldquotempo da natureza e do mundordquo22 Partindo desse enfoque o filoacutesofo alematildeo diz

ser problemaacutetica esta perspectiva visto que nela se origina uma reflexatildeo falseada na

nascente

O tempo natildeo precisa ser definido pelo homem porquanto o homem eacute tempo

natildeo pode ser circunscrito numa simples mediccedilatildeo porque ao tomar o tempo apenas como

medida o homem se afasta de si mesmo e perde sua autenticidade O reloacutegio neste

sentido eacute o objeto que o transforma em objeto distanciando o homem de seu modo

proacuteprio de ser

Heidegger talvez se aproxime de Henry David Thoreau quando este afirma

que ldquoO homem se tornou o instrumento de seus instrumentosrdquo23 De fato o homem tem

20HEIDEGGER O conceito de tempop 21 21Tal afirmaccedilatildeo nos pareceu de iniacutecio duvidosa Contudo refizemos algumas leituras e encontramos a seguinte assertiva de um fiacutesico que reafirma a tese de Heidegger ldquoDe acordo com a teoria da relatividade o espaccedilo natildeo eacute tridimensional e o tempo natildeo constitui uma entidade isolada Ambos acham- se intimamente vinculados formando um continuum quadridimensional o lsquoespaccedilo-temporsquo Na teoria da relatividade portanto nunca podemos falar acerca do espaccedilo sem falar acerca do tempo e vice-versardquo CAPRA O Tao da fiacutesica p 54 22HEIDEGGER O conceito de tempo p 25 23 THOREAU Walden and Civil Disobedience p 29

197

se transformado em instrumento de seus instrumentos A humanidade estaacute como refeacutem

do reloacutegio e da concepccedilatildeo que afirma que o tempo eacute homogecircneo um amontoado de

porccedilotildees iguais entre si e por isso mesmo indiferentes umas agraves outras

ldquoO reloacutegio indica o tempordquo 24 natildeo eacute ele mesmo o tempo Este na verdade

por marcar o instante acaba ldquopondo no mesmo sacordquo todos os outros momentos

homogeneizando-os

Afinal qual seria o caminho apontado por Heidegger para que se fuja ou

melhor para que se enfrente esta concepccedilatildeo do tempo da natureza e do mundo Segundo

ele soacute se pode colocar corretamente a questatildeo do tempo se se puser no jogo isto eacute se se

partir do proacuteprio horizonte da finitude25 Por ser o homem finito e por saber mesmo sem

querer desta condiccedilatildeo acaba-se tendo abertura para colocar o problema neste acircmbito A

morte aponta essa possibilidade O que eacute ter-em-todo-caso a proacutepria morte Eacute o correr antecipativo do ser-aiacute para o seu tracircnsito enquanto possibilidade extrema e iminente ndash sabida com certeza e com completa indeterminabilidade ndash de si-mesmo O ser-aiacute enquanto vida humana eacute primordialmente ser- possiacutevel o ser da possibilidade do tracircnsito certo e no entanto indeterminado26

A morte neste sentido eacute como uma exigecircncia exigecircncia no sequestro

filosoacutefico que tira da quotidianidade A morte Heidegger eacute enfaacutetico ao afirmar estaacute

presente mesmo que natildeo se pense a respeito dela27 A morte eacute de certa forma condiccedilatildeo

fundante do modo de ser proacuteprio eacute partiacutecipe no Dasein

O homem soacute natildeo se tem tempo28porque se prende ao trivial ldquoNatildeo ter tempo

significa lanccedilar o tempo no presente reles do quotidianordquo 29

24HEIDEGGER O conceito de tempo p 27 25Aqui se aproxima em certa medida de Agostinho como jaacute expusemos Chegando a citaacute-lo inclusive 26HEIDEGGER O conceito de tempop 47 27Eacute interessante notar que Montaigne em pleno seacuteculo XVI jaacute se inquietava de uma maneira similar a de Heidegger ldquo() como eacute possiacutevel conseguirmos nos desfazer do pensamento da morte e que a cada instante natildeo nos pareccedila que ela nos agarra pela golardquo Ou ainda ldquoTiremos-lhe a estranheza [da morte] frequentemo-la acostumemo-nos com ela natildeo tenhamos nada de tatildeo presente na cabeccedila como a morte ()rdquo Ainda uma vez ldquoEacute incerto onde a morte nos espera aguardemo-la em toda parte Meditar previamente sobre a morte eacute meditar previamente sobre a liberdaderdquo MONTAIGNE Os ensaios uma seleccedilatildeo p 66 68 e 69 respectivamente Grifo nosso 28A conferecircncia fora proferida em 1924 e de laacute para caacute a exclamaccedilatildeo ldquoNatildeo tenho tempordquo estaacute voando cada vez mais de boca em boca em todos os lugares e setores Heidegger fora aliaacutes como em muitas vezes profeacutetico em relaccedilatildeo a algumas questotildees Natildeo eacute nem preciso dizer que ele chamou de teacutecnica estaacute vencendo nas querelas ideoloacutegicas do presente 29HEIDEGGER O conceito de tempo p 51

198

Somos o tempo mesmo isso eacute nossa condiccedilatildeo de ser Devemos pois evitar

que o tempo do reloacutegio impeccedila com que busquemos e vivenciemos o tempo em seu

sentido originaacuterio Por isso Heidegger nos momentos finais de sua conferecircncia

transforma a pergunta ldquoque eacute o tempordquo em ldquoquem eacute o tempordquo Somos

REFEREcircNCIAS

AGAMBEN Giorgio O que eacute o contemporacircneo Chapecoacute SC Argos 2009 BORGES Jorge Luiacutes Cinco visotildees pessoais Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2002 CAPRA Fritjof O Tao da fiacutesica Satildeo Paulo Cultrix 2006 ENDE Michael Momo e o senhor do tempo Satildeo Paulo Martins Fontes 1996 GAGNEBIN Jeanne Marie Sete aulas sobre linguagem memoacuteria e histoacuteria Rio de Janeiro Imago 2005 HEIDEGGER Martin O conceito de tempo Lisboa Fim de Seacuteculo 1998 MONTAIGNE Michel de Os ensaios uma seleccedilatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 THOREAU Henry David Walden and Civil Disobedience United States of America Sterling Publishing Co 2012

ZARATUSTRA METACIacuteNICO

Rafael Rocha da Rosa1

RESUMO O objetivo deste artigo eacute cotejar a interpretaccedilatildeo foucaultiana sobre o cinismo com a criacutetica nietzschiana agrave cultura e seu projeto de transvaloraccedilatildeo dos valores A partir de uma anedota sobre Dioacutegenes o ciacutenico Foucault desenvolve suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica tendo como ponto de partida o imperativo de transfigurar o valor da moeda Nessa tarefa eacute crucial a relaccedilatildeo que o autor estabelece entre moeda valores e normas posto que o cinismo efetivamente assume determinada posiccedilatildeo contra as convenccedilotildees diametralmente avessa aos haacutebitos e aos costumes sociais Haveria no cinismo um impulso destruidor de convencionalismos e das rotas culturais dominantes estabelecidas para e pela coletividade Assim a vida ciacutenica exprimiria um modo de viver transfigurando os valores e estilos de vida convencionais Portanto creio que haja uma feacutertil proximidade entre essas concepccedilotildees e o posicionamento filosoacutefico de Nietzsche com sua criacutetica agrave cultura e a afirmaccedilatildeo de uma transvaloraccedilatildeo dos valores Palavras-chave Cinismo Nietzsche Foucault Valor Cultura ABSTRACT The purpose of this article is to compare the foucaultian interpretation of cynicism with the Nietzschersquos critique of culture and his project of transvaluation of values From an anecdote on Diogenes the cynic Foucault develops his hypotheses about the true cynical life starting from the imperative to change the value of the currency In this task the relation that the author establishes between currency values and norms is crucial since cynicism effectively assumes a certain position against conventions diametrically averse to social habits and customs There would be in cynicism a destructive impulse to conventions and dominant cultural routes established for and by the collectivity Thus the cynical life would express a way of living transfiguring conventional values and lifestyles I therefore believe there is a fertile closeness between these conceptions and Nietzsches philosophical positioning his critique of culture and the affirmation of a revaluation of values Keywords Cynism Nietzsche Foucault Value Culture

Introduccedilatildeo

Ao abordar o tema da parresiacutea em A coragem da verdade Foucault encontra

no cinismo seu exemplo mais potente Entre os diversos exemplos utilizados pelo autor

no desenvolvimento de suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica destaco a famosa

1 Doutorando em Filosofia pela UERJ bolsista CAPES Contato rafael_rocha1yahoocombr

200

anedota sobre Dioacutegenes o Ciacutenico a respeito do imperativo de transfigurar o valor da

moeda Este ponto eacute rico de possibilidades interpretativas para o estabelecimento de um

viacutenculo entre o cinismo e o pensamento nietzschiano como a questatildeo da transvaloraccedilatildeo

de todos os valores2 malgrado as distinccedilotildees caracteriacutesticas de ambos

Creio que o filoacutesofo alematildeo interpretou alterou e agregou aspectos do

cinismo que seriam interessasses agrave elaboraccedilatildeo de seu proacuteprio pensamento o que o tornaria

herdeiro dessa corrente filosoacutefica Considerando o cinismo sob a oacutetica de Foucault

acredito que a principal personagem de Nietzsche Zaratustra possibilitaria essa chave de

leitura Nesse sentido o uso do prefixo grego meta cabe perfeitamente para nossos

propoacutesitos haja vista que eacute utilizado para indicar mudanccedila transformaccedilatildeo transposiccedilatildeo

Zaratustra seria um homem que vivenciaria na praacutetica as concepccedilotildees

filosoacuteficas de Nietzsche que passaria pelos processos patoloacutegicos do niilismo o

afastamento asceacutetico da cultura degenerada a afirmaccedilatildeo criadora de si a confecccedilatildeo de

novos valores e a sua difusatildeo para os homens superarem a condiccedilatildeo decadente Se

nenhum indiviacuteduo foi capaz ateacute entatildeo de passar pelas experiecircncias e pelos estaacutegios que

Nietzsche postula em sua filosofia o autor se viu obrigado a criar uma personagem que

tenha passado por esse percurso

Para compreendermos essa aproximaccedilatildeo entre o pensamento nietzschiano e o

cinismo cumpre abordar inicialmente a interpretaccedilatildeo foucaultiana sobre os mesmos

A arte de viver do asceta ciacutenico

Em seu uacuteltimo curso ministrado no Collegravege de France Foucault abordou a

relaccedilatildeo entre sujeito e verdade a questatildeo da fala franca a parresiacutea especificamente

Nessas liccedilotildees em oposiccedilatildeo agraves estruturas epistemoloacutegicas voltadas para a anaacutelise do

discurso verdadeiro o autor direciona sua atenccedilatildeo para o que denominou formas

aletuacutergicas ou seja os atos que caracterizam o sujeito que diz a verdade as formas e

modos de viver que tornam o indiviacuteduo reconheciacutevel pelos outros enquanto aquele que

pratica a fala franca que produz e diz a verdade

Apesar de ser uma noccedilatildeo fundamentalmente poliacutetica a parresiacutea possibilita a

Foucault abordar a relaccedilatildeo entre sujeito e verdade sob a oacutetica da accedilatildeo examinando as

2 Hipoacutetese abordada por Peter Sloterdjick em O quinto ldquoevangelhordquo de Nietzsche

201

praacuteticas de si e os modos de veridicccedilatildeo temas caros ao autor3 Isto eacute os saberes e as

relaccedilotildees de poder nos procedimentos que governam a conduta dos homens e como os

sujeitos satildeo constituiacutedos atraveacutes das praacuteticas de si Desse modo o filoacutesofo francecircs analisa

o eixo eacutetico do dizer-a-verdade em oposiccedilatildeo agrave dimensatildeo exclusivamente poliacutetica O autor

justifica essa escolha pela crise das instituiccedilotildees poliacuteticas enquanto lugar de praacutetica da

parresiacutea4 Assim a partir da parresiacutea como um modo de viver Foucault coloca a questatildeo

sobre como conduzir-se identificando nessa atitude a possibilidade do sujeito livre

autogovernar-se

Contudo a praacutetica da parresiacutea teria duas acepccedilotildees distintas uma negativa e

outra positiva O aspecto pejorativo seria o caso do parresiasta que eacute incapaz de conter e

filtrar sua fala descolando seu discurso de uma racionalidade e da verdade dizendo tudo

que vem agrave cabeccedila sem criteacuterios falando qualquer coisa que o instigue e motive O outro

caso seria o discurso fruto da racionalidade o dizer tudo anexado agrave verdade sem

mascarar dissimular ou ocultar nada a seu respeito e acreditando efetivamente naquilo

que eacute dito de modo que a fala corresponda de fato agrave opiniatildeo pessoal ou seja eacute

estritamente necessaacuterio um viacutenculo entre a verdade falada o pensamento daquele que diz

e seus atos

Outro ponto que o filoacutesofo francecircs destaca eacute a ameaccedila inerente agrave fala franca

A veracidade do parresiasta o situa numa tensatildeo com o ouvinte ameaccedilando-o a se tornar

viacutetima da reaccedilatildeo violenta daquele a que se dirige Assim a coragem de aventurar-se na

praacutetica da fala franca eacute determinante e teria duas faces a de assumir os riscos de colocar

em xeque a relaccedilatildeo com aquele que ouve e de arriscar a proacutepria vida ao dizer a verdade

Segue-se a definiccedilatildeo foucaultiana sobre a parresiacutea como a coragem da

verdade daquele que assume o risco seja ele qual for de dizer sua opiniatildeo seu

pensamento com toda a franqueza E o ouvinte eacute parte integrante desse jogo parresiaacutestico

na medida em que tambeacutem tem a coragem de ouvir a franqueza de seu interlocutor Desse

modo o dizer-a-verdade da parresiacutea eacute distinto das outras modalidades identificadas pelo

autor do teacutecnico do saacutebio e do profeta presentes na aleturgia socraacutetica Poreacutem a fala

franca de Soacutecrates seria marcada por especificidades que a distinguiria malgrado a

semelhanccedila das outras formas aletuacutergicas No entanto devido agraves limitaccedilotildees estruturais

deste artigo natildeo aprofundarei a discussatildeo sobre este ponto

3 ldquoA articulaccedilatildeo entre os modos de veridicccedilatildeo as teacutecnicas de governamentabilidade e as praacuteticas de si eacute no fundo o que sempre procurei fazerrdquo FOUCAULT A coragem da verdade p8 4 FOUCAULT A coragem da verdade p 63

202

Segundo Foucault mesmo que possua algumas caracteriacutesticas em comum

com as outras formas de dizer-a-verdade o estilo socraacutetico seria distinto delas pelos

fatores mencionados acima e principalmente pela coragem necessaacuteria agrave fala franca E

esse seria o fator capital que separaria a parresiacutea eacutetica da poliacutetica visto que Soacutecrates

distingue radicalmente seu proacuteprio dizer-a-verdade das trecircs outras grandes modalidades do dizer-a-verdade (profecia sabedoria ensino) segundo [] nessa forma de veridicccedilatildeo a parresiacutea a coragem eacute necessaacuteria [] Essa coragem da verdade ele deve exercer na forma de uma parresiacutea natildeo poliacutetica uma parresiacutea que se desenrolaraacute pela prova da alma Seraacute uma parresiacutea eacutetica5

Alcanccedilar conceitualmente a parresiacutea eacutetica eacute justamente um dos principais

propoacutesitos do autor pois dela parte a questatildeo do cuidado de si Por meio da harmonia

entre a maneira como se vive e a palavra dita articula-se a fala franca a um estilo de vida

Segue-se o interesse foucaultiano em Soacutecrates enquanto parresiasta haja vista que seu

modo de viver e seu discurso estariam arraigados expressando o princiacutepio do cuidado e

da praacutetica de si Por isso o filoacutesofo francecircs compreende a parresiacutea socraacutetica natildeo

pertencendo ao domiacutenio exclusivo da poliacutetica e sim da eacutetica cujos interesses seriam os

modos de vida

Ademais a existecircncia adquiriu uma dimensatildeo esteacutetica a partir da parresiacutea

socraacutetica6 A coragem de pocircr agrave prova seu modo de viver levou ao processo de dar forma

e estilo agrave vida que o autor denominou sem primazia de esteacutetica da existecircncia E Foucault

captou o momento em que foi instituiacutedo um nexo entre a aleturgia e a estetizaccedilatildeo da vida7

com Soacutecrates

Ao aceder ao tema da estiliacutestica da existecircncia o filoacutesofo francecircs passa entatildeo

a tratar da praacutetica ciacutenica que expressaria uma forma aletuacutergica extraordinaacuteria onde a

maneira como se vive estaria intrinsecamente atrelada agrave fala franca Este seria o tema

central de A coragem da verdade Ao ocupar-se da parresiacutea de Soacutecrates dos modos de

viver Foucault estaria preparando o terreno para sua questatildeo nevraacutelgica o cinismo

enquanto modo de vida extremamente singular articulado visceralmente ao imperativo

de dizer-a-verdade corajosamente

5 FOUCAULT A coragem da verdade p76 6 ldquopela emergecircncia e pela fundaccedilatildeo da parresiacutea socraacutetica a existecircncia foi constituiacuteda no pensamento grego como um objeto esteacutetico como objeto de percepccedilatildeo esteacutetica o biacuteos como obra de arterdquo FOUCAULT A coragem da verdade p141 7 ldquocomo o dizer-a-verdade nessa modalidade eacutetica que aparece com Soacutecrates no iniacutecio da filosofia ocidental interferiu com o princiacutepio da existecircncia como obra a ser modelada em toda sua perfeiccedilatildeo possiacutevelrdquo Ibid p 144

203

Para o autor ldquonatildeo se trata de competecircncia natildeo se trata de teacutecnica natildeo se trata

de mestre nem de obra De que se trata Trata-se [] da maneira como se viverdquo8 Por

conseguinte o cinismo seria o exemplo primaacuterio de uma filosofia que teria como ponto

de partida a vida como objeto de diligecircncia de uma praacutetica que incitaria os homens agrave arte

de si agrave elaboraccedilatildeo de certo modo de viver A atitude ciacutenica expressaria em uacuteltima

instacircncia o imperativo do cuidado de si

O uso da palavra ldquopraacuteticardquo justifica-se devido agrave liberdade inerente ao cinismo

que o torna refrataacuterio aos moldes da filosofia tradicional Seu teor de ensinamento oral

enquanto maneira de ser implicou em pouco material textual com parco delineamento

teoacuterico Sobreviveu como modo de vida atitude e natildeo doutrina escrita Seus adeptos

teriam a atenccedilatildeo voltada ao viver e natildeo agrave elaboraccedilatildeo de um manual tratado ou livro que

definisse conceitos temas hipoacuteteses sobre o cinismo O que natildeo evitou que alguns de

seus praticantes deixassem alguns escritos legados para a posteridade9 Natildeo obstante seja

pela praacutetica seja pela fraca teoria a tradiccedilatildeo ciacutenica foi popularizada na Antiguidade por

sua forma de disseminaccedilatildeo

Cumpre destacar a dimensatildeo asceacutetica da existecircncia ciacutenica A apropriaccedilatildeo

seguida da modificaccedilatildeo dessa noccedilatildeo implicaria na renuacutencia de convenccedilotildees e haacutebitos

sociais o que culminaria num tipo peculiar de ascese inerente ao cinismo

A ascese ciacutenica teria algumas especificidades Primeiramente ela extrapolaria

os limites entre a vida puacuteblica e privada posto que o ciacutenico natildeo teria segredos ou

privacidade sua existecircncia seria completamente desnudada aos olhos de todos

Despojado de casa lugar de intimidade e isolamento de roupas total ou parcialmente

ele satisfaz suas necessidades fisioloacutegicas na rua espaccedilo coletivo Em sua vida nada seria

oculto tudo seria drasticamente exposto A aplicaccedilatildeo extrema de natildeo ocultamento como

forma de conduta derrubaria e alteraria a moralizaccedilatildeo e o pudor convencional sobre os

haacutebitos naturais dos homens

Segundo seria o modo de viver sem misturas dependecircncias ou viacutenculos eacute

extremada no cinismo com a pobreza tomada como um componente da verdadeira vida

completamente desprovida de luxos e riquezas Haacute uma reduccedilatildeo ao miacutenimo das posses

concretas de modo que a inoacutepia seria tanto fiacutesica quanto mental natildeo sendo meramente

8 Ibid p 126 9 Consoante o filoacutesofo francecircs ldquoa tradiccedilatildeo ciacutenica natildeo comporta textos teoacutericos ou muitiacutessimo poucos Digamos em todo caso que o arcabouccedilo doutrinal do cinismo parece ter sido bem rudimentar [] Em todo caso o fato eacute atestado o cinismo foi uma filosofia por um lado de ampla implantaccedilatildeo social e por outro de um arcabouccedilo teoacuterico estreito exiacuteguo e elementarrdquo FOUCAULT A coragem da verdade p179

204

um ldquodesprendimento da almardquo Vale ressaltar que este ponto seria uma escolha isto eacute

atitude ativa e natildeo indiferenccedila resignada de uma condiccedilatildeo mediacuteocre Nas palavras do

autor ldquoela eacute uma elaboraccedilatildeo de si mesmo na forma de pobreza visiacutevel [] ela eacute uma

conduta efetiva de pobrezardquo10 Aleacutem disso haveria um imperativo para o desprendimento

uma busca por libertar-se de todo bem por mais iacutenfimo que este seja como uma simples

tigela para beber aacutegua jaacute que podemos juntar as matildeos em forma de cuia para reter ali o

liacutequido e leva-lo agrave boca11

Terceiro o da vida reta em conformidade com determinados costumes e

regras coletivas eacute retomado pelo ciacutenico e transmutado em sua base Ainda haacute a

conformidade mas natildeo ao que eacute cultural e criado pelo homem e sim ao que eacute oriundo da

natureza Ou seja o princiacutepio ao qual o cinismo concorda em sua existecircncia eacute a lei natural

e natildeo humana Segue-se a recusa agrave moral do grupo agraves convenccedilotildees sociais como a

constituiccedilatildeo de uma famiacutelia e os haacutebitos e tabus alimentares A concepccedilatildeo ciacutenica de

retidatildeo estaria inserida em uma dimensatildeo natural animal portanto O que geraria o efeito

escandaloso dessa praacutetica ao se contrapor ao elogio da razatildeo caracteriacutestico da

