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ÍNDICE Editorial 5 Dossiê – Carlo Goldoni, 1707-2007 7 Giorgio Strehler, Goldoni e il teatro/Goldoni e o teatro 9 José Peixoto, Certezas, incertezas e contradições. Um percurso na escrita de Carlo Goldoni 39 Maria João Brilhante, Goldoni e Inácio de Oliveira Bernardes: um encontro de artistas 49 Maria João Almeida, “Dei fogli miei l’Europa tutta è piena”: o caso português 63 Rui Pina Coelho, A dramaturgia goldoniana em Portugal no século XX: o mundo e o teatro 95 Artigos Lino Mioni, Contributos para a compreensão da evolução e dos valores das formas de cortesia voi e Vostra Signoria até ao século XVI 117 Marcello Sacco, Algumas traduções italianas de três sonetos camonianos 135 Nunziatella Alessandrini, A alma italiana no coração de Lisboa: a Igreja de Nossa Senhora do Loreto 163 Manuel Cadafaz de Matos, O Visitador das Índias Orientais, Pe. Alexandre Valignano, 1539-1606 185 Teresa Ferreira, Arquitectos italianos em Portugal. O século XIX e o caso de Alfredo D’Andrade e Sebastiano G. Locati 229

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ÍNDICE

Editorial 5

Dossiê–CarloGoldoni,1707-2007 7

GiorgioStrehler,Goldoni e il teatro/Goldoni e o teatro 9JoséPeixoto,Certezas, incertezas e contradições. Um percursona escrita de Carlo Goldoni 39MariaJoãoBrilhante,Goldoni e Inácio de Oliveira Bernardes:um encontro de artistas 49MariaJoãoAlmeida,“Dei fogli miei l’Europa tutta è piena”:o caso português 63RuiPinaCoelho,A dramaturgia goldoniana em Portugalno século XX: o mundo e o teatro 95

ArtigosLinoMioni,Contributos para a compreensão da evolução e dos valoresdas formas de cortesiavoie VostraSignoriaaté ao século XVI 117MarcelloSacco,Algumas traduções italianas de três sonetoscamonianos 135NunziatellaAlessandrini,A alma italiana no coração de Lisboa:a Igreja de Nossa Senhora do Loreto 163ManuelCadafazdeMatos,O Visitador das Índias Orientais,Pe. Alexandre Valignano, 1539-1606 185TeresaFerreira,Arquitectos italianos em Portugal. O século XIXe o caso de Alfredo D’Andrade e Sebastiano G. Locati 229

CristianoSpila,Uma tessela dantesca no poema Soldatide Ungaretti 245SaraPaleri,Eugénio de Andrade e l’Italia 257CleliaBettini,Ocontodoschinesese i personaggi come“figure di funzione”. Una categoria vittoriniana nell’operadi José Cardoso Pires 277RosariadeMarco,Della guerra e della malattia, la memorialetteraria contro l’attenuazione della coscienza 305GianlucaMiraglia, “É um dos pontos negros da biografiaque não tive”: reflexões acerca de um texto autobiográficode Fernando Pessoa 325JoséManueldeVasconcelos,Tradução e restituição 341LauraMelaniaRocchi,Presenza culturale italiana in Portogallonei primi decenni del XX secolo 357ManuelG.Simões,A difusão do conto português em Itália:o ano da graça de 2006 379

Temas e debatesHistóriadaliteraturaitaliana:vias,confins 399RobertoGigliucci,A realidade da literatura europeia 401RitaMarnoto,Literatura italiana: confrontações 413GiulioFerronirespondea3perguntas 427ArmandoGniscirespondea3perguntas 433MarcoSantagata,Quadros da literatura italiana. Uma albamelancólica 437

Obra abertaAntónioGedeão,Poema para Galileu 449

RecensõesMarcoPolo,Viagens,trad.deAnaOsóriodeCastro(ManuelG.Simões) 459GiambattistaVico,Ciência nova,trad.deJorgeVazdeCarvalho(RitaMarnoto) 462MariaJosédeLancastre,Con un sogno nel bagaglio(AlbertoSismondini) 463

JoséAntónioGonçalves,Rente aos olhos/Rasente gli occhi,trad.deSilvanaUrzinieCarlosMartins(ErnestoRodrigues) 466MarcoSantagataetalii,Il filo rosso(RitaMarnoto) 468

ActualidadeEditou-se...(Paolad’Agostino) 475Trasublimeeridicolo.L’ItaliadiNicolaLagioia(Paolad’Agostino) 481BrevedialogoconMaurizioCucchisuil male è nelle cose(GianlucaMiraglia) 489Attivitàdell’IstitutoItalianodiCulturadiLisbona2007 493

A pochi mesi dalla mia nomina a Direttore dell’Istituto Italiano di Cultura di Lisbona saluto con vivo compiacimento l’uscita del nuovo numero di EstudosItalianosemPortugal, il terzo – dopo il numero 0 nel 2005 ed il numero 1 nel 2006 – dalla ripresa della pubblicazione di questa storica rivista.

Gli articoli contenuti in questo volume, che si avvale del contributo di italianisti portoghesi e di lusitanisti italiani, affrontano temi diversi, dalla linguistica alla letteratura, dalla storia all’architettura. Una sezione è riservata alle rubriche: dibattiti, interviste, recensioni, attualità. E, nella prima parte della rivista, uno speciale dossierdedicato a Carlo Goldoni nel trecentenario della nascita illustra il ruolo del commediografo italiano nella storia del teatro e la sua influenza sulla drammaturgia portoghese. Di particolare interesse il testo inedito di Giorgio Strehler che introduce ildossier.

Nel formulare l’auspicio che anche questo numero di EstudosItalianosemPortugal possa essere accolto con favore da quanti – in Portogallo e in Italia – intendono analizzare i rapporti tra le nostre due culture ed approfondirne i legami, colgo l’occasione per menzionare coloro che hanno reso possibile la sua realizzazione, ed in particolare la Prof.ssa Rita Marnoto, Docente di Letteratura Italiana presso la Facoltà di Lettere dell’Università di Coimbra, e con lei tutti i membri del Comitato Scientifico e del Comitato Editoriale. A ciascuno di essi desidero esprimere la mia profonda stima, e la mia gratitudine.

Giovanna SchepisiDirettoredell’IstitutoItalianodiCulturadiLisbona

poucos meses decorridos sobre a minha nomeação como Directora do Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, saudo com vivo agrado a publicação do novo número de EstudosItalianosemPortugal, o terceiro – depois do número 0, em 2005, e do número 1, em 2006 – da nova série desta histórica revista.

Os artigos reunidos neste volume, que conta com a colaboração de italianistas portugueses e de lusitanistas italianos, tratam temas diversificados, da linguística à literatura, da história à arquitectura. São reservadas secções às rubricas: debates, entrevistas, recensões, actualidade. E, na primeira parte da revista, um dossiê especial dedicado a Carlo Goldoni no terceiro centenário do seu nascimento ilustra o lugar do comediógrafo italiano na história do teatro, bem como a sua influência sobre a dramaturgia portuguesa. De particular interesse, o texto inédito de Giorgio Strehler que abre o dossiê.

Fazendo votos de que também este número de EstudosItalia-nosemPortugal seja favoravelmente acolhido por quantos – em Portugal e em Itália – se interessam pela análise das relações entre as nossas duas culturas e pelo aprofundamento dos elos que as ligam, aproveito a oportunidade para mencionar todos aqueles que torna-ram possível a sua realização, em particular a Prof. Rita Marnoto, docente de Literatura Italiana na Faculdade de Letras da Univer-sidade de Coimbra, e, com ela, os membros do Conselho Científico e do Conselho Redactorial. A todos desejo exprimir a minha pro-funda estima e a minha gratidão.

Giovanna SchepisiDirectoradoInstitutoItalianodeCulturadeLisboa

TEMASEDEBATES

HISTÓRIADALITERATURAITALIANA:VIAS,CONFINS

Com as grandes transformações do horizonte cultural que têm vindo a ocorrer nos últimos tempos, recrudesceu o interesse pelo debate em torno da história da literatura. As mobilidades, o alastramento de novas formas de comunicação, a reorganização das fronteiras políticas de muitas zonas do globo, a premência das relações de alteridade e a aceleração dos contactos entre a Europa, a América e o resto do mundo trouxeram para a ordem do dia a necessidade de repensar a história da literatura. Em causa, está não só uma renovada reflexão acerca do sentido e da função da literatura, como também das mo-dalidades da sua historicização, da delimitação do seu objecto e das relações que mantém com outros campos da arte e do saber.

Se a história da literatura italiana é espaço privilegiado de pro-jecção de todas essas modificações, a crítica italiana tem vindo a conferir particular atenção ao debate em torno do tema, ao qual é dedicado este dossiê da revista EstudosItalianosemPortugal.

Aos artigos de Roberto Gigliucci e de Rita Marnoto, seguem-se duas entrevistas que auscultam a opinião de Giulio Ferroni e de Armando Gnisci. A terminar, Marco Santagata dá a conhecer, em pré-publicação, um capítulo do seu próximo livro sobre literatura italiana.

RitaMarnoto(organizaçãoetradução)

AREALIDADEDALITERATURAEUROPEIA

Roberto Gigliucci*

“Maifatticiostano”G. Mazzini

Sobre identidade nacional,tambémaliteraturatemumapalavraadizer.Etemvindoadizê-la,aolongodosséculos,ora demododesesperado, ora confiante, ora turbulento,desdeaépocacomunalatéàdaunificaçãoeatéàquelamoder-nidade sanguinosado séculoXX,queo recente livrodeAlainBadiou,Il secolo 1,umlivrodefazergelar,põeàfrentedosnossosolhos.Aliás,sobreidentidadenacional,emâm-bitohistórico-literário,nãofaltabibliografiarecente.Épre-cisamentesobreaItáliados letrados,aquelaItáliaquefoisonhadaeparcialmenteedificadapelosletrados,obeloensaiodeStefanoJossaparaoqualremetemos,L’Italia letteraria 2.

PartimosdaspremissasdolivrodeJossaparareflectirsobreanecessidade,ounão,deinsistirsobreasidentidadesnacio-nais,quasecomosefossemformasa priori,modelosquenãosepodemmudar.Jossa,nasprimeiraspáginasdovolume,escreve:“laletteraturaètrasformazione,dialogo,continuità

* RobertoGigliucciéInvestigadordeliteraturaitaliananaUniversidadedeRoma,LaSapienza.Dedica-seaoestudodalíricadoRenascimentoedoBar-roco,aoséculoXX,aoexpressionismoeàideologia.Trabalhousobreopetrar-quismo,noplanofilológicoeinterpretativo,TorquatoTassoeGiovanBattistaPigna.EditoucriticamentePetrarcaeLodovicoDomenichi.AcabadeeditaroensaioRealismo metafisico e Montale.

1 Milano,Feltrinelli,2006.2 Bologna,ilMulino,2006.

Est.Ital.Port.,n.s.,2,2007:401-412

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econfronto,creazionedimondoedomandasulmondo”.Poderáparecerparadoxalcitarumensaiosobreaidentidadenacionalitalianacomoconviteaumasuperaçãodessamesmaidentidade,apartirdoplanodaliteratura(leia-se,daarteemgeral).Masnãoéparadoxal,pelocontrário,recomeçarpre-cisamenteapartirdaliteratura,dassuasvivências,dosseusestatutosedasuadidáctica,paracompreenderseexisteumregimepossíveldeliberdadeeportantodeconstruçõesiden-titáriasmaisvastas,múltiplasecompresentes.EraAuerbachquemrecordava,numensaiode1952,definidoporClaudioGuillén3como“saggiamentemalinconico”,que“JedenfallsaberistunserephilologischeHeimatdieErde:dieNationkannesnichtmehrsein”4.Anossapátriafilológicaéaterra.“Laletteratura”,acrescentaGuillén,“cisituarepentinamentenellasopranazionalità.Questo è l’ambito reale, quello che c’è, che esiste, per il lettore, o l’ascoltatore e lo spettatore di altre arti”5.

