de geração em geração com o lápis na mão

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA TALITA DANIEL SALVARO DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO E O LÁPIS NA MÃO: O PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO DA LÍNGUA KAINGÁNG NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA/ TERRA INDÍGENA XAPECÓ SC Florianópolis 2009

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Dissertação mestrado sobre os Kaingáng

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    TALITA DANIEL SALVARO

    DE GERAO EM GERAO E O LPIS NA MO: O PROCESSO DE

    REVITALIZAO DA LNGUA KAINGNG NA EDUCAO ESCOLAR

    INDGENA/ TERRA INDGENA XAPEC SC

    Florianpolis

    2009

  • ii

    TALITA DANIEL SALVARO

    DE GERAO EM GERAO E O LPIS NA MO: O PROCESSO DE

    REVITALIZAO DA LNGUA KAINGNG NA EDUCAO ESCOLAR

    INDGENA/ TERRA INDGENA XAPEC SC

    Dissertao apresentada como requisito obteno do

    grau de Mestre em Histria Cultural, Curso de Ps-

    Graduao em Histria, Centro de Filosofia e Cincias

    Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina.

    Orientadora: Prof.a

    Dr.a Ana Lcia Vulfe Ntzold

    Florianpolis

    2009

  • iii

    AGRADECIMENTOS

    Esta pesquisa no se fez sozinha, ela faz parte de vrios momentos que acompanharam

    esses dois anos de mestrado. Agradecer um gesto de gratido por todos aqueles que fizeram

    parte dessa etapa e que como outros momentos permanecero na memria, para serem

    lembrados com carinho. Agradecer dizer sinceramente muito obrigada por tudo.

    Obrigada Deus por estar sempre ao meu lado e possibilitar essa caminhada com

    sinceridade, amor e paz.

    Aos meus pais Aldio e Edinalva, por terem me ensinado os verdadeiros valores de

    um ser humano. Por todo carinho, apoio, preocupao e dedicao a mim todo esse tempo,

    meu amor por essas duas pessoas eterno. Ao meu irmo Alencar e minha cunhada Dnia,

    pessoas queridas e companheiras.

    pessoa amiga, confidente, sria, engraada, dedicada que a Prof.a e orientadora

    Ana Lcia. Obrigada por confiar em mim e sempre me animar com palavras, almoos, risos e

    tambm muito trabalho, nosso dia a dia na casa LABHIN e o envolvimento com as pesquisas

    se deram devido a algum que realmente tem um corao indgena.

    Agradeo a todos da Terra Indgena Xapec/SC, que nos acolheram como uma famlia

    nas sadas a campo, colaborando com as entrevistas e documentos para esse estudo. Aos

    professores: Carlos Jacinto, Dalgir Pacfico, Getlio Narsizo, Jovelino de Oliveira Belm,

    Leacy Lopes, Loreni Nokrig Paulo, Luciano Fernandes, Maria Virgnia Mendes, Pedro Kres,

    Sirley Alves de Assis, Sonimara, Valdecir de Paula. As pessoas sbias dessa comunidade:

    Avelino Alpio Fongre, Cezrio Pacfico, Divaldina Luiz Pinheiro (D. Diva), Joo Maria

    Benedito (Major), Matilde Koito. A diretora Ansia Belino, Diretora Adjunta Cristina,

    assistente Lrio. As merendeiras e serventes Doralina, Judite, Lorildes, Salete, e o vigia

    Laudacir. A estas pessoas e toda a comunidade da TI Xapec minha eterna gratido, carinho e

    saudade.

    lingista Ruth Maria Fonini Monserrat e a assessora do Diretor de Educao Bsica

    da SED/SC Jane Motta por contribuir com seus conhecimentos sobre a questo indgena.

  • iv

    toda a equipe LABHIN por acompanhar o desenvolver desse estudo e fazer parte de

    todos os momentos de socorro, Clvis, Jeniffer, Gabriel, Gabriela, Lucas Alves, Lucas Bond,

    Ninarosa, Sandor. Aos agregados Elton e Pablo. A Helena integrante do laboratrio, colega de

    mestrado, amiga que pude conhecer de perto, pessoa de corao bom em que se pode confiar,

    Helena mulher de verdade. Jackson, pessoa admirvel por todas suas conquistas e por seu

    dom mais que especial de ensinar.

    Aos professores Jos Ribamar Bessa Freire, Maria Izabel de Bortoli Hentz, Marcos

    Fbio Freire Montysuma pela contribuio na dissertao, enriquecendo este estudo.

    Ao grupo de orao da UFSC, em especial ao Daniel, Rafael, Daiane, Larissa, Gisa.

    Daiani, Caroline e Meiry por compartilhar o apartamento 202 e todas as peripcias

    da vida de estudante.

    A todos os amigos de Florianpolis e Meleiro, perto e longe, mas sempre presentes:

    Aline, Andr, Bruna, Eduardo, Francieli, Gabriel, Hlder, Iracema, Jean, Juliane, Liziani,

    Luiz Augusto, Paula, Rafael, Rejane, Sabrina, Samira, Sandra.

    A todos os professores do Programa de Ps-Graduao em Histria/UFSC. Todos os

    funcionrios, Nazar e Maurcio. Irma e Toninho do Departamento de Histria.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pela

    bolsa que possibilitou as participaes em congressos, pesquisa de campo e o resultado final

    dessa dissertao.

  • v

    RESUMO

    Essa pesquisa tem como propsito perceber a lngua Kaingng em dois momentos

    distintos que marcaram a histria dos Kaingng da Terra Indgena Xapec, localizada no

    oeste catarinense. Durante o perodo de atuao do Servio de Proteo ao ndio/SPI, marcado

    pela integrao do indgena sociedade nacional, a lngua Kaingng foi proibida e iniciou-se

    o ensino da lngua portuguesa. Nesse perodo, a identidade indgena foi negada, pois a poltica

    da poca era a de progresso e da buscas de uma identidade nica para o pas. Sendo assim, a

    educao destinada aos Kaingng era como a das escolas rurais brasileiras. A partir da

    promulgao da Constituio Federativa do Brasil de 1988, a educao abandona seu vis

    integracionista e contempla uma educao diferenciada, bilngue, comunitria, intercultural e

    especfica. Neste momento, o ensino da lngua Kaingng retomado nas escolas como um

    fator de identidade tnica do grupo. Nosso recorte temporal abrange a data de 1941, quando

    foi criado o Posto Indgena Xapec, e se estende at os dias atuais. Urdindo os relatos obtidos

    nas entrevistas realizadas por meio da Metodologia de Histria Oral, documentos do SPI e

    FUNAI, Atas de Pais e Professores da Escola Indgena de Educao Bsica Cacique Vanhkr,

    materiais didticos elaborados pelos professores de lngua Kaingng e observaes durante as

    sadas de campo, pretende-se mostrar como a lngua Kaingng ensinada na escola, as

    dificuldades encontradas no seu ensino e aprendizagem e sua funo como fator de identidade

    para essa comunidade.

    Palavras-chave: Kaingng, lngua materna, identidade, escola, Histria Oral, etnohistria,

    educao.

  • vi

    RSUM

    Cette recherche a pour intention de faire connatre la langue Kaingng deux moments

    distincts qui ont marqu lhistoire des Kaingngs de la Terre Indigne Xapec, localise dans

    louest catarinense (tat de Santa Catarina). Durant la priode daction du Service de

    Protection de lIndien(SPI), marque par lintgration de lindigne dans la socit nationale,

    la langue Kaingng ft interdite et dbuta alors lenseignement de la langue portugaise.

    Durant cette priode, lidentit indigne ft dnie car la politique mene lpoque tait

    celle du progrs et la recherche dune seule et unique identit pour le pays. Cependant,

    lducation destine aux Kaingngs tait identique celle des coles rurales brsiliennes. A

    partir de la promulgation de la Constitution Fdrative du Brsil de 1988, lducation

    abandonne son ct intgrationniste et se tourne vers une ducation diffrencie, bilingue,

    communautaire, interculturelle et spcifique. Actuellement, lenseignement de la langue

    Kaingng est reprise dans les coles comme un facteur de lidentit ethnique. Notre

    dcoupage dans le temps englobe lanne 1941, date laquelle ft cre le Poste Indigne

    Xapec, qui dailleurs existe toujours. En montant les rcits obtenus lors des entretiens

    raliss laide de la Mthodologie de lHistoire Orale, des documents du SPI et de la

    FUNAI, des tmoignages de pres de familles et de professeurs de lEcole Indigne

    dEducation Elmentaire Cacique Vanhkr, de matriaux et de mthodes pdagogiques

    labors par des professeurs connaissant la langue Kaingng et dobservations fates durant

    les excursions sur le terrain. Ainsi, on prtend montrer de quelle manire la langue Kaingng

    est enseigne dans les coles, des difficults rencontres lors de son enseignement et de son

    apprentissage et de sa fonction majeure comme facteur didentit pour cette communaut.

    Mots cls: Kaingng, langue maternelle, identit, cole, Histoire Orale, ethnologie, ducation.

  • vii

    LISTA DE COLABORADORES

    Avelino Alpio Fongre (1933-). Kaingng, morador da TI Xapec na aldeia/sede Jacu, filho

    de Augusto Alpio e Rosalina Fernandes, trabalhou como motorista da sade e auxiliar de

    ensino no perodo do SPI.

    Cezrio Pacfico Jagagl (1948-). Kaingng, morador da TI Xapec na aldeia/sede Jacu,

    auxilia no registro de nascimento dos nomes Kaingng junto ao Posto Indgena da FUNAI na

    TI Xapec h 32 anos.

    Dalgir Pacfico Rnkn (1977-). Kaingng, nascido, criado e morador da TI Xapec na

    aldeia/sede Jacu, professor de lngua Kaingng na Escola Indgena de Educao Bsica

    Cacique Vanhkr. Cursa a faculdade de Pedagogia pela UNIASSELVI. Filho do senhor

    Cezrio Pacfico Jagagl.

    Divaldina Luiz Jacinto (1945-). Kaingng, conhecida como D. Diva, moradora da TI

    Xapec na aldeia Pinhalzinho, curandeira, diagnostica a utilizao e aplicao das ervas

    medicinais.

    Getlio Narsizo (1979-). Kaingng, nascido, criado e morador da TI Xapec na aldeia/sede

    Jacu. professor Kaingng na Escola Indgena de Educao Bsica Cacique Vanhkr. Cursou

    Magistrio Bilngue em So Jos do Cerrito; Faculdade de Histria, porm, no a concluiu e

    cursa atualmente Pedagogia pela UNIASSELVI. Primeiro indgena concursado como

    Secretrio de Escola.

    Jane Motta (1958-). No indgena, pedagoga com mestrado na rea de Educao.

    Coordenadora do Ncleo de Educao Indgena/NEI de 2003-2007, atualmente assessora do

  • viii

    Diretor de Educao Bsica da Secretaria do Estado da Educao de Santa Catarina -

    SED/SC.