Antiguidade que a partir da animalidade atribuiacutea um valor de distinccedilatildeo para o humano

Por fim o quarto a vida soberana eacute retomada e revertida em uma forma

insolente a realeza ciacutenica um dos pontos nevraacutelgicos do cinismo segundo Foucault

ldquotemos aiacute nessa ideia do filoacutesofo como antirrei algo que estaacute no proacuteprio centro da

experiecircncia ciacutenica e da vida ciacutenica como verdadeira vida e outra vida e do ciacutenico como

verdadeiro rei e outro reirdquo12 Ao se proclamar rei o ciacutenico contesta os monarcas coroados

em seus tronos agindo como sua contraparte destacando acintosamente o quatildeo oco e

precaacuterio eles seriam A agudeza dessa posiccedilatildeo antagocircnica faz dele um antirrei por

descortinar os elementos fraacutegeis que embasam a soberania dos homens comuns

Para exercer seu domiacutenio o rei dependeria de uma seacuterie de fatores a educaccedilatildeo

e hereditariedade que garanta o acesso ao trono um exeacutercito para manter e expandir suas

terras aliados para garantir a coesatildeo de suas conquistas o triunfo sobre seus inimigos e

por uacuteltimo o fator acaso a que o monarca estaacute exposto e que pode arrebatar sua

monarquia Jaacute a forma reacutegia de cinismo o ciacutenico-rei seria um monarca autecircntico sua

vida seria de fato soberana assim como sua ldquorealezardquo Ele seria efetivamente

10 Ibid p227 11 Exemplo dado por Foucault sobre famosa anedota de Dioacutegenes o Ciacutenico 12 FOUCAULT A coragem da verdade p242

205

independente dispensando todos os elementos supracitados acima que sustentam outras

realezas

Aleacutem disso a praacutetica ciacutenica operaria uma radicalizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave

preocupaccedilatildeo e ao cuidado com o outro caracteriacutestico da vida soberana No cinismo tanto

os discursos quanto as liccedilotildees satildeo dispensadas alcanccedilando o limite do autossacrifiacutecio para

ocupar-se dos outros passando do gozo de si para certa renuacutencia de si Assim sua tarefa

assumiria uma feiccedilatildeo belicosa tanto interna quanto externa atacar e enfrentar os haacutebitos

as convenccedilotildees as instituiccedilotildees purgando os viacutecios que afetam a humanidade e enfrentar

a si mesmo seus proacuteprios desejos e paixotildees Portanto o ciacutenico seria um tipo de rei que

combateria por si pelos outros e desse modo sua maneira de viver conduziria agrave felicidade

e agrave plenitude de sua existecircncia

Essas alteraccedilotildees efetuadas na concepccedilatildeo de verdadeira vida expressam um

traccedilo crucial do cinismo a maacutexima ldquoalterar a moedardquo Um dos principais episoacutedios a

respeito de Dioacutegenes o Ciacutenico menciona o conselho dado a ele pelo oraacuteculo de Delfos

que o instigou a alterar o valor da moeda Tal liccedilatildeo ganha forccedila devido a duas versotildees

biograacuteficas sobre Dioacutegenes era filho de um banqueiro ou cambista algueacutem que

trabalhava com compra venda e troca de dinheiro cunhado e um ou outro foram acusados

de falsificaccedilatildeo dos valores monetaacuterios sendo expulsos de Sinope local onde viviam E a

partir dessa anedota Foucault desenvolve suas hipoacuteteses sobre a verdadeira vida ciacutenica

tendo como ponto de partida o imperativo de transfigurar o valor da moeda

O problema da verdadeira vida ciacutenica eacute [] a aproximaccedilatildeo que haacute [] entre moeda e costume regra lei Nomisma eacute a moeda Noacutemos eacute a lei Mudar o valor da moeda eacute tambeacutem eacute tomar certa atitude em relaccedilatildeo ao que eacute convenccedilatildeo regra lei [] eles vatildeo modificar a efiacutegie [] vatildeo fazer aparecer uma vida que eacute precisamente o contraacuterio do que era reconhecido tradicionalmente como a verdadeira vida [] o cinismo como careta da verdadeira vida13

O preceito de ldquoalterar o valor da moedardquo seria um fundamento primordial do

cinismo Este imperativo incitaria o sujeito ao cuidado e agrave praacutetica si reavaliando a forma

como vive e os valores adotados que foram estabelecidos e avaliados pelos outros Tal

maacutexima impele a uma tomada de posiccedilatildeo radical em relaccedilatildeo agrave forma como se vive

colocando em xeque as atitudes padronizadas por determinado valor coletivo

Nessa tarefa eacute crucial a relaccedilatildeo que o autor estabelece entre moeda valores

e normas posto que o cinismo efetivamente assume determinada posiccedilatildeo contra as

13 FOUCAULT A coragem da verdade p199-200

206

convenccedilotildees diametralmente avessa aos haacutebitos e agraves concepccedilotildees sociais Segundo

Foucault ldquoos ciacutenicos se opotildeem agraves leis divinas agraves leis humanas e a toda forma de

tradicionalidade ou de organizaccedilatildeo socialrdquo14 Isto eacute haveria um impulso destruidor de

convencionalismos e das rotas culturais dominantes estabelecidas para a coletividade E

tambeacutem a recusa de qualquer sofrimento ou accedilatildeo em prol da comunidade da poliacutetica da

religiatildeo da economia ou da famiacutelia Portanto o ciacutenico teria uma eacutetica singular

Assim o princiacutepio fundamental do cinismo de ldquoalterar o valor da moedardquo

conduz agrave radicalizaccedilatildeo de um estilo de vida livre que se distancia das artificias valoraccedilotildees

tradicionais dos costumes da moral vigente colocando em xeque o modo de viver

adotado pela cultura massificada dominante Esse seria um dos elementos mais marcantes

da praacutetica ciacutenica e que afetaria sua aleturgia

De acordo com o filoacutesofo francecircs as caracteriacutesticas do cinismo expressariam

uma forma privilegiada de parresiacutea haja vista que eacute no modo de viver que o dizer-a-

verdade se manifesta Ou seja para o ciacutenico eacute a proacutepria existecircncia e natildeo o discurso que

critica e potildee em xeque a sociedade e a cultura em que vive A liberdade e a autonomia de

suas praacuteticas seriam refrataacuterias agraves valoraccedilotildees normatizadoras dos costumes que submetem

os indiviacuteduos No cinismo a proacutepria existecircncia seria como uma imagem caricatural e

impertinente dos valores seguidos por determinada sociedade no paradoxo de sua adesatildeo

e ruptura imediata a estes

A esse agir contraditoacuterio segue-se um tema caro a Foucault a dimensatildeo

ciacutenica da coragem da verdade Isto eacute pocircr a vida em risco para mostrar aos homens o

quanto eles seriam paradoxais por estimarem determinados valores no campo teoacuterico e o

rechaccedilam no espaccedilo praacutetico Ou seja o ciacutenico faz atraveacutes da maneira como vive com

que os indiviacuteduos condenem e rejeitem as accedilotildees do que eles mesmos valorizam e prezam

em pensamento Consequentemente a existecircncia no cinismo eacute exposta ao perigo pelo

ato e natildeo pelo discurso

E esta seria uma das argumentaccedilotildees que justificariam a hipoacutetese foucaultiana

ldquoeis por que o cinismo [] se relaciona agrave questatildeo das praacuteticas e das artes da existecircncia eacute

que ele foi a forma ao mesmo tempo mais rudimentar e mais radical na qual se colocou a

questatildeo dessa forma particular de vida [] que eacute a vida filosoacuteficardquo15 A verdadeira vida

ciacutenica concebe a filosofia enquanto exerciacutecio para a existecircncia e natildeo mera teoria

dissociada da praacutetica No cinismo o filosofar natildeo seria um campo estritamente discursivo

14 FOUCAULT A coragem da verdade Ibid p175 15 Ibid p208

207

e conceitual seria uma forma de viver que exigira a coragem de viver efetivamente suas

verdades

Tal estilo de vida seria marcado como vimos acima por suas praacuteticas

asceacuteticas Entrementes natildeo seria um ascetismo provocado por nenhuma divindade por

sinais externos e espirituais com uma finalidade religiosa Ao contraacuterio o objetivo seria

o modo de viver dos homens nessa existecircncia natildeo em outra tanto que o ciacutenico visa a

mudanccedila dos valores que influenciam a sociedade em que estaacute marginalmente inserido

E a escolha por essa maneira de viver seria individual se daria a partir do momento em

que o sujeito flagrasse em si sua propensatildeo Nas palavras do autor

a missatildeo ciacutenica soacute seraacute reconhecida na praacutetica da aacuteskesis A ascese o exerciacutecio a proacutepria praacutetica de toda resistecircncia que faz viver na natildeo dissimulaccedilatildeo na natildeo dependecircncia na diacriacutetica entre o que eacute bom e o que eacute ruim tudo isso vai ser o proacuteprio sinal da missatildeo ciacutenica Ningueacutem eacute chamado ao cinismo como Soacutecrates foi pelo deus de Delfos que lhe mandou um sinal nem como seratildeo os apoacutestolos pelo dom das liacutenguas que teratildeo recebido O ciacutenico se reconhece a si mesmo e ele estaacute sozinho consigo mesmo para se reconhecer na prova que faz da vida ciacutenica16

Essa relaccedilatildeo entre cinismo e ascese eacute vital Foucault aponta determinadas

vertentes do cristianismo que teriam sido responsaacuteveis pela propagaccedilatildeo do modo de viver

ciacutenico na Europa17A pobreza o despojamento o afastamento e a renuacutencia implicam

certa forma de ascetismo que foi adotado por alguns segmentos do cristianismo como

os franciscanos e dominicanos18

O ascetismo seria inerente agrave estilizaccedilatildeo da existecircncia por meio das praacuteticas

ciacutenicas A seacuterie de exerciacutecios corporais mentais o afastamento dos haacutebitos culturais

como vestimenta alimentaccedilatildeo e relaccedilotildees sociais demarcam bem essa ligaccedilatildeo O modo

de vida ciacutenico seria alcanccedilado por certa forma de ascese que purgaria o corpo e a mente

dos adeptos das convenccedilotildees e costumes tradicionais possibilitando a parresiacutea um viver

independente e coerente com a verdade

Conforme o autor no cinismo ldquoo ensino filosoacutefico natildeo tinha essencialmente

como funccedilatildeo transmitir conhecimentos [] Tratava-se de armaacute-los para a vida para que

16 FOUCAULT A coragem da verdade p263 17 ldquoO primeiro suporte da transferecircncia e da penetraccedilatildeo do modo de ser ciacutenico na Europa cristatilde foi constituiacutedo eacute claro pela proacutepria cultura cristatilde e pelas praacuteticas e pelas instituiccedilotildees do ascetismordquo Ibid p158 18 ldquoOs franciscanos com seu despojamento sua erracircncia sua pobreza sua mendicidade satildeo ateacute certo ponto os ciacutenicos da cristandade medieval Quanto aos dominicanos pois bem vocecircs sabem que eles proacuteprios se chamavam de Domini canes (os catildees do Senhor)rdquo Ibid p160

208

pudessem enfrentar os acontecimentosrdquo19 Isto eacute o sentido de suas praacuteticas estaria voltado

para o corpo fiacutesico e para a vida neste mundo Logo seria uma ascese imanente natildeo seria

uma ponte para outra existecircncia Utilizando a linguagem nietzschiana seria um ascetismo

intramundano e natildeo trasmundano natildeo teria o sentido do ceacuteu teria o sentido da Terra

Logo a verdadeira vida ciacutenica consolidaria entatildeo uma soberania asceacutetica de

si estetizando a existecircncia troccedilando da cultura e dos modos de viver civilizados

rechaccedilando-os e transfigurando seus valores Assim acredito que haja uma proximidade

entre essas concepccedilotildees e a filosofia nietzschiana com sua criacutetica agrave metafiacutesica agrave cultura e

a afirmaccedilatildeo de uma transvaloraccedilatildeo dos valores E a principal personagem de Nietzsche

Zaratustra expressaria esse ascetismo ciacutenico Na parte que segue me deterei nessa

hipoacutetese

Cinismo de Zaratustra

Ao estabelecer um viacutenculo entre o pensamento nietzschiano e o cinismo

cumpre destacar que Nietzsche natildeo repete e adota incondicionalmente os preceitos da

tradiccedilatildeo ciacutenica Ele se apropria do cinismo enquanto um modo de vida filosoacutefico que

aponta para um desdobramento praacutetico e natildeo soacute discursivo e a utiliza para a elaboraccedilatildeo

de sua proacutepria visatildeo de mundo e para a estruturaccedilatildeo de seu pensamento Algo

extremamente importante para sua reflexatildeo Desse modo meu objetivo eacute captar traccedilos do

cinismo antigo que foram anexados pelo autor de Zaratustra na composiccedilatildeo de sua

filosofia

Em minha hipoacutetese a ascese ciacutenica seria um elemento determinante para o

projeto nietzschiano de transvaloraccedilatildeo e interpreto Zaratustra como um ciacutenico de acordo

com a perspectiva foucaultiana expressa em A coragem da verdade Contudo o filoacutesofo

francecircs natildeo estabeleceu esse viacutenculo entre sua interpretaccedilatildeo do cinismo e o pensamento

nietzschiano poreacutem o diaacutelogo entre ambos eacute possiacutevel devido agrave semelhanccedila entre as

posiccedilotildees filosoacuteficas

Logo no iniacutecio da obra que leva o nome do protagonista ele inicia sua jornada

apartando-se do conviacutevio em sociedade e por dez anos mantem-se afastado dos homens

19 FOUCAULT A coragem da verdade p181

209

e de seu modo de viver20 Contudo tal distanciamento eacute sazonal como o leitor descobre

ao longo do livro sendo fundamental para purgar a personagem do miasma intriacutenseco aos

valores da cultura em que vivia E tambeacutem para que ele se fortaleccedila e confeccione novos

valores para depois retornar aos indiviacuteduos e propagar sua contra doutrina colocando em

xeque aquelas valoraccedilotildees niilistas

Tal postura itinerante seria semelhante agrave metaacutefora de Epicteto adotada por

Foucault ao compreender o ciacutenico como uma espeacutecie de batedor enviado agrave frente da

humanidade para avaliar as condiccedilotildees de hostilidade ou de favorecimento para sua vida

no mundo E posteriormente retornaria agrave sociedade para comunicar e anunciar a verdade

do que descobriu Esse movimento de afastamento e proximidade eacute caracteriacutestico de

Zaratustra ao longo de sua obra Ao final dos capiacutetulos depois de ter com os homens ele

volta agrave solidatildeo para apoacutes certa passagem de tempo regressar agrave civilizaccedilatildeo

A recusa ciacutenica aos costumes o rompimento com as convenccedilotildees sociais e

haacutebitos culturais seriam os primeiros passos dados por Zaratustra E o longo periacuteodo de

solidatildeo que possibilitou o cultivo de sua gaia sabedoria o transformou profundamente

Assim que desce a montanha e deixa de lado o isolamento ele encontra um velho santo

que o reconhece e percebe imediatamente sua mudanccedila

Natildeo me eacute estranho esse andarilho por aqui passou haacute muitos anos Chamava-se Zaratustra mas estaacute mudado Naquele tempo levava tuas cinzas para os montes queres agora levar teu fogo para os vales Natildeo temes o castigo para o incendiaacuterio Sim reconheccedilo Zaratustra Puro eacute seu olhar e sua boca natildeo esconde nenhum nojo Natildeo caminha ele como um danccedilarino Mudado estaacute Zaratustra tornou-se uma crianccedila Zaratustra um despertado eacute Zaratustra que queres agora com os que dormem 21

Essa passagem eacute bastante feacutertil sobre alguns dos efeitos que o ascetismo tem

sobre Zaratustra A renuacutencia ao conviacutevio foi responsaacutevel pela depuraccedilatildeo do grande asco

agrave vida um sentimento niilista22 e por meio da solidatildeo asceacutetica o vazio inerente aos valores

20 ldquoAos trinta anos de idade Zaratustra deixou sua paacutetria e o lago de sua paacutetria e foi para as montanhas Ali gozou do seu espiacuterito e da sua solidatildeo e durante dez anos natildeo se cansou Mas enfim seu coraccedilatildeo mudourdquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoProacutelogordquo sect1 p11 21 Ibid ldquoProacutelogordquo sect2 p 11 22 Nessa passagem Nietzsche estabelece uma relaccedilatildeo direta entre nojo e niilismo sendo aquele um sentimento de asco que afeta o indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave vida ao ser acometido pelo segundo O niilismo seria o efeito nocivo que aflige o homem ao ser destituiacutedo de valores incondicionais que orientem sua existecircncia deixando-o desnorteado como um barco em um mar revolto ldquoquando vos mandei destroccedilar os bons e as taacutebuas dos bons somente entatildeo embarquei o homem para seu alto-mar E somente agora lhe vem o grande pavor o grande olhar ao redor a grande doenccedila o grande nojo o grande enjoo do marrdquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDas velhas e novas taacutebuasrdquo sect28 p204

210

decadentes da sociedade foi superado A renuacutencia agrave cultura eacute determinante para a tarefa

criadora de novas apreciaccedilotildees23 Esse eacute o fogo que a personagem quer levar aos homens

incendiar aquele modo decadente de viver destruir e queimar suas taacutebuas de valores24

Nessa mudanccedila por que passou o protagonista tornou-se leve e apto para superar o pesado

espiacuterito de gravidade que conspurca a vida e o mundo25 que as concebe enquanto

sofrimento e doenccedila Ao praticar determinada ascese o bufatildeo de Nietzsche torna-se

crianccedila novamente alcanccedila a pureza necessaacuteria agrave plena adesatildeo ao jogo incessante de

destruiccedilatildeo e criaccedilatildeo de novas metas e perspectivas para a existecircncia constantemente

significando e ressignificando a si mesmo26

O trecho supracitado mostra o estado em que Zaratustra se encontrava ao fugir

da civilizaccedilatildeo ldquonaquele tempo levava tuas cinzas para os montesrdquo diz o velho santo

Cinzas satildeo resiacuteduos de um corpo queimado e tambeacutem podem ser restos mortais Entatildeo a

personagem estava ferida fiacutesica ou mentalmente de tal modo que buscou convalescer no

isolamento Natildeo suportou continuar entre os homens Por quecirc O que motivou essa recusa

ao conviacutevio humano O que o afetou desse modo deixando-o em tal estado A resposta

definitiva natildeo eacute dada pelo livro O que possibilita o infinito exerciacutecio interpretativo

A constataccedilatildeo da fraqueza e dependecircncia de seus contemporacircneos de sua

incapacidade para viver uma vida autocircnoma e livre poderia responder a essas indagaccedilotildees

Por meio de sua contra doutrina o protagonista mostra-se avesso agrave nociva vontade de

verdade que apascentou e reduziu o homem a um animal de rebanho que o tornou crente

e dependente de valores absolutos que garantissem alguma seguranccedila para sua existecircncia

Sua aversatildeo eacute tamanha que ao dirigir-se agraves pessoas na cidade mais proacutexima

que encontrou umas das primeiras coisas ditas por Zaratustra foi ldquoo homem eacute algo a ser

superadordquo27 Ou seja ele afirma a necessidade de ultrapassar o atual estado das coisas

visto que permanecer fiel agravequele modo de viver seria a ruiacutena do homem pois seus valores

estariam fatalmente comprometidos

23 ldquolonge do mercado e da fama se passa tudo que eacute grande longe do mercado e da fama habitaram desde sempre os inventores de novos valores [] foge meu amigo para tua solidatildeo e para onde o ar eacute rude e forterdquo Ibid ldquoDas moscas do mercadordquo p53 24 ldquoOacute meus irmatildeos destroccedilai destroccedilai as velhas taacutebuas de valoresrdquo Ibid ldquoDas velhas e novas taacutebuasrdquo sect10 p193 25 ldquoPesadas satildeo para ele a terra e a vida e assim quer o espiacuterito de gravidade [] demasiados valores e palavras pesadas potildee ele sobre si ndash e entatildeo a vida lhe parece um desertordquo Ibid ldquoDo espiacuterito de gravidaderdquo sect2 p184 26 ldquoInocecircncia eacute a crianccedila e esquecimento um novo comeccedilo um jogo [] sim para o jogo da criaccedilatildeo meus irmatildeos eacute preciso um sagrado dizer-simrdquo Ibid ldquoDas trecircs metamorfosesrdquo p29 27 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoProacutelogordquo sect3 p13

211

Entrementes essa tarefa seria perigosa posto que colocaria sua proacutepria vida

em risco Tanto que ao expor sua contra doutrina agraves pessoas da cidade foi execrado e

ameaccedilado de morte ldquoVai-te embora desta cidade oacute Zaratustra muitos te odeiam

Odeiam-te os bons e os justos e te chamam de seu inimigo e desprezador odeiam-te os

crentes da verdadeira feacute e te chama de perigo para a multidatildeo [] Tua sorte foi que te

juntaste ao cachorro morto ao te rebaixares assim te salvaste por hoje Mas deixa esta

cidade ndash ou amanhatilde salto sobre ti um vivo sobre um mortordquo28 Essa passagem expressa

o efeito da contra doutrina de Zaratustra nos adeptos da vontade de verdade O

protagonista expocircs sua criacutetica agrave cultura dos homens e pocircs-se em perigo de morte ao fazecirc-

lo Tal qual o ciacutenico que arrisca a proacutepria vida em sua tarefa de alterar a moeda ou seja

transformar os valores que regram a existecircncia dos indiviacuteduos O bufatildeo de Nietzsche

almeja suplantar a cultura vigente e para esse fito tem a coragem de se colocar em risco

Assim a coragem eacute atributo imprescindiacutevel no projeto de transvaloraccedilatildeo

Coragem para romper com as relaccedilotildees sociais com o conviacutevio humano com os haacutebitos

com os costumes com certo modo caduco de viver Ter a coragem de reconfigurar e

orientar sua existecircncia ao sabor de sua proacutepria verdade seria tarefa para os raros ldquoser

verdadeiro ndash poucos satildeo capazes dissordquo29 Esse foi o primeiro passo dado por Zaratustra

em sua jornada para se tornar o mestre do eterno retorno Ou seja ele assumiu os riscos

de iniciar uma vida asceacutetica ao renunciar ao modo de viver predominante em sua cultura

e seus valores supremos

O evento catastroacutefico da Modernidade a ruiacutena da velha divindade solapa

definitivamente a posiccedilatildeo suprema e incondicional atribuiacuteda agrave verdade donde emanava

valores e sentidos absolutos Em face desse vazio angustiante fruto da ausecircncia de alento

transcendental a praacutetica de si eacute capital o cuidado de si eacute tarefa aacuterdua do indiviacuteduo No

entanto a verdade singular e provisoacuteria ainda seria possiacutevel no que Nietzsche denominou

esteacutetica da existecircncia atividade artesanal de lidar com o teor plaacutestico da vida

