david lagercrantz - a garota na teia de aranha

322

Upload: carlascala

Post on 03-Dec-2015

45 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

TRANSCRIPT

Page 1: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha
Page 2: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.siteouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."

Page 3: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha
Page 4: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

SUMÁRIOPrólogo:Umanoantes,aoraiardodiaI.Oolhoobservador(1oa21denovembro)II.Oslabirintosdamemória(21a23denovembro)III.Problemasassimétricos(24denovembroa3dedezembro)

Page 5: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

PRÓLOGOUMANOANTES,AORAIARDODIA

Esta história começa com um sonho, mas não um sonho particularmente notável. Apenas umamãobatendocommovimentosrítmicosecontínuoscontraumcolchãonovelhoquartodaLundagatan.Mesmoassim,osonhodespertaLisbethSalanderaoraiardodia,eemseguidaelasesentaemfrente

aocomputadorparadarinícioàcaçada.

Page 6: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

I.OOLHOOBSERVADOR1oA21DENOVEMBRO

ANSA—National Security Agency— é um órgão federal dos EstadosUnidos subordinado aoDepartamento deDefesa.OescritóriocentraldaorganizaçãoficaemFortMeade,Maryland,naautoestradadePatuxent.

Desdequefoifundada,em1952,aNSAtrabalhacomespionagemdetelecomunicações—hojeemdiasobretudo

internetetelefone.Oórgãoaospoucosfoiganhandocadavezmaispoderesehojeinterceptadiariamentemaisdevintebilhõesdeconversasecorrespondências.

Page 7: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

1.INÍCIODENOVEMBRO

FransBaldersempreseconsiderouummaupai.AugustjátinhaoitoanoseFransnuncahaviaseesforçadomuitoparaexercerasfunçõesdepaienem

podiadizerqueagorajásesentisseconfortávelnessepapel.Masodeverochamava,eeraassimqueeleestavaencarando.Omeninoandavapassandopormausbocadoscomamãe,ex-mulherdele,ecomLasseWestman,odesgraçadocomquemelatinhasecasado.Assim,FransBalderpediudemissãodeseuempregonoValedoSilício,pegouumaviãodevoltapara

casaenaquelemomento,quaseemestadodechoque,esperavaumtáxinoaeroportodeArlanda.Otempoestavainfernal.Umatempestadecastigavaseurosto,epelacentésimavezeleseperguntousehaviafeitoacoisacerta.Detodososmalucosnarcisistasdomundoquenãoveemnadaalémdopróprioumbigo,justamenteele

estava prestes a se tornar pai em tempo integral—que loucura seria essa?Era quase como arranjarempregonumzoológico.Elenãoentendianadadecrianças;parafalaraverdade,nãoentendianadasobreavida.Eoqueera aindamais estranho:ninguém tinhaexigidonadadele.Nemsuamãenemsuaavóhaviamtelefonadoexigindoqueeleassumisseaquelaresponsabilidade.FransBalder tomou a decisãopor conta própria e semavisoprévio, apesar deuma antigadecisão

judicialterdadoaguardadomeninoàmãe.Agoraelesimplesmentetinharesolvidoaparecernacasadaex-mulherelevarofilhoparaacasadele.Comcertezaaquilolhetrariaproblemas.ComcertezalevariaumasurradeLasseWestman,queficaria indignado.Masestavadecidido,eentrounumtáxiconduzidoporumamulherquemastigavachicletedesesperadamenteenquantotentavapuxarassunto.Maselanãootinhapegadonumbomdia.FransBaldernãogostavadeconversafiada.Simplesmente ficou sentadonobancode tráspensandono filhoeem tudoque tinhaacontecidonos

últimos tempos.Augustnãoeraaúnicanemaprincipal razãoparaele tersedemitidodaSolifon.Eleestava passando por uma fase crítica, e por um instante se perguntou se aguentaria. Quando estava acaminhodeVasastanfoicomoseosangueoabandonasseeeleprecisouresistiraoimpulsodemandartudoparaoinferno.Nãohaviamaiscomovoltaratrás.PagouotáxinaTorsgatan,pegousuabagageme,assimquecruzouoportão,largou-anochão,levando

consigo,aosubirosdegraus,nadaalémdabolsadeviagemvaziaeestampadacomummapa-múndiquehaviacompradonoaeroportodeSanFrancisco.Depoisparouofegantenafrentedaportadoapartamento,fechouosolhoseimaginoucenasdebrigaeloucura—e,verdadesejadita,quempoderiacriticá-losportal comportamento? Ninguém aparece do nada e leva uma criança embora, muito menos um pai que

Page 8: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

jamais havia participado da vida do filho a não ser através de depósitos bancários. Mas era umaemergência,oupelomenosera issoqueeleachava,portanto tomoucorageme tocouacampainha,pormaisquesuavontadefossefugirparalongedaquilo.Aprincípioninguématendeu.MasminutosdepoisaportaseabriueLasseWestmanapareceucomseus

olhosazuisprofundos,peitomusculosoemãosenormes,quedavamaimpressãodeexistirapenasparacausarmal aosoutros,oquemuitasvezeso levavaa interpretarpapéisdevilãonas telasdecinema,mesmoquenenhumdessespapéis—quantoaistoFransBaldernãotinhaamenordúvida—fossetãovilquantoaquelequeelerepresentavanodiaadia.—Quemdiria!—exclamouLasseWestman.—Ogênioveionosvisitar.—EuvimbuscaroAugust—disseFransBalder.—Comoé?—Euquerolevarmeufilhocomigo,Lars.—Vocêsópodeestarbrincando.—Nãoestoubrincandonemumpouco—eledisse.Noinstanteseguinte,Hanna,suaex-mulher,surgiu

de um cômodo à esquerda do hall, já não tão bonita como em outros tempos. Tinham sido tristezasdemais, e provavelmente também cigarros e bebida demais.Mesmo assim, uma ternura inesperada oinvadiu, especialmente quando viu um hematoma no pescoço dela e percebeu queHanna veio com aintençãodelhedarboas-vindas,apesardetudo.Maselanãoconseguiunemabriraboca.—Porquevocêresolveuseinteressarporelederepente?—Porquejáchega.OAugustprecisadeumlugarseguroparamorar.—Evocêpor acaso temcomooferecer isso,ProfessorPardal?Mesmoquenunca tenha feitonada

alémdeolharparaateladeumcomputador?—Eumudei—disseFransBalder,sentindo-sepatético,poisnãotinhacertezadetermudadonemum

pouco.EleestremeceuquandoLasseWestmanseaproximoucomaquelecorpoenorme,cheiodeumaraiva

contida. Nesse instante, ficou totalmente claro para Frans que não haveria como resistir se aquelemaníacooatacasse,etambémqueaideiatodanãotinhapassadodeumaloucura,doinícioaofim.Masoestranhofoiquenãohouvenenhumaexplosão,nenhumacena;apenasumsorrisoassustadoreaspalavras:—Queótimanotícia!—Comoassim?—Jáestavamaisdoquenahora,nãoémesmo,Hanna?Atéqueenfimumpoucoderesponsabilidade

dosr.Ocupado.Bravo,bravo!—prosseguiu,batendopalmasnumgesto teatral.EaseguirveiooqueassustouFransBaldermaisdoquequalqueroutracoisa:afacilidadecomqueosdoislheentregaramomenino.Semnenhumprotesto,anãoserosdenaturezasimbólica,osdoisdeixaramqueele levasseAugust.

Paraeles,talvezomeninonãopassassedeumfardo.Nãohaviacomosaber.Hanna,commãostrêmulas,lançouolharesenigmáticosparaFranserangeuosdentes.Masnãofezmuitasperguntas.Eladeveriaterfeitouminterrogatório,apresentadomilexigênciasepedidos,esepreocupadocomaquelamudançanarotinadofilho.Noentantodisseapenas:—Temcertezadoqueestáfazendo?Vocêachaqueconsegue?

Page 9: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Tenho certeza— ele respondeu, e os três foram para o quarto deAugust. Ao ver o filho pelaprimeiravezdepoisdemaisdeumano,Fransseenvergonhou.Como podia ter abandonado ummenino como aquele? Ele era bonito, encantador com seu cabelo

grossoeonduladoeseucorpoesguio,osolhosazuisesériosperdidosnumquebra-cabeçadeveleiro.Sua postura dava a impressão de dizer “Não me atrapalhe”, então Frans avançou devagar, como seestivesseseaproximandodeumacriaturaestranhaeimprevisível.Mesmo assim conseguiu atrair a atenção do garoto e fazer com que pegasse em sua mão e o

acompanhasseatéocorredor.Jamaisseesqueceriadessemomento.OqueAugustestavapensando?Oque achava daquilo?Não tinha olhado nem para o pai nem para amãe, e ignorara completamente osacenoseaspalavrasdeadeus.SimplesmentedesapareceucomFransnoelevador.Nadamais.Augusteraautista.Provavelmentetinhasériosproblemasdedesenvolvimento,emboraasopiniõesdos

médicos divergissem sobre o assunto e a ideia que ele passava quando observado de longe fossejustamenteaoposta.Comexpressãosériaeconcentrada,omeninopossuíaumaauradeimponência,oupelomenos dava a impressão de não se importar com omundo ao redor. Ao olhá-lomais de perto,porém,via-seumrostocomoquecobertoporumvéu;eeleaindanãohaviapronunciadoasprimeiraspalavras.Augustfrustraratodasasprevisõesfeitasquandoeletinhadoisanos.Naépoca,osmédicosdisseram

que ele provavelmente fazia parte da minoria de crianças autistas que não sofriam de deficiênciasmentaiseque,sefizesseterapiacomportamental,oprognósticoseriabom.Masnadaaconteceucomoseesperava.FransBaldernãotinhavistooresultadodetodoaqueletratamentoemuitomenosacompanhadoa vida escolar do filho. Frans vivia nummundo todo seu, e um dia pegou um avião para os EstadosUnidos,causandoumabrigacomtodasaspessoasqueconhecia.Ele tinha se comportado comoum idiota.Mas a partir daquelemomentoo que elemais queria era

pagaradívidacomo filhoecuidardele.Passouacomprarperiódicosacadêmicosea telefonarparaespecialistasepedagogos,esehaviaumacoisabastanteclaraeraquetodoodinheiroqueeleenviaranãoforausadoparaobem-estardomenino,masparaoutros fins,quecertamente tinhamavercomasextravagânciaseas jogatinasdeLasseWestman.Ogarotodavaa impressãode tersidoabandonadoàprópriasortee,assim,sehabituadoacomportamentosobsessivos;eprovavelmentetinhasidoexpostoacoisasaindapiores.PorissoFransvoltouparacasa.UmpsicólogohaviaentradoemcontatocomelenosEstadosUnidos,preocupadocomummisterioso

hematomanocorpodomenino.Fransviuessasmarcasaobuscarofilho,elasestavamportodaparte,nosbraços,naspernas,peitoeombrosdeAugust.SegundoHanna, elas eram resultadodocomportamentoautodestrutivodomeninonosmomentosemqueeleseatiravadeumladoparaoutro;nodiaseguinteàsua chegada, Frans Balder testemunhou um desses acessos e ficou apavorado.Mas aquilo ainda nãopareciaumaexplicaçãoconvincenteparaoshematomas.Suspeitandodeviolênciadoméstica,Fransrecorreuàajudadeumclínicogeraledeumex-policial

queconhecia.Porém,mesmoqueassuspeitasnãotivessemsidoconfirmadas,opaificoucadavezmaisaflitocomasituaçãoeporfimescreveuumasériededenúncias.Atéentão,eraquasecomosetivessese

Page 10: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

esquecido da existência domenino. Frans Balder notou como era fácil esquecê-lo. August passava amaiorpartedotemposentadonochãodoquartoqueopaireformaraparaelenacasaemSaltsjöbaden,com vista para omar, montando com virtuosismo quebra-cabeças de centenas de peças, apenas paradesmontá-loserecomeçartudoassimqueterminava.No inícioFrans o observava fascinado.Era como acompanhar o trabalhode umartista, e às vezes

tinha a impressão de que a qualquer instante omenino iria levantar o rosto e fazer algum comentáriotípicodeumadulto.MasAugustnuncadizianada,equandodesviavaaatençãodoquebra-cabeçaapenaspiscavaosolhos,comacabeçadelado,eolhavaatravésdopaiemdireçãoàjanelaeaosolrefletidonaáguadoladodefora,demodoqueFrans,porfim,resolviadeixá-loempaz.Augustpodiaficarsozinhootempoquequisesse.Naverdade,Franstambémnãosaíamuitocomele,nemmesmoparaojardim.Dopontodevistaformal,eleaindanãotinhapermissãoparacuidardogaroto,portantonãoqueriase

aventurarmuitoemlugarespúblicosenquantonão tivesseresolvidoaparte jurídica.Ascompras,bemcomoasrefeiçõesealimpezadacasa,ficavamacargodeLottieHask,aempregada—FransBaldernãoera bomnos aspectos práticos da vida.Entendia de computadores, algoritmos e de praticamentemaisnada,eàmedidaqueotempopassavaseocupavamaisdessesassuntosedatrocadecorrespondênciacomseusadvogados.ÀnoitedormiatãomalcomoquandovivianosEstadosUnidos.Eleseangustiavaeanteviaproblemaspelafrente,etodasasnoitesbebiaumagarrafainteiradevinho

tinto,quasesempreumAmarone,oquesótraziaalíviomomentâneo.Começouasesentircadavezpior,afantasiarsobredesapareceremumanuvemdefumaçaoufugirparaumlugarselvagem,livredequalquernoçãodehonraedever.Emumsábadodenovembro,aconteceu.Eraumanoitegeladaedeventania,eeleeAugustcaminhavamaolongodaRingvägen,emSöder,tiritandodefrio.OsdoishaviamjantadonacasadeFarahSharif,naZinkensVäg,eAugustjádeviaestarnacamahá

muitotempo.MasojantarseestenderaeFransBalderhaviafaladomaisdoquedevia.FarahShariftinhaessetalento.Aspessoasabriamocoraçãoparaela.FransaconheciadesdeaépocaemquetinhamsidocolegasdeciênciasdacomputaçãonoImperialCollege,deLondres,eFaraheraumadasraraspessoasnaSuéciacomconhecimentoscomparáveisaosdele,oupelomenosumadaspoucaspessoasporquemeletinhaalgumcarinho.Eraumalívioconversarcomalguémqueoentendia.FarahShariftambémoatraía,masapesardeváriastentativaselenuncatinhaconseguidoconquistá-la.

FransBaldernãoeradotiposedutor.Nessedia,porém,oabraçodedespedidaporpouconãohaviasetransformadonumbeijo,oquepareceuaFransumgrandeprogresso.EranissoqueelepensavaquandopassoucomAugustpeloginásioZinkensdamm.Fransresolveuquedapróximavezcontratariaumababá,assimtalvez…Quemsabe?Umpoucomais

aolonge,umcachorrolatia.Umavozfemininasoltouumgritodeirritaçãooudealegrialogoatrás,eleolhounadireçãodaHornsgatanedocruzamentoondehaviapensadoempegarumtáxiouentãoometrôaté Slussen. Parecia que ia chover, e junto à faixa de pedestres o semáforo ficou vermelho. Nesseinstante,aonotarumhomemdeaparênciadesleixadacomcercadequarentaanoseaspectovagamentefamiliarnooutroladodarua,FranspegouamãodeAugust.Quisseassegurardequeofilhonãosairiadacalçadaepercebeucomoamãodomeninoestavatensa,

comoseeleestivessereagindoaalgumacoisa.Alémdisso,seusolhosestavamfixos,límpidos,comoseovéuqueemgeralosencobriativessesidoremovidonumpassedemágica,eAugust,emvezdeolhar

Page 11: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

paradentrodesi,deseuíntimo,tivessecompreendidocomprofundidadeosignificadodaquelafaixadepedestresedaquelecruzamento.PorissoFransnãosemoveuquandoosemáforomudouparaoverde.Simplesmentedeixouofilhoobservarocenárioe,sementenderbemporquê,ficouemocionado,oque

lhe pareceu bastante peculiar. Afinal, era um simples olhar, nadamais, não era nem sequer um olharespecialmente alegre ou radiante. Mesmo assim, Frans se lembrou de algo distante e esquecido,adormecidoemsuaslembranças,epelaprimeiravezemmuitotemposesentiuesperançoso.

Page 12: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

2.20DENOVEMBRO

MikaelBlomkvisttinhadormidoapenasduashorasporquehaviapassadoboapartedanoitelendoumromancepolicialescritoporElizabethGeorge.Comcertezanãoforaumadecisãosensata.Demanhã,oguru do jornalismo,Ove Levin, da SernerMedia, apresentaria novas diretrizes para aMillennium, eMikaelprecisavaestardescansadoeapostos.Mas ele não tinha a menor vontade de se comportar como alguém razoável. Sentia-se um tanto

contrariado, e foi contra a sua vontade que se levantou e preparou um cappuccino bem forte na JuraImpressaX7,amáquinaqueumdiaelehaviarecebidoemcasacomaspalavras:“Eunãoconsigousaressenegócio”equeagoraocupavapartedacozinhacomoummonumentoemhomenagemaumpassadomelhor. Não tinhamais contato com a pessoa que o presenteara e também não sentia que o trabalhoexecutadopelamáquinafossealgodemuitoespecial.Nofimdesemana,tinhasequestionadosenãoestarianahorademudardeárea,umaideiaumtanto

drásticaparaumhomemcomoMikaelBlomkvist.AMillenniumerasuavidaesuapaixão,esemdúvidaboapartedascoisasmais interessantesemais intensasqueele tinhavivido forana revista.Masnadaduraparasempre,talveznemmesmoseuamoràMillennium,ealémdomaisaquelanãoeraumaépocamuitoboaparaserdonodeumarevistadejornalismoinvestigativo.Todas as publicações com aspirações grandiosas estavam sofrendo uma verdadeira sangria, e lhe

ocorreuque a visãoque ele tinhadaMillennium talvez fosse bela e verdadeira quando vista de umaperspectivamaisnobre,masqueelanãogarantia,necessariamente,asobrevivênciadarevista.MikaelBlomkvist entrou na sala, bebericou seu café e olhoupara o lago deRiddarfjärden.Lá fora caía umatempestade.Overanicoquetinhailuminadoacidadeemplenooutubroemantidoosrestaurantescommesasaoar

livrefuncionandopormaistempoqueonormalderepentehaviasetransformadonumclimahostil,comrajadas de vento e aguaceiros constantes, o que obrigava as pessoas a correr encolhidas pela cidade.Mikaeltinhapassadoofimdesemanaemcasa,enãoapenasporcausadotempo.Tambémfizeraplanosde uma vingança grandiosa, no entanto tudo havia falhado, e nem uma coisa nem outra era umacontecimentocomum.Mikaelnãoeranenhumjoão-ninguémqueprecisasseficarrevidandootempointeironem,aocontrário

demuitosfigurõesdaimprensasueca,umsujeitodeegoinflado,carentedeatençãootempointeiro.Poroutrolado,osúltimosanostinhamsidodifíceis,epoucomaisdeummêsantesojornalistaeconômicoWilliamBorg havia escrito um artigo na revistaBusiness Life, também da Serner, intitulado “Mikael

Page 13: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Blomkvistécoisadopassado”.AsimplesexistênciadoartigoeseutamanhosemdúvidaeramsinaldequeBlomkvistaindaocupava

uma posição importante, e ninguém achou o texto especialmente bem formulado nem original. Pelocontrário:podiaser facilmente tomadocomooataquegratuitodeumcolega invejoso.Mas,poralgummotivo que acabou não sendo bem entendido, a história ganhou uma dimensão maior, podendo serinterpretadacomoumadiscussãosobreotrabalhodorepórter.Nocaso,debaterseafunçãodorepórterera atuar como Blomkvist, “dedicando-se a buscar deficiências na economia e praticar o jornalismoultrapassado dos anos 1970”, ou atuar como o próprioWilliam Borg, “abrindo mão de rabugices ereconhecendo de uma vez por todas a grande contribuição dada pelos empreendedores quemovem aSuécia”.Aos poucos o debate perdeu o rumo e surgiram alegações inflamadas de que não fora por simples

acaso queBlomkvist acabara esquecido nos últimos anos, “uma vez que ele parece sempre partir dopressupostodequetodasasgrandesempresassãocriminosas”,poressemotivo“exagerandoashistóriasquelheinteressacontareindoatéasúltimasconsequências”.Essaformadeprocederacabavacobrandoseu preço com o passar do tempo, dizia o artigo. Nesse contexto, atémesmo o criminosoHans-ErikWennerström,supostamente levadoàmorteporBlomkvist, recebeualgumasolidariedade,e,aindaqueveículos praticantes de um jornalismo sério tivessem se mantido fora da discussão, insultos foramdisparados para todos os lados nas mídias sociais, com ataques lançados também por jornalistaseconômicoserepresentantesdogovernocommotivosparainvestircontrauminimigopegonummomentodefraqueza.Uma série de jovens jornalistas aproveitou a oportunidade para aparecer, afirmando que Mikael

Blomkvist tinha uma mentalidade ultrapassada, não estava no Twitter nem no Facebook e devia serconsideradoumarelíquiadeumtempopassadoemqueseganhavamuitodinheiropublicandotodotipode bizarrice. Outros aproveitaram a chance para criar hashtags engraçadinhas como#naepocadeblomkvist, e assimpordiante.Tudonãopassoudeum festivalde cretinices, eninguémseimportoumenoscomissoqueopróprioMikaelBlomkvist.Oupelomenoseraoqueeletentavadizerasimesmo.Poroutrolado,nãoajudavamemnadaBlomkvistnãoterlevantadonenhumaoutraboahistóriadesdeo

caso Zalachenko e aMillennium estar afundada numa crise financeira. A tiragem ainda era boa e arevistatinhavintemilassinantes.Masareceitapublicitáriahaviadespencado,oslivrosdesucessonãogarantiam uma renda extra pormuito tempo e, como o grupoVanger, que controlava parte da revista,estavasendodilaceradopordiscordânciasinternasenãoqueriainvestirmaisdinheiro,adiretoriahaviapermitido,contraavontadedeMikael,queoimpériodecomunicaçãonorueguêsSerneradquirissetrintaporcentodasaçõesdarevista.Aprincípioaoperaçãopareceuestranha,poisaSernerpublicavarevistassemanaisejornaisvespertinoseeraproprietáriadeumgrandesitederelacionamentos,doiscanaisdetelevisãoporassinaturaedeumcampeonatodefuteboldaprimeiradivisãonorueguesa,nadaquetivesseavercomumarevistacomoaMillennium.Entretanto, os representantes da Serner— acima de tudo Ove Levin, o diretor de publicações—

haviam garantido que o grupo queria ter em seu catálogo um produto de prestígio, que “todos” nadiretoriaadmiravamaMillenniumequedesejavamapenasquearevistacontinuasseexatamentecomo

Page 14: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

era. “Não estamos aqui para ganhar dinheiro!”, havia dito Levin. “Queremos realizar coisasimportantes”,eemseguidatomouprovidênciasparaqueaMillenniumrecebesseumconsiderávelaportefinanceiro.AprincípioaSernernãointerferiunotrabalhodarevista.Tudocontinuoucomoantes,apenascomum

orçamentoumpoucomaisfolgado,enquantoumnovosentimentodeesperançatomavacontadaredaçãoeàs vezes atémesmo deMikael Blomkvist, que por vezes chegou a acreditar que enfim iria poder sededicar ao jornalismo em vez de se preocupar com dificuldades financeiras. Porém, mais ou menosquandoaperseguiçãoaelecomeçou—asuspeitadequeogrupoSernerhaviaseaproveitadodissonãooabandonava—,houveumamudançadetom,eosprimeirossinaisdepressãocomeçaramasurgir.Estavaclaro,disseLevin,quearevistadeviacontinuarcomsuasinvestigaçõesprofundas,seuestilo

literárioeviés social.Masnem todososartigosprecisavamabordar fraudeseconômicas, injustiçaseescândalospolíticos.Tambémerapossívelfazerumjornalismobrilhantecomumtoquemaisglamoroso—escrevendosobrecelebridadeseestreias—,afirmouLevinenquantofalavacomverdadeirapaixãosobreasamericanasVanityFaireEsquire, sobreGayTalese e seu clássicoperfil deSinatra, “FrankSinatraestáresfriado”,esobreNormanMailer,TrumanCapote,TomWolfeeoutros.MikaelBlomkvistnãoteveobjeçõesafazer,pelomenosnãonaquelemomento.Seismesesanteshavia

escritoumalongareportagemsobreaindústriadospaparazzie,desdequeencontrasseumaabordagemsériaeadequada,imaginava-secapazderetratarqualquerpessoa,pormaisinsignificantequeelafosse.Costumavadizerquenãoeraoassuntoquedefiniaobomjornalismo;eraaabordagem.Não,suaobjeçãotinha a ver com o que havia percebido nas entrelinhas: que aquele era o início de uma ameaçageneralizada, e que aMillennium corria o risco de se transformar emmais uma revista qualquer dogrupo, ou seja, umapublicação sujeita a todo tipo de interferência, até enfim se tornar lucrativa—etotalmenteinsípida.Então, quando em plena sexta-feira descobriu que Ove Levin havia chamado um consultor e

encomendadoumasériedepesquisasdemercadoparaseremapresentadasnasegunda-feira,Mikaelfoiparacasaàtardeepassouumbomtempoàmesadetrabalhooudeitadonacamaformulandodiscursosinflamados sobre a necessidade de a Millennium se manter fiel ao enfoque de sempre: pessoasprotestando na periferia; um partido racista no governo; o aumento progressivo da intolerância; ofascismo apresentando propostas; e, por toda parte, moradores de rua e mendigos. Por uma série demotivos, aSuéciahavia se transformadonopaís davergonha.Nosvários e admiráveis discursosqueMikaelconcebeuemseusdevaneios,elevivencioutriunfosfantásticos,revelandoverdadestãoprofundaseinquestionáveisqueviatodaaredaçãoetodoogrupoSernerabandonaremsuasvelhaseequivocadasconvicçõeseporunanimidaderesolveremsegui-lo.Mas quando voltou a siMikael percebeu que essas palavras não teriam peso em pessoas que não

acreditavamnelasdopontodevistaeconômico.Afinal,odinheiromandaeamentiravematrás.Acimadetudoarevistaprecisavacontinuarexistindo.Transformaromundopodiaficarparadepois.Eraassimquefuncionava,e,emvezdeplanejarumasériedediscursosindignados,perguntou-seseomelhornãoseriairatrásdeumaboahistória.TalvezumarevelaçãobombásticadevolvesseaautoestimaàredaçãoefizessecomquetodosignorassemaspesquisaseosprognósticosdeLevinsobreocaráterultrapassadodaMillenniumouoquequerqueOveestivesseinventando.

Page 15: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Desde seu grande furo, Blomkvist havia se transformado numa espécie de central de informações.Todososdiasrecebiadenúnciassobreirregularidadesenegóciosescusos.Amaiorparte,noentanto,nãopassavadelixo.Ativistasradicais,defensoresdeteoriasconspiratórias,mentirososcrônicosegenteembusca de autopromoção procuravam-no com histórias implausíveis, que não resistiam sequer a umaanálisesuperficial,ouentãodesinteressantesparaviremasetransformarnumbomartigo.Poroutrolado,àsvezes,portrásdeumassuntobanaloucotidianoescondia-seumahistóriaimpressionante.Osimplescasodeumsinistronumaseguradoraouomeroregistrodeumdesaparecimentonapolíciapodiamtrazeremsiumanarrativahumanagrandiosa.Masnãohaviacomosaberdeantemão.Eraprecisoagirdeformametódicae repassar todosos indícioscomamenteaberta.Assim,namanhãde sábadoMikael sentoucomseunotebookeblocodeanotaçõesecomeçouaanalisaroquetinha.Parou apenas às cincoda tarde, depois de encontrar umaouduas histórias quedez anos antes sem

dúvidateriamchamadoaatençãodopúblico,masquenaquelesdiasnãodespertariaminteressenenhum,eesseeraumproblemaclássico.Quandovocêpassadécadasnamesmaárea,tudodáaimpressãodejáserconhecidoe,mesmoquenoplanointelectualumdeterminadocasotenhapotencialparasetransformarnuma boa história, ele não vem acompanhado do arrebatamento de antes. Foi por essa razão que, nomomento em que mais uma tempestade gelada desabava sobre o teto de sua casa, Mikael resolveuinterromperotrabalhoevoltarparaElizabethGeorge.Nãoeraescapismo, tentoudizerasimesmo.Àsvezesasmelhores ideiassurgiamnummomentode

ócio— pelomenos era o que a experiência lhe havia ensinado. Quando se está ocupado com outroassunto,derepenteaspeçasdoquebra-cabeçaseencaixam.Noentantonenhumpensamentoreveladorlheocorreu,anãoseraideiadequeseriabomsedeitarcommaisfrequênciaparalerumromance.Equandoamanhãdesegunda-feirachegoutrazendomaisumatempestadeodiosa,MikaelBlomkvisthavialidoumromanceemeiodeGeorgeetrêsediçõesdaNewYorkerqueestavamabandonadasnamesadejantar.Sentadono sofá da sala como cappuccinonamão, ele observava a chuva caindodo ladode fora.

Sentia-se cansado e imprestável, mas de repente, como se de um momento para o outro tivesserecuperadosuasforças,levantou-se,colocouabotaeocasacodeinvernoesaiu.Naruaodesconfortobeiravaocômico.Rajadas gélidas e carregadas de chuva castigavam-lhe até os ossos enquantoMikael avançava em

direção à Hornsgatan, onde, ao chegar, deparou com um estranho panorama cinzento. Todo o Söderparecia privado de cores. Nenhuma folha de outono rodopiava no ar, e, de cabeça baixa e braçoscruzados,Mikael Blomkvist passou em frente à igreja deMariaMadalena e seguiu pela Slussen atédobraràdireitanaGötgatan,onde,comodehábito,entrounoprédioentrealojaderoupasMonkieobarIndigo. Em seguida subiu até o quarto andar, onde ficava a redação, logo acima do escritório doGreenpeace.Jánopatamardaescada,começouaouviroburburinho.Haviaumgrandenúmerodepessoasládentro.Todosdaredação,osfreelancersmais importantese

trêsrepresentantesdogrupoSerner—doisconsultoreseOveLevin,que,paraaocasião,tinhacolocadoroupasumpoucomenoselegantesdoquedecostume.Nãopareciamaisumdiretore,alémdisso,usavaexpressõesnovas,comoopopular“oi”.

Page 16: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Oi,Micke!Comovãoascoisas?—Dependedevocê—respondeuMikael,sincero,enãoparademonstrarmauhumor.Essaresposta,noentanto,foirecebidacomoumadeclaraçãodeguerra.Levinretrucoucomumaceno

de cabeça, entrou e se sentou emumadas cadeiras que haviam sido dispostas na redação, comonumpequenoauditório.Ove Levin limpou a garganta e lançou um olhar nervoso para Mikael Blomkvist. O conceituado

repórter,quepareceraexaustoàporta,derepentepassouademonstraruminteresseeducado,sememitirnenhumsinaldequeestavapropensoadiscutiroupolemizar.Isso,porém,nãoacalmouOve.Emoutrostempos, ele e Blomkvist tinham estagiado como repórteres no Expressen. Na época, escreviamprincipalmente notícias curtas e outras bobagens.Mas depois, no bar, os dois sonhavam comgrandesreportagens e denúncias avassaladoras, e passavam horas dizendo que jamais iriam se render aojornalismo convencional emedíocre, porque jamais iriam poupar esforços para descobrir a verdade.Eram jovens ambiciosos e queriam tudo para já.Ove às vezes sentia saudades dessa época, não porcausadosalário,claro,nemdaslongashorasdetrabalhooudosencontrosnosbarescomoscolegasdeprofissão—mas por causa dos sonhos, que pareciam imbuídos de uma força que depois se perdeu.Sentiasaudadesdaqueledesejopulsantedetransformarasociedadeeojornalismo,dequeseustextosfizessemomundopararporuminstanteeopodersecurvar.Porvezesmesmoumpeixegraúdocomoeleinevitavelmenteseperguntava:oquehaviaacontecido?Paraondetinhamidoaquelessonhos?MickeBlomkvisthaviarealizadotodoseles,enãoapenasportersidoresponsávelporalgumasdas

denúnciasmaisimportantesdahistóriarecentedopaís.Eletambémcontinuavaescrevendocomamesmaforça e omesmo arrebatamento daquela época distante, e jamais havia cedido às pressões exercidaspelosquedetinhamopodernemrelativizadoosideaisemqueacreditava,enquantoOve…Bem,eraelequemtinhaumacarreirabrilhante,nãoera?SemdúvidaganhavaumasdezvezesmaisdoqueBlomkvistenãoprecisavademaisnadaparasesentirimensamentesatisfeito.DequeadiantavaMicketerpublicadoumgrande furo se nemmesmopodia comprar umchalémais ajeitadodoque seupequeno refúgio emSandhamn?MeuDeus,oqueeraaquelacasinhacomparadaànovacasadeOveemCannes?Nada!Não,comcertezaelehaviaescolhidoocaminhocerto.Emvezdecircularpelaimprensadiária,Ovetinhaarranjadoumempregocomoanalistademídiana

SernereiniciadoumaamizadecomopróprioHaakonSerner,oquetransformousuavidaeotornourico.Hojeocupavaopostomais alto da área jornalística da empresa, sendo responsável por uma série deperiódicosecanaisdetelevisão,eadoravasuasfunções.OveLevintambémadoravapoder,dinheiroesobretudoascoisasqueelespodiamproporcionarquandoapareciamjuntos.Mesmoassim,erahonestoosuficiente para reconhecer que de vez em quando ainda sonhava com aquelas outras coisas, emborasempreemdosescontroladas.Tambémqueriaserreconhecidocomoumbomjornalista,exatamentecomoBlomkvist,esemdúvidaesseforaumdosmotivosqueofizeramrecomendaraogrupoSerneraaquisiçãodepartedasaçõesdaMillennium.Graçasaumamensagemtrazidaporumpassarinho,tinhadescobertoquearevistaviviaumacrisefinanceiraequearedatora-chefe,ErikaBerger,umaantigapaixãosecretasua,queriamantersuasduasúltimascontratações,SofieMelkereEmilGrandén,oquesópoderiaser

Page 17: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

feitosearevistaachasseumanovafontedecapital.Emsuma,Ove tinha encontradoumaoportunidade inesperadade adquirir partedeumdosveículos

mais respeitados da imprensa sueca. Mas não se podia dizer que a diretoria do grupo Sernercompartilhava domesmo entusiasmo.Pelo contrário: ela acreditava que aMillennium tinha um estiloultrapassado e um viés de esquerda e, como se não bastasse, uma tendência a comprar brigas comanunciantesdepesoeoutrosparceiroscomerciais.SenãofossemasargumentaçõesinflamadasdeOve,onegócionãoteriasaído.Eleinsistiu.Explicouque,naquelecontexto,investirnaMillenniumcustariaumamixaria.Despenderiamumasomainsignificanteporalgoquetalveznãogerasselucros,masqueajudariaareconquistaracredibilidadequeaSernerhaviaperdidoemcortesdeorçamentoedepessoal.ApostarnaMillennium seriavistocomoumsinaldeque,apesarde tudo,ogrupovalorizavao jornalismoealiberdadedeexpressão.EmboraosdiretoresdaSernernãofossem,obviamente,grandessimpatizantesdaliberdadedeexpressãoedojornalismoinvestigativoàlaMillennium,acharamqueumpoucomaisdecredibilidadenãofariamal.Todosconcordaramsobreisso,eOveconseguiufecharacompraepormuitotempoaconsiderouumverdadeirogolpedesorteparatodososenvolvidos.ASernerganhouumaboapublicidade,eaMillenniumpôdemanter todaaequipeeapostarnaquilo

que sabia fazer— reportagens detalhadas e bem escritas—, enquantoOve brilhava como o sol numdebatenoClubedosPublicitários,afirmandocomhumildade:—Euacreditonessaempresa.Semprefuiumdefensordojornalismoinvestigativo.Mas depois… Ove Levin não quis mais pensar no assunto. Quando a perseguição a Blomkvist

começou,elenemsequerlamentou,pelomenosnãonumprimeiromomento.Ovenãoconseguiadisfarçaraalegriasecretadeveramaiorestreladojornalismosuecoridicularizadanaimprensa.Masdessavezsuasatisfaçãonãoduroumuito.Thorvald,ofilhomaisnovodeSerner,percebeuaagitaçãonasmídiassociaisedeuaoassuntogrande importância,enãoporquese importasse.Thorvaldnãose interessavapelasopiniõesdosjornalistas.Masgostavadepoder.Adoravafazerintrigaseviunessecasoumaboaoportunidadedeganharpontos,oudepelomenosdar

uma lição à geração mais velha da diretoria. Em pouco tempo, conseguiu fazer com que o diretorexecutivoStigSchmidt—queemgeralnãotinhatempoparacuidardeassuntosmenores—declarasseque aMillennium não receberia nenhum tipo de tratamento especial e teria de se adaptar aos novostempos,comotodososdemaisprodutosdogrupo.Ove,quetinhaacabadodegarantiraErikaBergerquenãoiriainterferirnotrabalhodaredação,anão

ser como “amigo e conselheiro”, viu-se demãos atadas e obrigado a desempenhar umpapel bastantecomplexonosbastidores.TentoudetodasasmaneirasconvencerErika,MonikaeChristeraajudaremnaelaboraçãodeumanovaproposta,quenuncachegouaserformuladaemtermosclaros—oquesempreacontececomideiasqueirrompem,abruptamente,deumacrisedepânico—,equeseresumiaasugerirumarenovaçãoeumaadaptaçãodaMillenniumapadrõesmaiscomerciais.EmdiversasocasiõesOvereiterouquenenhumadessasmedidascomprometeriaaessênciaeoestilo

agressivodarevista,emboranemelemesmosoubessebemoquepretendiadizercomisso.Sabiaapenasque precisava acrescentar um toque de glamour à revista para satisfazer a diretoria e que as longasanálises econômicas deviam ser publicadas com uma frequência menor, para não aborrecer osanunciantesenãocriarinimigosparaadiretoria.Contudo,jamaismencionouessesdetalhesparaErika.

Page 18: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Nãoqueriaentraremconflitodesnecessáriocomaredatora-chefee,parasesentirmaisseguro,tinhaescolhido roupasmais informaispara a reuniãocoma redação.Nãoqueriaprovocarninguémcomosternos e as gravatas vistosos que haviam se tornado tendência no escritório central. Em vez disso,escolheuumacalçajeans,camisabrancaeumsuéterazul-escurodegolaVquenãoeranemdecashmere,com seu longo cabelo ondulado— que lhe acrescentava um toque rebelde— preso em um rabo decavalo, exatamente como faziam os jornalistasmais durões da televisão. E, acima de tudo, iniciou areuniãocomnaturalidade,comotinhaaprendidonoscursosdeliderança:—Oi,pessoal—disse.—Parecequeeste temponão toma jeitomesmo!…Bem,oquevoudizer

agora eu já disse várias vezes, mas repito: todo o grupo Serner se orgulha de participar dessaempreitada,egarantoavocêsqueomeuentusiasmoéaindamaior.Éocomprometimentodepublicaçõescomo aMillennium que confere significado ao meu trabalho e me faz lembrar por que escolhi essacarreira.Micke,lembradequandoíamosaoOperabarenesonhávamoscomtodasascoisasqueíamosfazerjuntos?Parecequeaindanãoestamostotalmentesóbrios,hehe!MikaelBlomkvistfezcaradequemnãoselembravadenada.OveLevinnãosedeixouabater.—Não,estanãoéumareuniãonostálgica—prosseguiu.—Naverdadenãotemostempoparaessas

coisas.Naquelaépoca,odinheiroquecirculavananossaáreaerapraticamente ilimitado.Bastavaumsimples homicídio em Kråkemåla para alugarmos um helicóptero, reservarmos um andar inteiro nomelhorhoteldaregiãoepedirmoschampanhe.Quandoeuestavamepreparandoparaaminhaprimeiraviagem ao exterior, perguntei ao correspondente internacional Ulf Nilson sobre a cotação do marcoalemão.Nãofaçoamenorideia,elemerespondeu;acotaçãoquemdecidesoueu.Hehe!Eraassimquesalgávamosos gastos das viagens naquela época, lembra,Micke?Talvez fosse a área emque éramosmaiscriativos.Nomais,bastavaagentefazeronossotrabalhoeojornalvendiacomoágua.Mastodosnóssabemosquemuitacoisamudoudeláparacá.Hojeemdiaaconcorrênciaéferrenhaenãoémaistão simples ganhar dinheiro com jornalismo, nemmesmo quando se tem amelhor redação da Suécia,comoéonossocaso.Porissoacheiquehojedevíamosconversarumpoucosobreosdesafiosquenosesperam no futuro. O grupo Serner encomendou pesquisas com os leitores daMillennium e sobre aopiniãoqueaspessoastêmsobrearevista.Partedosresultadostalvezdêumbelosustoemvocês.Maseu gostaria que, em vez de se abaterem, vocês encarassem esses percalços como um desafio elembrassemqueomundoestávivendoumperíodomuitomalucodetransformações.Ove fez uma breve pausa e pensou se não teria sido um erro usar a expressão “muitomaluco”, se

aquilonãoteriasidoumatentativaexageradadeparecerrelaxadoejovialeseelenãoteriacomeçadodeformaapressadaedescontraídademais. “Nuncasubestimea faltadehumordemoralistasmalpagos”,HaakonSernercostumavadizer.Maseledariaumjeitodeconsertaraquilo.Voutrazê-losparaomeulado!MikaelBlomkvist tinhaparadodeouvirmaisoumenosquandoOvediziaque todosdeviampensar

sobre seu“amadurecimentodigital”, por issoperdeua explicação sobreporqueos jovens ignoravamtantoaexistênciadaMillenniumquantoadeMikaelBlomkvist.Masazarmesmofoiquandosecansoudaquilo e foi até a copa, sem a menor ideia de que o consultor norueguês Aron Ullman tinha dito

Page 19: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

abertamente:—Issoépatético.Seráqueeletemtantomedodeseresquecido?Naquelemomento,defato,MikaelBlomkvistpoucoseimportavacomisso.Estavaéindignadocoma

atitude de Ove Levin, que parecia acreditar que a redação se deixaria convencer por pesquisas deopinião.Afinal,arevistanãoerafeitadeanalistasdemercado.Erafeitadepaixãoecomprometimento!E aMillennium tinha chegado aonde chegou justamente porque todos na redação apostavam no quepareciacertoerelevante,semlevaremcontamodismospassageiros.MikaelBlomkvistpermaneceuumbomtempoali,perguntando-sequantoaindaprecisariaesperaratéErikasairdareunião.Arespostaveioemmaisoumenosdoisminutos.Pelobarulhodossaltos,Mikaeltentouavaliarafúria

desuacolega.MasquandoErikasurgiu,elatraziaumsorrisoresignadonorosto.—Comovocêestá?—elaperguntou.—Nãoaguenteiescutartudoaquilo.—Vocêsabequeaspessoasficamdesconcertadasquandovocêagedessejeito.—Eusei.—E acho que também sabe que a Serner não pode fazer nada sem a nossa aprovação.Nós ainda

controlamosarevista.—Nãocontrolamosmaisporranenhuma.Somosrefénsdeles,Ricky!Seráquevocênãoentende?Sea

gentenãofizeroqueelesquerem,aSernervairetiraroapoioenósvamosficarnapior—disseMikael,umpoucoalterado,equandoErikapediusilêncioebalançouacabeçaeleacrescentouemtomumpoucomaiscauteloso:—Euestouchateado.Mesintotratadocomocriança.Vouparacasa.Precisopensar.—Vocênãotemficadomuitoaquinaredação.—Devoterumbelosaldodehorasextras.—Comcerteza.Querreceberumavisitahojeàtarde?—Nãosei.Nãoseimesmo,Erika—elerespondeu.Emseguida,deixouaredaçãoecaminhoupela

Götgatan.Atempestadeeasrajadasdeventoogolpeavam,eMikaelseenregelou,amaldiçoouotempoeporum

instantepensouementrarnaPocketshopecomprarmaisumromancepolicialinglêsparaarejarumpoucoasideias.Emvezdisso,porém,seenfiounaSanktPaulsgatan,equandopassavapelorestaurantejaponêsquehaviaà suadireita seucelular tocou.Mikael tevecertezadequeeraErika.MaseraPernilla, suafilha,quetinhaescolhidoopiormomentopossívelparamandarnotíciasparaumpaicomaconsciênciajásuficientementepesadaporacharquenãofaziaobastanteporela.—Oi,querida—eledisse.—Quebarulhoéesse?—Éachuva,acho.—Tudobem,tudobem,vouserrápida.FuiaceitanocursodeescritaemBiskops-Arnö!—Ah,entãoagoravocêresolveuescrever,é?—Mikaeldissedemaneiraumtantodura,beirandoo

sarcasmo,oquelogodepoisachouinjusto.

Page 20: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Deviasimplesmente ter felicitadoa filhae lhedesejadosucesso.MasPernillahaviapassado tantosanosestudandoe frequentandoseitascristãsesquisitassemnuncachegara lugarnenhum,queaoouviressanovidadesuaprimeirareaçãosobremaisessainiciativafoideceticismo.—Vocênãoparecemuitoanimado.—Medesculpe,Pernilla.Nãoestounumbomdiahoje.—Equandopretendeestar?—Euqueromuitoquevocêachealgumacoisaquefuncioneparavocê.Masnãoseiseacarreirade

escritoraéumaboaideiahojeemdia,tendoemvistaasituaçãodomercado.—Maseunãovouescreverjornalismochatoquenemvocê.—Oquevocêpensaemfazer?—Escreverdeverdade.—Tudobem, então—afirmouMikael, semperguntaroque a filhaqueriadizer com“escreverde

verdade”.—Vocêtemdinheirosuficiente?—EstoutrabalhandonoWayne’sCoffee.—Nãoquerjantarcomigohoje,paraagentediscutiroassunto?—Hojeeunãoposso.Sóquismesmotedaranotícia—dissePernillaantesdedesligar.Pormaisque

Mikaeltentasseveroladopositivodaqueleentusiasmotodo,ficouaindamaisaborrecido.Logoestavaatravessando oMariatorget e subindo aHornsgatan em direção ao apartamento de sótão que tinha naBellmansgatan.Aochegar,sentiucomosetivesseacabadodevoltardaredaçãopelasegundaveznumcurtoespaçode

tempo e foi tomado pelo estranho sentimento de haver perdido o emprego e estar vivendo uma novaexistência,naqualemvezdepassaravidaemfunçãodotrabalhoelederepentedispunhadeumoceanodetempolivre.Poucodepoisseperguntousenãoestarianahoradeorganizarumpoucoacasa;haviarevistas,livroseroupasportodaparte.Emvezdisso,porém,pegouduasPilsnerUrquellnageladeira,sentounosofáeficoupensandosobretudoquehaviaacontecidodemaneiramaissóbria;oupelomenosdamaneiramaissóbriapossívelquandosetemumpoucodecervejanacabeça.Oqueiriafazer?Mikaelnão tinhaamenor ideia e, talvezoque fossemaispreocupante,não sentiamaisvontadede

lutar.Aocontrário,sentia-seresignado,comoseaMillenniumestivesseficandocadadiamaisdistantedeseusinteresses.Porissovoltouaseperguntar:seráquenãoestavanahoradefazeralgonovo?ClaroqueiaserumaenormetraiçãocomErikaeoscolegasderedação.Masseráqueeleeraapessoamaisadequada para comandar uma revista que pretendia viver de anúncios e assinaturas?Talvez ele fossemaisútilemoutrolugar.Masonde?Até mesmo os grandes jornais matutinos estavam enfrentando dificuldades, e só havia recursos e

dinheiroparaojornalismoinvestigativonosveículosdecomunicaçãodoserviçopúblicoounasequipesde investigação da rádio Dagens Eko ou na Sveriges Television. E por que não? Lembrou de KajsaÅkerstam, uma pessoa incrível com quem de vez em quando ele saía para beber.Kajsa era chefe doprogramade jornalismo investigativoUppdragGranskning e porvários anos tentara contratá-lo.Masnuncatinhasidoomomentopropício.Pouco importara o queKajsa tinha a oferecer, pouco importaram as promessas de apoio e de total

integridade jornalística.AMillennium era o lar deMikael. Porém agora…Talvez devesse embarcar

Page 21: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

nessajornada,seoconviteaindaestivessedepémesmodepoisdetodaasujeiraquehaviamjogadoemcimadele.Mikaeljátinhafeitomuitacoisanaárea,masnuncatrabalhadoemtelevisão,anãoserpelascentenas de contribuições feitas a programas de debate, entretenimento e noticiários. Trabalhar noUppdraggranskningtalvezlhedesseumainjeçãodeânimo.SeucelulartocoueporuminstanteMikaelficoufeliz.SefosseErikaouPernilla,prometeuasimesmo

seramistosoeprestaratençãodeverdadenoqueumaououtrativesseadizer.Masnão;eraumnúmerodesconhecido,oqueofezatendercomcertahesitação.—MikaelBlomkvist?—perguntouumavozquepareciajovem.—Eumesmo—elerespondeu.—Vocêtemalgumtempopraconversar?—Sevocêseapresentar,talvez.—MeunomeéLinusBrandell.—Eoquevocêquer,Linus?—Eutenhoumahistóriapravocê.—Soutodoouvidos.—ContotudosevocêatravessararuaemeencontrarnoBishop’sArms.Mikaelse irritou.Nãoapenascomo tomcondescendentedosujeito,mas tambémcomsuapresença

indesejadanolugarondeelemorava.—Achoquepodemosfalarportelefonemesmo.—Nãoéassuntoparaserdiscutidonumalinhaaberta.—Porquenãoestougostandomuitodefalarcomvocê,hein,Linus?—Talvezporquevocêestejanumdiaruim.—Estounumdiaruim,éverdade.—Não falei?Venha correndo aoBishop’sArmsque eu te pago uma cerveja e ainda te conto uma

históriadasboas.Mikaeltevevontadederetrucar:Paredemedizeroqueeudevofazer!Mas,sementenderdireitopor

que, ou talvez porque não tivesse nadamais sensato a fazer senão ficar ruminando sobre seu futuro,acaboudizendo:—Eumesmopagoasminhascervejas.Tudobem,estouindo.—Foiumadecisãoacertada.—Mas,Linus,escutebem.—Sim?— Se você me contar uma história longa demais e cheia de conspirações malucas, tentando me

convencerdequeoElvisestávivoouquevocêsabequematirouemOlofPalme,euvoltoimediatamenteparacasa.—Combinado—disseLinusBrandell.

Page 22: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

3.20DENOVEMBRO

Hanna Balder estava na cozinha de seu apartamento, na Torsgatan, fumando um Prince sem filtro.Vestiaumroupãoazuleumapantufacinzaepuída,e,mesmocomseucabelovolumosoealgunstraçosdebeleza preservados, seu aspecto era de uma pessoa maltratada. Os lábios estavam inchados, e amaquiagem forte ao redor dosolhosnão tinha fins puramente estéticos.HannaBalder havia apanhadomaisumavez.HannaBalder apanhavacom frequência.Masnão seria razoável afirmarque tivesse se acostumado

comisso.Ninguémjamaisseacostumacomagressões.Noentanto,elasfaziampartedoseudiaadia,eHannamalselembravadapessoaalegrequeforaemoutrostempos.Omedotinhasetransformadoemumacaracterísticadesuapersonalidade,ejáfaziatempoqueelahaviapassadoafumartrêsmaçosdecigarropordiaeatomarcalmantes.Nasala,LasseWestmanpraguejava sozinho,oquenãoa surpreendia.Hanna sabiaqueele tinha se

arrependidode sua atitudegenerosa comFrans.Naverdade,Lassehavia lamentadodesdeoprimeiroinstante. Lasse dependia da pensão que Frans pagava a August. Por muito tempo vivera com essedinheiro, e por muitas vezes Hanna tinha sido obrigada a escrever e-mails inventando despesasinesperadascomumpedagogooucomalgumtratamentoquenaverdadenuncatinhaexistido.Porissoasituaçãopareciatãoestranha.PorqueLassehaviaabdicadodetudoedeixadoFranslevarAugust?No fundoHanna sabia a resposta.Tinha sidoa arrogânciadoálcool.Tinha sidoapromessadeum

papelnumasériepolicialdaTV4queohavialevadoaestufaropeitoaindamais.Mas,acimadetudo,tinha sido August. Lasse achava o menino estranho e perturbador, e essa era a parte maisincompreensível.ComoalguémpodiasentirrepulsaporAugust?Omenino passava o tempo inteiro sentado no chão, às voltas comquebra-cabeças, sem incomodar

ninguém.Mesmo assim,Lasse parecia sentir verdadeiro ódio dele, o que provavelmente tinha algumarelaçãocomoolhardeAugust, comaquelesolhos estranhosque sevoltavamparadentro, enãoparafora,equecostumavamfazeraspessoassorriredizerqueAugustdeviaterumavidainteriormuitorica.MasemLasseelescausavamarrepios.—Porra,Hanna!Eleolhaparamimcomoseeunãoexistisse—Lasseàsvezesexclamava.—VocêmesmojádissequeoAugustnãopassadeumidiota.—Elepodeserumidiota,masmesmoassimmeperturba.Tenhoaimpressãodequeelequeromeu

mal.Issonãofaziasentido.AugustnãoolhavaparaLassenemparaqualqueroutracoisa,enãodesejavao

Page 23: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

maldeninguém.Omundosimplesmenteeraumlugardesconfortávelparaomenino,queporsorteestavafechado, sozinho, em uma bolha.Mas em seus delírios provocados pelo álcool Lasse acreditava queAugustandavatramandoumavingança,eessecomcertezatinhasidoomotivoqueofizeradeixarAugusteodinheirosumiremdavidadocasal.Erapatético.PelomenosnaopiniãodeHanna.Elaestavadepéjunto à pia e fumava com tamanha angústia e nervosismo que acabou com fiapos de tabaco na línguaenquantorefletiasobreoquetinhaacontecido.TalvezAugustrealmenteodiasseLasse.Talvezoquisessecastigarportodasasvezesquehaviaapanhado,etalvez…Hannafechouosolhosemordeuoslábios…talvezomeninopensassemaldelatambém.Hannavinhatendoessespensamentosautopunitivosdesdequehaviacomeçadoasentirumasaudade

quaseinsuportáveldofilhoechegouapensarqueelaeLassetalvezfossemprejudiciaisaobem-estardeAugust. Fui uma pessoa má, balbuciou, e nesse instante ouviu Lasse gritar alguma coisa. Hanna nãoentendeu.—Oquevocêdisse?—elaperguntou.—OndediabosestáadecisãosobreaguardadoAugust?—Oquevocêquercomela?—QueromostraraoFransqueelenãotemessedireito.—Nãofazmuitotempovocêestavafelizporeleteridoembora.—Euestavabêbadoefizumabesteira.—Eagoravocêestásóbrioetomandoadecisãocerta?—Umadecisãomuitocerta—elerespondeu,bufando,enquantoseaproximavadeHannacomuma

expressãoirritadaedecidida.Elafechouosolhoseseperguntoupelamilésimavezporquetudohaviadadotãoerrado.FransBalderjánãopareciaohomemelegantequecostumavaacompanharaex-mulher.Tinhaocabelo

desgrenhado,olábiosuperiorbrilhavaporcausadosuoracumuladoefaziapelomenostrêsdiasqueelenãosebarbeavanemtomavabanho.Apesardetodososesforçosparasetornarpaiemtempointegral,eapesardaquele instantedeesperançaeentusiasmonaHornsgatan,estavamaisumavezentregueaumaprofundaconcentraçãoqueseconfundiacomraiva.Seusdentesrangiam,eporváriashorasatempestadeeomundoláforatinhamdeixadodeexistir;ele

nempercebiaoqueestavaacontecendonochãoondepisava.Erammovimentospequenosedesajeitados,como se um gato ou um bicho tivesse se enfiado entre suas pernas. Passado algum tempo, notou queAugusthaviaengatinhadoparabaixodesuamesa.Franslançouumolharsonolentoemdireçãoaofilho,comoseumasequênciadelinhasdecódigoaindalheobscurecesseavisão.—Oquevocêquer?Augustencarou-ocomumolharlímpidoeinsistente.—Oquehouve?—Franscontinuou.—Oquehouve?Efoientãoqueaconteceu.O menino pegou no chão um pedaço de papel cheio de algoritmos quânticos e passou a mão

insistentementedeumladoaoutro,fazendoFranspensar,poruminstante,queofilhoestavatendouma

Page 24: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

crise.Masnão:Augustpareciaescreveralgumacoisacommovimentosapressados,portantoFranstornouarelaxar.Masderepenteselembroudeumacoisaimportanteelongínqua,comoaquepresenciaranocruzamentodaHornsgatan.Adiferençafoiquedestavezelesabiaexatamenteoqueera.Tinhase lembradodaprópria infância,quandoasequaçõeseosnúmeroserammais importantesdo

queaprópriavida.EntãoorostodeFransseiluminoueeledisseaofilho:—Vocêquerfazercálculos,é isso?Quercalcular?—perguntou,emseguida indobuscarcanetase

folhasdepapelparaAugust.Fransescreveuasériedenúmerosmaissimplesqueconseguiuimaginar:asequênciadeFibonacci,na

qualcadanúmeroéasomadosdoisnúmerosanteriores—1,1,2,3,5,8,13,21—,edeixouumespaçoem branco para o número seguinte, que seria 34. Em seguida, achou isso simples demais e escreveutambémumasériegeométrica:2,6,18,54…Nessasérie,cadanúmeroémultiplicadoportrês,portantoo número seguinte seria 162, e Frans pensou que uma criança talentosa não precisaria de grandesconhecimentos para encontrar a solução do cálculo. Em outras palavras, a concepção de Frans sobrematemática era bastante especial, e naquele instante começou a pensar que o filho não era uma cópiaatrasadadesimesmo,esimumacópiaamplificada,que,seeleestavaatrasadonodesenvolvimentodalinguagemedasinteraçõessociais,jáentendiaasrelaçõesmatemáticasantesmesmodeaprenderafalar.Pormuitotempopermaneceusentadojuntodomenino,esperando.Masnadaaconteceu.Augustapenas

observava os números com olhar vidrado, como se esperasse que a resposta se revelasse sozinha nopapel.Passadoalgumtempo,opaiodeixoucomasfolhaseascanetas.Comoaconcentraçãopareciateridoembora,FranssedistraiuporcercademeiahoracomumexemplardaNewScientist.Depois se levantouparaveroqueAugustestava fazendoedescobriuquenada tinhaacontecido.O

meninocontinuavaagachadonamesmaposiçãoemqueohaviadeixado.EmseguidaFranspercebeuumdetalhequeaprincípioapenasaguçousuacuriosidade.Noinstanteseguinte,porém,acreditouestardiantedeumfenômenototalmenteinexplicável.Nãohaviamuitos clientesnoBishop’sArms.Passavaumpoucodomeio-dia eo tempona ruanão

estavamuitoconvidativoparaumpasseio,mesmoparaumpasseiosóatéobar.Mikaelfoirecebidocomgritoserisadasporumavozrouca:—Super-Blomkvist!Eraumhomemderosto inchadoevermelhocomcabelodesgrenhadoebigodecaídoqueMikael já

tinha visto na vizinhança em outras ocasiões e que, se não estava enganado, se chamava Arne. Elecostumava aparecer no bar sempre às duas da tarde em ponto, embora nesse dia tivesse chegado umpoucoantesesesentadoaumamesaàesquerdadosalãocomoutrostrêscompanheirosdecopo.—Mikael—disseBlomkvist,corrigindo-ocomumsorriso.Arne,oucomoquerqueohomemsechamasse, riucomosamigos,comoseonomeMikaelfossea

piadamaisengraçadaquejátivessemouvido.—Algumfuroàvista?—Arneperguntou.—EstoupensandoemrevelartodasasfalcatruasqueacontecemaquinoBishop’sArms.—VocêachaqueaSuéciaestáprontaparaumahistóriadessas?

Page 25: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Não,provavelmentenão.Naverdade,Mikaelgostavadaquelepessoal,aindaqueseucontatocomelesnãotivesseidoalémde

cumprimentos e demeia dúzia de frases.Mas aqueles homens eramparte do cotidianoqueo fazia sesentirbemnavizinhança,porissonãolevouamalquandoumdelesdissederepente:—Ouvidizerquevocêestáacabado.Pelocontrário:abrincadeirapareciadevolveraperseguiçãoquevinhasofrendoaocontextotriviale

ridículodeondeelajamaisdeveriatersaído.—“Estouacabadoháquinzeanos!Eueagarrafanosencontramos”—respondeuMikael,citandoo

escritor sueco Fröding e em seguida correndo os olhos ao redor, à procura de alguém que parecessesuficientementeinfluenteparaordenaraumjornalistaqueoencontrassenobar.MascomoalémdeArneedasuaturmadeamigosnãohavianinguém,MikaelfoiconversarcomAmirnobalcão.Amireragrande,gordoebem-humorado,umdosquatroirmãosmuitodedicadosquetocavamobar.

EleeMikaelerambonsamigos.NãoporqueMikaelfosseumclienteassíduo,masporquejáhaviamseajudado em algumas situações. Amir tinha fornecido vinho tinto em duas ou três ocasiões em que oSystembolaget,aredepúblicacriadapararegularoconsumodeálcoolnopaís,jáhaviafechadoquandoMikael esperava companhia feminina para o jantar, eMikael ajudara um amigo deAmir quemoravailegalmentenopaísaescreverpetiçõesàsautoridades.—Aquedevoahonradavisita?—Marqueiumencontrodetrabalhoaqui.—Algumahistóriaemocionante?—Achoquenão.ComovaiaSara?SaraeraamulherdeAmir,quetinhaacabadodepassarporumacirurgianabacia.—Gemendoetomandoanalgésicos.—Nãodeveserfácil.Digaquemandeiumabraço.—Podedeixar—disseAmir,eosdoiscomeçaramaconversarsobreoutrosassuntos.ComoLinusBrandell não aparecia,Mikael ficou com a impressão de que tinham lhe pregado uma

peça.Masjáquehaviacoisaspioresnavidadoqueseratraídoparaobardavizinhança,Mikaelpassoucercadequinzeminutosdiscorrendosobrequestõesdeeconomiaesaúdeantesdevirarascostasparairembora.Efoinesseinstantequeosujeitochegou.Não que August tivesse completado as séries com os números corretos. Esse tipo de coisa não

impressionariaalguémcomoFransBalder.Eraalgoao ladodosnúmeros,quenumprimeiromomentopareceuumafotografiaouumapintura,umareproduçãoexatadosemáforopeloqualhaviampassadonaHornsgatan.Tudocapturadonosmínimosdetalhes,comprecisãomatemática.Odesenho,semexagero,erabrilhante.Semqueninguémjamais tivesseensinadoaAugustqualquer

coisa sobre o desenho de formas tridimensionais ou a maneira como um artista representa luzes esombras, o menino parecia dominar a técnica à perfeição. O olho vermelho do semáforo dava aimpressãodereluzir,aescuridãooutonaldaHornsgatantambémpareciacintilar,enomeiodaruaestavaohomemqueFranstinhavistoetidoavagaimpressãodeconhecer.Orostotraziaumcortelogoacima

Page 26: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

das sobrancelhas. O homem parecia assustado ou ao menos perturbado, como se August o tivessecapturadonomomentoemquehaviaperdidooequilíbrio,ecaminhavacompassoshesitantes,fossequalfosseatécnicaencontradaporAugustpararepresentá-lodaquelamaneira.—MeuDeus!—exclamouFrans.—Foivocêquefezessedesenho?August não respondeu, apenas inclinou a cabeça e olhou para a janela, enquanto Frans Balder era

tomadopelasensaçãodequesuavidanãoseriamaisamesmadaliparaafrente.Mikaelnãosabiaaocertooqueesperar—talvezumjovemelegantedobairrodeStureplan.Maso

rapaz que entrou era um grosseirão com uma calça jeans velha, cabelo longo e seboso e um olharsonolentoeevasivo.Deviaterunsvinteecincoanosoumenos,tinhapeleruim,umafranjaqueescondiaosolhoseumaferidabemfeianaboca.LinusBrandellnãopareciaalguémquepudesseterumgrandefuroaoferecer.—VocêdeveserLinusBrandell.—Eumesmo.Desculpe o atraso.Quando eu vinha para cá encontrei uma garota que eu conhecia.

Fomoscolegasnononoanoeela…—Vamospularessaparte—Mikaelointerrompeuesedirigiuaumamesa.Em seguida Amir foi atendê-los com um sorriso discreto, e os dois pediram duas Guinness e

permaneceram em silêncio por alguns instantes.Mikael não entendia por que estava tão irritado.Nãocostumava reagirdessa forma,mas talvez fosseefeitode todoodramana revista.SorriuparaArneeparaaturmadele,enquantotodosoacompanhavamcomolharesatentos.—Voudiretoaoassunto.—Ótimaideia.—VocêconheceoSupercraft?MikaelBlomkvistnãoentendiamuitodejogosdecomputador,masjátinhaouvidoonomeSupercraft.—Conheçodenome.—Nadamais?—Nada.—Oquetornaessejogoespecialéqueexisteumainteligênciaartificialquepermiteaosjogadores

falarcomoutroscombatentessobreaestratégiadeguerrasemqueelessaibam,pelomenosnoinício,seesseoutrocombatenteéumapessoarealouumacriaçãodigital.—Nãodiga—respondeuMikael.Nadapoderia interessá-lomenosdoquedetalhessobreumjogo

inútil.—Ele foi umapequena revolução na área e eu ajudei a desenvolver esse programa—prosseguiu

LinusBrandell.—Meusparabéns.Vocêdeveterganhadoumdinheiroetanto.—Oproblemaéjustamenteesse.—Comoassim?—Esseprogramafoiroubadodenós,eagoraaTruegamesestáganhandobilhõessemnospagarum

centavo.

Page 27: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Mikaeljátinhaouvidohistóriascomoessa.Certavezhaviaconversadocomumamulherqueafirmavaser a verdadeira autora de Harry Potter e que acusava J. K. Rowling de ter roubado seus livrostelepaticamente.—Comofoiqueaconteceu?—Fomoshackeados.—Comovocêssabem?—TemosacomprovaçãodeperitosemtelecomunicaçõesquetrabalhamparaoMinistériodaDefesa,

noFörsvaretsRadioanstalt.Eutenhoumnomeparatedar,ealémdisso…Linussedeteve.—Sim?—AtéopessoaldaPolíciadeSegurançaNacional,aSäpo,seenvolveu.PodefalarcomaGabriella

Grane,umaanalista,quevaiconfirmaraminhahistória.Ela tambémmencionaocasoemumrelatóriooficialpublicadonoanopassado.Tenhoonúmerodorelatórioaqui…—Nessecaso,ahistórianãotemnadadenovo—Mikaelointerrompeu.—Nãonosentidotradicionaldapalavra.ANyTeknikeaComputerSwedenpublicaramartigossobre

tudoqueaconteceu.MascomooFransnuncaaceitoucomentaroassuntoeduasoutrêsvezesatéchegouanegarquetivesseacontecidoalgumacoisa,ahistórianuncafoiparaagrandeimprensa.—Mesmoassimoquevocêestámecontandoéumanovidadevelha.—Decertaforma,sim.—Entãoporqueeudariaouvidosavocê,Linus?—PorqueagoraoFransvoltoudeSanFranciscoepareceterentendidooqueaconteceu.Achoqueo

Fransestásentadonumbarrildepólvora.Tenhocertezadequeeleestámuitopreocupadocomaprópriasegurança,porquecomeçouausarcriptografianotelefoneenaconexãodainternete,comoseissonãofosse suficiente,mandou instalar umalarmenovo emcasa, cheiode câmeras, sensores e tudoomais.Achoquevocêdeviaconversarcomele;éporissoqueresolvitecontartudo.UmcaracomovocêtalvezconsigafazeroFranscontaroquesabe.Elenãomeescuta.—EvocêmetrouxeaquiparamedizerqueparecequeumsujeitochamadoFransestásentadonum

barrildepólvora?—Blomkvist, eunãoestou falandodeumsujeitoqualquer chamadoFrans,masdoprofessorFrans

Balder!Eunãotinhaditoisso?Trabalheiporumtempocomoassistentedele.Mikael puxou pelamemória e a única pessoa com sobrenomeBalder que lhe ocorreu foiHanna, a

atriz.—QueméFransBalder?OolharqueMikaelBlomkvistrecebeurevelouumdesprezosuficienteparaconstrangê-lo.—VocêporacasoveiodeMarte?FransBalderéumalendaviva!—Émesmo?— Com certeza!— prosseguiu Linus.— É só procurar no Google. Ele começou como professor

universitáriodeciênciasdacomputaçãocomvinteeseteanosenosúltimosvinteanossedestacoucomoumadasmaioresautoridadesmundiaiseminteligênciaartificial.Nãoexistepraticamentemaisninguémnomundoquedetenhaconhecimentostãoavançadossobreodesenvolvimentodecomputadoresquânticos

Page 28: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

e redes neurais. Ele sempre encontra soluções estranhas e nada ortodoxas para os mais diversosproblemas.Temumcérebrogenialqueparecefuncionaraocontrário.Pensasempredemaneiraoriginaleinovadora, e, como você pode imaginar, as grandes empresas de tecnologia vêm brigando por ele háanos.Mas Balder não cede. Prefere trabalhar sozinho.Oumelhor, quase sozinho, porque teve váriosassistentes,dosquais,aliás,eletiraosangue.Acimadetudo,eleexigeresultadoseseguiapelolema“Nadaéimpossível,eonossotrabalhoéexpandiroslimites”,eblá,blá,blá.Masaspessoasacreditamnisso.Elesempreconsegueoquequer.Todomundoestádispostoamorrerporele.Nomundonerdeleéumdeus.—Sei.—Nãopensequeeusouumadmiradorsemespíritocrítico.Nãomesmo.Seiqueexisteumpreçoa

pagar.Vocêpodefazercoisasgrandiosasaoladodele.Mastambémsedarmal.OFransnemconseguecuidardoprópriofilho.Elefracassoucomopaideformaimperdoável,eexistemváriashistóriasdessetiponavidadele.Assistentesquesurtaram,quetiveramavidaarruinadaesabe-selámaisoquê.Masmesmoqueelesempretenhasidoumobcecado,nuncaagiudamaneiracomoestáagindoagora.Nuncafoihistéricocomquestõesdesegurança,eétambémporissoqueeuestouaqui.Queroquevocêconversecomele.Seiqueelefezumadescobertaimportante.—Eissoétudoquevocêsabe.—OquevocêprecisaentenderéqueoFransnuncafoidotipoparanoico.Pelocontrário.Dáatépra

dizerqueelesofriadeumacertafaltadeparanoia,considerandootipodecoisacomquesempreesteveenvolvido.Masagoraelesetrancouemcasaequasenãosaidelá.Pareceestarcommedo,emboranuncatenhaseassustadoàtoa.Elesemprefoiumdemônioenlouquecidoquenãoconheciaoutrocaminhoanãoseraquelequeolevavaparaafrente.—Eelegostavadejogosdecomputador?—perguntouMikael,semconseguiresconderoceticismo.—Bem…oFranssabiaquetodosnóséramosfanáticosporjogoseachavaquedevíamostrabalhar

com o que gostávamos. O programa de inteligência artificial que ele desenvolveu também podia serusado pelo mercado de jogos. Seria um experimento perfeito, e conseguimos resultados incríveis.Chegamosaondeninguémhaviachegado.Etudograças…—Linus,porfavor,vádiretoaoponto.—A questão é que quando o Balder e os advogados dele entraram com o pedido de patente dos

aspectos mais inovadores dessa tecnologia, tivemos o primeiro choque. Um engenheiro russo daTruegamestinhaacabadodeentrarcomumasolicitaçãodepatentequeacaboubloqueandoanossa,oquedificilmentepodiasermeracoincidência.Naverdade,poucoimportava.Issodapatenteeraodemenos,comparadocomtudoqueestavaacontecendo.OimportanteeradescobrircomoaTruegamestinhasabidodo nosso projeto.Como todos da nossa equipe erammuito leais ao Frans, só restou uma explicação:alguémtinhanoshackeado,apesardetodasasmedidasdesegurançaquetomávamos.—EfoidepoisdissoquevocêsentraramemcontatocomaSäpoeoMinistériodaDefesa?—Não.OFranstemsériosproblemascomgentedeternoegravataquetrabalhadasnoveàscinco.

Elepreferemalucosobcecadosquepassamnoitesemclaroemfrenteaocomputador.Então,emvezdepedirumaajudaoficial,resolveuchamarumahackermisteriosaqueeletinhaconhecidonãoseionde,edecaraeladissequetínhamossidoinvadidos.Nãoqueela tenhaparecidolámuitoconfiável;eupelo

Page 29: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

menosnãochamariaaquelagarotaparatrabalharnaminhaempresa;provavelmenteelanemsabiadireitooqueestavadizendo.SóquedepoisosagentesdoFörsvaretsRadioanstaltconfirmaramasconclusõesdela.—Eninguémsabequemhackeouvocês?—Não,ninguémsabe.Équaseimpossívelseguirosrastrosdeumainvasãodessetipo.Semdúvidafoi

coisadeprofissional.Nóstrabalhamosdurononossoesquemadesegurançadigital.—EagoravocêachaqueoFransBaldertemmaisdetalhesdoqueaconteceu?— Com certeza. Ele não teria outra razão para agir como está agindo. Tenho certeza de que ele

descobriualgumacoisanaSolifon.—Eletrabalhoulá?—Trabalhou,pormaisestranhoquepareça.Comoeufalei,oFranssempresenegouatrabalharpara

os gigantes da computação. No mundo todo não havia ninguém que falasse com mais convicção deindependência,daimportânciadeserlivreedenãosetornarescravodaquelesquedetêmopoder,essahistória toda.Mas quando nos pegaram de guarda baixa e roubaram a nossa pesquisa, ele de repenteaceitou uma oferta da Solifon, e aí ninguém entendeu nada. Tudo bem que ofereceram um saláriomonstruosoecartabrancaparaele:vocêvaipoderfazeroquebementender,desdequetrabalheparaagente;deve tersidoumaproposta tentadora.Pelomenosseria tentadoraparaqualquerpessoaquenãofosseFransBalder.Mas ele já tinha recebidopropostas semelhantes daGoogle, daApple e dequemmaisvocêpossaimaginar.PorqueesseconvitedaSolifonderepentepareceumaisinteressante?OFransnunca explicou isso. Ele simplesmente pegou suas coisas e foi embora. Pelo que fiquei sabendo, nocomeçodeu tudocerto.OFranscontinuoudesenvolvendoanossa tecnologia lá,eachoqueoNicolasGrant,odonodaSolifon,começouafantasiarsobreosnovosbilhõesquecomeçariamaentrar.Oclimaeradeentusiasmo.Masnomeiodissoalgumacoisadeveterdadoerrado.—Algumacoisaquevocênãosabeoqueé.—Issomesmo,perdemoscontatocomoFrans.Eleseafastoudomundo.Tenhocertezadequedeve

estar acontecendo alguma coisa grave.O Frans era defensor da transparência, da abertura, adepto deideiascomooconhecimentoàdisposiçãodamassaecoisasdogênero;acreditavanaimportânciadeseutilizaroconhecimentodeumgrandenúmerodepessoas,enfim,emtodasessasideiasportrásdoLinux.Mas na Solifon ele guardou sigilo absoluto de tudo, inclusive de pessoasmuito próximas a ele, e derepentepediudemissão,voltouparaaSuéciaeagoravivecomoumreclusonasuacasaemSaltsjöbaden.Nãocuidadasuaaparênciapessoalnemsaiparaumacaminhadanopátio.—Ouseja,Linus,oquevocêteméahistóriadeumprofessoruniversitárioquesesentepressionadoe

parecenãoseimportarcomsuaaparência.Mascomoosvizinhossabemdissoseelenãosaidecasa?—Bem,euachoque…—Linus,euconcordoquepodeserumahistóriainteressante.Masinfelizmentenãoéumahistóriapara

mim.Eunãosourepórterdetecnologia.Souumhomemdaidadedapedra,comoandaramescrevendo.Sugiro que você fale com Raoul Sigvardsson, do Svenska Morgon-Posten. Ele é um jornalista queconhecebemessemundo.—Não,não,oSigvardssonnãoserve.Essahistóriaestámuitoalémdacapacidadedele.—Achoquevocêestáenganado.

Page 30: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Blomkvist,nãofujajustoagora!Essapodeserumachanceúnicaparavocêvoltaremgrandeestilo.MikaelfezumgestodeaborrecimentonadireçãodeAmir,quelimpavaumamesaafastada.—Possotedarumconselho?—disseMikael.—Como…pode,claro.—Na próxima vez em que você tentar vender uma história para um repórter, não tente dizer que

importânciaessahistóriavaiterparaele.Vocêfazideiadequantasvezeseujáviessefilme?“Essavaiser a grande reportagemda suavida.Maior até doqueWatergate!”Você chegaria bemmais longe sefosseumpoucomaisobjetivo,Linus.—Eusóqueria…—Oquevocêqueria?—QuevocêconversassecomoFrans.Achoqueeleiagostardevocê.Vocêsdoistêmesseespíritode

quemnãoaceitafazerconcessões.Derepente,Linuspareceuterperdidototalmenteaconfiança,eMikaelachouquetalveztivessesido

durodemaiscomele.Emgeraldemonstravabomhumoreanimaçãoaofalarcominformantes,pormaisloucos que eles fossem—não apenas porque talvez houvesse umagrande história por trás de toda aloucura, mas também porque sabia que emmuitos casos ele era visto como uma tábua de salvação.Muitos o procuravam depois de todo mundo ter lhes virado as costas. Em muitos casos, Mikaelrepresentavaumaúltimaesperança,enãohaviaporquetrataraspessoascomdesprezo.—Escute—disseMikael.—Eutiveumdiapéssimo.Nãoquisparecersarcástico.—Tudobem.—Evocêtemrazão—prosseguiu.—Temumacoisaquemeinteressanessahistória.Vocêdisseque

umahackerfoichamada.—É,masissonãotemnadaavercomahistóriatoda.Foiapenasumaespéciedeexperimentosocial

doBalder.—Maselapareceusercompetente.—Ouacertoutudonasorte.Agarotadiziamuitabobagem.—Vocêchegouafalarcomela?—Sim,logodepoisqueoBalderfoiparaoValedoSilício.—Quantotempofazisso?—Onzemeses.Eutinhalevadoosnossoscomputadoresparaomeuapartamento,naBrantingsgatan.

Minhavidanãoeramuitoinvejávelnaépoca.Euestavasolteiro,quebradoeviviaderessaca.Aminhacasaeraumverdadeirocaos.EutinhaacabadodefalarcomoFransportelefone,eelefalandocomigocomosefosseomeupai.Nãojulgueagarotapelaaparência,asaparênciasenganam,enãoseimaisoquê…Eledisseessascoisastodaspramim!Poxa,eunãosouexatamenteogenrodossonhosdeninguém.Nuncapus terno egravatanavida e seimuitobemcomoéqueoshackers sevestem.Bom, eu fiqueiesperandoagarota.Acheiqueelapelomenosiabaternaporta.Maselasimplesmentefoientrando.—Comoelaera?—Satânica…Paradizeraverdadetambémerasexy,masdeumjeitoassustador.Massatânica!—Linus, eunãopediumaavaliaçãodosatributos físicosdagarota.Queriaapenas sabercomoela

estavavestidaesechegouadizerseunome.

Page 31: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Nãofaçoamenorideiadequemelaé—Linusprosseguiu—,mesmoqueeutenhaachadoqueareconheciadealgumlugar…mastiveumaimpressãoruim.Elaeracheiadetatuagensepiercings,essascoisastodas,pareciaumametaleiraouumadessasgóticas,oupunks,eeramagracomoumesqueleto.Quasesemsedarconta,MikaelfezsinalparaqueAmirtrouxessemaisumcanecodeGuinness.—Eoqueaconteceu?—eleperguntou.—Bem, como posso dizer?…Achei que não íamos falar de cara sobre negócios, então sentei na

minhacama,jáquepraticamentenãohaviaoutrolugarprasentar,epergunteiseelaqueriabeberalgumacoisa.Sabeoqueelafez?Pediuqueeusaísse.Essagarotamemandouemboradaminhaprópriacasacomo se fosse a coisamais normal domundo. Eume recusei, claro, disse alguma coisa como “Esteapartamentoémeu”.Maseladisse:“Sumaagoramesmodaqui”,entãoeuviquenãohaveriajeitoseeunãofosseembora,esaíepasseiumbomtempofora.Quandovoltei,elaestavadeitadanaminhacama,fumandoelendoumlivrosobreteoriadascordas,umacoisaassim,umaloucura,eachoqueeuolheideumjeitomeioestranhoparaela,seilá,porqueeladissequenãotinhaamenorintençãodeirparaacamacomigo.Acho que em nenhummomento ela olhou nosmeus olhos. Simplesmente disse que os nossoscomputadores estavam infectados por um trojan, um RAT, e que dava pra reconhecer os padrões dainvasão e o alto nível da programação usada. “Alguém ferrou com vocês”, ela disse. E depois foiembora.—Semnemsedespedir?—Semdizernemmaisumapalavra.—Putz—Mikaeldeixouescapar.— Acho que ela estava fazendo tipo. O especialista do Försvarets Radioanstalt que examinou os

computadores depois, e que deve ter bemmais experiência nesse tipo de ataque, disse que nãohaviadados suficientespara chegar a essas conclusõesequepormaisque tivesseprocuradonãoencontrounenhumtipodevírusespião.Mesmoassimesseespecialista,quealiássechamaStefanMolde,tambémachouquetínhamossidovítimasdeumainvasão.—Emnenhummomentoessagarotaseapresentou?—Euinsistiparaqueeladissesseonomedela,masaúnicacoisaqueelafalou,eaindademauhumor,

foiqueeupodiachamá-ladePíppi.Comcertezanãoeraonomedela,mesmoassim…—Oquê?—Acheiquecombinavacomela.—Escute—disseMikael.—Euestavamepreparandoparairembora.—É,eupercebi.—Masagoraasituaçãomudoucompletamente.VocêdissequeoFransBalderconheciaessagarota?—Issomesmo.—Nessecasoeuquerofalarcomeleomaisrápidopossível.—Porcausadagarota?—Algoassim.—Tudobem—Linusrespondeu,pensativo.—Masvocênãovaisabercomoentraremcontatocom

ele.Comoeudisse,oFransestáescondido.VocêtemiPhone?—Tenho.

