a literatura italiana no brasil e a literatura brasileira ... · cdd (21. ed.) 418.02 impresso no...

248

Upload: phamdieu

Post on 28-Jan-2019

230 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 2: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira na Itália:

sob o olhar da tradução

Page 3: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 4: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira na Itália:

sob o olhar da tradução

Patricia PeterleOrganização

Page 5: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

© dos autores

Universidade Federal de Santa CatarinaDepartamento de Língua e Literatura EstrangeirasCampus Universitário – Trindade – Florianópolis, SC88010-970 – (48) 3721-9288

Editoração:Paulo Roberto da Silva

Revisão:Ivair Carlos Castelan

Ficha Catalográfica

Elaborada por: Sibele Meneghel Bittencourt – CRB 14/244

L75 A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira na Itália : sob o olhar da tradução / Patrícia Peterle organizadora. - - Tubarão : Copiart, 2011. 246 p. : il. ; 21 cm Inclui bibliografia. ISBN 978-85-99554-56-2

1. Tradução e interpretação. 2. Literatura brasileira. 3. Literatura italiana. I. Peterle, Patrícia.

CDD (21. ed.) 418.02

Impresso no Brasil

Page 6: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Sumário

Introdução – Pontes culturais entre Itália e Brasil ..............................7

A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni.........................15||Prisca Agustoni de Almeida Pereira

Traduções da literatura italiana no início do século XX e o mercado editorial ..................................................................................31

||Leonardo Rossi Bianconi, Maria Amelia Dionisio e Tadeu Macedo

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950) ............................................................................................43

||Maria Teresa Arrigoni

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello ......63|| Aislan Camargo Maciera, Aline Fogaça dos Santos Reis e Silva, Égide

Guareschi, Roberta Regina Cristiane Belletti

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras da primeira metade do século XX ............................................................................81

|| Erica Salatini, Fernanda Moro Cechinel, Ivair Carlos Castelan, Sara Debenedetti

A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional: um percurso entre 1900 e 1950 .........................................................101

||Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Lucia Wataghin

Algumas manhas da tradução ...........................................................119||Aurora Fornoni Bernardini

Prosadores e poetas: sinfonia de vozes brasileiras numa interpretação italiana ..........................................................................135

||Amina Di Munno

O direito à inteligência na história de Zero, de Ignácio de Loyola Brandão ....................................................................................151

||Gabriela Kvacek Betella

Page 7: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A tradução italiana de As meninas, de Lygia Fagundes Telles .......177||Carolina Pizzolo Torquato

Amado e a comidaA tradução do vocabulário ligado à comida na obra Tenda dos milagres de Jorge Amado: um problema somente linguístico? ......197

||Alessandra Rondini

Verifi cações do imaginário. Ler o Brasil na Itália............................217||Roberto Francavilla

Posfácio .................................................................................................237

Sobre os autores ...................................................................................241

Page 8: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Introdução

Pontes culturais entre Itália e Brasil

As relações culturais entre Itália e Brasil datam de um período longínquo, talvez quando, num passado remoto, a península mesmo com toda a sua história ainda não era uma nação em sentido político. Um exemplo desses laços é a publicação da primeira descrição da chegada de Pedro Álvares Cabral no Brasil que se dá em 1504, em Veneza.1 Desde o descobrimento, o fl uxo, em terra brasilis, de italianos de origens e proveniências diferentes foi intenso. É possível, aqui, rapidamente lembrar os nomes de Luigi Vincenzo de Simoni, que estabeleceu as primeiras relações da Academia Nacional de Medicina com instituições europeias e, de forma diletante, traduziu trechos de obras de Leopardi, Monti, Alfi eri, e dos irmãos Domenico e Cesare Farani, que abrem uma joalheria no Rio, sem contar com a presença de Teresa Maria Cristina, que de Nápoles traz artistas de todos os gêneros.

Em âmbito literário essa presença não é em nada menor. Na verdade, os italianos, da mesma forma que outros estrangeiros, tiveram um papel essencial na constituição de um mercado livreiro nacional. Segundo Franco Cenni, a primeira livraria na Bahia foi fundada em 1853 pela família Pongetti. Em São Paulo, cidade catalisadora de movimentos culturais no fi nal do século XIX e início

1 Para maiores detalhes consultar: CENNI, Franco. Italianos no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2003.

Page 9: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

8 || Patricia Peterle

do XX, é possível citar a atuação das famosas livrarias Bertoldi, Trippa & Cia., Tisi, a fi lial da editora milanesa Vallardi, a prestigiada Bottega di Cultura do jornalista Ernesto Masucci, além de tantas outras livrarias que publicavam em suas coleções títulos da literatura italiana clássica ou contemporânea. O que se percebe é que nesse período há uma forte tentativa de divulgação da cultura italiana, motivada, talvez, pelas ondas migratórias. A Editora Globo, de Porto Alegre, fundada em 1883, dará uma grande contribuição com obras de relevo para a época (mas não só), como é o caso de Luigi Pirandello, Giovanni Papini e Massimo Bontempelli.

As traduções da Divina Comédia, nessa virada de século, depois de longos períodos de estudos, feitas por José Pedro Xavier Pinheiro e pelo Barão da Vila da Barra (Francisco José Bonifácio de Abreu), mas há de se lembrar a do Canto VI do Purgatório feita por Gonçalves Dias, publicada em 1867 nas Obras Póstumas, além de tantas outras como a de Machado de Assis. Contudo, ainda no século XVIII, a poesia árcade nacional apresenta uma relação direta com a poesia de Pietro Metastasio, como será lembrado por Sérgio Buarque de Hollanda.

Uma relação cultural que sempre existiu, mas que foi sendo intensifi cada ao longo dos anos e legitimada em âmbito cultural com a presença de artistas e intelectuais italianos no Brasil e também com o incremento no século XX da literatura italiana traduzida, que oferece a um público muito mais amplo o contato com a península.

Se uma marca italiana aparece na história brasileira desde cedo, o contrário não é verdadeiro. De fato, pensando na presença da literatura brasileira na Itália, é possível identifi car algumas traduções no fi nal do século XIX, mas o grande movimento de olhar para o Brasil será no século XX, a partir de lentes e fi ltros específi cos, corroborados por algumas imagens construídas a partir da própria literatura.

É nesse fl uxo e nesse contínuo movimento de trocas culturais e simbólicas, que pode ser inserido Literatura Italiana no Brasil e

Literatura Brasileira na Itália: sob o olhar da tradução, que propõe, a partir da temática mais geral “literatura traduzida”, algumas refl exões: i) quais são os textos traduzidos? ii) como se dão as traduções? iii) é possível estabelecer relações entre a tradução publicada e o sistema literário e cultural local (leitura das traduções e produção)?

Page 10: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Introdução || 9

Os dez ensaios dessa coletânea estão divididos em duas partes: a primeira dedicada à literatura italiana traduzida no Brasil e a segunda dedicada à literatura brasileira traduzida na Itália. Ambas as seções concluem-se não com estudos de casos específi cos, mas sim com ensaios que tratam dos movimentos e fl uxos tradutórios como fenômenos culturais, “vistos de longe”, para utilizar uma expressão de Franco Moretti.

A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni, de Prisca Agustoni, traz uma análise da recente coletânea de poesias, publicada pela EdUFSC, com organização de Aurora Bernardini. Em seu texto, Agustoni afi rma que essa publicação faz jus à obra do poeta genovês, um dos maiores do século passado. É com uma “poética questionadora”, na era dos extremos, que os versos de Caproni mergulham na “profundeza do humano”, como afi rma a autora.

Traduções da literatura italiana no início do século XX e o

mercado editorial, de Leonardo Bianconi, Maria Amelia Dionisio e Tadeu Macedo, propõe um rico percurso entre as livrarias e editoras que impulsionaram o mercado brasileiro em relação à literatura italiana. Os autores, com uma pesquisa densa e meticulosa, tentam entender como são editados ao mesmo tempo autores tão díspares como: Carolina Invernizio, Carlo Collodi, Emilio Salgari, Benedetto Croce, Giuseppe Ungaretti, Edmondo De Amicis...

Num livro cuja proposta é a refl exão sobre as trocas literárias e simbólicas sob a perspectiva da tradução, a forte presença de Dante Alighieri, por meio das traduções integrais e parciais e por ser uma referência como pode ser verifi cado nos debates culturais nas diversas revistas literárias do início e meados do século XX, não poderia ser uma ausência. O artigo Em busca das obras de Dante em

português no Brasil (1901-1950), de Maria Teresa Arrigoni, abre uma refl exão a partir do levantamento e mapeamento da obra dantesca editada no país na primeira metade do século XX. Apesar da identifi cação da tradução de obras como Vida Nova e Monarquia a atenção maior recai, como não poderia deixar de ser, sobre a Divina

Comédia, objeto de análise da autora que faz uma atenta análise da sua trajetória em terras brasileiras.

Page 11: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

10 || Patricia Peterle

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello, de Aislan Macieira, Aline Fogaça, Égide Guareschi, Roberta Belletti, traz o mapeamento de três vozes italianas recorrentes no cenário editorial nacional. Ao lado da fama e do sucesso internacional de Luigi Pirandello e Giovanni Papini, fato que pode ter impulsionado as traduções, o clássico texto de Pinóquio é lido pelos autores em perspectiva comparada com os escritos de Monteiro Lobato, presença fundamental no mercado editorial nacional.

A presença italiana na imprensa literária brasileira, de Erica Salatini, Ivair Carlos Castelan, Fernanda Moro Cechinel, Sara Debenedetti, traz uma outra abordagem de se trabalhar com as traduções: a partir da repercussão e circulação dos autores e obras na imprensa brasileira. Alguns números da Revista da Academia

Brasileira de Letras, Revista da Academia Paulista de Letras e o Suplemento Letras e Artes, do jornal carioca A Manhã, foram selecionados pelos autores e analisados. Os autores citados em artigos, mais ou menos curtos, às vezes como modelo ou paradigma, são também aqueles que tiveram tradução e publicação nacional e que, portanto, suas obras têm uma ampla circulação, considerando sempre o público leitor, como apontam os autores.

A segunda seção inicia-se com o ensaio Algumas manhas

da tradução, de Aurora Bernardini, tradutora consagrada que fala da própria experiência tradutória do italiano para o português e do português para o italiano. Os casos analisados são Um copo

Page 12: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Introdução || 11

de cólera, de Raduan Nassar, e Rubé (ainda inédito), de Giuseppe Antonio Borgese, dois textos diferentes com difi culdades diversas que Bernardini, generosamente, apresenta e discute.

Prosadores e poetas: Sinfonia de vozes brasileiras numa

interpretação italiana, de Amina di Munno, traz mais uma vez a voz da experiência da tradutora. Nesse texto, Amina di Munno, após fazer algumas considerações acerca da tradução como um complexo processo, focaliza a sua análise em alguns autores específi cos como Milton Hatoum, Heloneida Studart e Cássio Junqueira. O que se sobressai dessas linhas é o testemunho da tradutora diante da página em branco a ser preenchida.

O direito à inteligência na história de Zero, de Ignácio de Loyola

Brandão, de Gabriela Kvacek Betella, traz um caso muito particular da literatura brasileira, o romance Zero, que é primeiramente editado na Itália e só depois entra no mercado nacional. Luciana Stegagno Picchio visita o país em plena ditadura, num estado de exceção, em 1972, quando recebe os originais da obra de Ignácio de Loyola Brandão. Gabriela Kvacek Betella com acuidade e olhos de uma atenta pesquisadora reconstrói a história dessa publicação, que pode ser um dos casos excêntricos nessa ponte tradutológica entre Itália e Brasil.

A tradução italiana de As meninas, de Lygia Fagundes Telles, de Carolina Pizzolo Torquato, é um estudo detalhado em perspectiva comparada, levando em consideração a edição italiana, publicada em 2006 pela Cavallo di Ferro. Carolina Torquato, considerando a relação de perdas e ganhos existente no processo de tradução, com uma atenta análise, identifi ca em alguns momentos uma perda estilística na passagem do português para o italiano, contudo, por outro lado, reconhece a capacidade de o tradutor “manter” aspectos linguísticos e/ou culturais que perfi lavam o texto fonte.

Outro estudo de caso é o de Alessandra Rondini, que no texto Amado e a comida – A tradução do vocabulário ligado à

comida na obra Tenda dos milagres de Jorge Amado: um problema

somente linguístico? discute questões linguísticas e culturais a partir da análise da tradução italiana de Tenda dos milagres, publicado em 2006, pela Garzanti, de um dos autores brasileiros mais traduzidos

Page 13: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

12 || Patricia Peterle

e conhecidos na Itália. A partir do trabalho com essa obra de Jorge Amado, a autora coloca questões sobre a tradução e seu processo, além daquelas sobre o papel do tradutor.

Verifi cações do imaginário: ler o Brasil na Itália, de Roberto Francavilla, numa perspectiva sociológica, propõe um percurso pelas traduções da literatura brasileira na Itália, tendo como principal intuito a análise da imagem que essas traduções corroboram, estimulam, constroem ou desconstroem no público leitor italiano. Nessa trilha de textos literários e não literários, alguns pontos são cruciais como as traduções bestsellers, ou como aponta Francavilla os longsellers, de Jorge Amado e Paulo Coelho, a edição de estudos sobre a cultura brasileira, Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre, além da “onipresença” de Luciana Stegagno Picchio.

Reunindo professores e pesquisadores especialistas, Literatura

Italiana no Brasil e Literatura Brasileira na Itália: sob o olhar da

tradução quer oferecer ao público brasileiro uma perspectiva inovadora nas relações e pontes possíveis entre Itália e Brasil.

Agosto de 2011Patricia Peterle

Page 14: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 15: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 16: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni

Prisca Agustoni de Almeida Pereira

Un semplice dato:Dio non s’è nascosto.

Dio s’è suicidato.Giorgio Caproni1

Se o vigésimo século europeu é considerado como um período histórico denso em acontecimentos trágicos que marcaram profundamente a mentalidade e as culturas contemporâneas do continente,2 a literatura não deixa de representar um interessante prisma de análise e aproximação a esse delicado momento, no qual o estado de exceção3 se instaurou, muitas vezes, com força, como sendo a nova norma vigente.

Nesse sentido, é válido considerar a atuação de alguns intelectuais e artistas cujas trajetórias biográfi cas e artísticas sofreram um impacto a partir dos acontecimentos históricos qual a primeira guerra mundial e sucessivamente a segunda guerra mundial, e que

1 CAPRONI, Giorgio. “Deus absconditus”. In: CAPRONI, Giorgio. Poesie. 1932-1986. Milão: Garzanti, 1989, p. 3492 Ver, a esse respeito: HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. São Paulo:Companhia das Letras, 1995.3 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2003.

Page 17: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

16 || Prisca Agustoni de Almeida Pereira

obrigaram muitos deles a quebrarem frontalmente com a posição política assumida pelo próprio governo, quando não tiveram que se refugiar no exílio ou participar da guerra ao front de batalha.

A esse propósito, inúmeros são os exemplos da literatura europeia de intelectuais e artistas que tiveram uma participação ativa nos campos de guerra, como voluntários,4 cuja obra se tornou, em determinado momento, receptáculo e catarse dessa experiência do limite humano. Vale lembrar os já conhecidos exemplos às nossas latitudes brasileiras, de poetas-soldados da Primeira Guerra Mundial: o austríaco Georg Trakl com seu poema Grodek, o francês Guillaume Apollinaire, com seus poemas de guerra em Calligrammes, ou o suíço Blaise Cendrars, que em J’ai saigné testemunha da terrível experiência que lhe amputará um braço ou, ainda, em J’ai tué, que reconstrói cruelmente a voz do poeta que larga a pluma para empunhar a arma e matar.5

No contexto da literatura italiana, que é o tema em tela, ícone da experiência do poeta que se alista voluntariamente na guerra e cujos versos constituem um doloroso testemunho dessa vivência é a obra inicial de Giuseppe Ungaretti (1888-1970). De fato, a coletânea Il porto sepolto, de 1917 e mais ainda L’allegria dei naufragi, de 1919, representam um divisor de água na tradição lírica italiana, por introduzir o tema do mal e da convivência com a morte no campo de batalha, fi ltrado através do sentimento do sujeito lírico que é o poeta desarmado da áurea de vate e armado da consciência da fi nitude e da fragilidade. Um homem nu, no sentido ontológico do termo, que escreve versos econômicos, quase suspirados, adotando plenamente a lição simbolista francesa, até aquele momento, pouco considerada pela escola poética italiana.

No entanto, se Ungaretti representa na Itália um dos modelos mais importantes, juntamente a Eugenio Montale, para a geração

4 A esse propósito, é interessante ler o “claironnant appel” escrito por Cendrars e Canudo, em 3 de agosto de 1914, em favor ao enrolamento espontâneo para combater ao front: “A hora é grave. Todo homem digno desse nome hoje deve agir, deve evitar fi car passivo no meio da mais formidável defl agração que a história jamais conheceu. Cada hesitação seria um crime” (trad. nossa). Em: CENDRARS, Miriam. Blaise Cendrars. L’or d’un poete. Paris: Gallimard, 1996.5 A esse respeito, ver DI SANTO, Giulia. La poesia al tempo della guerra. Milão: Franco Angeli editore, 2007.

Page 18: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni || 17

poética do segundo Novecento, em particular para os poetas do hermetismo, não se trata dos dois únicos poetas que passaram pelas duas guerras mundiais e cujas obras guardam marcas desses acontecimentos. Os poetas Vittorio Sereni (1913-1983) e Giorgio Caproni (1912-1990), talvez menos conhecidos ao grande público brasileiro até hoje, além de poetas de uma envergadura e densidade lírica ímpar, constituem fi guras cruciais de artistas ativos (tanto no campo estético quanto político) ao longo das delicadas décadas que vão do entre-guerra italiano à passagem da segunda guerra mundial – que os viu protagonistas, ambos, como soldados, Sereni na Sicilia e, em 1943, feito refém nos campos do norte da África, e Caproni na Itália, a lutar contra os franceses que ele tanto admirava pela cultura – até os difíceis anos da reconstrução moral, cultural e econômica de um país derrotado pela guerra.

A esse propósito, a recente publicação brasileira de parte da obra de Caproni, escolhida e traduzida por Aurora Bernardini6, preenche o lugar que por justiça deveria ocupar seu nome no panteão dos poetas italianos traduzidos em português. Além de uma rica seleção de poemas pertencentes à longa trajetória cronológica de Caproni, o livro acrescenta uma introdução muito didática de Bernardini, apresentando os elementos biográfi cos mais relevantes para acompanhar a obra poética, além da tradução do prefácio de Giorgio Agamben à reunião italiana da obra de Caproni7, titulado Desapropriada maneira (BERNARDINI, 2011, p. 25).

Embora Giorgio Caproni nunca tenha escrito “poesia engajada”, apesar de sua trajetória diretamente envolvida com os fatos históricos, a evolução da sua obra representa na Itália, desde as últimas décadas, um marco fundamental de uma poética questionadora, erosiva e denunciadora de certezas, uma poesia voltada para preocupações radicais que dizem respeito à natureza da vida. Nesse sentido, numa sociedade que, conforme aponta Bosi

6 BERNARDINI, Aurora Fornoni (org. e trad.). A coisa perdida. Agamben comenta Caproni. Florianópolis: UFSC, 2011.7 CAPRONI, Giorgio. Tutte le poesie. Milão: Garzanti, 1991.

Page 19: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

18 || Prisca Agustoni de Almeida Pereira

no ensaio Os estudos literários na era dos extremos,8 está sempre mais magnetizada pela mídia e pelo fascínio do consumo da brutalidade e do naturalismo, jornalístico e cultural, e no qual a cultura se confunde constantemente com o espetáculo, os versos de Caproni soam como uma reversão de corrente, um mergulho nas profundezas do humano.

Da mesma maneira como Eugenio Montale se debruçou sobre a condição existencial do sujeito atravessado pela crise ideológica e pelo niilismo europeu, ao longo da sua vasta obra, manifestando um sentimento de cepticismo e de descrença quanto à possibilidade da linguagem propor certezas que pudessem dar explicações sobre as inquietudes individuais e históricas da Europa no entre-guerra, em particular na coletânea Ossi di seppia (1924), a poesia de Caproni se dirige passo a passo, desde sua estreia em 1932 com Come un’allegoria, até chegar à coletânea Res amissa (1991), em direção a uma consciência “em negativo”, também identifi cada por Hamburguer (2007) como sendo uma tendência da poesia europeia do vigésimo século.

A esse propósito, Aurora Bernardini enfatiza, na abertura da sua nota introdutória, que Caproni foi muitas vezes comparado com Montale, no que diz respeito à radicalização do projeto poético, e cita um trecho da resenha do crítico e poeta Giovanni Testori, que reproduzimos a seguir:

[...] Em o franco caçador, nossa poesia atinge um de seus picos: um vértice que é, ao mesmo tempo, uma vertigem. Mesmo “o que não somos, o que não queremos” [fecho de “Non chiederci la parola”, primeiro poema da coletânea Ossi di seppia de Montale] sobre o qual Montale havia construído sua inteira obra [...] é aqui acusado de ter fi cado aquém do risco, ao qual, no entanto, havia aludido: enfi m, o de não ter levado os termos até o limite último de sua página. Ao contrário, foi o que Caproni fez. E justamente por ter escrito suas palavras nessa borda extrema, elas – movidas

8 In: BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 248-256.

Page 20: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni || 19

vertiginosamente pela força centrípeta que as inerva – voltaram da borda para o centro, e funcionaram como eixo. (BERNARDINI, 2011, p. 11).

Unânimes são os críticos literários ao se referirem à radicalização da temática da negatividade na obra de Caproni, uma negatividade que não é prova da impossibilidade da vida ou da ausência do amor humano, mas sim da ausência de Deus.

Para o crítico Giovanni Raboni (apud CAPRONI, 1989, p. 793), sua vasta obra se concentra fundamentalmente ao redor de três eixos temáticos, que seguem essa ordem de aparecimento ao longo dos poemas: 1) o amor pela cidade de Gênova, onde o poeta se transferiu quando tinha dez anos de idade, um amor que se manifesta, nos versos, tanto na fase de plenitude do jovem que ali morava, quanto na relação de saudade que este estabeleceu com a cidade a partir da eclosão da Segunda Guerra Mundial, quando teve que se mudar para Roma; 2) o amor impossível, saudoso, pela mãe, à qual dedica a belíssima coletânea de 1959, Il seme del piangere; 3) o tema da viagem, aqui entendida de forma alegórica como sendo a viagem do poeta que contempla, de forma irônica, o aproximar-se do fi m da vida. Raboni alerta também sobre o fato de que essa lúcida e cristalina contemplação das etapas da vida ocorre “com uma estranha, luminosa ausência tanto de desespero quanto de esperança”9 (apud CAPRONI, 1989, p. 794).

A obra de Caproni resistiu, persistiu no tempo, foi crescendo de importância justamente pela autenticidade de suas inquietações, que lembram a persuasão preconizada pelo jovem fi lósofo italiano Carlo Michelstaedter em La persuasione e la rettorica, livro escrito em 1910 e no qual o autor atribui às palavras a tarefa de revelar uma auto-defi nição ontológica (“eu sou”) que na realidade deveria surgir antes das palavras, no silêncio da alma. Para o fi lósofo, somente dessa maneira a afi rmação ontológica do sujeito (com suas perguntas) poderia ser traduzida, materializada pelas palavras, sem traí-las ou trair a pessoa que delas se serviria.

9 “con una strana, luminosa assenza sia di disperazione che di speranza”. A tradução para o português é de nossa autoria.

Page 21: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

20 || Prisca Agustoni de Almeida Pereira

De acordo com Michelstaedter, assim fazendo “cada palavra se torna luminosa” (MICHELSTAEDTER, 1994, p. 88), capaz de iluminar com verdade aquilo que não está presente na vida concreta, e a tarefa daquele que interroga a vida com autenticidade – o fi lósofo ou o poeta, no nosso caso – corresponde à vocação daquele que procura a origem primeira das coisas e das palavras.

Tarefa essa, na verdade, que se aproxima com a inquietação teológica, que moveu santos, poetas e fi lósofos desde a origem da humanidade, e que está no centro da interpretação que a crítica italiana realizou da obra de Giorgio Caproni, como também apresenta Agamben no já citado texto introdutório à edição brasileira.

É o próprio Agamben quem observa, com muita acuidade, que “a tradição da ateologia poética da modernidade [...] chega, na obra do poeta, ao seu êxito extremo – ao seu colapso” (apud BERNARDINI, 2011, p. 28), indicando, pouco depois, a data de exórdio dessa “ateologia poética”, identifi cada com um poema do alemão Hölderlin, Dichterberuf, ou seja, Vocação de poeta, cujos versos fi nais recitam: “E não precisa de nenhuma arma, e de nenhuma/ astúcia, até quando a falta de Deus ajudar” (BERNARDINI, 2011, p. 29). A partir desses versos, nos quais Agamben reconhece que houve uma “queda sonambúlica do divino e do humano rumo a uma zona incerta, sem mais sujeito, achatada no transcendental, que só pode ser defi nida pelo eufemismo hölderliniano de ‘traição de tipo sagrado’” (apud BERNARDINI, 2011, p. 29), inaugura-se uma linhagem poética que estabelece, na relação com um suposto Deus ausente, a comum postura de descrença, niilismo, cepticismo que atravessa a obra de boa parte da poesia europeia do século XX, mantendo-se, claro, as devidas diferenças relativas à individualidade de cada poeta e contexto cultural.

A participação direta ou indireta, por parte dos intelectuais e artistas desse conturbado período histórico, nos acontecimentos de maior impacto social – como foram as duas guerras – alimentou, sem dúvida, esse sentimento de descrença e a aporia diante da pergunta fi losófi ca, antiga e corrosiva, relativa à natureza do mal em presença de um Deus todo-poderoso, como sempre foi tido pela tradição cristã. Quais os limites desse poderio divino, diante do Mal, e quais as responsabilidades humanas, oriundas do livre arbítrio que nos foi

Page 22: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni || 21

concedido como uma Graça divina, tomam parte desse jogo difícil e tenso que é a Vida? Essa é a natureza das inquisições fi losófi cas que parecem apoderar-se não somente dos fi lósofos (desde sempre), e em particular daqueles ligados à escola de Frankfurt, depois da grande barbárie que foi o Holocausto, mas também das sensibilidades poéticas de uma modernidade cujos valores foram postos em xeque com brutalidade.

Já em 1919, no seu ensaio Raison et existence, o fi lósofo alemão Karl Jaspers resumiu de forma muito contundente o sentimento que se apoderou da cultura europeia – ou melhor, como ele defi ne, ocidental – e que se relaciona com as observações da crítica literária italiana sobre a obra de Caproni:

Na realidade do homem ocidental, de fato ocorreu silenciosamente uma coisa inaudita: uma desagregação de qualquer autoridade, a radical desilusão de uma confi ança orgulhosa na razão, uma dissolução dos vínculos que parecem tornar tudo, absolutamente tudo, possível (JASPERS, 1987, p. 12)10

A “desagregação de qualquer autoridade”, à qual se refere o fi lósofo, traduz-se, no itinerário poético de Caproni, no afastamento total do divino, um afastamento gerado desde o bojo familiar, uma vez que na sua família havia certa indiferença quanto à profi ssão religiosa. Caproni escreveu, em 1965 em Il mestiere di poeta, um pequeno quadro do próprio pai, no qual comenta que este “era um homem que amava a Ciência com C maiúsculo. O Deus dele – se assim posso dizer – era a Razão, sempre com R maiúsculo” (apud

BERNARDINI, 2011, p. 16).Determinados acontecimentos biográfi cos defi niram melhor

esse desconcerto diante do sagrado, como foram os dois lutos que sofreu, ainda jovem: o da noiva Olga Franzoni, que ocorreu por septicemia, em 1935, e o da mãe, em 1950, deixando-o no mais

10 “dans la réalité de l’homme occidental, il est en eff et silencieusement arrivé quelque chose d’inouï: une désagrégation de toutes les autorités, la radicale désillusion d’une confi ance orgueilleuse en la raison, une dissolution des liens qui paraît rendre tout, absolument tout possible”. A tradução da versão francesa para o português é de nossa autoria.

Page 23: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

22 || Prisca Agustoni de Almeida Pereira

profundo desespero. Além dos lutos, a participação direta na guerra, em 1940, fez com que o poeta assistisse à carnifi cina representada pelas batalhas no fronte, o que despertou nele um forte senso de indignação, testemunhado nas páginas do seu diário de guerra, públicas ao longo daquele ano em jornais e revistas: “sentia-me obcecado pela indignação, mais do que pelo horror ou pelo medo” (CAPRONI apud BERNARDINI, 2011, p. 21).

Podemos observar, portanto, que tanto o clima cultural no qual se formou o jovem poeta, quanto os acontecimentos relacionados com sua trajetória biográfi ca ajudam a compreender como ele construiu um projeto poético que se alimentou de inúmeros diálogos com a própria tradição lírica (em particular, a intertextualidade dantesca11), assim como esteve aberto para a contemporaneidade, recebendo infl uências dos vociani, do Ungaretti, dos herméticos Mario Luzi e Alfonso Gatto, além das leituras de poesia estrangeira, como Lorca, Machado, etc.

A esse respeito, atenção especial merece o poeta vociano Camillo Sbarbaro, cujos versos de Pianissimo, publicados em 1914, em Florência pela Editora “La Voce”, nos parecem ecoar e antecipar o niilismo ao qual se refere Agamben na leitura caproniana. Vejamos alguns fragmentos de Taci, anima stanca di godere e di soff rire (Cala,

alma cansada de gozar e de doer/ SBARBARO, 1983): “a história de alegria e de dor/ não nos afeta. Perdido tem sua voz/ a sirene do mundo, e o mundo é um grande/ deserto. No deserto/ eu olho com secos olhos para mim mesmo”.12

De fato, Agamben observa que a ateologia poética é representada por uma “singular coincidência de niilismo e prática poética em virtude da qual a poesia se torna o laboratório onde todas as fi guras conhecidas são desarticuladas, para dar lugar a novas criaturas para-humanas ou subdivinas” (apud BERNARDINI, 2011, p. 29) e, nesse sentido, a imagem de Sbarbaro do mundo como um grande deserto no qual o sujeito anda

11 Ver, a esse respeito, o artigo: HAERRI, Silvia. “Dante nella poesia di Giorgio Caproni: le metamorfosi dell’uno e del molteplice”. In: Cuadernos de Filología Italiana. 2004, v. 11, p. 177-190.12 “la vicenda di gioia e di dolore/ non ci tocca. Perduta ha la sua voce/ la sirena del mondo, e il mondo é un grande/ deserto./ Nel deserto/ io guardo con asciutti occhi me stesso.”A tradução é nossa.

Page 24: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni || 23

como sonâmbulo, ou as imagens do mal di vivere contidas nos Ossi di

seppia (1924) de Montale (o ar de vidro, o vazio, o açafl or perdido no campo, a folha seca, etc.) ou, ainda, as experiências radicais de Caproni a partir da coletânea Il muro della terra (1975), materializam “a morada dos desabitantes da terra” (AGAMBEN apud BERNARDINI, 2011, p. 30), uma espécie de “no man’s land” ou terra desolada eliotiana, na qual pouco se pode dizer e pouco resta-nos a fazer a não ser sobreviver, e tentar fazê-lo com autenticidade, aproximando-nos do cerne de nós mesmos para reaprender o senso da palavra.

A esse respeito, voltamos sobre a leitura que Raboni fez da obra de Caproni, porque a proposta de abordagem à obra caproniana nos parece afi nada com as refl exões do nosso ensaio. Raboni propõe que os três temas centrais por ele evidenciados (a saber, a cidade, a mãe e a viagem) partilhem um denominador comum, que é a noção de exílio: exílio da cidade, exílio do tempo passado e exílio da vida. Um exílio metafórico, entendido na sua acepção metafísica, que corresponde à ausência de Deus.

Raboni observa que:

[...] o tema dominante [...] é o tema da “terra queimada”, da morte de Deus, da inexistência e necessidade de Deus, da impossibilidade de encontrar o “Deus absconditus”, mas também de cancelar seu buraco, seu vazio, seu nome [...]. Nos últimos poemas, Caproni deixa lugar para uma parca gestualidade, melancólica [...] e os signifi cados se concentram ao redor da essencial, atroz violência metafísica do tema da morte de Deus, do exílio do homem do lugar de todos os lugares, da sua caçada irremediável de cada paraíso possível.[...] A partir de determinado momento – vamos dizer a partir da coletânea de 1965 – Caproni começou a despedir-se (com sua ironia seca, cerimoniosa, cortante), da terra e da esperança, como se de fato para ele, poeta-viajante, tivesse chegado o momento de pedir um stop” (RABONI apud CAPRONI, 1989, p. 798).13

13 “Il tema dominante [...] è il tema della ‘terra bruciata’, della morte di Dio, dell’inesistenza e necessità di Dio, dell’impossibilità di scovare il ‘Deus absconditus’, ma anche di cancellarne il buco, il vuoto, il nome [...]. Nelle ultime poesie, Caproni lascia il posto a una gestualità spoglia,

Page 25: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

24 || Prisca Agustoni de Almeida Pereira

Essa noção de “despedida” será apoiada pela interpretação de outros críticos de destaque, como o próprio Agamben, quando afi rma que essa decisão de “abrir mão”, sem pathos, se encarna numa “paisagem vazia de fi guras”, numa “solidão sem Deus” (AGAMBEN apud BERNARDINI, 2011, p. 29). Italo Calvino também dedicará parágrafos muito esclarecedores à última fase da poesia de Caproni, no artigo Nel cielo dei pipistrelli, publicado na “Repubblica” em 19 de dezembro de 1980. Nesse artigo, Calvino observa que uma das qualidades mais interessantes, na obra do poeta, era a capacidade de mostrar, com leveza, a vertigem da ausência, ou melhor, “revelar o sentimento do vazio nascendo daquele espaço cheio de pessoas e de discursos que é o nosso “pouco” cotidiano” (CALVINO apud CAPRONI, 1989, p. 806).14 Os poemas da coletânea Il muro della terra

/ O muro da terra revelam o doce paradoxo que é a vida, a fragilidade do ser humano que se agarra, para sobreviver, à fé num Deus que não existe, e que a voz do poeta desmascara com ironia e pacata, lúcida consciência. A solidão do ser humano, nessa coletânea escrita entre 1964-1975, se apresenta pela primeira vez na sua veste mais explícita, como no poema I coltelli/As facas (BERNARDINI, 2011, p. 185):

E aí?”, fez ele.Tinha medo. Ria.De súbito, levantou-se o vento.A árvore toda tremeu.Apertei o gatilho. Tombou.Vi-o, o rosto rachadonas facas: os xistos.Ah, meu deus. Meu Deus.Por que não existes?

malinconica [...] e i signifi cati si raggruppano nell’essenziale, atroce violenza metafi sica del tema della morte di Dio, dell’esilio dell’uomo dal luogo di tutti i luoghi, della sua cacciata irrimediabile da ogni possibile paradiso [...]. Da un certo punto in poi – diciamo dalla raccolta del ’65 – Caproni non ha fatto altro che ‘congedarsi’(con la sua ironia secca, cerimoniosa, terribile) dalla terra e dalla speranza, come se davvero fosse venuto per lui, poeta-viaggiatore, il momento di ‘chiedere l’alt’”. A tradução do original é de nossa autoria.14 “rivelare il senso del vuoto scaturito da quello spazio fi tto di persone e di discorsi che è il nostro ‘poco’ quotidiano”. Tradução do original italiano é de nossa autoria.

Page 26: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni || 25

A solidão do homem diante da morte seria amainada com o consolo da existência de Deus, mas como ele não existe, de acordo com a afi rmação contida implicitamente no vocativo do eu lírico, fi ca apenas a pergunta que encerra laconicamente o poema e revela a condição de solidão ontológica do ser humano. Na verdade, o encerramento do poema consiste numa abertura para uma digressão fi losófi co-teológica complexa, que não cabe à poesia (como gênero) explorar e esgotar, de onde decorre o tom “leve” e nada científi co ou grandiloquente da inquisição. No entanto, insinua-se no leitor a dúvida, o mal estar, a possibilidade de questionar um dogma, um abalo das certezas...

Outro poema, Esperienza/Experiência (BERNARDINI, 2011, p. 195), por meio do paradoxo e da ironia, instaura uma pergunta sobre a natureza da vida humana, da nossa passagem na terra, e parece relativizar a importância que se atribui aos fatos que nos ocorrem, por grandiosos que sejam, uma vez que tudo é passageiro, fugaz e, de alguma forma, mortal e fi nito, já que não há transcendência:

Todos os rincões que vi,que visitei,agora eu sei – estou certo:por lá jamais andei.

Sugere-se, no poema, que existe um dublê na personalidade do eu lírico, uma divisão entre aquilo que a pessoa fez, externamente, e aquilo que a pessoa é, ontologicamente falando. Eu posso estar fi sicamente num lugar, cumprir alguma tarefa, sem estar ali autenticamente, sem ser fi el àquilo que eu sou no meu eu mais profundo, por não conhecê-lo, por não aderir à minha natureza mais íntima.

Conforme já vimos, trata-se de um tema do qual muito se ocupou, desde a antiguidade, a fi losofi a, a teologia e, em tempos modernos, a psicologia, e que está implícito nesse poema aparentemente leve, sem pretensão metafísica. Talvez essa fosse a leveza à qual se referia Calvino, isto é, essa capacidade de convocar questões de cunho metafísico em um aparente despretensioso jogo de palavras que é a tarefa do poeta.

Page 27: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

26 || Prisca Agustoni de Almeida Pereira

No entanto, sabemos que a atividade poética e refl exiva de Caproni não era nem despretensiosa, nem ingênua. A confi rmação disso encontra-se em um texto em prosa, Inserto, escrito pelo próprio Caproni, que explica sua visão de mundo fundamentada numa concepção ateológica; texto que foi citado por Aurora Bernardini e por Agamben na introdução à obra traduzida, e que aqui propomos:

Há casos em que aceitar a solidão pode signifi car alcançar a Deus. Mas há uma aceitação estóica mais nobre ainda: a solidão sem Deus. Irrespirável para a maioria. Dura e incolor como um quartzo. Preta e transparente (e cortante) como a obsidiana. A alegria que ela pode dar é indizível. É o adito – cortada de vez toda esperança – para todas as liberdades possíveis. (CAPRONI apud BERNARDINI, 2011, p. 14)

Interessante observar como a ausência de Deus não é encarada, por Caproni, como razão de angústia ou de inquietação, e sim como uma escolha (“aceitar a solidão” e “cortada de vez toda esperança”) que pode conduzir à plenitude, se considerada como a realização da liberdade mais absoluta. O fl utuar alegre, sem expectativas nem cobranças, daquele que tirou um fardo das próprias costas parece ser a serena conclusão à qual chega Caproni, o que não signifi ca que a ela tenha chegado sem dor.

O olhar lúcido, irônico, pacato que o poeta lança sobre a vida é por fi m o olhar daquele que se sabe não acompanhado por Deus, mas bem resolvido e resignado diante da trajetória terrena. Essa resignação consciente e escolhida – resignação por livre arbítrio – é a que lhe dá a possibilidade de sentir-se e saber-se livre, no sentido mais profundo da palavra, conforme observou seu amigo e admirador Pier Paolo Pasolini, que o defi niu como “um dos homens mais livres do nosso tempo literário [por ser] livre de moralismos e de teses” (PASOLINI, 1960, p. 428).

Uma liberdade que, para Caproni, parece ter sido conquistada junto com o desvincular-se de Deus, uma espécie de aversio lírica, às antípodas, portanto, da rica tradição poética italiana inaugurada com um autor, Dante, que muito desejou essa proximidade e fusão com o seu Deus perfeito, bonito, bom e inalcançável, e que para

Page 28: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni || 27

conseguir chegar até ele, arquitetou um universo complexo, terrível e sublime através do qual o ser humano, eterno viajante à procura da completude, percorreria as etapas de iniciação e expiação que o levariam a ser merecedor da graça divina.

Entre a Divina Commedia dantesca e a Res amissa de Caproni se interpõem, pois, séculos de história, de teologia e de fi losofi a, que cada estudioso poderá abordar, de acordo com a sua necessidade e sua coragem, a fi m de entender e apreciar a evolução do pensamento ocidental, fi ltrado pelo prisma singular de uma tradição lírica, a italiana, que prima, ao longo dos séculos, pela intensidade do acabamento estético aliado ao frágil equilíbrio entre sentimento e razão, esperança e resignação, graça divina e total solidão.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2003.

BERNARDINI, Aurora Fornoni (Org. e trad.). A coisa perdida. Agamben comenta Caproni. Florianópolis: EdUFSC, 2011.

BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 248-256.

CALVINO, Italo. “Nel cielo dei pippistrelli”. In: CAPRONI, Giorgio. Poesie. Milão: Garzanti, 1989.

CAPRONI, Giorgio. Poesie. 1932-1986. Milão: Garzanti, 1989.

CAPRONI, Giorgio. Tutte le poesie. Milão: Garzanti, 1991.

CENDRARS, Miriam. Blaise Cendrars. L’or d’un poete. Paris: Gallimard, 1996.

DI SANTO, Giulia. La poesia al tempo della guerra. Milão: Franco Angeli Editore, 2007.

HAERRI, Silvia. “Dante nella poesia di Giorgio Caproni: le metamorfosi dell’uno e del molteplice”. In: Cuadernos de Filología Italiana. 2004, v. 11, p. 177-190.

HAMBURGER, Michael. A verdade da poesia. São Paulo: Cosac e Naify, 2007.

Page 29: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

28 || Prisca Agustoni de Almeida Pereira

HOBSMAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

JASPERS, Karl. Raison et existence. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1987.

MICHELSTAEDTER, Carlo. La Persuasione e la Rettorica. Milão: Adelphi, 1994.

MONTALE, Eugenio. Ossi di seppia. Milão: Mondadori, 2001.

PASOLINI, Pier Paolo. Passione e ideologia. Milão: Garzanti, 1960, p. 424-428.

RABONI, Giovanni. “Giorgio Caproni”. In: CAPRONI, Giorgio. Poesie. 1932-1986. Milão: Garzanti, 1989, p. 793-798.

SBARBARO, Camillo. Pianissimo. Milão: Il Saggiatore, 1983.

Page 30: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 31: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 32: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Traduções da literatura italiana no início do século XX e o mercado editorial

Leonardo Rossi Bianconi

Maria Amelia Dionisio

Tadeu Macedo

Elaborar um panorama das obras literárias italianas traduzidas para o sistema literário brasileiro nos faz refl etir, a princípio, sobre a função do livro na sociedade brasileira, assim como determinar o perfi l do leitor que exige essa literatura. Outra refl exão necessária e de natureza técnica seria pensar como as traduções – especialmente aquelas publicadas de 1900 a 1950 – ganham espaço no mercado editorial brasileiro ao longo do tempo; respondidos tais questionamentos as relações estabelecidas nesse escambo podem ser explicadas de maneira mais precisa.

Essa literatura estrangeira que chegara para enriquecer o nosso sistema literário nacional tem justifi cação na fi gura do leitor e sua relação com o livro. Marisa Lajolo em sua obra A formação da

leitura no Brasil (1996) afi rma que o negócio do livro em nosso país passa a ter efeito pleno quando surgem clientes capazes de consumir o produto, e pessoas que dominassem com a necessária desenvoltura a habilidade de ler. Será o mercado editorial, então, peça chave da aproximação dessas literaturas.

Entender o percurso da indústria editorial no Brasil é uma alternativa para compreendermos a chegada de traduções italianas feitas para o português brasileiro, tendo em vista os dados quantitativos oferecidos por editoras no que diz respeito aos números

Page 33: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

32 || Leonardo Rossi Bianconi, Maria Amelia Dionisio e Tadeu Macedo

de obras literárias estrangeiras traduzidas em língua portuguesa. Esses dados nos possibilitam analisar as relações entre os sistemas literários em discussão.

O livro, objeto mediador da relação entre as duas literaturas, instrumento favorecedor dessa aproximação, responsável por dar expressão aos valores culturais e ideológicos, que só se efetivam através da sua existência, qualifi cado por Regina Zilberman (1996) “como translúcido portador de um conteúdo transcendente”, é o suporte físico e resultado do mercado editorial.

O comércio do livro será possível no Brasil com a implantação da imprensa régia em 1808, responsável por aproximar outras literaturas da brasileira, ainda em estágio inicial de formação. No que concerne à relação Brasil-Itália, o fenômeno da imigração, estabelece ainda mais o vínculo cultural entre esses dois países de culturas diferentes, que ao longo do tempo mesclam-se dando vida a um sentimento que podemos chamar de “ítalo-brasileiro”, como afi rma Umberto Sala (1983, p. 138).

O diálogo entre essas duas literaturas, fruto de variados fenômenos, é levantado na obra, O livro no Brasil (2005) de Laurence Hallewell que analisa o mercado editorial brasileiro. Hallewell analisa o desenvolvimento da indústria editorial com referência particular nas publicações de obras literárias, objetivando demonstrar como o desenvolvimento da literatura brasileira foi determinado pelas práticas comerciais e condições técnicas da indústria editorial. Dois exemplos que nos permitem analisar de maneira clara essas relações editoriais entre o comércio e a técnica são, a Companhia Editora Nacional, fundada em 1925, e a “efêmera” Instituto Progresso Editorial, cuja atividade se desenvolveu entre 1947 e 1949.

Monteiro Lobato, que cria primeiramente a Monteiro Lobato e Cia em 1918, tinha em mente a importância da venda de livros e publicava-os sempre primando pela boa qualidade, dando especial atenção às capas coloridas e ilustradas, ainda raras no período em questão. Lobato também criou um efi ciente sistema de distribuição ao entrar em contato com bancas de jornais, farmácias, mercearias e todos aqueles interessados em vender livros no território brasileiro. A editora de Lobato entra em decadência na metade dos anos vinte

Page 34: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Traduções da literatura italiana no início do século XX || 33

e por isso, juntamente com outros investidores em 1925, ele funda a Companhia Editora Nacional em seu lugar. Neste momento a Companhia lança diversos autores e tradutores pouco conhecidos na época, dado que uma das metas de Lobato era esta de fato: dar espaço a vozes de novos autores.

A Companhia Editora Nacional procura, portanto, buscar novos títulos direcionados, sobretudo, para um público de “massa”. Quem nos dá uma ideia desse tipo de público leitor é a crítica literária Marlyse Meyer em sua obra Folhetim: uma história (1996), na qual faz um estudo detalhado desse tipo de publicação que, na época, atraía grande número de leitores e “fãs”. O importante capítulo “Imigrante como público” traz à tona as preferências literárias dos imigrantes italianos recém-chegados no Brasil, período este que coincide com o de maior circulação dos folhetins – entre o fi m do século XIX e início dos anos 1940.

Meyer ilustra claramente as relações entre as escolhas literárias e o mercado editorial brasileiro ao afi rmar que “[...] as histórias de lá [Itália], ouvidas de novo aqui [Brasil]. Um alimento para o imaginário que hábeis editores continuarão a fornecer” (MEYER, 1996, p. 334). Através de um testemunho de época, a autora nos apresenta um quadro geral de como essa literatura era consumida. Normalmente era lida por alguém e para um grupo de pessoas que se dispunham a ouvir, isto se dava pelo fato de nem todos os ouvintes serem alfabetizados. Nesse contexto de literatura de massa, advinda da Itália, surgem nomes como de Carolina Invernizio, Carlo Collodi, Emilio Salgari entre outros, cujas obras eram publicadas na forma de folhetins.

O declínio desse tipo de literatura se inicia a partir da década de 1930 com o advento do rádio e do cinema. O rádio substituirá a função do leitor em voz alta ao transmitir as radionovelas. O cinema apresentará uma nova dinâmica na forma de entretenimento diminuindo a procura pela literatura de consumo. Diante deste contexto, o mercado editorial se vê obrigado a mudar de estratégia de edição e de publicação, dando assim maior espaço aos textos integrais, publicados em um único volume e com capas ilustradas. Dessa forma as histórias de aventura, de viagens, de conquistas de

Page 35: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

34 || Leonardo Rossi Bianconi, Maria Amelia Dionisio e Tadeu Macedo

mundos perdidos, e assim por diante, começam também a ganhar fôlego. As obras de Emilio Salgari eram provavelmente as mais representativas deste gênero, assim como nas caracterizações dos heróis “justos” e democráticos ante litteram.

A Companhia Editora Nacional lança a série “Terramarear” e, em 1946, publica nela Os canibais do Pacífi co cuja autoria é creditada a Emilio Salgari. O romance de fato fora lançado postumamente por Nadir Salgari, fi lho de Emilio, e por isso gerou-se a desconfi ança em relação à autenticidade da autoria, pois assim como outros de seus romances passados por originais, muitos eram na verdade obras de imitadores de Salgari. Os editores desfrutavam de seu nome, pois este representava uma garantia de vendas (e dinheiro).

Após a década de 1940, a Companhia Editora Nacional continuou com a publicação dos mais variados títulos e gêneros literários. Nesse mesmo contexto ela estendeu suas publicações para o setor educacional a partir do lançamento da revista Atualidades

Pedagógicas, em 1950, acompanhando o crescimento das escolas secundárias no Brasil, com a publicação de livros didáticos e paradidáticos. A revista teve boa aceitação entre os professores secundaristas, sendo extinta em 1978. No início dos anos de 1970, a Companhia Editora Nacional passa por uma crise desencadeada pela mudança da presidência da empresa. Esta crise chamou a atenção da Livraria José Olympio Editora, que entra com um pedido de fi nanciamento junto ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para comprar a Companhia Editora Nacional. A transação não foi fi nalizada e o BNDES adquiriu a totalidade das ações da Editora. Em 1980 a Nacional foi comprada pelo Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (IBEP), sendo que o nome Companhia Editora Nacional não foi extinto e hoje integra o nome do atual maior grupo editorial brasileiro (Grupo IBEP-Companhia Editora Nacional).

Já a Instituto Progresso Editorial fundada, em 1947, por Francisco Matarazzo Sobrinho, não teve longa vida. O nome da editora sinalizava muito sobre o espírito inovador de seus associados, porém nenhum deles era do ramo editorial, podendo ser este um dos motivos de sua rápida existência.

Page 36: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Traduções da literatura italiana no início do século XX || 35

Instituto Progresso Editorial, empreendimento – também de 1947 – de um grupo de empresários de São Paulo, novatos no ramo editorial, mas decididos a provar que a experiência e o conhecimento comercial geral, aliados a um produto de boa qualidade e à disposição de utilizar prodigamente a publicidade, era tudo de que se precisava. O castigo veio em pouco mais de um ano, apesar da publicação de algumas obras interessantes e importantes, entre as quais as que trouxeram Roger Bastide para o público brasileiro. (HALLEWELL, 2005, p. 436)

A editora não possui apenas o fundador de origem italiana, mas sim parte de sua formação corporativa. Empresários italianos como Rodolfo Crespi, proprietário da maior indústria têxtil de São Paulo da época, e as famílias Lunardelli e Bonfi glioli. Após o fi m da Segunda Guerra Mundial em 1945, muitos italianos vieram para o Brasil em busca de melhores condições de vida ou alguns, ainda, exilando-se por terem fi rmado ligações com o fascismo, regime que fi ndara no mesmo ano. No Brasil, o panorama também era de mudanças políticas com o fi m do Estado Novo. Muitos desses exilados italianos, que vieram para o país, eram acobertados pelos conterrâneos e há indícios de que uma grande parte da formação do grupo IPE era advinda desse exílio, pois mantinham também uma relação íntima com a rede de famílias italianas que residiam na cidade.

Despontam nomes como Francesco Malgeri, diretor de Il

Messaggero, um dos maiores jornais de Roma na época, que vem para o Brasil, após fugir da Itália e passar por Portugal, para ocupar o cargo de diretor geral no IPE; e Luigi Federzoni, membro do alto escalão fascista, acolhido por Malgeri, que colabora com nome falso na editora e no jornal O Estado de S. Paulo. Matarazzo Sobrinho tornou-se uma fi gura emblemática no cenário cultural paulista, pois é criador do Museu de Arte Moderna, do Teatro Brasileiro de Comédia, em parceria com outro empresário italiano Franco Zampari, da Companhia Cinematográfi ca Vera Cruz e, em 1951, torna-se o realizador da I Bienal de São Paulo.