Trata-sedeverificarseadefiniçãohistórico-formaldeumfenómenoitalianosefazmaiscompletaeprecisaquandoéprojectadanocontextoeuropeu.DaItáliaàEuropaevice--versa,emsíntese.Masentão,porquenãofazerhistórialite-ráriaeuropeiadirectamente?Chegadosaesteponto,pareceser cadavezmaisurgente6.Eos factos, comoescreviao

3 ClaudioGuillén,L’uno e il molteplice. Introduzione alla letteratura comparata[1985],Bologna,ilMulino,1992,pp.465ss.

4 “Emtodoocaso,porém,anossapátriafilológicaéaterra:anaçãodeixoudeopoderser”.ErichAuerbach,Philologie der Weltliteratur. Filologia della lette-ratura mondiale,CastelMaggiore(Bo),BookEditore,2006.

5 Guillén,L’uno e il molteplice,pp.466ss.6 Exemplosnestesentido,sobretudofranceses,sãocitadosporFranca

Sinopoli,Il mito della letteratura europea,Roma,Meltemi,1999,p.61epassim,referênciabibliográficafundamental.Algumasindicaçõesrecen-tesedecaráctersumáriosobrearelaçãoentreaItáliaeaEuropaliterá-ria: La cultura letteraria italiana e l’identità europea, Roma, AccademiaNazionaledeiLincei,2001;Letteratura italiana, letterature europee,acuradiGuidoBaldassarrieSilvanaTamiozzo,Roma,Bulzoni,2004;Il Medi-terraneo. Una rete interletteraria, a cura diDionýzDurišin eArmando

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jovemMazzini7,sãoobstáculo,cadavezmais,aumnacio-nalismoliterárioradical.OsfactossãoarealidadedaEuropa,tambémemâmbitoliterário.

Exemplo:opetrarquismo.Fenómenoitalianoqueparecemonolíticoé,bempelocontrário,fenómenoplural.Aaná-liseamplia-se,pois,aocontextoeuropeu,massemlimita-ções: as várias experiências, portuguesa, croata, polaca eassimsucessivamente,integram-seperfeitamentenessaideiae são esclarecedoras. Assim, assinala-se a experiência docongresso deVarsávia sobre Petrarca e l’unità della cultura europea,organizadoporPiotrSalwa(cujasactasacabamdeserpublicadas)8,mastambém,doladoopostodoConti-nente,osimpósio,Petrarca 700 anosrealizadoemCoimbraecoordenadoporRitaMarnoto9:estaéaEuropadopetrar-quismo, ou seja, da poesia, desde os países de Leste aoAtlântico,eéestaaliteraturaeuropeiaquedevemosexplo-rarparafazerhistóriadaliteraturanacional.Nofim,verifi-caremosqueacomplexidadedopetrarquismoitaliano,quasesurpreendente, é na realidade perfeitamente coerente aoníveleuropeumultinacional.

DesdeosvolumesdeAntèroMeozzi10acercadopetrar-quismoeuropeu,tãodoutosquantoirritantes,atéàantolo-giaBURdeAnselmiedosseuscolaboradores11,correramcercadesetentaanos,enãomeparecequeemItáliasetenha

Gnisci,Roma,Bulzoni,2000;Perché la letteratura?,acuradiRaffaeleMorabito, Manziana, Vecchiarelli, 2006; Italia e Europa: dalla cultura nazionale all’interculturalismo, Firenze, Cesati, 2006, e, em particular,FrancescoOrlando,L’altro che è in noi. Arte e nazionalità,Torino,BollatiBoringhieri,1996.

7 D’una letteratura europea,1829,apudSinopoli,Il mito della letteratura europea,pp.93ss.(p.97).

8 Petrarca e l’unità della cultura europea,Warszawa,Semper,2005.9 Petrarca 700 anos,Coimbra,InstitutodeEstudosItalianosdaFLUC,2005.10 Vd.,porexemplo,Il petrarchismo europeo (Secolo XVI),Pisa,Vallerini,1934.11 Lirici europei del Cinquecento,Milano,Rizzoli,2004.

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produzidoumabibliografiafortesobreopetrarquismoeuro-peu.OstrabalhosdeMeozziencontravam-seterrivelmenteviciadospelonacionalismofascistadeumautorquepro-curava,portodaaEuropa,sinaistriunfalistasdeumitaliane-simo,dainfluênciacivilizadoradaculturaitaliana.Nãoobs-tante, eram tesouros de informação e de erudição tantasvezes inteligentes, sendoquetivemosdeesperardécadas,muitopossivelmente,paradispormosdemateriaiscomple-xosebemdistribuídos,atéchegarmosaorecentecongressodeBolonhasobreopetrarquismo,Il Petrarchismo: un modello di poesia per l’Europa,queprivilegiaaperspectivaeuropeia,ecujasactasacabamdeserpublicadas12.Comoquerqueseja,diga-sequeoestudodopetrarquismoeuropeufazbemàinteligibilidadedacasa mãe,daItália.Verifica-setradicio-nalmentenaEuropa,porexemplo,umasériededesviosàortodoxiapetrarquista,comoseja:ahibridezentre imitarPetrarcaeimitarosclássicosantigos;umamaiorsensualidadedarelaçãoamorosa;avariantedoamormatrimonial;afiltra-gemdePetrarcaatravésdospetrarquistasmodernos,primeirooscortesãosdosséculosXVeXVI,depois,eventualmente,osqueseencontramnasantologiasderime di diversinase-gundametadedoséculoXVI.Poisbem,regressandoentãoaomare magnumdopetrarquismoitaliano,encontramos,maisoumenos,todosesteselementosnumpetrarquismoverda-deiramenteplural13,ondeomodeloabsolutodeortodoxia,queéodeBembo,nempelassuasprópriasRime érespei-tado.Redescobrimos,assim,aimportânciadeterminantedasantologiasdemeadosdoséculo(umadasgrandesnovidades

12 l Petrarchismo. Un modello di poesia per l’Europa,acuradiFlorianaCalitti,LoredanaChines,RobertoGigliucci,Roma,Bulzoni,2006,2vol.

13 Reenvio,porquestõesdebrevidade,paraosmeuscontributosmaisrecen-tes:“Petrarquismopluralepetrarquismodekoine”,Petrarca 700 anos,pp.121--129(emitaliano,“Appuntisulpetrarchismoplurale”,Italianistica,34,2,2005,pp.71-75);“Perspectivasesucessosdosestudossobreopetrarquismo”,Estudos Italianos em Portugal,n.s.,1,2006,pp.113-127.

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dosestudosmaisrecentes,emboraprecedida,écerto,pelaspesquisas pioneiras de Quondam)14, aprofundamos a im-portânciadasrimasuxóriasdeRota,Giustinian,CoppettaBeccutietc.;seguimosumfilãodepetrarquismosensual,de basiis,que,partindodeAriosto,atravessaoséculoXVIcomMuzzarelli (I dolci basci replicati spesso), emparticular comPigna(otour de forcedecomposiçõessobrebeijosnomanus-critoCorsini)15,echegaaMarino.Sobretudo,e istoéodadomaisrelevante,descobre-sequenopetrarquismoplu-ralitalianoahibridaçãodePetrarcacomosclássicoslatinosegregosépatrimóniodeumalinhafortíssima,àsvezesnumaatitudeabertamentepolémica(BrocardoeBernardoTassoquesecolocasoboseumagistério),masquetambémpodeser uma praxe imitativa natural, envolvendo o próprioBemboe,portrásdele,oprópriofundadordocódigo,Pe-trarca:eisentãoarefinadapoesiadeumAlamanni,deumVarchi,deumCaro,deumRaineri,deumMolza,oudeumminorealtamenteemblemáticocomoDomenichi.AtéchegaraogéniodeTorquatoTasso,emcujasRimehátudoaquiloque,naEuropadaquelesanosedosqueselheseguemimediatamente,vaisendoafinado.

Esepensarmosnochamadomarinismoemsentidoeuro-peu,tambémbatecerto?Semdúvida.Compreendererein-tegraratravésdeumaavaliaçãosériaalíricabarrocaitalianasósepodefazeràluzdoBarrocoeuropeu.Descobre-sequetalveznãosejamtantoovazioeaimoralidadeaformaremaidentidadedapoesiabarroca,comoanovarelaçãocomarealidadeeportantoaparticipaçãonagenealogiadomoderno.Paradoxalmente,ostestemunhosdainteracçãoentreomari-

14 AmedeoQuondam,Petrarchismo mediato. Per una critica della forma “antolo-gia”,Roma,Bulzoni,1974.

15 Vd.,dequemecreve,Giù verso l’alto. Luoghi e dintorni tassiani,Manziana,Vecchiarelli,2004,pp.154ss.Quantoainformaçõesbibliográficassobreospoe-tascitados,reenvioparaLa lirica rinascimentale,acuradiR.Gigliucci,introduzionedi Jacqueline Risset, Roma, Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 2000.

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nismoitalianoeasexperiênciasfeitasnaspontasdaEuropapodemserelucidativasparaacompreensãodosignificadoe dos limites do modelo que é oferecido pelo poeta doAdone.PensotambémnaPolónia:aolerosestudosdeLuigiMarinellisobrealíricabarrocapolaca16ouolivrodeAlinaNowicka-JezowasobreMorsztyn e Marino: un dialogo poetico dell’Europa barocca17ouaindaosagazlivrinhodeJonSnydersobreaEstetica del Barocco18naEuropa,quenosrecorda,umavezmais,aprimaziadojesuítapolacoKazimierskSarbiewskiquanto à teoria setecentista do conceptismo, ao ler estesensaiosetantosoutros,dizia,aprendem-secoisasquenãosãodesomenosacercadasvergonhasdanossacasa.Eaver-gonhapassa19...

Alémdisso,comoépossívelcontinuaraleranossapoe-siabarrocasemteremconsideraçãoonascimentodeumapoesiamodernametafísica,quedoreinodosemblemasabso-lutosregressaàempíriaparadepoisatranscenderdemodoconceptualousublimante,apesardecruzarosseusaspectosacidentaismaisrugososousingulares20?Comoépossívelnãover que o paradoxal (mas não muito) realismo barroco,incunábulodomoderno,dizrespeitonãosóaCaravaggioeBacon,aShakespeareeCervantes,aDonneeLopedeVega,aThéophiledeViaueQuevedoemaistardeaLockeeaJohannChristianGünther,eassimpordiante,masatodaumacomplexasequênciadevozes,situadas,paradizerdois

16 Citoapenasum,fundamental:G.Marino/Anonimo,La Novelletta / Bajka. La “Psiche” polacca. Migrazioni del IV canto dell’ “Adone”,acuradiLuigiMari-nelli,Parma,ArchivioBarocco,1992.

17 Roma,ilCalamo,2001.18 Bologna,ilMulino,2005.19 ComoensinaAmedeoQuondam,“IlBaroccoelaLetteratura.Genealo-

giedelmitodelladecadenzaitaliana”,I capricci di Proteo. Percorsi e linguaggi del Barocco,Roma,Salerno,2002,pp.111-175.

20 Seja-meperdoadoumulteriorauto-reenvio,Realismo metafisico e Montale,Roma,EditoriRiuniti,2007.

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nomes,entreCesareRinaldieCirodiPers.Destafeita,aodípticonacionalMarino-Chiabrera,osdoisfogosdoBar-rocoemergente,podemosjuntarodeMarino-Góngoraparacompreenderumcontrasteexemplarnograndepalcoeuro-peu:porumlado,aexperiênciapoéticaoceânica,quesegueaspegadasdeNonnos,Ovídioefundadenovoomodelototalizante-digressivo,ancoradonadescobertadanaturezacomomaravilhaemito;poroutrolado,opoemadacrasemetafórica,agerminação,historicamenteparadigmática,dapoesiadacontracçãoabsoluta,aconcentraçãoeodecorrenteobscurisme,únicasumptuosaedesesperadaformadeinter-pretaçãodoreal(porexemplo,umafestacampestrenasSole-dades).Deresto,tambémquantoaoséculoprecedentenãoconsigonãoacreditarquealeituraparaleladeTassoedeCamõesnãosejafundamentalparapercebermelhoraobradeambos,queteveporfrutoosdoismaiorespoemasépicosdoRenascimento.EassimaimportânciaeuropeiadaStrage degli innocentideMarinoéumdadocujadocumentaçãonãopodedeixardeincidirsobreovalordaqueleprodutoita-liano.Masnãoseráocasoderecordar,aquemmelê,coisasbemsabidas.Sóumaulteriorreflexão:sefoisobonomedeGôngoraquesereuniuageraçãode27,queincluiosmaio-respoetasespanhóisdoséculoXX,emItálianenhumpoetalíricodoséculoXXpensoutomarcomoreferênciaMarinoeosmarinistas.Maisdoqueisso,talvezpudessepensarnessemesmoGôngora,quemsabecruzadocomMallarmé,comoparaumcertoUngaretti,oucomametafísicainglesafiltradaporElioteassimsucessivamente.Quesignificaisto,histo-ricamente?Sóatravésdeumahistoriografiasinergéticanacio-naleinternacionalpoderíamosresponder.