    Joo Maria Benedito (1903-). Kaingng, conhecido como seu Major, uma das pessoas

    mais velhas da TI Xapec. Nasceu no Canhado, prximo aldeia Pinhalzinho, reside na TI

    Xapec na aldeia Paiol de Barro.

    Leacy Lopes Nofer (1965-). Kaingng, nascido em Nonoai/RS, reside na TI Xapec na

    aldeia/sede Jacu. Cursou o Magistrio Bilngue em So Jos do Cerrito e Pedagogia Gestora

    na Universidade de Palmas UNICS (PR). Professor de Lngua Kaingng na Escola Indgena

    de Educao Bsica Cacique Vanhkr.

    Loreni Nokrig Paulo (1960-). Kaingng, monitor bilngue formado pelo Centro de

    Treinamento Profissional Clara Camaro, fazendo parte da terceira turma que comeou em

    1977. Professor de lngua Kaingng na Escola Indgena de Educao Bsica Cacique

    Vanhkr.

    Luciano Rengr Fernandes (1966-). Kaingng, nascido na TI Xapec. Possui o 2o grau

    completo e o Magistrio Bilngue em So Jos do Cerrito. Professor de Lngua Kaingng na

    Escola Indgena de Educao Bsica Cacique Vanhkr.

    Maria Virgnia Mendes Kaingng. Monitora Bilngue formada pelo Centro de Treinamento

    Profissional Clara Camaro e professora de sries iniciais e lngua Kaingng na Escola

    Indgena de Ensino Fundamental Pinhalzinho.

    Sebastio Mendes (1941). Kaingng, morador da TI Xapec na aldeia/Sede Jacu.

  • ix

    Pedro Alves de Assis Kres (1966-). Kaingng, nascido e morador da TI Xapec, formado

    em Tcnico Agrcola, monitor bilngue formado pelo Centro de Treinamento Profissional

    Clara Camaro e Pedagogia. Professor de Lngua Kaingng e sries iniciais.

    Ruth Maria Fonini Monserrat (1939-). No indgena, professora de lingustica e

    pesquisadora de lnguas indgenas aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Pesquisadora associada do Laboratrio de Lnguas Indgenas da UNB, Universidade de

    Braslia, coordenado pelo professor Aryon Rodrigues.

    Sirlei Alves de Assis (1978-). Kaingng, nascida e moradora da TI Xapec, tem 2o grau

    completo e Faculdade de Letras, professora de lngua Kaingng na Escola Indgena de

    Educao Bsica Cacique Vanhkr. Irm do Professor Pedro Kres.

    Valdecir de Paula (1971-) Kaingng, nascido no Rio Grande do Sul, na Terra Indgena

    Votouro. Professor desde 1997 na Escola Indgena de Ensino Fundamental Paiol de Barro,

    atualmente diretor dessa escola.

  • x

    LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1 MAPA DO TERRITRIO TRADICIONAL KAINGNG COM

    LOCALIZAO DA TI XAPEC....................................................................24

    FIGURA 2 VISTA DA ALDEIA SEDE DA TI XAPEC...................................................31

    FIGURA 3 MAPA COM LOCALIZAO DAS TERRAS INDGENAS

    KAINGNG.......................................................................................................32

    FIGURA 4 TRONCO LINGUSTICO MACRO J.............................................................54

    FIGURA 5 PROFESSORA MARIA VIRGNIA MENDES................................................65

    FIGURA 6 PROFESSOR LUCIANO FERNANDES...........................................................66

    FIGURA 7 SENHOR CEZRIO PACFICO.......................................................................68

    FIGURA 8 FREQUNCIA ESCOLAR DA PROFESSORA MARIA GUISSO

    VELHO................................................................................................................71

    FIGURA 9 PROFESSOR LORENI NOKRIG PAULO........................................................75

    FIGURA 10 ESQUEMA QUE REPRESENTA A PARTE ENTRE EDUCAO

    BILNGUE E NACIONAL.................................................................................77

    FIGURA 11 ESCOLA DO BANHADO GRANDE..............................................................95

    FIGURA 12 SENHOR JOO MARIA BENEDITO (MAJOR)...........................................97

    FIGURA 13 DIVALDINA LUIZ PINHEIRO (D. DIVA)....................................................98

    FIGURA 14 SENHOR AVELINO ALPIO FONGRE.........................................................98

    FIGURA 15 EIEB CACIQUE VANHKR.........................................................................104

    FIGURA 16 GINSIO DE ESPORTES DA EIEB CACIQUE VANHKR.....................105

    FIGURA 17 CENTRO CULTURAL DA EIEB CACIQUE VANHKR..........................105

    FIGURA 18 PROFESSOR DO PR ESCOLAR E ALUNOS....................................112-113

    FIGURA 19 ATIVIDADES DO PLANO DE AULA DO PROFESSOR PEDRO KRES.

    VOGAIS E ALFABETO.................................................................................114

  • xi

    FIGURA 20 ATIVIDADES PRODUZIDAS PELO PROFESSOR LUCIANO

    FERNANDES.................................................................................................117

    FIGURA 21 ATIVIDADES PRODUZIDAS PELO PROFESSOR

    PEDRO KRES .............................................................................................118

    FIGURA 22 PROFESSOR LORENI, LEACY, DALGIR E JONATAS NA RDIO

    KAIRU FM......................................................................................................120

  • xii

    SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................................................13

    1 CULTURA, IDENTIDADE E MEMRIA NO ESTUDO DA HISTRIA

    INDGENA

    1.1 . Os Kaingng da Terra Indgena Xapec ..........................................................................23

    1.2 . A memria compondo a histria: Tempo Presente e a Metodologia de

    Histria Oral......................................................................................................................35

    1.3 . Cultura, etnicidade, identidade: o pertencer a um grupo tnico .......................................42

    1.4 . Lnguas indgenas, Lngua Kaingng ...............................................................................52

    2 A INSTITUIO ESCOLAR E A LNGUA KAINGNG

    2.1 . SPI e a integrao nacional: educao como meio de nacionalizao..............................56

    2.2. FUNAI: formao de monitores bilngues no CTP Clara Camaro e o Bilinguismo

    de substituio....................................................................................................................69

    2.3. Educao escolar indgena em Santa Catarina ..................................................................78

    3 CONSTITUIO DE 1988: A LNGUA KAINGNG NA EDUCAO

    ESCOLAR INDGENA

    3.1 . A legislao brasileira e a educao escolar indgena......................................................83

    3.2 . Palco de mudanas: a escola sede da Terra Indgena Xapec..........................................94

    3.3 . Alfabetizao escolar: a oralidade e a escrita.................................................................107

    3.4 . O ensino-aprendizagem da lngua materna como fator de identidade ..........................110

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................122

    FONTES E BIBLIOGRAFIA..............................................................................................125

    ANEXOS................................................................................................................................135

  • INTRODUO

    Nossa proposta de pesquisa decorreu da percepo da necessidade de entender os

    efeitos da proibio do uso da lngua Kaingng e da introduo da lngua portuguesa no

    ensino escolar durante o perodo de atuao do Servio de Proteo ao ndio e Localizao de

    Trabalhadores Nacionais - SPI/LTN1, momento marcado pela integrao do indgena

    sociedade nacional. Visa tambm a analisar em que contexto surgiu a questo lingustica, a

    partir de 1970, e como o ensino da lngua Kaingng passou a ser ministrado aps a

    promulgao da Constituio Federal (CF) do Brasil, de 1988, uma vez que, em seu contedo,

    contempla aspectos da cultura indgena no ensino escolar2 dessas comunidades, inclusive sua

    prpria lngua materna. Busca-se mostrar ao longo da histria, a lngua Kaingng como um

    fator de identidade tnica, que vem sendo revitalizada por meio da educao escolar indgena.

    Esta pesquisa foi desenvolvida com a etnia Kaingng, da Terra Indgena (TI) Xapec,

    tendo como foco principal a EIEB Cacique Vanhkr, situada na aldeia Jacu, Sede do Posto.

    Foi nessa comunidade, localizada no Oeste do Estado de Santa Catarina, que realizamos parte

    de nosso estudo, cuja fase essencial deu-se graas colaborao dos seus membros. Sem a

    confiana e o auxlio que nos depositaram, concedendo-nos entrevistas de Histria Oral e

    tambm pela disponibilizao da documentao existente na escola, esse trabalho no

    atingiria seu objetivo principal, qual seja, o de analisar a funo da lngua Kaingng na

    educao escolar indgena em dois momentos: i) nos perodos de atuao do SPI (1941-19673)

    e da Fundao Nacional do ndio (FUNAI) (1967-); e ii) aps a promulgao da CF do Brasil,

    de 1988.

    O corpo documental do presente trabalho so as atas de reunies de pais e professores

    da EIEB Cacique Vanhkr4 (1988-2006); materiais didticos produzidos pelos professores de

    lngua Kaingng; documentos referentes ao perodo de atuao do SPI e da FUNAI

    localizados na Regional da FUNAI de Paranagu-PR; entrevistas realizadas com os

    1 Criado em 1910, o rgo de proteo chamava-se Servio de Proteo ao ndio e Localizao dos

    Trabalhadores Nacionais SPI/LTN, entretanto em 1914, no atendendo mais os trabalhadores nacionais, passou a utilizar a sigla SPI, o rgo fo i ext into em 1967, sendo substitudo pela FUNAI.

    2 Nosso propsito no trabalhar com a forma de ensino min istrada pelos missionrios com objetivo

    religioso, pois concentramos a pesquisa na instituio escolar concebida pela populao no indgena e inserida

    na TI Xapec na dcada de 1940. 3 Assinalamos o ano de 1941, pois fora a data que o Posto Indgena do SPI instalou -se na TI Xapec.

    4 Essa a atual nominao da escola da sede, porm existiram outras instituies em locais dife rentes da

    rea com outras denominaes, que aparecem ao longo da dissertao. As atas de reunies de pais e professores

    neste trabalho referem-se a escola atual pois permanecem arquivadas nesta.

  • 14

    professores de lngua Kaingng; professor de Histria e assistente de educao; idosos da

    comunidade; e alunos da escola. Tambm colaboraram, concedendo-nos entrevista, a linguista

    Ruth Maria Fonini Monserrat, que integra o Laboratrio de Lnguas Indgenas da

    Universidade de Braslia, e a senhora Jane Motta, que foi coordenadora do Ncleo de

    Educao Indgena (NEI) de Santa Catarina de 2003 a 2007, e atualmente assessora do

    Diretor de Educao Bsica da Secretaria do Estado da Educao de Santa Catarina

    (SED/SC).

    Tambm utilizamos a iconografia como uma fonte que auxilia na compreenso do

    tema de pesquisa. Nas fotografias muitas vezes est um olhar, um gesto, um objeto que

    contm tambm a histria de um povo. Peter Burke em seu livro testemunha ocular: histria

    e imagem traz vrias evidncias de pinturas e imagens fotogrficas que contm muito da

    histria, ele ressalta que as imagens assim como textos e testemunhos orais, constituem-se

    numa forma importante de evidncia histrica, elas registram atos de testemunha ocular5. As

    fotografias aqui dispostas no so meras ilustraes e sim fizeram nos compreender muito da

    comunidade e do sentimento Kaingng, principalmente por serem em sua maioria

    fotografadas pela autora, que presente pode perceber o contexto do momento.