Tal concepccedilatildeo eacute parte determinante da contra doutrina de Zaratustra ensinar

os homens a cuidarem de si em uma terra ausente de um Pai transcendental que zelaria

por todos Por isso a personagem incita os indiviacuteduos a acordarem para a infinita liberdade

oriunda da morte de Deus instiga-os agrave felicidade proveniente da capacidade readquirida

de criar novos soacuteis e mundos para viver A natildeo desprezar o corpo e os afetos pois eacute a

28 Ibid ldquoProacutelogordquo p21-22 29 Ibid ldquoDe velhas e novas taacutebuasrdquo p191

212

partir deles que teriacuteamos nossa criadora paleta de cores30 Essa nova atitude tornaria o

sujeito capaz de criar e avaliar novamente rechaccedilando as estimaccedilotildees e apreciaccedilotildees alheias

e afirmando as suas proacuteprias E fatalmente destruir os antigos valores arraigados pela

cultura pelo costume pelas convenccedilotildees31

A postura de Zaratustra remonta agrave do ciacutenico cujo estilo de vida independente

e livre coloca em xeque os valores que orientam a maneira com as pessoas vivem Este

por meio de uma conduta asceacutetica primorosa zelaria por todos propagando o cuidado de

si pela preocupaccedilatildeo com os homens mostrando pelo exemplo de sua proacutepria existecircncia

o quatildeo paradoxal seria o modo de viver dominante O bufatildeo de Nietzsche diz ldquoeu amo

os homensrdquo e ldquoquero ensinar aos homens o sentido do seu serrdquo32 Ou seja o protagonista

natildeo fica isolado em sua montanha ele desce para compartilhar seu leve saber alegre

explicitando sua diligecircncia com os indiviacuteduos ldquoposso novamente descer para junto de

meus amigos e inimigos Zaratustra pode novamente falar e presentear e fazer o melhor

para os que mais amardquo33 Logo a ascese ciacutenica eacute livremente apropriada pelo filoacutesofo

alematildeo e inserida na contra doutrina de seu principal personagem que mesmo agrave margem

da sociedade zela por ela cuidando de seus integrantes Mas natildeo para manter o estado

vigente de sua cultura e sim para sua radical variaccedilatildeo dado que ldquoo homem eacute algo que

deve ser superadordquo34

Assim a esteacutetica da existecircncia seria um ponto vital do pensamento

nietzschiano Apoacutes a morte de Deus Nietzsche conduz suas reflexotildees de modo a orientar

inuacutemeros modos de vidas possiacuteveis Seu pensamento postula o juacutebilo diante da nova

liberdade e de uma vida prenhe de significaccedilotildees possiacuteveis em detrimento de uma tristeza

niilista que acomete os fracos acovardados que se massificam em rebanho e que recusam

a pluralidade de sua potecircncia criadora

Estetizar a existecircncia seria cuidar de si nesse novo mundo plural assumir os

riscos e lidar com todo acaso e adversidade inerente agrave vida Viver de modo a repetir sua

existecircncia infinitas vezes afirmando suas escolhas e todo acontecimento nocivo ou natildeo

dado que toda experiecircncia por que passa o indiviacuteduo eacute determinante para sua composiccedilatildeo

30 ldquoO corpo eacute uma grande razatildeo uma multiplicidade [] haacute mais razatildeo em teu corpo do que em tua melhor sabedoriardquo NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDos desprezadores do corpordquo p35 31 ldquoApenas atraveacutes do estimar existe valor e sem o estimar seria oca a noz da existecircncia Escutai oacute criadores Mudanccedila nos valores ndash isso eacute mudanccedila nos criadores Quem tem de ser um criador sempre destroacuteirdquo Ibid ldquoDas mil metas e uma soacute metardquo p58 32 Ibid ldquoProacutelogordquo sect2 e sect7 p12 e p21 33 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoO menino com o espelhordquo p80 34 Ibid ldquoProacutelogordquo sect3 p13

213

No pensamento nietzschiano esse cuidado para consigo seria necessaacuterio

dado que a fonte que atribuiacutera tais valores secou Assim certa ascese eacute crucial para o

indiviacuteduo recuperar sua potecircncia criadora dado que os valores degenerados da cultura

embotaram tal capacidade

O ascetismo de Zaratustra como do ciacutenico seria despojado de qualquer

conotaccedilatildeo trasmundana Para o Nietzsche uma das questotildees mais candentes seria o modo

de viver em um mundo cujo encanto se perdeu cujo valor transcendental se apagou Para

Foucault a soberania da existecircncia ciacutenica expressaria tal ventura dado que exprime ldquoa

alegria de quem aceita seu destino e natildeo conhece por conseguinte nenhuma falta

nenhuma tristeza e nenhum temor Tudo o que eacute dureza de existecircncia tudo que eacute privaccedilatildeo

e frustraccedilatildeo tudo isso se reverte num exerciacutecio de soberania sobre sirdquo35 Essa postura eacute

cara ao nietzschianismo expressa na concepccedilatildeo do amor fati36 a plena adesatildeo agrave vida

aceitando-a e afirmando-a sem descontos com tudo que for caracteriacutestico da mesma dor

sofrimento prazer juacutebilo

Ambas apontam para a celebraccedilatildeo de um viver autocircnomo livre de valoraccedilotildees

ou significaccedilotildees supremas que zelem e orientem a vida dos homens O devir inerente ao

mundo seria vivenciado independente de seus efeitos negativos ou positivos e natildeo

controlado por alguma instacircncia suprema A postura afirmativa de lidar com a

adversidade aponta para a potencializaccedilatildeo das capacidades do sujeito expresso na

maacutexima nietzschiana ldquoo que natildeo me mata me fortalecerdquo37 e na interpretaccedilatildeo foucaultiana

ldquoas pancadas portanto fazem crescer Elas potildeem a prova treinam aperfeiccediloamrdquo38

Assim o viacutenculo entre a contra doutrina de Zaratustra e o cinismo eacute prenhe de

possibilidades

Segundo Foucault um dos traccedilos caracteriacutesticos do cinismo eacute sua dimensatildeo

praacutetica enquanto modo de viver Tal posiccedilatildeo eacute cara agrave Nietzsche que incita seus leitores

a assumirem uma posiccedilatildeo ativa em relaccedilatildeo a suas vidas ldquosomente quem faz aprenderdquo 39

Ou seja a aprendizagem de seu pensamento se daria pela accedilatildeo e natildeo soacute pelo discurso

Apesar de o filoacutesofo alematildeo ter professado seu pensamento por escritos a questatildeo eacutetica

35 FOUCAULT A coragem da verdade p272 36 ldquominha foacutermula para a grandeza no homem eacute amor fati nada querer diferente seja para traacutes seja para frente seja em toda a eternidade Natildeo apenas suportar o necessaacuterio menos ainda ocultaacute-lo [] mas amaacute-lordquo NIETZSCHE Ecce Homo ldquoPor que sobu tatildeo inteligenterdquo sect10 p49 37 NIETZSCHE Crepuacutesculo dos iacutedolos ldquoMaacuteximas e Flechasrdquo sect8 p10 38 FOUCAULT A coragem da verdade p 264 39 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoO mais feio dos homensrdquo p 253

214

eacute um de seus principais interesses Ademais o autor elegeu para sua filosofia qualidades

praacuteticas que conduzam agrave accedilatildeo e agrave transformaccedilatildeo do proacuteprio modo de viver

Estimo um filoacutesofo na medida em que ele pode dar um exemplo [] mas este exemplo deve ser dado natildeo somente por livros mas pela vida cotidiana como os filoacutesofos gregos ensinaram pela expressatildeo do rosto atitude o vestuaacuterio o regime alimentar os costumes muito mais do que pelo que se diz pelo que se escreve Como noacutes estamos ainda longe na Alemanha de poder realizar essa corajosa evidecircncia de uma vida filosoacutefica40

Esse trecho possibilita o estabelecimento de uma relaccedilatildeo direta com o

cinismo Vimos anteriormente de que maneira a vida filosoacutefica ciacutenica conteacutem as

caracteriacutesticas elogiadas por Nietzsche na citaccedilatildeo acima O filoacutesofo alematildeo almejou

elaborar um pensamento que conduzisse a uma vida filosoacutefica potente o suficiente para

confrontar-se com a ordem cultural estabelecida Daiacute a coragem inerente a essa atitude

posto que todo seu agir deveria ser um ataque agrave sociedade a fim de transformaacute-la

As reflexotildees nietzschianas questionavam valores totalizantes colocando em

xeque as verdades incondicionais que massificaram os homens em rebanhos Assim o

leve saber alegre de seu principal personagem seria refrataacuterio agraves tradicionais formas de

conhecimento Tanto que Zaratustra visa a autonomia e independecircncia dos indiviacuteduos

ldquoEste eacute o meu caminho ndash qual eacute o vosso Assim respondi aos que me perguntaram pelo

lsquocaminhorsquo Pois o caminho ndash natildeo existerdquo41 Desse modo Nietzsche propotildee uma filosofia

que enfatiza a singularidade evitando novos dogmas conceituais e discursivos dado que

seu interesse eacute que seu leitor se torne quem ele eacute soberano de si

Nesse sentido forccedila e luta satildeo traccedilos decisivos no projeto nietzschiano de

transvaloraccedilatildeo dos valores para postular novas formas de viver Os fracos desejariam a

antiga existecircncia agrilhoada agrave velha divindade agrave obsoleta forma de vida pautada nas

valoraccedilotildees incondicionais e ser despojado dessa base tornaacute-lo-ia triste niilista Somente

os fortes celebrariam a ventura desse novo mundo a felicidade de se pocircr agrave prova e

enfrentar a decadente cultura vigente

Tal caracteriacutestica eacute intriacutenseca ao cinismo conforme Foucault afirma ldquoo

ciacutenico eacute um filoacutesofo em guerrardquo42 Ele assume por seu estilo singular de viver um ataque

direto agrave cultura de sua sociedade ldquoo combate dos ciacutenicos [] eacute um combate contra

40 NIETZSCHE Schopenhauer educador p 350 41 NIETZSCHE Assim falou Zaratustra ldquoDo espiacuterito de gravidaderdquo p118 42 FOUCAULT A coragem da verdade p264

215

costumes contra convenccedilotildees contra instituiccedilotildees contra leis contra todo um estado da

humanidaderdquo43 A praacutetica ciacutenica exige forccedila e domiacutenio de si para o enfrentamento

incessante ao modo de vida dominante e para a renuacutencia dos haacutebitos sociais

convencionais Assim ele encontra sua felicidade ao se ocupar de si e dos outros O ciacutenico

luta pelos homens pela humanidade dispensando a doutrina e sem massificar os

indiviacuteduos com discursos totalizantes A ascese da vida ciacutenica visa agrave transformaccedilatildeo pelo

exemplo de sua singularidade

Logo o tema nietzschiano da esteacutetica da existecircncia conduziria a uma

dimensatildeo praacutetica agrave luz das hipoacuteteses foucaultianas sobre o cinismo As reflexotildees do

filoacutesofo francecircs abrem novas perspectivas de interpretaccedilatildeo sobre o pensamento de

Nietzsche na medida em que via Foucault seria possiacutevel compreender Zaratustra

enquanto asceta Algo de suma importacircncia e contraditoacuterio agrave primeira vista devido agrave

terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da moral

A hipoacutetese da ascese de Zaratustra salta aos olhos logo no iniacutecio da jornada

da referida personagem no entanto a oposiccedilatildeo ao ascetismo feita pelo autor na obra

supracitada impede o desenvolvimento dessa argumentaccedilatildeo Todavia a interpretaccedilatildeo de

Foucault sobre o cinismo abre a possibilidade de lermos o bufatildeo de Nietzsche enquanto

um asceta ciacutenico A renuacutencia ao estilo de vida predominante em sua eacutepoca assim como

a negaccedilatildeo radical dos valores estanques que orientaram seus contemporacircneos conduzem

a certa forma de ascetismo Eacute contra essa sociedade pautada na consolaccedilatildeo proveniente

dos discursos totalizantes que o filoacutesofo alematildeo se afasta e declara guerra

Ao cotejar A coragem da verdade com Assim falou Zaratustra a riqueza

oriunda das semelhanccedilas eacute imensa Malgrado as distinccedilotildees dos contextos histoacutericos e

filosoacuteficos e com as devidas ressalvas conceituais estabelecer um diaacutelogo entre ambos eacute

possiacutevel e fundamental para a compreensatildeo de alguns pontos do pensamento

nietzschiano como a dimensatildeo praacutetica de sua contra doutrina do leve saber alegre

Conclusatildeo

Nietzsche posterga a confianccedila de uma vida orientada por valores irrestritos

e anuncia a morte de Deus acontecimento dramaacutetico da Modernidade que lanccedilaria os

43 Ibid p247

216

indiviacuteduos em mundo de caos e puro devir O resultado fisioloacutegico imediato seria o

niilismo negaccedilatildeo da vontade e a anguacutestia em face de um horizonte ausente de sentido

Para superar o niilismo e suplantar a cultura decadente de sua eacutepoca o autor

apresenta seu leve saber alegre a contra doutrina de Zaratustra Esse novo conhecimento

afirmaria a celebraccedilatildeo total da vida e da liberdade proveniente do ocaso da velha

divindade Destituiacutedo de valores supremos que encerraram sua existecircncia o indiviacuteduo

encontraria a ventura de viver em um lugar com infinitas possibilidades

Assim as reflexotildees de Nietzsche conduziriam a uma eacutetica a um modo de

viver nesse mundo ausente de discursos totalizantes O autor se preocupou em exprimir

uma filosofia que tivesse uma dimensatildeo praacutetica que incitasse ao ato em face da cultura

nociva que envenenaria o sujeito com concepccedilotildees torpes

No entanto natildeo interpreto o pensamento nietzschiano como um discurso de

massa que vise regrar as atitudes dos homens Ao contraacuterio o filoacutesofo instiga seu leitor

a ser autor de sua existecircncia que assuma uma posiccedilatildeo ativa em sua vida e renegue a

mentalidade dominante que o arrebanha e o torna cativo de riacutegidos valores

Uma das metas do autor eacute o surgimento de uma nova estirpe de homem um

indiviacuteduo criador e autocircnomo que atuaria como uma maacutequina de guerra contra a

concepccedilatildeo de mundo orientada por discursos totalizantes que entorpeceriam a potecircncia

criadora singular Para tornar-se livre e independente o sujeito deveria praticar certa

forma de ascese renunciar ao modo de viver comumente aceito recusar e transformar os

haacutebitos que regram a vida coletiva e romper com a visatildeo de mundo pautada nas valoraccedilotildees

engessados pelo costume

As posiccedilotildees filosoacuteficas tomadas por Nietzsche permitem que seja considerado

um herdeiro da corrente ciacutenica na medida em que existem alguns pontos de contato entre

as duas filosofias Portanto poderiacuteamos consideraacute-lo um metaciacutenico visto que realizou

variaccedilotildees e interpretaccedilotildees de alguns preceitos e se apropriou a sua maneira do que

poderia potencializar seu pensamento

Bibliografia

NIETZSCHE Assim falou Zaratustra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011

__________ Ecce Homo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

217

__________ Crepuacutesculo dos iacutedolos Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006

__________ Schopenhauer educador Satildeo Paulo Prumo 2012

FOUCAULT A coragem da verdade Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2011

SLOTERDJICK P O quinto ldquoevangelhordquo de Nietzsche Rio de Janeiro Tempo brasileiro 2004

A MODERNIDADE lsquoNArsquo FILOSOFIA DE DESCARTES

A CRIacuteTICA DAS FORMAS SUBSTANCIAIS

William Teixeira1

RESUMO O objetivo desse artigo eacute mostrar como Descartes elaborou sua filosofia mecanicista Assim o primeiro passo para atingir esse objetivo levou Descartes a criticar e abandonar a noccedilatildeo de lsquoforma substancialrsquo a qual era amplamente empregada pelos escolaacutesticos para explicar todos os acontecimentos relativos aos seres naturais de uma maneira qualitativa Tendo descartado as formas substanciais o proacuteximo passo era estabelecer um novo objeto de estudo para a filosofia natural o qual ele encontrou na mateacuteria corpoacuterea (res extensa) e suas propriedades geomeacutetricas Dessas modificaccedilotildees introduzidas por Descartes vai emergir tambeacutem um novo meacutetodo de investigar os fenocircmenos naturais baseado na mediccedilatildeo e precisatildeo matemaacuteticas mais comprometido com a lsquoepistemologia platocircnicarsquo do que com a lsquoepistemologia aristoteacutelicarsquo Noacutes concluiremos afirmando que Descartes estava em acordo com muitos de seus contemporacircneos notavelmente Bacon e Galileu pensadores que estavam engajados em combater a filosofia formalista de Aristoacuteteles Junto com eles Descartes deu sua contribuiccedilatildeo para a renovaccedilatildeo da filosofia ocidental Palavras-chaves Descartes Escolaacutestica Filosofia natural Forma substancial Res extensa ABSTRACT The aim of this paper is to show how Descartes worked out his mechanistic philosophy So the first step to reach this goal led Descartes to criticize and abandon the notion of lsquosubstantial formrsquo which was largely employed by the schoolmen to explain all events concerning natural beings in a qualitative way Having discharged the substantial form the next step was to establish a new subject-matter for natural philosophy which he found in the material body (res extensa) and its geometrical properties From these modifications introduced by Descartes will also emerge a new method of investigating natural phenomena based on mathematical measurement and precision more commited with a lsquoPlatonic epistemologyrsquo than with an lsquoAristotelic onersquo We will conclude by asserting that Descartes was in agreement with many of his contemporaries most notably Bacon and Galileo thinkers who were engaged in fighting against the formalistic philosophy of Aristotle Together with them Descartes has given his contribuition for the renovation of the western philosophy Keywords Descartes Scholasticism Natural philosophy Substantial form Res extensa

1 UnB email williamunbhotmailcom

219

No relato de sua biografia intelectual que se encontra no Discurso do

meacutetodo Descartes se nos apresenta como algueacutem insatisfeito com sua aprendizagem

escolar estimando que haacute pouco valor na formaccedilatildeo que adquiriu em sua juventude

Fui nutrido nas letras desde minha infacircncia e porque me convenceram que atraveacutes delas podia-se adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que eacute uacutetil agrave vida eu tinha um extremo desejo de aprendecirc-las Mas assim que eu conclui todo esse curso de estudos ao fim do qual costuma-se ser acolhido entre os eruditos eu mudei totalmente de opiniatildeo Eu me encontrava pois embarassado por tantas duacutevidas e erros de modo que eu parecia natildeo ter obtido nenhum benefiacutecio ao me instruir a natildeo ser ter descoberto mais e mais minha ignoracircncia2

Como eacute bem sabido Descartes estudou no renomado coleacutegio jesuiacuteta de La

Flegraveche que era de acordo com seu proacuteprio parecer ldquo[] uma das mais ceacutelebres escolas

de Europardquo3 onde acreditava ldquo[] haver homens saacutebiosrdquo4 Nessa instituiccedilatildeo ele se

aprofundou no estudo da filosofia escolaacutestica siacutentese elaborada por Santo Tomaacutes de

Aquino no seacuteculo XIII da teologia cristatilde com o pensamento de Aristoacuteteles Visto ser

este o responsaacutevel principal de suas frustraccedilotildees acadecircmicas eacute pois precisamente contra

o aristotelismo que se encontrava vigorosamente estabelecido ainda na primeira metade

do seacuteculo XVII que Descartes se insurge de modo mais veemente5

Dentre as disciplinas baseadas diretamente nas obras de Aristoacuteteles6 e

sendo ministradas como comentaacuterios a estas agraves quais Descartes foi submetido durante

2 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 4 lsquoATrsquo refere-se a DESCARTES Reneacute Oeuvres de Descartes (publieacutees par Charles Adam amp Paul Tannery) Todas as referecircncias agraves obras de Descartes seratildeo feitas dessa maneira seguindo procedimento usual entre estudiosos desse autor ldquoJrsquoai eacuteteacute nourri aux lettres degraves mon enfance et parce qursquoon me persuadait que par le moyen on pouvait acquerir une connaissance claire et assurreacutee de tout ce qursquoil est utile agrave la vie jrsquoavais un extreme deacutesir de les apprendre Mais sitocirct que jrsquoeus acheveacute tout ce cours de eacutetudes au bout duquel on a coucirctume drsquoecirctre reccedilu au rang des doctes je changeai entiegraverement drsquoopinion Car je me trouvais embarasseacute de tant de doutes et drsquoerreurs qursquoil me semblait nrsquoavoir fait autre profit en tacircchant de mrsquoinstruir sinon que jrsquoavais deacutecourvert de plus en plus mon ignorancerdquo 3 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 5 ldquo[] lrsquoune des plus celegravebres eacutecoles de lrsquoEuroperdquo 4 DESCARTES Discurso do meacutetodo AT 6 p 5 ldquo[] avoir de savants hommesrdquo 5 A respeito desse fato eacute oportuno observar que Descartes natildeo era o uacutenico estudante incomodado com o conteuacutedo demasiadamente aristoteacutelico ministrado pelas Escolas e universidades da eacutepoca Locke e Hobbes por exemplo tambeacutem se sentiam deveras incomodados com o formalismo inoacutecuo das obras de Aristoacuteteles Leibniz em contrapartida natildeo compartilhava o mesmo niacutevel de exasperaccedilatildeo de seus contemporacircneos em relaccedilatildeo aos escolaacutesticos embora consideresse que certos equiacutevocos por eles cometidos devessem ser corrigidos (cf LEIBNIZ Metaphysische abhandlung pp 24-25) 6 Cf ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 60 ldquoEm La Flegraveche como em outros coleacutegios jesuiacutetas da eacutepoca o curriacuteculo [do curso] de filosofia durava trecircs anos ( os trecircs uacuteltimos anos de formaccedilatildeo do estudante a partir do 15 anos de idade) Ele consistia em preleccedilotildees duas vezes por dia com a duraccedilatildeo de duas horas baseadas primariamente nas obras de Aristoacuteteles e Tomas de Aquino No tempo de Descartes o primeiro ano era devotado agrave loacutegica e agrave eacutetica consistindo em comentaacuterios e questotildees baseadas na Isagoge de Porfiacuterio e nas Categorias no Sobre a interpretaccedilatildeo nos Primeiros analiacuteticos nos Toacutepicos nos Segundos analiacuteticos e na Eacutetica a Nicocircmacos de Aristoacuteteles O segundo ano era devotado agrave fiacutesica e agrave metafiacutesica baseado primariamente na Fiacutesica no

