dê feedback à pessoa certa

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feedback à pessoa certa Flavio Farah* Quando eu estava no primeiro ano do curso de Engenharia, tive um professor de Cálculo que desa- gradou a mim e a meus colegas desde o início. O motivo era que ele não seguia o programa oficial da disciplina. Ele parecia decidir os temas a serem lecionados em cada aula com base em algum cri- tério que só ele conhecia, e esses temas não formavam um conjunto coerente. Começamos a ficar preocupados e irritados. Depois de algumas semanas, decidimos levar a situação ao conhecimento do gestor do curso. Antes que fizéssemos isso, porém, para nossa surpresa, aquele mestre, no começo de uma aula, pediu-nos desculpas e prometeu seguir o programa a partir daquele momento. Provavelmente, algum companheiro nosso tinha lhe revelado nossa intenção de reclamar junto ao gestor. Não sabíamos quem tinha sido mas ficamos frustrados e revoltados com a “traição”. Naque- le instante, não conseguimos perceber que o ato de nosso colega produziu exatamente o efeito que pretendíamos sem que o caso fosse levado à coordenação. O problema fora resolvido diretamente entre alunos e professor. Mais recentemente, trabalhei em uma instituição do governo como Assistente de Diretoria. Certo dia, eu estava reunido com um dos diretores, de nome Henrique*, em sua sala. A porta da sala esta- va aberta. Em dado momento, chegou Luiz Carlos*, o Gerente Financeiro. Ele entrou sem maiores cerimônias e, sem pedir licença, interrompeu nossa conversa, começando a falar com o diretor sobre o assunto que o levara até ali. Henrique respondeu disfarçando a má vontade e a irritação. Depois que Luiz Carlos saiu, ele falou para mim: Quem esse cara pensa que é para entrar desse jeito na minha sala e me interromper? Ele tá me enchendo a paciência faz tempo! Vou falar com o Edson! (Edson* era o Diretor Administrativo, a quem eu era vinculado, e superior imediato de Luiz Carlos). Na hora não falei nada. Voltei para minha sala e, depois de meditar alguns minutos, retornei à sala dele. ― Henrique, disse eu, se você falar com o Edson, pode ser que ele repreenda o Luiz Carlos. Se ele fizer isso, você terá conseguido o que quer mas terá arruinado sua relação com o Luiz. Eu acho que ele não faz por mal. Você podia falar diretamente com ele em vez de falar com o Edson. Se você fizer isso, eu acho até que o Luiz Carlos vai tomar um susto porque ele nem percebe que está sendo mal educado. Também acho que ele vai lhe pedir desculpas. O que o Henrique fez? Nem uma coisa nem outra. Continuou na mesma situação, ruminando a raiva que ele tinha do Luiz Carlos e evitando o contato com ele. Qual a semelhança entre as duas situações? Ambas retratam uma atitude comum das pessoas. Quan- do alguém nos incomoda no local de trabalho, nossa tendência é reclamar com o chefe daquele que nos agride ou então não fazer nada até o momento em que não agüentamos mais e explodimos, partindo para a briga com o agressor. Por que não damos feedback diretamente a quem nos agride? Talvez porque a agressão nos humilha e reclamar com o agressor significaria “passar recibo” da humilhação. Para restaurar nossa dignida- de arranhada, temos a tendência de “dar o troco” sem prévio aviso, queixando-nos ao chefe imedia-

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Dê feedback à pessoa certa Flavio Farah*

Quando eu estava no primeiro ano do curso de Engenharia, tive um professor de Cálculo que desa-

gradou a mim e a meus colegas desde o início. O motivo era que ele não seguia o programa oficial

da disciplina. Ele parecia decidir os temas a serem lecionados em cada aula com base em algum cri-

tério que só ele conhecia, e esses temas não formavam um conjunto coerente. Começamos a ficar

preocupados e irritados. Depois de algumas semanas, decidimos levar a situação ao conhecimento

do gestor do curso. Antes que fizéssemos isso, porém, para nossa surpresa, aquele mestre, no

começo de uma aula, pediu-nos desculpas e prometeu seguir o programa a partir daquele momento.