Page 32: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Entãoesquece.OFransachaqueaApplesevendeuparaaNSA.Prafalarcomelevocêvaiprecisarcomprar um Blackphone ou então arranjar um celular com Android e baixar um aplicativo decriptografia.Maseuvoutentarconvencê-loaentraremcontatocomvocê,eaívocêscombinamumlugarseguroparaseencontrarem.—Ótimo,Linus.Obrigado.Mikael permaneceu sentado depois que Linus foi embora, bebendo sua Guinness e observando a

tempestade lá fora. Mais atrás, Arne ria com sua turma. Porém Mikael estava tão perdido empensamentosquenãoouviunadadoqueelesdiziamnempercebeuquandoAmirsesentouaoladodeleecomeçoualeraprevisãodotempo.Aprevisãoparaosdiasseguinteseradeumtempoabsolutamentelouco.Atemperaturacairiaparadez

grausnegativos.Esperava-seaprimeiranevedoano,e tudoindicavaqueelanãochegariademaneiraagradável,aconchegante.SeriaapiornevascaaatingiraSuéciaemmuitosanos.—Pode haver furacões—Amir disse por fim, eMikael, que ainda não estava prestando atenção,

respondeudemaneiralacônica:—Quebom.—Bom?—É…bem…Melhordoquenãotertemponenhum.—Verdade.Tudobem?Vocêpareceestaremestadodechoque.Oencontronãofoibom?—Não,deutudocerto.—Masasnotíciasdeixaramvocêabalado,nãofoi?—Aindanãoseibem.Estátudomeioconfusoparamim.EstoupensandoemsairdaMillennium.—Euachavaquevocêearevistaeramumacoisasó.—Eutambém.Mastudotemseutempo.—Éverdade—Amirconcordou.—Omeupaicostumavadizerqueatéascoisaseternas têmseu

tempo.—Comoassim?—Achoqueeleestavapensandonoamoreterno.Eledisse issoumpoucoantesdedeixaraminha

mãe.Mikaelconteveumarisada.—Ah,certo.Eumesmonãomedeimuitobemnoamor.Emcompensação…—Oquê,Mikael?—Temumamulherqueeuconhecihámuitotempoequedesdeentãosumiudaminhavida.—Complicado.—Nãoéfácil.Masagoraeladeuumsinaldevida,oupelomenosachoquedeu,etalvezporissoeu

estejaassim.—Sei.—Masprecisoirparacasa.Quantotedevo?—Depoisagenteacerta.

Page 33: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Estábem.Secuide,Amir—disseMikael.Emseguidapassoupelosclienteshabituais,quefaziamcomentáriosabsurdossobrecomoenfrentaratempestade.Foiumaexperiênciadequasemorte.Apesardasrajadasdeventoquecastigavamseucorpo,Mikael

caminhoudevagaremmeioaotempohorrível,entregando-seaantigaslembrançasenquantovoltavaparacasa.Ali,poralgumarazão,tevedificuldadeemabriraporta.Precisoulutarcomachavenafechadura,edepoisqueenfimconseguiuentraremcasatirouosapato,sentou-seemfrenteaocomputadorecomeçoualersobreoprofessorFransBalder.QuandoMikaeldesistiudecontinuartentandoseconcentrar,aperguntaquejásehaviafeitoinúmeras

vezesvoltou:ondeelaestaria?Alémdoqueconstavanorelatóriodoex-chefedela,DraganArmanskij,elenuncamaistinhatidonotícias.Eracomoseelativessesidoengolidapelochão,e,aindaqueosdoisfossempraticamentevizinhos,Mikaelnuncamaisatinhavisto.PorissoaspalavrasdeLinusoabalaramdaquelaforma.Emprincípio,outragarotapoderiateridoaoapartamentodeLinusnaqueledia.Erapossível,embora

nãoprovável.Afinal,quemalémdeLisbethSalanderchegariadaquelejeito,jáentrando,semnemolharnorostodapessoaeamandariaemboradaprópriacasaparavasculharoconteúdodoscomputadores,concluindoavisitacomafrase“Nãotenhoamenorintençãodeirparaacamacomvocê”?SóLisbeth.Quantoa“Píppi”,essenomeeraacaradela.NaportadoapartamentodeLisbeth,naFiskargatan,haviaaidentificação“V.Kulla”,onomedacasa

dePíppiMeialonga,eMikaelentendiamuitobemporqueelanãodeixavaaliseuverdadeironome.Eleseria facilmente identificado, pois estava associado a tumultos e escândalos. Mas onde ela moravaagora?NãoeraaprimeiravezqueLisbethdesaparecia.Mesmoassim,desdeodiaemqueMikaelhaviabatido na porta do apartamento dela, na Lundagatan, e a insultado por ter escrito um relatório bemcompletosobreavidadele,osdoisnuncahaviampassadotantotemposemcontato,oqueeraumpoucoestranho,poisapesardetudoLisbetherasua…Suaoquê,afinal?Dificilmenteumaamiga.Amigosseencontram.Amigosnãodesaparecemsemdeixarrastros.Amigos

nãomandamnotíciainvadindocomputadores.Mesmoassim,MikaelestavaligadoaLisbeth,e,acimadetudo,nãohaviacomoescapardapreocupaçãoquetinhacomela.Oex-tutordeLisbeth,HolgerPalmgren,costumava dizer que ela sabia cuidar de si mesma. Apesar da infância terrível que tivera, ou talvezjustamente por causa de tudo que havia lhe acontecido, Lisbeth tinha se transformado em umasobrevivente.Impossívelnegaroquantodeverdadehavianisso.Praticamente não existiam garantias para uma garota com um passado como o dela e com uma

habilidade ímpar de fazer inimigos. Talvez Lisbeth tivesse mesmo perdido o rumo, como DraganArmanskijhaviadadoaentenderquandoeleeMikaelalmoçaramnoGondolencercadeseismesesantes.EraumsábadodeprimaveraeDragantinhainsistidoempagaracerveja,aaquavitetudoomais.Mikaelteve a impressão de que Dragan estava precisando desabafar, e, mesmo que oficialmente os doisestivessemseencontrandonacondiçãodevelhosamigos,nãohaviadúvidadequeDragan,naverdade,queriafalarsobreLisbetheentregar-seaumpoucodesentimentalismoregadoaálcool.Entre outras coisas, Dragan contou que sua empresa, aMilton Security, tinha instalado alarmes de

segurançaemumacasaderepousoemHögdalen—alarmesexcelentes,deacordocomele.Masdenadaadiantatodooequipamentosefaltaenergiaelétrica.Ninguémsepreocupacomisso.À

Page 34: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

noitefaltouluznacasaderepouso,eRutÅkerman,umadasmoradoras,caiu,quebrouofêmurepassouhorasnochãoacionandooalarmesemquenadaacontecesse.Demanhã,a situaçãodelaeracrítica,ecomonaépocaos jornaisestavampublicandoumasériedereportagenssobreproblemasnoscuidadoscomidosos,oepisódioganhoudestaque.Felizmente Rut melhorou. No entanto, como ela era mãe de um político importante do Partido

Democrata,oSverigedemokraterna,ositeoficialdopartidopublicouumartigodizendoqueDraganeraárabe—oquenãoeraverdade, emboraàsvezesochamassemassim—,eo campodecomentários,então, virou uma zona de guerra. Centenas de anônimos escreveram que aquilo era o que aconteciaquando“confiamosnossasegurançaaessescabeçasdeturbante”.EDraganseofendeu,sobretudoporquesuamãetambémfoimencionadaemcomentáriosumtantorudes.Masderepente,comonumpassedemágica,todasaspessoasquehaviamdeixadoaliseuscomentários

perderamoanonimato,passandoaseridentificadascomnome,endereço,idadeeprofissão.Tudomuitobemorganizado, como se elas houvessempreenchido um formulário.Evidentemente, não eramapenasradicaisdesajustados,mastambémcidadãosbemestabelecidoseconcorrentesdeArmanskijnaáreadesegurança,todostendoqueseresponsabilizarpeloquehaviamescrito,sempodermaisseesconderatrásdoanonimato.Ninguémentendeunada.Arrancaramoscabelosatéquealguémconseguiutirarapáginadoar,ejuraramvingançaaquemquerqueestivesseportrásdaqueleataque.Sóqueaquestãoerajustamenteesta:ninguémsabiaquemeraoresponsávelpelainvasão,anãoserDraganArmanskij.—UmaatitudetípicadeLisbeth—eledisse—,eclaroqueeuestavaenvolvido.Nãotivepenadas

pessoasexpostas,aindaqueomeutrabalhosejagarantirasegurançadeinformações.EutinhapassadoumaeternidadesemnotíciasdeLisbetheestavacertodequeelanãoligavaamínimaparamim,eque,aliás, não ligava amínimaparanadanemninguém.E aí aconteceu isso…Foimuitobom.Lisbethmeajudouquandopreciseieagradeciaelaefusivamentepore-mail.Paraaminhasurpresaelarespondeu.Sabeoqueelaescreveu?—Não.— Só esta frase: “Como você pode proteger aquele asqueroso do Sandvall, da clínica de

Östermalm?”.—QueméSandvall?—Umcirurgiãoplásticoparaquemprestamosserviçosdesegurançapessoaldepoisqueelecomeçou

a receber ameaças por ter assediado uma jovempaciente, estoniana, que havia feito uma cirurgia nosseios.Agarotaeranamoradadeumgângster.—Ops…—É,não foinada fácil.EudisseaLisbethqueeu tambémnãoachavaSandvallumadasmelhores

criaçõesdeDeus.Naverdadetinhacertezadequeelenãoera,eudisse.Masdeiaentenderquenãocabeamimentrarnessetipodejulgamento.Nãopossotrabalharapenasparapessoasmoralmenteexemplares.Mesmoosporcostêmdireitoaumpoucodesegurança,ecomoSandvallvinhasofrendoameaçasgravese nos pediu ajuda, nós o ajudamos… pelo dobro do preço normal. Para mim nunca foi um grandeproblema.—ELisbethaceitouoseuraciocínio?—Elanemrespondeu…pelomenosnãopore-mail.Maspareceterrespondidodeoutromodo.

Page 35: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Como?—Elaapareceunaclínicaeordenouaosnossossegurançasqueficassemcalmos.Parecequechegou

inclusive a dizer que eu mandava lembranças. Em seguida atravessou toda a clínica, passou porpacientes, médicos e enfermeiras, entrou no consultório de Sandvall, quebrou três dedos dele e oameaçou.—Putamerda!—Éomínimoquesepodedizer.Foiumaloucuraelafazerissonafrentedetestemunhase,alémdo

mais,dentrodeumconsultóriomédico.—É,loucuramesmo.—Claroqueavidadelasecomplicoudepoisdessecaso,compedidosdeprocessosjudiciais,acoisa

toda. Imagine:quebrarosdedosdeumcirurgiãoplásticoqueganhariosdedinheiro fazendo incisões,liftings…Éotipodecrimequelevaqualqueradvogadofamosoacomeçaravercifrõesportodaparte.—Eoqueaconteceudepois?—Nada.Absolutamentenada,eessetalvezsejaodetalhemaisestranho.Oepisódiosimplesmentefoi

ignoradoe,aoquetudoindica,porqueocirurgiãonãoquisprocessá-la.Dequalquerforma,Mikael,foiumatodeloucura.Nenhumapessoaequilibradaentranumconsultóriomédicoparaquebrardedosdeumcirurgião.NemLisbethSalanderemseusmomentosmaisdesvairadosfariaumacoisadessas.MikaelBlomkvistnãoestavatotalmenteconvencido.Achavatudomuitológico,oupelomenosdentro

da lógica de Lisbeth, e ele era praticamente um especialista no assunto. Sabiamuito bem que aquelagarota pensava de forma racional, mas não com amesma racionalidade damaioria das pessoas. Elaseguiapremissasestabelecidasporelamesma,eMikaelnemporuminstanteduvidouqueaquelemédicotivessefeitocoisasbemmaisgravesdoquepassaramãonagarotaerrada.TeveaimpressãodenãoserumcasoqualquerparaLisbeth,sobretudopeloaltoriscoqueelahaviacorrido.MikaelBlomkvisttinhachegadoapensarquemaiscedooumaistardeelaacabariaseenvolvendoem

problemas,talvezparasesentirvivadenovo.Mastodoessejulgamentoerainjusto.Eledesconheciaosmotivos de Lisbeth. Não sabia absolutamente nada da vida que ela estava levando, e, enquanto atempestadebalançavaasjanelaseelecontinuavasentadodiantedocomputador,pesquisandosobreFransBalder, tentou ver a beleza de terem topado um com o outro,mesmo que daquelamaneira torta. Eramelhordoquenada, eMikael achouquedevia estar felizpor elanão termudado.Tudo indicavaqueLisbethcontinuavaamesma,etalvez—quemsabe?—atétivessearranjadoumahistóriaparaele.Poralgunsmotivos,Linusoirritaradesdeoprimeiroinstante,etalvezporissoMikaeltivesseignoradotudoqueeledisse,pormaissensacionalquepudesseser.MasquandoLisbethentrounahistória,tudomudoudefigura.Nãohaviadúvidas sobrea inteligênciadeLisbeth.Seela tinhadecidido seenvolvernaquelecaso,

talvezhouvesse razõessuficientesparaqueele tambémfizesseomesmo.Podiaaomenos investigaroassuntoumpoucomaisdepertoe,comalgumasorte,conseguiralgumainformaçãosobreLisbeth.Porqueelatinhasumidodomapa?Bem,elanãoeranenhumaconsultoradeTI,edeviaestarrevoltadacomasinjustiçasdavida.Podia

sumir domapa e administrar a justiça domodo que bem entendesse.Mas que aquela garota, que nãotemia hackear computador nenhum, tivesse se comovido com uma simples invasão digital era

Page 36: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

surpreendente. Quebrar os dedos de um cirurgião ainda fazia sentido. Mas se engajar na luta contraataquescibernéticosilegaiseracomomorarsobumtelhadodevidroejogarpedranotelhadodosoutros,não?MasMikaelnãotinhacertezadenada.Erarazoávelsuporquehouvesseumaboahistóriaportrásdoquehaviaacontecido.TalvezLisbethe

Balderfossemamigosoucorrespondentes—nãoseriaimpossível.EntãoMikaelprocurouocorrênciascom os dois nomes juntos, mas nada encontrou, ou pelo menos nada interessante. Em seguida ficouobservandoatempestadeepensandonodragãotatuadonumcorpomagro,nofriodeHedestadenacovaabertaemGosseberga.DepoisvoltouapesquisarsobreFransBalder,eoquenãofaltavaeramaterial.Onomedoprofessor

gerou dois milhões de ocorrências, mas apesar disso não era fácil encontrar uma biografia dele. Amaioriadosresultadoseramartigoseanálisescientíficas;pelovisto,FransBaldernãodavaentrevistas.Por isso, tudo acerca da vida dele tinha uma certa aura mítica, como se fosse superdimensionado eromantizadoporalunosqueoadmiravam.ConstavaquenainfânciaFransBalderforatratadocomosetivessedistúrbiosdeaprendizagem,atéo

dia em que procurou o diretor da escola onde estudava em Ekerö paramostrar um erro no livro dematemática do nono ano, no capítulo sobre números imaginários. Uma correção foi feita nas ediçõesposteriores,emaistardeFransganhouumconcursonacionaldematemática.Diziamqueconseguiafalardetrásparaafrenteeescreverlongospalíndromos.Emumantigotextoescolarpublicadonainternet,elecriticavaAguerra dosmundos, deH.G.Wells, por não conceber que criaturas superiores a nós emtodosossentidosnãosoubessemadiferençaentreaflorabacterianaemMarteenaTerra.Depois do colegial, Frans Balder foi estudar ciências da computação no Imperial College, em

Londres, e publicou um trabalho sobre algoritmos aplicados a redes neurais, tido como ummarco naárea.Tornou-seomaisjovemprofessordetodosostemposdaTekniskaHögskolan,deEstocolmo,efoiadmitidonaAcademiaRealdeEngenharia.Foiconsideradoumdosmaioresespecialistasdomundonoconceitoteóricode“singularidadetecnológica”—omomentoemqueainteligênciadoscomputadoresultrapassaainteligênciahumana.Apesarde tudo,FransBaldernãoeraumtipoatraentenemelegante.Emtodasas fotos,pareciaum

troll desleixado, de olhos pequenos e cabelo desgrenhado. Mesmo assim, tinha se casado com aglamorosaatrizHannaLind,quehaviaadotadoosobrenomeBalder.Ocasalteveumfilhoque,segundoareportagemdeumjornalvespertino,encimadapelamanchete“AgrandetragédiadeHanna”, tinhaumagrave deficiência mental, embora o menino, pelo menos nas fotos que ilustravam a matéria, nãoaparentassenadadeerrado.Ocasamentonãodurou,e,naaudiência judicialno forodeNacka,quedecidiriasobreaguardado

menino,LasseWestman,oenfantterribledoteatro,declaroudemaneirabastanteagressivaqueBaldernão devia ter a guarda do filho, uma vez que Frans se preocupava “mais com a inteligência doscomputadores do que com a inteligência das crianças”. Mikael não se aprofundou nos aspectos daseparaçãoepreferiusededicaraentenderaspesquisasdeBaldereasdisputasjudiciaisemqueeleseenvolvera, além de passar um bom tempo lendo um artigo tortuoso sobre processamento quântico dedados.Depois deu uma olhada em seus próprios documentos no computador e abriu uma pasta que havia

Page 37: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

criadoanosantescomonomedeLisbethSalander.MikaelBlomkvistnãosabiaseLisbethcontinuavainvadindoocomputadordelenemseaindaseinteressavapelotipodejornalismoqueelefazia.Mastinhaesperançasdequeelanãootivesseabandonadoeseperguntousenãoseriabomdeixarumamensagemparaela.Haviaapenasumproblema:oqueescrever?UmalongacartapessoalnãofaziaoestilodeLisbeth;sóiriaconstrangê-la.Omelhorseriadeixaruma

mensagemcurtaeenigmática.Mikaelarriscouumapergunta:OquedevemospensarsobreainteligênciaartificialdeFransBalder?Depoisselevantouemaisumavezcontemplouatempestade.

Page 38: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

4.20DENOVEMBRO

EdwinNeedham,ouEd“theNed”,comoàsvezesochamavam,nãoeraotécnicodesegurançamaisbempagodosEstadosUnidos.Mastalvezfosseomelhoreomaisorgulhoso.Sammy,seupai,tinhasidouma ovelha negra, um alcoólatra descontrolado que às vezes fazia bicos na zona portuária, mas quepassavaamaiorpartedotempoembebedeirasdesenfreadasquenãoraroterminavamnacadeiaounohospital.Apesardetudo,osporresdeSammyeramosmelhoresmomentosvividospelafamíliadele.Quandoo

paiestavaseembriagandonarua,acasaadquiriaumaatmosferaacolhedora,eentãoRita,amãe,podiaabraçarseufilhoesuafilhaeprometer-lhesquetudoiamelhorar.Comexceçãodessesmomentos,nadafuncionavanacasa.AfamíliamoravaemDorchester,umbairrodeBoston,equandoopaiestavaemcasaacabava batendo com frequência emRita, que então passava horas e às vezes o dia todo trancada nobanheiro,chorandoetremendo.Em épocasmais difíceis,Rita chegava a vomitar sangue, e não foi surpresa quando elamorreu de

hemorragiainternacomquarentaeseisanos,nemquandoairmãmaisvelhadeEdseviciouemcrack,emenosaindaquandomaistardepaiefilhosquaseseviramobrigadosamorarnarua.AinfânciadeEdprometiainúmerosproblemasenaadolescênciaelesejuntouaumaganguechamada

“TheFuckers”,queaterrorizavaDorchesterpromovendobrigas, ataquese roubosa supermercados.OmelhoramigodeEd,umgarotochamadoDanielGottfried,acaboupenduradoemumganchodecarneeassassinadoagolpesdemachete.Naadolescência,Edesteveaumpassodoabismo.Desdecedoteveumaaparênciarústicaebrutal,eaagitaçãodogaroto,somadaàfaltadedoisdentes

superiores,nãoajudavamuitoasuavizá-la.Ederaalto,forteedestemido,eseurostocostumavatrazermarcasdebrigas—fossemdearranca-raboscomopaioudepancadariasentregangues.AmaioriadosprofessorestemiaEd.Todosacreditavamquecedooutardeeleacabariapresooumortocomumabalanacabeça.Mastambémhaviaadultosqueseinteressavamporele—talvezporteremdescobertoquehaviamaisdoqueagressividadeeviolêncianaquelesolhos.Ed tinha uma sede incontrolável de conhecimento, energia que o levava a devorar um livro com o

mesmoímpetocomquedepredavaumônibus,emuitasvezesadiavaavoltaparacasa.Preferiaficarna“saladetecnologia”daescola,ondeseentretinhaporhorasehorascomosdoiscomputadoresquehavialá.UmprofessordefísicachamadoLarsonpercebeuotalentodeEdparalidarcommáquinase,depoisde reuniões com autoridades do Serviço Social, conseguiu oferecer-lhe uma bolsa de estudos e aoportunidadedesetransferirparaumaescolacomalunosmaismotivados.

Page 39: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Ed se destacou nos estudos e, aos poucos, foi conseguindomais bolsas emais distinções.No fim,contrariandoasexpectativasiniciais,começouaestudarnaEECS,aElectricalEngineeringandComputerSciences, noMIT. Sua tese de doutorado tratou de alguns temores específicos sobre os sistemas decriptografiaassimétrica,comooRSA.GalgouposiçõesnaMicrosoftenaCisco,atésercontratadopelaNSA,emFortMeade,Maryland.Na verdade, o currículo de Ed não era totalmente adequado ao posto, e não apenas por ele ter se

envolvido com a criminalidade na adolescência. Tinha fumado um bocado de maconha na época dafaculdade e demonstrado certa simpatia pelos ideais socialistas e atémesmo anarquistas, e já adultohaviasidodetidoduasvezesporperturbaraordempública.Nadamuitograve:quasesemprebrigasdebar.Seutemperamentopermaneceuviolento,etodosqueoconheciamevitavamsedesentendercomele.MasaNSAviuqualidadesemEd,ealémdomaiseraoutonode2001.Oserviçodeinformaçãodos

EstadosUnidosandavatãodesesperadoatrásdetécnicosdedadosquepraticamentecontratavaqualquerum.Nosanosqueseseguiram,porém,ninguémjamaisquestionoualealdadeeopatriotismodeEd.Ou,sequestionou,concluiuquesuasqualidadeserammaisimportantes.Ed não tinha apenas um talento espetacular. Em sua personalidade havia também obsessão, uma

precisãomaníacaeumaeficiênciafuriosaprenunciandosucessoparaalguémencarregadodasegurançadigital das mais secretas autoridades norte-americanas. Ninguém seria capaz de entrar no sistemadesenvolvidoporele.EraumaquestãopessoalparaEd,quelogosetornoufiguraindispensávelemFortMeade;muitasvezesoscolegasfaziamfilaparaconsultá-lo.Muitossentiampavordele,eeraverdadequecomfrequênciaEdxingavaedestratavacolegas,indoalémdoqueseriarazoável.CertavezchegouamandarparaoinfernoatéodiretordaNSA,olendárioalmiranteCharlesO’Connor.“Trate de ocupar essa sua cabeça demerda com assuntos que você entende”, Ed bradou quando o

almirantequisdarumaopiniãosobreotrabalhoqueeleestavafazendo.Mas Charles O’Connor, assim como os outros, simplesmente não se importava com esse tipo de

atitude.SabiaqueEdgritavaebrigavaporbonsmotivos,ouporquealguémhaviasidorelapsocomosprotocolosdesegurança,ouporquetinhadadoumaopiniãosobrealgodequenãoentendia.Alémdisso,elejamaishaviaseintrometidonotrabalhodaagênciadeespionagem,mesmoqueporforçadaposiçãoqueocupavativesseacessoaquasetudoemesmoqueanosdepoisaNSAtenhasidopeganomeiodeumatempestade, emque tanto representantes da direita comoda esquerda passarama ver o órgão como aprópriaencarnaçãododemôniooucomoaconcretizaçãodoGrandeIrmãodeOrwell.ParaEd,aNSApodia fazer o que bem entendesse, desde que os sistemas de segurança fossem rigorosos e semantivessemindevassáveis.Comoaindanãotinhafamília,Edpraticamentevivianoescritório.Eleeraumaforçacomaqualsepodiacontar.Mesmosendosubmetidoavárioscontrolesdesegurança

por causa de seu trabalho, nunca se encontrou nada questionável sobre ele— a não ser bebedeirasmonumentais —, nem mesmo quando ficava sentimental e começava a falar sobre o passado. Nãoexistiam indícios de que alguma vez ele tivesse falado com outras pessoas sobre o trabalho querealizava. No mundo exterior, mantinha a boca fechada como um túmulo, e se acontecia de alguémpressioná-loelerecorriaàsmentirasensaiadas,possíveisdeserconfirmadaspelainterneteporoutrosbancosdedados.Nãofoiporacasonematravésdeintrigasoujogosujo:Edaospoucossubiudeposiçãoesetornouo

Page 40: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

chefemaisgraduadodesegurançadasededaNSA,virandotudodecabeçaparabaixo,“paraquenenhumdelator venha aqui dar outro tapa na cara da gente”.Ed e a equipe que ele comandava aumentaram avigilância internaemtodosospontosimagináveisedepoisdenoitesenoitesemclaroapresentaramoqueeleàsvezeschamavade“muralhaimpenetrável”,àsvezesde“cachorrobravo”.“Nenhum filho da mãe vai entrar aqui, nenhum filho da mãe vai xeretar sem permissão”, disse,

sentindoumorgulhoimensodesimesmo.Esseorgulhoimensosódurouatéaquelafatídicamanhãdenovembro,umdiabonitoedecéuclaro.

EmMaryland,nenhumsinaldotemposinistroqueassolavaaEuropa.Aspessoasandavamdecamisetaejaquetas finas, e Ed, que com o passar dos anos havia adquirido uma barriguinha, vinha voltando damáquinadecafécomseutípicoandarcambaleante.Por causa de sua função, Ed não dava a mínima para roupas. Vestia calça jeans e camisa xadrez

vermelha de lenhador, e suspirou ao sentar em frente ao computador. Suas costas e seu joelhodireitodoíam,epodiajurarquesuacolega,aantigapolicial lésbicadoFBI,aarticuladaeencantadoraAlonaCasales,ohaviaprovocadoapenasporumprazersádico.Porsortenãotinhanadademuitourgenteparafazer.Sóprecisavamandarumamensageminternacom

informações sobre o novo código de conduta para os responsáveis pelo OST, um programa decolaboração comoutras grandes empresas deTI—Ed haviamudado a senha de acesso.Mas não sealongoudemais.Escreveunoseuestilosecodesempre:Paraque ninguémcaia na tentaçãode agir comoum imbecil e paraque todos continuem sendo

bonsagentesdigitaisparanoicos,eugostariaderessaltarque…Derepenteumdosváriosalarmesointerrompeu.Ednãosepreocupoumuito.Osistemadealarmeeratãosensívelquereagiaaqualquermudançano

fluxodeinformações.Comcertezadeviaserumapequenaanomalia,talvezumsinaldequealguémhaviatentado acessar partes do sistema para as quais não tinha a necessária autorização— enfim, nada demais.Maso fato é queEdnem teve a oportunidadede verificar.No instante seguinte aconteceu algo tão

extraordinárioqueporunsbonssegundoseleserecusouaacreditar.Limitou-seaficarolhandoparaomonitor.Mesmoassim,sabiaexatamenteoquetinhaacontecido,pelomenoscomapartedeseucérebroqueaindaconseguiapensarracionalmente:haviaumRATnaNSANet,a intranetdaagência.Comaoutraparte do cérebro Ed pensou: vou acabar com esses filhos da puta! Porém, invadir aquele ambientetotalmentecontroladoefechadoqueeleesuaequipetinhamvasculhadomilhõesdevezesnoúltimoano,a fimde rastrear qualquer possível vulnerabilidade, pormais ínfima que fosse…Não, não, não tinhacomo,eraimpossível!Sem perceber, Ed fechou os olhos, como se esperasse que tudo aquilo pudesse desaparecer se ele

piscasseosolhosumnúmerosuficientedevezes.Masquandoolhoudenovoparaomonitorafrasequeelehaviacomeçadoaescrevertinhasidoconcluída.Otrecho“…eugostariaderessaltarque…”vinhaseguidodasseguintespalavras:…vocêsdevemparardecometerumasériedeatividadesilegais,oquenaverdadeémuitosimples.Quemespionaapopulaçãoacabasendoespionadopelapopulação.Essaéumalógicafundamentaldademocracia.“Merda,merda”,elemurmurou,noquepareciaserumsinaldequeestavaserecompondo.

Page 41: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Masotextocontinuou:Nãofiquenervoso,Ed.Presteatençãonoquevaiacontecer.Eutenhoacessoroot,ecomissoEdsoltouumgrito.Apalavra“root”feztodooseuservirabaixo,enospoucosminutosemqueocomputadornavegouàvelocidadedaluzpelosrecônditosmaissecretosdosistemaeleachouquefosseterumataquecardíaco,efoisomenteatravésdeumasensaçãomuitonebulosaqueelesedeucontadequepessoasiamsejuntandoemtornodele.HannaBalder precisava ir fazer compras. Faltavam cerveja e comida na geladeira.Além domais,

Lassepodiachegaraqualquermomentoenãogostarianemumpoucodedescobrirquenãohaviasequerumapilsenemcasa.Mascomootempoestavahorrível,Hannaadiouasaídaeficoufumandonacozinha,mesmoqueaquilofosseruimparaapeleeparatudoomais,emexendonoseucelular.Porduasoutrêsvezespercorreualistadecontatosnaesperançadeencontrarumnomenovo.Masnão

haviaum.Eramasmesmaspessoasdesempre,todasjácansadasdela.MesmoassimresolveutelefonarparaMia.MiaeraaagentedeHanna,eemoutrasépocastinhamsidoduasgrandesamigassonhandoemconquistaromundo juntas.No fim,Hannahavia se tornadoacimade tudoumpesona consciênciadeMia,que jáperderaacontadonúmerodepretextosedesculpasque tinhaouvidonosúltimos tempos.“Nãoéfácilenvelhecercomoatriz”,blá,blá,blá.NemHannaaguentavamaisaquilo.PorqueMianãofalavalogo:“Vocêparececansada,Hanna.Opúbliconãogostamaisdevocê”?ClaroqueMianãoqueriaatender.Aconversanãoteriafeitobemanenhumadasduas,eHannanão

pôdedeixardeolharparaoquartodeAugustafimdesentirapontadadesaudadequeafaziaperceberquetinhaperdidoachancededesempenharaúnicatarefaimportantequetinhanavida—adesermãe—, o que, contraditoriamente, renovou suas forças. Consolou-se de maneira perversa com a própriaautopiedadee,apesardetudo,estavaprestesasairparacomprarumacervejaquandootelefonetocou.EraFrans,eaoatenderotelefoneHannafezumacareta.Odiainteirohaviapensado—semcoragem

—emligarparaoex-maridoepedirqueeledevolvesseAugust.Emborasentissesaudadedofilho,nãoachavaqueomeninoiaterumavidamelhoraoladodela.Eraapenasparaevitarumacatástrofe.Nadamais.LassequeriaomeninodevoltaparacontinuarrecebendoapensãodeFrans,esóDeussabiaoque

poderia acontecer se Lasse aparecesse em Saltsjöbaden para exigir seus direitos. Talvez arrancasseAugustdacasaeodeixasseapavorado,edepoisencheriaFransdeporrada.Fransprecisavasaberdoriscoquecorria.Masquandotentouabordaroassunto,Hannanãotevetempodefalar.Fransdespejousobreelaumahistóriaesquisitaqueclassificoucomo“totalmenteincrívelesemprecedentes”.—Desculpe,Frans,masnãoestouentendendo.Doquevocêestáfalando?—elaperguntou.—OAugustéumsavant!Umgênio!—Vocêenlouqueceu?—Pelocontrário!Eufinalmentevia luz.Vocêprecisavirparacáagora!Achoqueéoúnicojeito.

Nãohácomoexplicardeoutraforma.Eupagoumtáxiparavocê.Juroquevocêvaificardebocaaberta.Eledeve termemória fotográficae, sabe lácomo,aprendeuossegredosda técnica tridimensionalporcontaprópria.Élindo,Hanna,perfeitodemais.Temumaauracomosefossedeoutromundo.—Oquetemessaaura?

Page 42: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—OsemáforoqueoAugustfez.Vocênãoouviu?Hojeànoitepassamosporesselugareagoraelefezumareproduçãoperfeitadetudo.Maisatédoqueperfeita…—Maisatédoqueperfeita?…—Oquemaispossodizer?Nãoéumasimplescópia,Hanna.Alémdecapturarosdetalhesdemaneira

exata, o August também acrescentou uma… uma dimensão artística. O desenho resplandece e,paradoxalmente,tambéméumarepresentaçãomatemática,comrequintesdeaxonometria.—Axooquê?—Ah,nãoimporta,Hanna!Vocêprecisaviraquiparavercomosprópriosolhos—prosseguiuFrans,

eaospoucoselacomeçouaentender.De repente, donada,August tinha começadoadesenhar comvirtuosismo,oupelomenos eraoque

Fransachava,oqueseriaincrívelsefossemesmoverdade.OmaistristefoiqueHannanãoficoufeliz,ea princípio nem ela mesma entendeu por quê. Mas em seguida teve um palpite. Era porque aquelatransformaçãohaviaocorridoenquantoAugustestavacomFrans.August tinhavividocomelaeLasseporanosafiosemqueabsolutamentenadaacontecesse.Augustpassavao tempointeirodistraídocomquebra-cabeças e blocos demontar sem dizer uma única palavra, tendo surtos periódicos durante osquaissoltavagritosestridenteseirritantes,atirando-sedeumladoparaoutro,eagora,depoisdeumaspoucassemanasnacasadopai,jáestavasendochamadodegênio.EramaisdoqueHannapodiasuportar.Nãoquenãoestivessefelizpelomenino.Masaquilotambém

eradoloroso,eopiordetudo:elanãoestavatãosurpresaquantodeviaestar.Nãoficoubalançandoacabeçaemurmurando“Nãoépossível,nãoépossível”.Pelocontrário, tinhaa impressãode jáhaverpressentidoaquilo—nãoqueofilhofossecapazdedesenharsemáforoscomperfeição,masquehaviaalgumacoisaportrásdoquesevianasuperfície.Hanna tinha pressentido tudo nos olhos de August, naquele olhar que às vezes, em momentos de

exaltação,parecia registrarosmínimosdetalhesdoambienteao redordele.Tinhapressentido tudonaformacomoomeninoescutavaosprofessoresdaescola,namaneiranervosacomofolheavaoslivrosdematemáticaqueelacompravae,principalmente,nosnúmerosdeAugust.Nadaeratãosingularquantoosnúmeros de August. Omenino era capaz de passar horas e horas escrevendo séries intermináveis denúmeros incompreensivelmente grandes. Hanna havia tentado entendê-los, mas nunca conseguiu nemimaginar do que se tratava. Pormais que tivesse se esforçado, não havia chegado a lugar nenhum, enaqueleinstantepercebeuquetinhadeixadopassarumdetalheimportantesobreaquelesnúmeros.Estavatristedemaisepreocupadademaisconsigomesmaparaentenderoque iapelospensamentosdo filho.Nãoeraessaaverdade,afinal?—Nãosei—disseHanna.—Nãosabeoquê?—Fransperguntou,irritado.—Nãoseiseposso iratéaí—elaprosseguiu,ouvindonomesmoinstanteumbarulhonaportada

frente.LassechegoucomseugrandeamigoRogerWinter,oquealevouadaralgunspassosassustadospara

trás,balbuciarumpedidodedesculpasparaFranse,pelamilésimavez,acharqueeraumapéssimamãe.

Page 43: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Aindacomotelefonenamão,Franssepôsapraguejarnoquartodepisoxadrez.Tinhaescolhidoessepadrãoporqueaquelaorganizaçãomatemática lheagradava,e tambémporqueoxadrezseestendiaemdireção ao infinito nos espelhos dos guarda-roupas nos dois lados da cama. Em certos momentos,observavaamultiplicaçãodosquadradosqueavançavamparadentrodosespelhoscomoseaquilofosseumenigmapulsante,comoseumaforçaquasevivaemanassedaquelarepetiçãoedaquelaregularidade,damesmaformaqueospensamentoseossonhossurgemdosneurôniosnocérebroouosprogramasdecomputador surgemdoscódigosbinários.Masnaquele exatomomentoestavaentregueaoutro tipodepensamento.—Filho,oquefoiquehouvecomasuamãe?—Fransperguntou.August, que estava sentado no chão, próximo ao pai, comendo um sanduíche de queijo compicles,

encarou-ocomumolharconcentrado,enesseinstanteFransteveoestranhopressentimentodequeofilhoia lhe dar uma resposta sábia e adulta. Mas esse tipo de expectativa, naturalmente, era equivocado.Augustcontinuavafalandotãopoucoquantoantesenadasabiasobremulheresabandonadaspelomarido,eopróprioFranssóhaviapercebidoissograçasaosdesenhos.Osdesenhos,queatéentãoeramtrês,àsvezeslhepareciamprovanãoapenasdeumtalentoartísticoe

matemático,mas também de uma espécie de sabedoria. As obras pareciam tãomaduras e complexasnaquela perfeição geométrica, que Frans não conseguia associá-las com a imagem de um Augustdeficientemental.Ou,melhordizendo,nãodesejavaassociá-las,poisdesdemuitotempovinhatentandodescobriroqueseescondiaportrásdacondiçãodeseufilho,enãoapenasporquetivesseassistidoaRainMan,comotodomundo.Como pai de uma criança autista, desde cedo Frans havia deparado com o conceito de savant,

utilizadoparadescreverpessoascomgravesproblemascognitivosequemesmoassimapresentamumdesempenho brilhante em áreas específicas. Talentos em geral relacionados com uma impressionantecapacidade de memorização e com uma percepção apurada de detalhes. Frans havia percebido quemuitos pais ansiavampor esse diagnóstico como umprêmio de consolação.Mesmo assim as chanceserampequenas.Segundoestimativas,apenasdezporcentodosautistastêmcapacidadesdesavante,mesmoassim,a

maioriadelesnãodemonstraum talento tão impressionantequantooRainMando filme.Existem,porexemplo,autistascapazesdedizeremquediadasemanacaiudeterminadadata,mesmodeséculosatrás.Ou,emcasosextremos,datasdequarentamilanosatrás.Outros detinham conhecimentos enciclopédicos em áreas extremamente restritas, como tabelas de

horários de ônibus ou listas telefônicas.Certos autistas eram capazes de fazer cálculos complexos decabeça,oudeselembraremcomprecisãoquetempoestavafazendoemdeterminadodiadesuavida,ouaindasaberemsempreahoraexata,inclusiveossegundos,semconsultarumrelógio.Existiaumasériedetalentosmaisoumenosnotáveis,eFranssabiaqueindivíduoscomessascapacidadeseramchamadosdesavants—pessoasque,apesardeteremumadeficiênciamentalqueasafetavaempraticamentetodososaspectosdesuavida,demonstravamhabilidadesextraordinárias.Tambémexistiaumoutrogrupoaindamaisraro,eFransacreditavaqueAugusteraumadessaspessoas

conhecidas como savants prodígios, indivíduos com talentos absolutamente sensacionais. Havia, porexemplo,KimPeek,quepoucotempoantestinhamorridodeinfarto.Kimnãoconseguiasevestirsozinho

Page 44: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

eeraportadordeumadeficiênciamentalsevera.Mesmoassim, tinhamemorizadoo textodedozemillivroseconseguiaresponderdeimediatoaquasequalquerperguntasobredadosouestatísticas.Eraumbancodedadosvivo.Ganhouoapelidode“Kimputer”.HaviatambémmúsicoscomoLeslieLemke,umhomemcegoecomretardomentalquecertavez,com

dezesseisanos,selevantounomeiodanoitee,semnenhumtipodetreinoouestudo,sentou-seetocouoconcertoparapianono1deTchaikóvksisemcometernenhumerrodepoisdetê-loouvidoumaúnicaveznatelevisão.E,acimadetudo,garotoscomoStephenWiltshire,ummeninoinglêsintrovertidoaoextremoequepronunciousuaprimeirapalavracomseisanosdeidade:“papel”.Com oito, dez anos, Stephen conseguia desenhar prédios imensos perfeitamente e com detalhes

complexosdepoisde tê-losvisto apenasde relanceumaúnicavez.Umdia,passeandodehelicópterosobre Londres, ficou olhando para as casas e as ruas lá embaixo. De volta ao solo, desenhou umpanoramavibrantedacidadeinteira.Maselenãoeraumsimplescopiador.AsobrasdeStephentinhamumgrauelevadodeindependência,eogarotopassouaservistocomoumartistacompleto.Eramquasesempregarotos.Apenasumemcadaseissavantseramenina,oqueprovavelmentetinharelaçãocomumadasgrandes

causasdoautismo: excessode testosteronaemcirculaçãonoúteromaterno, especialmentenocasodefetos masculinos. A testosterona pode danificar o tecido cerebral do feto, e quase sempre ataca ohemisfério esquerdo, que se desenvolve mais devagar e é mais frágil. A síndrome de savant é umatentativadohemisfériodireitodecompensaroestragosofridopelohemisférioesquerdo.Comooshemisférios sãodiferentes, eo esquerdoéo responsávelpelopensamentoabstratoepela

capacidade de perceber grandes contextos, o resultado torna-se aindamais especial. Surge uma novaperspectiva,umafixaçãopordetalhes,e,seFranshaviaentendidobem,eleeAugusttinhamobservadoaquelesemáforodemaneiratotalmentediferente.Enquantoomeninoerabemmaisfocado,océrebrodeFrans descartava os detalhes insignificantes à velocidade da luz, concentrando-se nas coisas maisimportantes—asegurançaaoatravessararuaeaprópriamensagememitidapelosemáforo:“Pare”ou“Siga”.Erabemprovávelqueoolhardeletivessesofridováriasoutrasinfluênciasexternas,acimadetudoadeFarahSharif.Paraele,afaixadepedestresmisturava-secomtodoumfluxodelembrançaseexpectativassobreela,enquantoAugustdeviatervistoapenasosemáforoemsi.Omeninoohaviaregistradonopapelnosmínimosdetalhes,juntocomohomemvagamenteconhecido

que atravessava a rua naquele instante.Tinha carregado essa imagem consigo, como se ela tivesse segravadoemseuspensamentos,esomenteapósduassemanassentiunecessidadedeexterná-la,ecomumdetalhenotável:haviafeitomaisdoquesimplesmentereproduzirosemáforoeohomem.Tinhaconferidoaambosumaauraperturbadora,eFransnãoconseguiaafastara ideiadequeAugustqueriadizeralgomaisdoquesimplesmente“Vejaoqueeufiz”.Pelamilésimavez,examinouosdesenhos,eentãosentiuumaagulhadanocérebro.Frans sentiamedo.Não conseguia entender bem o que estava acontecendo.Mas tinha a ver com o

homemdodesenho.Seusolhoseramduros,brilhantes.Asmaçãsdorostopareciamtensaseos lábioseram estranhamente finos, quase inexistentes, mesmo que esse detalhe não depreciasse o trabalho deAugust. Cada vez que Frans o examinava, o homem pareciamais assustador e de repente Balder foiinvadidoporumverdadeiroterror,comosetivesseacabadodeterumapremonição.

Page 45: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Filho,euteamo—elebalbuciousemdarporsi,edeveterrepetidoafrasepormaisduasoutrêsvezes,porqueaspalavrascomeçaramaparecercadavezmaisestranhasemsuaboca.Comumadorrenovada,Franssedeucontadequenuncaastinhapronunciado,equandoserecompôs

doprimeirochoqueocorreu-lhequehaviaumelementoaindamaislamentávelnaquilo.Serianecessárioumdomexcepcionalparaque fossecapazdeamaropróprio filho?Então seriaumasituaçãobastantetípica.Elehaviaconstruídoasuavidabaseadoapenasemresultados.Franspoucoseimportavacomtudoquenãofosseinovadorouexcepcional,emalhaviapensadoem

AugustquandodeixouaSuéciaparairtrabalharnoValedoSilício.Grossomodo,ofilhosemprefoiparaeleapenasumincômodomomentâneoparaascoisasrevolucionáriasqueestavaprestesadescobrir.Naqueleinstante,porém,Fransprometeuasimesmoquehaveriamudanças.Abandonariaaspesquisas

etudoqueohaviaincomodadoeperturbadonaquelesúltimosmesesparadedicar-seaomenino.Afinal,estavadecididoasetornarumnovohomem.

Page 46: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

5.20DENOVEMBRO

NinguémentendiacomoGabriellaGranetinhaidopararnaSäpo,nemelamesma.Quandogarota,umfuturo promissor aguardava por ela. O fato de já ter trinta e três anos, não ser rica nem famosa etampoucotersecasado,mesmoquesópordinheiro,preocupavasuasvelhasamigasdeDjursholm.—Oqueacontececomvocê,Gabriella?Poracasopretendetrabalharnapolíciaorestodavida?Namaioriadasvezesemqueouviaisso,elanãosedavaaotrabalhodediscutirnemdeexplicarque

nãotrabalhavacomopolicial,esimcomoanalista,equeescreviatextosdequalidademuitosuperioràdosqueescreveranoMinistériodasRelaçõesExterioresounosverõesemquehaviatrabalhadocomoredatora-chefedoSvenskaDagbladet.Alémdomais,nãogostavamuitodeconversar,fossequalfosseoassunto.Erabomficaremsilêncioeignorartodasaquelasobsessõescretinassobrestatus;trabalharnaSäpoeravistocomofracasso—tantoporseusconhecidosdeboacondiçãosocialcomoporseusamigosintelectuais.Aos olhos dessas pessoas, na Säpo só havia conservadores imbecis que caçavam curdos e árabes

motivadospor racismo, gente quenão se furtaria a cometer crimesgraves e atentar contra os direitoshumanosparaoferecercoberturaaantigosespiõessoviéticos.Porconsequência,claroqueelatambémdeviaseencaixarnesseperfil,pensavam.ASäpoeraumlugardeincompetênciaedejuízosduvidosos,eocasoZalachenkoaindaeraumamanchanareputaçãodoórgão.Masnãoerabemassim.Tambémhaviaumtrabalhoimportanteeatraenteaserfeito,especialmentedepoisdoprocessointernodelimpezaqueocorrera.ÀsvezesGabriellaachavaqueaSäpoeraolugarondeospensamentosinteressantesganhavamvoz,equeeralá,enãonoseditoriaisounassalasdeauladasuniversidades,quesepodiaentenderdemaneiraabrangenteasprofundasmudançasqueocorriamnomundo.Masclaroquedevezemquandoelatambémseperguntava:comoeuvimpararaquieporquecontinuoaqui?Aexplicaçãoprovavelmenteestavarelacionadaaumcertoelogioquerecebeu.Ninguémmenosque

HelenaKraft,aentãorecém-nomeadachefedaSäpo,tinhaentradoemcontatocomelaeditoque,depoisdetodasascatástrofesedetodososartigospublicadosnaimprensacomoobjetivoderidicularizaroórgão,estavanahoraderecrutarpessoaldeoutraforma.Precisamosadotarumamentalidadeumpoucomais britânica, Helena tinha dito, e “ter conosco os verdadeiros talentos das universidades; e,sinceramente, Gabriella, não consigo pensar em ninguémmelhor do que você”. Foi o suficiente paraGabriella.Ela começou a trabalhar como analista de contraespionagem, atémais tarde ser transferida para a

divisãodeproteçãoàindústria.Mesmoquenãotivesseumperfiltãoadequadoàfunção,porserjoveme,

Page 47: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

acimadetudo,atraentedeumaformaumtantoexuberante,eraapessoacertanosdemaisaspectos.Erachamadade “filhinhade papai” e “burguesinha”, o quegerava alguma tensãodesnecessária.Contudo,nunca deixou de ser uma funcionária primorosa, eficaz e receptiva, que sempre apresentava ideiasoriginaiseinusitadas.Alémdomais,falavarusso.Tinha aprendido o idioma enquanto cursava economia na Handelshögskolan, em Estocolmo, onde

haviasidoalunaexemplar,aindaquenofundosoubessequejamaisiriasedarporsatisfeitaapenasnomundodosnegócios.Gabrielladesejavamais,porissoaoconcluirseusexamesconcorreuaumavaganoMinistério das Relações Exteriores, e foi admitida. Mas também não se sentiu estimulada naqueleambiente.Osdiplomataserampessoassisudasebastanteformais,efoinessaépocaqueHelenaKraftaprocurou. Agora fazia cinco anos que Gabriella estava na Säpo; aos poucos seu talento foi sendoreconhecido,aindaqueascoisasnemsempretivessemsidofáceisparaela.Etambémhojenãoestavasendonadafácil,enãosóporcausadotempohorrível.RagnarOlofsson,

chefedoescritório,tinhaaparecidoemsuasalacomcaradepoucosamigos,dizendoqueelanãodevianamorarnotrabalho.—Namorar?—Gabriellaperguntou.—Alguémmandoufloresparavocê.—Eporacasoéculpaminha?—Vocêtemalgumaresponsabilidade,sim.Precisamosnoscomportardemaneirasóbrianotrabalho.

Afinalrepresentamosumainstituiçãodegrandeautoridade.—Quecurioso,Ragnar!Agentesempreaprendecoisasnovascomvocê.Finalmenteeuentendiqueé

minhaculpaochefedepesquisasdaEricssonnãosaberadiferençaentreumaamigaeumanamorada.Eagoraestouvendoquetambéméminhaculpaquealgunshomensinterpretemumsimplessorrisocomoumconviteparasexo.—Nãodigabobagem—retrucouRagnarantesdesair.EnesseinstanteGabriellasearrependeu.Essasrespostasagressivasraramenteajudam,mas,poroutrolado,elajátinhaaguentadoquietatempo

demais.Jáestavanahoradereagir,eentãoGabriellaarrumousuamesaàspressasepegouumrelatóriodo

Government Communications Headquarters britânico (GCHQ) sobre a espionagem industrial feita pelaRússiaqueaindanãotinhaconseguidoler.Nesseinstanteotelefonetocou.EraHelenaKraft,eGabriellasealegrou.Helenanuncaaprocuravapararesmungaroureclamar;pelocontrário.—Vou ser direta— anunciouHelena.—Recebi uma ligação dos EstadosUnidos que talvez seja

urgente.Vocêpodeatendê-lanoseutelefonedaCisco?Pedimosumalinhasegura.—Claro.—Ótimo.Queroquevocêanaliseasinformaçõesemeavisesenotaralgoestranho.Parecesério,mas

tiveumaimpressãomeioesquisitadapessoa…Aliás,eladissequeconhecevocê.—Podetransferiraligação.EraAlonaCasales,daNSAdeMaryland,emboraporuminstanteGabriellatenhaseperguntadoseera

mesmo ela. Quando as duas se encontraram pela última vez em Washington, D.C., Alona tinha semostradoumapalestrantecarismáticaeexperientenaquiloque,comumleveeufemismo,elachamavade“interceptação ativa de dados”— ou seja, hacking de computadores—, e depois da palestra ela e

Page 48: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Gabriellahaviampassadoum tempo juntas tomandoalgunsdrinques.Alona fumavacigarrilhase tinhauma voz grave e sensual quemuitas vezes se expressava através de frases curtas e impactantes, comfrequentes alusões a sexo.Mas no telefone ela parecia um tanto confusa e por vezes perdeu o fio daconversa.Alonanãocostumavaficarnervosaporqualquerrazãonemterproblemasparamanteraconcentração.

Tinhaquarentaeoitoanos,eraumamulheraltaebemarticulada,comseiosfartoseolhosinteligentes,capazesdefazerqualquerumsesentir inseguro.Muitasvezesdavaa impressãode lerpensamentos,enão tinha nenhum tipo de deferência especial com pessoas que ocupassem cargos elevados. Xingavaquem bem entendesse— atémesmo oministro da Justiça em visita à agência— e esse era um dosmotivos de Ed “theNed” se dar bem com ela.Nenhum dos dois se importavamuito com hierarquia.Levavamemcontaapenaso talentodaspessoas,por issoachefedaPolíciadeSegurançadeumpaíspequenocomoaSuéciaeraumpeixemaisquecomumparaAlona,deacordocomseuspadrões.Noentanto,quandoelaeHelenaKraftestavamfazendooscontrolesdeinformaçãoportelefone,Alona

viu-se completamente atordoada. Nada a ver com Helena Kraft. É que o clima no escritório tinhaacabado de explodir. Todos já estavam acostumados com os surtos de fúria de Ed.Muitas vezes elefalavaalto,berravae esmurravaasmesaspormotivosbanais.Masa intuiçãodeAlona lhediziaquedessavezeradiferente.Edpareciaparalisado, e, enquantoAlona tentava juntar as palavras e formaruma frase ao telefone

comHelena, havia pessoas reunidas em volta dele,muitas com um telefone namão, todas parecendoperturbadasouassustadas.Masporserumaidiota,outalvezporaindaestarchocada,Alonaficousemação,nãodesligounemdissequevoltariaatelefonarmaistarde.DeixouquealigaçãofossetransferidaeacaboutopandojustamentecomGabriellaGrane,aencantadoraejovemanalistaqueelahaviaconhecidoem Washington e na mesma hora tentado seduzir. Mesmo que não tenha dado certo, Alona tinha sedespedidocomumasensaçãodeprofundobem-estar.—Olá,amiga—disse.—Comovãoascoisas?—Bem—respondeuGabriella.—Estáfazendoumtempohorrívelaqui,masforaissotudocerto.—Foibemdivertidonaqueledia,nãofoi?—Comcerteza.Passeiodiaseguinteinteiroderessaca.Masachoquehojevocênãomeligoupara

fazerumconvite.—Infelizmentenão.Estouligandoporquedescobrimosumaameaçasériaaumpesquisadorsueco.—Quem?—Tivemosdificuldadesparainterpretarainformaçãooumesmoparaentenderdequepaíssetratava.

Temos apenas códigos um tanto vagos. Boa parte das informações estava criptografada e nãoconseguimosdescriptografá-la,mesmoassim,comoaconteceumuitasoutrasvezes,comaajudademaispeçasdoquebra-cabeça…putz…—Oquefoi?—Espereumpouco!OmonitordeAlonapiscoueemseguidaseapagou,eatéondeelapôdeveramesmacoisaestava

Page 49: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

acontecendocomtodososcomputadoresdoescritório.Poruminstante,perguntou-seoquedeviafazer.Resolveu continuar a conversa, pelomenos pormais algum tempo; talvez fosse apenas uma falha nofornecimentoelétrico,aindaqueasluzesestivessemfuncionandonormalmente.—Estouaquiteaguardando—avisouGabriella.—Obrigada.Medesculpe,Gabriella.Estátudocaóticoporaqui.Ondeeuestavamesmo?—Vocêestavafalandosobreaspeçasdoquebra-cabeça.—Ah,claro,claro.Fomosjuntandoumacoisaeoutra,afinaltemsemprealguémquedeixaescaparum

detalhe,pormaisprofissionalquetenteserou…—Ou?—…alguémabreobico,mencionaumendereço,porexemplo,ounessecasoconcreto…Alonaficouemsilênciodenovo.NinguémmenosqueocomandanteJonnyIngram,umdosheróisda

organização,comcontatosaténaCasaBranca,entrounoescritório.Comosempre,JonnyIngramtentoupareceraomesmotempoaristocráticoedescolado.Chegouaacenarparaalgumaspessoasqueestavamumpoucomaisafastadas,masnãoconseguiuenganarninguém.Apesarde sua superfíciebempolidaebronzeada—desdequesetornarachefedocentrodecriptografiadaNSA,emOahu,viviabronzeadooano todo—,percebia-seumelementonervosonoolhardo comandante, e naquele instante eledava aimpressãodequereratrairaatençãodetodos.—Alô,vocêaindaestáaí?—perguntouGabriella.— Infelizmente preciso desligar. Telefono de novo assim que puder— disse Alona, desligando e

ficandonervosadeverdade.Sentia-se no ar que algo terrível tinha acontecido— talvez um novo ataque terrorista de grandes

dimensões.MasJonnyIngramcontinuoucomsuaencenaçãotranquilizadora,emesmoquetodosovissemtorcendoasmãosecomsuornatestaenolábiosuperior,prosseguiudizendoquenadadegravehaviaacontecido.Segundoafirmou, apenasumvírus tinha infectado a intranet, apesarde todas asproteçõesimplementadas.—Pormedidadesegurança,desligamos todososnossosservidores—informou,eporuminstante

realmenteconseguiutranquilizaroambiente.“Caramba”,aspessoaspareciamdizer.“Umvírus…entãonãoémesmotãograve.”MasemseguidaJonnyIngramcomeçouasetornarprolixoeafalardemaneiravaga,eentãoAlona

nãoconteveumgrito:—Faledeumavezoquevocêtemparadizer!—Aindanãodispomosdemuitosdetalhes…acaboudeacontecer.Mastudoindicaquetenhahavido

uma invasão. Vamos atualizar vocês assim que tivermos mais notícias — respondeu Jonny Ingram,claramenteperturbado.Entãoumburburinhotomoucontadoambiente.—Sãoosiranianosdenovo?—perguntoualguém.—Achamosque…Mas Ingramnão terminoua frase.Apessoaquedevia ter estado coma equipedesdeo iníciopara

explicar oque tinha acontecidoo interrompeude formabrusca e se levantou comoumurso.Ninguémpodia negar que era uma visão impressionante. EdNeedham, quemomentos antes parecia chocado earrasado,irradiavaumaauradeconfiançainabalável.

Page 50: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Não—ele respondeupor entreosdentes.—Éumhacker,ummalditodeumsuper-hackerdosinfernosqueeuvoudarumjeitodecapar.

***Gabriella Grane tinha acabado de vestir o casaco e se preparava para ir embora, quando Alona

Casales telefonou outra vez. A princípio Gabriella se irritou, e não apenas por causa do últimotelefonemaconfuso.Queriairparacasaantesqueatempestadepiorasse.Segundoosboletinsdenotícias,asrajadasdeventoatingiriamcentoedezquilômetrosporhoraeatemperaturacairiaamenosdezgraus,eelanãoestavacomumaroupaadequadaparaenfrentarumtempodesses.—Desculpe a demora— disseAlona Casales.—Tivemos umamanhã enlouquecedora. Isto aqui

virouumcaos.—Aquitambém—respondeuGabriellaeducadamente,olhandoparaorelógio.—Bem,comoeudisse, tenhoumassunto importantepara tratarcomvocê,oupelomenosachoque

tenho.Difíciltercerteza.Euchegueiatedizerqueestourastreandoumgrupoderussos?—Não.—Provavelmentetambémexistemalemãeseamericanosenvolvidosnisso,etalvezumeoutrosueco.—Equetipodegrupoéesse?—Criminososbemsofisticados,quenãoassaltambancosnemseenvolvemcomotráficodedrogas.

Elesroubamsegredosindustriaiseinformaçõesconfidenciaisdeempresas.—Hackers?— Eles não são simples hackers. Também chantageiam pessoas e oferecem subornos. E talvez se

dediquem a algumas atividades da velha guarda, como assassinatos. Para ser bem sincera, ainda nãoconsegui juntar informações suficientes.Tudoque tenho sãomensagens emcódigo, ligações aindanãoconfirmadaseosnomesdealgunsjovensengenheirosdecomputaçãoemcargosdepoucaimportância.Masogrupopraticaespionagemindustrialeépor issoqueocasoestácomigo.Acreditamosqueumatecnologianorte-americanadepontapodetercaídonasmãosdosrussos.—Sei.—Masnãoestásendofácilchegaraeles.Estátudomuitobemcriptografadoe,apesardetodoomeu

empenho,nãodescobriquasenadasobreochefedaorganização,anãoserqueochamamdeThanos.—Thanos?—Isso.ÉumaderivaçãodeThanatos,odeusdamortenamitologiagrega,queéfilhodeNyx,anoite,

eirmãogêmeodeHypnos,osono.—Quecoisamaisdramática.—Naverdadeparecemaiséinfantil.ThanostambéméumvilãodaMarvel,sabia?Amesmaeditora

que publica revistas de heróis como Hulk, Homem de Ferro e Capitão América. Não é algoparticularmentetípicodosrussos,masparece…comopossodizer…—Lúdicoepretensiosoaomesmotempo?—Isso.Comosefosseumaganguedeadolescentesmetidosadurões,oquemeirrita.Naverdadeessa

históriaestácheiadedetalhesquemeincomodam,porissofiqueitãointeressadaquandoonossosistema

Page 51: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

deinterceptaçãodedadosrevelouqueessaredepodeterumdesertorcapazdenosdarumpoucomaisdeinsights, desde, claro, que a gente o encontre antes queos outrosmembros da organizaçãodescubramondeeleestá.Masagora,quandoanalisamostodaessahistóriamaisdeperto,percebemosquenãoeranadadoquetínhamosimaginado.—Comoassim?—Quemabandonouobarconãofoiumcriminoso,ouseja,umdeles,masalguémhonestoqueestava

trabalhando em uma empresa onde essa organização tem agentes infiltrados e que por acaso deve terdescobertoalgumacoisamuitoimportante.—Continue.—Acreditamos que essa pessoa está correndo um grande risco e precisa de proteção. Até pouco

temponãofazíamosamenorideiadeondeprocurá-la.Nemsabíamosparaqueempresaelatrabalhava,masagoratemosquasecertezadequealocalizamos—prosseguiuAlona.—Umdiadessesoutrapessoadaorganizaçãosereferiuaessesujeitodizendoque“comeletodososmalditosTsforamparaoinferno”.—TodososmalditosTs?—É.Noiníciotambémacheiestranho,enigmático,masdepoisacabousendobemfácilpesquisaressa

expressão. “Malditos Ts” não trouxe nenhum resultado, mas os Ts no contexto empresarial, eparticularmente no de tecnologias de ponta, sempre me levavam ao mesmo resultado: a máxima deNicolasGrant,“Tolerância,talentoetrabalhoemequipe”.—EntãotemavercomaSolifon—disseGabriella.—Éoqueparece.Aspeçascomeçarama seencaixar,portanto fomospesquisarquemhavia saído

recentementedaSolifon.Aprincípionãoconseguimoschegaralugarnenhum,porqueaempresatrabalhacomumagranderotatividadedefuncionários.Achoqueatéfazpartedamentalidadedeles.Ostalentos,lá,entramesaema todahora.EntãocomeçamosapensarsobreosTs.SabecomoGrantentendeessamáxima?—Não.—Comoumareceitaparaacriatividade.Atolerânciapregaorespeitoaideiasepessoasdiferentes.

Quantomaioraboavontadecompessoasquenãoseenquadramnospadrõesdasociedade,minoriasdeformageral,maiorseráareceptividadeanovasformasdepensar.FuncionameiocomoogayindexdoRichard Florida, sabe? Se há tolerância a pessoas como eu, também existe mais abertura e maiscriatividade.—Organizaçõeshomogêneasdemaisepreconceituosasnãochegammuitolonge.—Exato.Quantoatalentos…bem,segundoGrant,ostalentosnãogarantemapenasbonsresultados;

eles também atraem outras pessoas competentes para atuar com eles. Criam um ambiente onde todosqueremestar,enoinícioaSolifonestavamaispreocupadaematrairpessoasgeniaisdoqueespecialistasem determinados assuntos. A empresa achava que o certo a fazer era deixar que o talento coletivodecidisseosrumosdela,enãoocontrário.—Etrabalhoemequipe?—Aideiaéqueessestalentosdevemtrabalharcomoumaequipeindependente,semqueprecisemde

nenhuma burocracia para se encontrar, sem que dependam de agendas de reuniões e contatos comsecretárias.Bastapuxarumacadeiraeconversar.Asideiasprecisamcircularlivrementee,comovocê

Page 52: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

devesaber,aSolifonacabouescrevendoumaverdadeirasagaemtermosdeavançostecnológicos.Crioutecnologiasrevolucionáriasemumaporçãodeáreas,inclusiveparaaNSA.Atéquesurgiuumnovogênio,umcompatriotaseu,ecomele…—“…todososmalditosTsforamparaoinferno.”—Exato.—EessesujeitoéoBalder.—Issomesmo.Paradizeraverdade,nãoacreditoqueoBalder tenhaalgumtipodeproblemacom

tolerânciaoucomtrabalhoemequipe.Masdesdeoinícioelepareceuespalharumvenenoaoredordesieserecusouaintegraraequipe.Conseguiudestruiroótimoambientequehaviaentreospesquisadoresemtemporecorde,principalmentedepoisquecomeçouaacusá-losdeplagiadorese ladrões.Comosenãobastasse,comproubrigacomodonodaSolifon,NicolasGrant.MasGrantsenegaarevelaroqueaconteceu.Alegaqueéassuntoparticular.EmseguidaBalderpediudemissão.—Eusei.—Boapartedeseuscolegasficoufelizcomasaídadele.Oclimasetornoumaisleveeaspessoas

voltaramaconfiarumasnasoutras,pelomenosumpouco.MasNicolasGrantnãoficoumuitosatisfeito,eosadvogadosdelemenosainda.BalderlevouemboratodasaspesquisasquehaviafeitonaSolifon,e,segundo a opinião geral, eram descobertas sensacionais, que poderiam revolucionar o computadorquânticoqueaSolifonvinhadesenvolvendo.—Legalmenteessaspesquisaspertencemàempresa,enãoaele.—Exato.Balder,quesemprerecriminouroubos,dessavezfezopapeldoladrão,elogoessahistória

deve chegar aos tribunais, como você deve imaginar, a não ser que Balder esteja em condições deintimidarosadvogadoscomalgumtrunfo.Paraeleserácomoumsegurodevida,eascoisaspodemficarcomoestão.Masessetrunfotambémpodecausar…—Amortedele.—Éoquemepreocupa—admitiuAlona.—Temosindícioscadavezmaissegurosdequealgograve

estáparaacontecer,esuachefedeuaentenderquevocêpoderianosajudar,encaixandomaisumapeçanessequebra-cabeça.Gabriellaolhouparaatempestadeláforaesentiuumavontadeenormedeirparacasaedeixartudo

aquiloparatrás.Noentanto,tirouocasacoesesentoudenovo,profundamenteincomodada.—Ajudarcomo?—Oquevocêachaqueelesabe?—Vocêestámedizendoquenãoconseguiramgrampearascomunicaçõesnemhackearocomputador

dele?—Querida,porenquantoprefironãoresponder.Masoquevocêacha?Gabriella se lembrou de Frans Balder parado junto à porta do escritório, não muito tempo antes,

balbuciandoqualquercoisasobre“umavidanova”—fosseláoqueissoquisessedizer.—VocêdevesaberqueBalderachavaquehaviamroubadoosresultadosdaspesquisasdeleaquina

Suécia— ela disse.—O Försvarets Radioanstalt fez uma análise bastante abrangente domaterial edecidiuqueumapartedefatopertenciaaele.FoinessecontextoqueBaldereeunosconhecemos,enãoposso dizer que fiqueimuito contente.OBalder falava pelos cotovelos e era cego para tudo que não

Page 53: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

fosse ele e suas pesquisas. Lembro de ter pensado que progresso nenhum nomundo justificaria umaobsessão como aquela. Se uma atitude dessas é necessária para alguém se tornar uma pessoamundialmentefamosa,queroqueafamasemantenhabemlongedemim.Mastalvezeutenhamedeixadoinfluenciarpeladecisãojudicialcontraele.—Sobreaguardadomenino?—É.Eletinhaacabadodeperderodireitodecuidardofilhoautistapornuncaterdadoamínimapara

eleenemaomenosterpercebidoqueomeninohaviamemorizadoquaseumaestanteinteiradelivros.QuandofiqueisabendoquetodosnaSolifonestavamcontraele,euentendinahora.Penseiqueeraoqueelemerecia.—Edepois?—DesdequeelevoltouparaaSuécia,começaramafalaremlheoferecerproteção,efoiporissoque

nosreencontramos.Issoaconteceuhápoucassemanaseparamimfoiumaexperiênciainacreditável.OBalderestavacompletamentemudado.Enãoapenasporestarbarbeado,tercortadoocabeloeperdidopeso.Eletambémestavamaiscalmo,eàsvezespareciaatéinseguro.Jánãohavianadadaquelaantigaobsessãonele,elembroquepergunteiseestavapreocupadocomosprocessosqueoaguardavam.Sabeoqueelerespondeu?—Não.— Ele disse, da maneira mais sarcástica que você pode imaginar, que não estava nem um pouco

preocupadoporquetodossãoiguaisperantealei.—Eoqueelepretendeudizercomessaresposta?—Quesósomos iguaissepagamosdemaneira igual.Edepoismedissequenomundoemqueele

viveasleisnãosãonadamaisqueumaespadausadaparaatravessarpessoascomoele.Equeporcausadisso,sim,estavapreocupado.Equetambémestavapreocupadoporquesabiadecoisasquelhepesavamnosombros,mesmoqueelastambémpudessemsalvá-lo.—Elenãofalouquecoisaseramessas?—Disse que não queria mostrar a última carta que tinha. Preferia esperar para ver até onde seu

adversárioestavadispostoair.Euoacheibemabalado,eumaoutravezeledeixouescaparquealgumaspessoasqueriamomaldele.—Comoassim?—Eleexplicouquenãosetratavadeameaçafísica,masquesimplesmenteeleachavaquealgumas

pessoasqueriamdestruirsuahonraesuaspesquisas.Apesardisso,nãomeconvencidequeeleachavamesmoqueaameaçaselimitavaaisso,esugeriquearranjasseumcãodeguarda.Naminhaopinião,umcachorroseriaótimacompanhiaparaumhomemquemoraemumacasaenormenossubúrbios.Maselenãoquissaber.“Nãopossoterumcachorroagora”,disse.—Porquenão?—Naverdadeeunãosei.MastiveaimpressãodequeBalderestavasofrendoalgumtipodepressão,

eelenãoprotestoumuitoquandotomeiprovidênciasparaqueacasadelefosseequipadacomumnovosistemadealarme.Ainstalaçãoacaboudeficarpronta.—Qualfoiaempresaresponsável?—AMiltonSecurity.Trabalhamoscomelahámuitotempo.

Page 54: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Ótimo,ótimo.Mesmoassimsugiroquevocêsomantenhamnumlugaraindamaisseguro.—Asituaçãoétãograve?—Jáqueoperigoexiste,émelhornãoarriscar,concorda?—Claro—disseGabriella.—Vocêpodemeenviaralgumtipodedocumentação?Assimeufalocom

aminhachefeagoramesmo.—Bem…nãoseioqueeupoderiamandarparavocêagora.Estamostendoum…umproblemabem

sériocomoscomputadores.—Vocêspodemsedaraessetipodeluxo?—Você temrazão, temtodaa razão.Eu te ligomais tarde,querida—disseAlona,sedespedindo.

Gabriellapermaneceu sentadaporalguns instantes,observandoa tempestadequebatia contra a janelacomcadavezmaisforça.Em seguida pegou o Blackphone e telefonou para Frans Balder. Diversas vezes. Não apenas para

alertá-lo de que ele deveria ir o mais breve possível para um lugar seguro, mas também porque derepentesentiuvontadedefalarcomeleedescobriroqueeletinhaqueridodizercom“Nessesúltimostemposeutenhosonhadocomumavidanova”.O que ninguém sabia, nem iria acreditar se soubesse, é que naquele instante Frans Balder estava

ocupadoincentivandoseufilhoaproduzirmaisumdesenhocomoaquelequeresplandeciacomumaauradeoutromundo.

Page 55: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

6.20DENOVEMBRO

Aspalavraspiscaramnomonitor:Missionaccomplished!Pragagritoucomumavozrouca,quaseenlouquecida,etalvezissotivessesidoumdescuido.Porém,

mesmoqueosvizinhosoescutassem,nãotinhamnemmesmocomoimaginardoquesetratava.AcasadePraga não parecia um local típico para ataques de segurança de nível internacional. Mais parecia orefúgiodealguémàmargemdasociedade.Praga morava na Högklintavägen, em Sundbyberg, região nem um pouco glamorosa e cheia de

pequenosprédiosdequatroandarescomtijolosdesbotados.Quantoaoapartamento,tambémnãohaviaelogiosafazer,nãoapenasporqueoaralifosseviciadoeolugarcheirassearanço,mastambémporqueemcimadamesadetrabalhohaviamuitolixo.RestosdesanduíchesdoMcDonald’s,latasdecoca-cola,folhasamassadas,farelosdebolo,canecascomrestodecaféepacotesvaziosdebala.Mesmoquepartedetudoissoestivessenolixo,faziasemanasqueelenãoeraesvaziado,emalsepodiadarumpassoalisempisaremfarelosdepãoouempedrinhas.Masninguémqueconhecesseomoradorsesurpreenderiacomisso.Praga também não costumava tomar banho nem trocar de roupa, a não ser em caso de muita

necessidade.Passavao tempotodoemfrenteaocomputadore,mesmoemperíodosmenosintensosdetrabalho,suaaparênciaeradeplorável:estavaacimadopesoeviviadesleixado,apesardatentativadeadotarumcavanhaqueestiloso.Masatéocavanhaquehaviase transformadonummatagalpor faltadecuidados. Praga tinha a altura de um gigante, uma postura desajeitada e quase sempre ofegava ao semovimentar.Emcompensação,sabiafazeralgumascoisasinteressantes.Em frente ao computador, Praga era um virtuose, um hacker que voava sem limites no espaço

cibernéticoequetalveztivesseumúnicocompetidoràaltura—nocaso,umacompetidora—,everseusdedos dançar sobre um teclado era uma alegria para os olhos.Na internet, exibia toda uma leveza eagilidadequelhefaltavamnomundoreal,ondeerapesadoedesastrado.Enquantoumvizinho—talvezosr.Jansson—batianotetoporcausadobarulho,Pragarespondeuamensagemquehaviarecebido:Porra,Wasp,vocêégenial!Deviamfazerumaestátuaemsuahomenagem.Depois se recostou na cadeira comum sorriso satisfeito e tentou recapitular os acontecimentos, ou

aproveitaraquelemomentodetriunfo,antesdepedirtodososdetalhesaWaspesecertificardequeelanãohaviaseesquecidodeapagartodasaspistasdeles.Ninguémpoderiadescobri-los—ninguém!Osdois já tinhamaprontadocomorganizaçõespoderosasnopassado.Masdessavezeradiferente.

Page 56: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Váriosmembrosdasociedadeexclusivaqueosdoisfrequentavam,aHackerRepublic,haviamseopostoà ideia, principalmente Wasp. Se fosse necessário, Wasp compraria briga com qualquer pessoa ouautoridadeimaginável,masnãobrigavaapenaspeloprazerdebrigar.Wasp não gostava de algumas bobagens que os hackers faziam. Não havia se envolvido com

supercomputadores para chamar a atenção. Tinha sempre um objetivo claro emmente e sempre faziaanálisedasconsequências.Comparavaosriscosalongoprazocomanecessidadedesatisfaçãoacurtoprazo,enessascircunstânciasninguémpoderiadizerqueerasensatohackearoscomputadoresdaNSA.Mesmoassim,elaacabouaceitandoaideia,emboraninguémtenhaentendidobemporquê.Talvezestivesseprecisandodealgumestímulo,andasseaborrecidaequisessecriarumpequenocaos

paranãomorrerdetédio.OuentãoestavaemconflitocomaNSA,comoafirmavamalgunsmembrosdogrupo,enessecasoa invasão teriasidoumavingançapessoal.Mashaviaquemnãoacreditassenessateoria e afirmasse que ela estava em busca de informações — isso desde que seu pai, AlexanderZalachenko,tinhasidoassassinadonohospitalSahlgrenskaemGotemburgo.Ofatoéqueninguémsabiaaocerto.Waspviviacercadadesegredos,etodosacabaramconcordando

que o motivo da invasão não tinha grande importância, ou pelo menos era disso que tentavam seconvencer.QuandoWaspsedispunhaaajudar,omelhoreraagradecereaceitarsemfazerperguntasnemse preocupar se no começo ela não demonstrasse entusiasmo nem emoção pelo projeto. No entanto,qualquerquetenhasidoasuarazão,elanãoresistiumaisàideia,oquejátinhasidobomdemais.ComoapoiodeWasp,aschanceserammaiores.Todosnogruposabiammelhordoqueninguémque

nosúltimosanosaNSAhaviacometidoabusosgrosseirosdeautoridade.Atualmente,aagênciaamericanadesegurançagrampeavapraticamentetudo,enãoapenasorganizaçõesterroristasegruposquepudessemoferecer riscosà segurançadopaís,oupessoas,comochefesdeEstado.Milhões,bilhões, trilhõesdeconversas,correspondênciaseatividadesdesenvolvidasnainterneteramvigiadasedepoisarquivadas.A cada dia a NSA penetrava mais fundo na vida dos indivíduos, transformando-se num enorme olhovigilantedomal.VerdadequeninguémdaHackerRepublicsecomportavademododiferentenessaárea.Todos, sem

exceção, jáhaviamexploradoterrenosdigitaisondenãotinhamautorizaçãoparaentrar.Faziapartedaregradojogo.Umhackeréalguémdispostoairalémdasfronteirasdobemedomal,alguémque,porforçadesuaatividade,desafiaregras,ampliaoshorizontesdopróprioconhecimentoenemsemprelevaemcontaasdiferençasentreopúblicoeoparticular.Mesmoassim,nãoerampessoasdesprovidasdemoral.Porexperiênciaprópria, sabiamoquantoo

podercorrompe,sobretudoumpodersemcapacidadedeautocrítica.Tampoucogostavamdaideiadequeospioresemaisinescrupulososatentadoscibernéticosnãoerammaisperpetradosporrebeldessolitáriose forasda lei, e simpororganizaçõescolossaisdeumEstadoque tinhacomoobjetivocontrolar seuscidadãos. Praga, Trinity, Bob the Dog, Flipper, Zod, Cat e toda a turma da Hacker Republic tinharesolvidodarotrocohackeandoaNSAecausandoalgumtipodeprejuízoparaaagênciadesegurançaamericana.Umatarefanemumpoucosimples.Decertaforma,eracomoroubarourodoForteKnox,e,comobons

malucos que eles eram, não se dariam por satisfeitos em simplesmente entrar no sistema. Queriamdominá-lo.Queriamobterostatusdesuperusuário,ouroot,comosedizemLinux,eparaconseguiressa

Page 57: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

façanhaprecisariamencontrarfalhasdesegurançaconhecidascomozerodays—primeironaplataformado servidor da NSA, depois na NSANet, a intranet da agência, ambiente onde ocorriam todas asinterceptaçõesfeitaspelaNSAaoredordomundo.Comosempre,ogrupocomeçoucomumpoucodeengenhariasocial.Precisaramencontraronomedos

administradoresdesistemaedosanalistasdeinfraestruturaquepossuíamascomplexassenhasdeacessoàintranet,enãoserianadamauseumcretinoqualquertivessebancadooirresponsávelcomasrotinasdesegurança.Assim,atravésdecanaispróprios,aHackerRepublicobtevequatro,cinco,seisnomes,entreosquaisosdeumsujeitochamadoRichardFuller.Richard Fuller trabalhava noNISIRT— Information Systems Incident Response Team, ouGrupo de

RespostaaIncidentesnoSistemadeInformação—,erasupervisordaintraneteestavasempreembuscadebrechaseinfiltrados.Umgarotodeouro.FormadoemdireitopelaUniversidadeHarvard,republicanoeex-quarterback,eraaverdadeiraencarnaçãodosonhopatrióticoamericano.MasBobtheDogsoube,atravésdeumaantigaamante,queeletambémerabipolarepossivelmenteviciadoemcocaína.Quandoseirritava,RichardFullercometiatodotipodebobagem,porexemplomexeremarquivose

documentossemcolocá-losnumasandbox.Alémdomais,tinhaumaspectobemcuidado,talvezatémeiolustroso, que lembrava mais um homem de finanças como Gordon Gekko do que um agente secreto.Alguém—possivelmenteBobtheDog—chegouasugerirqueWaspfosseaBaltimore,acidadenataldeFuller,transarcomele,paraqueentãopudessemchantageá-lo.Waspmandoutodomundoparaoinferno.Depois ela também descartou a ideia de escrever um documento que parecesse bombástico, com

detalhessobrebrechaseinfiltradosemFortMeade.Odocumentoiriainfectadocomumvírusespião,umtrojandeúltimageraçãocomaltograudeoriginalidadeaserdesenvolvidoporPragaeWasp.Aideiaeradeixar rastros que Fuller mais tarde seguisse. Se tudo desse certo, ele ficaria curioso a ponto denegligenciar a segurança. Não era um plano ruim e, acima de tudo, poderia levá-los ao sistema decomputadoresdaNSAsemqueprecisassemfazerumainvasãoforçada,maisfácilderastrear.MasWaspdissequenãoiaficarsentadaesperandooimbecildoFullerfazerumabesteira.Nãoqueria

dependerdoserrosdosoutros.E,comoeramuitoteimosaeobstinada,ninguémtambémsesurpreendeuquandoderepenteeladecidiuassumiraoperação inteirasozinha.Depoisdeprotestosediscussões,ogrupoacaboucedendo.Oplanosofreuumasériedealterações,Waspanotoucomcuidadoosnomeseasinformaçõespessoaisdosadministradoresdesistemaqueeleshaviamconseguidoatéentãoepediuajudacoma “operação fingerprint”: omapeamentodas plataformasde servidor e de sistemasoperacionais.Feitoisso,WaspfechouaportanacaradaHackerRepublicedomundointeiro.Pragaachouqueelanãotinhadadoouvidosaosconselhosdele,comoasugestãodequenãousasseumcodinomenemtrabalhasseemcasa,masseinstalasseemumhoteldistantesobumaidentidadefalsa,senãooscãesfarejadoresdaNSAiriamconseguirrastreá-lamesmopeloscaminhosmaislabirínticos.MascomoWaspsempreresolviaascoisasdeseujeito,PraganãopôdefazermaisdoqueficaresperandosentadoemSundbyberg,comosnervosemfrangalhos,semteramenorideiadecomoWaspestavasesaindo.Agora tinha certeza de uma coisa: o que ela havia conseguido era um feito grandioso e lendário.

Enquantoatempestadedesabavaláfora,Pragalimpouumpoucodasujeiradamesa,sedebruçousobreotecladoeescreveu:

Page 58: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Meconta!Comovocêestásesentindo?Vazia,Wasprespondeu.Vazia.Eraassimqueelaestavasesentindo.LisbethSalandertinhapassadoumasemanaquasesemdormire

se alimentandomal. Sua cabeça doía, os olhos estavam vermelhos, asmãos tremiam e, mais do quequalqueroutracoisa, ela tinhavontadede jogar todooequipamentonochão.Outro ladodela,porém,estavasatisfeito,emboranãopelas razõesquePragaeosdemaismembrosdaHackerRepublic talvezimaginassem. Lisbeth Salander estava satisfeita por ter feito uma nova descoberta sobre o grupocriminosoqueandavarastreando,eporqueagorahaviaobtidoprovasconcretasdeumaligaçãoqueantesnãopassavadeumasuspeita.Guardoutudoparasiesesurpreendeuaoverqueseuscolegasrealmenteacreditavamqueelahaviahackeadoosistemaapenaspormerocapricho.Elanãoeranenhumaadolescentecomhormôniosàflordapele,nemumaidiotacomnecessidadedese

exibir.Quandosearriscavanessetipodeação,tinhasempreumobjetivoconcretoemmente,mesmoqueohacking,emcasosisolados,tambémfosseparaelaumaferramentadeoutrotipo.Nospioresmomentosdesuainfância,tinhasidotambémumamaneiradefugiredelevarumavidaumpoucomaislivre.Comaajuda dos computadores, ela ultrapassou muros e barreiras que de outra forma teriam permanecidointransponíveis e viveumomentos de liberdade.E com certeza havia tambémumaboamedida dessessentimentosemtudoqueaconteciaagora.Mas,acimadetudo,LisbethSalanderestavaemumacaçadaquehaviacomeçadodesdeoinstanteem

queelaacordaradeumsonhoemqueumamãobatiacommovimentosrítmicoseinsistentescontraumcolchãonaLundagatan.Ninguémpoderiaapostarqueiaserumacaçadafácil.Osadversáriosescondiam-seatrásdecortinasdefumaça,etalvezessetambémfosseumdosmotivosparaqueelaestivesseaindamaisásperaeobstinadanosúltimostempos.Eracomoseumanovaescuridãotivessecaídosobreela,e,anãoserporObinze,seutreinadordeboxecorpulentoeexpansivo,epordoisoutrêsamantesdeambosos sexos, Lisbeth praticamente não via ninguém. Emais do que nunca estava parecendo uma garota-problema. Seu cabelo vivia desgrenhado, seu olhar era sombrio e, pormais que se empenhasse, nãoconseguiasesairmuitobememconversascasuais.Lisbethdiziaabsolutamentetudoquelhevinhaàcabeçaouentãonãodizianada,eoapartamentona

Fiskargatan…Bem,oapartamentoeraumcapítuloàparte.Eraumimóvelenormee,mesmoqueanosjátivessemsepassadodesdequeoadquirira,aindanãoestavamobiliadonempareciaaconchegante.HaviaapenasunspoucosmóveisdaIkeaaquieali,dispostosaoacaso,eelanãotinhasequerumaparelhodesom, talvezpornãoentendermuitodemúsica.Elapercebiamaismúsicanumaequaçãodiferencialdoque numa peça deBeethoven.Mesmo assim, estava podre de rica.O dinheiro que havia roubado docanalha Hans-Erik Wennerström tinha crescido e atingido cinco milhões de coroas. Mas por algummotivoessa fortunanãohaviadeixadonenhumamarcaemsuapersonalidade,anãoser talvezomedoaindamaiorqueaconsciênciade todoessedinheiro lhecausava.Pelomenosela tinha sededicadoacoisasbemmaisemocionantesnosúltimostempos,comoquebrarosdedosdeumestupradorexeretaraintranetdaNSA.