Quanto ao seu catálogo editorial, o IPE buscava contemplar diversas áreas do conhecimento e da cultura, mas se destacavam

Page 37: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

36 || Leonardo Rossi Bianconi, Maria Amelia Dionisio e Tadeu Macedo

a literatura estrangeira e os estudos brasileiros com um maior investimento. O momento histórico brasileiro era de grande efervescência cultural e intelectual com a recém-criada Universidade de São Paulo (1936), porém, após o fi m da guerra, o mercado editorial passa por uma crise devido à grande quantidade de editoras surgidas durante esse período. Com um alto investimento em maquinário, falta de conhecimento específi co na área, desvalorização do câmbio em relação ao mercado de livros importados e o aumento dos custos gráfi cos o IPE não resiste e entra em falência.

Durante as suas atividades, a editora propôs muitos projetos que não abarcavam apenas a publicação de romances, mas também obras ligadas às ciências sociais, à sociologia, à fi losofi a, à história, às artes e às produções dos pesquisadores da Universidade de São Paulo, que começaram a movimentar o plano literário e intelectual. A contribuição do IPE para o mercado editorial brasileiro foi signifi cativa, trazendo obras como a de Croce, Goethe, Jean Paul Sarte, Pirandello entre outros que contribuíram para a formação da intelectualidade brasileira. Dentre esses projetos, o intitulado Minerva contemplava obras ligadas à sociologia e, por isso textos como Materialismo Histórico e Economia Marxista (1947) de Benedetto Croce foram traduzidos e publicados. O material de alta qualidade possibilitou uma boa conservação da obra até os dias atuais. De fato essa editora prezava por uma qualidade não somente de conteúdo, mas também quanto à matéria-prima utilizada na produção do suporte.

A história da literatura brasileira e da infl uência que esta recebeu da literatura italiana, então, será escrita não somente pelo viés das editoras que traduziam e publicavam as obras, mas também pela presença frequente de tais obras traduzidas para o português em diversos momentos. As traduções de Dante, assim como da presença de fi guras dessa literatura em solo brasileiro, colaborando para o enriquecimento da nossa literatura, e também as de Ungaretti, Pirandello e De Amicis, reforçam ainda mais os laços que unem esses dois sistemas.

Essa presença marcante e infl uenciadora de autores italianos na construção da nossa fi sionomia literária tem no mercado editorial

Page 38: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Traduções da literatura italiana no início do século XX || 37

sua justifi cação, a edição de obras traduzidas apresenta ao leitor uma gama maior de possibilidades; a cidade de São Paulo, por exemplo, no advento editorial concentra grande parte das editoras de grande e pequeno porte, responsáveis pela circulação dessas obras traduzidas.

As instâncias de produção de bens culturais tendem segundo Miceli (2001, p. 77) a se concentrar fortemente na região Centro-Sul, o mercado editorial, por exemplo, terá maior expressividade nesse eixo. O boom editorial ocorrido na cidade de São Paulo, na década de 1920, tem justifi cativa no acelerado crescimento econômico da cidade, muitos entre os novos empresários do setor editorial eram imigrantes, como já apontado, e estavam, de alguma maneira, enfronhados nos negócios de importação. Por exemplo, entre 1914 e 1920, a indústria manufatureira paulista cresceu cerca de 25% ao ano, trazendo, sem dúvida, benefício para o mercado editorial.

A crescente criação de editoras e livrarias nessa nova metrópole, nas décadas de 1914 a 1920, são sintomas de um público leitor em crescimento, apontando quando possível o que deseja consumir. Miceli (2001, p. 147) explica o crescente boom editorial nas demandas que fazem as novas categorias de leitores, capazes de sugerir, quando não ditando aos editores as obras a serem importadas ou traduzidas.

As décadas de 1909 a 1950 serão para São Paulo cenário de intensas mudanças; a primeira guerra mundial e suas consequências tiveram um efeito estimulante sobre a indústria brasileira, na medida em que os produtos locais foram substituídos cada vez mais por produtos importados não disponíveis. Essa mudança no cenário mundial estimulou sobremaneira o mercado editorial paulista.

A edição de obras estrangeiras, apresentadas por Laurence Hallewell em O livro no Brasil, mostra-nos um leitor cada vez mais exigente, responsável pelo crescimento do mercado editorial brasileiro. A aparição de Monteiro Lobato no mercado paulista apresenta uma nova confi guração desse âmbito. Nas palavras de Miceli:

O cosmopolitismo intelectual, a coexistência de autores provenientes de conjunturas intelectuais distin tas, a diversidade de áreas e gêneros, o empenho em dar cobertura

Page 39: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

38 || Leonardo Rossi Bianconi, Maria Amelia Dionisio e Tadeu Macedo

aos principais tópicos em torno dos quais se articulava o debate político e intelectual da época, evidenciam os alvos comerciais que permeavam a política editorial seguida por Lobato. Os responsáveis pela linha editorial buscaram em outras e novas formas de produção erudita, comprovando a existência de um público disposto a consumir. (MICELI, 2001, p. 91)

Ainda em relação a Lobato, Wilson Martins (apud HALLEWELL, 2005, p. 329) discute em História da inteligência Brasileira que graças ao seu extraordinário poder de autopropaganda e ao meio privilegiado e prestigioso de publicidade que lhe proporcionava a Revista do Brasil

e o Estado de São Paulo, ele monopolizou toda a glória da imensa expansão editorial dos anos vinte.

As traduções de obras italianas, editadas na cidade de São Paulo entre as décadas de 1920 a 1950, são contabilizadas na obra de Laurence: o autor apresenta, em linhas gerais, as edições dos títulos de autores nacionais, assim como de obras traduzidas, evidenciando um quadro capaz de explicar, o que relativamente em porcentagem é lançado no mercado paulista no tocante às traduções italianas. Para o autor, os gêneros mais escolhidos pelo leitor era o que ditava a produção. Miceli (2001, p. 156) informa que a poesia, a crítica e a história literárias são gêneros mais publicados por editoras pequenas, ao passo que os livros didáticos e obras de fi cção que propiciam maior lucratividade, concentrando recursos no setor editorial, são priorizados.

Um dos momentos de maior circulação de obras italianas traduzidas para o português foi o período da Semana de Arte Moderna. O livro no Brasil, de Hallewell, fornece dados sobre este fato apresentando, por exemplo, a livraria paulista AntonioTisi, que não era apenas local de encontro dos escritores modernistas, mas que oferecia ao público leitor brasileiro obras de autores contemporâneos da literatura italiana. A livraria, que se situava no Largo São Bento, publicou, para se ter uma ideia, traduções de obras italianas como: Un uomo fi nito (traduzido como Um homem acabado, 1923) e Storia

di Cristo (traduzido como História de Cristo, 1924), de Giovanni Papini, e Novelle scelte (traduzido como Novelas escolhidas, 1925), de Luigi Pirandello. Hallewell ressalta também as traduções de

Page 40: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Traduções da literatura italiana no início do século XX || 39

Marinetti, Ardengo Soffi ci e Aldo Palazzeschi. Posteriormente, a livraria Antonio Tisi mudou de nome para Rede Editora Latina, que no ano de 1934 publicou os Canti (Poemas), de Giacomo Leopardi.

Os anos seguintes àqueles da Semana de Arte Moderna apresentam evolução na tradução de obras italianas, resultado da aproximação de escritores brasileiros à corrente futurista. A Companhia Editora Nacional ocupa, segundo Hallewell, o primeiro lugar entre as fi rmas brasileiras dedicadas exclusivamente à edição de livros, num longo espaço de tempo, de 1921 a 1950, dado importante para se entender a periodização em que mais aparecem traduções de obras da literatura e cultura italianas. Ainda sobre a tradução no Brasil, Miceli assim expõe:

Em meio às novas condições resultantes da crise de 1929 e, mais adiante, em virtude da impossibilidade de continuar importando livros com o início da Segunda Guerra Mundial, afrouxam-se os laços da sujeição cultural. A nova correlação de forças no plano internacional ensejou nas condições de dependência dos países periféricos mudanças de peso, que não se limitaram à troca da sede hegemônica, os Estados Unidos em lugar da Europa. A importação de bens culturais subsistiu, mas com feições distintas do que ocorria na Republica Velha. Doravante, em vez de venderem as edições originais de obras estrangeiras, os editores adquirem os direitos de tradução das obras, vale dizer, a produção destinada ao mercado interno acaba suplantada a produção estrangeira diretamente importada na língua original. (MICELI, 2001, p. 147)

Na década de 1930, a indústria do livro prospera em número de edições, tanto de obras nacionais quanto estrangeiras. Hallewell não apresenta em números precisos um panorama de obras traduzidas por qualquer editora paulista, mas podemos pensar a partir dos dados, no que diz respeito aos gêneros publicados pela editora Melhoramentos, entre as décadas 1938 a 1943, apresentados por Miceli. Ele observa que nesse período, o gênero de fi cção ocupa o primeiro posto, devido ao número de leitores que certamente infl uenciavam as escolhas editoriais do ponto de vista comercial.

Page 41: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

40 || Leonardo Rossi Bianconi, Maria Amelia Dionisio e Tadeu Macedo

Durante as décadas sucessivas houve um aumento signifi cativo, não apenas no número de publicações, mas também de editoras. Em função dessa prosperidade do mercado editorial brasileiro e as informações até aqui levantadas com o auxílio das pesquisas de Laurence Hallewell e Sergio Miceli é possível perceber que a publicação e a tradução de obras italianas infl uenciaram e movimentaram tal mercado, contribuindo de forma positiva com o sistema literário nacional, que até então estava em formação.

Referências

CROCE, Benedetto. Materialismo histórico e economia marxista. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948.

HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2005.

LAJOLO, Marisa. A formação da leitura no Brasil. 3. ed. São Paulo: Ática, 1996.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 334.

MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Cia das letras, 2001.

REGO, José Lins do. Doidinho. São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1976.

SALA, Umberto. A imigração no Brasil 1925. Eduem: Maringá, 2005.

SALGARI, Emilio. Os Canibais do Pacífi co. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946.

Page 42: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 43: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 44: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950)

Maria Teresa Arrigoni

De uma busca se trata, na realidade, a tentativa de coletar e conhecer as diversas traduções das obras de Dante, mesmo aquelas que não tiveram uma divulgação além de um único volume. Ao tratar, neste primeiro momento, das obras de Dante Alighieri traduzidas no Brasil – no período que vai de 1901 a 1950 – não posso deixar de apontar para o fato de que, embora constem uma tradução da Vida Nova e uma da Monarquia, na grande maioria dos volumes consultados constatou-se a presença marcante de traduções da Divina

Comédia (DC), esse clássico que é sem dúvida o mais conhecido em termos de literatura medieval, senão o único a frequentar tantos séculos e chegar a nós leitores de hoje. Esse trabalho,1 pois, acaba por se restringir às traduções da DC, seja em edições completas, em cantos esparsos, ou fragmentos de cantos, coletados até o momento.

Um levantamento das traduções da Divina Comédia realizadas no Brasil apontou a segunda metade do século XIX como a época em que essas obras começaram a ser produzidas e publicadas, dentro do contexto cultural do Brasil do Segundo Império (1840-1889). Embora Paulo Paes nos informe de que a quantidade dos textos traduzidos (e não se trata de pensar só no idioma italiano) pode ser considerada

1

Page 45: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

44 || Maria Teresa Arrigoni

limitada naquele período, já que muitos leitores e autores brasileiros, em muitos casos, estudavam no exterior e eram conhecedores de outros idiomas. Ainda segundo Paes, mesmo sem alcançar um número expressivo, as traduções certamente infl uenciaram o público leitor, pois:

exerceram elas uma ação por assim dizer pedagógica, apresentando-lhes os grandes autores de outras literaturas e colaborando assim decisivamente para educar-lhes o gosto, ao mesmo tempo que lhes forneciam pontos de referência para uma visão comparativa das obras originariamente escritas no seu próprio idioma. (PAES, 1990, p. 10).

A primeira tradução da Divina Comédia que resultou da pesquisa foi publicada em uma antologia de textos italianos traduzidos, organizada por Luís Vicente De Simoni, no ano de 1843, que até esta data não pudemos localizar. O ponto de partida, pois, para a necessária digressão ao século XIX, já que algumas traduções, como veremos, são republicadas até hoje, será a tradução de um fragmento do Canto VI do Purgatório, realizada por Gonçalves Dias, em 1864. Tradução essa que atualmente faz parte da antologia Poesia completa

e prosa, na qual se revela o leitor de Dante no poeta brasileiro – que em sua autobiografi a afi rma conhecer vários idiomas, aprimorados durante as muitas viagens à Europa, dentre eles o espanhol, o italiano, o francês, o inglês e o alemão. Difi cilmente saber-se-á o porquê da escolha desse canto específi co, mas o conteúdo do sexto canto remete a questões políticas do tempo de Dante (o que aliás se repete também no canto sexto do Inferno e do Paraíso). É também o momento do reencontro de Virgílio com seu conterrâneo Sordello, um interlocutor que lhe falará, entre outras coisas, a respeito de Mântua, terra natal de ambos.

Dez anos depois de Gonçalves Dias, Machado de Assis publicou a tradução de um canto do Inferno. Sua tradução do canto XXV, o canto dos ladrões, punidos com a metamorfose das serpentes, foi publicada no jornal O Globo, em 24 de dezembro de 1874 e hoje consta de sua Obra Completa. Nesse canto, bem como no anterior, são narradas as horrendas penas dos ladrões, na sétima

Page 46: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950) || 45

fossa do oitavo círculo. Uma infi nidade de animais peçonhentos, pequenos dragões e cobras atacam constantemente os pecadores, e Dante pôde presenciar o momento em que uma das serpentes, ao morder um condenado, rouba-lhe o corpo, e por sua vez tem o seu corpo de serpente roubado pelo outro: assim eternamente. E o poeta Dante conseguiu, em seus versos, fazer com que essas metamorfoses aconteçam a cada leitura. Terá sido esse o motivo da escolha de Machado?

Por outro lado, que Machado de Assis tivesse sido leitor de Dante não restam dúvidas, já que em muitos momentos de seus romances essa presença se torna evidente, como no encontro de Brás Cubas e Virgília em que o narrador afi rma: “Valsávamos uma vez, e mais outra. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu” (ASSIS [a], 1977, p. 180), com referência direta aos versos 137-138 do Canto V do Inferno, em que encontramos o fi nal da tocante narrativa de Francesca, a alma que é punida, juntamente com seu amado Paulo, na tempestade incessante do círculo dos luxuriosos.

Sim, senhor, amávamos. Agora que todas as leis sociais no-lo impediam. Agora é que nos amávamos deveras. Achávamo-nos jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatório, di pari, come buoi che vanno a giogo; e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie de animal, menos tardo, mais velhaco e lascivo. (ASSIS [a], p. 188).

Trata-se do verso inicial do canto XII do Purgatório, em que Dante se põe a caminhar ao lado de Oderisi, conhecido autor de iluminuras, punido no patamar dos soberbos, para poder segui-lo em seu trajeto e conversar com ele. E, fruto de uma rápida busca em Dom Casmurro, no capítulo em que se narra dos olhos de ressaca de Capitu, reaparece o Machado leitor de Dante:

Há de dobrar o gozo aos bem aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os

Page 47: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

46 || Maria Teresa Arrigoni

seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. (ASSIS[b], 1977, p. 114).

Se Dante aparece e transparece com frequência nos textos machadianos, a tradução de Machado da DC limitou-se àquele canto XXV do Inferno, embora o escritor tenha atuado intensivamente como tradutor, naquele momento em que a tradução começava a se tornar, mais do que uma tendência, uma necessidade. Isso ocorreu no Brasil a partir da década de sessenta do século XIX, época em que o romance-folhetim constituiu-se no gênero mais traduzido e mais veiculado através dos jornais. “Quando teriam começado os editores brasileiros a publicar traduções?”, pergunta Brito Broca em um capítulo de seus escritos, em que evidencia sua preocupação com essa atividade no Brasil. E esclarece ainda que “o gênero de livros que em primeiro lugar interessou os nossos editores, em matéria literária, foi o romance, e, principalmente, o romance-folhetim. Não havia, então, jornal que não publicasse um romance em rodapé” (BROCA: 1991, 58), quase sempre do francês. Supria-se, com isso, a necessidade de leitura de um público para o qual o folhetim havia se tornado imprescindível e ao mesmo tempo criava-se um mercado de trabalho para muitos, já que “o mister de traduzir começava a se apresentar aos intelectuais, não diremos como um meio de vida, mas um recurso econômico semelhante a qualquer outro” (BROCA, 1991, p. 60).

Tal demanda por traduções de textos franceses reitera a importância do idioma francês como um fator determinante na cultura brasileira naquele tempo. Paes chega a afi rmar que “desses idiomas de cultura, o principal foi decerto o francês, a ponto de Joaquim Nabuco, em fi ns do século passado, ter podido escrever que ‘o Brasileiro [...] lê o que a França produz’” (PAES, 1990, p. 10).

É possível afi rmar, pois, também no caso de Machado, como no de Gonçalves Dias, que a tradução de trechos da DC, a partir do italiano, parece não ter passado de um episódio pontual, já que não

Page 48: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950) || 47

temos notícia de ulteriores incursões tradutórias na obra de Dante. Na verdade, a atividade maior de Machado de Assis como tradutor concentrou-se, em autores franceses, conforme o testemunho de Sacramento Blake:

Queda que as mulheres teem para os tolos. Traducção do francêz. Rio de Janeiro, 1861, 43 páginas. [...] Os trabalhadores do mar, por Hugo, Rio de Janeiro, 1866, 3 vols.”. [...] É um romance traduzido para o Diario do Rio de Janeiro, onde foi primeiramente publicado desde 16 de março deste anno, ao mesmo tempo em que se publicava a obra em Paris, e quando outra traducção se fazia em Lisbôa. (1898, IV, p. 196-97).

O autor citado aponta ainda Machado como tradutor de peças teatrais de autores franceses, como as comédias Os descontentes, de Racine e O barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais; O suplício de uma

mulher, drama em três atos de E. Girardin e Dumas Filho, e ainda Montjoye, comédia de Feuillet e A familia Benoiton, comédia em cinco atos de Sardou. Segundo Wilson Martins, além das traduções já citadas, foi também de Machado a tradução de O Anjo da Meia-

Noite, de Barrière e Plouvier, em 1866, para o Diário do Rio de

Janeiro. No juízo de Wilson Martins, essa atividade de Machado de Assis relacionou-se ao fator mais concreto envolvendo a questão da sobrevivência, a humana lida “da ‘mesquinha realidade cotidiana’ que, além disso, o sujeitava a tarefas que, como o jornalismo e a tradução, trazem consigo o pagamento imediato, compensação mais do que sufi ciente, no caso, para a sua insignifi cância (MARTINS, 1977, III, p. 257).

Dos textos citados, surge um esboço da fi gura de Machado tradutor, a complementar as informações de sua biografi a mais famosa, a de Lúcia Miguel Pereira, na qual transparece essa atividade materialmente necessária para MA, mas nem por isso menos importante. Por outro lado, percebemos como ainda está presente a ideia da tradução como tarefa inferior à da produção literária, bem como a do jornalismo visto somente como fonte de renda para a sobrevivência, ambos praticamente considerados trabalhos complementares.

Page 49: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

48 || Maria Teresa Arrigoni

Mas, voltando a Dante, não posso deixar de mencionar dois fragmentos de cantos traduzidos por D. Pedro II, publicados inicialmente em 1889, em Petrópolis, e para este trabalho consultados no volume digitalizado2 Poesias completas de Pedro II. Essas traduções, embora até o momento pouco conhecidas, referem-se a dois episódios do Inferno dentre os mais conhecidos e comentados: o canto XXXIII (“Episódio do conte Ugolino”, versos 1-90) e o canto V (“Episódio de Francisca de Rimini”, versos 73-142) e compartilham as páginas do volume com outras traduções, a maioria do francês, e com poesias da autoria do imperador.

Da primeira tradução completa da DC nos dá notícia, dentre outros autores, Luís da Câmara Cascudo, em sua obra Dante Alighieri

e a tradição popular no Brasil:

A primeira Divina Comédia traduzida por um brasileiro e publicada no Brasil foi a edição em versos brancos, versos soltos como se dizia naquele tempo, do barão da Vila da Barra, doutor Francisco Bonifácio de Abreu. Não teve a emoção de vê-la impressa. Falecera em julho de 1877 e o volume saiu em princípios de 1888, na Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 505 p. e 31 de prefácio de T. Alencar Araripe. (CÂMARA CASCUDO, 1963, p. 21).

E desse quase que desconhecido intelectual do século passado, nos dá notícias Pedro Calmon, em sua História da Literatura Bahiana:

Foi coronel honorário do Exército, por serviços prestados na Campanha do Paraguai, deputado geral em várias legislaturas, lente da Faculdade de Medicina da Côrte, médico do Imperador. Candidatou-se à vaga de João Lisboa no Liceu Provincial (geografi a), em 1850. Foi o terceiro colocado no concurso a que se submeteu e nomeado, apesar disso. Sensível às críticas que se fi zeram à nomeação, renunciou e mudou-se [da Bahia] para o Rio de Janeiro. (CALMON, 1949, p. 187).

2

Page 50: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950) || 49

No que se refere à tradução, uma leitura do prefácio à tradução do Barão da Vila da Barra, de autoria de Araripe Jr.3, mostra-nos que o prefaciador se deteve mais em demonstrar sua erudição a respeito de conhecidos tradutores da DC, como Littré, e Lamennais, na França, além de Antônio de Castilho, em Portugal, do que propriamente em apontar os aspectos da tradução que prefaciava. Levantou questões a respeito da escolha do registro linguístico da tradução, já que, no caso de Littré, a opção por traduzir Dante para o francês do século XIII teve como resultado o fato de sua tradução ter sido retraduzida para o francês de sua época. A certa altura, Araripe afi rma que a tradução do Barão, apesar de apresentar:

“desvios, muitas infi delidades”, seria sufi ciente para a compreensão por parte dos leitores dos episódios principais e das linhas gerais da obra. E acrescenta que “na impossibilidade de lutar com a rima terza de Dante, [...] o Barão da Villa da Barra preferiu o verso sôlto às terzinas do poema”, que apresenta a vantagem de “manter quase sempre a mesma liberdade de movimentos. (ARARIPE JR, 1960, II, p. 12).

A adoção do verso solto teria sido vista, pois, pelo prefaciador como uma posição intermediária entre a opção pelos versos em rima e a opção pela prosa, “que será sempre o caminho mais simples de chegar até o pensamento do poeta”. A tradução para o português, favorecida pela “fl exibilidade da sua sintaxe” possibilitou ao tradutor, ainda segundo Araripe, fi car menos preso a uma “tradução palavra por palavra” e, – por que não? – merecer a alcunha de “o novo intérprete de Dante”, talvez o ‘novo’ por ‘brasileiro’, ou em posição de renovação em relação às traduções parciais já citadas.

Da leitura do prefácio, temos também a certeza de que o Barão não se limitou à tradução da DC, pois Araripe Jr. apresenta a escolha dos poetas como argumento para considerar o tradutor como alguém que “tinha chama divina e era um espírito de eleição”, já que havia marcado “a sua predileção pelos monumentos das duas

3

Page 51: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

50 || Maria Teresa Arrigoni

maiores literaturas dos tempos modernos: esta tradução e as dos dramas de Shakespeare” (ARARIPE JR, 1960, p. 8).

Ainda a respeito desse trabalho de tradução da DC, um dos comentários mais contundentes é o que consta das Memórias, de Agrippino Grieco, que assim se refere ao Barão:

Com relação ao baiano Bonifácio de Abreu, barão de Vila da Barra, ignoro se redigiu algum desses livros tirânicos, talmúdicos, pavor dos estudantes. Mas sei que esse pardavasco traduziu a Divina Comédia em versos brancos. O poeta fl orentino a certa altura do ‘Inferno’ encontra Maomé estropiado (“Vedi come storpiato è Maometto...”) mas, em Bonifácio, estropiado é o próprio Dante. Mais aconselhável lê-lo no original italiano, mesmo com auxílio de dicionário, que lê-lo na versão do ilustre clínico guindado ao baronato. (GRIECO, 1972, II, p. 229).

É claro que temos nesse depoimento bem mais do que uma referência à tradução, mas restringindo nosso foco à DC, encontramos nas palavras de Grieco um convite explícito à leitura de Dante em italiano, sem passar pelo ‘suplício’ de ter que lê-lo pelos versos do Barão. Menos contundente, sem contudo deixar de lado a ironia, Pedro Calmon assim se referiu ao Barão e à sua tradução:

Médico e professor, entretendo com as musas, nem sempre dóceis, o tempo que roubava à ciência, Francisco Bonifácio de Abreu versejou e escreveu abundantemente na Bahia de 1845 a 1850. A política e uma cátedra na Faculdade de Medicina o retiveram depois no Rio de Janeiro, onde ganhou créditos de cirurgião e fama de poeta culminada esta na versão da Divina Comédia. (CALMON, 1949, p. 188)

Acrescenta ainda Calmon que em outras poesias de seu período juvenil, o Barão apresentava um estilo demasiado enfático, aliado a um despropositado e ingênuo entusiasmo lírico; e cita o exemplo de um poema que o Barão compôs por ocasião do assassinato de uma moça, de nome Júlia, da parte do professor Lisboa, em que o tribunal

Page 52: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950) || 51

celeste, e as fi guras dos anjos e arcanjos rodeando a jovem remetem a imagens dantescas.

Na Enciclopedia Dantesca, que reúne os verbetes produzidos pelos grandes estudiosos da obra-prima de Dante, consta que a tradução do Barão da Vila da Barra resultou numa obra “[...] de grandes pretensões, em uma linguagem rebuscada cheia de cultismos e de inversões desnecessárias, e com uma versifi cação muitas vezes infeliz e forçada.” (TAVANI, 1984, I, p. 696).4

Eis que os comentários sobre a tradução do Barão se inserem, juntamente com seu autor, no cenário político-cultural do Brasil de fi m de século com suas implicações poder-cultura, cargo-literatura, e trazem à tona aquela necessidade de pertencer ao campo das artes e da literatura, que parece andar de mãos dadas com o prestígio e o reconhecimento público.

Outra tradução da DC, neste caso a primeira a ter sido realizada do Inferno completo, foi a do pernambucano monsenhor Joaquim Pinto de Campos, publicada em Lisboa, em 1886. A respeito do tradutor, comenta Sacramento Blake:

Militou desde 1845 sob as bandeiras de um dos partidos politicos do imperio e cooperou muito a bem da ordem publica, alterada pela revolução pernambucana de 1849; foi deputado à assembléa provincial e à geral em cinco legislaturas, sendo o relator da commissão especial que deu parecer sobre o projeto relativo à liberdade de ventre, convertido na lei de 28 de setembro d 1871. Exerceu o cargo de bibliothecario da faculdade de direito, o de professor de eloquencia do gymnasio pernambucano e de membro do conselho director da instrucção publica. (1898, p. 224).

Câmara Cascudo aponta em sua obra aspectos da participação de Pinto de Campos à vida política e cultural brasileira, como deputado provincial e seis vezes Deputado Geral por Pernambuco, pelo Partido Conservador. Relator do projeto da lei de 1871, que libertava os fi lhos nascidos de mães escravas; foi contrário à aprovação

4

Page 53: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

52 || Maria Teresa Arrigoni

do casamento civil, que para ele não poderia ter valor de sacramento; recebeu o monsenhor, ainda segundo Câmara Cascudo, inúmeras condecorações e participou de diversas polêmicas envolvendo assuntos religiosos. (p. 21-25).

Quanto à atividade de tradutor, seguindo as referências de Blake, consta que tenha traduzido:

passagens dos discursos proferidos por M. Pasteur e M. Renan, por occasião da entrada do primeiro no instituto de França, como sucessor de M.E. Littré. Lisboa, 1882, 23 pags. In 8º; A divina comedia de Dante Allighieri: versão portugueza commentada e annotada. Lisboa, 1886, CCI – 627 pags. In 4º gr. Com o retrato de Dante e a fi gura de seu inferno. Duzentos e uma paginas são occupadas com o prologo, traços biographicos de Dante, etc... Quanto à divina comedia o traductor... não passou do Inferno. [...] A edição do livro é nitida”. (SACRAMENTO BLAKE, 1898, p. 229).

Publicada pela primeira vez em Lisboa, essa tradução do Inferno da DC encontra-se atualmente nos dois primeiros livros da coletânea das obras de Dante Alighieri traduzida em português e publicada em dez volumes pela Editora das Américas. É uma tradução em prosa na qual, além de ser precedido por uma longa apresentação, cada canto traduzido é seguido de um capítulo com longas notas explicativas e comentários a respeito de fatos históricos e dos episódios.

Sobre as publicações, cabe ressaltar algo que diz respeito ao fato de obras de autores brasileiros serem impressas na Europa. Esclarece-nos Paes que:

No terreno editorial, a que está organicamente vinculada a atividade do tradutor enquanto profi ssional, fi rmava-se então a Livraria Garnier como a principal editora brasileira, situação que manteve até o começo deste século, mau grado as suas edições de nossos autores, Machado de Assis em primeiro lugar, fossem impressas na França. (PAES, 1990, p. 22-23).

Page 54: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950) || 53

Como se isto não bastasse, um bom número de traduções vinha de Portugal, uma vez que, ainda segundo Paes, naquela época, “ainda não se acentuara tanto a diferenciação entre o falar de lá e de cá que tende hoje a afastar o leitor comum das versões portuguesas” (PAES, 1990, p. 22-23). Outras questões ligadas à produção editorial, no e fora do Brasil, apresentam-se à medida que encontramos, por exemplo, volumes traduzidos por brasileiros publicados em Portugal, e depois vendidos aqui, assunto que será tema de pesquisa por parte de membros do grupo.

Mas, voltando às traduções das obras de Dante, é a tradução integral da DC realizada por José Pedro Xavier Pinheiro, em 1888, que vai ocupar um lugar de destaque, tendo sido reeditada inúmeras vezes. A primeira publicação, póstuma, resulta ter sido em 1907, e várias reedições foram publicadas em 1908, e em 1918, quase todas com ilustrações de Gustave Doré, fato que se repetiu em muitos outros momentos, incluindo a edição comemorativa de 1946, além de outras mais recentes. Desse professor baiano, autodidata e conhecedor de vários idiomas, afi rmou Raimundo de Menezes: “Notabilizou-se pela excelente tradução da Divina Comédia, de Dante, que surpreendeu a cultura nacional, seis anos depois da sua morte, pois era apenas conhecido como o autor de modestas monografi as. Foi editada pelo seu genro José Luís de Freitas” (MENEZES, 1969, IV, p. 1001).

Verbetes como o de Menezes e o de Jacinto do Prado Coelho, que vem a seguir, certamente contribuíram para criar a atmosfera laudatória em torno dessa tradução, que foi, ao que parece, sugerida a Xavier Pinheiro pelo próprio Machado de Assis, seu colega de repartição no Rio de Janeiro. Sobre ela, Coelho em seu Dicionário afi rma que “a melhor tradução da Divina Comédia (1888) pertence a um brasileiro: José Pedro Xavier Pinheiro” (COELHO, 1960, p. 821).

No mesmo tom prosseguem os elogios no comentário de Sacramento Blake:

Xavier Pinheiro traduziu vernacularmente para nossa lingua os 34 cantos do Inferno, os 33 do Purgatorio e os 33 do Paraizo. Artista como era na verdadeira accepção da palavra, não admitia impurezas de linguagem, e fanatico pelo genio de Dante, não poupou esforços para legar às nossas lettras um

Page 55: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

54 || Maria Teresa Arrigoni

trabalho digno de admiração. Além da traducção, annotou todos os cantos e na introducção da obra, que verteu com verdadeiro amor à fôrma, vasou todos os conhecimentos e mostrou modestamente quanto era seu cerebro educado, quanto éra elle erudito. (1898, p. 121).

No que se refere à maior aceitação da tradução de Xavier Pinheiro, além dos textos apresentados, parecem constituir prova sufi ciente as inúmeras reedições ao longo dos últimos setenta anos, cujo levantamento ainda não foi concluído. Na Enciclopedia

Dantesca, no verbete “Brasile”, que, a meu ver, merece ser atualizado diante das mudanças no panorama das traduções da DC no Brasil, encontramos ainda o seguinte comentário de Giuseppe Tavani a respeito dessa tradução:

Em 1888, e sempre no Rio, publica-se o Inferno, traduzido por José Pedro Xavier Pinheiro em tercetos de decassílabos límpidos e ritmicamente corretos, embora às vezes encadeados de forma irregular. Esta traducção brasileira, como está orgulhosamente impresso na primeira página, louvável pela fi delidade ao texto e pelo domínio da linguagem e acompanhada de um comentário pormenorizado, sobretudo histórico, é de longe a melhor dentre as que foram realizadas até esses últimos anos nos países de língua portuguesa. [...] essa tradução alcançou um considerável sucesso e superou defi nitivamente a de Abreu”. (1984, I, p. 696).5

Algumas notas destoantes da linha elogiosa podem ser lidas nas menções acerca da tradução de Xavier Pinheiro em Atores e

autores, de Sílio Boccanera Jr., e nas memórias de Agrippino Grieco. O primeiro referiu que a tradução de Xavier Pinheiro “mereceu crítica severa de Sílio Boccanera (pai), italiano de nascimento e

5

Page 56: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950) || 55

conhecedor profundo da literatura pátria” (apud ALVES: 1977, 116). Quanto ao segundo, sem perdoar, nem Xavier Pinheiro nem o Barão da Vila da Barra, afi rmou: “Os aportuguesadores de Dante, barão da Vila da Barra, Xavier Pinheiro e outros, até pareciam gibelinos vingativos, tal a fúria com que maltrataram o pobre guelfo ainda uma vez desterrado...”, numa citação que aqui tomo de empréstimo a Paes (1990, p. 22).

Estudos mais específi cos, abrangendo as questões tradutórias, podem analisar as escolhas de Xavier Pinheiro, mas o que se pode constatar é que, não constam outras traduções integrais da DC na primeira metade do século XX, com toda probabilidade devido ao sucesso da tradução de Xavier Pinheiro, e de suas sucessivas reedições.

Somente refi to a notícia de uma tradução (anos 20) do Canto V do Inferno, ainda não localizada, de autoria do gaúcho Eduardo Guimaraens, cujo nome, no entanto, encontra-se relacionado “ao fascínio ao qual os simbolistas não escaparam”, ou seja, mais diretamente, às traduções de Baudelaire, de quem Guimaraens traduziu oitenta poemas de As fl ores do mal, tendo sido, segundo Paes (1990, p. 24), “quem melhor e mais extensamente o traduziu”.

A partir dos anos trinta do século XX, houve uma intensifi cação do trabalho tradutório, devido, ainda segundo Paes (p. 25), à criação no Brasil “das condições mínimas, de ordem material e social, possibilitadoras do exercício da tradução literária como atividade profi ssional, ainda que as mais das vezes subsidiária”. Com relação às traduções da DC, outros dois escritores publicaram seus trabalhos contendo cantos do Inferno: Generino dos Santos e Gondin da Fonseca.

Do primeiro, que produziu uma tradução, em versos rimados, publicada em 1937, de dois cantos do Inferno – o décimo (conhecido como o canto de Farinata e Cavalcanti) e o décimo terceiro (o canto dos suicidas) – temos um testemunho nas palavras de Agrippino Grieco, em que afi rma: “Generino dos Santos teve um canto da sua tradução do ‘Inferno’ inserto no Diário Ofi cial porque um deputado o leu em sessão da Câmara. Dele afi rmavam que o Corvo de Poe lhe entrara no quarto sujo, por engano, e saíra logo num velocíssimo

Page 57: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

56 || Maria Teresa Arrigoni

voo, a crocitar: “Nunca mais!” (GRIECO, 1972, 330). Depoimento que serve mais uma vez a demonstrar como literatura e política andavam de mãos dadas e quanto a ironia perseverava nos escritos da época.

Ainda a propósito desse tradutor, Generino dos Santos, o autor da advertência que precede seus poemas (indicado somente com L.F.V.S.), coloca novamente em foco a leitura ocorrida na Câmara e aclara o caráter ‘de gaveta’ dessa tradução, afi rmando em tons neutros que não lhe cabia “criticar a excellencia ou tibieza de estro que porventura existam nos poemas originaes ou nas traducções” e que teria apenas notado, “num cotejo com o original uma ou outra pequena distração porventura existente”. Citando o fato de alguns trabalhos sobre Dante, em homenagem ao seu sexto centenário, terem sido lidos na Câmara, esclarece que “no prefácio da 2a edição da versão do Barão da Villa da Barra, o editor Garnier discorrendo a respeito das tentativas de passagem para o portuguez, da Divina Comedia afi rma: [...] e a de Generino dos Santos só a conhecem os seus amigos, por não ter elle querido, até então, dar-lhe publicidade” (apud SANTOS, 1938, VIII, p. 8).

A tradução dos cantos do Inferno de Generino dos Santos encontra-se inserida em sua obra Humaníadas, de oito volumes, em que podemos nos certifi car seja de sua incondicional adesão à fi losofi a positivista, seja de seu fascínio pela vida e pela obra de Dante. Generino produz uma série de poemas que têm por tema Dante e o amor desse por Beatriz, fatos da vida do poeta fl orentino e/ou episódios retirados de suas obras.

Informa-nos ainda Wilson Martins que Generino, juntamente com Aníbal Pinto, foi o criador em Recife da ‘revista infernal’ O

Diabo a Quatro:

de caráter crítico e combativo, tendo defendido o Abolicionismo e as idéias republicanas”, além de ter colaborado em várias outras publicações, como O Futuro (1864), o Liberal Acadêmico (1865), e de ter fundado, “em companhia de Sousa Pinto, O Trabalho. Em todas essas publicações, deixou esparsas as suas poesias, somente a partir de 1937 reunidas em livro. (MARTINS, 1977, p. 488).

Page 58: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950) || 57

A outra tradução de cantos do Inferno realizada nos anos trinta, mais precisamente datada de 1938, a de Gondin da Fonseca, consta do volume Poesia de angústia, sofrimento e morte, em que o autor reúne suas diversas traduções, que vão de Wilde a Rimbaud, de Verlaine a Eliot, de Poe a Lawrence. Dos autores italianos, ao lado da tradução do canto V (o canto de Francesca e Paolo, já citado), e de parte do canto XXXIII do Inferno (o canto de Ugolino, já mencionado), encontram-se os versos do Cântico de louvor às

criaturas de São Francisco de Assis.Na seção Ao leitor, na abertura da edição utilizada, o tradutor

faz uma retrospectiva de seu trabalho, afi rmando ser um fato milagroso um livro de traduções em verso atingir a quarta edição no Brasil, embora com tiragens modestas, o que, segundo Gondin, vem a demonstrar que “cerca de mil pessoas” seriam apreciadoras dos autores por ele traduzidos, acrescentando: “Quando há quarenta anos apareceu a minha primeira versão de O Corvo, o poema só era conhecido pela de Machado de Assis, que eu admiro mas não segue bem o original”. Da tradução de Dante afi rma que foi feita “por simples prazer intelectual” (FONSECA, s/d, p. 9-10).

Outro tradutor do Inferno foi Júlio César de Melo e Sousa, mais conhecido pelo pseudônimo de Malba Tahan, renomado professor do Colégio Pedro II e autor de inúmeras obras em torno de lendas e curiosidades, dentre as quais a mais conhecida é, sem dúvida, O

Homem que calculava. Seu trabalho como tradutor de Dante, editado pela Ediouro, não está citado na breve biografi a apresentada por Menezes, no entanto, na apresentação de outra tradução da DC, a de Vinícius Berredo (1976), temos que:

iniciou-se essa nova série, menos erudita, mas mais acessível às massas, com a publicação, em 1947, da tradução de Malba Tahan. Destinada à iniciação da juventude, faz ela hoje parte da Biblioteca Idade de Ouro, publicada pela Tecnoprint. (CARNEIRO, 1976, p. xiii).

A característica da tradução de Malba Tahan é que o tradutor, para contornar a “tarefa impossível” no dizer de seus editores, optou por uma “tradução em forma de narrativa, intercalando no

Page 59: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

58 || Maria Teresa Arrigoni

próprio texto dessa narrativa os versos mais famosos e as estrofes mais expressivas que o leitor deve ler e conhecer no original” (1947, p. 5-6). Acompanham o texto em prosa, pois, versos isolados ou tercetos completos em italiano com a tradução em português, em um trabalho misto de reconto e tradução, que se diferenciou dos outros tradutores.

Para concluir essa breve busca das obras de Dante no período mencionado, duas traduções mais: a da Vida Nova, com a tradução de Paulo M. Oliveira e Blasio Demetrio, publicada pela Athena Editora, em 1937, com prefácio de Antonio Piccarolo e a tradução de Da Monarquia, de Antonio Piccarolo e Leonor de Aguiar, e prefácio do professor italiano Adolfo Ravà, publicada por W. M. Jackson Editores, no Rio de Janeiro, em 1950; obras que ainda merecerão maiores detalhamentos.

Dessa data em diante, as traduções, completas ou parciais (e não serão poucas), vão pertencer à segunda metade do século XX, e farão parte da pesquisa que certamente dará continuidade a esse projeto. Ao lado dos nomes que ainda serão elencados como tradutores das outras obras de Dante, teremos então as presenças renomadas de Henriqueta Lisboa, Haroldo e Augusto de Campos, Jorge Wanderley, João Ziller, Cristiano Martins, Italo Eugênio Mauro, e dos tradutores que já aceitaram o desafi o – sempre em aberto – de traduzir, traduzindo a Divina Comédia em novas traduções.

Referências

ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. O Inferno. “Prefácio dos Editores”. Tradução de Malba Tahan. Rio de Janeiro, Gráfi ca Editora Aurora, 1947.

______. Vida Nova. Tradução de Paulo M. Oliveira e Blasio Demetrio. Rio de Janeiro, Athena Editora, 1947.

______Monarquia”. In: Pensadores Italianos. Traduções de Antonio Piccarolo e Leonor de Aguiar. Rio de Janeiro, W.M. Jackson Editores, 1950.

ALVES, M. Intelectuais e escritores bahianos. Breves biografi as. Salvador, Funcisa, 1977.

ARARIPE Jr., T. A. “O novo intérprete de Dante”. In: Obra crítica de

Page 60: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Em busca das obras de Dante em português no Brasil (1901-1950) || 59

Araripe Júnior. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Casa de Rui Barbosa, 1960, v. II, p. 3-12.

ARRIGONI, M. T. “Leitura do prefácio de Araripe Jr. a uma tradução da Divina Commedia: marcas do positivismo”. Cadernos de Tradução (UFSC), Florianópolis-SC, V, p. 89-107, 2001.

______. O abismo, o monte, a luz. Os símiles na leitura/tradução da Divina Commedia. 2001. 241 p. Tese de Doutorado em Linguística Aplicada, Área de Tradução – Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas, inédita.

ASSIS, M. de. [a] Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro-Brasília, Civilização Brasileira – INL, 1977.

______. [b] Dom Casmurro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.

BROCA, B. Naturalistas, Parnasianos e Decadistas. Campinas-SP, Editora da UNICAMP, 1991.

CALMON, P. História da Literatura Bahiana. Salvador, Prefeitura Municipal, 1949.

CARNEIRO, P. E. de B. “Dante e o Brasil”. In: ALIGHIERI, D. A Divina Comédia – o Inferno”. Tradução de Vinícius Berredo. Introdução de Paulo E. de Berredo Carneiro. Prefácio de Abgar Renault. São Paulo-Brasília, GRD-INL, 1976.

CÂMARA CASCUDO, L. da. Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil. Porto Alegre, Pontifícia Universidade Católica, 1963.

COELHO, J. do P. Dicionário das Literaturas Portuguesa, Brasileira e Galega. Porto, Livraria Figueirinhas, 1960.

DIAS, Gonçalves. Poesia Completa e prosa escolhida. Rio de Janeiro, Aguilar, 1959.

FONSECA, G. da. O livro de ouro da Poesia de angústia, sofrimento e morte”. Rio de Janeiro, Tecnoprint, s/d.

GRIECO, A. Memórias. Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1972, 5 vol.

MARTINS, W. História da Inteligência Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1977, 5 vol.

MENEZES, R. de. Dicionário Literário Brasileiro. São Paulo, Saraiva, 1969, 4 vol.

Page 61: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

60 || Maria Teresa Arrigoni

PAES, J. P. Tradução: a ponte necessária. São Paulo, Ática, 1990.

PEDRO II, Dom. Poesias completas de Pedro II. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1932. Disponível em: <www.nuproc.cce.ufsc.br/textosnucleo/parte_1.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2011.

SACRAMENTO BLAKE, A. V. A. Diccionario Bibliografi co Brazileiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1898, 7 vols.

SANTOS, G. dos. “Poemas dantescos”. In: Humaniadas. Rio de Janeiro, Jornal do Commercio, 1938, 8 vol.

TAVANI, G. “Brasile”. In: Enciclopedia Dantesca. Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana, 1984, 2. ed., v. I.

Page 62: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 63: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 64: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello1

Aislan Camargo MacieraAline Fogaça dos Santos Reis e Silva

Égide GuareschiRoberta Regina Cristiane Belletti

Em meados do século XIX, vários livreiros importadores e, até mesmo, editores fi liados de grandes matrizes europeias fi xaram-se no Brasil. Com isso, grande foi a distribuição de produções estrangeiras, o que contribuiu com a divulgação da cultura estrangeira e a infl uência da mesma na vida cultural interna, tanto na produção, como no comércio do livro.2

O êxito das empresas editoras também se ligava ao crescimento do gosto pela literatura no público leitor, constituído por estudantes, professores, militares, funcionários e senhoras de classe. Nas escolas, principalmente as geridas pela iniciativa privada, os educadores, a maioria vindos do exterior, incentivavam seus alunos à leitura: eram eles os responsáveis por formar o leitor brasileiro. Com isso, no período de transição entre os séculos XIX e XX, as crianças e os adolescentes liam obras de autores estrangeiros – Júlio Verne, Cervantes, Dante e Camões – em tradução portuguesa e até mesmo revistas importadas como Fillette, Cri-Cri e Corriere dei Piccoli.

1 Esse texto é um dos resultados do projeto de pesquisa “A Literatura Italiana Traduzida no Sistema Literário Nacional” (CNPq 400500/2010-8).2 Cf. HALLEWELL, 2005, p. 29.

Page 65: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

64 || Aislan Camargo Maciera et al.

Assim, as iniciativas acadêmico-escolares ligadas à propagação da escrita, à dilatação dos meios culturais em geral e das formas de impressão, possibilitaram uma maior movimentação em prol de uma sociedade leitora. Soma-se a isso a infl uência de professores estrangeiros, o custo elevado do livro nacional, decorrente do alto preço do papel e da mão-de-obra tipográfi ca, e os problemas com a sua distribuição. O resultado é o crescimento da indústria de livros importados no País, o que justifi cou a grande presença de obras estrangeiras em nosso território.

As traduções dessas obras para o português começam a aumentar, impulsionadas pela política do Estado Novo, que privilegiava as traduções de obras estrangeiras, em vez da edição de obras nacionais.3 Assim, grandes nomes da literatura universal passam a fazer parte da leitura cotidiana do brasileiro, como Th omas Mann, André Gide, Aldous Huxley, Virginia Woolf, entre outros.

Dentro dessa infl uência estrangeira, podemos dizer que a cultura italiana tinha um espaço importante, pois as relações entre Brasil e Itália são até hoje, sem dúvida, estreitas e muito antigas. No plano artístico literário, em especial, a presença italiana em produções brasileiras é muito signifi cante. No século XIX, depois dos anos 1950, os imigrantes italianos começam a fi gurar nas narrativas verde-amarelas, consequência da forte imigração, ocorrida de forma mais intensa a partir de 1875 até as primeiras décadas do século XX.4

A recorrência da fi gura italiana no cenário brasileiro é exposta por Carlos E. S. Capela, o qual, ao tratar da literatura nacional mostra que:

No âmbito da prosa brasileira a presença de personagens de imigrantes italianos não é nada desprezível. Pode ser conferida na fi cção publicada sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, quando o fl uxo migratório europeu rumo ao Brasil segue um ritmo ascendente, até atingir na década de 1880, proporções

3 Cf. AMORIM, 2000.4 Cf. MAESTRI, 2000, p. 11.

Page 66: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello || 65

consideráveis, mantidas nos decênios seguintes, grosso modo, até os anos 1930. (2001, p. 147)

Nesse sentido, esse autor discorre sobre a gama de romances que remontam a esse momento histórico e que apresentam fi guras italianas e/ou ítalo-brasileiras, como é o caso de O Guarani (1857), Senhora (1875), Triste fi m de Policarpo Quaresma (1911), Brás,

Bexiga e Barra Funda (1927), Fazenda (1940) e outros. Os italianos, é verdade, muitas vezes, aparecem à margem, porém no início do século XX ganham mais relevo e importância nas narrativas, pois passam a ser reconhecidos como parte da malha cultural brasileira5. Carlo Collodi, Giovanni Papini e Luigi Pirandello são, sem dúvida, três autores importantes que contribuíram para a formação desse tecido cultural.

Para falar da presença de Collodi no Brasil, não podemos deixar de nominar uma importante fi gura não só para a formação da literatura infantil brasileira, como também para a editoração no País: Monteiro Lobato. Lobato foi um grande empreendedor brasileiro, preocupado com o processo de implantação e crescimento do setor editorial, além de ser autor de importantes traduções.

A respeito da situação editorial no país, no ano de 1923, Monteiro Lobato, em troca de correspondência com o escritor mineiro Godofredo Rangel, declarou:

A vendagem dos livros tem caído; todos os livreiros se queixam – mas o público tem razão. Câmbio infame, aperto geral, vida cara. Não há sobra no orçamento para a compra dessa absoluta inutilidade chamada livro. Primo vivere. (1957, p. 259)

Como forma de reagir à situação divergente, alguns editores decidem, então, dedicar-se à tradução de nomes já conhecidos. Collodi é um deles, escolhido por Monteiro Lobato não só devido à sua fama, mas também por compartilhar de suas ideias inovadoras para a literatura infantil.

5 Cf. CAPELA, 2001, p. 148-149.

Page 67: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

66 || Aislan Camargo Maciera et al.

Le avventure di Pinocchio, considerada a obra-prima de Collodi, fez um grande sucesso entre seus leitores. Com isso, cada vez mais foram surgindo novas publicações e adaptações do livro não só na Itália, como também inúmeras traduções foram feitas no mundo inteiro.

No Brasil, por mais que a obra de Collodi tenha já aparecido em 1929 em português, publicado pela Livraria Liberdade e traduzida por Mary Baxter Lee, costuma-se atribuir a Monteiro Lobato o crédito pela primeira tradução brasileira, no ano de 1933 pela Companhia Editora Nacional, com um título simplifi cado: Pinocchio; a partir de então outras mais foram surgindo.

Partindo da primeira metade do século XX, além da primeira edição de Monteiro Lobato, temos também a do ano de 1945, igualmente intitulada Pinocchio, traduzida por Mário da Silva pela editora Vecchi; a de 1946, intitulada As aventuras de Pinocchio, traduzida por Guimarães de Almeida pela editora São Paulo6 ou a de 1947, com o título As aventuras de Pinóquio, traduzida por Raul Polillo e editada pela Companhia Melhoramentos (reeditada no ano de 1951).

As aventuras de Pinóquio, como o próprio título diz, conta a história das peripécias de um boneco feito de uma madeira mágica. Ele se movimenta e fala como uma criança, mas à diferença de muitas obras infantis da época, Collodi não cria um boneco com comportamento exemplar, para ser seguido pelos seus leitores mirins. Pinóquio prefere se divertir a ir à escola, ele é desobediente, não escuta os conselhos e por isso acaba envolvido em situações complicadas.