    Alm da TI Xapec, a Regional da FUNAI, localizada em Paranagu-PR, foi tambm

    um local de pesquisa, onde se encontra parte da documentao deste rgo e os arquivos do

    SPI referentes a vrias aldeias do Estado de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paran e

    outros estados brasileiros. O arquivo no est catalogado, o que dificultou o trabalho de

    pesquisa, mas nele localizamos ricos documentos que contriburam para este estudo,

    resultando em um melhor entendimento sobre o assunto, levando-nos a outras indagaes e

    fontes.

    Essa pesquisa encontrou respaldo na histria social da linguagem, uma rea nova

    como pesquisa histrica, porm vem ganhando grandes dimenses por ser interdisciplinar,

    abarcando reas como a Sociologia, Histria e a Lingustica. Segundo Bessa Freire6 a

    abordagem da questo histrica da lngua s comeou a ganhar consistncia a partir dos anos

    1960-70, com o desenvolvimento da sociolingustica, que permitiu analisar a lngua como uma

    5 BURKE, Peter. Testemunha ocular : h istria e imagem. Bauru/So Paulo: EDUSC, 2004, p.17.

    6 FREIRE, Jos Ribamar Bessa. Da Lngua Geral ao Portugus : para uma histria social dos usos das

    lnguas na Amaznia. Tese de Doutorado (verso preliminar). Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro/Instituto de Letras, UERJ, 2003, p. 41.

  • 15

    instituio social, fazendo parte constitutiva da cultura, assim como das prticas sociais

    cotidianas.

    Anteriormente, a lngua era analisada apenas na sua estrutura lingustica, constituda por

    fonemas, gramtica, lxicos, sem entend-la em suas funes sociais. O entendimento da lngua

    como parte essencial da sociedade e suas funes sociais como tambm suas transformaes,

    contato com uma ou mais lnguas, seu desaparecimento, crescimento e outros tantos elementos

    constituem um rea de pesquisa histrica denominada pelo historiador Peter Burke como histria

    social da linguagem ou histria social do falar. Momento em que a lngua percebida tanto pelos

    seus grupos como uma forma de poder, como pelos historiadores por ser um elemento

    importante de pesquisa que pode contar muito sobre determinado processo histrico e identitrio

    de um grupo. Segundo Peter Burke7 diversos historiadores passaram a reconhecer a

    necessidade do estudo da linguagem, especialmente por dois motivos: primeiro por

    reconhecerem a linguagem sendo vista como uma instituio social, como uma parte da

    cultura e da vida cotidiana. Em segundo por ser esse estudo um meio para a melhor

    compreenso das fontes orais e escritas pela via da conscincia de suas convenes

    lingusticas.

    A linguagem carrega em si os emaranhados da histria de seu povo, po r meio dela

    pode-se perceber que possvel a anlise dos grupos sociais, do seu processo histrico, das

    mudanas, da oralidade e da escrita, dentro outros que se constituem de acordo com o foco de

    cada estudo. Nesta dissertao a lngua Kaingng nos possibilita identificar a trajetria da

    comunidade Kaingng em momentos diferentes e que abarcaram funes diferentes.

    possvel percebermos a lngua utilizada pelo SPI para seu objetivo, qual seja de integrao

    nacional e identificar a revitalizao da lngua como uma reivindicao para que ela no seja

    extinta e que possa ser ensinada na escola como um fator cultural e de identidade do povo.

    A etnohistria uma abordagem essencial nesse estudo, urdindo as evidncias

    produzidas por meio da histria oral, documental, mitolgica e lingustica, procura

    compreender a complexa dinmica das sociedades indgenas no presente8. Segundo Bessa

    Freire9 a etnohistria estabelece tecnicamente a diferena entre as sociedades essencialmente

    7 BURKE, Peter. A Arte da conversao. Trad. lvaro Luiz Hattnher. So Paulo: Ed itora da

    Universidade Paulista, 1995, p. 9. 8 NTZOLD, Ana Lcia Vulfe (org.). O ciclo de vida Kaingng. Florianpolis: Imprensa Universitria

    da UFSC, 2004, p. 2. 9 FREIRE, Jos Ribamar Bessa. Tradio oral e memria indgena: a canoa do tempo. In: Salomo,

    Jayme (dir): Amrica: Descoberta ou Inveno. 4 Colquio UERJ. Rio de Janeiro, Imago, 1992, p.140.

  • 16

    orais e as sociedades onde predomina a escrita, para poder estudar melhor: as formas distintas

    de armazenamento, transmisso e produo do saber, exigem procedimentos particulares de

    abordagem. Nossa pesquisa trabalha com um grupo em que a cultura e todos os processos

    educativos eram mantidos pela tradio oral, ou seja, um povo de oralidade, porm

    atualmente a escrita tambm compe a histria Kaingng. Percebemos pela metodologia de

    Histria oral que mesmo com a escrita, o modo de pensar por meio da oralidade se faz

    presente, ou seja, o modo de lembrar, pensar e agir o de uma comunidade de tradio oral.

    Respeitam nas suas lembranas o cronograma de suas memrias; os mitos e ensinamentos so

    mantidos pelo falar e a credibilidade, diferente da nossa sociedade onde prevalece a escrita, se

    d pela palavra.

    A metodologia de histria oral cumpre sua funo de registro dessa memria mantida

    pela oralidade, porm no se constitui pela fala oral, pois desde o momento em que gravada,

    transcrita ela ganha outras dimenses que no so prprias da oralidade. Como ressalta Peter

    Burke10, a lngua escrita um outro exemplo bvio de registro, pois de maneira geral trata-se

    muito mais de uma traduo do que uma transcrio da lngua falada. A escrita uma

    variedade distinta da lngua, com suas prprias regras, variando com o tempo, o lugar,

    escritor, potencial leitor, tpico.

    Este estudo compreende a educao escolar indgena, centrando a questo no ensino

    da lngua materna como uma disciplina da grade curricular escolar. A educao escolar

    indgena abrange todos os nveis educacionais desde a educao infantil at o ensino mdio e

    uma modalidade de ensino que vem recebendo um tratamento especial por parte do

    Ministrio da Educao (MEC), alicerada em um novo paradigma educacional de respeito

    interculturalidade, ao multilinguismo e etnicidade11. uma educao diferenciada e

    especfica, que contempla os conhecimentos universais, como matemtica, histria, lngua

    portuguesa, e aspectos da cultura de cada etnia que so garantidos em lei, como o ensino da

    lngua materna.

    A opo por trabalhar com a temtica indgena se deu durante o curso de graduao

    em Histria, cursado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde tive

    oportunidade de participar como bolsista no Laboratrio de Histria Indgena (LABHIN)12.

    10

    BURKE, P. A arte da conversao. Op. Cit., p. 33. 11

    Disponvel em: http://portal.mec.gov.br/secad/index.phoption=content&task=view&id=37&it emid=164, acesso em 12 de novembro de 2007.

    12 O Laboratrio de Histria Indgena localiza-se no prdio do Departamento de Histria da

    Universidade Federal de Santa Catarina. Informaes www.labhin.u fsc.br.

  • 17

    Em nosso Trabalho de Concluso de Curso (TCC)13 discutimos a questo lingustica na

    educao escolar indgena, porm, na ocasio, centramos o estudo na legislao educacional e

    no que ela continha sobre a lngua materna e seu ensino. Como no foi possvel responder

    algumas questes pertinentes ao assunto, devido ao curto tempo de elaborao do TCC,

    buscamos na presente pesquisa responder novos questionamentos no que se refere ao

    conhecimento sobre o processo da lngua materna para os Kaingng da TI Xapec. A questo

    lingustica tornou-se foco desse estudo, pois percebemos que, mesmo com a diminuio do

    nmero de falantes na TI Xapec devido ao processo de nacionalizao e integrao durante o

    perodo do SPI, a lngua estava presente com grande importncia nas atas das reunies de pais

    e professores da escola como um fator cultural e de identidade, e, por isso, deveria ser

    revitalizada e ensinada. O esforo desse processo foi visvel e mostra os mecanismos adotados

    por lideranas polticas e educacionais nessa caminhada, alm do empenho dos professores de

    lngua Kaingng em ministrar suas aulas apesar das dificuldades encontradas na aquisio e

    elaborao de material didtico especfico para seu ensino.

    Algumas questes podem parecer estranhas ao leitor, principalmente no que se refere

    importncia que a lngua materna de uma comunidade tem, mesmo no sendo falada

    fluentemente pela maioria das pessoas. Os conceitos de identidade e cultura que permeiam

    este trabalho, no entanto, indicam que o sentimento de identidade no est apenas no falar a

    lngua, nem em confeccionar artesanato ou em outros tantos elementos, mas sim no

    sentimento de pertencer-se, reconhecer-se como indgena por si prprio e pelo seu grupo. A

    princpio, consideramos a lngua de uma comunidade um fator cultural, mas, alm disso, ela

    um fator de identidade, que mantm a coeso do grupo e o sentimento de pertencimento, pois

    a lngua materna de uma comunidade um dos componentes mais importantes de sua

    cultura, constituindo o cdigo com que se organiza e mantm integrado todo o conhecimento

    acumulado ao longo das geraes 14.

    Anterior instalao das escolas nas reas indgenas, o ensinamento da tradio

    Kaingng baseava-se na oralidade, sendo repassadas de gerao em gerao a cultura e a

    tradio do povo, como a lngua materna, o aprendizado do artesanato, os mitos, as lendas, os

    rituais, o conhecimento das ervas medicinais, dentre outros, que eram aprendidos na prtica,

    13

    Trabalho de Concluso de Curso intitulado A importncia da lngua Kaingng na educao escolar

    indgena: proib io e retomada, defendido em fevereiro de 2007 na Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientao da Prof.

    a Dr.

    a Ana Lcia Vulfe Ntzold.

    14 Educao Indgena I Reunio do Consed. Recife-Pernambuco, Ministrio da Educao e do

    Desporto, 1997, p. 6.

  • 18

    atravs da observao e da comunicao oral. Durante o perodo do SPI15, a instituio

    escolar foi introduzida na rea indgena. Esse modelo de escola objetivava a que os indgenas

    aprendessem a falar e a escrever a lngua portuguesa. Assim, a oralidade dividiu espao com a

    escrita, provocando o decrscimo do ensino pela tradio oral. Hoje, muitas crianas no

    falam a lngua materna, pois so filhos e netos de pessoas que viveram nesse perodo e

    tiveram que aprender a lngua portuguesa.

    Temos a escola como cenrio principal deste trabalho, haja vista ser essa instituio

    um marco na vida das sociedades indgenas. Ela foi palco de mudanas que transformaram a

    cultura Kaingng, como a insero da lngua portuguesa e da escrita. A instituio escolar, tal

    qual a concebemos, comeou a difundir-se nas Terras Indgenas aps a criao do SPI, e para

    os Kaingng da TI Xapec deu-se no ano de 1941, quando foi fundado o Posto Indgena (PI)

    Chapec. Entretanto temos notcias de uma escola particular para indgenas que era mantida

    pelo juiz de Direito Antonio Selistre de Campos.