Maspensemosnotragicómico,noseuaspectotécnicoenasuacomplexidadecategorial.Trata-sedeumoutrosinal,entreosséculosXVIeXVII,donascimentodeumamoder-nidaderica,ambíguaecontraditória,fontedeespantoedes-concerto,alémdetécnicaparasatisfazerosgostosdopúblico.

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PoucosanosseparamoCompendiodeGuarinidomanifestodeLopedeVega,L’arte nuevo de hacer comedias en este tiempo,cujasmotivaçõesecujasnovidadessãoemboapartecomuns.Séculosdividemosdoistextos,queacabaramdeserevoca-dos,doromancedeManzoniedoCromwelldeVictorHugo,maspelomeioháahistóriaeuropeiadotragicómicoquechega,quasediriateleologicamente(passeaheresia),aoNove-centodePirandelloeaoModernismoocidental.

Aindamais.Ocasodeumpoetacujarecepção,noestran-geiro,nãocaptouasuagrandeza,Pascoli,podeseremble-mático,aomostrarcomoaavaliaçãohistórico-poéticadeumautorémaismaduraquandoabertaaoplanointerna-cional.ÉcolocandoPascolinoquadrodochamadodeca-dentismoqueseafereaoriginalidadedoseucontributo,àdiferençadosonorosoD’Annunzio.AquelapoesialatinaeconvivialdePascolié,emparticular,vertiginosamenteeuro-peia,porquantoofereceumaformadeclassicismomediânico,fantasmáticoeassombradamentefúnebre,acolocar,entreasmaisavançadasecomplexas,naórbitadaquelegostodecadentepelo antigo, revivido em regimede inquietude estrutural.

Outrosexemplospoderiamserapresentados.Omaiscla-morosoéodoRomantismo,acercadoqualPinoFasanonosensinoutudo21eacujamemóriadedicoestemeumodes-tíssimocontributo.TambémsepodeevocarosignificadoeuropeudasobraslatinasdePetrarcaedeBoccaccio,quebemfazempensarquemnãoconsidereoDe remediisouoDe casibusobras-primaseparadigmasdeumaculturaedeumaliteraturadelongaduraçãoedelongatradição.ODe casibus representa, em especial, um modelo de tragicidadeque se expande como uma mancha de ólio, até chegar–enãoimportaaocasoseporinfluênciadirecta,indirectaou indefinível–aumaobra-prima comoLes tragiques deAgrippaD’Aubigné.

21 Vd.ultimamente,L’Europa romantica,Firenze,LeMonnier,2004.

História da literatura italiana: vias, confins 409

EparaquemestudaoséculoXX,estepontodevistaémesmoumaobrigação.Nofundo,CurtiuseAuerbachensi-naram-nosmaisdoqueCroce,note-se.Querodizer,ensina-ram-nosanós,italianistas.Osriscosdeumenquadramentoclássicoauto-referencial,imperialísticoecolonialístico,forampostosemrelevo,obviamente,pelaautoconsciênciacompa-ratísticamoderna,veja-sesó,apartirdeWellek22.Todavia,paraosséculosdaeuro-autonomia,ouseja,atéaoséculoXVIIIgrosso modo,nãoexisteumperigodeeurocentrismoideoló-gicoquedesorienteapesquisa.Oeurocentrismosurgeedesenvolve-se,perniciosamente,quandocomeçaadecairoeuro-isolamento.

Alémdisso,numacomunidadeliteráriacomoaEuropaquevaidaIdadeMédiaàModernidadeosdadosintracul-turaisgenéticossãosusceptíveisdeseremsimplesmentedefi-nidos como intertextualidade e, por conseguinte, praxequotidianaeobrigatóriadosestudosliteráriostambémnacio-nais,aopassoqueosdadosintraculturaispoligenéticosserãoigualmenterelevantesnumquadrodeinterdiscursividadeedecapacidadedacomunidadeliteráriaeuropeia.

Sesepretendeliquidaraitalianísticanacomparatística?Deformaalguma,emuitomenoshoje,queacomparatísticasevoltasobretudoparapesquisasinterculturais,conformeoveioailustrarmagistralmente,jádesde1989,EarlMiner23.Aliás,averdadeiracomparaçãosósurte,provavelmente,numregimedepoligéneseintercultural(noeixoeste/oestedomundo,porexemplo),deformaaevidenciarconstantesediferençasantropológico-literárias.Deoutraforma,oqueseteméintertextualidade,equeessaintertextualidadeseja

22 Vd.ArmandoGnisci,FrancaSinopoli,Manuale storico di letteratura compa-rata,Roma,Meltemi,1997,pp.93ss.Inúmerosseriamosreenviosacontribu-tosdeArmandoGniscisobreinterculturalidadeecomparatísticaposcolonial;evoco,maisrecentemente,obelolivro,Mondializzare la mente. Via della Decolo-nizzazione europea n. 3,Isernia,CosmoIannone,2006.

23 Gnisci-Sinopoli,Manuale storico di letteratura comparata,pp.145ss.

410 Estudos Italianos em Portugal

nacionalouinternacional,homolinguísticaouinterlinguís-tica,nãomudamuito.

Alíngua,eisumoutroproblema.Pede-seaoitalianistaqueconheçatodasaslínguasfaladasdaEuropa?Obviamentequenão,seriaumatolice.Aliteraturatemestagrandeprer-rogativa,adepossuir,paradoxalmente,uma língua única, a da tradução.AfelizindicaçãoédeFrancaSinopoli,aquemagradeço.Oestudohistóricodatraduçãoé,naactualidade,parteintegrantedahistoriografialiterária.Alémdisso,nósvivemosdeliteratura,nãodeitalianística.Todosnós,tantoDantecomoMontale,comoeuquefaloparavós.TodoslemosTolstoiemitaliano,Gombrowicz,SchulzetambémShakespeareeMilton,etalvezTácitoeRabelais.Releia-seMann,oensaiode1925sobreocosmopolitismo.Excep-cional sinceridadedeumgrandehomem:“nonsonopernullauncosmopolita,sonotutt’altrocheuncittadinodelmondoepropriol’oppostodiunpoliglotta.[…]Ilmioinglese,franceseeitalianosonosenz’altroassaimiseri[…]intuttalamiavitasonostatounbeneficiariocostantedellefatichedeitraduttori.[…]Quantidinoi,francesi,inglesiotedes-chi,sonoingradodigustarenell’originaleanchesoltantoilDon Chisciotte?[…]lospiritocosmopolitaèqualcosadidiversodall’abilitàpoliglottaedaldilettantismomondano.Eallorachecos’è?Forsenient’altrochelospiritodellavitaedellatrasformazione”24.Comcerteza,falaumescritor,nãoumfilólogo.Masnós,filólogos,ocupamo-nosdeescritores,nãoé?

Comtudoisto,querer-se-áeliminaroestudoeoensinodalínguaoriginal?Nunca,nemporsombras.Trata-sedecompreenderqueossujeitosliterários,oshomens,sempreleramobrasemtraduçãoeportantoocircuitoeuropeutemumavivacidadeprópriatambémnestasuadimensão,aserestudadahistoricamente,semprecommaioratenção.Alite-

24 Sinopoli,Il mito della letteratura europea,pp.150ss.

História da literatura italiana: vias, confins 411

raturaéfeitapelosletrados.Eessaliteraturaénaturaliterinter-nacional,enquantoformadaapartirdetextosdetodasasnacionalidades.Defacto,Babeléumacondenação,nãoéumariqueza,comosóumsnobpodiadizer.SeBabeléumacondenação, enãouma riqueza, a literatura é tambémarespostaaBabel,inesgotável,talvezemdesesperodecausa,masumarespostaestrénuaeconstante,aolongodosséculos.Odramáticoproblemadamultiplicidadedaslínguasresolve-secomainvençãodastraduções.Nelassefundamenta,tantasvezes,umaliteraturanacional.Éassimqueseverificaquenaliteraturahámaisliberdadedoquenavidapolíticaoucivil, oumelhor, há uma antecipação das liberdades quedepoistomamformaoupelosmenosseprojectamnarea-lidadehistórica.Semesquecerqueadistinçãoliteratura/realidadeéfictícia:cadaumainteragecomaoutra,participanaoutra.

Convirádizer,commaisbrutalidade,queadisciplinadaitalianísticasehá-desalvardacrisesecaminharapassoslar-gosparaumaconsciencializaçãodanecessidadedeestudarosfenómenosliteráriositalianosàluzdeumaperspectivamaisampla,pelosmenoseuropeiaatéaosiníciosdaModer-nidade,eapartirdaímaisamplamentemundial(docolo-nialismoàglobalização).Nãoéumexagero,bempelocon-trário. Exagero, nomáximo, é falar-se de uma literaturaitaliana, deuma literatura francesa, inglesa, etc.Éóbvio,diria,queparaprepararediçõesdetextosénecessáriaumacompetêncialinguísticaecontextualcircunscritaeespecí-fica.Omesmoacontecequantoaoestudodefenómenospontuais,verticais,sincrónicos.Masparahistoriareinter-pretaraliteratura(ouseja,parafazertrabalhofilológico,emsentidoamplo)oconfimidentitárionacionaltorna-seumlimite,irrealemdomíniosartístico-literários.

Irreal,precisamente,irreal.Repito-o,anossaidentidadeliteráriaéfeitadeumaintersecçãodeleiturasabsolutamenteautónomasrelativamenteaumcânoneitalianístico.Quese

412 Estudos Italianos em Portugal

leiamemtraduçãoitalianaounão,ocertoéque,nonossouniversoliterárioindividualedepoiscolectivoShakespeareétãooumaisactivodoqueTasso,Baudelaire,tãooumaisactivodoqueLeopardi,etc.Portanto,aliteraturaitaliana,naformaçãoenaproduçãodeindivíduosecomunidades,constrói-senaintersecçãodetantasliteraturas,fundamen-talmente europeias e mediterrânicas, até ao século XIX,tambémultra-oceânicaseuniversais.

Onovoobjectointerculturaldacomparatísticapode-sedistinguir,comotal,daperspectivahistoriográfico-literáriaeuropeia,matériadeestudo,cadavezmais,deanalistasdasliteraturasnacionaiseuropeias.Comcertezaquenãoque-remosdarumavassouradanosdesviosintraculturaisdaquelacomparatísticamaispoliticamentecorrecta,maisintercultu-ral…Factoéquehouveumahistóriadaliteraturaeuropeiaenãoapodemosignorar.Alémdisso,fenómenosrecentesmostramcomoafisionomiapolítico-culturalforteeunitá-riadaEuropaéumbemparaoequilíbriomundial,paraamútuaatençãoeparaaintegração.UmaEuropaidentitáriaenãoisoladafazbemaummundointerconexoepacífico.Éclaro,umaEuropaquenãoarraste,belicosaefundamen-talisticamente,origenscristãsepseudovalorescomunitários.UmaEuropamodernasemnostalgiadopiordasuahistória,umaEuropadaliteratura,ouseja,daliberdade.