Page 59: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Talvez Lisbeth tivesse mesmo extrapolado os limites. Mas considerava essa invasão um malnecessário,epordiasenoitesafiohaviasedeixadolevareesquecidotodooresto.Agoraolhavacomolhoscansadosequasefechadosparaasduasmesasdetrabalho,organizadasemformadeL.Emcimadelas,estavatodooseuequipamento:umcomputadorcomumeamáquinadetestesquehaviacomprado,naqualinstalaraumacópiadoservidoredosistemaoperacionaldaNSA.O computador de testes foi atacado com um programa de fuzzing desenvolvido especialmente para

encontrar erros e falhas de segurança na plataforma. Depois, Lisbeth completou os testes com umdebugging,umablackboxeataquesbeta.Oresultadoserviudebaseparaacriaçãodeumvírusespião,umRAT,porissonãohaveriaespaçoparanenhumtipodeerro.Lisbethpôdeexaminartodoosistemaevirá-lodoavesso,afinaltinhaumacópiadoservidoremcasa.Setentassevasculharaplataformareal,ostécnicosdaNSAteriamfarejadoalgumacoisaestranhaepostofimnabrincadeira.A partir dessemomento ela pôde fazer o que bem entendeu, dia após dia, sem dormir nem comer

direito,eseporacasosaíadafrentedocomputadorquasesempreeraparacochilarnosofáouesquentarumapizzanomicro-ondas.Norestodotempo,seesfalfavanocomputadorcomoZerodayExploit,umsoftwarequeprocuravafalhasdesegurançadesconhecidasequeatualizariaostatusdelaquandotivesseconseguidoinvadirocomputador,oquenãoeranadamenosqueumaloucura.Lisbethhaviadesenvolvidoumprogramaquenãoapenaslhedavaocontroledetodoosistema,mas

tambémapossibilidadedecontrolaràdistânciatudoqueestivessenaquelaintranet,arespeitodaqualelatinhaconhecimentosapenassuperficiais,oqueeraaindamaisabsurdo.LisbethnãoqueriaapenasinvadiraintranetdaNSA.Queriairmaislonge,entrarnaprópriaNSANet,um

verdadeiro universo à parte que praticamente não tinha ligação com a internet comum. Talvez elaparecesse uma adolescente reprovada em todas as matérias da escola, mas com os códigos-fontedisponíveiseumasériedeassociaçõeslógicas,seucérebronãoparavadefazerclique,clique,clique,ederepenteLisbethhaviacriadoumnovoerequintadoprogramaespião—umvírusavançadíssimocomumaespéciedevidaprópria.Quandosedeuporsatisfeita,veioasegundafasedo trabalho.Entãoelaprecisouparardebrincarnaoficinaepartirparaoataquedeverdade.Assim,Lisbeth instalou em seu celular um chip pré-pago daT-Mobile que ela havia comprado em

Berlimeemseguidaacessouainternetporali.Talvezdevesseestaremoutrapartedomundo,numlugarbemdistante,usandoaidentidadefalsadeIreneNesser.Naquele momento, se os responsáveis pela segurança da NSA fossem realmente dedicados e

cautelosos, talvez a tivessem rastreado até a estação da Telenor, na vizinhança. Mais longe nãochegariam,oupelomenosnãosóatravésderecursostécnicos.Masjáseriapertoobastante,enadabom.Mesmoassim,asvantagensdepermaneceremcasapareciammaiores,eLisbethhaviatomadotodasasprecauções possíveis.Comomuitos outros hackers, estavausandooTor, uma redeque fazia comquetodootráfegogeradopelocomputadordelapassassepormilharesemilharesdeoutrosusuários.MaselasabiaquenemmesmooToreratotalmenteseguronaqueleambiente—aNSAtinhaumprogramachamadoEgoisticalGiraffeparaquebraracriptografiadosistema—,portantoeladedicoumuitotempoareforçarsuasegurançaantesdecomeçaraagir.Lisbeth abriu a plataforma como quem desdobra uma folha de papel.Mesmo assim, não conseguiu

evitar que a excitação a dominasse. Precisava encontrar depressa, o mais depressa possível, os

Page 60: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

administradorescujosnomeshaviaconseguido,parainjetaroprogramaespiãoemalgunsarquivosqueelescontrolavam,paraentãocriarumaponteentrearededoservidoreaintranet.Nãofoiumaoperaçãoparticularmentecomplexa.Nãohouvealertasenenhumantivírusdisparou.PorfimLisbethescolheuumadministrador chamado Tom Breckinridge, assumiu a identidade dele na NSANet e… sentiu todos osmúsculosde seucorpo tensos.DiantedosolhosdeLisbeth,daquelesolhoscansadose tresnoitados, amágicaaconteceu.Oprograma espião levava-a cadavezmais fundonaquele segredo, e ela provavelmente sabia para

ondeestavaindo:acaminhodoActiveDirectory,oudequalquerquefosseseuequivalentenosistemadaNSA, para conseguir um status mais alto. Deixaria de ser uma simples visitante indesejada para setransformarnumasuperusuáriadaqueleuniverso fervilhante, e sóentão tentariaobterumpanoramadosistema,oquenãoserianadafácil.Naverdade,seriaimpossível,ealémdomaisnãohaviamuitotempo.Tudoprecisavaserfeitocomrapidez,commuitarapidez,eLisbethseesforçavaparaaprenderausar

osistemadebuscaseentendertodososcódigos,expressõesereferências,todaalinguagemprópriadosistema, e estava prestes a desistir quando encontrou um documento assinalado como “Top Secret—NOFORN”—“Confidencial—DISTRIBUIÇÃOPROIBIDANOEXTERIOR”—quenãopareciaconternadademuitoespecial.Noentanto,juntando-ocomunspoucoselosdecomunicaçãoentreZigmundEckerwald,daSolifon,eaosagentescibernéticosdadivisãodemonitoraçãodetecnologiasestratégicasdaNSA,essematerial era dinamite pura. A essa altura, Lisbeth sorriu e memorizou cada detalhe, mesmo que noinstante seguinte tenha deixado escapar um palavrão ao encontrar mais um documento que pareciarelacionadocomocaso.Odocumentoestavacriptografado,porissonãohaviaoutracoisaafazersenãocopiá-lo,oqueprovavelmentefariadispararumalarmeemFortMeade.Asituaçãotornava-secadavezmaisemergencial,Lisbethpensou.Alémdisso,elaprecisavacomeçar

suas tarefas oficiais, se é que a palavra “oficial” podia ser usada nesse contexto.De qualquermodo,haviaprometidoaPragaeaosdemaisintegrantesdaHackerRepublicqueabaixariaascalçasdaNSAedariaum jeitode acabar comumpoucodaquela arrogância, entãocomeçoua escolher comquem iriaestabelecercontato.Quemreceberiaamensagemdela?O escolhido foi EdwinNeedham, Ed theNed. Era quase impossível falar de segurança de TI sem

mencionar esse nome, e quando Lisbeth se informou sobre ele na intranet, não teve como evitar umsentimentode respeito.Ed theNederaumastro.Elaohaviaderrotadonaquelabatalhade intelectos,mas,mesmoassim,hesitouantesderevelarsuapresençanosistema.Oataqueproduziriaumverdadeirocaos.MascomocaoserajustamenteoqueLisbethdesejava,ela

partiu para o ataque. Não fazia amenor ideia de que horas eram. Podia ser noite ou dia, outono ouprimavera.Demaneiravaga,nos recônditosde suaconsciência,Lisbethpercebiaquea tempestade láforatinhaadquiridomaisforça,exatamentecomoseoclimaestivessesincronizadocomasuainvestida,enquantonadistanteMaryland—nãomuitolongedofamosocruzamentodaBaltimoreParkwaycomaMarylandRoute32—EdtheNedcomeçavaaescreverume-mail.Elenãoconseguiuirmuitolonge,porquenoinstanteseguinteLisbethassumiuocontroledosistemae

deucontinuidadeàfrasequeEdhaviacomeçado:Quemespionaapopulaçãoacabasendoespionadopelapopulação.Essaéumalógicafundamentaldademocracia,eporuminstanteasfrasespareceramacertarnamosca, comoumverdadeirogolpedegênio.Ela sentiuodoce sabordavingança, edepois

Page 61: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

levouEdtheNedparaumpasseiopelosistema.Juntos,dançaramedeslizaramporummundocintilantepovoadoportudoquedeviasemanterocultoaqualquerpreço.Era sem dúvida uma experiência vertiginosa, mesmo assim… mesmo assim… Foi apenas quando

Lisbethsedesconectoueoslogsforamautomaticamentedeletadosqueafichacaiu.Foicomogozarcomo parceiro errado, e as frases que momentos antes tinham parecido precisas e contundentes soaraminfantis e estúpidas. De repente Lisbeth sentiu vontade de encher a cara. Com passos cansados ecambaleantes,foiatéacozinhaepegouumagarrafadeTullamoreDewemaisduasoutrêscervejasparaenxaguar a boca. Em seguida, sentou-se em frente aos computadores e começou a beber. Não paracomemorar.Não havia nenhuma sensação de vitória.Eramais uma…o quê, afinal?Talvezmais umasensaçãodemenosprezo.ElacontinuoubebendoenquantoatempestadecaíaláforaeosgritosdesaudaçãodaHackerRepublic

começavamachegar.MastudoaquilonãodiziamaisrespeitoaLisbeth.Elamalseaguentavaempée,comummovimentoamploerápido,varreucomamãoamesatodaeemseguidaolhoucomindiferençaparaasgarrafaseoscinzeirosespalhadospelochão.DepoispensouemMikaelBlomkvist.Comcerteza erao álcool.Blomkvist costumava surgir emseuspensamentosquandoestavabêbada,

comoosamantesdeoutrostemposcostumamsurgirduranteumporre,equasesemsedarcontadoqueestavafazendo,Lisbethhackeouocomputadordele,cujasdefesasnãochegavamnemaospésdasdaNSA.Havia algum tempo Lisbeth tinha um atalho para o computador dele, e num primeiro momento seperguntouoqueelairiafazerlá.Afinal,estavapoucoselixandoparaBlomkvist,nãoestava?Elepertenciaaopassado,eraapenasum

idiotacharmosoporquemelahaviaseapaixonado,enãotinhaamenorintençãodeincorrernomesmoerro de novo. Não,melhor se desconectar e passar umas semanas sem nem aomenos olhar para umcomputador.Mesmoassim,LisbethcontinuounoservidordeBlomkvist—eno instanteseguinte ficouradiante. Super-Blomkvist criara uma pasta chamada Lisbeth Salander, e nesse documento havia umapergunta:OquedevemospensarsobreainteligênciaartificialdeFransBalder?Entãoelasorriuumpouco,apesardetudo,eempartegraçasaFransBalder.Balder era o tipo de nerd que atraía Lisbeth— afundado em códigos-fonte, operações quânticas e

possibilidadeslógicas.MasacimadetudoLisbethsorriuporqueMikaelBlomkvisttinhamaisumavezacabado nomesmo lugar que ela, e mesmo que algumas vezes ela tivesse pensado em simplesmentefecharoprogramaeirparaacama,respondeu:AinteligênciadeBaldernãotemnadadeartificial.Porfalarnisso,comovaiasua?E,Blomkvist,oquevaiacontecersecriarmosumamáquinamaisinteligentedoquenós?DepoisLisbethfoiparaumdosquartoseseatirounacamaderoupaetudo.

Page 62: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

7.20DENOVEMBRO

Maisalgumacoisa tinhaacontecidonaredação—ealgumacoisaquenãoeranadaboa.MasErikanãoquiscontarosdetalhesportelefone.Insistiuemiràcasadele.Mikaeltentoudissuadi-la:—Vocêvaicongelaressasuabundalindanestefrio!Erikanãodeuamínima,esenãofossepelotomdevozdela,Mikaelficaria lisonjeadocomaquela

insistência.Depoisquefoiemboradaredação,tevevontadedefalarcomErikaetalvezdelevá-laparaoquartoedespi-la.Masalgo lhediziaqueessaparteestaria foradecogitaçãonaquelemomento.Erikapareciatranstornadaehaviabalbuciadoumpedidodedesculpasqueserviuapenasparadeixá-loaindamaispreocupado.—Voupegarumtáxiagora—eladisse.Mesmoassim,comoErikademorava,na faltadoque fazerMikael foiatéobanheiroe seolhouno

espelho.Suaaparênciajátinhavistodiasmelhores.Ocabeloestavadesgrenhadoenãorecebiaumcortefazia tempo, o rostomarcado por olheiras bastante visíveis. Tudo culpa deElizabethGeorge.Mikaelpraguejouemvozalta,saiudobanheiroedeumaisumaorganizadanoapartamento.Erikanãoiapoderreclamardabagunça.Mesmoquefizessemuitotempoqueosdoisseconheciame

queavidadecadaumestivesseinextricavelmenteligadaàdooutro,Mikaelsofriadecertocomplexodeorganização.Eleeraofilhojovem,solteiroetrabalhador;Erika,umamulhercasadadeclassealtaquemoravanumacasaderevistadedecoraçãoemSaltsjöbadene, independentementedoqueacontecesse,nãofariamalseolugarparecessearrumado.Mikaelencheuamáquinadelavar-louça,limpouobalcãodacozinhaelevouolixoparafora.Conseguiu até passar aspirador de pó na sala, regar as plantas da janela e organizar um pouco o

revisteiroeaestantede livrosantesque,enfim,ouvissebatidasnaporta.Batidas,campainha, tudoaomesmo tempo. Uma pessoa impaciente queria entrar rápido, e assim que abriu a porta Mikael seenterneceu.Erikaestavacongelando.Ela se livroudeuma folhadechoupoquehavia seprendidoà sua roupa.Seucongelamentonãose

devia apenas ao tempo implacável.Erika também tinha umaparcela de culpa, pois não estava sequerusandoumgorro.Seupenteadobonitododiaanteriorforatotalmentedesfeitopelasrajadasdeventoenabochechadireitahaviaumamarcaquepareciaumarranhão.—Ricky!—exclamouMikael.—Oqueaconteceucomvocê?—Minhabundalindacongelou.Nãoconseguiencontrarumtáxi.—Eoqueéissonasuabochecha?

Page 63: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Escorreguei.Achoqueumastrêsvezes.Mikaelolhouparaabotaitalianamarrom-avermelhadadesaltoaltodela.—Vocêescolheuumcalçadoperfeitoparasairnumdiacomohoje.—Absolutamenteperfeito.Semfalarqueontemresolvidispensarameia-calçadelã.Coisadegênio!—Entre,deixequeeuaqueçavocê.ErikaseentregouaosbraçosdeMikaelecomeçouatremeraindamaisquandoeleaenvolveu.—Desculpe—eladissemaisumavez.—Peloquê?—Portudo.PelaSerner.Eufuiumaidiota.—Nãoexagere,Ricky.Mikael tirouosflocosdenevedocabeloedatestadeErikaeolhoudiscretamenteparaaferidana

bochecha.—Euvoutecontartudo—eladisse.—Masprimeiroeuvoutirarsuaroupaeprepararumbanhoquenteparavocê.Querumataçadevinho

brancoparaacompanhar?ErikaaceitouabebidaepermaneceunabanheiratemposuficienteparaMikaelencherataçamaisduas

ou três vezes. Ele ficou sentado num banquinho, ouvindo a história, e apesar de todas as notíciasdesfavoráveisaconversateveumtomconciliatório,comoseosdoistivessemporfimderrubadoomuroquehaviamerguidoentresinosúltimostempos.—Euseiquedesdeoiníciovocêmeachouumaidiota—disseErika.—Nãoadiantanegar.Eute

conheçomuitobem.Masvocêprecisa entenderque eu, oChrister e aMonikanãovimosoutra saída.Tínhamos acabado de contratar oEmil e a Sofie e estávamos orgulhosos deles.Não havia repórteresmaisrespeitados,concorda?Ganhamosmuitoprestígiocomavindadeles.Essascontrataçõesmostraramqueestávamosnocaminhocerto,elogovoltaramanoselogiarnoResuméenoDagensMedia.Foicomonosvelhostempos,eeudisseàSofieeaoEmilqueelesestavamtotalmentesegurosnaredação.Faleique a economia do país ia bem.Que podíamos contar como apoio do grupoVanger. E que teríamosorçamentoparaasreportagensinvestigativasmaisincríveisqueelespodiamimaginar.Comovocêvê,eumesmaacrediteinissotudo.Atéque…—Atéqueocéucomeçouadesabarsobreasuacabeça.—Poisé.Enãofoisóacrisedosjornaisimpressoseodesaparecimentodosanunciantes.Também

teve toda aquela história como grupoVanger.Não sei se você realmente entendeu o que representouaqueleescândalo.ÀsvezespensoquefoiquasecomoumgolpedeEstado.Todososreacionáriosetodasasreacionáriasdafamília,quevocêconhecemuitobem,todososracistaseconservadoressejuntarameapunhalaramHarrietpelascostas.Nuncavoumeesquecerdadeclaraçãodela.Eumesintoatropelada,eladisse.Esmagada.Oempenhodelaem reformularemodernizarogrupo irritoudemaisosoutros, etambémadecisãodelevarDavidGoldmanparaadiretoria,ofilhodorabinoViktorGoldman.Masvocêsabequeagentenãofaziapartedessecenário:oAndreitinhaacabadodeescreverareportagemsobreosmendigosdeEstocolmo,naopiniãodetodaaredaçãoamelhorcoisaqueelejátinhaescrito,citadaatéportodososgrandesveículosdecomunicação,inclusivenoexterior.Mesmoassim,osVanger…—Tacharamareportagemdelixoesquerdista.

Page 64: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Pior,Mikael.Chamaramde“propagandaafavordevagabundossemdignidadesequerdearrumarumemprego”.—Mesmo?—Disseramalgodo tipo,mas achoque a reportagemnão foi o principal.Oque eles queriamera

acharumpretexto,umbodeexpiatórioquejustificassearetiradadoapoioquevinhamnosdando.ElesqueriampôrumpontofinalemtudoqueHenrikeHarriethaviamdefendido.—Bandodecretinos.—Eumelembromuitobemdaquelaépoca.Foicomoseochãotivesseseabertosobosmeuspés,e

claro…euseiquedeviaterenvolvidovocêumpoucomais.Masacheiquetodomundoiriaganharseeudeixassevocêconcentradoapenasnassuashistórias.—Emesmoassimeunãoapresenteinadaqueprestasse.— Você tentou, Mikael. Tentou mesmo. O que eu queria dizer é que foi bem nessa hora, quando

parecíamosterchegadoaofundodopoço,queoOveLevinmetelefonou.—Alguémdevetercontadoaeleoqueestavaacontecendo.—Comcerteza.Enemprecisotedizercomonoiníciofiqueirelutante.JustamenteaSerner,otipode

empresaqueeditavatabloidesdapiorqualidade.MasoOvecomeçouadespejartodaaverborragiadeleemcimademimedepoismeconvidouparaconheceracasanovadeleemCannes.—Comoé?—Desculpe,eusei.Eutambémnãocomenteiissocomvocê.Achoqueeuestavacomvergonha.De

qualquerforma,decidiiraofestivaldecinemaparaescreverumperfildaqueladiretorairaniana,sabe?AquefoiperseguidaporterfeitoumdocumentáriosobreSara,ameninadedezenoveanosapedrejada.AcheiquenãohaviaproblemaemaceitarapropostadaSernerdecobrirosnossoscustosdeviagem.Eue o Ove conversamos a noite inteira, e o meu ceticismo só aumentou. Ele contou vantagem o tempointeiro,falavacomoumvendedor.Masnofimacabeiescutandotudoaquilo,esabeporquê?—Porqueeleeraincrívelnacama.—Ha!Não.Porcausadarelaçãoqueeletinhacomvocê.—Elequeriairparaacamacomigo?—Eletemumaadmiraçãoenormeporvocê.—Quebobagem.—Não,Mikael,vocêestáenganado.OOveadorapoder,dinheiroeacasaquetememCannes.Masse

rói por dentro porque sabe que não é considerado um cara incrível como você. Quando o assunto écredibilidade,oOveépobreevocêummagnata.Nofundoelequeriasercomovocê.Percebinahora,masdevia tervistoqueessetipodeinvejapodeserperigoso.Todaaperseguiçãocontravocêfoiporcausadisso,vocêdevesaber.Asuaobstinaçãofazaspessoassesentiremmal.Asuameraexistênciafaztodosselembraremdecomosevenderambarato,equantomaisvocêéexaltado,pioressaspessoassesentem.Então,sóexisteumaformadesedefender:arrastarvocêparaalama.Sevocêcair,essagentesesenteumpoucomelhor.Essascampanhasdedifamaçãoservemparadevolverumpoucodedignidadeaosseusadversários,oupelomenoséoqueelesdizemasimesmos.—Obrigado,Erika,masestoumelixandopraessahistóriadeperseguição.—Claro,eusei.Esperoqueestejamesmo.OqueeupercebinaépocafoiqueoOvequeriafazerparte

Page 65: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

dissodeverdade,sesentirdanossaequipe.Queriaumpoucodanossaboareputação,eacheiqueesseincentivotalvezfuncionasse.SeOvepretendiasertãodescoladocomovocê,seriadevastadorparaeletransformaraMillenniumemmaisumprodutocomercialqualquerdaSerner.Seeleficasseconhecidocomo o sujeito que destruiu uma das publicações mais lendárias da história sueca, o que ainda lherestassedecredibilidadeiriapeloralo.PorissoacrediteiquandoeledissequeogrupoSernerprecisavadeumapublicaçãodeprestígio,deumálibi,porassimdizer,etambémquandogarantiuquenosajudariaa continuar fazendo o tipo de jornalismo em que acreditamos. Com certeza ele também sonhava emparticipardaredação,masacheiqueissonãopassavadevaidadedele,devontadedeseexibirumpoucoecontaraosamigosqueeraporta-vozdarevista,coisadotipo.NuncaimagineiqueeleiasemeternocoraçãodaMillennium.—Éoqueeleestáfazendonesteinstante.—Infelizmente.—Enessecasooqueacontececomtodaasuasofisticadateoriapsicológica?—Eu subestimei a força do oportunismo. Como você deve ter notado, tanto Ove quanto a Serner

estavam se comportando de maneira exemplar conosco antes da perseguição a você começar. Masdepois…—DepoisoOveseaproveitoudoqueestavaacontecendo.—Não,não,foioutrapessoa.Alguémquequeriapegá-lo.Sódepoisentendicomonãodevetersido

nadafácilparaeleconvencerosoutrosanoscomprar.Comovocêsabe,todosdaSernersofremdeumcertocomplexodeinferioridadejornalística.Sãonamaioriahomensdenegóciosquedetestamconversassobreadefesadecausasimportantes,essetipodecoisa.Elesseirritaramcomoquechamaramde“falsoidealismo”doOve,equandoaperseguiçãoavocêcomeçouviramachanceperfeitaparacobraremumaposiçãodele.—Caramba.—Vocênemimagina.Primeirotudocorreubem.Fizeramapenasalgumasexigênciasdeadaptaçãoao

mercado,ecomovocêsabeeumesmaconcordeiquehaviaideiasboasnapropostadeles.Eutambémjátinhapensadobastanteemcomoalcançar leitoresmais jovens.Parasersincera,acheiqueeueoOvetínhamostidoumaótimaconversasobreesseassunto,porissonãomepreocupeicomaapresentaçãodehoje.—Eupercebi.—Masdepoisveiooescândalo.—Queescândalo?—OquecomeçoudepoisquevocêpeitoualiderançadoOve.—Eunãopeiteinada,Erika.Simplesmentefuiembora.Aindadeitadanabanheira,Erikatomouumgoledevinhoeemseguidaabriuumsorrisomelancólico.—QuandovocêvaientenderquevocêéMikaelBlomkvist?—elaperguntou.—Acheiquejátinhacomeçadoamedarconta.— Pois não parece, senão você saberia que quando Mikael Blomkvist sai no meio de uma

apresentaçãosobrearevistadele,issosetransformanumacontecimento,querMikaelBlomkvistqueira,quernão.

Page 66: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Entãopeçodesculpaspelaminhaprovocação.—Não,nãoestoutecriticando.Pelocontrário.Euéquedevopedirdesculpas,comovocêestávendo.

Dequalquerforma,areuniãoteriaacabadoemconfusãomesmoquevocênãotivessesaído.—Oqueaconteceu?—Depoisquevocêfoiembora,todomundoficousemgraça,eoOve,comaautoestimamaisabalada

doquenunca,desistiudecontinuaraapresentação.Nãoadianta, eledisse.Depois saiupara telefonarpara o escritório central e contar o que tinha acontecido, e eu não vou me surpreender se acabardescobrindoqueeledescreveuasituaçãodeformabemmaisdramática.Ainvejaqueeletemdevocêdeve ter se transformado agora num sentimento aindamais egoísta emal-intencionado.Depois de umtempoelevoltoudizendoqueaSernerestavadispostaaapostargrandenaMillenniumeusartodososcanaisdisponíveisparadivulgararevista.—Eessanãofoiumaboanotícia.—Não,eeusoubequenãoiaserantesmesmoqueoOvecomeçasseafalar.Deuparavernorosto

dele.Eraumaexpressãocomumaaurademedoetriunfo,enoinícioelenemsoubedireitooquedizer.Começouafalarummontedecoisassemsentido,dissequeogrupoSernergostariadeterumcontrolemaiordotrabalhoqueagentedesenvolve,quegostariadepromoverarevistacomopúblicomaisjovemedepublicarmaisreportagenssobrecelebridades.Depois…Erikafechouosolhos,passouasmãospelocabeloúmidoebebeuoúltimogoledevinho.—Depoisoquê?—Eledissequequeriavocêforadaredação.—Comoé?—ClaroquenemoOvenemaSernerpodemdizerissocomtodasasletras,muitomenosdeixarque

apareçammanchetesdo tipo“SernermandaBlomkvistparaa rua”.Amensagemfoipassadade formamuitoelegante.OOvedissequequeriadarmaisliberdadeparavocêseconcentrarnoquesabefazerdemelhor: escrever reportagens. Então falou de umposto estratégico emLondres num cargo de redator-chefe.—EmLondres?—OOvedissequeaSuéciaépequenademaisparaumjornalistadoseucalibre,masvocêsabemuito

bemoqueelequisdizercomisso.—Elesachamquenãovãoconseguirimplantarasmudançasquequeremseeuestivernaredação?—Émaisoumenosisso.Poroutrolado,achoqueninguémsesurpreendeuquandoeu,oChristerea

Monikadissemosquenão,dejeitonenhum.ParanãofalarnareaçãodoAndrei.—Oqueelefez?—Ficoconstrangidasódefalar.OAndreiselevantouedissequeaquiloeraacoisamaisvergonhosa

queelejátinhaouvidonavida.Dissequevocêeraumexemplodoquehaviademelhornonossopaís,umorgulhoparaademocraciaeojornalismo,equetodomundodogrupoSernerdeviaeraesconderorostodevergonha.Dissequevocêéumgrandehomem.—Resolveuirpracima,então.—Eleéumbomgaroto.—Comcerteza.EoqueopessoaldaSernerfezdepois?

Page 67: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Ovejáesperavaessetipodereação.Dissequesequisermos,podemoscomprarapartedeles.Oúnicoporém…—Équeopreçosubiu—Mikaelcompletou.—Exato.Eleexplicouque,deacordocomumaavaliaçãopreliminar, apartedaSernernomínimo

dobroudepreçoporcausadamais-valiaedootimismoqueaparticipaçãodogrupocriou.—Otimismo?Elesenlouqueceram?—Pelo contrário: são é espertosdemais, e estãodispostos anospassaruma rasteira.Tambémme

pergunto se não estão querendomatar dois coelhos comuma cajadada só.Ganhar umbomdinheiro eaindaselivrardeumconcorrenteempotencial,porqueentãoestaríamosquebrados.—Oquevamosfazer?—Oquefazemosdemelhor,Mikael:lutar.Vouusardinheirodomeubolsoparacompraranossaparte

daSernerdenovoelutarparacontinuarmossendoumdosmelhoresperiódicosdetodaaEuropa.—Aideiaéexcelente,Erika,mas…edepois?Asnossasfinançasvãocontinuarruinsevocênãovai

poderfazernada.—Eusei,masvaidarcerto.Jáenfrentamossituaçõesdifíceisnopassado.Podemoszerarosnossos

saláriosporumtempo,omeueoseu.Nãoachaquedá?—Erika,tudoacabaumdia.—Nãofaleassim!Vocênãopodefalarassimnunca!—Nemquesejaaverdade?—Nessecaso,menosainda.—Tudobem,então.—Você tem alguma outra carta namanga?—Erika perguntou.—Alguma coisa que pudesse cair

comoumabomba?Mikael cobriu o rosto com as mãos e pensou no comentário de Pernilla, que havia dito que,

diferentementedopai,queria“escreverdeverdade”—emboraMikaelnãoconseguisseimaginaroquenãoera“deverdade”notipodejornalismoqueelefazia.—Achoquenão—elerespondeu.Erikabateuamãonasuperfíciedaágua,espirrandolíquidonasmeiasdeMikael.—Vocêtemqueteralgumacoisa!Ninguémnopaísrecebetantasdenúnciasquantovocê.— A maioria não passa de um monte de bobagem— respondeu Mikael. —Mas talvez… Estou

investigandoumahistória.Erikasesentounabanheira.—Oquê?—Ah,nadaainda.Estouapenassonhando.—Temosmesmoquesonharnumasituaçãocomoesta.—Eusei,masaindanãoénada.Apenasummontedefumaçaenenhumaprova.—Masapesardissovocêacreditanahistória,nãoé?—Podeser…masoquemelevaaacreditaréumdetalhequenãotemnadaavercomahistóriaemsi.—Oqueé?—Digamosqueaminhaantigaescudeiratambémestánahistória.

Page 68: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Ah,jáentendi.Éela?—Aprópria.—Entãoparecepromissor,hein?—disseErika,saindonuaelindadabanheira.

Page 69: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

8.NOITEDE20DENOVEMBRO

Augustestavaajoelhadonopisoxadrezdoquarto,diantedeumalamparinadequeroseneemcimadeumabandejaazul,ondehaviatambémduasmaçãsverdeseumalaranjaqueopaihaviapreparado.Masnadaaconteceu.Augustsimplesmentecontinuavacomseuolharvaziofixonatempestadedoladodeforadajanela,eFransseperguntouseteriasidomáideiaproporotemanatureza-morta.Bastavaseufilhovislumbrarumacenaparaqueaimagemsefixasseparasempreemsuamente.Nesse

caso,porqueopainãopoderiaescolherotemadodesenho?EraprovávelqueAugusttivesseinúmerasimagensnacabeça,etalvezfrutaseumabandejafossemacomposiçãomaispatéticaeaborrecidaqueelepudesseconceber.TalvezAugustseinteressasseporcoisastotalmentediferentes,emaisumavezFransse perguntou se o menino teria alguma relação especial com aquele semáforo. O desenho não eraresultadodeumasimplesobservação.Pelocontrário:aluzvermelhabrilhavacomoumolhomalignoeofuscante,etalvez—comosaberaocerto?—Augusttivessesesentidoameaçadopelohomemnafaixadepedestres.Fransolhouparaofilhopelacentésimaveznaqueledia.AntespensavaemAugustapenascomoum

meninoestranhoeinexplicável.Agora,maisumavezseperguntavaseeleeofilhonãoseriamnofundomuito parecidos. Na época de Frans, osmédicos não gostavammuito de diagnósticos. Simplesmentemandavamaspessoasemboracomapechadeesquisitaseestúpidas.Elemesmotinhapassadoainfânciasesentindodiferentedasoutraspessoas,sériodemaisesemexpressão,enenhumdeseuscolegaspareciaachar aquilo legal. Por outro lado, ele também não achava os colegas especialmente legais, então serefugiavanosnúmerosenasequações,esófalavaonecessário.Aindaassim,FransnãopoderiaserdefinidocomoautistadamesmaformaqueAugust.Entretanto,com

certezahojeeleseriadiagnosticadocomoportadordesíndromedeAsperger,enãovinhaaocasoseissoseria bom ou ruim. O mais importante era que tanto ele como Hanna tinham acreditado que umdiagnóstico precoce da condição de August poderia ajudá-los. Apesar disso, pouca coisa haviaacontecido,esomentequandoo filho já tinhaoitoanosFranspercebeuqueomeninopossuíaumdomespacialematemáticoimpressionante.ComoHannaeLassenãoperceberamnada?Embora Lasse fosse um merda, Hanna no fundo era uma pessoa boa e receptiva. Frans jamais

esqueceriaoprimeiroencontrodeles,numanoitenaAcademiaRealdeEngenharia.Elehaviarecebidoumprêmioaoqualnãodavanenhumaimportânciaedepoispassoutodoointervalodojantarentediado,desejandovoltarparacasaeparaafrentedocomputador.Derepenteumamulherlinda,quelhepareceraumpoucofamiliar—oconhecimentodeFransdomundodascelebridadeseraextremamentelimitado—,

Page 70: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

aproximou-seepuxouassunto.MasFransainda seviacomoonerddaTappströmsskolanque recebiaapenasolhareszombeteirosdasgarotas.FransnãoconseguiaentenderoqueumamulhercomoHannatinhavistonele,enaépoca—elenão

demorouadescobrir—Hannaestavanoaugedesuacarreira.Maselaoseduziuenaquelanoitefezamorcomelecomonuncamulhernenhumahaviafeito.Emseguida,veioamelhorépocadavidadeFrans,atéque…oscódigosbináriosvenceramoamor.PrimeiroFransdestruiuseucasamentocomexcessodetrabalho,depoistudopiorou.LasseWestman

assumiu o posto, Hanna se apagou — August também, possivelmente — e Frans se enfureceu, pormotivos um tanto compreensíveis.Mas ele também sabia que parte da culpa era sua. Tinha resolvidopagarparanão terquecuidardofilho,e talvezoquehaviamditono julgamentodaguardadomeninofosse verdade—Frans optoupelo sonhodavida artificial emdetrimentodo filho.Ele tinha sidoumtremendoidiota.FranspegouonotebookebuscounoGooglemaisinformaçõessobreacondiçãodesavant. Jáhavia

encomendadouma série de livros, entre os quais umadasmaiores referências sobre o tema, Ilhas degênios,doprofessorDaroldA.Treffert.Comosempre, tinha resolvidoaprender tudosobreoassunto.NenhumpsicólogoenenhumpedagogoiriamdizeraopaideAugustcomoeledeviatratá-lo.Iriaentenderoproblemadofilhomelhordoquetodoseles,portantocontinuoulendo—agoraumahistóriasobreumameninaautistachamadaNadia.AvidadeNadiaestavanarradanolivrodeLornaSelfeintituladoNadia:Umcasodeextraordinária

habilidadeparaodesenhoemumacriançaautistae tambémnolivrodeOliverSacksOhomemqueconfundiusuamulhercomumchapéu.Fransficoufascinadocomasleituras.Eraumahistóriacuriosae,decertamaneira,umcasosemelhanteaodeseufilho.ComoAugust,Nadiapareceuumacriançasaudávelaonascer,eapenascomopassardotemposeuspaisperceberamquehaviaalgumacoisaerrada.Nadianão falava.Nãoolhavaparao rostodaspessoas.Nãogostavadenenhuma formade contato

físicoenãoreagiaaosorrisonemàsaçõesdamãe.Passavaamaiorpartedotempoemsilêncio,afastadadas pessoas, e cortava folhas de papel obsessivamente em tiras finíssimas.Com seis anos, ainda nãotinhaditoumapalavra.Mesmo assim,Nadia desenhava comoDaVinci. Com três anos começou a desenhar cavalos e, ao

contráriodasoutrascrianças,nãocomeçavacomaformadeles,comocontorno,mascomumpequenodetalhe,ocasco,abotadocavaleiro,acauda.Eomais impressionante:osdesenhoseramfeitoscomenormerapidez.Comumavelocidade impressionante,Nadia juntavaaspartes,umaaqui,outraali,atéquetudoseencontrassecomperfeiçãoabsoluta—umcavalogalopandoousimplesmentecaminhando.Combaseemsuaexperiêncianaadolescência,Franssabiaquenãohavianadamaisdifícildedesenhardoqueumanimalemmovimento.Pormaisquesetente,oresultadoacabasendopouconaturaloudandoaimpressãoderigidez.Éprecisoserummestreparaconseguirrepresentaralevezadeumsalto.EcomtrêsanosNadiaeramestrenisso.Oscavalosdameninaeramperfeitos,desenhadoscomtraçosleves,eeraevidentequenadadaquilose

deviaaanosdeprática.Todoaquelevirtuosismopareciasaídodeumaforçarepresadaqueenfimhaviaencontrado uma via de escape, e a história fascinou seus contemporâneos. Como era possível? OspesquisadoresaustralianosAllanSnydereJohnMitchellfizeramumestudodosdesenhosdeNadiaeem

Page 71: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

1999apresentaramumateoriaqueaospoucosganhouumaaceitaçãoquaseuniversal—aideiadequetodos temosumacapacidade latenteparaesse tipodevirtuosismo,queestábloqueadanamaioriadaspessoas.Quandovemosumaboladefutebolououtroobjetoqualquer,nãoentendemosde imediatoqueeleé

tridimensional. Pelo contrário: numa fração de segundo, o cérebro percebe detalhes, sombras que seprojetam e pequenas diferenças de profundidade e nuance, e é com base nessas informações queclassificamos sua forma.Não temos consciênciadenadadisso,maspara entenderque estamosvendoumabolaenãoummerocírculoprecisamosfazerumaanálisedaspartesindividuais.Oprópriocérebrocriaaformafinale,quandoacompleta,jánãovemososdetalhesquenumprimeiro

momentohavíamosnotado.Aflorestaescondeasárvores,porassimdizer.MasoquechamouaatençãodeMitchelleSnyderfoique,seconseguíssemosrecuperaraimagemoriginalcaptadapornossocérebro,seria possível ver omundo demodo radicalmente diferente, e talvez pudéssemos recriá-lo commaisfacilidade,exatamentecomoNadiahaviafeitosemnenhumtreinamento.A ideia,emoutraspalavras,eraqueNadia tinhaacessoà imagemoriginaldomundo—àmatéria-

primadocérebro.Podiaverumainfinidadedesombrasedetalhesantesqueelesfossemtrabalhados,porissosemprecomeçavaporumpontoespecífico,comoocasco,ofocinho,enãocomocontornodafigura,poisessa formacompleta,damaneiracomoaentendemos,aindanãoestavapronta.MesmoqueFransBaldervisse certosproblemasnessa explicação, oupelomenos tivesseuma série dequestionamentoscríticos,eraumateoriaatraente.Decertomodo,Baldersemprehaviabuscadoessaobservaçãooriginalnaspesquisasquedesenvolvia,

cujaperspectivaeranãofazerpressuposiçõesdenenhumtipo,masapenasanalisarascoisasnosmínimosdetalhes.Estava cada vezmais obcecado por esse assunto e lia a respeito comum fascínio cada vezmaioreporvezesestremecia.Chegavaapraguejaremvozaltaeolhavaparaofilhocomumapontadeangústia.Masoqueoabalavanãoeramasobservaçõescientíficas,esimadescriçãodoprimeiroanodeNadianaescola.Nadia tinha sido colocada numa turma especial de crianças autistas. Ali o foco do ensino era o

desenvolvimentodafala,eameninachegouafazerprogressos.Aospoucosaspalavrassurgiram.Masopreço foi alto. Assim que começou a falar, sua genialidade artística desapareceu, porque, segundo aautora Lorna Selfe, uma linguagem foi substituída por outra. Antes um prodígio artístico, Nadia setransformounumameninaautistacomlimitaçõesextremasque,emboraconseguissefalarumpouco,haviaperdidoo talentoque tanto impressionaraomundo.Teriavalidoapena?Paraquepudessedizerumaspoucasfrases?Não,Franstevevontadedegritar,talvezporqueavidainteirativessesedispostoasacrificarqualquer

coisaparasetornarumgênioemsuaárea.Melhorserincapazdepronunciarumapalavrasensatanumaconversa do que sermedíocre. Qualquer coisamenos amediocridade! Esse tinha sido o objetivo deBalderaolongodavida,mesmoassim…Elesabiamuitobemquenocasodeseufilhoessesprincípioselitistasnãoseriamumbomcaminhoaseguir.Talvezdesenhosincríveisnãofossemnadacomparadosàcapacidadedesaberpedirumcopodeleiteoudetrocaralgumaspalavrascomumamigo,oumesmocomopai.Quemeraeleparadecidir?Mesmoassim,Fransserecusavaaenfrentaressadecisão.Nãosuportavaaideiadedeixardeladoo

Page 72: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

acontecimento mais incrível de toda a vida do filho. Não, não… simplesmente isso estava fora decogitação.Nenhumpaideviaserobrigadoaescolherentreasopções“gênio”e“nãogênio”.Ninguémtinhacomosaberdeantemãooqueseriamelhorparaacriança.QuantomaisFranspensavanoassunto,maisabsurdotudoaquilolheparecia,ederepentepercebeu

quenãoacreditavaemmaisnada,ouquetalveznãoquisesseacreditar.Afinal,Nadiaconstituíaumúnicocaso,oqueéinsuficienteparaestabelecerumprincípiocientífico.Precisavaseinformarmelhor,portantocontinuoupesquisandonainternet.Derepenteotelefonetocou.

Aliás,elehaviatocadoumbocadonasúltimashoras.Primeirotinhasidoumnúmeronãoidentificadoedepois,parapiorarascoisas,Linus,seuantigoassistentequehaviacomplicadoasuavidaeemquemelenemsequerconfiava.Ebemnahoraemqueoqueelemenostinhavontadedefazereraconversar.TudoquequeriaeracontinuarpesquisandosobreocasodeNadia.Mesmoassimatendeu—talvezpornervosismo.DestavezeraGabriellaGrane,aencantadoraanalista

daSäpo,oqueolevouaabrirumsorrisodiscreto.LogodepoisdeFarahSharif,Gabriellaocupavaumhonrososegundolugar.Tinhaolhoslindoseumraciocínioveloz.Franssentiaumaquedapormulheresrápidas.—Gabriella—eledisse.—Euadoraria falarcomvocê,mas infelizmenteestousemtempo.Ando

ocupadocomumacoisamuitoimportante.—Tenhocertezadequevocêvaipoderarranjarumtempinhoparaesteassunto—rebateuGabriella

numtomdevozestranhamenteautoritário.—Suavidaestácorrendorisco.—Ora,quebobagem!Eujádisseavocê…talvezelesmeprocessem,masnadaalémdisso.— Frans, nós recebemos novas informações de uma fonte altamente confiável. Existe uma ameaça

concreta.—Comoassim?—Fransperguntou,meiodistraído.Comotelefonepresoentreoombroeaorelha,elecontinuoupesquisandosobreotalentoperdidode

Nadia.—Édifícilfazerumaavaliaçãoprecisadasinformações,masestoupreocupada.Achoquevaleapena

vocêlevaresseassuntoasério.—Tudobem.Prometoquevoutomarasprecauçõesnecessárias.Nãovousairdecasa,paravariar.

Mas,comoeudisse,estouocupadoagora,ealémdomaistenhocertezadequevocêestáenganada.NaSolifon…—Claro,claroqueeupossoestarenganada—Gabriellaointerrompeu.—Épossível.Masfaçade

contaqueeuestoucerta,estábem?Façadecontaquerealmenteexisteumrisco,pormenorqueseja,deeuestarcerta.—Tudobem,mas…—Nadade“mas”,Frans.Chegade“mas”.Meescute.Achoquevocêtemrazão.NinguémdaSolifon

representaumaameaçaàsuaintegridadefísica.Afinal,éumaempresacivilizada.Masparecequeumapessoadelá,outalvezumgrupodepessoas,temcontatocomumaorganizaçãocriminosa,comumgrupoperigosíssimoque temramificações tantonaRússiacomonaSuécia.Essaspessoaséque representamumaameaçaparavocê.Pelaprimeiravez,Fransdesviouosolhosdomonitor.ElesabiaqueZigmundEckerwald,daSolifon,

Page 73: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

haviatrabalhadocomumgrupocriminoso.Umavezatéchegouaouvirumaspalavrasemcódigosobreolíder,masnãoentendiaporqueessegrupoestariaatrásdele.Ouseráqueentendia?—Organizaçãocriminosa?—elerepetiu.—Issomesmo—prosseguiuGabriella.—Nãoélógico?Vocêmesmojádeveterpensadonisso,não?

Quandovocêroubaideiasdosoutrosparaganhardinheirocomelas,vocêultrapassaoslimites,eapartirdaíascoisastendemapiorar.—Acheiqueumbandodeadvogadosfossemaisquesuficiente.Vocêsabequecomadvogadosbem

treinadosvocêpoderoubaroquequisercomacertezadaimpunidade.Osadvogadossãoospistoleirosdaeramoderna.—Tudobem,podeser.Masescute…euaindanãorecebiumarespostasobreasuasegurançapessoal.

Enquantoessarespostanãochegar,queroquevocêfiquenumesconderijo.Estouindobuscarvocêagora.—Comoé?—Precisamosagirrápido.—Dejeitonenhum—protestouFrans.—Eue…Houveummomentodehesitação.—Hámaisalguémcomvocê?—perguntouGabriella.—Não,não.Sóqueagoranãopossoiralugarnenhum.—Vocênãoouviunadadoqueeudisse?—Ouvimuitobem.Mas,comtodoorespeito,paramimissonãopassadeespeculação.—Aespeculaçãofazpartedanaturezadeumaameaça,Frans.Essainformaçãoqueconseguimos…Eu

nãopoderiatedizeristo,mas…elaveiodeumaagentedaNSAqueestáinvestigandoessaorganizaçãocriminosa.—ANSA—elerepetiucomdesdém.—Euseiquevocêduvidadeles.—Duvidarépouco.— Tudo bem, tudo bem. Mas desta vez eles estão do seu lado, ou pelo menos a agente que me

telefonouestá.Elaéumaboapessoa.Conseguiuinterceptarinformaçõesqueapontamparaumplanodeassassinato.—Contramim?—Muitoprovavelmente.—Muitoprovavelmente?Issoparecemeiovago.Na frente do pai, August estendia a mão em direção às canetas, e Frans concentrou-se nesse

movimento.—Euvouficaraqui.—Vocêsópodeestarbrincando.—Não,não.Sevocêsreceberemmaisinformações,entãoeusaio.Masagoranão.Alémdomais,o

alarmequeaMiltonSecurityinstalouaquiemcasaéincrível.Hácâmerasesensoresportodaparte.—Vocêestáfalandosériomesmo?—Estou.Vocêsabequeeusouteimoso.—Vocêtemumaarmaemcasa?

Page 74: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Gabriella,doquevocêestá falando?Eucomumaarmaemcasa?Acoisamaisperigosaqueeutenhoaquiéumaespátuladequeijo!—Então…—Entãooquê?— Eu vou pedir que uma equipe faça a vigilância da sua casa, queira você ou não. Mas não se

preocupe.Vocênemvaipercebernada.Eseprefereinsistirnessateimosia,tenhoumconselhoparavocê.—Queconselho?—Chamea imprensa.Vaisercomoumsegurodevida.Conte tudoquesabe,assimtalveznãohaja

maisnecessidadedetiraremvocêdocaminho.—Voupensar.FranspercebeuumadistraçãorepentinanavozdeGabriella.—Alô?—eledisse.—Espereumpouco—elapediu.—Precisoatenderoutraligação.Preciso…Gabriellasumiu,eFrans,comoutrasideiasocupandosuacabeça,naqueleinstantesópensavanuma

coisa:seráqueotalentoartísticodeAugustvaidesaparecerseeuoensinarafalar?—Frans,vocêaindaestáaí?—Claro.—Infelizmenteprecisodesligar.Mas juroquevouarrumarumavigilânciaparavocêomaisrápido

possível.Ligodepois.Enãoesqueça:vocêestácorrendoperigo!Fransdesligouotelefone,soltouumsuspiroepensoudenovoemHanna,emAugust,sentadonopiso

xadrez,queserefletianoguarda-roupa,eemtudoquepareciaterpoucaimportâncianaquelemomento.Porfim,demaneiradistraída,quasecômica,balbuciou:—Estãoatrásdemim.Umapartedeleachavaqueissoerapossível,mesmoqueelesenegasseaacreditarqueoassuntofosse

acabaremviolência.Oqueelesabia,nofinaldascontas?Nada.Alémdomais,nãopodiacuidardaquilonomomento. Portanto, continuou pesquisando sobre o destino deNadia, pois pretendia descobrir quesignificadoahistóriapoderiatertambémparaavidadeseufilho.Nãoeraumaatitudemuitoprudente.Fransagiacomosenadativesseacontecido.Apesardaameaça,continuounavegandopelainternet.Logoencontrou o nome do professor de neurologia Charles Edelman, grande especialista em síndrome desavant.Emvezdecontinuarlendosobreele,comotinhaohábitodefazer—Baldersemprepreferiaaleituraàspessoas—,resolveutelefonarparaoInstitutoKarolinska.Logo se deu conta de que já era tarde. Edelman dificilmente estaria no trabalho àquela hora, e o

númeropessoaldeleeraconfidencial.Masespere…oprofessortambémeraresponsávelporumprojetochamadoEkliden,umainstituiçãoparacriançasautistascomtalentosespeciais,eFransligouparalá.Otelefonechamoudiversasvezes,atéqueumamulherqueseidentificoucomoLindros,irmãdeEdelman,atendeu.— Desculpe ligar a uma hora destas — disse Frans Balder —, mas estou tentando falar com o

professorEdelman.Poracasoeleaindaestáaí?—Está.Ninguémconseguevoltarparacasacomestetempo.Quemgostariadefalarcomele?— Frans Balder— ele respondeu, e em seguida repetiu seu nome com uma informação extra que

Page 75: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

talvezajudasse.—ProfessorFransBalder.—Ummomento—disseLindros.—Vouverseelepodeatender.BalderolhouparaAugust,quemaisumavezpegouumacanetaehesitou,eissoperturbouFranscomo

ummaupresságio.Umaorganizaçãocriminosa,elerepetiu.— Charles Edelman— disse uma voz.— Será que estou tendo mesmo o prazer de falar com o

professorFransBalder?—Sim,soueu,professor.Tenhoumpequeno…—Osenhornão imaginacomomesintohonrado—prosseguiuoprofessorEdelman.—Acabode

voltardeumaconferênciaemStanford,eláfalamosmuitoarespeitodasuapesquisasobreredesneurais.Acreditamosqueosneurologistastalvezpossamaprendermuitacoisainteressantesobreocérebrocomaspesquisassobreinteligênciaartificial.Pensamosse…—Ficomuitolisonjeado,masnaverdadeligueiparalhefazerumapergunta.—Ah,émesmo?Estáprecisandodeajudaparaassuaspesquisas?—Não, équemeu filhoé autista.Ele temoito anos, aindanão fala,masumdiadesses estávamos

paradosnumsemáforodaHornsgatane…—Sim?—Quando voltamos para casa ele começou a desenharmuito depressa, um desenho absolutamente

perfeito.Foiimpressionante!—Eosenhorgostariaqueeuanalisasseodesenhodoseufilho?—Gostariamuito.Masnãoéporissoqueestouligando.Naverdade,estoupreocupado.Liquetalvez

esses desenhos sejam uma forma de se comunicar com omundo exterior e que talvez ele perca essacapacidadeseaprenderafalar.Quetalvezumalinguagemsejasubstituídaporoutra.—SemdúvidaosenhorandoulendosobreNadia.—Comoosenhorsabe?—Porqueemcasosassimela sempreémencionada.Mas tenhacalma,Frans…possochamá-lode

Frans?—Claro.—Muito bem, Frans. Estou feliz por você ter ligado e garanto que você não temmotivo para se

preocupar.Pelocontrário:Nadiafoiaexceçãoqueconfirmaaregra,nadamais.Todososdemaisestudosdemonstramqueodesenvolvimentodalinguagemfazafloraraindamaisostalentosdossavants.ComoaconteceunocasodeStephenWiltshire,porexemplo.Vocêleusobreele?—OmeninoquedesenhouLondres.—Issomesmo.Eleteveumenormedesenvolvimentoemtodososaspectos,nãoapenasartístico,mas

tambémintelectualelinguístico.Hojeéconsideradoumgrandeartista.Entãonãosepreocupe,Frans.Defatopodeacontecerdeumacriançasavantperdero talento,masnamaioriadasvezesarazãoéoutra.Elassimplesmenteseaborrecemouentãopassamporalgumaoutrasituaçãotraumática.VocêdevesaberqueaNadiatambémperdeuamãenamesmaépoca.—Sei.—Pode ter sido essa a verdadeira razão.Claro que nem eu nem ninguém pode ter certeza,mas é

difícilqueessaperdadacapacidadeartísticatenhaocorridoporcausadaaquisiçãodalinguagem.Não

Page 76: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

existepraticamentenenhumrelatodecasossemelhantes,enãoafirmo issoapenasporqueéahipótesecientíficaqueeuapoio.Hojeexisteoconsensodequeossavantssótêmaganharquandodesenvolvemoutrashabilidadesintelectuais.—Osenhorestáfalandosério?—Claro.—Eletambémtemumtalentocomnúmeros.—Émesmo?—CharlesEdelmanexclamou.—Porquê?— Porque num savant a combinação de talento artístico com talentomatemático é rara. São duas

habilidadesquasesemnenhumarelação,eacredita-sequeumaatépossabloquearaoutra.— Bem, mas é o que acontece com o meu filho. Os desenhos dele têm um aspecto de precisão

geométrica,comosetodasasproporçõesestivessemcalculadasdemaneiracorreta.—Muitointeressante.Quandopossoveroseufilho?—Nãoseiaocerto.Anteseuqueriapedirumconselho.—Entãomeu conselho é: aposte nomenino.Estimule-o. Permita que ele desenvolva todas as suas

habilidadesaomáximo.—Eu…Franssentiuumnónopeitoetevedificuldadeparaencontraraspalavras.—Euqueriaagradeceraosenhor—elecontinuou.—Agradecerdeverdade.Masagoraeupreciso…

—balbuciouFrans,semsabercomocontinuar.—Muitoobrigadoeatéapróxima.—Denada.Esperomaisnotíciasembreve.Fransdesligouepermaneceualgumtempodebraçoscruzados,olhandoparaAugust,queseguravaa

canetaamarelacomexpressãohesitanteenquantomantinhaosolhosfixosnalamparinadequerosene.Noinstanteseguinte,umarrepiopercorreuascostasdeFransBalder,ederepentevieramaslágrimas.MuitosepodiadizerdeBalder,menosqueelefossehomemdesecomoverfacilmente.Fransnãoselembravamaisdaúltimavezquehaviachorado.Nãochorounemaoperderamãeenunca

chorava quando lia notícias tristes ou presenciava acontecimentos desse tipo— considerava-se umaverdadeirarocha.Masnaquelemomento,aoverofilhocercadodeumaporçãodecanetaselápisdecor,o professor chorou como ummenino, simplesmente permitindo que as emoções tomassem conta dele,graçastalvezàspalavrasdeCharlesEdelman.Augustpoderiaaprenderafalarecontinuardesenhando,oqueeraumaperspectivaesplêndida.Mas

claroqueFransnãoestavachorandoapenasporisso.TambémhaviaodramadaSolifon.Aameaçademorte.OssegredosqueeleguardavaeodesejoporHanna,porFarahouporquemquerquepreenchesseovazioquetinhanopeito.—Meufilho!—eledisse,eestavatãocomovidoquenempercebeuateladonotebookseacendere

mostrarimagensdeumadascâmerasdesegurançaqueelehaviamandadoinstalarpelacasatoda.Nopátio,sobachuvatorrencial,haviaumhomemdejaquetadecouroebonécinzacomaabavirada

parabaixoparaesconderorosto.Quemquerqueelefosse,sabiaqueestavasendofilmado,emesmosuafiguramagraeesbelta semovimentavademaneiracambaleantee teatral, sugerindoumpesopesadoacaminhodoringue.

Page 77: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

GabriellaGraneestavanasaladaSäpopesquisandona internetenosregistrosdogoverno.Mesmo

assim,nãoconseguiuasinformaçõesqueprocuravaporque,paradizeraverdade,elanãosabiabemoqueestavabuscando.Masumsentimentonovoepreocupanteacorroíapordentro—umsentimentovagoeobscuro.SuaconversacomBaldertinhasidointerrompidaporHelenaKraft,achefedaSäpo,eoassuntoerao

mesmoqueodaúltimavez.AlonaCasales,daNSA,queriafalarcomela;adiferençaeraqueagoraAlonapareciamaiscalmaeumpoucomaissedutora.—Conseguiramarrumaroscomputadoresdevocês?—perguntouGabriella.—Ah…foiumcircoetanto.Masnofimachoquenãohouvenadademais,epeçodesculpasporter

sidomeioenigmáticanonossoúltimocontato.Etambémpeçodesculpasadiantadasseeupassaramesmaimpressão agora.Masquerooferecer umpoucomais a você, e enfatizar que, de acordo comaminhaavaliação,aameaçaaoprofessorBalderérealedeveserlevadaasério,mesmoqueagentenãotenhacertezadenada.Vocêstomaramalgumaprovidência?—EuconverseicomoBalder,maselesenegaadeixaracasa.Dissequeestavaocupado.Masvou

solicitarproteção.— Ótimo. Como você deve imaginar, eu também fiz mais do que bisbilhotar um pouco. Estou

realmente impressionada, srta. Grane. Não acha que alguém como você devia estar trabalhando noGoldmanSachseganhandomilhões?—Nãofazomeuestilo.—Nemomeu.Eunãorecusariaodinheiro,masacontecequeessabisbilhoticemalpagatemmaisa

vercomaminhapersonalidade.Masagorameescute:noquenosdizrespeito,esseassuntonãotemmuitaimportância…oqueameuveréumerrodeavaliação.Enãosóporqueestouconvencidadequeessegrupo representa uma ameaça aos interesses econômicos da nação. Também acredito que hajaenvolvimento político. Um daqueles engenheiros de computação que mencionei, um sujeito chamadoAnatoliChabarov, tem ligações comumconhecidomembrodaAssembleiaLegislativa russa chamadoIvanGribanov,queéumgrandeacionistadaGazprom.—Sei.—Oquetemosporenquantosãováriasinformaçõessoltas,epasseiumbomtempotentandodescobrir

queméoresponsávelportodaessaintriga.—Thanos.—Ouaresponsável.—Vocêachaquepodeserumamulher?— Acho, mas também posso estar errada, porque esse tipo de organização criminosa costuma se

aproveitardasmulheres,enãocolocá-lasemposiçõesdeliderança.—Entãooquealevaapensarquepodeserumamulher?—Umsentimentodereverência,porassimdizer.Falamdessapessoadamesmaformaqueoshomens

falamdasmulheresqueelesdesejameadmiram.—Seriaalguémmuitobonito,então?

Page 78: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Éoqueparece,mastalvezeuapenastenhafarejadoumpoucodehomoerotismo.Ninguémficariamaisfelizdoqueeuseosgângsteresemandachuvasrussosseenvolvessemumpoucomaiscomessetipodecoisa.—Ah,éverdade!—Estoufalandodesseassuntoparaquevocêmantenhaamenteabertacasoessabagunçaacabeindo

parar nas suas mãos. Também há advogados envolvidos. Sempre há advogados envolvidos, não émesmo?Oshackersroubameosadvogadoslegitimamoroubo.OquefoimesmoqueoBalderdisse?—Queapenassomosiguaissepagamosdemaneiraigual.—Issomesmo.Hojeemdia,quem temumbomadvogadopode seapropriardoquebementender.

Você conhece o escritório de advocacia Dackstone & Partner, que está processando o Balder, nãoconhece?—Claro.—Entãovocêsabequeoescritóriodeles tambéméprocuradoporempresasde tecnologia,quando

precisamdarumaliçãoeminventoreseinovadoresqueesperamreceberunstrocadosporsuascriações.—Comcerteza.FoioqueeuaprendiquandoestávamoslidandocomosprocessosdoinventorHåkan

Lans.—Quehistóriaterrível,não?OmaisinteressanteéqueoDackstone&Partnertambémémencionado

numadaspoucasconversasda redecriminosaqueconseguimos rastrear edescriptografar,mesmoquenasgravaçõeselesejachamadoapenasdeD.P.ouD.—EntãoaSolifoneessescanalhastêmosmesmosadvogados.—Enãoésóisso.AgoraoDackstone&PartnervaiabrirumescritórioemEstocolmo,esabecomo

descobrimos?—Não—respondeuGabriella,sentindo-secadavezmaisestressada.QueriaencerraraconversadepressaesolicitarproteçãoparaBalder.—Investigandoessaorganização—prosseguiuAlona.—FoioChabarovquemtocounoassunto,o

quemostraqueaorganização tem laçospróximoscomoDackstone&Partner.Afinal, eles sabiamdaaberturadonovoescritórioantesqueainformaçãosetornassepública.—Émesmo?—É.EemEstocolmooDackstone&PartnervaitrabalharcomumsuecochamadoKennyBrodin,um

ex-advogadocriminalistaqueeraconhecidoporsermuitopróximodeseusclientes.—UmavezosjornaisvespertinospublicaramumafotodoKennyBrodincomgângsteresecomuma

garotadeprograma—disseGabriella.—Euvi.AchoqueBrodinpodeserumbomcomeçosequisermosinvestigaressahistóriatodamais

deperto.Talvezsejaoeloentreomundofinanceiroeessaorganizaçãocriminosa.—Voudarumaolhadanisso—disseGabriella.—Agoraprecisoresolveroutrascoisas.Nosfalamos

depois.EmseguidaGabriellatelefonouparaodepartamentodeproteçãopessoaldaSäpoefoiatendidapor

ninguémmenosqueStigYttergren,oquenãotornouascoisasnadafáceis.StigYttergrentinhasessentaanos, era corpulento egostavadebeberumpouco alémda conta ede jogarpaciênciana internet.Àsvezeserachamadode“SenhorNadaaFazer”,porissoGabriellafaloucomeledaformamaisassertiva

Page 79: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

possível,exigindoqueoprofessorFransBalder,deSaltsjöbaden,estivessesobproteçãoomaisrápidopossível.StigYttergren respondeucomosempre,dizendoque tudoseriamuitocomplicado,que talveznão fosse possível, e quandoGabriella ressaltou que aquela era uma ordemde ninguémmenos que achefedaSäpoeleresmungoualgumacoisaquenamelhordashipótesesincluíaum“malcomida”.—Voufingirquenãoouvi—eladisse.—Tratedeprovidenciar tudoomaisrápidopossível—o

que, claro, não aconteceu.Enquanto aguardava, tamborilando os dedos namesa,Gabriella começou aprocurar informações sobre o escritório Dackstone & Partner e sobre as coisas que Alona tinhamencionado,enesseinstanteumasensaçãofamiliaraincomodou.Masnadapareciafazersentido,eantesqueelachegasseaalgumaconclusão,StigYttergrentelefonou

com a notícia nemumpouco surpreendente de que não havia ninguémdisponível no departamento deproteçãopessoal.Estavamtodosàsvoltascomafamíliareal,trabalhandonumespetáculoquetinhacomoconvidadosopríncipeeaprincesadaNoruega,alémdomaisalguémhaviaconseguidojogarumcopodeleite na cabeça do líder doPartidoDemocrataSverigedemokraterna semqueos seguranças pudessemimpedir,oqueexigiuumaumentodepessoalparaodiscursodeleemSödertälje.Mesmoassim,Yttergrendisseterconseguido“doispoliciaisincríveis”,chamadosPeterBlomeDan

Flinck, e que Gabriella devia se dar por satisfeita. Esses sobrenomes lhe lembraram os personagensKlingeKlangdoslivrosdeAstridLindgreneafizeramterummaupressentimento.MaslogoGabriellaseirritouconsigomesma.Eratípicodegentecomoelajulgarosoutrossópelonome.Fariamaissentidoelasepreocuparseeles

tivessem sobrenomes pomposos, como Gyllentofs. Nesse caso, sem dúvida seriam degenerados erelapsos.Estáótimoassim,elapensou,deixandoasapreensõesdelado.Gabriellavoltouaotrabalho.Seriaumanoitelonga.

Page 80: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

9.MADRUGADADE21DENOVEMBRO

Lisbeth acordou atravessada na imensa camade casal e lembrouque tinha sonhado comopai.Umsentimentoameaçadoraenvolviacomoumvéu.Masemseguidaselembroudanoiteanterioreconcluiuquedeviaserumareaçãoquímicadocorpo.Estavaderessacaeselevantoucomaspernasaindabambasparairvomitarnoenormebanheirodemármoreequipadocombanheiradehidromassagemetodasessasidioticesdosricos.Masapenasseajoelhouecomeçouarespirarfundo.Depoisdealgumtemposelevantoueseolhounoespelho,oquenãofoimuitoanimador.Seusolhos

estavamvermelhos.Malpassavadameia-noite.Nãopodiaterdormidosóumaspoucashoras.Aosairdobanheiro,pegouumcopoeoencheucomágua.Nomesmoinstante,aslembrançasdosonhovoltaram,eLisbethapertoucomforçaocopoqueseguravaesecortounosestilhaços.Osanguepingounoassoalhoeelasoltouumpalavrãoaoperceberquenãoiriamaisconseguirdormir.Seráquedeviatentardescriptografaroarquivoquehaviabaixadonodiaanterior?Não,nãovaliaa

pena,pelomenosnãonaqueleinstante.Lisbethenrolouumcurativonamão,foiatéaestantedelivrosepegouomaisrecenteestudodapesquisadoradePrincetonJulieTammetnoqualeladescreviaocolapsoeatransformaçãodasestrelasemburacosnegros.DepoissedeitounosofávermelhoqueficavajuntoàjanelacomvistaparaSlusseneolagodeRiddarfjärden.Lisbethsesentiuumpoucomelhorassimquecomeçoualer.Osanguedamãopingavanaspáginase

suacabeçanãoparavadelatejar.Mesmoassimsedeixoulevarpelaleituraedevezemquandofaziaumaanotaçãonamargem.Sabiamelhordoqueamaioriadaspessoasqueumaestrelasemantémvivagraçasaduasforçasopostas—asexplosõesnuclearesemseu interior,quea levama tentarseexpandir,eaforçadagravidade,queassegurasuaintegridadeestrutural.Lisbethviaissocomoumcabodeguerraquepassamilhões de anos empatado e que apenas no fim, depois que o combustível nuclear acaba e asexplosõesperdemforça,achegaaoinevitávelvencedor.Quandoagravidadevence,ocorpocelesteencolhe,comoumbalãoqueperdearesetornacadavez

menor.Dessemodo,umaestrelapodese transformarempoucomaisdoquenada.Comumaelegânciaincrível,descritapelafórmula

ondeG é a força da gravidade,KarlSchwarzschild descreveu, durante aPrimeiraGuerraMundial, oestágioemqueagravidadedeumaestrelasetornaforteosuficienteparaquenemmesmoaluzescape,e

Page 81: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

apartirdessepontonãohámaisvolta.Umavezatingidoesseestágio,ocorpocelesteestá fadadoaocolapso.Cadaátomoqueocompõeéatraídoparadentro, rumoaumpontosingularondeo tempoeoespaçocessamdeexistireondeprovavelmentecoisasaindamaisestranhasocorrem—ummomentodepurairracionalidadenumuniversoregular.Essa singularidade, que talvez seja mais um acontecimento do que um simples ponto, uma última

paradaparatodasasleisdafísica,écercadapelohorizontedeeventos,surgindoassimumburaconegro.Lisbethgostavadosburacosnegros.Sentiaumacertafamiliaridadecomeles.Lisbeth não se interessava pelos buracos negros em si, como Julie Tammet,mas pelo processo de

formação deles e, acima de tudo, pelo fato de o colapso das estrelas começar na extensa parte douniversoquepodeserexplicadapelateoriadarelatividadedeEinsteinmasterminarnodiminutomundoregidopelosprincípiosdamecânicaquântica.Lisbethcontinuouconvencidadeque,sepudessedescreveresseprocesso,tambémpoderiaunificaras

duaslínguasirreconciliáveisdouniverso—ateoriadarelatividadeeafísicaquântica.Mascomoissoestava além de suas capacidades, exatamente como aquela maldita criptografia, ela, inevitavelmente,voltouapensaremseupai.DuranteainfânciadeLisbeth,eletinhaviolentadosuamãerepetidasvezes.Asviolaçõescontinuaram

atéamãecomeçarasofrerdetremoresincuráveiseaprópriaLisbeth,comdozeanos,resolverrevidarcomumaviolência assombrosa.Naépoca, ameninanão sabiaqueopai eraumdissidentedoGRU, aagênciamilitardeinformaçõesdaantigaUniãoSoviética,emenosaindaqueumasubdivisãodaSäpo,conhecidacomoSeção,ohaviaprotegidoporumaltopreço.Mesmoassim,elajápercebiaqueumaaurademistériocercavaopai—umasombradaqualninguémpodiaseaproximarecujaexistêncianinguémpodiaapontar.Umasombraqueencobriaonomedele.Emtodasascartasemensagensendereçadasaele,constavaonomeKarlAxelBodin,easpessoaso

chamavamdeKarl.MasafamíliaquemoravanaruaLundagatansabiaqueesseeraumpseudônimoequeoverdadeironomedeleeraZala,ouAlexanderZalachenko.Eleeraumhomemcapazdeaterrorizaraspessoascompequenascoisase,alémdisso,pareciacobertoporummantodeinvencibilidade—oupelomenoseraassimqueLisbethpensavanaépoca.Mesmo sem conhecer o segredo do pai, ela já tinha percebido que ele podia fazer o que bem

entendesse semsofrernenhum tipodeconsequência—umdosmotivosparaqueele emanasseaquelaterrível aura de grandiosidade. Era uma pessoa da qual não havia possibilidade de se aproximar demaneiranormal,eele tinhaplenaconsciênciadisso.Outrospaispodiamserdenunciadosàpolíciaeaoutras autoridades sociais. Mas Zala tinha à disposição forças que estavam acima de todas essasinstituições,eosonhofezLisbethlembrardodiaemqueencontrouamãejásemvidanochãoeresolveudarsozinhaumjeitonopai.Essadecisãotinhasidoumdosdoisburacosnegrosdesuavida.Oalarmedisparouà1h18eFransBalderacordousobressaltado.Seráquehaviaalguémnacasa?O

professorsentiuummedoinexplicávele,aindanacama,estendeuamão.Augustestavaaseulado.Comosempreomeninodeviateridodemansinhoparaacamadopaienaqueleinstantechoramingavacomose

Page 82: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

obarulhotivesseinvadidoseussonhos.Meufilho,pensouFrans.Entãosentiuocorposeenrijecer.Teriamesmoouvidopassos?Não, com certeza tinha sido apenas uma impressão equivocada. Era impossível ouvir algum ruído

enquanto o alarme soava. Frans lançou um olhar preocupado para a tempestade que caía lá fora. Elapareciamaisfortedoqueantes.Asondasquebravamcomforçanocaisenabeiradapraia.Asjanelassacudiamebatiamcomas rajadasdevento.Aventania teriadisparadooalarme?Talvez fosseessaaexplicação.Mesmoassimserianecessáriodarumaolhadaepedirajudasefossenecessário,paraentãoversea

proteçãoqueGabriellahaviaprometidorealmentehaviachegado.Doispoliciaisestavamacaminhodelá fazia horas. Era cômico. Foram atrasados pelo mau tempo e por uma série de outras ordensconflitantes:Venhamajudarcomistoeaquilo!Semprehaviaumacoisaououtra,eFransporfimtinhaconcordadocomGabriella—aquiloprovocavaumsentimentoindeléveldeincompetência.Mas esses detalhes ficariam para depois. Omomento era de telefonar e pedir ajuda. August tinha

acordado,oupodiaacordar,eFranssentiaqueprecisavaagirdepressa.Aúltimacoisaquedesejavaeravê-lohistérico,batendoocorpocontraacama.Osprotetoresdeouvido,pensouFrans.OsprotetoresdeouvidoverdesquehaviacompradoemFrankfurt.Frans pegou os protetores na gaveta do criado-mudo e os pôs com cuidado nos ouvidos do filho.

Depois o ajeitou na cama, beijou seu rosto e acariciou seu cabelo volumoso e cacheado. Por fim,certificou-se de que a gola do pijama estava bem dobrada e a cabeça confortavelmente apoiada notravesseiro.Quesituaçãomaisinconcebível.Fransestavacommedoeapressado,oupelomenosdeveriaestar.Apesardisso,tentoufazermovimentosvagarososaoseocupardofilho.Talvezumsentimentalismoem

meioàtensão.OuentãoFranstentavaretardaroencontrocomoquequerqueoaguardasseláfora.Poruminstantedesejouterumaarma,emboranãotivesseamenorideiadecomousá-la.Fransnãopassavadeumprogramadorinútilqueatépoucotempoantesquasenãotinhadentrodesio

sentimentodapaternidade.Elenãodeviateracabadonomeiodetodaaquelaconfusão.QueaSolifon,aNSAetodasasorganizaçõescriminosasfossemparaoinferno!Masnomomentonãohavianadaafazersenãoenfrentarasituação.Assim,compassoshesitanteseinseguros,Fransfoiatéocorredore,antesdequalquer coisa, atémesmo de olhar para fora, desligou o alarme.O barulho o havia deixado com osnervosàflordapele,ecomosilênciorepentinoqueveioaseguir,eleficouparadonocorredor,incapazdefazermaisnada.Logoseucelulartocoue,apesardosusto,sentiu-segratoporaquelainterrupção.—Alô?—eledisse.—AquiéJonasAnderberg,daMiltonSecurity.Estátudobemporaí?—Tudo,eu…achoquesim.Oalarmedisparou.—Eusei.Deacordocomasnossas instruções,nessecasovocêsdevem irparaa salaespecialdo

porãoetrancaraporta.Vocêsjáestãonoporão?—Já—Fransmentiu.—Ótimo.Ejásabemoqueaconteceu?—Não.Euacordeicomoalarme.Nãofaçoideiadoquepodeterfeitoeledisparar.Seráquefoia

tempestade?

Page 83: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Dificilmente,mas…espereumpouco.Apartirdesseinstante,avozdeJonasAnderbergpassouatransmitiralgumaindecisão,umacertafalta

deconcentração.—Oquefoi?—Fransperguntou,nervoso.—Pareceque…—Putaquepariu,faledeumavez!Estouapavorado.— Desculpe, por favor mantenha a calma… estou dando uma olhada nas imagens gravadas pelas

câmerasdasuacasaepareceque…—Queoquê?—Quevocêstêmvisita.Umhomem…enfim,vocêsmesmosvãoverdepois.Umhomemdeaparência

normal,óculosescuros,boné,bisbilhotandoasuapropriedade.Jáesteveaíduasvezes,peloqueestouvendo,apesar…apesardeeuteracabadodedescobririsso.Precisoexaminarmelhorasimagensparaobtermaisinformações.—Comoéessehomem?—Nãoéfácildizer.JonasAnderbergdeuaimpressãodeestarrevendoasimagens.—Talvez,nãosei…não,nãoseriabomfazerespeculaçõesagora—prosseguiu.—Porfavor—pediuFrans.—Precisodealgumacoisamaisconcreta.Nemquesejaapenasparaeu

meacalmar.—Tudobem.Nessecasopossodizerquepelomenosumdetalhepodenosdeixarumpoucomenos

preocupados.—Equedetalheéesse?—Amaneira de andar desse homem.Parece um junkie que acabou de tomar umadose cavalar de

heroína. Os movimentos dele são exagerados, então pode ser apenas um viciado atrás de algo pararoubar.Sóque…—Oquê?—Elemantémorostoescondidootempointeiroe…Jonasficouquietodenovo.—Fale!—Espereumpouco.—Vocêestámedeixandonervoso,sabia?—Nãoéaminhaintenção.Massaibaque…OcorpodeBalderenrijeceu.Eleouviuobarulhodomotordeumcarronaentradadagaragem.—…vocêstêmvisita.—Oqueeufaço?—Fiquemondeestão.— Está bem— disse Frans, paralisado, num lugar totalmente diferente de onde Jonas Anderberg

supunhaqueosdoisestivessem.

Page 84: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Quando seu celular tocou, à 1h58,MikaelBlomkvist ainda estava acordado,mas como o aparelhohaviaficadonobolsodasuacalça jeans jogadanochão,elenãoconseguiuatendera tempo.Alémdomais,eraumnúmeronãoidentificado,oqueofezpraguejarevoltarparaacama.Desejavamuitonãopassarmaisumanoiteemclaro.DesdequeErikatinhaadormecido,poucoantes

dameia-noite,Mikael se revirara na cama refletindo sobre suavida, semque aquilo lhe fizessebem.Nem mesmo quando pensou em seu relacionamento com Erika. Ele a amava fazia décadas, e nadaindicavaqueosentimentodelaporelefossediferente.Mesmoassimascoisasnãoeramtãosimples,etalvezMikaelhouvessecomeçadoaseidentificarum

pouco comLars. LarsBeckman era o artista plástico comquemErika era casada, e ninguémpoderiatachá-lo de ciumento ou mesquinho. Pelo contrário: quando percebeu que Erika jamais conseguiriaesquecerMikaelousemanterlongedacamadele,LarsnãofezescândalonemameaçousemudarcomamulherparaaChina.Simplesmentepropôsumacordo:—Vocêpodeficarcomelesequiser…desdequesemprevolteparamim.Juntoselesviviamumaespéciedeménageàtrois,umavezqueErikaemgeraldormiaemcasacom

Lars, emSaltsjöbaden,eàsvezescomMikaelnaBellmansgatan.PoranosBlomkvist realmenteachouqueaquelaeraumasoluçãoincrível,otipodesaídaqueoutroscasaisquesofremcomaditaduradavidaa dois podiam adotar commais frequência. Todas as vezes que Erika dizia “Amo aindamais omeumaridoporqueelemedeixaficarcomvocê”,ouquandonumeventoqualquerLarscolocavaobraçoaoredordeMikael,numabraçofraterno,Blomkvistagradeciaasuaboaestrelapelasortedaquelearranjo.Nosúltimostempos,porém,elehaviacomeçadoaquestionartudoisso,talvezporquedispusessede

maistempopararefletirsobreavida,etinhachegadoàconclusãodequeascoisasqueparecemfeitasemcomumacordonemsempresãoassim.Porvezes,umadaspartespode imporumacondiçãosobamáscaradeumadecisãoemcomum,ea

longo prazo quase sempre acaba ficando evidente que alguém cedeu, apesar de todas as garantias emcontrário.AconversaqueErikahavia tidocomLarsnaquelanoitenão tinhasidoexatamente recebidacomaplausos.Talvezeletambémestivessepassandoumanoiteemclaro.Mikaelseesforçouparapensaremoutracoisa.Poralgumtempo,tentouseentregaradevaneios,mas

como issonãoajudoumuitopor fimse levantou,decididoa fazeralgosensato.Porquenão ler sobreespionagemindustrialouentãopensarnumplanofinanceiroalternativoparaaMillennium?Elesevestiu,sentoudiantedocomputadoreolhouseuse-mails.Comosempre,amaioriaiaparaolixo,mesmoquealgunsservissemparalhedarumpoucodeânimo.