Ao escrever a história de Pinóquio, Collodi inovou não só por fugir dos padrões pedagógicos da literatura; mas por contar uma história ao mesmo tempo rica de materialidade, a de um boneco, alegoria de uma criança real, travessa, que erra, e que também aprende com seus erros, sem deixar de lado o uso da fantasia.

A emoção, a diversão, o prazer, e acrescentamos aqui a imaginação, são elementos essenciais para se conquistar a atenção do

6 Cf. JOLKESKY, 2007, p. 22.

Page 68: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello || 67

leitor mirim. Rodari (2004) afi rma que a literatura infantil não deve ser pesada ou tediosa, mas deve ajudar a criança a crescer, por meio da união de três elementos importantes: imaginação – jogo – livro. Para o autor, a imaginação deveria ocupar um lugar de destaque no campo da instrução, pois, por meio da sua estimulação, a criança poderia se libertar das correntes colocadas precocemente pelos condicionamentos familiares e sociais.7

O tipo de literatura até então recorrente no Brasil, a literatura “pedagogizante”, também não agradava a Lobato. Para ele a literatura deveria despertar o gosto e o hábito pela leitura na criança. Foi então que começou a criar histórias em que mesclava elementos reais e nacionalizantes com elementos fantásticos e folclorísticos.

Em A menina do nariz arrebitado, escrita no ano de 1920, intitulada mais tarde como Reinações de Narizinho (1931), Lobato inova escrevendo um livro destinado ao público infantil. Ambientado num sítio, conhecido como Sítio do Picapau Amarelo, o autor cria histórias que envolvem personagens reais e também fantásticos que estimulam a imaginação da criança. Papel importante tem, nessa obra, a personagem Emília, uma boneca de pano, que assim como Pinóquio também se movimenta e fala como gente, além de apresentar um comportamento bastante travesso, questionador e desafi ador dos padrões vigentes.

Percebemos que, assim como Collodi, Lobato também cria personagens, em suas obras, questionadores dos valores até então impostos pelas sociedades. Perrotti afi rma:

O leitor de Lobato (e aqui pode-se acrescentar também o leitor de Collodi) não é um ser passivo, que recebe um mundo pronto para ser assimilado, mas um ser atuante, inteligente, sensível que deve, por si mesmo, escolher as respostas para os desafi os da vida. (1986, p. 148)

A presença italiana na obra de Lobato não só é notada pela criação de personagens semelhantes em alguns aspectos, mas também pela intertextualidade entre as obras. Em um capítulo de

7 Cf. RODARI, 2004.

Page 69: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

68 || Aislan Camargo Maciera et al.

Reinações de Narizinho, são lidos alguns capítulos do livro Pinóquio para as crianças que estão no Sítio. A partir daí, elas têm a ideia de esculpir um boneco, com as mesmas “propriedades pinoquianas” (LOBATO, 2008, p. 38), criando então o irmão de Pinóquio, o boneco João Faz-de-conta.

Em suma, Collodi e Lobato foram escritores inovadores para a literatura infantil. Suas obras foram importantes por servirem de instrumento de renovação de uma visão de mundo: a literatura deve ser fonte de emoções; ao mesmo tempo em que educa, também transporta seus leitores a um mundo de sonhos, onde a diversão está presente.

Outro autor italiano que se refl etiu no setor editorial no Brasil, na primeira metade do século XX, foi Giovanni Papini (1881-1956). Entre 1900 e 1950, num primeiro levantamento, foi possível identifi car dezesseis traduções de obras suas feitas no Brasil.

É interessante pensar que a visibilidade de Papini, através do comprovado número de traduções é sintomático da repercussão desse autor em nosso país e no mundo, pois os primeiros cinquenta anos do século XX, ainda foram tímidos para a indústria editorial, tanto da Itália como do Brasil, tendo em vista o período posterior às guerras.8

O início do século foi marcado pela primeira guerra mundial e, em consequência dela, na Itália houve uma estagnação das vendas de livros e nas leituras. Esse fator somado às greves e à reivindicação dos tipógrafos são causas de uma fase crítica que foi superada, em alguns casos, somente com muita criatividade, como o exemplo da Editora Vallecchi de Florença, que tinha grande capacidade de promoção cultural, e também editou alguns dos livros de Papini, entre estes, a segunda edição de Parole e sangue, em 1919.

Além de sua notoriedade, o autor era conhecido pela postura polêmica, e fazia com que suas obras impactassem leitores de

8 Com o fi m da 2a guerra as editoras Italianas renovaram o entusiasmo e o fervor, em especial, para a publicação de coleções da Mondadori, Langanesi, Einaudi, Bompiani e Rozzoli. Os anos 60 também foram propícios para o consumo de livros, em função do desenvolvimento industrial, econômico e cultural da sociedade, favorecidos, sobretudo pela expansão de novos canais e técnicas de venda de livros. (L’UNIVERSALE, 2005, p. 308-309)

Page 70: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello || 69

todas as partes. De acordo com Ferroni (2007), Papini publicou, por exemplo, em junho de 1914 no periódico Lacerba, um artigo intitulado Chiudiamo le scuole! (Fechemos as escolas!), no qual, com espírito anárquico, que já anunciava a sua proximidade com o movimento futurista, ataca a cultura escolar rígida, esquemática, repetitiva e distante da realidade. Porém, o seu irracionalismo e agressividade, de início de século, fi zeram com que publicasse livros em que expunha questões teológicas e fi losófi cas, com discussões que giravam em torno da presença de satã no imaginário cristão e outros temas nessa linha. Por essa razão, alguns de seus livros foram para o index – índice de livros proibidos.9

Talvez na tentativa de se adequar e obter uma maior aceitação do público, a trajetória literária de Papini passa por diversas fases, nas quais podemos constatar um escritor que transita desde as polêmicas e propostas extremas futuristas, passando pelo conteúdo anticristão, como mencionado, até chegar ao momento de sua conversão ao catolicismo. Todas essas etapas refl etem-se, consequentemente, em suas obras e no seu estilo que oscila entre a fantasia e a realidade. Se em Un uomo fi nito (1912) e Parole e sangue (1914) percebemos a forte descrição da realidade, permeada do tom melancólico, em Gog (1931) constatamos uma escrita introspectiva, ligada aos questionamentos fi losófi cos e, portanto, mais subjetivo.

É importante ressaltar que todas essas obras foram traduzidas, o que possibilitou aos leitores brasileiros conhecer as diversas faces de Papini, além de ter dado projeção a alguns de seus tradutores, como o exemplo do poeta Mário Quintana que traduziu Palavras e sangue (Parole e sangue), em 1934 pela Livraria do Globo. Após esse trabalho de tradução, Quintana publicou o seu primeiro livro de sonetos, A Rua

dos Cataventos, pela mesma Livraria do Globo, em 1940.Nesse sentido, as editoras brasileiras que mais traduziram e

publicaram seus escritos foram: a Editora Globo,10 a Companhia

9 Index librorum proibitorum: lista ofi cial de livros proibidos publicada em 1559, a pedido do Papa Paolo IV. Ficou em vigor até 1966 e consistia em um elenco de obras barradas pela Igreja em função de conteúdos que não estavam em conformidade com a doutrina cristã. (L’UNIVERSALE, 2005, p. 306)10 De acordo com a cronologia disponível no site, a Editora Globo é fundada em 1883 com o

Page 71: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

70 || Aislan Camargo Maciera et al.

Editora Nacional e a Editora A. Tisi & Cia. Entre elas, A. Tisi & Cia. publicou a primeira tradução de Papini no Brasil, Um homem

acabado (Un uomo fi nito), em 1923, e História de Cristo (Storia di

Cristo), em 1924. O nome da editora é a abreviação de Antonio Tisi, “proprietário da Livraria Italiana, que em 1923 dá início à publicação de autores italianos numa série de livros denominada Collecção

Italica, dirigida por Nicolau Nazo”11 (DIAS, 2008, p. 110). Outra editora de destaque foi a Editora Globo, de Porto Alegre,

uma daquelas que não somente o traduziu, mas também mais editou traduções de obras da literatura universal para o português. Estavam à frente da editora, Henrique Bertaso e Érico Veríssimo, responsáveis pela escolha dos direitos a serem adquiridos e dos títulos a serem traduzidos. Hallewell (2005) relata que em viagem pela Europa, feita em 1936, eles selecionaram dois nomes da literatura italiana para serem traduzidos: Papini e Pirandello, publicados na “Coleção Nobel”.12 No caso de Papini, temos as obras Gog (mesmo título do original), publicado em 1932, Palavras e sangue, primeiramente publicado em 1934, com várias reedições, além de Dante vivo (mesmo título do original) em 1935.

Com relação a Pirandello, podemos perceber que é presença marcante e defi nitiva no Novecento italiano, fato que lhe rendeu também espaço na “Coleção Nobel”, apesar das traduções brasileiras tardias em relação ao seu período de publicação na Itália. A partir da pesquisa procuraremos demonstrar, a seguir, algumas considerações sobre a obra do autor traduzida no Brasil, seja em volumes (romances,

nome de Livraria do Globo e, em 1956, é reestruturada e dividida em Editora Globo e Livraria do Globo. (Disponível em: <http://globolivros.globo.com/cronologia.asp>. Acesso em: 30 jul. 2011.)11 A Livraria Italiana do Largo São Bento, ponto de encontro dos modernistas brasileiros, publicou outros escritores italianos, dentre o quais: Giovanni Papini, Filippo Tommaso Marinetti, Ardegno Soffi ci, Aldo Palazzeschi.12 Sobre a “Coleção Nobel”, Mário de Andrade discorre: “Cada vez mais se nota que o critério de escolha dos livros a traduzir é de pura natureza comercial. Neste sentido há sempre que louvar o critério conciliatório adotado pela Livraria do Globo com a sua Coleção Nobel, em que só aparecem obras de autores que já obtiveram o prêmio desse nome. Sejam os livros obras-primas ou não, sejam os seus autores dignos ou não do prêmio, é incontestável que a casa editora se estriba, em sua escolha, no mais importante instituto de valorização de escritores que existe atualmente no mundo” (ANDRADE, 1993, p.226).

Page 72: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello || 71

contos e teatro), seja nas traduções feitas de suas peças teatrais para serem apresentadas ao público, bem como sua fortuna crítica, no período entre 1900 e 1950.

Ao considerarmos que a indústria editorial brasileira expande-se tardiamente e que grande parte do público leitor da primeira metade do século XX lia diretamente do original,13 em se tratando de Pirandello, podemos considerar que o sucesso de seu teatro e o consequente Prêmio Nobel de Literatura em 1934 foram fatores decisivos para o surgimento das traduções de sua obra no Brasil.

A primeira referência a Pirandello acontece em 1923: o modernista Oswald de Andrade havia assistido a uma encenação de Seis personagens à procura de um autor em Paris. Por essa ocasião, o escritor brasileiro publicou um artigo no jornal Correio Paulistano, no dia 29 de junho, intitulado “Anunciação de Pirandello”, no qual analisa a montagem feita pelo autor na peça a que assistiu na capital francesa.14

A primeira aparição de uma obra pirandelliana em território brasileiro, traduzida para o português, aconteceu em 1924. Jayme Costa foi o primeiro ator a representar por aqui o repertório de Luigi Pirandello: através da popular Companhia Brasileira de Comédias Jayme Costa, o ator encenou a peça Pois é isso... (Così è... se vi pare)15, em São Paulo, capital, e várias cidades do interior.

O próprio autor teve a oportunidade de assistir a esta apresentação no Rio de Janeiro, em 1927, em sua turnê com a Compagnia del Teatro d’Arte di Roma, sendo, na ocasião, homenageado pela Academia Brasileira de

13 Ver DIAS, 2008, p. 110.14 Ver FABRIS, 2009, p. 386 Também faz parte da fortuna crítica do período 1901-1950 Tristão de Ataíde, que em Estudos – 2ª série (1928) destaca a capacidade do autor siciliano na redução do ser humano a uma abstração, a uma parte de uma colcha de retalhos que torna imperceptível a ideia de unidade, fusão e concatenação. Essa ideia de homem-mosaico é retomada por Oscar Mendes no livro Papini, Pirandello e outros (1941), no qual fará uma comparação da obra pirandelliana a um desenho cubista. Em Pirandello e seu teatro (1946), Cláudio de Souza expõe a característica do autor siciliano de fazer de sua obra a demonstração de uma tese, num palco onde se explicitam os discursos da razão.15 A peça foi traduzida por Paulo Gonçalves, que assinou com o pseudônimo de Teresa Coelho (cf. FABRIS, 2009, p. 399).

Page 73: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

72 || Aislan Camargo Maciera et al.

Letras em 15 de setembro daquele ano. (FABRIS, 2009, p. 395)

A apresentação obteve elogios do autor pela atuação e caracterização feita por Jayme Costa do senhor Ponza, personagem do drama.16

Pela já mencionada Collecção Italica da A. Tisi & Cia, em 1925, são publicadas algumas das Novelle per un anno, em um volume com o título de Novelas escolhidas, com tradução de Francisco Pati:17 tal edição, segundo analisa o crítico Corrado Simioni na introdução de uma das edições italianas lançadas pela Mondadori, “constitui uma das primeiras traduções mundiais da novelística pirandelliana” (FABRIS, 2009, p. 385).

O segundo volume de novelas pirandellianas traduzidas para o português e publicado no Brasil é lançado em 1932, pela Editora Piratininga. Intitulado A luz da outra casa: novelas escolhidas, o volume tem tradução do mesmo Francisco Pati e introdução de Cândido Motta Filho, assim como o volume publicado em 1925. O exemplar constitui o volume IV da Colecção Itálica. Fazem parte da edição dezessete novelas, dentre as quais, La signora Frola e il signor Ponza suo genero, La giara, Non è una cosa seria, Pensaci Giacomino!, Tutto per bene...

A introdução feita por Cândido Motta Filho faz uma exposição da poética pirandelliana, da qual alguns pontos merecem destaque. O ensaísta diz que a obra de Pirandello “é um sortilegio sahido da mão de um bruxo”, que “vai escrevendo obras, como o alchimista medieval ia prevendo os factos...”. Logo no início, faz referência ao personagem machadiano Quincas Borba, dizendo que a impressão

16 Além de Così è... se vi pare, citamos outros dramas de Pirandello traduzidos para o português para serem representados nos palcos brasileiros entre 1901 e 1950 (FABRIS, 2009, p. 399-403): Il piacere dell’Onestà, tradução de Benjamin de Lima, apresentada no Teatro Regina, do Rio de Janeiro, em 1937; Vestire gli Ignudi, sem indicação do tradutor, apresentada pela Cooperativa de Espetáculos Novos de Arte do Rio de Janeiro, em 1948.17 Francisco Pati foi jornalista, advogado, escritor e tradutor. Traduziu pela Tisi & Cia. A história de Cristo, de Giovanni Papini e Novelas escolhidas, de Luigi Pirandello. Publicou diversos livros, dentre eles: Fausto e D. Juan, poemas de 1920; Mãos Vasias, sonetos, de 1923; Maria Leocadia, romance de 1926; Revolução e Democracia, ensaio de 1931; Militarismo e Parlamentarismo, ensaio de 1932. Além disso, publicou o Dicionário de Machado de Assis e ainda tradução e comentários pessoais Com Dante no Inferno, em 1965.

Page 74: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello || 73

que temos ao ler Pirandello é que ele tem as “as vistas voltadas para dentro” (MOTTA FILHO, 1932, p. V-VI). O restante da introdução tenta elucidar temas hoje conhecidos e estudados da poética de Pirandello no Brasil: as máscaras impostas pelas convenções sociais, o esfacelamento da personalidade, a precariedade, inconstância e relatividade do mundo moderno, a problemática da personagem pirandelliana, o humorismo etc.

O que podemos depreender da introdução de Cândido Motta é um elogio a Pirandello no que diz respeito a seu papel de grande pensador do século XX, analista de um tempo de “inquietações de transmutações de valores” (trazidos, sobretudo, pelos avanços científi cos e tecnológicos), artista que “põe nas coisas envenenadas o encantamento e a fascinação da belleza immortal” que só a arte é capaz de expressar.

No que diz respeito aos romances, a primeira metade do século XX tem como principais divulgadores da obra pirandelliana no Brasil duas editoras: Globo, de Porto Alegre e o Instituto Progresso Editorial, de São Paulo. A editora O Globo, de Porto Alegre, publicou em sua “Coleção Nobel” duas edições de O falecido Matias Pascal (Il

fu Mattia Pascal), com tradução de De Souza Júnior: uma em 1933 e outra em 1941.

O Instituto Progresso Editorial foi uma editora que funcionou em São Paulo entre os anos de 1947 e 1949, a partir da iniciativa de Francisco Matarazzo Sobrinho e outros empresários de origem italiana. No geral, a linha editorial do IPE dedicou-se à literatura estrangeira, inclusive à italiana. Dessa forma, a editora, que teve um curto período de vida, lançou traduções de dois outros romances do autor: Os velhos e os moços (I vecchi e i giovani) de 1947 e A excluída

(L’esclusa), de 1949, ambos com tradução de José Geraldo Vieira.18

18 Além de escritor, José Geraldo foi médico, e professor da Faculdade “Cásper Líbero”. Trabalhou como crítico no jornal e na revista . Integrou a Academia Paulista de Letras, ocupando a cadeira 39. Nascido nos Açores em 1897, teve como primeiro romance . Escreveu gêneros como contos, romances, ensaios e biografi a. José Geraldo foi membro titular da Bienal de São Paulo na década de 1950 e tradutor de inúmeros romancistas franceses e italianos, entre outros. Um de seus livros mais importantes, segundo a crítica, é , de 1943, uma espécie de livro-reportagem que conta a história de uma agência internacional de notícias.

Page 75: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

74 || Aislan Camargo Maciera et al.

A presença de Pirandello no Brasil, na primeira metade do século XX, além das traduções de sua obra, conta também com a entrevista do autor siciliano ao estudioso brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, concedida no Rio de Janeiro por ocasião da turnê do Teatro d’Arte de Roma e publicada n’O jornal de 11 de dezembro de 1927. O trecho da entrevista que gostaríamos de destacar é aquele no qual Pirandello fala sobre o Brasil e sobre o progresso:

Os arranha-céus do Rio de Janeiro provêm de um erro profundo. É injustifi cável e lamentável uma terra rica de espaço esse sistema de construções [...]. No Rio de Janeiro a existência de arranha-céus não tem sentido [...]. E, por isso mesmo, os vossos arranha-céus, que não correspondem a uma necessidade, que não surgem espontaneamente da terra, são necessariamente uma expressão falsa de arte. Penso muito que, de um modo geral, a arquitetura no Rio é quase uma ofensa à paisagem. Deve-se procurar sempre uma linha correspondente à da natureza.

Na mesma entrevista, Pirandello diz que os povos sul-americanos deveriam “viver mais pelo espírito e menos pela política”. Enfi m, talvez um dos únicos registros em que o autor italiano falou sobre o Brasil e sobre o povo brasileiro publicamente.

Ao propor esse diálogo entre a cultura brasileira e a italiana dos três autores, podemos perceber a importância de suas obras e das traduções não só para a situação editorial brasileira, mas também para o desenvolvimento da literatura do país. A presença deles foi e é marcante: Collodi no campo da literatura infantil; Pirandello, além da literatura, também na dramaturgia; Papini, por sua vez, contribuiu para a consolidação de autores nacionais, que ganharam destaque também pela tradução de grandes nomes da literatura universal.

Collodi, escrevendo uma obra destinada ao público infanto-juvenil, consegue inovar ao criar um personagem fi ctício, Pinóquio, pertencente ao mundo da imaginação, mas que ao mesmo tempo evoca situações reais em que uma criança de “carne e osso” poderia se espelhar e com isso aprender. Lobato, no Brasil, segue o exemplo de Collodi, criando histórias em que mescla elementos fantásticos e

Page 76: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello || 75

também reais que estimulam a imaginação da criança, defendendo ainda o valor da liberdade – em suas histórias, as crianças ganham voz, dialogando livremente com os adultos. Valor esse não muito comum nas páginas dos livros pedagógicos da época em questão.

Papini também criticou o excesso de rigidez da cultura escolar, considerando-a distante da realidade, pois ele era um escritor polemista e crítico a respeito do tradicionalismo, fruto da sua relação com o Futurismo. A realidade que ele propõe é aquela mesclada à fantasia, na qual transparece os confl itos pessoais. No decorrer dos anos, foi contra e a favor dos mesmos motivos, e a mudança de perspectiva e de ponto de vista fi zeram com que a sua obra fosse marcada por um caráter heterogêneo, despertando não somente o interesse do público e da crítica italiana, mas também de tradutores e editores brasileiros. As traduções trazem, portanto, seu estilo que procurava transcender o real, expresso em uma escrita introspectiva, fi losófi ca e por vezes niilista (visto que se baseava no pensamento de Nietzsche). Elas deixaram o legado desse autor para os leitores brasileiros, pois são obras já muito discutidas e controversas na Itália, e que são referências até hoje, tanto para estudantes de teologia, quanto para curiosos e interessados em geral.

As inquietações existencialistas também estão presentes na oscilação entre a melancolia e o humorismo, como forma de crítica à realidade, da obra de Luigi Pirandello. Ele chega ao Brasil devido à qualidade de sua obra teatral, que lhe trouxe o reconhecimento através do Prêmio Nobel. E graças ao sucesso de seu teatro, grande parte de sua obra acaba sendo traduzida para o público brasileiro, sobretudo, os romances e as novelas. Novelas essas que são, na maioria dos casos, a base de várias de suas peças de sucesso internacional. Pirandello é, sem dúvida, um dos maiores intelectuais do século XX, e assim podemos considerá-lo não somente por sua obra de fi cção, mas também por seus ensaios e toda sua poética; é um dos ícones do teatro moderno, responsável por diversas inovações na arte teatral, que derrubam a barreira entre palco e público e teorizam sobre o personagem na arte literária.

Como visto, as obras desses autores, através das traduções, ganharam eco na cultura brasileira, seja em função das ideias, da

Page 77: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

76 || Aislan Camargo Maciera et al.

estética e da estrutura textual, seja em função de outros elementos narrativos, bem como das personagens (um exemplo é Pinóquio, mais conhecido do que o seu autor Collodi). Além disso, tais traduções fi guraram no mesmo meio editorial e, em diversos casos, foram realizadas pelo mesmo círculo de tradutores e pertenceram às mesmas coleções, o que certifi ca a sua notoriedade e reconhecimento.

Referências

AMORIM, Sônia Maria de. Em busca de um tempo perdido – Edição de literatura traduzida pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo: Edusp, Com Arte; Porto Alegre: Editora da Universidade: UFRGS, 1999.

ANDRADE, Mário de. Traduções. In: ______. Vida literária. Pesquisa, estabelecimento de texto, introdução e notas por Sonia Sachs. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1993. p. 226.

CAPELA, Carlos E. S. Italianos na fi cção brasileira: modernidade em processo. In: Estudos Italianos. Revista Fragmentos, n. 21, Florianópolis/jul.-dez. 2001.

DIAS, Maurício Santana. Italianos impressos no Brasil: subsídios para uma bibliografi a. In: Estudos italianos em Portugal. n. 3. Lisboa: Nova Série, 2008. p. 103-115.

FABRIS, Annateresa; FABRIS, Mariarosaria. A presença de Pirandello no Brasil. In: PIRANDELLO, L. Pirandello: do teatro no teatro. (Org. de J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva, 2009.

FERRONI, Giulio; CORTELLESSA, Andrea; PANTANI, Italo; TATTI, Silvia. Storia e testi della letteratura italiana: guerre e fascismo (1910-1945). Milão: Mondadori Università, 2007.

HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: sua história. 2. ed. Tradução Maria da Penha Villalobos, Lólio Lourenço de Oliveira e Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Edusp, 2005.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Conversando com Pirandello. In: PIRANDELLO, L. Um, nenhum e cem mil. Tradução Maurício Santana Dias e introdução de Alfredo Bosi. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

JOLKESKY, L. Legibilidade de diálogo: a colocação de pronomes nas traduções brasileiras de Pinóquio de 2002. 2007. Dissertação (Mestrado

Page 78: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Da outra margem: um olhar para Collodi, Papini e Pirandello || 77

em Estudos da Tradução) – Centro de Comunicação e Expressão. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. v. 2. São Paulo: Editora Brasiliense, 1957.

______. O irmão de Pinóquio. In: Reinações de Narizinho. v. 2. São Paulo: Globo, 2008.

L’UNIVERSALE: La Grande Enciclopedia Tematica. Milano: Garzanti, 2005. (Letteratura, v. 4)

MAESTRI, Mário. Os Senhores das Serra. Passo Fundo: UPF, 2000.

PERROTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.

PIRANDELLO, Luigi. Novelle per un anno. Roma: Newton, 2006.

______. A luz da outra casa: novellas escolhidas. Introdução de Cândido Motta Filho. Tradução de Francisco P ati. São Paulo: Piratininga, 1932.

______. 40 novelas de Luigi Pirandello. Organização, introdução e tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

RODARI, Gianni. La imaginación em La leteratura infantil. Disponível em: <http://www.imaginaria.com.ar/12/5/rodari2.htm>. Acesso em: 4 abr. 2011. (Artigo publicado na revista Outlook Escola n. 43 e reproduzido na revista Imaginária, n. 125, 2004, com a autorização da Associação de Mestres Rosa Sensat – Barcelona/Espanha).

WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

Page 79: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 80: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 81: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 82: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras da primeira metade do século XX

Erica Salatini Fernanda Moro Cechinel

Ivair Carlos Castelan Sara Debenedetti

O foco central do presente estudo é a investigação e levantamento da presença italiana nas seguintes publicações nacionais de grande importância: Revista da Academia Brasileira

de Letras, Revista da Academia Paulista de Letras e o suplemento literário Letras e Artes do jornal carioca A manhã. Não obstante a especifi cidade de cada publicação, o que se pretende analisar é a recorrência da presença italiana, que é bastante signifi cativa, seja no que se refere à divulgação de obras italianas, com citações, notas e referências a estas, seja no que toca a questão da tradução destas obras em língua nacional.

Assim sendo, este texto tem como principal intuito compreender de que forma a “presença” italiana é apresentada em tais publicações brasileiras. Guiando-se por questionamentos como: Quais os nomes relevantes da cultura italiana que aparecem nesses periódicos nas primeiras décadas do século XX? Que papel representa a Itália daquela época?, apresenta-se a seguir uma sucinta análise das publicações da Revista da Academia Brasileira de Letras, Revista da Academia Paulista de Letras e o Suplemento Letras e

Artes do jornal A manhã que corroboram para o entendimento

Page 83: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

82 || Erica Salatini et al.

da presença cultural italiana no cenário acadêmico brasileiro no começo do século XX.

Revista da Academia Brasileira de Letras1

A Academia Brasileira de Letras fundada em 20 de julho de 1897 tem como principal intuito o cultivo da língua e da literatura brasileiras, sendo que em julho de 1910, lança o primeiro volume da Revista da Academia Brasileira de Letras. Símbolo da expressão da atividade artística da Academia, a revista pretendia atuar como um importante instrumento de comunicação no país, facilitando e divulgando o conhecimento e as letras nacionais. A advertência do primeiro volume desse periódico reafi rma o compromisso da Academia em “cooperar de modo mais ativo e efi caz no desenvolvimento da cultura literaria do Brazil”.2

Nela escreveram acadêmicos como Aff onso Celso, Augusto de Lima, Afrânio Peixoto, Mario de Alencar, Luiz Murat, Sylvio Romero, Aluisio Azevedo, Rui Barbosa, José Veríssimo, Graça Aranha, entre outros. Trata-se de discursos acadêmicos, ensaios, comemorações, poemas, traduções, epistolários, lexicografi a e lexicologia, dicionário de brasileirismos,3 história da Academia, concursos literários, resumo de sessões e bibliografi as.

Ainda que a Academia Brasileira ressalte em seu Estatuto (Art. 1o) a importância em debruçar-se, exclusivamente, sobre a história, cultura, língua e literatura brasileiras, ela reconhece a presença de culturas estrangeiras, que se misturam e se fundem às letras nacionais, dando origem ao mosaico linguístico, cultural e histórico que compõe o Brasil.

Entre os sócios correspondentes estrangeiros, há muitos intelectuais portugueses, vários franceses e quatro italianos na

1

2

3

Page 84: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras || 83

história da Academia até os dias de hoje. A cadeira 16 foi ocupada pelo poeta Giosué Carducci, de 1898 a 1907, sendo esta a primeira cadeira ocupada por um italiano na Academia. O segundo ocupante foi o historiador Guglielmo Ferrero, de 1907 a 1942. O poeta Gabriele D’Annunzio foi o segundo ocupante da cadeira 19, entre os anos de 1900 a 1938. E por fi m, a historiadora e crítica literária Luciana Stegagno Picchio ocupou a cadeira 6, de 2002 a 2008.

Dos quatro sócios italianos, a presença de Guglielmo Ferrero desperta curiosidade pelo fato dele ter iniciado, no ano de 1907, uma troca de cartas com o então presidente da Academia, Machado de Assis. Tais cartas podem ser encontradas na secção História

da Academia Brasileira de Letras, com o título Visitantes ilustres –

Guilherme Ferrero.4 O texto nos permite uma excursão pela vida cultural e social no ambiente acadêmico brasileiro daquela época.

Ferrero, em sua primeira passagem pelo Brasil, visita rapidamente a cidade do Rio de Janeiro, encantando-se com a bela paisagem da cidade maravilhosa, conforme suas próprias palavras: “Não sei o que nos fascinou mais, – eu e a minha esposa – se a maravilha da paisagem ou a amabilidade das pessoas.” (vol. XXXV, jan. 1931, p. 415).

Em Buenos Aires, Ferrero escreve novamente para concluir os acordos sobre as conferências a serem proferidas no Rio e também sobre seu grande desejo de visitar o Brasil novamente, declarando-se curioso por ver e estudar com atenção o país, sua natureza, seus habitantes, sua vida social e política, sua atividade econômica e intelectual, para assim poder falar sobre o Brasil na sua volta à Europa: “Terei o prazer, quando voltarei, de fazer conhecer os resultados das minhas investigações para a Europa que ainda tem muitas ideias absurdas e erradas sobre a America do Sul.” (vol. XXX, jan. 1931, p. 416).

Como se pode notar há certa valorização e consideração da cultura brasileira por parte de um estrangeiro, no caso o italiano Guglielmo Ferrero. O inverso também se faz presente e recorrente

4

Page 85: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

84 || Erica Salatini et al.

no periódico, uma vez que se encontram vários temas relacionados à presença italiana, no período estabelecido. Tais temas referem-se ao Humanismo e ao Renascimento Italiano, representados, sobretudo, por Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Leonardo da Vinci. As referências diretas ou indiretas a esses intelectuais, sobretudo ao poeta Dante, são frequentes, superando em número a qualquer outro artista de qualquer outro movimento ou período histórico e literário.

O poeta fl orentino catalisa a atenção, a admiração e a refl exão por parte dos acadêmicos, idealizadores e/ou colaboradores da Revista. Essa atenção e interesse por Dante podem ser confi rmados através do alto número de edições brasileiras de suas obras, publicadas na primeira metade do século XX. Alighieri comparece com muita frequência nos textos da Revista, pois qualquer ensaio sobre grandes escritores “obriga” a uma referência e comparação com ele.

Ao comemorar o sexto centenário da morte de Dante (1265-1321), a Revista inicia suas publicações do no 21, de Janeiro-Março de 1922, com o esquema do discurso proferido em setembro de 1921 por Aff onso Celso, intitulado Dante.5 Tal texto é importante por mostrar, não só a grande consideração e respeito pelo sumo poeta, mas principalmente os estreitos vínculos que o mundo intelectual brasileiro daquela época tinha com a cultura e história italianas. Aff onso Celso no presente ensaio sublinha os diferentes fatores que justifi cam tal comemoração. Segundo ele, a Europa toda está celebrando, com diferentes manifestações, este evento; a cultura brasileira é devedora à italiana e, portanto, a Dante; a Academia Brasileira de Letras, pelo seu nome e sua função, não pode deixar de oferecer sua contribuição. Eis as palavras de Celso, nas quais aparece a altíssima consideração pelo poeta italiano:

A Academia [...] cumpria-lhe render preito a uma das summidades do pensamento universal; academia de letras, tendo como principal objetivo a cultura da língua e da literatura nacional, cabia-lhe mostrar quanto préza aquelle

5

Page 86: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras || 85

que, si não criou, ao menos fi xou, poliu e consagrou a língua de sua pátria, língua derivada da mesma fonte que a nossa, com a qual apresenta intimas afi nidades; academia de letras brazileira, expoente da intellectualidade brazileira, corria-lhe o grato dever de, ainda uma vez, assignalar que essa intellectualidade procéde da intellectualidade latina, de que Dante é uma das mais altas e completas manifestações.

Dante resume o gênio da Italia. Honrar a Dante equivale a honrar a Italia. (vol. XI, jan.-mar. 1921, p. 5).

Após o frei, “os romanticos, todos, como depois os parnasianos, não dispensaram, jámais, o espirito, ou, pelo menos, o nome de Beatriz, como fator de inspiração” (vol. XXIV, jun. 1927,

Page 87: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

86 || Erica Salatini et al.

p. 136). Humberto de Campos destaca que depois das traduções integrais da Divina Comédia, feitas por Xavier Pinheiro e Villa da Barra, Dante, bem como sua musa, Beatriz e o seu poema, “passaram a constituir, então, não mais um modelo, para imitação, mas um assumpto mesmo para os poetas brasileiros” (vol. XXIV, jun. 1927, p. 137). Dessa forma, Dante torna-se, segundo Campos, uma das fontes de inspiração da nossa literatura, “um dos factores mais altos, e mais nobres, da gloria dos nossos poetas” (vol. XXIV, jun. 1927, p. 141).

No segundo artigo, Francesca da Rimini, Afranio Peixoto retoma o canto V do Inferno, ressaltando que Dante ao colher a memória de Francesca da Rimini, enriquece a página mais formosa de seu poema, sendo que a personagem real de Francesca, por vezes, empalidece “a glória da mesma Beatriz no Paraíso” (vol. XXIV, jun. 1927, p. 142).

Ao lado de Dante Alighieri, homenageado por intermédio de artigos que celebram sua vida e obra, tem grande relevância para a Revista os nomes de São Francisco de Assis e Luigi Pirandello. São Francisco de Assis é homenageado com a publicação de uma série de artigos, sendo que a primeira é escrita a propósito do sétimo centenário de sua morte e se compõe de vários textos. Aff onso Celso, no artigo O Poverello D’Assisi, ressalta que os franciscanos iniciaram a preparação da homenagem ao centenário da morte do monge italiano, seis anos antes, período curto se comparado aos oito anos utilizados para a comemoração do centenário do poeta Dante Alighieri.

“A vida, a obra, a infl uencia de São Francisco formam opulenta e variada literatura, nos principaes idiomas do mundo, excedendo á dantesca” (vol. XXIII, jan. 1927, p. 9). Este é o tom defendido por Aff onso Celso em todo o artigo.

O fi o de Ariadne que guia os demais artigos dessa primeira série é tecido com linhas que exaltam e valorizam a vida e obra do monge italiano, que, conforme palavras de Afranio Peixoto,

foi o maior de seu tempo: precursor de Dante, já o demonstraram, bastava-lhe o “Cantico do Sol”, escripto em italiano, para dar a esta lingua, ainda barbara, fóros literários,

Page 88: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras || 87

que a Divina Comedia viria a confi rmar e a consolidar. (vol. XXIII, jan. 1927, p. 50).

Após essa primeira série composta por vários textos, encontramos no volume XXIV publicado em junho de 1927, o artigo A eterna actualidade de Francisco de Assis, escrito por Magalhães de Azeredo, que ressalta a atualidade de São Francisco apesar da distância de sete séculos: São Francisco “aparece ainda diretamente aos nossos olhos, aos nossos corações” (vol. XXIV, jun. 1927, p. 163).

Na esteira de Aff onso Celso, Azeredo destaca que a sociedade da época era exclusivamente materialista, sendo atraída pela onipotência do Dinheiro, que era “a base, e não ouso dizer a alma, porque deveria dizer a alma damnada, das cada vez mais complexas estruturas nacionaes e internacionaes” (vol. XXIV, jun. 1927, p. 169). Uma possível “salvação” para essa sociedade era vislumbrada na história e obra de São Francisco de Assis.

O último artigo dedicado a São Francisco de Assis constitui-se em uma conferência realizada na Bahia, a 31 de março de 1928, proferida por Afranio Peixoto. Tal discurso foi publicado no volume XXVII de agosto de 1928, e é introduzido com a constatação de que poucos escritores vivem e escrevem poesia com magnifi cência, sendo São Francisco um destes poucos poetas. Após essa introdução, Peixoto discorre sobre a história de vida de renúncia e religiosidade do monge italiano, não deixando de exaltar a grandeza e riqueza da poesia de São Francisco.

Peixoto destaca que o monge “viveu a poesia e escreveu-a, em toscano, antes de Dante, dando fóros literários ao italiano...” (vol. XXVII, ago. 1928, p. 389). Note-se que o escritor coloca São Francisco em uma posição de precursor do poeta da Divina Comédia. Tal dado não é novo, nos artigos analisados, anteriormente, percebemos essa exaltação do monge italiano, cuja obra, por vezes, é vista como um modelo seguido por Dante Alighieri. Assim, o presente artigo, de certa forma, reafi rma e complementa os demais, no tocante à grandiosidade e caráter precursor da obra de São Francisco.

Saindo dos séculos XII e XIII, adentramos no fi nal do século XIX e início do XX com um discurso de Claudio de Souza, proferido

Page 89: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

88 || Erica Salatini et al.

em 15 de setembro de 1927, em homenagem à visita do dramaturgo Luigi Pirandello ao Brasil. A fala de Souza é publicada na Revista da Academia no volume XXV de outubro de 1927.

Claudio de Souza destaca que a obra de Pirandello “deixou de pertencer ao patrimonio do gênio italiano para tornar-se uma das maiores do theatro universal contemporâneo” (vol. XXV, out. 1927, p. 220), sendo o dramaturgo siciliano o grande mestre do teatro, pois sua arte “compraz-se em acordar aquella vida intima, despertando velhos écos, sensações adormecidas, revoltas sufocadas, dores e alegrias, emfi m, que constituem a vida latente do passado” (vol. XXV, out. 1927, p. 222). Souza cita as principais obras de Pirandello, destacando as particularidades de cada uma delas e pontuando, acima de tudo, a riqueza de seu teatro. O tom laudatório se mantém por todo o texto que é encerrado com a expressão da admiração que a Academia Brasileira de Letras nutre pelo dramaturgo italiano.

A Revista da Academia Paulista de Letras6

Outra revista importante que se mostra relevante para a divulgação da cultura, da história e da literatura italianas é a Revista

da Academia Paulista de Letras que auxilia na formação de um público leitor e de um repertório de leituras no início do século XX. Nesta revista, ainda, encontramos referências e citações de textos da cultura italiana, em sua grande maioria, da Divina Comédia de Dante, mas também de outros importantes autores e artistas. Além disso, encontramos provérbios e frases feitas italianas, o que nos revelou que a língua, ainda que fragilmente, era objeto de conhecimento tanto dos intelectuais e artistas paulistas, como talvez, de seus leitores, visto que não existia nenhuma preocupação em traduzir essas citações. Muitas outras referências à cultura italiana são feitas na Revista e passamos aqui a relatar algumas delas na tentativa de apontar sua relevância na divulgação da cultura italiana em São

6

Page 90: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras || 89

Paulo e no Brasil do começo do século XX. Mais que quantifi car aqui as referências e citações, procuramos mostrar a qualidade destas e sua relativa importância na idealização de um repertório e de um imaginário cultural italiano.

A Academia Paulista de Letras foi fundada em 27 de novembro de 1909 por Joaquim José de Carvalho e teve como primeiro presidente eleito Basilio Machado de Oliveira. Em 1937, o então Presidente da Academia Amadeu Amaral (poeta parnasiano-simbolista), Ulisses Paranhos, Artur Mota, Sud Menucci, Afonso de Freitas e outros acadêmicos fundam a Revista da Academia, sendo a comissão redatorial composta por Otoniel Mota, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Oliveira Ribeiro Neto, sob a direção de René Th iolliet.

No primeiro número da revista temos um “manifesto” que declara a intenção dos acadêmicos com a publicação da revista: “a Academia Paulista de Letras quer, com a publicação da sua Revista, dizer a São Paulo e ao Brasil, que ela vive e labora” (vol. I, março 1937, p. 6). O manifesto exalta também o caráter paulistano que a Revista pretende representar, fazendo notar que São Paulo não é uma “terra de broncos apatacados”, mas sim de “gente prática, laboriosa, endinheirada”, sem deixar de notar também que a cidade da época, apesar de seu desenvolvimento econômico e social sofria com a falta de leituras ligadas à cultura em geral.

Assim sendo, a Revista se propõe a dialogar com vários campos da arte e do saber, publicando textos sobre literatura, fi losofi a, sociedade e cultura, teatro, música, história, fi lologia, psicologia, mostrando um panorama amplo da cultura paulistana, e também brasileira, além de grande divulgadora de culturas estrangeiras, como a francesa, a alemã, a italiana, etc.

Nos números iniciais da Revista, temos publicações de crônicas e textos de importantes modernistas como Cassiano Ricardo, Afonso de Taunay, Guilherme de Almeida e Alcântara Machado, que foi presidente da Academia Paulista no ano de 1937, e grande colaborador da Revista. São publicadas também obras literárias como poemas, contos e até romances em forma de folhetim. Mário de Andrade, por exemplo, tem não só seus poemas de Paulicéia

Page 91: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

90 || Erica Salatini et al.

Desvairada divulgados na Revista como também seu romance Macunaíma, publicado sob forma de folhetim. Além disso, a Revista publica atas de reuniões da Academia, conferências e discursos pronunciados em sua sede, sempre relacionados a acontecimentos do cenário social, político e cultural paulistano.

A participação dos intelectuais e escritores paulistas no cenário literário nacional é um ponto de grande interesse de seus colaboradores. Existe, notadamente, um interesse da parte desses intelectuais pela unidade literária nacional, ao ponto de se posicionarem contrários às rivalidades existentes na época entre escritores do norte e do sul do país. Os colaboradores da Revista percebem, todavia, que falta à literatura nacional um “espírito de crítica”, e tentam, com seus textos e resenhas, ajudar na formação desta crítica nacional. Nota-se também determinada exaltação das ideias liberalistas de São Paulo, que são, muitas vezes, encaradas como verdadeiras “missões”, no sentido de difundir um modelo de cultura, arte e educação, por exemplo, através da afi rmação do papel do escritor como sendo aquele de “educador do gosto do povo”.

No que se refere à divulgação de culturas estrangeiras, encontramos várias referências, citações e até mesmo artigos críticos sobre obras literárias e aspectos em geral da cultura e da história italianas. Alguns intelectuais mais ativamente ligados à promoção da cultura italiana colaboraram na difusão de uma ideia de cultura e literatura, em geral, bastante ligada ao período clássico italiano. Um desses colaboradores, em especial, é Ulisses Paranhos, que já nos primeiros anos de publicação da Revista, participava com ensaios e comentários estéticos sobre o Renascimento Italiano, fazia referência às obras de Dante, de Petrarca, de Machiavelli, analisando, ainda que de modo superfi cial, as pinturas de Da Vinci, de Rafael Sanzio, de Michelangelo Buonarroti, o qual é lembrado como “o pintor da Sistina e o escultor de Moisés”. Em um desses ensaios, também encontramos uma referência a Giovanni Papini, que, na época, tinha sua obra sobre “o homem só” considerada uma espécie de “mito”.

Uma nota interessante publicada na Revista é de Menotti del Picchia (vol. VIII, dez. 1940, p. 157-159), que lamenta a falta da língua italiana como disciplina escolar, já que, segundo o modernista, existia

Page 92: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras || 91

no Brasil da época uma grande necessidade de estudos humanísticos para a sua formação cultural. Esse caráter humanístico da cultura medieval italiana será lembrado sempre e, algumas vezes, aparece associado à existência de uma Itália eclesiástica, detentora de um grande patrimônio de arte sacra. O Padre J. Castro Nery é grande divulgador desse aspecto da presença italiana na Revista.

A partir de 1942, com a entrada do Brasil na Guerra, encontramos na Revista um tom politicamente contrário ao fascismo italiano, como por exemplo, nesta nota do volume de número 20, que considera a “Itália – traidora que foi ao seu passado, às suas tradições”. O posicionamento político do país contra a Itália durante a guerra faz com que a presença italiana através de citações e referências a escritores e movimentos artísticos diminua consideravelmente durante os anos de 1942 a 1945. Nesse período, nota-se, proporcionalmente, uma maior exaltação francesa, de sua cultura, de sua literatura e até mesmo de seus heróis de guerra. Mesmo as referências constantes às cidades de Florença e Roma como exemplos de civilizações humanísticas são deixadas de lado. Passados os anos de Guerra, a Revista continua a divulgar a cultura italiana, embora essa divulgação conste, na maioria das vezes, de referências ao modelo clássico italiano.

Dante é o grande poeta citado e homenageado pelos modernistas e intelectuais que escrevem na Revista. Tanto que, no período considerado, o único ensaio inteiramente dedicado a um autor italiano é sobre “Dante nas traduções portuguesas”. Trata-se, na verdade, de uma conferência de Francisco Pati sobre as traduções da Divina Comédia para o português, publicada no volume 33, de março de 1946.

No que se refere aos temas ligados à presença italiana na Revista, aqueles de maior destaque são realmente o Humanismo e o Renascimento Italianos, representados pelas fi guras de Dante, Petrarca, Michelangelo e Da Vinci. As referências a esses autores e pintores superam em número a qualquer outro artista de qualquer outro movimento ou período histórico e literário. Note-se um artigo no volume 37, do ano de 1937, chamado “Donde veio o Quinhentismo”, com referências a Dante, Ariosto, Machiavelli, Tasso,

Page 93: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

92 || Erica Salatini et al.

além de considerar a infl uência do humanismo e da renascença italiana no movimento português como sua principal fonte de origem. Machiavelli, Torquato Tasso e Ariosto são autores bastante citados, sendo este último considerado por José Feliciano o “mais natural dos poetas italianos”, em um estudo histórico e literário sobre o Cultismo, publicado no volume 41, do ano de 1948, e que faz referência também a Marini e aos marinistas.

Boccaccio é mencionado algumas poucas vezes, e a referência mais importante aparece em um ensaio sobre Erasmo de Roterdam e o Elogio da Loucura, de Ulisses Paranhos, publicado em 1943, no volume 21. Nesse ensaio, o Elogio de Roterdam é comparado ao Decameron de Boccaccio. Como poetas italianos neoclássicos, pré-românticos e/ou românticos são lembrados Leopardi, Ugo Foscolo, Metastasio, este último visto como “o mimoso poeta italiano”. Goldoni por sua vez, aparece citado como “uma das individualidades mais altas e mais representativas do teatro italiano”, por José Carlos de Macedo Soares, no número 49, do ano de 1950.

Dentre os escritores modernos, aqueles de maior destaque são o católico Giovanni Papini, bastante traduzido no Brasil no começo do século XX, e pelo que se nota na Revista, muito conhecido e lido também em São Paulo; D’Annunzio e De Amicis. Uma nota interessante sobre D’Annunzio aparece em uma conferência sobre Machado de Assis, proferida por Ulisses Paranhos, publicada no volume de número 11, de 1940, em que Dom Casmurro é comparado ao personagem do Intruso de D’Annunzio. De Amicis é citado por Constantinopoli, seu livro de viagem, em uma nota em que é lembrado por ser “o maravilhoso estilista de Cuore”, no volume 11, do ano de 1940. Pirandello é citado por Uno, nessuno e centomila, no ano de 1939, volume 7, em uma nota que mostra a relação entre o humorismo pirandelliano e a ironia de Machado de Assis.

Do século XX, temos como importantes referências Giuseppe Ungaretti, citado pela sua presença no Brasil, como o “maior poeta da Itália contemporânea”, no número 42, do ano de 1948; e o futurista Marinetti, citado várias vezes, inclusive por Mário de Andrade, seja em um poema, seja em suas refl exões sobre a literatura de vanguarda: “Marinetti foi grande quando redescobriu o poder

Page 94: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras || 93

sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha como Adão. Marinetti errou: fez dela sistema”, citação presente no volume 32, do ano de 1945. Outra referência interessante a Marinetti aparece em uma nota contra os futuristas: Marinetti foi vaiado quando veio ao Brasil, em 1927, precedido da má fama que lhe valeram as vaias europeias. No Brasil recebe a rima: “Ai Marinetti, /se eu fora como tu, /fazia conferência/ montado num bambu”; citada no número 25, do ano de 1944.

Suplemento Letras e Artes do Jornal A manhã7

Como podemos notar, a presença italiana é bastante considerável na Revista da Academia Paulista. Passamos a nos deter agora em um suplemento literário de uma publicação do Rio de Janeiro, o Suplemento Letras e Artes do Jornal A manhã, fundado em 1946 por Jorge Lacerda. Para tanto, foram analisadas 38 publicações do ano de 1950, sendo que 30 contêm algum tipo de referência a autores italianos, e que, se somados, os diferentes nomes que aparecem chega-se a um total de 51 autores italianos citados e 19 obras referenciadas, sendo que 4 dessas referências abordam diretamente a temática da tradução ao anunciarem o lançamento de obras italianas traduzidas e publicadas no Brasil. Dentre os autores citados nas edições do Suplemento destaca-se a presença de Giovani Papini que é citado 6 vezes, algumas referentes à publicação da tradução de suas obras no Brasil, outras são comentários do escritor sobre temas em gerais; a mais interessante é uma entrevista feita por Louis Wiznitzer a Papini, intitulada “Papini está escrevendo um novo ‘Fausto’”, que ganha destaque ao ser posta nas páginas centrais na edição de 03 de dezembro de Letras e Artes.

O jornal A Manhã do Rio de Janeiro era uma publicação do Estado Novo que tinha como objetivo divulgar as ideias desse governo para toda a população, inclusive com publicações diárias de

7 A pesquisa foi realizada junto ao acervo do NELIC/UFSC, e foram consultados os seguintes volumes: 01 de Janeiro, n. 149 a 24 de Dezembro, n. 189 de 1950.

Page 95: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

94 || Erica Salatini et al.

páginas da Constituição de 1937, implantada por Getúlio Vargas.8 Já o Suplemento Letras e Artes, fundado em 1946, teve como diretor e fundador Jorge Lacerda (que no ano de 1937 atuou como jornalista na área de cultura no Rio de Janeiro e a partir de 1940 tornou-se assessor de Cassiano Ricardo,9 então diretor do Jornal A Manhã). Na fi gura de Jorge Lacerda, segundo Adonias Filho, é possível notar a imparcialidade como uma de suas características principais: “em seu método de trabalho [...] que tinha como proteção sua própria sensibilidade, conseguiu o mais difícil dos milagres: reunir todos, acima das posições políticas, nas páginas do jornal literário que dirigiu” (GHANEM, 1993 apud SCHERER, 2008). Segundo João Paulo dos Reis Velloso, ex-ministro e economista brasileiro, essa publicação “era o grande suplemento da imprensa brasileira, não havia no Rio ou em São Paulo algo que se comparasse. Todos os grandes escritores e intelectuais estavam lá” (D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (Org.), 2004 apud SCHERER). Tais afi rmações levam-nos a considerar a relevância do jornal, que tinha grande circulação no período.