    De incio, o objetivo da escola era levar a civilizao e o ensinamento s populaes

    nativas, visando a integr- las sociedade nacional. Hoje, porm, ela assume papel inverso,

    pois a maioria das etnias indgenas reivindica-as, para servir como espao de fortalecimento e

    valorizao da histria do seu povo e da identidade tnica. A escola, ento, mantm uma forte

    relao com a comunidade, sendo que os mais velhos fazem parte da sua histria, pois so

    considerados como detentores de sabedoria e da histria do povo. A instituio escolar um

    lugar de difuso, reelaborao e elaborao do conhecimento. tambm fonte de renda, pois

    emprega professores, funcionrios, merendeiras, vigias e auxilia na alimentao das crianas,

    j que a merenda escolar fundamental para a maioria dos estudantes.

    a partir da escola e do currculo intercultural, que contemplou a lngua materna

    como parte do ensino diferenciado, que buscamos entender esse fator cultural e lingustico

    como um processo scio cultural de identificao do grupo. Levamos em considerao a

    grande diminuio dos falantes da lngua materna e o fato de que os mantenedores desse

    conhecimento so os mais velhos, os quais, na sua maioria falam o idioma, e os professores

    de lngua Kaingng, que falam e escrevem.

    As lnguas indgenas fazem parte da cultura imaterial de cada grupo e, no Brasil,

    tambm passaram por um grande processo de extino e reduo no seu nmero e no de seus

    15

    Utilizamos neste trabalho apenas a sigla SPI, pois nosso recorte temporal abrange o perodo em que o

    rgo atendia apenas s questes indgenas.

  • 19

    falantes. No sculo XVI, eram em torno de 1.200, mas, devido ao contato com os no-

    indgenas e com a interao entre culturas diferentes, esse nmero diminuiu. Hoje, h em

    mdia 180 lnguas indgenas que compreendem uma populao indgena aproximada no censo

    de 2000 em 734 mil pessoas (0,4% dos brasileiros) que se auto- identificaram como

    indgenas16.

    Algumas etnias encontram dificuldade na revitalizao de sua lngua pois, muitas

    vezes, o nmero de falantes mnimo e so pessoas idosas que detm o conhecimento oral.

    Vem cena neste momento o trabalho do linguista, que, atravs de pesquisas, passa a

    documentar e registrar uma lngua. Este processo de trabalho muitas vezes desperta na

    comunidade o interesse de aprender e ensinar a lngua materna na escola para que ela se

    mantenha e seja valorizada.

    Sobre o conceito de identidade, foco principal deste trabalho, partimos da premissa de

    que a identidade algo construdo ao longo da vida do indivduo e que este no possui apenas

    uma, mas sim vrias identidades, que so utilizadas no momento que lhe oportuno. Alm

    disso, percebe-se que h identidades impostas e reivindicadas. Durante o perodo de atuao

    do SPI, uma identidade foi imposta para os Kaingng com o objetivo de integr-los

    sociedade nacional por meio da transio gradativa da sua cultura para a cultura dita

    civilizada. Objetivamos tambm neste trabalho compreender de que forma, por meio do

    ensino da lngua materna, a identidade indgena afirmada e como ela fortalece o grupo.

    A presente dissertao est dividida em trs captulos: no primeiro, intitulado Cultura,

    memria e identidade no estudo da Histria indgena, buscamos apresentar a etnia

    Kaingng para que o leitor tenha conhecimento da histria deste povo e de seu modo de ser, o

    que envolve a demarcao da terra, sua denominao, cultura, educao. Percebemos nas

    falas de membros da comunidade as mudanas que se deram ao longo do tempo, seja na

    paisagem, na alimentao, na educao, entre outros elementos que a identificam. Aps este

    momento, consideramos ser necessrio discorrer sobre alguns conceitos que permeiam este

    estudo, como: memria, cultura, grupo tnico e identidade.

    16 Disponvel em:

    http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=506&id_pagina=1 , acesso

    em 20 de maro de 2009.

  • 20

    Falar de memria perceber, por meio das entrevistas de histria oral, o que os

    sujeitos participantes de seu prprio processo histrico tm a relatar e como podem contribuir

    na pesquisa a partir desses mecanismos. A histria oral pode ser utilizada para alterar o

    enfoque da prpria histria e revelar novos campos de investigao [...] pode devolver s

    pessoas que fizeram e vivenciaram a histria um lugar fundamental, mediante suas prprias

    palavras17. Este momento de recordar, possibilitado pela histria oral, foi significativo, pois

    concedeu voz aos indgenas e nos encaminhou a novos questionamentos que contriburam

    para o encaminhamento da pesquisa. Para conceituar o termo memria utilizamos como

    tericos Maurice Halbwachs, Michael Pollack, Jacques Le Goff, e sobre histria oral e tempo

    presente, Paul Thompson, Marieta Ferreira e Jos Sebe Bom Meihy.

    Na perspectiva de falar sobre um grupo tnico, utilizamos como referencial a obra de

    Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart, que mostram a origem do termo etnicidade, e

    Frederick Barth, que apresenta o conceito de fronteiras tnicas. Segundo este ltimo, o termo

    grupo tnico na bibliografia antropolgica geralmente entendido pra des ignar uma

    populao que:

    1. Perpetua-se biologicamente de modo amplo; 2. Compartilha valores fundamentais, realizados em patente unidade nas formas culturais; 3. Constitui um campo de comunicao e de interao; 4. Possui um grupo de membros que se identifica e identificado por outros como se constitusse

    uma categoria diferencivel de outras categorias do mesmo tipo18

    .

    Considerando o 4o pressuposto apontado por Barth, partilhamos da noo de que

    grupo tnico seria aquele em que os indivduos compartilham de um pertencimento

    independente de um conjunto de fatores culturais comuns. Esse sentimento de pertencimento

    atravs de smbolos o que forma um grupo tnico. Porm, apesar de o sentimento de

    pertena ser significativo para a identidade do grupo tnico, no podemos ignorar os

    elementos culturais que so compartilhados, j que entendemos a cultura como algo em

    processo contnuo de elaborao e reelaborao. Segundo Barth19, nem o fato de falarem uma

    mesma lngua, nem a contiguidade territorial, nem a semelhana dos costumes representam

    17

    THOMPSON, Pau l. A voz do passado. Histria Oral. Trad. L lio Loureno de Oliveira. So Paulo:

    Paz e Terra, 1998, p. 22. 18

    BARTH, Frederick. Grupos tnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe. & STREIFF-

    FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade . 2a ed. So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1998, p. 189-190.

    19 POUTIGNAT, P. & STREIFF-FENART, J. Op. Cit., p. 163.

  • 21

    por si prprios atributos tnicos. Apenas se tornam isso quando utilizados como marcadores

    de pertena por aqueles que reivindicam uma origem comum. Estes elementos culturais

    devem ser entendidos pelo grupo como parte de seu sistema cultural.

    Nesse entendimento, temos o conceito de cultura a partir do que descreve Geertz20,

    como uma teia de significados. Estes signos so compartilhados pelo grupo, pois j se nasce

    num sistema cultural, porm essa cultura herdada se modifica, se adapta, construda pelo

    sujeito. De acordo com Cuche21, cultura uma produo histrica, isto , uma construo que

    se inscreve na histria, e mais precisamente, na histria das relaes dos grupos sociais entre

    si.

    Finalmente, mostramos alguns aspectos das lnguas indgenas no Brasil e da lngua

    Kaingng, destacando o trato do linguista, o que corresponde ao sistema gramatical, sonoro,

    descrio da lngua, estudo dos textos, percebendo tambm a lngua como um fator cultural

    em constantes transformaes.

    No segundo captulo, A instituio escolar e a lngua Kaingng, falamos sobre como

    se deu a insero da escrita e da lngua portuguesa para os Kaingng. Nessa parte do texto

    damos nfase ao perodo em que houve o decrscimo de falantes da lngua materna, haja vista

    que as crianas tinham de aprender a lngua portuguesa, momento em que a oralidade dividiu

    espao com a escrita, fazendo com que o ensino da lngua materna se tornasse cada vez mais

    difcil. O perodo a que se refere essa seo do trabalho o da atuao do SPI (1941-1967) e

    da FUNAI (1967-).

    O indivduo considerado bilngue aquele que consegue articular fala, escrita e

    entendimento em duas lnguas distintas. No caso aqui estudado, alguns podem ser

    considerados bilngues, mas a maioria no o . Mesmo no bilinguismo, uma lngua se

    sobrepe outra. Aquela mais utilizada no cotidiano e de uso efetivo tende a dominar.

    Procuramos dar nfase criao do SPI e poltica de integrao nacional da poca,

    para entender os ideais dessa instituio. Percebemos, ento, a educao como um meio

    utilizado para a assimilao. A cultura no indgena transmitida por meio da escola e o ensino

    20

    GEERTZ, Cliford. A interpretao das culturas . Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1989,

    p. 15. 21

    CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais . Trad. Viv iane Ribeiro. 2 ed. Bauru:

    EDUSC, 2002, p. 143.

  • 22

    da lngua portuguesa em detrimento da lngua materna colaboravam para a formao de uma

    identidade nica para o Brasil, formando assim cidados brasileiros.

    Como palco de mudanas, elegemos a EIEB Cacique Vanhkr para estabelecer um

    histrico de algumas escolas da TI Xapec, tendo como focos a escola localizada no Banhado

    Grande, que tinha como professor o indgena Felicssimo Belino, e uma escola situada na

    aldeia Pinhalzinho, cujo professor era o no indgena Samuel Brasil. Este ltimo captulo,

    denominado Constituio de 1988: A lngua Kaingng na educao escolar indgena, tem

    por objetivo mostrar como a lngua materna dessa comunidade est sendo revitalizada na

    escola, que hoje tem um sentido distinto daquele do perodo de atuao do SPI.

    a partir da CF do Brasil, de 1988, que se d incio a uma poltica educacional que

    contempla a cultura indgena. A lngua materna passa a ser uma disciplina da grade curricular,

    sendo ministrada em trs horas/aula por semana em cada srie. So os prprios professores

    que elaboram seus recursos didticos, pois h pouco material na lngua Kaingng.

    Frente s dificuldades, a lngua Kaingng permanece presente no dia a dia da

    comunidade, sendo a escola uma sua extenso. Segundo o professor de lngua Kaingng

    Pedro Kres, a lngua tudo, na organizao, demarcao de terra, problema de terra, a vida

    Kaingng, em tudo, a lngua Kaingng t em tudo 22. Portanto, essa visibilidade da lngua

    Kaingng como um fator de identidade tnica, fortalecida por meio da educao escolar

    indgena, e a funo que ela exerceu em dois perodos distintos que queremos abordar com

    essa dissertao.

    22

    KRES, Pedro. Entrevista concedida a Talita Daniel Salvaro, em 21 de junho de 2006, Terra

    Indgena Xapec/SC.