Erammensagens de Christer,Monika, Andrei Zander e Harriet Vanger, oferecendo apoio na iminentebatalhadeMikael contra aSerner, e ele respondeu a todos exagerandoo furor que sentia.Depois foiolharnapastadeLisbeth,massemesperarnada.EentãoosemblantedeMikaelseiluminou.Elahaviarespondido!Depoisdeumaeternidade,elatinhadadoumsinaldevida:AinteligênciadeBaldernãotemnadadeartificial.Porfalarnisso,comovaiasua?E,Blomkvist,oquevaiacontecersecriarmosumamáquinamaisinteligentedoquenós?MikaelsorriuecomeçouaselembrardoúltimoencontroquetevecomLisbethnoKaffebardaSankt

Paulsgatan,portantodemorouumpoucoparaperceberquenamensagemdelahaviaduasperguntas—aprimeira,umaprovocaçãoamigável,queinfelizmentetinhalásuapontadeverdade.OqueMikaelvinha

Page 85: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

escrevendonarevistanosúltimos temposcareciamesmode inteligênciaeoriginalidade.Comomuitosoutros jornalistas, ele trabalhava apenas com conceitos e informações cuidadosamente apurados,garantidos.Ainda assim as coisas estavam como estavam.Em seguida, começou a pensar na segundapergunta deLisbeth, umpequeno enigma, não porque tivesse grande interesse na questão,mas porquequeriaresponderdeformaespirituosa.Secriarmosumamáquinamaisinteligentedoquenós,pensouMikael,oquevaiacontecer?Foiatéa

cozinha,abriuumaáguamineralRamlösaesentou-seàmesa.Noandardebaixoasra.Gernertossiaenoburburinho da cidade a sirene de uma ambulância abria espaço em meio à tempestade. Bem, elerespondeu,nessecasovamosterumamáquinacapazderealizartodasascoisasinteligentesdequesomoscapazes, além de outras, como… Mikael riu alto e só então entendeu a intenção da pergunta. Umamáquinadessastambémseriacapazdecriarumamáquinamaisinteligentedoqueelamesma—eoqueaconteceriadepoisdisso?Naturalmenteanovamáquinatambémseriacapazdecriarumamáquinamaisinteligentedoqueela,e

omesmoaconteceriacomamáquinaseguinte,easeguinte,eaqueviriadepoisdesta,elogoaorigemdetudo — a raça humana — não passaria de um ratinho de laboratório para o último computador. Oresultado seria uma explosão descontrolada de inteligência, comonos filmes da sérieMatrix.Mikaelsorriu,voltouaocomputadorerespondeu:SecriarmosumamáquinadessaspassaremosavivernummundoondenemmesmoLisbethSalander

vaisertãoincrívelassim.Depoiscontinuouporalgumtemposentadoemsilêncio,tentandoenxergaroqueerapossívelatravés

danevascaquecaía lá foraedevezemquando lançandoumolharparaooutro ladodaportaaberta,onde Erika dormia um sono pesado, sem pensar em máquinas que vão se tornando mais e maisinteligentesqueohomem,oupelomenossemsepreocuparcomissonaquelemomento.PorfimMikaelpegouseucelular.Tinhaaimpressãodeterouvidoumsomvindodeleantes,edefatoencontrouumanovamensagemde

voz,oqueodeixouumpoucoapreensivo.Anãoserporex-namoradasquetelefonambêbadasàprocurade sexo, notícias que chegam demadrugada costumam ser ruins.Mikael ouviu-a de imediato. A vozpareciaacuada:MeunomeéFransBalder.Seiqueéfaltadeeducaçãoligaraestahora.Desculpe.Maséqueestou

numa situação crítica, ou pelomenos é assim queme sinto, e acabo de saber que você quer falarcomigo, o queme pareceu uma coincidência um tanto conveniente. Sei de coisas que quero contarpara alguém há um certo tempo e que talvez possam te interessar. Seria bom se você entrasse emcontatocomigoomaisrápidopossível,poisachoquenãotenhomuitotempo.Emseguida,FransBalderdeixouumnúmerodetelefoneeumendereçodee-mail.Mikaeltomounotae

ficoualgumtempoparado,tamborilandoosdedosnamesadacozinha,atéresolverligar.FransBalderestavanacama,encurraladoecommedo,emborajásesentisseumpoucomaiscalmo.O

carroqueeletinhaouvidonaentradadesuagaragemeraatãoesperadaproteçãopolicial:doishomenscomcercadetrintaanos,umaltoeooutrobaixo.Ambospareciamumpoucoorgulhososdesieusavamo

Page 86: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

mesmocortedecabelo.Masforameducadosesedesculparampeloatraso.—FomosmandadosaquipelaMiltonSecurityepelaGabriellaGrane—elesexplicaram.Tudoindicavaqueumhomemdebonéeóculosescuroshaviaandadoporalibisbilhotandoopátioda

casa,porissoospoliciaisprecisavamficaratentoseatérecusaramoconviteparatomarumaxícaradechánacozinha.Queriaminspecionarolocal,eFransachouissobastanteprofissionalesensato.Emboranão tivesse tido uma impressão muito boa dos homens, também não teve nenhuma impressão muitonegativa.AnotouosnúmerosdostelefonesdelesevoltouparaacamaeparaAugust,queaindadormiaencolhidocomseusprotetoresdeouvidoverdes.EvidentementeFransnãoconseguiudormir.Ficououvindoossonsdatempestade,eporfimsesentou

na cama. Precisava fazer alguma coisa, senão enlouqueceria. Resolveu ouvir as mensagens da caixapostal do seu celular. Dois recados de Linus Brandell, que parecia ao mesmo tempo irritado e nadefensiva,deixaramFranscomvontadededesligar.NãoiaaguentarouvirasladainhasdeLinusnaquelahora.Mas em seguida ele descobriu duas coisas interessantes. Linus tinha conversado com Mikael

Blomkvist, da revistaMillennium, e Blomkvist queria falar com ele. Frans ficou pensativo. MikaelBlomkvist,elebalbuciou.Seráqueelepodeseromeuelementodeligaçãocomomundo?Frans Balder não conhecia muito bem o meio jornalístico sueco, porém sabia quem era Mikael

Blomkvistequeeleeraumrepórterqueiafundonasinvestigações,semcederanenhumtipodepressão.Entretanto,nadadissoeraumagarantiadequeelefosseapessoacertaparaotrabalho.Fransselembroudequetambémtinhaouvidocoisasnãomuitolisonjeirassobreeleeselevantouparatelefonardenovopara Gabriella Grane, que conhecia bem o ambiente midiático e havia dito que ia passar a noiteacordada.—Alô?—ela disse, atendendo já nos primeiros toques.—Eu iamesmo te ligar.Estouvendo as

imagens que as câmeras de segurança captaram do homem que esteve aí. Temos que tirar vocês daídepressa.—MeuDeus,Gabriella,ospoliciaisjáestãoaquivigiandoaentrada!—Oseuvisitantenãoprecisanecessariamenteusaraporta.—Masporquevocêachaqueelevoltaria?OpessoaldaMiltondissequeelepareciamaisumvelho

drogado.— Não estou muito convencida disso. Ele deu a impressão de estar com uma maleta. É melhor

prevenirdoqueremediar.FransolhouparaAugust.—Amanhãeusaio.Talvezatéváfazerbemparaosmeusnervos.Masagora,ànoite,eunãovoufazer

nada.Ospoliciaisquevocêmandoudãoaimpressãodeserbemprofissionais,etambémsimpáticos.—Vocêquerbancaroteimosodenovo?—Quero.—Estácerto.EntãovoupedirqueoFlinckeoBlomfiquemdeolhonasuapropriedade.—Ótimo,masnãoligueiporcausadisso.Vocêtinhameditoparaeucontartudoqueseiparaalguém

daimprensa,lembra?

Page 87: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Lembro,claro…NãoéumconselhoqueaSäpocostumadar,sabia?Masachoquepodeserumaboaideia.Sóqueprimeiroeugostariaquevocêcontasseoquesabeparanós.Estoucomeçandoaterummaupressentimentosobreessahistóriatoda.— Então podemos conversar amanhã de manhã, quando estivermos descansados. E me diga uma

coisa…Oquevocê achadoMikaelBlomkvist, daMillennium?Será que ele poderia ser umcontatointeressanteparamim?Gabrielladeuumagargalhada.—Sevocêquiserqueosmeuscolegastenhamuminfarto,comcertezaéamelhorescolha.—Eleétãoruimassim?—AquinaSäpoaspessoasoabominam.CostumamdizerqueseoMikaelBlomkvistaparecernasua

porta,oseuanoestáarruinado.Todomundoaqui,inclusiveaHelenaKraft,aconselhariavocêadeixaressaideiapralá.—Maseuestouperguntandoavocê.—Bom,nessecasoeudigoqueachoumaótimaideia.OBlomkvistéumjornalistaexcelente.—Maseletambémnãoandourecebendocríticas?— Claro. Nos últimos tempos andam dizendo que ele está ultrapassado, que nunca escreve nada

positivo,ousejalácomoachamquesedeveescrever.Maseleéumgranderepórterinvestigativoàmodaantiga.Vocêtemcomoentraremcontatocomele?—Umex-assistentemeumedeuotelefonedele.—Ótimo.Masantesvocêtemquecontartudoparanós.Promete?—Prometo,Gabriella.Agoravoutentardormirumashoras.—Tudobem.EuvouficaremcontatocomoFlinckeoBlometambémarranjarumlugarseguropara

vocêirdemanhã.Depois que desligou, Frans Balder tentou se acalmar. Mas era impossível, e a tempestade que

desabava na rua despertava pensamentos obsessivos nele. Era como se alguma coisa estivesseatravessandoomar lá fora evindo emdireção a ele.Pormaisque evitasse, não conseguiadeixar deprestar atenção em todos os ruídos estranhos à sua volta, o que o deixava ainda mais inquieto eperturbado.HaviaprometidoaGabriellacontartudoquesabiaprimeiroàSäpo,maspassadoalgumtemposentiu

queascoisasnãopodiamesperar.Tudoqueeleguardavaconsigolutavaparasair,mesmoqueisso,semdúvida,nãopassassedeumsentimentoirracional.Nadapodiasertãourgente.Eramadrugadae,apesardoqueGabriellatinhadito,eleestavamaissegurodoquenunca.Contavacomaproteçãodospoliciaisedeumsistemade alarmedeúltimageração.Masnadadisso adiantava, ele sabia.Estavamatrásdele.FranspegouonúmeroqueLinushavialhedadoetelefonouparaMikaelBlomkvist,queobviamentenãoatendeu.Porqueatenderia?Eramuitotarde.EntãoFransdeixouumamensagemcomvozsussurrante,paranão

acordarAugust, e em seguida acendeu o abajur e olhou para a pequena estante de livros à direita dacama.Nelahaviaalgunslivrossemnenhumarelaçãocomseutrabalho,enomesmoinstanteelecomeçoua

folheardespreocupadamenteumvelhoromancedeStephenKing,Ocemitério.Porémissoofezpensar

Page 88: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

aindamaisemcriaturasmalignascaminhandonastrevasepassouumbomtempoparadocomolivronasmãos.FoientãoquealgoaconteceucomFransBalder.Eleteveumaimpressão,umpressentimentoqueàluzdodiaeletalvezdescartassecomoabsurdo,masquenaquelahorapareciaabsolutamenteplausível,eumdesejofortedefalarcomFarahSharifoucomStevenWarburton,emLosAngeles,quecomcertezajáestariaacordado.Enquantorefletiasobreoassuntoeimaginavaváriascenasterríveis,observouomar,anoite e as nuvens que deslizavam incansáveis pelo céu. Nesse instante o telefone tocou, como seatendendoaumaprecesilenciosa.MasnãoeraFarahnemSteven.—AquiéMikaelBlomkvist—disseavoz.—Vocêmeligou.—Issomesmo.Peçodesculpasporterligadoaumahoradessas.—Nãotemproblema.Euestavaacordado.—Eutambém.Vocêpodefalaragora?—Claro.Naverdade,acabeideresponderamensagemdeumapessoaquenósdoisconhecemos.O

nomedelaéSalander.—Quem?—Desculpe,podeterhavidoummal-entendido.Acheiquevocêativessecontratadoparaanalisaros

computadoresdevocêserastrearumapossívelinvasão.Fransdeuumagargalhada.—Essagarotaémesmoespecial—disse.—Elanuncamerevelouseusobrenome,apesardotempo

emquetrabalhamosjuntos.Imagineiquedeviaterasrazõesdelaenuncaapressionei.NosconhecemosduranteasminhasaulasnoInstitutoRealdeTecnologia.Possotecontartodaahistória;paramimfoiumasurpresaetanto.Masoquepenseiemteperguntarfoi…bem,vocêcomcertezavaimedizerqueéumaideiamaluca.—Devezemquandoeugostodeideiasmalucas.—Vocênãoquervirparacáagora?Euficariamuitoagradecido.Tenhoumahistóriabombásticapara

você.Epossopagarseutáxideidaevolta.—Éumagentilezaetanto,masprefiroquecadaumdenósseencarreguedasprópriasdespesas.Epor

quevocêprecisafalarcomigoaestahora?—Porque…—Frans hesitou.—Porque estou comumpressentimento de que nãome restamuito

tempo, oumelhor, é bemmais que umpressentimento.Acabei de saber queminhavida está correndorisco, e há algumas horas um homem estava bisbilhotando o pátio aqui da minha casa. Para dizer averdade,estoucommedoequeropassaradianteasinformaçõesquetenhoomaisrápidopossível.Nãoqueroqueessascoisasfiquemapenascomigo.—Tudobem.—Tudobemoquê?—Estouindo…seeuconseguirumtáxi.Frans passou o endereço a Blomkvist e desligou. Em seguida, telefonou para o professor Steven

Warburton, emLosAngeles, e teve uma conversa intensa de cerca de vinte, trintaminutos numa linhasegura.Depoisselevantou,pôsumacalçajeans,umacamisapolodecashmereepegouumagarrafadeAmarone,casoMikaelBlomkvistseinteressasseporessesprazeres.MasaestaalturaFransBalderteveumsobressaltoenãofoialémdaportadoquarto.

Page 89: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Eleimaginoutervistoummovimento,umvultoatravessandoocaminho,eolhounervosoparaocaisepara omar.Mas não viu nada.Apenas amesma paisagemhostil e tempestuosa de antes, o que o fezconsideraroocorridoapenascomoprodutodesuaimaginaçãoedeseusnervosàflordapele.Oupelomenosele tentouinterpretarassim.Depoissaiudoquartoecaminhouaolongoda janelaemdireçãoàescada que levava ao andar de cima. Incomodado por uma sensação perturbadora, Frans se virou derepenteedessavezdefatoviuumapessoanacasavizinha,dafamíliaCedervall.Umvulto avançava entre as árvores, emesmo que Frans não tenha podido ver a pessoa pormuito

tempo,notouque eraumhomem fortede roupa escura e comumamochilanas costas.O sujeito tinhacorridomeioabaixado,ealgumacoisanomodocomoelesemovimentavapareceubastanteprofissional,como se ele já houvesse corrido daquela forma inúmeras vezes, talvez numa guerra em algum paísdistante. Havia um toque de eficiência e destreza em sua atitude que Frans associou com cenasassustadorasdocinema,etalvezporissoeletenhademoradounssegundosamaisparatirarotelefonedobolsoeencontraronúmerodospoliciaisqueestavamdoladodeforadesuacasa.Elenãotinhaincluídoosdoisnasualistadecontatos,simplesmentehavialigadoparaeles,afimde

queonúmeroficasseregistradonamemóriadocelular,masnaquelemomentonemdissoelepareciatercerteza.Quenúmeroseriaodeles?Fransnãosabiae,commãostrêmulas,experimentouligarparaumqueimaginouserocorreto.Aprincípioninguématendeu.Foramtrês,quatro,cincotoquesatéumavozarquejanteresponder:—AquiéoBlom.Oqueaconteceu?—Euviumhomemcorrendoentreasárvoresdacasavizinha.Nãoseiondeeleestáagora.Maspode

muitobemestarindonadireçãodevocês.—Tudobem.Vamosaveriguar.—Eleparecia…—Fransprosseguiu.—Pareciaoquê?—Nãosei.Rápido?DanFlinckePeterBlomestavamnaviaturapolicialdiscutindootamanhodabundadacolegadeles

AnnaBerzelius.FaziapoucotempoquetantoPetercomoDanhaviamsedivorciado.Tinhamsidodivórciosdolorosos.Osdoistinhamfilhospequenos,mulheresquesesentiamtraídase

sogros que, com um vocabulário bastante variado, davam a entender que eles não passavam de unsmerdasirresponsáveis.Masquandoapoeirabaixoueosdoisconseguiramaguardacompartilhadadosfilhosenovoslares,começaramasentiromesmotipodeimpulso:faltadavidadesolteiro,enosúltimostempos,nassemanasemquenãoestavamcomosfilhos,entregavam-seàfarracomonuncaantes,paradepois, comonaadolescência, ficarem trocandodetalhes sobreas festaseavaliandoasmulherescomquem haviam saído, com direito a resenhas detalhadas de seus corpos e dos talentos que exibiam nacama.Dessavez,noentanto,nãopuderamseaprofundarcomogostariamnabundadeAnnaBerzelius.OcelulardePeter tocoueosdoisseassustaram,primeiroporqueo toqueeraumaversãoumtanto

exageradade “Satisfaction”, depois, e acimade tudo,porque anoite, a tempestade e a ruadesertaoshaviamdeixadopropensosasustos.Petertinhaguardadoocelularnobolsodacalçae,comoelaestava

Page 90: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

umpoucojusta—asextravagânciasdavidanoturnafizeramsuabarrigaaumentar—,eledemorouumpoucoatéconseguiratender.Quandodesligoupareciapreocupado.—Oquefoi?—perguntouDan.—OBalderviuumhomem,semovendomuitorápido.—Onde?—Entreasárvoresdacasadovizinho.Eledissequeprovavelmenteosujeitoestavavindonanossa

direção.PetereDansaíramdocarroemaisumavezsechocaramcomofrioquefazia.Osdoishaviampassado

umbomtemponaruaduranteanoiteeaquelalongamadrugada.Masnãotinhamsentidofrionosossoscomoagoraeporuminstantepermaneceramimóveis,olhandodeumladoparaoutro.EmseguidaPeter—omais alto— assumiu o comando e ordenou queDan permanecesse junto à estrada enquanto eleseguiaemdireçãoàpraia.Eraumpequenomorroqueseestendiaparaalémdeumacercademadeiraedeumapequenaaleia

comárvoresrecém-plantadas.Haviacaídoumpoucodeneve,ochãoestavaescorregadioemaisabaixovia-seabaíadeBaggensfjärden,quePeterestranhounãoestarcongelada.Talvezasondasestivessemsemovimentandodemais.Aforçadatempestadeeratremenda,ePeteraamaldiçooujuntamentecomessamissãonoturna,queestavaarruinandosuanoite.Aindaassim,elequeriarealizarotrabalho.Talveznãocomtodaaboavontadedomundo,masmesmoassimqueria.Peter aguçou os ouvidos, olhou ao redor e a princípio não percebeu nada de anormal.Mas estava

escuro.Umpostedeiluminaçãosolitáriobrilhavanoterrenoemfrenteaocais,entãoeledesceu,passoupor uma cadeira de jardim cinza, ou verde, que havia sido arrastada pela tempestade e no instanteseguinteviuFransBaldernointeriordacasa,pertodaenormejanela.Balderestavacurvadosobreumacama,comumaposturatensa.Talvezestivesseajeitandoascobertas,

dali não havia como saber. Parecia ocupado com algum detalhe na cama, mas Peter não deu muitaimportância a isso. Sua tarefa era investigar a área.Mesmo assim, a linguagem corporal deBalder ofascinava,eodesconcentrouporalgunspoucossegundos.EmseguidaPetervoltouàrealidade.Teve o pressentimento incômodo de que alguém o observava, então se virou depressa e correu os

olhosdeumladoaoutro.Masnãoviunada,pelomenosnãonaqueleinstante,equandojáseacalmavapercebeuduascoisasaomesmotempo—ummovimentorepentinonaslixeirasdeaçopróximasdacercaeobarulhodeumcarromaisacimanaestrada.Ocarroparoueumaportaseabriu.Nadadisso,emsi,deveriachamaraatenção.Omovimentopertodaslixeiraspoderiatersidocausado

poralgumanimal,ecomtodaacertezahaviatráfegodeveículosnaquelaregiãotambémdemadrugada.MesmoassimatensãodePetereraenormeeporuminstanteficouparalisado,semsabercomoreagir.EntãoouviuavozdeDan.—Alguémestávindoparacá!Peternãosemexeu.Sentia-seobservadoe,comummovimentoquaseinvoluntário,levouamãoàarma

que trazia na cintura enquanto pensava em sua mãe, na ex-mulher e nos filhos, como se algo graveestivesseparaacontecer.SeupensamentofoiinterrompidocommaisumgritodeDan,destaveznumtomdesesperado:—Polícia!Pareondeestá!

Page 91: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Peter correu instintivamente em direção à estrada,mas não conseguiu afastar a ideia de que haviadeixado uma ameaça para trás, perto das lixeiras. Porém, com seu colega gritando daquele jeito, nãohouve escolha, e ele chegou a se sentir aliviado. Estavamais assustado do que gostaria de admitir ecomeçouacorrerparachegardepressaàestrada.Maisadiante,Danperseguiaumhomemcambaleante,decostaslargaseroupaslevesdemais.Mesmo

pensandoqueaquelafiguranãopodiaserdefinidacomoumviciado,Petertambémcorreuatrásdela,epoucodepoisosdoispoliciaisaalcançarampertododique,juntoaduascaixasdecorreioeumpequenopostedeiluminaçãoqueconferiaumaluminosidadeopacaatodooespetáculo.—Quemévocê,porra?—Danberroudemaneira surpreendentementeagressiva—talvez também

estivessecommedo—,enomesmoinstanteohomemencarouosdoiscomumolharapavorado.Eletinhaperdidoobonéehaviageloemsuabarba,emseucabelo,oquedavaaimpressãodequeele

passavafrioenecessidade.Mas,acimadetudo,seurostopareciafamiliaraPeter.Peterachouqueeleshaviamprendidoumcriminosoprocurado,esentiuorgulhodesimesmo.FransBaldertinhavoltadoaoquartoemaisumavezidoveracamaemqueAugustdormia,quemsabe

até para escondê-lo sob as cobertas caso algo acontecesse. Depois ocorreu-lhe uma ideia absurda,causadapelaimpressãoquetinhaacabadodeter,eessaideiaganhouforçadepoisdaconversaquetiveracomStevenWarburton.Aprincípioela foradescartadacomoumagrande imbecilidade,dessasque sósurgemaltashorasdanoite,quandoospensamentoscostumamficarturvadospelaemoçãoepelomedo.Em seguida se deu conta de que não era uma ideia nova, mas que ela tinha amadurecido em seu

inconsciente no decorrer das incontáveis noites em claro que ele passara nosEstadosUnidos.Assim,pegouseunotebook,opequenosupercomputadorconectadoaumasériedeoutrosequipamentosparaqueadquirisseacapacidadenecessáriaepudesserodaroprogramadeIA,aoqualFranshaviadedicadotodaasuavida,eagora…Incompreensível,não?FransBaldernãosedeteveparapensar.Simplesmenteapagouoarquivoetodososbackups,sentindo-

seumdeuscruelexterminandoumavida—e talvezfosse issomesmoqueele tinhaacabadodefazer.Nãohaviacomosaber,eporalgumtempoBaldercontinuousentado,pensandoseoarrependimentoeoremorsoacabariamporconsumi-lo.Otrabalhodeumavidainteirahaviadesaparecidocomoapertardeunspoucosbotões.MasestranhamenteBaldersentiu-semaistranquilo,comosetivesseseprotegidoempelomenosuma

frentedebatalha.Depoisselevantoueolhoumaisumavezparaanoiteescuraeatempestade.Otelefonetocou.EraDanFlinck,umdospoliciais.—Euqueriadizerquepegamososujeitoquevocêviu—eledisse.—Podeficartranquiloagora.A

situaçãojáestásobcontrole.—Equeméele?—Fransperguntou.—Nãoseidizer.Eleestámuitobêbadoeestamostentandoacalmá-lo.Ligueiapenasparadizerqueo

pegamos.Depoisligodenovoparadarmaisdetalhes.Fransdesligouotelefonequeestavanamesadecabeceira,bemaoladodonotebook,eprocurouse

congratular.Apolíciatinhapegadoohomemesuaspesquisasnãoiriammaiscairemmãoserradas.Mas

Page 92: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

nemassimconseguiuseacalmar.Nãoentendeuporque,masdepoispercebeu:adescriçãodeumhomembêbadonãobatia.Ovultoqueeletinhavistocorrendoentreasárvorespodiaserqualquercoisa,menosumbêbado.AlgunsminutossepassaramatéPeterBlomperceberqueelesnãohaviamcapturadonenhumcriminoso

conhecidoeprocurado,esimoatorLasseWestman,quemuitasvezestinhafeitoopapeldegângsteredeassassino profissional na televisão,mas que dificilmente teria contra si ummandado de prisão. Essaconstatação,porém,emnadaserviuparaacalmarPeter.Nãoapenasporterachadoqueforaumerroelesse afastarem das árvores e das lixeiras,mas também porque nomesmo instante percebeu que aqueleinterlúdiopoderiaacabaremescândaloemanchetesdejornais.PetersabiaqueLasseWestmanvoltaemeiaviravanotícianaimprensavespertina,eninguémpoderia

afirmarqueelepareciacontenteali.Bufavaepraguejavaenquantotentavasepôrdepé,ePetertentavaimaginaroqueeleestariafazendonaquelelugaremplenamadrugada.—Vocêmoraporaqui?—perguntouopolicial.—Nãotenhonenhummotivoparafalarcomvocê,seumerda!—gritouLasseWestman.Peterentão

olhouemvolta,tentandoacharDan,paraentendercomotodaaquelahistóriatinhacomeçado.MasDanhavia se afastadoumpoucoe falavaao telefone, semdúvidacomBalder.Queriamostrar

serviçoeinformarqueosuspeitoforacapturado,seéqueaqueleeradefatoosuspeito.—VocêandouxeretandoopátiodoprofessorBalder?—perguntouPeter.—Vocênãoouviuoque eu falei?Nãovoudizermerdanenhuma.Porra, eu estava aqui passeando

tranquilamente e de repente aquelemaluco apontou uma arma paramim!É um absurdo.Vocês sabemquemeusou?—Eu sei, e se você acha que o nosso comportamento não foi adequado eu peço desculpas. Com

certezavamosteraoportunidadederetomaresseassunto.MasestamostrabalhandosobmuitapressãoeexijoquevocêmeexpliquedeumavezportodasoqueestavapretendendoaorondaracasadoprofessorBalder.Enempenseemfugir!Lasse Westman enfim conseguiu se levantar e não tentou fugir; tinha dificuldade para manter o

equilíbrio.Emseguidapigarreouecuspiuparacima,àvistadospoliciais.Masocuspenãofoilongee,comoumprojétil,caiudevoltaemsuabochecha,ealicongelou.—Quersaberdeumacoisa?—LasseWestmanperguntouenquantolimpavaorosto.—Não.—Nãosoueuocriminosodessahistóriatoda.Peterolhoupreocupadonadireçãodaáguaedaaleiaemaisumavezseperguntouoqueteriavistolá

embaixo.Aindaassim,permaneceuali,paralisadoporaquelasituaçãoabsurda.—Equemé,então?—OBalder.—Porquê?—Porqueelelevouofilhodaminhanamorada.—Eporqueelefariaisso?

Page 93: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Nãopergunteparamim.Pergunteprogêniodainformáticaqueestánaquelacasa!Essedesgraçadonãotemodireitodeficarcomomenino—disseLasseWestmanenquantoremexiaobolsointernodocasaco,comoseestivesseàprocuradealgumacoisa.—Nãotemnenhumacriançaládentro,seéissoquevocêestápensando—dissePeter.—Claroquetem,porra.—Temcerteza?—Tenho.—Entãovocêresolveuviraquiemplenamadrugada,bêbadocomoumgambá,parapegaromenino

—continuouPeter,eelejáiafazeroutrocomentáriomaldoso,quandofoiinterrompidoporumtilintarsuavequepareciavirdadireçãodomar.—Oquefoiisso?—disse.— Isso o quê?— perguntou Dan, que estava próximo dele e parecia não ter ouvido nada, e era

verdadequeosomnãotinhasidomuitoaltonemvindodolugarondeelesestavam.Peter sentiu um arrepio que lhe lembrou omovimento que achava ter visto perto das árvores e da

lixeira,eestavaprestesavoltarpara lá,quandomaisumavez recuou.Talvezestivessecommedoousimplesmenteindecisoeincapazdetomarumadecisão—nãosoubedizeraocerto.Olhoupreocupadoaoredoreouviuosomdeumcarroseaproximando.UmtáxipassouporeleseparounafrentedacasadeFransBalder,oquedeuaPeterumadesculpa

paracontinuarjuntodaestrada.Enquantoomotoristaeopassageiroacertavamopagamento,opoliciallançou um olhar inquieto em direção à água e imaginou ter ouvido um barulho nem um poucotranquilizador.Masnãotevecertezadenada.Naqueleinstante,aportadotáxiseabriueumhomemdesceu.Confuso,

depois de alguns segundos Peter reconheceu o jornalistaMikael Blomkvist. Por que diabos todas ascelebridadestinhamresolvidoirparalánaquelamadrugada?

Page 94: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

10.MANHÃDE21DENOVEMBRO

FransBalderestavanoquarto,emfrenteaocomputadoreaotelefone,olhandoparaAugust,quenãoparava de resmungar enquanto dormia. Perguntou-se com o que omenino estaria sonhando. Será queexistiaummundoqueeleentendesse?Baldergostariadesaber.Gostariadecomeçaraviveredenãoseenterrarmaisemalgoritmosquânticosecódigos-fonte,edenãosentirmedoeparanoia.Queriaserfeliz,nãosermaisatormentadoporaquelapressãoconstantenocorpo.Tinhavontadedese

deixarlevarporqualquercoisaespontâneaegrandiosa,umromanceouatémesmoumamorverdadeiro,e por instantes seu pensamento se voltou com intensidade para algumas mulheres que o fascinavam:Gabriella,Farahemuitasoutras.PensoutambémemSalanderenoquantoesteveenfeitiçadoporela.Lembroudeumdetalheaomesmo

tempo novo e já conhecido que nunca lhe vinha com clareza à mente.Mas então ele surgiu: ela lhelembravaAugust.Claro,parecialoucura,Augusteraummeninoautista.Noentanto,Lisbetherajovemetinha um certo jeito de menino. Não, os dois eram totalmente diferentes. Lisbeth se vestia de preto,adotavaumestilopunkenãofazianenhumtipodeconcessão.Aindaassim,Balderrecordouoolhardela,e nele havia o mesmo brilho singular que percebera nos olhos de August enquanto ele observava osemáforodaHornsgatan.FranstinhaconhecidoLisbethemEstocolmo,numapalestranoInstitutoRealdeTecnologia,naqual

elehaviafaladosobresingularidadetecnológica,ahipótesedeoscomputadoresviremasetornarmaisinteligentesdoquearaçahumana.Tinhacomeçadoapalestraexplicandooconceitodesingularidadenafísicaenamatemática,quandoderepenteaportaseabriueumagarotamagrae todavestidadepretoentrounoauditório.Balderpensoucomoera lamentável aquilo, e seosviciadosnão tinhamum lugarmelhorpara ir.Masdepoisduvidouqueagarota fossemesmoumaviciada.Nãodavaa impressãodeestarpassandonecessidades.Poroutro lado,pareciacansadaedemauhumor,semprestaratençãoemumapalavradoqueeledizia.Simplesmenteficoulargadanacadeira,atéque,depoisdeumraciocíniosobre ponto singular numa análise matemática complexa, em que os valores dos limites se tornavaminfinitos,Balderdecidiuperguntaroqueelaachavadaquilo.Umaatitudecondenáveladele,esnobe.Porqueesfregarseusconhecimentosnacaradagarota?Equalfoioresultado?Ela ergueuo rosto e disse que, emvez de ele ficar alardeando todos aqueles conceitos duvidosos,

deviaeraalimentaralgumceticismosobreaquilo,assimestariaprontonodiaemqueosfundamentosdetodososcálculosdeleviessemabaixo.Emvezdeumcolapsoda físicadomundoreal,aquiloeraumsinaldequeamatemáticaadotadaporBaldererainsuficiente.Portanto,amistificaçãodasingularidade

Page 95: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

dos buracos negros não passava de populismo dele, porque na verdade o grande problema era,obviamente,ainexistênciadeumamecânicaquânticacapazdecalcularaforçadagravidade.Depois, com uma clareza assustadora, que causou furor no auditório, Lisbeth fez uma crítica

devastadoraaosteóricosdasingularidadequeBalderhaviacitado,eelenãoconseguiurebatermaisdoquecomumaperguntaexasperada:—Quemdiabosévocê?Essetinhasidooprimeirocontatoentreosdois,emaistardeLisbethvoltariaasurpreendê-lo.Elao

entendiadeimediato,àsvezescomseusimplesolharreluzente,equandoBalderporfimpercebeuqueatecnologiaqueelehaviadesenvolvidoforaroubada,pediuajudaaela,oqueosaproximoumais.Desdeentãoosdoispassaramapartilharumsegredo,eeraemLisbetheemtudoissoqueBalderpensavaemseuquarto,quandoderepentefoitomadoporumenormedesconfortoqueofezolharparaooutroladodaportaaberta,ondeseavistavaagrandejanelavoltadaparaomar.Emfrenteàjanelaeleviuumvultoimponentetododepreto,comumgorrotambémpretonacabeçae

umapequenalanternapresaàtesta.Ovultomexeunajanelaeemseguidagolpeou-acomummovimentoimpetuoso,comoumartistadandoinícioaumanovaobra.AntesqueFransconseguissegritar,ajanelatodadesaboueovultosepôsemmovimento.O vulto se chamava Jan Holtser e costumava dizer que trabalhava com segurança industrial. Na

verdadeeleeraumvelhosoldadorussodeeliteque,emvezdeproporsoluçõesdesegurança,preferiacolocá-lasàprova.Executavaoperaçõescomoaquelaeemgeralfaziaumestudopréviotãometiculosodesuasmissõesquenapráticaosriscosnuncaeramtãograndesquantopareciam.Tinhaumapequenaequipedeprofissionaiscompetentesejánãoeraumgaroto.Comcinquentaeum

anos,mantinha-seemformaàcustade treinosduroseeraconhecidoporsuaeficáciaecapacidadedeimprovisação.Aodepararcomcircunstânciasinesperadas,eracapazdeavaliá-lasrapidamenteefazerosajustesnecessáriosaoplano.Acimadetudo,usavasuaexperiênciaparacompensarovigorperdidocomofimdajuventude,eàs

vezes — no pequeno grupo em que podia falar abertamente — mencionava um sexto sentido quefuncionavacomouminstintodepreservação.Osanoslhehaviamensinadoomomentocertodeaguardaredeatacare,mesmoquenosúltimostemposhouvesseperdidoaformaedadosinaisdefraqueza—suafilhachamavadesinaisdehumanidade—,sentia-semaispreparadodoquenunca.Havia recuperado a alegria com seu trabalho, o velho sentimento de emoção e adrenalina e,

naturalmente,continuavaingerindoseusdezgramasdeStesolidantesdequalqueroperação.Eraapenasparamelhoraraprecisãonomanejodasarmas,poiscontinuavatotalmentelúcidoealertanosmomentoscríticos e sempre conseguia fazer o que havia planejado. Jan Holtser não era o tipo de sujeito quedecepcionavaoudesistia.Essaeraaimagemquetinhadesipróprio.Naquela noite, porém, havia pensado em abortar a operação, por mais que seu cliente houvesse

enfatizadoquenãodispunhademuitotempo.Oclimaerasemdúvidaumfatoraselevaremconta,eascondiçõesdodiaeramumtantoadversasparaaexecuçãodoserviço.Masatempestade,apenas,jamaisoteriafeitoconsiderarapossibilidadedecancelaraoperação.Afinal,erarusso,militarehavialutado

Page 96: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

emcircunstânciasbempioresdoqueaquelas,alémdeabominarpessoasquereclamavamsemmotivo.OquemaispreocupavaJanHoltsereraavigilânciapolicialquehaviasurgidoderepente,semqueele

soubesse.Passaraumbomtempoobservandoosagenteseanalisandoamaneiracomoinspecionavamopátio,comevidentemávontade,comogarotosforçadosairparaaruadebaixodeummautempo.Oqueelesmaisqueriameraficarnocarrojogandoconversafora.Alémdomais,osdoisseassustavamcomfacilidade,oupelomenosoagentemaisalto.Ele parecia ter medo de escuro, de tempestade e do mar sombrio. Um pouco antes tinha dado a

impressão de estar apavorado enquanto fazia uma varredura entre as árvores. Talvez houvessepressentidoapresençadeJan,emboraJannãoestivessenemumpoucopreocupadocomisso.Sabiaquenãofaziabarulhoaosemovimentarequepoderiacortaragargantadopolicialnumpiscardeolhos,senecessário.Apesardisso,apresençadapolíciaalinãoeraagradável.Mesmo que fossem policiais de segunda categoria, o fato de estarem lá representava um risco

considerável e, acima de tudo, uma indicação de que parte dos planos havia vazado e de que osadversáriosestavampreparados.Talvezoprofessorhouvessepassadoadiantealgumas informações,enessecasoaoperaçãoseriainútil,podendoatémesmoagravarasituaçãodeseucliente.Jannãoqueriaexpô-loariscosdesnecessários.Gostavadepensarqueessaerapartedesuaforça.Sempreconseguiaanteverasituaçãoe,apesardotrabalhoquefazia,muitasvezeseraelequemaconselhavaoclienteasermaiscauteloso.JanHoltsersabiamuitobemqueváriasorganizaçõescriminosasdeseupaístinhamsidodesmontadas

exatamenteporcausadesuaforteinclinaçãoparaaviolência.Aviolênciainspirarespeito.Elaécapazdeassustarecalar,e tambémdeeliminar riscoseameaças.Mas tambémpodeproduzirocaoseumasérie de consequências indesejadas. Jan havia pensado em todas essas coisas enquanto se mantinhaescondidoentreasárvoreseatrásdaslixeiras.Emalgunsmomentosteveacertezadequehaviachegadoahoradeabortaraoperaçãoedevoltarparaoseuquartonohotel.Masnãofoioqueelefez.Um carro havia surgido e distraído a atenção dos policiais, e foi nesse instante que Jan viu uma

possibilidade,umabrecha,eassim,semnemmuitaconsciênciadeseusmovimentos,ajustoualanternanacabeça.Emseguidapegouaserradediamanteeaarma,uma1911R1Carrycomsilenciadorespecial,sentindoopesodesuasferramentasdetrabalho.Entãodisse,comocostumavafazer:—Sejafeitaatuavontade,amém.Mesmoassimpermaneceuimóvel.Aindaestavainseguro.Seriamesmoahoracertadefazeraquilo?

Eleteriadeagircomenormerapidez.Poroutrolado,conheciabemaplantadacasa,eJurijtinhaestadoláduasvezesparahackearo sistemadealarme.Alémdisso,ospoliciaiseramamadores inveterados.Mesmoquedemorasseumpoucomaisdoqueoplanejado—casoocomputadornãoestivesseaoladodacama,porexemplo,eospoliciaischegassemparasocorreroprofessor—,Janpoderialiquidarosdoisagentessemdificuldade.Nofundo,estavaansiosoparaentraremação,porissosussurroudenovo:—Sejafeitaatuavontade,amém.Entãodestravouaarma,avançoudepressaatéagrandejanelavoltadaparaomareolhoucommuito

cuidadoointeriordacasa,talvezaindaconsiderandooriscodasituação.JanteveumareaçãobastanteextremaaoverFransBalderdepénoquarto,profundamenteconcentrado,quemsabetentandogarantirasi mesmo que tudo estava bem. Seu alvo ali exposto. No entanto, Jan sentiu de novo um mau

Page 97: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

pressentimentoevoltouaseperguntarsenãoseriaprudentesuspenderaoperação.Elenãosuspendeu.Emvezdisso,estendeuobraçodireitoeempregoutodasassuasforçasparaquea

serradediamantecorressepelovidro,atéqueelecedeucomumbarulhopreocupante.Jan,então,saltouparadentrodacasaeapontouaarmaparaFransBalder,queoencaravasemdesviarosolhoseacenavacom a mão como se o estivesse cumprimentando de forma desesperada. Em seguida, como que numtranse,oprofessorcomeçouarecitardemaneiraconfusaegrandiloquenteoquepareciaserumaoração.Masemvezde“Jesus”oude“Deus”,eleapenasdizia“deficiente”.Jannãoconseguiuentendermaisdoqueisso,masqueimportava?Ele já tinhaouvidoaspessoasdizeremtodaespéciedecoisasestranhasnessahora.Eelenuncademonstrounenhumapiedade.Depressa e num silêncio quase absoluto, o vulto passou do corredor para o quarto. Frans se

surpreendeuqueosistemadealarmenãotivessedisparadoenotounablusadohomemodesenhodeumaaranha cinza logo abaixo do ombro e que em sua testa, entre o gorro e a lanterna, havia uma cicatrizestreitaecomprida.SóentãoFransBalderviuaarma.OhomemapontouapistolaparaeleeFransergueuamãonuma

tentativa inútil de se proteger, e aomesmo tempopensando emAugust.Mesmoque sua vida corresseperigoeseuspensamentosestivessemcheiosdemedo,acimade tudopreocupava-secomofilho.Queacontecessecomeleoquetinhadeacontecer!Quemorresse,seeraparaserassim,masqueAugustfossepoupado.EntãoFransdisse:—Nãomatemeufilho!Eleédeficiente,nãoentendenada.MasFransBaldernãosabiaquelherestavatãopoucotempo.Omundointeirodesapareceu,anoiteea

tempestadeláforapareceramirdeencontroaele,etudoficouescuro.JanHoltser atirou e, comoesperava, suaprecisãonãodeixou a desejar.Atingiu a cabeçadeFrans

Baldercomdois tiroseoprofessorcaiunochãocomoumboneco—nãohaviadúvidadequeestavamorto.Mas alguma coisa parecia fora do lugar.Uma rajada de vento soprou domar e deslizou pelopescoçodeJancomoumacriaturadecorpogelado,eeleaindanãoentendiaoqueestavaacontecendo.Tudohaviasaídocomoplanejado,umpoucomaisadianteeleviuocomputadordeBalderexatamente

onde lhe disseram que estaria, portanto bastava pegá-lo e fugir dali. Jan precisava agir com toda aeficácia possível.Mesmo assim, permaneceu como que congelado, e só foi entender o porquê de suahesitaçãomomentosdepois.Nacamadecasal,praticamenteocultoporumedredom,ummeninodecabelodesgrenhadooencarava

comolhosvidrados,eJansentiuumestranhomal-estar.Nãoapenasporqueogarototivesseumolharquepareciasondarsuaalma;haviamaisalgumacoisa.Mas…queimportânciatinhaisso?JanHoltser tinhaum trabalho a cumprir.Nadapoderia transformar aquelaoperaçãonumaaventura,

nadapoderiacolocá-laemrisco.Naqueleinstantehaviasurgidoumatestemunha,equandosemostraorostonãopodehaver testemunha.Entãoapontouaarmaparaomeninoeparaaquelesestranhosolhosbrilhantesebalbucioupelaterceiravez:—Sejafeitaatuavontade,amém.

Page 98: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

MikaelBlomkvistdesceudotáxicalçadocombotaspretaseusandoumcasacodepelebrancocom

goladecourodecarneiro,bemcomoumvelhogorrodepeleherdadodopai.Eram vinte para as três da manhã. O Ekonyheterna havia noticiado um acidente grave com um

caminhãoquesupostamentebloquearao trânsitoemVärmdöleden,porémMikaeleo taxistanãoviramnada — tinham feito o percurso sozinhos, em meio à escuridão e aos subúrbios açoitados pelatempestade.Mikael estava exausto eoquemaisdesejavaera ficar emcasapara sedeitar ao ladodeErikaedormir.Mas não tinha conseguido dizer não aBalder, e não sabia por quê. Podia ter sido uma espécie de

chamadoaodever,umsentimentodequenãopoderiarelaxarenquantoarevistaestivesseemcrise,ouentão tinha sidoporcausado jeito solitárioeassustadodeBalder,oquedespertou suacuriosidadeesolidariedade. Não que Mikael acreditasse em alguma história sensacional. Pelo contrário: suaexpectativaeradequeteriaumagrandedecepção.MastalvezpudesseapenasouviroprofessorBalderedesempenharopapeldeterapeutaouodeumguarda-noturnoemdiadetempestade.Nãohaviacomotercerteza de nada, e ele pensou em Lisbeth de novo. Ela só fazia o que quer que fosse se tivesse umexcelente motivo. No entanto, Frans Balder era uma pessoa excêntrica, que nunca aceitava darentrevistas, e falar com ele podia ser interessante, Mikael pensou enquanto corria os olhos pelaescuridão.Umpostequeemitiaumbrilhoazuladoiluminavaacasa,umbeloprojetoarquitetônicocomjanelas

amplasequelembravaumtrem.Juntoàcaixadecorrespondência,Mikaelviuumpolicialcomcercadequarentaanos,pelelevementebronzeadaeexpressãotensaenervosanorosto.Umpoucomaisadiantenaestrada, outro policial, de estatura menor, discutia com um homem aparentemente alcoolizado quegesticulavacomosbraços.OlugarestavamaisagitadodoqueMikaeltinhaimaginado.—Oqueestáacontecendo?—eleperguntouaopolicialmaisalto.Nãohouve resposta.O telefonedopolicial tocouenomesmo instanteMikaelpercebeuquealguma

coisatinhaacontecido.Osistemadealarmenãoestavafuncionandocomoseesperava.Masnãohouvetempoparaentendertodososdetalhes.Logoeleouviuumbarulhopreocupantenopátioeinstintivamenteoassociouàconversatelefônica.Deudoispassosparaadireitaeolhounadireçãodeumpequenomorroqueseestendiaparaumcaiseomar,etambémnadireçãodeumoutropostequereluziacomumbrilhoazuladoefosco.Nesseinstanteviuumvultocorrendo,eentãoMikaelentendeuquehaviaalgoerrado.JanHoltserestavacomodedonogatilhoeprestesaatirarnomenino,quandoouviuobarulhodeum

carro na estrada e hesitou.Não por causa do carro. Voltou a pensar na palavra “deficiente”, emborasoubessemuitobemqueoprofessor teria razõesdesobraparamentiremseuúltimo instantedevida.Aindaassimolhounovamenteparaomeninoeseperguntousedefatonãoseriaverdade.Osilêncionocorpodomeninoeragrandedemaiseorostotransmitiaumasensaçãodeespanto,enão

demedo, como se ele realmentenãohouvesse entendidooque tinha acabadode acontecer.Seuolharvaziopareciavidradodemaisparaperceberqualquercoisa.

Page 99: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Eraoolhardealguémsemfala,semconsciência,eissonãofoiapenasumaimpressãodeJan.Eleselembroudeumtextoquehavialidoemsuaspesquisassobreaquelaoperação.DefatoBaldertinhaumfilhoportadordeumadeficiênciamentalsevera,emboraosjornaiseadecisãojudicialsobreaguardadomenino tivessemafirmadoqueelenãosededicavaàcriança.Maselaestava lá, e Jannãopodianemprecisavamatá-la.Seriaalgototalmentesemsentidoeumatentadoàsuaéticaprofissional.Janbaixouapistola,pegouocomputadoreocelulardeBalder,queestavamnocriado-mudo,eos

colocounamochila.Depoissaiucorrendonomeiodanoiteedatempestade,seguindoarotadefugaquehaviaescolhido.Masnãotinhaidomuitolongequandoouviuumavozesevirou.Noaltodaestrada,viuumhomemquenãoeranenhumdosdoispoliciais,esimumnovopersonagem,decasacoegorrodepelee cuja atitudevinha investidadeumaautoridademuitodiferente, oquepode ter levado JanHoltser aergueraarmamaisumavez.Elepressentiuperigo.Ohomemquepassoucorrendoestavatododepreto,tinhaexcelenteformafísicaeumalanternapresa

àtesta,eporalgummotivoMikaelteveaimpressãodequeaquelevultoerapartedeumtodomaior,deuma operação cuidadosamente orquestrada. Chegou a pensar que outros vultos iriam emergir daescuridão,oquelhecausougrandedesconforto.Elegritou:—Ei!Pare!Foiumerro,eMikaelentendeuissonoinstanteemqueviuocorpodohomemseenrijecercomoode

umsoldadonocalordabatalha,semdúvidaporcausadesuareaçãoprecipitada.Quandoodesconhecidosacouumaarmaedisparoudemaneiradecidida,Mikaeljáhaviasejogadonochãoeseprotegidonumadasextremidadesdacasa.Odisparofoiquasesilencioso,mas,comoatingiuacaixadecorrespondênciadeBalder,nãohouvedúvidasobreoqueacabaradeacontecer.Opolicialaltoencerrouabruptamenteaconversa,mas não semoveu. Estava paralisado, e a única pessoa a dizer alguma coisa foi o homemalcoolizado.—Masqueporradecircoéesse?Oqueestáacontecendo?—gritouLasseWestmancomumavoz

poderosaeestranhamentefamiliar.Foiapenasnessemomentoqueospoliciaiscomeçaramafalar,comvozassustada:—Issofoiumtiro?—Achoquefoi.—Oquevamosfazer?—Precisamospedirreforços.—Masosuspeitoestáfugindo!—Entãotemosquedarumaolhada—disseopolicialmaisalto,ecommovimentoshesitantes,como

sepretendessemdeixaroatiradorfugir,osdoissacaramsuasarmasedesceramemdireçãoaomar.Umpoucomaisadiantenaescuridãodeinverno,umcachorrolatia,umcachorropequenoebravo,e

umventofortesopravadomar.Flocosdeneverodopiavameochãoestavaliso.Opolicialmaisbaixoquaseescorregoueprecisouseequilibraragitandoosbraçoscomoumpalhaçoparanãocair.Comumpouco de sorte, os dois conseguiriam evitar um encontro com o homem lá embaixo. Mikael teve aimpressãodequeovultopoderia se livrar daqueles jovenspoliciais com imensa facilidade.Omodo

Page 100: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

rápido e eficaz comohavia seviradoe sacadoa armamostrava treinopara situações comoaquela, eMikaelachouquetalvezfossenecessárioagir.Elenãotinhanadacomquepudessesedefender.Levantando-sedochão,espanouanevedaroupae

olhoumaisumavezparaomorro,e,peloqueobservou,nãohaviaacontecidonadademuitodramático.Ospoliciaisestavamcorrendoao longodapraiaemdireçãoàcasavizinha.Oatiradordepretohaviadesaparecido e Mikael resolveu ir para a casa de Balder. Ali, logo notou uma das janelas lateraisquebrada.Haviaumenormeburaconacasa.EmfrenteaMikael,noladodedentro,umaportaestavaaberta,eele

pensouquetalvezdevessechamarospoliciais.Masnãofezisso.Ouviuumsom,umaespéciedechoro,eentroupelajanelaquebrada,indodarnumcorredorcompisodecarvalhoquecintilavanaescuridão.Foiavançandodevagaremdireçãoàportaaberta.Comcertezaosomvinhadelá.—Balder?—elechamou.—Soueu,MikaelBlomkvist.Aconteceualgumacoisa?Não houve resposta. O choro ganhou força, e nesse instante Mikael respirou fundo e entrou. No

instante seguinte, teve um sobressalto que o paralisou por completo; depois já não sabia o que havianotadoprimeironemoqueoassustaramais.Nãotevecertezadequeeraumcorpooqueviunochão,apesardosangue,daexpressãodorostoedoolharvidrado.Essacenapodiamuitobemestarreproduzidanaenormecamadecasallogoaolado.Aprincípionão

foisimplesentenderoquehaviaacontecido.Ummeninodesete,oitoanos,defeiçõesdelicadasecabeloloiroedesgrenhado,comumpijamaxadrezazul,seatiravarepetidamentecontraacabeceiradacamaeaparede. O garoto parecia fazer o possível para semachucar, e seu choro não soava como o de umacriança,mascomoodealguémconcentradoembateromaisfortepossível.Antesquepudessecolocarsuasideiasemordem,Mikaelcorreuparaele,gestoqueinfelizmentenãoajudouamelhorarasituação.Omeninocomeçouasedebaterdemaneiraaindamaisincontrolável.—Calma—pediuMikael.—Calma—disse,abraçandoacriança.Omeninosecontorciaesedebatiacomumaforçasurpreendenteeexplosiva,eassim,talvezporque

Mikaelrelutasseemsegurá-locomforça,conseguiusesoltare ircaminhandodescalçoatéocorredor,seus pés sobre os cacos de vidro, enquantoMikaelBlomkvist corria atrás dele gritando “Não, não!”.Nesseinstanteosdoispoliciaisapareceram.Estavamdoladodeforadacasacomumaexpressãodeabsolutaperplexidade.

Page 101: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

11.21DENOVEMBRO

Maistardeficouconstatadoqueapolícianãohaviaadotadoosprocedimentoscorretosequenenhumbloqueio tinha sido feito na região antes que já fosse tarde demais.Ohomemquematara o professorBalder tinha fugido semnenhumadificuldade, e os policiais que estavamno local, PeterBlom eDanFlinck, apelidados por seus colegas de “os Casanova”, tinham demorado para dar o alarme, ou pelomenosnãohaviamprocedidocomaforçaeaautoridadenecessárias.Osperitoseinvestigadoresdadivisãodehomicídioschegaramaolocalsomenteàstrêsequarentada

manhã, acompanhadosporuma jovemchamadaGabriellaGrane,que todos imaginaramserparentedeBalderemrazãodeseuestadodenervos.MaistardeficouesclarecidoquesetratavadeumaanalistadaSäpoenviadaaolocaldocrimepelaautoridademáximadoórgão.NãoqueGabriellaseimportasse,mas,por força do preconceito de seus colegas, ou talvez porque fosse vista como uma pessoa tambémestranha,coubeaelaaresponsabilidadepelomenino.— Você parece ser a pessoa ideal para essa tarefa — disse Erik Zetterlund, responsável pela

investigação, ao vê-la examinando os ferimentos nos pés domenino.Mesmo que tivesse retrucado eexplicadoquetinhaoutrascoisasafazer,GabriellaseenterneceuquandoolhounosolhosdeAugust.August—esseeraonomedele—estavaparalisadodemedo,epormuitotempoficouolhandoparao

chão,noandarsuperiordacasa,epassandoosdedosmecanicamentenumtapetepersavermelho.PeterBlom,queemoutrassituaçõeshaviademonstradocertaincapacidadedetomardecisões,achouumameiaefezcurativosnospésdomenino.TambémseconstatouqueAugusttinhahematomasportodoocorpoeumaferidaabertanoslábios.SegundoojornalistaMikaelBlomkvist—cujapresençanacasacausavaumnervosismoperceptível—,omeninohaviabatidoacabeçacontraaparedeeacamanoandardebaixoedepoiscorridodescalçopelocorredor,pisandonoscacosdevidro.GabriellaGrane,queporalgummotivorelutavaemseapresentaraBlomkvist,percebeudeimediato

queAugusthaviatestemunhadooassassinatodopai.Maselanãoconseguiaestabelecercontatocomomenino nem lhe oferecer consolo. Bastou uma rápida observação para concluir que abraços e umtratamentocarinhososeriamineficazes.AugustpareciaseacalmarmaisquandoGabriellasimplesmenteficavaaoladodele—nãomuitopróxima—cuidandodeseusprópriosassuntos,eumaúnicavezAugustpareceuseinteressarpeloqueGabriellafazia.FoiquandoelaconversavacomHelenaKraftaotelefoneemencionouonúmerodacasa,79.MasGabriellanãodeumuitaatençãoaessedetalheepoucodepoiscomeçouafalarcomHannaBalder,queestavamuitoabalada.Hannaqueriaterofilhodevoltaimediatamentee,demaneiraumtantoinusitada,pediuque,assimque

Page 102: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

possível,Gabriellapegasseumquebra-cabeça,depreferênciaoqueretratavaonavioVasa,quedeviaestaremalgumlugarnacasadeFrans.Acrescentouquenãoculpavaoex-maridoporterlevadoofilhodemaneirailegalequenãosabiaporqueseunoivotinhaidoparaafrentedacasadeFransexigirqueeledevolvesseAugust.Equeointeressepelobem-estardomeninonãodeviaseroquetinhamotivadoLasseWestmanafazerisso.Amera presença domeninona casa trouxe luz a alguns antigos pontos de interrogaçãoque vinham

incomodando Gabriella. Só então ela entendeu por que Frans Balder parecia se esquivar de certassituaçõesetambémporquenãohaviacompradoumcãodeguarda.Aindademanhã,GabriellapediuqueummédicoeumpsicólogolevassemAugustàcasadesuamãe,emVasastan,casoelenãoprecisassedemaiscuidadosmédicos.Emseguida,umpensamentonovolheocorreu.TalvezoassassinatodeBaldernãotivessecomoobjetivosilenciá-lo.Poderiamuitobemtersidouma

tentativade roubo—nãoo roubodealgobanalcomodinheiro,masdo resultadodaspesquisasdele.GabriellanãotinhaamenorideiadoqueBalderhaviafeitoemseuúltimoanodevida.Talvezninguémsoubesse.Masnãoseriadifícilimaginar:provavelmentetinhaavercomodesenvolvimentodoprogramadeIAquejáparecerarevolucionárionaprimeiravezemqueforaroubado.OscolegasdeledaSolifontinhamfeitodetudoparadescobriremqueoprofessorestavatrabalhando,

e,a julgarpeloquecertavezFranshaviadeixadoescapar,eleprotegiasuaspesquisascomoumamãezelosaolhaporseufilhorecém-nascido,oquetalvezsignificassequeeleasmantinhapertodesiquandoiadormir,quemsabeaoladodesuacama.Assim,Gabriellaselevantou,pediuaPeterBlomqueficassedeolhoemAugustedesceuatéoquartoondeosperitosestavamtrabalhando.—Vocêsnãoencontraramumcomputadoraqui?—perguntou.Os peritos balançaram a cabeça, dizendo que não, e Gabriella pegou seu telefone para falar com

HelenaKraft.Logo se constatou que LasseWestman havia sumido. Certamente tinha aproveitado o tumulto para

escapar,oquelevouoresponsávelpelomonitoramentodecomunicações,ErikZetterlund,apraguejaregritar,sobretudoquandorecebeuanotíciadequeWestmannãoestavanoapartamentodaTorsgatan.ErikZetterlund chegou a pensar em emitir uma ordem de prisão, o que fez seu jovem colegaAxel

Andersson perguntar se LasseWestman devia ser procurado como um homem perigoso. Talvez AxelAnderssonfosseincapazdenotaradiferençaentreWestmaneospersonagensqueeleinterpretava.Masemsuadefesapodia-sedizerqueasituação,defato,estavacadavezmaisconfusa.Erabastanteevidentequeoassassinatonãoforaumacertodecontasemfamília,nemresultadodeuma

bebedeiraquehaviaescapadodecontrole,nemumcrimepraticadoàspressas.Haviasidoumataquefrioebemplanejadocontraumdosmaiorescientistassuecos.Eascoisasnãoficaramnemumpoucomaisfáceis quando Jan-Henrik Rolf, chefe da polícia do condado, afirmou que o assassinato devia serencaradocomoumdurogolpecontraosinteressesdaindústriasueca.ErikZetterlundviu-sederepenteàsvoltascomumacontecimentodeprofundasconsequênciasparaapolíticainternadopaís,emesmoquenãofosseomembromaisilustradodaforçapolicial,sabiamuitobemquetudoqueelefizesseapartirdeagorateriaumimpactodecisivonocursodainvestigação.

Page 103: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Erik Zetterlund, que havia feito quarenta e um anos dois dias antes e ainda sentia os efeitos dacelebração,nunca tinhaestadonempertodeassumira responsabilidadeporuma investigaçãodaquelenível.Essaoportunidadecaiuemsuasmãos,mesmoquesóporpoucashoras,porcausadaausênciadepessoalmaisqualificadonoturnodanoite,etambémdarelutânciadeseusuperioremacordarosagentesdaPolíciaFederaleoutrospoliciaismaisqualificadosdeEstocolmo.Sentindo-secadavezmaisinseguronomeiodaquelaconfusão,ErikZetterlundpassouadarordensaos

gritos. Acima de tudo, queria iniciar uma investigação porta a porta. Queria reunir depressa amaiorquantidade possível de testemunhas, ainda que não tivessemuita esperança de conseguir grande coisacom elas. Era madrugada, estava muito escuro e uma tempestade caía. Parecia improvável que osvizinhos tivessem visto alguma coisa. Por outro lado, não havia como ter certeza de nada, por issotambém tinha interrogado Mikael Blomkvist, que, sabe-se lá por que cargas-d’água, estava ali nasredondezasnahoradocrime.ApresençadeumdosjornalistasmaisconceituadosdaSuécianãomelhoravaemnadaasituação,e

porinstantesErikZetterlundteveaimpressãodequeBlomkvistoobservavacomointuitodeescreverumartigodedenúnciasobreele.Mascomcertezaesseseramapenasseusprópriosdemônios.Blomkvistpareciabastanteabaladoeduranteointerrogatóriohaviasidoeducadoesolícito.Mesmoassimnãotevemuitocomquecontribuirparaainvestigação.Tudoacontecerarápidodemais,oqueporsisó,segundoojornalista,jáerabastantesignificativo.Haviasinaisdetécnicaeferocidadenamaneiracomoocriminososemovimentara,enaopiniãode

Blomkvistnãoseriaexagerosuporqueelefosseummilitarouex-militar,etalvezatémesmoumsoldadodeelite.Aformacomohaviagiradoocorpoedisparadosuaarmapareceuummovimentotreinado,ealanternapresaàtestaimpediuBlomkvistdeversuasfeições.Ele estava a uma grande distância eMikael se jogou no chão no instante emque o vulto se virou.

Deviaagradecerporestarvivo.Pôdeapenasdescreverofísicoea roupadosuspeito,oquealiás fezcommuitaprecisão.Segundoojornalista,ohomemnãopareciamuitojovem,deviatermaisdequarentaanos.Estavaemboaformafísicaeeramaisaltodoqueamédia,deviamedirentreummetroeoitentaecincoeummetroenoventaecinco,comumacompleiçãorobusta,cinturafinaeombroslargos.Estavadebotaseroupamilitar.Carregavaumamochilaeprovavelmentelevavaumafacapresaàpernadireita.MikaelBlomkvistacreditavaqueohomemtinhadesaparecidopróximoàmargemdapraiaeseguido

ao longo das casas vizinhas, o que coincidia com os depoimentos de Peter Blom e Dan Flinck. Ospoliciaisnãohaviamvistoosuspeito,mastinhamouvidoseuspassosemdireçãoaomar,quandoentãoselançaramemsuaperseguição, semsucesso.ErikZetterlund,porém,nãopareciamuitoconvencidodasexplicaçõesdadaspelosdois.OmaisprováveléqueBlomeFlincktivessemseacovardadoesimplesmenteaguardadonoescuro,

tremendodemedo,incapazesdeagir.Ocrimedeviateracontecidojustamentenesseintervalo.Emvezdeuma operação policial commapeamento das rotas de fuga e bloqueios, quase nada havia sido feito.Flinck e Blom ainda não tinham entendido que se tratava de um homicídio quando viram ummeninodescalçogritandoe saindocorrendodacasa.Tinha sidomesmodifícilmanteracabeça friadiantedeumacenadessas.Otempocontinuavapassando,emesmoqueodepoimentodeMikaelBlomkvisttivessesido moderado, foi fácil perceber uma crítica velada por trás dele. Por duas vezes perguntara aos

Page 104: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

policias se eles já haviamdadoo alarme, e nasduasvezes eleshaviam respondido comumgestodecabeça.Mais tarde, aoouvir a conversadeFlinck coma central de comunicações,Mikael concluiuqueos

gestosprovavelmentequeriamdizer“não”ouentãoquetinhahavidoalgumaespéciedemal-entendido.Ospoliciaisdemoraramadaroalarme,enemquando,enfim, tiveramessa iniciativaascoisassaíramcomodeviam—provavelmenteporqueasinformaçõestransmitidasporFlincknãoforammuitoclaras.Essaincapacidadedeagirtambématingiaoutrosníveis,eErikZetterlundsentiu-seinfinitamentefeliz

por ninguém poder culpá-lo pelo que tinha acontecido: até então ele ainda não fazia parte dainvestigação.Poroutrolado,agoraeleestavaláeprecisavasercautelosoparanãopiorarascoisas.Osméritos que havia acumulado nos últimos tempos não erammuitos, para dizer omínimo, portanto eraprecisoaproveitaraoportunidadeparabrilhar,ounomínimoparanãofazerumpapelridículo.ErikZetterlundestava juntoàportadasalaehaviaacabadodeconversarcomopessoaldaMilton

Securitysobreovultoquetinhaaparecidonasimagensdosistemadesegurançaantesdocrime.EraumhomemqueemnadacorrespondiaàdescriçãodosupostoassassinofeitaporMikaelBlomkvist,masquefaziapensarnumjunkievelhoemagrocomumagrandefamiliaridadecomaparelhosdealtatecnologia.OpessoaldaMiltonSecurityachavaqueessehomem tinhahackeadooalarmeedesligadocâmerasesensores,oquenãocontribuíaemnadaparatornarahistóriamenosdesagradável.Nãosetratavaapenasdotoquedeprofissionalismonoplanejamentodaquelaoperação.Eraaousadia

de cometer um assassinato apesar da vigilância policial e da presença de um avançado sistema dealarmes.Quetipodeconfiançaessaatitudeindicava?Erikiadescerparaconversarcomosperitosqueestavamnoandardebaixo,mas resolveupermanecermaisumpouco lá emcimaobservando tudoemvolta,profundamenteinquieto,eseuolharsefixounofilhodeBalder,umatestemunha-chave,incapaznoentantodedizerumaúnicapalavraeque,paracomplicarascoisas,tambémnãoentendianadadoquelhediziam,maisoumenoscomosepodiaesperarnumaconfusãodaquelagrandeza.Erik viu que omenino segurava umapequena peça de um enormequebra-cabeça, e em seguida foi

andandonadireçãodaescadacurvaquelevavaaoandardebaixo.Derepenteseucorposeenrijeceu.Erikvoltouapensarnaprimeiraimpressãoqueomeninohavialhecausado.Assimqueentrounacasa,aindasemsaberdireitooquetinhaacontecido,omeninolhedeuaimpressãodeserumacriançacomooutraqualquer.Nãopareciahavernadadediferentenele,pensouErik,anãoseroolharperturbadoeosombros tensos.Erik talvezo tivessedescritoapenascomoummeninodocedeolhosgrandesecabelocacheado. Mas depois soube que o garoto era autista e portador de uma grave deficiência mental.Portanto, não tinha sido algo que ele notara à primeira vista,mas uma informação que havia chegadodepois,oque significava, refletiuErik,queouoassassino já conheciaomenino,ouqueentãoestavamuitobeminformadosobreacondiçãodele.Deoutromodo,dificilmenteoteriadeixadovivo,paranãocorrer o risco de ser identificado mais tarde, certo? Embora não tenha dado tempo a si mesmo dedesenvolver esse pensamento de forma completa, Erik se deixou levar pelo que ainda era umpressentimentoeseaproximoudomeninocompassosrápidos.—Precisamosinterrogá-loassimquepossível—disseemvozmuitoaltaeexasperada.—MeuDeus,tenhaumpoucomaisdecuidadocomomenino—disseMikaelBlomkvist,queestava

porperto.

Page 105: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Não semeta nos assuntos da polícia— retrucouErik.—Omeninopode ter visto o assassino.Precisamosmostraraelefotosdossuspeitos.Dealgumaforma,temosque…O menino o interrompeu embaralhando o quebra-cabeça com as mãos num gesto súbito, e Erik

Zetterlundnãoteveopçãosenãomurmurarumpedidodedesculpasedescerparairfalarcomosperitos.QuandoErikZetterlundsaiu,MikaelBlomkvistficouobservandoomenino.Pareciaquemaisalguma

coisaiaacontecercomele—talvezumnovosurto—,eoqueMikaelmenosqueriaeraqueAugustsemachucasseoutravez.Masemvezdissoomeninoenrijeceuocorpoecomeçouaesfregaramãodireitanotapetecomumavelocidadealucinante.Depoisparouderepenteelevantouorostocomumolharsuplicante,emesmoqueporalgunssegundos

Mikaeltivesseseperguntadooquesignificavaaquilo,deixoudepensarnoassuntoassimqueopolicialmais alto, que se chamavaPeterBlom, sentou-se ao lado domenino e tentou convencê-lo amontar oquebra-cabeça de novo.Mikael foi à cozinha para se acalmar um pouco. Estavamorto de cansaço equeria ir para casa. Mas provavelmente ainda iriam chamá-lo para ver as imagens das câmeras desegurança.Nãosabiaquandoissoiriaacontecer.Tudonaquelainvestigaçãosearrastavaepareciafeitodemaneiradesleixadaedesorganizada,eMikaelansiavadesesperadamenteporsuacama.Já tinha falado comErika duas vezes para informá-la do que havia acontecido e,mesmo que eles

soubessempoucacoisasobreohomicídio,osdoisconcordavamqueMikaeldeviaescreverumartigolongosobreocasoparaopróximonúmerodaMillennium.EnãoapenasporqueocasoeraumdramadavidarealnemporqueavidadeFransBalderparecia interessanteosuficienteparamerecerumartigo.Mikael também tinha uma ligação pessoal com a história, o que aumentaria em muito o valor dareportagemeseriaumimportantediferencialsobreaconcorrência.AconversaquehaviaprecedidotodoaqueledramaeolevaraàcasadeFransBalderbastariaparadarumtoquesurpreendenteàreportagem.NemMikaelBlomkvistnemFransBalderhaviammencionadoacrisedaMillenniumouoconflitode

interesses com o grupo Serner. Eram coisas subentendidas na conversa, e Erika já havia designado oestagiárioAndreiZanderparacomeçarafazerasprimeiraspesquisas,enquantoMikaeldescansava.Emtomperemptório,nummistodeautoridadedemãeternacomadeumaredatora-chefemandona,tinhaditoqueserecusavaaverorepórtermaisbadaladodarevistamortodecansaçoantesmesmodeotrabalhocomeçar.Mikaelconcordou.Andreierasimpáticoeambicioso,eseriabomacordarnodiaseguinteeencontrar

aspesquisasbásicasjáfeitas,depreferênciacomumalistadenomesdepessoaspróximasaBalderquetalvezsedispusessemadarentrevistas.Porinstantes,parasedistrairumpouco,MikaelselembroudosconstantesproblemasqueAndreitinhacomasmulheresedosquaiselelhefalaranodecorrerdeváriosfinsdetardenacervejariaKvarnen.Andreierajovemeinteligenteepareciaumótimopartido.Seriaumachadoetanto.Masporcausadesuanaturezafrágilecarente,nofimasmulheressempreodeixavam,eesses episódios de abandonoo faziam sofrermuito.Andrei era um romântico incorrigível. Sonhava otempointeirocomumgrandeamoreumgrandefuro.Mikael se sentouàmesada cozinhadeBalder eolhoua escuridão lá fora.Namesa,pertodeuma

caixadefósforos,deumexemplardaNewScientistedeumblococheiodeequaçõesincompreensíveis,

Page 106: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

havia um desenho ao mesmo tempo bonito e assustador de uma faixa de pedestres. Próximo a umsemáforo, via-se um homem de olhos baços e estreitos, e de lábios finos. Ele tinha sido capturadocaminhandorápidoemesmoassimsepodiavercadarugadeseurostoecadadobradesuajaquetaedesua calça. Não era uma figura particularmente agradável. O homem tinha uma verruga em forma decoraçãonoqueixo.Apesar disso, era o semáforo que dominava o desenho. Ele reluzia com um brilho perturbador e

repleto de significados e tinha sido reproduzido comuma simplicidade que parecia resultante de umaapurada técnicamatemática.A impressãoeradeque aqualquermomento seriapossívelveropadrãogeométricoportrásdaquilo.ProvavelmenteFransBaldertinhafeitoodesenho,eMikaelseperguntoudeondeelehaviatiradoaqueletema.Nãoeramuitoconvencional.Poroutrolado,porquealguémcomoBalderdesenhariaumpôrdosolouumnavio?Umsemáforocom

certeza também era um tema tão interessante quanto qualquer outro. Mikael se impressionou com orealismodarepresentação.MesmoqueFransBaldertivesseparadoparaanalisarcomtodaaatençãoosemáforo,dificilmente teriapedidoaohomemqueatravessassea ruadiversasvezes.Talvezohomemfosseapenasumacréscimoficcional,ouentãoFransBaldertinhamemóriafotográfica,como…Mikaelficoupensativo.EmseguidapegouotelefoneeligoupelaterceiravezparaErika.—Vocêestávindoparacasa?—elaperguntou.—Aindanão,infelizmente.Tenhounsassuntosparacuidar.Maseuqueriatepedirumfavor.—Épraissoqueestouaqui.—Euqueriaquevocêentrassenomeucomputador.Vocêsabeaminhasenha,nãosabe?—Nósnãotemossegredos.—Ótimo.EntrenosmeusdocumentoseabraapastachamadaLisbethSalander.—Achoqueestoucomeçandoaentenderondeessahistóriavaiacabar.—Émesmo?Bom,euqueroquevocêescrevanessedocumento…—Espere um pouco. Eu ainda preciso abrir o arquivo. Está quase… espere. Já tem ummonte de

coisasnessedocumento.—Nãosepreocupecomnadadisso.Euqueroquevocêescrevabemnoaltodapágina,acimadetudo

queestáaí,certo?—Certo.—Entãoescreva:Lisbeth, talvezvocê jásaiba,masoprofessorFransBalder foimortocomdois

tirosnacabeça.Seráquevocêpodemeajudaradescobrirporquequiserammatá-lo?—Sóisso?—Não é pouca coisa, especialmente porque faz muito tempo desde que eu e ela nos falamos. A

Lisbethcomcertezavaiacharmuitoatrevimentomeu,masnãoserianadamauseelanosajudasse.—Nãoserianadamauumapequenainvasãodecomputadores,vocêquerdizer.—Nãoouvioquevocêdisse.Esperoteverlogo.—Eutambém.Lisbethtinhavoltadoadormireacordousomenteàsseteemeiadamanhãseguinte.Mesmoassim,não

Page 107: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

sesentianasuamelhorforma.Acabeçadoíaeelasentiaenjoo,emboranogeralestivessebemmelhor,portanto se vestiu depressa e tomou um rápido café da manhã, composto de dois pirogues de carneaquecidosnomicro-ondaseumcopograndedecoca-cola.Depoisenfiouasroupasdetreinonumabolsapreta e saiu. A tempestade havia perdido força. Mesmo assim, lixo e jornais carregados pelo ventoespalhavam-se pela cidade. Lisbeth saiu do mercado deMosebacke e seguiu pela Götgatan dando aimpressãodeestarfalandosozinha.Pareciafuriosa,epelomenosduaspessoasseafastaramdela,assustadas.MasLisbethnãoestavanem

um pouco zangada, apenas concentrada e determinada. Não sentia a menor vontade de se exercitar.Desejava apenas tocar sua rotina normalmente e tirar os venenos do corpo. Assim, desceu até aHornsgatane,umpoucoantesquearuacomeçasseavirarumasubida,entrouàdireita,emdireçãoaoclubedeboxeZero,queficavanumporãoequenaquelamanhãpareciaaindamaisdecadente.Olugarficariacomumaspectobemmelhorserecebesseumademãodetintaepequenasmelhorias.

Masaimpressãoeradequenadatinhasidoalteradoládesdeadécadade1970,tantonadecoraçãocomonos cartazes. Foreman e Ali ainda decoravam as paredes. O tempo parecia haver parado na manhãseguintedolendáriocombateemKinshasa,oquetalvezsedevesseaofatodeObinze,oresponsávelpeloclube,terassistidoàlutanainfânciaedepoissaídocorrendoegritando“AliBomaye!”debaixodachuvademonções.Essacorridanãoapenaserasualembrançamaisfeliz,mastambémhaviacolocadoumpontofinalnoqueelechamavade“diasdeinocência”.Pouco tempo depois, Obinze tinha sido obrigado a fugir com a família do terror instaurado por

Mobutu,edesdeentãonadamaisfoicomoantes.Emvistadisso,talveznãoparecessetãoestranhoqueele desejasse preservar aquele momento da história ou de alguma forma transportá-lo para aqueladecrépitaacademiadeboxeemSöder,nacapitaldaSuécia.Obinzeaindafalavacomfrequênciasobrealuta.Aliás,falavaotempointeirosobreoquequerquefosse.Obinze era um homem grande, robusto e careca que também fazia as vezes de porta-voz da

misericórdia divina, e um dos muitos homens na academia que estavam sempre de olho em Lisbeth,mesmoque,como tantosoutros,eleaachassemeio louca.HaviaépocasemqueLisbeth treinavacommaisafincodoquequalquerhomemalie investiacomoumamalucacontraosequipamentosdetreino,bases,sacosdepancada,econtraseuscolegas.GuardavadentrodesiumafúriaprimordialqueObinzetinhavistoempoucaspessoas,oquecertavezolevouasugerirqueLisbethcomeçasseaparticipardecompetições.Arisadazombeteiraquerecebeucomorespostafezcomquenuncamaisrepetisseoconvite,eObinze

continuousementenderoquemotivavaagarotaa treinarcomtantoempenho,mesmoquenofundoelenãoprecisassedeumaresposta.Qualquerumpodiatreinarcomempenhosemquetivesseumobjetivoemvista.Eraamotivaçãoperfeita,etalvezLisbethestivessefalandosérioquandoumavezdisse,játardedanoite,quetreinavaparaestarprontacasosemetesseemproblemasdenovo.Obinzesabiaqueelahaviasemetidoemproblemasnopassado.TinhaprocuradoseunomenoGoogle.

TinhalidocadapalavraquehavianainternetsobreLisbethSalandereentendiamuitobemporqueelaqueriaestaremformacasoumasombradopassadovoltasseparaassombrá-la.Aliás,Obinzenuncatinhaentendidoumacoisatãobemnavida.EletambémhaviaperdidoopaieamãeparaasminasterrestresdeMobutu.

Page 108: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

O que ele não entendia era por que, de tempos em tempos, Lisbeth abandonava os treinos, não sededicava a nenhum outro tipo de condicionamento físico e se entupia de junk food. Essa maneiracontraditóriadesecomportareraincompreensívelparaele,equandoLisbethchegouàacademianaquelamanhã,comsuasroupaspretaseospiercingsdesempre,jáfaziaduassemanasqueosdoisnãoseviam.—Oi,gata.Porondevocêandou?—Cuidandodeunsnegóciosdesagradáveis.—Imagino.Tipochicoteandoumaganguedemotoqueiros?Lisbeth não quis saber de brincadeira.Continuou andandopara o vestiário comexpressão azeda, e

entãoObinzefezumcomentárioque,eletinhacerteza,iriaenfurecersuaaluna.—Seusolhosestãovermelhos.—Estoucomumaputaressaca.Eagorasaiadaminhafrente!—Sevocêestáderessacaeunãoquerovocêaqui.—Nãomevenhacomessahistória.Tudoqueeuprecisoéquevocêmeajudeatirarestamerdado

corpo—resmungouLisbeth.Emseguidaentrounovestiárioepoucodepoissaiucomumcalçãograndedemaisecomumtopbrancocomestampadecaveirapreta,eObinzeviuquesólherestavaajudá-la.Obinze a pressionou até que ela tivesse vomitado três vezes na lixeira e a xingou o quanto pôde.

Lisbethtambémoxingouamistosamente.Depoisvoltouaovestiário,trocouderoupaefoiemborasemnem se despedir, enquantoObinze— como sempre acontecia naquelesmomentos— sofria com umasensaçãodevazio.Talvez estivesseumpoucoapaixonado.Oupelomenos abalado, porquenãohaviacomosesentirdeoutraformaquandoseviaumagarotalutarboxedaquelejeito.AúltimavisãoquetevedeLisbethfoidesuaspanturrilhasdesaparecendopelaescada,portantonão

teveamenorideiadecomoomundogiravanacabeçadelaquandoLisbethchegouàHornsgatan.Elaseapoiounaparededeumprédioerespiroufundo.DepoisseguiuatéseuapartamentonaFiskargatane,jáemcasa,bebeumaisumcopograndedecoca-colaemeiolitrodesuco.Porfimatirou-senacamaeficouolhandoparaotetopordez,quinzeminutos,enquantopensavaemdiversascoisas,comosingularidades,horizontesdeeventos,algunsaspectosespeciaisdasequaçõesdeSchrödingereEdtheNed.Porfim,quandoomundorecuperouseuaspectooriginal,Lisbethselevantouefoiparaocomputador.

Pormenos que desejasse, sentia-se o tempo inteiro atraída para aquela direção por uma força que aacompanhava desde a infância. Mas naquela manhã não estava disposta a manobras arriscadas.SimplesmenteinvadiuoscomputadoresdeMikaelBlomkvisteuminstantedepoissentiuseucorpogelar.Nãofaziamuitotempo,osdoishaviambrincadosobreBalder.EagoraMikaelescreviaparadizerqueeletinhasidoassassinadocomdoistirosnacabeça.—Merda—sussurrouLisbethenquantodavaumalidanasediçõeseletrônicasdosjornais.Aindanãohavianada sobreo caso,pelomenosnãodemaneira explícita.Masnãoerapreciso ser

muito perspicaz para entender que manchetes como “Acadêmico sueco morto em sua casa emSaltsjöbaden” se referiam a Balder. A polícia ainda não tinha revelado os detalhes e os jornalistashaviam fracassado em seu papel de cães farejadores, talvez porque não houvessem se dado conta daimportânciadahistóriaouaindanãotivessemencontradoumaformapoderosadecontá-la.Alémdisso,pareciahaveroutroseventosmaisimportantesnaquelanoite:astempestadeseosblecautespelopaís,osenormesatrasosnoshoráriosdos trenseumaououtranotícia sobrecelebridadesqueLisbethnemfez

Page 109: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

forçaparaentender.Quanto ao assassinato, constava apenas que ele havia ocorrido por volta das três damanhã, que a

polícia estava buscando mais testemunhas e analisando quaisquer informações sobre possíveismovimentações duvidosas.Ainda não havia nenhum suspeito, embora algumas testemunhas houvessemapontadoapresençadepessoasdesconhecidaspertodacasa.Apolíciabuscavamaisinformaçõessobreelas.Amatéria terminavacoma informaçãodequenodecorrerdodiao inspetorJanBublanskidariaumaentrevistacoletiva.Lisbethabriuumsorrisomelancólicoao leranotícia.Nopassado,havia tidocontato comBublanski—ouBubolha, como seus colegas o chamavam— e achava que, se eles nãopusessem um bando de imbecis no grupo de investigação, o inquérito transcorreria sem maioresproblemas.DepoisLisbethreleuamensagemdeMikaelBlomkvist.Elehaviapedidoajuda,esemnempensarela

respondeu“Tudobem”.EnãoapenasporqueMikael tinhapedido.Aquilohaviase transformadonumaquestão pessoal para ela. Lisbeth não tinha ficado compena, pelomenos não damaneira tradicional.Havia, istosim,ficadocomódio,sentidoumafúriaviolenta,e,apesardenutrircertorespeitoporJanBublanski,normalmenteelanãoconfiavaemautoridades.Lisbethestavaacostumadaa resolverosproblemasdoseupróprio jeito,eela tinhaváriosmotivos

para querer descobrir por que haviam matado Frans Balder. Não o procurara e se inteirara de suasituação pormero acaso.Era bastante provável que o inimigo deFransBalder também fosse inimigodela.TudohaviacomeçadocomumaespeculaçãosobreapossibilidadedequeopaideLisbethdealguma

formaaindaestivessevivo.AlexanderZalachenko,ouZala,nãotinhaapenasmatadoamãedeLisbethedestruídoainfânciadesuafilha.Tambémhaviachefiadoumaorganizaçãocriminosa,vendidodrogasearmamentos,eviveradeexplorareoprimirmulheres.Lisbethentendiaqueessetipodeperversidadenãodesapareciadanoiteparaodia.Apenasmigravaparaoutrasformasdevida,edesdeodiaemque,faziapoucomaisdeumano,elatinhaacordadonumquartodohotelSchlossElmau,nosalpesbávaros,Lisbethestavapesquisandooquepoderiateracontecidocomesselegadodeseupai.A maioria dos antigos companheiros dele eram perdedores natos, marginais depravados, gigolôs

asquerosos ou pequenos gângsteres. Ninguém havia se transformado num canalha do calibre deZalachenko, e pormuito tempoLisbeth esteve convencida de que a organização tinha sido aniquiladadepoisdamortedeseupai.Aindaassimelanãodesistiu,eporfimencontrouumapistaqueapontavaparaumadireçãoinesperada,graçasaosrastrosdeixadosporSigfriedGruber,umdosjovensseguidoresdeZala.QuandoZalaestavavivo,Grubereraumdosmembrosmaisinteligentesdaorganização.Aocontrário

damaiorpartedeseuscompanheiros,elepossuíadiplomasuniversitáriosemciênciasdacomputaçãoeadministraçãodeempresas,oquesemdúvidalhegarantiuacessoacírculosmaisrestritos.Nosdiasdehoje,seunomesurgiaemalgumasinvestigaçõesdecrimespraticadoscontraempresasdetecnologiadeponta:roubodenovastecnologias,extorsão,espionagemindustrialeataquescibernéticos.Numasituaçãonormal,Lisbethnão teria seguidoseu rastroalémdesseponto,nãoapenasporque,a

nãoserpeloenvolvimentodeGruber,oassuntoparecesseterpoucoavercomasantigasatividadesdopai,como tambémporqueparaLisbethera indiferentequeduasou trêsempresasmilionárias tivessem

Page 110: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

roubadoalgumasdesuasinovaçõestecnológicas.Masdepoistudomudou.Num relatório altamente sigiloso do GCHQ que Lisbeth tinha acessado, ela encontrou códigos

relacionadoscomoatualgrupodeSigfriedGruber,eoque leuali foiobastantepara impressioná-la.Depoisnãoconseguiumaisparardepensarnahistória.Informou-seomelhorquepôdesobreogrupoe,porfim,numsitedehackersumtantoquestionável,encontrouboatosrecorrentesdequeaorganizaçãohavia roubadooprogramade IAdeFransBalderparavendê-loà fabricante russo-americanade jogosTruegames.Por issoLisbeth apareceu na palestra do professor FransBalder no InstitutoReal deTecnologia e

começouadebatercomelesobreassingularidadesdosburacosnegros—oupelomenospartedarazãofoiessa.