220

seus anos de aprendizagem aquela que mais lhe desagradou ou ao menos contra a qual

ele se opocircs de modo mais enfaacutetico foi agrave filosofia natural7 Essa disciplina escolaacutestica agrave

qual Descartes foi apresentado por seus mestres jesuiacutetas em La Flegraveche era praticamente

a mesma que era ensinada nas universidades francesas do seacuteculo XIII e XIV isto eacute o

sistema de explicaccedilatildeo da natureza herdado da Idade Meacutedia pelos jesuiacutetas continuava

intacto ainda no seacuteculo XVII8 seacuteculo este que paradoxalmente assistia agrave emergecircnica da

Revoluccedilatildeo Cientiacutefica da qual Descartes seraacute um dos principais esteios

A filosofia natural escolaacutestica em suas explanaccedilotildees sustentava-se

amplamente em justificaccedilotildees de caraacuteter qualitativo O mundo segundo essa

interpretaccedilatildeo era formado por uma grande diversidade de substacircncias cada qual com

suas proacuteprias qualidades ou essecircncias Nesse sistema os objetos do mundo fiacutesico

tinham sua especificidade determinada por um elemento lsquoformalrsquo que compunha sua

estrutura presidia sua atividade e definia seus caracteres acidentais Eis um exemplo

proveniente de um famoso pesquisador da filosofia medieval ldquoO peso e a leveza

tornam-se pois qualidades decorrentes de faculdades que derivam da forma substancial

que a causa geradora do corpo lhe conferiurdquo9 Tomaacutes de Aquino justifica esse fato

assim ldquoCom efeito todo corpo natural tem alguma forma substancial determinada e

visto que agrave forma substancial sigam-se os acidentes eacute necessaacuterio que a determinada

forma sigam-se determinados acidentesrdquo10 Assim a verdadeira natureza de cada corpo

natural eacute a sua lsquoformarsquo de modo que seguindo-se a doutrina hilemoacuterfica de Aristoacuteteles

Sobre o ceacuteu no livro I do Sobre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo e no livros I 2 e II da Metafiacutesica O terceiro ano do [curso de] filosofia era o ano das matemaacuteticas consistindo em aritmeacutetica geometria muacutesica e astronomia [hellip]rdquo ldquoAt La Flegraveche as in other Jesuit colleges of the time the curriculum in philosophy would have lasted three years (the final three years of a studentrsquos education from about the age of fifteen on) It would have consisted of lectures twice a day in sessions lasting two hours each from a set curriculum based primarily on Aristotle and Thomas Aquinas During Descartesrsquo time the first year was devoted to logic and ethics consisting of commentaries and questions based on Porphyryrsquos Isagoge and Aristotlersquos Categories On Interpretation Prior Analytics Topics Posterior Analytics and Nicomachean Ethics The second year was devoted to physics and metaphysics based primarily on Aristotlersquos Physics De Caelo On Generation and Corruption book I and Metaphysics book I 2 and II The third year of philosophy was a year of mathematics consisting of arithmetics geometry music and astronomy [hellip] 7 Cf MENN Descartes and Augustine p 4 ldquoA atitude de Descartes em relaccedilatildeo agrave filosofia escolaacutestica eacute claramente hostil Especialmente em sua fiacutesica sua filosofia vai diretamente de encontro agrave filosofia de Aristoacuteteles a qual ele espera substituir nas Escolasrdquo ldquoDescartesrsquo attitude towards scholasticism is clearly hostile Especially in its physics his philosophy runs directly counter to the philosophy of Aristotle which he hopes to replace in the schoolsrdquo 8 Cf GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 143 9 GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 161 ldquoLa lourdeur et la leacutegegravereteacute deviennent donc des qualiteacutes dues agrave des faculteacutes qui deacuterivent de la forme substantielle que la cause geacuteneacuteratrice du corps lui a confeacutereacuteerdquo 10 AQUINO Summa theologiae I q 7 art 3 ldquoNam omne corpus naturale aliquam formam substantialem habet determinatam cum igitur ad formam substantialem consequantur accidentia necesse est quod ad determinatam formam consequantur determinata accidentiardquo

221

quando esta se une a aquele ao corpo entendido como princiacutepio material de

individuaccedilatildeo tem-se uma lsquoforma substancialrsquo o que constitui o princiacutepio de movimento

ou mudanccedila (κίνησις na terminologia do Estagirita11) dos entes que existem por

natureza (τὰ φύσει ὄντα)12 a qual no homem por exemplo identifica-se com a alma

racional ou espiacuterito13 Desse modo a fiacutesica escolaacutestica14 que fora ensinada ao jovem

Descartes em seu profundo acordo com o pensamento de Aristoacuteteles se atribuiacutea como

tarefa primaacuteria a identificaccedilatildeo e classificaccedilatildeo das lsquoformas substanciaisrsquo15 isto eacute da

natureza (φύσις) ou essecircncia dos entes corpoacutereos elementos estes vale dizer

eminentemente qualitativos

Eacute pois agrave noccedilatildeo de lsquoforma substancialrsquo que Descartes dirigiraacute sua criacutetica

mais severa16 uma vez que era sobre ela que repousava todo o sistema da fiacutesica

escolaacutestico-aristoteacutelica Sua supressatildeo determinaria necessariamente a ruiacutena de toda

aquela ciecircncia e ao mesmo tempo condicionaria a proacutepria elaboraccedilatildeo da fiacutesica

cartesiana que deveria lhe substituir17 Com efeito Descartes considerava a fiacutesica que

lhe fora ensinada inaceitaacutevel Para ele uma ciecircncia que se baseava sobre um tal

princiacutepio como o de forma substancial natildeo possuiacutea nenhum poder real de explicaccedilatildeo ou

11 Aristotle Physics II 1 192b12-15 12 Aquino endossa essa opiniatildeo de Aristoacuteteles ldquo[] Muitas coisas existem por natureza uma vez que tecircm o princiacutepio de seu movimento em sirdquo (AQUINO Commentaria in libros physicorum II l 1 n 8) ldquo[] Multa sunt a natura quae habent principium sui motus in serdquo 13 ldquoPortanto esse princiacutepio pelo qual primeiramente entendemos que ele seja nomeado intelecto ou alma intelectiva eacute a forma do corpordquo (AQUINO Summa theologicae I q 76 art 1) ldquoHoc ergo principium quo primo intelligimus sive dicatur intellectus sive anima intellectiva est forma corporisrdquo Esta seraacute com efeito a uacutenica forma substancial que Descartes admitiraacute em seu sistema elevada entretanto ao status de substacircncia ndash a res cogitans 14 Eacute importante ter em mente que essa exposiccedilatildeo da fiacutesica escolaacutestica se pretende apenas como um esboccedilo para melhor situar a criacutetica de Descartes agraves formas substacircncias natildeo sendo de nenhum modo exaustiva ou completa 15 A fiacutesica escolaacutestica era efetivamente uma disciplina ldquotaxonocircmicardquo descrevendo e classificando os fenocircmenos mas nunca capaz de descobrir leis gerais que desse conta da explicaccedilatildeo e previsibilidade da natureza dos mesmos assim como o foi a historia natural em especial a biologia ateacute o princiacutepio do seculo XIX 16 ldquo[] Todas as qualidades e formas agraves quais tenho horror []rdquo (DESCARTES Correspondecircncia a Ciermans AT 2 p 74) ldquo[] Qualitates omnes et formas a quibus abhorreo []rdquo 17 A criacutetica agraves formas substanciais na verdade ocupa um lugar fundamental em todo o sistema de Descartes natildeo se restringindo meramente agrave refutaccedilatildeo da filosofia natural escolaacutestica isto eacute a uma disciplina particular ldquo[] A criacutetica agraves formas substanciais confere seu sentido pleno agraves Meditaccedilotildees metafiacutesicas por completo porque integralmente centradas na distinccedilatildeo real da alma e do corpo elas contecircm precisamente aquilo que era necessaacuterio para estabelecer essa conclusatildeo da metafiacutesica que eacute ao mesmo tempo o princiacutepio de uma fiacutesica do movimento e da extensatildeordquo (GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 189) ldquo[] La critique de formes substantielles donne son sens plein aux Meacuteditations meacutetaphysiques tout entiegraveres parce que inteacutegralement centreacutees sur la distinction reacuteele de lrsquoacircme et du corps elles ne contiennent que ce qursquoil fallait pour eacutetablir cette conclusion de la meacutetaphysique qui est en mecircme temps le principe drsquoune physique de lrsquoeacutetendue et du mouvementrdquo

222

de prediccedilatildeo18 dado que ldquo[] a Forma se torna uma espeacutecie de tela invisiacutevel entre o

observador e seu objeto de estudo a qual impede-no de agarraacute-lo mensuraacute-lo e pesaacute-

lordquo19 Em sua visatildeo inversamente era necessaacuteria uma abordagem que focasse natildeo em

variaacuteveis qualitativas mas em fatores quantitativos e passiacuteveis de mensuraccedilatildeo Dessa

perspectiva ao inveacutes das lsquoformas substanciaisrsquo e lsquoqualidades reaisformas acidentaisrsquo o

universo cartesiano seraacute constituiacutedo apoacutes a supressatildeo do hilemorfismo aristoteacutelico

representado por seu famoso lsquodualismorsquo corpo-alma20 por um material singular e

homogecircneo ao qual ele denominaraacute res extensa21 Assim Descartes recusa a noccedilatildeo de

forma substancial como princiacutepio explicativo do mundo natural e em seu lugar vai

estabelecer um princiacutepio puramente material representado pela noccedilatildeo de res extensa

com as consequentes qualidades primaacuterias que considera ser-lhe inerente ndash figura

movimento grandeza nuacutemero ndash como objeto de estudo da filosofia natural reduzindo

assim o objeto da fiacutesica agrave geometria

18 Leibniz apesar de contrariado com o fato de as formas substanciais se encontrarem tatildeo desacreditadas uma vez que as considera diferentemente de Descartes uacuteteis em seu aspecto lsquometafiacutesicorsquo afirma por outro lado em acordo com Descartes que a consideraccedilatildeo dessas formas em nada serve ao pormenor da fiacutesica natildeo se devendo por isso empregaacute-las para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos particulares ldquoOs escolaacutesticos e os meacutedicos do passado a exemplo deles falharam ao acreditar fornecer a razatildeo das propriedades dos corpos recorrendo agraves formas e agraves qualidades sem se darem ao trabalho de examinar sua maneira de operaccedilatildeo como se algueacutem se contentasse em dizer que um reloacutegio tem a qualidade de indicar as horas devido a sua forma [substancial] sem considerar em que isto consisterdquo (LEIBNIZ Metaphysische abhandlung pp 20-22) rdquoEt crsquoest en quoi nos scholastiques ont manqueacute et les Meacutedecins du temps passeacute agrave leur exemple croyant de rendre raison des proprieteacutes des corps em faisant mention des formes et des qualiteacutes sans se mettre en peine drsquoexaminer la maniegravere de lrsquooperation comme si on se voulait contenter de dire qursquoune horloge a la qualiteacute horodictique provenante de sa forme sans considerer en quoi tout cela consisterdquo 19 ALLAN The philosophy of Aristotle p 115 ldquo[] the Form becomes a kind of invisible screen between the observer and the object of his study which prevents him from grasping and measuring and weighing itrdquo 20 Forlin esclarece as verdadeiras intenccedilotildees de Descartes ao propor o seu lsquodualismorsquo corpo-alma ldquoEacute comum afirmar que quando na Descartes na Meditaccedilatildeo segunda opera uma distinccedilatildeo radical entre corpo e alma o interesse cartesiano seria sobretudo o de mostrar que a alma eacute puramente imaterial e completamente independente do corpo Na verdade Descartes estaacute interessado eacute na contrapartida dessa distinccedilatildeo seu interesse eacute mostrar que o corpo eacute puramente material e completamente independente de qualquer alma ou forma como pressupunham os tomistas-aristoteacutelicos Tal condiccedilatildeo eacute necessaacuteria para se justificar metafiacutesicamente a elaboraccedilatildeo de uma ciecircncia da natureza que tem como objeto apenas a extensatildeo e suas propriedades geomeacutetricas e mecacircnicas ou seja eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para se validar metafisicamente a realizaccedilatildeo de uma fiacutesica-matemaacuteticardquo (FORLIN A metafiacutesica cartesiana e a fundamentaccedilatildeo da fiacutesica moderna p 89) 21Ao recusar as lsquoformas substanciasrsquo e as lsquoqualidades reaisrsquo ou lsquoformas acidentaisrsquo e afirmar que o universo eacute constituiacutedo apenas de res extensa i e de um princiacutepio material Descartes estaacute negando ao mesmo tempo assim como jaacute o fizera Galileu a existecircncia objetiva das lsquoqualidades secundaacuterias nos corpos ndash cores odores sabores etc Estas bem como todas as outras sensaccedilotildees seratildeo excluiacutedas dos objetos e corpos e realocados na mente do sujeito estando na base da inovadora concepccedilatildeo de mente e da revolucionaacuteria teoria da percepccedilatildeo cartesianas todos estes elementos fundamentando o inatismo desse autor A abordagem desses importantes temas cartesianos entretanto natildeo fazem parte do escopo do presente trabalho Para mais detalhes sobre tais questotildees cf TEIXEIRA Teoria das ideias inatismo e teoria da percepccedilatildeo em Descartes pp 487-515

223

O corolaacuterio mais imediato dessa alteraccedilatildeo feita por Descartes no objeto de

estudo da filosofia natural reside no fato que no acircmbito da explicaccedilatildeo dos fenocircmenos

enquanto para os escolaacutesticos agrave maneira peripateacutetica o movimento e a mundaccedila nos

corpos ou entes naturais originavam-se no interior dos mesmos tendo como princiacutepio

originaacuterio a forma substancial que constitue sua essecircncia e determina seus atributos

numa fiacutesica mecanicista de tipo cartesiana movimento e mudanccedila advecircm

exclusivamente da interaccedilatildeo entre os corpos eou das partes constituintes dos mesmos

sendo portanto fatores exteriores a eles donde resulta que todos os fenocircmenos que lhes

satildeo atinentes podem ser explicados segundo padrotildees de causa e efeito empiricamente

verificaacuteveis e sobretudo matematicamente mensuraacuteveis

Na obra Le Monde ou Traiteacute de la Lumiegravere (AT 8) onde Descartes

apresenta as concepccedilotildees de sua filosofia natural ou fisica o que significa dizer

[] uma alternativa completamente mecanicista ao sistema de Aristoacuteteles efetivamente derivando heliocentrismo22 a partir de princiacutepios primeiros oferecendo uma nova e aparentemente viaacutevel concepccedilatildeo de mateacuteria [res extensa] e formulando leis fundamentais do movimento23 ndash leis que satildeo claramente passiacuteveis de quantificaccedilatildeo24

Encontra-se desde o princiacutepio a condenaccedilatildeo que o filoacutesofo francecircs efetua

em relaccedilatildeo agraves formas substanciais considerando-nas o obstaacuteculo que impede aquela

disciplina de se tornar uma verdadeira ciecircncia Nessa obra vecirc-se a recusa de Descartes

em compreender os fenocircmenos fiacutesicos atraveacutes de noccedilotildees como lsquoformarsquo lsquoqualidadersquo

lsquoaccedilatildeorsquo e outras semelhantes tatildeo caras agrave fiacutesica escolaacutestica Para ele uma fiacutesica que se

queira verdadeiramente ciecircncia deve estudar os entes da natureza mediante a anaacutelise de

suas partes extensas e do movimento que se estabelece entre elas

ldquoQue um outro diz ele numa clara alusatildeo aos escolaacutesticos pois imagine se quiser nessa madeira a Forma do fogo a Qualidade do calor e a Accedilatildeo que a queima como coisas totalmente diversas para

22 Agrave ocasiatildeo da condenaccedilatildeo de Galileu pela Inquisiccedilatildeo Descartes escreve a Mersenne acerca do comprometimento do Le Monde com o modelo copernicano ldquo[] Se ele [o movimento da Terra] eacute falso todos os fundamentos de minha Filosofia tambeacutem o satildeo pois ele se demonstra por eles de forma evidente E ele estaacute tatildeo ligado com todas as partes de meu Tratado que eu natildeo o poderia excluir dele sem tornar o restante totalmente defeituosordquo (DESCARTES Correspondecircncia a Mersenne AT 1 p 271) ldquo[] Srsquoil est faux tous les fondements de ma Philosophie le sont aussi car il se demonstre par eux eacutevidemment Et il est teacutellement lieacute avec toutes les parties de mon Traiteacute que je ne lrsquoen saurait deacutetacher sans rendre le reste tout defectueuxrdquo 23 Cf DESCARTES Le Monde AT 11 pp 38 e 41 e Principia AT 8 pp 62-66 24 GAUKROGER Descartesrsquo system of natural philosophy p 18 ldquo[] a fully mechanist alternative to Aristotelian systems one which effectively derives heliocentrism from first principles which offers a novel and apparently viable conception of matter and which formulates fundamental laws of motion ndash laws which are clearly open to quantitative elaborationrdquo

224

mim que temo me enganar se aiacute suponho qualquer coisa aleacutem do que necessariamente deve haver me contento em conceber o movimento de suas partes25rdquo26

Em suma a filosofia natural cartesiana opotildee-se por um lado aos obscuros

princiacutepios que Aristoacuteteles usara na explicaccedilatildeo do mundo fenomenal ndash e que satildeo

sistematica e ostensivamente empregados pelos escolaacutesticos ndash e por outro busca

construir uma sistema de explicaccedilatildeo do mundo natural apelando apenas a princiacutepios

claros e evidentes isto eacute tangiacuteveis e mensuraacuteveis tal como o faria um geocircmetra

Apoiando-se sobre esses pressupostos ele afirma

[] Notei que absolutamente nada pertence agrave natureza do corpo exceto que seja somente uma coisa comprida larga e profunda capaz de vaacuterias figuras e de vaacuterios movimentos e [que] as figuras e os movimentos satildeo apenas modos dele que sem o mesmo atraveacutes de nenhuma [outra] faculdade podem existir27

Desse modo Descartes elimina da ciecircncia natural todas as explicaccedilotildees

baseadas em princiacutepios anticientiacuteficos e obscurantistas tais como lsquoqualidades

sensiacuteveisrsquo lsquofaculdades fiacutesicasrsquo28 e lsquoformas substanciaisrsquo empregados fartamente pelos

escolaacutesticos em suas investigaccedilotildees naturais Em seu lugar surge a mera extensatildeo e as

qualidades primaacuterias como fatores explicativos dos fenocircmenos da natureza de modo

que todo o universo passa a ser visto como um grande ldquoengenho mecacircnicordquo Essas

inovaccedilotildees implementadas por Descartes representaram um enorme ganho de

simplicidade e precisatildeo o que contribuiu significativamente para o estabelecimento da

fiacutesica como uma ciecircncia baseada no meacutetodo experimental e no raciociacutenio matemaacutetico 25 A fiacutesica mecanicista de Descartes estaacute evidentemente comprometida com a teoria do corpuscularismo como se aduz da mencionada passagem Cf DESCARTES Principia AT 8 pp 323-325 26 DESCARTES Le Monde AT 11 p7 ldquoQursquoun autre donc imagine srsquoil veut en ce bois la Forme du feu la Qualiteacute de la chaleur et lrsquoAction que la brucircle comme des choses toutes diverses pour moi qui crains de me tromper si jrsquoy suppose quelque chose de plus que ce que je vois neacutecesseraiment y devoir ecirctre je me contente drsquoy concevoir le mouvement de ses partiesrdquo 27 DESCARTES Meditaccedilotildees acerca da filosofia primeira Sextas respostas AT 7 p 440 e AT 9 p 239 ldquo[] Adverti nihil plane ad rationem corporis pertinere nisi tantum quod sit res longa lata et profunda variarum figurarum variorumque motuum capax ejusque figuras ac motus esse tantum modos qui per nullam potentiam sine ipso possunt existere []rdquo 28 Em Le malade imaginaire (1673) Moliegravere ao lado de Racine La Fontaine Corneille Boileau Bossuet um dos mestres do Classicismo francecircs aquele movimento esteacutetico da literatura francesa de forte inspiraccedilatildeo cartesiana ( com efeito ordem clareza razatildeo anaacutelise verdade equiliacutebrio perfeiccedilatildeo satildeo valores do Classicismo) como que de maneira irocircnica fazendo eco agrave critica de Descartes agrave noccedilatildeo de forma substancial explora os efeitos cocircmicos das explicaccedilotildees escolaacutesticas aplicadas agrave medicina Na cena em questatildeo um futuro bacharel em medicina eacute questionado por um dos membros do corpo docente daquele faculdade a respeito da ldquo[] causa e razatildeo pela qual o oacutepio faz dormir []rdquo Ele lsquoescolasticamentersquo responde ldquoPorque haacute nele uma virtude dormitiva cuja natureza eacute embotar os sentidosrdquo (MOLIEgraveRE Le malade imaginaire scegravene XIV et derniegravere troisiegraveme intermegravede p 70) ldquo[] causam et rationem quare Opium facit dormire [] Quia est in eo [opio] Virtus dormitiva Cujus est natura Sensus assoupirerdquo

225

impulsionando assim sua separaccedilatildeo de sua matriz filosoacutefica29 Ainda que o modelo de

fiacutesica proposto por Descartes tenha sido superado por Newton nos dececircnios seguintes ndash

os Principia do inglecircs foram publicados em 1686 ndash a abordagem matemaacutetico-

quantitativa em oposiccedilatildeo agrave descritivo-qualitativa veiculada pelos escolaacutesticos

permanece incontestavelmente um dos mais importantes pilares da atividade cientiacutefica

Embora veemente e implacaacutevel em sua criacutetica Descartes natildeo foi o primeiro

nem o uacutenico pensador moderno a rejeitar as formas substanciais como fator explicatiacutevo

dos fenocircmenos naturais30 Antes dele as formas substancias jaacute tinham sido execradas

da filosofia natural por pensadores do quilate de Francis Bacon (1561-1626) e Galileu