LITERATURAITALIANA:CONFRONTAÇÕES

Rita Marnoto*

1. A historicização da literatura e o seu ensino

As grandes questões com as quaisahistóriadaliteraturasetemvindoaconfrontar,nosúltimostempos,reflectem-sedemodomuitoprementenocampodoensino.Aformacomoéfeitaasuahistoricização,hoje,éparteactivaepri-mordialdaquelamemóriagregáriaqueconstróiatradiçãodeumaculturae,correlativamente,asuaidentidade.Ora,asinstituiçõesuniversitáriassãolugaresprivilegiadosdeinves-tigaçãoedereproduçãodosaber.Nestequadro,oensinodaliteraturaéumaáreabastantesensível,pornelasereflecti-rem,muitodirectamente,todasessastensõesmaisoumenoslatentes.Masmuitomaissensívelsetornaquandosetratade leccionarmatériasque integramoensinoda literaturaitaliananumâmbitomaisvasto,queenvolveasrelaçõesentrealiteraturaitalianaealiteraturaportuguesa,abrindo-seexpli-citamenteaoâmbitodaliteraturacomparada.

Nacharneiradasmaisrecentestransformações,costumasercolocadaaincidênciadaquelasformasdecomunicaçãomediáticaquecontribuempara a relegaçãodo literário aumasuperficialidadereducionista.Comadifusãodainter-

* RitaMarnotoéProfessoradeLiteraturaItaliana,deLiteraturaComparadaedeTraduçãonaFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeCoimbra.Tem-sevindoadedicaraoestudodediversasépocasedeváriosautores.

Est.Ital.Port.,n.s.,2,2007:413-426

414 Estudos Italianos em Portugal

net,criou-seumenormereservatóriodedadosquetantasvezeséconfundido,porém,comasoperaçõesdeumamemó-riaqueorganiza,filtraereelaboraainformação.Éapartirdaíquesedifundeaideiadeque,nummundoondetudoécultura,ésupérfluodesdobraressaditaespontaneidadenoensinoenaaprendizagemdashumanidades.Porsuavez,asuniversidades,aoseremconfrontadascomoesgotamentodamassificaçãoquantitativa,encontramarespostamaisfácilnatransposiçãoparaumamassificaçãoqualitativa.Estasitua-ção,muitocomplexa,afectaasinstituiçõesdeensinodetodaaEuropa,mastemvindoaterparticularesreflexosnaáreadashumanidades.Dosanfiteatrosrepletosdejovens,aleccio-naçãodoscursosdeLínguaseLiteraturaspassouparaluga-resesconsos,ondeseacomodaumpunhadodeestudantes.Imagine-seentãoaqueleprofessorqueéumaficionadodoliterário, defensor do saberfilológico e dasmetodologiascentradassobreotexto,aentrarnasaladeaulamunidodeummanualdeliteraturacompacto,organizadoporperíodos,movimentosegerações,comdatas,índicesdeobras,autoresedicionáriodetermosliterários:ovelhomanual,deins-trumentomediadorsusceptíveldesistematizarconteúdosedeestimularoseuaprofundamento,arriscatransformar-senumelementoqueperturbaacomunicaçãoentredocenteediscente.

Nocampodasrelaçõesinterculturais,essenódeproble-maspõeadescobertoalgumasdasmaisvivasquinasdonossotempo.Masasquestõescomeçamacolocar-seaindaantesdoperfildomanual:noacessoaomanual.Aliteraturaita-lianaéessencialparaumconhecimentosérioeprofundodaliteraturaportuguesaeoslusitanistasdasuniversidadesita-lianastêmvindoadargrandescontributosparaodesenvol-vimentodessaárea.Estãoemcurso,nestemomento,váriosprojectosdelançamento,emItália,demanuaisdeliteraturaportuguesaedeliteraturasdeexpressãoportuguesa.Porsuavez,umestudantequenãoconheçaoidiomaitaliano,ou

História da literatura italiana: vias, confins 415

atéqualquerpessoainteressadaemacederaumcompêndiodeliteraturaitalianaescritoemlínguaportuguesa,nãotêmessaoportunidade.EmPortugal,osmanuaisde literaturaitalianacontamcomcercademeioséculo,encontram-sedesactualizadoseestãoforadomercado.Paraumaperspec-tivageraldasrelaçõesentreasduasliteraturas,opequenovolumedeGiuseppeCarloRossi,La letteratura italiana e le letterature di lingua portoghese, emboahora traduzidoparaportuguês1,continuaàesperaderevisãoeactualização.Con-tudo,quematentarnarecenteLetteratura comparata deGar-dini2ficaráprofundamenteinsatisfeitocomoespaçoque,entreastantasliteraturasquedãolastroaovolume,éreser-vado às literaturas em línguaportuguesa.E aindamais oficaráaofolhearasmaisdemilpáginasdodécimosegundovolumedaStoria della letteratura italiana,intitulado La lette-ratura italiana fuori d’Italia 3.Aânsiadecolherdadosconcre-tossobreassuasrelaçõescomaliteraturaportuguesaemvãoesperarácorrespondência.

2. Termos em discussão

Ovivodebateemtornodolugarocupadopelaliteratura,nomundodehoje,temlevadoaque,emcadapaís,sejamseguidos determinados rumos específicos. Os termos dadiscussãoprendem-semaisdirectamentequercomassitua-çõesnoterreno,quercomoprópriopatrimóniocarreadopelasmodalidadesatravésdasquaisumaculturafoicons-truindoahistóriaeacríticadasualiteratura.Pelaacuidade

1 Torino,SocietàEditriceInternazionale,1967,trad.port.GiuseppeMea,A literatura italiana e as literaturas de língua portuguesa,Porto,Telos,1973.

2 NicolaGardini,Letteratura comparata. Metodi, periodi,generi,Milano,Mon-dadoriUniversità,2002[comreed.].

3 Storia della letteratura italiana,direttadaEnricoMalato, 12. La letteratura italiana fuori d’Italia,coordinatodaLucianoFormisano,Roma,Salerno,2002.

416 Estudos Italianos em Portugal

epelaamplidãodoquestionamentoenvolvido,quetomouforos de debate público, a discussão que se desenrolouemItáliacolocouatónicasobreaspectosessenciaisaestareflexão.

Esse estado de coisas foi emblematizado pelo livro deCesareSegre,Notizie della crisi. Dove va la critica letteraria? 4.Filólogo,críticoestruturalistaelinguistadereferência,Segreacompanhou todas as tendências críticas do Pós-Guerra.Acouta-as,atéaodomíniodateoriadarecepção,mostrando--se,porém,refractárioaosestudosculturaiseàslinhasdepesquisadelesdecorrentes.Masoseulivrosuscitoureacções,notecidointelectualitaliano,queodesconsolodoseuautorestaria longedeprever.Resistênciasevinculaçõesforam,porsi,umarespostaàcrise.Aoperguntar-sedequetipodecrisesetrata,sedofimdeumprojectoculturalqueseesva-ziou,sedeummomentotransitório,RemoCeseraniremeteparaumamudançadeparadigma,concluindoque“ilfattoèchenonsiamopiùnell’epocadellamodernità:siamoinun’epocasuccessiva,acuiabbiamodatoilnomedipostmo-dernità.Iparadigmiculturali,ireferentiideologici,imodellioperativi sono cambiati radicalmente. Siamo in un altromondo.Eancheperlacriticaletterarialecosesonoassaicambiate,esonoormaiassaipiùcomplicatediquantononvogliaammettereSegre”5.Aoapelar,justamente,aumaati-tudeintelectualquetenhaemlinhadecontaque“siamoinunaltromondo”,Ceseranitrazàcolaçãoumprincípiofun-damentaldaactividadecientífico-pedagógica.Seodimen-sionamentodaactualconjunturaasseguraovalorderealidadenecessárioaumapráticaproba,osentidoprojectualcarreiaaquelafaixadeambiçãosemaqualnãopodeserultrapassadoumcepticismoestéril.

4 Torino,Einaudi,1993[comreed.].5 Guida allo studio della letteratura,Roma,Bari,Laterza,1999[comreed.],

p.XVI.

História da literatura italiana: vias, confins 417

Esteconjuntodeasserçõesmostraatéquepontooensinodaliteraturaseencontraespartilhadoentreadefesadoseucampoinstitucionaleaadesãoanovospontosdevista.ÉporrazõesdessaordemqueGiulioFerroniadverte,nasendadeReadings, relativamente ao estrangulamento dos elos queligamuniversidadeecultura6.Asflutuaçõesprogramáticasdeumcânonesempreadefinir,aalargarearedefinirdemodo indiferenteporcadacomunidade interpretativade-sembocamnacriaçãodeumhorizonteautorreferencial,des-ligadodafunçãoantropológicaesocialdaliteratura:“sottoun’immagineillusoriadiaperturaculturale,didemocratizza-zionedeimodelli,dinegazionediogniautoritàprecostituita,sinascondelafinaleriduzionedituttociòchesiintendevaperculturaeletteraturaaqualcosadiirrelevante,dimargi-nale,di ‘locale’, senzapiùnessunapresacon lareale sferapubblica”7.Acrisedaesferapúblicaé tambémacrisedopúblicodasescolas,edoensinodaliteraturaemparticular.

3. O espaço da literatura comparada

Asconturbaçõesprópriasdoperíodoquehojesevivesão,emboaparte,engrandecidaspeloseucaráctertransitório,havendoatéquementendaqueseestejaaatravessarumdosmaisdelicadosmomentosdahistóriadapedagogia.Peloquedizrespeitoaocontextoportuguês,acresceo factodeosritmos de interpenetração entre moderno e posmodernoseremmuitodíspares,criandoumefeitodemanchadeleo-pardoquepesasobreumaorientaçãodeestratégias.Sódaconsciencialização,emsentidopositivo,desteconjuntodecircunstâncias,poderãosurtirrespostasàmargemdequalquervisãocatastróficaoupessimistaqueseja.Umalheamentoem

6 “Aldilàdelcanone”,I confini della critica,Napoli,Guida,2005,pp.37-48.7 Ib.,pp.40-41.

418 Estudos Italianos em Portugal

relaçãoàsgrandesmudançasemcursocontrariariaedesvir-tuariaaessênciadotrabalhopedagógico.Acomplacênciaperanteadissoluçãodoliterárioou,parautilizarumaexpres-sãoemvoga,perantea morte do literário,poriaemcausaafunçãoinstitucionalecívicadadocência.

Aoreconhecimentodo lugarquecabeao leitorouaopúblicodiscentenoprocessoeducativo,subjazanoçãodeacordocomaqualnãoháverdadeirosabernemverdadeiraexperiênciaàmargemdeumquestionamento.Nesseques-tionamento,ficaenvolvidaasituaçãocomunicativamedianteaqualotempopresenteseerigeemhorizonteapartirdoqualéprojectadaahistoricizaçãocríticadaliteraturadopas-sado.Comotal,essadimensãointeractivatrazparaprimeiroplanoadinâmicaentreperguntaeresposta,qualquerquesejaoâmbitodisciplinardadocência,fazendodotrabalhodocenteumahermenêuticainterdialogaleinterdisciplinar.Condivido inteiramente o parecer de Romano Luperiniquando,àcentralidadedodiálogoentretextoeleitor,acres-centaadodiálogoentreoleitor-intérprete,osoutrosleito-res-intérpretesdeumgrupoeentreasdiversasdisciplinas:“Nelcampodellostudiodellaletteratura,unusorigorosodellainterdisciplinaritànonètuttologia,maèilsuoesattoopposto:èl’impiegodidisciplinediversealfinedicapiremeglioodispiegaremegliountestoletterarioounfenomenoletterario(unmovimento,untema,unperiodostorico)”8.Oesclarecimentoeoaprofundamentodadensidadedotextoapartirdeprocessosdeintersecçãocomoutrossistemasquenãooliterárioproporcionaummaisapuradoconhecimentodeestruturassemântico-pragmáticaseformais,depreceitosnormativosedoinvestimentosimbólicodoimaginário,semperderdevistanãosódomíniosartísticoscomoasbelas--artesouocinema,mastambémarecenteexpansãodeoutras

8 “Canone occidentale, etica planetaria e trasformazione della figuradell’insegnanted’italiano”:Allegoria,n.s.,14,40-41,2002,p.199.

História da literatura italiana: vias, confins 419

áreas disciplinares, como a sociolinguística, a história dasmentalidades,dasinstituições,domercadoliterário,dopen-samentocientífico,dasrelaçõesinternacionais.Nãosetrata,demodoalgum,deumatuttologia.Ainterdisciplinaridadeécontidapelacentralidadeconferidaaoliterárioenãocor-respondeaumarenúnciaaosconteúdosdisciplinares.Visacompreendereensinarmelhoraliteratura,semaconfundircomoutrasdisciplinas.