Page 111: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

II.OSLABIRINTOSDAMEMÓRIA21A23DENOVEMBRO

Eidética:estudodepessoascommemóriaeidética,tambémconhecidacomomemóriafotográfica.

Pesquisasmostramquepessoascommemóriaeidéticasãomaisnervosaseestressadasdoqueoutras.

Embora haja exceções, a maioria das pessoas commemória eidética tem autismo. Também existe uma relação

entre memória fotográfica e sinestesia — condição em que dois ou mais sentidos funcionam de maneiraconcomitante,oquelevaaspessoasnessacondiçãoapercebercoresemalgarismos,porexemplo,ouaverimagensdesenhadasporsériesnuméricas.

Page 112: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

12.21DENOVEMBRO

JanBublanskivinhaesperandoansiosoporumdialivre,parapoderconversardemoradamentecomorabinoGoldman,dasinagogadeSöder,sobrequestõesrelacionadasàexistênciadeDeusqueovinhamatormentandonosúltimostempos.Não que estivesse prestes a se tornar ateu, mas o conceito de Deus lhe parecia cada vez mais

problemático.Queriaconversarsobreisso,etambémsobreumsentimentorecentedefaltadesentidodavida,etalvezsobreosonhodepedirdemissão.JanBublanskiseconsideravauminvestigadordehomicídioscompetente.Seuíndicederesoluçãode

crimesmantinha-seextraordinário,edevezemquandosesentiabastanteestimuladopelotrabalho.Masnãosabiasequeriacontinuaresclarecendohomicídios.Talvezdevessevoltaraosestudosenquantoaindahaviatempo.Sonhavaemdaraulaseemajudarosjovensasedesenvolvereaacreditaremsimesmos,talvezporquemuitasvezeseleprópriocedesseasentimentosdeinadequação.Masnãosabiaquematériagostariadelecionar.JanBublanskinuncatinhaseespecializadoemnenhumaárea,anãosernaquiloqueavidalhereservara:mortesbrutaiseperversõesmórbidas—definitivamente,assuntossobreosquaisnãogostariadefalar.Eramoitoedezdamanhãeeleestavaemfrenteaoespelhodobanheiroajeitandoseuquipá,quejá

tinhavistodiasmelhores.Emoutrasépocas,exibiaumabelacorazul-claraquepareciaatéumpoucoextravagante.Hojenãopassavadeumapeçadesbotadaepuída,comoummodestosímbolodaevoluçãodele,pensouBublanski,quenãoestavanadasatisfeitocomaprópriaaparência.Bublanskisentia-seinchado,cansadoecarecademais,esemperceberpegouoromanceOmagode

Lublin,deIsaacBashevisSinger,umlivroqueeleamavatantoqueodeixavapertodovasosanitário,casosentissevontadedelê-lonosmomentosemqueabarrigaoincomodava.Porémnãoconseguiulermuito. O telefone tocou, e as coisas não melhoraram nem um pouco quando percebeu que era oprocurador Richard Ekström. Uma ligação de Ekström significava não apenas trabalho, masprovavelmenteumtrabalhodeconotaçõespolíticasederepercussãonamídia,senãoopróprioEkströmteriaseencarregadodoassunto.—Oi,Richard.Quebomternotíciassuas—mentiuBublanski.—Infelizmenteestouocupadoagora.—Como…?Nãoparaesseassunto, Jan.Estevocênãopodedeixarpassar.Ouvidizerqueestáde

folgahoje.—Éverdade,masestousaindopara…—JanBublanskinãoqueriadizer“sinagoga”.Suaafiliação

religiosanãoeramuitobem-vistanapolícia.—…paraumaconsultamédica—emendou.

Page 113: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Vocêestádoente?—Naverdade,não.—Oquesignificaisso?Quevocêestámeiodoente?—Algoassim.—Entãonãovejonenhumproblema.Todosnósestamosmeiodoentes,nãoémesmo?Alémdomais,

esseéumcasoimportante,Jan.AministradaIndústria,LisaGreen,metelefonoueconcordouqueocasodeviaficarsobasuaresponsabilidade.—Sinceramente,duvidoqueLisaGreensaibaquemeusou.—Talvezelanãoteconheçapessoalmente,enaverdadeéatémelhorqueelanãoseenvolvamuitoa

fundonainvestigação.Mastodosnósconcordamosqueprecisamosdealguémcombastanteexperiência.—Eujánãocedomaisaessetipodebajulação,Richard.Masquecasoéesse,afinal?—perguntou

Bublanski,arrependendo-seemseguida.Aquelasimplesperguntajávaliacomoummeio“sim”,eelepercebeuqueEkströmaconsiderouuma

pequenavitória.—OprofessorFransBalderfoiassassinadoestamadrugadanacasadeleemSaltsjöbaden.—Equemeraessesujeito?—Umdosnossoscientistasmaisconhecidosinternacionalmenteeumdosnomesmaisimportantesem

tecnologiasrelacionadasaIAnomundointeiro.—Tecnologiasrelacionadasaquê?—OprofessorBaldertrabalhavacomredesneurais,processosdigitaisquânticoseessetipodecoisa.—Continuosementender.—Ele estava tentando fazerumcomputadorpensar.Estava tentandocriarumcérebroartificialque

funcionassedemaneiraidênticaàdocérebrohumano.Demaneira idênticaàdocérebrohumano? JanBublanski ficoucuriosoparasaberoqueo rabino

Goldmanteriaadizersobreisso.—HáindíciosdequeoprofessorBalderjátinhasidovítimadeespionagemindustrial—prosseguiu

RichardEkström.—PorissooMinistériodaIndústriaestáenvolvidonainvestigação.Vocêdevesaberque a ministra Lisa Green andou fazendo um discurso pomposo sobre a importância de defender aspesquisaseasinovaçõestecnológicasdesenvolvidasnopaís.—É,talvez.— E já havia uma ameaça concreta anterior ao homicídio. O professor Balder estava recebendo

proteçãopolicial.—Vocêestáquerendomedizerquemesmoassimelefoiassassinado?—Parecequeelenãorecebeuamelhorproteçãodomundo.OsresponsáveiseramFlinckeBlom.—OsCasanova?—Os próprios. Eles foram designados para fazer a proteção e tiveram que sair à noite, debaixo

daquela tempestade. Em defesa deles, pode-se dizer que a situação realmente não foi fácil. Pelocontrário,houveumaconfusãoetanto.FransBalderfoimortoatirosenquantoosrapazesseocupavamdeumbêbadoqueapareceudonadaemfrenteàcasadoprofessor.Ébempossívelqueoassassinotenhavistoaíumaoportunidadeeseaproveitadodessadistração.

Page 114: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Essahistórianãoestámecheirandobem.—Foitudoextremamenteprofissional.Alémdisso,osistemadealarmedacasatinhasidohackeado.—Entãoforamváriaspessoas?—Éoqueestamosachando.Ah,e…—Sim?—Existemalgunsdetalhesmeioincômodos.—Detalhesqueamídiavaiadorar?— Detalhes que a mídia vai adorar — prosseguiu Ekström. — O bêbado que apareceu lá, por

exemplo,eraninguémmenosdoqueLasseWestman.—Oator?—Opróprio.Eissonostrazproblemas.—Porquevaipararnosjornais?— Em parte, sim, mas também porque vai acabar caindo sobre os nossos ombros um monte de

problemasrelacionadosaumaseparação.OLasseWestmandissequetinhaidolábuscarseuenteadodeoitoanos,queestavacomoFransBalder,eomenino…Espereumpouco,precisomecertificardequeestoupassandoainformaçãocorreta.OmeninoéfilhobiológicodoBalder,masoprofessorfoijulgadoincapazdetomarcontadele.—Como assim?Umcientista que pretendia criar umcérebro artificial que funcionasse demaneira

idênticaàdeumcérebrohumanoeraincapazdecuidardoprópriofilho?— Exato. O Balder já tinha sido negligente no passado e assumiu apenas as responsabilidades

financeiraspelofilho…Enfim,elefoiumverdadeirofracassocomopai,seentendiahistóriadireito.Dequalquer forma, é umahistória bastante delicada.E essemenino, que não devia estar na casa do pai,provavelmenteéaúnicatestemunhadocrime.—Eoquefoiqueeledisse?—Nada.—Eleestáemestadodechoque?—Também,maselenãodirianadadequalquerforma.Omeninoémudoetemumadeficiênciamental

grave.Porissonãovaipodernosajudar.—Entãonãotemossuspeitos.— Não teríamos nenhum se o Lasse Westman não tivesse aparecido bem no momento em que o

assassinoentrounacasaeatirounoBalder.Por issoé importantequevocêso interroguemassimquepossível.—Seeuaceitarocaso,vocêquerdizer.—Vocêvaiaceitar.—Temcerteza?—Eudiriaquevocênãotemescolha.Alémdomais,guardeiamelhorparteparaofim.—Eoquetemosnaúltimaparte?—MikaelBlomkvist.—Oqueéquetemele?—Poralgummotivoeleestava lá.MinhasuspeitaéqueoBalder tenhachamadooBlomkvistpara

Page 115: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

fazeralgumadenúncia.—Demadrugada?—Claro.—Edepoisfoiassassinado?—NoexatoinstanteemqueoBlomkvisttocouacampainha.Elechegouaverderelanceoassassino.JanBublanski soltouumagargalhada.Umcomportamento totalmente inadequado,queelenão soube

explicarnemasimesmo.Talvezfosseumareaçãonervosaoupossivelmenteosentimentodequeavidaestavaserepetindo.—Oquefoi?—perguntouEkström.—Um acesso de tosse, só isso. Ou seja, agora vocês estão preocupados, porque não querem um

investigadorparticularfazendorevelaçõespoucolisonjeirassobrevocês.— É, talvez. De qualquer modo, como imaginamos que a Millennium esteja preparando uma

reportagemsobreocaso,jáestouembuscadeumrecursolegalparadetê-los,oupelomenosparaimporalgumas restrições ao trabalho deles. É bem possível que esse caso seja tratado como assunto desegurançanacional.—EntãoaSäpotambémestáenvolvida?—Nadaadeclarar—respondeuEkström.Váparaoinferno,pensouBublanski.—ÉoRagnarOlofssoneopessoaldoServiçodeProteçãoàIndústriaqueestãotrabalhandonocaso?

—eleperguntou.—Comoeudisse,nadaadeclarar.Quandovocêcomeça?Váparaoinfernodenovo,pensouBublanski.—Eu tenhoumacondiçãoparacomeçar—dissepor fim.—Quero trabalharcomaminhaequipe:

SonjaModig,CurtSvensson,JerkerHolmbergeAmandaFlod.—Tudobem,masoHansFastetambémvaifazerpartedaequipe.—Nãomesmo!Nemporcimadomeucadáver!—Medesculpe, Jan,masessaéumacondição inegociável.Você jádevia sergratopor terpodido

escolherquasetodooseupessoal.—Vocênãotomajeitomesmo,hein?—Éoquedizemporaí.—EntãooFastevaiseronossoagenteinfiltradodaSäpo?—Na verdade, não,mas acho que qualquer grupo funcionamelhor com uma pessoa que pensa de

maneiradiferentedasoutras.—Agora que finalmente conseguimosnos livrar de ideias preconcebidas, você quer trazer oFaste

paraagenteretroceder?—Nãodigabobagem.—VocêsabequeoFasteéumimbecil.—Não,Jan,nãomesmo.Pelocontrário,eleé…—Oquê?—Conservador.Éumapessoaquenãosedeixalevarporessaondarecentedefeminismo.

Page 116: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Nempelasondasmaisantigas.Naverdade,achoqueoFasteacabadesereconciliarcomaideiadequeasmulherestambémpodemvotar.— Jan, você devia ter umpoucomais de cuidado como que diz.OHansFaste é um investigador

absolutamenteconfiáveleleal,enãoqueroouvirmaisfalardisso.Vocêtemmaisalgumaexigência?Quevocêsumadaminhafrente,pensouBublanski.—Vou àminha consultamédica e, nessemeio-tempo, quero que a SonjaModig se encarregue da

investigação—eledisse.—Vocêachamesmoumaboaideia?—Achoumaexcelenteideia.— Tudo bem, tudo bem, vou pedir que o Erik Zetterlund passe a investigação para ela— disse

RichardEkström,fazendoumacareta.NemRichardEkströmestavaconvencidodequeeleprópriodeviateraceitadoainvestigação.AlonaCasalesraramentetrabalhavaànoite.Faziaváriosanosquetentavaevitarisso,sobretudopor

causadeseu reumatismo.De temposem temposeleaobrigavaa tomar fortesdosesdecortisona,quefaziambemmaisdoqueconferirumaspectodeluacheiaaseurosto.Suapressãosanguíneadisparavaeentãoelaprecisavadormirbastanteenãosairdarotina.Mesmoassim,láestavaela.Eramtrêsedezdamanhã.Elatinhasaídodecarrodesuacasa,emLaurel,Maryland,sobumachuvafraca,seguidopela175Eastepassadopelaplaca“NSA—entradaàdireita—somentepessoalautorizado”.Alona Casales ultrapassou as barreiras e as cancelas de segurança e seguiu em direção ao prédio

principalemformatocúbico,emFortMeade.Deixouocarronoestacionamento,àdireitadosradomosazul-clarosedasfrenéticasparabólicas,epassouporoutrasbarreirasdesegurançaantesdechegaraoescritórioondetrabalhava,nodécimosegundoandar.Nãohaviaumagrandeatividadeládentro.Porissosesurpreendeucomumacertainquietaçãonoambiente,enãofoiprecisomuitotempopara

notarqueEd theNedeogrupode jovenshackersque trabalhavacomele eramos responsáveispeloclimadeabsolutaseriedadequedominavaoescritório—mesmoconhecendoEdmuitobem,Alonanãoocumprimentou.Ed parecia possuído e havia acabado de se levantar para xingar um jovem cujo rosto parecia

iluminadoporumbrilhopálido.Eraumrapazestranho,pensouAlona,exatamentecomotodososjovensgêniosdainformáticacomquemEdserelacionava.Orapazeramagroeanêmicoeseucabelodavaaimpressão de ter acabado de sair do inferno. Além disso, tinha ombros arredondados que pareciamatacadosporespasmos.Ocorpodeletremiadetemposemtempos:deviaestarassustadodeverdade,eochutequeEddesferiucontraapernadeumacadeiranãocolaborouemnadaparaqueorapazconseguisseseacalmar.Elepareciaàesperadeumabofetadaoudeumsoconorosto.Masoqueaconteceufoiumtantoinesperado.Edseacalmouemexeunocabelodorapaz,comoumpaiamorosofaria—nãoeraumaatitudetípica

dele.Ednãogostavadedemonstraçõesdeafetoeconversamole.Eraotípicocaubói,quejamaisfariaalgotãosuspeitocomoabraçaroutrohomem.Masàsvezespareciatãodesesperadoquesepermitiaumademonstraçãoextremadehumanidade.AcalçadeEdestavadesabotoada.Elehaviaderramadocaféou

Page 117: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

coca-colanacamisa,seurostoestavacomumacoloraçãoavermelhadaedoentiaeavoz,roucaeríspida,como se tivesse gritadomuito, o que levou Alona a pensar que ninguém com aquela idade e aquelesobrepesodeviaseexcederassimnotrabalho.Embora só tivessem se passado poucomais de doze horas, a impressão era queEd e seus garotos

estavamacampadosalihavianomínimoumasemana.Por todapartehaviacanecasdecafé, restosdecomida, tampas de garrafa e blusões comnomede universidade, e daqueles corpos desprendia-se umcheiroazedodesuoreansiedade.Ogrupotinhasedispostoaviraromundodecabeçaparabaixoafimdeencontrarohacker,ecomumentusiasmofingidoAlonagritou:—Nãodeemmoleza,rapazes!—Vocênemimaginaoqueestamosplanejando!—Quebom.Acabemcomessedesgraçado!Mas Alona não estava sendo totalmente sincera. Não achava invasões cibernéticas uma coisa

divertida.Muitosdaquelesrapazespareciamacreditarquepodiamfazeroquebementendessem,comosetivessemcartabrancaparatomarqualquertipodedecisão,eseriabastantesaudávelquepercebessemque o outro lado podia revidar ao ataque. “Quem espiona a população acaba sendo espionado pelapopulação”, o hacker teria escrito. Era uma frase bem interessante, pensou Alona, embora não fosseverdadeira.OPuzzlePalacerepresentavaumavantagemincrível,mesmoassimpareciainsuficientequandoaNSA

tentava entender algo a fundo, como fazia naquele instante.CatrinHopkins a havia acordado comumtelefonemaparainformarqueoprofessorFransBaldertinhasidomortoemsuacasa,nosarredoresdeEstocolmo,emesmoqueesseassunto,pelomenosporenquanto,nãofossemuitoimportanteparaaNSA,eraimportanteparaAlona.A vítima era uma prova de que ela havia interpretado os sinais demaneira correta, e agora seria

necessário dar mais um passo adiante. Alona fez o login no computador e abriu o diagrama daorganizaçãocriminosa,ondeofugazemisteriosonomedeThanosocupavaaposiçãomaisalta,emboratambém houvesse nomes como o de Ivan Gribanov, integrante da Assembleia Legislativa russa, e doalemãoGruber,umjovemcomformaçãoinvejávelenvolvidonumasofisticadaoperaçãodetráfico.Alonanãoentendiaporqueesseassunto tinha recebidoumaprioridade tãobaixanaNSA eporque

seussuperioresotransferiamconstantementeparaórgãoscomunsdecombateàviolência.Aseuver,nãoseria impossível que essa rede criminosa estivesse recebendo proteção do governo, ou então tivesseligaçõescomoserviçodeinformaçãorusso,enessecasotudonãopassariademaisumaquedadebraçoentre Ocidente e Oriente. Mesmo que existissem poucos indícios e as provas fossem um tantoquestionáveis, havia sinais bastante claros de que uma tecnologia ocidental tinha sido roubada e idopararnamãodosrussos.Nãohaviacomonegarqueeraumcasocomplicadoequenemsempreerafácilsaberseumcrimetinha

defatosidocometidoouseosurgimentodeumatecnologiaidênticaemoutrolugarnãopassavademeracoincidência. Com o avanço tecnológico, o roubo de segredos industriais havia se transformado numconceito extremamente fluido. Roubava-se e copiava-se o tempo inteiro, às vezes como parte de umintercâmbiocriativo,àsvezesporqueessesataquesconseguiamobterlegitimaçãojurídica.Comfrequênciagrandesempresastentavamintimidarpequenascompanhiascomseusadvogados,com

ameaças,eninguémachavaestranhoalgunsinovadoresseremprivadosdeseusdireitosdepropriedade.

Page 118: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Alémdomais,aespionagemindustrialeas invasõesdecomputadoresmuitasvezeseramvistascomopoucomais do que um simples procedimento analítico, e não constava que o Puzzle Palace estivessecontribuindomuitoparamoralizaressaárea.Por outro lado, seria difícil relativizar um assassinato, e Alona tomou a decisão quase solene de

examinar cadapeçadaquelequebra-cabeçaa fimdepenetrarmais fundonaorganização.Masnão foimuitolonge.Naverdade,tudoqueconseguiufoiestenderosbraçosparamassagearsuanuca,quandoderepenteouviupassosatrásdesi.EraEd, e ele nãoparecia emboas condições.Seu corpo estava todo torto.As costas dele também

deviamestararrebentadas.AnucadeAlonamelhorouassimqueelapôsosolhosemseucolega.—Ed,aquedevoahonra?—Achoqueestamoscomomesmoproblema.—Sente-se,meuvelho.Vocêprecisasentarumpouco.— Ou ser esticado numa mesa de tortura. Sabe, de acordo com o meu ponto de vista um tanto

limitado…—Ed,nãosedesmereça.—Nãoestoumedesmerecendoporranenhuma.Comovocêsabe,eunãodouamínimaparaquemtem

ounãotemstatus,ouparaquempensaistoouaquilo.Eumeconcentronosmeusassuntos,epronto.Souoencarregadodeprotegeronossosistema,eaúnicacoisaquerealmentemeimpressionaécompetênciaprofissional.—VocêcontratariaoprópriodemônioseelefosseumtécnicomaravilhosodeTI.—Eurespeitoosmeusinimigosquandoelesmostramcompetência.Entendeoqueestoudizendo?—Entendo.—Estoucomeçandoaacharquenósdoissomosparecidos,eueessecara,mesmoquesejasóuma

coincidênciaincrível.Comovocêdeveestarsabendo,umRAT,ouseja,umprograma-espião,infectouosnossoscomputadoreseseespalhoupelaintranet,eesseprograma,Alona…—Oqueéquetem?—Esseprogramaémúsicapura.Extremamentecompactoeescritocomumaelegânciaincrível.—Finalmentevocêencontrouuminimigoàaltura.—Comcerteza,eomesmovaleprosmeusrapazes.Estãotodoslábancandoospatriotasindignados,

mas no fundo tudo que eles querem é achar esse hacker e exibir seus conhecimentos para ele, contarvantagem.Porumtempoeutenteipensarquetudobem,queeraassimmesmo.Oestragonãofoigrande.Estamos atrásdeumgênioda informáticaque estáquerendoaparecer, e talvez essahistória até tenhaconsequênciaspositivas,afinalestamosaprendendomuitacoisasobreanossavulnerabilidadeenquantoagenteprocuraessecara.Sóquedepois…—Oquê?—Depoiseucomeceiapensarseeunãoestavaenganado…setodaaquelaexibiçãonomeuservidor

nãoerasóumacortinadefumaçapradisfarçaralgumaoutracoisa.—Quecoisa?—Algumacoisaqueocaraestavaprocurando.—Agorafiqueicuriosa.

Page 119: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Énatural.Agentedescobriuexatamenteoqueohackerestavaprocurando,etemtudoavercomaquelaredequevocêandavapesquisando,Alona.OnomedelesnãoéSpiders?—TheSpiderSociety.Maséumnomeusadomaiscomobrincadeira.—Ohacker estava procurando informações sobre esse grupo e o trabalho que eles fizeram com a

Solifon,entãoacheiqueeletalvezfizessepartedaredeequisessesaberoqueagentetinhadescobertosobreeles.—Nãoéumateoriaabsurda.Eficouclaroqueohackertemacompetêncianecessáriaparabisbilhotar

onossosistema.—Masdepoiscomeceiaduvidardessaminhateoria.—Porquê?—Porquefiqueicomaimpressãodequeohackerquerianosmostraralgumacoisa.Eleconseguiuo

statusde superusuárioe teveacessoa arquivosque talveznemvocêpossaacessar, comodocumentossecretos,eoarquivoqueelecopiouebaixoutemumacriptografiatãoforte,quenemelenemagentetêmamenorchancedeacessaroconteúdo,anãoserqueofilhodaputaqueescreveuoprogramadêachavesecretaparaagente,sóque…—Oquê?—Ohackermostrou,atravésdonossoprópriosistema,queagentetambémestátrabalhandoparaa

Solifon.Vocêsabiadisso?—Caramba.Não.—Euimaginei.MasparecequerealmentetemosgentenossanogrupodoEckerwald.ASolifonestá

participando da nossa espionagem industrial, por isso o seu caso recebeu uma prioridade tão baixa.Estavamcommedodequeasuainvestigaçãofizesseamerdaespirrarnagente.—Cretinos.—Concordo.Epodeserquetiremvocêdocaso.—Euvouficarfuriosaseissoacontecer.—Calma,calma.Agenteaindatemumasaída,foiporissoqueeuvimarrastandomeupobrecorpinho

atéaqui.Vocêpodecomeçaratrabalharpramim.—Comoassim?—Esse hacker filho da puta tem informações sobre osSpiders, e se a gente descobrir quemele é

vamosfazerumbeloprogresso.Eaívocêvaipoderdizerasverdadesquebementender.—Estoucomeçandoaveraondevocêquerchegar.—Issoéumsim?—Éumtalvez.AindaprecisomeconcentrarnainvestigaçãodoassassinatodoFransBalder.Quero

descobrirquemfoi.—Evocêpodedividiressainformaçãocomigo?—Tudobem.—Ótimo.—Masescute—prosseguiuAlona—,seohackerétãobomassim,porqueelenãolimpouosrastros

quedeixou?— Não se preocupe com isso. Não importa o quanto ele possa ter sido cuidadoso. A gente vai

Page 120: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

encontrá-lo,eencontrá-lovivo.—Oqueaconteceucomoseurespeitopeloinimigo?—Elecontinuaexistindo,minhacara.Masassimmesmoagentevaipegarocaraejogarelenaprisão

prorestodavida.Nenhumfilhodaputainvadeomeusistemaeficaporissomesmo.

Page 121: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

13.21DENOVEMBRO

MikaelBlomkvistnãoconseguiudormir.Osacontecimentosdaquelamadrugadaoassombravam,eàsonzeequinzedamanhãeledesistiueselevantou.Foiatéacozinha,preparoudoissanduíchesdequeijocheddarepresuntodeParmaenumatigelapôs

granolaeiogurte.Masnãocomeuquasenada.Apostou,então,emcafé,águaecomprimidosparadordecabeça.BebeucincoouseiscoposdeáguamineralRamlösa,tomoudoiscomprimidosdeparacetamol,pegouumblocodeanotaçõesecomeçouaescreverumresumodoquehaviaacontecido.Masnão foimuito longe. Logo o caos se instalou.Os telefones começaram a tocar e não demoroumuito para eleentenderoquetinhaacontecido.Anotíciahaviaseespalhadoeinformavaque“oastrodojornalismoMikaelBlomkvisteoatorLasse

Westman”estavamnocentrodeum“misterioso”assassinato—misteriosopoisninguémsabiaexplicarporqueWestmaneBlomkvist, juntosouseparados, tinhamestadonolocalondeofamosopesquisadorsuecohaviasidoassassinadocomdoistirosnacabeça.Asinsinuaçõeserammuitas,efoiporessarazãoqueMikaelresolveudizerclaramentequeeletinhaidoàcasadoprofessoremplenamadrugadaportermotivosparaacreditarqueBalderquerialhefazerumarevelaçãourgente.—Fuiláfazeromeutrabalho—explicou.Umadefesaquenemteriasidonecessária.PorémMikaelsentiu-seacusadoequisdarumaexplicação,

mesmoque com isso atraíssemais repórterespara ahistória.Depois se limitou aumnãomuito ideal“Nada adeclarar”,maspelomenos essaspalavras tinhamavantagemde ser claras ediretas.DepoisMikael desligou o celular, pôs de novo o antigo casaco de pele herdado do pai e saiu em direção àGötgatan.Aatividadena redação lembrou-lheosvelhos tempos.Por todaparte, emcada canto, seus colegas

trabalhavammuitoconcentrados.ComcertezaErikadevia ter feitoumdiscurso inflamadoparaeles,ecomcertezatodosestavamcientesdaseriedadedomomento.Alémdeestaremadezdiasdofechamento,aameaçadeLevinedogrupoSernertambémpairavasobreacabeçadetodomundo,eaequipepareciadispostaa reagir.Mesmoassim,elesseagitaramaovê-loentrarecomeçaramafazerperguntassobreBalder,sobreanoiteanterioresobreasreaçõesdeleàsmedidasadotadaspelogruponorueguês.Mikael,porém,tentoudeixaressesassuntosparadepois.—Maistarde,pessoal,maistarde—disseenquantoiaatéamesadeAndreiZander.AndreiZandertinhavinteeseisanoseeraomaisjovemdaredação.Haviaentradonarevistacomo

estagiário, e acabou ficando, às vezes trabalhando como temporário, como agora, às vezes como

Page 122: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

freelancer.Mikaellamentavanuncapoderteroferecidoaelealgofixo,especialmentedepoisquehaviamcontratado EmilGrandén e SofieMelker.Mikael teria preferidoAndrei.MasAndrei ainda não tinhanomenomercado,etalvezfaltassealgumacoisaparaestarprontocomoredator.Apesardisso,tinhaumespíritodeequipeinvejável,oqueeraótimoparaarevista,emboranãomuito

para o próprioAndrei.Não numa área tão individualista como o jornalismo.O garoto era um poucovaidoso, e não lhe faltavam motivos para isso. Andrei parecia uma versão mais jovem de AntonioBanderaseraciocinavamaisdepressadoqueamaioriadaspessoas.Entretantonãofazianadaparasepromover.Queriaapenasestarjuntocomosoutroseescreverbonsartigos,eadoravaaMillennium,ederepenteMikaelsentiuqueadoravatodosqueadoravamaMillennium.UmdiaaindafariaalgorelevanteparaAndreiZander.—Oi,Andrei—disseMikael.—Comoestãoascoisas?—Oi.Bemagitadas.—Eunemesperavaoutraresposta.Oquevocêconseguiu?— Bastante material. Está tudo na sua mesa, e também escrevi um resumo.Mas posso te dar um

conselho?—Tudoqueeuestouprecisandoédeumbomconselho.—VáagoraseencontrarcomFarahSharifnaZinkensVäg.—Quem?—Elaéumaprofessoradeciênciasdacomputaçãobembonitaquemoranessaruaetemodiainteiro

livrehoje.—Vocêestámedizendoqueoqueeuprecisonestemomentoédeumamulherinteligenteelinda?—Nãoébemisso.AprofessoraSharifacaboudeligarparaaredaçãodizendoquetinhaaimpressão

dequeFransBalderestavadispostoarevelaralgumacoisaparavocê.Elaachaquesabedoquesetrataequerfalarcomvocê.TalvezapenasparafazeravontadedoBalder.Paramimpareceumjeitoidealdevocêcomeçar.—Vocêjápesquisoualgumacoisasobreela?—Claro,enãopodemosdescartarapossibilidadedeelaterseusprópriosinteressesnessahistória.

MaselaerabempróximadoBalder.Osdoisestudaramjuntos,escreveramartigoscientíficosjuntos,eeutambémencontreiduasoutrêsfotosdosdoisladoaladoemeventos.AprofessoraShariféumnomedepesonaáreadela.—Tudobem,nessecasoestouindo.Vocêpodeavisá-laqueestouacaminho?—Posso—disseAndreipassandooendereçoaMikael.Nem bem havia chegado à redação Mikael já estava na rua de novo, caminhando em direção à

HornsgataneaomesmotempolendoomaterialdepesquisapreparadoporAndrei.Porduasoutrêsvezesesbarrou em alguns pedestres. Mas estava tão concentrado que mal pedia desculpas, por isso ficousurpresoaoperceberquenãoestavaindodiretoparaoendereçodeFarahSharif.EleparounobarecaféMellqvistetomoudoisespressosduplosempé.Enãoapenasparatirarocansaçodocorpo.Mikaeltambémachavaqueumchoquedecafeínapodiafazersuadordecabeçapassar.Masdepois

ficou pensando se teria sidomesmo o remédiomais indicado.Ao sair do café, sentia-se pior do quequandohaviachegado,enãosóporculpadosespressos.Eraporcausadobandodeimbecisquetinham

Page 123: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

lidosobreoqueaconteceranamadrugadaecomeçadoaescreveridioticessobreocaso.Diziamqueomaiordesejodosjovenseravirarumacelebridade.Mikaelsentiavontadededizeraelesqueissonãoera algo para se desejar. Pelo contrário: podia ser enlouquecedor, principalmente se você não tinhadormidonadaànoiteetinhavistocoisasqueninguémdeviaver.MikaelBlomkvistsubiuaHornsgatan,passoupeloMcDonald’sepeloCoop,atravessouemdireçãoà

Ringvägenesentiuocorpotensoaoolharparaadireita,comosetivessevistoalgoimportante.Masoquepoderiahaverdeimportanteali?Nada!Eraapenasmaisumcruzamentodacidade,cheiodefumaçadeescapamento,sóisso.Continuouandando,porémemseguidaeleentendeu.Aquele era o semáforo, exatamente o semáforo, que Frans Balder havia desenhado com absoluta

precisãomatemática,eissofezMikaelrefletirmaisumavezsobreaescolhadaquelecenário.Afaixadepedestresdesgastadatambémnãodespertavanenhuminteresse.Quemsabefossejustamenteessaarazãodaescolha?Nãoeraotemaemsi.Eraoquecadaumvianele.Aobradearteestánoolhodoobservador,enãono

temaqueeleescolhe.TudoquesepoderiadizeréqueFransBaldertinhaestadonaquelelugaretalvezsesentadonumacadeiraporaliparaestudarosemáforo.MikaelpassounafrentedoginásioZinkensdammevirouàdireitanaZinkensVäg.A inspetora Sonja Modig havia trabalhado muito de manhã. Agora ela estava em seu escritório,

olhandoparaumafotografianumporta-retratosquetinhaemcimadamesa.Nela,Axel,seufilhodeseisanos,comemoravaumgolquehaviamarcadonumjogodefutebol.Sonjaeramãesolteiraenãolevavaumavidafácil.Emuitofriamenteelasabiaquesuavida,pelomenosacurtoprazo,continuarianãosendofácil.Umabatidanaporta.EraBublanski.Porfimelairiapodertransferiraelearesponsabilidadepelainvestigação.MasBubolhanãopareciamuitoansiosoparaassumirnenhumtipoderesponsabilidade.Bublanskiestavamaisbemvestidoqueonormal,compaletó,gravataeumacamisaazulnovinhaem

folha.Tinhapenteadoocabelodeumjeitoquedisfarçavaacareca.Seuolharpareciasonhador,distante,comardequemestavapensandoemqualqueroutracoisa,menosnumainvestigaçãodehomicídio.—Oqueomédicodisse?—Sonjaperguntou.—QueoimportantenãoéacreditarmosemDeus.Deusnãoémesquinho.Oimportanteéentendermos

queavidaécoisasériaerepletadeoportunidades.Temosquesaberapreciaressasqualidadesqueelatem e tentar fazer domundo um lugarmelhor.Quem atinge o equilíbrio se encontramais próximo deDeus.—Entãovocêandoufalandocomorabino?—É.—Tudobem,Jan,maseunãoseioquefazerparaapreciaravida.Nomáximopossolheoferecerum

pedaçodechocolatesuíçocomlaranjaqueeuporacasotenhoaquinaminhamesa.MassepegarmosocaraquematouFransBalder,semdúvidavamospoderfazerdestemundoumlugarmelhor.—Chocolatesuíçocomlaranjaeasoluçãodeumhomicídiomeparecemumótimocomeço.Sonjapegouochocolate,quebrouumpedaçoeoentregouaBublanski,quecomeçouamastigá-locom

umaexpressãoquasereverencial.

Page 124: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Delicioso—disseBublanski.—Nãoé?—Imagineseavidapudesseserassimdevezemquando—eledisse,apontandoparaafotografiade

Axelemseumomentodetriunfo.—Comoassim?—Comafelicidadesemanifestandocomamesmaforçaqueatristeza—eleprosseguiu.—É.Imagina…—ComoestáofilhodoBalder?—eleperguntou.—August,nãoé?—Édifícildizer—respondeuSonja.—Eleestánacasadamãe.Recebendoacompanhamentodeum

psicólogo.—Eoquetemosatéagora?— Não muita coisa, infelizmente. Temos o modelo da arma. Uma Remington 1911 R1 Carry,

provavelmentenova.Aindaestamosinvestigando,mastenhoquasecertezadequenãovamosconseguirrastreá-la.Temosasimagensdascâmerasdesegurança,eelasjáestãosendoanalisadas.Maspormaisqueagenteolheessematerialdetodososângulosimagináveis,nãodáparaverorostodosuspeito,nemalgumsinal característicodele,umamarcadenascença, enfim,nadaalémdeumrelógiodepulsoqueparececaro.Aroupaétodapreta.Obonéécinza,semnadaescritonele.OJerkerdissequeosujeitosemovimentacomoumvelhodrogado.Numadasimagens,eletemnasmãosumacaixinhapreta,quetalvezsejaumcomputadorouumaestaçãodeGSM.Osistemadealarmepodetersidohackeadoassim.—Ecomoéquesehackeiaumsistemadealarme?— O Jerker foi atrás disso, e não parece ser nada fácil, principalmente no caso de um alarme

complexocomoodoBalder,mastambémnãoéimpossível.OsistemaestavaligadonainternetenarededetelefoniamóveledetemposemtemposmandavainformaçõesparaaMiltonSecurity.Osuspeitopodeter gravado a frequência do alarme para hackeá-lo. Ou então ter topado com o Balder durante umacaminhadaqualquereroubadoainformaçãoeletronicamente,doNFCdoprofessor.—Roubadoainformaçãodeonde?—DoNearFieldCommunicationdele.UmafunçãodocelulardoBalder,queeleusavaparaativaro

alarme.—Erabemmaissimplesquandoosladrõesusavampésdecabra—disseBublanski.—Algumcarro

nasproximidades?—Haviaumcarroescuroparadonoacostamento,acercadecemmetrosdacasa,comomotorligado,

masaúnicapessoaqueviuessecarrofoiumamulherchamadaBirgittaRoos,eelanãotemamenorideiadequemodeloeleera.DisseapenasquetalvezfosseumVolvo.Ouumcarroparecidocomodofilhodela.OfilhodelatemumBMW.—Putz.— É, essa investigação não está nada fácil — prosseguiu Sonja. — Os criminosos souberam se

aproveitardanoiteedatempestade.Assimsemovimentaramsemnenhumimpedimentoe,foraoMikaelBlomkvist,temosapenasmaisumatestemunha.OnomedeleéIvanGrede.Umsujeitopequeno,magro,alegreque teve leucemiana infânciaedecorouo seuquartoemestilo japonês.Faladeum jeitomeiopedante.OIvanselevantoudemadrugadaparairaobanheiroe,ládajaneladobanheiro,viuumhomem

Page 125: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

fortecaminhandobempertodomar.Ohomemsevirouparaomare fezo sinaldacruzcomopunhocerrado.Eledissequeosmovimentospareciamaomesmotemporeligiososeagressivos.—Nãoéumaboacombinação.—Não,religiãoeviolênciadificilmentedãoemboacoisaquandosemisturam.MasoIvannãotem

certezasefoimesmoumsinaldacruz.Pareciaumsinaldacruzcomummovimentoamais,eledisse.Talvezumjuramentomilitar.PoralgumtempooIvanficoucommedodequeohomemfosseentrarnaáguaesesuicidar.Eledissequehaviaalgodesolenenaquelacena,algobastanteagressivo.—Masnãoeraumsuicídio.—Não.LogoohomemsaiucorrendoemdireçãoàcasadoBalder.Tinhaumamochilanascostase

estavausandoumaroupaescuraepossivelmenteumacalçacamuflada.Ohomemeraforte,comumbomfísico,eIvandissequeaovê-loselembroudeumantigobrinquedoseu,osguerreirosninja.—Issotambémnãoparecemuitobom.—Nemumpouco,eprovavelmentefoiessehomemqueatiroucontraoMikaelBlomkvist.—EoBlomkvistnãoviuorostodele?—Não, porque ele se jogou no chão quando viu o homem se virando para atirar. Foi tudomuito

rápido. Segundo o Blomkvist, o homem parecia ter recebido treinamento militar, o que bate com odepoimentodeIvanGrede,eeutambémmesintoinclinadaaconcordarcomisso.Arapidezeaeficáciadessaoperaçãoapontamparaisso.—VocêsdescobriramoqueoBlomkvistestavafazendolá?—Descobrimos.Sehouveumacoisabem-feitaontemànoite,foiointerrogatóriodoBlomkvist.Você

pode dar uma olhada— disse Sonja, entregando um documento a Bublanski. — O Blomkvist tinhaconversadocomumex-assistentedoBalder,eessapessoacontouqueoprofessorhaviasidovítimadeumroubodetecnologiaatravésdeumainvasãodigital,eahistóriadespertouointeressedoBlomkvist.ElequisfalarcomoBalder,masoprofessornãooprocurou.Aliás,elenuncaprocuravaninguém.Nosúltimostempos,viviaisolado,praticamentesemcontatocomomundoexterior.Todasascomprasetodososassuntosdomésticoseramresolvidosporumaempregadachamada…espereumpouco…LottieRask,easra.RasktinharecebidoordensdenãocontaraninguémqueofilhodeBalderestavanacasadopai.Jávouexplicaressaparte.Masànoitealgumacoisaaconteceu.TalvezoBalderestivessepreocupadoetenharesolvido tirarumpesodascostas.NãoesqueçaqueoBalder tinhaacabadodesaberquehaviaumaameaça realcontraele.Alémdomaisosistemadealarme tinhadisparadoehaviadoispoliciaisvigiando a casa. Talvez ele achasse que estava com os dias contados. Não sei. De madrugada eletelefonouparaMikaelBlomkvistedissequetinhaumahistóriaparacontar.—Antigamenteaspessoasligavamparaumpadrenessahora.—Hojeparecequeaspessoasligamparaumjornalista.Bem,tudoésóespeculação.Oquesabemos

com certeza é o que o Balder deixou gravado na secretária eletrônica do Blomkvist. No mais, nãofazemosamenorideiadoquepodeseressahistória.OBlomkvistdissequetambémnãosabe,eacreditonele.Masparecequesóeu.ORichardEkström,quealémdetudoéumchato,estáconvencidodequeoBlomkvistestásonegandoinformaçõesparapublicarnarevista.Paramimédifícilacreditarnisso.Todomundo sabe o quanto o Blomkvist é esperto, mas ele não sabotaria uma investigação policial depropósito.

Page 126: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Éverdade.—AquestãoéqueoEkströmagoracomeçouaapelaredissequeoBlomkvisttemqueserdetidopor

obstruçãodejustiça,perjúrioenãoseimaisoquê.Elesóficarepetindo:“Elesabe,elesabe…”.Elevaiacabarfazendoalgumacoisa.—Issonãovaiacabarbem.—Nãovaimesmo.EconsiderandoacapacidadeinvestigativadoBlomkvist,eudiriaqueseriauma

boaideianãocriarnenhumtipodeinimizadecomele.—Achoquevamosprecisarinterrogá-lomaisumavez.—Eutambémacho.—EquantoaoLasseWestman?—Acabamosdeinterrogá-lo,eahistóriaqueelecontounãoémuitoedificante,paradizeromínimo.

OWestman foi aoKonstnärsbaren, ao Teatergrillen, aoOperabaren, aoRiche, e sóDeus sabe aondemais, e ficou tagarelando sobre o Balder e o menino por horas e horas. Os amigos dele quaseenlouqueceram,equantomaisoWestmanbebiaetorravadinheiro,maisobcecadoeleficava.—Eporqueissoeratãoimportanteparaele?—Empartetemavercomocomportamentoobsessivodosalcoólatras.Euseiporqueomeutioera

assim.Semprequeenchiaacara,elegiaumassunto.Masaquinonossocasotemalgomais:oWestmanfalouotempointeirosobreojulgamentoquehaviadadoaguardadomeninoàmãe,oquetalvezpesasseafavordeleseelefosseumapessoacomumpoucomaisdeempatia.Nessecasoatépoderíamosacharqueeleestavaapenaspensandonobem-estardomenino.Porém,comovocêdevesaber,oWestmanjáfoicondenadoporagressão.—Eunãosabia.—Algunsanosatráselenamorouaquelablogueirademoda,aRenataKapusinski.Eeledeuumasurra

nela.Achoquechegouafraturarorostodela.—Poxa.—Alémdisso…—Sim?—OBaldertinhaescritováriaspetições,quetalvezporcausadasituaçãolegalemqueeleestavanão

chegaramaserenviadas,enessesdocumentosficabemclaroqueelesuspeitavaqueoWestmantambémagrediaomenino.—Oquevocêestádizendo?—Balderencontrouhematomasnocorpodofilho,eumapsicólogadoCentrodeAutismoconfirmoua

denúncia.Então…—…dificilmenteLasseWestmanteriaidoaSaltsjöbadenporamor.—Exato.Omaisprováveléquetenhasidopordinheiro.Depoisquelevouofilhoembora,oBalder

suspendeuoupelomenosdiminuiuapensãoquevinhapagando.—EoWestmannãofeznenhumadenúncia?—Nãoseatreveu,emvistadascircunstâncias.—Equeoutrasinformaçõeshánasentençasobreaguardadomenino?—perguntouBublanski.—QueoBaldereraumanegaçãocomopai.

Page 127: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Émesmo?— Não que ele fosse uma pessoa ruim, como o Westman. Mas houve um incidente. Depois do

divórcio,oBalderficavacomomeninoumfimdesemanaacadaquinzena,enessaépocaelemoravanumapartamentoemÖstermalmcomestantesdelivrosqueiamdochãoatéoteto.Numdessesfinsdesemana, quandoAugust tinha seis anos, ele estava na sala enquanto oBalder, como sempre, ficava otempo todo concentrado em frente ao computador num cômodo ao lado. Havia uma pequena escadaencostadanumadasestantes,eAugustsubiunela.Eledevetertentadopegarumlivronaprateleiramaisalta,próximaaoteto,caiueacabounochão,inconscienteecomocotoveloquebrado.MasoFransnãoouviu nada. Simplesmente continuou lá trabalhando, e só depois de várias horas encontrou Augustbalbuciandonochão,pertodoslivros.Bom,aíeleficouhistéricoelevouomeninoparaohospital.—Efoiassimqueeleperdeudevezaguardadofilho?—Nãofoisóporisso.TambémconstataramqueoBaldereraemocionalmenteimaturoeincapazde

cuidar do filho.A partir daí ele não pôdemais ficar sozinho comAugust.Mas, sinceramente, eu nãoacreditomuitonessejulgamento.—Porquenão?—Porquefoiumprocessosemdefesa.Oadvogadodaex-mulherdoFransbateucomtudo,enquanto

elemesmoadmitiaserumimprestável,umirresponsável,inadaptadoàvida,esóDeussabemaisoquê.Naminhaopinião,asentençafoitendenciosa,demá-féecontémtrechosemqueconstaqueoBaldereraincapazdeserelacionarcomoutraspessoas,porissoserefugiavanoscomputadores.Agoraqueacabeidemeinformarumpoucosobreavidadele,nãoacreditomuitoemnadadisso.AsadmissõesdeculpadoBalderesuasautocríticasforamtomadascomoverdadesabsolutaspelotribunal,enquantoelesóestavasendo extremamente cooperativo. Como eu disse, o Balder aceitou pagar uma pensão substancial, dequarentamilcoroaspormês,senãomeengano,maisnovecentasmilcoroasparadespesaseventuais.EpoucotempodepoissemudouparaosEstadosUnidos.—Maseleacabouvoltandoparacá.—Voltou,eprovavelmentedeveterhavidováriosmotivosparaeletervoltado.Atecnologiaqueele

desenvolviafoiroubada,etalvezoBalderatésoubessequemtinhafeitoisso.Alémdomais,eleestavaemsériosconflitoscomaempresaondetrabalhava.Masachoqueofilhotambémpesou.ApsicólogadoCentro de Autismo que eu mencionei há pouco, que se chama Hilda Melin, a princípio tinha umprognósticomuitoanimadorparaomenino.Masnadasaiucomoelahaviapensado.ElatambémrecebeuumrelatórioemqueconstavaqueHannaeLasseWestmannãoestavamcumprindoodeverdeassegurarumaeducaçãodequalidadeaAugust.Segundooacordo,omeninodeveriateraulasparticularesemcasa,masosprofessoresresponsáveisparecemtersedesentendido,dizemquetambémhouvetraições,desviodedinheiro,professores-fantasma,enfim, todotipodemerdaquevocêpodeimaginar.Masessaéumahistóriaparaalguéminvestigarmelhordepois.—VocêfaloudeumapsicólogadoCentrodeAutismo.— Exato. Hilda Melin. Ela suspeitou de alguma coisa estranha, ligou para Hanna e Lasse e eles

disseramquetudocorriaàsmilmaravilhas.Masela tevea intuiçãodequenãoerabemassim.Então,indocontraosprocedimentosinternosdoCentro,elafezumavisitasurpresaàcasadelese,quandoporfimadeixaramentrar, teveumasensaçãomuito fortedequeomeninonãoestavanadabemequeseu

Page 128: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

desenvolvimentotinhaestagnado.Comosenãobastasse,viuostaishematomas,eentãoligouparaFransBalder em San Francisco e teve uma longa conversa com ele. Pouco depois o Balder voltou para aSuéciaelevouofilhoparasuanovacasaemSaltsjöbaden,apesardasentençaquehaviadadoaguardadomeninoàex-mulherdele.—Ecomoissoaconteceu,seoLasseestavatãopreocupadocomapensão?—Boapergunta.PeloqueoWestmandisse,oBalderpraticamentesequestrouomenino.Masaversão

deHannafoibemdiferente.EladissequeoFransapareceusemavisarequepareciamudado,porissoeladeixouquelevasseofilho.AchouqueAugustteriaumavidamelhorcomopai.—EoWestman?—SegundoHanna,Westmantinhabebidoeacabadodeconseguirumpapelnatelevisão,estavatodo

arroganteecheiodesi.EletambémconcordouqueoFranslevasseomenino.PormaisqueoWestmanreclamedogarototeridoembora,tenhoaimpressãodequeparaelefoiumaalegriaselivrardeAugust.—Edepois?—Depois ele se arrependeu e, para piorar, foi dispensado de seu papel na televisão porque não

conseguiaficarsóbrio.ApartirdaíquisAugustdevolta,oumelhor,nãoexatamenteAugust,esim…—…apensãodomenino.— Isso mesmo. Essa versão foi confirmada pelos companheiros de bar de Westman, entre eles

Rindevall, um promotor de eventos. Quando o limite do cartão de crédito deWestman estourou, elecomeçouase indignareaclamarpelomenino.DepoispediuquinhentascoroasemprestadasparaumagarotanobarepegouumtáxidiretoparaSaltsjöbaden.JanBublanskipassoualgumtempopensativo,emsilêncio,emaisumavezolhouparaafotografiade

Axelemseumomentodetriunfo.—Quebagunça—disse.—Poisé.— Em circunstâncias normais, já estaríamos perto de uma solução. O motivo do crime estaria

relacionadocomadisputapelaguardadomeninoecomodivórciodeFranseHanna.Masessessujeitoshackeando sistemas de alarme e parecidos com guerreiros ninja não são exatamente os suspeitos desempre.—Nãomesmo.—Porissomeocorreuoutracoisa.—Oquê?—SeAugustnãosabeler,oqueeleestariafazendocomaqueleslivros?MikaelBlomkvistestavasentadoàmesacomumacanecadechá,nafrentedeFarahSharif,olhando

para Tantolunden e, apesar de saber que aquele era um sinal de fraqueza, desejou não ter histórianenhumaparaescrever.Desejoupoderapenasficarlásentado,sempressioná-la.Não parecia que uma boa conversa ajudaria Farah Sharif. Era como se todo o seu rosto houvesse

desabado,eosolhosescuroseintensosquenaportahaviamdadoaimpressãodeterpenetradoMikaelatéaalmapareciamagoradesorientados,eàsvezeselabalbuciavaonomedeFranscomosefosseum

Page 129: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

mantraouumencantamento.Talvezoamasse.Elecomcertezaaamara.Farahtinhacinquentaedoisanoseeraumamulheratraente,comumabelezanãoexatamenteclássicaeaposturadeumarainha.—Comoeleera?—Blomkvistperguntou.—OFrans?—É.—Umparadoxo.—Dequemaneira?—Detodasasmaneiraspossíveis.Masachoqueprincipalmenteporquesededicavamuitoàscoisas

quemaisoperturbavam.MaisoumenoscomoOppenheimeremLosAlamos.OFransestavatrabalhandojustamentenumacoisaqueeleimaginavaqueumdiafossecausaranossaruína.—Nãoestouentendendo.— O Frans queria recriar a evolução biológica em nível digital. Ele trabalhava com algarismos

inteligentes—algarismosque,atravésde tentativaeerro,vãoseaprimorando.Ele tambémcontribuiupara o desenvolvimento dos computadores quânticos, como esses usados peloGoogle, pela Solifon epelaNSA.OobjetivomaiordeleeraatingiraIAG,aInteligênciaArtificialGeral.—Eoqueéisso?— Um programa tão inteligente quanto um cérebro humano, porém rápido e preciso como um

computador em todas as questões mecânicas. Uma criação dessas seria uma vantagem enorme paraqualquercampodepesquisa.—Semdúvida.—Osestudosnessaáreatêmumaabrangênciaenorme,emesmoqueamaioriadospesquisadoresnão

tenha a ambição expressade atingir a IAG, é nessa direção que a concorrência nos empurra.Ninguémpodesedaraoluxodecriaraplicativosquenãosejamosmaisinteligentesqueatecnologiaécapazdeproduzir,ouentãodedeteroprogresso tecnológico.Penseemtudoque já fizemosatéaqui.Pensenosaplicativosdoseutelefonecincoanosatrásecomparecomosdehoje.—Vocêtemrazão.—Antesdesetornarumrecluso,oFransimaginavaquefôssemosatingiraIAGemtrintaouquarenta

anos,oquepodeparecerambiciosodemais.Masaminhaopiniãoéquetalvezaprevisãodeletenhasidomuitoconservadora.Acapacidadedoscomputadoresdobraacadadezoitomeses,enãoéfácilparaonossocérebroentenderoqueumaprogressãodessasrealmentesignifica.Émeiocomooproblemadosgrãos de arroz num tabuleiro de xadrez, sabe? Você coloca um grão no primeiro quadrado, dois nosegundo,quatronoterceiro,oitonoquarto…—Enesseritmoosgrãosdearrozlogoseespalhariampelomundointeiro.— A progressão vai crescendo a uma velocidade cada vez maior e logo perdemos totalmente o

controle.Omaisinteressante,naverdade,nãoseráomomentoemqueatingirmosaIAG,masoquepoderáacontecerdepois.Existemváriaspossibilidades,eelasdependemdamaneiracomochegarmoslá.Mascomcertezavamosusarprogramasquecriamupdatesparasimesmosafimdeseaperfeiçoar,eapartirdessemomentohaveráumanovaconcepçãodetempo.—Comoassim?—Aslimitaçõeshumanasnãoexistirãomais.Vamosserlançadosnumanovaera,naqualasmáquinas

Page 130: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

farãoupdatesemsimesmasàvelocidadeda luzvinteequatrohoraspordia,setediasporsemana.EpoucosdiasdepoisdetermosatingidoaIAGvamosatingiraSIA.—EoqueéaSIA?—ASuperinteligênciaArtificial…uma inteligênciamaior do que a nossa. E a partir daí tudo vai

acontecermaisrápido.Oscomputadoresvãoseaperfeiçoarsozinhosaumavelocidadecadavezmaior,talveznumfatordedez,elogovamosternovoscomputadorescem,mil,dezmilvezesmaisinteligentesdoquenós.Eoquevaiacontecerdepois?—Diga.—Eunãosei.Ainteligêncianãoéalgoprevisível.Nãosabemosaondea inteligênciahumanapode

noslevar.Esabemosaindamenosoquepodeacontecercomumasuperinteligência.—Napiordashipótesesvamosnos tornar tão interessantesquanto ratinhosbrancosde laboratório

paraoscomputadores—disseMikael,pensandonoquetinhaescritoparaLisbeth.—Nopiordashipóteses?NossoDNA énoventaporcento idênticoaodos ratos, eestima-sequea

nossainteligênciasejamaisoumenoscemvezesmaiorqueadeles,nãomaisqueisso.Agoraestamosdiantedealgo totalmentenovoequedeacordocomosmodelosmatemáticosnão temnenhum tipodelimitação, algoquepode se tornarmilhõesdevezesmais inteligentedoquenós.Entendeoque estoudizendo?—Estoutentando—respondeuMikaelcomumsorrisocauteloso.—Ouseja—prosseguiuFarahSharif—,comovocêachaqueumcomputadorvaisesentirquando

acordaredescobrirqueestásendocontroladoporcriaturasprimitivascomonós?Porqueaceitaráessasituação?Porquevaiteralgumtipodeconsideraçãoconoscoequemotivoteráparanosdeixarmexernassuasentranhasafimdeinterrompermosesseprocesso?Corremosoriscodenosverdiantedeumaexplosão de inteligências, de uma singularidade tecnológica, como disse Vernor Vinge. Tudo queacontecerdepoisestaráforadonossohorizonte.—Então,noinstanteemquecriarmosumasuperinteligênciavamosperderocontrole.—O risco é que tudo que sabemos domundonão vai termais utilidade, o que pode ser o fimda

existênciahumana.—Vocêestábrincando?—Sei que parece loucura para quem não conhece a fundo essa problemática.Mas é uma questão

absolutamente concreta. Hoje em dia, há milhares de pessoas no mundo trabalhando para impedir odesenvolvimentodessainteligência.Muitastêmumaexpectativabastanteotimistaeatéutópica.Falamdeumasuperinteligênciaamigável,umasuperinteligênciaprogramadadesdeoinícioparanãofazermaisdoque nos ajudar. De certa forma o que Asimov imaginou emEu, robô, com normas incorporadas queimpeçam as máquinas de nos fazer mal. O escritor e inventor Ray Kurzweil acredita num mundomaravilhoso, em que vamos nos integrar aos computadores através da nanotecnologia e dividir nossofuturocomeles.Masclaroquenãohánenhumagarantia.Normaspodemseranuladas.Opropósitodesseprogramainicialpodeseralterado,eémuito,muitofácilcometererrosantropomórficos,ouseja,atribuirtraçoshumanosàsmáquinaseentenderdeformaequivocadaasmotivaçõesdelas.OFranseraobcecadoporessasquestõese,comoeudisse,estavadividido.Porumlado,desejavacomputadoresinteligentes;poroutro,essaideiaopreocupava.

Page 131: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Elesesentiatentadoaconstruiroseumonstro.—Demaneiraumpoucoteatral,foimaisoumenosisso.—Eatéondeeletinhachegado?—Maislongedoquesepoderiaimaginar,euacho,eacreditoqueporissoelesecomportoudeforma

tãosigilosaemrelaçãoaoseutrabalhonaSolifon.OFranstinhamedodequeoseuprogramacaísseemmãoserradas.Etambémdequeoprogramacaíssenarede.EleochamoudeAugust,omesmonomedofilho.—Eondeestáoprogramaagora?—Fransolevavacomeleaondequerquefosse.Deviaestaraoladodacama,quandoomataram.O

pioréqueapolíciadissequenãoencontrounenhumcomputadornacasa.—Eutambémnãovinenhum,mesmoestandomaisconcentradoemoutrascoisas.—Devetersidohorrível.—Talvezvocê saibaqueeuvioassassino—prosseguiuMikael.—Eleestavacomumamochila

grande.—Issonãoestámecheirandonadabem.Quemsabecomumpoucodesorteagenteaindarecebaa

notíciadequeocomputadorestánacasa.Faleirapidamentecomapolícia,mastiveaimpressãodequeelesaindanãotêmmuitaideiadoqueaconteceu.—Vamos torcerparaquevocêesteja certa sobreo computador.Você sabequempode ter roubado

essatecnologianaprimeiravez?—Paradizeraverdade,sei,sim.—Agorafiqueirealmenteinteressado.—Euimagino.Omaistristedessahistóriaéquepartedaculpafoiminha.OFransestavatrabalhando

comoumlouconaépocaefiqueicommedodequeelenãoaguentasse.Ele tinhaacabadodeperderaguardadoAugust.—Quandofoiisso?—Hádoisanos.OFranspareciaexaustoenãoparavadeseculparpeloquetinhaacontecido.Mesmo

assim,nãolargavaapesquisa.Sejogounaquilocomosefosseaúnicacoisaimportantedavidadele,efoi aí que eu decidi procurar alguns assistentes, para que ele não ficasse tão sobrecarregado.Escolhialgunsalunosmeus,mesmosabendoquenãoeramasmelhorescriaturasqueDeusjáhaviacriado.Maseram pessoas com ambição e talento e que tinham uma admiração enorme peloBalder. Tudo pareciamuitopromissor,sóque…—RoubaramoBalder.—Eleteveaconfirmaçãodequeissotinhaacontecidoquandooinstitutodepatentesnorte-americano

recebeu uma solicitação de patente daTruegames em agosto do ano passado.Todos os detalhesmaisespecíficosdatecnologiadesenvolvidapeloFransestavamcopiadosedescritosnessasolicitação,enocomeço todomundo achou que os computadores tinham sido invadidos. Eu não acrediteimuito nisso,afinal eu conhecia o alto nível da criptografia que o Frans usava.Mas comonão parecia haver outraexplicação,esseacabousendoopontodepartida,eporumbomtempoatéoFransacreditounahipótesederoubo.Masclaroquenãofoinadadisso.—Oquevocêquerdizer?—Mikaelperguntou.—Osperitosnãoconfirmaramainvasão?

Page 132: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Confirmaram, um idiota qualquer do Försvarets Radioanstalt que quis chamar atenção.O Franstinhaamaniadeprotegeropessoaldele,enãoésóissoquemeassusta.Eutambémachoqueelepodeterresolvidobancarodetetive,pormaisidiotaqueelepudesseparecernessepapel.Sabe,eu…Farahtomouumlongofôlego.—Oquê?—disseMikael.—Eu só fiquei sabendode tudo isso hámais oumenosduas semanas.OFrans e oAugust vieram

jantaraquiemcasaeeu logopercebiqueele tinhaalgumacoisa importanteparamedizer.Davaparasentirnoar,edepoisdebeberumpoucoelepediuqueeulargasseocelularecomeçouafalarbaixinho.Admitoquenoiníciomeirritei.Elecomeçouafalardenovodaquelahackergenialdele.—Hackergenial?—repetiuMikael,tentandoparecernatural.—Umagarotasobrequemelevinhafalandootempointeiro.Nãovouaborrecervocêcomahistória

toda,masumdiaelaapareceudonadanumapalestradoFransecomeçoua falarsobreoconceitodesingularidade.—Comoassim?FarahSharifficoupensativa.—Ela…ah,naverdadeissonãotemnadaavercomoqueaconteceu—eladisse.—Masoconceito

desingularidadetecnológicafoiinspiradopelasingularidadegravitacional.—Eoqueéisso?—Costumo dizer que é o coração das trevas; é o que existe no interior dos buracos negros, uma

espéciedebecosemsaídaparatudoquesabemossobreouniversoequetalvezpossanosdaracessoaoutros mundos e a outras épocas. Muitos pesquisadores veem a singularidade como um conceitototalmente irracional e que portanto precisaria ser protegido por um horizonte de eventos. Mas essagarota estavaprocurandouma formamecânico-quântica de fazer os cálculos necessários e alegouquepoderiamuitobemhaversingularidadesexpostas,semumhorizontedeeventos,e…Bem,nãovoumeaprofundar no assunto. Mas ela impressionou muito o Frans e ele começou a ficar cada vez maisreceptivoàgarota,oquealiásécompreensível.UmsupernerdcomooFransnão tinhamuitaspessoascomquempudesseconversardeigualparaigual,equandoelesoubequeagarotatambémerahackerelepediuqueelaexaminasseoscomputadoresqueeleestavausandonapesquisa.TodoesseequipamentoficavanacasadeumassistentedelechamadoLinusBrandell.Maisumavez,Mikaelachoumelhornãorevelaroquesabia.—LinusBrandell—eledisseapenas.—Issomesmo—continuouFarah.—Agarotafoivê-loemÖstermalm,ondeelemorava,eassimque

chegouomandousairdoapartamento.Depoisanalisouoscomputadoresenãoencontrounenhumsinaldeinvasão.Masnãosedeuporsatisfeita.ComoelatinhaumalistacomosnomesdosassistentesdoFrans,alimesmo,docomputadordoLinus,elacomeçouahackeartodoseles,enãodemorouparadescobrirqueumdelestinhasevendidoparaaSolifon.—Quem?—OFransnãoquismecontar,pormaisqueeuinsistisse.Masessagarotatelefonouparaeleaindado

apartamentodoLinus.OFransestavaemSanFranciscoquandoissoaconteceu,masimagine:traídoporumdeseusassistentes!Imagineiqueelefossedenunciarorapazassimquesoube,paradesmascará-lo,

Page 133: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

enfim,acheiquefosse transformaravidadelenuminferno.MasoFrans teveoutra ideia.Pediuqueagarotaagissecomoserealmentetivessehavidoumainvasão.—Porquê?—Ele não quis que as provas e os rastros fossem apagados. Queria entendermelhor o que tinha

acontecido,edefatofazsentido.Descobrirqueumadasmaioresdesenvolvedorasdesoftwaredomundohaviaroubadoevendidoumatecnologiadesenvolvidaporeleeramaisgravedoquedescobrirquehaviaumaovelhanegranaequipe,queumestudanteinescrupulosootinhaapunhaladopelascostas.Afinal,nãoésóporqueaSolifonéumadasmaisrenomadasempresasdepesquisadosEstadosUnidos.ElaficoutentandocontrataroFransporanoseanos,eissoodeixoufurioso.“Aquelesdesgraçadosmefizerammilelogiosedepoismeroubaram”,eledesabafou,indignado.—Espereumpouco—disseMikael.—Queroentendermelhoressaparte.Vocêestáachandoqueo

BalderaceitoutrabalharnaSolifonsóparadescobrircomoeporqueohaviamroubado?— Se há uma coisa que eu aprendi com o passar dos anos é que nem sempre é fácil entender as

motivações das pessoas. O salário e o acesso a uma infinidade de recursos certamente também oinfluenciaram.Masrespondendoàsuapergunta:sim!Foiummotivomaisdoquesuficiente.Mesmoantesdagarotaanalisaroscomputadoresdele,oFransjáachavaqueaSolifonestavaenvolvidanoroubo.Masela conseguiu informações mais específicas, e foi a partir daí que ele realmente começou a cavar asujeira toda. Claro que foi bemmais difícil do que ele havia imaginado, e de quebra o Frans geroususpeitas,fezváriosinimigosnaSolifonefoificandocadavezmaisrecluso.Masacabouachandooquequeria.—Oquê?—Éapartirdessepontoqueahistóriaficarealmentedelicada.Eunãodeviaestartecontandotudo

isso.—Mesmoassimestamosaquiconversando.—Mesmoassimestamosaqui,enãoéapenaspeloenormerespeitoqueeutenhopeloseutrabalho.

HojedemanhãmeocorreuquenãodevetersidoporacasoqueoFranstelefonouparavocê,enãoparaoServiço de Proteção à Indústria da Säpo, com o qual ele também mantinha contato. Ele começou asuspeitar de vazamentos nesse setor. Claro que pode ter sido só paranoia dele. O Frans tinha váriossintomasdemania de perseguição.Mas como foi comvocêque ele resolveu conversar, agora esperorealizaressedesejodele.—Entendo.—NaSolifonexisteumadivisãochamadasimplesmentedeY—prosseguiuFarah.—Omodeloéo

Google X, a divisão do Google que cuida dos chamados moonshots, que são ideias absurdas eimprováveis,comodescobriravidaeternaoutentarestabelecerumarelaçãoentreummotordebuscaseosneurôniosdocérebro.SeexisteumlugarcapazdecriaraIAGouaSIA,esselugarélá,eoFransestavaligadoaoY.Masnãofoiumaideiamuitoboa.—Porquenão?—PorqueessahackerdescobriuquenadivisãoYhaviaumgruposecretodeanalistaslideradospor

umhomemchamadoZigmundEckerwald.—ZigmundEckerwald?

Page 134: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—É.ConhecidocomoZeke.—Equeméele?—ExatamenteosujeitoquemantinhacontatocomoassistentetraidordoFrans.—EntãooladrãoeraesseEckerwald.—Pode-sedizerquesim.Umladrãodealtonível.Vistodefora,otrabalhodogrupodeEckerwald

parecia totalmente legítimo. Eles reuniam informações sobre pesquisadores notáveis e ideiaspromissoras.Todasasgrandesempresasde tecnologiadesenvolvematividadescomoessasparasaberquemestáfazendoprogressosequemdeveserrecrutado.MasoBalderpercebeuqueogrupofaziamaisdoqueisso.Nãoerasóumrastreamento.Elestambémroubavam…atravésdeinvasões,espionagemesuborno.—EporqueoBaldernãoosdenunciouàpolícia?—Nãoeranadafácilproduzirprovas.Ogrupoagiacommuitacautela.MasnofimoFransresolveu

falar com Nicolas Grant, dono da Solifon. Grant ficou bem perturbado e supostamente ordenou umainvestigação interna.Mas essa investigação não chegou a nada, ou porque Eckerwald tinha destruídotodasasevidências,ouporqueainvestigaçãonãopassavadeencenação.OFransacabouficandonumasituaçãohorrível.Todosestavamfuriososcomele.AchoqueEckerwaldfoiumadasprincipais forçasdesseprocesso,enãodevetersidodifícilconseguiraadesãodeoutraspessoas.SeoFransjáeravistocomouma pessoa desconfiada e paranoica, depois disso passou a ser aindamais isolado e ignorado.Imaginobemcomodeviaser.Quasepossovê-lonumcanto,irritado,antissocial,contrariado,recusando-seafalarcomquemquerquefosse.—Vocêachaqueelenãotinhanenhumaprovaconcreta?— Ele tinha pelo menos a prova obtida pela hacker: que Eckerwald havia roubado a tecnologia

desenvolvidapeloFransparavendê-la.—EntãodissooBaldertinhacerteza.—Tudoindicaqueelenãoduvidavadisso.Equetambémhaviachegadoàconclusãodequeogrupo

do Eckerwald não trabalhava sozinho. O grupo recebia apoio externo, provavelmente do serviço deinformaçãoamericanoe…Farahsedeteve.—Eoquemais?—OFransfoiaindamaisenigmáticosobreisso,talvezporquenãotivesseinformaçõesmuitoexatas.

MaseleencontrouocodinomedoverdadeirolíderdeforadaSolifon.“Thanos”.—Thanos?—É.OFransdissequeaspessoas tinhammedodessafigura,só isso.Eque iriaprecisar fazerum

segurodevida,paraquandoosadvogadosfossematrásdele.—Vocêdissequenão sabequeméoassistenteque traiuaconfiançadoFrans.Masvocêdeve ter

pensadobastantearespeitodoassunto—disseMikael.—Claro,eàsvezes…Ah,nãosei.—Oquê?—Achoqueelespodemteragidojuntos.—Porquê?

Page 135: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—QuandoelescomeçaramatrabalharcomoFrans,todoseramgarotoscheiosdetalentoeambição.Quandopararam,estavamexaustos,perturbados.PodeserqueoFrans tenhasugadoavidadeles,mastambémpodeserqueestivessematormentadoscomalgumacoisa.—Vocêtemonomedeles?—Claro. São todosmeus alunos, infelizmente.O que eumencionei há pouco, LinusBrandell, tem

vinteequatroanosefazpoucacoisaalémdejogarjogosdecomputadorebeber.Tinhaumbomempregocomo desenvolvedor de jogos na Crossfire,mas acabou desempregado quando começou a apresentaratestadosmédicos demais e a acusar os colegas de espionagem. Depois há ArvidWrange, que vocêtalvezconheçadenome.Elefoiumenxadristapromissor.Opaideleopressionavasempiedade,nofimArvidsecansoudaquiloecomeçouaestudarcomigo.Acheiqueelejátivesseseformadomuitotempoatrás, mas ele começou a frequentar os bares de Stureplan e a se comportar de forma errática. EletambémmorouporalgumtempocomoFrans.Haviaumaforteconcorrênciaentreosrapazes,eArvideBasim,queerao terceiroassistente,passaramaseodiar,oupelomenosArvidpassouaodiarBasim.BasimMaliknãoéumrapazmuitodadoaódios.ÉumsujeitotalentosoesensívelquefoicontratadopelaSolifonNorden há cerca de um ano.Mas as forças dele não durarammuito.Agora está internado nohospitalErstatratandodeumadepressão,ehojedemanhãamãedelemeligouparadizerqueeleestavasedado.QuandoficousabendooquetinhaacontecidocomoFranselecortouospulsos,eclaroquefoiumanotíciamuitodolorosaparamim.Aomesmo tempo, nãopossodeixar demeperguntar: terá sidomesmoapenasportristezaqueelefezisso?Seráquenãofoiculpa?—Ecomoeleestá?—Dopontodevistaclínico,bem.Nãocorrenenhumrisco.EhátambémNiklasLagerstedt,que…o

quepossodizer?Elenãoécomoosoutros rapazes.Nãoédo tipoquebateacabeçanaparedee temimpulsos autodestrutivos. Mas Niklas é um rapaz que tem objeções morais à maioria das coisas,inclusive a jogos de computador e pornografia. Ele é membro da IgrejaMissionária da Suécia. SuamulherépediatraeosdoistêmummeninochamadoJesper.Alémdisso,éoconsultordaPolíciaFederalresponsável pelo sistema que vai ser implementado lá no ano que vem, então é claro que seusantecedentesforamtodosverificadosparaqueelepudesseserindicadoaocargo.Masnãoseiseessasaveriguaçõessãorealmenteminuciosas.—Porquevocêestádizendoisso?—Porqueportrásdesuaaparênciadehomemdebem,oNiklaséumcriminososedentopordinheiro.

Tenhoinformaçõesdequeeleseapossoudeformailegaldepartedafortunadossogros.Ouseja,éumestelionatário.—Osrapazesforaminterrogados?—ASäpofaloucomeles,masnãodescobriunadadeimportante.NaépocaseacreditavaqueoFrans

tivessesidovítimadeumainvasãodigital.—Agoraachoqueapolíciavaiquererouvi-losdenovo.—Tambémacho.—Aliás,vocêsabeseoBaldertinhaohábitodedesenharnashoraslivres?—Desenhar?—É.Poracasoelegostavadefazerdesenhosextremamentedetalhados?

Page 136: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Não,eunãoseinadasobreisso—respondeuFarahSharif.—Porquê?—Euviumdesenhoimpressionantenacasadele.EraosemáforodocruzamentodaHornsgatancoma

Ringvägen.Umdesenhoperfeito,quasefotográfico,emuitoescuro.—Queesquisito.QueeusaibaoFransnãodesenhava.—Estranho.—É.—Algumacoisanessedesenhomeintrigou—disseMikael,percebendo,surpreso,queFarahhavia

pegadosuamão.Mikaelpassouamãonacabeçadela.Entãoselevantoucomasensaçãodequeestavaprestesafazer

umadescoberta.Elesedespediuefoiembora.VoltandopelaZinkensVäg, telefonouparaErikaepediuqueelaescrevesseoutraperguntanapasta

LisbethSalander.

Page 137: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

14.21DENOVEMBRO

OveLevinestavasentadoemseuescritóriocomvistaparaSlusseneRiddarfjärdensemfazernadaanãoserbuscarocorrênciasdeseunomenoGoogle,naesperançadeacharalgumacoisaqueoalegrasse.Em vez disso, encontrou comentários que o chamavam de gordo pegajoso e que o acusavam de tervendidoseusideais—tudonumblogdeumajovemestudantedaUniversidadedeEstocolmo.Ficoutãoindignadoquenemconseguiuanotaronomedagarotaemsualistanegra,paraondeelemandavaonomedetodasaspessoasqueogrupoSernerjamaiscontrataria.Ovenãoaguentavaperder tempocomidiotasquenãoentendiamnadadoqueeranecessáriofazere

quenuncasededicariamanadaalémdeescreverartigosmalpagosemrevistasdeculturainsignificantes.Emvezdeficarpresoempensamentosdestrutivos,acessouseuhomebankingparadarumaolhadaemseuportfóliodeinvestimentos,oqueoanimouumpouco,aomenosnaquelemomento.Eraumdiabomparaomercado.TantoaNasdaqcomooDowJonestinhamsubidonatardeanterioreoStockholmsindexsubira1,1%.Odólar tambémestavavalendomaise,deacordocomaatualizaçãosegundoasegundo,naqueleinstantetodososseusinvestimentossomavam12161389coroas.Nadamauparaquem,emoutrostempos,redigianotíciassobreincêndiosebrigasdefacanaedição

matutinadoExpressen.DozemilhõesmaisoapartamentodeVillastadeneacasaemCannes!Osoutrosqueescrevessemoquebementendessem,porqueapartedeleestavagarantida.EntãoOveolhoumaisumavezototal.12149101.Porra,seráqueasaçõestinhamsedesvalorizado?12131737.Seurostosecontorceunumacareta.Nãohaviarazãoparaabolsaestarcaindo.Acifraanteriorerabemmelhor.OveLevin tomou a desvalorização como ofensa pessoal, e, mesmo contra a vontade, voltou a pensar naMillennium,pormaisirrelevantequeoassuntofossenaquelecontexto.Exaltou-seoutraveze,pormaisquetentasseafastaressepensamento,selembroudecomoorostolindodeErikaBergersetornarasérioeinamistosonatardeanterioretambémdecomonãohaviamelhoradonadanaquelamanhã.OveLevintinhaquasesurtado.MikaelBlomkvistestavaemtodosossitesimagináveis,everaquilo

doeunele.Enãoapenasporquenodiaanterior tivesseditoqueninguémdageraçãomais jovemsabiaquem eraMikaelBlomkvist,mas ele também abominava aquela lógicamidiática segundo a qual todomundose transformavanumastro—jornalistas,celebridadesesabe-se lámaisquem—assimqueseenvolvesseemalgumtipodeconfusão.Pelocontrário:deviamchamá-loédedinossauroBlomkvist,umavezque,noquedependessedeOveedaSernerMedia,elenemiriapodercontinuarnaredaçãodesuaprópriarevista.JustamenteFransBalder?Por que justamente Frans Balder tinha sido assassinado na frente de Mikael Blomkvist? Era uma

Page 138: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

situação típica.Mesmoque amassa ignara de jornalistas que haviamundo afora não soubesse, FransBaldereraumgrandenome.AprópriaDagensAffärsliv,editadapelaSerner,tinhapublicadoumencarteespecialsobreosgrandespesquisadoressuecosnãomuitotempoantesnoqualconstavaatémesmoumaetiquetadepreçoemFransBalder:quatrobilhõesdecoroas.Mascomohaviamchegadoaessevalor?Baldereraumastroe,alémdetudo,nãodavaentrevistas,oqueovalorizavamaisainda.Quantas vezes jornalistas da própria Serner não teriam solicitado uma entrevista com ele? Balder

semprehavianãoapenassenegado,mastambémtratadoopedidocomomaisabsolutodescaso.Muitoscolegas—Ovetinhacerteza—acreditavamqueBlomkvisttinhanasmãosumahistóriaincrível,eelesentiaódioaopensarqueBalder,comoos jornaisestavamnoticiando,haviachamadoBlomkvistparaumaconversaemplenamadrugada.SeráqueBlomkvist,alémdisso,tinhaumfurodereportagem?Seriapéssimo.Mais uma vez, quase por obrigação,Ove acessou o site doAftonbladet e foi recebido pelaseguintemanchete:OqueobrilhantepesquisadorsuecoquiscontaraMikaelBlomkvist?ConversamisteriosapoucoantesdoatentadoO artigo trazia uma foto grande deMikaelBlomkvist em boa forma.Aqueles editores desgraçados

tinham escolhido amelhor fotografia que devia existir dele, o que fezOve praguejarmais umpouco.Precisotomarumaatitude,pensou.Masqual?ComodeterMikaelsembancarumcensordostemposdaAlemanhaOrientalepiorartudo?Como…OveolhoumaisumavezemdireçãoaRiddarfjärdeneteveuma ideia.WilliamBorg, ele pensou. O inimigo domeu inimigo pode se transformar nomeu grandealiado.—Sanna!—elegritou.SannaLinderaajovemsecretáriadeOveLevin.—Sim,Ove?—MarqueumalmoçocomWilliamBorgnoSturehofagoramesmo.Seeletiveroutrocompromisso,

digaqueémuitoimportante.Emencionequeosaláriodelepodeatéaumentar—disseOve,pensando:Porquenão?Seelemeajudarnessaenrascada,possomuitobemlheoferecerumdinheiroextra.HannaBalder estava sentada no chão da sala de seu apartamento naTorsgatan, olhando apavorada

paraAugust,quemaisumavez tinha idobuscarpapele lápis.Deacordocomas instruçõesquehaviarecebido,aqueleeraomomentodeconterofilho,maselanãogostavanemumpoucodessaideia.Nãoqueestivessequestionandoosconhecimentoseasrecomendaçõesdopsicólogo,maselahesitouemfazerisso.August tinha visto o pai sermorto e, se ele queria desenhar, por que ela haveria de impedi-lo?Afinal,ascoisasjánãoestavamnadafáceisparaomenino.OcorpodeAugusttremeuquandoelecomeçouadesenhareseusolhosseiluminaramcomumbrilho

intensoeatormentado,epadrõesxadrez,comquadradosqueserefletiamemespelhos,eramumtemabeminesperado quando se levava em conta tudo que tinha acontecido. Talvez fosse como as séries de

Page 139: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

números.Mesmoqueelanãoentendessenadadaquilo,nãohaviadúvidadequeeleseramimportantespara August, que talvez— como saber?— estivesse lidando com o que tinha acontecido por meiodaquelespadrõesgeométricos.Nãoseriamelhorignoraraproibiçãoimpostapelopsicólogo?Ninguémficariasabendo,eelajátinhalidoemoutroslugaresqueasmãesdevemsempreconfiaremseuinstinto.Muitasvezesesseinstintoéumaferramentamaispoderosadoquequalquerteoriapsicológica,portantoHannadecidiuqueAugustpoderiacontinuardesenhando.De repente as costas do menino se envergaram como um arco. Hanna pensou nas palavras do

psicólogo e se inclinou para ver a folha de papel. Sentiu um sobressalto e teve uma sensaçãomuitodesagradável.Aprincípionãoentendeuoquetinhaacontecido.Omesmopadrãoxadrezserepetianosdoisespelhosqueocircundavam,etudoeradesenhadomuito

depressa.Mashaviamaisumelemento,umasombraqueseerguiadaquelepadrãocomoumdemônioouumfantasma,efoiissoquedeixouHannaapavorada.Começouaselembrardefilmesemquecriançassão possuídas por criaturas do mal, e nesse instante tirou o desenho do filho e o amassou com ummovimento rápido, sem saber por quê. Depois fechou os olhos, à espera daquele grito de cortar ocoração.Porémnãohouvenenhumgrito,apenasumbalbucioquesoouquasecomoumasequênciadepalavras.