Galilei (1564-1642) O inglecircs motivado pelo ideal de apresentar um novo meacutetodo para

a ciecircncia propocircs em seu Novum Organum uma completa reforma dos procedimentos

investigativos vigentes que se fundamentavam nos preceitos aristoteacutelicos dando ecircnfase

ao meacutetodo experimental e agrave consequente verificaccedilatildeo empiacuterica dos fatos De acordo com

ele ldquoeacute melhor dissecar a natureza do que abstraiacute-la [] Eacute melhor considerar a mateacuteria

sua conformaccedilatildeo sua accedilatildeo proacutepria e as leis de sua accedilatildeo e movimento pois formas satildeo

uma mera ficccedilatildeo da mente humana a natildeo ser que se chame por esse nome as leis [que

regem sua] accedilatildeordquo31 Natildeo haacute como negar que Descartes em sua criacutetica aos escolaacutesticos

estivesse motivado por priniacutecipios similares aos propostos por Bacon ainda que se deva

conceder que este fiel ao espiacuterito empiricista britacircnico fosse o lsquoarautorsquo do indutivismo

ao passo que Descartes propugnava um meacutetodo mais hipoteacutetico-dedutivo de iacutendole

racionalista O italiano por seu turno ignorou as praacuteticas cientiacuteficas aristoteacutelicas

filiando-se agrave uma epistemologia lsquoplatocircnicarsquo como sustentado pelo renomado historiador

da ciecircncia Alexander Koyreacute por acreditar que ldquoo livro da natureza estaacute escrito em

lingua matemaacuteticardquo32 Ou seja em Galileu assim como em Descartes a quantificaccedilatildeo e

29 A introduccedilatildeo do fator quantitativo cartesiano (e galilaico) em detrimento do fator qualitativo escolaacutestico cria finalmente condiccedilotildees para que a fiacutesica se desvencilhe do ranccedilo aristoteacutelico e possa progredir enquanto ciecircncia ldquoO fato de que ele [Aristoacuteteles] insiste na mudanccedila qualitativa como um dado uacuteltimo e natildeo percebe o valor da mensuraccedilatildeo eacute uma falta grave e uma das principais razotildees para a estagnaccedilatildeo da ciecircncia durante a Idade Meacutediardquo (ALLAN The philosophy of Aristotle 162) ldquo[] The fact that he insists on qualitative change as an ultimate datum and does not realize the value of measurement is a grave fault and is one of the main reasons for the stagnation of science during the Middle Agesrdquo 30 O que diferencia a criacutetica agraves formas substacircncias cartesiana daquela realizada por seus contemporacircneos eacute como observado na nota 16 acima o fato dela servir em Descartes para estabelecer a distinccedilatildeo real entre alma e corpo estando assim na base do argumento do cogito ou em outras palavras na base de sua metafiacutesica e tambeacutem na base da fiacutesica devido ao estabelecimento simultacircneo da res extensa 31 BACON Novum organum I 51 ldquo[] It is better to dissect than abstract nature [] It is best to consider matter its conformation its own action and the law of its action or motion for forms are a mere fiction of the human mind unless you will call the laws of action by that name 32 ldquoA filosofia estaacute escrita nesse grandiacutessimo livro que continuamente abre-se diante de nossos olhos (refiro-me ao universo) mas natildeo se pode entendecirc-lo se antes natildeo se aprende a entender a lingua e

226

a mensuraccedilatildeo em uma palavra a busca por precisatildeo ndash que se realiza atraveacutes da

geometrizaccedilatildeo da natureza ndash satildeo as bases da atividade cientiacutefica33 o que exclui

naturalmente avaliaccedilotildees de caraacuteter qualitativo agrave maneira dos escolaacutesticos

Esse aspecto da obra do filoacutesofo francecircs evidencia aquilo que poderiacuteamos

designar de a modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes Com efeito eacute fato plenamente

reconheciacutevel que Descartes estava tacitamente congregado aos muitos autores

contemporacircneos seus que combatiam o aristotelismo ainda hegemocircnico das Escolas e

universidades de modo que a criacutetica agraves formas substanciais natildeo caracteriza uma

singularidade em sua obra na verdade ela mostra que o nosso autor estava respirando

os novos ares que estavam sendo insuflados na filosofia ocidental Outro aspecto

relevante que situa a modernidade lsquonarsquo filosofia de Descartes eacute a adoccedilatildeo de ferramentas

matemaacutetico-geomeacutetricas para a soluccedilatildeo de problemas de filosofia natural em particular

e ao mesmo tempo conscientemente ou natildeo a tomada de partido a favor da

epistemologia platocircnicarsquo que agrave eacutepoca emergia como um antiacutedoto agrave onipresenccedila do

peripatismo na cultura europeacuteia ndash uma fortaleza quase inexpugnaacutevel34 Nas atuais

circusntacircncias negar Aristoacuteteles significava quase que necessariamente afirmar Platatildeo Natildeo haacute mais que duas grades vias abertas agrave especulaccedilatildeo metafiacutesica a de Platatildeo e a de Aristoacuteteles Pode-se ter uma metafiacutesica do inteligiacutevel que desconfia do sensiacutevel de meacutetodo matemaacutetico e que se prolonga por uma ciecircncia que mede ou uma metafiacutesica do concreto que desconfia do inteligiacutevel de meacutetodo bioloacutegico e que se prolonga por um ciecircncia que classifica [] Como ele tinha acabado de sair do

conhecer os caracteres com os quais estaacute escrito Ele estaacute escrito em lingua matemaacutetica e os caracteres satildeo triacircngulos ciacuterculos e outras figuras geomeacutetricas sem cujos meios eacute impossiacutevel entender por via humana as palavrasrdquo (GALILEU Il saggiatore pp 16-17) ldquoLa filosofia egrave scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli occhi (io dico lrsquouniverso) ma non si puograve intendere se prima non srsquoimpara a intender la lingua e conoscer i caratteri nersquo quali egrave scritto Eggli egrave scritto in lingua matematica e i caratteri son triangoli cerchi ed altre figure geometriche senza i quali mezzi egrave impossibile a intenderne umanamente parolardquo 33 Natildeo obstante sua repreensatildeo agrave ausecircncia de fundamentos metafiacutesicos na filosofia natural de Galileu que este elaborou ldquo[] sem ter considerado as causas primeiras da natureza []rdquo Descartes aquiesce ao modo de proceder do cientista italiano ldquoEu acho que no geral ele filosofa muito melhor que o vulgo ao se afastar o maacuteximo que ele pode dos erros da Escola e se aplicar a examinar as questotildees da fiacutesica atraveacutes de raciociacutenios matemaacuteticos Nisto eu estou inteiramente de acordo com ele e acredito que natildeo haacute outro meio para encontrar a verdaderdquo (DESCARTES Correspondecircncia a Mersenne AT 2 p 380) [] ldquoSans avoir considereacute les causes premiegraveres de la nature []rdquo ldquoJe trouve en geacuteneacuteral qursquoil philosophe beaucoup mieux que le vulgaire en ce qursquoil quitte les plus qursquoil peut les erreurs de lrsquoEacutecole et tacircche agrave examiner les matiegraveres physiques par des raisons matheacutematiques En cela je mrsquoaccorde interiegraverement avec lui et je tiens qursquoil nrsquoy a point drsquoautre moyen pour trouver la veriteacuterdquo 34 ldquoTalvez a mais interessante liccedilatildeo que possa ser aprendida ao observar a relaccedilatildeo de Descartes com a escolaacutestica eacute o absoluto poder e autoridade do aristotelismo durante o seacuteculo dezesseterdquo (ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 58) ldquoPerhaps the most interesting lesson that can be learned by looking at Descartesrsquo relations with scholastics is the sheer power and authority of Aristotelianism during the seventeenth centuryrdquo

227

aristotelismo no qual seus mestres tentaram o engajar Descartes podia apenas dirigir-se ao platonismo []35

Jolley em obra mais recente corrobora essa opiniatildeo ldquoOs filoacutesofos no

periacuteodo [seacuteculo dezessete] natildeo estavam realmente virando as costas agrave tradiccedilatildeo como um

todo eles estavam antes eclipsando Aristoacuteteles para trazer agrave luz Platatildeordquo36

De qualquer modo a partir das consideraccedilotildees feitas acima eacute liacutecito concluir

que Descartes foi um ferrenho criacutetico da tradiccedilatildeo De sua insatisfaccedilatildeo como aprendiz de

filosofia escolaacutestica elevou-se agrave condiccedilatildeo de renovador da filosofia natural aristoteacutelica

que ainda dominava o curriacuteculo acadecircmico na Europa do seacuteculo XVII Com efeito em

sua proacutepria eacutepoca Descartes jaacute era visto como um opositor da filosofia ensinada nas

Escolas o que acabou por resultar na inclusatildeo de suas obra no Index de Livros

Proibidos em 1663 com a seguinte notaccedilatildeo ldquoateacute que sejam corrigidosrdquo37 e na deacutecada

seguinte assistia-se agrave proibiccedilatildeo pelo governo francecircs do ensino das doutrinas

cartesianas Ambas accedilotildees foram impetradas pelos opositores da filosofia de Descartes

Descartes tinha mesmo como objetivo lsquoimplodirrsquo a filosofia escolaacutestica e para tal

propoacutesito chegou a escrever uma obra que pudesse substituir os manuais ateacute entatildeo

utilizados para o ensino da filosofia ndash os Principia Philosophiae (cf AT 8) obra

incompleta que pretendia ser um compilaccedilatildeo de todo o seu sistema de pensamento38

Bibliografia

ALLAN Donald James The philosophy of Aristotle Oxford Oxford University Press

1970 2nd ed

AQUINO Santo Tomaacutes de Commentaria in libros physicorum Disponiacutevel em

lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt 35 GILSON Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du systegraveme carteacutesien p 199 ldquoIl nrsquoy a guegravere que deux grandes voies ouvertes agrave la speacuteculation meacutetaphysique celle de Platon et celle drsquoAristote On peut avoir une meacutetaphysique de lrsquointelligible meacutefiante agrave lrsquoeacutegard du sensible de meacutethode matheacutematique et se prolongeant par une science qui mesure ou une meacutetaphysique du concret meacutefiante du intelligible de meacutethode biologique et se prolongeant par une science qui classe [] Puisqursquoil venait de sortir de lrsquoaristoteacutelisme ougrave ses maicirctres avaient essayeacute de lrsquoengager Descartes ne pouvait que rentrer dans la platonisme []rdquo 36 JOLLEY The light of the soul Theories of ideas in Leibniz Malebranche and Descartes p 11 ldquophilosophers in the period [seventeenth-century] were not really turning their back on the tradition as a whole rather they were casting down Aristotle in order to raise up Platordquo 37 (ARIEW Descartes and scholasticism The Intellectual Background to Descartesrsquo Thought p 80) ldquodonec corriganturrdquo 38 Agradeccedilo ao professor Eneacuteias Forlin da Unicamp pelos comentaacuterios e sugestotildees que muito contribuiacuteram para o aperfeiccediloamento desse texto

228

______ Summa theologiae Disponiacutevel em

lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt

ARIEW Roger ldquoDescartes and scholasticism The Intellectual Background to

Descartesrsquo Thoughtrdquo In COTTINGHAM John (Ed) Cambridge Companion to

Descartes Cambridge Cambrigde University Press 1992

ARISTOTLE Physics Disponiacutevel em lthttpwwwloebclassicscomviewaristotle-

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BACON Francis Advancement of learning Novum organum New atlantis Chicago

Encyclopaedia Britannica (Great books of the Western world 28) 1994 2 ed

DAVIES Brian The Thought of Tomas Aquinas Oxford Claredon 1992

DESCARTES Reneacute Oeuvres de Descartes (publieacutees par Charles Adam amp Paul

Tannery) Disponiacutevel em

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FORLIN Eneacuteias ldquoA metafiacutesica cartesiana e a fundamentaccedilatildeo da fiacutesica modernardquo

Perspectiva filosoacutesica Vol 2 No 34 (jul-dez 2010) pp 81-95

GALILEU Galilei Il saggiatore Disponiacutevel em

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Cambridge University Press 2002

GILSON Eacutetienne Eacutetudes sur le rocircle de la penseacutee medieacutevale dans la formation du

systegraveme carteacutesien Paris Librairie Philosophique J Vrin 1951

LEIBNIZ Gottfried Wilhelm Metaphysische abhandlung Hamburg Verlag von Felix

Meiner 1962 (Philosophische bibliotek 260)

JOLLEY Nicholas The light of the soul Theories of ideas in Leibniz Malebranche

and Descartes New York Oxford University Press 1998

MOLIEgraveRE Jean Baptiste Poquelin Le malade imaginaire Disponiacutevel em

lthttpwwwtoutmolierenetoeuvreshtmlgt

229

TEIXEIRA WilliamldquoTeorias das ideias inatismo e teoria da percepccedilatildeo em Descartesrdquo

Cadernos Espinosanos Satildeo Paulo Grupo de Estudos Espinosanos Ndeg 35 pp 487-515

Jul-Dez 2016

FECHAMENTO EPISTEcircMICO

Steven Luper1

A maioria de noacutes pensa que pode seguramente aumentar a sua base de conhecimento

aceitando coisas que satildeo implicadas (ou logicamente implicadas) por aquilo que sabemos

Aproximadamente falando o conjunto de coisas que sabemos eacute fechado sob implicaccedilatildeo

(ou sob deduccedilatildeo ou implicaccedilatildeo loacutegica) de modo que sabemos que uma determinada

afirmaccedilatildeo eacute verdadeira reconhecendo e como resultado aceitando que ela se segue

daquilo que sabemos Isso natildeo quer dizer que o modo pelo qual usualmente aumentamos

o nosso conhecimento eacute simplesmente atraveacutes do reconhecimento e aceitaccedilatildeo daquilo que

se segue daquilo que jaacute sabiacuteamos Eacute claro que haacute muito mais coisas envolvidas Por

exemplo coletamos dados e construiacutemos explicaccedilotildees para eles e sob circunstacircncias

apropriadas aprendemos com os outros Mais precisamente quando alegamos saber que

alguma proposiccedilatildeo eacute verdadeira essa proacutepria alegaccedilatildeo estaacute sujeita ao erro geralmente

ver aquilo que se segue de uma alegaccedilatildeo de conhecimento nos permite reavaliar e ateacute

mesmo abandonar a nossa alegaccedilatildeo de conhecimento ao inveacutes de concluir que sabemos

aquilo se segue dela Contudo parece razoaacutevel pensar que se de fato sabemos que

alguma proposiccedilatildeo eacute verdadeira entatildeo estamos em posiccedilatildeo de saber que as coisas que se

seguem dessa proposiccedilatildeo satildeo tambeacutem verdadeiras Todavia alguns teoacutericos tecircm negado

que o conhecimento seja fechado sob implicaccedilatildeo loacutegica Os argumentos contra o

fechamento incluem os seguintes

O argumento da anaacutelise do conhecimento dada a anaacutelise correta o

conhecimento natildeo eacute fechado Por exemplo se a anaacutelise correta inclui uma

condiccedilatildeo de rastreamento entatildeo o fechamento falha

1 Traduzido por Luiz H M Segundo Doutorando em epistemologia (UFSC) Departamento de Filosofia (UFOP) email luizhelveciosegundogmailcom Artigo originalmente publicado em LUPER S ldquoEpistemic Closurerdquo The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2016 Edition) Edward N Zalta (ed) Disponiacutevel em httpsplatostanfordeduarchivesspr2016entriesclosure-epistemic

231

O argumento do natildeo-fechamento dos modos de conhecimento uma vez que

os modos de se obter preservar e aumentar o conhecimento tal como a

percepccedilatildeo o testemunho a demonstraccedilatildeo a memoacuteria a indicaccedilatildeo e a

informaccedilatildeo natildeo satildeo individualmente fechados tambeacutem natildeo eacute o

conhecimento

O argumento das proposiccedilotildees incognosciacuteveis (ou natildeo facilmente

conheciacuteveis) certas proposiccedilotildees natildeo podem ser conhecidas (sem meios

especiais) dado o fechamento elas poderiam ser conhecidas (sem

capacidades especiais) a partir da deduccedilatildeo de afirmaccedilotildees mundanas que

sabemos de modo que o conhecimento natildeo eacute fechado

O argumento do ceticismo o ceticismo eacute falso mas seria verdadeiro se o

conhecimento fosse fechado de modo que o conhecimento natildeo eacute fechado

Embora os proponentes do fechamento tenham respostas para esses argumentos eles

tambeacutem argumentam mais ou menos ao estilo de G E Moore (1959) que o fechamento

eacute um dado firme ndash eacute bastante oacutebvio para excluir qualquer compreensatildeo do conhecimento

ou de noccedilotildees correlatas que minem o fechamento

Uma ideia bastante proacutexima eacute a de que nos eacute racional (justificaacutevel) acreditar em tudo

aquilo que se siga daquilo que nos eacute racional acreditar Essa ideia estaacute intimamente

relacionada agrave tese de que o conhecimento eacute fechado uma vez que de acordo com muitos

teoacutericos saber que p implica acreditar justificadamente que p Se o conhecimento implica

a justificaccedilatildeo a falha no fechamento dessa uacuteltima poderia conduzir agrave falha no fechamento

daquele

1 O Fechamento do Conhecimento

O que significa precisamente dizer que o conhecimento eacute fechado sob implicaccedilatildeo Uma

resposta eacute que o seguinte princiacutepio direto de fechamento do conhecimento sob implicaccedilatildeo

eacute verdadeiro

SP Se uma pessoa S sabe que p e p implica q entatildeo S sabe que p

A condicional envolvida no princiacutepio direto poderia ser a condicional

material a condicional subjuntiva ou a implicaccedilatildeo produzindo trecircs

possibilidades cada uma mais forte do que a outra

SP1 S sabe que p e p implica q somente se S sabe que q

SP2 Se S soubesse algo p que implicasse q S saberia que q

232

SP3 Eacute necessariamente o caso que S sabe que p e p implica q somente se S

sabe que q

Poreacutem cada uma das versotildees do princiacutepio direto eacute falsa uma vez que

podemos saber algo p mas natildeo ver que p implica q ou por alguma outra razatildeo natildeo

acreditar em q Uma vez que o conhecimento implica crenccedila (de acordo com quase todos

os teoacutericos) natildeo sabemos que q Uma preocupaccedilatildeo menos oacutebvia eacute que poderiacuteamos

raciocinar mal e vir a acreditar que p implica q Talvez pensemos que p implica q porque

pensamos que qualquer coisa implica qualquer coisa ou porque temos um formigamento

no dedatildeo do peacute Hawthorne (2005) levanta a possibilidade de que ao aprender que p

implica q S deixe de saber que p Ele tambeacutem nota que SP1 eacute defensaacutevel sob a suposiccedilatildeo

(desviante) de que um pensamento p eacute equivalente a outro q se p e q valem em todos

os mundos possiacuteveis Suponha que p implica q Entatildeo p eacute equivalente agrave conjunccedilatildeo de p

e q e assim o pensamento de que p eacute idecircntico ao de que p e q Por conseguinte ao saber

que p S sabe p e q Supondo que ao saber p e q S sabe que p e S sabe que q entatildeo

quando S sabe que p tambeacutem sabe que q como diz SP1

O princiacutepio direto precisa de qualificaccedilatildeo mas natildeo precisamos nos preocupar

com isso jaacute que tais qualificaccedilotildees apresentam-se naturalmente dada a ideia que estamos

tentando captar nomeadamente que podemos aumentar o nosso conhecimento atraveacutes

do reconhecimento e da aceitaccedilatildeo daquelas coisas que se seguem daquilo que sabemos

As qualificaccedilotildees introduzidas no seguinte princiacutepio (interpretado como uma condicional

material) parecem bastante naturais

K Se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que p implica q entatildeo

S sabe que q

Como nota Williamson (2000) a ideia de que podemos aumentar o nosso conhecimento

deduzindo a partir daquilo que sabemos apoia um princiacutepio de fechamento que eacute mais

forte do que K Eacute um princiacutepio que diz que sabemos coisas que acreditamos com base em

serem conjuntamente implicados por vaacuterios itens que sabemos separadamente Suponha

que eu saiba que Maria seja alta e que eacute canhota K natildeo nos autoriza a juntar esses dois

itens de conhecimentos de modo a saber que Maria eacute alta e eacute canhota Mas o seguinte

princiacutepio generalizado de fechamento cobre deduccedilotildees envolvendo itens conhecidos

separados

GK Se ao saber vaacuterias proposiccedilotildees S acredita que p porque S sabe que elas

implicam p entatildeo S sabe que p

233

Alguns teoacutericos distinguem entre agravequilo que chamam ldquofechamento de premissa uacutenicardquo

daquilo a que chamam ldquofechamento de muacuteltiplas premissasrdquo Tais teoacutericos negariam que

K capte o fechamento de ldquopremissa uacutenicardquo pois K diz que S sabe que q se S sabe que

duas coisas satildeo verdadeiras que p eacute verdadeira tanto quanto p implica q O fechamento

de ldquopremissa uacutenicardquo eacute geralmente formulado como se segue (seguindo Williamson 2002

e Hawthorne 2004)

SPK Se ao saber que p S acredita que q por deduzir competentemente q a

partir de p entatildeo S sabe que q

Estaacute longe de ser claro poreacutem que podemos deduzir competentemente q a partir de p

sem depender de qualquer conhecimento afora p Felizmente parece que nada depende

dessa possibilidade exceto talvez para aqueles que estejam interessados em se podemos

identificar algo que possa ser apropriadamente chamado de ldquoprinciacutepio de fechamento de

premissa uacutenicardquo

Os proponentes do fechamento poderiam aceitar tanto K quanto GK talvez

qualificados de modo natural (mas poderiam natildeo aceitar veja as questotildees sobre o

fechamento da justificaccedilatildeo na seccedilatildeo 6) Em contraste Fred Dretske e Robert Nozick

rejeitam K e GK Eles rejeitam qualquer princiacutepio de fechamento natildeo importa o quatildeo

restrito que garanta que saibamos que hipoacuteteses ceacuteticas (eg de que sou um ceacuterebro numa

cuba) sejam falsas com base em alegaccedilotildees mundanas de conhecimento (eg que natildeo estou

numa cuba) Aleacutem de rejeitarem K e GK eles negam o fechamento do conhecimento na

instanciaccedilatildeo e na simplificaccedilatildeo embora natildeo na equivalecircncia (Nozick 1981 227-229)