  • 23

    CAPTULO 1 - CULTURA, IDENTIDADE E MEMRIA NO ESTUDO DA

    HISTRIA INDGENA

    1.1 Os Kaingng da Terra Indgena Xapec

    O povo Kaingng um dos cinco maiores grupos indgenas em nmero de populao

    do Brasil pertencentes ao tronco lingustico Macro J. Tradicionalmente ocupavam territrios

    que compreendiam partes do Estado de So Paulo, Paran, Rio Grande do Sul, Santa Catarina

    e parte de Missiones na Argentina, como mostra o mapa seguinte (Fig.1). Nestes estados, este

    povo predominava nas partes mais altas do planalto.

    Nosso estudo contempla a comunidade Kaingng da TI Xapec, localizada no Oeste

    catarinense entre os municpios de Ipua e Entre Rios, com uma rea de 15.600 ha. No total

    so 16 aldeias que constituem essa rea. Aproximadamente a 20 km do municpio de Xanxer

    est a Sede da aldeia, que se chama Jacu, as outras aldeias so: Olaria, gua Branca, Fazenda

    So Jos, Serrano, Cerro Doce, Pinhalzinho, Baixo Sambur, Linha Mato, Paiol de Barro,

    Joo Veloso, Linha Guarani, Linha Limeira, Barro Preto, Placa e Pinheirinhos23.

    A Escola da Sede, EIEB Cacique Vanhkr, a maior da rea, com aproximadamente

    800 alunos. A TI Xapec conta ainda com unidades bsicas de sade, Associao Indgena

    Kairu (AIKA), responsvel tambm pela sade, e uma cooperativa agrcola. A principal

    liderana que representa essa rea e responsvel pelos principais assuntos no interior e

    exterior da TI o cacique Waldemar Barboza, seguido pelo vice-cacique. Cada aldeia possui

    os capites e major, que tambm so lideranas.

    23

    Conforme relato do prof.o Kaingng, Getlio Narsizo Tojf, em 25/04/2007, Terra Indgena Xapec

    (SC). Apud. NTZOLD, Ana Lcia Vulfe. Olhar, escutar e tranar: o artesanato Kaingng de cada dia. IV

    Encontro Regional Sul de Histria Oral, UFSC: 12-14/11/2007, p. 2. Disponvel em:

    http://www.cfh.u fsc.br/abho4sul/, acesso em 15/12/2007.

  • 24

    FIGURA 1 Territrio Tradicional Kaingng com localizao atual da TI Xapec24.

    24

    Adaptao do Mapa de SILVA, Marcos Antnio da. Memrias que lutam por identidade: a

    demarcao da Terra Indgena Toldo Chimbangue (SC) 1970-1986. Dissertao. (Mestrado em Histria).

    Universidade Federal de Santa Catarina, 2006, p. 55.

  • 25

    Os Kaingng habitavam as regies mais altas de seu territrio devido abundncia de

    araucrias, que tm por semente o pinho, o qual, segundo Pierre Mabilde25, constitua seu

    principal e quase exclusivo alimento: fruto do pinheiro que assavam no borralho e depois

    comiam. Tambm viviam da caa de animais como tatu, anta, porco do mato. Coletavam

    frutas, razes e vegetais. Os territrios remanejados por Coroados26 e Botocudos27 foram alvo

    das frentes de expanso que aconteceram durante o Imprio e a primeira Repblica no Brasil.

    Estas frentes comearam no incio do sculo XIX com a criao de gado, e foi em torno desse

    abastecimento para So Paulo que a Regio Sul do Brasil entrou no contexto dos interesses

    econmicos nacionais, pois sustentaria as reas cafeeiras e de minerao, sendo tal territrio

    caminho das tropas que levava o gado do Rio Grande do Sul para So Paulo.

    A partir deste propsito, era preciso expandir os campos de criao. Para isso, sob o

    comando do Tenente coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, a expedio, cuja primeira

    tropa partiu de Santos ainda em 1809, chegou aos campos de Guarapuava em 17 de junho de

    181028. Essa interiorizao foi estimulada por D. Joo VI, que era a favor de uma guerra de

    extermnio aos indgenas, pois considerava que essa populao no chegaria civilizao e

    inviabilizaria os projetos desenvolvimentistas para o Brasil.

    Dissertando sobre estas frentes de expanso, DAngelis29 destaca que, em 1837, o

    Governo Provincial de So Paulo decidira pela descoberta dos Campos de Palmas 30, o que

    oficializado na lei de 16 de maro daquele ano, pois a regio de Palmas e Guarapuava,

    prprias para a criao do gado, apresentava grandes vantagens, em relao Provncia de

    So Pedro, principalmente pela maior proximidade com os centros consumidores, o que

    facilitaria o transporte de animais, um dos maiores obstculos dos tropeiros31. Para facilitar

    as entradas nos campos de Guarapuava e Palmas, as expedies utilizavam-se dos indgenas

    25 MABILDE, Pierre. Apontamentos sobre os ndios Selvagens das Naes Coroados do Mato da

    Provncia do Rio Grande do Sul 1836-1866. So Paulo: IBRASA, p. 125. Pierre Mabilde fo i um engenheiro

    Belga que conviveu com os indgenas no sculo XIX. 26

    Nome pelo qual eram conhecidos os Kaingng, devido ao seu corte de cabelo em forma de coroa. 27

    Os Xokleng eram conhecidos por botocudos, devido a um botoque que era colocado na parte inferior

    do seu lbio por meio de um ritual de passagem da fase de criana para a vida adulta, apenas nos indivduos de

    sexo masculino. Pertencem ao tronco lingustico Macro J. 28

    DANGELIS, W ilmar da Rocha. Para uma histria dos ndios do oeste catarinense. In: Cadernos do CEOM: CEOM 20 anos de memrias e Histrias do Oeste de Santa Catarina. Chapec: Argos, 2006. Ano 19, n

    o

    23, p. 278. 29

    Ibidem, p. 282. 30

    Cf. DANGELIS. Idem. Naquele perodo anterior a demarcao de terras pertencentes ao Paran e Santa Catarina, dos Campos de Palmas incluem do Paran atual, apenas os municpios de Clevelndia e Palmas,

    enquanto do atual estado de Santa Catarina abrange onze municp ios, de So Loureno do Oeste a Quilombo, a

    oeste; at caador, Rio das Antas e Videira, a leste. 31

    MARCON, Telmo. A trajetria Kaingng no Sul do Brasil. In : MARCON. Telmo (coord). Histria e

    Cultura Kaingng no sul do Brasil. Passo Fundo: Graf. Ed. Universidade de Passo Fundo, 1994, p. 61.

  • 26

    chamados mansos na pacificao dos considerados arredios. Os primeiros eram atrados pelo

    governo e nomeados com patentes militares32. Vitorino Cond foi um destes chamados ndios

    mansos que ajudou os no-indgenas a aldear vrios grupos no Oeste de Santa Catarina.

    Segundo DAngelis 33, Cond pertencia s hordas Kaingng que haviam aceitado a

    convivncia pacfica com os fazendeiros em Guarapuava. Mostrando as consequncias atuais

    que a aliana de Cond trouxe para seu povo, Ntzold 34 assinala que, naquele momento, os

    Kaingng no tinham conscincia de ser uma nao, e Cond pensava estar beneficiando seu

    grupo.

    So desse perodo os aldeamentos que tinham por objetivo liberar terras para as frentes

    de expanso e transferir os indgenas para espaos cada vez mais reservados, tendo assim seu

    controle e, aos poucos, ir introduzindo-os na sociedade nacional por meio da sedentarizao

    que se dava com a agricultura, criao de pequenos animais, utilizao de objetos no

    indgenas. Durante a atuao do SPI, o nome aldeamento foi substitudo por povoaes

    indgenas, as quais, porm tinham o mesmo objetivo dos aldeamentos do sculo XIX. Como

    destaca DAngelis35, por volta de 1856 (ano em que Cond foi para Chapec), podemos

    aceitar a localizao dos Kaingng na regio oeste catarinense pelo menos nos seguintes

    locais: Toldo Xapec, Toldo Formigas, Toldo Jacu, entre outros no mdio Chapec e

    Chapeczinho.

    Devido aos conflitos referentes s fronteiras, no entanto, o governo percebe que deve

    proteger o territrio contestado entre Brasil e Argentina e, em seguida, entre Paran e Santa

    Catarina. O Governo Imperial resolve, ento, determinar a instalao das Colnias Militares

    do Xapec e Chopim, que haviam sido criadas pelo decreto n.o 2502 de 16 de novembro de

    1859. Em 02 de maro de 1882, a Colnia militar do Xapec instalada no Xanxer36, e

    essa mesma colnia, querendo abrir uma picada para instalao de linhas telegrficas, contrata

    como mo de obra barata os indgenas de Chapec e Clevelndia. No final desse servio, em

    lugar do pagamento em dinheiro, o lder do grupo, Cacique Vanhkr, pediu que fossem dadas

    terras para seu povo. nesse momento que se origina a rea da TI Xapec, que tem essa

    denominao porque se encontra entre os rios Chapec e Chapeczinho, tendo origem atravs

    32

    Hoje ainda mantm-se algumas patentes dentro da rea indgena, como major, capito. 33

    DANGELIS, W. da R. Para uma histria dos ndios ... Op. Cit., p. 285. 34

    NTZOLD, Ana Lcia Vulfe . Nosso Vizinho Kaingng. Florianpolis: Imprensa Universitria da

    UFSC, 2003, p. 75-76. 35

    DANGELIS, W. da R. Para uma histria dos ndios... Op. Cit., p, 305. 36

    Ibidem, p. 308.

  • 27

    do Decreto no. 7, de 18 de junho de 1902 (anexo 1), assinado pelo Presidente 37 do Estado do

    Paran, Francisco Xavier da Silva. Nesta poca, a regio fazia parte do Paran, limites de terra

    que se resolvem aps o conflito do Contestado.

    Apesar da concesso da rea, os conflitos ainda continuaram e foram motivo de novas

    medies de terra. A partir do incio do sculo XX, a explorao madeireira tem um surto na

    regio oeste do estado, alm do aumento na povoao, pela vinda de indivduos do Rio

    Grande do Sul, que adquiriram terras no territrio ocupado pelos indgenas atravs da compra

    de ttulos das empresas colonizadoras. A venda de madeiras, principalmente de araucrias, foi

    responsvel pelo desmatamento encontrado hoje na rea indgena. Um dos madeireiros

    responsveis pela extrao dessas rvores foi Alberto Berthier de Almeida, de Passo Fundo

    RS. Ntzold38 menciona este madeireiro em sua pesquisa, ressaltando que ele conseguiu

    novas medies nas terras Kaingng e se apossou de uma parte do territrio com ajuda de

    encarregados corruptos do rgo de proteo que colaboravam com os madeireiros e

    fazendeiros. O antroplogo e pesquisador da temtica indgena Slvio Coelho dos Santos

    aponta que:

    [...] em Xanxer, municpio onde se localiza a reserva Dr. Selistre de Campos [...] at 1916, quando do acordo de limites entre o Paran e Santa Catarina, a regio tinha sua economia baseada na criao de gado e extrao de erva mate. Propriamente no havia pretenses da populao regional sobre a rea reservada aos ndios nas vizinhanas dos rios Chapec e Chapeczinho. Quando, entretanto a questo de limites resolvida, uma nova frente pioneira atinge a regio [...] a reserva comea a ser cobiada. A nova frente pioneira

    baseava-se na atividade agrcola e na extrao de madeiras39

    .