Masnãopodiaser.Augustnãofalava,eHannasepreparouparaenfrentarmaisumsurtodofilho,aquelemomentode agressividade emqueAugust se jogavadeum ladoparaoutrono chãoda sala.Masnãohouvenenhumsurto—apenassilêncioedeterminaçãoenquantoAugustpegavaoutra folhadepapelemais uma vez começava a desenhar o mesmo padrão xadrez, e aí Hanna não viu alternativa senãocarregar o menino para o quarto. No relato que fez mais tarde, ela descreveria essa cena como deabsolutoterror.Augustcomeçouagritar,achutareasedebater,eHannamalconseguiasegurá-lo.Pormuitotempo

precisoucontero filhocomumabraço forteenquantoosdoispermaneciamdeitadosnacama.PoruminstantepensouemacordarLasseepedirqueeleenfiassenabocadeAugustostranquilizantesqueelestinhamrecebido,mas logoabandonoua ideia.Lasseestariacomumhumorhorrível e,mesmoqueelamesmatomasseValium,nãogostavadedartranquilizantesparaofilho.Tinhaquehaveroutrasolução.Hanna estava prestes a perder o controle da situação e pensava desesperadamente numa forma de

acabarcomaquilo.Pensouemsuamãe,quemoravaemKatrineholm,emsuaagenteMia,emGabriella,amulher gentil quehavia telefonado ànoite, emais umaveznopsicólogoque tinha cuidadodeAugustdepois do assassinato de Frans,Einar Fors alguma coisa, e que o levara para casa.Hanna não haviagostadomuitodele.Poroutro lado, ele sedispôs a cuidardeAugustpor algum tempo, sóque aquelesurtotinhaacontecidojustamenteporqueelahaviaseguidoasorientaçõesdele.FoielequemdissequeAugustnãopoderiadesenhar,por issoagoraeleéquemdeviaarcarcomas

consequências.Hannasoltouofilho,pegouocartãodevisitasdopsicólogoeligouparaele,enquantoAugustfoicorrendoparaasaladesenhardenovoaquelemalditopadrãoxadrez.EinarForsbergnão tinhaumagrandeexperiência.Comquarentaeoitoanos,olhosazuisprofundos,

óculos recém-comprados na Dior e casaco de veludo marrom, poderia facilmente passar por um

Page 140: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

intelectual.Masquemtentavadiscutircomeledeparavacomumapersonalidadeinflexíveledogmática,capazdeocultarsuafaltadeconhecimentocomfrasesdeefeitoeafirmaçõescategóricas.Fazia apenas dois anos que ele tinha se formado em psicologia. Na verdade era um professor do

colegialnascidoemTyresö,esepedissemqueumex-alunoseufalassealgumacoisasobreele,oalunogritaria: “Silêncio,meu rebanho!Quietas, criaturasminhas!”.Einar adoravabradar essas palavras emtommeiobrincalhãoquandoprecisavade silêncioemsaladeaula.Mesmoquenão fosseoprofessormaisadmiradodaescola,elerealmenteconseguiadisciplinarseusalunos,efoiessacapacidadequeoconvenceudequesuasaptidõespsicológicastalvezfossemmaisbemaproveitadasemoutroscontextos.FaziaumanoqueeletrabalhavanaclínicapsiquiátricaOden,queficavanaSveavägenemEstocolmo.

Ainstituiçãorecebiacriançasejovenscujospaisnãoestavamemcondiçõesdecuidardosfilhos.NemmesmoEinar,queerasempreumlealdefensordequalquerempregoque tivesse,achavaqueaclínicafuncionavabem.Ascriançaschegavamdepoisdevivenciarexperiênciastraumáticasemcasa,eograndeinteresse dos psicólogos era cuidar dos surtos e comportamentos agressivos, emvez de se dedicaremmais às causas subjacentes.Mesmo assim, Einar sentia-se útil, especialmente quando, com sua antigaautoridadedeprofessor,calavaadolescentesemplenosurtohistéricoou tratavadepacientesemcriseforadaclínica.Elegostavadetrabalharcomapolíciaeadoravaaemoçãoeosilêncioquepermeavamoambientede

acontecimentos dramáticos. Quando foi à casa de Saltsjöbaden, cumprindo seu turno da noite, estavacheio de entusiasmo e expectativa. Havia um clima hollywoodiano no caso, pensou. Um pesquisadorsuecotinhasidoassassinado,seufilhodeoitoanoseraaúnicatestemunhaeaninguémmenosqueEinarcabia a tarefa de fazer com que omenino se abrisse.Durante o trajeto, ajeitou o cabelo e os óculosdiversasvezesnoretrovisor.Queria fazer uma entrada em grande estilo, mas ao chegar não fez muito sucesso. Não conseguiu

entenderoquehaviacomomenino.Mesmoassim,sentiu-seimportante.Ospoliciaisperguntaramqualeraoprocedimentocorretoparainterrogarumacriança,emesmoqueEinarnãotivesseamenorideia,aresposta que deu foi levadamuito a sério.Ele se ofereceu para ajudar e descobriu que omenino eraautista,nãofalavaequenãodemonstravanenhuminteressepelomundoqueocercava.—Nãohánadaquepossamosfazerporenquanto—eledisse.—Acapacidadeintelectualdogarotoé

muitolimitada.Comopsicólogo,meudeveréassegurarqueobem-estardelevenhaemprimeirolugar—declarou Einar, enquanto os policiais o escutavam com uma expressão séria no rosto. Em seguidapermitiramqueelelevasseomeninoparaacasadamãe,oqueeleencaroucomoumbônusnessahistóriatoda.AmãeeraaatrizHannaBalder.EinaraadmiravadesdequeatinhavistoemMysteristerna,eaindase

lembravadaquelesquadrisedaquelaspernaslongilíneas.Mesmoumpoucomaisvelha,elacontinuavaatraente.Alémdomais,seuatualmaridoerasemdúvidaumimbecil,eEinarseempenhouemparecercultoecharmoso.Praticamentedecarateveachancedeseexibir,oqueoencheudeorgulho.Comumaexpressãodesvairada,omeninocomeçouadesenharblocosouquadradospretos,eEinar

entendeudeimediatoqueaqueleeraumcomportamentoprejudicial.Otípicocomportamentoobsessivoedestrutivoque facilmente acometia as crianças autistas, por isso insistiu emdizerqueomeninodeviaparar com aquilo. Sua recomendação, porém, não foi aceita com a gratidão que ele havia imaginado.

Page 141: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Mesmoassim, continuou se sentindocompetente emásculo, enomeiodaquilo tudoesteve apontodeelogiarHanna por seu papel emMysteristerna. Em seguida se deu conta de que não era omomentoapropriado.Talveztivessesidoumerropensarnisso.Eraumadatarde,eEinartinhaacabadodechegaràsuacasa,emVällingby.Estavanobanheiro,coma

escovadedenteelétricanamão,sentindo-seexausto.Ocelular tocouenahoraelese irritou.Masemseguidaabriuumsorrisodiscreto.EraHannaBalder.—Forsbergfalando—eledisse,comoquemestavahabituadoarecebermuitostelefonemas.—Olá—disseHanna.Elapareciadesesperadaeirritada.MasEinarnemimaginouoquepodiaestaracontecendo.—OAugust—eladisse.—OAugust…—Oquehouvecomele?—Elesóquerficardesenhandoaquelesquadrados.Masvocêdissequeeunãodeviadeixar.—Não,nãodeixemesmo,éumcomportamentoobsessivo.Mastenteficarcalma.—Ficarcalma?Vocêachamesmopossível?—Édoqueoseufilhoprecisa.—Maseunãoconsigo.Eleestágritandoesedebatendo.Evocêdissequepodiaajudar.— Claro… — respondeu Einar, um pouco hesitante. Mas logo seu rosto se iluminou, como se

houvesseconquistadoumavitória.—Claro,comcerteza.VouarrumarumlugarparaelenaclínicaOden.—Masnãoseriatraiçãominha?—Não,pelocontrário.Vocêestácuidandodasnecessidadesdoseufilho,evocêpodevê-losempre

quequiser.—Derepenteémelhorassim.—Tenhocerteza.—Vocêpodeviragora?— Chego o mais rápido possível — disse Einar, pensando que precisava cuidar um pouco da

aparênciaantesdeir.Depoisacrescentou:—EujádissequeadoreivocêemMysteristerna?OveLevinnãosesurpreendeunemumpoucoaoverqueWilliamBorgjáoesperavanoSturehof,e

menosaindaquejáhouvesseescolhidoopratomaiscarodocardápio,linguadoàbellemeunière,eumataçadePouillyFumé.Osjornalistascostumavamtirarproveitoquandoeleosconvidavaparaalmoçar.OqueosurpreendeufoiWilliamtertomadoainiciativadefazeropedido,comoseodinheiroeopoderfossemdele, e isso irritouOve.Por que já havia lhe prometido umadicional no salário?Devia tê-lodeixadonaexpectativa,suandodetensãonafrentedele.—Umpassarinhomecontouquevocêsestão tendoproblemascomaMillennium—disseWilliam

Borg,eOvepensou:eudariameubraçodireitoparaarrancaressesorrisinhodesatisfaçãodacaradele.—Entãovocêestámalinformado—retrucouOve.

Page 142: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Émesmo?—Estátudosobcontrole.—Dequemaneira,semepermiteacuriosidade?—Se a redação estiver disposta amudar e a entendermelhor os problemas que está enfrentando,

vamoscontinuarapoiandoarevista.—Esenãoestiver?…—Vamospularfora,enessecasoaMillenniumvaiagonizarpormaisalgunsmesesatédesaparecer,o

queseriamuitoruim.MasaverdadeéquejornaiserevistasmelhoresdoqueaMillennium jáforamàfalência,eparanósfoiuminvestimentomodesto.Podemosnosvirarmuitobemsemeles.—Podepararcomessepapofurado,seiqueéumaquestãodeprestígioparavocê.—Negócioénegócio.—OuvidizerquevocêsqueriamtiraroMikaelBlomkvistdaredação.—Pensamosemtransferi-loparaLondres.—Seriaumabaitafaltadeconsideração,levandoemcontatudoqueelejáfezpelarevista.—Apresentamosumapropostamuitointeressanteparaele—prosseguiuOve,dando-secontadeque

estavanumaposiçãomuitodefensivaedesfavorávelnaconversa.Eraquasecomosetivesseesquecidoafinalidadedaqueleencontro.—Eunãoestoucriticandovocês—disseWilliamBorg.—Pormim,vocêpodemmandá-loatéparaa

China,sequiserem.MasseráquenãovaificarmeiocomplicadopravocêsseoMikaelvoltaremgrandeestilocomessahistóriadoprofessorFransBalder?—Porque isso aconteceria?OBlomkvist perdeuo ferrão.Vocêmesmoalardeou essanotícia com

razoávelsucesso—disseOve,arriscandoumcomentáriosarcástico.—Ah,foi,mastiveajudadeoutraspessoas.—Nãoaminha,comcerteza.Euodieiaqueleartigo.Acheimalescrito,tendencioso.Quemcomeçou

essahistóriafoioThorvaldSerner,vocêsabemuitobem.—Masnaatualcircunstânciavocênãopodesertotalmentecontra,nãoémesmo?—William,escuteoquevoudizer.EutenhoumrespeitoenormepeloMikaelBlomkvist.—Ove,vocêsabequecomigonãoprecisabancarodiplomático.OvetevevontadedefazerWilliamengoliraquelediplomático.— Apenas estou sendo muito sincero — continuou Ove. — Sempre achei o Mikael um repórter

incrível,oníveldeleémuitosuperioraoseueaodetodososoutrosjornalistasdageraçãodele.—Ah, certo então— disseWilliamBorg, com expressãomais submissa, o que fezOve se sentir

melhor.—Éumfato.TemosquesergratosatodasasdenúnciasqueoMikaelfez,eeurealmentedesejotudo

debomparaele.Masomeutrabalhonãoéficarolhandoparatrásevivendodenostalgia,enissodourazão a você.OBlomkvist está fora de sintonia com os novos tempos e pode ser um entrave para amodernizaçãodaMillennium.—Éverdade,éverdade.—Porissoomelhor,agora,seriaelenãoestarmuitonasmanchetes.—Nasmanchetespositivas,vocêquerdizer.

Page 143: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Talvez—respondeuOve.—Essefoiumdosmotivosparaeuterchamadovocêparaestealmoço.—Agradeçomuitooconvite.Eachoquepossoteajudar.Hojedemanhãeuconverseicomumvelho

parceiro meu de squash — disse William Borg, numa tentativa evidente de recuperar a autoestimaperdida.—Equeméele?—RichardEkström,oprocurador-chefe.Eleéoresponsávelpelasinvestigaçõessobreoassassinato

doBalder.Edigamosquenãopertenceaofã-clubedoBlomkvist.—PorcausadaquelahistóriadoZalachenko?— Exatamente. O Blomkvist atrapalhou toda a estratégia dele naquela vez, e agora Ekström está

achandoqueonossoamigopodequerersabotarainvestigaçãodenovo,ouatéquejátenhasabotado.—Como?— O Blomkvist nunca conta tudo o que sabe. Ele falou com o Balder um pouco antes dele ser

assassinado,etambémviuorostodoassassino.Mesmoassim,passoupouquíssimasinformaçõesquandofoiinterrogado.ORichardEkströmsuspeitaqueoBlomkvistestejaguardandoasmelhorespartesparaamatériaquevaiescrever.—Interessante.—Nãoé?Estamosfalandodeumsujeitoque,depoisdetersidoridicularizadoportodaamídia,está

tãodesesperadoatrásdeumnovofuroqueatésearriscaadeixarumassassinosoltoporaí.Umavelhaestrela do jornalismoque, ao ver a revista emque trabalha namaior crise financeira, está disposto ajogar toda a sua responsabilidade social pela janela. E que acaba de saber que a SernerMedia querchutá-lodaredação.Vocêachaestranhoqueeletenhaidotãolonge?—Entendo.Vocêestápensandoemescreveralgumacoisasobreisso?—Pradizeraverdade,nãoachoumaboaideia.TodomundosabequeeueoBlomkvisttemosumas

questõespendentes.Omelhorseriavocêvazaressanotíciapraoutrorepórteredepoisdarsustentaçãoparaelanumeditorial.OEkströmficariabemagradecido.—Hum—fezOve.EntãodesviouoolharnadireçãodaStureplaneviuumabelamulherdecasaco

vermelhoeumlongocabeloruivo-avermelhado.Pelaprimeiraveznaquelediaabriuumsorrisolargoesincero.—Talveznãosejamáideia,afinal—acrescentou,eemseguidapediuumataçadevinho.

***MikaelBlomkvistfoicaminhandopelaHornsgatanatéoMariatorget.Umpoucomaisadiante,pertoda

igreja deMariaMadalena, havia um furgãobranco comumamassadograndeno capô, e dois homensgesticulandoegritandoumcomooutro.Mesmoqueasituaçãodespertasseo interessedamaioriadaspessoasaoredor,Mikaelpraticamentenemsedeucontadela.Estava pensando no filho de Frans Balder, que no andar de cima da casa enorme de Saltsjöbaden

passava amão sobre o tapete persa. Blomkvist lembrou que amão domenino estava branca e tinhamanchasnosdedosenodorso,comoseAugusttivessemexidocomlápisecanetas,eaquelemovimentosobre o tapete… não dava a impressão de o menino estar fazendo um desenho complexo no ar? De

Page 144: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

repente Mikael reinterpretou a cena de forma totalmente diferente, e de novo lhe ocorreu o mesmopensamentoquehaviatidonacasadeFarahSharif.TalveznãofosseFransBalderoautordodesenhodosemáforo.Talvez o menino tivesse um talento enorme e surpreendente, e por algum motivo essa ideia não

espantou Mikael tanto quanto talvez espantasse outras pessoas. Quando encontrou August Balder noquartodoandardebaixoeoviuseatirandocontraacabeceiradacama,pressentiuquehaviaalgodediferente no menino. Enquanto atravessava o Mariatorget, Blomkvist foi tomado por um pensamentoestranhoesemdúvidaimprovável,quenoentantonãoodeixouporuminstantesequer.QuandochegouàGötgatan,eleparou.Seria necessário pelomenos averiguar a possibilidade, entãoMikael pegou o celular e procurou o

númerodeHannaBalder.Eraumalinhasegura,dificilmenteestarianalistadecontatosdaMillennium.Oque poderia fazer? Lembrou de FrejaGranliden. Freja era repórter de variedades doExpressen e ascoisas que ela escrevia não engrandeciamnemumpouco a classe dos jornalistas.Eramartigos sobredivórcios, romances e assuntos ligados à família real.Mesmo assim, Freja era uma garota esperta eextrovertida,enaspoucasvezesemquehaviampassadoalgumtempojuntososdoistinhamsedivertido,portantoMikaeldecidiutelefonar.Masonúmerodelaestavaocupado.Osrepórteresdosjornaisvespertinosficavamotempotodoaotelefone.Eramtãopressionadospara

fazertudoomaisdepressapossível,quenuncaconseguiamselevantardacadeiraparaveroqueestavaacontecendonomundoreal.Simplesmentepassavamodiasentados,escrevendotextoatrásdetexto.Masdepois de mais algumas tentativas Mikael conseguiu falar com ela, e ele não ficou nem um poucosurpresoaoouvirFrejadarumgritinhodealegria.—Mikael!Quehonra!Seráquevocê finalmentevaimepassarum furo?Estouesperandohámuito

tempo.—Desculpe,masdestavezévocêquepodemeajudar.Precisodeumendereçoedeumtelefone.—Eoquevocêmedáemtroca?Quemsabeumafrasebemvenenosasobreestamadrugada?—Oqueeupossotedaréumconselhoprofissional.—Qualconselho?—Paredeescreverlixo.—Ah,certo!Masaíondeéqueosrepórteresmaisclassudosiamconseguirosnúmerosdetelefone

queelestantoprecisam?Quemvocêestáprocurando?—HannaBalder.—Jáimaginoomotivo.Onamoradodelatomouumporresensacionalontemànoite.Vocêschegaram

aseencontrarlá?—Nãotenteconseguirnotíciascomigo.Vocêsabeondeelamora?—NaTorsgatan,número40.—Vocêsabeoendereçodecor?—Eutenhoumamemóriaincrívelpraessetipodebobagem.Masespere!Euaindaprecisotedaro

códigodoportãoeotelefonedela.—Obrigado.—Sóque…

Page 145: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Oquê?—VocênãoéoúnicoqueestáquerendofalarcomaHanna.Osnossoscãesfarejadores tambémjá

estãoatrásdelae,peloqueeusoube,elanãoestáatendendootelefone.—Sábiadecisão.DepoisMikael ficou parado na calçada por alguns instantes, sem sabermuito bem qual o próximo

passo.Nãosepodiadizerqueeleestivessegostandodasituação.Iratrásdeumamãeinfelizjuntocomosrepórterespoliciaisdosjornaisvespertinosnãoeraexatamenteoqueelegostariadefazer.Porfim,acenouparaumtáxiepediuqueomotoristaolevasseaVasastan.

***HannaBaldertinhaacompanhadoAugusteEinarForsbergatéaclínicaOden,naSveavägen,emfrente

ao Observatorielunden. Embora a decoração e os pátios da clínica dessem a sensação de um lugarexclusivoeaconchegante,aimpressãogeraleramesmoadeumainstituiçãopública,oquesedeviamaisàsexpressõesseverasevigilantesno rostodos funcionáriosdoqueaoscorredores longoseàsportasfechadas.Osempregadospareciamteradquiridocertadesconfiançadascriançasqueatendiam.OdiretorTorkelLindéneraumhomembaixinhoevaidosoqueseapresentoucomoalguémcommuita

experiênciano trato comcrianças autistas, oque semdúvida teve comoobjetivo transmitir confiança.MasHannanãogostoudamaneiracomoeleolhouparaAugustnem,principalmente,dadivisãoetárianaclínica.Viucriançaseadolescentesjuntos.Maspareciatardedemaispararecuar,enocaminhodevoltapara casa se consolou prometendo a simesma que seria por pouco tempo.Quem sabe ela não fossebuscarAugustjánocomeçodanoite?Comacabeçalonge,HannacomeçouapensaremLasseeemsuasbebedeiras,emaisumavezdissea

simesmaqueprecisavaseafastardeleedarumjeitonavida.AosairdoelevadordeseuapartamentonaTorsgatan,levouumsusto.Umhomemmuitoatraentefaziaanotaçõesnumbloquinho,sentadonopatamardaescada.Quandoeleselevantoueacumprimentou,HannapercebeuqueeraMikaelBlomkvist,eentãoficouapavorada.Talvezestivessesesentindotãoculpadaqueimaginouqueojornalistafossedenunciá-la.Mas claro que era um pensamento estúpido.Mikael abriu um sorrisomeio constrangido, por duasvezespediudesculpaspelaintromissão,eentãoHannasentiuumprofundoalívio.Faziamuitotempoqueoadmirava.—Nadaadeclarar—eladisse,numtomquenaverdadeindicavajustamenteocontrário.—Nãovimatrásdedeclarações—Mikaeldisse,eentãoHannaselembroudequeBlomkvisteLasse

haviamchegadojuntosouentãoaomesmotempoàcasadeFransnanoiteanterior,mesmoqueelanãoconseguisse imaginaroqueosdoispodiamteremcomum,umavezqueumpareciaoexatoopostodooutro.—VocêestáprocurandooLasse?—elaperguntou.— Eu gostaria de falar com você sobre os desenhos do August— ele disse, e Hanna sentiu uma

aguilhoadadepânico.MesmoassimconvidouBlomkvistparaentrar.Eraumaatitudemeioimpensada.Lassetinhaidopara

algumbotecosecurardaressacaepodiavoltaraqualquermomento.Comcertezaiaficarloucoaover

Page 146: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

um jornalista do calibre deMikael Blomkvist na casa deles.Mas além de preocupadaHanna estavacuriosa.ComoBlomkvistsabiadosdesenhos?Elaoconvidouparasesentarnosofácinzadasalaefoiàcozinha pegar chá e biscoitos.Quando voltou comuma bandeja,Mikael disse:—Eu não teria vindoincomodarvocêsenãofossemesmomuitonecessário.—Vocênãoestámeincomodando—elarespondeu.— Você deve saber que eu tive um breve encontro com o August ontem de madrugada — ele

prosseguiu—,enãoconsigotirardacabeçaumacoisaqueeuvi.—Émesmo?—disseHanna,demonstrandointeresse.—Nahoraeunãoentendioqueestavaacontecendo,masdepoisfiqueicomaimpressãodequeele

querianosdizeralgumacoisa,eagora,pensandomelhor,achoqueelequisfazerumdesenho.OAugustpareciamuitoconcentradoenquantodeslizavaamãopelotapete.—Eleestavaobcecado.—Elecontinuouaagirassimdepoisquevoltouparacasa?—Ecomo!Elecomeçouadesenharassimquechegamosemcasa.Ocomportamentoera totalmente

obsessivo,eleficoucomorostovermelhoearespiraçãoofegante,eopsicólogoqueveiotrazê-lodissequeoAugusttinhaquepararcomaquilo.Queeraumcomportamentoobsessivoedestrutivo,eledisse.—EoquefoiqueoAugustdesenhou?—Nadadeespecial,nadamesmo,achoqueeraumaimageminspiradanoquebra-cabeçadele.Muito

bem-feita,comsombras,perspectivaetudoomais.—Masoqueeraodesenho?—Eramquadrados.—Quetipodequadrados?—Pareciamascasasdeumtabuleirodexadrez—explicouHanna,pensandosetalvezelanãotivesse

imaginadocoisas.MasnoinstanteseguintenotouumbrilhotensonosolhosdeMikaelBlomkvist.—Elenãodesenhoumaisnadaalémdessesquadrados?—eleperguntou.—Nada?—Tambémdesenhouespelhos.Quadradosdeumtabuleirodexadrezrefletidosemespelhos.—VocêjáestevenacasadoFrans?—perguntouBlomkvistcomvozaindamaistensa.—Porquevocêquersaber?—Porqueopisodoquartoondeelefoiassassinadoéfeitodequadradoscomoosdeumtabuleirode

xadrez,eelesserefletemnosespelhosdoguarda-roupa.—Ah,não!—Oquefoi?—Eu…Hannafoitomadaporumprofundosentimentodevergonha.— Porque a última coisa que eu vi antes de tirar o desenho dasmãos doAugust foi uma sombra

ameaçadoraseerguendodosquadrados—elaconcluiu.—Eodesenhoestáaqui?—Está.Querdizer,não.—Não?—Eujogueifora.

Page 147: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Ah.—Mastalvez…—Talvezoquê?—Talvezaindaestejanolixo.Mikael Blomkvist estava com as mãos sujas de borra de café e iogurte quando tirou um papel

amassadodolixoeodesdobroucomomaiorcuidadonobalcãodacozinha.Limpoupartedasujeiracomo dorso dos dedos e o examinou sob a luz dos spots embutidos no armário. O desenho não estavaacabadoe,exatamentecomoHannatinhadito,consistiadequadradosqueformavamumpadrãoxadrez,vistos de cima ou de lado. Para qualquer pessoa que não conhecesse o quarto deFransBalder, seriadifícil entender que os quadrados representavam o chão. Porém Mikael reconheceu de imediato osespelhosdoguarda-roupaàdireitadacamaeteveaimpressãodereconheceratémesmoaescuridão—aestranhaescuridãodaquelamadrugada.Mikael se viu transportado para o instante em que entrou pela janela quebrada, a não ser por um

pequenodetalhe.Ocômodoonde ele tinha entrado estavapraticamente às escuras.Nodesenho, haviaumapequenafontedeluzincidindodoaltoeemdiagonalsobreosquadrados,revelandooscontornosdeumasombranãomuitoprecisanemmuitosignificativa,masquenoentanto,etalvezjustamenteporessemotivo,causavaumaimpressãosinistra.A sombra tinha um braço estendido, eMikael, que via o desenho de um ponto de vista totalmente

diferentedodeHanna,não tevenenhumadificuldadeparaentenderoqueaquelamãoestavaprestesafazer.Eraumamãodispostaamatar,eacimadosquadradosedasombrahaviaumrostoinacabado.—OndeestáoAugust?—eleperguntou.—Dormindo?—Não.Ele…—Oquê?—Eunãoconseguimantê-loemcasa.Eunãoestavamaisaguentando.—Ondeeleestá?—NaclínicaOden,naSveavägen.—Quemmaissabequeeleestálá?—Ninguém.—Sóvocêeopessoaldaclínica?—É.—Cuideparaquetudocontinueassim.Porfavor,medêlicençauminstante.MikaelpegouseucelularetelefonouparaJanBublanski.Mentalmente,jáhaviapreparadomaisuma

perguntaparaapastaLisbethSalander.JanBublanskiestavafrustrado,ainvestigaçãonãocaminhava.NemoBlackphonenemonotebookde

FransBalderhaviamsidoencontradose,alémdisso,mesmocomtodaacolaboraçãodaoperadoradetelefoniamóveldele,apolícianão tinhaconseguidorastrearoscontatosqueocientistahaviamantido

Page 148: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

comomundoexteriornemterumaideiadosprocessosjurídicosemqueestavaenvolvido.Atéaquele instante, elesnãohaviamencontradonadaalémdecortinasde fumaçaeclichês,pensou

Bublanski. Era como se um guerreiro ninja tivesse se materializado e desmaterializado no meio daescuridão.Aoperaçãopareciaperfeitademais,comoseseuexecutornãohouvessecometidonenhumadas falhas e contradições comuns e que acabam sendo pressentidas durante uma investigação deassassinato.A operação tinha sido limpa, cirúrgica, eBublanski não conseguia afastar a ideia de queaquele havia sido apenasmais umdia comumna rotina do assassino.Ele refletia sobre esse e outrosassuntosquandoMikaelBlomkvistligou.—Comovai?—disseBublanski.—Acabamosdefalaremvocê.Gostaríamosdeconversardenovo

eomaisbrevepossível.—Tudo bem. Só que agora eu tenho uma informação urgente para lhe passar. OAugust Balder, a

principaltestemunhadocrime,éumsavant.—Umoquê?—Umgarotoquesofredeumaprofundadeficiênciamental,masquetemhabilidadesmuitoespeciais.

Ele desenha como ummestre, comprecisãomatemática.Vocês viram os desenhos do semáforo?ElesestavamemcimadamesadacozinhaemSaltsjöbaden.—Muitoporalto.VocêestádizendoqueosdesenhosnãoforamfeitospeloBalder?—Issomesmo.Foramfeitospelomenino.—Atécnicapareciamuitoapurada.—Masfoiomeninoquedesenhou,ehojedemanhãelecomeçouadesenharopadrãoxadrezdopiso

doquartodoBalder.Enãofoisóisso.Eletambémdesenhouumafontedeluzeumasombra.Suspeitoquesejaasombradoassassinoealuzdalanternadetestaqueeleestavausando.Masnãodáparadizernadacomcertezaaestaaltura.Odesenhodomeninofoiinterrompido.—Vocêestádebrincadeiracomigo?—Nãomepareceumahoramuitopropíciaparabrincadeiras.—Mascomovocêficousabendodetudoisso?—EuestounaTorsgatan,nacasadeHannaBalder,amãedomenino,olhandoparaodesenhoqueele

fez.Masogarotonãoestámaisaqui.Estáno…—Mikaelpareceuhesitar.—Nãovoudizermaisnadaportelefone—acrescentou.—Vocêdissequeodesenhodomeninofoiinterrompido?—Umpsicólogooproibiudecontinuardesenhando.—Comoalguémpodeproibirumacriançadedesenhar?— O psicólogo não percebeu o significado do desenho, apenas o tratou como o impulso de um

comportamentoobsessivo.Sugiroquevocêmandeseupessoalparacáomaisrápidopossível.Vocêstêmumatestemunha.—Estamosindoagoramesmo.Eassimaproveitamosparafalarmaisumpoucocomvocê.—Infelizmenteestouindoembora.Precisovoltarparaaredação.—Seriamuitobomsevocêpudessenosesperar,masentendo.Nomais…—Sim?—Obrigado!

Page 149: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

JanBublanskidesligouotelefoneerepassouasinformaçõesatodoogrupodeinvestigação,decisãoquemaistardeserevelariaumerro.

Page 150: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

15.21DENOVEMBRO

LisbethSalanderestavanoClubedeXadrezRaucher,naHälsingegatan.Esemnenhumavontadedejogar.Estavacomdordecabeça.Tinhapassadoodiainteirocaçando,eosrastrosdesuapresahaviam-na levado àquele lugar. Mesmo depois de descobrir que Frans Balder fora enganado por seuscompanheiros,elahaviaprometidoaoprofessordeixarostraidoresempaz.Emboranãotivessegostadonemumpoucodessaestratégia,Lisbethhaviacumpridoapalavra.MasdepoisdoassassinatodeBalderpassouaseconsiderardispensadadapromessaquefizera.Apartirdeentão,sentiu-selivreparaagiraseumodo.Masnãofoitãosimples.ComoArvidWrange

nãoparavaemcasa,emvezdetentarachá-lopelotelefone,Lisbethpreferiucaircomoumraionavidadele. Por isso tinha dado voltas e mais voltas com o capuz na cabeça. Arvid levava uma vida devagabundo. Mas, como acontece com tantos outros vagabundos, por trás daquela existênciaaparentemente caótica existia uma certa regularidade, e pelas fotos que ele postara no Instagram e noFacebook,Lisbethhaviaencontradoalgumasconstantes:oRiche,naBirgerJarlsgatan;oTeatergrillen,naNybrogatan; eoClubedeXadrezRaucher eoKaféRitorno,naOdengatan, alémde lugares comoumestandedetiro,naFridhemsgatan,eoendereçodeduasnamoradas.ArvidWrangeestavamudadodesdeaúltimavezemqueapareceranoradardeLisbeth.Elenãotinhasimplesmentepostofimàsuaaparênciadenerd.Amoraldeletambémpareciaembaixa.

Lisbethnãoeramuitodadaa teoriaspsicológicas,mesmoassimpercebeuqueaprimeira transgressãohavia levado a uma série de novas transgressões. Arvid já não era um aluno dedicado e ambicioso.Agorapassavaotemposurfandonainternetatrásdepornografiaviolenta,quebeiravaaagressão,etinhacomeçadoacomprar sexopela internet—sexoviolento.Duasou trêsgarotasqueelehaviachamadoameaçaramdenunciá-lo.Emvez de jogos de computador e pesquisas sobre IA, o interesse deArvid era por bebedeiras no

centrodacidadeeprostitutas.Estavaevidentequeelepossuíaumbocadodedinheiro.Etambémestavaevidente que tinha um bocado de problemas.Naquelamanhã, ele havia buscado informações sobre oprogramadeproteçãoa testemunhasnaSuécia,oquesemdúvidaforaumpassoemfalso.MesmoqueArvidnãomantivessecontatocomaSolifon,oupelomenosnãoemseucomputadorpessoal,eracertoque a empresa acompanhava os passos dele pelo mundo digital. Qualquer outra atitude seria poucoprofissional.TalvezArvidestivesseruindoportrásdesuanovaaparênciamundana,oquepareciabom.Facilitariaotrabalhodela.EquandoLisbethligoudenovoparaoclubedexadrez—ojogoeraaúnicaligação que ele mantinha com sua antiga vida—, disseram-lhe que ArvidWrange havia acabado de

Page 151: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

chegar.LisbethdesceuapequenaescadaquecomeçavanaHälsingegatanecontinuouaolongodeumcorredor

atéchegaraumpequenocômodocinzentoeausteroondeumgrupocompostoprincipalmentedehomensmaisvelhosestavadebruçadosobre tabuleirosdexadrez.Aatmosferaerameio soporífica, eninguémprestouatençãoemLisbethnemestranhousuapresençaali.Todosestavamocupadoscomseusjogos,eos únicos barulhos que se ouviam eram os cliques dos relógios de xadrez e de vem em quando umpalavrãoaquieali.NasparedeshaviafotografiasdeKasparov,MagnusCarlseneBobbyFischer,eatémesmoadeumadolescentecheiodeespinhas.EraArvidWrangenumapartidacontraaestreladoxadrezJuditPolgár.Numaversãoumpoucomaisenvelhecida,Arvidestavasentadoaumamesamaisaofundoeàdireita,

parecendoensaiarumanovaabertura.Aseulado,sacolasdecompras.Eleusavaumblusãoamarelodelãdecarneirosobreumacamisabrancarecém-passadaesapatosinglesesdeverniz.Pareciaumpoucoarrumadodemaisparaaocasião,ecompassoscautelososehesitantesLisbethseaproximoueperguntouseelegostariadejogar.Deimediatoelerespondeucomumolharqueaexaminoudacabeçaaospés.—Estábem—eledisse.—Vocêémuitogentil—Lisbethdisse,comoumamenininhabem-educada,esentou-sediantedele

semdizermaisumapalavra.QuandoelaabriucomE4,ArvidrespondeucomB5,numaaberturadupladopeãodorei,edepoiselafechouosolhosedeixouqueArvidcontinuassejogando.ArvidWrangetentouseconcentrarnojogo.Masnãohaviacomo.Porsorteaquelagarotapunknãoera

nenhuma grande jogadora. Não que fosse ruim: com certeza era uma jogadora esperta. Mas de queadiantaria?Arvid ficoubrincandocomagarota,quesemdúvidadeviaestar impressionada,e…quemsabe?Talvezdepois conseguisse ir para a casadela.Ela tinhaumaexpressãomeio azedano rosto, eArvid não gostava de garotas azedas. Por outro lado, seus seios eram atraentes, e talvez ele pudessedescontar todaasuafrustraçãonela.Tinhasidoumamanhãinfernal.AnotíciadoassassinatodeFransBalderquaseohavianocauteado.Maselenãosentiaexatamentetristeza.Eramedo.ArvidWrangetentavaconvencerasimesmodeque

haviafeitoacoisacerta.Oquemaisaquelemalditoprofessorpodiaesperardepoisdetratá-locomtantodesprezo?Mesmoassim,nãoserianadabomseviesseàtonaqueArvidotinhatraído,eopioreraquecomcertezahaviaumaligação.ElenãoentendiamuitobemanaturezadessaligaçãoetentavaseconsolardizendoasimesmoqueumidiotacomoBalderdeviatermilharesdeinimigos.Masnofundoelesabia:umacontecimentoestavaligadoaooutro,eessaconstataçãoodeixavaapavorado.DesdequeFranshaviacomeçadoatrabalharnaSolifon,Arvidtemeuqueaquelahistóriatomasseum

rumopreocupante,eagoraláestavaeledesejandoquetudodesaparecesse,ecomcertezatinhasidoissoqueofeziràcidadedemanhãeteraquelesurtodesenfreadodecompras,edepoisaoclubedexadrez.Oxadrezàsvezesoajudavaaclarearasideias,e,paradizeraverdade,jáestavabemmelhor.Sentia-senocontrole e esperto o suficiente para enganar qualquer adversário. Era assim que estava jogando, e agarotanãoeranadaruim.Pelo contrário, jogava de um jeito inusitado e criativo, que certamente poderia servir de uma

Page 152: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

inesquecívelliçãoàmaioriadosenxadristasdoclube.Masele,ArvidWrange,poderiaderrotá-lamesmoassim.Jogavademaneiratãoapuradaesofisticadaqueagarotanempercebiaqueocercoiasefechandoemtornodela.Comjogadasfurtivas,Arvidaumentavaavantagemaospoucos,ederepentecapturouarainha da adversária com o sacrifício de ummero cavalo, acrescentando num tom de flerte que comcertezaaimpressionou:—Sorry,baby.Yourqueenisdown!Mas não houve nenhuma reação, nenhum sorriso, nenhum comentário, nada. A garota simplesmente

começou a jogarmais depressa, como se quisesse pôr fim àquela humilhação, e por que não?Arvidestavamaisdoquedispostoaabreviaraqueleprocessoomáximopossívelelevaragarotaparatomardois ou três drinques em algum bar antes de cair matando sobre ela. Não tinha a intenção de serespecialmente gentil na cama. E provavelmente ela depois ainda lhe agradeceria. Para estar azedadaquele jeito, sópodia fazer tempoqueelanão transava, e tambémnãodeviaestarmuitoacostumadacomcarasbacanascomoele—equeaindaporcimajogavaumxadrezdaquelenível.Arvidresolveuseexibir e começou a explicar teorias avançadas de xadrez.Mas sua exibição não levou a nada. Algoparecia estar errado. Arvid começou a enfrentar no jogo uma resistência inesperada que ele nãoconseguia entender, uma espécie de estagnação, e pormuito tempo continuoudizendo a simesmoqueaquiloerasóumaimpressãopassageira,ouentãooresultadodejogadasprecipitadas.Semdúvidaaindaconseguiriaendireitarascoisasseconseguissesemanterconcentradonapartida,portantomobilizoutodooseuinstintomatador.Masascoisassópioraramparaele.Arvidcomeçouasesentirencurralado,epormaisqueseesforçasseagarotabatiadevoltacomainda

maisforça.Porfimviu-seobrigadoaadmitirqueavantagemhaviapassadodemaneirairreversívelparaaadversária.Nãoeraumaloucura?ElehaviacapturadoarainhadeLisbeth,masemvezdeaumentaravantagemArvidtinhaacabadonumasituaçãodeenormedesvantagem.Oqueteriaacontecido?Seráqueagarotapodiatersacrificadoarainha?Noiníciodapartida?Impossível.Essetipodecoisasóacontecenoslivrosdexadrez,nãonumpequenoclubedeVasastannemquandoojogadoremquestãoéumagarotapunkcheiadepiercingseproblemasdeatitude,emenosaindaquandooadversárioéumenxadristadedestaquecomoele.Mesmoassim,nãohaviamaissalvação.Oxeque-mateviriaemquatrooucincolances,eArvidnãoviualternativasenãoderrubaroreicomo

indicador e balbuciar um cumprimento.Mesmo que tivesse vontade de inventar uma desculpa, teve aimpressãodequeissodeixariaascoisaspiores.Sentiuquesuaderrotanãotinhasidoconsequênciadeumapartidadesastrosa,emaisumaveztevemedo.Quemdiaboseraaquelagarota?Arvid lançouumolhar cautelosoparaosolhosdela, e agarota jánãoparecia azedanem insegura.

Agoraexibiaafriezadeumblocodegelo,comoumpredadorobservandoapresa.Arvidfoitomadoporumintensodesconforto,comoseaderrotanotabuleirofosseapenasoiníciodealgopior.Emseguidaolhouparaaporta.—Vocênãovaialugarnenhum—disseagarota.—Quemévocê?—perguntouArvid.—Ninguémemespecial.—Entãoagentenuncaseviu?—Caraacara,não.—Edequeoutrojeito?

Page 153: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Vocêjámeviunosseuspesadelos,Arvid.—Issoporacasoéumabrincadeira?—eleperguntou.—Nãoexatamente.—Doquevocêestáfalando,afinal?—Doquevocêacha?—Comoéqueeuvousaber?Arvidnãoconseguiaentenderporquesentiatantomedo.—FransBalderfoiassassinadonestamadrugada.—É,eu…euliarespeito.—Coisaterrível,não?—Comcerteza.—Principalmenteparavocê,nãoémesmo?—Porquê?—Porquevocêtraiuoprofessor,Arvid.PorquevocêfoiumJudasparaele.Arvidsentiuocorpoenregelar.—Vocênãosabeoqueestádizendo—eleretrucou.—Paradizeraverdade,seimuitobemoqueestoudizendo.Euinvadioseucomputador,quebreia

criptografiadosseusarquivosevitudodeformamuitoclara.Esabedeumacoisa?Arvidrespiravacomdificuldade.—Estouconvencidadequehojedemanhãvocêficouseperguntandoseamortedelefoiculpasua.

Sobreisso,achoquepossoajudarvocêumpouco.Sim,foiculpasua.Sevocênãofossetãoinvejoso,amargoedesprezívelapontodetraí-loevenderaquelatecnologiaparaaSolifon,oFransBalderestariavivo hoje. E não vou esconder que eu estou furiosa,Arvid. Pretendo fazer bastantemal a você. Paracomeçar,euqueroteofereceromesmotipode tratamentoquevocêdispensaàsmulheresqueconhecepelainternet.—Vocêporacasoestálouca?—Provavelmenteumpouquinho,sim—ela respondeu.—Tenhoproblemasdeempatia,sabe.Não

consigocontrolarmeusimpulsosviolentos.Essascoisas.LisbethpegouamãodeArvidcomumaforçaqueodeixouaterrorizado.—Vouserbemdireta,Arvid.Asituaçãonãoestánadaboaparavocê.Esabeoqueeuvoufazeragora

mesmo?Sabeporqueeuestouparecendoassimmeiodistraída?—elaperguntou.—Não.—Porqueestouaquipensandonoquevoufazercomvocê.Queroteoferecerumsofrimentodignoda

Bíblia.Éporisso.—Oquevocêquer?—Vingança.Aindanãoficouclaro?—Vocêsóestáfalandomerda.—Nãomesmo.Vocêsabemuitobemquenão.Masvocêtemcomosesafar.—Oquevocêquerqueeufaça?Arvidnãoentendeucomopôdeterdeixadoescaparumafrasedaquelas.Oquevocêquerqueeufaça?

Page 154: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Erapraticamenteumaconfissão,umacapitulação,eelepensouemretiraroquehaviaditobemdepressae começar a pressionar a garota para descobrir se ela realmente tinha provas ou se estava apenasblefando.Masnãoconseguiu—esómais tardeelepercebeuquenão tinhasidoporcausadaameaçadelanemdaforçaimpressionantecomqueagarotahaviaseguradosuamão.Tinhasidoapartidadexadrez,osacrifíciodarainha.Arvidestavachocado,eseu inconsciente lhe

diziaqueumagarotacapazdejogarxadrezdaquelaformatambémteriacomorevelarossegredosdele.—Oquevocêquerqueeufaça?—elerepetiu.—Queroquevocêvenhacomigoemecontetudo,Arvid.Queroquevocêmecontetodososdetalhes

decomotraiuFransBalder.—Éummilagre—disseJanBublanskinacozinhadeHannaBalderaoverodesenhoamassadoque

MikaelBlomkvisthaviaresgatadodolixo.—Cuidado,nãohárazãoparatantoentusiasmo—observouSonjaModigaoladodele,eelaestava

certa.Nopapelnãohaviamuitomaisquequadradosdeumtabuleirodexadrez,porém,comoMikaeltinha

ditoaotelefone,notava-sealiumaintriganteorganizaçãomatemática,comoseomeninoestivessemaisinteressadonageometriaenamultiplicaçãodosquadradosnosespelhosdoquenaameaçadorasombramais acima.Ainda assimBublanski não escondia sua admiração. Tinha ouvido repetidos comentáriossobreadeficiênciamentaldeAugustBalderesobrecomoeleseriaincapazdeajudarapolícia.Masomenino havia feito um desenho que era a melhor pista de toda a investigação, e essa descoberta ocomoveue fortaleceusuavelhacrençadequenãosedevesubestimarninguém, tampoucoseagarraraideiaspreconcebidasdequalquerespécie.Naverdade,nãohaviacomo tercertezadequeomomento retratadoporAugustBaldernodesenho

fosse o momento do crime. A sombra podia, pelo menos em tese, estar relacionada com outroacontecimento qualquer, e não havia garantia de que omenino tivesse visto o rosto do assassino nemmesmoseseriacapazdedesenhá-lo.Noentanto,nofundodoseucoração,eranissoqueJanBublanskiacreditava,enãoapenasporqueodesenho,mesmoinacabado,fosseumademonstraçãoindiscutíveldevirtuosismoartístico.JanBublanskitinhaanalisadoosoutrosdesenhos,feitocópiasdeleseficadocomelas.Nasimagens

havianãoapenasuma faixadepedestres eumsemáforo,mas tambémumhomemde lábios finos e arcansado que, se analisado do ponto de vista policial, tinha sido pego em flagrante. O homem estavaatravessandoosinalnovermelhoeseurostohaviasidoreproduzidocomtamanhariquezadedetalhesqueAmandaFlod,daequipe,reconheceuneleoex-atorRogerWinter,atualmentedesempregadoequejáforacondenadoporembriaguezaovolanteeagressão.A precisão fotográfica do olhar de August Balder seria um sonho para qualquer investigador de

homicídios. Mas Bublanski também sabia que não seria muito profissional de sua parte alimentarexpectativas exageradas. Talvez o assassino estivesse com o rosto coberto nomomento do crime, ouentãosuasfeiçõesjápodiamterseapagadodamemóriadeAugust.Haviainúmeraspossibilidades,ederepenteBublanskilançouumolhardesanimadoparaSonjaModig.

Page 155: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Entãovocêachaqueeuestoumeiludindo.—ParaalguémquecomeçouaquestionaraexistênciadeDeus,vocêpareceterumafacilidadeetanto

paraencontrarmilagres.—É,podeser.—Masclaroquevaleapenainvestigarmuitobemessedesenho.Quantoaissoestamosdeacordo—

disseSonjaModig.—Estácerto.Vamosveromenino,então.Lisbeth eArvidWrange chegaram aoVasaparken de braços dados, como dois velhos amigos.Mas

tambémdestavezasimpressõeseramenganosas.Arvidestavaapavorado,eLisbethSalandercomeçouacaminharemdireçãoaumbanco.Porcausadotemporuim,nãoeraexatamenteomelhordiaparaficaralisentados, jogandocomidaparaospombos.Ventavaforte,a temperaturacontinuavacaindo,eArvidWrangeestavagelado.MasLisbethachouqueobancoserviria,apertoucomforçaobraçodeleeofezsentar.—Pronto—eladisse.—Podemoscomeçar.—Vocêprometequevaimanteromeunomeforadessahistória?—Eunãoprometonada,Arvid.Masaschancesdevocêcontinuarvivendoasuavidamiserávelvão

aumentarconsideravelmentesevocêmecontaroquesabe.—Tudobem—disseArvid.—VocêconheceaDarknet?—Conheço—Lisbethdisse.A resposta tinha sido o understatement do dia. Ninguém conhecia a Darknet melhor que Lisbeth

Salander.ADarkneteraumsubstratodainternet,umaterrasemlei.NinguémacessaaDarknetsemumsoftwareespecialecriptografado.NaDarknet,oanonimatodousuárioégarantido.Ninguémtemcomoprocurarinformaçõessobreoutraspessoasnemrastrearsuasatividades.PorissoaDarknetestácheiadetraficantes de drogas, terroristas, desertores, gângsteres, contrabandistas de armas, homens-bomba,cafetõeseblackhats.Emnenhumlugardomundodigitalexistetantaatividadeilícita.Seainternettemuminferno,eleéaDarknet.MasaDarknettambémtemseuladobom,eLisbethsabiamuitobemdisso.Hoje,comasagênciasde

espionagem e os grandes fabricantes de softwares espionando cada passo que se dá na internet, aspessoasdebemprecisamdeumlugarondeninguémasveja,porissoaDarknettambémsetransformouno lugar ideal para dissidentes, fontes secretas e delatores. Na Darknet opositores podem falar eprotestarsemquegovernososalcancem,eeranaDarknetqueLisbethSalanderfaziasuaspesquisasmaissecretaselançavaseusataques.Ouseja,LisbethSalanderconheciaaDarknet.Conheciaossiteseosmotoresdebuscadaquelevelho

organismoquesemantinhamuitolongedainternetvisível.—VocêcolocouatecnologiadoBalderàvendanaDarknet?—Não,não…eunãotinhanenhumplano.OBaldermedesprezava,quasenuncamecumprimentava,

me tratavacomo lixoe,paradizeraverdade, tambémnãodavaamínimaparaa tecnologiaquevinhadesenvolvendo.Sóqueriafazersuaspesquisas,nãoseimportavadevercomoelasfuncionariamdepois.

Page 156: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Etodosnóssabíamosqueatecnologiadeletinhaumvalorincalculávelepodianostornarricos.MasoBaldernemligava,queriaapenasficarbrincando,fazendoexperiênciascomoumacriança.Lembroqueuma vez, depois de uma bebedeira, postei uma pergunta num site nerd: “Alguém aí tem grana paracomprarumatecnologiadeIArevolucionária?”.—Ealguémrespondeu?—Essarespostademorou.Euatéjátinhaesquecidoquehaviapostadoaquelapergunta.Masaíumtal

deBogeyescreveuecomeçouamefazerperguntas…perguntasdequemestavamuitobeminformado.No começo eu fiz a besteira de ir respondendomeio de qualquer jeito, semmuito cuidado, como seestivesse brincando. Mas depois vi que eu estava me envolvendo de verdade na história e fiqueiapavoradoqueoBogeyfosseroubaratecnologia.—Ficouapavoradoqueelefosseroubaratecnologiasemtepagar,vocêquerdizer.—Eunãotivenoçãodeondeestavamemetendo.Aíaconteceuumproblemaquedeveserclássico.

Pra vender a tecnologia do Frans eu seria obrigado a dar informações sobre ela, mas se eu desseinformaçõesdemais,acabariaperdendoavenda,eoBogeynãoparavademebajular.Nofimeleacaboudescobrindoexatamenteoqueagentetinhaecomquesoftwareestávamostrabalhando.—Eleestavahackeandovocês.—Provavelmente.Enessemeio-tempoacaboudescobrindoomeunome,oqueacaboucomigo.Fiquei

paranoicoe faleiqueeunãoqueriamaiscontinuarcomaquilo.Sóque jáera tarde.NãoqueoBogeytivesseme ameaçado…pelomenos não de forma direta.Mas ele ficava dizendo que podíamos fazercoisasgrandiosasjuntoseganharummontededinheiro,enofimconcordeiemmeencontrarcomelenumrestaurantechinêsquefuncionadentrodeumbarcoemSöderMälarstrand.Lembroqueeraumdiafrio,ventavamuitoeeuquasecongeleiesperandoocara.MasoBogeynãoapareceu,edepoisdeumameiahoracomeceiaacharquetalvezelesestivessemmevigiando.—Edepoiseleapareceu?—Apareceu,equandoeuviocarafiqueiperplexo.Nãoacreditava.OBogeypareciaumdrogado,um

mendigo,eseeunãotivessevistooPatekPhilippenopulsodeleeuteriadadounstrocadospraele.Ocaratinhaumascicatrizesbemfeiasnosbraçosetatuagensfeitasdeumjeitoamador.Osbraçosficavamlargadosquandoeleandava,eo sobretudodelepareciaum trapo.Fiqueicoma impressãodequeelemoravanarua,eomaisestranhoéqueelepareciaorgulhosodaquelejeitodele.Sóorelógioeosapatofeito àmãomostravam que ele tinha saído damerda.Nomais, parecia fazer questão demanter suasraízes,equandomaistardeeujáhaviapassadotudoparaeleeagentecomemoravaonossoacordocomduasgarrafasdevinho,pergunteisobreopassadodele.—Eeuespero,paraoseuprópriobem,queoBogeytenhatedadopelomenosalgunsdetalhes.—Sevocêestápensandoemiratrásdele,devoavisarque…—Nãoqueroconselhos,Arvid.Querofatos.—Tudo bem. Claro que ele foi cauteloso— prosseguiuArvid—,mesmo assim consegui alguma

coisa.OBogey não tinha comome negar, ele ainda dependia de algumas informaçõesminhas, não iaconseguirsevirarsozinho.EledissequecresceunumacidadegrandedaRússia,masnãodeuonome.Etambémcontouque tinhaabsolutamente tudocontraele.Tudo!Amãeeradrogadaeprostituta,eopaipodiaserqualquerum.Quandoerapequeno,acabouindopararnumorfanatodosinfernos.Mecontouque

Page 157: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

um louco que trabalhava naquele lugar o colocava numa mesa de carnear que havia na cozinha e oespancavacomumabengalavelha.Comonzeanoselefugiudoorfanatoefoivivernarua.Roubavaedormia em porões e escadarias pra se esquentar um pouco, enchia a cara com vodca vagabunda echeiravasolventesecola.Foiviolentadoeapanhoumuito.Mastambémdescobriuumacoisa.—Oquê?—Queeleeramuitotalentoso.Oqueosoutroslevavamhorasparafazer,eleconseguiaemsegundos.

Eraummestreemarrombamentos,eessefoioprimeiroorgulhoquesentiunavida,aprimeiraidentidadequeteve.Antesnãopassavadeumpivetedesprezadoportodos.Derepentepassouaserogarotoqueentravaemqualquerlugar,elogoissovirouumaobsessão.PassavaosdiassonhandoemserumaespéciedeHoudiniaocontrário.Nãoqueriasairdoslugares.Elequeriaentrar,ecomeçouatreinarparaficarcadavezmelhor,treinavadez,doze,catorzehoraspordia,atéquevirouumalendavivadasruas,pelomenosfoioqueelemedisse,ecomeçouatrabalharemoperaçõescadavezmaioresquedepoisdeumtempopassaramaenvolvercomputadores,queeleroubavaereconfigurava.Conseguiahackearqualquersistemaecomeçouaganharmuitodinheiro.Masgastavatudocomdrogasenegociatas,emuitasvezesera roubadoeenganado.Nahorade trabalharestavasemprealertaeconcentrado,masdepoiscaíanaapatiadasdrogaseacabavampassandoapernanele.Bogeydissequeeraaomesmotempoumgênioeumburro.Masumdiatudomudoueelesaiudesseinferno.—Oqueaconteceu?— Ele estava dormindo numa construção abandonada e seu aspecto era o pior possível. Mas de

repenteeleacordourodeadoporumaluzdouradaeviuumanjonafrentedele.—Umanjo?—Foioqueeledisse.Umanjo.Devetersidoporcausadocontrastecomasoutrascoisasqueele

tinhaládentro,agulhas,restosdecomida,baratasesóDeussabeoquemais.Elefalouqueeraamulhermaislindaqueelejátinhavisto.Malaguentavaolharpraelaesentiucomosefossemorrerali.Foiumsentimentoesplêndido,grandioso.Aíamulherexplicou,comosefosseacoisamaisnaturaldomundo,queiafazerdeleumhomemricoefeliz,eseeuentendibemelacumpriumesmoapromessa.Pagouumtratamentodentáriopraeleeocolocounumaclínicadereabilitação.Etomoutodasasprovidênciasparaquedepoiseleseformasseemengenhariadacomputação.—Edesdeentãoelehackeiacomputadoreseroubaparaessamulherearedequeelacomanda.— Émais ou menos isso. Ele virou outra pessoa. Talvez não totalmente outra, porque emmuitos

sentidoseleaindaéomesmoladrãodeantes.Masdissequenãousamaisdrogasenoseutempolivresededica a obter informações sobre os últimos desenvolvimentos tecnológicos que existem no mundo.EncontroumuitacoisanaDarknetemefalouquehojeeleéumhomemmuitorico.—Esobreessamulher?Elenãofaloumaisnadasobreela?—Não,eleeradiscretodemais.Falavadelacomtantaadmiraçãoereverênciaqueporalgumtempo

chegueiapensarseelanãoseriaapenasumafantasiacriadaporele.Masachoqueelaexistemesmo.Também havia um sentimento perceptível de medo no ar quando ele falava dela. Disse que preferiamorreratrairaconfiançadessamulher,enessemomentomemostrouumacruzpatriarcalrussadeouroqueamulhertinhadadopraele.Umadessascruzesquetêmumbraçoextrameionadiagonal,queapontaaomesmotempopracimaeprabaixo,sabe?ElemeexplicouqueessacruzeraumaalusãoaoEvangelho

Page 158: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

deMateuseaosladrõescrucificadoscomJesus.Umdosladrõesacreditouneleefoiparaocéu.Ooutrooridicularizouefoiparaoinferno.—Eeraissoqueiaacontecercomvocês,setraíssemessamulher.—É,maisoumenos.—EntãoelasecomparavaaJesus?—Naquelasituação,acruznãodeviaternadaavercomocristianismo.Eraapenasumamensagem

queelaqueriatransmitir.—Fidelidadeouostormentosdoinferno.—Algonessalinha.—Emesmoassimvocêestáaquicomigo,Arvid.Contandotudoquesabe.—Eunãotiveescolha.—Esperoquevocêtenhaganhadoumbomdinheiro.—É,eu…ganhei.—EdepoisatecnologiadoBalderfoivendidaparaaSolifoneaTruegames.—É…masnãoconsigoentenderumacoisa.—Nãoconsegueentenderoquê?—Comovocêdescobriu?—Vocêcometeuaburricedeenviarume-mailparaoEckerwald,daSolifon,lembra?—Maseunãoescrevinadaquedesseaentenderqueeutinhavendidoatecnologia.Tomeiomaior

cuidado.—Oquevocêdisseláfoiosuficienteparamim—respondeuLisbethselevantando,enesseinstante

foicomoseArvidperdesseochão.— Espere um pouco! E como vão ficar as coisas agora? Você vai deixar meu nome longe dessa

história?—Seriasortedemaisparavocê—eladisse,eemseguidaseafastoucompassosrápidosedecididos

rumoaOdenplan.Enquanto Bublanski descia a escada do prédio da Torsgatan, seu celular tocou. Era o professor

CharlesEdelman.Bublanskiestavaatrásdeledesdequesouberaqueogarotoeraumsavant.Nainternet,tinhadescobertodoisespecialistassuecosmencionadosdeformasempreconsistentequandootemaeraesse— a professora LenaEk, daUniversidade de Lund, eCharles Edelman, do InstitutoKarolinska.Comonãohaviaconseguido fazercontatocomnenhumdosdois, tinhadeixadooassuntoumpoucodeladoparairàcasadeHannaBalder.AgoraCharlesEdelmanrespondiaàsualigação,parecendomuitoperturbado.Explicouque estava emBudapeste, para uma conferência sobre capacidade aumentada dememória.TinhaacabadodeaterrissaredeveranotíciadoassassinatonositedaCNN.—Senãoeumesmojáteriaprocuradovocês.—Comoassim?—OFransBaldermetelefonouontemànoite.Bublanskiestremeceu,comoemgeralaconteciaquandodeparavacomessetipodecoincidência.

Page 159: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Paratratardequeassunto?—Elequeriafalarsobreotalentodofilhodele.—Ossenhoresseconheciam?—Não.Elemeligouporqueestavapreocupadocomomenino.Fiqueiestupefato.—Porquê?— Por ser o professor Frans Balder. Para os neurologistas, o Balder é praticamente um conceito.

Costumamosdizerqueelequerentenderocérebrohumanodamesmaformaquenós.Adiferençaéquedepoiselequerconstruirumapartirdonada,eaprimorá-lo.—Jáouvicomentáriosparecidos.—Eutinhaouvidodizerqueeleeraumhomemextremamentereclusoedifícil.Umpoucocomouma

máquina, as pessoas diziam às vezes, de brincadeira: pensamento lógico e puro.Mas comigo ele semostroumuitoemotivo,oque,parasersincero,medeixouatônito.Foi…nãoseiexplicar,foicomosevocêvisseoagentemaisdurãodapolíciachorar,eacheiquedevia teracontecidomaisalgumacoisaalémdaquiloqueeleestavamecontando.—Efoiuma impressãocorreta.OprofessorBalderpercebeuqueexistiaumaameaçarealcontraa

vidadele—disseBublanski.—Maseletinhaoutrasrazõesparaestaralterado.Eledissequeosdesenhosdofilhoerammagistrais,

o que não é muito comum nessa idade, nem mesmo entre os savants, e menos ainda quando essahabilidadevemacompanhadaporumtalentomatemático.—Omeninotemhabilidadesmatemáticastambém?—PeloqueoBaldermecontou,tem.Eeupoderiadiscorrerhorasehorassobreesseassunto.—Oqueosenhorquerdizer?—Fiqueiaomesmotempomuitoimpressionadoepoucoimpressionado.Hojesabemosqueexisteum

fator hereditário relacionado à síndrome de savant, e no caso o pai era uma lenda viva graças aoslogaritmosavançadosquehaviadesenvolvido.Aomesmotempo…—Sim?—Aomesmo tempo a capacidade artística e a aptidão matemática não costumam aparecer juntas

nessascrianças.—Ointeressantedavidaéqueelasempreencontraumjeitodenossurpreender—disseBublanski.—Éverdade.Mascomopossoajudá-lo?BublanskiselembroudetudoquehaviaacontecidoemSaltsjöbadeneachouqueseriaumaboaideia

agircomamaiorcautelapossível.—Precisamosdasuaajudaedoseuconhecimentotécnicoomaisdepressapossível.—Omeninotestemunhouoassassinato,nãofoi?—Issomesmo.—Eagoravocêsqueremqueeutentefazê-lodesenharoqueviu?—Prefironãofazercomentários.CharlesEdelmanestavanarecepçãodohotelBoscolo,emBudapeste,próximoàságuasreluzentesdo

Page 160: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Danúbio,ondeserealizariaaconferência.Olugarpareciaumpequenosaguãodeumteatrodeópera.Erasuntuoso, com pé-direito alto e repleto de cúpulas e pilares em estilo antigo. Ele tinha esperadoansiosamenteporaquelasemananaHungria,repletadepalestrasejantares.Masnaqueleinstantecrispouorostoepassouamãopelocabelo.TinharecomendadoojovemprofessorMartinWolgers.—Lamento,masporenquantonãovoupoderajudá-lo.Tenhoumapalestramuitoimportanteamanhã

—eletinhaditoaoinvestigadorBublanski,oqueeraverdade.Charles Edelman havia se preparado durante semanas para essa apresentação, e sabia que ela

provocaria uma grande polêmica com outros importantes pesquisadores dos processos de memória.Porém,quandodesligouetrocouumolharfurtivocomLenaEk—quepassavadepressaporelecomumsanduíche namão—, se arrependeu. Chegou atémesmo a invejar o jovemMartin, que sem ter nemcompletadotrintaecincoanosfaziasempreboafiguraejátinhacomeçadoaconstruirseunome.VerdadequeCharlesEdelmannãoentendiamuitobemoquehaviaacontecido.O investigador tinha

sidoumtantomisterioso.Provavelmentetemiaqueotelefoneestivessegrampeado,porémnãoeradifícilimaginar o que havia por trás daquela conversa. O menino era um desenhista extraordinário etestemunhara o crime. Essa situação podia ser resolvida de forma bem evidente, não? Quanto maisEdelman pensava no assunto, mais se preocupava. Ainda teria a oportunidade de fazer muitasapresentaçõesimportantesaolongodavida.Masparticipardeumainvestigaçãodehomicídiodaquelenível—essaeraumachancequenãoserepetiria.QuandopensavanatarefaquehaviapassadoaMartin,tinhaacertezadequeelaseriamaisinteressantedoquequalqueroutracoisaqueviesseaaconteceremBudapeste,equemsabe?Talvezelapudesselhetrazerumapequenadosedefama.Edelman imaginou as manchetes: “Neurologista ajuda polícia a desvendar assassinato”. Ou ainda

melhor:“PesquisasdeEdelmaninauguramnovaeranainvestigaçãocriminal”.Comopodiatersidotãoidiota e ter passado o seu bastão? Havia sido uma atitude estúpida, não? Charles Edelman pegou ocelulardenovoeligouparaBublanski.JanBublanskidesligouotelefone.EleeSonjaModigtinhamencontradoumestacionamentopertoda

bibliotecamunicipaldeEstocolmoeacabadodeatravessararua.OtempocontinuavahorríveleasmãosdeBublanskiestavamquasecongelando.—OEdelmanmudoudeideia?—perguntouSonja.—Mudou.Agoradissequeestáselixandoparaapalestraqueiadar.—Equandoelevolta?—Disse que dará notícias assim que tiver certeza.Mas acha que nomáximo amanhã demanhã já

estaráaqui.OsdoisestavamacaminhodaclínicaOden,naSveavägen,paraencontrarodiretor,TorkelLindén.O

encontroeraapenasparaacertarosdetalhessobreotestemunhodeAugustBalder—pelomenoseraoque Bublanski pensava. Embora Torkel Lindén nada soubesse sobre as reais intenções dos policiais,tinha sido um tanto esquivo ao telefone e dito que o menino não devia ser incomodado “de formanenhuma”.Bublanskitinhapercebidocertahostilidadeehaviafeitoabesteiraderetribuircomamesmafaltadegentileza.Nãotinhasidouminíciomuitopromissor.

Page 161: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Ao chegar, Bublanski descobriu que Torkel Lindén não era o homem grande e robusto que haviaimaginado.Pelocontrário,nãodeviamedirmaisqueummetroemeio,tinhacabelopretoecurto,talvezpintado,elábiosimpassíveisquerealçavamaimpressãodeumcaráterbastantesevero.Usavacalçadebrimpreto,camisapolopretaeumapequenacruznopescoço.Tinhaumarmeioeclesiástico,enãohaviadúvidadequesuahostilidadeerareal.Osolhosdodiretortinhamumbrilhoarrogante,eBublanskisesentiumaisjudeudoquenunca,como

em geral acontecia quando encontrava aquele tipo de má vontade. O olhar daquele homem tambémdesejava firmar sua superioridade moral. Torkel Lindén queria mostrar como seu caráter era maisrefinado porque se preocupava com o bem-estar psíquico do garoto, ao contrário da polícia, quedesejava usá-lo como uma ferramenta a seu serviço, e Bublanski não viu outra saída senão iniciar aconversadaformamaisamistosapossível.—Muitoprazer—eledisse.—Ahã—respondeuTorkelLindén.—Eobrigadoporternosrecebidosemhoramarcada.Possogarantirquenãooincomodaríamosse

nãoacreditássemosqueoassuntoédeextremaimportância.—Imaginoquevocêsqueiraminterrogaromenino.—Nãoexatamente—prosseguiuBublanskicomumtomdevoznãomuitoamável.—Queremos…

bem,primeiroeugostariadedeixarbemclaroquetudooquedissermosaquideveficarentrenós.Porquestãodesegurança.—Osigiloénossamaneirahabitualdetrabalhar.Nãotemosvazamentodeinformaçõesaqui—disse

TorkelLindén,comosetivesseinsinuandoquejánapolícianãosepodiadizeromesmo.—Eusóquerogarantirasegurançadomenino—Bublanskiretrucou.—Entãoessaéaprioridadedevocês?—Paradizeraverdade,é—respondeuBublanskiaindamaisagressivo.—Porissoeugostariade

enfatizarmaisumavez:nadadoqueeudisserpodechegaraoutraspessoas.Enãomerefiroapenasaconversasaovivo,masespecialmentepore-mailetelefone.Podemosiraumlugarmaisreservado?SonjaModignãoestavamuitoentusiasmadacomaquelelugar.Talvezochoroaestivesseperturbando.

Pertodaliumameninachoravadesesperadamente,semparar.Ostrêsestavamnumasalaquecheiravaadesinfetanteeaalgumacoisamais—talvezincenso.Naparedevia-seumacruzenochãoumursodepelúciavelho.Praticamentenãohaviamaisnadapara tornaro ambiente agradávelouaconchegante, eBublanski,queemgeralnãoperdiaobomhumor,estavaapontodeexplodir.PorissoSonjaassumiuocomandoeofereceuumrelatosóbrioeobjetivodoquehaviaacontecido.—Eagora—elaprosseguiu—soubemosqueoseucolegaEinarForsbergdissequeoAugustnão

podiadesenhar.—Foiumaavaliaçãoprofissionaldele,comaqualconcordo.Desenharnãofazbemàcondiçãodo

menino—declarouTorkelLindén.— Por outro lado, me parece que pouca coisa poderia melhorar a condição dele neste momento.

Afinal,elepresenciouoassassinatodopai.

Page 162: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Masnemporissoprecisamosdeixarascoisaspiores,certo?—Éverdade.MasessedesenhoqueoAugustfoiimpedidodeterminarpodetrazerumainformação

decisiva à investigação, por isso estamos insistindo. Concordamos que um psicólogo o acompanhe otempointeiro.—Mesmoassimminharespostaénão.Sonjamalconseguiuacreditarnoqueouviu.—Comoé?—perguntou.—Respeitomuitootrabalhodevocês—prosseguiuTorkelLindéncomosenadativesseacontecido

—,masnossotrabalhoaquinaclínicaOdenéajudarcriançasquesofreramqualquertipodeabuso.Esseé o nosso dever e a nossa vocação. Não somos um braço da polícia. Essa é a nossa conduta, e nosorgulhamosmuitodela.Enquantonossascriançasestiveremaqui,elasprecisamsentirqueosinteressesdelasestãoacimadetudo.SonjaModigpôsamãonapernadeBublanskiparaimpedirqueocolegaperdesseacabeça.—Podemos conseguir ummandado judicial sem nenhuma dificuldade—Sonja continuou.—Mas

preferimosevitarumamedidadessas.—Quebomparavocês.—Desculpe,masquerolhefazerumapergunta—eladisse.—VocêeoseucolegaEinarForsberg

realmentesabemoqueémelhorparaoAugustouparaessameninaqueestáchorando?Seráquetodosnósnãotemosanecessidadedenosexpressar?Euevocêpodemosescrever,conversarouatémesmonoscomunicar um com o outro através dos nossos advogados, mas o August Balder não tem essapossibilidade.Poroutrolado,elesabedesenhar,eparecequedesejanosmostraralgumacoisa.Seráqueimpedir essa comunicação é mesmo amelhor coisa a fazer por ele? Não seria tão desumano quantoimpedirumacriançade falar?Seráqueo idealé realmente impediroAugustdeexpressaraquiloquemaisodeveestaratormentandonestemomento?—Nonossoentendimento…—Não!—Sonjaointerrompeu.—Chegadefalarsobreoqueéoentendimentodevocês.Entramos

emcontatocomapessoamaiscapacitadadetodaaSuéciaparalidarcomessetipodequestão.Seunomeé Charles Edelman, ele é professor de neurologia e está vindo da Hungria agora mesmo para ver omenino.Nãoseriamaisrazoáveldeixarqueeledecida?— Claro que podemos ouvir o que esse neurologista tem a dizer — respondeu Torkel Lindén a

contragosto.—Nãoapenasouvir.Podemosdeixarqueeledecida.—Prometoquemedisponhoaterumdiálogoconstrutivoentredoisespecialistas.—Ótimo.OqueoAugustestáfazendoagora?—Dormindo.Eleestavaexaustoquandochegou.SonjaconcluiuquenãoajudariaemnadasugerirqueacordassemAugust.—EntãonósvoltaremosamanhãcomoprofessorEdelman,eesperoquepossamos trabalhar juntos

nessecaso.

Page 163: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

16.NOITEDE21DENOVEMBROEMANHÃDE22DENOVEMBRO

Gabriella Grane afundou o rosto nas mãos. Fazia quarenta horas que ela estava acordada e seusentimentodeculpasópioravacomafaltadesono.Mesmoassim,haviatrabalhadoduroedemaneiraintensa o dia todo. De manhã, ela havia passado a integrar uma equipe da Säpo— uma espécie deunidadesecreta—quetambéminvestigavaamortedeFransBalder.Oficialmente,cabiaàequipeavaliarasimplicaçõesdocrimenocenáriopolíticonacional,masdeformasigilosaacompanhavacadamínimodetalhequeenvolviaoassassinatodocientista.Na coordenação do grupo, estava o intendente Mårten Nielsen, que recentemente voltara ao país

depoisdeumanodeestudosnaUniversidadedeMaryland,nosEstadosUnidos.Nielsenerasemdúvidainteligentee instruído,mas tinhaposiçõespolíticasmuitodedireitaparaogostodeGabriella.Mårtendeviaseroúnicosuecocomnívelsuperioraapoiarcomentusiasmoopartidorepublicanoamericano,inclusive manifestando alguma simpatia pelo movimento Tea Party. Além disso, era apaixonado porhistóriadasguerrasepalestranteassíduodaAcademiaMilitar.Mesmoaindabemjovem—trintaenoveanos—,Nielsentinhamuitoscontatosforadopaís.Apesardisso,eleestavaencontrandomuitadificuldadeemseencaixarnogrupo,quenapráticaera

liderado porRagnarOlofsson,mais velho,mais inteligente e capaz de fazerMårten se calar comumsimples suspiro rabugentooucomum franzirde suas sobrancelhas cerradas.Parapiorar a situação,oinvestigadorLarsÅkeGrankvisttambémfaziapartedogrupo.Antes de se integrar à Säpo, Lars Åke havia sido um semilendário investigador da Comissão de

HomicídiosdaPolíciaNacional,pelomenosnoquese referiaàsuahabilidadedebebermaisdoquetodososcompanheiroseaofatodetermantidoumaamanteemcadacidadedopaís.Mascomcertezaaquelenãoeraumgrupofácilparaseadaptar,eatémesmoGabriellasemostroucautelosaatardetoda,muitomaisporaindaestarcheiadedúvidassobreocasodoquepelarivalidadeentreseuscolegas.Elapercebeu,porexemplo,queasprovassobreoantigocasodeespionagemcibernéticaeramvagase

quaseinexistentes.TudoquehaviaeraadeclaraçãodeStefanMolde,doFörsvaretsRadioanstalt,enemmesmoeleestavamuitoconvictodoqueafirmara.NaopiniãodeGabriella,elehaviaditomaisbobagensdoquequalqueroutracoisa,eFransBalderpareciaterconfiadomuitomaisnaquelajovemhackerqueele havia contratado e cujo nome nem sequer constava da investigação. Tudo que eles sabiam era aperfeitadescriçãoqueoassistentedeBalder,LinusBrandell, fizeradahacker.GabriellaconcluiuqueFransBalderhaviaescondidomuitasinformaçõesdela,antesdesemudarparaosEstadosUnidos.

Page 164: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

TeriasidoapenascoincidênciaeleteraceitadooempregonaSolifon?GabriellaestavacheiadedúvidaseirritadapornãoestarmaisrecebendoajudadeFortMeade.Ela

nãoconseguiamaisfalarcomAlonaCasalesemuitomenosestabelecercontatodiretocomaNSA.Poressarazão,nãotinhacomoobternovasinformaçõessobreocaso.Sentia-seexatamentecomoMårteneLarsÅke,àsombradeRagnarOlofsson,que,aorecebernotíciasfrescasdesuafontenaComissãodeHomicídios,aslevavadiretoàchefedaSäpo,HelenaKraft.Gabriellanãoestavagostandonadadaquelasituaçãoe,emvão,jáhaviaapontadoquedaquelejeito

corriam não só o risco de as informações vazarem, mas também de eles perderem parte de suaindependência, pois em vez de usarem suas próprias fontes ficavam subordinados ao fluxo deinformaçõesquevinhadaequipedeBublanski.— Estamos parecendo alunos que vão colar na prova e só ficam esperando receber as respostas

prontas—eladisseaogrupotodo,oquenãofezsuapopularidadecrescernemumpouco.Agoraelaestavasozinhaemsuasala,decididaaseguiremfrenteporcontaprópria,tentandoenxergar

ahistóriademaneiramais amplae fazer algumprogresso.Talveznãochegasseanenhumaconclusão,mastambémnãofariamaltentarseguirumcaminhoseu,semficarolhandosempreparaomesmolugar,comoosoutrosestavamfazendo.Ouviupassosnocorredore,pelobarulhodosaltoalto,percebeuquesópodiaserumapessoa.HelenaKraftentrounasalacomseublazerArmanicinzaeocabelopresonumcoqueelegante.Helenaolhou-acomcarinhoeGabriellaseincomodou.Nãoerasemprequegostavadesesentirapredileta.—Comoestãoascoisas?Muitocansada?—Demais—respondeuGabriella.—Depoisdanossa conversa, queroquevocêvápara casadormir.Precisamosdeumaanalistade

segurançapensandocomclarezaporaqui.—Umadecisãosensata.—SabeoqueErichMariaRemarquedisse?—Quenastrincheirasnãoénadadivertidooualgodotipo…—Ah,não, que é sempre a pessoa erradaque se sente culpada.Aspessoasque realmente causam

sofrimentoaomundonemseimportam.Aquelesquelutamdoladocertoéquesedeixamconsumirpelaculpa.Vocênãotemdoqueseenvergonhar,Gabriella.Vocêfezoquepôde.—Nãotenhomuitacertezadisso,masobrigadadequalquerforma.—VocêouviusobreofilhodeBalder?—OuvialgumacoisarapidamentedoRagnar.—Amanhãàsdezhoras,oinspetorBublanski,ainspetoraModigeumtalprofessorCharlesEdelman

vãoseencontrarcomomeninonaclínicaOden,naSveavägen.Elesvãotentarfazeromeninodesenharmaisalgumacoisa.—Tomaraquefuncione,masnãomeagradamuitosaberdisso.—Calma,deixeaparanoiaparamim.Asúnicaspessoasquetêmessainformaçãosãoasquesabem

ficardebocafechada.—Seéassim,ótimo.—Querotemostrarumacoisa

Page 165: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Oquê?—FotografiasdorapazquehackeouoalarmedeBalder.—Eujávi,analiseitodascuidadosamente.—Temcerteza?—perguntouHelenaKraft,estendendoaelaumafotoampliadaemaldefinidadeum

pulso.—Oqueéquetem?—Olhedenovo!Oquevocêestávendo?Gabriellaviuduascoisas.Umrelógiodegrife,queelajátinhanotadoantes,e,embaixodele,traços

deumatatuagemquepareciafeitaporumamador.—Háumcontrasteaqui—eladisse.—Umrelógiocarosobretatuagensbaratas.—Maisqueisso—rebateuHelenaKraft.—ÉumPatekPhilippede1951,modelo2499,deprimeira

ousegundasérie.—Fiqueinamesma.—É um dos relógiosmais caros domundo.Há alguns anos um exemplar desses foi vendido num

leilãodaChristie’semGenebrapormaisdedoismilhõesdedólares.—Vocêestábrincando?—Não,enãofoiumvelhotequalquerquecomprouesserelógio.FoiJanvanderWaal,advogadodo

escritórioDackstone&Partner.Elefezacompraemnomedeumcliente.—ODackstone&PartnerquerepresentaaSolifon?—Exatamente.—Caramba!—Claroquenãotemoscertezaseorelógioflagradopelascâmerasdesegurançaéomesmodoleilão

deGenebrae tambémnãoconseguimosdescobrirqueméesseclientedoJanvanderWaal.Maséumpontodepartida,Gabriella.Agoratemosumhomemesqueléticoparecidocomumdrogadoequeusaumrelógioespetacularcomoesse.Issojárestringebastanteanossabusca.—EoBublanskijátemessainformação?—Foiotécnicodele,JerkerHolmberg,quemdescobriutudoisso.Oqueeuqueroagoraéqueoseu

cérebroanalíticotrabalhecomessainformação.Váparacasa,durmaumpoucoecomecenissoamanhãcedo.

***O homem que dizia se chamar Jan Holtser estava sentado em seu apartamento em Helsinque, na

Högbergsgatan,nãomuitodistantedoparquedaEsplanada.ElefolheavaumálbumdefotografiasdesuafilhaOlga,agoracomvinteedoisanos,queestudavamedicinaemGdansk,naPolônia.Olgaeramorenaealtae,comoelecostumavadizer,amelhorcoisaquehaviaacontecidoemsuavida.

Ele dizia isso não só porque soava bonito e o fazia parecer um pai responsável. Ele também queriaacreditarnisso.MasOlgavinhacomeçandoasuspeitardesuasreaisatividades.—Vocêdefendepessoasruins?—elaperguntouumdia,antesdecomeçaraficarobcecadacomoque

eladiziaserseucompromissocomos“pobreseoprimidos”.

Page 166: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Janachavaqueeraapenasumencantamentopassageirocomasideiasdeesquerda,oque,aliás,nãocombinava em nada com a personalidade da filha. Ele interpretava aquilo mais como um grito deindependênciadela.Por trásde todoaquelediscursoelaboradosobremendigosedoentes, eleachavaqueelaeraigualaele.Olgahaviasidoumaatletapromissoradoscemmetrosrasos.Mediaummetroeoitentaeseis,eramusculosaetinhaexplosão.Nosvelhostemposelaadoravaassistirafilmesdeaçãoeouvi-lofalardesuas lembrançasdeguerra.Naescola, todoshaviamaprendidoanãopuxarbrigacomela,poiselabatiadevolta,comoumguerreiro.Olgadefinitivamentenãotinhasidofeitaparaampararfracosedegenerados.Mesmoassimelaagoradiziaquequeria trabalharparaosMédicosSemFronteirasouentãoirpara

Calcutá como uma espécie deMadre Teresa. Jan Holtser não suportava nem pensar nisso. Omundopertenceaosfortes,eleachava.Mastambémamavaafilha,pormaisamalucadosquefossemseusideais,e no dia seguinte ela viria ficar alguns dias em casa, depois de seismeses.Ele havia prometido a simesmoserumouvintemelhordestavez,nãoficardiscursandosobreStálin,osgrandeslíderesnemsobretodasascoisasqueelaodiava.Pretendia trazê-la paramais perto.Tinha certezadeque ela estavaprecisandodele.Tinha absoluta

certeza de que ele estava precisando dela. Eram oito da noite, ele foi até a cozinha, espremeu trêslaranjasnacentrífuga,colocouSmirnoffnumcopoepreparouumscrewdriver.Oterceirododia.Depoisdeencerrarumtrabalho,elepodiadarcontadeseisousetedesses,etalvezfizesseissoagora.Estavacansadoe sentiaopesode todaa responsabilidadequehavia sido jogadaemseusombros.Precisavarelaxar e por algunsminutos continuou ali com seu drinque namão e sonhando com um tipo de vidacompletamentediferente.Masohomemquedizia se chamar JanHoltser tinha aumentadodemais suasexpectativas.SuatranquilidadeterminouquandorecebeuumaligaçãodeJurijBogdanovnocelular.Noinício,Jan

pensouqueJurijquisesseapenasbaterpapo,pôrumpoucopara fora todaacargade tensãoquefaziaparte de todo o trabalho deles. Mas seu colega estava telefonando para tratar de um assunto bemespecíficoenãoparecianadafeliz.—FaleicomT—eledisse,eJansentiuumaporçãodecoisasaomesmotempo,acimadetudociúme.Por queKira tinha telefonado para Jurij e não para ele?Mesmo que fosse Jurij quem trouxesse o

dinheirogrossoerecebessecomoretribuiçãoosmelhorespresentesemaiorsalário,Janvinhasempresendo persuadido de que era ele, Jan, o mais próximo de Kira. Mas Jan Holtser estava tambémpreocupadoagora.Seráquealgumacoisatinhadadoerrado?—Algumproblema?—Janperguntou.—Otrabalhonãoterminou.—Ondevocêestá?—Nacidade.—Bom,entãovenhaatéaquimeexplicarquediabosvocêquerdizercomisso.—ReserveiumamesanoPostres.—Eunãoestoucomvontadedeiranenhumrestaurantechiqueagoranemdeposardenovo-ricodo

seulado.Venhaparacádeumavez.—Euaindanemcomi.