Paraquemétodoseperspectivasdeinvestigaçãogeremumimpactocientífico-pedagógico,énecessárioestabelecerequilíbriosetrabalharnapluralidade.Daípoderãodecorrer,aliás,resultadossusceptíveisdefundamentaremoestatutodosestudosliteráriosedaliteraturacomparadacomoLite-raturwissenschaft, atravésdeumadiscussãovivaeprofícua.Épelaviadasuaexistênciacomolittera,comoimaginárioradicadoemestruturassimbólicasdecaráctereminentementegregário,queacomparatísticaseafirmaesuscitaoseure-conhecimentoinstitucional:“Compitodellaletteraturacom-parataèanchequellodipromuovereunamiglioreconoscenza,eforseunmiglioreuso,dell’ereditàculturalecheciascuno,apartiredallarealtàculturalecuièradicato,possiede:conoscerel’altrononsignificasradicarsi,madevecostituireun’occasionepercomprenderemeglioilproprioradicamento.Puòesserequestaunadellefunzionidellaletteraturacomparatacomedisciplinauniversitaria”,nota,justamente,ArmandoGnisci9.

Comotal,aliteraturacomparadaerige-seemviaatravésdaqualéenfrentadaaperdadeparâmetrosdereferênciaeaatomizaçãodossaberesnumaderivaindiscriminadapelopossívelquedissolveascategoriastemporaisetambémosseuscorrelatossituacionais,mercêdareduçãodosmovi-mentosporelasimplicadosaumpresenteindiscriminado,ondetudoseacumulademodobaço.Areproduçãodestaatitudedeindiferençapelasjovensgeraçõesquefrequentam

9 La letteratura comparata,Roma,Sovera,1993,p.118.

420 Estudos Italianos em Portugal

auniversidadecomportariaumcustoelevadoparaosestu-dos literários, mas, além disso, acarretaria também umaingentefacturaemtermosculturaisesociais.Seadesvin-culaçãodopresenteemrelaçãoaopassadotornavãoosen-tidopatrimonialdosaber,asuadesvinculaçãoemrelaçãoaofuturodebilitaafunçãomaiêutica,ceifandoaquelacapa-cidadeprojectualefectivaqueéessênciadequalquerpro-cessoformativo.

4. As lezioni AmericAne de Italo Calvino

CalvinoéumdosescritoresitalianosdoséculoXXqueopúblicoportuguêsmelhorconhece.Quasetodaasuaobraseencontradisponívelemtraduçãoportuguesa,estandoemcursováriasiniciativaseditoriais.Detenho-me,emparticular,sobreovolumequenoslegoucomotítulodeLezioni ame-ricane. Sei proposte per il prossimo millennio.Esseensaioretoma,deummodoqueserevelaparticularmenteoriginal,quandoinseridonopanoramacríticoplanetário,muitasdasquestõesquetenhovindoaequacionar.Alémdisso,tendosidocon-cebidosobaforma,explícitaedeliberada,delições,oferece,ab initio,largaspossibilidadesdeumaconfrontaçãoentreahistoricidadedaliteraturaeoensino.

Calvinodominaadualidade.Porumlado,antevêopesodasdificuldadesedasderivasquecaracterizamonovomilé-nio.Poroutrolado,recusadevaneiosnefelibatas,comasuainabalávelcrençanosprincípiosdoracionalismo:“Neimo-mentiincuiilregnodell’umanomisembracondannatoallapesantezza,pensochedovreivolarecomePerseoinunaltrospazio.Nonstoparlandodifughenelsognoonell’irrazionale.Vogliodirechedevocambiareilmioapproccio,devoguar-dareilmondoconun’altraottica,un’altralogica,altrimetodidiconoscenzaediverifica.Leimmaginidileggerezzacheiocerconondevonolasciarsidissolverecomesognidalla

História da literatura italiana: vias, confins 421

realtàdelpresenteedelfuturo…”10.Asquestõesderelação,devaloredetemporalidade,queestãonocernedetodaaproblemáticaquetenhovindoaenunciar,sãoarticuladasàluzdeumaperspectivadotadadeumforteimpactopeda-gógico,emestritacorrelaçãocomascircunstânciasquepre-sidiramàgénesedasLezioni.

Nuncaserádemaisrecordá-las.ForamconcebidasparaasCharles Eliot Norton Poetry Lecturesedeviamtersidoprofe-ridasaopúblicodaUniversidadedeHarvardnoanoacadé-micode1985-1986.Essessemináriostiveraminícioem1926e,paraasualeccionação,foramconvidadosintelectuaiscomoT.S.Eliot, IgorStravinski, JorgeLuisBorges,NorthropFryeouOctavioPaz.EraaquelaaprimeiravezqueHarvardconvidavaumescritoritaliano.AformulaçãodiscursivadasLezionisegueumalinhadotadadeprofundacoerência,massolta.Enquantomemo(Six Memos For the Next Millennium,foi o título inglês que Calvino lhes deu), retomam umpassadohistóricoondeficacontidoumsaberareter,masconsideradonasuadimensãolongínqua,for the next millen-nium.Deumacircunstância,amortedeCalvinoantesdepartirparaHarvard,resultouquenosfossemdadasaconhe-ceratravésdasistematizaçãopréviaquedelasfez.

Logoapartirdotextointrodutório,éclaraaassociaçãodatradiçãoliteráriaaumconceitodeliteraturaquesuperaasfronteirasnacionais:oconferencistaassume“laresponsa-bilitàspecialedirappresentare[…]unatradizioneletterariachecontinuaininterrottamentedaottosecoli”,especificandoqueentendeadesignaçãodepoetry“insensoestensivo,tantodacomprendereanchemusicaeartivisuali”,ealiteratura“comeuniversale,senzadistinzionidilinguaedicaratterenazionale,[…]ilpassatoinfunzionedelfuturo”11.Daíde-

10 Le lezioni americane,Saggi. 1945-1985,acuradiMarioBarenghi,Milano,A.Mondadori,2001,vol.1,p.635.

11 Ib.,vol.2,p.2958.

422 Estudos Italianos em Portugal

corre a consagração das conferências “ad alcuni valori oqualitàospecificitàdellaletteraturachemistannopartico-larmenteacuore,cercandodisituarlenellaprospettivadelnuovomillennio”12.Sãocinco,leveza,rapidez,exactidão,visibilidadeemultiplicidade,emboraestivesseprevistaasuaexpansão13.Anoçãodevalorouqualidadeéocerneapar-tirdoqual sãocaptadasarticulações temporaiseespaciaisque proporcionam um melhor conhecimento das váriasliteraturasemtermosderelaçãoe,simultaneamente,deumconjuntodereferênciascomincidênciagregária.Comotal,osconteúdosficamnecessariamenteabertosaquestõesque,recusandoqualquertipoderelativismoaleatório,exploramasviasdaevoluçãohistórica,daradicaçãoliteráriaedaracio-nalidadecrítica.Aimportânciaconcedidaaohorizonteefec-tivodopúblicolevaCalvinoavalorizartemasactuais,parasucessivamentetrabalharoalcancedasuaextensãoatémo-mentosmaisrecuados.Assimémotivadooconvíviocomépocasque,peloseudistanciamento,tendem,tantasvezes,aserevitadas.

Porconsequência,asmodalidadesdeinterrelacionamentodisciplinar,literárioetemporalimplicadasdeixamemabertoumespaçoapreencher.Esseespaçoétambémodeumarelação pedagógica voltada para o questionamento dopúblicoaquemasLezioni sedirigem.Comefeito,dessamodalidadedeformulaçãodecorremprofícuaspossibilidadesde exploração, namedida emque é proporcionada umainteracçãoentreoseuconteúdoeohorizontediscente,deformaa tiraromelhorpartido formativodasaventuras da diferença. Os seus parâmetros prestam-se a ser discutidos,construídos, fundamentados,descobertose aprofundados.Nummundoemquetantasideiasetantosbenssãodadosàpartida,aescolhadessalinhadeinterrelaçãoétambémum

12 Ib.,vol.1,p.629.13 Vd.oaparatoàedição,ib.,vol.2,pp.2957-2985.

História da literatura italiana: vias, confins 423

estímuloàcapacidadedereflexãoeaosentidocrítico,acti-vandooconfronto.Seasépocasdemudançasãodifíceis,nãoseesqueçaqueelassuscitam,damesmafeita,necessi-dadesepossibilidadesdeclarificaçãoqueimportapotenciaratravésdeplanosformativos.

AsLezionipressupõemdoistemasessenciais,queseencon-tramintimamenterelacionadosesecolocamnocernedasgrandesquestõescomasquaisahistóriadaliteraturaeoseuensinoseconfrontam,hoje:osclássicoseocânone.Apesardeestaremsubjacentesaoandamentodassuaspáginas,ne-nhumdelesédirectamenteabordado.Peloquedizrespeitoao primeiro tema, Calvino prossegue a linha traçada noartigo “Perchè leggere i classici”14.Aí radicam, emmeuentender,asconvicçõesdaqueleCesareSegre,pré-epós-Notizie della crisi,deacordocomasquais“ogniletturadeltestononcontemporaneoèdunqueuna letturaplurima,perchèillettoreriattualizzasignificaticheinpartesonogiàentratinellacultura,enellasuacultura,attraversolelettureprecedenti”15.Éatravésdeumpercursoque,dopresente,levaatéaopassado,quesãodescobertoselosdecontinuidadeearticulaçõesqueconferemsentidoàsualeitura.Aancora-gem no presente funcionará como estímulo e conferir--lhe-áincidênciaprojectivaemrelaçãoaoutrasabordagens.Aanálisedopassado,apartirdopresente,éummododecriaroespaçocríticonecessárioàcompreensãoeàinter-pretação,interrogandoeperscrutandoaliteraturapretéritaapartirda actualidade.Umtexto sóécompreendidonamedidaemqueécompreendidode formasdiferentes aolongodotempo.Assimsepercorreeserespeitaocírculohermenêutico,quereflecteatensãoentreasuaidentidadeeasituaçãoemqueécompreendido.

14 Ib.,vol.2,pp.1816-1824.Foiinicialmentepublicadoem1981.15 “Testoletterario,interpretazione,storia:lineeconcettualiecategoriecri-

tiche”: Letteratura italiana, direzione Alberto Asor Rosa, 4. L’interpretazione,Torino,Einaudi,1985,p.26.

424 Estudos Italianos em Portugal

Quantoaocânone,note-sequeéprecisamenteparaopúblicodosEstadosUnidos, uma cultura tãopropensa àformulaçãoedifusãodasteoriasdadisseminaçãoedissolu-çãodocânone,queCalvinosepropõefalardevalorequa-lidade.FoiprecisamentenosEstadosUnidosqueadiscussãoem tornodesse tema teve o seu grande fulcro.Todavia,condicionoubastanteumacríticaeuropeiaquelaborouemtornodemodelos americanos.O seubackground émuitodiversodatradiçãodovelhocontinente.SóporalturasdaSegundaGuerraéqueocânonedaliteraturadosEstadosUnidosseinstauranassuasuniversidades,depoisdevolun-tariosasrupturascomatradiçãodeestudosdaslínguasclás-sicas eda literatura inglesa.Nessa viragem, à tradiçãodeestudossubstitui-seocânone,comosalientaGiulioFerroni:“Daquestopuntodivista,ilterminecanonesiponeinalter-nativa a quello di tradizione: l’attenzione delle istituzionieducativeamericanealcanoneèstatadeterminatadalmodoin cui la nazione americana si è costruita e riconosciuta,rompendoconunarivoluzioneilimitidiunaconsolidatatradizione,fondandounanuovacomunitàeunnuovooriz-zontecivile”16.Ora,Calvinoposiciona-senohorizontedeuma tradição sedimentada ao longodeumpercursoquedesconhecerupturasbruscas,“unatradizioneletterariachecontinuaininterrottamentedaottosecoli”,afirmaele.Re-pensa-a,desmonta-lheosfundamentos,masàmargemdanecessidade de elaborar um elenco selectivo, à HaroldBloom,oudeditarregrasmecânicasparaadefinirebalizar.Europeiaemundial,formativaeinterrogativa.Suficiente-mentesólidaparaqueasuaperscrutaçãoeasuaindagaçãopossamrevertersobreasuadensidade.