O grupo de colaboradores do Suplemento era composto por Brito Broca (que colaborou com reportagens no tempo que permaneceu em Buenos Aires), Carlos Drummond de Andrade, Cecilia Meireles, Ciro dos Anjos, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, José Lins do Rego, Ligia Fagundes Telles, Manuel Bandeira, Santa Rosa (ilustrador da editora José Olympio), Sergio Millet, Tasso da Silveira, entre outros. Dentre os conteúdos do Suplemento, a presença de culturas estrangeiras é frequente, destacando-se a presença de notas que anunciavam a publicação de traduções de obras de autores estrangeiros, dentre eles, alguns italianos traduzidos para o português. Na edição de 02 de abril de 1950, por exemplo, fala-se no lançamento do livro O céu está vermelho, de Giuseppe Berto, acrescida, no dia 7 de maio, da informação de que Lelio Landucci e Th eodoro Cabral foram os tradutores.

8

9

Page 96: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras || 95

No mês de maio, encontramos a referência à Gog de Papini: “Giovani Papini, no seu Gog, não fez senão deliciosos pastiches, sob a forma de entrevistas fantásticas com grandes vultos do nosso tempo” (p. 2). Na edição de 23 de julho, “Anuncia-se para breve o lançamento, na popular Coleção Saraiva, de As testemunhas da

Paixão, de Giovani Papini”. Na edição do dia 10 de setembro há uma nota informando que Nair Lacerda fi cou a cargo da tradução de As

testemunhas da paixão. Nair Lacerda traduziu As testemunhas da

Paixão de Papini pela Editora Saraiva. Lacerda, além de tradutora, foi também escritora e jornalista. Escreveu diversas crônicas e traduziu para o português mais de 200 obras do italiano, francês, espanhol e inglês. Além de Papini, também traduziu a obra o Amor Conjugal (1966) do escritor italiano Alberto Moravia pela editora Ibrasa. Na edição de 03 dezembro, as páginas centrais do Suplemento são dedicadas a uma entrevista de Papini, concedida a Louis Wiznitzer, cujo título era: “Papini está escrevendo um novo ‘Fausto’”.

Assim como verifi cado na Revista da Academia Brasileira

Letras e na Revista da Academia Paulista de Letras, o Suplemento também traz inúmeras referências ao poeta Dante Alighieri. Já na primeira edição do Suplemento de 1950 (n. 149) no artigo de capa escrito por Otto Maria Carpeaux e intitulado Critica Literária, o autor além de fazer referência à obra La crittica letteraria contemporanea de Luigi Russo, cita Dante e Leopardi ao discutir as diferentes formas de se fazer crítica literária nos países europeus, com o intuito de se chegar a um denominador comum dessa crítica no Brasil. Já na edição n. 151, Dante aparece referenciado no artigo A concepção do

Estado no segundo Fausto, de Cristiano Martins, por meio da citação do XXVII canto do Inferno.

O ano de 1950, pelo que podemos notar no Suplemento Letras

e Artes, foi um ano de muitas trocas culturais entre Brasil e Itália. Analisando as publicações no jornal A manhã, constatamos que o país não estava à margem do que acontecia na Europa, especifi camente na Itália. Os escritores e jornalistas que colaboravam no Suplemento tinham conhecimento dos eventos culturais e literários italianos e europeus em geral. Entrevistas com autores italianos, comentários feito por eles, lançamento de traduções, participação desses em

Page 97: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

96 || Erica Salatini et al.

eventos literários, tudo se viu ao longo de um ano nas publicações semanais de Letras e Artes.

Referências

AZEREDO, Magalhães de. A eterna actualidade de Francisco de Assis. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. XXIV, 1927.

CAMPOS, Humberto de. Dante e os poetas brasileiros. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. XXIV, 1927.

CELSO, AFFONSO. Dante. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. XI, 1921.

______. O Poverello d’Assissi. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. XXIII, 1927.

Page 98: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A Presença Italiana nas revistas literárias brasileiras || 97

D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (Org.). Tempos modernos: João Paulo dos Reis Velloso, memórias do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004. apud SCHERER, Marta. América Latina impressa – um estudo no Suplemento de Letras e Artes, Palhoça: Unisul, 2008.

GHANEM, Valéria (Org.). Inventário analítico do fundo privado do ex-Governador Jorge Lacerda (1931-1973). Brasília: Ed. Do Senado Federal, 1993. apud SCHERER, Marta. América Latina impressa – um estudo no Suplemento de Letras e Artes. Palhoça: Unisul, 2008.

PATI, Francisco. Dante nas traduções portuguesas. Revista da Academia Paulista de Letras. Ano IX, 12 de junho de 1946. v. XXXIV.

PEIXOTO, Afranio. Francesca da Rimini. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. XXIV, 1927.

______. São Francisco de Assis da Rimini. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. XXVII, 1928.

SOUZA, Claudio de. Luis Pirandello. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. XXV, 1927.

Page 99: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 100: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 101: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 102: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional: um percurso

entre 1900 e 1950

Patricia PeterleAndrea Santurbano

Lucia Wataghin

Este ensaio é um dos primeiros resultados do projeto de pesquisa A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional,1

ligada ao grupo de pesquisa Literatura, História e Tradução do CNPq, que conta com duas equipes de pesquisadores, uma na Universidade Federal de Santa Catarina, e a outra na Universidade de São Paulo, reunindo estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação.

No âmbito do diálogo entre duas ou mais literaturas e culturas, um dos vieses que vem ganhando força é o da tradução,2 inclusive na área dos estudos comparados.3 Uma investigação mais aprofundada, não dos processos e mecanismos da tradução em si, mas sim do caminho percorrido do texto de partida até chegar à edição traduzida, pode dar diversas e variadas pistas e indicações das relações existentes entre as culturas e os sistemas literários envolvidos.

1 Projeto com fi nanciamento do Edital Ciências Humanas, 2010, do CNPq.2 Basta acompanhar as discussões e publicações cada vez mais frequentes desde a década de 1970.3 A esse respeito é interessante ver o livro de Emily Apter A translation zone: a new comparative literarure.

Page 103: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

102 || Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Lucia Wataghin

O desafi o proposto por essa pesquisa, isto é, refl etir sobre as traduções italianas publicadas no Brasil na primeira metade do século XX, signifi ca também abrir um novo espaço e uma outra perspectiva sobre as relações literárias entre os dois países e suas respectivas culturas, além de entender um pouco mais sobre o próprio sistema literário nacional. A tradução, então, será aqui concebida como um canal de transmissão cultural: um “escambo”, uma ligação entre dois sistemas e até como um “movimento” de mão dupla. Segundo a italiana Marina Guglielmi: “A tradução deve ser entendida, então, como obra e ação cultural, dentro do fenômeno da passagem de uma literatura e de uma cultura à outra que é tomada hoje no seu caráter global”.4 (1999, p. 163).

Nesse sentido, é possível recuperar os versos de Goethe de “Uma parábola”, nos quais é apresentada ao leitor a imagem de um renascimento, que também pode ser aquele da literatura por meio da tradução e da possibilidade de uma nova circulação da obra. Nesse curto poema, a obra literária é metaforizada e comparada a um ramo de fl ores, que é revitalizado pelo “solo estrangeiro”, isto é, o vaso de água. A água pode ser considerada como uma metáfora da vida, do rejuvenescimento, da renovação e da revitalização das fl ores, do mesmo modo que a tradução faz renascer o texto literário numa outra cultura e numa outra dimensão. A tradução, então, como leitura, releitura e ressignifi cação. Como coloca Márcio Seligmann-Silva citando Schlegel,

do ponto de vista romântico, a tradução tem em comum com a Poesia a tarefa de “rejuvenescer” a linguagem “originária” (Ursprache) que na verdade só existe dentro da tradução. A língua originária encontra-se ela mesma dentro do constante movimento de passagem entre as línguas. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 192).

Traduzir, de fato, uma obra signifi ca lidar também com duas tradições literárias (a de partida e a de chegada). Esta ação, a de

4 “La traduzione va intesa dunque come opera e atto culturale, all’interno del passaggio da una letteratura e da una cultura all’altra che viene assunto oggi nel suo carattere globale”.

Page 104: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional || 103

traduzir, faz circular um texto fora da sua tradição e a consequência é uma (ou mais) releitura(s) e a disseminação do texto e dos hábitos e princípios que estão ali, muitas vezes, ocultos. Pode-se dizer que esse é o terreno por excelência do “próprio e do alheio”: um espaço, ainda, caracterizado pelas marcas da interdisciplinaridade e da dinamicidade, tal como afi rma Susan Bassnett:

Não há, de fato, um cânone universal pelo qual julgar os textos, há somente uma série de cânones, que mexem e mudam, com os quais cada texto entretém uma contínua relação dialética. Não pode haver uma tradução defi nitiva, assim como não podem existir um poema ou um romance defi nitivos; e cada julgamento pode ser feito só após ter considerado quer o processo de criação de uma tradução quer sua função em um contexto específi co.5 (BASSNETT, 1993, p. 24).

O que se percebe é a multiplicidade interna e externa inerente ao texto que não permite mais uma leitura unidirecional, mas sim a convergência de várias leituras provenientes de diversos campos. Vistas por esse ângulo, as áreas dos estudos da tradução e da literatura comparada podem ser concebidas como uma prática intelectual que coloca ao lado do literário outros elementos produzidos culturalmente: desta forma, o que se apresenta é um diálogo dessas alteridades, que passa por um processo de interação e negociação, como aponta Umberto Eco em um de seus últimos livros:

Já foi dito, e trata-se hoje em dia de idéia aceita, que uma tradução não diz respeito apenas a uma passagem entre duas línguas, mas entre duas culturas, ou duas enciclopédias. Um tradutor não deve levar em conta somente as regras estritamente lingüísticas, mas também os elementos culturais, no sentido mais amplo [...] Steiner (1975) no primeiro capítulo mostra bem como alguns textos de Shakespeare e

5 “Non c’è, infatti, un canone universale con cui giudicare i testi, c’è solo una serie di canoni, che si muovono e cambiano, con i quali ogni testo intrattiene una continua relazione dialettica. Non può esserci una traduzione defi nitiva, come non possono esistere una poesia o un romanzo defi nitivi; e ogni giudizio può essere dato solo dopo aver considerato sia il processo di creazione di una traduzione sia la sua funzione in un contesto specifi co.”.

Page 105: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

104 || Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Lucia Wataghin

de Jane Austen não são plenamente compreensíveis para um leitor contemporâneo que desconheça não apenas o léxico da época, mas também o background cultural dos autores. (ECO, 2007, p. 190)

A relação Brasil-Itália ou Itália-Brasil é muito intensa ao longo dos séculos. Na verdade, a presença de italianos e da cultura italiana em terra brasileira faz parte da história do país. Contudo é no fi nal do século XIX e no início do século XX, que algumas dessas relações passam a fi car, de alguma forma, registradas. O desenvolvimento e o crescimento dos jornais e das publicações em geral, como podem ser as revistas e suplementos literários e culturais, nessa passagem de século, são um momento crucial para as relações entre os dois países. Um exemplo signifi cativo dessas relações é representado pela fi gura de Filippo Tommaso Marinetti, autor do famoso Manifesto Futurista, publicado no jornal francês Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909. Logo após a publicação francesa, o manifesto teve uma grande repercussão em diferentes regiões brasileiras. O termo “futurista”, como se sabe, circulou de norte a sul, da Bahia a São Paulo, de Almachio Diniz a Mário e Oswald de Andrade,6 passando pelas inúmeras revistas modernistas. No mesmo ano de sua publicação, o jornalista baiano Almachio Diniz divulga o Manifesto Futurista na íntegra, nas páginas do jornal Diário de Notícias de Salvador. A Klaxon,7 um dos principais periódicos modernistas, só para dar outro exemplo, já no seu primeiro número afi rmava em 1923:

Klaxon sabe que o progresso existe. Por isso, sem renegar o passado, caminha para diante, sempre, sempre. [...]

Klaxon não é exclusivista. Apesar disso jamais publicará inéditos mais escritores já mortos.

Klaxon não é futurista.

Klaxon é Klaxista. [...]

6 Nesse contexto, é interessante lembrar a polêmica entre os dois poetas, que começa com o artigo de Oswald de Andrade “Meu poeta Futurista”, de 1921.7 Conhecida também como Mensário de Arte Moderna, a Klaxon foi o primeiro periódico Modernista. O primeiro número foi publicado em 15 de maio de 1922 e o último em janeiro de 1923.

Page 106: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional || 105

Na apresentação dessa revista, que se identifi cava como moderna, há a rejeição em relação ao ser futurista, o que demonstra como o fervor da discussão estava presente na pauta dos intelectuais modernistas da época. Alguns anos após a divulgação do manifesto, as ideias futuristas ainda circulavam no país e eram motivos de debates, como mostra o artigo “Não há salvação fora da esthetica da machina, do seu esplendor geométrico”, publicado pelo Jornal

do Brasil, em 18 de maio de 1926, que antecipava alguns temas da conferência de Marinetti.8 Todavia, já em 1921, o texto de Sérgio Buarque de Hollanda, “O Futurismo Paulista”,9 publicado na revista Fon-Fon,10 em 10 de dezembro de 1921, já assinalava algumas tensões, que no ano seguinte, em 1922, ganhariam de vez as páginas dos jornais e de alguns periódicos. A proposta do artigo é: “Não é novidade para ninguém o forte infl uxo que de um tempo para cá vêm exercendo, sobre certos belletristas paulistanos, as ideias modernistas no terreno da arte e da literatura. Mas antes de tudo se deve atentar no que sejam essas ideias modernistas.”

Porém, Marinetti e suas polêmicas são apenas uma das relações que podem ser identifi cadas e estabelecidas entre a literatura italiana e brasileira nas décadas selecionadas para esse projeto. Massimo Bontempelli é um outro escritor que passou pelo território brasileiro, durante uma viagem pela América Latina, no ano de 1933,11 o mesmo em que a Editora do Globo, de Porto Alegre, publica a edição de Vida e morte de Adria e seus fi lhos, com tradução de Marina Guaspari. Recuperando os roteiros de viagens é, ainda, possível incluir o escritor e teatrólogo italiano Luigi Pirandello, que viaja junto com Bontempelli, mas que já é conhecido pelo público brasileiro desde 1923, por meio de um artigo de Oswald de Andrade

8 O subtítulo da conferencia é: “Antecipando a conferência de hoje F. T. Marinetti – especialmente para o “Jornal do Brasil” – explica as tendências e motivos da arte futurista. 9 Mesmo título do livro de Annateresa Fabris, publicado em 1994, que traça as relações entre a vanguarda italiana e a movimentação paulistana.10 Este periódico está disponível para consulta no site da Biblioteca Nacional (www.bn.br)11 Essa experiência originou um interessante relato de viagem, Noi, gli Aria (Palermo: Sellerio, 1994). Veja-se a dissertação de mestrado de Adriana Marcolini, “O Brasil nos relatos de jornalistas italianos: o “sguardo” de Massimo Bontempelli e Alberto Moravia”, FFLCH/USP, orientadora Loredana Caprara, 2003.

Page 107: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

106 || Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Lucia Wataghin

publicado no Correio Paulistano, em 29 de junho. E as traduções dos textos de Luigi Pirandello iniciam nessa década e continuam até os nossos dias. As editoras que publicam o dramaturgo siciliano, Martins, Edições Globo, A. Tisi & Cia., Instituto Progresso Editorial, também editam obras de outros escritores da península em coleções de clássicos ou coleções dedicadas à literatura italiana, ou, ainda, de forma isolada.

Refl etindo sobre as relações e intercâmbios entre as duas culturas, na década de 1930, não pode ser esquecida12 a presença em São Paulo, a partir de 1936, de Giuseppe Ungaretti, como participante de uma das inúmeras missões recebidas pela Universidade de São Paulo, para fundar a primeira área de italiano na academia brasileira. Todos esses são aspectos e exemplos dos laços entre a literatura italiana e brasileira, que continuam ainda nas décadas de 1940 e 1950. Ao longo desse período percebe-se que há um crescimento e uma intensifi cação de livros traduzidos que circulam no mercado nacional. Alguns fatores socioeconômicos e culturais estimularam ainda mais a atividade de tradução de autores estrangeiros: entre outros, a interrupção da comunicação marítima com a Europa por causa da Primeira Guerra Mundial, aspecto que impulsiona cada vez mais este ramo de atuação. Como observam Lawrence Hallewell, Sergio Miceli e Lia Wyler, voltou-se, de fato, o olhar para dentro do país e do que era possível fazer e produzir em território nacional. É possível, realmente, perceber que houve um grande crescimento do parque editorial, ao mesmo tempo em que foi dada uma atenção maior para os autores nacionais e para as traduções realizadas e editadas em território brasileiro13.

Esse crescimento continuou ainda nos anos 1930 com Getúlio Vargas, que promoveu uma campanha para diminuir o índice de analfabetos, passando a ter a educação dois objetivos: “produzir mão-de-obra qualifi cada e difundir o ideário estadonovista”. Fazia-se para tanto necessário estimular a leitura, a publicação de livros,

12 É importante lembrar que no seu retorno à Itália Ungaretti irá traduzir, e prefaciar livros de autores brasileiros.13 É bom lembrar que muitas traduções chegavam ao Brasil via Portugal.

Page 108: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional || 107

revistas e jornais, e aumentar a tradução dos clássicos da literatura mundial e de obras inéditas. Em 1937, foi criado o Instituto Nacional do Livro (INL), cujo objetivo era contribuir para o mercado editorial e para a difusão do livro no Brasil: a “ação abrangeria apenas traduções escolhidas e subsidiadas de ‘obras raras e preciosas’ que interessassem à cultura nacional, especialmente os relatos de viajantes estrangeiros nos séculos anteriores” (WYLER, 2003, p. 109). Nesse período, na década de 1930, com o Estado Novo, é criado o Serviço de Divulgação da Chefatura de Polícia, que tinha como objetivo controlar as publicações e a produção intelectual em vista da defesa do regime e do governo.14 Nesta perspectiva, o presente projeto visa a identifi car, mapear e analisar o percurso das traduções feitas e publicadas no Brasil, durante a primeira metade do século XX, da literatura italiana, no intuito de verifi car as ligações entre os sistemas literários.

É possível aqui dar conta de algumas tendências que vão surgindo dos primeiros dados da pesquisa. Em primeiro lugar, um número provisório de cerca de 200 obras de literatura italiana traduzida nesse período, com trinta editoras diferentes envolvidas, concentradas no triângulo (ou regiões culturais) São Paulo/Rio de Janeiro/Porto Alegre. Dentre elas, se destacam o Instituto Progresso Editorial, de São Paulo, ativo em um curto período de tempo no fi nal da década de 1940; ou, ainda, a Livraria/Edições do Globo, de Porto Alegre, a At(h)ena, entre Rio e São Paulo e a Companhia Editora Nacional, de São Paulo. Merece destaque também a atividade editorial das Escolas Profi ssionais Salesianas, que publicaram vários livros de um autor pouco conhecido, o padre e escritor Ugo (abrasileirado em Hugo) Mioni (1870-1935).

Outro aspecto interessante diz respeito ao número de traduções analisado por período, o qual vê um boom considerável na década de 1930, tendência que continua, embora com um índice de crescimento menor, na década de 1940, como pode ser verifi cado no gráfi co a seguir.

14 A esse respeito é interessante ver: Wilson Martins em História da inteligência brasileira, de 1977, publicado pela Cultrix.

Page 109: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

108 || Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Lucia Wataghin

Entre os autores mais traduzidos têm aparecido Dante Alighieri, Giovanni Papini, Emilio Salgari, Ignazio Silone e Benedetto Croce, que, por assim dizer, podem ser considerados, no âmbito de gêneros diferentes, “clássicos”. E outros – sem nenhuma acepção pejorativa, mas apenas indicativa – “de consumo”, como: Pitigrilli (ao qual Umberto Eco dedica um acurado ensaio em O

Super-Homem de massa), o já citado Hugo Mioni, Guido da Verona e a muito prolífi ca Carolina Invernizio, cujas dezenas de traduções em Portugal entraram também no mercado brasileiro, evitando possivelmente outras tantas edições de origem local.

Enfi m, um último dado signifi cativo para analisar, o espectro da repercussão da literatura italiana no sistema brasileiro é o prazo de tempo decorrido entre a publicação da obra original e sua tradução brasileira. Gog de Giovanni Papini, por exemplo, empregou apenas um ano, de 1931 a 1932, para ser traduzido;15 A romana de Alberto Moravia dois, de 1947 a 1949;16 Historia de Christo, sempre

15 Com traduçao de De Souza Junior, pelas Edições Globo, Porto Alegre.16 Com tradução de Aldo Della Nina, pelo Instituto Progresso Editorial, São Paulo.

Page 110: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional || 109

de Papini,17 e Vida e morte de Adria e de seus fi lhos de Massimo Bontempelli18 três: respectivamente de1921 a 1924, e de 1930 a 1933.

Tal mapeamento, por um ângulo questionador e crítico, é fundamental para ajudar a delinear o “campo literário” do período selecionado, que possui características e sofre mudanças que são marcos, não só da literatura italiana ou brasileira, mas também da literatura mundial. A interpretação de um texto literário passa por um processo de negociação entre o autor, o público e a obra e, quando se pensa no campo das traduções, entre duas ou mais culturas, em que estão envolvidos o tradutor, o autor e o leitor. Um processo que consiste ainda em esforços para se tentar compreender mais o contexto no qual se vive e se está inserido. Um exemplo a mais dessa tentativa de compreensão é a ideia do estudo da literatura como estudo das instituições literárias, formulada e desenvolvida por Jacques Dubois e Pierre Bourdieu.19 O conceito de “campo literário” de Bourdieu, por exemplo, estimulou uma série de pesquisas voltadas para o reconhecimento dos espaços da atividade social e política dos literatos de diferentes épocas; logo, motivou as análises sobre as condições da obra numa sociedade, num ambiente cultural e em relação com outras obras e até outras culturas, a partir do momento em que ela – a obra – é traduzida e, portanto, passa a ser veiculada numa outra língua.

O ponto de partida desse mapeamento foi o ano de 1900, mas um marco fundamental é o de 1909, com a publicação do Manifesto

Futurista e suas traduções e repercussões no Brasil; depois será a vez de algumas traduções de textos de Benedetto Croce, como Materialismo Histórico e Economia Marxista,20 Breviário de Estética,21 Orientações – Pequenos ensaios de Philosophia política22 e a tradução

17 Com tradução de Francisco Pati, pela A. Tisi & Cia., São Paulo.18 Com tradução de Marina Guaspari, pela Livraria do Globo, Porto Alegre.19 Para mais detalhes ver: DUBOIS, Jacques. L’institution de la littérature: introduction à une sociologie. Nathan: Bruxelas, 1978; BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.20 Com tradução de Luís Washington, Instituto Progresso Editorial, São Paulo, 1948.21 Com tradução de Miguel Ruas, Editora Atena, São Paulo, s/d.22 Com tradução de Miguel Ruas, Editora Athena, Rio de Janeiro, s/d.

Page 111: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

110 || Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Lucia Wataghin

de alguns poemas de Giacomo Leopardi, em 1937, com tradução de Aloysio Castro, pelo Instituto Ítalo-Brasileiro de Alta Cultura.

Para o desenvolvimento desse estudo, poderão ainda ser levantados os diferentes tipos de textos que acompanham as respectivas traduções no Brasil: prefácios, comentários críticos, notícias em jornais, resenhas, ilustrações...; isto é, o que Gerard Genette denominou de paratexto.23 Assim sendo, é possível pesquisar em arquivos italianos e brasileiros, outro tipo de material, como o epistolar, que pode contribuir para o levantamento, mapeamento e análise dos dados. As cartas recebidas pelo escritor italiano Ignazio Silone, por exemplo, entre as décadas de 1930 e 1940, mostram como o seu nome já circulava em alguns ambientes culturais. A correspondência datada de 5 de outubro de 1935, enviada-lhe com remetente não identifi cado, confi rma a circulação e o sucesso de Fontamara (1933) e apresenta uma pequena descrição da cidade de São Paulo, a partir dos diferentes grupos de emigrantes.

Desde a circulação de textos proibidos durante o Estado Novo até a atuação intensa de Edoardo Bizzarri24 no cargo de diretor do Instituto Italiano de Cultura em São Paulo, passando pela série da editora Abril, famosa pelas capas vermelhas, as vertentes são muitas. Como afi rma Márcio Seligmann-Silva, “[...] o estudo das traduções constitui um importante tema para a Literatura Comparada. A história das traduções de um país aponta para a história da sua Bildung; indica a sua capacidade de “saída de si”, sendo que a “volta a si” implica a construção do vocabulário comum que está na base de toda a cultura. O próprio “ser da cultura” só existe dentro desse movimento pendular – não existe nada além desse eterno oscilar que é a marca da tradução”. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 179-180)

Os textos traduzidos são lidos, comentados, reescritos e se entrelaçam nessa imbricada trama que é o universo literário. Essa relação entre um dado sistema literário e a literatura traduzida, que segundo Even-Zohar não pode ser excluída, confi gurando

23 Para maiores detalhes ver: GENETTE, Gerard. Palimpsestes –La letterature au second dégrè. Paris: Seuil, 1982.24 Edoardo Bizzarri assume a direção do Istituto Italiano di Cultura em 1951, e no período da sua administração ele traz para o Brasil uma série de artistas e personalidades.

Page 112: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional || 111

também um sistema, é complexa e dinâmica. Na verdade, são dois sistemas que dialogam continuamente – ainda que, às vezes, de forma oculta – e daí a noção de um perfi l mais amplo sintetizada na noção de polissistema. A literatura traduzida, vista por esse ângulo, é concebida como um co-sistema partícipe e ativo de um todo maior: o polissistema. Na tentativa de identifi car as forças envolvidas num polissistema, Even-Zohar defi ne três casos principais. O primeiro caso contempla as literaturas ditas jovens, isto é, que não são ainda consolidadas, e por isso encontram-se mais propensas a receber aquilo que vem de fora. O segundo refere-se aos sistemas literários ditos “periféricos” ou “fracos”, caso um pouco semelhante ao primeiro, mas com uma literatura que já pode estar consolidada; contudo, por ser “periférica” parece ser também sensível a produções provenientes de outros sistemas. E, enfi m, o terceiro caso, dá-se quando há pontos de mudanças, crises ou vazios num sistema literário.

Se a tradução é uma reescrita, como aponta Lefevere (2007), ou, melhor dizendo, a ponte e o espaço físico e concreto dessa relação sistêmica, que pode desencadear uma série de outros textos como a resenha, o artigo crítico, a mesma tradução é fundamental nas relações entre os sistemas literários e essencial para o diálogo que pode ser iniciado entre eles a partir da publicação e circulação do texto traduzido num novo ambiente. Essa relação, que aos poucos vai sendo estabelecida e construída entre o que é lido, traduzido e (re)criado e escrito, pode ser vista a partir de vários ângulos, mas aquele que interessa para as relações entre os Estudos da Tradução e a Literatura Comparada é o das interlocuções entre sistemas literários diferentes e até distantes.

Desse modo, a pesquisa desenvolvida até o presente momento tem mostrado que geralmente as obras são traduzidas diretamente do italiano; que algumas das editoras possuem coleções dedicadas especialmente à literatura e à cultura italianas; que a tradução, como visto, vai dos mais clássicos como Dante Alighieri, Niccolò Machiavelli,25 considerados também pensadores, a autores, hoje

25 A editora W.M.Jackson tem um volume dedicado aos pensadores italianos: Dante, Machiavelli, Beccaria e Mazzini.

Page 113: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

112 || Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Lucia Wataghin

em dia pouco conhecidos, como Hugo (Ugo) Mioni e Carolina Invernizio.

Dante é, sem dúvida, um dos mais traduzidos e citados; é uma referência para os meios literários como é possível identifi car nos periódicos literários. A Divina Comédia, em partes ou na íntegra, é uma tradução ou reedição que permeia todos esses anos. Ao lado das clássicas traduções do Barão da Villa da Barra e de José Pedro Xavier Pinheiro, encontram-se as de Eduardo Guimarães, pela Livraria Americana, de Porto Alegre, em 1920, Joaquim Pinto de Almeida, pela Livraria João do Rio, do Rio de Janeiro, em 1930, Malba Tahan, pela Aurora, do Rio de Janeiro, em 1947. Ao lado da Comédia, há a Vida nova, publicada pela Athena, do Rio de Janeiro, em 1937, que também reedita o trabalho de José Pedro Xavier Pinheiro.

Carolina Invernizio, escritora de romances rosa, do fi nal do século XIX, tem praticamente todos os seus livros traduzidos pela Livraria H. Antunes, fundada no início do século por Hector Antunes, cujo maior objetivo era a publicação local de livros importados de Portugal. Romances amorosos e, aparentemente impossíveis, eram sintetizados em títulos como Sacrifício de mulher

ou Paraíso e Inferno.As cerca de 200 obras até agora individuadas foram fruto de

um primeiro levantamento de textos em circulação nas bibliotecas universitárias, na Biblioteca Nacional e em sebos virtuais e não-virtuais; dessas, 99 já foram adquiridas com a verba do projeto. Paralelamente, a esse trabalho de busca, foram elaborados e desenvolvidos dois sites: Literatura Italiana Traduzida no Brasil26, para abrigar o projeto como um todo; e Dicionário Bibliográfi co

da Literatura Italiana Traduzida (1900-1950).27 Apesar de as duas páginas estarem ainda em fase teste, é possível afi rmar que a estrutura do Dicionário já está pronta. O que se espera de tal forma é criar uma obra (por enquanto on-line, no futuro, quem sabe, impressa) que possa ser de grande auxílio, não apenas no campo específi co da tradução, mas também no mais amplo da literatura comparada;

26 www.lit.ufsc.br 27 www.dlit.ufsc.br

Page 114: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional || 113

esclarecer e trazer ainda mais à tona os vínculos que ligam os sistemas literários e culturais da Itália e do Brasil. Daí a grande relevância, empreitada e – porque não? – ambição deste projeto.

Referências 

BASSNETT, Susan; LEFEVERE, Andre (1990) Translation, History and Culture. London: Pinters Publishers.

BASSNETT, Susan. La traduzione. Teorie e pratica, Bompiani, 1993.

______. Translation Studies. Revised ed. London/New York: Routledge, 1991.

BERMAN, Antoine (1984) L’épreuve de l’étranger: culture et traduction dans l’Allemagne romantique. Paris: Gallimard.

______. A prova do estrangeiro: cultura et tradução na Alemanha Romântica. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: Edusc, 2002.

______. “La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain” IN Les tours de Babel. Mauvezin: TER, 1985.

BOAVENTURA, Maria Eugenia (Org.). 22 por 22 – a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos. São Paulo: Edusp, 2000.

BORGES, Jorge Luis. “Las dos maneras de traducir”. In: Textos Recobrados: 1919-1929. Buenos Aires: Emecé, 1997.

BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

______. Céu, Inferno. São Paulo: Duas cidades, Ed.34, 2003.

______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BOURDIEU, Pierre. “Les conditions sociales de la circulation internationale des idées” In Romanistische Zeitschrift für Literaturgeschichte, 1990.

______. Les règles de l’art – genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1992.

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira, v. 1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.

CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios reunidos 1942-1978, v. 1. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora e TopBooks, 1999.

Page 115: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

114 || Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Lucia Wataghin

CARVALHAL, Tania. O próprio e o alheio. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

CARPEAUX, Otto Maria (1999) Ensaios reunidos. 1942-1978, v. I. Rio de Janeiro: Topbooks.

______. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 7 vols., 1959 a 1966.

CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira. v. II. São Paulo: Edusp, 1999.

CENNI, Franco. Italianos no Brasil. São Paulo: Edusp, 2003.

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. São Paulo: Forense Universitária, 2002.

ECO, Umberto. Lector in fabula. Milano: Bompiani, 2000.

______. Quase a mesma coisa: experiências de tradução. Rio de Janeiro, Record, 2007.

GENETTE, G. “A utopia literária”. In: Figuras. Tradução de Ivonne Floripes Mantoanelli. São Paulo: Perspectiva, 1972.

______. Palimpsestes – La letterature au second dégrè. Paris: Seuil, 1982.

GNISCI, Armando (Org.). Introduzione alla letteratura comparata. Milano: Bruno Mondadori,1999.

LAMBERT, José. Functional approaches to culture and translation. Amsterdam: J. Benjamins Pub. 2006.

______. Literary Translation, Research Updated. Leuven: Acco 1995.

______. “Production, tradition et importation: une clef pour la description de la littérature et de la littérature en traduction” in Revue Canadienne de Littérature Comparée, Numéro Spécial, La Traduction. Toronto: University of Toronto Press, 1980.

LAMBERT, José. “La traduction, les langues et la communication de masse” In: Target 1:2, International Journal of Translation Studies. Amsterdam: Benjamins,1989.

______. “La traduction, les langues et la communication de masse”.

Page 116: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A literatura italiana traduzida no sistema literário nacional || 115

In: Target 1:2, International Journal of Translation Studies. Amsterdam: Benjamins, 1989.

______. “La traduction, modes et enjeux culturels” In: Gambier éd. Les transferts linguistiques. Villeneuve d’Asq, 1995.

LEFEVERE, André ed. (1992) Translation/History/Culture – a Sourcebook. London: Routledge.

MILTON, John . O Poder da Tradução. São Paulo: Ars Poetica, 1993.

______. Tradução – teoria e prática. São Paulo: Ars Poetica,1998.

MORETTI, Franco. A literatura vista de longe. Tradução Anselmo Pessoa Neto. Porto Alegre: Arquipélago, 2008.

______. Atlas do romance europeu. São Paulo: Boi Tempo, 2003.

______. Ignos e estilos da modernidade. Civilização Brasileira, 2007

______. (Org.). Il romanzo – La cultura del romanzo, v. I . Torino: Einaudi, 2001.

______. (Org.). Il romanzo – Le forme, v. II. Torino: Einaudi, 2002.

______. (Org.). Il romanzo – Storia e geografi a, vol.III. Torino: Einaudi, 2002.

______. (Org.). Il romanzo – temi, luoghi, eroi, v. IV . Torino: Einaudi, 2003.

______. (Org.). Il romanzo –Lezioni, v. V . Torino: Einaudi, 2003.

OSIMO, Bruno. Propedeutica della traduzione. Milano: Hoepli, 2001.

______. Storia della traduzione. Rifl essioni sul linguaggio traduttivo dall´antichità ai contemporanei. Milano: Hoepli, 2002.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: Editora 34, 2005.

STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

VENUTTI, Lawrence. A invisibilidade do tradutor. Tradução de Carolina Alfaro. Rio de Janeiro: Palavra – Departamento de Letras da PUC-Rio, n. 3, 1995.

WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

Page 117: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 118: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 119: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 120: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Algumas manhas da tradução

Aurora Fornoni Bernardini

Refi ro-me à tradução literária, obviamente, pois, embora a tradução não literária possa e – é de se desejar – deva também ser realizada com um olho nos procedimentos tradutológicos artísticos, precisa, para ser correta, ser irrepreensível do ponto de vista da compreensão da língua de partida e da versão na língua de chegada (veja-se, quanto a isso, os itens do princípio empírico de Hjelmslev em seus Prolegômenos a uma teoria da linguagem: primeiro a não contradição, depois o rigor, depois a simplicidade, etc.). Mas à tradução literária a correção e a fi delidade não bastam, elas têm outra acepção, ou ainda – não podem se ater à literalidade: sua linguagem tem suas manhas, justamente as que a tornam artística, marcando – como bem vê Roman Jakobson – sua diferença da linguagem comum.

É disso que vou falar um pouco aqui: de algumas manhas com as quais me vi envolvida pessoalmente, claro, pois a experiência pessoal em fato de tradução (como em qualquer outro fato, d’ailleurs) é determinante. Por isso escolhi duas obras que traduzi, uma, do português para o italiano e a outra, vice-versa, que não foram (ainda) publicadas. Em primeiro lugar, uma pequena grande obra: Um copo

de cólera, de Raduan Nassar. Embora eu seja “nativa” da Itália – mais um americanismo

incorporado à linguagem comum – decidi acompanhar Manzoni e lavar meus panos no Arno; por sorte pude recorrer a uma amiga

Page 121: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

120 || Aurora Fornoni Bernardini

fl orentina (Maria Cecilia Casini) com quem realizei a última revisão. Passados alguns anos vejo agora com satisfação que conservei os rascunhos desse texto revisto, o que me permite comentar algumas escolhas.

Quero evocar a memória de Ferruccio Rossi-Landi (de quem foi traduzido para o idioma português só A Linguagem como

Trabalho e como Mercado, no já distante 1985), uma das pessoas mais sensíveis às artimanhas da tradução e grande contador de “causos”; um deles, justamente, chamou-me a atenção sobre as peças que o “uso” pode pregar ao tradutor. Tendo ido ele a Cuba com uma comitiva destoou-lhe, na tradução para o italiano de um discurso de Fidel Castro, uma passagem que mencionava “por su valor” e que o tradutor, candidamente (e literalmente), traduziu por “por seu valor”. “Não é valor, aqui”, insistia Rossi-Landi, “é coragem”. E estava certo.

O valor de uso – perdoem o trocadilho – é fundamental, e seu desconhecimento é a fonte mais copiosa dos erros que cometem os tradutores quando não têm a vivência da língua de origem e não penetraram nos meandros do que mais tarde veio a se chamar “tradução transcultural” ou “transculturação”, ou ainda “tradução intersemiótica”, como exemplifi ca Umberto Eco, entre outros, em seu ensaio Rifl essioni teorico-pratiche sulla traduzione, dentro da terminologia, por vezes intimidadora, que agora assoberba os “Estudos Tradutológicos”.

Quero informar, também, que além da revisora fl orentina, tive o privilégio de contar, na primeira revisão, com a presença enriquecedora do próprio autor, o que me permitirá comentar mais originariamente (se não originalmente!) certas passagens que tocarei aqui. En passant, tomando emprestada a Antonio Candido a expressão (ele costumava dizer que sem obsessão não se faz uma Tese), graças à presença do autor, que realizou cuidadosamente uma série de cotejos, pude verifi car que sem obsessões não se escreve um romance. As que mais me surpreenderam foram as que dizem respeito ao ritmo da narrativa e à sonoridade das palavras. Sobre essa questão, mesmo na prosa, muitos escreveram: em particular, H. Meschonnic, em seu livro Poética do traduzir, há pouco lançado no Brasil, dedica à questão o capítulo “Ritmo e tradução”. Ver-se-ão

Page 122: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Algumas manhas da tradução || 121

exemplos dessa sonoridade e da tentativa de reproduzi-la em alguns dos exemplos abaixo.

Aproveito o ensejo para tocar em um outro aspecto, que todos já conhecem, mas nem todos observam. É fundamental – convenci-me disso – que o tradutor conheça o estilo do autor que passará a traduzir, tão bem (ou quase) quanto o deve conhecer o crítico. Esta convicção levou-me a conferir algumas impressões minhas com a opinião de outros críticos. Eis, por exemplo, no primeiro capítulo da Tese (UFRJ), gentilmente cedida pelo escritor Per Johns, Escritores

brasileiros “estrangeiros”: A representação do anfíbio cultural em nossa

prosa de fi cção, na parte intitulada: “A literatura como representação do não-lugar: Lavoura arcaica, de Raduan Nassar”, Haron Jacob Gamal – seu autor – escreve:

A narrativa de Raduan Nassar, rica em suas metáforas e comparações, na verdade vai unir o que parecia partido – a febre de André, seu desejo na presença quase que onírica do corpo –, ao corpus utilizado de linguagem, cujo conteúdo fi gurativo beira o erótico. O que aparentava ser desarticulado, devido a um narrador inicialmente em estado de desequilíbrio, se refaz quase de maneira carnal. Talvez o prazer percebido nos rastros do corpo, cujos desejos não encontram vez no arcabouço ideológico familiar, acabe por encontrar seu lugar na própria linguagem. Então, a voz de um narrador transtornado estaria plena de sentido, porque encontra como espelho e gozo a própria narrativa. (GAMAL, 2009, p. 18, grifos meus).

Ora, esse gozo é transmitido principalmente pelo ritmo e pelas assonâncias, consonâncias, e demais encontros/desencontros sonoros da narrativa.

Outro exemplo, agora, quanto a Um copo de cólera, pode ser encontrado em “Raduan Nassar. Da cólera ao silêncio” de Leila Perrone-Moisés. Diz a autora:

A originalidade de Raduan Nassar, com relação a outros escritores de sua geração, consiste justamente nessa opção por um engajamento político mais amplo do que o recurso

Page 123: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

122 || Aurora Fornoni Bernardini

direto aos temas de um momento histórico preciso. Um engajamento no combate aos abusos do poder, em defesa da liberdade individual, numa forma de linguagem em que a

arte não faz concessões à “mensagem”. Um engajamento radicalmente literário, e por isso mais efi caz e perene. (PERRONE-MOISÉS, 1996, p. 69, grifos meus).

Essa maneira do narrar “numa forma de linguagem em que a arte não faz concessões à ‘ mensagem’” é perceptível (obviamente) pela leitura do romance como um todo, no entanto, damos aqui um pequeno trecho bilíngue, para que se observem alguns procedimentos; em particular, assonâncias e aglomerações de chiantes e sibilantes, responsáveis pela sensualização do texto, em que Raduan “giostra” [alterna habilidosamente] o coloquial pessoal e o erudito, amalgamando, inclusive, frases e conceitos de pensadores e poetas (cuja referência estava presente nas primeiras edições da obra), numa corrente irrompente que beira o stream of consciousness:

[...] sem falar que a fumaceira do momento era extremamente propícia ao ocultismo, não ia desperdiçar aquela chance de me exercitar nas fi nas artes de feiticeiro, por isso a coisa foi assim: surgiram, em combustão, gotas de gordura nos metais das minhas faces, meu rosto começou a transmudar-se, primeiro a casca dos meus olhos, logo depois a massa obscena da boca, num instante eu era a canalha da cama, e eu li na chama de seus olhos [...] (NASSAR, 2007, p. 71).

[...] senza parlar del fumo del momento, molto propizio all’ occultismo, non avrei perso quell’ occasione di esercitarmi nelle raffi nate arti di stregone, per cui fu cosi: sorsero, in combustione, goccie di grasso sui metalli delle mie guance, cominciò la trasmutazione del mio volto, prima la scorza dei miei occhi, subito dopo la massa oscena della bocca, in un secondo io ero la canaglia del letto, lo lessi nella fi amma dei suoi occhi [...].

Sirvam, agora, de ilustração de como saíram na tradução alguns trechos, com termos sublinhados referentes a aspectos do mencionado “valor de uso”, cujas diferentes versões serão apontadas:

Page 124: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Algumas manhas da tradução || 123

a primeira fornecida por mim, a segunda (e fi nal), sugerida pela revisora.

1) “[...] fazendo um empenho simulado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os dentes de um cavalo” (NASSAR, cit., p. 10)

Primeira versão: “[...]simulando un impegno esagerato nel

morderlo per mettere in mostra i miei denti forti come i denti

di un cavallo;

Versão fi nal: “[...] simulando un impegno particolare, ecc.”

(Verifi que-se aqui como é idiomático e variado em italiano o uso do adjetivo “particolare”)

2) “[...] os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração (NASSAR, cit. p.15)

Primeira versão: “[...] le braccia aperte in posizione quasi

cristiana, i denti che mordevano all’ altro la bocca come se

mordessero la morbida carne del cuore”

Versão fi nal: “[...] le braccia aperte in un iter quase cristiano

(Verifi que-se aqui como o termo latino iter, incorporado à fala italiana, potencializa a ideia litúrgica sugerida pelo adjetivo “cristiano” – A isso Haroldo de Campos chamaria de “ganho ou compensação da tradução”, diante da muitas perdas, é claro[...])

3) “E era então que eu falava da inteligência dela, que sempre exaltei como a sua melhor qualidade na cama, uma inteligência ágil e atuante (ainda que só debaixo dos meus estímulos), excepcionalmente aberta a todas as incursões, e eu de enfi ada acabava falando também de mim” (NASSAR, cit., p. 17)

Primeira versão: “Ed era allora che io parlavo della sua

intelligenza che ho sempre ritenuto la sua migliore qualità a

letto, intelligenza agile e attiva (anche se da me stimolata),

aperta a tutte le incursioni, e alla fi ne parlavo anche di me

Versão fi nal: “ [...] e già che c’ero parlavo anche di me”

(Repare-se, em particular, nesta última expressão “già che c´ero”, corrente em italiano mas muito pouco usada

Page 125: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

124 || Aurora Fornoni Bernardini

no Brasil e, infelizmente, na perda do matiz erótico de “de enfi ada” que será, porém, “compensado” no exemplo seguinte)

4) “E vendo que aquelas mãos já me devassavam as regiões mais obscuras – vasculhando inclusive os fi apos que acompanham a emenda mal cosida das virilhas (sopesando sorrateiras a trouxa ensaboada do meu sexo)” (NASSAR, cit. p. 22)

Primeira versão: “E vedendo che quelle mani curiosavano

nelle parti più oscure frugando anche i pelini nella giuntura

mal cucita delle palle (soppesando astutamente il fagotto

insaponato del mio sesso)”

Versão fi nal: “[...] soppesando minchione Il fagotto

insaponato del mio sesso”

(O qualifi cativo “minchione” encerra, além de sorrateiro, a ideia de “maroto”, “matreiro”, sem o dar a perceber, e “palle” compensa o matiz erótico perdido)

Um último exemplo, para não abusar da paciência dos leitores, embora sejamos, como Haroldo de Campos, adeptos da “‘marcha’ de uma tradução” (o título refere-se à tradução do poema “A Serguéi Essiênin”, lembrado por Boris Schnaiderman em seu livro recente Tradução, ato desmedido), a favor da visualização do texto durante o seu processo de tradução e não favoráveis a normatizações abstratas, embora – como jocosamente quis reportar Werner Heidermann no prefácio à primeira edição de sua antologia citada na bibliografi a – “elas não atrapalhem”. Não se trata apenas de uma provocação: o próprio Henri Meschonnic declara:

A questão sobre o que é uma boa tradução não depende da aplicação de uma doutrina normativa, nem mesmo de um conjunto empirista de receitas. É uma questão situada cada vez por e para um observador ele mesmo situado e que faz parte daquilo que ele observa. Não se trata apenas de que cada tradução seja de seu tempo, mas que as questões, na tradução, vêm depois de feita. (MESCHONNIC, 2010, p. 33).

Page 126: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Algumas manhas da tradução || 125

As possíveis normas veem-se depois e não antes da tradução! Passemos para o último trecho:

5) “bolas! pra a sua confusão, dona Mariana, bolas! pra sua falta de entendimento, dona Mariana, sim, a mesma cama escancarada, mas bolas! pro que a senhora pensa”

(NASSAR, cit. p. 27)

Primeira versão: “All’ inferno con la tua confusione

Mariana, accidenti! Perchè non capisci niente, Mariana,si,

il letto disfatto, all’ inferno con quello che pensi”

Segunda versão: “Ma chi se ne frega della tua confusione,

Mariana, accidenti!

Perchè non capisci niente, Mariana, si, il letto disfatto, chi se

ne frega di quello che pensi!

II

Já o estilo do romance que escolhemos como segundo exemplo, Rubè, de Giuseppe Antonio Borgese, também confessional, mas narrado em terceira pessoa e bem mais extenso que Um copo

de cólera, é bastante diferente. Agora as dominantes não são mais o ritmo e a sonoridade (fazendo parte do que hoje costumam chamar “oralidade”), mas é o tom e, consequentemente, o fenômeno a que Iuri Tyniánov chamava de “matiz lexical”.

As razões começam pelo fator histórico, ou seja, pelo fato de seu autor, Giuseppe Antonio Borgese (1882-1952), ter sido um escritor moderno e não propriamente contemporâneo. As implicações estilísticas são previsíveis, sendo a mais conspícua delas o fato de não ser comum ele variar o tom do discurso. Ora íntimo, ora coloquial, ora erótico, ora erudito em Raduan Nassar, o tom é sempre elevado em Borgese, mas – é claro – com suas características próprias, histórico-sociais e literárias, sugeridas nesse pequeno trecho do crítico Danilo A Quincozes Morales, em seu prefácio à tradução brasileira (ainda não publicada) “A vida de Filippo Rubè e a consciência de G. A. Borgese”, que passamos a reproduzir:

Page 127: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

126 || Aurora Fornoni Bernardini

Muitos se admiram por esta sua obra ainda não ser conhecida no Brasil. “Por que só agora no Brasil aparece um livro tão importante?” [...] “Convém esclarecer que o crítico e esteta G. A. Borgese enfrentou uma grande disputa entre as tendências da literatura da época. De um lado, a fi gura do poeta D’Annunzio que impunha uma estética da arte pela arte, entremeada por uma posição de nacionalista italiano, que defendia a intervenção da Itália e o expansionismo italiano em solo africano. Nesse período (1903-1913), Borgese publica a série de ensaios La vita e il libro que o colocarão num patamar de defesa da “arte pela vida”, superando a temática do nacionalismo e das polêmicas que havia sustentado por meio das revistas “Leonardo” [à qual se fi liara] e “Hermes” [que ele mesmo fundara]. Por outro, a fi gura do historiador e fi lósofo Benedetto Croce, que já publicara a obra Estética (1902); além de ser aceito como guia espiritual e editor reconhecido, Croce, coadjuvado por Fausto Nicolini, também afi rmava-se no debate de temas como romantismo, arte clássica e linguística geral. A partir de 1903 começa uma polêmica entre o fi lósofo napolitano e os ‘jovens talentos’. Borgese está entre aqueles que não se atemorizaram com a pletora de Croce. (MORALES, cit., inédito).

De fato, as raízes dannunzianas (certo preciosismo), crepusculares e vocianas (certo pré-futurismo), apesar de terem sido superadas por Borgese em seu novo realismo – a fase em que foi escrito Rubè (1928), fase esta que iniciou com seu contato com a Literatura Alemã, de que foi professor na Universidade de Roma (1910-1917) e que amadureceu mais ainda por ocasião de seu autoexílio na Califórnia como professor universitário (1931-1936), e sua estada posterior nos EUA até a Libertação, por não se haver submetido ao juramento fascista – deixaram suas marcas aqui e acolá, numa rede de metáforas abstratas, portadoras de certo lirismo expressionista, mas o léxico é sempre rigorosamente controlado.

Isso exigiu uma atenção particular na tradução: o cuidado para não resvalar nas formas mais frequentes da linguagem corrente. Antes de passar a exemplifi car com as soluções que foram preferidas,

Page 128: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Algumas manhas da tradução || 127

forneceremos uma breve sinopse do enredo, uma vez que o acesso ao original não é fácil, no Brasil, e uma vez que é importante mostrar a adequação entre a linguagem e certos tipos de confl itos que afl igiam o protagonista, bem como a ambiência em que sua existência se desenrolou.

Filippo Rubé, o protagonista, acabou de se formar em Direito no Sul da Itália, onde nasceu e, recomendado por conterrâneos, chega a Roma para trabalhar no escritório do advogado Taramanna e seguir, futuramente, carreira política. É um jovem bonito, um pouco baixo, com nariz grego, com dons oratórios e uma lógica de “rachar um cabelo em quatro”. Extremamente ambicioso e impulsionado pela educação paterna que via nos heróis os únicos “não intrusos” na vida, tão logo é declarada a Guerra (a I) arrola-se como voluntário. Logo, porém, o assalta o medo de ser desprovido de coragem e não conseguir ser o herói que ambicionava tornar-se. No meio da crise, confessa sua covardia a Eugenia, moça bonita, de bons princípios e um tanto frígida, fi lha de um coronel de artilharia (traído pela consorte com um ordenança) e consegue, entretanto, um ferimento num combate e uma menção ao valor militar. Volta a Roma, reencontra os amigos com os quais tem conversas sobre o sentido da vida, agora em mutação após a experiência da guerra, e acompanha Taramanna a Paris, onde frequenta os saraus de Celestina Lambert e se apaixona por ela. Esta paixão será fatal a ambos.