Page 167: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Eufaçoalgumacoisaparavocê.—Estábem.Temosumalonganoitepelafrente.TudoqueJanHoltsernãoqueriaeraoutra longanoite.Emenosaindadizerà sua filhaqueelenão

estariaemcasanodiaseguinte.MasJannãotinhaescolha.SabiatãobemdissoquantosabiaqueamavaOlga.NãosepodiadizernãoaKira.Elaexerciaumpoderinvisívelsobreelee,pormaisqueseesforçasse,Jannuncaconseguiasemostrar

um homem admirável para ela. Kira o reduzia a um garotinho, e quase sempre ele estava fazendo oimpossívelparavê-lasorrir.Kiraeradeumabelezavertiginosae,comoninguém,sabiaextrairomáximodeseusatributosfísicos.

Eramagníficanosjogosdepoder,conheciatodososseuslances.Sabiasemostrarfracaesuplicanteetambém indomável, dura, fria como gelo; era muitas vezes a própria encarnação do mal. Ninguémconseguiadespertartantooladosádicodelecomoela.Podia não ser uma pessoa extremamente inteligente, no sentido convencional da palavra, e muitos

comentavamisso, talvezporquequisessemabaixarumpoucoacristadela.Aindaassimessasmesmaspessoasficavamaparvalhadasemsuapresença.Kiraosmanipulavacomoaumbrinquedo,emesmooshomensmaisdurõescoravamedavamrisadinhascomomeninosdeescola.Eramnovedanoite e Jurij estava sentadoperto de Jandevorandoo filé de carneiroque ele havia

preparado. Por mais estranho que parecesse, Jurij até demonstrava algumas boas maneiras à mesa.Provavelmente por influência de Kira. Em muitos aspectos, Jurij havia se transformado quase numhomem civilizado, embora de vez em quando, naturalmente, voltasse a ser o que era. Por mais quetentasseposardebacana,elemesmonãoconseguiaselivrardaquelejeitodebatedordecarteiradrogadoe da sensação de ainda ser um. Mesmo que Jurij não usasse drogas havia muitos anos e tivesse seformado em engenharia da computação, ele parecia destruído e seus movimentos e andar desleixadoaindaexibiamasmarcasdosdescuidosdeummoradorderua.—Cadêoseurelógiobacana?—perguntouJan.—Aposenteiporenquanto.—Vocêestáencrencado?—Nósdoisestamos.—Asituaçãoéassimgrave?—Talveznão.—Masvocêdissequeotrabalhonãoterminou,nãofoi?—É,aindatemaquelemenino…—Quemenino?Janfingiuquenãotinhaentendido.—Aquelequevocêaliviou.Quecoisanobre…—Oqueéquetemele?Vocêsabequeeleédeficiente.

Page 168: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Talvezseja,masagoraelecomeçouadesenhar.—Desenharcomo?—Eleéumsavant.—Umoquê?—Vocêdevialerumasoutrascoisas,alémdessassuasrevistassobrearmamentos.—Doquevocêestáfalando?—Umsavantéumapessoaautistaoucomalgumtipodedeficiência,masquemesmoassimtemum

talentoespecial.Essegarotonãofalanempensadireito,masparecequeeletemmemóriafotográfica.OinspetorBublanski achaqueomeninovai conseguirdesenharo seu rosto comprecisãomatemática e,depois,elepretendejogaressedesenhonoprogramadereconhecimentodefacesdapolícia,eaívocêvaisefoder,nãovai?VocênãoestáláemalgumarquivodaInterpol?—Estou,mascomcertezaaKiranãoquerque…—Issoéexatamenteoqueelaquer.Agentevaiterquedarumjeitonomenino.Umaonda de emoção e confusão percorreu Jan, e ele se viu de novo diante daquele olhar vazio e

brilhantequevinhadacamadecasalequeofizerasesentirtãodesconfortável.—Dejeitonenhum!—elegritou,massemacreditarnisso.—Euseiquevocê temproblemacomcrianças.Eu tambémnãogosto.Mas infelizmentenão temos

saída.Aliás,vocêdeviaatéagradecer.AKirapodiasimplesmenteteracabadocomvocê.—Imaginoquesim.—Tudocertoentão!Jáestoucomaspassagensaéreasaquinobolso.Agentepegaoprimeirovoode

amanhã paraArlanda, às seis emeia, e depois vamos direto pra um lugar chamado clínicaOden, naSveavägen.—Omeninoestánumainstituição?—Sim,oquevaiexigirumbomplanejamento.Assimqueeuacabardecomer,agentecomeça.OhomemquediziasechamarJanHoltserfechouosolhoseficoutentandopensarnoqueiriadizera

Olga.Nodiaseguinte,LisbethSalanderselevantouàscincodamanhãeinvadiuosupercomputadorNSFMRI

doInstitutodeTecnologiadeNovaJersey.Elaprecisavadetodoopotencialmatemáticoqueconseguissereunir.Emseguida,saiudeseupróprioprogramadefatoraçãodecurvaselípticas.Depois disso começou a trabalhar na decodificação do arquivo que ela havia baixado daNSA. Por

mais que tentasse de todas as formas, não conseguiu, e na verdade ela já esperava que isso pudesseacontecer.Tratava-sedeumasofisticadacriptografiaRSA—nomedeseusdescobridores,Rivest,ShamireAdleman—deduaschaves,baseadanafórmuladeEulerenotestedeprimalidadedeFermat,masoprincipaleraquepodiaserfacilmentemultiplicadaemdoisnúmerosprimosmaiores.Umacalculadoralhedaráarespostaemumafraçãodesegundos,noentantoéimpossíveltrabalharde

tráspara a frente e, da respostaobtida, saber quenúmerosprimos foramutilizados.Os computadoresaindanãosãomuitobonsemfatoraçãodenúmerosprimos,realidadecontraaqualtantoLisbethSalandercomoosserviçosdeinteligênciadomundotodopraguejarammuitasvezesnopassado.

Page 169: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Normalmente,oalgoritmoGNFSétidocomoomaiseficienteparaesseobjetivo,masfaziacercadeumanoqueLisbethvinhapensandoqueoECM,oMétododaCurvaElíptica,seriaomaispromissor.Porissoelajáhaviapassadoinúmerasnoitesemclaroescrevendoseupróprioprogramadefatoração.Masagora,nessasprimeirashorasdodia,elasedeucontadequeprecisavacontinuaraprimorandooprogramaparaconseguirterumamínimachancedesucesso,edepoisdetrêshorasininterruptasdetrabalhoeladecidiufazerumapausa.Foiatéacozinha,tomousucodelaranjadiretonacaixinhaeesquentoudoispiroguesnomicro-ondas.VoltouàsuamesaeentrounocomputadordeMikaelBlomkvistparaverseeletinhadescobertoalgo

novo.Elehavialhedeixadooutrasduasperguntas,eelasfizeramLisbethpercebernahoraque,apesardetudo,elenãoeraumcasoperdido.QualdosassistentesdeFransBalderotraiu?,eleescreveu,edefatoeraumaperguntasensata.Aindaassim,Lisbethnãorespondeu.NãoqueseimportassecomArvidWrange.Massuainvestigação

parachegaraodrogadodeolhosfundosqueestiveraemcontatocomWrangehaviaprogredido.Osujeitotinhase identificadocomoBogey,eTrinity,daHackerRepublic, lembrouquealguémexatamentecomesse apelidohavia chamadoa atençãoemalguns sitesdehackers anos antes.Embora isso, claro,nãosignificasse,necessariamente,algumacoisa.Bogeynãoeraumpseudônimoexclusivonemmuitooriginal.Masdepoisdetê-lorastreadoelidoseus

posts,Lisbeth teve a sensaçãodequepoderia estar certa, sobretudoquandoalguémcomesse apelidodescuidadamente tinha escrito alguma coisa sobre ter se formado em engenharia da computação naUniversidadedeMoscou.Lisbeth não havia conseguido descobrir em que ano o engenheiro se graduara nem outras datas

relacionadasaesseassunto.Mastinhaencontradoalgoaindamelhor:algunsdetalhesnerdsmostravamqueBogeyeraapaixonadoporrelógiosdeluxoemalucoporfilmesfrancesesdadécadade1970sobreArsèneLupin,oladrãoelegante.Em seguida Lisbeth postou uma pergunta em todos os sites imagináveis para novos e ex-alunos da

UniversidadedeMoscou.Elaqueriasabersealguém,poracaso,conheciaumcaraesqueléticoedeolhosfundos, ex-drogado, ex-menino de rua que depois tinha se tornado um célebre ladrão e que adoravafilmesdeArsèneLupin.Nãodemoroumuitoparareceberumaresposta.“PareceseroJurijBogdanov”,escreveuumagarotaqueseapresentoucomoGalina.Segundo Galina, Jurij era uma lenda na universidade. Não apenas por ter conseguido hackear os

computadoresdetodososconferencistasedescobrirpodresdecadaum,mastambémporviverfazendoapostascomaspessoas.Eledizia:“Apostocemrubloscomvocêcomoeuentronaquelacasa”.Muitosquenãooconheciamachavamque iamganharumdinheiro fácil.MasJurij conseguiaentrar

ondeelequisesse.Seporalgummotivoelenãoconseguiaultrapassaralgumaporta,escalavaasparedes.Eraconhecidoporsuaousadiaeperversidade.Diziamqueumavezhaviachutadoumcãoatéamorte,porque o animal estava atrapalhando o seu trabalho. E também roubava as pessoas o tempo todo, namaioria das vezes só para atormentá-las. Galina achava que ele devia ser cleptomaníaco. Mas Jurijtambémeraconsideradoumhackergenialeumanalistatalentosoe,depoisdeformado,omundoficouaseuspés.Maselenãoquisnenhumemprego.Queriaseguirseucaminho,eletinhadito,enãofoidifícilparaLisbethdescobrirquecaminhoelepercorreradepoisdauniversidade—pelomenosdeacordocom

Page 170: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

aversãooficial.JurijBogdanov tinhaagora trintaequatroanos.Elehavia trocadoaRússiapor seuatual endereço,

Budapester Strasse no 8, em Berlim, próximo ao requintado restaurante Hugos. Ele comandava umaempresadesegurançachamadaOutcastSecurity,quecontavacomsetefuncionáriosecujofaturamento,noúltimoanofiscal,tinhasidodevinteedoismilhõesdeeuros.Eraumtantoirônico,aindaquedealgummodológico,queoseunegóciodefachadafossejustamenteumaempresaqueprotegiagruposindustriaisdepessoascomoele.Elenãohaviasidocondenadopornenhumoutrocrimedesdequeseformaraem2009 e parecia dispor de uma rede de contatos bem ampla, entre eles Ivan Gribanov, membro daAssembleiaLegislativarussaeacionistadacompanhiadepetróleoGazprom.E,fora isso,Lisbethnãoencontroumaisnadaquepudesseajudá-laairmaislonge.AsegundaperguntaqueMikaelBlomkvistlhefaziaera:ClínicapsiquiátricaOden,naSveavägen:éumlugarseguro? (Delete issoassimque terminarde

ler.)Elenãoexplicavaporqueointeressenessaclínica.MaselasabiaqueMikaelBlomkvistnãoerade

fazerperguntasàtoa.Nemtinhaohábitodeservagosobrenada.Seeleestavasendocautelosoapontodeapagarapergunta,éporquedeviaserumaquestãodelicada.

Com certeza havia algo importante sobre esse lugar, e Lisbeth logo descobriu inúmeras reclamaçõescontraaclínicaOden.Criançashaviamsidodeixadasàsuaprópriasorteali,negligenciadas,correndoorisco de se ferir. Era uma instituição particular, administrada por seu diretor, Torkel Lindén, e pelaempresa Care Me, de propriedade dele. Alguns antigos funcionários afirmavam, se é que se podiaacreditarneles,queTorkelLindéndirigiaaclínicacomtotalautonomiaepoder,ealiapalavradeleeralei.Apenasobásicoeraadquiridoe,emconsequênciadisso,amargemdelucroqueaclínicaobtinhaerasemprealta.TorkelLindénhaviasidoumginastaconsagradoe,entresuasconquistas,estavaadecampeãosueco

de barra fixa. Atualmente se dedicava com paixão à caça e eramembro da CongregaçãoAmigos deCristo, que combatia com veemência a homossexualidade. Lisbeth entrou nas páginas oficiais daAssociaçãoSuecadeCaçadoresedaCongregaçãoAmigosdeCristo,paraverquetentadorasatividadesestavamagendadasparaaquelesdias.Emseguida,enviouaTorkeldoise-mailsfalsos,muitosimpáticoseenvolventes,emnomedessasentidades.Emcadae-mailelaanexouumarquivoemPDFcomumvírusespião bastante sofisticado, que se instalaria no computador de Torkel assim que ele abrisse asmensagens.Às 8h23 ela já havia conseguido entrar no servidor e começado a trabalhar. E suas suspeitas se

confirmaram.AugusthaviasidointernadonaclínicaOdennatardedodiaanterior.Emsuafichamédica,logo abaixo de um relato das tristes circunstâncias que haviam ocasionado a admissão de August naclínica,elaleu:

Autismo infantil, grave atraso no desenvolvimento mental. Inquieto. Fortemente traumatizado com a morte do pai. Exigeobservaçãoconstante.Difícildelidar.Trouxeumquebra-cabeça.Proibidodedesenhar!Comportamentocompulsivoedestrutivo.DecisãodopsicólogoForsberg,confirmadaporTL.

Page 171: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Abaixo,haviaoseguinte—enãohaviadúvidaquetinhasidoacrescentadodepois:

OprofessorCharlesEdelman,oinspetorBublanskieainspetoraModigfarãoumavisitaaomeninonaquarta-feira,22denovembro,às10h.TLestarápresente.Desenhosobmonitoração.

Emaisabaixo:

Mudança de local. TL e o professor Edelman levarão o menino para sua mãe, Hanna Balder, na Torsgatan. O inspetorBublanskieainspetoraModigosencontrarãolá.Acreditamqueogarotodesenhamelhoremseuambientefamiliar.

Lisbethfezumarápidapesquisa,parasaberquemeraoprofessorCharlesEdelmane,quandoviuque

eleeraespecialistaemsíndromedesavant, entendeuoque iaacontecer.Elespareciamestaratrásdealgum tipo de testemunho através de um desenho. Senão, por que Bublanski e SonjaModig estariaminteressadosnosdesenhosdomenino?EporqueMikaelBlomkvistteriasidotãocautelosocomaquelapergunta?Porque,claro,nadadissopodiavazar.Oassassinonãopodiadescobrirqueomeninopossivelmente

seria capaz de fazer um desenho dele, portantoLisbeth decidiu verificar seTorkel Lindén havia sidocuidadoso com sua correspondência. Por sorte parecia tudo bem. Ele não tinha escrito nada sobre ahabilidade de desenhar domenino.Mas na noite anterior, às 23h10, ele havia recebido um e-mail doprofessorCharlesEdelman,comcópiaparaSonjaModigeJanBublanski.Porissoolocaldoencontrotinhasidomudado.CharlesEdelmanescreveu:

Olá,Torkel!Muito obrigadoporme receber em sua clínica.Ficomuito agradecido.Mas infelizmente terei que importuná-lo umpouco.

Acredito que as chances de obtermos bons resultados serão maiores se dermos a oportunidade ao menino de desenhar numambienteondeelesesintaseguro.Nãoqueeuestejacriticandoasuaclínica.Sóouçofalarcoisasboasdela.

Sósefornoinferno,pensouLisbeth,econtinuoualer:

Porissoeugostariadetransferiromeninoparaamãe,HannaBalder,naTorsgatan,amanhãdemanhã.Omotivoparaissopodemos encontrar na literatura especializada, que admite que a presençamaterna traz grandes benefícios para as criançassavants.Euagradeceriasevocêeomeninomeesperaremnaportadasuaclínica,às9h15.Comoémeucaminho,possopegarvocês.Assimteremosachancedeconversarumpoucocomocolegastambém.

Atenciosamente,CharlesEdelman

Bublanski respondeu ao e-mail às 7h01 e Modig às 7h14. Havia bons motivos para confiar no

professor Edelman e seguir sua recomendação, eles escreveram. Às 7h57, Torkel Lindén tinhaconfirmado que estaria na frente da clínica com omenino, aguardando o professor Edelman. LisbethSalander continuou sentada por alguns instantes, absorvida por seus pensamentos. Depois foi até acozinhaepegouumasbolachasvelhasnoarmário,enquantoadmiravaSlusseneoRiddarfjärden.Então,olugardoencontrohaviamudado,pensou.

Page 172: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Emvezdedesenharnaclínica,omeninoiaserlevadoparaamãe,paraasuacasa.Isso“trazgrandesbenefícios”, Edelman escreveu, “a presençamaterna traz grandes benefícios”. Alguma coisa na frasedesagradouaLisbeth.Pareciaumjeitomeioantigodefalar,nãoparecia?Eocomeçonãodeixavapormenos:“Omotivoparaissopodemosencontrarnaliteraturaespecializada…”.Soavaultrapassado,estavamalescrito.Ela já tinhavistopessoasde formaçãosuperiorescreverem

muitomal,etambémelanãofaziaamenorideiadecomoCharlesEdelmanseexpressava,masseráqueum neurologista tão capacitado e renomado como ele sentiria a necessidade de convencer alguém seapoiandonaliteraturaespecializada?Onaturalnãoseriaeletersemostradomaisseguro?LisbethfoiatéocomputadoreleuporaltoalgunstrabalhosdeEdelmanqueachounainternet.Notou,

sim,umapequenapontadevaidadeemseus textos,atémesmonaspassagensmenosautorais,masnãoencontrou trechos descuidados nem raciocínios ingênuos. Ao contrário, o professor era bem esperto,entãoelavoltouaose-mailspara tentardescobrirqueservidorSMPT elesestavamusando,e levouumchoque. O nome do servidor era Birdino, desconhecido para Lisbeth, e não deveria ser. Enviou umasequência de comandos, para tentar entender o que exatamente ele era, e um segundo depois tudo seesclareceu. O servidor usava a retransmissão aberta de e-mail, por isso o remetente podia mandarmensagensdoendereçoeletrônicoquequisesse.Ou seja, o e-mail de Edelman era falso e as cópias dele enviadas a Bublanski eModig parte da

encenação, pois tinham sido bloqueadas antes de saíremdo servidor. Portanto ela já tinha certeza: asrespostasdosdoispoliciaisaprovandoamudançadelocalnadamaiseraqueumamontagem,eissonãoerapoucacoisa,Lisbethconcluiunahora.Significavaquealguém,alémdequerersefazerpassarpeloprofessorEdelman,desejava,acimadetudo,omeninoforadaclínica.Alguémqueriaogarotonarua,desprotegido,paraque…oquê?Pretendiamsequestrá-looumatá-lo?

Lisbetholhou as horas no relógio. Já eramcincopara as nove.Dali a vinteminutos,TorkelLindén eAugust Balder sairiam da clínica para esperar alguém que não era Charles Edelman e que não tinhanenhumaboaintenção.Oqueeladeviafazer?Ligarparaapolícia?Lisbethnãoeraotipodepessoaquechamavaapolícia.Relutavaemfazerisso

principalmentequandohaviariscodevazamentos.FoiparaapáginadaclínicaOdenepegouotelefonedeTorkelLindén.Ligou,masnãopassoudamesadasecretária,quedissequeeleestavanumareunião.Entãodescobriuonúmerodocelulardele,ligou,mascaiunacaixapostal.Elasoltouumpalavrãoemvozaltaemandouumamensagemde textoparaocelulardeleeoutraparaoe-mail,dizendoparaele,emhipótesealguma,irparaaruacomomenino,qualquerquefosseomotivo.AssinouWasp.Nãoconseguiupensaremnadamelhor.Em seguida pôs sua jaqueta de couro e saiu.Mas voltou imediatamente ao apartamento, pegou seu

notebookcomoarquivocriptografado,suapistola,umaBeretta92,ecolocoutudonasuabolsapretadaacademia. Saiu depressa, pensando se pegava seu carro todo empoeirado na garagem, uma BMW M6conversível, ou um táxi. Decidiu-se pelo táxi, achando que ia mais rápido.Mas logo se arrependeu.Primeiro demorou para achar um e, quando finalmente conseguiu um táxi livre, ficou evidente que omovimentodahoradorushaindanãohaviadiminuído.O trânsito seguia lento e na Ponte Central estava tudo parado. Teria havido algum acidente? Tudo

caminhava tãodevagar,comexceçãodo tempo,quevoava.Logo jáeramnoveecinco,depoisnovee

Page 173: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

dez.Elatinhapressa,muitapressa,etalvezjáfossetardedemais.OmaisprováveléqueTorkelLindéneogarototivessemidoparaaSveavägenumpoucoantesdahoraeoassassino,ouquemquerquefosse,jáhouvesseatacadoosdois.TelefonouparaLindéndenovo.Ouviuo sinal de chamadaváriasvezes,mas elenão atendeue ela

praguejououtravez.EntãopensouemMikaelBlomkvist.Faziaséculosqueelanãofalavacomele,masagora ia falar. Ligou e ele atendeu aparentemente demau humor. Só depois de perceber que era ela,Mikaelseanimoueexclamou:—Évocê,Lisbeth?—Fiquequietoeescute!Mikaelestavanaredação,naGötgatan,depéssimohumor,enãoapenasporterdormidomaldenovo.

EraporcausadaTT.Aagênciadenotícias,quenormalmenteatuavadeformaséria,correta,semapelarpara sensacionalismos, tinha divulgado uma informação que, resumidamente, dizia queMikael estavasabotando a investigação de um homicídio e ocultando informações decisivas da polícia porquepretendiapublicá-lasnaMillennium.OobjetivodeMikael,deacordocomaTT,erasalvararevistadeumcolapsofinanceiroerecuperar

sua própria reputação como jornalista, que estava “arruinada”.Mikael ficou sabendo que a notícia iasair,poisnanoiteanteriortinhatidoumalongaconversacomseuautor,HaraldWallin.Masnãoimaginouque o resultado fosse ser tão devastador, principalmente porque tudo não passava de insinuaçõesestúpidaseacusaçõessemfundamento.ApesardissoHaraldWallinhaviaescritoumartigoquepareciaisentoeconvincente.Estavaclaroque

elecontavacomboasfontestantonogrupoSernercomonapolícia.Otítulonãopodiasermaisdanoso:“ProcuradorcriticaBlomkvist”,eoartigodavamuitamargemparaMikaelsedefender.Anotíciaemsinem teria feito um estrago tão grande.Mas quem quer que fosse o seu inimigo, ele tinha plantado ahistória sabendomuito bem como funcionava a lógica da imprensa. Se uma agência séria como a TTdivulgaumanotíciadaquela,issonãosóalegitimaparatodomundocomoabreespaçoparaqueveículosmenossériosacompanhemaonda.Issocomoqueosautorizaabatermaisforte.SeaTTrosna,osjornaisdamanhãsedãoodireitode

rugiregritar.EsseéumvelhoprincípiobásicodojornalismoeexplicaporqueMikaelacordouvendonainternet manchetes como “Blomkvist sabota investigação de assassinato” e “Blomkvist quer salvar arevista edeixa assassino solto”.Os jornais impressos adorampôr aspas emsuasmanchetes.Masportodapartea impressãoaindaeraqueumanovaverdadeestavasendoservidanocafédamanhã,eumcolunista chamado Gustav Lund, que alegou estar farto de tanta hipocrisia, tinha escrito: “MikaelBlomkvist, que sempre quis ser melhor que todos nós, agora se revela o maior cínico de todos ostempos”.—Tomara que a gente agora não comece a receber intimação de todos os lados—disseChrister

Malm,designereumdossóciosdarevista,bempertodeMikael,mascandonervosamenteseuchiclete.—TomaraqueelesnãochamemaMarinhadeGuerra—acrescentouMikael.—Oquê?

Page 174: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Foisóumapiada.—Euentendi.Masnãoestougostandodesseclimatodo—disseChrister.—Ninguémgosta.Masomelhorafazerérangerosdentesecontinuartrabalhandocomosempre.—Oseutelefoneestávibrando.—Elesempreestávibrando.—Nãoseriabomatender,antesqueelesvenhamcomalgumacoisapior?—Claro,claro—grunhiuMikael,atendendocomumavoznãomuitoamistosa.Era uma garota. Ele achou que conhecia a voz, mas como estava esperando algo completamente

diferente,nãoaidentificou.—Quemé?—perguntou.—Salander—avozrespondeu,eaoouvirissoeleabriuumsorrisoenorme.—Évocê,Lisbeth?—Fiquequietoeescute!—eladisse,efoiissoqueelefez.Otrânsitohaviamelhorado.Lisbetheomotoristado táxi,umjovemiraquianochamadoAhmedque

tinha visto a guerra de perto e perdera a mãe e dois irmãos em ataques terroristas, entraram naSveavägen,passandopelasaladeconcertoKonserthusetàesquerda.Lisbeth,quenãogostavadeficaralisentadapassivamentecomoumapassageira,envioumaisumamensagemde textoparaTorkelLindénetentoutelefonarparaalgumfuncionáriodaclínicaOden,afimdequeelefosseatéaruaavisarTorkel.Ninguématendeueelasoltououtropalavrão,torcendoparaqueMikaeltivessemaissorte.—Éalgumaemergência?—perguntouAhmed.—É—ela respondeu, e ao ouvir issoAhmedpassou pelo sinal vermelho, arrancando um sorriso

rápidodeLisbeth.Emseguida,elaseconcentrouemcadametroqueeles iampercorrendoemaisàfrente,àesquerda,

vislumbrouaFaculdadedeEconomiaeabibliotecaestadual.Nãofaltavamuitoagoraeelacomeçouaconferir a numeração do lado direito da rua, avistou a clínica e viu que não havia ninguémmorto nacalçada.Eramaisumdiasombriodenovembro,nadamaisqueisso,easpessoasseguiamemdireçãoaotrabalho.Masespereumpouco…LisbethjogoualgumascentenasdecoroasparaAhmedeolhou,maisadiante,paraumacercavivadooutroladodarua.Umhomemdeconstituiçãoforte,gorrodelãeóculosescurosestavaaliparado,olhandointensamente

paraaportadaclínica,bememfrenteaele,dooutroladodarua.Sualinguagemcorporaleraesquisita.Nãoseviaamãodireitadele.Obraço,porém,estavarígidoepreparado.Lisbetholhouparaaentradadaclínicadenovoe,atéondeconseguiuverdasuaposiçãomeiodiagonal,notouaportaseabrindo.Elaseabriamuitodevagar,comoseapessoaqueiasairestivesseumpoucoemdúvidaoucomosea

porta fosse muito pesada. Lisbeth gritou para Ahmed parar o táxi. Então ela saltou do carro emmovimento,enquantoohomemdooutroladodaruaerguiaamãodireitaeapontavaumapistolacommiratelescópicaparaaportaqueseabriaaospoucos.

Page 175: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

17.22DENOVEMBRO

OhomemquediziasechamarJanHoltsernãoestavagostandonemumpoucodasituação.Olocaleraabertodemaiseeraahoraerradadodia.Haviamuitagentepassandoe,apesardeele ter feitooquepodiaparaesconderorosto,estavadesconfortávelàluzdodia,incomodadocomaspessoascirculandoatrásdelenoparquee,maisdoquenunca,sentiuoquantoodiavamatarcrianças.Masascoisasestavamdaquelejeito,efoiobrigadoareconhecerqueelemesmoeraoresponsávelpor

aquelasituação.Haviasubestimadoogarotoeagoraprecisavacorrigirseuerrosemficartorcendoporummilagre.Ia

apenas se concentrarno trabalhoe executá-locom todooprofissionalismoqueele sabiaque tinha, e,acima de tudo, não pensar em Olga e muito menos se lembrar daquele olhar vazio que o haviasurpreendidonoquartodeBalder.PrecisavaseconcentrarnaportadooutroladodaruaeemsuapistolaRemington,escondidaemseu

casaco,parasacá-laaqualquer instante.Porquenãoestavaacontecendonada?Sentiuabocaseca.Oventoestavacortanteegelado.Havianevenacalçadaenarua.Eleapertoucommaisforçaocabodapistolaeolhouseurelógio.Viuqueeram9h16edepois9h17.Ninguém tinhasaídodaclínicaaindaeeleesbravejoubaixinho:

será que alguma coisa havia dado errado? Afinal, sua única garantia era a palavra de Jurij. Masnormalmenteelabastava.Jurijeraextraordináriocomcomputadoresenanoitepassadatinhamergulhadonotrabalho,enviandoe-mailsfalsosedescobrindoolinguajarcorretocomaajudadeseuscontatosnaSuécia, enquanto Jan seenvolveucoma suaparte, estudando fotografiasdo local, escolhendoarmae,acima de tudo, preparando o carro de fuga que Dennis Wilton, do Moto Clube de Svavelsjö, tinhaalugadoparaelessobumnomefalsoequeagoraestavaapostosaalgunsquarteirõesdali,comJurijaovolante.Jan sentiu umamovimentação atrás de si e seu corpo ficou alerta.Mas eram só dois rapazes que

passarammuitopróximodele.Notouquea ruaestava ficandomaismovimentadapertodeondeeleseencontrava e não gostou daquilo. Seu desconforto com a situação só aumentava. Ouviu um cachorrolatindoàdistânciaesentiuocheirodealgumacoisafrita,talvezcomidadoMcDonald’s.Então…enfimeleviu,portrásdaportadevidrodooutroladodarua,umhomembaixodecasacocinza,aoladodeummeninodescabeladodejaquetavermelha.Janfezosinaldacruzcomamãoesquerda,comosempre,eencaixouodedonogatilhodaarma.Mas…oqueestavaacontecendo?Aporta não abriu.O homematrás da porta de vidro hesitou e olhou para o seu celular.Vamos lá,

Page 176: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

pensou Jan, abra essa porta! Ah, finalmente. Muito, muito devagar, a porta foi se abrindo e elescomeçaramasair.Janergueuapistola,mirounorostodomeninopelamiratelescópica,maisumavezviuaquelesolhosvaziosede repente sentiuuma inesperadaeestranhaondadeviolência.De repentequismuitomatarogaroto.Derepentequismuitoapagaraqueleolharvazioparasempre.Masemseguidaalgoaconteceu.Uma jovem veio correndo sabe-se lá de onde, se jogou em cima do menino, Jan atirou e acertou

alguémoualgumacoisa.Disparoudenovoedenovo.Comoumrelâmpago,omeninoeajovemtinhamroladoparatrásdeumcarro.JanHoltserprendeuarespiração,olhouparaosdoisladoseatravessouarua,decidido.Destaveznãoiriafalhar.TorkelLindéntinhaumapéssimarelaçãocomtelefones.AocontráriodeSaga,suamulher,quesempre

corriaparaatenderas ligaçõesnaesperançadequeelasfossemlhe trazeraoportunidadedeumnovotrabalho,eleseincomodavaquandootelefonetocava,eissoclaramentetinhaavercomaquantidadedereclamaçõesquerecebia.Eleeaclínicaeramalvosconstantesdequeixas,masTorkelLindénachava issoumaconsequência

natural do tipo de negócio que ele conduzia. A Oden era uma clínica de emergências psiquiátricas,portantoasemoçõestendiamaseexaltar.Porémeletambémsabiaquealgumasreclamaçõeseramjustas.Elehaviaidolongedemaiscomseucortedecustose,parafugirdaquilotudo,devezemquandoviajavapara a floresta, deixando seus funcionários à frente da clínica. Em compensação, ele também recebiaaplausosporseutrabalhoe,recentemente,deninguémmenosqueoprofessorEdelman.Noinício,oprofessoroirritou.Nãogostavaqueestranhossemetessemnassuasatividades,masoe-

mail tão elogioso daquela manhã o tinha desarmado, e quem sabe ele até conseguisse o apoio doprofessorparaqueomeninopermanecessenaclínicapormaisalgumtempo?Seissoacontecesse,seriacomoumafagulhadefelicidadenavidadele,emboranãosoubesseporquê.Eletinhaohábitodemanterdistânciadascriançasinternadas.Mas havia algummistério emAugust Balder que o atraía e desde o início tinha se irritado com a

polícia e suas exigências. Queria August só para si, talvez esperasse absorver um pouco do climaenigmáticoqueenvolviaomeninooupelomenosdecifraraquelassequênciasintermináveisdenúmerosqueelehaviarabiscadonasrevistasinfantisdehistóriasemquadrinhosdasaladeesperadaclínica.Masnãoeraumacoisafácil.AugustBalderparecianãogostardenenhumtipodecontatoeagorasenegavaasair para a rua comele.Denovo estava semostrandodecididamente contrário a essa ideia, eTorkelprecisouempurrá-loparaquesemexesse.—Vamos,ande—eleresmungou.Seutelefonetocou.Alguémestavaligandootempotodoparaele.Mas Torkel nem se incomodou em atender. Devia ser alguma coisa sem importância ou outra

reclamação.Jápróximoàporta,resolveudarumaolhadanoseucelular.Haviaumaporçãodemensagensdetextodeumnúmeronãoidentificado,dizendoumacoisaestranha,queeleachouquefosseumtroteouuma brincadeira. Todas diziam para ele não sair da clínica. Para ele não ir para a rua em hipótese

Page 177: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

nenhuma.Ele não viu sentido nenhum naquilo, além disso August estava aproveitando para escapar. Torkel

pegoucomfirmezanobraçodogaroto,abriuaportacomalgumahesitaçãoeempurrouomeninoparafora. Tudo estava normal. Pessoas passavam por ali como se nada estivesse acontecendo nem fosseacontecer,eelecomeçouapensarnasmensagensquehaviarecebido,masantesqueconseguisseconcluirseus pensamentos alguém veio correndo do lado esquerdo da rua e se jogou sobre o menino. Nesseinstante,eleouviuumtiro.Torkel percebeu que estava correndo perigo, olhou aterrorizado para o outro lado da rua e viu um

homemaltoemusculosoatravessandoaSveavägencorrendo,nadireçãodele.Eoqueeraaquiloqueeletinhanamão?Umaarma?Semnemse lembrardeAugust,Torkel tentouvoltarparaaclínicae,porum instante, achouque ia

conseguir.MasTorkelLindénnãofezissodeformasegura.Lisbethtinhaagidoporinstintoquandosejogousobreomeninoparaprotegê-lo.Haviasemachucado

aocairnacalçada,oupelomenosachouquesim,poisseuombroeseupeitodoíamdemais.Masagoranãotinhatempoparaficarpensandonisso.Agarradaàcriança,seescondeucomelaatrásdeumcarro,onde os dois ficaram respirando pesadamente enquanto alguém tentava atirar neles. Em seguida tudoficouquieto,preocupantementequieto,equandoLisbethdeuumaolhadanaruaporbaixodocarro,viuaspernasdoatirador.Pernasfortesatravessandoaruacomenormerapidez,eporuminstanteelapensouempegarsuaBerettanasacolaeatirarnosujeito.Maspercebeuqueprovavelmentenãoiatertempoparafazerisso.NesseinstanteviuumVolvogrande

se aproximando devagar e não pensou duas vezes. Agarrou com força o menino e, numa corridadesajeitada, avançou em direção ao carro, abriu a porta de trás com violência e se atirou dentro doveículodesconhecidocomomenino.—Acelere!Rápido!—gritou,vendoobancoseencherdeumsanguequeelanãosabiaseeradelaou

dogaroto.

***Jacob Charro tinha vinte e dois anos e era o feliz proprietário de um Volvo XC60, adquirido em

prestações,tendoseupaicomofiador.EleestavaacaminhodeUppsala,ondeiaalmoçarcomseustioseprimos,umencontroaguardadocommuitaexpectativa.JacobnãoviaahoradecontaraelesquehaviaconseguidoumlugarnotimeprincipaldoSyrianskaFutebolClube.Orádio tocava“Wakemeup”,deAvicii,eJacobacompanhavao ritmodamúsica tamborilandono

volante, enquantopassava em frente àKonserthuset e àFaculdadedeEconomia.Algumacoisa estavaacontecendomais adiante. Pessoas corriam de um lado para o outro. Um homem gritava e os carrosestavamdesviandodealgo,entãoelediminuiuavelocidade,massemsepreocuparmuito.Sefosseumacidente,elepoderiaajudar.JacobCharrosonhavaemsetornarumheróidanoiteparaodia.Masdestavezficoucomumpoucodemedo,talvezporcausadohomemqueatravessouaruacorrendo

Page 178: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

daesquerdaparaadireitaequepareciaumsoldadoemcombate.Haviaalgoassustadoramenteselvagemnamovimentaçãodele,eJacobjáiaafundaropénoaceleradorquandosentiuaportadetrásdocarroseabrircomviolência.Alguémestavaentrandoegritandoalgumacoisaqueelenãoentendeu.Talvezfosseumoutroidioma.Masapessoa—eraumajovemcomumacriança—gritoudenovo:—Acelere!Rápido!Por um instante ele hesitou. Quem eram aquelas pessoas? Talvez quisessem assaltá-lo e levar seu

carro.Nãoconseguiapensarcomclareza.Quesituaçãomaissurreal.Masemseguidanãoteveescolhasenão agir. O vidro traseiro foi estraçalhado. Alguém estava atirando neles, portanto Jacob aceleroucomoum loucoe,comocoraçãobatendodescompassado,atravessouosinalvermelhodocruzamentocomaOdengatan.—Oqueéisso?—gritou.—Oqueestáacontecendo?—Caleaboca!—agarotarespondeucomagressividade,epeloretrovisoreleaviuexaminandocom

agilidadeumgarotinhodeolhosmuito abertos e assustados, commovimentos experientes comoosdeumaenfermeira,esóentãoelepercebeuquenãohaviaapenascacosdevidroespalhadospelobancodocarro.Haviasanguetambém.—Elefoiatingido?—Eunãosei.Apenasdirija,sigaemfrente.Não,espere,vireàesquerdaali…Aqui!— Tudo bem, tudo bem— ele disse, aterrorizado, pegando com dificuldade a faixa esquerda da

VanadisvägeneemseguidaentrandoemaltavelocidadenaVasastan,enquantopensavaseestariamsendoperseguidosousealguémiaatirarnelesnovamente.Eleabaixouacabeçaemdireçãoaovolanteesentiuoventoentrandopelovidrotraseiroquebrado.

Emquemerdaelehavia semetidoequemera aquelagarota?Olhoupelo retrovisor.Ela tinhacabelopreto,piercingseumolharraivoso,eporummomentoJacobteveasensaçãodequeparaelaeracomoseelenãoestivesseali.Mas,emseguida,elamurmuroualgocomumtomdevozquasecontente.—Notíciasboas?—eleperguntou.Elanão respondeu.Emvezdisso, tirou sua jaquetade couro, depoispuxoua camisetabrancapara

cimae…caramba!Elaaarrancoucomumpuxãorepentinoeficoualicompletamentenuadacinturaparacima, semsutiãnemnada,epor instantes Jacob ficouolhandoperplexoparaos seiosexpostosdelaeprincipalmente para o sangue que escorria sobre eles como uma pequena cascata descendo para oabdômeneacalçajeansdela.Agarotatinhasidoatingidalogoabaixodoombro,pertodocoração,esangravamuito,esóentãoele

entendeuqueelahaviatiradoacamisetaparaestancarosangue.Ajovemcontinuouajeitandoacamisetasobreoferimento,apertandobem,edepoisvoltouavestirajaquetadecouroporcima,eseuararroganteeraagoraumtantoridículoporcausadeumpoucodesanguequehaviaemsuatestaenabochecha,comoseelativessefeitoaliumapinturadeguerra.—Entãoanotíciaboaéquefoivocêquemlevoubalaenãoomenino—disseJacob.—Poraí—elarespondeu.—QuerqueeuteleveaohospitalKarolinska?—Não—elarespondeu.

Page 179: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Lisbeth havia descoberto um orifício de entrada e um de saída em seu ferimento.A bala devia ter

atravessadoseuombropela frente.Elasangravademaisesentiaadorse refletindodocoraçãoatéastêmporas.Masachavaquenenhumaartériatinhaserompido.Teriasidopior.Bem,pelomenosesperavaquenão,eolhouparatrásdenovo.Oassassinodeviaterumcarrodefugaaliperto.Masnomomentoeles não pareciam estar sendo seguidos. Com um pouco de sorte conseguiram escapar bem rápido,pensou,olhandoparaAugust.Eleestavasentadocomasmãoscruzadasnopeito,sebalançandoparaafrenteeparatrás,eLisbeth

achouquedeviafazeralgumacoisa.Resolveutiraroscacosdevidrodocabeloedaspernasdele,oquefezAugustseaquietar.MasLisbethnãosabiaseeraumbomsinal.Oolhardogarotoestavadistante,etambémparadoevazio,eelaassentiucomacabeçaparaele,comumardequeestavatudobem.Nãodeveterparecidomuitoconvincente.Sentia-seenjoada,tontaeacamisetacomaqualhaviaenvolvidooombrojáestavaencharcadadesangue.Seráqueiriaacabarperdendoaconsciência?Commedodequeissofosseacontecer,começoudepressaatentarcriaralgumplano,elogoumacoisaficouclara:apolícianão seria uma opção. A polícia havia deixado o garoto nas mãos de seu agressor e parecia não ternenhumcontroledasituação.OqueLisbethiafazerentão?Nãopodiacontinuarnessecarro.EletinhasidovistonaruadaclínicaOdennahoradostirosesua

janelaestilhaçadachamariamuitoaatenção.Precisavadarumjeitodeorapazlevá-laatéaFiskargatan,alipegariaseuBMW,registradoemnomedeIreneNesser,suaoutraidentidade.Masseráqueconseguiriadirigirnoestadoemqueestava?Sentia-sepéssima.—VáparaapontedeVästerbron!—ordenou.—Tudobem,tudobem—disseorapaznobancodomotorista.—Vocêtemalgumabebidaaqui?—Eutenhoumagarrafadeuísquequevoudarparaomeutio.—Medê—eladisse,epegouumagarrafadeGrant’s,abrindo-acomesforço.Lisbetharrancouabandagemimprovisadaederramoupartedouísquesobreoferimento,emseguida

tomouum,dois,trêsgrandesgolesejáiaoferecerabebidaaomenino,quandolheocorreuquetalveznãofosse uma boa ideia. Crianças não bebem uísque. Nem mesmo crianças em estado de choque. Seuraciocínioestavacomeçandoaficarconfuso.Eraissoqueestavaacontecendo?—Vocêvaiterquetiraracamisa—eladisseaorapaznobancodafrente.—Comoé?—Euprecisoenfaixaroombrocomumacamisalimpa.—Estábem,mas…—Semdiscussão.—Se eu vou te ajudar, você poderia pelomenosme dizer por que atiraram em vocês. Vocês são

criminosos?—Estoutentandoprotegerestegaroto,simplesassim.Temunsfilhosdaputaatrásdele.—Porquê?—Nãoédasuaconta.

Page 180: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Entãoelenãoéseufilho.—Eunãooconheço.—Entãoporqueoestáajudando?Lisbethhesitou.—Porquetemosinimigosemcomum—elarespondeu,eaoouvir issoorapazcomeçouatirarseu

pulôverdegolaemVcomcertarelutânciaedificuldade,enquantocontrolavaocarroapenascomamãoesquerda.Emseguida,desabotoouacamisaeentregou-aaLisbeth,quecomeçouaenrolá-lacomcuidadoem

voltadoombro,enquantodavamaisumaolhadaemAugust.Ogarotoestavaimóvel,comoolharfixoemsuaspernasfinas,emaisumavezLisbethseperguntouoquedeviafazer.PodiamseescondernoapartamentodeladaFiskargatan.NinguémalémdeMikaelBlomkvistsabiada

existênciadoapartamentoeeraimpossívelencontrá-loemqualquerregistrodeimóveiscomoseunome.Maselanãoqueriacorrernenhumrisco.Emtempospassadostinhaficadoconhecidanopaístodocomomaluca,eesseinimigopareciaaltamentequalificadoparadesencavarinformações.NãoeranadaimpossívelquealguémativessereconhecidonaSveavägenequeapolíciajáestivesse

revirandotudoparaencontrá-la.Precisavacomurgênciadeumlugarnovoparaseesconder,umquenãopudesseserassociadoanenhumadesuas identidades,por issoprecisavadeajuda.Masdequem?DeHolger?Seuex-tutorHolgerPalmgrenjáhaviaserecuperadododerramecerebralquesofreraeagoramorava

numapartamentoemLiljeholmstorget.Holgereraaúnicapessoaqueaconheciadeverdade.Elesempreserialealaelaemqualquercircunstânciaefariatudoaseualcanceparaajudá-la.Maselejátinhaumaidadeavançadaeelanãoqueriapreocupá-lonemenvolvê-lonaquilo,sepudesseevitar.HaviasempreMikaelBlomkvist,claro,ecomelenãohavianenhumproblema.Mesmoassimnãotinha

certezasedeviaprocurá-lo—justamente,talvez,pornãohavernenhumproblemacomele.Mikaeleraumfilhodaputaexcelente,corretoehonestodemais,todasessasbobagens.Masquemerda…nãodavamuitoparaesconderaquilodele.Lisbethtelefonouparaele.Mikaelrespondeuimediatamenteepareciaassustado.—Oi,émuitobomouvirasuavoz.Oqueaconteceu?—Nãopossotecontaragora.—Vocêsdevemestarferidos.Hámanchasdesangueaqui.—Omeninoestábem.—Evocê?—Euestoubem.—Entãovocêestáferida.—Vocêvaiterqueesperar,Blomkvist.ElaolhouparaaruaondeestavameviuquejáhaviamchegadoàVästerbron.Eladisseaomotorista

docarro:—Parenopontodeônibus.—Vocêsvãodescer?—Vocêvaidescer.Vaimedarseutelefoneeesperarláforaeuterminarestaligação.Entendido?

Page 181: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Claro,claro.Ele olhou assustado para ela, entregou-lhe o celular, parou o carro e desceu. Lisbeth continuou

conversando.—Oqueestáacontecendo?—perguntouMikael.—Nãohánadaparasepreocuparaqui.Euqueroqueapartirdeagoravocêusesomenteumcelular

Android,umSamsung,porexemplo.Vocêsnãotêmumdessesnaredação?—Temos.Achoqueháunsdoislá.—Ótimo.Depoisvá aoGooglePlay ebaixeo aplicativoRedphone e tambémoThreema,para as

mensagens.Precisamosdeumcanalseguroparanoscomunicar.—Certo.—Esevocêétãoburroquantoeuachoqueé,seporacasoprecisardaajudadealguémparafazer

isso,apessoadeveficarnoanonimato.Nãoqueroproblemas.—Claro.—Alémdisso…—Sim?—Sóuseo telefone emcasosde emergência.Toda anossa comunicaçãovai ser feita porum link

especialnoseucomputador.Porissovocêouapessoaquenãoéburraequevaiteajudardeveentraremwww.pgpi.orgebaixarosoftwaredecriptografiaparaosseuse-mails.Queroquevocêfaçaissoagoraedepois encontre umbomesconderijo paramime para omenino, um lugar que não tenha a ver comaMillenniumnemcomvocê,ememandeoendereçonume-mailcriptografado.—Lisbeth,asegurançadomeninonãoésuaobrigação.—Nãoconfionapolícia.—Entãonósvamosencontrarmaisalguém,umapessoaemquemvocêconfie.Omeninoéautista,tem

necessidadesespeciais,nãoachoquevocêdevaassumiraresponsabilidadeporele,principalmentesevocêestivercomumabala…—Vocêvaificarfalandomerdaouvaimeajudar?—Ajudarvocê,claro.— Ótimo. Dê uma olhada na pasta Lisbeth Salander daqui a cinco minutos. Vou deixar mais

informaçõeslá.Deletetudodepois.—Lisbeth,escute!Vocêprecisa irparaumhospitalveresseferimento.Dáparasentirpelasuavoz

que…Elatinhadesligadootelefoneechamadoorapaznopontodeônibus.Pegouseunotebookeentrouno

computadordeMikael.Láescreveu todasas instruções sobrecomocarregare instalaroprogramadecriptografia.Depois disse ao rapaz para levá-la atéMosebackeTorg.Apesar de ser arriscado, não sabia o que

maispoderiafazer.Aneblinavinhaencobrindomaisemaisacidade.MikaelBlomkvistpraguejouemvozbaixa.EleestavanaSveavägen,próximoaocorpoeaocordãode

isolamento que a polícia civil, a primeira a chegar ao local, estava montando. Depois do primeiro

Page 182: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

telefonemadeLisbeth,elese lançounumaaçãofrenética.PegoudepressaumtáxiparaaSveavägene,duranteaviagem,feztudoquepodiaparaimpedirqueodiretordaclínicaeomeninofossemparaarua.Elehaviaconseguidofalarcomumafuncionáriadaclínica,BirgittaLindgren,queentãocorreuparao

saguão,mas já encontrando ali seu colega caído junto à porta, baleado na cabeça com um tiro fatal.QuandodezminutosdepoisMikaelchegou,BirgittaLindgrenestava foradesi,maselaeumamulher,UlrikaFranzén,queestavaacaminhodaeditoraAlbertBonniers,localizadamaisacimanamesmarua,aindaconseguiramrelataraMikaeldeformaapropriadaoquehaviaacontecido.PorissoMikaeljásabia,antesmesmodeotelefonetocarnovamente,queLisbethhaviasalvadoavida

deAugustBalder.Peloqueeleconseguiuentender,elaeogarotoagoraestavamnumcarrocujomotoristanãodeviaestarlámuitoanimadoemajudá-los,umavezqueseuprópriocarroforaatingidopelostiros.OsanguequeMikaeltinhavistonacalçadaenaruafoioquemaisohaviapreocupadoe,apesardeterficado um pouco mais tranquilo depois do telefonema dela, continuava profundamente preocupado.Lisbethnãopareceranadabemaotelefone,masaindaassim—oquenãoosurpreendianemumpouco—continuavamaisobstinadadoquenunca.Apesardeelaprovavelmenteestarferida,mostrava-sedeterminadaaescondereprotegeromenino,o

que era perfeitamente compreensível tendo em vista sua história de vida. Mas será que ele e aMillenniumdeveriamrealmenteajudá-lanisso?PormaiscorajosaeheroicaqueLisbethtivessesidonaSveavägen,sobopontodevistaestritamentelegalsuaatitudepoderiaserinterpretadacomosequestro.Elenãoiapoderajudá-la.Játinhaproblemasdesobracomaimprensaecomoprocurador.MassetratavadeLisbetheelejáhaviaprometidoaela.Claroqueiaajudá-la,mesmoqueErikanão

achasseconveniente,eaísóDeussabeoquepodiaacontecer.Entãorespiroufundoepegouseutelefone.Masnãotevetempodetelefonarparaninguém.Ouviuumavozalteradaeconhecidaàssuascostas.EraJan Bublanski. Jan vinha apressado pela calçada, acompanhado da inspetora Sonja Modig e de umhomemdeporteatlético,nacasadoscinquentaanos,quedeviaseroprofessorqueLisbethmencionaraaotelefone.—Ondeestáogaroto?—perguntouBublanski,ofegante.—ElesumiunumVolvovermelhoemdireçãoaonorte,alguémosalvou.—Quem?—Voucontaroque sei—disseMikael, aprincípio semsaberoquedeveriaeoquenãodeveria

dizer.—Masprimeiroprecisofazerumtelefonema.—Não,nadadisso,primeirovocêvaiconversarcomagente.Precisamosemitirumalertanacional.—Conversecomaquelamulherlá.OnomedelaéUlrikaFranzén.Elasabebemoqueaconteceu.Viu

tudoepodeatéfazerumadescriçãodoassaltante.Eusóchegueidezminutosdepois.—Eohomemquesalvouogaroto?— A mulher que salvou o garoto. Ulrika Franzén também pode descrevê-la. Agora, se me dão

licença…—Emprimeirolugar—disparouSonjaModigcomumafúriainesperada—,comoéquevocêsabia

quealgumacoisaiaaconteceraqui?Elesdisseramnorádioquevocêligouparaaemergênciadapolíciaantesmesmodostirosseremdisparados.—Eurecebiumadica.

Page 183: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Dequem?MikaelrespiroufundoeolhouparaSonjacomfirmeza,maisdeterminadodoquenunca.—Apesarde todaamerdaqueos jornais andaramescrevendo, esperoquevocêsentendamqueeu

realmentedesejocolaborarcomapolíciadamelhorformaqueeupuder.—Eusempreconfieiemvocê,Mikael—disseSonja.—Maspelaprimeiravez,sinceramente,estou

começandoaterdúvidas.—Tudobem,respeitosuaopinião.Masnestecasovocêsprecisamrespeitarofatodequeeutambém

nãoconfioemvocês.Alguémnapolíciaestávazandoinformações.Vocêsaindanãosederamcontadisso,nãoé?Senãoistoaquinãoteriaacontecido—eledisse,apontandoparaocorpodeTorkelLindén.—Issoéverdade.Umacoisaterrível—admitiuBublanski.—Muitobem.Agoravoudarmeutelefonema—disseMikael,seafastandoumpoucodelesnarua

parapoderfalarsemserincomodado.Noentantoelenãotelefonouparaninguém.Mikaelconcluiuquejáerahoradelevarmuitoasérioa

questãodasegurança,portantoavisouBublanskieModigqueinfelizmenteprecisavairparaaredaçãonaquele instante,mas que, claro, estaria à disposição deles quando precisassem, e naquelemomento,surpreendendoasiprópria,Sonja,odetevepelobraço.—Primeirovocêvaiterquenoscontarcomoficousabendoquealgumacoisaiaaconteceraqui—ela

dissecomseveridade.—Infelizmentesouobrigadoainvocarodireitoqueeutenhodeprotegerminhasfontes—respondeu

Mikaelcomumsorrisoatormentado.Emseguida,acenouparaumtáxiepartiuparaaredaçãomergulhadoemseuspensamentos.Quandoa

Millenniumnecessitavadesuportetécnicoparaquestõesmaiscomplicadasnaáreadeinformática,elarecorria à Tech Source, empresa de consultoria formada por um grupo de garotas que prestava umserviço rápido e eficiente à redação.MasMikael não queria envolvê-las nesse caso. Lembrou-se deChrister Malm, que do editorial era o que mais conhecia esses assuntos, mas também achou melhordeixá-lodefora.EntãopensouemAndrei.Afinalorapazjáestavaenvolvidonaquelahistóriaetambémtinhagrandehabilidadecomcomputadores.Mikaeldecidiu falarcomeleeprometeua simesmo lutarpelacontrataçãodorapaz.Isso,claro,seeleeErikaconseguissemescapardaquelaenrascada.AmanhãdeErikatinhasidoumpesadeloantesmesmodequalquertiroserdisparadonaSveavägen,e

isso, naturalmente, por causa da notícia diabólica divulgada pela TT, que de certo modo podia serconsideradaumacontinuaçãodavelhacampanhadesferidacontraMikael.Maisumaveztodosaquelesratos invejosos e degenerados tinham deixado suas tocas para empestear Twitter, e-mails, fóruns dediscussãoetodasasmídiassociaiscomseuscomentáriosvenenosos,enaqueleinstanteaturbaracistatambémsejuntaraaeles,obviamenteporqueaMillenniumvinhase levantandocontra todaequalquerformadexenofobiaeracismohaviamuitosanos.Opiordetudoéqueesseclimadificultavaavidadetodosnaredação.Derepente,ninguémparecia

teramenorvontadededividiralgumainformaçãocomosjornalistasdaMillennium.Parapiorar,corriaoboatodequeoprocuradorRichardEkströmestavapreparandoumaordemdebuscaeapreensãona

Page 184: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

redação.ErikaBergernãoacreditavanisso.Emitirumaaçãodebuscaeapreensãonosescritóriosdeumórgãodaimprensaeraumadecisãomuitoséria,principalmentequandoselevavaemcontaodireitoqueosjornalistastinhamdeprotegersuasfontes.Apesar disso ela concordava com Christer Malm que naquele momento, com aquele clima tão

desfavorável,atémesmoadvogadosepessoasnormalmentesensataspodiamacabartendoideiasidiotas,e Erika pensava numa maneira de responder à altura, quando Mikael entrou na redação. Para suasurpresa,elenãoquisfalarcomela.FoidiretoatéAndreiZandereolevouàsaladela.Depoisdealgunsminutoselafoiatélá.Quandoentrou,viuqueAndreipareciatensoemuitoconcentradoeErikaouviuapalavraPGP.Como

játinhafeitoumcursodetecnologiadainformação,elasabiaoquesignificava,eviuqueAndreifaziaanotaçõesemseubloco.Emseguida,semnemmesmolhedirigirumolhar,elesaiudasalaefoidiretoatéonotebookdeMikael,queestavanamesadelenaredaçãoaberta.—Oqueestáacontecendo?—elaperguntou.Mikael lhe contou tudo em voz baixa e o que ele disse teve um efeito entorpecedor nela. Ela não

conseguiaabsorveroqueestavaacontecendo.Mikaelprecisourepetirváriasvezes.—Vocêquerqueeuarranjeumesconderijoparaeles?—elaperguntou.—Desculpeenvolvê-lanissotudo,Erika.Masnãoconheçooutrapessoaquetenhamaisamigoscom

casasnocampoquevocê.—Nãosei,Mikael.Nãoseimesmo.—Nãopodemosdeixá-losnamão,Erika.Lisbethlevouumtiro.Asituaçãoégrave.—Seelalevouumtiro,deveriairparaohospital.—Elaserecusa.Querprotegeromeninoacimadetudo.—Paraqueelepossadesenharoassassinoempaz.—É.—Émuitaresponsabilidade,Mikael,emuitoarriscadotambém.Seaconteceralgumacoisa,vaicair

tudo em cimade nós, e isso poderá destruir a revista. Pelo queme consta, não prestamos serviço deproteçãoatestemunhas,nãoéesseonossonegócio.Issoéassuntodapolícia.Imaginequantoselementosimportantes podem surgir desses desenhos tanto para a investigação do caso como em termospsicológicos.Devehaveroutraformaderesolverisso.—Tenhocertezadequesim,senãoestivéssemoslidandocomLisbethSalander.—Sabe,àsvezesficodesacocheiodojeitocomovocêsempreadefende.—Sóestoutentandoserrealista.AsautoridadesjáfalharamfeiocomAugustBalder,puseramavida

deleemrisco,eseicomoissoenfureceLisbeth.—Enóséquetemosquenosadaptaraela?Éissoquevocêquerdizer?—Nãotemosescolha.Elaestáesperandoemalgumlugarporaí,enlouquecida,semterparaondeir.—LeveosdoisparaSandhamn,então.—ÉmuitofácilassociarLisbethcomigo.Seelesdescobriremqueelaestáenvolvida,vãoprocurá-la

diretonosmeusendereços.—Estácerto.—Estácertooquê?

Page 185: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Estácerto,vouarrumarumlugar.—Elamalpodiaacreditarquetinhaditoisso.MaserasempreassimcomMikael:Erikanãoconseguiadizernãoaumpedidodele,eomesmoaconteciacomMikaelemrelaçãoaela.Elefariaqualquercoisaporela.—Beleza,Ricky.Onde?Erikatentoupensaremalgumacoisa,masnadalheocorreu.Nãoconseguiapensarnumsimplesnome,

numapessoa;foicomosederepenteelanãotivessemaisumarededecontatos.—Precisoquebrarumpoucoacabeça—disse.—Bem,façaissorápidoedepoispasseoendereçoeocaminhoaoAndrei.Elevaicuidardoresto.Erika sentiu necessidade de sair umpouco e desceu as escadas. Foi caminhandodaGötgatan até a

Medborgarplatsen com uma série de nomes passando pela sua cabeça,mas nenhum lhe parecia bom.Haviamuitacoisaemjogoeemcadanomequelheocorriaelaencontravaalgumacoisaerrada,oueraumdefeito,ouentãoelanãoqueriaexporapessoaàquelerisco,ouaborrecê-lacomumpedidodaqueles,eissotalvezporqueelamesmaestivessemuitoincomodadacomaquestão.Poroutrolado…eraavidadeumgarotinho,pessoas estavamatirandonele e elahaviaprometido aMikael.Precisavapensar emalgumacoisa.Asirenedeumcarrodepolíciadisparouemalgumlugardistante,eelaolhounadireçãodoparque,da

estaçãodemetrôemaisaofundoparaacúpuladamesquita.Umrapazpassouporela levandoalgunspapéiscomtantocuidado,quepareciaestarcarregandoalgosecreto,ederepente…GabriellaGrane.Nocomeçoonomea surpreendeu.Gabriellanão eraumaamiga tãopróxima.Alémdisso trabalhavanumlugar onde seria uma imprudência não cumprir a lei à risca. Portanto, não, era uma ideia maluca.Gabriellaarriscariaseuemprego,issoseelasequerchegasseapensarnapossibilidade.MesmoassimErikanãoconseguiatirá-ladacabeça.NãoerasóofatodeGabriellaserumapessoaboaeresponsável.Haviatambémumalembrançaque

teimavaemvoltar.Tinhasidonoúltimoverão,nasprimeirashorasdamanhã,outalvezatémesmoumpoucoantesdoamanhecer,depoisdeumafestanacasadecampodeGabriella,nailhadeIngarö,quandoelaeGabriellaestavamsentadasnumbalançonavaranda,olhandoparaaágua láembaixoatravésdeumaclareiraentreasárvores.“É aqui que eu voume esconder quando as hienas vierem atrás demim”, Erika havia dito sem na

verdadesaberaquetipodehienasereferia,masprovavelmenteestavaesgotadaesesentindovulnerávelnotrabalho,ealgonaquelacasaafaziavê-lacomoumbomrefúgio.Aconstruçãoficavanoaltodeumpequenopromontório,easárvoreseoterrenoinclinadoaprotegiam

decuriosos,eelaselembrouclaramentedeGabrielladizendoemtomdepromessa:“Seumdiavocêprecisarfugirdashienas,serámuitobem-vindaaqui,Erika.”Agoraelaselembrou

dissoeimaginousenãoseriaomomentodeprocurarGabriella.Talvezfossemuitodescaramentopediracasaemprestada.MasassimmesmoErikaresolveufazeruma

tentativa. Procurou o número de Gabriella em seus contatos e voltou à redação para telefonar doaplicativoRedphonecriptografadoqueAndreihaviainstaladotambémemsualinha.

Page 186: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

18.DIA22DENOVEMBRO

GabriellaGraneestava indoparaareuniãodeemergênciaqueteriacomHelenaKrafteogrupodetrabalhodaSäpo,paradiscutiremsobreoquehaviaocorridonaSveavägen,quandoseucelulartocoue,emboraestivesseirritada,outalvezporissomesmo,elaatendeunahora:—Sim?—ÉaErika.—Oi,Erika.Nãopossofalaragora.Vamosterqueconversardepois.—Eutenhoum…—continuouErika.MasGabriella já tinhadesligado—nãoerahorapara telefonemaspessoaiseelaentrounasalade

reuniõescomcaradequemestavadispostaaarrumarbrigapelomenormotivo.Umainformaçãocrucialhaviavazadoe,emconsequênciadisso,umapessoahaviamorridoeoutra talvezestivessegravementeferida,eoqueelamaisqueriaagoraeramandartodosparaoinferno.Elestinhamsidotãodescuidadoseávidospornovasinformaçõesquehaviamperdidoacabeça.Porunstrintasegundos,elanãoouviuumapalavradoqueogrupodizia.Apenas ficouali sentada, fervendode raiva.Masentãoseusouvidosseaguçaram.AlguémestavadizendoqueMikaelBlomkvist tinha ligadoparaonúmerodeemergênciadapolícia

antesmesmodeos tirosseremdisparadosnaSveavägen.Defatoera tudomuitoestranho,agoraErikaBergerhaviatelefonado,eelanãocostumavaligaràtoa,aindamaisemhoráriodetrabalho.Talvezelativessealgoimportanteouurgenteparadizer.Gabriellaselevantouepediulicença.—Gabriella,achomuitoimportantevocêficareescutaristo—disseHelenaKraftnumtomincisivoe

queelanãocostumavausarcomGabriella.—Precisofazerumtelefonema—elarespondeu,derepentesemamenorpreocupaçãoemagradarà

chefe.—Quetipodetelefonema?—Umtelefonema—eladisse,saindodasalaeindodiretoaseuescritório,ondeligouimediatamente

paraErikaBerger.ErikapediuqueGabrielladesligasseetelefonasseparaoseuSamsung.Quandovoltouaouviravoz

da amiga, percebeu algo diferente nela, que seu jeito de falar sempre entusiasmado e amistoso haviadesaparecido.Gabriellapareciapreocupadaetensa,comosejásuspeitassequeErikaialhedizeralgo

Page 187: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

importante.—Oi—disseGabriella.—Aindaestáumacorreriaaqui.MastemavercomoAugustBalder?Erikasentiuumsúbitodesconfortoedisse:—Comoéquevocêsabe?—EstoutrabalhandonainvestigaçãodocasoeacabeidesaberqueoMikael,dealgummodo,recebeu

umadicadoqueiaacontecernaSveavägen.—Entãovocêsjásouberamdisso?—Já.Eagora,claro,queremossabercomofoiqueissoaconteceu.—Desculpe,masnãopossorevelarasnossasfontes.—Tudobem.Masoquevocêqueria?Porquemetelefonou?Erikafechouosolhoserespiroufundo.Comopôdetersidotãoidiota?—Achoquevouterqueprocuraroutrapessoa—disse.—Nãoqueroenvolvervocênumconflitode

interesses.—Eu tirode letraqualquerconflitode interesses,Erika.Oquenãodáparaaceitaréquevocême

escondaalgumainformação.Essecasoémaisimportanteparamimdoquevocêimagina.—Émesmo?—Sim,muito importante,porqueeutambémrecebiumadica.FiqueisabendoqueavidadeBalder

corriaumsérioriscoe,mesmoassim,nãoconseguievitarqueomatassem.Vouserobrigadaavivercomessepesoorestodavida.Portanto,nãomeescondanada.—Infelizmentevouprecisaresconder,Gabriella.Nãoquerocriarproblemasparavocê.—EuviMikaelemSaltsjöbadennanoitedocrime.—Elenãocomentoucomigo.—Acheidesnecessáriomeidentificar.—Fazsentido.—Poderíamosnosajudarnessaconfusãotoda.—Pareceumaboaideia.VoupedirqueMikaelteliguemaistarde.Agoraprecisocontinuartocando

istoaqui.—Euseitãobemquantovocêqueestáhavendoumvazamentodeinformaçõesnapolícia.Eentendoa

necessidade,aestaaltura,deformarmosalgumasaliançasquenormalmentenãoseriamcomuns.—Claro.Mas,desculpe,precisomesmocorreraqui.— Está bem — disse Gabriella, decepcionada. — Vou fazer de conta que esta conversa nunca

aconteceu.Boasorteaí.—Obrigada—disseErika,evoltouaprocuraroutrapessoaentreosseuscontatos.Gabriellavoltouàreuniãocomacabeçarodandoempensamentos.OqueseráqueErikaqueria?Ela

nãohavia entendidomuitobeme, aindaque fizesseumavaga ideia,não tinha tempode se concentrarnissoagora.Assimquepisounasaladereuniões,todossecalarameolharamparaela.—Oqueaconteceu?—perguntouHelenaKraft.—Assuntoparticular.

Page 188: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Evocêprecisavatratardissoagora…—Sim,euprecisavatratardissoagora.Ondevocêsestavam?—EstávamosfalandodoqueaconteceunaSveavägen,e,comoeu jádisse,aindanão temosmuitas

informações—lembrouolíderdogrupo,RagnarOlofsson.—Porenquantoasituaçãoestácaótica.EtudoindicaqueestamosperdendonossoinformantenogrupodeBublanski.Oinspetorparecequeficouparanoicodepoisdoqueaconteceu.—Nãosepodecensurá-loporisso—observouGabriella,rude.—Bem…é, talvez, tambémestávamos falandosobre isso.Claroquenãovamossossegarenquanto

nãodescobrirmoscomooatiradorsabiaqueogarotoestavainternandonaclínicaequeestarianaruabemnaquela hora.Desnecessário dizer quenão iremosmedir esforçospara resolver esse caso.Alémdisso, preciso ressaltar que o vazamento pode não ter vindo necessariamente de dentro da polícia.Ainformação parece que estava circulando à vontade pela clínica, já tinha chegado àmãe do garoto eàquele noivo dela nada confiável, LasseWestman, e também à redação daMillennium. E, claro, nãopodemosexcluirahipótesedeumataquehacker.Falodissodepois.Possocontinuaromeurelato?—Claro.—EstávamosdiscutindoopapeldeMikaelBlomkvistnessahistória,eestamosbastantepreocupados.

Comoelesoubequehaveriaumatentadoantesdostirosocorrerem?Naminhaopinião,oinformantedeledeve ser alguémpróximodospróprios criminosos, enesse casoentendoqueelenão temodireitodealegarsigiloprofissionalparanãorevelarasuafonte.Temosquesaberondeeleobteveainformação.—Principalmenteporqueeleparecedesesperadoedispostoafazerqualquercoisaparaconseguirum

furodereportagem—acrescentouointendenteMårtenNielsen.— Parece que o Mårten também tem fontes excelentes nos seus jornais de fofocas — debochou

Gabriella.—Nãonos jornaisde fofocas,querida.NaTT.Uma fonteque aténósdaSäpoconsultamosvezou

outra.—Essanotíciafoiplantadaeéumatentativadedifamação,vocêsabedissotantoquantoeu—rebateu

Gabriella.—EunãosabiaquevocêeratãodeslumbradapeloBlomkvist.—Idiota.—Paremcomisto!—gritouHelena.—Quebobageméessaagora?Prossiga,Ragnar.Oquemais

sabemossobreoqueaconteceu?—OsprimeirosachegaraolocalforamospoliciaisErikSandströmeTordLandgren—continuou

Ragnar Olofsson. — Por enquanto é deles que tenho recebido as informações. Eles chegaram láexatamenteàs9h24,quandotudojáhaviaacontecido.TorkelLindénestavamortocomumtiroatrásdacabeça, e o garoto, bem, realmente dele não sabemos. Algumas testemunhas afirmaram que o garototambémfoiatingido.Hámanchasdesanguenacalçadaenoasfalto.Masnadaestáconfirmado.OgarotodesapareceunumVolvovermelho.Pelomenostemosinformaçõessobreomodeloepartedaplaca.Embreveteremosonomedoproprietáriodocarro,éoqueeuespero.Gabriella viu que Helena Kraft anotava todos os detalhes, como costumava fazer quando elas se

reuniam.

Page 189: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Masoqueaconteceuexatamente?—elaperguntou.—Segundodoisrapazes,estudantesdaFaculdadedeEconomiaqueestavamparadosdooutroladoda

rua,pareciaumacertodecontasentreduasganguesqueestavamatrásdogaroto,AugustBalder.—Nãoparecemuitoprovável…—Maspodeser—continuouRagnarOlofsson.—Oquetefazpensarisso?—perguntouHelenaKraft.—Haviaprofissionaisdosdoislados.Parecequeumhomemficouvigiandoaentradadaclínicajunto

à cerca viva do outro lado da rua, logo em frente ao parque.Quase tudo indica que ele também é ohomemquematouBalder.Nãoquealguémtenhavistoseurostomuitobem;eledeviaestarusandoalgumaespéciedemáscara.Masosrapazesrepararamqueessesuspeitosemovimentoudamesmamaneiraqueooutroprofissional,comamesmarapidezeeficiência.Sóquenosegundocasotemosumamulher.—Oquesabemossobreela?—Nãomuito.Acreditamosqueelaestavacomumajaquetapretadecouroecalçajeansescura.Era

jovem,cabelopreto, tinhaalgunspiercings,deacordocomodepoimentodealguém,meioroqueiraoupunk,deestaturabaixaeumtantoexplosiva.Surgiudonadaesejogouemcimadomeninoparaprotegê-lo.Todasastestemunhastêmcertezadequeelanãoeraumapedestre,alguémqueestavaaliporacaso.Ela chegou voando, como se tivesse sido treinada para fazer isso, ou então como se já estivesseacostumada comesse tipo de situação.Agiu comumadeterminação impressionante, disseram.Depoistemoso carro, oVolvo, e aqui osdepoimentos são conflitantes.Umapessoadissequeo carro estavapassando ali como qualquer outro, e que a mulher e o menino se jogaram para dentro dele. Outros,principalmenteosdoisuniversitários,acharamqueocarrofaziapartedaoperação.Sejacomofor,tudolevaacrerqueagoratemosumsequestro.—Equalseriaomotivo?—Nãomepergunte.—Entãoessamulhernãosósalvouomeninocomotambémolevoucomela—disseGabriella.—Parecequesim,nãoé?Senãojáteríamostidoalgumanotícia.—EcomoelachegouàSveavägen?—Aindanãosabemos.Masumatestemunha,umex-editordeumjornaldealgumsindicato,disseque

a mulher lhe pareceu familiar, talvez até bem conhecida por todos — continuou Ragnar Olofsson,acrescentandomaisalgumacoisa.Mas Gabriella já não escutava mais nada. Estava paralisada e pensando “Deve ser a filha de

Zalachenko, sópodesera filhadeZalachenko”, sabendomuitobemcomoera injustochamara jovemassim.Afilhanadatinhaavercomopai.Muitopelocontrário,haviaodiadoopai.Maseracomo“afilha de Zalachenko” queGabriella vinha se referindo a ela desde que, nãomuito tempo antes, tinhacomeçadoaler tudoquelhecaíssenasmãossobreocasoZalachenko,eenquantoRagnarOlofssonseocupavadesuasespeculações,Gabriellateveasensaçãodequeaspeçasestavamenfimseencaixando.JánodiaanteriorelaperceberaalgunspontosemcomumentreavelharededeZalachenkoeogrupoquese autodenominava Spiders. Mas deixara de lado esse raciocínio, por achar que estava imaginandocoisasimpossíveisdeacontecer,comocriminososcomplanodecarreira.Haviaumabismoentreserumcriminosocomum,dessesqueusamcoletedecouroefolheiamrevistas

Page 190: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

pornôsna frentedoclubedemotoqueiros,e serumcriminosoenvolvidoempiratariacibernéticacomtecnologiadeponta.Mesmoassim,issotinhalheocorridoeelaatéjáhaviaseperguntadoseagarotaqueajudaraLinusBrandellarastrearasbrechasnoscomputadoresdeBaldernãoseriaafilhadeZalachenko.EmumarquivodaSäpo,estavaescritosobreamesmagarota:“hacker?especialistaemcomputadores?”.Mesmoquefosseumaperguntaaleatória,suscitadapelasreferênciassurpreendentementefavoráveisquea jovem recebera por seu trabalho naMilton Security, estava claro, pelo documento policial, que eladedicaramuitotempopesquisandosobreaorganizaçãocriminosadopai.Porém,oquemaislhechamavaaatençãoéquehaviaumaconhecidaligaçãoentreagarotaeMikael

Blomkvist.Gabriellanãosabiabemdequenaturezaeraessaligaçãoetambémnãodavamuitocréditoaoscomentáriosmaliciososdequetudoentreelesseresumiaachantagemouasexosadomasoquista.Aligaçãonoentantoexistia,etudoindicavaquetantoMikaelBlomkvistcomoagarota—cujadescriçãobatiacomadafilhadeZalachenkoeque,alémdisso,pareceufamiliaraumatestemunha—já tinhamconhecimento prévio dos tiros na Sveavägen antes de eles ocorrerem. Além disso, Gabriella haviarecebido um telefonema de Erika Berger querendo lhe contar algo importante sobre o incidente. Nãoeramcoincidênciasdemais?— Eu estava pensando numa coisa— disse Gabriella, talvez alto demais, interrompendo Ragnar

Olofsson.—Sim?—eledisse,irritado.—Euestavapensandose…—continuouela,ejáiaapresentarsuateoriaquandosedeucontadeuma

coisaqueafezhesitar.Nãoeranadaextraordinário.ErasóqueHelenaKraftcontinuavaanotandotudoqueRagnarOlofsson

tinha acabado de dizer. Claro que eramuito bom ter uma chefe tão interessada e comprometida,masGabriellaviunaquelacanetaquenãoparavaumsóinstantemaisdoquezeloexcessivo,oqueafezseperguntar seumchefedealtoescalão,cuja funçãoeraolharparaoconjunto,deveriavoltaraatençãodaquele jeito para cada detalhe, cadaminúcia, e, sem saber direito por quê,Gabriella começou a sesentirmuitodesconfortável.Claro,deviaserporqueelaestavaapontandoodedoparaalguémapoiadaembasestãoinconsistentes,

emboraarazãomaisprovávelfosseHelenaKraftterpercebidoqueestavasendoobservadaedesviadooolharembaraçada,ouatémesmoruborizada,portantoGabrielladecidiunão terminara fraseque tinhacomeçado.—Outalvez…—Oquê,Gabriella?—Não,nada—disse,sentindoderepenteumavontadeenormedesairdali,e,mesmosabendoque

nãoseriaapropriado,deixouasaladereuniõesoutravez,efoiparaobanheiro.Maistarde,elaselembrariadecomoficoulá,olhandoseuprópriorostonoespelho,tentandoentender

oqueexatamenteela tinhavistona salade reuniões.HelenaKrafthaviamesmose ruborizadoe, searespostaerasim,oquesignificavaaquilo?Provavelmentenada,concluiu,absolutamentenada,emesmoquetivessesidoumareaçãodevergonhaoudeculpa,poderiaserporqualquermotivo,poralgumacoisaconstrangedoraquetivessepassadopelacabeçadeHelenaKraftnaquelemomento,eGabriellaadmitiuque,naverdade,nãoaconheciatãobemassimparajulgá-la.Masdequalquerformaconheciaobastante

Page 191: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

parasaberqueHelenajamaisporiaemriscoavidadeumacriançapordinheiroouporqualqueroutrotipodevantagem.Não,issoestavaforadequestão.AverdadeéqueGabriellatinhasetornadoparanoica,umatípicaespiãdesconfiadadetudo,quevia

traidores em toda parte, atémesmo em sua própria imagem refletida no espelho. “Idiota”,murmurou,sorrindoconstrangidaparasimesma,comoseparaafastar todasasbobagensdesuacabeçaevoltarapôrospésnochão.Masnãoadiantounada.Nesseinstanteachoutercaptadoumanovaverdadeemseusolhos.Tevea impressãodesermuitoparecidacomHelenaKraft.Asduaseraminteligentes,ambiciosase

gostavamdeouvirelogiosdeseussuperiores,oquenemsempreeraalgobom.Quandoseatuavanumaculturanociva,essetipodeinclinaçãopodiatransformarapessoaemalguémtambémnocivo,eseessanecessidadede reconhecimento fosse exageradaeramgrandesos riscosde acabar levandoapessoaaumacondutaimoral,gananciosa,acometerexcessosetransgressões,atémesmocrimes.Todo mundo deseja se encaixar e mostrar serviço, por isso há quem acabe fazendo coisas

inacreditavelmenteestúpidas,ederepenteelaseperguntou:seráquefoiissoqueaconteceuaqui?Seopróprio Hans Faste — pois tinha certeza de que era ele o informante da Säpo dentro do grupo deBublanski— vinha passando informações para eles por achar que era isso que se esperava que elefizesseetambémporquequeriaganharpontoscomaSäpo,eseRagnarOlofsson,pelomenosatéagora,tambémvinhamantendoHelenaKraft informadadecadadetalhe,umavezqueela era suachefe e elepretendiaimpressioná-la,quemsabeHelenaKraft,porsuavez,nãotivessepassadoalgumainformaçãoadiante porque também lhe interessavamostrar todo o seu profissionalismo e empenho para alguém?Mas, se era isso, para quem? Para o chefe da polícia nacional, para o governo, para um serviço deinteligência estrangeiro, e nesse caso o provável é que fosse americano ou britânico, que então teriarepassadopara…Gabriellainterrompeuessacadeiadehipótesesemaisumavezseperguntousenãoestariaimaginando

coisase,mesmoachandoquetalvezestivesse,continuoupensandoquenãodeviaconfiaremseugrupo.Claroqueelatambémqueriamostrartodaasuacapacidadeprofissional,sóquenãonecessariamentedojeitoquesefazianaSäpo.ElasóqueriaqueAugustBalderestivessebem,eemvezdeorostodeHelenaKraftsurgiràsuafrenteelaviuosolhosdeErikaBerger,oqueafezirdepressaàsuasalaepegarseuBlackphone,omesmoqueelausaraparamantercontatocomFransBalder.Erika tinha ido de novo para a rua falar ao telefone com tranquilidade e agora estava na frente da

livrariaSöder,naGötgatan,seperguntandoseteriafeitoalgumabesteira.MasGabriellaGranesustentarasuaposiçãodetalformaqueErikanãotevecomosepreservar,eessaeraadesvantagemdeteramigosinteligentes.Elesveemvocêpordentro.GabriellanãosótinhaentendidooqueErikaqueriaconversarcomelacomoaconvencidodequeela

se sentiamoralmente responsável e que jamais revelaria a localização do esconderijo, pormais queaquilo fosse conflitante com suas responsabilidades profissionais. Gabriella disse que se sentia emdívidanaquelahistóriaequeportantoqueriaajudare iriamandaraschavesdesuacasadecampodeIngaröporummensageiroeprovidenciarparaqueasinstruçõesdocaminhofossemenviadasatravésdo

Page 192: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

linkcriptografadoqueAndreiZandercriarasegundoasinstruçõesdeLisbethSalander.Mais adiante, naGötgatan, ummendigo tropeçou e caiu, e dois sacos grandes e cheios de garrafas

recicláveisqueelecarregavaseespalharampelacalçada.Erikacorreuparaajudá-lo,masohomemjátinhase levantadoerecusouajuda.Erika lhedeuumsorriso tristeecontinuousuacaminhadadevoltaparaaredação.Quandoentrou,viuMikaelcomaraborrecidoeesgotado.Estavatododescabelado,acamisaparafora

dacalça.Faziatempoqueelanãooviatãoextenuado.Mesmoassim,nãosepreocupou.Quandoosolhosdele brilhavam daquele jeito, nada o detinha. Significava que ele havia entrado naquele estado deconcentraçãoabsolutadoqualsóemergiriadepoisdeterchegadoaofundodahistória.—Conseguiuacharumesconderijo?—eleperguntou.Elafezquesimcomacabeça.— Talvez seja melhor não dizer mais nada. Temos que manter isso no menor círculo de pessoas

possível.—Parecesensato.Masvamostorcerparaquesejaumasoluçãoprovisória.Nãomeagradaaideiade

Lisbethestartomandocontadogaroto.—Quemsabeumacabefazendobemaooutro…—Oquevocêdisseparaapolícia?—Muitopouco.—Achoquenãoéumahoramuitoboaparamanterascoisasembaixodopano.—Realmentenãoé.—TalvezLisbethsedisponhaafazeralgumadeclaração,paraaliviarumpoucoasuabarra.— Eu não quero pressioná-la agora. Estou preocupado com ela. Você pode pedir que o Andrei

pergunteaLisbethsenãodeveríamoslhemandarummédico?—Voufalarcomele.Sabe…—Oquê?—Estoucomeçandoaacharqueelaestáfazendoacoisacerta—disseErika.—Porqueestádizendoissoassimderepente?—Porqueeutambémtenhoasminhasfontes.Eestoucomasensaçãodequeapolícianãoéumlugar

particularmenteseguronestemomento—elarespondeu,dirigindo-secompassosdecididosparaamesadeAndreiZander.