    Durante esse perodo, foram introduzidas serrarias na rea indgena e, com isso, deu se a

    derrubada de muitos pinheiros. Entre 1966 e 1968 estima-se a derrubada de 60.000

    pinheiros 40.

    37

    Aps a Proclamao da Repblica, as provncias passam a se chamar Estado, porm os governadores

    destes lugares continuaram a ser chamados de presidentes. 38

    NTZOLD, A.L.V. Nosso Vizinho... Op.Cit ., p. 84-85. 39

    SANTOS, Slvio Coelho dos. A Integrao do ndio na sociedade regional. A funo dos postos

    indgenas em Santa Catarina. Imprensa Universitria da UFSC, 1970, p. 81. 40

    SANTOS, Slvio Coelho dos. Educao e Sociedade Tribais . Porto Alegre/RS: Movimento, 1975, p.

    28.

  • 28

    As modificaes no meio em que vivem, consequentemente, trazem outras

    transformaes em vrios aspectos da tradio indgena. Os registros de Pierre Mabilde

    referentes metade do sculo XIX registram que os alojamentos dos Kaingng,

    [...] so formados de ranchos com vrios tamanhos e configuraes. Todos so cobertos com as folhas do gerivaseiro (Arecastrum (cocos) Romanzoffianum) ou com fetos arborescentes (Alsophyla arborescens). Fazem ranchos de forma prismtica a que, entre ns, chamamos de ranchos de beira do cho. Estes, em geral, so os ranchos dos caciques e dos selvagens que tm mulher em sua companhia, os ranchos de beira do cho, cuja construo conhecida, so de tamanhos diversos e proporcionados ao nmero de indivduos que deve conter. Em geral, tm mais ou menos de 15 a 25 palmos de comprimento, 10

    palmos, mais ou menos, de altura, e de 10 a 12 palmos de largura, na base41

    .

    Os ranchos dos indgenas solteiros so menores e feitos com varas atadas com cip e

    depois cobertas com a folha do gerivaseiro.

    A organizao social Kaingng marcada pelas duas metades exogmicas, Kam e

    Kairu, duas metades que se complementam e que perpassam toda a vida desse povo. O mito

    de origem Kaingng contado de diversas maneiras, pois passado de gerao em gerao e

    cada pessoa repassa o mito com algumas modificaes, mas sem que perca o sentido. Os

    detentores desse saber podem ser considerados, segundo Le Goff 42, como homens e

    mulheres43 memria, com importante papel de manter a coeso do grupo, pois a memria

    construda de acordo com o contexto da poca, sendo tambm seletiva e reelaborada. A

    memria, medida que traz a tona elementos do passado, tambm colabora na construo da

    identidade. Pollak44 aponta que a memria um elemento constituinte do sentimento de

    identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela tambm um fator

    extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa ou de

    um grupo em sua reconstruo de si. Segundo os mais velhos, o povo Kaingng surgiu de um

    buraco, onde:

    41

    MABILDE, P. Op. Cit., p. 39. 42

    LE GOFF, Jacques. Histria e memria. II vol. Lisboa: Ed ies 70, 1982, p. 14. 43

    Grifo meu, pois mes mo que homens possam tambm englobar o sexo feminino, ressaltamos que as mulheres tambm perpassam os mitos e tradies de seu povo.

    44 POLLAK, Michael. Memria e identidade social. Estudos Histricos: Rio de Janeiro, vol 5, n.

    o 10,

    1992, p. 5.

  • 29

    certo dia, bem de manhzinha quando o sol estava nascendo, a terra se abriu formando um buraco e nasceu um grupo, olharam e viram o arredondado do sol e deram ao grupo o nome de Kanhru. tarde, quando o sol estava se pondo, a terra tornou-se a abrir formando outro buraco e nasceu outro grupo, que olharam e viram os raios do sol e deram o nome do grupo de Kam. Esses dois grupos se uniram e esto vivendo at hoje e por isso que o povo

    Kaingng tem a cor da terra45

    .

    As pessoas correspondentes a mesma metade so consideradas como irms, por isso os

    casamentos devem ser realizados entre pessoas de cada metade: Kam, representado por um

    risco preto, s pode casar-se com Kairu, representado por um crculo vermelho, e vice-versa.

    Hoje, porm, na TI Xapec so raros os casos que levam em considerao essa ressalva no

    matrimnio. Essas duas marcas tambm so pinturas corporais para as danas e rituais.

    Antigamente, extraiam a cor preta do carvo do pinheiro queimado e aferventado na gua e a

    vermelha da planta sete sangria ou do cip guabiroba. Hoje, devido falta de matria-prima,

    utilizam outras formas de colorao nas pinturas corporais, como as tintas artificiais.

    Um dos principais rituais Kaingng o Kiki, ritual de passagem dos mortos aps um

    ano ou mais de seu falecimento. Durante o Kiki, so realizadas rezas feitas por rezadores, e o

    som marcado pelo marac, instrumento sagrado feito de porongo, em cujo interior so

    colocadas pedrinhas ou sementes que, ao balanar, emitem um som. As rezas so iniciadas

    pela famlia cujo membro tenha morrido naquele perodo. Os rezadores so as pessoas mais

    velhas das duas metades e conhecedores das oraes. O ritual do Kiki demanda vrios dias

    para que possa ser realizado. Segundo Curt Nimuendaj, em seu trabalho etnogrfico sobre os

    Kaingng:

    Esta festa se realiza geralmente uma vez por ano, logo que o milho na roa d para fazer a bebida Kik [...] Os rezadores se renem alguns dias antes da festa cada noite e narram a tradio do princpio do mundo que com todas as suas mincias serve de base e justificao para os diversos atos da cerimnia da festa [...] Limpam dois lugares, da aldeia para o lado do Oriente, numa distncia que de um no se enxerga o que se passa no outro, servindo um lugar para os Kam, o outro para os Kaer prepararem o material. As pessoas nomeadas para este fim procuram rvores ao leste da aldeia, os Kam uma canela brava, os Kaer um pinheiro... Preparado tudo, especialmente tambm o Kk num coxo grande, comea a dana no dia seguinte. Todos se reunem na casa grande, diante da qual se faz uma fogueira comprida [...] Formam-se os dois grupos, dos Kaer e Kam. Primeiro rompem os Kner, saindo danando da casa grande, mas chegando num certo ponto, param e esperam os

    45

    NTZOLD, Ana Lcia Vulfe. & MANFROI, Ninarosa Mozzato da Silva. (orgs). Ouvir memrias,

    contar histrias: Mitos e lendas Kaingng. Santa Maria/RS: Pallotti, 2006, p. 22-23.

  • 30

    Kam que passam por eles, e em seguida os dois cls tomam seus lugares de

    ambos os lados da fogueira46

    .

    O ritual religioso tem por finalidade uma boa passagem para os mortos e tambm para

    que seu nome seja liberado e utilizado por outras pessoas. O ritual seguido de oraes e

    danas. O ltimo Kiki realizado na TI Xapec se deu em 2004. Desde ento no mais

    aconteceu, devido morte de rezadores.

    As mudanas culturais, ambientais e alimentares na TI Xapec se deram de forma

    mais intensa aps a instalao do posto indgena, durante o perodo de atuao do SPI, sendo

    que a paisagem foi se modificando rapidamente devido ao desmatamento. O senhor Sebastio

    Mendes, hoje com 66 anos de idade, morador da aldeia sede da TI Xapec, ao re ferir-se ao

    tempo passado, diz que muita coisa mudou:

    [...] no passado tinha (pinho). Na poca aqui at tigre tinha na vereda desse rio a. Desse alagado a porque era mato. Mas depois entro a os, como se diz os branco entraro e da demoliro com tudo, de resto s aquele ali oh. Da pra

    conta aqueles pinheiro que tem ali oh47

    .

    Por meio de seu relato, pode-se perceber um olhar diante das mudanas decorridas na

    rea que compreende a TI Xapec (Fig.2), posterior insero do PI Chapec (1941), em que

    o entrevistado refere-se a um ambiente que se modificou rapidamente desde o tempo em que

    era criana. Essa rea passou por transformaes que no atendem mais as necessidades

    daquela poca. Por exemplo, hoje h extino e escassez de matria-prima para o artesanato,

    para a colheita de ervas medicinais utilizadas como remdios, e de frutos e razes utilizados na

    alimentao. O modo de viver tambm j no o mesmo, pois as pessoas esto inseridas num

    meio transformado e precisam adaptar suas necessidades s mudanas ocorridas.

    46

    NIMUENDAJ, Curt. (organizao e apresentao de Marco Antonio Gonalves). Etnografia e

    indigenismo sobre os Kaingng, os Ofai-Xavante e os ndios do Par. Campinas: Editora da UNICAMP,

    1993, p. 67- 68. 47

    MENDES, Sebastio. Entrevista concedida a Ninarosa M. da Silva M.; Talita D. Salvaro;

    Jackson Alexsandro Peres, em 23 de abril de 2007, Terra Indgena Xapec/SC.

  • 31

    O ambiente atual que presenciamos durante as pesquisas de campo 48 o de um

    territrio com pouca mata nativa, sendo que as araucrias quase no existem mais. As casas

    so na sua maioria de madeira. H estradas de cho que ligam as aldeias uma com as outras e

    com a cidade, mas apresentam grande precariedade, principalmente nos dias chuvosos. Nem

    todas as comunidades tm energia eltrica. A aldeia Paiol de Barro foi atendida apenas em

    2006, atravs do projeto do Governo Federal Luz para todos.

    FIGURA 2 - Vista da aldeia Sede da TI Xapec, com a EIEB Cacique Vanhkr e o ginsio de esportes em primeiro plano49.

    A etnia Kaingng, com uma populao aproximada de 29 mil pessoas50 ocupa cerca de

    30 reas reduzidas, distribudas sobre seu antigo territrio histrico. (Fig.3).

    48

    Pesquisas de campo realizadas durante o perodo de pesquisa de projetos desenvolvidos pelo

    LABHIN em parceria com os Kaingng e pesquisa do TCC e mestrado. Estas sadas so acompanhadas pela

    Profa. Dr

    a . Ana Lcia Vulfe Ntzo ld e integrantes do laboratrio.

    49 SALVARO, T. D. Aldeia Sede da TI Xapec. Ipua, 2006. Acervo da autora. 1 fotografia color

    digital. 50

    Disponvel em http://www.portalkaingang.org/index_povo_1htm acesso em 08 de fevereiro de 2008.

  • 32

    FIGURA 3 Mapa com a localizao das Terras Indgenas Kaingng51.