Provavelmente, algum companheiro nosso tinha lhe revelado nossa intenção de reclamar junto ao

gestor. Não sabíamos quem tinha sido mas ficamos frustrados e revoltados com a “traição”. Naque-

le instante, não conseguimos perceber que o ato de nosso colega produziu exatamente o efeito que

pretendíamos sem que o caso fosse levado à coordenação. O problema fora resolvido diretamente

entre alunos e professor.

Mais recentemente, trabalhei em uma instituição do governo como Assistente de Diretoria. Certo

dia, eu estava reunido com um dos diretores, de nome Henrique*, em sua sala. A porta da sala esta-

va aberta. Em dado momento, chegou Luiz Carlos*, o Gerente Financeiro. Ele entrou sem maiores

cerimônias e, sem pedir licença, interrompeu nossa conversa, começando a falar com o diretor sobre

o assunto que o levara até ali. Henrique respondeu disfarçando a má vontade e a irritação. Depois

que Luiz Carlos saiu, ele falou para mim:

― Quem esse cara pensa que é para entrar desse jeito na minha sala e me interromper? Ele tá me

enchendo a paciência faz tempo! Vou falar com o Edson! (Edson* era o Diretor Administrativo,

a quem eu era vinculado, e superior imediato de Luiz Carlos).

Na hora não falei nada. Voltei para minha sala e, depois de meditar alguns minutos, retornei à sala

dele.

― Henrique, disse eu, se você falar com o Edson, pode ser que ele repreenda o Luiz Carlos. Se ele

fizer isso, você terá conseguido o que quer mas terá arruinado sua relação com o Luiz. Eu acho

que ele não faz por mal. Você podia falar diretamente com ele em vez de falar com o Edson. Se

você fizer isso, eu acho até que o Luiz Carlos vai tomar um susto porque ele nem percebe que

está sendo mal educado. Também acho que ele vai lhe pedir desculpas.

O que o Henrique fez? Nem uma coisa nem outra. Continuou na mesma situação, ruminando a raiva

que ele tinha do Luiz Carlos e evitando o contato com ele.

Qual a semelhança entre as duas situações? Ambas retratam uma atitude comum das pessoas. Quan-

do alguém nos incomoda no local de trabalho, nossa tendência é reclamar com o chefe daquele que

nos agride ou então não fazer nada até o momento em que não agüentamos mais e explodimos,

partindo para a briga com o “agressor”.

Por que não damos feedback diretamente a quem nos agride? Talvez porque a agressão nos humilha

e reclamar com o agressor significaria “passar recibo” da humilhação. Para restaurar nossa dignida-

de arranhada, temos a tendência de “dar o troco” sem prévio aviso, queixando-nos ao chefe imedia-

to do “imbecil” ou partindo logo para o revide. O problema é que, embora as duas alternativas satis-

façam nosso ego, ambas arruinam para sempre a relação com o outro.

Tive oportunidade de praticar o feedback direto na mesma entidade governamental que acabei de

mencionar.

Como disse acima, eu era assistente de Edson, o Diretor Administrativo. Sua secretária chamava-se

Rosana*. Uma vez, quando lhe pedi educadamente que me fizesse um certo trabalho, ela respondeu:

― Faça você, isso não é trabalho meu!

O sangue me subiu instantaneamente à cabeça e eu estive próximo, muito próximo de xingá-la com

os piores palavrões. Apesar de sua falta de educação, porém, consegui me conter, voltei para minha

sala e sentei para esfriar a cabeça. Eu precisava do auxílio de Rosana e tinha certeza de que dar su-

porte a mim fazia parte de suas atribuições. Eu podia obrigá-la a fazer o trabalho. Bastava ameaçá-

la ou ir falar com o Edson. Mas eu não queria fazer nem uma coisa nem outra. Eu queria que ela

mudasse de idéia. Comecei a pensar numa saída.