OensaiodeCalvinohonra,semdúvida,otítulodelições.Recusandoformulaçõesfáceis,traçaumaliciantepercursoentrepoetas,escritores,épocaseliteraturasque,nasuaabran-

16 Cit.,p.39.

História da literatura italiana: vias, confins 425

gência,proporcionaumcontactocomuniversosliteráriosmuitoricosevariados.Oprocessodeconcatenaçãodeideiasemtornodoqualseorganizaopensamentodoautordesen-volve-senumaespéciedemovimento perpétuoquealiciapelavivacidadeflutuante.Ofactodeotextoterchegadoaténósnumaversãopedagógicapoderá tambémser interpretadocomoumactodeentregaqueesperaumarespostanainter-pretaçãodoleitor,comasuadisponibilidadeparaserapli-cadoaoutroscontextosouparaserexpandido.

5. Literatura italiana, literatura portuguesa

Aterminarestasreflexõesacercadahistoricidadedalitera-tura,emconfrontocomascondiçõesemqueéfeitooseuensinonomundodehoje,ficaumachamadadeatençãoparaaspotencialidadescontidasnoestudocomparativodaliteraturaitalianaedaliteraturaportuguesa.Aquelequestio-namentofundamentadoquemarcaofilãodepensamentoque,daprimeirametadedoséculoXX,seestendeaonovomilénio,encontranaliteraturacomparadaumrumodeelei-ção.Setantoapergunta,comoarespostaquelheédada,radicamnumhorizontepróprio,esseprincípioganhainci-dênciaprivilegiadanoquadrodeumprogramapedagógico,peloquedizrespeitoqueràsuaconcepção,queràsactivi-dadespropostaseatéaoestatutodisciplinaremcausa.

A cultura italiana está, de certa forma, preparada paraafrontarmomentosdetransiçãocomooéopresente,por-quanto,fielàherançadeCroceeaummétodofilológiconutrido pelo melhor historicismo, sempre colocou sériasreservasàautonomiaabsolutadotextoeàsuaautorreferen-cialidade,tendointersectado,desdemuitocedo,astendên-ciasformalistascomumafrancaaberturaàteoriadarecepção.Alémdisso,odebatecríticoenvolveu,aolongodotempo,nãosógeraçõesmuitodiversificadas,deDebenedetti,Con-

426 Estudos Italianos em Portugal

tini,Dionisotti,Corti,Segre,CeseraniouEcoàsgeraçõesmaisnovas,comotambémplanosdiferenciados,desdeasintervenções das neovanguardas aos fóruns de discussãoacolhidosnaspáginasderevistasenaimprensa.Aliás,essapluralidadedemétodos,alheiaaortodoxias,traduzumadis-ponibilidadeparaefectuarmediaçõesqueécaracterísticadequalquertecidoculturalfortementecompósito.Aesseres-peito,nemcreioquepossam,nemquedevam,serdesper-diçadas as potencialidades contidas pelo tecido culturalportuguês,tendoemlinhadecontaquetambémelesecarac-terizaporumaacentuadadisponibilidadeperanteodiverso,aqualmarcouprofundamenteasuahistóriaepulsanoseupresente.Tambémaconfrontaçãoentrealiteraturaitaliana,aliteraturaportuguesa,etambémoutrasliteraturaseoutrasáreasdisciplinares,nasuahistoricidade,éumapermanenterespostaaosmomentosdecrisequeciclicamenteassolamacondiçãolocaldaliteraturaportuguesa.Afinal,tantoalite-ratura portuguesa, como a italiana fazem parte daquelamesma“tradizioneletterariachecontinuaininterrottamentedaottosecoli”,oitoséculosdeafinidadessedimentadosporaquelaplataformacomumexploradaporRobertoGigliuccinoartigopublicadonaspáginasprecedentes,“Arealidadedaliteraturaeuropeia”.Asuaexistênciaeasuatradiçãonãoprecisamdeseraferidaspelocânone.

GIULIOFERRONIRESPONDEA3PERGUNTAS

Como perspectiva a crítica literária que se faz hoje em Itália?

Asituaçãoémuitoconfusaesuscitacontínuosdebates,quepareceestaremmaisligadosàdebilidadedaprópriacrí-ticaedequemafaz,doqueaoefectivorelevodetemaseproblemas.Alémdisso,apresençadacríticanouniversodacomunicaçãoépordemaisaleatóriaeevanescente,entreascrisesdaprópriacrítica,aevanescênciadaliteraturaqueestáaserfeitaouasderivasdacomunicação.Hoje,aspráticascríticasmaisdifusasparecemresolver-se,comefeito,numaalternativaquepoderiaserjocosamenterepresentadapelasduasimagensopostasdaborboletaedoelefante.

Oelefanterepresentaacríticainvasivaeomnivalente,quesobrepõeaostextosblocosinterpretativosempolados,mis-turando-oscomaguerridosparâmetrostécnicos,epistemo-lógicos,ideológicos,comapresunção(nãodeclarada)dequeháumaverdadesuperioraotexto.Sãoostecnicismosexas-peradosdequejásefalou,mastambémtodasaquelasformas

GiulioFerroniéProfessordeLiteraturaItaliananaUniversidadedeRoma,La Sapienza.Historiador da literatura, tem-se vindo a dedicar ao estudodediversosperíodosedediversosautoresdaliteraturaitaliana.Deentreostantostítulospublicados,recordem-seStoria della letteratura italiana(4vol.,Einaudi),Storia e testi della letteratura italiana(3vol.,vv.t.,Einaudi)eI confini della critica(Guida).

Est.Ital.Port.,n.s.,2,2007:427-431

428 Estudos Italianos em Portugal

quasepoliciaisdedesvelaroqueo textoescondeounãomostra explicitamente, no horizonte retórico, linguístico,psicanalítico,ideológico,sociológico,etc.Semterumman-datosocial(aocontráriodoqueacontecianostemposdou-radosdohistoricismo),ocríticopretende fazera liçãodotexto,comosefosseumdetectivedeolhoarregalado.Comesseâmbitoelefantescoserelacionamcertoslevantamentosintertextuaismaçadoresefagocitantes,quemuitasvezesche-gamaencontrarnumúnicopassodeumtextoecosdetodosostextospossíveisou,nocampooposto,certasexercitaçõesdoscultural studies(aescoladoressentimento,comoadefiniuHaroldBloom),ouaindacertasmanipulaçõesinformáticasartificiosas, as quaismultiplicamdados textuais através decombinatóriasautotélicaseheterogéneasquenadatêmavercomaorigináriavitalidadedostextos.Aborboletarepresentaacríticaesvoaçantequesededicaadivagaçõeslivresehete-rogéneas,asquaispodemserdetipopessoalebiográfico/autobiográfico(sensaçõesqueocríticocolhedaleitura,remis-sõesparaascircunstânciasemquefoifeita,paraanaturezadacadeiraoudapoltrona,reflexosnãosópsicológicos,mashumorais, epidérmicos,biológicos, etc.)ouentãode tipomístico/órfico,sagrado,iniciático,metafórico:emtodososcasos, com jogosde alusões indeterminados, commatizesargumentativosaarmar,quepresumemextrairdostextoseprocuramsuscitar,àvoltadeles,auréolasdemistério,exal-taçõesedejecções,transitividadesenomadismos,rizomasetransgressões,etc.Enaturalmenteque,entreborboletaeele-fante,podehaverconvergênciaseacordosimprevisíveis.Deresto,certoscasosdeexasperadodesconstrucionismoedeomnívora disseminação textual acabam até pormeter nomesmosacoosdoisextremos,acumulandodadoselefantíacosparaosprojectaremnumadejoborboleteante(trata-se,con-tudo,deumatendênciaque,emItália,demomento,tempoucaexpressãoequeémaiscaracterística,deumamaneiradeverasinquietante,dacríticaamericana)

História da literatura italiana: vias, confins 429

Tudoistodizrespeitoaopanoramacríticoemgeral:nãofaltam,naturalmente,excepçõesenãofalta,emtantasexpe-riências,empenhoempôràprovaacrítica,umavezmais,subtraindo-aamodelospreconstruídos,adarvozàinterro-gaçãodopresentecompaixãopelaliteratura.Asdificuldadesvêmdohorizontedecomunicaçãoemqueestamosimersos,doestadodeassédioemqueseencontraapróprialiteraturanomundo,ondequerqueseja,masentrenósdemodomaisdissimuladoeenganador.E,peloquedizrespeitoàchamadacríticamilitante,sequisermosserpessimistaspodemosfazertambémnossaestaferozafirmaçãodeFrancescoDeSanctis,queremontaaumlongínquo1856,numensaiosobre“LaFedradiRacine”(Rivista Contemporanea,3,vol.5,pp.597--615,eemSaggi critici).Apropósitodosrecorrentescon-frontosentreaFèdre eaMirra deAlfieri,nota:“Lacriticaoggièunaspeciedimaremorto,sullacuisuperficieimmo-bilevediagallaognispeciedilordura;all’entusiasmoartis-tico, alladiscussionede’principii, che testimonianovivoinunpopoloilcultodell’arteedellascienza,sottentranopiccolepassioniemeschiniintrighiegrossolanipregiudizi”.

Nos últimos tempos, foram publicadas várias antologias da literatura italiana. É autor de um célebre manual, Storia della letteratura italiana, e também organizou uma antologia de Storia e testi della letteratura italiana. Podia falar-nos da diferença entre os dois trabalhos?

Amultiplicaçãodeantologiasdeve-se,provavelmente,aofactodesermosmesmomuitosatrabalharnoâmbitodalite-ratura (tudo istoéumaespéciede reflexo tardiodaquelaexpansãodomundouniversitário,aqualnasúltimasdécadassofreuumefeitodeinversãoqueaindahojedura)eàefer-vescênciadomundoeditorial(quenãopromoveacríticaemsi,masencheomercadoderomancesedemanuais).ApassagemdaStoria della letteratura italianaàantologiafoi

430 Estudos Italianos em Portugal

longaetrabalhosa.ÀdiferençadaStoria,aantologiareque-reuacolaboraçãodemuitos investigadoresmaisnovoselevou-me,amimeatodoseles(cujotrabalhofoisempreaferidocolectivamente),aumcorpoacorpocomotexto,umapontualidadenainterpretação,naexplicaçãoenacon-textualização,quenoprocessosintéticodahistóriadalite-ratura,comainevitávelsimplificaçãoeainevitávelgenera-lizaçãoquecomportava,nãoeracertamentepossível.Nofundo,históriaeantologiapodem-sedistinguirapartirdasfórmulasopostasdarapidez(ahistóriarequerjuízossinté-ticos,emconfiguraçõescapazesdeconteremsi,porém,aprópria correcção, a meio caminho entre simplicidade ecomplexidade)edalentidão(aantologiadeveacompanharcompaciência todas as pregas e todas as articulaçõesdostextosescolhidos,dandoaconhecer,contudo,aparcialidadedaescolhaelevandooleitorareconhecerqueemtornodotextoescolhidoháumaflorestabemmaisdensaeinextri-cável).Alémdisso,umaantologiadevetomaropartidodotexto,dispensando(comoprocureifazer)todosaquelesin-toleráveis,aborrecidoseartificiososaparatospseudodidác-ticosdequeestãocheiasquasetodasasantologiasescolares.Continuaasersuficienteavelhaintroduçãoeasnotas,semqueotextosejaesmagadoportodosaquelesrodriguinhospedantesquerepelemaleituraeque,alémdomais,comoseiporexperiência,quasenuncasãolidospelosutilizadoresdasantologias.

Que lugar reserva à literatura criada e difundida através da internet?