    Anterior denominao Kaingng, estes indgenas j foram chamados de Chiquis,

    Gualachos, Coroados. A denominao atual foi includa na literatura por Telmaco Borba, o

    qual diz ser o primeiro a utiliz- la, porm em suas pesquisas, o historiador Lcio Tadeu

    51

    Mapa com as Terras Indgenas Kaingng. Disponvel em

    http://www.socioambiental.org/pib/epi/kaingang/loc.shtm, acesso em 07 de novembro de 2007.

  • 33

    Mota52 mostra que Frei Luiz de Cimitile e Alfredo D Escragnolle Taunay usaram, na mesma

    poca, em seus escritos, tal nominao. Tanto Borba como Cimitile j haviam sido

    informados pelos Kaingng de sua autodenominao e de que no gostavam de ser chamados

    de Coroados.

    Elles porem no gostam deste appelido, e a si mesmos chamam-se Caingang, que em lngua portuguesa quer dizer ndio ou antes Aborgene, elles tambm se chamam Caingang-p (ndio legtimo) e Caingang-venher (ndio cabello cortado) mas os historiadores sempre o tratam pelo nome de Cams, palavra

    cuja etymologia ainda no conhecemos53

    .

    A nominao que determina a etnia, assim como o nome que cada indivduo possui,

    representa uma forma de identificao. No apenas denomina o grupo, mas o cria,

    estabelecendo sua coletividade. Poutignat e Streiff-Fenart54 destacam em seus estudos sobre

    etnicidade que a nominao no somente um aspecto particularmente revelador das relaes

    intertnicas, ela por si prpria produtora de etnicidade. E, ainda, segundo Barth55, a

    etnicidade uma forma de organizao social, baseada na atribuio categorial que classifica

    as pessoas em funo de sua origem suposta, que se acha validada na interao social pela

    ativao de signos culturais socialmente diferenciadores. Estes signos so pertencentes

    cultura do grupo que, por mais que seja reelaborada e transformada, mantm a coeso pelo

    seu lao de pertencimento.

    O nome do indivduo em Kaingng importante para seu povo, pois nele est

    registrada sua identidade. A nomeao da criana acontecia em um ritual bem simples, no

    qual o pai escolhia o nome da criana, reconhecendo assim a paternidade, e passava o recm-

    nascido s mos da me56. Os partos eram realizados por parteiras, porm hoje a maioria

    acontece no Hospital, por meio da cirurgia cesariana. O nome em portugus e em Kaingng

    so registrados no PI Xapec, localizado na aldeia Sede, administrado por funcionrios da

    52

    MOTA, Lcio Tadeu. A denominao Kaingng na literatura antropolgica, histrica e lingstica.

    In: MOTA, L. T.; TOMMASINO, K.; NOELLI, F. S. Novas contribuies aos estudos interdisciplinares dos

    Kaingng. Londrina: Eduel, 2004, p. 8-11. Mota tambm assinala que o militar Camilo Lellis da Silva registrou

    o nome Caegang quando da sua viagem de demarcao da futura estrada que deveria ligar Guarapuava ao rio

    Paran. 53

    Cf. Frei Luiz de Cemitile. Memria sobre os costumes e religio dos ndios Cams ou Coroados que

    habitam na Provncia. In: Catlogo dos objetos do Museu Paranaense remettidos exposio Anthropologica do

    Rio de Janeiro. Curit iba, 1882. Apud. Mota, L. T. A denominao Kaingng ... Op.Cit., p. 6. 54

    POUTIGNAT, P. & STREIFF- FENART, J. Op. Cit., p. 143. 55

    Ibidem, p. 141. 56

    NTZOLD, A. L.V. O ciclo de vida... Op. Cit., p. 26.

  • 34

    FUNAI. O nome na lngua materna dado pelo Senhor Cezrio Pacfico, que tem 60 anos de

    idade e, h 32 anos, trabalha no posto auxiliando no registro do nome Kaingng. L os pais

    chegam com os filhos e pedem para que ele coloque um nome indgena. Esse nome s vezes

    vem de casa j escolhido pelos pais, e outras vezes o prprio senhor Cezrio que nomeia:

    Importante para ns ter um nome de ndio, pra nunca terminar que se ns no ponha nome de ndio no comprova l fora, l fora voc tem que ter o nome de ndio pra voc comprov que ndio, at documento tem que ter nome de ndio, da comprova que voc tambm nascido aqui, nessa reserva, se voc nascido no Rio Grande, Nonoai, tambm tem no documento, nascido tal dia, na Reserva Indgena Nonoai e o nome assim de ndio n, qualquer lugar que voc nasceu no Posto de Mangueirinha, no posto de Palmas, tambm tem tudo o dia que voc nasceu e o nome de ndio. Voc nasceu l, ento no documento comprova se voc nascido l tal lugar, e meu nome t aqui, da voc pode chegar em qualquer delegacia, qualquer, s vezes voc t viajando, voc procura o lugar e no pode achar, da voc vai numa delegacia eu sou ndio assim, assim, talvez voc no levou a portaria do posto, mas na tua identidade

    voc comprova que ndio57

    .

    Est presente na fala do senhor Cezrio a preocupao na afirmao de sua identidade

    frente ao no indgena, pois frente ao diferente que a identidade realada. De acordo com

    Pollak58, a construo da identidade um fenmeno que se produz em referncia aos outros,

    em referncia aos critrios de aceitabilidade, e uma das maneiras de afirmao por meio do

    nome. Cada nome tem um significado, podendo ser nome de madeira, de flor, de animal,

    como por exemplo, Kapur, que significa rvore seca, ou Karro, que simboliza tempestade, e

    Kres que quer dizer cesto ou balaio.

    As mudanas citadas acima no desqualificam os Kaingng como pertencentes a sua

    etnia, pois a cultura modifica-se ao longo do tempo, sendo construda de acordo com o

    contexto de sua poca. O importante a assinalar nesse momento que os Kaingng so

    pertencentes a um grupo e que esse lao de afetividade se d tambm por fatores culturais,

    mas principalmente pela coeso mantida pela idia de pertencimento.

    57

    PACFICO, C. Entrevista. Op. Cit. 58

    POLLAK, M. Memria e Identidade social... Op. Cit., p. 5.

  • 35

    1.2 - A memria compondo a histria: Tempo Presente e a Metodologia da Histria Oral

    Este momento dedicado aos percursos do trabalho com a Metodologia da Histria

    Oral que, juntamente com fontes escritas, compem esta pesquisa de mestrado. As fontes

    orais a que nos referimos so entrevistas, que tambm constituem uma fonte escrita, pois, de

    acordo com a Metodologia que utilizamos, aps o processo de gravao, so transcritas 59.

    Nesta etapa, passam a compor um documento, como outros que os historiadores esto

    habituados a analisar em arquivos, bibliotecas, acervos pessoais, sejam estas fontes

    iconogrficas, multimdia, documentos oficiais, jornais, cartas. Sendo assim, no momento da

    transcrio, a entrevista produzida de acordo com os critrios metodolgicos, constitui-se em

    uma fonte histrica, com os problemas, cuidados e anlises requeridos por qualquer outra. O

    diferencial dessa fonte em relao a outras que o historiador participa de seu processo de

    construo e, por seu intermdio e uso da metodologia da histria oral, esta se torna um

    documento. Todas as fontes histricas so produzidas de alguma forma por algum; so fruto

    de um contexto, de uma poca e de uma interpretao.

    Enumeramos alguns pontos que demonstram a importncia da utilizao de

    entrevistas neste trabalho: 1) contempla um tema contemporneo, principalmente para a

    educao escolar indgena; 2) possibilita visibilidade aos agentes da histria, nesse estudo, os

    Kaingng da TI Xapec; 3) mostra diferentes pontos de vista sobre um mesmo assunto; 4)

    contempla o vis social; 5) abre um leque maior de investigaes por si mesma em dilogo

    com outras fontes.

    A histria oral auxiliou na construo da histria do povo Kaingng, no que se refere

    principalmente educao escolar indgena, uma vez que os sujeitos participantes de seu

    prprio processo histrico contriburam para o enriquecimento da pesquisa por meio dos

    relatos e interpretao dos fatos questionados, fazendo parte do dilogo desta dissertao. A

    histria oral compe um campo de investigao juntamente com demais fontes, pois esse

    corpo documental pode nos levar a vrias outras interrogaes que ajudam a elucidar a

    pesquisa. Thompson60, ao discutir o uso dos relatos orais como fonte, mostra que a entrevista

    se constitui em um meio para descobrir documentos escritos e fotografias que, de outro modo,

    59

    Em nossa pesquisa utilizamos a transcrio, mtodo em que a g ravao passa para a escrita sem

    modificaes do transcritor. 60

    THOMPSON, P. Op. Cit., p. 25.

  • 36

    no teriam sido localizados, sendo que muitas vezes esto sob posse da pessoa ou de sua

    famlia, e que podem ser documentos essenciais para mapear a pesquisa.

    Este tema de mestrado insere-se na histria do tempo presente e utilizamos, como

    citado acima, a Metodologia de Histria Oral, que utilizada como uma ferramenta no estudo

    da histria contempornea. O tempo presente designa-se aqui por um perodo que se

    manifesta na memria da comunidade Kaingng da TI Xapec e que reflete o tempo passado

    no presente. Portanto, o perodo em que a lngua materna foi proibida durante o SPI e o

    perodo em que ela foi garantida em lei e retomada na escola exercem importncia para que

    atualmente se perceba a valorizao e a identidade tnica, mantida por meio do ensino da

    lngua materna nas escolas, questes do presente trazem tona o passado, dando-lhe um

    sentido e uma funo.

    O tempo presente no pode ser definido para um grupo sem que ele tenha significado.

    Como nos coloca Le Goff61, o marco do que contemporneo ou do que se pode chamar de

    presente depende da conscincia nacional do povo ou da sociedade. Cabe ao historiador

    delimitar na sua pesquisa aquilo que ele entende como tempo presente para o seu estudo e

    verificar se o grupo estudado tem essa delimitao como um fator hodierno nas suas

    memrias.

    A histria do tempo presente foi tida no sculo XIX e XX como histria de amadores.

    Em contrapartida, havia a histria dita cientfica, aquela produzida por meio de fontes escritas

    e documentais. A histria medieval e moderna eram consideradas como matrias que

    requeriam especializao para serem estudadas, portanto, foram na poca, o campo de estudo

    de historiadores com formao profissional, ao contrrio da histria contempornea, que era

    produzida por amadores. Por esse motivo, segundo Marieta Ferreira62, com base na delegao

    da impossibilidade de lhe serem aplicadas regras cientficas, foi recusado histria

    contempornea, o estatuto de histria. Alm disso, a histria era tida como o estudo do

    passado. Sendo assim, o que era denominado como Histria eram fatos que j aconteceram e

    que esto arquivados.