De repente, a ficha caiu. Percebi que Rosana reagiu daquela maneira porque talvez tivesse pensado

erradamente que eu queria “dar uma de chefe”, que eu queria dar ordens a ela sem ser seu superior.

Imaginei que, como conseqüência, ela talvez tivesse se sentido humilhada e esse sentimento fosse a

causa de sua reação.

A outra suposição que fiz foi que Rosana talvez acreditasse realmente não ter obrigação de me dar

suporte, enquanto eu pensava o contrário. Estávamos, portanto, em um impasse, e esse impasse ti-

nha que ser resolvido por alguém. Esse alguém só podia ser Edson, o diretor.

Com esse diagnóstico em mente, descobri o que eu tinha que fazer para que Rosana mudasse de ati-

tude. Fui até sua mesa e lhe disse:

― Rosana, eu pedi a sua ajuda não porque eu queria “dar uma de chefe”. Eu não lhe pedi suporte

porque gosto de lhe dar ordens. Também não foi por capricho nem para humilhar você. Eu lhe pedi

para você fazer aquela tarefa porque eu preciso da sua ajuda e porque não posso recorrer a ninguém

mais. Eu pedi a sua ajuda porque preciso terminar um trabalho que não é para mim, é para a

empresa. Se você não me ajudar, a empresa é que vai ser prejudicada.

Fiz uma pausa e observei sua reação. Ela ficou vermelha de vergonha. Acho que ela, naquele ins-

tante, percebeu o quanto tinha sido infantil e mesquinha e como sua atitude tinha sido não profissio-

nal, uma atitude que não combinava com sua posição de assistente de um diretor. Continuei:

― Você pensa que não é sua responsabilidade me dar suporte administrativo e eu penso que é. Isso

quer dizer que nós temos um problema e alguém precisa decidir essa situação. Eu vejo três alternati-

vas para resolver o impasse: (1ª) eu vou perguntar ao Edson se você deve ou não me dar suporte;

(2ª) você vai fazer essa pergunta ao Edson; (3ª) nós dois vamos perguntar ao Edson. Pode escolher.

Pense no assunto e depois me diga o que você resolveu.

*Nomes fictícios

Voltei para minha sala. Pouco depois, ela foi até mim e disse:

― Flavio, pode me dar o trabalho que eu vou fazer.

Ela não tinha escolhido nenhuma das três alternativas. Ela apenas resolveu me atender.

Ao me explicar com Rosana, ao dizer que estávamos em um impasse e que havia três alternativas de

solução, eu lhe dei feedback diretamente e lhe ofereci a possibilidade de escolher. Mesmo sem falar

nada, porém, também lhe dei implicitamente a oportunidade de voltar atrás, de reconhecer que esta-

va errada e de mudar seu comportamento por sua própria iniciativa, sem a humilhação de ser re-

preendida pela chefia. Ela aproveitou a oportunidade. O desfecho do caso significou o seguinte: ob-

tive aquilo de que eu necessitava, preservei minha relação com ela e me senti desagravado em rela-

ção à sua falta de educação.

Reconheço que é difícil nos contermos quando somos humilhados. Também devo ressaltar que dar

feedback ao ofensor só faz sentido quando este tem boa índole e nos ofende sem querer. Quando de-

cidi explicar a situação a Rosana, eu supus que ela era uma pessoa de bom caráter e que não tinha

tido a intenção de me humilhar. Minha estratégia poderia ter dado errado mas o fato de ter dado cer-

to mostra que a suposição que fiz estava correta.

*Flavio Farah é Mestre em Administração de Empresas, Professor Universitário e autor do livro “Ética na gestão

de pessoas”. Contato: [email protected].