KI Se ao saber que todas as coisas satildeo F S acreditar que uma coisa particular

a eacute F porque S sabe que isso eacute implicado pelo fato de que todas as coisas satildeo

F entatildeo S sabe que a eacute F

KS Se ao saber que p e q S acredita que q porque S sabe que q eacute implicado

por p e q entatildeo S sabe que q

KE Se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que q eacute equivalente a

p entatildeo S sabe que q

Voltemo-nos para seus argumentos

2 O Argumento a partir da Anaacutelise do Conhecimento

234

O argumento a partir da anaacutelise do conhecimento diz que a abordagem correta do

conhecimento leva agrave falha de K Podemos distinguir duas versotildees De acordo com a

primeira K falha porque o conhecimento requer rastreamento de crenccedila De acordo com

a segunda qualquer abordagem das alternativas relevantes tal com as de Dretske e

Nozick leva agrave falha de K De acordo com Dretske (2003 112-3 2005 19) qualquer

abordagem das alternativas relevantes conduz ldquonaturalmenterdquo embora ldquonatildeo

inevitavelmenterdquo agrave falha de K

21 Falhas de Fechamento devido agrave Condiccedilatildeo de Rastreamento ao Conhecimento

Em linhas gerais a primeira versatildeo envolve a defesa da anaacutelise rastreadora

do conhecimento de Dretske ou de Nozick e em seguida mostra-se que ela mina K

(versotildees da abordagem rastreadora satildeo tambeacutem defendidas por Becker 2009 Murphy e

Black 2007 e Roush 2005 esse uacuteltimo modifica a abordagem rastreadora de modo a

preservar o fechamento para criacuteticas veja Brueckner 2012) Podemos pular a defesa que

consiste amplamente em mostrar que o rastreamento se sai melhor em lidar com as nossas

intuiccedilotildees epistecircmicas em casos de suposto conhecimento do que seus competidores

Podemos tambeacutem simplificar as anaacutelises De acordo com Nozick saber que p eacute grosso

modo (ignorando sua amplamente desacreditada quarta condiccedilatildeo criticada eg em

Luper 1984 e 2009 e em Kripke 2011) ter uma crenccedila de que p que satisfaccedila a seguinte

condiccedilatildeo (ldquoBTrdquo para crenccedila rastreadora [tracking belief])

BT fosse p falsa S natildeo acreditaria que p

Isto eacute nos mundos mais proacuteximos ao atual nos quais natildeo-p eacute o caso S natildeo acredita que

p O mundo atual eacute a situaccedilatildeo em que algueacutem se encontra quando adquire a crenccedila de que

p BT exige que em todos os mundos natildeo-p proacuteximos S natildeo acredite que p (A semacircntica

das condicionais subjuntivas eacute clarificada em Stalnaker 1968 Lewis 1973 e modificada

por Nozick 1981 nota 8) De acordo com a perspectiva de Dretske saber que p eacute

aproximadamente uma questatildeo de ter uma razatildeo R para acreditar que p que satisfaz a

seguinte condiccedilatildeo (ldquoCRrdquo para razatildeo conclusiva)

CR fosse p falsa R natildeo seria o caso

Isto eacute nos mundos proacuteximos ao atual em que natildeo-p eacute o caso R natildeo eacute o caso Quando R

satisfaz essa condiccedilatildeo Dretske diz que R eacute uma razatildeo conclusiva para acreditar que p

Dretske observa (2003 n 9 2005 n 4) que a sua perspectiva natildeo enfrenta

uma das objeccedilotildees que Saul Kripke (2011 162-224 Dretske tinha acesso a um rascunho

235

que circulava anterior agrave sua publicaccedilatildeo) apresenta contra a abordagem de Nozick

Suponha que eu esteja dirigindo por uma vizinhanccedila na qual desconhecido a mim

celeiros de papel machecirc estatildeo espalhados e que eu vejo que o objeto agrave minha frente eacute um

celeiro Tambeacutem noto que eacute vermelho Porque tenho perceptos diante de mim que satildeo

como celeiros acredito que celeiro o objeto diante de mim eacute um celeiro (comum) (o

exemplo eacute atribuiacutedo a Ginet em Goldman 1976) As nossas intuiccedilotildees sugerem que natildeo sei

que celeiro E assim dizem BT e CR Mas suponha agora que a vizinhanccedila natildeo tenha

quaisquer celeiros falsos vermelhos apenas os azuis satildeo falsos (Chamemos de caso do

celeiro vermelho) Assim de acordo com a perspectiva de Nozick posso rastrear o fato

de que haacute um celeiro vermelho uma vez que eu natildeo acreditaria que houvesse um celeiro

vermelho (via perceptos de celeiros vermelhos) caso natildeo houvesse qualquer celeiro

vermelho muito embora eu natildeo possa rastrear o fato de que haacute um celeiro uma vez que

eu poderia acreditar que houvesse um celeiro (via perceptos de celeiros azuis) ainda que

natildeo houvesse qualquer celeiro Dretske disse que essa justaposiccedilatildeo na qual sei algo e

mesmo assim natildeo sei uma segunda coisa que estaacute intimamente relacionada agrave primeira

(haver um celeiro vermelho o que sei implica haver um celeiro o que natildeo sei) ldquoeacute um

embaraccedilordquo e quanto a isso pensava ele a sua perspectiva eacute superior agrave de Nozick Seja

R a minha base para a crenccedila o fato de que tenho perceptos de celeiros vermelhos Se

natildeo houvesse qualquer celeiro R natildeo seria o caso de modo que sei que haacute um celeiro

Aleacutem disso se natildeo houvesse qualquer celeiro vermelho R ainda natildeo seria o caso de

modo que sei que haacute um celeiro vermelho Desse modo Dretske consegue evitar a

justaposiccedilatildeo objetaacutevel Contudo eacute surpreendente que Drestske cite o caso do celeiro

vermelho como base para se preferir a sua versatildeo do rastreamento em detrimento da de

Nozick Primeiro o proacuteprio Dretske aceitou justaposiccedilotildees de conhecimento e ignoracircncia

que satildeo pelo menos tatildeo bizarras quanto como veremos Segundo Nozick evita a proacutepria

justaposiccedilatildeo discutida por Dretske ajustando sua abordagem de modo a fazer referecircncia

aos meacutetodos pelos quais viemos a acreditar nas coisas (Hawthorne 2005) De acordo com

uma versatildeo mais polida Nozick disse que saber que p eacute grosso modo ter uma crenccedila de

que p obtida atraveacutes de um meacutetodo M que satisfaz a seguinte condiccedilatildeo (ldquoBMTrdquo para

rastreamento do meacutetodo da crenccedila)

BMT fosse p falsa S natildeo acreditaria que p via M

Se natildeo houvesse qualquer celeiro vermelho eu natildeo acreditaria nem que houvesse um

celeiro e nem que houvesse um celeiro vermelho via perceptos de celeiros vermelhos

236

Terceiro o caso do celeiro vermelho eacute um caso em que as intuiccedilotildees variam

Natildeo eacute oacutebvio que eu saiba haver um celeiro vermelho nas circunstacircncias que Dretske

esboccedila que diferem das do exemplo original de Ginet (em que consigo saber celeiro)

apenas nas estipulaccedilotildees de que vejo um celeiro vermelho e que nenhuns dos simulacros

de celeiro satildeo vermelhos Aleacutem do mais ambas as abordagens de Dretske e Nozick tecircm

a estranha implicaccedilatildeo de que sei que haacute um celeiro caso eu baseie a minha crenccedila nos

perceptos de celeiro vermelho e que natildeo sei quando ao baseaacute-la em meus perceptos de

celeiro ignoro a cor do celeiro Presumivelmente a cor do celeiro natildeo eacute relevante para

que ele seja um celeiro

As abordagens rastreadoras permitem contraexemplos a K A ilustraccedilatildeo mais

conhecida de Dretske eacute o caso da zebra suponha que vocecirc estaacute num zooloacutegico em

condiccedilotildees comuns de fronte a uma jaula marcada ldquozebrardquo o animal na jaula eacute uma zebra

e vocecirc acredita que zeb o animal na jaula eacute uma zebra pois vocecirc tem perceptos visuais

de uma zebre na jaula Ocorre a vocecirc que zeb implica natildeo-mula natildeo eacute o caso que o animal

na jaula seja uma mula disfarccedilada ao inveacutes de uma zebra Vocecirc entatildeo acredita que natildeo-

mula deduzindo-a de zeb Vocecirc sabe isso Vocecirc sabe zeb uma vez que se zeb fosse falsa

vocecirc natildeo teria perceptos visuais de uma zebre na jaula ao inveacutes vocecirc teria perceptos de

uma jaula vazia ou perceptos de um oricteacuteropo ou algo parecido Vocecirc sabe que natildeo-

mula Se natildeo-mula fosse falsa vocecirc ainda teria perceptos visuais de uma zebre na jaula

(e vocecirc ainda acreditaria que zeb e ainda acreditaria que natildeo-mula deduzindo-a de zeb)

Assim vocecirc natildeo sabe que natildeo-mula Mas note que temos

a Vocecirc sabe que zeb

b Vocecirc acredita que natildeo-mula por reconhecer que zeb implica natildeo-mula

c Vocecirc natildeo sabe que natildeo-mula

Por conta de (a)-(c) temos um contraexemplo a K que implica que se (a) vocecirc sabe que

zeb e (b) vocecirc acredita que natildeo-mula por reconhecer que zeb implica natildeo-mula entatildeo

vocecirc sabe natildeo-mula contraacuterio a (c)

Tendo rejeitado K e negado que sabemos coisas como natildeo-mula Nozick

tambeacutem negou o fechamento atraveacutes da simplificaccedilatildeo Pois se alguma proposiccedilatildeo p

implica outra proposiccedilatildeo q entatildeo p eacute equivalente agrave conjunccedilatildeo p amp q de acordo com isso

dado o fechamento atraveacutes da equivalecircncia que Nozick aceita se sabemos que zeb

podemos saber a conjunccedilatildeo zeb amp natildeo-mula mas se tambeacutem aceitamos o fechamento

atraveacutes da simplificaccedilatildeo seremos capazes de saber que natildeo-mula

237

Em resposta agrave primeira versatildeo do argumento da anaacutelise do conhecimento

alguns teoacutericos (eg Luper 1984 BonJour 1987 DeRose 1995) argumentaram que K eacute

tatildeo plausiacutevel (o que Dretske reconheceu em 2005 18) que soacute deveria ser abandonado

frente a razotildees fortes muito embora natildeo haja tais razotildees

A fim de mostrar que natildeo haacute fortes razotildees para abandonar K os teoacutericos tecircm

fornecido abordagens do conhecimento que (a) lidam com as nossas intuiccedilotildees pelo menos

tatildeo bem quanto as anaacutelises rastreadoras e ainda (b) subscrevem K Uma maneira de ser

fazer isso eacute enfraquecer as anaacutelises rastreadoras de modo que saibamos as coisas que

rastreamos ou que acreditamos porque sabemos que se seguem de coisas que rastreamos

(esse tipo de opccedilatildeo foi usada contra Nozick por vaacuterios teoacutericos Roush a defende em 2005

41-51) Outra abordagem eacute a que se segue Saber que p eacute grosso modo uma questatildeo de

ter uma razatildeo R para acreditar que p que satisfaz a seguinte condiccedilatildeo (ldquoSIrdquo para indicaccedilatildeo

segura [safe indication])

SI se R fosse o caso p seria o caso

SI requer que p seja verdadeira nos mundos R proacuteximos Quando R satisfaz essa

condiccedilatildeo dizemos que R eacute um indicador seguro de que p eacute verdadeiro (Versotildees

diferentes da condiccedilatildeo de seguranccedila tecircm sido defendidas veja por exemplo Luper 1984

Sosa 1999 2003 2007 2009 Williamson 2000 e Pritchard 2007) SI eacute a contraposiccedilao

de CR embora a contraposiccedilatildeo de uma condicional subjuntiva natildeo seja equivalente agrave

original

Suponhamos sem um argumento que SI daacute conta dos casos de conhecimento

e ignoracircncia assim como intuitivamente CR daacute Por que dizer que SI subscreve K O

ponto principal eacute que se R indica seguramente que p eacute verdadeira entatildeo indica

seguramente que q eacute verdadeira quando q eacute alguma das consequecircncias de p Posto de

outro modo o ponto eacute que o seguinte raciociacutenio eacute vaacutelido (sendo uma instacircncia do

fortalecimento da consequecircncia)

1 Se R fosse o caso p seria verdadeiro (ie R indica seguramente que p)

2 p implica q

3 Assim se R fosse o caso q seria verdadeiro (ie R indica seguramente que

q)

Assim se uma pessoa S sabe que p com base em R S estaacute em posiccedilatildeo de saber que q com

base em R quando q se segue de p S estaacute tambeacutem em posiccedilatildeo de saber que q com base

na conjunccedilatildeo de R junto do fato de que p implica q Assim se S sabe que p com base em

238

R e acredita em q com base em R (em que p repousa) junto do fato que p implica q entatildeo

S sabe que q Novamente se

(a) S sabe que p (com base em R) e

(b) S acredita que q por reconhecer que p implica q (de modo que S acredita

que q com base em R em que p repousa junto do fato de que p implica q)

entatildeo

(c) S sabe que q (com base em R e o fato de que p implica q) como K requer

Para ilustrar usemos o exemplo de Dretske Tendo baseado a sua crenccedila de

que zeb em seus perceptos de zebra na jaula vocecirc sabe zeb de acordo com SI

dadas suas circunstacircncias tivesse vocecirc outros perceptos zeb seria verdadeira

Aleacutem do mais quando vocecirc acredita que natildeo-mula por primeiro acreditar que

zeb com base nos seus perceptos de zebra na jaula e entatildeo deduz natildeo-mula de

zeb vocecirc sabe natildeo-mula de acordo com SI se vocecirc tivesse esses perceptos

natildeo apenas zeb seria o caso como tambeacutem sua consequecircncia natildeo-mula

Desviemo-nos um pouco a fim de notar que algumas versotildees da abordagem

da seguranccedila natildeo preservam o fechamento (Murphy 2005 apresenta essa objeccedilatildeo contra

a versatildeo de Sosa da abordagem da seguranccedila) Por exemplo ateacute certo ponto Ernest Sosa

discutiu a seguinte versatildeo da condiccedilatildeo

Se S acreditasse que p p seria verdadeira

Isso eacute exigir que a crenccedila de uma pessoa indique seguramente a sua verdade Contudo eacute

inteiramente possiacutevel estar numa situaccedilatildeo em que a crenccedila indique seguramente a sua

verdade muito embora a condiccedilatildeo exigida natildeo seja satisfeita para algo que se siga de tal

crenccedila O ponto pode ser ilustrado atraveacutes de uma versatildeo do caso do celeiro vermelho

Suponha que (com base em meus perceptos de celeiro vermelho) acredito que celeiro

vermelho haacute um celeiro vermelho em minha frente Suponha tambeacutem que haacute de fato um

celeiro vermelho em minha frente Contudo (vocecirc adivinhou) muitos celeiros falsos foram

espalhados pela vizinhanccedila todos eles azuis e natildeo vermelhos Nos mundos proacuteximos nos

quais acredito que celeiro vermelho estou correto e portanto satisfaccedilo a condiccedilatildeo

exigida para saber celeiro vermelho que eacute a de minha crenccedila em celeiro vermelho indicar

seguramente a sua proacutepria verdade Ora celeiro vermelho implica celeiro haacute um celeiro

em minha frente Mas de acordo com a perspectiva proposta a condiccedilatildeo exigida para

saber celeiro natildeo eacute que a minha crenccedila de que celeiro vermelho indique seguramente que

celeiro eacute o caso O que eacute exigido ao inveacutes eacute que a minha crenccedila de que celeiro indique

seguramente sua proacutepria verdade Supondo que eu acreditasse que celeiro caso eu visse

239

um dos celeiros azuis falsos entatildeo a minha crenccedila de que celeiro natildeo indica seguramente

sua verdade

Retomando K falha se o conhecimento implica CR mas natildeo se o

conhecimento implica SI mas pode natildeo ser possiacutevel subscrever K meramente por

substituir CR por SI uma vez que alguma outra condiccedilatildeo para o conhecimento poderia

bloquear o fechamento Podemos subscrever o fechamento se supusermos que acreditar

que p em bases ldquosegurasrdquo eacute suficiente para saber que p mas essa suposiccedilatildeo eacute duvidosa

Do modo como entendemos a seguranccedila podemos acreditar nas coisas com bases seguras

sem as saber Um exemplo oacutebvio eacute qualquer verdade necessaacuteria porque elas satildeo o caso

em todos os mundos possiacuteveis podemos acreditar seguramente nelas por qualquer razatildeo

Como outro exemplo lembre-se do caso de celeiro vermelho discutido anteriormente a

despeito dos muitos celeiros azuis falsos na vizinhanccedila os meus perceptos de celeiro

vermelho satildeo indicadores seguros de que o objeto em minha frente eacute um celeiro e que eacute

um celeiro vermelho de modo que nenhuma justaposiccedilatildeo objetaacutevel (tal como sei que haacute

um celeiro vermelho mas natildeo sei que haacute um celeiro) ocorre embora alguns teoacutericos

insistiratildeo que nas circunstacircncias delineadas natildeo sei nem que o objeto eacute um celeiro nem

que eacute um celeiro vermelho

22 Falhas do Fechamento de acordo com a Abordagem das Alternativas Relevantes

A segunda versatildeo do argumento a partir da anaacutelise do conhecimento diz que

qualquer perspectiva das alternativas relevantes natildeo apenas as abordagens rastreadoras

estaacute em tensatildeo com K Uma anaacutelise eacute uma abordagem das alternativas relevantes quando

satisfaz duas condiccedilotildees Primeiro produz uma compreensatildeo apropriada de ldquoalternativa

relevanterdquo A abordagem de Dretske se qualifica assim uma vez que ela nos permite dizer

que uma alternativa A a p eacute relevante se e somente se

CRA fosse p falsa A poderia ser o caso

De acordo com a segunda condiccedilatildeo a anaacutelise tem de dizer que saber que p requer excluir

todas as alternativas relevantes a p mas natildeo todas as alternativas a p A abordagem de

Dretske se qualifica como tal novamente Ele diz que uma alternativa A eacute excluiacuteda com

base em R se e somente se a seguinte condiccedilatildeo eacute satisfeita

CRR se A fosse o caso R natildeo seria o caso

E de acordo com a abordagem de Dretske uma alternativa A tem de ser excluiacuteda se e

somente se A satisfaz CRA

240

Assim a abordagem rastreadora eacute uma abordagem das alternativas relevantes

Mas por que dizer que as abordagens das alternativas relevantes ao conhecimento estatildeo

em tensatildeo com K Diremos isso se como Dretske aceitarmos o seguinte princiacutepio

crucial a negaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo p eacute automaticamente uma alternativa relevante a p

(natildeo importa o quatildeo bizarra ou remota natildeo-p possa ser) embora geralmente natildeo seja uma

alternativa relevante agraves coisas que implicam p Para um teoacuterico das alternativas

relevantes esse princiacutepio sugere que podemos saber que p somente se pudermos excluir

natildeo-p mas podemos saber coisas que implicam p ainda que natildeo possamos excluir natildeo-p

o que abre a possibilidade de haver casos que violem K Pois embora a nossa

incapacidade de excluir natildeo-p nos impeccedila de saber que p ela natildeo nos impede de saber

coisas que impliquem p E jaacute temos um exemplo pronto em matildeos o caso da zebra Talvez

vocecirc natildeo possa excluir mula mas isso lhe impede de saber que natildeo-mula natildeo que saiba

zeb Esses pontos podem ser reformulados em termos da abordagem das razotildees

conclusivas Para Dretske a negaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo p eacute automaticamente uma

alternativa relevante uma vez que a condiccedilatildeo CRA eacute automaticamente satisfeita isto eacute

eacute vacuamente verdadeiro que

Fosse p falsa natildeo-p poderia ser o caso

Portanto mula eacute uma alternativa relevante a natildeo-mula Ademais vocecirc natildeo saberaacute natildeo-

mula uma vez que natildeo puder excluir mula vocecirc acredita que natildeo-mula com base em seus

perceptos de zebra na jaula mas ainda os teria caso mula fosse o caso contraacuterio a CRR

Contudo vocecirc sabe zeb a despeito de sua incapacidade de excluir mula pois fosse zeb

falsa vocecirc natildeo teria os perceptos de zebra na jaula

De acordo com a segunda versatildeo do argumento da anaacutelise do conhecimento

qualquer perspectiva das alternativas relevantes estaacute em tensatildeo com K O quatildeo persuasivo

eacute esse argumento Como reconheceu Dretske (2003) eacute de fato um ataque fraco a K uma

vez que algumas abordagens das alternativas relevantes satildeo completamente consistentes

com K Como exemplo temos apenas de adaptar a perspectiva da indicaccedilatildeo segura

tornando claro que ela eacute uma abordagem das alternativas relevantes (Luper 1984 1987c

2006)

A perspectiva da indicaccedilatildeo segura pode ser adaptada em dois passos

Primeiro dizemos que uma alternativa a p A eacute relevante se e somente se a seguinte

condiccedilatildeo eacute satisfeita

SRA Nas circunstacircncias de S A poderia ser o caso

241

Assim qualquer possibilidade que seja remota eacute automaticamente irrelevante falhando

SRA Segundo dizemos que A eacute excluiacuteda com base em R se e somente se a seguinte

condiccedilatildeo eacute satisfeita

SIR fosse R o caso A natildeo seria o caso

Esse modo de entender as alternativas relevantes manteacutem K O ponto central

eacute que se S sabe que p com base em R e eacute por isso capaz de excluir as alternativas

relevantes a p entatildeo S pode tambeacutem excluir as alternativas relevantes a q em que q eacute

algo implicado por p Se R natildeo fosse o caso as alternativas a q natildeo seriam tambeacutem