    Com a gerao de historiadores conhecida como cole des Annales que a histria at

    ento centrada nas questes citadas acima comeou a tomar novos rumos. Essas mudanas

    61

    LE GOFF, J. Op. Cit., p. 207-208. 62

    FERREIRA, Marieta de Moraes; ABREU, Alzira Alves [ET all] (coord .). Entrevistas: abordagens e

    usos da histria oral. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998, p. 2. Disponvel em: http://www.cpdoc.

    fgv.br, acesso em 07 de outubro de 2007.

  • 37

    no chegaram a modificar o uso das fontes orais no sentido de sua utilizao, mas opuseram-

    se histria positivista, trazendo tona concepes do econmico e do social. Foi de 1965 a

    1977 que se assistiu a um extraordinrio desenvolvimento dos centros de histria oral nos

    EUA, em 1967 foi criada a American Oral History Association e em 1973 foi lanada a Oral

    History Review63. Os questionamentos direcionados histria do tempo presente se deram

    sempre em direo a sua cientificidade, credibilidade e fidedignidade das fontes. Porm,

    mesmo com todas as discusses em torno desses fatores, a histria do tempo presente vem

    obtendo espao no campo historiogrfico, sendo fundamento de muitas pesquisas.

    O historiador Paul Thompson publica em 1978 a obra A voz do passado, pioneira

    sobre a temtica de histria oral no que se refere s questes metodolgicas e abre uma

    discusso sobre o uso de fontes orais. Thompson atribui histria um vis social pertinente s

    questes contemporneas, situando a histria oral como um mecanismo que contribui para

    esse propsito. Segundo o mesmo autor, o desafio da histria oral relaciona-se em parte com

    essa finalidade social essencia l da histria64. Para Thompson, a histria adquire sentido ao

    dar pesquisa uma funo social. Buscamos focar essa funo social no momento em que

    nossa pesquisa atinge a sociedade trabalhada, trazendo- lhe questionamentos sobre o seu

    prprio grupo: i) no retorno da pesquisa; ii) no conhecimento compartilhado; iii) na auto

    estima das pessoas quando percebem que esto contribuindo para o registro da sua prpria

    histria e; iv) de acordo com Thompson65, utilizando a histria oral para alterar o enfoque da

    prpria histria e revelar novos campos de investigao. Dessa forma, pode devolver s

    pessoas que fizeram e vivenciaram a histria um lugar fundamental diante de suas prprias

    palavras.

    A histria oral inserida no campo da histria na medida em que a historiografia passa

    a contemplar a histria social e cultural. considerada uma metodologia recente

    principalmente porque para sua efetivao necessria a utilizao do gravador 66, que por si

    s uma inveno moderna.

    A legitimidade dessa metodologia ainda questionada, apesar de seu uso frequente em

    pesquisas que tratam especialmente de alguma dimenso social e cujos sujeitos sejam

    63

    Ibidem, p. 4. 64

    THOMPSON. P. Op. Cit., p. 21. 65

    Ibidem, p. 22. 66

    A primeira mquina de gravar, chamada fongrafo, foi inventada em 1877, e o gravador em fio de

    ao, pouco antes de 1900. Na dcada de 1940 tinha-se a fita magntica e tinha sido posto venda o primeiro

    gravador de rolo. Os gravadores de cassete aparecem na dcada de 1960. Ver em THOMPSON, P. A voz do

    passado, p. 84. (Hoje tambm se utilizam gravadores digitais, mp4).

  • 38

    coetneos. Sua utilizao pode ser notada em trabalhos com as chamadas minorias, grupos e

    indivduos que no apareciam como sujeitos no processo histrico e, portanto, no eram

    privilegiados nos estudos, como operrios, negros, indgenas e mulheres, que agora passam a

    fazer parte do conhecimento histrico. A histria privilegiava os grandes heris e as pessoas

    mais importantes da sociedade como polticos, burguesia, e mesmo no incio da utilizao da

    histria oral estes personagens que foram entrevistados.

    Anterior utilizao da histria oral, os relatos de que temos conhecimento sobre as

    populaes indgenas eram obtidos por meio do outro no indgena, e refletiam a sua

    concepo e o contexto da poca. O dizer do indgena, ento, no era relatado. O que se

    verifica, portanto, que a histria oral possibilita para os pesquisadores um leque maior de

    investigao e representa para estes povos a possibilidade de serem escutados a fim de que se

    produza um conhecimento histrico a partir do relato da narrativa, do que o ndio tem para

    expressar67, percebendo, assim, o seu prprio pensamento sobre sua histria.

    As discusses em torno da evidncia oral so um ponto em voga, com questes que

    abarcam desde a sua credibilidade e utilizao, at a metodologia. Ao remeter-se

    fidedignidade das fontes e ao compar- la anlise de outras, Thompson68 mostra que:

    [...] do mesmo modo que o material de entrevistas gravadas, todos eles (outros documentos) representam, quer a partir de posies pessoais ou de agregados, a percepo social dos fatos, alm disso, esto todos sujeitos a presses sociais do contexto em que so obtidos. Com essas formas de evidncia, o que chega

    at ns o significado social, e este que deve ser avaliado.

    A histria oral uma metodologia, uma ferramenta a mais para se trabalhar com a

    histria do tempo presente69. Ela auxilia na interpretao dos fatos em que as pessoas que

    deles participaram so nossas contemporneas e podem contribuir com a sua memria sobre

    os acontecimentos, dialogando tambm com as fontes documentais. Meihy70 define a histria

    oral como um recurso moderno usado para a elaborao de documentos, arquivamento e

    estudos referentes experincia social de pessoas e de grupos. Ela sempre uma histria do

    67

    FREITAS, Edinaldo Bezerra de. Fala de ndio, Histria do Brasil: o desafio da Etno -Histria

    Indgena. In: Revista da Associao Brasileira da Histria Oral, no. 7,vol. 7 / junho de 2004. So Paulo:

    Associao Brasileira de Histria Oral, p. 184. 68

    THOMPSON, P. Op. Cit., p. 145. 69

    A histria do tempo presente pode tambm ser feita atravs de documentos e no necessariamente

    com o uso da histria oral. 70

    MEIHY, Jos Carlos Sebe Bom. Manual de Histria Oral. 4 ed. So Paulo: Ed ies Loyola, 2002,

    p.13.

  • 39

    tempo presente e tambm reconhecida como histria viva. No vamos identificar verdades ou

    mentiras nos relatos de nossos colaboradores, mas sim o modo como o fato foi percebido e

    descrito, ou seja, as circunstncias dos relatos. Meihy71 assinala que a narrativa para a histria

    oral uma verso dos fatos e no os fatos em si.

    No qualquer entrevista, conversa, vdeo ou mesmo entrevista gravada sem a

    permisso da pessoa entrevistada que pode ser considerada como fonte. Sendo uma

    metodologia, h critrios que definem a histria oral. Esses critrios podem divergir em

    alguns aspectos, de acordo com regies e tericos utilizados para fundamentar a metodologia.

    Em nossas entrevistas, utilizamos o Manual de Histria Oral de Meihy72, que divide a histria

    oral em quatro momentos: 1) elaborao do projeto; 2) gravao; 3) confeco de documento

    escrito; 4) sua eventual anlise.

    O projeto o diferencial da histria oral. o meio pelo qual o registro oral no vai

    compor uma mera entrevista gravada, mas sim que esta tem por finalidade uma pesquisa,

    exercendo uma funo social e que, principalmente, estar regada de critrios que a tornam

    uma fonte. Nossas entrevistas no comportam um projeto especfico voltado diretamente a

    cada uma, porm deixamos claro que essa seria uma das metodologias utilizadas. De acordo

    com Meihy73, o projeto o principal diferenciador entre a histria oral e as demais reas que

    trabalham com entrevistas, pois de acordo com um estudo sobre a temtica que se mapeiam

    as pessoas que podero colaborar para a pesquisa, alm do que, o projeto viabiliza um melhor

    roteiro de questes.

    A gravao consiste no registro da oralidade por meio de um gravador, seja ele

    magntico ou digital. O momento da gravao requer alguns cuidados tcnicos como o uso do

    aparelho de gravao, quantidades de fitas ou disponibilidade de horas a serem gravadas.

    importante escolher um espao silencioso para a gravao, a fim de que no haja

    interferncias, mas isso tambm varia conforme o espao indicado pelo entrevistado, que

    dever ser aquele onde ele mais se sentir vontade.

    A confeco do documento acontece quando a oralidade passa para a escrita. H trs

    modelos, segundo Meihy, para essa fase. 1). a transcriao: digita-se como falado, mas sem

    as questes do entrevistador; 2). a textualizao quando se retiram os erros gramaticais e

    71

    MEIHY, J.C.S.B. Op. Cit., p. 100. 72

    Ibidem, p. 76. 73

    Ibidem, p. 162.

  • 40

    sons alheios; e 3). a transcrio, em que as palavras e sons so regis trados de acordo com as

    palavras do entrevistado. Optamos por esta ltima, pois, ao escutar ou ler a entrevista, mais

    fcil de as pessoas se identificarem com seus relatos. Os sons tambm so importantes para

    contextualizar o espao e o que se passava no momento daquela entrevista. importante na

    histria oral que no momento da produo do documento no se perca o sentido do relato oral.

    Ainda de acordo com Meihy74, so trs os elementos que formam a relao de histria oral: 1)

    o entrevistador; 2) o entrevistado; 3) a aparelhagem de gravao.

    Nossas entrevistas tiveram como objetivo central verificar como era a educao

    escolar no perodo do SPI e o reflexo hoje da proibio da lngua Kaingng na educao

    escolar indgena, e principalmente como acontece a sua revitalizao atualmente. Portanto,

    centramos nossas atenes em algumas pessoas mais velhas da comunidade, cujas falas

    poderiam contribuir para o primeiro ponto citado acima, e com professores de lngua

    Kaingng e alunos da escola que compartilham desse perodo atual, em que a lngua

    ensinada na escola. O interessante que esses dois grupos, separados apenas pela faixa etria,

    como sujeitos eleitos para as entrevistas se intercalam no tempo e no centram suas narrativas

    apenas no perodo sugerido, pois os mais velhos hoje percebem a importncia do ensino da

    lngua que a eles fora proibida, e os mais jovens percebem a falta do uso social da lngua,

    retomando-a para fortalecimento da identidade, necessidade sentida por ambos os indivduos.

    O que queremos mostrar, portanto, que o tempo passado est to presente como o tempo

    presente necessita do passado, e que a memria compartilhada pelo grupo. As narrativas

    representam essa memria, principalmente pela tradio oral indgena, Delgado diz que:

    [...] narrativas sob a forma de registros orais ou escritos so caracterizadas pelo movimento peculiar arte de traduzir em palavras os registros da memria e da conscincia da memria no tempo. So importantes como estilo de transmisso, de gerao para gerao, das experincias mais simples da vida cotidiana e dos grandes eventos que marcaram a Histria da humanidade. So suportes das identidades coletivas e do reconhecimento do homem como

    ser no mundo75

    .

    A tica do entrevistador essencial para um bom trabalho. importante que o

    colaborador se sinta vontade com a pessoa e que no haja nenhum tipo de hierarquia entre

    eles. A simplicidade essencial para que