Termina a guerra, ele se transfere para Milão, casa-se com Eugenia que logo espera um fi lho, e começa a procurar novo emprego na Itália do pós-guerra. Não consegue mantê-lo e debate-se entre as difi culdades econômicas e o desejo de abandonar aquela atmosfera sufocante, cuja descrição é um dos pontos altos do romance. Conhece a ambiência pré-fascista, seja por parte dos empregadores ricos, seja por parte dos empregados, obviamente, explorados. Inquieto e infeliz, decide voltar a Paris, mas interrompe a viagem no Lago Maggiore, onde, casualmente, Celestina está passando as férias. Os dois iniciam uma relação tórrida que termina num passeio de barco, com a morte de Celestina tragada pela fúria do temporal. Ele é suspeito de homicídio, mas, graças à intervenção do general Lambert, marido de Celestina, que deseja abafar o caso, é

Page 129: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

128 || Aurora Fornoni Bernardini

inocentado. Atordoado e presa de remorsos que o levam ao delírio, antes de voltar para a mulher, Rubé tenta falar com um sacerdote e com os amigos mais queridos e, fi nalmente, viaja ao Sul, para visitar a mãe e tentar recuperar, nos lugares da infância, o equilíbrio que lhe falta. Na volta, morre em Bolonha, num embate entre comunistas e fascistas no qual, involuntariamente, se envolveu.

Romance histórico e psicológico, em que o protagonista pertence “àquela infelicíssima burguesia intelectual e provinciana, surgida da educação do tudo ou nada, estragada pelo culto das ascensões defi nitivas de onde se contemplam os panoramas”. “Nossas mãos” – diz Rubè – “não têm calos e nossos tendões são frouxos, não sabemos apertar uma verga, nem uma espada, só o vazio” (BORGESE, cit., inédito). Estas duas sentenças já sugerem o tom para a tradução.

No original, encontramos o seguinte parágrafo, que serve de exemplo do referido tom, do qual mostraremos duas versões, o primeiro esboço, mais literal, e a segunda versão, digamos, mais solta:

Non gli parlava volentieri delle sue miserie fi siche, specie in questi due mesi, da quando le soff erenze dello stomaco s’erano insopportabilmente diff use, e a tratti si sentiva invaso da febbrili angosce che l’obbligavano a torcersi le dita per non chiedere soccorso; ma si scaldava alla sua vista con rassegnato rancore. (BORGESE, 1999. p. 7).

1a versão:

Não falava com ele de suas indisposições físicas, especialmente desses dois últimos meses, desde quando o mal-estar que inicialmente era só do estômago tinha-se insuportavelmente espalhado, e às vezes sentia-se invadido por angústias febris, que o obrigavam a torcer os dedos para não pedir ajuda; mas aquecia-se vendo-o, com um rancor resignado.

2a versão:

Não lhe falava, de boa vontade de seus achaques físicos, principalmente nesses dois meses, desde que as dores de

Page 130: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Algumas manhas da tradução || 129

estômago tinham-se espalhado de modo insuportável, e às vezes sentia-se invadido por angústias febris que o obrigavam a torcer os dedos para não pedir ajuda; mas aquecia-se ao vê-lo, com resignado rancor”.

Segue, agora, uma lista de exemplos das soluções às quais nos ativemos.

1) Una lógica capace di spaccare um capello in quatro (fazer uma análise muito sutil, daquelas de não deixar pedra sobre pedra). Resolvemos, aqui, excepcionalmente optar pela tradução literal, sublinhando como novamente diz Meschonnik, agora em seu ensaio “Proposições para uma poética da tradução”, no livro de Neergard citado, a distância entre a Língua I e a Língua II: “uma lógica capaz de rachar um fi o de cabelo em quatro”, justamente para introduzir, no contexto brasileiro, uma analogia que evoca o espírito da época pós-dannunziana. Em outras ocasiões não hesitamos em usar o equivalente brasileiro, em muitos casos sugerido pelo co-tradutor, Homero Freitas de Andrade.

2) De uma maneira geral, preferimos a forma culta à forma

cotidiana

Exemplos: “fi xava”– em lugar de “prendia”; “permanecia” – em lugar de “fi cava”; “desagradava-lhe” em lugar de “não lhe agradava”;

Quanto ao verbo “parecer”, conforme a acepção, suas formas foram substituídas por sinônimos mais precisos:

“e parecia-lhe que aquele disparo com que a guerra começava [...]” foi substituído por: “Ele tinha a impressão de que aquele disparo com que a guerra começava [...]”;

“e pareciam caroços sonoros envolvidos por cascas de silêncio” foi substituído por “e lembravam caroços sonoros envolvidos por cascas de silêncio”;

Page 131: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

130 || Aurora Fornoni Bernardini

“As vísceras estavam rijas” foi substituído por “As vísceras estavam fi rmes”;

“Por isso farei a vida de militar” foi substituído por “Por isso seguirei a vida de militar”;

“aventuras fugidias” foi substituído por “aventuras efêmeras”, e assim por diante.

3) Procuramos evitar possíveis italianismos na tradução, (embora conservando, na Língua II, os nomes próprios da Língua I, ótima forma ex-machina de manter o “espírito do original”):

“Agora parecia-lhe que aquelas águas tinham se acomodado num enorme lago pantanoso” em lugar de: “Pareciam-lhe, aquelas águas, terem pausado em um lago pantanoso”;

“não escrevia sempre por ser de poucas letras” em lugar de: “pouco escrevia por não ser muito letrada”;

Outros exemplos breves:

“mas estava perturbado até a medula”, substitui o anterior “ mas estava perturbado até o âmago”; “o ar fechado e o bafi o humano” substitui “o ar fechado e viciado”;

“as coisas do dia-a-dia” substitui “as coisas de cada dia”;

“Chegou a tempo de esticar o braço sobre o balcão” substitui “Chegou a tempo para esticar o braço sobre o banco”;

“Sua contribuição propriamente dita” substitui: “A contri-buição propriamente dele”;

“Qualquer novo adiamento o irritava” substitui “Qualquer novo atraso o irritava”;

“dando-lhe a impressão que ia fi car sem voz” substitui “fazendo-lhe imaginar fi car sem voz”;

“de engajar-se como voluntário” substitui “de arrolar-se como voluntário”;

“de qualquer maneira, tê-lo-iam convocado” substitui “de qualquer maneira o teriam chamado”;

Page 132: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Algumas manhas da tradução || 131

“Soldado raso” substitui “Soldado simples”;

“Apagou-se diante de seus olhos “substitui “Apagou-se a seus olhos”;

“Pela cadência do trem em marcha” substitui “Pelo ritmo do trem em marcha”;

“ou então extingue-a no início da aurora, com um sopro, sem ruído” substitui “ou então a apaga no início da aurora, com um sopro, sem ruído”.

Poder-se-ia continuar elencando soluções por páginas e páginas, mas bastem essas para o que quisemos apontar.

Quisemos, inclusive, com isso, frisar a importância fundamental da revisão. Seria desejável, claro, o contato e a troca de ideias com os bons escritores. A esse respeito, fi nalizamos com o apanhado de uma anedota narrada por Tolstói em O que é a arte.

Certo dia, estava o mestre em seu gabinete de trabalho, quando recebeu a visita de uma senhora da aristocracia que lhe trouxe uma narrativa para que ele desse sua opinião (só as senhoras desta categoria, tinham, na época, o lazer necessário para escrever). Pois bem, Tolstói foi lendo e, com um lápis na mão, foi riscando e substituindo palavras aqui e acolá. Quando terminou disse à dama: “A senhora está vendo, agora, a diferença entre uma obra medíocre e uma obra de arte?”

Referências

BORGESE, A. G. Rubè. Milão: Mondadori, 1999. (I Edição: 1928).

BRIGANTI, A. Colloqui col Manzoni. Roma: Editori Riuniti, 1985.

CANDIDO, A. Remate de Males. Número especial Antonio Candido. Campinas: Departamento de Teoria Literária IEL. Unicamp, 1999.

CHIAMPI, I. (Org.) Fundadores da Modernidade. São Paulo: Ática, 1991.

DE MARIA, L. “Introduzione” a Rubè. Milano: Oscar Mondadori, 1974.

ECO, U. et al. Le ragioni della retorica. Modena: Mucchi, 1986.

Page 133: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

132 || Aurora Fornoni Bernardini

GAMAL, H. J. Escritores brasileiros “estrangeiros”: A representação do anfíbio cultural em nossa prosa de fi cção. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.

HJELMSLEV, L. Prolegómenos a una teoria del Lenguaje. Madrid: Editorial Gredos, 1984.

HEIDERMANN, W. (Org.). Clássicos da Tradução. Vol I Alemão-Português, 2. Ed. Florianópolis: EDUFSC, 2010.

TYNJANOV, I. Il problema del linguaggio poetico. Milão: Mondadori, 1968.

JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1975.

JAKOBSON, R. Lingüística. Poética. Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970.

MESCHONNIC, H. Poética do traduzir. São Paulo: Perspectiva, 2010.

NASSAR, R. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

NASSAR, R. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

NERGAARD, S. Teorie Contemporanee della traduzione – Textos de Jakobson, Levý, Lotman, Toury, Eco, Nida, Zohar, Holmes, Meschonnic, Paz, Quine, Gadamer, Derrida. Milão: Bompiani, 1995.

PERRONE-MOISÉS, L. “Raduan Nassar. Da cólera ao silêncio. In: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: IMS, 1996, p. 61-77.

ROSSI-LANDI, F. A Linguagem como Trabalho e como Mercado. São Paulo: Difel, 1985.

SCHNAIDERMAN, B. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.

TOLSTÓI, L. Tchto takoe Isskustvo (O que é a arte) in Sobranie Sotchinênia, v. XV – Literatura Artística: Moscou, 1964.

Page 134: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 135: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 136: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Prosadores e poetas: sinfonia de vozes brasileiras numa interpretação italiana

Amina Di Munno

Ao conceito de tradução tem sido dedicada, nos séculos, uma detalhada atenção e, contudo, até hoje não é fácil dar uma defi nição precisa e unânime de tradução, como também não é fácil o ato de traduzir. O termo tradução foi usado, quase sempre, para indicar uma recodifi cação interlinguística da forma escrita da linguagem. Essa especifi cação leva, por exemplo, Friedrich Schleiermacher a distinguir entre übersetzen e a tradução oral, dando início aos modernos estudos sobre a interpretação, cuja atividade apresenta técnicas diferentes das que dizem respeito à tradução. Assim, a palavra tradutor, de etimologia latina, nos mais comuns dicionários, geralmente nos oferece uma defi nição muito simples: pessoa que transfere ou traduz um texto de uma língua para outra. Na prática, esse postulado resulta muito mais complexo. Desde sempre houve trabalhos de tradução, graças à qual sobrevivem até hoje textos de todas as épocas.

Ora, sabemos que a análise sistemática dos estudos tradutológicos, expressos por tradutores e linguistas em diferentes momentos e lugares do mundo, é relativamente recente. Tal disciplina afi rma-se internacionalmente por volta dos anos 1970 do século passado, desenvolvendo-se principalmente através do transfer intercultural sob o aspecto não só linguístico, mas histórico, antropológico, fi losófi co e sócio-político. Nesse campo, um dos

Page 137: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

136 || Amina Di Munno

primeiros teóricos é André Lefevere, que enfrenta também o aspecto paratextual, interessando-se pela transmissão dos textos através das literaturas. A este respeito Lefevere usa o termo “refração” em lugar de “infl uência”, pertencente à antiga terminologia. No efeito de refratar-se, um texto passa de uma cultura para outra.

Como já foi observado, a própria defi nição de tradução abre uma questão, constitui um campo de busca. Th eodore Savory a defi ne uma arte, outros um ofício, para Eric Jacobsen é uma habilidade e há quem a defi na uma ciência. De acordo com Levy, uma tradução representa muito mais do que o conhecimento operativo entre duas línguas. Não se trata para o tradutor de realizar uma simples transposição de signifi cado de um grupo de signos linguísticos para outro, mas de considerar uma série de critérios extralinguísticos, pois a língua insere-se numa realidade social, num contexto cultural que não podem e não devem ser ignorados. O tradutor deve utilizar critérios que transcendam os dados linguísticos e, portanto, é necessário que atue um processo de decodifi cação (do texto de partida) e de recodifi cação (no texto de chegada).

No seu livro sobre a tradução, Dire quasi la stessa cosa, Umberto Eco coloca mais uma vez a antiga e controversa questão: “Che cosa vuol dire tradurre? La prima e consolante risposta vorrebbe essere: dire la stessa cosa in un’altra lingua” (ECO, 2003, p. 9). Só que não sabemos ao certo o que signifi ca “dizer a mesma coisa” e aqui é interessante reproduzir o esclarecimento que o próprio Eco nos dá com a costumada sutileza e ironia, além das páginas do livro, numa antecipação feita na entrevista publicada na seção cultural do jornal La Repubblica de 5 de abril de 2003:

“[...] ‘quase’ porque aí está o ponto de cada tradução, pelo próprio fato que tenta redizer em uma outra língua”... “‘dizer’ corre o risco de se transformar em uma metáfora. Ainda, numa tradução poderíamos dizer a ‘mesma’ coisa se existissem sinônimos absolutos, ao contrário sabemos que não existem. Enfi m vamos à ‘coisa’. Faço um exemplo banal: um personagem de um romance estrangeiro faz um trocadilho tolo, mas intraduzível em italiano. O tradutor está autorizado a substituir o trocadilho? Com certeza se o

Page 138: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Prosadores e poetas || 137

trocadilho colocado na boca do personagem era para mostrar o quanto ele fosse tolo. Não, se as palavras do trocadilho têm uma função importante no resto da história. Qual é a coisa que o tradutor deve escolher”?1

Eis um caso de negociação. O tradutor é chamado a interpretar e a produzir uma resposta na base de uma opção interlinguística, e é por isso que, traduzindo, como afi rma Eco, “non si dice mai la stessa cosa” (ECO, 2003, p. 94).

Se considerarmos válido o princípio de que não existe igualdade absoluta entre duas línguas, aceitaremos facilmente o conceito de perdas e aquisições no processo tradutivo. Esse conceito está relacionado com vários outros problemas que o tradutor deve resolver no ato da transposição de uma língua para outra, de uma cultura para outra. Como afi rma Mounin, é necessário considerarmos a tradução como o resultado de um processo dialético que pode ser levado a cabo com relativo sucesso; afi rmação que por si só implicaria a negação do conceito de intraduzibilidade, cuja categoria linguística, proposta por Popovič, foi ilustrada também por Catford. Conforme a opinião desse teórico, um texto pode ser intraduzível a partir de um ponto de vista linguístico ou cultural. No primeiro caso não há correspondência lexical ou sintática entre a língua de partida e a de chegada. No segundo, a intraduzibilidade é devida à falta de rasgos situacionais na cultura de chegada que possam refl etir os do texto de partida. Mas, nós sabemos que as traduções existem, são fruto da experiência, e é a partir da sua prática milenária que surgem as teorias e a história da tradução.

Hoje, são inúmeros os estudos de tradutologia, de história da teoria da tradução. Em, Teoria della traduzione, Laura Salmon

1 “[…] ‘quasi’ perché lí sta il punto di ogni traduzione, per il fatto stesso che tenta di ridire in un’altra lingua... “ ‘dire’ rischia di diventare una metafora. Ancora, in una traduzione si potrebbe dire la ‘stessa’ cosa se esistessero dei sinonimi assoluti, e invece sappiamo che non esistono. E infi ne veniamo alla ‘cosa’. Faccio un esempio banale: un personaggio di romanzo straniero fa un gioco di parole sciocco, ma intraducibile in italiano. Il traduttore è autorizzato a sostituire il gioco di parole? Certamente, se quel gioco era messo in bocca al personaggio per mostrare quanto fosse sciocco. No, se proprio le parole su cui gioca hanno una funzione importante per il resto del racconto. Quale è la cosa che il traduttore deve rendere”?

Page 139: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

138 || Amina Di Munno

chega a fazer uma distinção entre “história da teoria” e “história da tradução”, considerando-as pertencentes a dois setores diferentes:

Se é claro que em certa medida as duas histórias se podem entrelaçar – numerosos, de fato, foram os teóricos-tradutores, ou melhor os tradutores-teóricos, de São Girolamo a Wilhem von Humboldt – uma completa sobreposição dos dois âmbitos é mais do que justifi cada. Por analogia poderia ser dizer que indentifi cá-los equivaleria a confundir a história da literatura (história dos textos artísticos) com a história das teorias sobre a literatura (história dos textos teóricos).2 (SALMON, 2003, p. 38).

Nunca será supérfl uo remarcar a importância que o estudo da tradução ocupa na história literária e cultural, principalmente desde o ponto de vista diacrônico.

George Steiner, em Aft er Babel, divide a teoria, a história e a prática da tradução em quatro períodos. O primeiro desde os estudos de Cícero e Horácio sobre a tradução até 1791, data da publicação do Essay on the Principles of Translation de Tytler. O segundo período, caraterizado pela busca hermenêutica, vai até 1946 com a publicação de Sous l’invocation de Saint Jérome de Larbaud. A terceira fase inicia-se com o aparecimento dos primeiros estudos de tradução automática, que corresponde ao interesse pela linguística estrutural e pela teoria da comunicação. O quarto período coloca-se na década de 1960, momento em que a visão da tradução amplia-se num sistema complexo multidisciplinar do qual fazem parte: a fi lologia, a etnografi a, a sociologia, a retórica formal, a poética, a neuro-informática, etc.

Considere-se a este propósito a complexidade da mente humana, a habilidade e a rapidez do cérebro em distinguir simetrias ou assimetrias, códigos ou subcódigos no processo de decodifi cação

2 “Se è chiaro che in una certa misura le due storie possono intersecarsi – numerosi, infatti, sono stati i teorici-traduttori, o meglio i traduttori-teorici, da San Gerolamo a Wilhelm von Humboldt – una completa sovrapposizione dei due ambiti è tutt’altro che giustifi cata. Per analogia si potrebbe dire che identifi carli equivarrebbe a confondere la storia della letteratura (storia dei testi artistici) con la storia delle teorie sulla letteratura (storia dei testi teorici)”.

Page 140: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Prosadores e poetas || 139

e recodifi cação durante a passagem de uma língua natural para outra. Essa operação compreende opções relativas aos sinônimos, ao estilo, às lembranças, às emoções, aos cinco sentidos, às conotações. Edward O. Wilson afi rma que a velocidade com a qual o cérebro compõe por associações inconscientes um símbolo com o outro é de “um símbolo a cada 25 milésimos de segundo”. (WILSON, 2001, p. 126)

A atitude, o exercício, a paixão são prerrogativas e ingredientes de que um bom tradutor inegavelmente deve dispor, mas não podemos outrossim negar a importância de uma disciplina, de uma teoria didática que, com objetivos precisos e com uma metodologia apropriada, “ensine” a traduzir. Aprender a traduzir signifi ca, antes de tudo, chegar a um bom nível de bilinguismo, e é por isso que o ensino da tradução está sendo administrado em muitas Universidades em conjunto com o ensino da língua estrangeira. Como em qualquer disciplina, também na didática da tradução existe uma terminologia específi ca, usada, todavia, não somente na didática, mas no âmbito acadêmico e profi ssional. O aspeto intercultural dos estudos tradutivos e a multiplicidade dos pontos de vista enriquecem tal variedade de termos.

O estudo de um outro teórico, Th eo Hermans, sobre as metáforas usadas pelos tradutores europeus renascentistas, evidencia o largo uso da linguagem fi gurada: o tradutor “segue a pista”, “refl ete a luz”, do autor originário, “procura joias num cofre” e assim por diante. Exclusiva e totalmente brasileira é a metáfora que, no prefácio à edição italiana do livro, Susan Bassnett nos apresenta nestes termos: “Os tradutores brasileiros introduziram uma nova metáfora, que poderia ser aplicável a esta diferente perspectiva: o tradutor como canibal que devora o texto de partida num ritual cujo fi m é a criação de algo completamente novo”3 (BASSNETT, 1999, p. 5). A autora, em nota, explica ser devedora a Else Vieira, da Universidade Federal de Belo Horizonte, pela sugestão desta imagem. Imagem que reenvia ao

3 “I traduttori brasiliani hanno introdotto una nuova metafora, che potrebbe essere applicabile a questa diversa prospettiva: il traduttore come cannibale che divora il testo di partenza in un rituale il cui fi ne è la creazione di qualcosa di completamente nuovo”.

Page 141: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

140 || Amina Di Munno

pensamento modernista, cuja máxima expressão foi a “Semana de Arte Moderna de São Paulo” em 1922. Contudo, se o ponto de vista antropofágico oferece uma perspectiva diferente, ela não é separada daquela que Jacques Derrida ilustra, e segundo a qual o processo tradutivo cria um texto “original”, em oposição à ideia tradicional, que via o “original” como o ponto de partida.

Essas observações valem para cada par de línguas naturais. Consideremos o grupo de línguas português-italiano, e mais especifi camente a variante brasileira versus italiano. Posto que a língua é indivisível da cultura do povo que a utiliza, deveremos levar em consideração a formação do povo brasileiro, pois o Brasil faz parte de um continente em que a miscigenação é expressa no nível de escritura e cultura. Estudar a presença da mestiçagem na literatura brasileira signifi ca considerar as variantes das suas manifestações, individuar suas dimensões culturais e as implicações ideológicas, em breve, reconstruir sua composição étnica. Desde a época da colonização, ao lado dos portugueses, muitas outras populações contribuiram na constituição étnica do povo brasileiro.

Procuraremos individuar, na tradição ocidental, o signifi cado dos termos “etnia”, “raça”, “nação”. O uso da palavra etnia, ethnos,

comum já entre os gregos, era uma categoria política em oposição ao termo polis. A expressão polis era empregada com uma conotação positiva e compreendia as leis, os costumes, as tradições de uma comunidade homogênea, ao passo que ethnos, designava ao mesmo tempo os gregos que não eram organizados em aldeias e os que não falavam a língua grega. Essa conotação negativa do termo chegará até a idade moderna. Desde o fi nal do século XVIII, a palavra que se opõe à etnia é nação (do latim natus, no sentido de nascido no mesmo território), daí a concepção de “raça”, vista como sinônimo de um grupo fechado. Com Ernest Renan (1823-Paris 1892) voltamos a uma concepção de etnia parecida à que os gregos tinham do ethnos. Para Renan e outros autores da época, a etnia correspondia ao conceito de “uma nação por defeito”. Numa conferência, “Qu’est-ce qu’une nation?”, pronunciada na Sorbonne em 11 de março de 1882, Renan afi rma que a ideia de nação, como hoje a concebemos, não era conhecida na antiguidade e como exemplo estabelece uma

Page 142: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Prosadores e poetas || 141

comparação entre o grande patriotismo da Grécia, que se estendia numa pequena área geográfi ca e a perspectiva de Roma como nação, que, ao contrário, cobria uma área geográfi ca tão vasta que excluía entre seus habitantes qualquer hipótese de identidade.

Para lá das ideologias de teóricos do colonialismo ou da etnografi a, o que signifi ca hoje ser brasileiro?

Com uma defi nição expressa por um neologismo, em uma das suas grandes obras, Darcy Ribeiro4 assevera que o que caracteriza o povo brasileiro é a sua “ninguendade”. Por um lado, portanto, fala-se em “ninguendade”, porque os brasileiros são o resultado de muitas culturas, muitas misturas, pertencem a tantos brasis que chegam a identifi car-se com ninguém. Por outro lado, poderíamos afi rmar o contrário: a fusão cultural e étnica dá origem a uma identidade nova. Essas concepções, apesar de diametralmente opostas, ampliam as possibilidades de interpretação das questões de etnicidade e identidade no Brasil.

É óbvio que a grande heterogeneidade, fruto de diferenças étnicas, da diversidade de crenças religiosas, de orientações políticas, etc., envolve a necessidade de conciliar tal pluralidade com a ideia unifi cadora de nação brasileira. Existem exemplos em todos os âmbitos do saber e da vida prática: na arquitetura, na literatura, nas ciências, nas artes, na música e até na gastronomia.

Quanto à questão da língua, de acordo com a teoria do Estruturalismo, que se inspira no modelo da linguística, a sociedade é um sistema de relações e os termos que a compõem não existem por si sós, mas em conexão entre eles. Na moderna literatura brasileira os exemplos de interferências, misturas – numa palavra, miscigena-ção –, são consideráveis.

No contexto de uma experiência pessoal relativamente às traduções que realizei a partir de prototextos de romances contemporâneos brasileiros, observam-se microcosmos extrema-mente diferenciados quanto a lugares geográfi cos, referências históricas, culturais, folclóricas, linguísticas (modismos, neologismos, gírias, léxico relativo à fl ora e fauna), mitos, religiões, paisagens.

4 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Page 143: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

142 || Amina Di Munno

Citarei só os nomes dos últimos três autores que traduzi e que ligaram sua produção literária a espaços específi cos nos grandes ecossistemas brasileiros e suas extraordinárias biodiversidades: Milton Hatoum, Heloneida Studart e João Almino (Almino, na verdade, ainda em processo de tradução).

Nos romances e nos contos de Milton Hatoum, a Amazônia e Manaus, o espaço natural e urbano, o mundo do Oriente Médio das origens do próprio autor, vivem e pulsam como em artérias humanas. O universo que ele constrói é aquele que lhe pertence, suas são as emoções, que ele nos transmite a cada página, sua é a geografi a impregnada de cultura árabe e ao mesmo tempo da cultura amazonense. Traduzi-lo com o objetivo de respeitar sua habilidade em criar atmosferas que fundem a história com o mito, a paisagem com as situações, foi um desafi o. Tentei manter o tom desta escritura. Como tive ocasião de escrever num breve artigo: “O desejo de todo tradutor é aquele de entoar no mesmo diapasão as duas escrituras”5 (DI MUNNO, 2005).

Heloneida Studart viveu entre Fortaleza e Rio de Janeiro, e no Rio faleceu em dezembro de 2007. Dessa grande defensora dos direitos das mulheres, traduzi dois romances, caracterizados preponderantemente pela geografi a local. Por um lado Fortaleza, o Nordeste com suas tradições, e pelo outro o Rio, com suas praças e seus prédios, um templo sedes do governo. A paisagem tropical, com a jandaia, o Jardim Botânico, as árvores e as palmeiras centenárias, é o contraponto entre as notas de folclore (crenças populares e mitos, macumba, ebó, rezas do terço) e as grandes personagens, principalmente as femininas. O meu principal propósito, na tradução dos dois romances foi, como de costume, manter-me fi el ao ritmo narrativo, que em Heloneida é musical e por vezes poético.

João Almino, enfi m, é o cantor de Brasília, uma cidade que nasceu de um projeto modernista. Cidade monumental (com seus mitos, suas utopias, seu fascínio, seus símbolos, suas contradições e paradoxos), que inspirou ao “seu” autor estas palavras:

5 “L’aspirazione di ogni traduttore è quella di intonare allo stesso diapason le due scritture”.

Page 144: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Prosadores e poetas || 143

Tento não idealizar esta cidade. Não a vejo como modelo. Pratico o pessimismo como método criativo. Isto não signifi ca que somente tenho expectativas negativas, que desconfi o de toda noção de progresso ou que vejo a decadência como fatalidade. O papel dos escritores não é o de fazer profecias. É o de tentar iluminar o que parece obscuro e de tornar opaco o que parecia claro. Ao fazê-lo, chamam a atenção para o lado sombrio da existência e também para as utopias negativas, às vezes com a esperança de evitar que se tornem reais. Brasília é um retrato do Brasil, com seus vícios e a miséria corroendo o forte desejo de modernização. (ALMINO, 2006-2007).

Cada um dos autores, como é natural, utiliza seu idioleto, seu próprio sistema linguístico, que faz parte da langue e não da parole, porque trata de particularidades linguísticas constantes, não casuais. A observação desta peculiaridade leva a uma maior familiaridade com a escrita original, e talvez a soluções ou negociações mais pertinentes.

Seria impossível, nesse contexto, analisar os detalhes de tradução de cada livro. Citarei alguns breves exemplos de problem

solving relativos ao romance de João Almino, As cinco estações do

amor, por ser este ainda in fi eri.

Uma das difi culdades consiste na transposição para a outra língua de provérbios, gírias e modos de dizer, que não poderiam ser traduzidos literalmente, pois não teriam lógica nem sentido. Assim, os provérbios, quando existem na outra língua, afastam-se totalmente do signifi cado literal:

“não é mesmo fl or que se cheire” = non è proprio uno stinco di santo;

“já entreguei os pontos” = ho incrociato le braccia;

“matar dois coelhos com uma cajadada” = prendere due piccioni con una fava;

“fecha a cara” = mette il broncio;

“na hora agá” = nell’ora X; nel momento cruciale... e assim por diante.

Page 145: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

144 || Amina Di Munno

Em todo processo tradutório é importante considerar um aspecto que diz respeito à estilística léxica: a signifi cação de uma palavra compõe-se de uma função denotativa e de uma função conotativa. A denotação é marcada pelo código da língua, a palavra tem o seu signifi cado preciso que indica o objeto ao qual se refere. Já a conotação resulta do acréscimo de outros signifi cados ao signifi cado de base da palavra, que funciona, portanto como exteriorização psíquica. O termo reveste-se de valores afetivos e sociais, bem como de sugestões. O sentido conotativo varia conforme as línguas, as culturas, as classes sociais, o momento histórico e o contexto, enfi m. Denotação e conotação se combinam para compor o signifi cado completo da palavra. A escolha do termo adequado há de se buscar, portanto, na conotação, pois até numa série sinonímica as palavras têm conteúdos conotativos diferentes. Por esta razão, entre vários sinônimos, só um deles expressará o mais corretamente possível o signifi cado a partir do prototexto.

Diferente é o caso de termos que funcionam como “falsos amigos”, e que nos levariam a cometer erros de tradução, como por exemplo: “É uma pessoa esquisita” = È una persona squisita (ao invés de strana). Ou ainda:

“esperto” – port.= astuto; it. = especialista, técnico, perito

“pasta” – port.= espécie de bolsa; it.= massa

“prego” – port.= haste de metal pontiaguda, alfi nete; it.= de nada, como?, passe, entre

“burro” – port.= asno, jumento; it.= manteiga

Há expressões, nos romances em questão, que não têm correpondência na língua de chegada. Então, quando possível, recorri à explicação ou perífrase, que é o caso de amplifi cação pelo qual no metatexto são introduzidas, para maior clareza, exemplo desse procedimento são algumas palavras que não estão contidas na língua de partida, como: “seringueira” – albero del caucciù. A intraduzibilidade total é uma exceção. Pode ser compensada através de processos tradutíveis como empréstimos, calcos linguísticos,

Page 146: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Prosadores e poetas || 145

neologismos e, em última análise, com uma nota do tradutor ou com um glossário fi nal, quando os termos “intraduzíveis” forem numerosos.

Para completar as notas de caráter pessoal, introduzidas numa matéria que hoje é também defi nida ciência, farei mais um breve excursus sobre dois pontos signifi cativos da minha experiência: um diz respeito à tradução automática e ao uso da internet que está marcando uma nova era no campo da divulgação de todos os gêneros de escrita, com blogs, e-books, etc...; o outro concerne à tradução da poesia, e penso principalmente nos poemas de Vinicius de Moraes e de Cássio Junqueira.

Por tradução automática entende-se a tradução realizada por um programa informático que analisa o texto de partida e produz um texto de chegada sem intervenção humana. Na realidade a tradução automática, ainda hoje, prevê uma fase de preparação para a máquina (pre-editing) e uma de revisão (post-editing). Um dos programas de tradução automática mais confi áveis é o SYSTRAN, um acrônimo formado por SYStem TRANslation, cujo objetivo é o de traduzir automaticamente entre vários pares de línguas naturais.

Em La Jolla, Califórnia, tive uma experiência de trabalho nesse setor, num centro de tradução, LATSEC, Inc. and World Translation Center. No ano de 1979, fui encarregada pelo presidente do centro, Dr. Peter Toma, de incluir, no mega-sistema que já compreendia os sistemas de Alemão-Inglês, Francês-Inglês, Inglês-Francês, Chinês-Inglês, Russo-Inglês e Inglês-Russo, e também Inglês-Espanhol e Inglês-Italiano, o sistema Inglês-Português, ainda inexplorado. Colaborei com uma equipe de informáticos, sendo responsável pelo nível dos elementos da gramática e da sintaxe portuguesas, que, ao longo de dois anos de trabalho, fui transformando em códigos.

Dessa experiência nasceu, em 1981, uma pequena gramática, Piccolo manuale di lingua portoghese, destinado aos estudantes como instrumento básico de consultação das regras fundamentais da língua portuguesa.

Quanto ao segundo ponto, posso reiterar que o mito da “intraduzibilidade” da poesia, apesar dos debates e opiniões diferentes sobre esta questão, ainda está vivo. É muito discutida também a

Page 147: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

146 || Amina Di Munno

hipótese de se somente poetas podem traduzir poetas. O fato é que a tradução de poesia, no âmbito da tradução literária, representa um desafi o ainda maior. Aplicar conceitos teóricos e práticos envolvendo as categorias da interpretação, da intertextualidade, da interculturalidade, da decodifi cação e recodifi cação do texto literário, não basta. Na poesia, a tradução deve trazer em si o ritmo, o tom, a musicalidade do texto original. Pode-se dar ao poema uma forma física diferente, porque nem sempre existem correspondências semânticas exatas ou formas sintáticas paralelas, no entanto, não se pode alterar a sua forma espiritual.

Traduzir de uma língua para outra signifi ca fazer uma série de modifi cações e alterações: os versos podem sofrer expansão ou limitação. A música de uma estrofe, a sugestão de um verso são atribuídas ao movimento rítmico, ao jogo de acentos, às pausas entre um termo e outro. Deve-se, assim, à sensibilidade do tradutor reconhecer esses elementos, de maneira que a diferença no processo de transição, a partir do original para a língua-alvo, seja tão pequena quanto possível; isso por meio de estratégias que consistem na escolha de um sinônimo, na busca de uma assonância, no acento de uma palavra. É importante ressaltar que este processo envolve uma relação dinâmica e de diálogo com o texto de partida.

Como vimos, existem várias dimensões de uma poesia. São marcas das características poéticas de Cássio Junqueira as imagens, os conceitos, as alusões, as sugestões, o som, sendo particularmente importante a pontuação. Esta nunca é muda, é parte do discurso, não cria um vácuo, mas sim uma ênfase. Para ser fi el ao estilo do autor, mesmo na consciência da difi culdade em que isso resulta, o meu texto tentou fi car perto de cada elemento semântico ou formal, de cada pausa ou suspensão de imagens, bem como das sensações expressas pelo poeta.

Nesse diálogo com o autor que, afi nal, é a tradução, eu sempre tive o compromisso fundamental com o respeito e a fi delidade ao texto original e também a necessidade de manter a fl uência do texto traduzido.

Page 148: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Prosadores e poetas || 147

Referências

ECO, Umberto. Dire quasi la stessa cosa. Esperienze di traduzione. Milão: Bompiani, 2003.

SALMON, Laura. Teoria della traduzione, storia, scienza, professione. Milão: Vallardi Editore, 2003.

Wilson, Edward, L‘armonia meravigliosa. Milão: Mondadori, 2001.

BASSNETT, Susan, La traduzione teorie e pratica, strumenti. Milão: Bompiani, 1999.

RIBEIRO, Darcy, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

DI MUNNO, Amina. “La Nota del Traduttore”. In: HATOUM, Milton. Due Fratelli; Saggiatore, 2005. Disponível em: <www.lanotadeltraduttore.it/fratelli.htm>, 2005.

ALMINO, João, Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras, em 24 de agosto de 2006. In: Revista Estudos Avançados, USP, n. 59, abril de 2007.

Page 149: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 150: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 151: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 152: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero,

de Ignácio de Loyola Brandão

Gabriela Kvacek Betella

Subversivo, subversivo, Subversivo, subversivo...

O romance Zero é ambientado na metrópole confusa, onde não há tempo para humanização. Mais que isso, o texto absorve a atmosfera caótica e desorganizada do contexto brasileiro a que se refere. Se a trama deve muito ao meio e ao tempo da produção (fi nal dos anos de 1960) e implica inúmeras referências, a ação pode ser resumida da seguinte forma: José, um homem comum, trabalha num cinema matando ratos e vive num cubículo cheio de livros censurados; visita uma feira de pregadores e aberrações; apaixona-se por Rosa; passa a outro emprego; torna-se ladrão, assassino e passa a viver com um grupo de guerrilheiros; Rosa é morta num ritual e José vai preso. Torturado até o delírio, é nesse estado que termina seu percurso.

São muitos os fi os narrativos das histórias paralelas que surgem a partir de personagens ou dos elementos inseridos no texto a título de contextualização, assim como são inúmeras as metáforas e as referências diretas à desesperadora existência do homem comum, cuja situação parece não ter onde piorar e, no entanto, piora. José perde o emprego, não consegue trabalho e faz pouco esforço para

Page 153: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

152 || Gabriela Kvacek Betella

obter uma ocupação, tamanho o descaso consigo mesmo e graças a um misto de ingenuidade e fé que lhe permite acreditar nas pessoas e na sorte. Essa confi guração de personagem que parece passar da situação de vítima a agente da ação transgressora não oferece a ele independência nem afi rmação. José continua a ser vitimado pelo mundo e pelo tempo em que vive.

O presumido país de José traz referências do Brasil dos anos de 1960 e 1970. Sob a atmosfera de abandono e omissão da cidadania, de um lado, e, de outro, a vigilância das atitudes, a repressão e a restrição de liberdade, a narrativa vai compondo um cenário de “terra de ninguém” com acontecimentos familiares aos brasileiros, desde as marcas sociais do desemprego, do sonho da casa própria, das consequências da burocracia sobre a difi culdade do contribuinte, até a nota política com o abandono do país por intelectuais, os assaltos a bancos, estudantes presos. A leitura nos dias de hoje absorve esse contexto trasposto pelo romance e, graças ao mecanismo que estabelece as relações entre narrativa e história, visualiza o período através da trama com coerência e sem excessos, graças ao exercício de liberdade e ambiguidade ao qual a forma se dispõe. O resultado é a revisão de um determinado período e seus paradoxos, provando ao leitor que a obra não envelheceu e soube utilizar as infl uências da reportagem e das novas formas representativas, especialmente audiovisuais.

Em meio a um estado de coisas nada animador, José é bombardeado por repressões de toda ordem, dispostas a aniquilar a individualidade. Não bastasse isso, há no romance um afl uxo da mídia promotora de gostos, orientações, hábitos, preconceitos. Massifi cado nesse universo, José tenta encontrar ou recuperar sua individualidade, intenção e sentido que defi nem sua ação na trama. Contudo, sua trajetória é constantemente sabotada, seus planos parecem fracassar antes de serem postos em prática. Parece haver um sistema rigorosamente organizado para desviar as fi nalizações, piorar os resultados, algo reconhecido imediatamente pelo leitor como uma espécie de desgraça global ou complô social de que sempre esteve próximo e nunca se livrou, marcando a impotência subsistente como legado de um tempo.

Page 154: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 153

Nesse contexto reproduzido pelo conteúdo da narrativa, o autor escolhe como lugar da subversão a forma do romance. A narrativa se apresenta desconstruída, numa desordem sob a qual o leitor precisa se acostumar e se reorientar, pois há vários fi os narrativos que podem ser seguidos ao mesmo tempo, razão pela qual é preciso treinar o olhar para seguir a história, para se adequar à forma e apreender a trama. Há um trabalho com a linguagem em Zero que traz para o livro algo de rebeldia, como se a palavra se voltasse contra um sistema que quer desvalorizar seu papel, silenciar-lhe o sentido. Por isso a linguagem desesperada do resultado, que pode ser vista também como prova de agilidade e refl exo do dinamismo, que toma conta do ponto de vista ansioso para contar, para subverter o modo tradicional de narrar e para revalorizar a palavra, recuperando um sentido social.

O título do romance remete à neutralidade, sugere ponto de partida, no entanto, logo a partir das primeiras páginas, o sentido se revela abruptamente: “zero” é o resultado da conta da miséria de José e das pessoas representadas no romance, bem como uma espécie de nota atribuída aos aspectos da vida mais essenciais. Zero de dinheiro, zero de futuro, zero de existência: o romance representa o esforço que não dá em nada, os destinos que sucumbem sem realização dos sonhos, a aceitação de tudo isso na forma de falta de perspectivas. Por outro lado, o subtítulo “romance pré-histórico” faz referência ao tempo anterior à civilização, anterior ao uso dos metais e à invenção da escrita. A trama inovadora, desconstruída, fora de ordem, permeada de elementos estranhos também se refere a um tempo de barbárie, que precede o desenvolvimento das culturas, portanto se localiza antes do aperfeiçoamento humano em todos os sentidos, da ciência aos hábitos cotidianos. Sendo assim, título e subtítulo podem se referir ao tempo em direção ao qual tudo parece caminhar, atingindo um estado quase absurdo de formas de vida e de existência da narrativa, pois a forma do romance absorve as ausências, a negatividade, a repetição presentes na vida das personagens manipuladas pelo autoritarismo da mídia e do governo.

José incorpora a caracterização de “zero” como indivíduo em seu contexto. O personagem não é nada, sua vida é uma sucessão de

Page 155: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

154 || Gabriela Kvacek Betella

manipulações dos cenários sobre seus passos, sobre suas atitudes. A presença soberana das regras não deixa a existência caminhar sozinha e, ao contrário do que se possa pensar, José não está à mercê da vida. Sua trajetória parece calculada para permanecer onde estiver, de preferência marginalizado. O estado de nulidade humana atinge outras personagens e os acontecimentos, narrados com uma naturalidade intragável, compõem trajetórias apresentadas como absolutamente normais, não fosse a forma descosturada do romance e as inserções, digressões, variações gráfi cas, etc. Portanto, o conteúdo absurdo só pode ser entrevisto através da descontinuidade da forma, já que o tom de normalidade se afi rma sem manifestações questionadoras, sem interferências que ressaltem o aniquilamento do indivíduo. O leitor permanece atônito com o contato com a nova forma e com a aparente crônica urbana.

Zero surge num momento decisivo e, se considerarmos as observações sobre sua inscrição e apresentação, sua proposta literária é representar o momento e apontar possibilidades de representação, pois as formas tradicionais não dariam conta de uma realidade caótica, confusa e sem saída. Entretanto, o romance que assimila na estrutura a desordem capaz de invadir os raciocínios e as existências pode mapear o presente e antever o futuro, ao menos quanto às possibilidades de novos registros.

Conforme ressaltou Malcolm Silverman, Zero se destaca dos romances que marcaram a passagem dos anos de 1960 para 1970 porque representa “uma descida inexorável e polimorfa a um inferno mais revoltante que o dos outros romances do período, infl uenciados, como eram, pelas convenções realistas” (SILVERMAN, 1995, p. 244). A degradação dá o tom no romance desde a epígrafe de Alexandre O’Neill1 às associações a partir das primeiras páginas, quando se

1

Page 156: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 155

comparam as dimensões do universo ao peso de José, o protagonista. Sua pequenez de sujeito se mistura às sensações produzidas pelas imagens literárias que descrevem o meio:

Na pensão, ele se lava no tanque (de manhã, a dona tranca o banheiro para não usarem o chuveiro quente), com sabão de pedra. Café é no bar da esquina. Operários esquentam marmitas num fogão coletivo. Eles têm o olhar parado. Construções: a cidade vedada com tapumes. Linhas telefônicas, água, esgoto, luz. Buracos ao comprido das ruas. Ônibus devagar no trânsito congestionado. A dor de cabeça que José tem todas as manhãs começa a passar. O cinema abria às dez e meia. Os mesmos espectadores, todos os dias. Eles não iam ver o fi lme. Iam dormir. Tinham passado a noite pelos bares. Gente que vinha dos cortiços, bancos de jardim, parque Dom Pedro, cadeia, bordéis. Cheiro de álcool, maconha, sujeira, desocupação, desprezo. Começavam a dormir, dois fi lmes seguidos, acordavam três horas depois para o intervalo de cinco minutos. Voltavam a dormir e iam assim até o fi m do dia. (BRANDÃO, 2010, p. 109).

Em outras passagens, misturam-se referências da cultura, cujas fontes são as mais variadas e surpreendentes:

Água fria no banheiro, ele se enfi ou debaixo do chuveiro, se esfregou com o sabão de cinza que a tia mandava do interior. Esfregava de arder a pele. No dia em que se rastejou para não perder o emprego, teve necessidade de tomar o maior banho. Ficou horas no banheiro, a viúva foi saber se ele tinha morrido. Quando viu que estava vivo, reclamou da água que gastava. Ela gritou muito. Não adiantava, ele não podia sair, precisava deixar a água no corpo. Dava vontade de viver como o Marat, dentro da banheira, refrescando. Mas o Marat tinha mulher para tomar conta. Ao menos, no fi lme tinha. (BRANDÃO, 2010, p. 119).

Page 157: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

156 || Gabriela Kvacek Betella

Embora as imagens descrevam as piores sensações e ambientes, como se o universo do romance estivesse encerrado numa trágica e enfadonha realidade cotidiana, a leitura não produz indiferença graças à perturbação, ao questionamento dos padrões, à inquietação. De sobra, as informações disseminadas ao longo da narrativa constroem uma espécie de relatório do condicionamento histórico e social resgatado dos escombros, ainda com restos de uma refl exão normal, de uma capacidade razoável de descrição.

Como podemos observar, há no relato de Zero uma mimesis aparente e, na conformação do romance, uma mimesis autêntica. Por dentro da trama, o que temos é uma articulação de verossimilhança de personagens, uma linearidade temporal, algumas articulações de causa e efeito, porém a linguagem revela irrealidade, porque “a própria realidade representada é irreal”, isto é, “a própria função mimética da linguagem, para ser fi el à realidade representada, que semelha o irreal, deve-se tornar ela mesma irrealidade” (HOHLFELDT, 2001, p. 122). Visto de outro ângulo, todavia, o romance espelha um mundo em plena catástrofe histórica e humana através da fragmentação que se confi gura como representação e, ao mesmo tempo, como imperativo.

Em certo sentido, Zero pode ser considerado sobrevivente, exemplo de literatura de resistência, pois o relato nasce do período radical em torno de 1968 (e, de algum modo, representa estados catastrófi cos da repressão) e sobrevive da censura. Graças à operação de linguagem, o romance amplia as possibilidades e os limites da literatura. Portanto, além de registrar a matéria que pedia representação, a leitura de Ignácio de Loyola Brandão também problematiza a forma literária, corrompendo tanto a estrutura do romance quanto as inserções da notícia, do recorte, da midiatização, sem relativizá-los a ponto de eliminar do discurso a referencialidade, sem dispor como efêmeras determinadas situações de impasse, relatando o que podia ser possível, já que não havia àquela altura muitos depoimentos disponíveis e sufi cientes para basear o relato, ainda mais quando a perspectiva resvala para o lado do opressor:

Page 158: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 157

Ele estava na mesma cela, e me contava. Contava, só no começo. Depois, comeu um pedaço da língua. Ele me dizia: os choques doem no começo. Eles puxam os músculos do corpo inteiro. Depois, os músculos se acostumam. A gente só tem que aguentar e não fi car louco, antes que o corpo se habitue. Eu admirava, o cara. Fosse eu, tava morto, enlouquecido, suicidado como aquele padre. Eu nunca podia imaginar que um dia essas coisas acontecessem. Eu tenho esperança de pôr a mão num daqueles caras. O sujeito nunca me disse o nome. Tratavam ele por Crato. Era de lá, um nordestino mirrado, fi lhodaputa de valente. Da peste. Tiravam ele da cela, à noite, ele voltava de manhã, sem dentes, ensanguentado. Não podia andar, tinha as solas dos pés em carne viva. Picada de agulhas. Não dava o serviço, eu sabia que iam matar ele, mas o cara não dava serviço. Passava o dia na cela, apavorado com o que viria à noite. Cada dia, inventavam uma. Inventavam não. Aplicavam. Eram profi ssionais. Um dos interrogadores, o pior de todos, dizia: ‘Eu deixo meu estômago em casa, porque meu estômago não aguenta comunista e eu posso vomitar. De noite, beijo minha mulher e venho trabalhar. De manhã, quando volto, me lavo muito, lavo a boca, desinfeto, escovo os dentes. Porque falei com comunistas e minha boca fi cou contaminada. Eu quero pôr nesse pau da arara todos os fi lhosdaputa de terroristas, cada subversivo, cada Comum que eu encontrar. Só assim posso olhar meus fi lhos, minha mulher, meus amigos. Só assim posso comungar no domingo’. [...] Um dia, levaram o sujeito pro pau de arara. ‘Dá o serviço: nomes, aparelhos, planos. Dá, que é tua última chance’. O interrogador tinha as mãos postas, e suplicava. O Crato, quieto, nu, dependurado, os fi os elétricos no saco. O saco, o pinto, a bunda, tudo dele era carne viva. Passaram navalha no corpo dele, fi zeram cortes fi nos como fi os de cabelo, o sangue brotou. Jogaram salmoura, depois água gelada. O interrogador chorava: ‘Pelo amor de Deus, eu tenho dó, não quero fazer isso. Seja bom comigo, não faça uma coisa dessas, você não tem direito’. Trouxeram para a sala, a mulher e os três fi lhos do sujeito. O mais novo tinha quatro meses. ‘Diz, nomes, aparelhos, planos’. Crato, quieto. Nem podia falar, não tinha língua. Tiraram a roupa da mulher dele. Comeram ela, ali. Seis caras marrudos. Enrabaram, gozaram na cara dela,

Page 159: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

158 || Gabriela Kvacek Betella

bateram. ‘Diz, vai dizer, agora vai’. Crato não disse, ligaram todos os fi os possíveis, na orelha, nariz, dentro da boca, dedos, enfi aram no canal da uretra. Estavam encapetados, gritavam, como quem goza numa mulher. Pegaram o menino de quatro meses, deram um choque, o menino chorou. Deram outro, o menino morreu, pretinho. A mulher gritou, enlouqueceu naquela hora mesmo. ‘Nós matamos sua família e você não diz nada. É mesmo fi lhodaputa’. ‘Bateram nos outros fi lhos. Então, ligaram os fi os. Eletrocutaram Crato. Nem que tivesse passado num fi o de alta tensão. Quase desintegrou. Sumiram com a mulher, com os fi lhos, com tudo. (BRANDÃO, 2010, 357-358).

O relativismo não acontece ou não se efetiva porque a presença de eventos ligados à ditadura militar brasileira do fi nal dos anos de 1960 é marcante no texto, não confi gura manifestação extraliterária ou ilustração. Tais recursos não comparecem em Zero para anular seu caráter literário, ao contrário, existem para confi rmar a resistência do literário.

O subtexto e a mordaça: arqueologias

Diante da volumosa edição comemorativa dos 35 anos do romance Zero, publicada em 2010, provamos a sensação de novidade através do projeto gráfi co que traz a nova capa dura com o nome do autor, vazada com um círculo no centro, através do qual vemos a primeira página com a minúscula palavra do título bem no meio. Em seguida, temos o retrospecto de muitas capas de edições brasileiras e estrangeiras. Nota de Antonio Candido, prefácio de Walnice Nogueira Galvão, observações do autor, contextualizações. A nova edição de Zero instiga o exame de suas condições de produção, de sua falta de condições de circulação e da força do projeto literário, linguístico e estético em suas fontes e desdobramentos.

Porém logo descobrimos que o romance de Ignácio de Loyola Brandão tem muito de humano, do mais misterioso humano no seu caráter de resistência, de narrativa disposta a sobreviver em meio ao desespero, ao sufocamento, ao esmagamento provocado pelo

Page 160: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 159

terror pós 1964. E a história de resistência do livro tem passagens no mínimo curiosas, como a de alguém que escapa, sem saber explicar como, das condições mais inóspitas para uma obra composta por fragmentos de estilo, de diagramação, como se cada página estivesse bombardeada para tornar explícita a atmosfera caótica de seu tempo.