Aparentemente a abordagem das alternativas relevantes pode ser interpretada

de modo que apoie K tanto quanto de modo que natildeo apoie Assim Dretske natildeo estaacute na

melhor posiccedilatildeo ao dizer que a perspectiva das alternativas relevantes leva ldquonaturalmenterdquo

agrave falha do fechamento

23 Fechamento e Confiabilismo

De acordo com uma versatildeo do confiabilismo (defendida por Ramsey 1931 e

Armstrong 1973 dentre outros) algueacutem sabe que p se e somente se adquire (ou sustenta)

a crenccedila de que p atraveacutes de um meacutetodo confiaacutevel Estaacute o confiabilista comprometido

com K A resposta depende precisamente de como a noccedilatildeo relevante do confiabilismo eacute

entendida Se entendermos a confiabilidade como os teoacutericos do rastreamento entendem

rejeitaremos o fechamento Mas haacute outras versotildees do confiabilismo que sustentam K Por

exemplo a abordagem da indicaccedilatildeo segura eacute um tipo de confiabilismo Poderiacuteamos

tambeacutem dizer que uma crenccedila verdadeira de que p eacute confiavelmente formada se e

somente se for baseada num evento que geralmente ocorreria somente se p (ou uma

crenccedila do tipo p) fosse verdadeira Nesse sentido qualquer evento que indique

confiavelmente que p eacute verdadeira tambeacutem indicaraacute confiavelmente que as consequumlecircncias

de p satildeo verdadeiras

3 O Argumento do Natildeo-Fechamento dos Modos de Conhecimento

Dretske argumentou (2003 2005) que deveriacuteamos esperar que K falhe porque nenhum

dos modos de obter preservar e aumentar o conhecimento satildeo individualmente fechados

Dretske apresenta seu argumento na forma de uma pergunta retoacuterica ldquode que modo

242

algueacutem poderia fechar algo quando todos os modos de obtecirc-lo estendecirc-lo e preservaacute-lo

estatildeo em abertordquo (2003 113-4)

31 Modos de Conhecimento e Natildeo-Fechamento

Como exemplos de modos de obter sustentar e aumentar o conhecimento

Dretske sugeriu a percepccedilatildeo o testemunho a demonstraccedilatildeo a memoacuteria a indicaccedilatildeo e a

informaccedilatildeo Dizer que esses itens natildeo satildeo individualmente fechados eacute dizer que os

seguintes princiacutepios de fechamento para modos com ou sem qualificaccedilotildees parenteacuteticas

satildeo falsos

PC Se S percebe que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica q

entatildeo S percebe q

TC Se S recebeu o testemunho de que p e (S acredita que q porque S sabe

que) p implica q entatildeo S recebeu o testemunho de que q

OC Se S demonstrou que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica

q entatildeo S demonstrou que q

RC Se S se lembra que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica

q entatildeo S se lembra de q

IC Se R indica que p e (S acredita que q porque S sabe que) p implica q

entatildeo R indica que q

NC Se R carrega a informaccedilatildeo de que p e (S acredita que q porque S sabe

que) p implica q entatildeo R carrega a informaccedilatildeo de que q

E de acordo com Dretske cada um desses princiacutepios eacute falso Podemos perceber que

temos matildeos por exemplo sem perceber que haacute coisas fiacutesicas

32 Respostas a Dretske

Houve vaacuterias reacuteplicas ao argumento de Dretske contra o fechamento com base

nos modos de conhecimento

Primeiro a falha de um ou mais princiacutepios de fechamento para modos natildeo

implica que K falhe O que importa eacute se os vaacuterios modos de conhecimento discutidos por

Dretske nos deixam em posiccedilatildeo de saber as consequecircncias das coisas que sabemos Em

outras palavras a questatildeo eacute se o seguinte princiacutepio eacute verdadeiro

243

T Se ao saber que p via percepccedilatildeo testemunho demonstraccedilatildeo memoacuteria ou

algo que indique ou carregue a informaccedilatildeo de que p S acredita que q porque

p implica q entatildeo S sabe que q

Segundo os teoacutericos tecircm defendido alguns princiacutepios de fechamento para

modos tais como PC IC e NC Dretske rejeita esses trecircs princiacutepios porque pensa que a

percepccedilatildeo a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo satildeo melhores analisados em termos de razotildees

conclusivas o que mina o fechamento Mas os trecircs princiacutepios (ou algo muito proacuteximos

deles) podem ser defendidos se analisarmos a percepccedilatildeo a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo em

termos de indicaccedilatildeo segura Considere IC e NC Ambos satildeo verdadeiros se analisarmos

a indicaccedilatildeo e a informaccedilatildeo como se segue

R indica p sse p seria verdadeiro se R fosse o caso

R carrega a informaccedilatildeo de que p sse p seria verdadeiro se R fosse o caso

Uma versatildeo de PC pode ser defendida se fizermos uso da noccedilatildeo de percepccedilatildeo do proacuteprio

Dretske (1969) Considere um cientista que estuda o comportamento de eleacutetrons atraveacutes

da observaccedilatildeo das bolhas que eles deixam para traacutes numa cacircmara de nuvens Os eleacutetrons

em si satildeo invisiacuteveis mas o cientista pode perceber que os eleacutetrons (invisiacuteveis) estatildeo se

movendo de certos modos por perceber que as bolhas (visiacuteveis) deixadas para traacutes estatildeo

dispostas de maneiras especiacuteficas O que percebemos diretamente nos coloca em posiccedilatildeo

de perceber vaacuterias coisas indiretamente Suponha pois que quando percebemos que p

direta ou indiretamente e isso nos causa a crenccedila de que q quando p implica q somos

deixados numa posiccedilatildeo de perceber q indiretamente Assim estamos corretos ao aceitar

alguma versatildeo de PC como por exemplo

SPC Se S percebe que p e isso causa em S a crenccedila de que q entatildeo S percebe

que q

4 O Argumento das Proposiccedilotildees Natildeo (Facilmente) Conheciacuteveis

Outro argumento antifechamento eacute o de que haacute alguns tipos de proposiccedilotildees que natildeo

sabemos a menos que tenhamos capacidades extraordinaacuterias embora essas proposiccedilotildees

sejam implicadas por afirmaccedilotildees mundanas cuja verdade sabemos Uma vez que isso seria

impossiacutevel caso K estivesse correto K tem de ser falso A mesma dificuldade eacute agraves vezes

discutida sob o roacutetulo de problema do conhecimento faacutecil uma vez que alguns teoacutericos

(Cohen 2002) acreditam que certas coisas satildeo difiacuteceis de conhecer no sentido de que natildeo

podem ser conhecidas por deduccedilatildeo a partir de conhecimento banal O argumento tem

244

diferentes versotildees dependendo de que proposiccedilotildees dizemos serem difiacuteceis de conhecer

De acordo com Dretske (e talvez Nozick) natildeo podemos saber facilmente que proposiccedilotildees

restritivas ou proposiccedilotildees de grande porte satildeo verdadeiras Essas proposiccedilotildees se

assemelham agraves proposiccedilotildees que Moore (1959) considerou verdadeiras com certeza e que

Wittgenstein (1969) declarou serem incognosciacuteveis (mas Wittgenstein as considerou

incognosciacuteveis com base nas duacutebias razotildees de que elas tecircm de ser verdadeiras caso

tenhamos de evitar duacutevidas) Outra possibilidade eacute que natildeo podemos facilmente saber

proposiccedilotildees loteacutericas Um caso especial do argumento das proposiccedilotildees incognosciacuteveis

comeccedila com a alegaccedilatildeo de que natildeo podemos saber a falsidade de hipoacuteteses ceacuteticas

Consideraremos essa terceira perspectiva na proacutexima seccedilatildeo

41 O Argumento das Proposiccedilotildees Restritivas

Dretske natildeo delineou claramente a classe das proposiccedilotildees a que chamou

ldquorestritivasrdquo (em 2003) ou ldquode grande porterdquo (em 2005) Alguns dos exemplos fornecidos

por ele satildeo ldquoHaacute um passadordquo ldquoHaacute objetos fiacutesicosrdquo e ldquoNatildeo estou sendo tapeado por uma

ilusatildeo engenhosardquo Ele parecia pensar que essas proposiccedilotildees tecircm uma propriedade a que

podemos chamar ldquoesquividaderdquo em que p eacute esquiva para mim se e somente se a falsidade

de p natildeo mudaria minhas experiecircncias Mas ser restritivo natildeo coincide com ser esquivo

Se natildeo houvesse objetos fiacutesicos as minhas experiecircncias seriam dramaticamente alteradas

uma vez que eu natildeo existiria Assim algumas proposiccedilotildees restritivas natildeo satildeo esquivas Eacute

difiacutecil dizer poreacutem se todas as afirmaccedilotildees esquivas satildeo restritivas por causa da

maleabilidade do termo ldquorestritivordquo Natildeo-mula eacute esquiva mas seraacute restritiva

Natildeo podemos saber proposiccedilotildees restritivas Se natildeo e se sabemos coisas que

as implicam Drestke pensou tivesse apoio adicional para a sua abordagem das razotildees

conclusivas supondo como ele fez que a sua abordagem exclui o conhecimento de

proposiccedilotildees restritivas (embora permita o conhecimento de coisas que as implicam)

Contudo essa suposiccedilatildeo eacute falsa (Hawthorne 2005 Luper 2006) Temos razatildeo conclusiva

para acreditar em algumas proposiccedilotildees restritivas tal como a de que haacute objetos fiacutesicos

Contudo Drestke poderia abandonar a noccedilatildeo de proposiccedilatildeo restritiva em favor da noccedilatildeo

de proposiccedilatildeo esquiva e citar em favor de sua abordagem das razotildees conclusivas e contra

K os fatos de que natildeo sabemos afirmaccedilotildees esquivas mas que podemos saber coisas que

as impliquem

245

A fim de excluir o conhecimento de proposiccedilotildees restritivasesquivas Dretske

ofereceu dois tipos de argumento aos quais podemos chamar o argumento da percepccedilatildeo

e o argumento da pseudocircularidade

O argumento da percepccedilatildeo comeccedila com as afirmaccedilotildees de que (a) natildeo

percebemos que afirmaccedilotildees restritivasesquivas satildeo o caso e (b) que natildeo sabemos via

percepccedilatildeo que afirmaccedilotildees restritivasesquivas satildeo o caso Uma vez que eacute difiacutecil ver como

de que modo mais poderiacuteamos saber proposiccedilotildees restritivasesquivas (a) e (b) satildeo boas

bases para se concluir que simplesmente natildeo sabemos que elas satildeo o caso

Sem duacutevida (a) e (b) tecircm uma plausibilidade consideraacutevel Natildeo obstante satildeo

controversas Para explicar a verdade de (a) e (b) Dretske contou com sua anaacutelise da

percepccedilatildeo baseada nas razotildees conclusivas Os seus criacuteticos podem citar a abordagem da

indicaccedilatildeo segura da percepccedilatildeo como base para a rejeiccedilatildeo de (a) e (b) Luper (2006) por

exemplo argumentou contra ambas principalmente com base na razatildeo de que podemos

indiretamente perceber e saber algumas afirmaccedilotildees esquivas (tal como natildeo-mula) por

perceber diretamente afirmaccedilotildees (como zeb) que as implicam

Dretske sugeriu outra razatildeo par excluir o conhecimento de afirmaccedilotildees

restritivasesquivas Ele pensa que podemos saber fatos banais (por ex tomamos cafeacute da

manhatilde) sem saber as afirmaccedilotildees restritivasesquivas implicadas por eles (por exo

passado eacute real) na medida em que tais afirmaccedilotildees restritivasesquivas satildeo verdadeiras

mas natildeo podemos inverter as coisas e empregar as primeiras como base para saber as

uacuteltimas Suponha que consideremos saber alguma afirmaccedilatildeo q inferindo-a de outra

proposiccedilatildeo p que sabemos mas que o nosso conhecimento de p depende em primeiro

lugar da verdade de q Chamemos a isso raciociacutenio pseudocircular De acordo com

Dretske o raciociacutenio pseudocircular eacute inaceitaacutevel e contudo eacute precisamente nele que

nos apoiamos ao tentar saber afirmaccedilotildees restritivasesquivas tal como a negaccedilatildeo das

hipoacuteteses ceacuteticas deduzindo-as de alegaccedilotildees comuns de conhecimento que as implicam

natildeo saberemos essas uacuteltimas para iniacutecio de conversa a menos que as primeiras sejam

verdadeiras O problema que Dretske levantou aqui foi apresentado anteriormente pelos

criacuteticos das abordagens confiabilistas mais amplas do conhecimento como Richard

Fumerton (1995 178) Jonathan Vogel (2000) a discute sobe o roacutetulo de facilitaccedilatildeo

[bootstrapping] o procedimento empregado quando eg algueacutem que natildeo tem evidecircncia

inicial sobre a confiabilidade de um medidor de gasolina vem a acreditar que p em vaacuterias

ocasiotildees diferentes porque o medidor indica que p e atraveacutes disso sabe que p de acordo

com as abordagens confiabilistas do conhecimento e entatildeo infere indutivamente que o

246

medidor eacute confiaacutevel Atraveacutes da facilitaccedilatildeo podemos passar ndash ilegitimamente de acordo

com Vogel ndash de crenccedilas formadas por um processo confiaacutevel ao conhecimento de que

aquelas crenccedilas foram obtidas por um processo confiaacutevel Algueacutem pode saber que p

usando um medidor somente se o medidor for confiaacutevel por conseguinte concluir que

ele eacute confiaacutevel com base somente em seus registros envolve raciociacutenio pseudocircular

Haacute muito se tem objetado contra alegaccedilotildees de conhecimento cuja verdade

depende de um fato que natildeo tenha sido estabelecido especialmente se esse fato eacute

meramente tomado por garantido Eacute tambeacutem comum rejeitar qualquer alegaccedilatildeo de

conhecimento cujo pedigree cheire a circularidade Ambas as preocupaccedilotildees surgem

quando alegamos saber que uma proposiccedilatildeo q eacute verdadeira com base nela ser implicada

por uma segunda proposiccedilatildeo p muito embora a verdade de q tenha sido tomada por

garantida para se saber que p eacute verdadeira Muitos teoacutericos rejeitaratildeo o raciociacutenio

pseudocircular precisamente por essa razatildeo tradicional Dretske natildeo partilha da primeira

preocupaccedilatildeo mas levantou a segunda a do raciociacutenio pseudocircular Haacute contudo um

crescente nuacutemero de trabalhos que rompe com a tradiccedilatildeo e defende algumas formas de

circularidade epistecircmica (esse trabalho eacute fortemente criticado por sua vez na medida em

que estaacute aberto a versotildees das objeccedilotildees tradicionais) Max Black (1949) e Nelson

Goodman (1955) satildeo exemplos iniciais outros incluem Van Cleve (1979 e 2003) Luper

(2004) Papineau (1992) e Alston (1993) O proacuteprio Dretske rompe com a tradiccedilatildeo ao

escrever sob a flacircmula do ldquoexternismordquo Ele explicitamente disse que a maior parte se

natildeo todas as nossas alegaccedilotildees mundanas de conhecimento dependem de fatos que natildeo

estabelecemos Na verdade ele citou isso como uma virtude da sua teoria das razotildees

conclusivas Contudo nada na natureza da abordagem das razotildees conclusivas exclui o

nosso conhecimento das proposiccedilotildees restritivas usar o raciociacutenio pseudocircular o que

deixa suas recomendaccedilotildees misteriosas Um conjunto de experiecircncias de potes pode

constituir uma razatildeo conclusiva para se acreditar em pote um pote de biscoitos estaacute em

minha frente Se eu entatildeo acredito que objetos haacute objetos fiacutesicos porque eacute implicada por

pote tenho uma razatildeo conclusiva para acreditar em objetos uma proposiccedilatildeo restritiva

(Se objetos fosse falsa pote tambeacutem seria e eu natildeo teria as experiecircncias de pote)

Dretske poderia ter lanccedilado matildeo da perspectiva que a abordagem das razotildees

conclusivas exclui o conhecimento de afirmaccedilotildees esquivas como opostas agraves restritivas

atraveacutes do raciociacutenio pseudocircular pois carecemos de razotildees conclusivas para

afirmaccedilotildees esquivas natildeo importa que tipo de raciociacutenio empreguemos Mas isso natildeo

coloca a abordagem de Dretske em perigo no que diz respeito ao raciociacutenio

247

pseudocircular E mesmo essa posiccedilatildeo mais restrita pode ser desafiada (adaptando-se um

ataque contra Nozick em Shatz 1987) Poderiacuteamos insistir que a proacutepria p eacute uma razatildeo

conclusiva par se acreditar que q quando sabemos que p e que p implica q Afinal

supondo que p implique q se q fosse falsa tambeacutem o seria p De acordo com essa

estrateacutegia temos um argumento adicional a favor de K se S sabe que p (com base em

alguma razatildeo conclusiva R) e S acredita que q porque S sabe que p implica q S tem uma

razatildeo conclusiva para acreditar que q a saber p (ao inveacutes de R) e por conseguinte S

sabe que q

Outra duacutevida sobre conhecer afirmaccedilotildees esquivas dedutivamente via

afirmaccedilotildees mundanas eacute que essa manobra eacute ampliativa de maneira improacutepria Cohen diz

que saber que a mesa eacute vermelha natildeo nos coloca em posiccedilatildeo de saber ldquoNatildeo sou um ceacuterebro

numa cuba sendo enganado para acreditar que a mesa eacute vermelhardquo nem ldquonatildeo eacute o caso que

a mesa seja branca iluminada por luzes vermelhasrdquo (2002 313) Na transiccedilatildeo da primeira

agrave uacuteltima o nosso conhecimento parece ter sido ampliado de maneira improacutepria Essa

preocupaccedilatildeo pode ser devido pelo menos em grande parte agrave falta de precisatildeo na

aplicaccedilatildeo do acarretamento ou implicaccedilatildeo dedutiva (Klein 2004) Seja vermelho a

proposiccedilatildeo de que a mesa eacute vermelha branco a proposiccedilatildeo de que a mesa eacute branca e luz

a proposiccedilatildeo de que a mesa estaacute sendo iluminada por uma luz vermelha Vermelho nada

implica sobre as condiccedilotildees sob as quais a mesa eacute iluminada Em particular natildeo implica a

conjunccedilatildeo luz amp natildeo-vermelho O maacuteximo que podemos inferir eacute que a conjunccedilatildeo branco

amp luz eacute falsa e isso natildeo nos daacute qualquer informaccedilatildeo sobre as condiccedilotildees de iluminaccedilatildeo da

mesa Poder-se-ia facilmente inferir a falsidade da conjunccedilatildeo branco amp natildeo-luz

Nenhuma ampliaccedilatildeo da proposiccedilatildeo conhecida original vermelho veio agrave tona

42 O Argumento das Proposiccedilotildees Loteacutericas

Parece claro que natildeo sei que natildeo-ganho natildeo ganharei a loteria estadual esta

noite muito embora as chances de eu acertar o resultado sejam ridiculamente pequenas

Mas suponha que desejo profundamente possuir uma casa de campo de 10 milhotildees de

doacutelares na Riviera Francesa Parece plausiacutevel dizer que sei que natildeo-compro natildeo

comprarei essa casa de campo amanhatilde uma vez que careccedilo de recursos e sei a

condicional se ganho entatildeo compro ie amanhatilde comprarei a casa de campo se eu ganhar

na loteria estadual esta noite Da condicional e natildeo-compro segue-se que natildeo-ganho e

assim dado o fechamento saber a condicional e natildeo-compro me deixa em posiccedilatildeo de

248

saber natildeo-ganho Como esse raciociacutenio mostra a incognoscibilidade de afirmaccedilotildees como

natildeo-ganho mais a cognoscibilidade de afirmaccedilotildees como natildeo-compro nos deixa em

posiccedilatildeo de lanccedilar outro ataque ao fechamento

Seja uma proposiccedilatildeo loteacuterica uma proposiccedilatildeo assim como natildeo-ganho que

pode (pelo menos normalmente) ser apoiada em bases cuja probabilidade eacute bem alta mas

menor que 1 Vogel (1990 2004) e Hawthorne (2004 2005) notaram que um grande

nuacutemero de proposiccedilotildees que natildeo envolvem efetivamente loterias se assemelham a

proposiccedilotildees loteacutericas por possuiacuterem uma probabilidade proacutexima mas menor que 1 Tais

proposiccedilotildees poderiam ser descritas como loteriescas Os eventos mencionados numa

afirmaccedilatildeo podem ser subsumidos sob indefinidamente muitas classes de referecircncia e natildeo

haacute uma maneira precisa de se escolher qual dentre elas determina a probabilidade dos

eventos subsumidos Ao selecionar cuidadosamente alguma dessas classes podemos

geralmente encontrar modos de sugerir que a probabilidade de uma afirmaccedilatildeo eacute menor

do que 1 Considere por exemplo natildeo-roubado a proposiccedilatildeo de que o carro que vocecirc haacute

pouco estacionou de fronte agrave casa natildeo foi roubado selecionando-se a classe carros

vermelhos roubados de fronte agrave sua casa na uacuteltima hora podemos representar a

probabilidade estatiacutestica de natildeo-roubado como 1 Mas selecionando carros roubados nos

EUA podemos representar a probabilidade como significativamente menor que 1 Se

como as proposiccedilotildees loteacutericas as proposiccedilotildees loteriescas natildeo satildeo facilmente conhecidas

elas aumentam a pressatildeo contra o princiacutepio de fechamento uma vez que satildeo implicadas

por uma ampla gama de proposiccedilotildees mundanas que se tornam incognosciacuteveis dado o

fechamento

O quatildeo ameaccediladoras satildeo as proposiccedilotildees loteacutericas e loteriescas a K (e GK)

A questatildeo eacute um tanto controversa Haacute poreacutem muito a ser dito sobre tratar as proposiccedilotildees

loteacutericas por um lado e as proposiccedilotildees loteriescas de outro

Quanto agraves proposiccedilotildees loteacutericas vaacuterios teoacutericos sugerem que de fato natildeo

sabemos que satildeo verdadeiras porque sabecirc-las requer acreditar nelas atraveacutes de algo que

estabelece a sua verdade e noacutes (normalmente) natildeo podemos estabelecer a verdade de

proposiccedilotildees loteacutericas Haacute vaacuterios modos de entender o que se quer dizer por ldquoestabelecerrdquo

a verdade de uma afirmaccedilatildeo Dretske como vimos pensa que o conhecimento implica

ter uma razatildeo conclusiva para pensar como pensamos David Armstron (1973 187) disse

que o conhecimento implica ter um estado de crenccedila que ldquoassegurardquo a verdade Os

teoacutericos da indicaccedilatildeo segura sugerem que sabemos coisas quando acreditamos nelas por

conta de algo que seguramente indica a sua verdade E Harman e Sherman (2004 492)