Nãoacreditonaespecificidadeenovalordeumalitera-turaproduzidanainternet.Aliás,aliberdadeeaaberturadapublicaçãonainternetésóaparente.Umacoisaépôrostextosali,outracoisaéconseguirquesejamadequadamentelidos edifundidos.Considero a internetum instrumento

História da literatura italiana: vias, confins 431

parcial,comoteatrodacomunicaçãoearquivodomundo,masnãocomograndehorizonteparaaliteraturadofuturo.Serãoúteisosbloguesetodososoutrosinstrumentosquefavorecemarapidezdacomunicaçãoedadiscussãoentreosinteressados,masnãocreioquedaípossaprovirumaescritacapazdecaptarosentidodomundopresente,assuascon-tradiçõeseassuaslacerações.Aliteraturatemnecessidadededesceratéàsprofundezasdalinguagem,temdeescavaredelutarmesmocomapalavra:nemvelocidade,nemvir-tualidade.Quedepoisparaoestudodaliteraturadopassado,paraoarquivodetextosouparaasuapesquisa,ainternetpossaserútilaváriosníveis,nãohádúvidas.Amemóriaarti-ficialsubstituianaturaleacultural,queseestáaperdercadavezmais,masque,aomesmotempo,nosesmagacomoexcessoecomadesordemdosmateriais.NãoseesqueçaqueagrandecríticadoNovecentonãofoiresultadodaveloci-dadeedafacilidade,masdapenúriaedasruínas(deviam-serecordarasconsideraçõesfinaisdeMimesis,quesublinhamcomoparaessaobra-primadacríticaescritaporAuerbachfoiessencialacondiçãodepenúria,nofundoligadaàquelasensaçãodeperigoederuínamaisdirectamenteexplicitadanaconstruçãodaLiteratura europeiadeCurtius).Talvezumaecologiadamenteeumaecologiadaliteraturadevessepar-tirmesmodainternet.

ArmandoGnisciensinaLiteraturaComparadanaUniversidadedeRoma,LaSapienza,eInterculturalidadenaUniversidadeCa’FoscarideVeneza.Estudaaliteraturaemcorrelaçãocomasmobilidadeseacolonização.Publicoumaisde40livrosqueestãotraduzidosemmuitaslínguas.Maisrecentemente,editouMondializzare la mente.

ARMANDOGNISCIRESPONDEA3PERGUNTAS

Num dos seus mais recentes livros, Mondializzare la mente, defende a necessidade de “descolonizar” os europeus, ou seja, de pôr fim, definitivamente, a uma mentalidade colonialista que não se encontra extinta. Em seu entender, qual é o espaço que cabe à história da literatura nesta descolonização?

Opróprioespaçodadescolonização.Masvejamos.Antesdemais,éprecisosaberqualéahistóriadaliteraturaqueestáemcausa.Ashistóriasdaliteraturanacionais,típicasdeváriospaíseseuropeus,nosdiasdehojedeviamserapagadasedeviamsersubstituídaspormanuaishistórico-antológico--retórico-críticosdeliteraturaseuropeiasemediterrânicas:o nosso ambiente histórico comum, recortado no tapetemundial.Umambientenoqualasnaçõescoloniaisimpe-riais,atlânticas,tiveram,porém,una storia diversa,aquemereferiháalgunsanosnumlivroquetemessemesmotítulo.Odebateculturaleinterdisciplinarsobreesteassuntoaindanãoexiste–bastapensarqueessemeulivro,aqueacabeidealudirequeescrevi2001,foitraduzidoemespanhol(Cuba)

Est.Ital.Port.,n.s.,2,2007:433-435

434 Estudos Italianos em Portugal

eemárabe,masnãofoilido,oumelhor,traduzido,paraita-liano–porqueatéaomomentotemvindoasermuitodis-cutidoocomo,oporquêeoparaquemescreverashistóriasliteráriasnacionais,masnãotemsidodiscutidaasuaextin-ção,paratentarseguiroutrorumo.Naáreafranco-alemã,começou-seafalarumpoucosobreissoeafazermanuaisdeliteraturaeuropeia,aopassoqueemEspanhasediscuteeseprojectaumahistoriografialiteráriaibéricamultinacio-nalenaEuropacentral,excolóniasoviética,desdeoiníciodosanos90quesecomeçouacolocaraquestãodesabercomoadequaroregressoàEuropaeaomundodosprogra-masescolareseuniversitáriosparaoestudohistóricoelite-rário.Eupróprioeosmeusestudantestrabalhámos,econ-tinuamosatrabalhar,comcolegasdeBratislavaedeSantiagodeCompostela,porexemplo,acercadequestõesdessegé-nero,quesãoabsolutamenteabertas.EmItália,parece-mequeashistóriasda literatutacontinuamaproliferarcomonumsupermercadoescolar,umbecosemsaída.

Como perspectiva as fronteiras entre história da literatura ita-liana e história da literatura mundial?

Ahistóriamundialealiteraturadosmundosformamohorizontecruzadonoqualsealojaumestudoliterárioeuro-mediterrânico.Mas,tambémnestecaso,amoradiaaindanãoestápronta,apesardetersidoiniciadacomumpalácioqueGoethe começou a construirhádois séculos.CreioquerelerumlivrocomoAge of ExtremesdeHobsbawm,sobesteprisma,podiaacenderachamaadequada,tambémaqui.E,contudo,cadaliteraturanacionalmantémsemprecomplexas relações mundiais, uma rede de relações queé, sistematicamente, não vista, e portanto ignorada pelosmanuaishistórico-nacionais,senãoreentranoplanobio-gráficoounodaatribuiçãodePrémiosNobeledecoisassemelhantes.

História da literatura italiana: vias, confins 435

Que efeitos acha que a mobiblidade global tem sobre a especi-ficidade da literatura italiana?

Entendoqueumadas característicasda assimchamadaliteraturaitalianaestejaligadaaoseu“destinonacional”decolóniaeuropeiatrimilenáriaquemarcatodaahistóriadaPenínsulaItálica.Estepassado/não-passado(somosaúltimacolóniadaIgrejacatólica,apesardoseudeclínioplanetário,etambémitálico),éaquilodequenosdevemosdescolonizar.Agrandemigraçãoplanetáriaactual,paraumpaísquefoiconstantementeinvadidoporpovosemguerradurante3000anos, parece apresentar-se como uma formidável ocasiãopara fazer aflorar contradições e razões da nossa longevaidentidade euro-mediterrânica e da sua deriva silenciosa,semprerecobertapelorumorintelectual.

QUADROSDALITERATURAITALIANA.UMAALBAMELANCÓLICA(BALDASARCASTIGLIONE,IL LIBRO DELCORTEGIANOIV73)

Marco Santagata*

No livro dedicado àLetteraturanell’etàdellatradizione, de próxima publicação, Marco Santagata apresenta a história da literatura italiana de uma forma muito particular e inovadora. Os 20 capítulos da obra correspondem a 20 estações de um percurso que vai daChansondeRolanda Ugo Foscolo, ou seja, das origens românicas da literatura europeia até à ruptura do Romantismo. Cada uma dessas paragens é dedicada a um autor e a um passo de uma das suas obras, que é trans-crito e analisado. Estamos longe, pois, da tradicional história da lite-ratura, enquanto grande narrativa ordenada por datas, autores, obras e correntes. São pedaços de objectos muito maiores, pequenos enlaces de estruturas muito mais amplas. O itinerário assim delineado oferece à fruição uma galeria de quadros seleccionados. Ao apreciá-los, o leitor é levado a imaginar como não serão os tesouros que se encontram guar-dados e que não foram expostos, a avaliar pelos que vê. A sua satisfa-ção será a mesma do público de um museu, que anseia ver uma suces-são de quadros e peças, mas não percorrer exaustivamente todo o percurso da história da arte. É um desses quadros que aqui é dado a conhecer ao leitor de EstudosItalianosemPortugal.

R.M.* MarcoSantagataéProfessordeLiteraturaItaliananaUniversidadedePisa.

Deentreosnumerososcargosqueocupa,contam-seodePresidentehonoráriodeICON(ItalianCultureontheNet),membrodaComissãoNacionalItalianadaUNESCOemembrodaCommissione Nazionale per la Promozione della Cultura ItalianadoMinistériodosNegóciosEstrangeiros.ÉautordefundamentaisestudossobrePetrarca,Leopardi,Pascoli,D’AnnunzioesobreolirismoeobucolismodoRenascimento.

Est.Ital.Port.,n.s.,2,2007:437-445

438 Estudos Italianos em Portugal

IlsignorGaspar1cominciavaaprepararsiarispondere;malasignora Duchessa2, “Di questo”, disse, “sia giudice messerPietroBembo3estiasiallasuasentenzia,seledonnesonocosìcapacidell’amordivino4comegliomini,ono.Maperchélalitetravoi5potrebbeessertroppolunga,saràbenadifferirlainsinoadomani”.“Anzi aquesta sera”dissemesserCesareGonzaga6.“Ecomeaquestasera?”disselasignoraDuchessa.RisposemesserCesare:“Perchégiàèdigiorno”;emostrollelalucecheincominciavaadentrarperlefissuredellefinestre.Alloraognunosilevòinpiediconmoltamaraviglia,perchénonparevacheiragionamentifosseroduratipiùdelconsueto,maperl’essersiincominciatimoltopiùtardieperlaloropia-cevolezzaaveanoingannatoqueisignoritanto,chenons’eranoaccortidelfuggirdell’ore;néeraalcunochenegliocchisentissegravezzadisonno,ilchequasisempreinterviene,quandol’oraconsueta del dormire si passa in vigilia. Aperte adunque lefinestredaquellabandadelpalazzocheriguardal’altacimadelmonte di Catri7, videro già esser nata in oriente una bellaauroradicolordiroseetuttelestellesparite,fuorcheladolcegovernatricedelcieldiVenere,chedellanotteedelgiornotieneiconfini;dallaqualpareachespirasseun’aurasoave,chedimordente8frescoempiendol’aria,cominciavatralemor-

1 Gaspar:GasparePallavicino(1486-1511),MarquêsdeCortemaggiore,umdosinterlocutoresdodiálogo.

2 Duchessa: Elisabetta Gonzaga (1471-1526), esposa de Guidubaldo daMontefeltro.

3 Pietro Bembo(1470-1547)viveuemUrbinode1506a1512.4 amor divino:ograusupremodeamorqueéauniãocomDeus,momento

culminantedoprocessodeaperfeiçoamentoedeelevaçãoespiritualaquepro-pendeocortesão.

5 tra voi:istoé,entreGasparePallavicinoeGiulianodeiMedici(1479-1516),filhomaisnovodeLorenzo,tambémelechamado“oMagnífico”.

6 Cesare Gonzaga (1475-1512), primo de Castiglione que foi quase seucontemporâneo.

7 Catri:monteasuldeUrbino.8 mordente:cortante.

História da literatura italiana: vias, confins 439

moranti selve de’ colli vicini a risvegliar dolci concenti deivaghiaugelli.Ondetutti,avendoconriverenziapresocom-miatodallasignoraDuchessa,s’inviaronoversolelorstanziesenzalumeditorchi,bastandolorquellodelgiorno;equandogiàeranoperuscirdallacamera,voltossiilsignorPrefetto9allasignoraDuchessaedisse:“Signora,perterminarlalitetra’lsignorGaspare ’l signorMagnifico,veniremocolgiudice10questa serapiùper tempochenon si fece ieri”.Rispose lasignora Emilia11: “Con patto che se ’l signor Gaspar vorràaccusarledonneedarloro,comeèsuocostume,qualchefalsacalunnia,essoancoradiasicurtàdistararagione12,perch’ioloallegosuspettofuggitivo13”.

RaiaaalbaemUrbino,numdosprimeirosdiasdeMarçode1507.AluzrosaéfiltradaatravésdasjanelasdopalácioducalepenetranoapartamentodaDuquesaElisabettaGon-zaga,esposadeGuidubaldodiMontefeltro,surpreendendoogrupodegentis-mulheresedegentis-homensque,desdeaprimeiranoite,alisetinhareunidoaconversar.Oassuntodadiscussão tinha-os absorvidode tal formaquenem sederamcontadanoiteapassar.SãocortesãosaoserviçodoDuqueGuidubaldooupessoasimportantes,quegozamdasuahospitalidade:algumasdelasvirãomesmoadesempenharumpapeldecertorelevonasvicissitudespolíticasdaItáliadaprimeirametadedoséculoXVI(comoOttavianoFre-goso–1470-1524–queserádogedeGénovaeGiulianode’Medici,ditoo Magnífico);outras,comoBernardoDovizi,chamadoil Bibbiena–1470-1520–,deixarãoassuasmarcas

9 Prefetto:FrancescoMariadellaRovere(1490-1538),governadordeRoma,depoisduquedeUrbino.

10 giudice:PietroBembo.11 Emilia: Emilia Pio (1487-1528), viúva de Antonio da Montefeltro e

cunhadadeGuidubaldo.12 star a ragione:nãoseexceder.13 lo allego ... fuggitivo:odeclarosuspeitodedeserção.