Em pleno momento tenso da ditadura militar, em setembro de 1972, Luciana Stegagno Picchio2 esteve no Brasil e recebeu os originais de Zero, ainda não editado:

Ao regressar, já me encontrava no avião quando vejo correr através do campo, não sei por que privilégio ou audácia, o Jorge Andrade, o grande dramaturgo autor de A moratória. Tínhamos nos tornado amigos poucos meses antes em Roma, quando ele aparecera entre nós como enviado da revista Realidade para entrevistar Murilo Mendes. Na mão do Jorge, um grande pacote, que ele me entregou desaparecendo imediatamente e que eu abri ao levantar do avião. Era o datiloscrito de um romance de um autor desconhecido, Ignácio de Loyola Brandão, com um grande “0” na folha de rosto e o título Zero. Comecei a ler interessada e intrigada aquelas páginas cheias, como fossem urros, de palavras em letra capital, desenhos, gráfi cos, tabelas. Qualquer coisa, especialmente na altura, de insólito. Li tudo antes do fi m da viagem e quando desci em Roma estava convencida de que o livro, inédito, e pour cause, no Brasil, teria de ser publicado o mais breve possível na Itália para que o mundo soubesse não o que acontecia (porque eles todos deviam saber), mas qual era o clima em que se encontravam os intelectuais do país, a ponto de alcançarem a violência da linguagem e das imagens que eu acabava de ler. Tinha tido na Universidade de Pisa, antes de transferir-me para sempre a Roma, um

2

Page 161: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

160 || Gabriela Kvacek Betella

aluno excepcional, que dali a pouco se tornaria um dos mais conhecidos escritores italianos: Antonio Tabucchi. Na tradução de Antonio e com a chancela da editora amiga Inge Feltrinelli, o Zero italiano de Loyola saiu em primeira edição mundial em março de 1974. O êxito foi tal que a partir daquele momento Ignácio se tornou um autor bem conhecido e querido entre nós. (PICCHIO, 2001, p. 25).

A coragem de Luciana Stegagno Picchio de procurar traduzir e publicar um romance como Zero só pode ser comparada com a coragem do autor de escrevê-lo, apostando na inovação e na violência que desponta de cada página, sutilmente composta de modo a tecer com muita técnica e habilidade a trama que aproveita a temática da repressão. Evidentemente, o olho da brasilianista percebeu a necessidade de retirar o livro do Brasil e a urgência de sua publicação, subvertendo as condições sob as quais o livro havia sido escrito, no longo processo desde o fi nal dos anos de 1960.

Naquela altura, a Itália havia passado pelo Sessantotto, evento que incluiu uma série de acontecimentos de protesto estudantil, com ocupação das principais universidades (Roma, Turim, Milão, Veneza, Pisa, Florença) e direcionamento para o campo político e social, com as ligações entre os estudantes, a classe operária e as feministas. Em 1969, quando tudo parecia se acalmar, aconteceu o chamado autunno caldo (outono quente), com as lutas sindicais dos trabalhadores de todos os setores, em busca de melhores contratos de trabalho. O saldo do autunno caldo (que teria retomado as lutas operárias de 1965) foi cerca de 150 dias de greve, a renovação de contratos que resguardaram a grande maioria dos trabalhadores do país, o fortalecimento das uniões sindicais, o reconhecimento político e civil das lutas operárias e sindicais através do Estatuto dos Trabalhadores pela lei de 20 de maio de 1970. O Estatuto dava direito de manifestação, liberdade política, religiosa e de organização sindical. A despeito dos defeitos apontados no Estatuto, ele representou uma conquista importante em termos de legislação.

Em meio à luta operária, um fato grave muda o foco das atenções: o atentado de 12 de dezembro de 1969 em Milão, o primeiro de vários assumidos pelo chamado terrorismo nero. A partir daí,

Page 162: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 161

o terrorismo cresce com o objetivo de atingir instituições estatais. Embora não seja fácil explicar o fenômeno, o terrorismo italiano com seus vários grupos desejava revelar a incapacidade governamental através de sequestros, homicídios, atentados. Envolviam como vítimas magistrados, jornalistas, políticos e pessoas comuns.

Em 1969 nascia da extrema esquerda outra facção terrorista, o terrorismo rosso, que teria sido formado a partir de grupos marginalizados da sociedade industrializada e por uma escolha política precisa disposta a romper as regras da democracia como primeiro passo revolucionário que envolveria as massas populares. Contudo, há quem acredite em outros interesses, italianos e estrangeiros, manipulando a luta armada de esquerda. De qualquer forma, o terrorismo rosso promoveu cerca de dois mil atentados em mais ou menos dez anos. Muitas das organizações clandestinas foram famosas, mas sem dúvida as Brigate rosse (Brigadas vermelhas), cujo berço foi Trento, tiveram papel signifi cativo na tentativa de afi rmar a superioridade da luta armada durante os anos de 1970, especialmente após 1976, quando o Partido Comunista Italiano, os socialistas e partidos menores de esquerda preferiram se abster a compor a chamada “solidariedade nacional”.

É também durante a década de 1970 que o crime organizado (a mafi a da Sicília, a camorra da Campânia e a ‘ndrangheta na Calábria) muda de feições, assumindo o caráter de empresa, deixando para trás a imagem cultivada pela literatura e pelo cinema, da qual fazia parte a fi gura amada e respeitada do padrino.

Sob esse clima de transformações, Zero chega à Itália, com sua gama de alusões e com o peso factual sustentado pelo teor de verdade. Além disso, o romance trazia inscrito na forma o problema do momento: a difi culdade de visão da totalidade, atestada pela alegoria, que por sua vez se fundamenta no fragmentário. Naqueles tempos, não se podia entender o meio senão pela representação fragmentada.

Outros livros de Loyola foram traduzidos na Itália: Cadeiras

proibidas (Vietate le sedie), por Rita Desti em 1983, edição da Marietti de Turim, e Não verás país nenhum (Non vedrai paese alcuno), por Claudio Valentinetti (que efetiva uma nova tradução para Zero) em 1983, pela Mondadori.

Page 163: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

162 || Gabriela Kvacek Betella

Antes de efetivar a publicação de Zero, orquestrada por Luciana Stegagno Picchio graças às suas boas relações com a editora Feltrinelli, cujo patrono comunista havia publicado Dr. Jivago, o livro de Boris Pasternak proibido na Rússia, a professora da Universidade de Roma escreveu a Loyola dizendo que o livro era forte, e perguntou se ele tinha coragem de publicar, pois poderia trazer problemas. O escritor relembra:

Tremi. Teria coragem? Hesitei. De repente, vi que tinham sido nove anos de minha vida. Bia Braga, minha mulher na época, me questionou: um pedaço de sua vida está aí. Toda a sua raiva, a razão pela qual escreveu o livro, a sua revolta, a indignação, o protesto, tudo está nesse livro. Não vai publicar? E como vai se enfrentar pelo resto da vida?

Ela estava certa, concordei. (BRANDÃO, 2010b, p. 18).

Após a publicação na Itália, Loyola é informado de que o adido militar da embaixada brasileira enviava recortes sobre Zero para a Polícia Federal em Brasília, afi nal o romance perturbava a ditadura porque denunciava a repressão no Brasil. Porém o fato de ter sido publicado no exterior deixava a obra até certo ponto imune. No entanto, pesavam os argumentos de que o livro “denegria a imagem do Brasil”.

Numa manobra rápida, os direitos de Zero foram comprados pela editora Brasília/Rio. Audaciosamente, Lígia Jobim publicava o livro no Brasil exatamente um ano após ter saído na Itália. Teve por aqui duas edições esgotadas em dois meses, com boa recepção da crítica. Para João Luiz Lafetá, que escreveu sobre o livro no jornal Movimento, logo em 1975, ao deixar de se publicar Zero no Brasil, havíamos perdido “um romance curioso, sem maneirismos experimentalóides, sem a diluição modernosa que caracteriza boa parte dos nossos pretensos inovadores literários” (LAFETÁ, 2004, p. 450). Com a ousadia contagiante em abraçar o livro de Loyola, o crítico ainda aponta causas para a tardia publicação no Brasil:

O fato de o livro ter saído primeiro em italiano dá o que pensar. É verdade que os autores encontram muitas

Page 164: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 163

difi culdades para publicar seus trabalhos. É também verdade que os argumentos dos editores (falta de mercado e má qualidade dos originais são os dois decisivos) têm um peso grande. No caso de Zero, entretanto, fi ca bem evidente que as razões são outras.

Qualidade não lhe falta, nem boas possibilidades de vendagem. A demora na publicação só pode ser atribuída ao abafamento da vida cultural, por tanto tempo submetida a imperativos tão fortes que acabam produzindo distorções desse tipo: um romance brasileiro, que trata de assuntos ligados a nossa vida de cada dia, que interessa do ponto de vista literário, fi ca cinco anos na gaveta, até encontrar um editor italiano e até aparecerem condições (não sei se ainda muito precárias) para a publicação em português. (LAFETÁ, 2004, p. 450)

Ao denunciar o “abafamento da vida cultural”, Lafetá denuncia o atraso ou a suspensão a que estiveram submetidas algumas obras produzidas no período. E o calvário de Zero tinha somente começado:

Um dia, souberam que Zero estava sendo comentado nas mesas de biriba das mulheres dos coronéis em Brasília. Elas davam as dicas sobre fi lmes imorais, livros, peças, canções. Zero foi visto em seguida na mesa de Armando Falcão, ministro da justiça.

Nesta altura eu trabalhava na Editora Três, fazia a revista Planeta que, pelo seu conteúdo alternativo, esotérico, falava do poder da mente, de civilizações desaparecidas e etc., também não agradava muito ao regime. Uma tarde, o censor que se ocupava da Três, um polonês culto, cujo nome esqueci, veio até minha mesa:

– Seu livro será proibido hoje pelo Falcão.

– E o que posso fazer?

– Espere. Se a motivação for política complica, complica bem, você poderá sofrer um processo, ser preso, condenado. Se a causa for moral, esqueça, deixe correr, será apenas um livro proibido.

Page 165: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

164 || Gabriela Kvacek Betella

No dia seguinte aquele censor me telefonou:

– Boas notícias para você. O livro foi proibido com base na moral e nos bons costumes. Parabéns!

Fiquei perplexo. Moral e bons costumes. De qualquer modo tinha sido proibido, essa era a questão, o grande problema. Anos de minha vida jogados fora numa penada. Perguntei:

– Vão recolher o livro das livrarias?

– Eles não têm estrutura para isso. Vão deixar esgotar, você não pode tirar novas edições.

Por algumas semanas ainda o Zero vendeu. Proibido, logo esgotou. Até o fi m tinha pilhas na Livraria Nobel, em frente à Biblioteca Mário de Andrade. A cem metros da Polícia Federal. Era o Brasil. (BRANDÃO, 2010b, p. 18-19).

A história da concepção de Zero, sua composição e fi nalização merecem ser reconstruídas para visualizá-las nos tempos difíceis para a literatura no Brasil. O nascimento do romance está intrinsecamente ligado à evolução da restrição da liberdade, que acabou condenando várias obras.

Em 1o de abril de 1964, sob grande aparato, uma tropa de choque da Força Pública do Estado de São Paulo fechava o jornal Última Hora, onde trabalhava Ignácio de Loyola Brandão. Duas semanas depois, o jornal foi reaberto e seu pessoal dispersado em prisões, exílio, esconderijos. Lá fora, a cidade continuava a funcionar, quase sem se dar conta da deposição de um presidente, de um golpe de Estado. Na redação, aparece a fi gura do censor:

[...] um elemento novo, o censor. Presença física nesse período chamado pré-história da censura. Ele e sua mesa, isolado de todos. Ninguém olhava para ele, lhe dirigia a palavra. Odiávamos aquele sujeito que se mostrava indiferente, estava fazendo o serviço dele. Cada matéria que eu, então secretário gráfi co (esse era o título na época), devia colocar na página, mandava antes para o censor, que aprovava ou não. O não permitido voltava a mim com um carimbo retangular, tinta verde, e a palavra VETADO. No primeiro dia, censurada

Page 166: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 165

a matéria, não coloquei nada no lugar, em acordo com a direção do Última Hora. Quase todos os jornais fi zeram a mesma coisa. Ficaram buracos brancos. No segundo dia os censores proibiram os brancos em todos os jornais, éramos obrigados a preencher com alguma coisa. Não sei por que, talvez instinto, tudo o que o censor vetou no primeiro dia, joguei dentro de uma gaveta, as mesas de redação eram enormes. Artigos, notícias, reportagens, entrevistas, fotos, caricaturas, legendas, críticas. Não se podia, por exemplo, falar mal de estadistas amigos. Não se podia criticar os americanos. (BRANDÃO, 2010b, p. 13).

Da função que não sabia bem o que fazer com o material vetado nasce um procedimento displicente, paciente e cuidadoso. O resultado vai se tornando surpreendente:

Passados alguns meses, vi a gaveta lotada. Levei para meu apartamento, morava na praça Roosevelt, 128, apto. 83, um lugar delicioso. E comecei a encher caixas. Certa vez, num momento de tédio, abri as caixas e comecei a olhar aquele material. Fiquei perplexo. Estava comigo uma namorada, a Shirley Barreto Cardoso [...]. Ela também foi lendo aquilo e perguntou: “Então, essas notícias nós não soubemos?”. “Não”, respondi e expliquei o que era a censura. Ela não sabia, o povo não sabia, ninguém tinha ideia do que havia nos bastidores da mídia. Aí me bateu uma coisa, fi cou lá no fundo. Aquela frase da Shirley: “Nós não soubemos”. [...]

Outra vez, mostrei as caixas ao David Auerbach, repórter político do Última Hora, meu melhor amigo, e ele me disse a mesma coisa: “Quanto foi oculto aos brasileiros”. [...] Vistos em conjunto, os originais tomaram uma feição estranha. Tudo e nada. Era muita, mas muita coisa apagada, oculta, proibida. Coisas bobas e coisas grandes. [...]

E me veio a ideia de um romance? Zé Celso foi outro que me disse: romance, é isso, monta assim mesmo, desordenado, louco, fragmentado, o Brasil está assim. Não me arrume nada, o país vive desorganizado. Para mim estava explodido, dilacerado. (BRANDÃO, 2010b, p. 14).

Page 167: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

166 || Gabriela Kvacek Betella

As caixas continuaram cheias, enquanto Loyola cuidava da vida profi ssional, deixando o Última Hora em 1966 e passando a trabalhar na editora Abril, para a revista Claudia, onde também havia censura, porém todo o material era enviado a Brasília para receber o “sim” ou o “não”. Por volta de 1970, Plínio Marcos pede a Loyola uma história para uma antologia de autores paulistas, com histórias ambientadas na cidade. Uma notícia serve de inspiração para a contribuição do escritor, que cresce nos propósitos:

[...] comecei no dia em que lia uma notícia de que para os lados da Vila Brasilândia, Freguesia do Ó, havia um menino que fazia sucesso. Ele tinha música na barriga. Imaginei um grupo de pseudo intelectuais, aquela gente que frequentava o Bar Redondo, ao lado do Teatro de Arena, o Bar Sujinho, ao lado do Restaurante Baiúca, o Gigetto, os teatros Ofi cina e Arena, que um dia faz uma “expedição” à periferia para encontrar o tal menino. Seria o encontro com uma população ignorada por eles, paulistanos classe média. Uma São Paulo surpreendente. Gente que vivia em malocas, barracos, casas de zinco, madeira, plástico, papelão.

Passei a anotar, anotar, o conto crescia na cabeça. Decidi me estruturar e escrevi um roteiro para o que seria o conto. Mas o conto mesmo não saía. A editora esqueceu o projeto, fi quei com um roteiro. Então, tinha duas coisas: centenas de papéis proibidos e uma estrutura para uma história.

Então, deu uma louca. Amontoei no apartamento todas as matérias censuradas. As velhas e as novas, que a cada dia tinha mais, e mais, e mais. E a cada dia pegava um papel e escrevia alguma coisa em cima. Uma fi cção-realidade. Montava uma historinha a partir do grupo que vai atrás do menino com música na barriga. Veio-me à cabeça uma lembrança de infância, um livro sobre um menino que tinha o rei na barriga. (BRANDÃO, 2010b, p. 15-16).

A certa altura, o projeto de Zero era gigantesco. Após anos de escrita e reescrita, o livro que ainda se chamava A inauguração da

morte passou de quatro mil páginas. Não havia história, era pesado, porém era a realidade, segundo o autor, que passou a criar ironias

Page 168: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 167

e notas de rodapé para contestar a si mesmo: “Era o autor olhando o autor, criticando, debochando, contestando, dizendo qual é?” (BRANDÃO, 2010b, p. 16).

Loyola cortou, reescreveu, recriou até chegar a mil laudas, depois a oitocentas, seiscentas, quinhentas. Reescreveu tudo de novo e de novo, avidamente, agarrando-se à escrita:

Então escrevi tudo de novo. Reescrevi. Quem olha hoje o original fi nal vê laudas amarelas, cor-de-rosa, azuis, papel de pão, folhas de papel-almaço, papel-sulfi te A4, tem de tudo. O romance tomava forma. Escrevi de novo. Desesperado, que livro era esse, quem leria? Ia para todos os lados e para lado nenhum. Escrevia para mim, para desabafar, para suportar o que voa à minha volta, as cassações, as torturas, as mortes, as bombas, a guerrilha urbana, a repressão, aquele delegado Fleury odioso. (BRANDÃO, 2010b, p. 17).

O livro levou nove anos para ser escrito e fi cou na gaveta, sem título defi nido, como também não eram os capítulos, as personagens, as intervenções. Em meio aos desabafos que rememoram os sentimentos envolvidos na escrita (como o ódio ao regime militar brasileiro através da fi gura de um dos principais algozes, o delegado Fleury3). O autor confessa a inspiração para o título: “Vindo pela rua, vi um enorme zero num outdoor de uma loja. Zero de entrada. Zero. O começo e o fi m da vida. O círculo. O nada. A nulifi cação da vida. Mudei o título na mesma hora. Zero fi cou” (BRANDÃO, 2010b, p. 17).

Os originais chegaram a ser enviados para a editora Bompiani, na Itália, e foram recusados. O autor ainda trabalhava no texto, enquanto passava da redação de Claudia para a de Realidade, “uma revista que foi de primeira linha e a censura assassinou, destruiu lentamente” (BRANDÃO, 2010, p. 17). Jorge Andrade, que escrevia

3

Page 169: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

168 || Gabriela Kvacek Betella

perfi s para a Realidade, pediu para levar Zero para a Itália. Aí aconteceu o encontro com Luciana Stegagno Picchio e o restante da história da publicação em Milão, pela Feltrinelli.

Conforme observamos, a história da criação e publicação de Zero é, como a de tantas obras literárias visadas pela censura, um percurso de resistência à opressão. A partir da fi nalização do texto em 1969 houve recusa de editoras, publicação no exterior, ameaças de proibição, edição no Brasil, interdição pelo Ministério da Justiça, pressões dos segmentos culturais, liberação em 1979. Nesse ano se iniciava a abertura política e se propalava o arrefecimento das perseguições político-ideológicas, especialmente graças ao fato de que durante a segunda metade da década escritores, intelectuais, artistas, cientistas mobilizaram-se para resistir e protestar. Uma das manifestações foi o “Manifesto dos 1046 intelectuais contra a censura”, entregue ao ministro da justiça em 25 de janeiro de 1977, por uma comissão de escritores, entre os quais Helio Silva, Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinõn e Jeff erson Ribeiro de Andrade, que liderou o movimento originado em Minas Gerais, motivado pela proibição de Zero, de Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, e de Araceli, meu amor, de José Louzeiro, no mesmo decreto, em novembro de 1976.

O gatilho, a escrita e as relações

Em 1963, Ignácio de Loyola Brandão viajava para a Europa, pela primeira vez. Quando estava em Roma, em pleno verão, entrou num pequeno cinema e o fi lme exibido era 8 ½.4 Loyola conta que não entendeu nada, até porque não falava italiano, mas se fascinou pelas imagens, nunca havia visto um fi lme com tanta liberdade narrativa. Ele percebia que uma narrativa poderia ser aparentemente caótica, desorganizada, fragmentada e, na verdade, ordenada minuciosamente, com cada fragmento na sua respectiva função. Ao longo dos anos, o escritor assistiu ao fi lme várias vezes, mais de

4 Segundo Federico Fellini (1920-1993) o título 8½ refere-se aos seus oito fi lmes e meio já realizados até então, embora alguns críticos tenham afi rmado que teria havido um engano, pois o cálculo de longas e curtas de Fellini não somaria o número do título.

Page 170: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 169

cem. Quando, após 1964, Loyola começou a recolher material para um projeto que ainda não se defi nira, os fragmentos indagavam sobre a estrutura que tomariam, e não havia referências literárias para fornecer padrões de estrutura, que vieram justamente de 8

½: narrativa livre, solta, seguindo para trás e para frente, juntando pedaços, pensamentos, ruídos, vozes, lembranças. Pedaços de caos e violência unidos sem explicações, nem começo, nem meio, nem fi m, sem psicologismos e com uma certa amargura do momento político pós 1964, quando uma geração percebe que está perdida, com o futuro cancelado e esfacelado. Zero nasce nessa encruzilhada, já que alguns representantes dessa geração haviam escolhido a luta armada, a clandestinidade. Loyola construiu aos pedaços uma bomba literária que esperou, mas explodiu durante o regime.

A forma de 8½ exerce profunda infl uência na estrutura de Zero. A história de Guido Anselmi, diretor cinematográfi co em crise de inspiração e de vida material, é contada através de um emaranhado de relações que mistura presente, memória, sonho e delírio, dissolvendo suas fronteiras a ponto de deixar o espectador confuso em meio às ambiguidades do discurso. Quando produzia os fragmentos para o que viria a ser Zero e estabelece o elo certeiro com 8½, Loyola encontra a liberdade de que tanto necessitava: “Oito

e meio é o fi lme mais livre que conheço” (BRANDÃO, 2010b, p. 16). A estrutura livre de Zero nasce a partir da libertação das situações proibidas, censuradas, caladas. E, assim como a obra de Fellini, vem marcada pelo testemunho de vida:

E se Fellini foi marcado pela província, por Rimini, pelo catolicismo e pelos padres da escola, pelas mulheres peitudas e bundudas, eu também fui pela Araraquara quase medieval daqueles anos, pelas catequistas e pela minha mãe, pelas rumbeiras dos dramalhões mexicanos, e um dia vomitei a hóstia e fui punido, era um pecado enorme, estava condenado ao inferno. Zero me resgatou, foi a terapia, vomitei a igreja, as proibições, os pecados, os medos, a sensualidade, as punhetas nos cinemas, as putas e tudo mais. Zero foi o livro de uma vida inteira. (BRANDÃO, 2010b, p. 17).

Page 171: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

170 || Gabriela Kvacek Betella

8 ½ de Fellini não se fecha em suas possibilidades ou paradoxos na narrativa, nas personagens. Basta dizer que a obra conta as tentativas de construção de um fi lme que não acontece, que marca sua ausência durante toda a narrativa, cortada pelo sonho, pela realidade, pelas lembranças, numa espécie de mise en abîme que se diferencia do fragmentário, é como se tentasse organizá-lo. Por outro lado, ao subverter convenções de espaço, tempo e enredo, o fi lme trata o delírio e a metalinguagem como elementos narrativos usuais. Assim, tanto o que se passa na cabeça de Guido é incorporado naturalmente na trama quanto às questões de Daumier, o crítico, são colocadas no próprio fi lme do qual ele é personagem. Se hoje esses procedimentos não nos surpreendem, nos anos de 1960 eles representavam uma inovação no discurso cinematográfi co, na qual Inácio de Loyola Brandão se inspirou, com admiração especial pela confusão que a narrativa estabelece com o real, pela inserção de informações e pela ausência de uma história pela qual esperamos. Esses são os pontos de contato precisos entre o fi lme de Fellini e o romance de Loyola. Ambos se relacionam com a história sem representá-la como factual e bombardeiam a ideia de um único sentido para o passado. Filme e romance não são ordenados convencionalmente, pois são confusos como a compreensão da história pessoal e coletiva.

Alguém já disse que cinema é montagem. Ela muitas vezes faz o resultado aparentar desordem, falta de cuidado na organização, fragmentação. No entanto, sabemos que a montagem organiza o discurso fílmico de modo a reproduzir o “texto” através do qual o fi lme se conta. A montagem foi um dos fatores que chamaram a atenção de Ignácio em 8 ½, um dos pontos fortes que o infl uenciaram na escrita de Zero. Mas se o diretor italiano monta engenhosamente sua autobiografi a através da fragmentação disposto a revelar suas refl exões sobre a própria obra, Ignácio compõe uma estrutura descontínua e desordenada para expor o mundo à sua volta, ainda que movido por inquietação e revolta. Não se trata de autorrefl exão, nem mesmo de exame de ideais estéticos. Zero é uma bomba que também explode de fora para dentro. Contudo, se quisermos utilizar uma metáfora mais oportuna, Zero confi gura uma prática de montagem, justamente por deixar repetições, retomadas descritivas, “tomadas”

Page 172: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 171

soltas, à espera de uma estrutura coerente – que não acontece e não deve acontecer.

Zero permanece meio deformado, característica admitida pelo dilaceramento dos padrões e convenções, “que se traduz no livro (entre outras coisas) pela presença constante de aleijados e deformações, de seres estranhos, sem nenhuma beleza” (LAFETÁ, 2004, p. 451). Como num fi lme de Pasolini, o romance de Loyola exalta o feio para marcar sua presença na existência contemporânea embelezada e mediada por uma série de valores transmitidos. E o procedimento é levado ao extremo:

Zero é uma feira de monstros. José, a personagem principal, trabalha no escritório da fi rma que seleciona raridades para serem exibidas no Boqueirão, bairro do lixo e dos divertimentos. Lista breve das atrações do grande show: o bezerro de sete cabeças, o automóvel com pés de homem, a mulher mais pobre da Terra (que não tinha casa nem roupas, nem corpo, nem nada), a mulher mais rica do mundo (que ia fi cando mais rica exibindo-se ali), o jogo de basquete dos homens sem braço, a corrida dos paraplégicos, o homem que tinha o pé grudado na cabeça, formando uma roda. Mas a maior atração é um homem normal, sem cárie nos dentes, perfeito de cuca e corpo, folha limpíssima na polícia. Um ser que não existe e por isso se transforma, com a maior rapidez, no ponto central dessa exibição fantástica, onde encontramos condensadas em metáfora as misérias que vemos, sem enxergar direito, todos os dias. (LAFETÁ, 2004, p. 451).

Se a matéria literária pede para existir, na tentativa de condensar a experiência pessoal e o real, a passagem para o estético é necessária como leitura do passado ou do presente em direção ao testemunho, o que poderia fazer de Zero um romance de geração, conforme desejo confessado pelo autor:

Espero que um dia, passados tantos anos, se possa ver Zero também como o livro de formação de uma geração. Todos os nossos símbolos estão esparramados pelas páginas. Leituras, ideologias, símbolos sexuais, política, igreja, mudanças de hábitos, comportamento, beco sem saída, cultura, o cinema

Page 173: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

172 || Gabriela Kvacek Betella

que víamos, as revistas, os gibis, as relações familiares, os preconceitos e os tabus, as drogas, a música, todos os referenciais, até mesmo o medo e o desalento que tomou conta de todos. (BRANDÃO, 2010a, p. 91).

Nesse sentido, Zero exerce sua independência com um impulso realista que transfere energia para o recurso alegórico, alusivo, cujo fundamento não está na singularidade da ditadura militar no Brasil. O caráter alegórico de Zero é determinado pela impossibilidade de dar conta de uma totalidade, da situação do homem contemporâneo na sua particularidade concreta. Realizando-se esteticamente, a representação no romance de Loyola tende a suprir o discurso histórico mantendo o factual sustentado por um teor de verdade, e não o contrário. Essa direção tomada por Zero, se estamos lendo corretamente, liberta o romance da singularidade e do envelhecimento do seu caráter alegórico.

Referências

ARRIGUCI JR., Davi. Jornal, realismo, alegoria: o romance brasileiro recente. In: _____. Achados e perdidos. Ensaios de crítica. São Paulo: Polis, 1979, p. 79-115.

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. E se esquecêssemos por um instante o livro político e lêssemos Zero como o romance de uma geração? In: _____. Zero. 13. ed. São Paulo: Global, 2010a, p. 90-91.

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. E se eu não tivesse tido coragem de publicar o Zero naquele ano de 1974? In: _____. Zero. 13. ed. São Paulo: Global, 2010b, p. 12-19.

_____. Zero. 13. ed. São Paulo: Global, 2010.

_____. Zero. Trad. Antonio Tabucchi. Milano: Feltrinelli, 1974.

FELLINI, Federico. 8 ½. [DVD] Produção de Cineriz e Francinex, direção de Federico Fellini. Itália/França, 1963. Branco e preto, 114 min. Som.

FICO, Carlos. Prezada censura: cartas ao regime militar. Topoi – Revista de História, Rio de Janeiro, v. 5, p. 251-286, 2002.

Page 174: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

O direito à inteligência na história de Zero || 173

FRANCO, Renato. O romance de resistência nos anos 70. XXI Congresso LASA 1998. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lasa98/Franco.pdf.>. Acesso em: 12 jun. 2011.

GONÇALVES, Marcos Augusto e HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1994.

HOHLFELDT, Antonio. O verbo violentou o muro. In: Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 11, p. 109-135, 2001.

KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos tempos da Imprensa Alternativa. São Paulo: Scritta Editorial, 1991.

LAFETÁ, João Luiz. Fragmentos da pré-história. In: _____. A dimensão da noite e outros ensaios. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2004, p. 449-452.

LIMA, Marcos Hidemi de; BERTONCINI, Andréa Fleury. América Latíndia de(zero)icizada. Travessias 3 (2), 2008.

PICCHIO, Luciana Stegagno. Confl uências. In: Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 11, p. 25-26, 2001.

PIVA, Mairim Link. Outras faces do Brasil. Caderno Pedagógico, Lajeado, v. 7, n. 1, p. 55-64, 2010.

REALI, Erilde Melillo. O duplo signo de “Zero”. Trad. Vilma Puccinelli. Rio de Janeiro: Brasília/Rio, 1976.

REIMÃO, Sandra. Dois livros censurados: Feliz ano novo e Zero. Comunicação & Sociedade. São Bernardo do Campo: PósCom-Metodista, a. 29, n. 50, p. 149-161, 2. sem. 2008.

SILVA, Antonio Manoel dos Santos. Ignácio de Loyola Brandão: Zero. In: _____. Os bárbaros submetidos: interferências midiáticas na prosa de fi cção brasileira. São Paulo: Arte & Ciência, 2006.

SILVA, Deonísio da. Nos bastidores da censura: sexualidade, literatura e repressão pós-64. São Paulo: Liberdade, 1989.

SILVERMAN, Malcolm. A fi cção de Ignácio de Loyola Brandão. In: ______. Moderna fi cção brasileira. 2. ed. Trad. João Guilherme Linke. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

SILVERMAN, Malcom. Protesto e o novo romance brasileiro. Trad. Carlos Araújo. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1995.

Page 175: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 176: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 177: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 178: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

A tradução italiana de As meninas, de Lygia Fagundes Telles

Carolina Pizzolo Torquato

O romance

Lygia Fagundes Telles já vinha se consolidando no cenário literário brasileiro quando, em 1973, publicou o romance As meninas. A escritora paulista, de fato, já havia publicado algumas de suas obras mais marcantes, como o primeiro romance Ciranda de pedra, de 1954 – que segundo Antonio Candido demarcou a maturidade literária da autora –, e a coletânea de contos Antes do baile verde, de 1970; com a publicação de seu terceiro romance, Lygia conseguiu conquistar maior espaço na literatura brasileira. Reconhecida sobretudo pela produção de narrativas curtas – como aquelas reunidas, por exemplo, nos volumes A disciplina do amor, A estrutura da bolha de

sabão e A noite escura e mais eu –, é com o romance As meninas que Lygia Fagundes Telles recebe todos os prêmios literários de maior relevância no país (o Jabuti, o Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras, e o de Ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte), além de um maior reconhecimento crítico de sua obra no Brasil e no exterior, culminando no recebimento do prêmio Camões, em 2005. Bem recebido pela crítica, o romance foi traduzido para o espanhol,1

1 TELLES, Lygia Fagundes. Las meninas. Tradução de Estela dos Santos. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1973.

Page 179: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

178 || Carolina Pizzolo Torquato

para o inglês,2 para o holandês3 e para o francês,4 além de ter sido publicado em Portugal;5 entre as traduções mais recentes, encontra-se a tradução italiana,6 publicada em 2006.

É difícil não notar que o romance mais representativo da obra de Lygia Fagundes Telles foi publicado num momento histórico brasileiro muito peculiar, isto é, em plena ditadura militar. Com efeito, dos quatro romances até hoje publicados pela autora, As

meninas é o que mais se aproxima dos vestígios de uma dimensão política e social, contextualizando a existência de suas protagonistas no período da ditadura militar.

As meninas do título são três: três vozes femininas, três vozes da juventude brasileira dos anos 1970. É num pensionato religioso que Lorena, Lia e Ana Clara atravessam os confl itos da juventude urbana em plena ditadura militar, como ressalta José Paulo Paes: “os projetos de vida de Lorena, Lia e Ana Clara tipifi cam os caminhos ou descaminhos com que se defrontava a juventude universitária dos anos 1960-1970, quando o regime militar se fi rmava sob a égide de uma repressão cuja violência a atingiu de perto” (1998, p. 78). As três jovens, confrontando seus pontos de vista sobre o mundo e o período que vivenciam, representam um testemunho feito ainda no calor do momento; todavia, não se trata de um romance que aborda gratuitamente a ditadura, mas de uma narrativa na qual a ditadura, enquanto drama sentido cotidiananamente, faz-se refl etir através do universo de três meninas tão diferentes nas origens, nos sonhos, na personalidade e na ideologia.

Assim, em As meninas verifi ca-se a ideia, sustentada por Antonio Candido, de que quando o romancista “está interessado menos no panorama social do que nos problemas humanos,

2 TELLES, Lygia Fagundes. Th e girl in the photograph. Tradução de Margareth A. Neves. Nova York: Avon Books, 1982.3 TELLES, Lygia Fagundes. De meisjes. Tradução de Kitty Pouwels. Amsterdam: De Geus, 1998.4 TELLES, Lygia Fagundes. Les pensionnaires. Tradução de Maryvonne Lapouge Pettorelli. Paris: Editions Stock, 2005.5 TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. Lisboa: Edição LBL, s.d..6 TELLES, Lygia Fagundes. Ragazze. Tradução de Federico Pesante. Roma: Cavallo di Ferro, 2006.

Page 180: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

tradução italiana de As meninas || 179

como são vividos pelas pessoas, a personagem tenderá a avultar, complicar-se, destacando-se com a sua singularidade sobre o pano de fundo social” (2005, p. 74). Este é o caso do romance de Lygia Fagundes Telles, no qual as três protagonistas se sobressaem ao “pano de fundo social”: Lorena, Lia e Ana Clara são três vozes que compõem fragmentos de verdade, três espelhos que refl etem diferentes ângulos de uma mesma realidade, de um mesmo período histórico: tudo é visto pelo campo de visão das personagens. Dessa forma, não é apenas o diálogo com os vestígios da conjuntura histórica a caracterizar esse romance, mas também a multiplicidade de vozes e a autonomia de cada uma delas.

É sobretudo por essa razão que As meninas se estabelece como o romance mais representativo da obra de Lygia Fagundes Telles: não apenas por trazer as marcas de um contexto histórico e político, mas também por ser o único, dentre todos até hoje publicados pela escritora, a se caracterizar como romance polifônico e dialógico, no qual cada voz representa uma diferente consciência, uma singular perspectiva sobre o mundo.

Cabe lembrar, contudo, que a simples coexistência de várias vozes na narrativa não assegura a polifonia, uma vez que várias vozes podem estar a serviço de uma ideologia dominante, de uma só consciência e cosmovisão, como ocorre no romance monológico. Assim, se o romance monológico propõe uma coerência que “distorce e falseia a realidade multifacetada da existência humana” (LOPES, 2003, p. 75), o romance polifônico se caracteriza pela autonomia e pela imiscibilidade das vozes, preservando

[...] a multiplicidade de pontos de vista e de visões acerca de uma mesma existência, um mesmo mundo, um mesmo evento, tudo resultando na construção de uma representação do mundo mais viva e mais fi el, relativamente à concreta existência humana […]. (Id., ibid.).

O que se observa em As meninas é justamente o confronto entre diferentes pontos de vista, com efeito, as personagens travam relações dialógicas a todo instante, interpondo-se e contrapondo-se não somente nos diálogos, mas também nos monólogos interiores.

Page 181: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

180 || Carolina Pizzolo Torquato

Nesse sentido, Tezza ressalta que, no romance polifônico de Lygia Fagundes Telles,

[...] tudo que se escreve se confi na ao olhar íntimo e intransferível de cada uma das personagens principais, mesmo quando terceirizadas pelo narrador. Nenhuma palavra parece sair do limite desse olhar individual; toda palavra é função desse olhar – pela intenção narrativa que vai se realizando, nada transcende a perspectiva da personagem. […] A estrutura do romance nos leva a crer que, de fato, cada um dos três narradores, que correspondem ao olhar das três meninas, e mais a terceira pessoa gramatical que eventualmente costura as passagens não sabem uma só palavra a mais que as próprias meninas. (2009, p. 223).

Tezza toca um ponto essencial de As meninas: a estrutura narrativa. Os capítulos são protagonizados por uma ou por duas personagens que assumem a narração juntamente com um narrador externo. Não há, ao longo de todo o romance, um momento em que as três personagens efetivamente se encontrem,7 assim, pode-se dizer que a relação entre Lorena, Lia e Ana Clara é construída muito mais pela memória do que por “encontros”. Em outras palavras, os corpos físicos não necessariamente se encontram, mas as vozes e suas respectivas consciências são o sufi ciente para que se estabeleça o confronto e o diálogo entre as personagens.

O dialogismo e a polifonia que caracterizam o romance acarretam implicações de diferentes níveis (lexicais, sintáticos, estilísticos), sendo a constante mudança de voz e de foco narrativo um dos aspectos que mais se ressentem da multiplicidade de pontos de vista. Cada uma das protagonistas assume seu próprio discurso; por outro lado, o narrador “ausente” da matéria narrada apenas media as diferentes vozes, ajustando o foco narrativo. Assim, ao longo do romance, as diferentes vozes narrativas (das três protagonistas e do narrador externo) se intercalam continuamente, às vezes de forma repentina e evidente, às vezes de forma gradual e imperceptível.

7 Embora as três personagens participem do penúltimo capítulo do romance, Lia e Ana Clara não chegam a se cruzar.

Page 182: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

tradução italiana de As meninas || 181

A transição da voz narrativa ocorre na passagem ora de um capítulo (ou segmento narrativo) para outro, ora de um parágrafo para outro ou, ainda, dentro de um mesmo parágrafo; o que permite a identifi cação do narrador são os diferentes ângulos de visão (resultando no foco interno ou externo) e as marcas do seu discurso (lexicais, sintáticas, etc.) que, no caso das três protagonistas, distinguem os idioletos das narradoras. O fato, aliás, de que cada protagonista apresente um idioleto que caracterize o seu discurso, permitindo diferenciá-lo do discurso das demais personagens, corrobora a ideia de que As meninas se constitui como narrativa polifônica, na qual, segundo Bakhtin, “as personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente signifi cante” (2005, p. 4).

Cabe lembrar, contudo, que as personagens do romance estabelecem relações dialógicas não apenas entre si, mas também com os vestígios do contexto cultural no qual se inscreve a narrativa. O dialogismo, em As meninas, dá-se de forma ampla, podendo-se distinguir dois tipos principais: um interno, no qual são confrontados os pontos de vista das personagens, e um externo, no qual esse confronto inclui o diálogo com as marcas do contexto cultural brasileiro.

Retomamos acima alguns dos aspectos que caracterizam o romance mais representativo de Lygia Fagundes Telles; agora procuraremos observar em que medida essas peculiaridades da narrativa representaram um desafi o na tradução da narrativa para a língua italiana.

A tradução

As coletâneas de contos e os romances publicados por Lygia Fagundes Telles já foram traduzidos em vários países, chegando a obter sucesso de crítica e de público – como na França, por exemplo, onde a autora recebeu o título midiático de grande dame

de la littérature brésilienne. Na Itália, contudo, apenas duas obras da escritora foram traduzidas: o romance As horas nuas, lançado no Brasil em 1989, foi traduzido por Adelina Aletti para o italiano e

Page 183: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

182 || Carolina Pizzolo Torquato

publicado pela editora La Tartaruga8 em 1993; e, mais recentemente, o romance As meninas, traduzido por Federico Pesante e publicado pela editora Cavallo di Ferro em 2006 (conforme mencionado acima). Além dos dois romances, em 1961 o conto “As pérolas” havia sido incluído na antologia9 Le più belle novelle di tutti i paesi, organizada por Domenico Porzio. Pode-se afi rmar, portanto, que Lygia Fagundes Telles não faz parte – ou, pelo menos, ainda não faz parte – do grupo de fi ccionistas brasileiros mais traduzidos na Itália:10 a tradução de seu romance mais representativo certamente é um passo importante para mudar essa situação.

Evidentemente, toda tradução é um desafi o, mas o que precisamente constitui o desafi o dependerá, de um lado, das línguas envolvidas no processo de tradução e, de outro, das características do texto a ser traduzido. No caso específi co de As meninas, de acordo com as observações já expostas, podemos deduzir que o aspecto dialógico e polifônico (e suas consequências na estrutura narrativa) represente a problemática central na tradução do romance. Assim, torna-se premente preservar, na medida do possível, os elementos linguísticos e estilísticos que constroem esse espírito dialógico e polifônico de As meninas.

O léxico, a sintaxe, a pontuação e o intertexto podem ser citados como alguns dos aspectos empregados na composição dialógica e polifônica da narrativa. A partir do confronto11 entre o texto em português e a tradução italiana, poderemos observar como o tradutor Federico Pesante procurou resgatar esses elementos em

8 Trata-se, na verdade, de um selo da editora Baldini Castoldi Dalai dedicado principalmente à literatura feminina.9 A antologia Scrittori brasiliani: testi e traduzioni, organizada por Giovanni Ricciardi e publicada em 2003, apresenta um fragmento de As meninas traduzido por Adelina Aletti.10 Cf. TORQUATO, 2007, p. 311-342.11 Um dado importante – inclusive para um correto confronto entre o texto em português e a tradução – é a consideração da edição utilizada no trabalho de tradução. No caso específi co de As meninas, com mais de trinta edições à disposição, uma escolha aleatória signifi caria ignorar as mudanças e alterações efetuadas pela autora ao longo dos anos. Na tradução publicada pela editora Cavallo di Ferro, contudo, não há uma referência direta à edição usada pelo tradutor, entretanto, considerando-se que no momento da publicação de Ragazze a edição mais recente da obra era a 32ª (publicada em 1998 pela editora Rocco), podemos supor que tenha sido essa a edição utilizada por Pesante.

Page 184: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

tradução italiana de As meninas || 183

Ragazze. Assim, se considerarmos uma das principais implicações da polifonia presente no romance, isto é, a transição da voz narrativa, podemos retomar as primeiras páginas do romance, quando o leitor se depara com a mudança de pontos de vista: um segmento narrativo se conclui com a narração de Lorena e o segmento seguinte se inicia com a narração de Lia, conforme fragmento abaixo:

– Hoje tenho que camelar o dia in-teiro, putz. E sem meia dá bolha no pé.

Provavelmente nas solas. Cafo-nérrimo. Pior do que bolhas só os tais joanetes da Irmã Bula. Joanete deve vir de Joana, houve uma antiga Joana com os primeiros pés defor-mados e os netos herdaram a de-formação e viraram os joanetos. Ai meu Pai. Primavera, eu apaixonada e Lião falando em bolha no pé.

– Tenho umas meias tão bacanas, ainda nem usei, quer ir com elas?

– Só se forem francesas, entende.– São suíças, minha queridinha.– Não gosto da Suíça, é limpa de-

mais. E nem vão servir, imagine, ela

deve calçar quarenta. Que idéia usar meias que engrossam os tor-nozelos, a coitadinha está com patas de elefante. Ainda assim, emagreceu, subversão emagrece.

– Lião, Lião, ando tão apaixonada. Se M.N. não telefonar, me mato.

Estou demais aperreada para fi car ouvindo sentimentos lorenenses, ô! Miguel, como preciso de você. Falo baixo mas devo estar bo-tando fogo pelo nariz. (TELLES, 1998, p. 13-14)

– Oggi devo trottare tutto il giorno, accidenti. E senza calze mi vengo-no le vesciche sui piedi.

Probabilmente sulla pianta. Cafo-nissimo. Peggio delle bolle solo gli occhi di pernice di Sorella Bula. Occhio di pernice, dev’essere così perché qualcuno una volta ha in-ciampato su una pernice e gli è rimasto il segno. Oh padre mio. Primavera, io innamorata e Lião a parlare di vesciche sui piedi.

– Ho delle calze bellissime, non le ho ancora usate, le vuoi prendere tu?

– Solo se sono francesi, ok?– Sono svizzere, carina.– Non mi piace la Svizzera, è troppo

pulita. E non le staranno neanche bene,

deve avere quaranta di piede. Che idea, mettersi calze che ingrossano le caviglie, poveretta, sembra che abbia zampe di elefante. Però è dimagrita, la sovversione fa dimagrire.

– Lião, Lião, sono così innamorata. Se M.N. non telefona, mi ammazzo.

Sono troppo stordita per resta-re a sentire sentimenti lorenensi, oh Miguel, quanto ho bisogno di te. Parlo piano ma devo avere le fi amme che mi escono dal naso. (TELLES, 2006, p. 13-14)

Page 185: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

184 || Carolina Pizzolo Torquato

Neste trecho podemos notar que a transição narrativa ocorre sem qualquer indício aparente, já que, por um lado, os espaços em branco usados para separar os segmentos narrativos não têm necessariamente a função de representar a mudança de narrador e, por outro, não há um narrador externo que intercale as duas vozes. A mudança de perspectiva ocorre, portanto, de forma sutil, surpreendendo o leitor tanto no texto em português quanto na sua tradução para o italiano.

O primeiro indício que revela a mudança de narrador neste fragmento é o uso do termo “aperreada”, que caracteriza (em termos de variação diatópica) o idioleto da narradora baiana e permite a identifi cação da voz de Lia. Naturalmente, essa identifi cação não ocorre na tradução, uma vez que se perde a conotação geográfi ca presente no monólogo interior da narradora. Essa inevitável perda compromete a imediata percepção da mudança de voz na tradução, adiando a identifi cação do narrador que ocorrerá apenas a partir de elementos posteriores; assim, o elemento que no texto em português (“sentimentos lorenenses”) confi rma a transição da voz narrativa, na tradução se estabelece como o primeiro vestígio da mudança de narrador.

Além de se perder, na mudança de voz, a identifi cação do idioleto da personagem, a tradução proposta por Pesante para “aperreada” também representa uma perda da carga semântica do termo. De fato, no dialeto nordestino o termo indica aborrecimento ou preocupação, enquanto stordita remete a um estado de confusão ou até mesmo de distração. Se era inevitável a perda da conotação geográfi ca na tradução, ao menos o valor semântico de “aperreada” poderia ter sido mantido com uma solução alternativa como scocciata, por exemplo.

Ainda em relação ao léxico que permite a identifi cação do idioleto das personagens, podemos registrar, no fragmento apresentado, alguns termos recorrentes no discurso das personagens. Este é o caso, por exemplo, de “putz” e “entende”, no que diz respeito à linguagem de Lia, e de “bacana”, no que diz respeito à linguagem de Lorena. Considerando-se que os termos são frequentemente repetidos pelas personagens ao longo do romance, o ideal seria

Page 186: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

tradução italiana de As meninas || 185

preservar essa repetição também em italiano, buscando uma tradução que se encaixasse em todas as situações em que o termo é usado. Esta é a solução adotada por Pesante na tradução de “putz”: o tradutor, com efeito, repete a interjeição accidenti sempre que necessário. Aqui, uma alternativa que mantivesse não apenas o valor semântico mas também o tipo de registro linguístico empregado – afi nal, trata-se de uma gíria – seria cavolo, pois teríamos, assim, uma interjeição em italiano correspondente ao eufemismo da expressão em português.

Contudo, se o tradutor italiano opta por repetir uma interjeição na tradução de “putz”, o mesmo não ocorre com “entende” e “bacana”, uma vez que as soluções adotadas por Pesante variam ao longo da tradução. Assim, no trecho acima temos “ok” como tradução de “entende”, mas em outros momentos do romance podemos encontrar capisci ou capito como traduções alternativas. Tendo em vista o caráter oral da expressão e os contextos nos quais se insere ao longo da narrativa, a opção por sempre repetir capisci ou capito teria sido o sufi ciente para caracterizar o idioleto da personagem. O mesmo poderia ser dito em relação ao emprego de “bacana” (aqui traduzido como bellissima, mas as soluções variam no decorrer12 da tradução): além de uma tradução que desse conta do sentido, seria desejável que a solução adotada fosse adequada a todos os contextos de uso, permitindo a sua repetição.

Os desafi os impostos pela narrativa, porém, não terminam aqui: basta notar o jogo de palavras que sugere uma etimologia para o termo “joanete”. É notável a habilidade do tradutor na tentativa

12 Assim, temos a frase “Nesse ponto os bichos são tão mais bacanas, nunca vi Astronauta se assoar em público” (TELLES, 1998, p. 18) traduzida por “Per questo gli animali sono molto meglio, non ho mai visto Astronauta soffi arsi il naso in pubblico” (TELLES, 2006, p. 18). Em outro momento, observamos no texto em português “O pai era latinista, todos os fi lhos têm nome declináveis, não é bacana?” (TELLES, 1998, p. 157), e na tradução “Il padre era latinista, tutti i fi gli hanno nomi declinabili, forte no?” (TELLES, 2006, p. 161). Temos, ainda: “Acho que você está dentro da doutrina que inventei, vê se não é bacana: ser ou estar. Ou você é ou você está.” (TELLES, 1998, p. 203), e a tradução: “Mi sa che tu stai dentro alla dottrina che ho inventato, vedi se non è fi co: essere o stare. O tu sei o tu stai.” (TELLES, 2006, p. 208). Nestes fragmentos, como em vários outros ao longo da tradução, observamos soluções diferenciadas (“meglio”, “forte”, “fi co”) ao invés de um único termo que se adequasse a todos os contextos em que o termo é repetido.

Page 187: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

186 || Carolina Pizzolo Torquato

de resgatar esse jogo de palavras, embora a diferença entre os dois sistemas linguísticos envolvidos na tradução impedisse uma solução equivalente em termos lexicais. O texto em italiano, de fato, não poderia aludir simultaneamente aos três elementos usados no jogo de palavras (o nome próprio, os netos e a joanete), assim, pelo menos duas opções eram possíveis: ou a adaptação ou a supressão da frase. Ao traduzir joanete por occhi di pernice, Pesante conseguiu uma interessante adaptação, substituindo uma metáfora por uma metáfora diferente.13 Esta solução aplicada à tradução desse trecho do romance mostra-se adequada na medida em que é uma forma de (re-)produzir aqueles elementos estilísticos que constroem o valor estético e literário do texto.

Nesse primeiro confronto entre o texto de Lygia Fagundes Telles e a tradução italiana, tivemos a oportunidade de analisar a primeira transição presente no romance entre duas narrações em primeira pessoa, e perceber que os diferentes pontos de vista são construídos a partir de elementos linguísticos e estilísticos cuja recuperação pode representar tarefa árdua para o tradutor. Num trecho mais adiante da narrativa, conforme fragmento abaixo, podemos observar a tênue fronteira que delimita a narração em primeira e em terceira pessoa.

A sutil alternância de vozes narrativas, como já mencionado, caracteriza este romance de Lygia Fagundes Telles. No fragmento acima, a transição ocorre dentro de um mesmo parágrafo e, embora alguns elementos permitam a identifi cação do narrador – como o uso de aspas, o emprego dos pronomes (“ela que era efêmera”) e de verbos dicendi (“pensou e franziu a testa”) –, o foco interno aplicado na narração em terceira pessoa causa a impressão de uma verdadeira fusão das vozes narrativas. De fato, o narrador se aproxima de tal forma do ponto de vista de Lorena que a voz parece ser da própria personagem.