249

dizem que o conhecimento requer acreditar em alguma coisa por conta de algo ldquoque

determina a verdade dessa crenccedilardquo De acordo com essas quatro perspectivas natildeo

sabemos que uma afirmaccedilatildeo eacute verdadeira quando as nossas uacutenicas bases para crer eacute que

ela eacute altamente provaacutevel Contudo a incognoscibilidade das proposiccedilotildees loteacutericas natildeo eacute

uma ameaccedila substancial ao fechamento uma vez que natildeo eacute oacutebvio que haja proposiccedilotildees

que sejam tanto conhecidas como verdadeiras quanto que impliquem proposiccedilotildees

loteacutericas Considere por exemplo a discutida anteriormente a condicional se ganhou

entatildeo comprou mais natildeo-comprou Se sei essas duas entatildeo por GK sei que natildeo-ganhou

uma proposiccedilatildeo loteacuterica Mas eacute bastante plausiacutevel negar que as sei Afinal eu poderia ter

ganhado na loteria

Considere agora as proposiccedilotildees loteriescas Natildeo podemos defender o

fechamento negando que sabemos alguma proposiccedilatildeo mundana que implica uma

proposiccedilatildeo loteriesca uma vez que eacute claro que sabemos muitas coisas que satildeo verdadeiras

que implicam proposiccedilotildees loteriescas Para defender o fechamento temos ao inveacutes de

dizer que as proposiccedilotildees loteriescas satildeo conheciacuteveis Elas diferem das proposiccedilotildees

loteacutericas genuiacutenas por poderem ser apoiadas em bases que estabelecem a sua verdade Se

baseio a minha crenccedila de que natildeo-roubado apenas em estatiacutesticas criminais natildeo saberei

se ela eacute verdadeira Mas posso ao inveacutes baseaacute-la em observaccedilotildees tais como a de ter

estacionado em minha garagem e assim por diante que sob certas circunstacircncias

estabelece que natildeo-roubado eacute o caso

5 O Argumento do Ceticismo

De acordo com Dretske e Nozick podemos dar conta do apelo do ceticismo e explicar

onde ele erra se aceitarmos as suas perspectivas do conhecimento e rejeitar K Rejeitar o

fechamento do conhecimento eacute portanto a chave para resolver o ceticismo Dada a

importacircncia do insight no problema do ceticismo eles pareciam ter uma boa razatildeo para

negar o fechamento Consideremos o caso que eles apresentam e alguns problemas com

sua aceitabilidade

51 O Ceticismo e o Anticeticismo

Dretske e Nozick se focaram numa forma de ceticismo que combina K com

a suposiccedilatildeo de que natildeo sabemos que as hipoacuteteses ceacuteticas satildeo falsas Por exemplo natildeo sei

250

que natildeo-biv natildeo sou um ceacuterebro numa cuba num planeta distante da terra sendo enganado

por cientistas alieniacutegenas Dada a forccedila dessas suposiccedilotildees os ceacuteticos argumentam que

natildeo sabemos todo o tipo de afirmaccedilotildees do senso comum que implicam a falsidade das

hipoacuteteses ceacuteticas Por exemplo uma vez que natildeo-biv eacute implicada por h estou em Santo

Antocircnio os ceacuteticos podem argumentar como se segue

(1) K eacute verdadeiro ie se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que

p implica q entatildeo S sabe que q

(2) h implica natildeo-biv

(3) Assim se sei que h e acredito que natildeo-biv porque sei que eacute implicada por

h entatildeo sei que natildeo-biv

(4) Mas natildeo sei que natildeo-biv

(5) Portanto natildeo sei que h

Dretske e Nozick estavam cientes de que esse argumento pode ser revertido

(1) K eacute verdadeiro ie se ao saber que p S acredita que q porque S sabe que

p implica q entatildeo S sabe que q

(2) h implica natildeo-biv

(3) Assim se sei que h e acredito que natildeo-biv porque sei que eacute implicada por

h entatildeo sei que natildeo-biv

(4) Sei que h

(5) Portanto sei que natildeo-biv

Virar o jogo contra o ceacutetico desse modo foi o que fez mais ou menos a estrateacutegia anticeacutetica

de Moore (1959) (Tendenciosamente alguns autores chamam agora tal estrateacutegia de

dogmatismo) Contudo ao inveacutes de K Moore pressupocircs a verdade de um princiacutepio mais

forte

PK Se ao saber que p S acredita que q porque sabe que q eacute implicada por S

saber que p entatildeo S sabe que q

Ao contraacuterio de K PK subscreve o famoso argumento de Moore Moore sabe que ele

estaacute de peacute ele saber que estaacute de peacute implica que ele natildeo estaacute sonhando portanto ele sabe

(ou pelo menos estaacute em posiccedilatildeo de saber) que natildeo estaacute sonhando

52 Rastreamento e Ceticismo

De acordo com Dretske e Nozick o ceticismo eacute atraente porque os ceacuteticos

estatildeo parcialmente corretos Eles estatildeo corretos quando dizem que natildeo sabemos que as

251

hipoacuteteses ceacuteticas natildeo satildeo o caso Pois natildeo rastreio natildeo-biv se biv fosse verdadeira eu

ainda teria as experiecircncias que me levam a acreditar que biv eacute falsa Algo similar pode

ser dito sobre o anticeticismo os anticeacuteticos estatildeo corretos quando dizem que sabemos

todo o tipo de afirmaccedilotildees de senso comum que implicam a falsidade de hipoacuteteses ceacuteticas

Tendo ido longe demais poreacutem os ceacuteticos recorrem a K e argumentam que uma vez que

eu saberia que natildeo-biv caso soubesse h entatildeo natildeo sei h no fim das contas ao passo que

os anticeacuteticos agrave la Moore recorrem a K a fim de concluir que sei que natildeo-biv Mas eacute

precisamente aqui que os ceacuteticos e os anticeacuteticos estatildeo igualmente errados pois K eacute falso

Considere a posiccedilatildeo do ceacutetico Tendo aceitado a perspectiva rastreadora ndash como fazem

ao negar que sabemos que as hipoacuteteses ceacuteticas satildeo falsas ndash os ceacuteticos natildeo podem apelar

para o princiacutepio de fechamento que eacute falso de acordo com a teoria rastreadora

Rastreamos (e portanto sabemos) a verdade de alegaccedilotildees comuns de conhecimento

embora natildeo rastreamos (ou sabemos) a verdade das coisas que se seguem delas tal como

a de que hipoacuteteses ceacuteticas incompatiacuteveis satildeo falsas

Um resultado desse caso eacute que ele natildeo consegue lidar com todos os tipos de

ceticismo Haacute duas principais formas de ceticismo (e vaacuterias subcategorias) o ceticismo

do regresso (ou pirrocircnico) e o ceticismo da indiscernibilidade (cartesiano) Na melhor

das hipoacuteteses Dretske e Nozick forneceram uma maneira de lidar com o uacuteltimo

Outra preocupaccedilatildeo com a resposta de Dretske e Nozick ao ceticismo

cartesiano eacute que ela nos forccedila a abandonar K (tanto quando GK e o fechamento atraveacutes

da instanciaccedilatildeo e da simplificaccedilatildeo) Dado o apelo intuitivo desses princiacutepios alguns

teoacutericos tecircm procurado por modos alternativos de explicar o ceticismo oferecendo-os

entatildeo como superior com base em natildeo violarem K Consideraremos duas possibilidades

uma oferecida pelos defensores da teoria da indicaccedilatildeo segura e outra pelos

contextualistas

53 Indicaccedilatildeo Segura e Ceticismo

Os defensores da teoria da indicaccedilatildeo segura aceitam o ponto central da

explicaccedilatildeo que o teoacuterico do rastreamento daacute para o apelo do ceticismo mas manteacutem o

princiacutepio do fechamento Uma razatildeo pela qual o ceticismo nos tenta eacute que tendemos a

confundir CR com SI (Sosa 1999 Luper 1984 1987c 2003a) Afinal CR ndash se p fosse

falsa R natildeo seria o caso ndash se assemelha intimamente a SI ndash R seria o caso somente se p

fosse verdadeira Quando colocamos as duas juntas agraves vezes aplicamos CR e concluiacutemos

252

que natildeo sabemos que os cenaacuterios ceacuteticos natildeo satildeo o caso Entatildeo voltamos agrave abordagem

da indicaccedilatildeo segura e concordamos com os ceacuteticos quando apelam ao princiacutepio de

acarretamento que eacute mantido pela abordagem da indicaccedilatildeo segura e concluiacutemos que as

alegaccedilotildees comuns de conhecimento satildeo falsas Poreacutem como Moore afirmou os ceacuteticos

estatildeo errados quando dizem que natildeo sabemos que as hipoacuteteses ceacuteticas satildeo falsas Grosso

modo sabemos que as possibilidades ceacuteticas natildeo satildeo o caso uma vez que (dadas as nossas

circunstacircncias) satildeo remotas

O ceticismo poderia tambeacutem resultar da suposiccedilatildeo de que se um meacutetodo de

formaccedilatildeo de crenccedila M estivesse em alguma situaccedilatildeo a produzir uma crenccedila sem nos

permitir saber a verdade dessa crenccedila entatildeo natildeo pode gerar sequer conhecimento bona

fide (desse tipo de crenccedila) natildeo importa em que circunstacircncias ele eacute usado (M tem de ser

reforccedilado de algum modo com um meacutetodo suplementar ou com evidecircncias sobre as

circunstacircncias disponiacuteveis caso se granjeie conhecimento) Essa suposiccedilatildeo poderia

repousar na ideia de que qualquer crenccedila que M produza seja na melhor das hipoacuteteses

acidentalmente correta caso em algumas circunstacircncias M produza uma crenccedila falsa ou

acidentalmente correta (Luper 1987c) De acordo com essa suposiccedilatildeo podemos excluir

um meacutetodo de formaccedilatildeo de crenccedila M como uma fonte de conhecimento apenas por

esboccedilar circunstacircncias nas quais M produz uma crenccedila que eacute falsa ou acidentalmente

correta Os cenaacuterios ceacuteticos tradicionais satildeo suficientes e tambeacutem situaccedilotildees gettierescas

Os teoacutericos externistas rejeitam essa suposiccedilatildeo dizendo que M pode gerar conhecimento

quando usado em circunstacircncias sob as quais a crenccedila produzida natildeo eacute acidentalmente

correta Em circunstacircncias altamente gettierizadas M tem de nos deixar numa posiccedilatildeo

epistecircmica especialmente forte caso gere conhecimento em circunstacircncias comuns

meacutetodos menos exatos podem produzir conhecimento Os padrotildees que um meacutetodo tem

de cumprir para produzir conhecimento dependem do contexto no qual eacute usado Essa

perspectiva segundo a qual as exigecircncias para um sujeito ou agente S saiba que p variam

com o contexto de S (eg o quatildeo exato o meacutetodo de formaccedilatildeo de crenccedila de S tem de ser

para produzir conhecimento depende das circunstacircncias de S) poderia ser chamada de

contextualismo centrado no agente (ou sujeito) Tanto os teoacutericos do rastreamento quanto

os da indicaccedilatildeo segura defendem o contextualismo centrado no agente

54 Contextualismo e Ceticismo

253

Os teoacutericos que escrevem sob o roacutetulo ldquocontextualismordquo como David Lewis

(1979 1996) Stewart Cohen (1988 1999) e Keith DeRose (1995) oferecem uma maneira

relacionada de explicar o ceticismo sem negar o fechamento Por clareza poderiacuteamos

chamaacute-los de contextualistas centrados no falante (ou atribuidor) uma vez que

contrastam sua posiccedilatildeo com o contextualismo centrado no agente De acordo com os

contextualistas (centrados no falante) se eacute correto para um juiz atribuir conhecimento a

algueacutem dependeraacute do contexto desse juiz e os padrotildees para o conhecimento diferem de

contexto para contexto Quando o homem nas ruas julga o conhecimento os padrotildees

aplicaacuteveis satildeo relativamente modestos Mas um epistemoacutelogo leva a seacuterio todo o tipo de

possibilidades que satildeo ignoradas pelas pessoas comuns e por isso tecircm de aplicar padrotildees

mais severos a fim de alcanccedilar as avaliaccedilotildees corretas O que passa por conhecimento em

contextos comuns natildeo se qualifica como conhecimento em contextos em que criteacuterios

elevados se aplicam O ceticismo eacute explicado pelo fato de que a variaccedilatildeo contextual dos

padrotildees epistecircmicos eacute facilmente negligenciada Os ceacuteticos notam que no contexto

epistecircmico eacute inapropriado conceder conhecimento a algueacutem Poreacutem os ceacuteticos supotildeem ndash

falsamente ndash que aquilo que vale no contexto epistecircmico vale em todos os contextos Eles

supotildeem que uma vez que aqueles que levam o ceticismo a seacuterio tecircm de negar

conhecimento a algueacutem entatildeo deveriam negar conhecimento a despeito do contexto a

todos Poreacutem as pessoas em contextos comuns estatildeo perfeitamente corretas em afirmar

que sabem todo o tipo de coisas

Ademais o princiacutepio de fechamento estaacute correto dizem os contextualistas de

modo que tem de ser entendido como operando dentro de determinados contextos natildeo

atraveacutes de contextos Isto eacute na medida em que permanecemos dentro de um determinado

contexto sabemos as coisas que deduzimos daquilo que jaacute sabemos Mas se estou num

contexto comum e sei que estou em Santo Antocircnio natildeo posso vir a saber via deduccedilatildeo

que natildeo sou um ceacuterebro numa cuba num planeta distante jaacute que quando levo a seacuterio a

hipoacutetese ceacutetica transformo meu contexto num contexto no qual padrotildees epistecircmicos

elevados se aplicam Quando levo a seacuterio a possibilidade da cuba tenho de lidar com os

padrotildees exigentes que excluem o meu conhecimento de que natildeo sou um ceacuterebro numa

cuba Do mesmo modo esses padrotildees impendem que eu saiba que estou em Santo

Antocircnio Pensar a seacuterio sobre o conhecimento mina o nosso conhecimento

6 Fechamento e Crenccedila Racional

254

Dizer que a crenccedila justificada eacute fechada sob implicaccedilatildeo eacute dizer que algo como

um dos seguintes princiacutepios eacute correto (ou que ambos satildeo)

J Se ao acreditar justificadamente que p S acredita que q porque S sabe que

p implica q entatildeo S acredita justificadamente que q

GJ Se ao acreditar justificadamente em vaacuterias proposiccedilotildees S acredita que p

porque S sabe que elas implicam q entatildeo S acredita justificadamente que p

Contudo GJ gera paradoxos (Kyburg 1961) Para ver por que note que se as chances de

ganhar na loteria satildeo suficientemente remotas estou justificado em acreditar que o meu

bilhete o bilhete 1 natildeo eacute o premiado Estou tambeacutem justificado em acreditar que o bilhete

2 natildeo eacute o premiado e que o 3 natildeo eacute o premiado e assim por diante Contudo natildeo estou

justificado em acreditar na conjunccedilatildeo dessas proposiccedilotildees Se estivesse eu acreditaria

justificadamente que nenhum bilhete eacute o premiado Se uma proposiccedilatildeo estiver justificada

quando for bastante provaacutevel o exemplo da loteria mina GJ Natildeo importa quatildeo alta seja

a probabilidade suficiente para a justificaccedilatildeo a menos que a probabilidade seja 1 em

algumas loterias estaremos justificados em acreditar para qualquer bilhete arbitraacuterio que

ele natildeo eacute o bilhete premiado e por conseguinte por GJ estaremos justificados em

acreditar que todos os bilhetes natildeo satildeo o premiado

Ainda que rejeitemos GJ natildeo se segue que temos de rejeitar GK que diz

respeito ao fechamento do conhecimento Considere o exemplo da loteria novamente O

quatildeo justificados estamos em acreditar que o bilhete 1 natildeo eacute o premiado dependeraacute do

quatildeo provaacutevel seraacute ele natildeo ser premiado Ora a probabilidade de que o bilhete 2 natildeo seja

o premiado eacute igual agrave probabilidade de que o bilhete 1 natildeo eacute o premiado O mesmo vale

para qualquer outro bilhete Contudo considere a conjunccedilatildeo O bilhete 1 natildeo eacute o

premiado amp o bilhete 2 natildeo eacute o premiado A probabilidade dessa proposiccedilatildeo conjuntiva

eacute menor do que a probabilidade de suas conjuntas separadamente Suponha que

continuemos a adicionar conjuntas Por exemplo a proacutexima seraacute O bilhete 1 natildeo eacute o

premiado amp o bilhete 2 natildeo eacute o premiado amp o bilhete 3 natildeo eacute o premiado A cada vez

que uma nova conjunta eacute adicionada a probabilidade da proposiccedilatildeo resultante diminui

ainda mais Isso ilustra o fato de que podemos comeccedilar com uma coleccedilatildeo de proposiccedilotildees

cada uma delas excedendo o limiar da justificaccedilatildeo (seja laacute o que for que seja necessaacuterio

para que uma crenccedila conte como ldquojustificadardquo de acordo com GJ) e ao conjuntaacute-las

podemos terminar com uma proposiccedilatildeo abaixo do limiar de justificaccedilatildeo Podemos

ldquoacreditar justificadamenterdquo em cada conjunta mas natildeo na conjunccedilatildeo e portanto GJ

falha Contudo natildeo precisamos rejeitar GK por essa razatildeo Ainda que concedamos que

255

acreditamos justificadamente que O bilhete 1 natildeo eacute o premiado eacute verdadeira poderiacuteamos

negar que sabemos que essa proposiccedilatildeo seja verdadeira Poderiacuteamos assumir a posiccedilatildeo

de que se acreditamos em alguma proposiccedilatildeo p com base em sua probabilidade nada

menos do que uma probabilidade 1 seraacute suficiente para nos permitir saber que eacute

verdadeira Nesse caso GK natildeo sucumbiraacute agrave nossa objeccedilatildeo a GJ pois se a probabilidade

de duas ou mais proposiccedilotildees eacute 1 entatildeo a probabilidade de sua conjunccedilatildeo tambeacutem eacute 1

Podemos rejeitar GJ Deveriacuteamos tambeacutem rejeitar J O status desse princiacutepio

eacute muito mais controverso Alguns teoacutericos argumentam contra ele usando contraexemplos

como o caso da zebra de Dretske porque a zebra estaacute em condiccedilotildees de visatildeo satisfatoacuterias

vocecirc parece estar plenamente justificado em acreditar que zeb mas natildeo eacute tatildeo claro que

vocecirc esteja justificado em acreditar que natildeo-mula ainda que deduza essa crenccedila de zeb

Algueacutem que rejeite K com base em K sancionar o conhecimento de proposiccedilotildees

restritivas ou de grande porte (discutidas anteriormente) provavelmente rejeitaraacute J por

razotildees similares acreditar justificadamente que temos matildeos poderia parecer natildeo nos

coloca em posiccedilatildeo de acreditar justificadamente que haacute objetos fiacutesicos ainda que vejamos

que a primeira implica a uacuteltima

Uma resposta eacute que casos como o de Dretske natildeo contam contra J mas antes

contra o seguinte princiacutepio (de transmissibilidade da evidecircncia)

E Se e eacute evidecircncia para p e p implica q entatildeo e eacute evidecircncia para q

Ainda que rejeitemos esse princiacutepio natildeo se segue que a justificaccedilatildeo natildeo seja fechada sob

a implicaccedilatildeo como Peter Klein (1981) apontou Defensavelmente tudo o que eacute

necessaacuterio para o fechamento da justificaccedilatildeo eacute que quando dada toda a nossa evidecircncia

e relevante estamos justificados em acreditar que p tambeacutem temos justificaccedilatildeo suficiente

para acreditar em cada uma das consequumlecircncias de p A nossa justificaccedilatildeo para as

consequumlecircncias de p natildeo precisa ser e Ao inveacutes poderia se a proacutepria p que eacute afinal uma

crenccedila justificada E uma vez que p implica suas consequumlecircncias eacute suficiente para

justificaacute-las Aleacutem do mais qualquer boa evidecircncia que temos contra uma consequumlecircncia

de p conta contra a proacutepria p nos impossibilitando de estar justificado em acreditar que

p de modo que se estamos justificados em acreditar que p levando em conta toda nossa

evidecircncia proacute e contra natildeo teremos evidecircncias fortes contra as proposiccedilotildees implicadas

por p (Uma manobra similar poderia ser defendida contra os teoacutericos do rastreamento

quando eles negam o fechamento do conhecimento se rastreamos p e acreditamos que q

por deduzi-la de p entatildeo rastreamos q se tomamos p como nossa base para acreditar que

q) Visto desse acircngulo J parece plausiacutevel (Haacute um bibliografia substancial sobre a

256

transmissibilidade de evidecircncia e sua falha veja por exemplo Crispin Wright (1985) e

Martin Davies (1998)

Algumas observaccedilotildees finais podem ser feitas usando a distinccedilatildeo de Roderick

Firth (1978) entre justificaccedilatildeo proposicional e doxaacutestica Uma proposiccedilatildeo p tem

justificaccedilatildeo proposicional para S se e somente se dada a base que S possui p contaria

como racional Que p tenha justificaccedilatildeo proposicional para S natildeo requer que S

efetivamente baseie a sua crenccedila nessa base ou mesmo que S acredite que p Se a crenccedila

de S tem justificaccedilatildeo doxaacutestica depende das bases efetivas de S para acreditar que p se

nessas bases p contaria como racional entatildeo p possui justificaccedilatildeo doxaacutestica Considere

os seguintes princiacutepios

JD Se p estaacute doxasticamente justificada para S e p implica q entatildeo q estaacute

doxasticamente justificado para S

JP Se p estaacute proposicionalmente justificada para S e p implica q entatildeo q

estaacute proposicionalmente justificada para S

JD claramente enfrenta duas objeccedilotildees fatais Primeiro poderiacuteamos natildeo acreditar em

algumas das coisas implicadas por nossas crenccedilas Segundo podemos ter razotildees

perfeitamente respeitaacuteveis para acreditar que p e contudo natildeo vendo que p implica q

poderiacuteamos natildeo estar cientes de quaisquer bases para acreditar que q ou pior poderiacuteamos

acreditar que q por razotildees espuacuterias Contudo nenhuma dessas dificuldades ameaccedila JP

Primeiro a justificaccedilatildeo proposicional natildeo implica crenccedila Segundo S poderia estar

proposicionalmente justificado com base em p deixe ou natildeo de ver que p implica q e

ainda que S acredite que q por razotildees espuacuterias Como apoio adicional para JP poderiacuteamos

citar o fato de que se p implica q o que quer que conte contra q conta contra p

Bibliografia

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o u t r a m a rg e mr e v i s t a d e f i l o s o f i a

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