440 Estudos Italianos em Portugal

naliteraturaitaliana;outrasainda,comoPietroBembo,nelaimprimirãoumsulcoprofundoeduradouro.Emsuma,àvoltadaDuquesareúne-seumarepresentaçãodaclassediri-gentedaquelesanos,aomaisaltonível.Aqueestáprestesaterminar,éaquartanoitequededicaramàquelejogodoenge-nho.Era de facto hábito dos frequentadores da corte deUrbinoreunirem-senosaposentosdaDuquesa,aseguiraojantar,depoisdeoDuque,quetinhaumadoença,seretirar.Então,sentadosemcírculo,dedicavam-seanobrespassa-tempos.Embrenhavam-sefrequentementeemdisputassobreassuntosrelacionadoscomastradicionaisquestõesdeamor,mashátrêsnoites,FedericoFregoso,irmãodeOttaviano,tinhapropostocomojogotrataras“condicionieparticularqualitàchesirichieggonoachimerita”onomede“perfettocortigiano”(I12),eapropostaagradou-lhestantoqueosabsorveuporquatroserõesconsecutivos.

Paranós,apalavracortesãotemumaforteconotaçãonega-tiva.Nãoatinha,obviamente,notempodeCastiglione,quandootermodefinia,muitosimplesmente,ohomemdecortequeestavaaoserviçodeumSenhor.Masocortesãodeque falamos interlocutoresdodiálogonãoésimples-menteumhomemdecorte:atravésdaspalavras(fictícias)quepõenabocadas suaspersonagens (reais),Castiglione–que nos dias em que situa o seu livro estava longe deUrbino–,nestecaso,propõe-sedefinirmelhor,precisandooseupapeleassuascaracterísticas,afigurasocialqueaquelapalavradesigna.Umafiguraqueforasendoconstruídaaolongodoséculoprecedente,quandoaformaçãodeestadosregionaisquegravitavamem tornodeumagrandecortetinhabaralhadoascartasdasantigasestratificaçõessociais,criandoumanovaclassedirigenteondeconfluíampessoasprovenientesdecamadasedeâmbitosmuitodiversos.Antiganobreza feudal,nobrezacitadina, representantesdeváriasprofissões, aristocracia endinheirada e estratos intelectuaisformavamumaclassequesecaracterizavamaispelahomo-

História da literatura italiana: vias, confins 441

geneidadedasfunçõesdirigentesdoquepelatradiçãoespe-cíficadosseuscomportamentos.Oproblema,quenaficçãodoautortantoapaixonaasfigurasemdiálogo,éportantoodeindividuarostraçospeculiaresdeumanovaaristocraciaespalhadaportodoosistemadascortesitalianasesobretudodeadotardeumabagagemcultural,fixandoregrasdecom-portamentotransmissíveis.SeMachiavelliseesforçaraporensinar ao Príncipe como conquistar e manter o poder,Castiglione,algunsanosdepois,empenha-senaformaçãodeumacastarestritaqueparticipa,juntamentecomoPrín-cipe,nagestãodopoder.Umacastaquenãoseencontraligadaaumpoderespecífico,aumarealidadepolíticaegeo-gráficaindividualizada,masqueestáprontaatransferirassuascompetênciasdeumacorteparaaoutra,vistoque,entreumaeoutracorte,sãoanálogasasexigênciaseasexpecta-tivas.Seria,porém,demasiadorestritivoarriscaradefiniçãode técnicodepolíticaedaadministração.Oscortesãossãomuitomaisdoqueisso:sãoaclassehegemónica,aquemarcaavidasocialeculturaldascortesporiníciosdoséculoXVI.Maisdoqueensinarumaprática,Castiglionevisadefinirestru-turasmentais, comportamentos evaloresdeumpequenogruposocial,delineandoumanovaantropologia.Econse-gue-oplenamente,ounãofossemaisfácilperceber,atravésdaspalavrasdosparticipantesnodiálogo,osaspectosculturaisdoperfeitocortesão–aquelesqueseexplicamatravésdocomportamento,davidaderelação,dousodapalavra–,doqueassuasreaisfunçõespolíticaseadministrativas.Contudo,seriaredutor,porsuavez,limitar-seafalardaformaçãodogentil-homem:comefeito,seéinegávelqueapartirdafiguradonobreoudoaristocratadecorteseirádesenvolver(tam-bémgraçasaestelivro)adogentil-homem–ouseja,afiguradonobreoudoaristocratadesligadadeprecisasincumbên-ciascortesãs,capazdesobrevivereatédeprosperarnoseioderealidadesedeépocasquejánãosabemoqueéainsti-tuiçãocortesã–,factoéqueentreosséculosXVeXVIo

442 Estudos Italianos em Portugal

cortesãonãopodeprescindir da instituiçãoque lhedáonome.Epordetrásdestedado,istoé,anecessidadedequeaumcortesãocorrespondaumacorte,esconde-se,comoveremos,alinhadesombra,afracturadramáticaquefazcomqueolivrodeCastiglionenãosejaactualnosanosemquefoiescrito,masquedelefaráumlivrocontinuamentevivoeactualaolongodemaisdedoisséculos.

Dalongaeanimadaconversaondesãoregistadospontosdevistadiversos,quandonãodivergentes,emergemalgumasideias-força(doautor),substancialmenteorientadasemtornodedoispólos.Emprimeirolugar,onobredecorte,apesarde continuar a desempenhar primordialmente serviço dearmas,devepossuirumasólidaformaçãocultural.Nelesefundemafigura,deorigemantiga,donobre-guerreiroeafigura,queéabsolutamentenova,dogentil-homemletrado.Oelementoinovador,nãoporacasodestinadoaprevaleceraolongodosséculossucessivos,éosegundo.Castiglioneestácientedisso,apontodeapresentarapráticadasletras,globalmentecompreendidaenquantousodacultura,comotraçodistintivodanobreza italianarelativamenteaoutrasculturaseuropeias.Sobestepontodevista,aescolhadecolo-caracenaemUrbinoéestratégica.FedericodaMontefeltro–temocuidadodesublinharCastiglione–nãosótinhasidoumdosmaiorescondottieridasuaépoca,comotinhaedifi-cadoomaisbelopalácioprincipescode Itália, “chenonunpalazzo,maunacittàinformadepalazzoesserepareva”(I2),tendo-oenriquecidocomcolecçõesdearte(omuseu)ecomumacolecçãodelivrosseleccionados(abiblioteca).EtambémoseufilhoGuidubaldo,àsvirtudesguerreiras,associavaoconhecimentodogregoedolatim.Urbinoera,pois,acorteideal(ulteriormenteidealizadaporCastiglione)paraqueasqualidadesdacortesenariasepudessemmanifes-tarplenamente.

Tambémosegundopóloérepresentadoporumhábitocultural:onúcleoéoconceitodegraça,ouseja,aquelanatu-

História da literatura italiana: vias, confins 443

ralidadequedeveacompanharcadagestoecadapalavradoperfeitocortesão.Essagraça,queéoexactocontráriodaafectaçãoedoartifício,manifesta-secomosprezzatura,comoimpressãodefacilidade,espontaneidadeelevezaqueactosepalavrasdespertamnosoutros.Anaturalidade,porém,nãoéumdotedanatureza:pelocontrário,adquire-secomoestudo,aaplicação,oexercício,aarte.Anaturalidadeéumdadocultural.Asprezzatura,defacto,consisteemesconderartifícioeestudoeemfazercomqueoscomportamentospareçamgraciosos,talcomosefossemfrutodeumadisposi-çãoinata.Paraonovonobre,acultura,queencontranocomportamentosocialumadassuasmaisimportantesmani-festações,apresenta-secomoumaespéciedesegundanatu-reza,quepareceespontâneaprecisamenteporserartificial.Essaconcepçãoirradiarásobretodoosistemadeboas manei-ras,asregrasdobomcomportamentoemsociedade.Umsistemaaoqual se irãoadaptarascastasnobresduranteoAntigoRegimeequetambémanovaclasseburguesatomaráporreferência.MasnotempodeCastiglioneoreenvioparaaculturatinhaumavalênciaquesuperavaoplano,tambémimportante,daconvivênciaedasrelaçõessociaisdentrodascastasdominantes.Eraomodoatravésdoqualseprocuravaconferirgentilezzaaopoder:umareformulação,emtermosmodernos,dovelhoconceitomedievaldecortesia.Nanovasituaçãohistóricaointeressequeprevalecianãoeraarela-ção(feudal)entrenobreesenhor,masarelaçãoentrenobreenobre.Eramestasasrelaçõesqueassinalavam,defacto,osurgimentodasociedade,umaassociaçãosocialconscientedassuasprerrogativasedecididaadistinguir-seenquantocastadominante.Agraçaera,porconseguinte,umaformade uniformizar os comportamentos desse estrato e, aomesmotempo,erasinaldequeopoderprocuravaviasmaismediatas,relativamenteàpuraexibiçãodaforça,paracriarconsensos.Mas que instituição, concretamente, é que oconsensovisava?

444 Estudos Italianos em Portugal

Acenavaanteriormenteàlinhadesombraqueatravessaolivro.Há uma espécie de condenação que pesa sobre osmaiorestratadosdosséculosXVeXVI,adeserem,decertaforma,póstumos,emconfrontocomosproblemasenfrenta-dos.Albertitinhaescritooquartolivrododiálogodedicadoàacumulaçãoeàmanutençãodamasseria,docapital,apósodesaireeconómicosofridopelasuafamília;Machiavelliolivrodedicadoàconquistaeàconservaçãodopodernumasituaçãohistóricaquevianaribaltaoutraspotênciasquenãoos príncipes italianos, encontrando-se, pessoalmente, nacondiçãodeexiladoedeproscrito;GiovanniDellaCasaescreveráoseutratadinhosobreocomportamentoemsocie-dade(Galateo)numperíodo(1551-1553)emquesobreeleseabatiamdesilusõespessoais,encontrando-seretiradodomundonumaabadia.Castiglione(1478-1529)nãoéexcep-ção.Começaaescreveroseulivro(quesepassaem1507)em1513etrabalhaneledurantequinzeanos:sairádospre-losem1528,quaseumanoantesdamortedoseuautor.Naqueladata,aUrbinodosMontefeltro,poreledescritaeidealizada,jánãoexistiaháalgumtempo.Aliás,àqueladataestavaacairnumacriseprofundaeirreversívelosistemadascortesitalianas,aquelesistemaqueeraohabitatnaturaldocortesão.EmMaiode1527,oexércitoimperialdeCarlosVtinhasaqueadoRoma.Umeventotraumáticoparatodaacristandade.ParaaItália,osinaldramáticodeumaépocaparasempreencerrada.Ofiodahistóriatinhapassadoparaasmãosdasgrandespotênciaseosprincipadositalianosoutinhamdesaparecidoouestavamaperderpodereprestígio,inexoravelmente.Asvicissitudesitalianasdeixamsinaisdolo-rososnolivrodeCastiglione,oqual,impávido,nãoaban-donaosseuspropósitosdepintaroquadrofelizeharmónicodeumarealidadepassada,emviasderápidadissolução.OscortesãosdeUrbinoquenaúltimapáginadodiálogoabremasjanelasparasaudaremaauroranãoestãocientesdacatás-trofeeminente:marcamoutroencontroparaoserãodesse

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mesmodiaafimderesolveremumaquestãoqueficaraemsuspenso.OlivroacabacomumatiradajocosadeEmiliaPio,exemploestremadodegraçamundana.EmiliaPiomorreemUrbinonessemesmoanode1528.AcabaradereceberumdosprimeirosexemplaresdaediçãodoCortegiano. Jánesseanoosleitoresnãopodiamdeixardeleroraiardaalbacomoumpôr-do-sol.