13 Toury (2002, p. 201-202) indica que existem pelo menos seis maneiras diferentes de solucionar o problema da metáfora na tradução, a saber: a tradução de uma metáfora por uma metáfora considerada idêntica; a tradução de uma metáfora por uma metáfora diferente; a tradução de uma metáfora por um 0 (ou seja, uma omissão completa); a tradução de uma não-metáfora por uma metáfora; a tradução de um 0 por uma metáfora.

Page 188: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

tradução italiana de As meninas || 187

O sofrimento e o gozo por saber exatamente como é a mulher eterna, ela que era efêmera. “Lorena, a Bre-ve”, pensou e franziu a testa. Mas a namorada neurótica devia estar de-sencadeada, “Ah, Fabrizio, ame uma p mas não ame uma neurótica que a p pode virar santa mas a neuróti-ca.” Montar naquela moto e se agar-rar à sua cintura, sentindo o cheiro de couro da jaqueta, bicho-homem trepidando na ventania, “Vamos, Fa-brizio? Minha mesada está inteira, comeremos como príncipes, bolinho de bacalhau e fado”. Choraria potes porque estaria o tempo todo pensan-do em M.N. que por sua vez estaria pensando no fi lho mais velho com minhocações agudas, ele tem cinco fi lhos. (TELLES, 1998, p. 104)

La soff erenza e il godimento di sa-pere esattamente com’è la donna eterna, lei che era effi mera. «Lorena, la Breve», pensò e aggrottò la fron-te. Ma la ragazza nevrotica doveva essere scatenata, «Ah, Fabrizio ama una p ma non amare una nevrotica che la p può diventare santa ma la nevrotica». Montare su quella moto e tenersi alla sua vita, sentendo l’o-dore di cuoio della giacca, animale-uomo a trepidare nel vento: «Andia-mo, Fabrizio? Ho la mesata intera, mangeremo come due principi, pol-pette di baccalà e fado». Piangerei a catinelle perché penserei per tutto il tempo a M.N. che a sua volta stareb-be pensando al suo fi glio più grande in lombricamenti acuti, lui ha cin-que fi gli. (TELLES, 2006, p. 106)

É provavelmente por essa razão, isto é, por essa aparente mescla de vozes, que o tradutor interpretou a última frase do trecho como uma continuação da narração de Lorena – o verbo “chorar” foi traduzido na primeira pessoa do singular – quando, na verdade, a narração da personagem tinha sido concluída com o fi m das aspas, na frase anterior. Note-se, porém, que se o texto em português pôde manter dúbia a voz narrativa, o texto em italiano é obrigado a manifestá-la claramente. Visto que o pronome pessoal permanece implícito nessa construção em português com o futuro do pretérito simples, “choraria” e “estaria” poderiam ser interpretados tanto como primeira quanto como terceira pessoa do singular. Em italiano, ao contrário, mesmo que o pronome pessoal permaneça implícito (como, aliás, ocorre frequentemente na língua, visto que o italiano se constitui como língua PRO-drop), o verbo fl exionado (nesse caso no condizionale explicita a pessoa e o número do sujeito; assim, temos uma clara oposição entre a primeira e a terceira pessoa do singular: piangerei/piangerebbe, starei/starebbe. É inevitável, portanto, que

Page 189: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

188 || Carolina Pizzolo Torquato

a tradução para o italiano perca a ambiguidade ou a sutileza na mudança de narrador; o problema é que, ao ser obrigado a defi nir a voz narrativa, Pesante o faz de forma equivocada.

Outro equívoco de interpretação ocorre diante de um jogo de palavras, como podemos perceber no trecho a seguir.

Então à meia-noite a princesa vira-va abóbora. Quem me contou isso? Você não mãe que você não contava história contava dinheiro. A carinha tão sem dinheiro contando o dinhei-ro que nunca dava pra nada. “Não dá” – ela dizia. Nunca dava porque era uma tonta que não cobrava de ninguém. Não dá não dá ela repetia mostrando o dinheirinho que não dava embolado na mão. Mas dar mesmo até que ela deu bastante. Pra meu gosto até que ela deu demais. Uma corja de piolhentos pedindo e ela dando. (TELLES, 1998, p. 34)

Allora a mezzanotte la principessa diventava una zucca. Chi me l’ha raccontato? Tu no, mamma, che tu non raccontavi le storie, contavi i soldi. Con la faccetta smunta a con-tare i soldi che non bastavano mai. “Non basta”, diceva lei. Non bastava mai perché era una tonta che non faceva mai pagare nessuno. Non ba-sta non basta ripeteva mostrando i soldi che non bastavano appallotto-lati in mano. Ma sono bastati fi nché ne ha dati abbastanza. Per conto mio ne ha dati troppi. Una banda di pidocchiosi a elemosinare e lei dava. (TELLES, 2006, p. 35)

O fl uxo de consciência e a constante evocação da memória geram uma fragmentação que se faz presente cada vez que a narração do romance é assumida por Ana Clara, como neste trecho. Ao lembrar-se da infância e da fi gura materna, a narradora joga com a polissemia do verbo “dar” em português. Lendo o texto italiano, percebe-se que o problema de interpretação fi ca claro na frase “mas dar mesmo até que ela deu bastante”: a tradução indica que a mãe de Ana Clara deu muito dinheiro e, portanto, perde a conotação sexual, alterando completamente o sentido dessa frase e também das duas frases seguintes.

Evidentemente, parte do equívoco é gerado pela diferença de uso do verbo “dar” nos dois sistemas linguísticos. Se o texto de Lygia Fagundes Telles se vale da polissemia do verbo, o texto em italiano não pode, por imposição do próprio sistema linguístico, empregar o verbo dare nem no primeiro sentido (isto é, imprimindo a ideia de que o dinheiro não era sufi ciente) nem no segundo, pois para resgatar

Page 190: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

tradução italiana de As meninas || 189

a conotação sexual seria necessário empregar o verbo pronominal darla. O verbo bastare é a solução adotada por Pesante no primeiro caso – solução, aliás, absolutamente apropriada ao contexto –, já no segundo caso, foi justamente o uso descontextualizado do verbo dare que gerou o equívoco.

Para preservar a carga semântica do verbo “dar” presente no fragmento acima, o texto em italiano poderia ter sugerido já para uma frase anterior (“era uma tonta que não cobrava de ninguém”) que a mãe da personagem não cobrava pelas relações sexuais. De fato, uma tradução alternativa para a frase seria “era una tonta che non si faceva

mai pagare da nessuno”: aqui, o emprego do pronome e da preposição não chega, efetivamente, a acrescentar uma informação, mas insinua ou antecipa – tal como no texto em português – o sentido sexual das frases seguintes. Assim, as frases que em português explicitam a referência sexual poderiam também ser explicitadas em italiano; com efeito, com o uso do verbo pronominal darla são possíveis algumas alternativas que solucionariam o impasse: a tradução “Ma

darla l’ha data parecchio. Per i miei gusti l’ha data persin troppo” é uma das alternativas possíveis.

No que diz respeito, especifi camente, à última frase do fragmento acima, seria mais adequado substituir o verbo elemosinare – que, mais uma vez, explicita a referência ao dinheiro e não ao sexo – por chiedergliela, assim teríamos “gliela chiedeva e lei (glie)la dava”. É claro que, independente da alternativa adotada, o jogo de palavras construído a partir da polissemia do verbo “dar” é inevitavelmente perdido; apesar disso, o elemento textual passível de ser preservado é o sentido.

Outro verbo polissêmico explorado no trecho acima é “contar”, utilizado tanto no sentido de narrar quanto no sentido de calcular. Também neste caso o sistema linguístico italiano impede que seja usado um único verbo que contenha ambas as conotações; assim, na tradução de Pesante temos, respectivamente, raccontare e contare, como seria de se esperar. Não sendo possível resgatar o jogo de palavras, o sentido foi preservado.14

14 Não é o que ocorre, contudo, em outro momento da tradução, no qual podemos perceber uma perda semântica. No texto em português, temos o seguinte trecho: “Ela prende o cigarro

Page 191: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

190 || Carolina Pizzolo Torquato

Conforme mencionamos anteriormente, o dialogismo se realiza de forma ampla em As meninas, uma vez que o romance estabelece, por um lado, relações dialógicas entre os pontos de vista das personagens e, de outro, relações dialógicas com as marcas do contexto cultural brasileiro. A partir dos cotejos apresentados acima, pudemos observar como é construído o primeiro tipo de diálogo citado, isto é, o confronto entre os pontos de vista dos narradores; já no fragmento da página a seguir, podemos constatar o segundo tipo de relação dialógica, ou seja, a presença de vestígios do contexto político brasileiro.

A voz da militante Lia faz repercurtir as marcas do contexto político no diálogo entre os dois amigos, de fato, transparecem duas referências diretas à repressão da ditadura militar: a Oban e o Dops. A menção aos dois órgãos é acompanhada do sugestivo ambiente de desconfi ança e de medo das delações e, nesse sentido, a presença de vestígios do contexto político na tradução remetem a uma cultura “outra”, “estranha” ao leitor italiano. Diante dessa circunstância, o tradutor tinha diferentes opções à disposição, como, por exemplo: deixar as referências tal como se encontram no romance, delegando ao leitor a tarefa de se informar sobre elas; ou incorporar no próprio texto a informação necessária para esclarecer a natureza dos órgãos citados; seria possível, ainda, acrescentar os esclarecimentos necessários em nota, e não no corpo do texto.

nos dentes, fecha a mão e torce a munheca. – Banana, Lião? Isso é uma banana?” (TELLES, 1998, p. 31), para o qual Pesante propõe a seguinte tradução: “Lei tiene la sigaretta fra i denti, chiude la mano e torce il polso. – Banana, Lião? Quello è una banana?” (TELLES, 2006, p. 35). O fato de o gesto descrito fazer parte tanto da cultura brasileira quanto da cultura italiana facilita, naturalmente, a tradução deste trecho. Todavia, a denominação dada ao gesto difere nos dois sistemas linguísticos: em português usamos o termo “banana”, em italiano usamos a expressão “gesto dell’ombrello”. Manter o termo usado pela cultura brasileira no texto em italiano implica na perda do sentido; seria necessário, ao contrário, incorporar a denominação italiana ao texto. Uma tradução possível seria: “Il gesto dell’ombrello, Lião? Quello sarebbe il gesto dell’ombrello?”.15 Segundo Schleiermacher (2001), existem essencialmente duas maneiras de traduzir: (1) deixar o leitor em paz e levar o autor até ele, ou (2) deixar o autor em paz e levar o leitor até ele. A primeira maneira de traduzir tende a domesticar o texto estrangeiro, fazendo com que pareça ter sido originalmente escrito na língua de tradução. A segunda maneira de traduzir implica (ao menos potencialmente) que o leitor se confronte com o texto estrangeiro reconhecendo-o como tal, uma vez que a tradução com tendência estrangeirizante não apaga as marcas do contexto linguístico e cultural no qual o texto foi produzido.

Page 192: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

tradução italiana de As meninas || 191

– Putz, o pátio interno. Você sabe o que tem aí defronte?

– Uma alfaiataria, falei com o velho quando cheguei. Legal, Rosa. Está vendo aqui embaixo a rede de ara-me? Em caso de urgência, dá per-feitamente pra pular e ir andando até a janela do velhinho.

– Que é dedo-duro da Oban. A gen-te enfi a a cabeça na janela e ele agarra a gente pelo pescoço, assim – fez ela puxando Pedro pela gola do pulôver. […]

– Você tem força, porra! Acho que ia levar uma surra se continuasse – resmungou ele examinando o braço.

– Mas viu, Pedro. Conheço uma freirinha que você olha e diz, bom, não tem uma avozinha igual. Pre-cisa ler as cartas anônimas que es-creve pra todo mundo. Só espero que não ache o endereço do Dops, está quase cega. (TELLES, 1998, p. 125)

– Accidenti, il patio interno. Sai cosa c’è lì di fronte?

– Una sartoria, ho parlato con il vecchio quando sono arrivato. Fico, Rosa. Vedi la rete di rame qui sotto? In caso di urgenza si può benissimo saltare e cammina-re fi no alla fi nestra del vecchietto.

– Che è un delatore della Oban. Noi infi liamo la testa nella fi nestra e lui ci prende per il collo, così – fece lei tirando Pedro per il collo del pullover. […]

– Tu sei forte, cazzo! Mi sa che mi davi un sacco di botte se conti-nuavamo – brontolò lui esami-nando il braccio.

– Hai visto, Pedro. Conosco una suorina che se la guardi dici, beh, non esiste neanche una nonnina così. Devi leggere le lettere anoni-me che scrive a tutti quanti. Spero solo che non trovi l’indirizzo de-gli sbirri del Dops, è quasi cieca. (TELLES, 2006, p. 128-129)

Pesante optou por acrescentar apenas na referência ao Dops a informação de que se trata de um órgão policial (com efeito, ao invés de traduzir “l’indirizzo del Dops”, Pesante traduz “l’indirizzo

degli sbirri del Dops”). No que diz respeito à referência à Oban, o tradutor não inclui nenhum esclarecimento, provavelmente, por considerar que a própria narrativa sugere a natureza do órgão com o uso da expressão “dedo-duro”. Trata-se de uma solução apropriada, uma vez que é inserida a informação mínima necessária para que o leitor italiano identifi que o diálogo com os vestígios de um contexto político e cultural que lhe é estranho. Considerando-se a importância desse diálogo estabelecido pela narrativa com os traços do contexto histórico e político no qual foi construída, é preferível o acréscimo à

Page 193: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

192 || Carolina Pizzolo Torquato

perda de informação. Desse modo, a relação dialógica é preservada ao mesmo tempo em que a narrativa sofre uma interferência mínima com a informação incluída.

Evidentemente, a discussão sobre a tradução de um romance pode ser tão longa quanto a própria narrativa; de fato, são inúmeros os elementos que podem ser considerados nos cotejos, dependendo da ênfase que se pretende imprimir à análise. Tendo em vista as características de As meninas, procurou-se privilegiar o aspecto dialógico e polifônico da narrativa, observando como a tradução italiana lidou com os desafi os impostos pelo romance de Lygia Fagundes Telles.

O que pudemos observar, a partir dos cotejos apresentados, é que se por um lado a diferença entre os sistemas linguísticos do português e do italiano impõe por vezes adaptações para preservar as peculiaridades do texto, por outro, a proximidade entre os dois sistemas linguísticos e a consequente interferência entre eles pode gerar equívocos de interpretação que, por sua vez, causam uma perda semântica e/ou estilística. Assim, percebemos que em alguns casos é inevitável a perda estilística, enquanto a perda semântica poderia ser evitada. Notamos, contudo, que a tradução italiana do romance se compõe também de ganhos, na medida em que a habilidade do tradutor permitiu que se resgatassem em italiano os aspectos linguísticos e/ou culturais que caracterizam o romance. Dessa forma, é inegável que a tradução realizada por Pesante é louvável, visto que possibilita ao leitor italiano conhecer o melhor da literatura de Lygia Fagundes Telles.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003.

Page 194: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

tradução italiana de As meninas || 193

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de fi cção. São Paulo: Perspectiva, 2005.

LOPES, Edward. “Discurso literário e dialogismo em Bakhtin”. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003, p. 63-81.

PAES, José Paulo. “Ao encontro dos desencontros”. In: Cadernos de Literatura Brasileira: Lygia Fagundes Telles. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, p. 70-83.

SCHLEIERMACHER, Friedrich. “Sobre os diferentes métodos de tradução”. Tradução de Margarete von Mühlen Poll. In: Clássicos da teoria da tradução – vol. 1: alemão-português. Florianópolis: UFSC, 2001, p. 26-87.

TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

TELLES, Lygia Fagundes. Ragazze. Tradução de Federico Pesante. Roma: Cavallo di Ferro, 2006.

TEZZA, Cristovão. “As meninas: os impasses da memória”. In: TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 219-227.

TORQUATO, Carolina Pizzolo. Eco de vozes – tradução e análise de As meninas, de Lygia Fagundes Telles. 351 p. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.

TOURY, Gideon. “Principi per un’analisi descrittiva della traduzione”. Tradução de Andrea Bernardelli. In: NERGAARD, Siri (Org.). Teorie contemporanee della traduzione. Milano: Bompiani, 2002, p. 181-223.

Page 195: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 196: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 197: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 198: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Amado e a comidaA tradução do vocabulário ligado à comida na obra Tenda dos milagres de Jorge Amado:

um problema somente linguístico?

Alessandra Rondini

O objetivo deste trabalho é discutir sobre um assunto inerente à tradução de um tipo de campo semântico que não diz respeito somente à linguística, mas abrange uma questão cultural, particularmente, interessante quando se comparam a cultura italiana e a cultura brasileira: a tradução da alimentação na obra Tenda dos

milagres, de Jorge Amado.

Ao traduzir essa obra em italiano, Elena Grechi escolheu deixar o nome dos pratos em português, servindo-se do empréstimo linguístico e colocando, às vezes, notas explicativas sobre a comida e os seus ingredientes. Nossa proposta consiste em demonstrar que essa escolha é a mais adequada. Traduzir ou não traduzir o nome de um prato presente num romance pode parecer uma questão banal, mas, para um olhar mais atento, deixa de sê-lo. Não estamos falando de um livro de culinária, no qual o léxico ligado à comida constitui, evidentemente, o suporte fundamental, mas consideramos que, também em um romance, a escolha comporta consequências que vão além da simples tradução de um nome de uma língua para outra.

Em primeiro lugar, enveredamos para o campo da tradução como processo de decisão, que torna sempre necessária uma escolha,

Page 199: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

198 || Alessandra Rondini

que, por sua vez, comporta consequências, como explica Jiří Levý (1995. p. 63-83). Uma das consequências evidenciadas pelo autor refere-se, justamente, à obrigação da coerência, segundo a qual, no momento de fazer escolhas novas, não podemos deixar de levar em conta a escolha feita originariamente. Em outras palavras, deve haver uma correspondência de base entre todas as escolhas que o tradutor faz, como em um jogo de xadrez (LEVÝ, 1995, p. 65). Elena Grechi demonstra essa coerência quando, na maior parte dos casos, não traduz em italiano o nome dos pratos. Existem, todavia, algumas exceções que, a nosso ver, merecem ser destacadas.

Rapaz de trinta anos, vinha cada manhã ao mercado de Ouro, à barraca da comadre Terência, mãe do moleque Damião, tomar café com cuscuz de puba e beiju de tapioca. (AMADO, 2001, p. 36, grifo nosso).

Giovanotto trentenne, veniva tutte le mattine al mercado do Ouro, alla baracchina della comare Terência, madre dell’allora ragazzino Damião, a prendere il caff è con torta di puba e beiju di tapioca. (AMADO, 2006, p. 46).

O cuscuz de puba torna-se, na tradução italiana, torta di puba e a tradução é acompanhada por uma nota que diz: “espécie de torta feita com farinha de mandioca”.1 Mais à frente, na página 79 da tradução italiana, encontra-se outra nota que, fazendo referência à torta di puba, explica que se trata de uma: “espécie de torta feita com muitas bolinhas de tapioca”.2 São dois os aspectos que tornam esse exemplo particularmente interessante: a tradução do termo cuscuz como torta e as duas notas que, embora se refi ram ao mesmo prato, o descrevem de maneira diferente.

No que diz respeito à tradução de cuscuz por torta, a tradutora, no nosso entender, realiza uma operação desnecessária e, provavelmente, incoerente com a escolha geral de deixar em português os termos que se referem à comida. O termo ‘cuscuz’ tem uma expressividade cultural muito intensa, por sua presença

1 2

Page 200: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Amado e a comida || 199

marcante na cozinha mediterrânea tradicional e do norte da África. Além disso, é um termo aceito na língua italiana e presente no dicionário da língua italiana Zingarelli (2007), com suas possíveis grafi as.3 Portanto, é algo que, em virtude também dos movimentos migratórios que têm atingido a Itália nos últimos trinta anos, passou a fazer parte do imaginário coletivo e do patrimônio linguístico italiano. Por tudo isso, consideramos desnecessária sua tradução.

A existência de duas notas que fornecem duas descrições diferentes do formato do cuscuz explica-se, porém, pela liberdade na preparação e apresentação desse prato, que pode assumir tanto o formato de “torta” como de “torta feita com muitas bolinhas”,4 liberdade esta admissível visto que, devido ao fenômeno de “sincretismo alimentar” de que falaremos mais adiante, uma receita pode sofrer adaptações e modifi cações decorrentes de vários fatores (culturais, regionais, pessoais etc.). É verdade que uma receita pode descaracterizar-se, às vezes necessariamente, no processo de adaptação a outros climas e a outros ambientes que apresentam recursos diferentes no tocante às “matérias primas alimentares”, ou seja, aos ingredientes, fatores que fazem com que, por exemplo, o cuscuz baiano seja diferente daquele paulista.

A respeito dos ingredientes, na tradução que estamos analisando pode haver um mal-entendido devido à presença, nas duas notas, dos termos manioca e tapioca, respectivamente. Com efeito, por se tratar de comida que não faz parte do universo gastronômico italiano, achamos que, para o leitor-alvo, neste caso o leitor italiano, pode ser difícil entender que a tapioca é extraída da manioca e que, portanto, não se trata de dois ingredientes totalmente diferentes. Seria, talvez, mais apropriado especifi car este detalhe nas notas, em lugar de traduzir o termo cuscuz.

O problema da tradução do nome dos alimentos nos romances de Jorge Amado não é, de fato, somente linguístico, dado

3

4

Page 201: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

200 || Alessandra Rondini

que a culinária baiana, geralmente, não tem nada em comum com a cozinha italiana. Portanto, nem sempre é possível encontrar um prato italiano que corresponda perfeitamente a um brasileiro. Outro elemento que se deve considerar, e do qual vamos tratar em seguida, é a estreita ligação entre a comida e a dimensão religiosa, porque a cozinha se torna parte integrante do ritual do candomblé5, sempre presente no tecido do romance.

Para a abordagem do problema da correspondência no campo da tradução, retomamos algumas refl exões de Jakobson (1995, p. 54), que considera inútil a pesquisa dos “equivalentes”, e de Anton Popovič (2006, p. XIX), que trata da falta de correspondência entre os campos semânticos das palavras de línguas diferentes e afi rma que o anisoformismo torna insignifi cantes as defi nições de tradução “fi el” e “livre”. Esta questão resulta particularmente interessante no trabalho de tradução de uma obra literária que exige, ao mesmo tempo, a tradução de uma cultura, como no caso dos romances de Amado.

Como já mencionamos, a comida torna-se parte do tecido textual em Tenda dos milagres, mesmo porque é parte integrante da religião que permeia o livro, o candomblé. Cada terreiro6 possui sua própria cozinha, na qual são preparados, de acordo com modalidades precisas (que incluem restrições e tabus), os pratos que deverão alimentar as divindades, os orixás, representantes de formas diferentes de energias naturais:

Cada uma dessas energias, ou seja, os orixás, precisa ser mantida constante e pode até mesmo ser aumentada; por isso, deve ser alimentada regularmente. É, portanto, tarefa dos homens que pedem proteção às divindades fornecer-lhes o alimento durante o ciclo ritual, alimento que é representado, em parte, pelo sentimento de adoração e, em parte, consiste no oferecimento de elementos e comidas escolhidos e preparados com base nas qualidades da divindade que está

5

6

Page 202: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Amado e a comida || 201

sendo homenageada, para a qual uma pessoa está sendo iniciada ou à qual está sendo pedida a solução de um problema. (FALDINI, 2004, p. 196).7

A culinária divina tem suas regras específi cas, que devem ser respeitadas também no que diz respeito à preparação e ao cozimento dos alimentos (FALDINI, 2004, p. 198). Em função disso, há uma pessoa, a iyabassé (uma sacerdotisa, ou iyawó), que é encarregada da cozinha. Sua responsabilidade é enorme devido ao caráter sagrado dessa ação, que exige a transformação das substâncias (FALDINI, 2004, p. 199). A disposição e o consumo dos alimentos são, também, submetidos a regras precisas que fazem parte da realização do ritual religioso. Entre a cozinha das divindades e aquela dos homens existe uma relação muito estreita, até mesmo de derivação da segunda da cozinha divina:

A cozinha das divindades é, de fato, em grande parte, a cozinha dos homens, porque se acredita que as divindades tenham preferências e gostos específi cos, assim como os seres humanos. Em ambos os casos, que se destine aos orixás ou que se destine aos homens, a comida deve passar por uma transformação a fi m de ser consumida e digerida, isto é, absorvida em seu conteúdo energético. Os alimentos são parte de um sistema mais complexo que, de um lado, serve para prestar homenagem às divindades, de outro, serve para transformar ou manter o corpo do indivíduo em equilíbrio com o cosmos. (FALDINI, 2004, p. 201-202).8

7

8

Page 203: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

202 || Alessandra Rondini

A comida ritual aparece, pela primeira vez, em Jubiabá, a cozinha baiana “mais africana, aquela feita para homenagear o santo” (AMADO, 2003, p. 20);9 em Dona Flor, encontram-se os pratos do candomblé, ou seja, todos os pratos favoritos de cada divindade e sujeitos a tabus, que proíbem de nomeá-los e consumi-los; “na trilogia que compõe Os subterrâneos da liberdade, livro político e maniqueísta, a comida também tem sua importância, ajudando a marcar os bons e os maus” (AMADO, 2003. p. 21). É evidente que tratar o alimento somente do ponto de vista linguístico é extremamente redutivo.

Vale a pena apresentar alguns exemplos da tradução de Tenda

dos milagres, o primeiro dos quais diz respeito ao protagonista, Pedro Archanjo.

Iam ao candomblé para o amalá de Xangô, obrigação das quartas-feiras. Tia Maci dava de-comer ao santo, no peji, ao som do adjá e do canto das feitas. Depois, em torno à grande mesa na sala, serviam o caruru, o abará, o acarajé por vezes um guisado de cágado. (AMADO, 2001, p. 27).

Andavano al candomblé per l’amalá di Xangô, rito del mercoledì. Zia Maci dava da mangiare al santo nel peji, al suono dell’adjá fra i canti delle fi glie-di-santo. Dopo, sulla grande tavola del salotto servivano il caruru, abarà, acarajé, a volte un brasato di tartaruga. (AMADO, 2006, p. 38).

Manter os termos em português, em casos como esse, é extremamente importante porque o alimento assume, sem dúvida, um valor religioso. Pedro Archanjo é também Ojuobá, os olhos de Xangô (trata-se de seu cargo, título relacionado ao candomblé), em cuja casa foi escolhido pela divindade para um cargo importante, e assim é conhecido por todos, sendo o título religioso parte de sua identidade.10 Os alimentos mencionados não são casuais, pois

9

10

Page 204: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Amado e a comida || 203

representam a divindade Xangô, e o guisado de cágado, em particular, é o prato preferido de Xangô (AMADO, 2003, p. 197); o caruru é o amalá (como explica Elena Grechi na p. 42), que também é alimento dessa divindade; além disso, a quarta-feira é o seu dia (FALDINI, 2004, p. 209).

Do exposto acima, evidencia-se a relação profunda entre o ritual do qual Pedro Archanjo participa com regularidade, a comida oferecida e o seu título religioso: tudo aponta inequivocamente para Xangô. Por isso, torna-se imprescindível deixar o nome original dos pratos e torna-se necessária a inserção de uma nota explicativa sobre a interligação desses três elementos, aspecto que Amado, obviamente, não precisa destacar. O compromisso com Xangô é semanal:

Uma vez por semana, às quartas-feiras, invariável, com sol ou chuva, Archanjo vinha buscá-lo em sua tenda de imagens, primeiro para as cervejotas geladíssimas no bar de Osmário, depois para o amalá no candomblé da Casa Branca. (AMADO, 2001, p. 25).

Una volta alla settimana, il mercoledì, puntualmente col sole o con la pioggia, Archanjo veniva a prenderlo nella sua bottega d’immagini, prima per le birrette gelatissime al bar d’Osmário, poi per l’amalá al candomblé della Casa Branca. (AMADO, 2006, p. 36).11

Outra referência direta à ligação entre alimento e religião é a seguinte:

11

Page 205: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

204 || Alessandra Rondini

Na Tenda dos Milagres, após a dança ritual de saudação, silenciados os atabaques, as garrafas foram abertas. Sobre a mesa onde juntavam os tipos na composição das páginas havia quantidade de comida, variada e saborosa: as moquecas, as frigideiras, os xinxins, os abarás, os acarajés, o vatapá e o caruru, o efó de folhas. Muitas mãos amigas e competentes misturaram o coco e o dendê, mediram o sal, a pimenta, o gengibre. De madrugada, em vários terreiros de nações diversas, os bodes, os carneiros, os galos, os cágados, as conquéns haviam sido sacrifi cados. Majé Bassã jogara os búzios, três vezes responderam: trabalho, viagens e penas de amor. (AMADO, 2001, p. 197).

Alla bottega dei Miracoli, taciutisi gli atabaques dopo la danza rituale di saluto, furono aperte le bottiglie. Sulla tavola dove abitualmente venivano composti i caratteri, c’era una quantità di piatti variati e saporiti: moquecas, fritti misti, xinxins, abarás, acarajés, vatapà, caruru, efó sulle foglie. Molte mani abili e amiche avevano mischiato cocco e dendê, sale, pepe, zenzero. All’alba, in vari terriero di nazioni diverse, erano stati sacrifi cati caproni, montoni, galli, tartarughe, gallinelle. Majé Bassã aveva interrogato le conchiglie: per tre volte avevano risposto: lavoro, viaggi, pene d’amore. (AMADO, 2006, p. 203).12

Outro exemplo:

Quem mais dançou foi Yansan em meio aos seis Oguns. Era em despedida mas ninguém sabia. No intervalo da troca de roupa, em outra sala, serviram a comida de Ogun, régio banquete. (AMADO, 2001, p. 156).13

Chi danzò più di tutte fu Iansã, accompagnata da sei Oguns. Era una danza d’addio, ma nessuno lo sapeva. Durante il cambiamento di vestiario furono serviti i piatti rituali di Ogum, un banchetto regale. (AMADO, 2006, p. 163).

12

13

Page 206: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Amado e a comida || 205

Jakobson (apud TOROP, 2002, p. 596) descreve o processo tradutório como dois processos que acontecem simultaneamente: recodifi car e transpor. Põe o acento, também, no valor semiótico dos cinco sentidos na sociedade humana e, consequentemente, refere-se a sistemas homogêneos e mensagens sincréticas, baseados na combinação de sistemas de signos diferentes. Talvez a comida, em Jorge Amado, com tudo que roda à sua volta, religião, identidade cultural, relação entre seres humanos (é comum a comida tornar-se o agradecimento feito pela ajuda recebida), devesse ser abordada desse ponto de vista. Como se lê na obra de Paloma Jorge Amado (2003, p. 20):“aprende-se lendo Jorge Amado que comida não é feita somente para alimentar: ela dá prazer ao ser vista, saboreada, cheirada e, sobretudo, é possível sonhar com ela, pois não se sonha só imagem, sonha-se cheiro, gosto e fartura”. Pelo menos três sentidos devem ser envolvidos pela narrativa desse autor quando ele fala de comida, a vista, o gosto, o olfato, além da capacidade de soltar a imaginação.

O ouro do dendê, a doçura da jaca, afeto e violência; o ardor da pimenta-de-cheiro, a sensualidade das mulheres, baianas com suas batas de renda branca sobre a pele cor de canela, formosas fi lhas de Oxum a vender acarajés: é todo um universo de encantamento, cor, cheiro e sabor (AMADO, 2003, p. 25).

Mais uma vez, a vista, o olfato e o gosto. Pedro Archanjo, protagonista de Tenda dos milagres, escreve um Manual da Culinária

Bahiana que contém um verdadeiro estudo antropológico sobre a comida baiana, provocando uma reação de contrariedade no editor da obra, o italiano Bonfanti, que declara que “um manual de cozinha se destina a donas de casa e não deve conter literatura ou ciência” (AMADO, 2001, p. 51).

A esse respeito, Paloma Jorge Amado reconhece a importância do papel de Archanjo como depositário de um conhecimento profundo da identidade cultural da Bahia, quando afi rma que: “através de Archanjo pode-se ter a noção exata da delicadeza e da força, da simplicidade e da sofi sticação desta culinária que também é fruto da miscigenação, que junta o dendê africano à mandioca do índio

Page 207: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

206 || Alessandra Rondini

e ao azeite de oliva portouguês” (AMADO, 2003, p. 23). A comida da Bahia é um verdadeiro exemplo de “sincretismo alimentar”, em que confl uíram traços culturais distintivos das culturas africanas e da cultura portuguesa. A cozinha baiana é, assim, o resultado de contribuições, variações, interferências na cozinha portuguesa por parte da cozinha indígena e africana. Já, nas receitas e nos nomes dos pratos percebe-se uma espécie de “mestiçagem alimentar”; o nome da comida evoca a cultura que tem atrás de si. Traduzir em italiano o nome do prato signifi caria, portanto, em primeiro lugar, efetuar uma adaptação que resultaria inadequada, devido à falta de correspondência entre os ingredientes e, em segundo lugar, signifi caria não levar em conta a importância da tradução como “tradução de texto”, não meramente linguística.

Escreve Eco:

[…] o conceito de fi delidade tem tudo a ver com a convicção de que a tradução seja uma das formas de interpretação […] e de que a interpretação, mesmo levando em conta a sensibilidade e a cultura do leitor, deva sempre visar encontrar não digo a intenção do autor, mas a intenção do texto, aquilo que o texto diz ou sugere em relação à língua em que está expresso e ao contexto cultural em que nasceu. (1995. p. 123).14

A teoria da tradução, afi rma Eco,

deve levar em conta todo um conjunto de elementos que, se não são linguísticos, são, porém, semióticos em sentido amplo, na medida em que uma semiótica considera a enciclopédia geral de uma época e de um autor, formulada por um texto, como critério para sua compreensão. (1995. p. 124).15

14

15

Page 208: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Amado e a comida || 207

Trata-se, como se vê, da importância dos elementos extratextuais. Torna-se necessário, às vezes, deixar os termos na língua de partida ou inserir notas de rodapé, no intuito de resguardar-se o espírito e o pensamento do texto de partida. Esta escolha dá ao leitor uma chave de leitura mais honesta e respeitosa em relação ao original.

Ao examinar a fi gura do leitor destinatário da obra traduzida de Amado, é interessante retomar algumas refl exões de Aubert:

De qualquer forma, sabendo tratar-se de obra da literatura brasileira, este leitor tem como expectativa encontrar referência a e descrição de realidades que para ele, leitor, são “exóticas”, o que justifi ca e até recomenda o emprego dos recursos de empréstimo e de decalque com certa frequência, enquanto que a natureza literária e o objetivo de “lazer” sugerem uso moderado da nota de rodapé. Por outro lado, tratando-se de romance, há uma certa margem de tolerância quanto à precisão dos termos descritivos da realidade nordestina. (1981, p. 18).

Nesse caso específi co, podemos afi rmar que se trata de uma das situações que Popovič considera “de intraduzibilidade temática”. Ele explica que,

No que diz respeito aos casos de intraduzibilidade temática, eles têm sua origem nas diferenças culturais [...] Incluem-se nela os termos técnicos, as medidas de comprimento, os pesos, os nomes das moedas, as armas, as comidas, as bebidas [...]. (POPOVIČ, 2006. p. 7-8).16

A propósito de escolhas estilísticas, Eco, comentando sua experiência direta com os tradutores de suas obras, observa que cada tradutor inseriu o exemplo de um trecho de sua própria literatura, reconhecível pelo leitor a que a tradução se destinava.

16

Page 209: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

208 || Alessandra Rondini

Esta transformação de uma referência, no caso de Amado, não seria possível por diversas razões. Com efeito, não há equivalentes, na cozinha italiana, para os pratos principais da cozinha baiana, devido à difi culdade de se encontrar a maioria dos ingredientes. Além disso, mesmo que se pretenda uma equivalência que comporte o sentido do original somente no plano, por exemplo, religioso, conclui-se que é quase impossível encontrar um termo cujo sentido seja plenamente reconhecido pelo leitor italiano. As únicas referências possíveis são aquelas que mantêm uma ligação com a religião católica, especialmente no campo das prescrições, dado que o candomblé é um sincretismo religioso que incorporou elementos desta religião, como, por exemplo, a obrigação de o iniciando comer peixe às sextas-feiras (FALDINI, 2004, p. 204). Pode-se pensar também no judaísmo que, além dos tabus alimentares, apresenta um conjunto de indicações e prescrições referentes à preparação, arranjo e consumo dos alimentos (FALDINI, 2004, p. 199).17 De um modo geral, consideramos difícil para o leitor italiano pensar numa comida como prato preferido de uma divindade.

A tradução cumpre a tarefa de mediador cultural, permitindo que compreendamos situações e fenômenos que não poderíamos conhecer por meio da nossa língua. No caso, porém, da comida divina nas obras de Amado e da função que ela tem na vida da sociedade baiana, a tradução literal não faz justiça à importância cultural desse fenômeno.

Não resta dúvida de que “[...] uma tradução satisfatória deve expressar (ou seja, deve conservar bastante igual e, eventualmente, ampliar sem contradizer) o sentido do texto original” (ECO, 1995. p.138),18 mas não se pode esquecer que o ato de traduzir é também um ato de interpretação e que, como tal, está sujeito a múltiplos fatores extratextuais, como o contexto cultural do tradutor, a que se destina a obra traduzida, o nível de conhecimento da cultura de partida por parte do tradutor, suas experiências e muito mais, de

17

18

Page 210: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Amado e a comida || 209

forma que se pode falar de “aposta interpretativa”.19

Tradução e cultura estão intimamente ligadas, como afi rma Torop: “Traduzir como atividade e tradução como resultado desta atividade são inseparáveis do conceito de cultura. […] somente incluindo nela textos novos, uma cultura pode ser renovada e, assim, perceber sua própria especifi cidade” (2002, p. 593).20 É o “problema do outro”, do outro de si, que se torna espelho no qual refl etir-se para aprender a conhecer-se melhor. A comparação, especialmente cultural, leva a um conhecimento de si maior e, potencialmente, melhor e produz um enriquecimento por meio da introdução, no universo individual, de elementos novos, “outros”, justamente, para que sejam aceitos ou recusados, mas com os quais se entra em contato, ampliando os horizontes culturais.

Venuti (1998, apud TOROP 2002, p. 594) defi niu este poder que a tradução tem em relação à cultura como “poder das traduções de formar identidades”,21 referindo-se à capacidade que a tradução possui de contribuir à consolidação da cultura receptora, bem como de ativar processos de resistência ou de renovação nessa mesma cultura.

O conceito de identidade cultural torna-se cada vez mais importante, especialmente na era da globalização e da oposição global versus local, infl uenciando todos os âmbitos relacionados a um grupo cultural, da economia à política, ao desenvolvimento tecnológico etc. É necessário compreender o espaço cultural em que a narrativa está inserida para compreender o texto e os eventos representados. Segundo Torop:

A cultura tem seus próprios sistemas de signos ou línguas mediante os quais os membros da cultura se comunicam. Uma possibilidade para se conseguir a compreensão de uma cultura é, portanto, a aprendizagem das línguas daquela cultura, dos

19 20

21

Page 211: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

210 || Alessandra Rondini

sistemas de signos que agem dentro dela. (2002, p. 600).22

A tradução literária pode ser uma “ponte” que cria a possibilidade de um contato entre culturas diferentes, tornando acessível a um público que faz parte de um dado sistema linguístico e cultural a compreensão do conteúdo de obras que foram concebidas dentro de um sistema linguístico e cultural diferente, que determina suas características e peculiaridades. A tradução pode tornar possível a comunicação entre mundos totalmente diferentes ou muito distantes de qualquer ponto de vista (histórico, geográfi co, cultural), sendo obrigada a defrontar-se com uma problemática não somente linguística (sintática, gramatical), mas também de ordem extralinguística e cultural.

Com efeito, a língua nada mais é que um dos elementos que compõem a obra literária que está diante do tradutor. Há outros aspectos que intervêm no processo tradutório, como já comentamos (época, temática, problemas sociais profundamente enraizados no ambiente que é objeto da narrativa, como é o caso de Jorge Amado, autor que retrata um tipo de ambiente regionalista, bem delineado do ponto de vista geográfi co e cultural). O tradutor torna-se, assim, um mediador cultural, que assume a responsabilidade de divulgar, em outra língua e dentro de outra cultura, não somente uma obra literária, mas também o horizonte cultural, ideológico e, no caso em pauta, religioso, em que a obra está inserida. Zimber afi rma que a “tradução é vista como uma mediação cultural, um ato criativo e de comunicação, e não somente como um ato linguístico, no qual signifi cados estáveis são transportados de uma língua para outra” (2004, apud VALIDÓRIO, 2008, p. 13).

Como escreve Lotman:

[...] aquela realidade histórico-cultural que chamamos ‘obra artística’ não se esgota no texto. O texto é apenas um dos elementos da relação. A substância real da obra literária é

22 “Culture has its own sign systems or languages on the basis of which the members of the culture communicate. Th us, one possibility to understand a culture is to learn the languages of the culture, the sign systems operating within the culture”.

Page 212: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Amado e a comida || 211

formada por um texto (sistema de relações intratextuais), por sua relação com a realidade extratextual – com a realidade, com as normas literárias, com a tradição, com o sistema das crenças. É impossível uma percepção do texto desvinculada do ‘cenário’ extratextual. (1995. p. 100-101).23

No caso de Jorge Amado, observa-se a presença relevante de vocábulos que retratam realidades extralinguísticas, conotadas do ponto de vista regionalista, da língua e da cultura de partida, das quais a comida e a religião são dois exemplos signifi cativos. Trata-se de obras que apresentam grande riqueza e variedade de marcadores culturais que se referem à religião, cozinha, etnias, tradições, ideologia, ambiente geográfi co etc. Traduzir um texto literário brasileiro como Tenda dos milagres ou qualquer outra obra de Amado é, sem dúvida, um grande desafi o, porque se apresentam difi culdades não somente “na”, mas também “de” tradução, que exigem escolhas e posicionamentos importantes devido à sua natureza sociocultural (VALIDÓRIO, 2008, p. 39-40).

Bassnett afi rma que

A língua é, então, o coração dentro do corpo da cultura e é da interação entre as duas que se obtém a continuação da energia vital. Como o cirurgião que, ao operar o coração, não pode descuidar do corpo que o rodeia, assim o tradutor que tratar o texto sem levar em conta a cultura terá de arcar com todas as conseqüências disso. (2005, p. 23).24

Talvez se pudesse falar em ‘intraduzibilidade cultural’, decorrente, como observa Catford retomando uma refl exão de Popovič, da “ausência, na cultura da língua de tradução, de uma

23 “[...] quella realtà storico-culturale che noi chiamiamo “opera artistica” non è esaurita dal testo. Il testo è solo uno degli elementi della relazione. La carne reale dell’opera letteraria consiste di un testo (sistema di relazioni intratestuali), del suo rapporto con la realtà extratestuale – con la realtà, con le norme letterarie, con la tradizione, con il sistema delle credenze. È impossibile una percezione del testo avulsa dallo “sfondo” extratestuale”.24 “Language, then, is the heart within the body of culture, and it is the interaction between the two that results in the continuation of life-energy. In the same way that the surgeon, operating on the heart, cannot neglect the body that surrounds it, so the translator treats the text in isolation from the culture at his peril”.

Page 213: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

212 || Alessandra Rondini

característica situacional que é relevante para o texto da língua de partida” (1965, apud S. BASSNETT, 2005, p. 39).25 Como afi rma Aubert:

Toda língua é um instrumento de comunicação social, adequado às necessidades da comunidade que dela se serve. As realidades ecológicas, materiais, sociais e ideológicas variam de país para país, de povo para povo, de região para região, e os elementos específi cos destas realidades necessariamente encontram expressão na língua da comunidade em questão. Inversamente, não terão expressão na língua de uma comunidade em que os referidos elementos não têm existência reconhecida. (1981, p. 2).

Para concluir, recorremos, mais uma vez, a Popovič que afi rma que

além da preparação teórica, é necessário especializar os tradutores com base nas culturas, nas correntes culturais, nos autores; […] aumentar as exigências socioculturais em relação à atividade tradutória, ao programa de formação do tradutor (crítica da tradução). (2006, p. 141-142).26

Uma concepção cultural da tradução exige, portanto, um olhar antropológico. Isso, segundo Aubert, leva à conclusão de que “[...] a operação que busca a dizibilidade de um texto em uma língua/cultura de recepção diversa daquela que deu origem ao texto subdivide-se em duas operações: uma terminológico-linguística (tradução senso estrito) e outra cultural (antropológica)” (2006, p. 26).

Os conhecimentos do tradutor, portanto, deveriam ir além do âmbito meramente linguístico e icluir campos diferentes, como a etnolinguística, a sociolinguística e a antropologia cultural, justamente porque estas disciplinas estão inter-relacionadas. Nesse sentido, poderia-se afi rmar que o trabalho de tradução é, na

25 “[...] is due to the absence in the TL culture of a relevant situational feature for the SL text”.26 “Oltre alla preparazione teorica, si tratta di specializzare i traduttori in base alle culture, alle correnti culturali, agli autori; [...] accrescere le esigenze socioculturali sull’attività traduttiva, sul programma del traduttore (critica della traduzione)”.

Page 214: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Amado e a comida || 213

realidade, um trabalho interdisciplinar, que deve abordar a obra, nesse caso, literária, respeitando todos seus aspectos, na tentativa de captar a plenitude do seu sentido.

Referências

AMADO, J. La bottega dei miracoli. Traduzione Elena Grechi. Milano: Garzanti, 2006.

______. Tenda dos milagres. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.

AMADO, P. J. A comida baiana de Jorge Amado: ou o livro de cozinha de Pedro Archanjo com as merendas de Dona Flor. Rio de Janeiro: Record, 2003.

AUBERT, F. H. A tradução do intraduzível. São Paulo: FFLCH/USP, 1981. (Manuscrito)

______. Indagações acerca dos marcadores culturais na tradução. Revista de Estudos Orientais. São Paulo: FFLCH/USP, p. 23-36, 2006.

BASSNETT, S. Translation Studies. London: Routledge, 2005.

CATFORD, J. C. A Linguistic Th eory of Translation. London: Oxford University Press, 1965.

ECO, U. Rifl essioni teorico-pratiche sulla traduzione. In: NERGAARD S. (a cura di). Teorie contemporanee della traduzione. Milano: Strumenti Bompiani 1995. p. 121-146.

FALDINI, L. A comida de santo: la cucina rituale nel Candomblé keto. In: GUIGONI, A. Foodscapes: stili, mode e culture del cibo oggi. Milano: Polimetrica, 2004. p. 195-209.

JAKOBSON, R. Aspetti linguistici della traduzione. In: NERGAARD S. (a cura di). Teorie contemporanee della traduzione. Milano: Strumenti Bompiani, 1995. p. 51-62.

LEVÝ, J. La traduzione come processo decisionale. In: NERGAARD, S. (a cura di). Teorie contemporanee della traduzione. Milano: Strumenti Bompiani, 1995. p. 63-83.

NERGAARD, S. (a cura di). Teorie contemporanee della traduzione. Milano: Strumenti Bompiani, 1995.

POPOVIČ, A. La scienza della traduzione: aspetti metodologici; la

Page 215: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

214 || Alessandra Rondini

comunicazione traduttiva. Milano: Hoepli, 2006.

TOROP, P. Translation as translating as culture. Sign Systems Studies 30, 2, p. 593-605, 2002.

VALIDÓRIO, V. C. Investigando o uso de marcadores culturais presentes em quatro obras amadeanas, traduzidas para o inglês. 2008. Tese (Doutorado) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – IBILCE, UNESP, São José do Rio Preto, 2008.

VENUTI, L. Th e Scandals of Translation: Towards an Ethics of Diff erence. Londra: Routledge, 1998.

ZIMBER, K. M. A. O Brasil de S. Bernardo de Graciliano Ramos em tradução alemã. 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

ZINGARELLI, N. lo Zingarelli. Vocabolario della lingua italiana. 12. ed. Bologna: Zanichelli, 2007.

Page 216: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 217: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 218: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário. Ler o Brasil na Itália1

Roberto Francavilla

Como toda cultura e toda sociedade dotada de sinais fortes e imediatamente reconhecíveis ao olhar de um observador externo, o Brasil andou produzindo, no diálogo secular tecido entre a sua geografi a física e humana e a variada raça de viajantes que sondaram e exploraram cada dobra, um sólido e multiforme arsenal de imagens. A maior parte dessas imagens, eleitas cardeais da tematologia literária, transformou-se cedo em incorruptíveis estereótipos, cujo código monossêmico desenhou com precisão geométrica o mapa de um território eternizado, perfeitamente defi nido nos seus contornos e dotado de um caráter – segmentado em algumas linhas temáticas portantes – que se poderia defi nir sem alguma hesitação “inconfundível”. Graças a esse mecanismo, ao qual – em particular em algumas contingências específi cas – colaboraram estratégias nada inocentes (se pode pensar na propaganda do regime de Getúlio Vargas relativa à elaboração do mito da chamada “democracia racial”), à simples evocação do conceito “Brasil” corresponde, de imediato, uma precisa e bem vasta imagerie plasmada e constantemente reativada pelas diversas expressões da cultura nacional.

Também um dos discursos fundadores da literatura brasileira, ou seja, a conscientização da condição periférica e colonial e,

1 Tradução do italiano de Patricia Peterle.

Page 219: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

218 || Roberto Francavilla

portanto, a lenta elaboração de parâmetros inovativos projetados no sentido de uma pesquisa de originalidade e de desvinculação dos modelos exógenos (uma cultura “nova” nas formas, nos motivos, nos instrumentos e ainda na língua) teve de fazer as contas com este potente arquivo do imaginário. Considerado à maneira de um depósito documental, a ele se dirigiram (e continuam a se dirigir) também aqueles escritores e intelectuais que se empenharam – especialmente em épocas recentes e sobretudo na contemporaneidade – em complexo comportamento crítico de desconstrução e de reelaboração da matéria, percurso que correspondeu a um dos processos mais interessantes da literatura brasileira do século XX.

Refl etir sobre a recepção desse corpus por parte exógena – no nosso caso por parte do público e do campo social da cultura italiana – signifi ca reconhecer, antes de tudo, na sua evidência, traços específi cos do imaginário acima e, em segundo lugar, verifi car a hipótese que esses sejam efetivamente lidos segundo perspectivas e sugestões mais atuais, menos soldadas nas malhas normalmente desviadas da tradição e à hereditariedade, à aparência incorruptível de uma impermeável vulgata.

No exergo, ao seu conhecido Brasil, país do futuro, Stefan Zweig organizou uma paradigmática nota sobre a beleza com a qual o diplomata austríaco, conde Prokesch-Osten, magnifi cava o Brasil aos olhos de um hesitante e perplexo Gobineau, o qual teria, há pouco tempo, teorizado a superioridade da raça ariana em relação à mestiçagem, segundo sua opinião símbolo de degeneração (Essai

sur l’inégalité des races humaines data de 1855). Com o seu acalorado hino, Prokesch-Osten não fazia se não alimentar as sugestões de um esquema que, da li a pouco, teria codifi cado defi nitivamente a fuga do ocidente burguês, já opaco, e a pesquisa da autenticidade na experiência vivida e “selvagem” do afastamento: “Un pays nouveau, un port magnifi que, l’eloignement de la mesquine Europe. Un nouvel horizon politique, une terre d’avenir et un passé presque inconnu qui invite l’homme d’etude à des recherches, une nature splendide et le contact avec des idées exotiques, nouvelles” (ZWEIG, 1951, p. 8).2

2 A nota introdutória de Afrânio Peixoto reitera com força o conceito no exergo, sublinhando

Page 220: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário || 219

Na citação do diplomata estão contidos alguns dos eixos da imagerie brasileira, tanto no nível semântico quanto lexical.

As ideias de “novidade” (no caso o Novo Mundo) e de “desconhecido” nos remetem à época das aventuras geográfi cas lusitanas, à Carta sobre a descoberta do Brasil de Pero Vaz de Caminha, aos viajantes e aos bandeirantes, à vastidão normalmente insondável da paisagem natural (o Sertão, o Mato Grosso, a fl oresta amazônica); depois o contraste, sublinhado com decisão, entre a beleza do continente americano e a pequenez de uma Europa “velha”, saturada das suas efêmeras aspirações e dos seus antigos vícios, corroída por uma decadência na qual aparecem esfumaçadas as sobrevivências de um passado fatalmente perdido e impiedosamente contraposto ao desafi o de uma “terra do porvir”; enfi m, infalível, a pincelada de pitoresco, fechada em um dos sintagmas-símbolo objeto da crítica pós-colonial: exotismo.

Em contraposição, é ágil verifi car como, no passar pouco mais de um século, o enamoramento entusiasta de Prokesch-Osten encontra o seu contrário na inversão descrita pela prosa pós-moderna di Michel Houellebecq: “Por que o Brasil? Daquilo que se sabia, o Brasil era um lugar de merda, habitado por feios fanáticos do futebol e de automobilismo, cheio de corrupção, de violência, de miséria. Se havia uma nação execrável, ela era realmente e especifi camente o Brasil”3 (HOUELLEBECQ, 2007, p. 133-134). O vago rascunho do escritor francês, todavia (e a diferença do trabalho de desmitização operado por Diogo Mainardi ao qual chegaremos em seguida), não constitui nenhum tipo de refl exão crítica ao redor da matéria “Brasil”, circunscrevendo, ao invés, a enésima exasperada visão, alocada mais uma vez na dimensão do clichê, de um imaginário parcial, intencionalmente negativo, e até indigno.

Na construção da imagem estereotipada não está prevista nenhuma atenuação da mensagem: o discurso construído torna-

por exemplo que “O Brasil é como as mulheres bonitas: tem apaixonados de toda a sorte, atéo os desinteressados” (ibidem, p. 10). É difícil, hoje, verifi car a imagerie produzida por esse texto no público italiano, que pode lê-lo em 1949 (Brasile, terra dell’avvenire, Sperling & Kupfer).3 “Perché il Brasile? Da quel che ne sapeva, il Brasile era un posto di merda, abitato da bruti fanatici del calcio e di automobilismo, pieno di corruzione, di violenza, di miseria. Se c’era una nazione esecrabile, quella era proprio e specifi camente il Brasile”

Page 221: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

220 || Roberto Francavilla

se monumental, marmóreo, aparentemente impossibilitado de qualquer tipo de recesso ou de reelaboração. Todavia, não é raro que a visão elaborada pelo observador externo, frequentemente distante ou limitadamente encostada (no tempo e no espaço) à realidade descrita, produza uma espécie de contra-texto a ser justaposto sem nenhuma dialética ao preconceito existente. Volta à mente, a advertência de um intelectual carioca ao jovem sociólogo que estava para começar a sua pesquisa sobre a emigração italiana e que, em primeiro lugar, tinha intenção de sondar a identidade do Brasil:

Se quiser entender alguma coisa, não prestar atenção em ninguém, nem nos brasileiros, nem nos imigrantes, nem nas publicações ofi ciais. Sobre o Brasil são ditas muitas coisas que não são verdadeiras [...]. Para o trabalho que você deseja enfrentar aconselho partir da estaca “zero”. Poderá talvez interpretar erradamente certos aspectos, mas será sempre uma interpretação não limitada por um só aspecto – como outras interpretações – será sobretudo verdadeira.4 (PASSERI, 1958, p. 3).

Aquilo da interpretação “verdadeira”, então, parece poder considerar o problema a ser enfrentado, especialmente nos casos em que a narrativa, poesia, teatro, ensaística se coloquem entre os tantos objetivos, também aquele de consolidar a percepção do lugar cultural à realidade que o forma, o produz e o representa. Há, de fato, casos de autores para os quais essa dimensão aparece nas estratégias de escritura e na relação com o leitor modelo, de todo secundária quanto à passagem de uma mensagem universal, desvinculada e desejada distante da matriz deles. Inevitável, a esse propósito, citar o caso de Paulo Coelho, extraordinário sucesso decretado por milhões de leitores e verdadeiro longseller do mercado editorial global – por conseguinte, também italiano – destes últimos anos, todavia,

4 “Se vuoi capirci qualcosa, non dare retta a nessuno, né ai brasiliani, né agli immigrati, né alle pubblicazioni uffi ciali. Sul Brasile si dicono un sacco di cose che non sono vere (…). Per il lavoro che desideri aff rontare ti consiglio di partire dal punto “zero”. Potrai magari interpretare erratamente certi aspetti, ma sarà sempre una interpretazione non limitata a un solo aspetto – come altre interpretazioni – sarà soprattutto vera”

Page 222: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário || 221

pouco útil (exceção para 11 Minutos, em cuja raiz está o diário de uma prostituta brasileira emigrada na Suíça e uma componente etnográfi ca solidamente vinculada à realidade urbana marginal) para identifi car e para compreender o Brasil e os mecanismos tão complexos que renovam constantemente, no bem e no mal, a estrutura da sua sociedade.

Coelho representa, com efeito, um planeta à parte, dotado de uma imensa luz própria, ofuscante, e de uma forte energia atrativa (“energia positiva”). Impossível, contudo, para um só leitor italiano, supor uma interpretação do universo brasileiro a partir das suas obras. Muito mais fácil, ao contrário, acolher a mensagem confortante e, sobretudo, imediata, relacionada pela grande parte da crítica ao fenômeno popular da chamada new age como outros casos literários de grande sucesso; por exemplo, nos anos de 1970, a percepção imediata de uma certa “fi losofi a de vida” que os leitores de meio mundo puderam extrair da leitura de Richard Bach e do seu Fernão Capelo Gaivota.

Inauguradas em 1936, pelo pequeno volume de Ronald de Carvalho, Piccola storia della letteratura brasiliana (tradução do homônimo título), pela Vallecchi de Florença, as histórias da literatura brasileira na Itália conheceram fortunas diferentes. Entre elas, em todo caso, nos convém limitar à obra, sem dúvida mais completa e consultada, Storia della letteratura brasiliana de Luciana Stegagno Picchio (Einaudi, 1997), edição revista e do estudo anterior

Profi lo della letteratura brasiliana (Editori Riuniti 1992).Dedicada a Murilo Mendes, presença de um Brasil vívido e

poético na Roma dos anos 1960 e ligado à autora com um estreito vínculo de amizade, este manual fundamental, de abordagem declaradamente estruturalista, expõe de maneira programática, desde a introdução, as coordenadas de um interessante catálogo temático obtido vasculhando um vastíssimo patrimônio de sugestões sobre a percepção que, em âmbito italiano, vale a pena refl etir. Entretanto, é interessante notar como, depois de propor uma virada relativa a alguns dos mecanismos mais importantes inerentes à história literária brasileira (em particular a questão da autonomia política e cultural ou a passagem do Brasil, em chave pós-colonial de objeto a sujeito), a

Page 223: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

222 || Roberto Francavilla

estudiosa sugira uma leitura histórico-folclorística e histórico-social das temáticas brasileiras, insistindo em particular nos sujeitos que, ainda hoje, mesmo adequados à contemporaneidade e acrescidos de algumas indispensáveis categorias, refl etem nos seus contornos mais fi éis a imagem do país latino americano, produzida pela literatura. A lista destes temas é breve, concreta e requer certamente uma recepção preparada à frequente desarticulada sobreposição, e ao complexo entrelaçamento deles: o índio, o negro, a cana de açúcar, a seca, o Sertão, a Amazônia, a Bahia, os arranha-céus.

Com um aprofundamento da especifi cidade de cada tema se compreenderá facilmente como, por exemplo, ao tema da cana de açúcar correspondem, grosso modo, as questões ligadas ao latifúndio, à escravidão, à exploração e ao poder, com as suas ramifi cações institucionais tragicamente centrais na História moderna do Brasil, e que deram vida a um importante fi lão de narrativa produzida num estado de exceção, ou melhor, àquela trama inervada pelos cenários da violência, da prisão, do exílio, da dissidência política. Tais questões resultam intrinsecamente ligadas, por sua vez, à temática do negro, da seca e, portanto, aos processos de migração interna. Do mesmo modo, o tema do arranha-céu, aproximado daquele da cabana, na leitura explicitamente estruturalista de Stegagno Picchio, irá fatalmente se sobrepor àquele da favela, um dos mais debatidos nos últimos anos. Não surpreende, então, a evidente importância atribuída a um só tema, à aparência geográfi ca e paisagística como é aquele da cidade (e em sentido lato ao estado) da Bahia, involuntário centro – graças à dimensão universal do seu mais conhecido cantor, Jorge Amado – de uma série já compacta de dados confl uídos com ímpeto no imaginário brasileiro e, por conseguinte, naquele dos seus leitores exôgenos.

Amado, lido e apreciado na Itália como também em todo o mundo, produz um texto de grande efeito, ideal para a naiveté

terzomondista para utilizar uma expressão recorrente no léxico d’antan – especialmente na sua linha latino americana – na qual colheu um sucesso mais do que planetário (sobretudo nos anos de 1970, mas com uma recuperação nos anos de 1990 no seio dos Cultural Studies e das, não menos eufóricas, hipóteses sobre o sincretismo e sobre

Page 224: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário || 223

o híbrido) e com o qual a Bahia felizmente “multiétnica”, sensual e mulata se ergue como bandeira cultural de nobres ideais. É o Amado da chamada “segunda fase”, ou melhor, aquela na qual predomina o pensamento acima, que suscita, maiormente, a atenção dos leitores, à custa da intensa página do aprendizado político e depois da tenaz militância, tornada amarga pelo exílio em Praga, no seio de uma narrativa realista capaz de elevar os motivos da exploração e da resistência aos poderes hegemônicos do latifúndio, na áspera cenografi a rural, e da fábrica nas ambientações urbanas temáticas da sua literatura.

Mesmo assim, entre os anos de 1960 e 1970 não tinham certamente faltado os instrumentos de crítica à disposição do público italiano. Nesses anos, de fato, não poucos estudantes e estudiosos tiveram a possibilidade de se formar em alguns fundamentos do pensamento brasileiro moderno, graças a uma série de atentos observadores e mediadores (quase todos intelectuais ligados ao mundo da Universidade) e graças, também, a um mercado particularmente atento, partícipe e efetivamente empenhado em dar um papel primário no debate cultural da época.

A ensaística de Rizzoli, por exemplo, colocava no seu luminoso catálogo, ao lado de nomes quais Greimas, Michel Foucault e Northrop Frye, a sociologia lusotropicalista de Gilberto Freyre (Nordeste é publicado em 1970, com o título Nordeste. L’uomo

e gli elementi), ainda longe da revisão crítica das suas teses operadas, em âmbitos mais recentes. Nesse mesmo período, contudo, Gilberto Freyre merecia também a atenção da prestigiosa coleção de ensaios da Einaudi, que em 1965 publicava fi nalmente Casa grande e senzala

com o título Padroni e schiavi. La formazione della famiglia brasiliana

in regime di economia patriarcale, edição composta de um importante paratexto histórico de Fernand Braudel, e sete anos depois, Sobrados

e mucambos (Case e catapecchie. La decadenza del patriarcato rurale

brasiliano e lo sviluppo della famiglia urbana). Sempre na década de 1970, era criada a coleção “Ricerche brasiliane” de Bulzoni, sob a égide – mais uma vez – da onipresente Luciana Stegagno Picchio (na mesma coleção foi incluído, ainda, um estudo sobre a aventura de Antonio Conselheiro: Canudos – Storia di una guerra, di Giorgio

Page 225: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

224 || Roberto Francavilla

Mariotti). Títulos complexos de clara marca política e sociológica muitas vezes de inspiração de terzomondista, sinais de uma estação de forte empenho político e de militância estendida em particular ao mundo da Universidade.

Uma série de exemplos iluminados, distribuídos em hipotéticos arquivos do pensamento brasileiro divulgado na Itália, ajuda-nos a compreender a amplitude do leque crítico à disposição: Alle radici del Brasile (Raízes do Brasil) de Sérgio Buarque de Holanda (Bocca, 1954), ensaio escrito mais ou menos vinte anos antes, mas impermeável à corrosão do tempo; de Darcy Ribeiro, Le

Americhe e la civiltà (As “Américas” e a civilização, Einaudi, 1975) e o fundamental, Il dilemma dell’America latina (Il Saggiatore, 1976); de Celso Furtado, La formazione economica del Brasile (Formação

econômica do Brasil, Einaudi 1970); de Augusto Boal, Il teatro degli

oppressi (O teatro do oprimido, Feltrinelli em 1977) e Rivoluzione in

Sudamerica (Revolução na América do Sul, Einaudi, 1962); de Josué de Castro, Una zona esplosiva: il Nordeste del Brasile. Un “punto-

chiave” nella geografi a della fame (Einaudi, 1966). Note-se nesse caso a importância de uma referência lexical como aquela da “geografi a da fome” com a qual se traduzia o título original que, na realidade, continha uma citação difi cilmente compreensível para um público profano, retirada de Morte e vita severina de João Cabral de Melo Neto (Sete palmos de terra e um caixão. Ensaio sobre o Nordeste, zona

explosiva). Como é possível verifi car facilmente, esse tipo de ensaística

é divulgado na Itália, com algumas exceções (Freyre é a mais impressionante) com um período de tempo mínimo (normalmente depois de poucos meses) em relação à edição brasileira. De um lado, são decisivas a atualidade das temáticas e a recepção entusiasmada em relação aos novos sistemas de pensamento, somente na aparência, periféricos, como, por exemplo, a Teologia da Libertação, cuja doutrina – discutida em 1968 por representantes do clero da America Latina (entre os quais dois bispos brasileiros) era baseada na emancipação social, na reivindicação dos direitos por parte das massas exploradas no seio de uma cristandade vivida por baixo – que se tornaram, com o passar de poucas estações, pontos de referência

Page 226: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário || 225

centrais, universalmente recebidos, e que fi zeram urgente a fruição de uma matéria fundamental para o debate. De outro lado, a função dinâmica e incansável dos mediadores de exceção que tinham criado sólidos corredores entre Itália e Brasil.

Na realidade, esse rápido sobrevoo, sobre a ensaística brasileira dos anos 1960-1970, deixa ainda mais evidente a monumental estabilidade da imagerie amadiana, resistente a qualquer tentativa de desconstrução, uma espécie de contracanto de peso específi co, quase inalterado. Para conclusão desse breve excursus sobre a fortuna do grande romancista baiano, deve ser lembrado que na Itália Amado é o único escritor brasileiro que mereceu a inclusão de sua obra na canônica coleção dos Meridiani (Mondadori), com dois volumes dedicados-lhe em 2002, introduzidos por um longo ensaio de Luciana Stegagno Picchio no qual, além da completude do dado e do amplo respiro da escritura ensaística, transparece mais uma vez, evidente, a inspiração pela via da amizade.

Gabriella garofano e cannella, que marca indiscutivelmente a passagem entre as duas fases amadianas, é o romance que decreta o defi nitivo sucesso do escritor no cenário internacional (cúmplices as numerosas adaptações cinematográfi cas e televisivas, inclusive aquelas feitas para o gênero popular das novelas) constituindo, em segundo lugar, o encorajamento de muitos leitores à redescoberta da sua literatura menos recente, mais dura e vinculada à intenção social. A esse propósito, escreve Stegagno Picchio:

Gabriela – é a primogênita das heroínas femininas que, na chamada segunda fase da invenção de Amado, naturalmente, sem nada a renegar, sem nada a rejeitar, mas ocupando fi nalmente com alegria o palco privilegiado das terras grapiúnas e, iluminando-o com o sorriso deles, foram substituídos pelos heróis solitários da primeira fase. (STEGAGNO PICCHIO, 2002, p. LVI).5

5 “Gabriella – è la primogenita delle eroine femminili che, nella cosiddetta seconda fase dell’invenzione di Amado, naturalmente, senza nulla rinnegare, senza nulla respingere, ma occupando fi nalmente con gioia il palcoscenico privilegiato delle terre grapiúnas e, rischiarandolo con il loro sorriso, si sostituiranno agli eroi solitari della prima fase”.

Page 227: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

226 || Roberto Francavilla

O personagem de Gabriela é recebido com entusiasmo pelo público italiano, que ao redor dele constrói um imaginário obstinadamente inscrito no seio do exótico e do sensual. Aspecto ainda corroborado pela estudiosa, falam de “Gabriela, a jovem impelida pela seca, de um Nordeste de miséria a Ilhéus, onde se tinha libertado dos seus esfarrapos, transformada numa mulata de sonho, como uma Cinderela ressuscitada, como o cisne da fábula” (Ibidem, p. LVI-LVII).6 A fi gura paradigmática da mulata de sonho, mesmo construída admiravelmente pelo gênio e pela arte do romancista baiano, não só fará com que sua narrativa se popularize, mas também não cessará de alimentar a réverie exótica e erótica do público ocidental, basta pensar na protagonista de Dona Flor e i suoi

due mariti ou na perturbadora Rosa de Oxalá, em La bottega dei

miracoli.Nesse ponto surgem algumas inevitáveis dúvidas: quanto

ainda a literatura legitima a antiga imagerie brasileira para o leitor italiano? Existem e, se sim, quais são os textos capazes de operar a desconstrução daqueles discursos imagotípicos nos quais é evidente a latência de veradicidade como estratégia para reforçar as convicções e as sugestões adquiridas no tempo, de desmoronar aquele axioma – na realidade, uma emboscada dos mecanismos receptivos – nos quais o verdadeiro e o falso perdem seus signifi cados e a aderência da matéria representada não se aproxima do real, mas sim daquela espécie de valor exponencial do real que é o imaginário? A literatura brasileira está operando hoje esta cirúrgica dissecação nas plásticas manipulações do lugar, da antropologia, da linguagem, do mito. Mas o leitor italiano é capaz de receber esse discurso? Por meio de quais leituras poderá recompor o retrato de um país o mais possível restituído à realidade, verifi cando, por exemplo, as contradições que se realizam numa sociedade tão complexa como aquela brasileira, na qual desde sempre o sublime e o abjeto se entrelaçam num mosaico de aparência incompreensível? Vem à cabeça as impiedosas cantigas

6 “Gabriella, la giovane sospinta dalla siccità, da un Nordest di miseria a Ilhéus, dove era sbocciata dai suoi stracci, trasformata in una mulatta di sogno, come una Cenerentola rediviva, come il cigno della favola”

Page 228: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário || 227

com as quais Darcy Ribeiro, no seu afresco com o título Utopia

selvagem (Utopia selvaggia), explicava o Brasil como insondável emaranhado de oximoros:

[...] a mocidade permissiva e a velhice debochada; a machitude crepuscular e a bichice fl orescente; o feminismo salvacionista e a autarquia sexual; o Funai perseguindo índios para salvar os coronéis [...]; a contaminação industrial e a qualidade da vida; o militarismo civilista e la democratização autoritária [...] (RIBEIRO, 1982 p. 96)

Se dessas palavras, que são dos primeiríssimos anos 1980, pode certamente desafi nar algumas referências datadas e já anacrônicas, é também verdade que a abordagem dialética, em ondulação entre pares de fl agrantes antinomias, não conheceu radicais subversões. São lúcidos os testemunhos de algumas provas literárias que o público italiano pode apreciar nos últimos anos, os quais executam, na desarmante nitidez, a investigação sobre a parábola decadente de um Brasil onde, ainda, estão fi rmes as regências, as clamorosas concentrações de capital, as derivas de lobby que parecem proceder sem solução de continuidade pelos fazendeiros escravagistas do século XVI às multinacionais, dos dias de hoje, com a exploração incontrolável e destrutiva dos recursos. Junto a isso, a decadência de uma elite obstinadamente ancorada às miragens classistas do passado, atualizada somente sobre as modas efêmeras de importação que caem inevitavelmente no kitsch da imitação, abdicando frequentemente da originalidade de uma solidíssima tradição popular. A decadência é o sinal de romances como Viva o povo brasileiro (Viva il popolo brasiliano, Frassinelli, 1997) de João Ubaldo Ribeiro, no qual é possível repercorrer a inteira história do Brasil da chegada dos jesuítas nas imensas fl orestas do interior à ascensão imortal de uma classe dirigente urbana, corrupta e opaca; percurso análogo é aquele desenhado mais recentemente pelo vetusto protagonista de Leite Derramado (Latte versato, Feltrinelli, 2010) de Chico Buarque, em suas memórias colhem-se os sinais da mesma triste parábola descendente.

É nessa linha que se coloca o já citado Diogo Mainardi, tenaz desconstrutor do “caráter brasileiro”, tão diligentemente empenhado

Page 229: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

228 || Roberto Francavilla

na revisão do mito coletivo, que atrai as fl echas de uma boa parte da opinião pública nacional, de algum intelectual orgulhoso da sólida e eterna brasilidade e dos seus intocáveis ícones como o samba e a seleção. Também por via de razões biográfi cas – foi enviado à Itália pela revista “Veja” – Mainardi representa um bom exemplo da ponte cultural entre Brasil e Itália. Em um de seus romances mais conhecidos, de título eloquente, calco perfeito do original, Contra

o Brasil (Contro il Brasile, Baldini & Castoldi, 2003) Mainardi, repercorrendo com erudição e ironia alguns dos textos canônicos da cultura brasileira, incluído os clássicos da etnologia, ergue-se como um contundente e programático picareta das alegres altivas tropicais do homo brasilicus. O romance, em forma de diálogo, parte do exercício da observação do próprio país fi ltrada pelas lentes do binóculo, no seio da distância. E o que aparece na sua visão? Um país errático desde as suas origens, descoberto pelo erro, por culpa dos cálculos errados dos cartógrafos do fi nal do século XV; um país consagrado geneticamente à condição rural que, ao contrário, se industrializou por imitação (a mesma imitação do modelo europeu); um país povoado por uma burguesia de especuladores da construção civil (a mesma que conclui impiedosamente o já citado, Viva o povo

brasileiro de J. U. Ribeiro).Exemplar, nesse sentido, o diálogo entre a índia Luísa e

o protagonista Pimenta Bueno, burguês paulistano, sustentado, antinacionalista e embebido por uma obsessiva erudição:

LUÍSA Gonçalves Dias? Quem é Gonçalves Dias?

PIMENTA BUENO “O maior poeta do Brasil, aquele que com mais ardente lirismo cantou a majestade da terra brasileira, a nobreza, o valor e o infortúnio da raça selvagem” segundo Olavo Bilac.

LUÍSA Eu não gosto de poesia. Prefi ro cuspir na cara dos outros.

PIMENTA BUENO É provável que você conheça a “Canção do exílio”, que Gonçalves Dias compôs durante uma longa estada em Portugal: “Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá;/ As aves, que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá”…

Page 230: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário || 229

LUÍSA Nunca ouvi falar.

PIMENTA BUENO Eugenio Montale parodiou-o lembrando, justamente, que “o sabiá canta na terra, não sobre as árvores”... Entendeu?

LUÍSA Não.

PIMENTA BUENO Gonçalves Dias, o mais entusiasmado apologista da nossa natureza, simplesmente ignorava que o sabiá só canta à altura do solo, não em cima das árvores! O Brasil tem os patriotas que merece!

LUISA Gonçalves Dias? Olavo Bilac? Eugenio Montale? Quem se importa com tudo isso?

PIMENTA BUENO Eu me importo.

LUÍSA Venha logo copular comigo. Quero ganhar meu anzol e o punhado de miçangas brancas.

Pimenta Bueno deita-se sobre Luísa no leito de folhas verdes.

LUÍSA Depois de copular, que tal fazermos juntos nossas necessidades atrás da moita? (MAINARDI, 2008, p. 115-116).

Pimenta Bueno procura as raízes do Brasil numa ilusória peregrinação que o leva a pisar nas pegadas de Lévi-Strauss e da sua viagem etnográfi ca entre os índios nambikwara, perseguindo a miragem de uma sociedade primitiva, não contaminada, o “progresso quase insensível dos inícios” que porém, uma vez encontrado, se revela inútil e sem signifi cado. Do mesmo modo, a inexaurível quête praticada por este excêntrico personagem acaba por embater na miséria geofísica, patifaria congênita e banalidade (nela Mainardi inclui até música popular, um dos verdadeiros tesouros da cultura brasileira): não escapa à óbvia menção, à rapsódia modernista de Mário de Andrade, ao seu anti-herói epônimo Macunaíma nem à sua célebre frase-manifesto (“ai que preguiça!”), que circulam em forma de subtexto entre as páginas do romance.

Pimenta Bueno, na realidade, apesar das demasiadas óbvias exagerações iconoclastas, representa um golpe para o estereótipo positivo brasileiro: com uma mão segura os pensadores e cronistas que descreveram o Brasil para o mundo; com a outra, apalpa criadas,

Page 231: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

230 || Roberto Francavilla

novas escravas, mulheres submissas com alegria e com aquela licenciosidade indolente e luxuriosa, que mais uma vez nos leva tanto ao Macunaíma andradiano quanto à sociologia perfumada de erotismo do primeiro Gilberto Freyre. E não é um caso que Mainardi escolha os nambikwara (e não, por exemplo, caduveios ou os bororos), ou seja, o grupo étnico (“sobreviventes à idade da pedra”) que mais havia desiludido o antropólogo francês, negativamente atingido pelo abandono do cotidiano deles, pelas brutas melodias compostas de uma só nota, pelo ato de atravessarem os rios a nado, ao invés de recorrer à construção de pirogas, pelo dormir no chão, ao invés de na rede.

Algumas sólidas verdades funcionais, para o nosso discurso sobre o estereótipo, podem ser inferidas a partir da leitura jogo-força contraditória e polêmica de Contra o Brasil. A primeira delas, já intuída e codifi cada pelos modernistas na São Paulo da década de 1920, confi rma o fato de que o brasileiro não tem a necessidade de procurar o seu outro longe das raízes, em oposição a um cânone clássico da antropologia tradicional (Malinowski nas ilhas Trobriand): ou melhor, não deve fazer mais do que virar a esquina, a curva de um rio, a trilha na fl oresta atrás das últimas casas da cidade. Quem se aproxima do Brasil vindo de fora deverá refl etir sobre uma amarga consideração formulada pelo Lévi-Strauss viajante no Brasil: “como poderá a pretendida evasão das viagens conseguir algo que não seja apenas manifestar as formas mais infelizes da nossa existência histórica?”7 (LÉVI-STRAUSS, 1988, p. 44, tradução nossa).

A segunda verdade, negando com decisão as prerrogativas de um já obsoleto determinismo ambiental, parece confi gurar uma séria hipótese de subversão em relação às falácias, herança da imagerie de matriz positivista, aquela radicada na teoria dos caracteres nacionais que atribuía aos índios, heroísmo melancólico, aos escravos de origem africana, sensualidade, e aos representantes da matriz europeia, os sólidos princípios da civilização, não só em relação de uma anacrônica abordagem etnopsicológica e contra as

7 “come potrà la pretesa evasione dei viaggi riuscire ad altro che a manifestarci le forme più infelici della nostra esistenza storica?”.

Page 232: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário || 231

antigas concepções produzidas pelo canônico trítico de Taine (race, milieu e moment).

Em todo caso, Diogo Mainardi não está isolado no seu ataque ao monumento. Naquele território, afi m ao novo gênero da docufi ction, os leitores italianos tiveram oportunidade de conhecer o lado obscuro da cidade símbolo do Brasil com a reportagem de Zuenir Ventura, cujo título é Cidade Partida (Viva Rio – reportage da una

città divisa, Feltrinelli, 1997), afresco impiedoso de uma metrópole que em absoluto encarna o primado da mistura de maravilha e degradação. Na estrada de um novo realismo urbano, temas como a marginalização, bandidismo e a violência, não raramente eivado por uma espessa fi bra devedora de estéticas cinematográfi cas, traçam coordenadas para o enquadramento de um novo gênero: a literatura da favela. Aqui o precedente é identifi cado ainda no início dos anos de 1960, quando Quarto de despejo, diário da favelada Carolina Maria de Jesus, era imediatamente proposto pela Bompiani com o azar da manutenção do título original e com um desarmante prefácio de Moravia; hoje é a vez de Paulo Lins (Città di Dio per Einaudi) e mais recentemente do chamado “terrorismo literário” do militante Ferréz (Manuale pratico di odio per Arcana), sem esquecer o Rubem Fonseca, talvez mais obscenamente violento de Buon anno (Voland, 1998).

Retornamos, para concluir, à legibilidade da cultura como sistema de códigos capaz de traduzir a realidade e as suas dinâmicas e, mais especifi camente, à função da literatura como campo no qual se realiza a construção do mito entendido enquanto linguagem simbólica e no qual se identifi ca o fl uxo ideológico, que subjaz à construção do imaginário.

Nesse sentido, ler o Brasil não representa só o sinal codifi cável de um secular diálogo entre as culturas, mas também a reprodução, muitas vezes em série, de um arsenal de teses, imagens e temas para a compreensão do qual será necessário fazer referência, mesmo que brevemente, ao papel dos chamados mediadores e, também, ao corpus das traduções, em fi m de contas, confortante, levando em consideração que a metade das obras da literatura traduzidas na Europa proveem da língua inglesa. No

Page 233: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

232 || Roberto Francavilla

interior desse corpus, como se deduz facilmente, se destacam, de um lado, estimulantes correspondências e, do outro, uma certa marca da desordem, especialmente no campo da poesia, no qual, por exemplo, Drummond de Andrade quase nunca obteve a visibilidade merecida, e no qual Morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto, esgotado na sua edição bianca de 1973, da Einaudi, foi tirado do esquecimento, graças ao empenho de um grupo de jovens tradutores (para as edições de Robin, em 2005).

Em uma publicação recente, Haroldo de Campos conseguiu concentrar em poucas palavras a inteira história das infl uências literárias italianas no Brasil, por meio do papel de Marino (e obviamente de Petrarca) do Baroco, de Manuel Botelho de Oliveira, às traduções dantescas (mesmo parciais) do italianizado Gonçalves Dias (mas da linha dantesca, cheia e surpreendente, fazem parte outros: Sousândrade, Henriqueta Lisboa, Machado de Assis, Augusto de Campos, para silenciar as transições, ou melhor, transluminações, do próprio Haroldo).8 Certamente, menos praticável, seria o percurso contrário, ou seja, o mapeamento das infl uências literárias brasileiras na Itália, percurso que ressentiria da obrigatória oposição entre uma matriz marcada pela tradição e uma, plasmada a partir da imitação colonial e da importação do cânone. Deveremos, portanto, nos acontentar em peneirar um catálogo seguramente eivado de estridentes e amplas lacunas, mas também iluminado por algumas agradáveis supresas.

Entre os clássicos, a entrada de Machado de Assis pela porta triunfal no cânone da Weltlitteratur não está totalmente institucionalizada. Já Susan Sontag criticava duramente a escassez das traduções e a difi culdade de divulgação fora do Brasil de um engenho tão prodigioso. Até na Argentina, tão perto geografi camente, mas tão distante no diálogo literário, Borges admitia não ter nunca lido Machado, cujas primeiras traduções em língua espanhola são somente do anos 1960 do século XX. Na Itália, o grande escritor esperou quase meio século para voltar às livrarias: além dos fundamentais Dom Casmurro (pela Fazi) e Memórias postumas de

8 WATAGHIN, L. Brasil & Itália – Vanguardas, p. 21-28.

Page 234: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário || 233

Brás Cubas, com o título quanto menos acrobático Marcela mi amò per

quindici mesi e undicimila scudi, niente meno (pela Azimuth), podem ser assinalados outras felizes publicações da produção machadiana como L’Alienista e Galleria postuma e altri racconti (Lindau), Helena (Liguori) e La cartomante e altri racconti (Einaudi).

Quanto ao Modernismo, alguns dos textos canônicos, praticamente, já não se encontram mais. Depois das edições de Feltrinelli e Adelphi dos anos de 1970-1980, nem Oswald de Andrade, nem Mário de Andrade quase nunca foram repropostos, a não ser em fragmentos, escolhas antológicas ou estudos críticos, apesar da espessura comprovada (basta pensar em La cultura cannibale pela Meltemi, 1999). Da mesma forma, desta vez em âmbito regionalista, parece ter precipitado no esquecimento José Lins do Rego, do qual havia dois romances breves, traduzidos há alguns anos por Antonio Tabucchi e reunidos sob o título de Il treno di Recife (Longanesi, 1974). Ao contrário, é encorajante as tímidas tentativas como, por exemplo, de Fahreneit 451 que publica Insonnia de Graciliano Ramos, do qual já se conheciam Vite secche (várias edições) e San Bernardo (Bollati Boringhieri). Para encontrar as pegadas de Euclides da Cunha é necessário ir ao longínquo 1953, ano em que Sperling & Kupfer imprimia Brasile ignoto. L’assedio di Canudos. Destino diferente, àquele de Guimarães Rosa: títulos no catálogo de Feltrinelli como, Sagarana e Miguilim e, sobretudo, Grande sertão, na intransponível tradução de Edoardo Bizzarri, que continua a ser editado como livro de bolso à beira de um verdadeiro clássico. Analogamente, chama atenção a aclamada Clarice Lispector, não só em relação à sua narrativa (Legami famigliari, tradução de Feltrinelli de Laços de familia, já, há décadas, um pontual clássico da coleção de bolso), mas também ao seu universo cultural e particular: nesta linha se inscreve a escolha de publicar seus diários, grande tentativa de atribuir a uma escritora o seu enxoval intelectual certifi cando assim a sua estatura. Basta pensar em La scoperta del mondo (La Tartaruga, 2001), coletânea de crônicas publicadas no “Jornal do Brasil” de 1967 a 1973, laboratório do cotidiano, dividido entre uma inteligência efervescente e cosmopolita e uma cartografi a privada da angústia, além da publicação de uma série de cartas escolhidas (de

Page 235: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

234 || Roberto Francavilla

1941 a 1975), editadas em 2008 pela Archinto (La vita che non si

ferma).Na escassez forçada dessa breve contribuição, enfi m, não resta

espaço para um exame da situação atual. Urgem, contudo, algumas brevíssimas considerações. Se é verdade que já se vão distantes (em todos os sentidos) aqueles anos 50 quando a editora romana-milanesa Bocca inaugurava uma coleção editorial dedicada exclusivamente à literatura brasileira, é verdade também que alguns representantes do mercado editorial considerados pequenos e médios dedicaram parte de seus catálogos para a divulgação desta literatura, como é – entre outros – o caso da Voland (Nelida Piñon, Moacyr Scliar, Bernardo Carvalho e Rubem Fonseca, este último traduzido também pela Il Saggiatore), da Cavallo di Ferro (Rachel de Queiroz e Liygia Fagundes Telles) e da La Nuova Frontiera (Caio Fernando Abreu, Luiz Ruff ato).

Todavia, apesar da atenção de uma parte do mercado editorial e os esforços dos divulgadores reunidos ao redor de projetos provenientes do mundo da universidade (incluídos os laboratórios de tradução sempre mais competentes), a literatura do universo Brasil, por parte do público italiano médio fi ca, de toda forma, ancorada a poucos nomes de referência, dos quais já se discutiu. Por exemplo, é difícil compreender como um romancista de grande talento como Miltom Hatoum, (tempestivamente traduzido por Amina di Munno para Il Saggiatore e para Grazanti Racconto di un certo Oriente, Due fratelli e Ceneri del nord), já canonizado pelo público e pela crítica brasileira; veja a reescritura fl aubertiana da história moral da sua geração e dos seus lugares – a Manaus amazônica cruzamento de especuladores e aventureiros mas também confl uência de dois grandes rios portadores da matéria arcaica e das tradições das culturas indígenas – relegada na Itália ao mesmo nicho de leitores “iniciados”, certamente atentos e preparados contudo, como muito frequentemente acontece, numericamente exíguos.

Page 236: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Verificações do imaginário || 235

Referências

HOUELLEBECQ, M. Le particelle elementari, Milão: Bompiani, 2007.

LÉVI-STRAUSS, C. Tristi tropici. Milão: Mondadori, 1988.

MAINARDI, D. Contro il Brasile. Milão: Baldini & Castoldi, 2003.

MAINARDI, D. Contra o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2006.

PASSERI, G. Il pane dei carcamano. Florença: Parenti, 1958.

RIBEIRO, D. Utopia selvaggia. Turim: Einaudi, 1987.

______. Utopia selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

STEGAGNO PICCHIO, L. “ABC di Jorge Amado”. In: AMADO, J. Romanzi, I Meridiani, v. I. Milão: Mondadori, 2002.

STEGAGNO PICCHIO, L. Storia della letteratura brasiliana. Turim: Einaudi, 1997.

WATAGHIN, L. Brasil & Itália – Vanguardas. São Paulo: Ateliê Ed., 2003

ZWEIG, S. Brasil, país do futuro (Brasilien, Ein Land der Zukunft ). Porto: Livraria Civilização, 1951.

Page 237: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 238: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Posfácio

Esta obra, organizada por Patrícia Peterle, é fruto de um trabalho sério de pesquisa desenvolvido no âmbito das atividades do grupo de pesquisa Literatura, História e Tradução do CNPq na Universidade Federal de Santa Catarina. Os ensaios aqui reunidos vêm ao encontro do que Lya Wyler coloca no seu texto Línguas,

Poetas e Bachareis. Uma crônica da tradução no Brasil (2003, p. 24) e que gostaria aqui de retomar: “Quando me dispus a estudar a história da tradução no Brasil impressionou-me de imediato a escassa bibliografi a existente sobre o assunto nos bancos de dados do CNPq e nos fi chários das bibliotecas”. Como pesquisadores, docentes ou leitores da área da tradução não podemos não concordar com Wyler e saudar com muita felicidade a publicação deste livro que reúne estudos desenvolvidos tanto em instituições brasileiras (Ufsc, Usp, Ufmg e Unesp), quanto italianas (Genova e Siena) por docentes e pesquisadores de vários níveis (graduação, iniciação científi ca, mestrado, doutorado e pós-doutorado) que abordam, num movimento duplo, a presença e o diálogo da literatura italiana no Brasil e da literatura brasileira na Itália através dos textos traduzidos no início do século XX. A tradução é entendida aqui, justamente, como veículo privilegiado de construção de sentidos literários e poéticos, mas, sobretudo, de identidades e culturas; não somente, então, reescritura, e muito mais que escritura, mas construção de conhecimento e de um conhecimento próprio mediado pelos sistemas estrangeiros, no caso o italiano e o brasileiro, veiculados pela tradução.

O mérito maior deste livro, além de preencher a lacuna de dados escassos acerca desse fenômeno geral para se constituir

Page 239: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

238 || Sergio Romanelli

uma História da tradução no Brasil, reside na tentativa explicita e bem sucedida de superar a associação folclórica que desde sempre envolve a relação entre Itália e Brasil, tanto na Itália quanto no Brasil, no imaginário coletivo, focada somente em presumidas semelhanças fundamentadas em infl uências culturais (comida, música, estilos de vida, etc.) trazidas pelos imigrantes italianos ou exportadas hoje pelos emigrantes brasileiros. Existe isso, mas existe mais que isso, e há todo um percurso subterrâneo e pouco explorado de reminiscências e de sugestões criadas e difundidas, nos dois países, pela palavra literária e que somente aconteceram, e continuam acontecendo, graças aos textos traduzidos. Este livro consegue superar a visão etnocêntrica que muitos estudos têm, frequentemente, pois ao contrários destes, não foca somente a análise da literatura estrangeira traduzida no Brasil, considerando o país sul-americano ainda colônia, formado pela literatura estrangeira sem a qual não teria uma identidade, consumidor de textos traduzidos e não produtor de literatura nacional traduzida; mas mostra também para o leitor brasileiro um percurso de traduções para o italiano, a partir do início do século passado, sempre mais consistente.

As pesquisas aqui reunidas destacam quanto pouco óbvios e previsíveis sejam esses caminhos percorridos pela tradução e pelos textos traduzidos, resultado de políticas editoriais e de polissistemas, nos quais ideologia, cultura, língua, poéticas nacionais se articulam num emaranhado de pressões centrípetas e centrifugas que confundem os limites entre centro e periferia, entre cânone e margem, entre colônia e dominador. Ao escorrer os títulos dos ensaios percebemos a complexidade desse fenômeno na escolha, por exemplo, dos autores traduzidos em cada um dos dois países: não somente Dante então, mas Caproni, Collodi, Papini, Pirandello; não somente Amado, mas Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles.

A preocupação do pesquisador contemporâneo, numa visão sistêmica da realidade, não deveria ser a de indagar a tradução enquanto produto, mas a tradução enquanto processo, transferência intersistêmica e não fenômeno meramente linguístico ou cultural; mas, muito mais que isso, uma dinâmica complexa, responsável pela construção de novas identidades, novas literaturas, novos

Page 240: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Posfácio || 239

imaginários; construção de uma nova identidade a partir do olhar do outro, do distante, do periférico. Por isso, o movimento que este livro traz é mais que dúplice, desdobra-se ainda uma vez, pois a literatura italiana traduzida no Brasil é também literatura brasileira, e a literatura brasileira traduzida na Itália é também literatura italiana.

Sergio Romanelli

Professor de Língua Italiana, Linguística e Tradução (UFSC), autor de Cortecce (1999), Variazioni Minime (2000),

Lune Severe (2005), Metà Fisiche (2007), Libere Fenici (2009), La metafi sica di un Fauno (2011) e tradutor

(Alberti, Espanca, Twain, Virgillito).

Page 241: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa
Page 242: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Sobre os autores

Aislan Camargo Maciera – Natural de São Carlos (SP). Graduado em Letras (português e italiano) pela UNESP e mestre em Língua e Literatura Italiana pela Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da USP, onde atualmente é doutorando do mesmo programa. Trabalha desde a graduação com Luigi Pirandello, pesquisando a infl uência do progresso científi co e tecnológico na obra do escritor siciliano. Estuda também, a partir dessa mesma perspectiva, a obra de Primo Levi. [Universidade de São Paulo, [email protected]].

Alessandra Rondini – Nasceu em Piombino, Itália. Possui graduação em Lettere (2000) e em Lingue e Letterature Straniere Moderne (1990) na Università Degli Studi Di Genova. Atualmente é professora leitora de italiano da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-IBILCE) de São José do Rio Preto. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Línguas Estrangeiras Modernas, atuando principalmente nos seguintes temas: língua italiana, cultura italiana e tradução. [Leitora MAE/UNESP-IBILCE, [email protected]; Tradução de Letizia Zini].

Aline Fogaça dos Santos Reis e Silva – Mestranda em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina, com dissertação intitulada “Tradução e Repercussão do Futurismo no Brasil”. Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2009), com intercâmbio Università degli Studi di Perugia (2008). Durante o período da graduação, desenvolveu projeto de Iniciação Científi ca sobre a obra crítica e ensaística de Mário de Andrade, intitulado “A convergência e a crítica: refl exões sobre a obra crítica de Mário de Andrade”. [Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]].

Amina Di Munno – Nasceu em Monopoli, Itália, viveu e estudou no Brasil até os quinze anos de idade. Graduou-se doutora em Lingue e Letterature Straniere na Università di Genova, onde desde 1992 ensina Língua e Literaturas Portuguesa e Brasileira. É tradutora de obras literárias de grandes autores, como Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Machado de

Page 243: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

242 || Sobre os autores

Assis, Vinicius de Moraes.  Atualmente estuda escritores contemporâneos dos dois países. [Università di Genova, amina.dimunno@ tin.it; amina.dimunno@

unige.it].

Andrea Santurbano – Professor de Língua e Literatura Italiana da Universidade Federal de Santa Catarina, onde atua também no Programa de Pós-Graduação em Literatura. Possui graduação em “Lingue e Letterature Straniere” pela Università degli Studi “G. d’Annunzio” – Chieti-Pescara (1998) e doutorado em “Lingue, letterature, spettacolo ed arti comparati” pela mesma universidade (2004). É editor com Fabio Pierangeli e Patricia Peterle de Mosaico Italiano. Atua nas áreas de Língua e Literatura Italiana e Estudos Comparados. [Universidade Federal de Santa Catarina,

[email protected]].

Aurora Fornoni Bernardini – Professora Titular da USP. Especialista em Literatura Russa e Literatura Italiana. Diploma d’Onore: Presenza Italiana in Brasile – Circolo Italiano de São Paulo, 6 de junho de l983 pela co-tradução de O Nome da Rosa de Umberto Eco Jabuti 2004 – Menção Honrosa na categoria “Tradução” da obra Il Dolore de Giuseppe Ungaretti. Premio Paulo Ronai de tradução 2006 com a obra Indícios Flutuantes de Marina Tsvetáieva. Prêmio Carlos Heitor Cony de Crônica e Poesia 2006 (Modalidade: Poesia II). Prêmio APCA 2006 pela co-tradução de Exército de Cavalaria de Isaac Bábel. Prêmio Jabuti 2007 pela tradução da obra Indícios Flutuantes, de Marina Tsvetáieva. [Universidade de São Paulo, [email protected]].

Carolina Pizzolo Torquato – Doutora em Literatura, foi professora da Universidade Federal do Ceará e atualmente é professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina. Além da tradução literária, suas áreas de interesse incluem a sociolinguística do italiano e a linguística aplicada. [Universidade Federal de

Santa Catarina, [email protected]].

Égide Guareschi – Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Formada em Letras Português pela UFSM, Letras Italiano pela UFSC, fez especialização em Educação pelo IFSC e trabalhou com ensino de língua portuguesa/literatura brasileira no Ensino Médio e Ensino Técnico/Tecnológico no IFSC e com Educação de Jovens e Adultos em escola do município de Florianópolis. [Universidade Federal de Santa Catarina,

[email protected]].

Erica Salatini – Mestre em Letras pela Universidade de São Paulo, com disse rtação na Área de Língua e Literatura Italianas sobre o teatro de Luigi

Page 244: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Sobre os autores || 243

Pirandello. Atuou como professora de língua italiana no Spazio Italiano – Centro de Língua e Cultura Italiana de Santo André, SP. Atualmente é doutoranda do Programa de Língua, Literatura e Cultura Italianas da Universidade de São Paulo, desenvolvendo pesquisa sobre a obra de Antonio Tabucchi e a Pós-Modernidade. [Universidade de São Paulo, [email protected]].

Fernanda Moro Cechinel – Bacharel em Turismo Gestão Hotelaria pela Unisul, cursa Letras – Língua Italiana e Literaturas na UFSC, foi bolsista de Iniciação Científi ca UFSC/CNPq de 2009 a 2011 e participa do grupo de Literatura Italiana Traduzida no Brasil. [Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]].

Gabriela Kvacek Betella – Nascida em São Paulo (SP). Professora assistente e coordenadora da área de italiano do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Assis, mestre e doutora pelo Departamento de Teoria Literária da FFLCH-USP, com pós-doutorado pelo IEB-USP. Possui trabalhos de crítica literária na área de literatura brasileira (como o livro Narradores de Machado de Assis, pela Edusp/Nankin), e hoje em dia se dedica ao estudo de relações entre a literatura, a história e o cinema italianos. [Universidade Estadual Paulista, [email protected]].

Ivair Carlos Castelan – Bacharel e Licenciado em Letras, com habilitação em Português/Italiano, pela UNESP/Araraquara. Mestre em Letras (Área de Concentração: Língua, Literatura e Cultura Italianas) pela FFLCH/USP, onde, atualmente, é doutorando (no mesmo programa). Bolsista CAPES, em seu projeto analisa as relações temáticas que envolvem o ciúme nas obras Senilità, do escritor triestino Italo Svevo, e Dom Casmurro, de Machado de Assis. [Universidade de São Paulo, [email protected]].

Leonardo Rossi Bianconi – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista campus de Assis. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Sua área de pesquisa concentra-se nas relações entre Literatura e História. [Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]].

Lucia Wataghin – Licenciada pela Universidade de Gênova, mestre em Língua e Literatura Italiana e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, onde ensina literatura italiana. Dedica-se ao estudo da literatura italiana e das relações literárias e culturais entre Brasil e Itália, com incidência sobre vários períodos literários e vários autores. [Universidade de São Paulo, [email protected]].

Page 245: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

244 || Sobre os autores

Maria Amelia Dionisio – Graduada em Letras pela UNESP-Assis, atualmente é mestranda no Programa de Pós-graduação em Literatura pela UFSC. Em seu projeto trabalha com as obras do escritor italiano Leonardo Sciascia, buscando a intrínseca relação entre a literatura e a história em seus escritos. [Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]].

Maria Teresa Arrigoni – Mestre em Letras (Língua e Literatura Italiana) pela Universidade de São Paulo (1987) e Doutorado em Lingüística Aplicada – Área de Tradução pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Atualmente é professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Italiana, envolvendo principalmente os seguintes temas: Dante Alighieri, Divina Comédia, Literatura Italiana, Teopoética e Tradução. [Universidade

Federal de Santa Catarina – NEIITA, [email protected]].

patricia Peterle – Doutorado em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-Doutorado em História, em andamento, pela UNESP-Assis. Professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras e dos Programas de Pós-Graduação em Literatura e Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência nas áreas de Literatura Comparada e Literatura Italiana, atuando principalmente nos seguintes temas: Século XX, Literatura e História, Literatura e Censura, Literatura Comparada. É Vice-Coordenadora do GT de Literatura Comparada da ANPOLL (2011-2012). [Universidade Federal de

Santa Catarina, [email protected]].

Prisca Agustoni de Almeida Pereira – Professora de literatura italiana na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde atua também no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. É doutora pela PUC-Minas, pós-doutora pela UFMG, atualmente realiza pesquisas no âmbito da “Literatura em tempos de exceção”. É poeta e tradutora, tendo publicado várias coletâneas de poemas no Brasil e na Itália. Integra a Compagnia delle poete (www.compagniadellepoete.com). [Universidade

Federal de Juiz de Fora, [email protected]].

Roberta Regina Cristiane Belletti – Mestre em Letras na área de Língua, Literatura e Cultura Italianas, pela Universidade de São Paulo (2010), tendo estudado a poesia de Giacomo Leopardi e suas traduções brasileiras. Continua seus estudos em atividades de participação em Projetos de Pesquisa, principalmente na área de italianística, com um olhar voltado para o diálogo existente com o sistema literário brasileiro. Atualmente é professora concursada de Língua Portuguesa do Governo do Estado de São

Page 246: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Sobre os autores || 245

Paulo e professora de Língua Italiana em escolas de idiomas. [Universidade

de São Paulo, [email protected]].

Roberto Francavilla – Professor Associado de Literaturas portuguesa e brasileira na Facoltà di Lettere e Filosofi a dell’Università de Siena, onde leciona no Programa de Doutorado em Literaturas Comparadas e no Master em Tradução e Editing do texto. Dedica-se também às literaturas africanas lusófonas. É tradutor e crítico literário. [Università degli Studi di

Siena, [email protected]; Tradução de Patricia Peterle].

Sara Debenedetti – Formada em Filosofi a pela Universidade de Turim (Itália), mestre em Língua e Literatura Italiana e doutora em Teoria Literária pela USP, è professora de Língua e Literatura Italiana na Escola Italiana Eugenio Montale em São Paulo. Sua linha de pesquisa verte sobre as romancistas italianas. Atualmente pesquisadora junto ao grupo de trabalho sobre Literatura italiana traduzida no Brasil da UFSC e USP. [Universidade de São Paulo/Eugenio Montale, [email protected]]

Tadeu da Silva Macedo – Mestrando em língua, literatura e cultura italianas da USP, desenvolve pesquisa acerca da mulher na lírica de Dante projeto fi nanciado pela CAPES, atua como membro dos grupos de pesquisa sobre Dante e a Literatura Italiana Traduzida para o Sistema Literário Nacional. [Universidade de São Paulo, [email protected]].

Page 247: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa

Este livro foi editorado com a fonte Minion Pro, corpo 8-17. Miolo em papel pólen soft 80g; capa em cartão supremo 250g. Impresso na Gráfica e Editora Copiart em sistema de impressão offset.

Page 248: A literatura italiana no Brasil e a literatura brasileira ... · CDD (21. ed.) 418.02 Impresso no Brasil. Sumário ... Da outra margem: ... sinfonia de vozes brasileiras numa