Page 193: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

19.NOITEDE22DENOVEMBRO

JanBublanskiestavasozinhoemsuasala.NofimHansFasteacabaraadmitindoquevinhapassandoinformações para a Säpo o tempo todo, e, sem nem ouvir o que Faste tinha a dizer em sua defesa,desligou-o das investigações.Mesmo sabendo que Faste era ambicioso, nãomuito confiável e queriasubir rapidamentenacarreira, tinhademoradoaacreditarqueele tambémvinhavazando informações.Bublanskiachoudifícilacreditarquealguémdelápudessefazerisso.Claro que na polícia também havia pessoas desonestas e corruptas. Mas entregar uma criança

deficientenasmãosdeassassinosfrioserademais,eeleserecusavaaacreditarquealguémnapolíciaseriacapazde fazer isso.Talveza informaçãohouvessevazadodeoutramaneira.Talvezos telefonesdeles tivessem sido grampeados ou os computadores invadidos por algum hacker, embora não lheconstassequealguémtivesseregistradoemalgumarquivonocomputadorqueAugustBalderseriacapazde desenhar o assassino emenos ainda que ele estava na clínica psiquiátrica Oden. Bublanski vinhatentandoentraremcontatocomachefedaSäpo,HelenaKraft,paradiscutiremaquestão.Apesardeeleterenfatizadoqueoassuntoeraimportante,elaaindanãohavialigadodevolta.OstelefonemasqueBublanskihaviarecebidodoConselhodeExportaçãoedoMinistériodaIndústria

odeixarampreocupado,e,emboraistonãotivessesidoditodemaneiraexplícita,amaiorpreocupaçãonão era com omenino nem com as consequências dos tiros na Sveavägen, e sim com o programa depesquisas em que Frans Balder estivera envolvido, que de fato parecia ter sido roubado na noite docrime.Apesardemuitosdosmaiscapacitadostécnicosdecomputaçãodapolíciateremsidoenviadosàcasa

deBalderemSaltsjöbaden,alémdetrêsespecialistasemtecnologiadainformaçãodaUniversidadedeLinköpingedaAcademiaRealdeEngenhariadeEstocolmo,nenhumdelesencontrouumrastrosequerdapesquisadeFransBaldernemnoscomputadoresnememtodaapapeladadele.“Agora,comosenãobastasse,temosumainteligênciaartificialdesaparecida”,Bublanskimurmurara

consigo mesmo, e por algum motivo se lembrou de uma velha charada que seu primo Samuel, umbrincalhão,gostavadeproporaosamigosdeledasinagoga,paraconfundi-los.Era um paradoxo que dizia assim: se Deus é o todo-poderoso, será que poderia criar algo mais

inteligente do que Ele mesmo? A charada fora considerada desrespeitosa, ele lembrou, e até mesmoblasfema,porseucaráterevasivo,oquesignificavaquequalquerquefossearespostaelaseriaerrada.MasBublanski não teve tempo de se aprofundarmais nessa questão.Ouviu uma batida na porta. EraSonjaModig,quecerimoniosamentelheentregououtropedaçodechocolatesuíçocomlaranja.

Page 194: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Obrigado—eledisse.—Oquevocêtemparamim?—AchamosqueoscriminososderamumjeitodefazercomqueTorkelLindénlevasseomeninopara

arua.Mandarame-mailsfalsosemnomedoprofessorCharlesEdelman,edonossotambém,marcandoumencontrocomeleeomeninodoladodeforadaclínica.—Épossívelfazerisso?—Muitofácil.—Assustador.— É verdade, mas isso ainda não explica como os criminosos sabiam que era no computador da

clínicaOdenqueelesprecisavamentrarnemcomosouberamdaparticipaçãodoprofessorEdelman.—Achoquedeveríamosolharnossospróprioscomputadores.—Jácomeçamosafazerisso.—Seráqueeraparaserassim,Sonja?—Oquevocêquerdizer?—Todomundocomreceiodeescreveroudedizeralgumacoisacommedodeestarsendoespionado.—Nãosei.Esperoquenão.TemosumtaldeJacobCharroláforaaguardandoparaserinterrogado.—Queméele?—Umbom jogador do Syrianska FutebolClube. E também o homem que tirou amulher eAugust

BalderdaSveavägen.SonjaModig estavana sala de interrogatório comum jovemmusculosode cabelo curto e escuro e

maçãsdorostosalientes.EleusavaumpulôvermostardadegolaemV,semcamisaporbaixo,epareciaaomesmotempoperturbadoeumpoucoorgulhoso.Ela começouassim:— Interrogatório iniciadoàs18h35dodia22denovembro, coma testemunha

JacobCharro,vinteedoisanos,residenteemNorborg.Conte-nosoqueaconteceuhojedemanhã.—Sim,claro…—disseJacobCharro.—Euestava indodecarropelaSveavägen,quandovique

estavaacontecendoalgumtumultonarua.Acheiqueeraumacidenteediminuíavelocidade.Masaíviumhomemsaircorrendodacalçadadoladoesquerdoeatravessararua.Elecontinuavacorrendosemnemolharparaotrânsitoeacheiquefosseumterrorista.—Porquevocêachouisso?—Porqueelepareciaestarapontodeexplodirdetantoódio.—Deutempodevocêobservaraaparênciadele?—Nãoseidizer,masdepoismeocorreuquehaviaalgumacoisaartificialnorostodele.—Comoassim?—Comosenãofosseorostodeledeverdade.Eleestavacomóculosdesolredondos,quedeviam

estarpresosatrásdasorelhas.Asbochechas tambémpareciamestranhas,comoseeleestivessecomabocacheia,nãosei,etambémobigode,assobrancelhas,acordorosto.—Vocêachaqueeleestavausandomáscara?—Comcertezatinhaalgumacoisaestranha.Nãodeutempodepensarmuitonissoporquederepentea

portadomeucarrofoiescancaradaeaí…comoéqueeuvoudizer?Foiumdessesmomentosemque

Page 195: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

muitacoisaaconteceaomesmotempo,comoseomundointeirodesabasseemcimadasuacabeça.Derepentetinhaunsdesconhecidosdentrodomeucarroetodoovidrotraseiroestavaestilhaçado.Eufiqueiemestadodechoque.—Oquevocêfez?—Euacelereiquenemumdoido.Achoqueagarotaqueentrounomeucarrogritouparaeufazerisso.

Euestavatãoassustadoquenempercebidireitooqueestavafazendo.Apenasfuiseguindoasordens.—Ordens,vocêdisse?—Foiasensaçãoqueeutive.Acheiqueestávamossendoperseguidosenãovioutrasaídaanãoser

obedeceràgarota.Euvireiaqui,vireiali,faziaoqueelamandava,ealémdisso…—Oquê?—Haviaalgonavozdela.Eraumavoz tão friaeconcentrada,quemevi comandadoporela.Era

comoseavozdagarotafosseaúnicacoisaqueestavacontroladanomeiodaquelaloucuraedestruiçãotoda.—Vocêdissequeachaquesabequeméessagarota?— Acho que sei quem ela é. Mas não reconheci na hora, com certeza não foi na hora. Eu nem

conseguiapensaremnada,estavaapavorado.Etambémtinhasanguejorrandoatrásdemim.—Damulheroudomenino?—Nocomeçoeunãosabia,epareciaquenemeles.Masderepenteeuouvium“Ufa!”,comosealgo

debomtivesseacontecido.—Eoqueera?—Agarotaviuqueelaéquetinhasidobaleada,enãoomenino,elembroqueacheiissoestranho,

parecia que ela até estava comemorando, “Oba, levei um tiro”, e posso lhe garantir que não era ummachucadinhoàtoa,não.Elatentoutamparaferida,masnãoconseguiuestancarosangramento.Osanguecontinuavajorrandoeagarotaestavaficandocadavezmaisbranca.Elaestavabemmal.—Emesmoassimelaestavafelizdetersidobaleadaemvezdomenino…—Issomesmo.Comoqualquermãe.—Maselanãoeraamãedomenino…—Nãomesmo.Elesnemseconheciam,foioqueeladisse,edealgumaformaissofoificandobem

claro.A garota parecia não entender nada de criança. Ela nem abraçou omenino, não disse nenhumapalavradeconsoloparaele.Elaotratavacomoseelefosseadulto,falavacomelenomesmotomdevozqueusavacomigo.Umahoraviqueelaquaseiaoferecerumpoucodeuísqueparaele.—Uísque?—perguntouBublanski.—É,eutinhaumagarrafanocarro,queiadardepresenteparaomeutio,masacabeidandoparaela

desinfetaraferidaebeberumpouquinho.Maselaacaboubebendobastante.—Deformageral—perguntouSonjaModig—,comovocêachouqueelaestavatratandoomenino?— Para dizer a verdade, não sei bem como responder. Ela não parecia ser nenhuma campeã de

sociabilidade,metratavacomoseeufosseumempregadodelaenãotinhaamenorhabilidadeparalidarcomumacriança,comoeufalei,mesmoassim…—Oquê?—Acheiqueelaeraumaboapessoa.Eununcaacontratariacomobabá,seéquemeentendem.Mas

Page 196: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

elaeralegal.—Entãovocêachaqueacriançaestáseguracomela?—Eunãotenhodúvidadequeagarotapodesermortalmenteperigosaeatéumadoidadepedra.Mas

omenino…onomedeleéAugust,nãoé?—Issomesmo.—Elairáprotegê-locomsuavida,senecessário.Foiaimpressãoqueeutive.—Ondevocêosdeixou?—Ondeelamandou:emMosebackeTorg.—Éondeelamora?—Nãosei.Elanãomedeuexplicaçãodenada.Sóquisirparalá.Fiqueicomasensaçãodequeela

tinhaumcarroestacionadopor lá.Elanãomedissenadaalémdoestritamentenecessário.Apenasmepediuqueeudeixasseosmeusdadoscomela.Dissequevaimepagarpelosdanosnomeucarro,maisumextra.—Elapareciaterdinheiro?—Bom…seeufossejulgarsópelaaparência,diriaqueelamoranumbarraco.Maspelasatitudes…

não sei. Eu não ficaria surpreso se ela fosse cheia da grana. Tive a sensação de que ela estavaacostumadaafazertudodojeitodela.—Eoqueaconteceudepois?—Elamandouomeninodescerdocarro.—Eeledesceu?—Eleestavaparalisado.Ficousebalançandoparaafrenteeparatrásenãosaíadolugar.Masaíela

faloucomelenumtomdevozmaisduro.Dissequeeraumaquestãodevidaoumorte,coisaassim,eaíelefoiindobemdevagar,meiocambaleando,comosbraçosdurosquenemumsonâmbulo.—Vocêviuparaondeelesforam?—Sóviqueforamparaoladoesquerdo,nadireçãodeSlussen.Masagarota…—Sim?—Elaestavamalmesmo.Foitropeçando,pareciaqueiadesabaraqualquermomento.—Issonãoénadabom.Eomenino?—Tambémnãoparecia namelhor forma.Oolhar dele eramuito estranho, e fiquei preocupadono

caminhotodo,porqueacheiqueelefosseterumataqueoualgoassim.Masquandoosdoisdesceramdocarroelepareciajáteraceitadoasituação,esóficouperguntando“Onde”váriasvezes,“Onde,onde”.SonjaModigeBublanskiolharamumparaooutro.—Vocêtemcertezadisso?—perguntouSonja.—Porqueeunãoteriacerteza?—Bom,porexemplo,vocêpode terachadoqueeleestavadizendo issoporqueviuumaexpressão

interrogativanorostodele.—Porquevocêsestãoduvidandotantodeeuterouvidoisso?—PorqueamãedeAugustBalderdissequeelenãofala—explicouSonja.—Sério?— Sério. E parece muito estranho que ele tenha falado suas primeiras palavras sob aquelas

Page 197: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

circunstâncias.—Maseuouvioqueouvi.—Estácerto.Eoqueagarotarespondeu?—Achoqueeladisse“longe”.“Longedaqui.”Umacoisaassim.Depoiselaquasedesmaiou,comoeu

falei.Ememandouiremboradali.—Evocêobedeceu?—Rapidinho.Saícantandopneu.—Esódepoisvocêpercebeuquemeleseram.—Eujátinhadeduzidoqueomeninoeraofilhodaquelegêniodequemelesestãofalandoummonte

decoisasnainternet.Masagarota…eutinhaumavagalembrançadela.Elamelembravaalgumacoisa,bom, mas aí não aguentei mais continuar dirigindo. Eu tremia todo e parei na Ringvägen, perto deSkanstull,entreinohotelClarionepediumacervejaparaverseeumeacalmava,e foiaíquea fichacaiu.Elaeraaquelagarotaquetinhasidoprocuradaporassassinatounsanosatrás,masdepoisviramqueelanãoeraculpada,retiraramtodasasacusaçõesedescobriramquedesdepequenaelatinhapassadoporumascoisashorrorosasnumhospitalpsiquiátrico.EumelembrobemporquenaépocaopaideumamigomeuquetinhasidotorturadonaSíriaestavapassandomaisoumenospelasmesmascoisasnumhospital,comterapiadechoqueeoutrasmerdasassim,sóporqueelenãoconseguiaesqueceropassado.Foicomoseestivessemtorturandoeledenovoaqui.—Vocêtemcerteza?—Queelefoitorturado?—Não.QueagarotaeraLisbethSalander.—Nahoraeuprocureifotosdelanainternetnomeucelular,enãotivedúvidanenhuma.Etambémtem

outrascoisasquebatem,tipo…Jacobhesitou,parecendoconstrangido.—Quandoelatirouacamisetaparaenfaixaroferimentoesevirouumpoucoparapassaracamiseta

peloombro,euviumatatuagemenormedeumdragãonascostasdela,depontaaponta.Emelembrodessatatuagemtersidomencionadanumareportagemdaquelaépoca.ErikaBergerestavanacasadecampodeGabriella,emIngarö,comduassacolascheiasdealimentos,

lápisdecolorir,papel,doisquebra-cabeçascomplicadosemaisalgumascoisas.NãohavianemsinaldeAugusteLisbethnemcomoentraremcontatocomeles.LisbethnãoatendiapeloaplicativoRedphonenempelolinkcriptografado,eissoestavadeixandoErikadoentedepreocupação.De qualquer ângulo que ela analisasse a situação, não conseguia deixar de lado os maus

pressentimentos.Ela sabiamuitobemqueLisbethSalander sóerade falarominimamentenecessário,nadadegrandesexplicaçõesnemdepalavrastranquilizadoras.Lisbethsótinhapedidoumesconderijoseguro.Umacriançaestavasobsua responsabilidadee, seelanãoestavaatendendoàs ligaçõesdelesmesmo sob essas circunstâncias, com certeza algo de ruim tinha acontecido. Na pior das hipóteses,Lisbethpoderiaestarcaídaemalgumlugar,mortalmenteferida.Erikapraguejouefoiparaavaranda,amesmaondeelahaviasesentadoumdiacomGabriellaetido

Page 198: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

aquelaconversasobreseesconderdomundo.Sófaziaalgunsmeses,maspareciatersidodécadasantes.Agoranãohavianenhumamesaláforanemcadeiras,garrafas,nenhumburburinhodentrodacasa,apenasneve,galhoseolixoqueatempestadehaviatrazido,comoseaprópriavidativesseidoemboradali,ede algummodo a lembrança daquela festa fez crescer a sensação de abandono da casa, como se asfestividadesfossemfantasmasvoltandoparaassombraracasa.Erika foi para a cozinha de novo e guardou os congelados no freezer— almôndegas, espaguete à

bolonhesa,estrogonofe,filésdepeixe,bolinhosdebatataeumafartaquantidadedapiorjunkfood,queMikaelrecomendaraqueelacomprasse:pizzasprontas,pirogues,batataschips,coca-cola,umagarrafade uísque Tullamore Dew, um pacote de cigarros, três sacos de salgadinhos, balas, três barras dechocolateebalasdealcaçuz.Naamplamesaredondadacozinha,eladeixoupapelparadesenhar,lápisdecolorir,canetas,umaborracha,umaréguaeumcompasso.NumadasfolhasembrancoErikadesenhouumsoleumafloreescreveu“Bem-vindos”emquatrocoresmuitovivas.Acasaficavanoaltodeumpequenopromontório,nasproximidadesdapraiadeIngarö,enãosepodia

vê-lade longe,poisestavaencobertaporpinheirosmuitoaltos.Haviaquatrocômodos,eacozinha,omaior deles, com suas portas de vidro abertas para a varanda, era o coração da casa.Alémdamesaredonda,haviaumavelhacadeiradebalançoedois sofásgastose tortosquehaviam rejuvenescidoeganhadovidanovagraçasadoispequenostapetesxadrezrecém-comprados.Eraumacasaaconchegante.Eprovavelmenteumbomesconderijotambém.Erikaguardouaschavesdacasadentrodagavetade

cimadoarmáriodohall,comotinhamcombinado,saiudacasasemtrancaraportaecomeçouadesceralongaeíngremeescadademadeiraqueeraoúnicomeiodeacessoàcasaparaquemchegavadecarro.Océuestavaescuroeameaçador,ventavafortedenovoeoestadodeespíritodeErika,quejánãoera

nada bom, nãomelhorou nemumpouco enquanto ela voltava de carro para casa pensando emHannaBalder.Erikanãoaconheciapessoalmenteeestava longedeser fãdaatriz.Hannacostumava fazeropapeldemulheresaomesmotemposexyeinocentementedesmioladasquetodososhomensachavamquepodiamseduzir, eErikadetestavacomoa indústriadocinemacultuavaesse tipodepersonagem.Masagora tudo issoerapassado, eErika sentiuvergonhade tê-la julgadodemaneira tão rígidana época.TinhasidoduracomHannaBalder,atitudemuito fácilde tomarcontraumameninabonitasubindo tãocedonacarreira.Hoje,naspoucasvezesemqueHannaeravistaemalgumagrandeprodução,seusolhostransmitiam

umadorcontidaquedavaprofundidadeàssuaspersonagensequetalvez,Erikapensavaagora,fosseumadorgenuína.EstavaclaroqueHannaBalder enfrentara temposdifíceis.Pelomenosasúltimasvinte equatrohorasdesuavidatinhamsidodifíceisparaela,edesdeocomeçodamanhãErikavinhainsistindoque Hanna fosse informada do que estava acontecendo e ficasse com August. Parecia ser o tipo desituaçãoemqueumacriançanecessitadamãe.MasLisbeth,queatéentãoestavaemcontatocomeles,seopôsàideia.Aindanãosesabiadeonde

vinhaovazamentodeinformações,elaescreveu,eelestambémnãopodiamdescartarahipótesedequefossealguémpróximodeHannaedaqueleLasseWestman,emquemninguémconfiavaequeatéagoranãotinhasaídodecasa,aoquepareceparaevitarosjornalistasacampadosláfora.ElesestavamnumatoleiroeErikanãogostavadisso.Torciaparaquenofimconseguissemcontarahistóriacomdignidadeeprofundidade,semquenemarevistanemninguémsaísseprejudicado.

Page 199: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

ElanãoduvidavadacapacidadedeMikael.AlémdissoAndreiZanderoestavaajudando.ErikatinhaumaquedaporAndrei,umjovemdeótimaaparênciaquedevezemquandoaspessoasachavamsergay.NãofaziamuitotempoeletinhaidojantarcomelaeLarsnacasadelesemSaltsjöbaden,Andreihaviacontadosuahistória,oquesófezcresceraindamaisaafeiçãoqueErikasentiaporele.Andreiperdeuospaiscomonzeanos,numatentadoabombaemSarajevo,edepoisdissofoimorarna

Suécia,emTensta,subúrbiodeEstocolmo,comumatiaquesemostrouinsensívelparaperceberafomeintelectualdeleeatémesmoasferidasqueomeninocarregava.Andreinãopresenciouamortedospais.Seucorpo,porém,ainda reagiacomoseele sofressedeestressepós-traumático, e aindahojeelenãosuportavaruídosaltosemovimentosrepentinos.TambémficavaaflitoquandoviasacolasabandonadasemrestaurantesoulugarespúblicoseabominavaaviolênciaeaguerracomumardorqueErikajamaisvira.Durante a infância, ele se fechou em seu próprio mundo. Mergulhou na literatura fantástica, em

poesias, biografias, amava Sylvia Plath, Borges e Tolkien, e aprendeu tudo o que pôde sobrecomputadores, sonhando em escrever livros sobre tragédias e amores não correspondidos. Era umromânticoincorrigívelqueesperavacicatrizarsuasferidasatravésdepaixõesavassaladorasequenãoseimportavanemumpoucocomoqueaconteciaàsuavolta,nasociedadeounomundo.Umanoite,jáadolescente, assistiu a uma palestra aberta de Mikael Blomkvist na Faculdade de Jornalismo daUniversidadedeEstocolmoquemudariasuavida.AlgonoentusiasmocomqueMikaelfalavaofezlevantarosolhoseenxergarummundotransbordando

deinjustiças,intolerânciasepequenascorrupções,eelecomeçouaseimaginarescrevendoreportagenscomcríticas à sociedade, emvezde romances lacrimosos.Nãomuito tempodepois, bateu à porta daMillenniumperguntandosehaviaqualquerserviçoqueelepudessefazer:preparareservircafé,revisartextos, entregar pacotes. Ele queria estar lá, não importava como. Queria fazer parte da redação darevista, e Erika, que desde o começo tinha visto a chama em seus olhos, encarregou-o de pequenastarefas:avisos,pesquisaseperfiscurtos.E,acimadetudo,elaomandouestudarmuito,oqueelefezcoma mesma energia que direcionava a tudo que se dispunha a fazer. Lia sobre ciências políticas,comunicaçãodemassa,economia,soluçãodeconflitosinternacionais,aomesmotempoquefaziaalgunstrabalhostemporáriosparaMillennium.Suaambiçãoerase tornarumjornalista investigativotãopesopesadoquantoMikael.Mas,diferentementedequasetodososjornalistasinvestigativos,elenãoeradotipodurão.Continuava

ojovemromânticoquesonhavaemencontrarseugrandeamor,eMikaeleErikajáhaviampassadomuitotempoconsolando-oporseusrelacionamentosimpossíveis.Asmulheressentiam-seatraídasporelecomamesma frequência com que o abandonavam. Talvez elas notassem a enorme carência dele emuitastalvezseassustassemcomaintensidadedeseussentimentos,ealémdissoeledeviaterumainclinaçãoexagerada para falar de seus próprios defeitos e fraquezas. Era bastante franco e transparente. Bomdemais,comoMikaelcostumavadizer.ErikacomeçouaacharqueAndreiestavamuitopertodeselibertardesuafragilidadejuvenil.Tinha

notadoissonostextosdele.Aqueledesejoimensodetocaraspessoas,quetornavasuaescritabastantepesada,haviasidosubstituídoporumnovoestilo,maisconcretoepragmático,eelasabiaqueagoraqueeletinharecebidoachancedeajudarMikaeltãodepertonocasoBalder,elefariaoquefossepreciso

Page 200: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

parasesairbem.A ideia é queMikael escrevesse o texto principal e que Andrei, além de ajudá-lo nas pesquisas,

também redigisse alguns artigos paralelos relacionados com o caso e perfis curtos, planejamento queErikaachoubempromissor.DepoisdedeixarocarroestacionadonaHökensgata,elacaminhouatéaredaçãoe,aoentrar,encontrouMikaeleAndreiprofundamenteconcentradosnotrabalho,comoelatinhaimaginadoqueencontraria.DevezemquandoMikaelmurmuravaalgumacoisaconsigomesmo,eelanotounosolhosdelenãosó

aquele conhecido brilho de obstinação, mas também um certo sofrimento, o que não a surpreendeu.Mikaelmalvinhadormindoànoite.Aimprensatodaoestavaatacandoeelehaviasidointerrogadopelapolícia,ondeforaobrigadoafazerjustamenteaquiloqueaimprensaoacusavadeestarfazendo,ouseja,omitiraverdade,eMikaelnãogostavadisso.Mikael Blomkvist era uma pessoa que andava de mãos dadas com a lei. Em muitos sentidos, um

cidadão-modelo,esehaviaalguémqueconseguiaarrastá-loparaoterritóriodoproibido,essealguémeraLisbethSalander.Mikaelpreferiacairemdescréditoa traí-la,por issoelecontinuava repetindoàpolícia:“Reservo-meodireitodeprotegerminhasfontes”,emborasemdúvidaeleestivesseaborrecidocomissoeponderandoasconsequências.Mas,assimcomoErika,suamaiorpreocupaçãoeramLisbetheo garoto.Depois de observá-lo por algunsmomentos,Erika foi até ele e perguntou:—Comovão ascoisas?—Quê?Ah…Bem.Comoestátudoporlá?—Arrumeiascamasedeixeicomidanageladeira.—Quebom.Nenhumvizinhoviuvocê?—Nãoháumaalmavivanaquelelugar.—Porqueelesestãodemorandotanto?—eleperguntou.—Nãosei,tambémestoumuitopreocupada.—TomaraqueelessóestejamdescansandonacasadeLisbeth.—Éoqueeutambémespero.Oquemaisvocêdescobriu?—Muitacoisa.—Quebom.—Mas…—Oquê?—Temumacoisa…—Oquê?—Parecequeeuestouvoltandonotempooumeaproximandodelugaresondejáestive.—Vocêvaiterquemeexplicarissoumpoucomelhor—eladisse.—Vouexplicar…Mikaelolhouderelanceparaateladocomputador.—Masprimeiroquerocavarumpoucomais.Depoisagenteconversa—eledisse,eelaodeixou

sozinho e se preparou para voltar para casa, sabendo que estaria pronta para ajudá-lo assim que eleprecisasse.

Page 201: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

20.23DENOVEMBRO

Anoitetinhasidocalma,estranhamentecalma,eàsoitodamanhãumpensativoJanBublanskiestavana sala de reuniões diante de seu grupo. Depois de ter dispensado Hans Faste, ele se sentiarazoavelmentesegurodepoderfalarlivrementesobreocasodenovo.Pelomenossesentiamaisseguroali,comseugrupo,doqueemfrenteaoseucomputadoroucomseucelular.— Vocês já estão a par da gravidade da situação — ele começou. — Houve um vazamento de

informações sigilosas e uma pessoa morreu por causa disso. E agora a vida de uma criança estáameaçada. Apesar de termos trabalhado duro, ainda não sabemos como foi que isso aconteceu. Asinformaçõespodemtersaídodaquidedentro,oudaSäpo,oudaclínicaOden,oudealguémligadoaoprofessorEdelman,ouatémesmodamãedomeninoedocompanheirodela,LasseWestman.Aindanãotemoscertezadenada,portantodevemosserextremamentecautelosos,paranoicosmesmo.— Podemos ter sido hackeados ou grampeados— acrescentou SonjaModig.— Tudo indica que

estamoslidandocomcriminososcujodomíniodasnovastecnologiasvaimuitoalémdaquelecomoqualestamoshabituados.—Verdade,oquesó tornaasituaçãomaispreocupante—continuouBublanski.—Precisamosser

cuidadososemtodososníveisenãofalarnadadeimportanteaotelefone,mesmoquenossossuperioresgarantamqueonossonovosistemadetelefoniamóvelésuficientementeseguro.—Elesachamosistemasensacionalsóporqueaimplantaçãodelecustoumuitocaro—disseJerker

Holmberg.—Talveztambémdevêssemosrefletirumpoucosobreonossoprópriopapel—continuouBublanski.

—AcabeidefalarcomumajovemanalistadaSäpo,muitotalentosa,GabriellaGrane,nãoseisevocêsjáouviram falardela.Ela lembrouqueoconceitode lealdadeparanós,policiais,nemsempreéumacoisatãoóbviacomoparece.Podemosterváriostiposdelealdade,nãoé?Amaisóbviaéalealdadeàlei. Há também a lealdade à população, aos colegas, aos nossos superiores, a nós mesmos, à nossacarreira,eàsvezes,comotodosvocêssabem,podemsurgirconflitosentreessasváriaslealdades.Paraproteger umcolega, por exemplo, podemos ser desleais coma nossa população.Epor vezes, quandoobedecemosaordensvindasdecima,comofoiocasodeHansFaste,essa lealdadeentraemconflitocomaquelaquesedevetercomoscolegas.Masdeagoraemdiante—eeuestoufalandomuitosério—sóseaplicaumalealdadeaqui:aquevamostercomaprópriainvestigação!Iremosprenderosculpadosegarantirqueninguémmaissejavítimadeles.Estamosentendidos?Nemqueoprimeiro-ministroouochefedaCIAtelefonemparavocêsfalandodepatriotismoeprometendonovaspossibilidadesdecarreira,

Page 202: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

euqueroquevocêsabramaboca,entendido?—Entendido!—todosresponderamemcoro.—Ótimo!Comovocêsjásabem,apessoaqueinterferiunocasodaSveavägenfoininguémmenosque

LisbethSalander,eestamosfazendotudoaonossoalcanceparalocalizá-la—continuouBublanski.—Porissoéqueagenteprecisadivulgaronomedelaparaaimprensa—gritouCurtSvensson,um

tantoinflamado.—Precisamosdaajudadapopulação!—Seiquehádivergênciasentrenóssobreesseponto,eéporissoquequerodiscutiraquestãomais

umavez.Emprimeirolugar,nemprecisodizeroquantoSalanderfoimaltratadapelapolíciaepelamídiaháalgunsanos.—Masissonãovemaocasoagora—disseCurtSvensson.—ÉbemprovávelquemuitaspessoasatenhamreconhecidonaSveavägeneque,dequalquerforma,

seunomelogovenhaapúblico,eentãoissonãoserámaisumaquestão.Masantesdeixe-melembrar-lhesqueLisbethSalandersalvouavidadogarotoeporissomerecetodoonossorespeito.— Quanto a isso, nenhuma dúvida— disse Curt Svensson. —Mas depois ela meio que acabou

sequestrandoacriança.—Ainformaçãoquetemosindicaqueelaestavadeterminadaaprotegeromeninoaqualquerpreço—

acrescentou SonjaModig.—Lisbeth Salander teve experiênciasmuito negativas com as autoridades.TodaasuainfânciafoimarcadaporinjustiçaseabusoscometidoscontraelapelaburocraciadoServiçoSocialese,comonós,elasuspeitaqueháuminformantedentrodapolícia,nãovainosprocurardeformaalguma,podemtercerteza.—Issoéaindamenosrelevante—insistiuCurtSvensson.—Decertaformaéverdade—continuouSonja.—ÉclaroqueeueJanconcordamoscomvocêquea

única coisa importante é saber se tornar público o nome dela ajudaria ou não nas investigações. Asegurançadomeninoémaisimportantedoquequalqueroutracoisa,eaquitemosumgrandecomponentedeincerteza.—Entendooseuraciocínio—disseJerkerHolmbergnumtomdevozbaixoecauteloso,quefeztodos

oescutaremcomatenção.—SeaspessoasviremSalander,omeninotambémficaráexposto.Masissoaindadeixamuitasperguntassemresposta.Aprimeiraeamaisimportante,etambémamenosformaldetodasé:qualéacoisacertaafazer?EaquitendoaafirmarquemesmoquehajauminformanteentrenósnãopodemosaceitarqueSalandercontinueescondendoAugustBalder.Ogarotoéparte importantedainvestigaçãoe,comouseminformante,somosmaiscapacitadosparaprotegerumacriançadoqueumajovememocionalmenteperturbadacomoela.—Claro,comcerteza—concordouBublanski.—Exatamente—continuouJerker.—Emesmoquenãoestejamoslidandocomumcasoclássicode

sequestro, sim,mesmoqueela tenha feitooque fezcomamelhordas intenções,osdanoscausadosàcriançapodemserenormes.Emtermospsicológicos,deveserextremamenteprejudicialaomeninoestarfugindo,depoisdetudooqueelejápassou.—Éverdade,éverdade—murmurouBublanski.—Masadúvidapermanece:comovamoslidarcom

essainformação?—AquieurealmenteconcordocomoCurt.Devemosdivulgaronomeeumafotodelalogo.Podemos

Page 203: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

obterinformaçõesimportantesassim.— Sim, pode dar certo mesmo — continuou Bublanski —, mas também pode ser tudo que os

assassinosestejamesperando.Temosquepartirdoprincípiodequeelesnãodesistiramdeencontraromenino,muitopelocontrário,ecomonãotemosideiadequaléaconexãoentreogarotoeaSalander,não temos como saber que tipo de pistas eles vão obter com a divulgação do nome dela. Não estoutotalmentesegurodequegarantiremosasegurançadogarotodivulgandoessesdetalhesàimprensa.—Mastambémnãosabemosseeleestaráprotegidosenãofizermosisso—rebateuJerkerHolmberg.

— Há muitas peças faltando nesse quebra-cabeça para que a gente consiga tirar qualquer tipo deconclusão.SeráqueaLisbethSalanderestáfazendoissoamandodealguém,porexemplo?Seráqueelanãotemseusprópriosplanosparaacriançamaisdoqueprotegê-la?— E como ela sabia que Torkel Lindén e o menino iam sair da clínica da Sveavägen justamente

naquelehorário?—acrescentouCurtSvensson.—Talvezelaestivesseláapenasporacaso.—Nãopareceprovável.—A verdade não costuma parecer provável— continuou Bublanski.— É exatamente isso que a

define.Masconcordo:époucoprovávelqueelaestivesseláporacaso.Nãonaquelascircunstâncias.—MikaelBlomkvisttambémsabiaquealgoiaacontecer—acrescentouAmandaFlod.—ÉóbvioqueháumaligaçãoentreBlomkvisteSalander—disseJerkerHolmberg.—Éverdade.—MikaelBlomkvistsabiaqueomeninoestavanaclínicaOden,nãosabia?—Amãedomenino,HannaBalder,tinhacontadoaele—disseBublanski.—E,comovocêspodem

imaginar, ela agora está se sentindo péssima. Acabei de ter uma longa conversa com ela. Mas daíBlomkvistchegaraterideiadequeTorkelLindéneomeninoiamserenganadoseatraídosparaarua…—SeráqueeleentrounocomputadordaOden?—indagouAmandaFlod,pensativa.—NãoconsigoimaginarMikaelBlomkvisthackeandocomputadores—disseSonjaModig.—MaseaSalander?—perguntouJerkerHolmberg.—Oque,afinal, sabemossobreela?Mesmo

comodossiêcompletoquetínhamosdagarota,naúltimavezemquenosenvolvemoscomela,elanosenganou de todas as formas. Talvez agora as aparências também sejam tão enganadoras quanto foramnaquelaépoca.—Éverdade—concordouCurtSvensson.—Temosmuitospontosdeinterrogação.—Nós só temos pontos de interrogação, por isso é que devíamos seguir estritamente as regras do

códigopolicial—observouJerkerHolmberg.— Eu não sabia que o código era tão abrangente— disse Bublanski com um sarcasmo que não

agradouaHolmberg.—Eusóestoudizendoqueagentedeviaconsiderarasituaçãopeloqueelarealmenteé:osequestro

deumacriança.Fazquasevinteequatrohorasqueosdoisdesapareceramenãofizeramnenhumcontato.DevíamosdivulgaronomeeafotodeSalanderedepoisavaliarcomtodoocuidadoasinformaçõesquechegarem às nossas mãos — disse Jerker Holmberg com grande autoridade, e os outros policiaispareceramconcordarcomele.Bublanskifechouosolhosepensouemcomoamavaaquelegrupo.Tinhamaisafinidadecomelesdo

Page 204: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

quecomseusirmãos,irmãsepais,masagorasesentianodeverdecontrariá-los.—Estamosfazendotudoquepodemosparaencontrarosdois,porissovamosaguardarumpoucomais

antesdesoltarnomesefotos.Issosóserviriaparapôrmaislenhanafogueira,ealémdissoeunãoquerodarnenhumapistaaoscriminosos.—Ealémdissovocêsesenteculpado—disseJerkersemnenhumtomsolidárionavoz.—Ealémdissoeume sintomuito culpado—respondeu JanBublanski, pensandodenovoemseu

rabino.MikaelBlomkvistestavaextremamentepreocupadocomomeninoecomLisbeth,porissonemtinha

conseguidodormirdireito.HavialigadodiversasvezesparaLisbethpeloRedphone,semobternenhumaresposta.Elenãorecebianotíciasdeladesdeatardedodiaanterior.Agoraestavanaredação,tentandoseconcentrarnotrabalhoeanalisaroquepodiaterlheescapado.Poralgumtempoopressentimentodeque faltava alguma peça fundamental no quadro todo, algo que poderia trazer uma nova luz ao caso,insistiuemnãoabandoná-lo.Mastalvezestivesseiludindoasimesmo,talvezfosseapenasimaginação,seu desejo de encontrar alguma estruturamaior por trás de tudo.A últimamensagem que Lisbeth lhemandaraatravésdolinkcriptografadofora:JurijBogdanov,Blomkvist.Dêumaolhadanele.FoielequemvendeuatecnologiadeBalderparaoEckerwalddaSolifon.

AlgumasfotografiasdeBogdanovnainternetomostravamdeternoslistradosfeitossobmedida,mas

que ainda assim não pareciam lhe cair bem, como se ele os tivesse roubado a caminho do fotógrafo.Bogdanov tinhacabeloscompridosedesalinhados,muitascicatrizes,olheiras fundase tatuagens feitasporalgumamador,quepodiamservislumbradasporbaixodasmangasdacamisa.Seuolharerasombrio,intensoepenetrante.Eraalto,porémnãodeviapesarmaisquesessentaquilos.Parecia um ex-presidiário, e alguma coisa em sua postura fez Mikael se lembrar do homem que

aparecia nas imagens das câmeras de segurança da casa deBalder, em Saltsjöbaden. Ele irradiava amesmadecadência e armiserável.Nas raras entrevistasquehaviadadocomoempresário emBerlim,Bogdanovderaaentenderquepraticamentehaviasecriadonasruas.“Euestavacondenadoafracassarouaserencontradomortonumbecoqualquercomumaseringano

braço.Masconseguisairdalamaemerestabelecer.Souinteligenteeumverdadeiroguerreiro”,elesegabara.Poroutrolado,nadaemsuavidadesmentiaessasafirmações,excetoasuspeitadequeelepoderianão

terprogredidoapenasatravésdeseusprópriosesforços.Haviaindicaçõesdequeelereceberaajudadepessoas influentesque identificaramseus talentos e apostaramneles.Uma revistade tecnologia alemãreproduziaadeclaraçãodeumchefedesegurançadafinanceiraHorst,dizendo:“Bogdanovtemmágicanosolhos.Eleenxergaafragilidadedeumsistemadesegurançacomoninguém.Eleésimplesmenteumgênio”.Bogdanov, na verdade, era um hacker superstar e oficialmente considerado um “white hat”, uma

pessoavoltadaparaobem,prontaaservireaajudarasempresasaencontrarfalhasemseussistemasde

Page 205: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

segurança.Tambémnãohavianadadesuspeitoemsuaempresa,aOutcastSecurity, indicandoqueelafosseapenasumnegóciodefachada.Osmembrosdadiretoriaerampessoasdeboareputação,comnívelsuperior,cujosnomesnuncahaviamsidoligadosaatividadesilícitas.Apesardeparecereminformaçõesgenuínas,Mikael não se contentou em apenas aceitá-las. Ele e Andrei investigaram a fundo todas aspessoasque tiveramcontato,emesmoomínimocontato,comaOutcastSecurity,amigosdeamigos,eencontraramumhomemchamadoOrlov,que,porumbreveperíodo,haviaparticipadodoconselhocomosuplente e que, já à primeira vista, pareceu um tanto suspeito. Vladimir Orlov não era da área detecnologiadainformação,masapenasumpeixepequenodosetordeconstrução.HaviasidoumboxeadorpesopesadodefuturonaCrimeia,eajulgarporalgumaspoucasfotografiasqueMikaelencontroudelenainternet,oqueseviaeraumhomembrutaledesfigurado,dotipoqueumajovemjamaisconvidariaàsuacasaparaochádatarde.Tambémhaviainformações,emboranãoconfirmadas,dequeelecumprirapenaporagressãofísicae

lenocínio.Tinhasecasadoduasvezeseproduzidoduasviúvas,cujacausamortisMikaelnãoconseguiudescobrir.Oachadomais interessante,porém,foiOrlov terparticipadocomosuplentedoconselhodeumaempresa insignificante, fechada faziamuito tempo,chamadaBodinConstrução&Exportação,queatuavanaáreade“vendademateriaisdeconstrução”.OproprietáriotinhasidoKarlAxelBodin,maisconhecidocomoAlexanderZalachenko,umnomeque

não apenas lhe trouxe lembranças de um mundo totalmente do mal como também do maior furojornalísticodesuacarreira.Zalachenko,claro,eraopaideLisbeth,ohomemquehaviamatadoamãedelaedestruídosuainfância.AsombranegradeLisbeth,ocoraçãodastrevasquehaviaalimentadoseusplanosdevingança.Seriameracoincidênciaonomedeleaparecernessecaso?Maisdoqueninguém,Mikaelsabiaque,

quandosevaiafundoemqualquerhistória,pode-seencontrartodotipodeconexões.Avidaestásemprenos aproximando de conexões enganadoras. No entanto, em se tratando de Lisbeth Salander ele nãoacreditavamuitoemcoincidências.Fosse quebrando o dedo de um cirurgião ou se propondo a analisar o roubo de uma avançada

tecnologiade inteligênciaartificial,vocêpodiaestarcertodequeLisbethnãoapenashaviaplanejadotudocommuitocuidado.Elatambémtinhaumarazão,ummotivoparafazerisso.Lisbethnãoeradotipoqueesqueciainjustiçasoucoisaserradas.Elarevidavaeapresentavaafatura.Seráqueoenvolvimentodelanessecasoteriaalgumaligaçãocomseupassado?Nãoeranadaimpossível.Mikael levantou os olhos da tela do computador e olhou paraAndrei, que acenou para ele com a

cabeça. Lá fora, do corredor, vinha um cheiro leve de comida e, da Götgatan, o som de um rockbarulhento.A tempestade estava ali bemnaporta, uivando,mantendoo céu ainda escuro e turbulento.Mikael entrou no link criptografadomais uma vez, apenas para cumprir sua nova rotina, sem esperarnada.Masentãoeleseanimou.Haviaumamensagem.Soltouumpequenogritodetriunfoeleu:Tudobem.Vamosparaoesconderijoembreve.Elerespondeudepressa:Ótimo.Dirijacomcuidado.Edepoisnãoresistiueacrescentou:Lisbeth,afinalestamosatrásdequem?

Page 206: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Elarespondeuimediatamente:Vocêlogovaiadivinhar,espertinho!Lisbeth tinha exageradoquandodisse que ia tudobem.Ela estava umpoucomelhor,mas ainda em

péssimaforma.Haviapassadometadedodiaanteriorquasesemconsciênciadotempoedoespaço,efoisomentecomgrandedificuldadequeconseguiusearrastarparaforadacamaafimdeofereceralgumacoisaparaAugustcomerebeber,seassegurandotambémdequeele tivessepapele lápisàmão,paradesenharoassassinodeseupai.Enquantoseaproximavadeleagora,elajáviadelongequeelenãotinhadesenhadonada.Haviamuitopapelespalhadopelamesaqueficavapertodosofá,emfrenteàqualomeninoestava.

Mas, em vez de desenhos, ela viu apenas fileiras e mais fileiras de rabiscos e, numa reação maisautomáticadoquemovidaporumaverdadeiracuriosidade,Lisbethtentouentenderoqueeraaquilo.Elehaviaescritonúmeros,sequênciasintermináveisdenúmeros,emesmoqueaprincípioelesnãofizessemsentidoparaela,Lisbethfoificandocadavezmaisintrigada,atéquederepentedeuumassobio.—Quedemais!—balbuciou.No começo ela tinha visto apenas alguns números bem extensos, que na verdade não lhe disseram

nada,masdepoisviuque,combinadoscomosnúmerosvizinhos,elesformavamumpadrãofamiliar,equando olhou nos diferentes tipos de folhas de papel e chegou a deparar com a simples sequêncianumérica641,647,653e659,entãonãotevemaisdúvida.Eramos“sexyprimequadruplets”,comosediziaeminglês,umasequênciadequatronúmerosprimoscomadiferençadeseisunidadesentresi.Haviatambémsériesdenúmerosprimosgêmeos,comtodasascombinaçõespossíveis,eLisbethnão

conteveumsorriso,aomesmotempoqueexclamava:—Incrível!Legal!MasAugustnãoolhouparaela.Continuouajoelhadoemfrenteàmesadecentro, comosequisesse

apenascontinuarescrevendoseusnúmeros,eelaselembrouvagamentedeter lidoalgumacoisasobresavantsenúmerosprimos,masemseguidanemquismaispensarnisso.Nãoestavasesentindobemparaagoracomeçarumareflexãosobrecálculosavançadosouembarcaremraciocínioscomplicados.FoiatéobanheiroeengoliudoiscomprimidosdeVibramicinaqueestavamporalifaziaanos.Lisbethvinhatomandoantibióticoporcontaprópriadesdequedesmaiaranoapartamento.Emseguida

pôsapistola,ocomputadorealgumasroupasnasacola,edisseparaomeninoselevantar.Maselenãoquis.AugustcontinuousegurandoseulápiscomforçaeporalgunsinstantesLisbethficouparadadiantedele,perplexa.Entãodissecomumavozbemfirme:—Levanteagoramesmo!—eeleobedeceu.Porsegurança,elapôsumaperucaeóculosdesol.Porúltimo,vestiramseuscasacos,desceramde

elevadoratéagaragemeentraramnaBMWdela,comaqualiriamparaIngarö.Elacontrolavaovolanteapenascomamãodireita.Comoombroesquerdoenfaixadoeapartesuperiordopeitodoendomuito,eaindacomfebre,elafoiobrigadaapararocarronoacostamentoalgumasvezesparadescansar.QuandoenfimchegaramàpraiaeaoancoradourodebarcosdeStoraBarnvikemIngaröe,seguindoasinstruçõesrecebidas, subiram a longa escadaria demadeira que levava à casa e entraramnela, Lisbeth desabou

Page 207: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

exaustanacamadoquartomaispróximoàcozinha.Estavatremendo,gelada.Mesmoassim, logodepoisse levantoue, respirandocomdificuldade, foiparaamesaredondacom

seu notebook, para tentar,mais umavez, decifrar o arquivo daNSA que ela havia baixado.Claro quetambém não conseguiu.Não chegou nem perto disso.August foi sentar perto dela, olhando como quehipnotizado para as pilhas de papéis e lápis que Erika Berger havia deixado para ele. Nesse exatomomentoAugustnãopareciainteressadoemescrevernenhumasériedenúmerosprimosemuitomenosemdesenharassassinonenhum.Pareciamaravilhadodemaisparaisso.O homem que se dizia chamar JanHoltser estava hospedado num quarto do hotel ClarionArlanda

conversandoaotelefonecomsuafilhaOlga,que,comoeletinhaimaginado,nãoestavaacreditandonoqueeledizia.— Você está com medo de mim? Está com medo de que eu te coloque contra a parede?— ela

perguntou.—Não,claroquenão—elerespondeu.—Éque…Ele demorou para encontrar as palavras. Sabia que Olga desconfiava que ele estava escondendo

algumacoisa,portantoencerrouaconversamaisrápidodoquenofundodesejava.Aseulado,nacamadohotel, Jurijpraguejavamuito.DepoisdeexaminarocomputadordeFransBalderpelomenosumascem vezes, ele não havia encontrado “porra nenhuma”, como gostava de dizer.—Nadinha demerdanenhuma!—Entãoroubeiumcomputadorsemconteúdo—disseJanHoltser.—Éissoaí.—Entãoporqueoprofessorestavausandoessecomputador?—Praalgumacoisamuitoimportante,issoestáclaro.Dáparaverqueumarquivopesado,quedevia

estarsendocompartilhadocomoutroscomputadores,foideletadonãofazmuitotempo.Estoutentando,tentando,masnãoconsigorecuperaressearquivo.Odesgraçadosabiaoqueestavafazendo.—Quedecepção—disseJanHoltser.—Decepçãodocaralho—acrescentouJurij.—Eotelefone,oBlackphone?— Tem umas ligações lá que eu não consegui identificar, talvez da Säpo ou do Försvarets

Radioanstalt.Masoquemaisestámepreocupandoéoutracoisa.—Oquê?—Umalongaconversaqueoprofessor teveumpoucoantesdevocê invadiracasadele.Elefalou

comalgumfuncionáriodoMIRI,MachineIntelligenceResearchInstitute.—Eondeestáoproblema?—Ahoraemqueeleligou.Fiqueicomaimpressãoqueotelefonematinhaavercomalgumtipode

crise. Só que tem o fato de ter sido pro MIRI. O trabalho desse instituto é garantir que no futurocomputadores inteligentes não se tornem uma ameaça para a humanidade. Sei lá, isso não está mecheirandobem.EstouachandoqueoBalderpassouumapartedassuaspesquisasproMIRIouentão…—Oquê?

Page 208: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Elepodeterpassadotodaainformaçãosobreagente,oupelomenosoqueelesabiadagente.—Issoseriapéssimo.Jurij concordou e Jan Holtser soltou um palavrão baixinho. Nada tinha saído como eles haviam

planejado,enenhumdosdoisestavaacostumadoafalhar.Agorajáacumulavamdoisfracassosseguidos,etudoporcausadeumacriança,umacriançaaindaporcimaretardada,oqueerabemruim.Masaindanãoeraopior.O pior é que Kira ia chegar, enlouquecida, e nenhum dos dois estava preparado para isso. Eles

estavam acostumados a ser bem tratados por ela, com aquela fria elegância que dava um ar deinvencibilidadeaosnegóciosdela.MasKiraestavapossessa,gritandoqueeleseramdoisimprestáveis,incompetenteseidiotas.Earazãodosgritosnãoeratantoelesteremerradoaquelestiros,quepodiamounãoteratingidoogarotonascostas.ArazãoeraamulherquehaviasurgidodonadaparaprotegerAugustBalder.ElaéquemfizeraKirasedescontrolar.QuandoJancomeçouadescreverajovem,opoucoquetinhaconseguidoverdela,Kiraobombardeou

deperguntas.Mesmoqueeletivesselhedadoarespostacertaouerrada,dependendodoânguloemqueseolhasseparaisso,Kiraseencolerizou,aosberrosdissequeelesdeveriamtermatadoagarotaecomoeratípicodelesaquelecomportamentoinútil.NemJannemJurijentenderamoporquêdaquelareaçãotãoviolenta.Nuncaatinhamouvidogritardaquelejeito.Poroutrolado,haviamuitacoisaqueelesnãosabiamsobreKira.JanHoltserjamaisseesqueceriade

quandotransaracomelanumasuítedohotelD’Angleterre,emCopenhague,pelaterceiraouquartavez,edeitados na cama, bebendo champanhe, ele lhe contara sobre a guerra e seus crimes. Ao acariciar oombroeobraçodela,Janviuastrêscicatrizesemseupulso.—Comovocêfezisso?—eleperguntou,recebendocomorespostaapenasumolharfurioso.Depois desse episódio, ela nunca mais o convidou para a sua cama, o que ele interpretou como

puniçãoporaquelapergunta.Kiracuidavadeleselhesdavamuitodinheiro,masnemelenemJurijnemninguémdogrupoestavaautorizadoaperguntarsobreopassadodela.Faziapartedasregrasnãoescritas,eatéomomentonenhumdeleshaviatidoacoragemdesequerpensaremdescumpri-las.Paraobemoupara omal, ela era a benfeitora deles— sobretudo para o bem, eles achavam—, e cabia a eles seadaptar a seus caprichos e viver na incerteza de ela tratá-los com carinho, com frieza ou atémesmocastigá-los,seassimdecidisse.Jurij fechou o computador e tomou um gole do seu drinque. Os dois estavam tentando diminuir o

consumo de álcool, para que Kira não usasse isso contra eles. Mas era quase impossível. Muitafrustraçãoemuitaadrenalinaosfaziambeber.Janmexianocelularnervosamente.—AOlganãoacreditouemvocê?—perguntouJurij.—Nemumpouco,eembreveelaveráemtodososjornaisomeuretratofaladofeitoporumacriança.—Nãolevemuitoasérioessahistóriadoretratofalado.Parecemaisinvençãodapolícia.—Entãoestamostentandomatarumacriançasemamenornecessidade?—Oquenãomesurpreenderia.NãoeraparaKirajáterchegado?—Deveestarchegandoaqualquermomento.—Quemvocêachaqueera?—Quem?

Page 209: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Aquelagarotaquesurgiudonada.—Nãofaçoamenorideia—disseJan.—NemseiseaprópriaKirasabe.Parecemaiséqueelaestá

preocupadacomalgumacoisa.—Imaginaseelaagoranãovaiquererqueagenteacabecomosdois,comagarotaeomenino.—Desconfioqueteremosquefazermaisqueisso.August não estava bem, e isso ficou evidente com asmanchas avermelhadas que surgiram em seu

pescoço. Ele cerrava os punhos com força. Sentada a seu lado, à mesa da cozinha em Ingarö etrabalhandoemseuRSAcriptografado,LisbethSalandertevemedodequeomeninofosseterumataque.MastudoqueaconteceufoiAugustpegarumgizdecerapreto.No mesmo instante, um vento forte sacudiu a janela ampla da cozinha, fazendo August hesitar e

começarapassaramãoesquerda ritmadamentena superfíciedamesa.Entãocomeçouadesenhar,umrisco aqui, outro ali, depois pequenos círculos, queLisbeth achou que erambotões, depois umamão,detalhesdeumqueixo,umacamisadesabotoada.Emseguida,começouadesenharmaisrápido,atensãofoidesaparecendodeseucorpoeseusombrosrelaxaram.Comoseumaferidaabertativessecomeçadoacicatrizar.Masaindaassimomeninonãopareciatotalmentecalmo.Seusolhostinhamumbrilhodesofrimentoedevezemquandoeletremiaderepente.Massemdúvida

algodentrodelehaviaseapaziguado,eagoraelepegavaalgunslápisdecornovos,passandoadesenharum chão de tábuas de madeira, um piso de carvalho coberto por peças de um quebra-cabeça que,possivelmente, formariam uma cidade iluminada à noite. Mesmo a essa altura já estava claro que odesenhoseriatudo,menosagradável.Amãoeacamisadesabotoadaeramdeumhomemforteecomumabarrigasaliente.Ohomemestava

parado, dobrado como um canivete suíço e inclinado sobre uma pessoa pequena deitada no chão,espancando-a,umapessoaquenãoeravisívelpelasimplesrazãodeserelaquemobservavaacenaerecebiaosgolpes.Nãohaviadúvidadequeeraumdesenhodesagradáveldever.Maselenãopareciaestarrelacionadoaoassassino,apesardetambémrevelarumcriminoso.Bemno

centrododesenho,Lisbethobservouumrostofuriosoemolhadodesuor,ondecadarugaforadesenhadacom grande precisão. Lisbeth reconheceu o rosto, ainda que não assistisse a muitos filmes nemfrequentassecinemas.MesmoassimelasabiaqueeraorostodoatorLasseWestman,opadrastodeAugust,porissoelase

aproximoumaisdomeninoedisse,comumaraivaindignadaecerteira:—Nósnuncamaisvamosdeixarelefazerissodenovocomvocê!Nuncamais!

Page 210: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

21.23DENOVEMBRO

AlonaCasales entendeu que alguma coisa grave estava acontecendo quando viu a figura esguia docomandante Jonny Ingram se aproximar deEd theNed.Pelo seumodohesitante, estava claro que eletraziamásnotícias,oque,emcircunstânciasnormais,nãooincomodarianemumpouco.Jonny Ingramsempre tinhano rostoumesgarde satisfaçãoquandoapunhalavaalguémpelascostas.

ComEd,noentanto,eradiferente.AtéossuperioresmaisantigostemiamEd,quearmavaumaconfusãodos infernoscomquemmexessecomele,eJonnyIngramnãoerado tipoquegostavadeescândalosemenosaindadefazeropapeldeidiotanafrentedetodomundo.MasseeleiacomprarbrigacomEd,eraissoqueoaguardava.EnquantoEderafisicamenteforteedotipoexplosivo,JonnyIngrameraumrapazbem-apessoadode

classealta,pernasmagrasemodosligeiramenteafetados.Oponentederespeito,suainfluênciaalcançavadomíniosimportantes,fosseemWashingtonounomundodosnegócios.NaNSAelesóestavaabaixododiretor,CharlesO’Connor,emesmoqueJonnysemprefossevistocomumsorrisoabertoeparecendoumsujeitoagradávelqueelogiavatodomundo,essesorrisonuncachegavaaosolhosdele.JonnyIngrameratemidocomopoucosnaNSA.Eleconheciaopontofracodecadaumeeraresponsável,entreoutrasatividades,pela“monitoração

de tecnologiasestratégicas”,umamaneiracínicadedefiniradivisãodeespionagemindustrialdaNSA,quedavasuporteàindústriaamericanadealtatecnologiaemsuaconcorrêncianomercadointernacional.Masagora,alidiantedeEdcomseuternoelegante,ocorpodeJonnypareciaterencolhido,emesmo

sentadaatrintametrosdamesadeEd,Alonasabiaexatamenteoqueiaacontecer.Edestavaprestesaexplodir. Seu rosto cansado e pálido tinha começado a ficar vermelho, e de repente ele se levantou,exibindosuaimensabarrigaesuascostasassimétricas,berrandoaplenospulmões:—Seumerdaseboso!NinguémmaisalémdeEdchamariaJonnyIngramde“merdaseboso”,eAlonaoamouporisso.Augusttinhacomeçadoumnovodesenho.Elehaviaesboçadoalgumaslinhasnopapel.Agorapunhatantaforçaemseutraçoqueogizdecera

preto quebrou. Como na última vez, ele desenhava rápido, um detalhe aqui, outro ali, fragmentosdispersosiamseaproximandounsdosoutrosatéformaremumtodo.Denovo,omesmoquarto.Masoquebra-cabeçanochãoeraoutroe,dessavez,fácildereconhecer.Aliestavareproduzidoumcarrode

Page 211: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

corridavermelhoeumamultidãonasarquibancadas,e,acimadisso,viam-sedoishomensparados.UmdeleseraLasseWestmandenovo.Dessavezeleestavadecamisetaebermudaecomumolhar

meio estrábico, avermelhado, parecendo bêbado e meio tonto. Mas essa condição não tornava suasfeiçõesmaissuaves.Elebabava.Emesmoassimnãoeraafiguramaisassustadoradailustração.Haviaooutro homem. Seu olharmortiço brilhava de puro sadismo. Tinha a barba por fazer e também estavaalcoolizado. Seus lábios eram finos, quase invisíveis, e ele parecia estar chutandoAugust. Embora omeninonãoaparecessedenovonodesenho,aausênciadeleeraoqueotornavaextremamentepresente.—Queméesseoutro?—perguntouLisbeth.Augustnão respondeu,mas seusombros se sacudirame suaspernas se torcerame se cruzarampor

baixodamesa.—Queméesseoutro?—insistiuLisbeth,eAugustentãoescreveuemseudesenho,comsuacaligrafia

infantileumpoucotrêmula:

Roger.OnomenãodizianadaaLisbeth.EmFortMeade,algumashorasdepoisdeseushackersteremlimpadoasalaeidoembora,Edfoiatéa

mesadeAlona.Oestranhoéqueelenãopareciamais furiosonemofendido.Emvezdisso, tinhaumaexpressãodesafiadoraenemestavamaisreclamandodedornascostas.Traziaumcadernonamão,eumdeseussuspensóriosestavasolto.—Eaí,meuvelho?—eladisse.—Estoumorrendodecuriosidade.Oquefoiqueaconteceu?—Mederamumasférias—elerespondeu.—VoudiretodaquiparaEstocolmo.—Comtantoslugaresparair,Estocolmo.Nãoéfriodemaislánestaépoca?—Sim,muitofrio.—Masnaverdadevocênãoestáindoparaládeférias.—Muitocáentrenós,claroquenão.—Agorafiqueimaiscuriosaainda.—JonnyIngrammandouagenteabandonarainvestigação.Ohackerquefaçaoquequiser,agoranós

sóprecisamosécuidardeunspoucosvazamentosdesegurançaedepoiséparaesquecerdetudo.—Comoeleteveacoragemdeordenarumacoisadessas?—Elealegouqueéparanãopiorarascoisaseagentenãocorreroriscodealguémdescobrirsobreo

ataque.Seriadevastadorparanós sedescobrissemque fomoshackeados.Sem falar da satisfaçãoquemuitaspessoasiamterdesaberqueachefiaiamandarmuitagenteparaaruaparasalvarasaparências,inclusiveestequevosfala.—Elechegouateameaçar?—Meameaçouomaisquepôde.Dissequeseriaumahumilhaçãopúblicaparamim,queeu ia ser

processadoepunidorigorosamente.—Masvocênãoestáparecendomuitopreocupadocomisso.—Euvouacabarcomessecara.

Page 212: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Ecomovocêvaifazer isso?Esseimbecilestácheiodecontatosemtodosossetores,vocêsabedisso.—Eutambémtenhoosmeuscontatos.Alémdisso,agoranãoésóoIngramqueconheceospodresdos

outros.Omalditohackerteveagentilezadecolocarosnossoscomputadoresemredeenosdeixouverumpoucodanossaprópriaroupasuja.—Meioirônicoisso,hein?—Ecomo!Nadamelhor queumcriminosopara dedurar outro criminoso.No começonãovi nada

assimdetãoespecialcomparadoatudoqueandamosfazendo,masquandoexamineimaisdeperto…—Eaí?—Dinamitepura.—Comoassim?—Os subordinados do Jonny Ingram não guardam apenas informações confidenciais das empresas

para ajudar osnossosgrandes conglomerados.Muitasvezes, elesvendemessas informações a preçosaltíssimos,eessedinheironãovaiparaoscofresdaorganização…—…esimparaosbolsosdeles—completouAlona.—Exatamente.EutenhoprovassuficientesparamandarJoacimBarclayeBrianAbbotparaacadeia.—MeuDeus!—Isso já seriamais complicadocom Ingram.Tenhocertezadequeele éo cérebropor trásdessa

história.Senãoacoisatodanãofazsentido.Masinfelizmenteeuaindanãotenhonenhumaprova,oquepõetodaaoperaçãoemrisco.Claroquesempreháumachancedeexistiralgumacoisaconcretacontraelenoarquivoqueohackerbaixou,emboraeuduvide.Masagentenãovaiconseguirdecodificar.ÉumRSAcriptografadodojeitoqueodiabogosta.—Eoquevocêestápensandoemfazer?—ApertarocercoemvoltadoIngram.Deixarbemclaroparatodomundoqueosfuncionáriosdele

sãoaliadosdegrandescriminosos.—ComoosSpiders.—ComoosSpiders.Elesestãonomesmobarco.Foramsejuntarjustamentecomospiores.Eunãome

espantarianadaseelesestivessemenvolvidosaténoassassinatodoseuprofessordeEstocolmo.Elestinhampelomenosumgrandemotivoparaveressesujeitomorto.—Vocêsópodeestarbrincando.—Dejeitonenhum.Oseuprofessorsabiademuitacoisaquepoderiaincriminá-los.—Caralho!—Émaisoumenosporaí.—EagoravocêvaiparaEstocolmo,comosefosseumdetetiveparticular,investigaracoisatoda.—Nãocomoseeufosseumdetetiveparticular,Alona.Estouindocomtodaaretaguarda,eenquanto

euestivercuidandodissovoupegaraquelahackerdeumjeitoqueelanuncamaisvaiconseguirficarempé.—Espera,achoqueeuouvimal,Ed.Vocêdisseela?—Sim,minhacara,eudisseela.Ela!

Page 213: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

OsdesenhosdeAugustfizeramLisbethviajarnotempoemaisumavezelaselembroudaquelepunho

batendonocolchão,ritmadaeincansavelmente.Lembrou-sedasbatidassurdas,dosgemidosedochoroquevinhamdoquartoaolado.Lembrou-seda

épocaemqueviveranaLundagatan,quandoasrevistasemquadrinhoseasfantasiasdevingançaeramseuúnico refúgio.Mas logodeixoude ladoessas lembranças.Limpouseu ferimento, trocoude roupa,verificouseapistolaestavadevidamentecarregadaeentrounolinkPGP.AndreiZanderqueriasabercomoelesestavameelalhedeuumarespostacurta.Láfora,atempestade

sacudiaasárvoreseosarbustos.Serviu-sedeumadosedeuísque,pegouumpedaçodechocolate,foiatéavarandaedaliatéumapequenainclinaçãorochosa,ondefezumminuciosoreconhecimentodoterreno,sobretudodeumapequena fendana parte inferior da encosta.Chegou até a contar seus passos até lá,memorizandocadadetalhedaquelaárea.Quando voltou para casa, viu queAugust tinha feito um novo desenho de LasseWestman eRoger.

Lisbethachouqueomeninodeviaestar sentindonecessidadede tirar tudoaquilodedentrodele.MasAugustaindanãohaviadesenhadonadasobreomomentodoassassinato,nemumsórabisco.Seráquesuamentehaviabloqueadoaexperiência?Lisbethfoi invadidapelasensaçãodesconfortáveldequeo tempoestavapassandosemquenadase

resolvesse.LançouumolharpreocupadoparaAugust,paraseunovodesenhoeparaosnúmerosqueeleregistrara no papel, e por um minuto ou dois concentrou-se neles, analisando sua estrutura. Então,subitamenteidentificouumasequênciadenúmerosquenãopareciaemsintoniacomasdemais.Erarelativamentecurta:2305843008139952128.Dessaveznãoeraumnúmeroprimo,esim—oque

elaachoubrilhante—umnúmeroque,namaisperfeitaharmonia,eraasomadetodososseusdivisorespositivos.Emoutraspalavras,eraumnúmeroperfeito,assimcomoo6podeserdivididopor3,por2epor1e3+2+1=6.Lisbethsorriuaoperceberissoederepenteumaideiabeminteressantepassouporsuacabeça.—Agoravocêvaiterquemeexplicartudo—disseAlona.—Euexplico—respondeuEd.—E,mesmosabendoquecomvocêistonemseriapreciso,queroque

meprometanãocontarnadaparaninguém.—Claroqueeuprometo,seutonto.— Ótimo. Foi assim: depois que eu falei umas verdades para o Jonny Ingram, para manter as

aparências eu acabei fingindo que dava razão para ele. Falei até que estava agradecido por ele tercolocadoumpontofinalnasnossasinvestigações.Sejacomofor,agentenãoiaconseguirnada,eudisse,e de certo modo isso é a mais pura verdade. Tecnicamente falando, havíamos esgotado as nossaspossibilidades. Havíamos feito de tudo e mais um pouco, mas não adiantava nada. O hacker tinhacolocado informações falsas por toda parte, nos fazia cair em novas armadilhas e labirintos o tempotodo.Umdosmeus rapazesdissequemesmoque, contra todasasprevisões, agentechegasseao fim,aindaassimnãoíamosacreditarquetínhamosconseguido.Agenteiapensarqueeraumanovaarmadilha.Estávamos esperando tudo desse hacker,menos fraquezas e erros. Então, se continuássemos domodo

Page 214: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

usual,iríamosficaraliparasempre.—Masvocênãoémuitochegadoaomodousual.—Nãomesmo.Eu costumopôr fé em abordagensmais indiretas.Na verdade, nós não desistimos.

Continuamosfalandocomnossoscontatoseamigosdasempresasdesoftware.Fizemosnossasprópriasbuscas avançadas, escutas telefônicas e fomos atrás das nossas brechas. Sabe como é, num ataquesofisticado como esse que a gente sofreu, pode ter certeza de que há sempremuita pesquisa por trás.Algumasperguntasespecíficassãofeitas,determinadossitessãovisitados.Comisso,éinevitávelqueagenteacabeconhecendoalgumacoisadessetodo.Mas,acimadetudo,Alona,haviaumfatorpesandoanosso favor: a capacidade extraordinária desse hacker. Ela era tão grande, ele era um talento tãoinigualável, que isso reduziumuito o número de suspeitos. Imagina um criminoso que de repente saicorrendodacenadocrimeepercorrecemmetrosem9,7segundos.VocêconseguesabercomcertezaqueoculpadosópodeseroUsainBoltouumdeseusconcorrentes,nãoémesmo?—Entãoénessenível?—Hácoisasnesseataquequemedeixamdebocaaberta,eolhequeeu jávimuitacoisanaminha

vida.Por issoéqueagentededicoumuito tempo,muitomesmo,paraconversarcomoutroshackersecompessoasdedentrodessaindústria,parapodermosperguntar:gente,quemhojetemacapacidadedefazeralgograndeassim?Queméqueestádandoascartashojeemdia?Claroquetivemosquefazeressasperguntasdemodobemdissimulado,paraqueninguémdesconfiassedoquerealmentetinhaacontecidoconosco.Pormuitotempoficamosnamesma.Eracomodartirosnoescuroouberrarnumanoitevazia.Ninguémsabiadenadaoufingiaquenãosabia.Váriosnomesforammencionados,masnenhumpareciaserocorreto.PoralgumtempoachamosqueeraumrussochamadoJurijBogdanov,umex-drogadoqueconseguiaentraremqualquer lugare tambémhackear tudooque lhedessena telha.Quandoeleviviacomo mendigo em São Petersburgo, roubando carros com extrema facilidade, várias empresas desegurança tentaram contratar esse sujeito, que na época mais parecia um saco de ossos de quarentaquilos.Atémesmoopessoaldapolíciaedosserviçosdeinteligênciaqueriamtrazerocaraparaoladodeles,paraqueasorganizaçõescriminosasnãochegassemaeleprimeiro.Neméprecisodizerqueoshomensdaleiperderamessabatalha.HojeBogdanovestálivredasdrogas,ébem-sucedidoechegouacinquentaquilosdepele e osso.Temosquase certezadeque ele éumdos criminososda suagangue,Alona,porissoagentetambémacabouseinteressandoporele.Depoisdetodasasbuscasquefizemos,acabamospercebendoumaconexãocomosSpiders,masaí…—Vocêsnãoentenderamporqueumdelesirianosfornecernovaspistas?—Exatamente.Entãocontinuamosprocurandoe,depoisdeumtempo,apareceuoutrogruponasnossas

conversas.—Qual?— Eles se deram o nome de Hacker Republic e têm uma reputação incrível. São todos muito

competentesecuidadososcomsuascriptografias,esouobrigadoareconhecerquefazemissomuitobem.Nós emuitosoutroshackers já tentamosnos infiltrar nessegrupo, não sópara saberoque eles estãofazendo,mastambémparacontrataroscaras.Hojeabrigapelosmelhoreshackersécerrada.—Hoje,quandotodosnósviramoscriminosos.—É,talvezsim.Bom,dequalquermaneiraummontedegentenosdissequeénaHackerRepublicque

Page 215: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

estão os maiores talentos. E temmais. Corria um rumor de que eles estavam armando alguma coisagrandeequeumsujeitoconhecidocomoBobtheDog,queachamosquedeveestarligadoaessegrupo,ficoupesquisandoefazendoperguntassobreumdosnossosrapazes,oRichardFuller.VocêconheceoRichard?—Não.—Éummaníaco-depressivotodocheiodesiquevemmedandoumadordecabeçatremendahámuito

tempo.Ocasoclássicodefuncionárioquerepresentariscodesegurança,umcaravaidosoedescuidadoquandoestánafasemaníaca.Ouseja,operfilclássicoqueosgruposdehackerscostumamternamira,epara saber disso é necessário ter acesso a informações confidenciais. A saúde mental dele não éexatamenteotipodecoisaqueandanabocadopovo.Nemaprópriamãedeleparecesabermuitodisso.MaseuestourazoavelmenteconvencidodequeachavedeentradadelesnaNSAnãofoioFuller.Nósexaminamos cada arquivo que ele recebeu nos últimos tempos e não encontramos nada. Nós oinvestigamosdacabeçaaospés.AchoqueoRichardFullerfaziapartedosplanosdaHackerRepublicdesdeoinício.Nãoqueeutenhaalgumaprovacontraogrupo,nãotenhomesmo,masalgumacoisamedizqueessegrupoéoresponsávelpelainvasão,especialmentedepoisqueexcluímosaparticipaçãodealgumapotênciaestrangeiranaoperação.—Vocêfaloudeumagarota.—Isso.Quandoinvestigamosessegrupo,agentelevantoutodasasinformaçõespossíveissobreeles,

apesardenãotersidonadafácilsepararosboatosdosfatosreais.Masteveumacoisaqueapareceucomtamanhaconstância,quenofimeunãotivemaiscomoquestionar.—Eoquefoi?—AgrandeestreladogrupoRepúblicadosHackerséalguémqueadotaonomeWasp.—Wasp?—Exatamente.Nãovou te aborrecer comdetalhes técnicos,masWasp éumaespéciede lenda em

algunscírculos,eumadasrazõeséasuacapacidadedefazerpoucodosmétodostradicionais.AlguémjádissequesepodereconheceramãodeWaspnumataquehackerdamesmaformaqueseidentificaMozartemumloopmelódico.Wasptemumestiloinconfundível,eissofoiumadasprimeirascoisasqueumdosmeusrapazesdissedepoisdeterestudadooataquequesofremos:“Issoédiferentedetudoquejávimosatéagora,uma formanova, surpreendente,umacoisaaomesmo tempo tradicional e inusitada, e aindaassimdiretaeeficiente”.—Ouseja,coisadegênio.— Sem dúvida. E assim começamos a procurar minuciosamente tudo o que pudéssemos encontrar

sobreesseWaspnainternet,paratomarmosadianteira.Eninguémficounemumpoucosurpresoquandonãoachamosabsolutamentenada.Essapessoanãodeixarastros,nadaabertoatrásdesi.Massabeoqueacabeifazendo?—disseEd,cheiodesi.—Oquê?—FuipesquisaraorigemdonomeWasp.—Claroquealgumacoisaalémdosignificadoliteral,“vespa”.—Isso,exatamente,masnãoporqueeuoualguémachassequeissoirianoslevaraalgumlugar.Mas

comoeujáfalei,senãodáparaandarpelaestradaprincipal,nãocustaprocurarumarotaalternativanas

Page 216: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

estradaspróximas.Nuncasesabeoqueagentepodeencontrar.EoqueeuacabeiencontrandofoiqueWasppodesignificarqualquercoisa.WaspéonomedeumaviãodeguerrabritânicodaSegundaGuerraMundial, é uma comédia de Aristófanes, um curta-metragem bem conhecido de 1915, é uma revistasatírica da San Francisco do século XIX e também, é claro, a abreviação de White Anglo-SaxonProtestant.Sóqueachei todasessasreferênciasmeiosofisticadasparaumgêniodoshackers.Nãotemnadaavercomaculturadessemeio.Esabeoqueeuacheiqueencaixou?—Não.—Wasp,aheroínadaMarvelComics,umadasfundadorasdosVingadores.—Aqueladosfilmes.—Sim,domesmogrupodoThor,doHomemdeFerro,doCapitãoAméricaemaisunsoutros.Nos

primeirosquadrinhosoriginais,elainclusiveeraalíderdogrupo.Umapersonagembemlegal,tenhoqueadmitir,meio roqueira, rebelde, sevestedepretoedourado, temasasde inseto,cabelopretoecurto,todaseguradesi.Umagarotaoprimidaquesabesedefenderedaro trocoequetemacapacidadedemudar de tamanho. Todas as fontes que consultamos concordam que é essa a Wasp que estamosprocurando.Nãosignificaqueessapessoa,hoje,sejaumasuperfãdaMarvel;nãodeveserfaztempo,jáquenãoédeagoraqueessenomeandacirculando.Talvez seja algumacoisa ligadaà infânciaouumtoquedeironia,nadaquesignifiquemuito.Sóque…—Oquê?—Só que acabei descobrindo que essa rede criminosa que aWasp andou investigando também já

adotou apelidos dos personagens daMarvel uma época. Agora passou dessa fase. Às vezes eles sechamamdeTheSpiderSociety,nãoéisso?—Sim,mas tenho impressãodequeé sóumabrincadeiraqueeles fazemconosco,queosestamos

monitorando.—Claro, também acho.Mas até brincadeiras deixam suas pistas ou escondem alguma coisa séria.

VocêsabeoqueogrupoTheSpiderSocietydaMarvelfaz?—Não.—EleslutamcontraaSisterhoodoftheWasp.—Entendi. É um detalhe para a gente não esquecermesmo,mas ainda não sei como isso pode te

ajudar.—Vocêjávaificarsabendo.Nãoquerircomigoatéomeucarro?Euprecisoestarnoaeroportodaqui

apouco.MikaelBlomkvistsentiaosolhospesados.Nãoeratãotarde,masseucorpotodolheenviavasinaisde

quenãoestavaaguentandomais.Precisavairparacasadormirumpoucoedepoisrecomeçarotrabalhoànoiteounodiaseguintecedo.Talvezajudassesenocaminhoeleparasseparatomarumascervejas.Afaltadesonofaziasuacabeçadoereeleaindalutavaparaafastaralgumaslembrançasetemores.TalvezpudessepedirqueAndreioacompanhasse.Olhouparaoseucolega.Andreitinhajuventudeeenergiadesobra.Estavasentadoaliperto,escrevendonocomputadorcomo

setivesseacabadodechegar,edevezemquandofolheandosuasanotaçõescomentusiasmo.Noentanto

Page 217: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

estavanaredaçãodesdeascincodamanhã.Eramquinzeparaasseisdatardeeelenãotinhafeitomuitaspausas.—Então,Andrei?Quetalirmostomarumacervejaecomermosalgumacoisaenquantodiscutimoso

caso?Andrei pareceu não ter entendido.Mas em seguida ergueu a cabeça e já não parecia tão cheio de

disposição.Fezumacaretaenquantomassageavaoombro.—Oquê?…Bem…talvez…—disse,hesitante.—Vouconsiderarissoumsim.QuetaloFolkoperan?OFolkoperaneraumbarerestaurantequeficavanaHornsgatan,pertodali, frequentadopormuitos

jornalistasepessoasligadasàarteeàculturadacidade.—Éque…—disseAndrei.—Oquê?—Équeeutenhoesseperfilparaescrever,édeummarchanddoBukowskisquepegouumtremna

estaçãocentraldeMalmöenuncamaisfoivisto.Erikaachouquecabianomix.—MeuDeus,quecoisasessamulherteobrigaafazer!— Bem, para ser sincero não penso assim, mas de fato não estou conseguindo encaixar na nossa

história.Estáconfuso,artificial.—Vocêquerqueeudêumaolhada?—Euadoraria,masantesprecisoescrevermais.Voumorrerdevergonhasevocêlerdojeitoqueestá.— Então vamos esperar. Mas qual é, Andrei? Vamos sair pelo menos para comer alguma coisa.

Depoisvocêvoltaecontinuatrabalhando,seprecisarmesmo—disseMikael.OlhouparaAndrei.Eleguardariaessalembrançapormuitotempo.Andreiestavacomumblazermarromexadrezeuma

camisabrancaabotoadaatéocolarinho.Pareciaumartistadecinema,umjovemAntonioBanderas,umBanderastodoindeciso.—Achomelhoreuficareresolveristoaquideumavez—disse,hesitante.—Eutenhocomidaaqui

nofreezer,depoisesquentonomicro-ondas.Mikael ficoupensandosedeviaapelarparaasuacondiçãodehomemmaisvelhoesuaposiçãode

chefeparafazercomqueeleoacompanhassenumacerveja,masacaboudizendo:—Estácerto.Amanhãdemanhãagentesevêentão.Eosdois?Comoelesestão indo lá?Nenhum

retratofaladodocriminosoainda?—Parecequenão.—Amanhã temosquepensar emoutra solução.Secuida.—Mikael sedespediuevestiuocasaco

parasair.LisbethselembroudealgumacoisaqueelatinhalidosobreossavantsnaSciencehaviamuitotempo.

Era um artigo do matemático italiano Enrico Bombieri, um especialista em teoria dos números, quemencionavaumapassagemdeOhomemqueconfundiusuamulhercomumchapéu,deOliverSacks,emque dois gêmeos autistas e portadores de deficiência mental ficavam confortavelmente sentados,balbuciandonúmerosprimoselevadosumparaooutro,comosediantedosolhosdeleshouvesseuma

Page 218: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

espéciedepainelmatemáticointerioroucomoseosdoistivessemencontradoumatalhosecretoparaomistériodosnúmeros.Obviamente, o que esses gêmeos eram capazes de fazer e o queLisbeth pretendia conseguir agora

eram coisas diferentes.Mesmo assim achava que havia uma similaridade e estava decidida a tentar,mesmoquenofundoestivesseumpoucocética.Assim,acessounovamenteoarquivocriptografadodaNSAeseuprogramadefatoraçãodecurvaselípticas.Emseguidavirou-separaAugust,quelherespondeubalançandoocorpoparaafrenteeparatrás.—Númerosprimos—eladisse.—Vocêadoranúmerosprimos.Augustnãoolhouparaelanemparoudesebalançar.—Eutambémgostodeles—eladisse.—Mastemumacoisaquemeinteressamaisagora,queéa

fatoração.Vocêsabeoqueé?Comocorpobalançandoeosolhosfixosnamesa,Augustdavaaimpressãodenãoestarentendendo.—Afatoraçãoéaexpressãodeumnúmerocomooprodutodenúmerosprimos.Nessecontexto,eu

estouchamandodeprodutooresultadodeumamultiplicação.Estáentendendo?AugustnãopareciaestarouvindoeLisbethpensousenãodeviasimplesmentecalaraboca.—Segundo os princípios fundamentais da aritmética, cada número inteiro temuma única fatoração

primal, e isso é superbacana. Podemos obter um número simples como o 24 de muitas formas. Porexemploatravésdamultiplicaçãode12por2,oude3por8,oude4por6.Massóháumamaneiradefatoraressenúmerocomnúmerosprimos,queé2x2x2x3.Estáacompanhando?Todosessesnúmerostêmumaúnica fatoração.Oproblemaéqueé fácilmultiplicarnúmerosprimosparaproduzirnúmerosaltos,maséquaseimpossívelfazerocontrário,partirdoresultadoparachegaraosnúmerosprimos.Sóque uma pessoa bem malvada fez isso numa mensagem secreta, entendeu? É mais ou menos comoprepararumsucoouumabebida.Éfácilfazer,masdifícildesfazer.Augustnãopiscou,nãodisseumapalavra,maspelomenosnãoestavamaisbalançandoocorpo.—Vamosversevocêébomnafatoraçãodosprimos,August?Vamos?Augustnãosemoveunemumcentímetro.—Possoentenderissocomoumsim?Vamoscomeçarcomonúmero456?OolhardeAugustsetornoubrilhante,ausente,eLisbethmaisdoquenuncaachouaquelasuaideiaum

absurdo.Estavafrioeventavamuito,masMikaelachouqueoarfriolhefaziabemeodeixavamaisanimado.

NãohaviamuitagentenaruaeelecomeçouapensaremsuafilhaPernillaenoqueelatinhaditosobreescrever,queelaqueria“escreverdeverdade”.PensoutambémemLisbethenogaroto.Oqueosdoisestariamfazendoagora?NasubidaacaminhodeHornsgatspuckeln,parouuminstanteemfrenteaumavitrineparaobservarumquadro.Apinturamostravapessoasfelizesedescontraídasnumafesta,enaquelemomentopareceuaMikael,

provavelmente de forma enganosa, que fazia muito tempo que ele não se via daquele jeito, com umdrinquenamãoesempreocupaçãonenhuma,eporumsegundodesejouestarbemlongedali.Derepente,sentiuumarrepionocorpoeumasensaçãofortedeestarsendoseguido.Quandosevirouparaolharem

Page 219: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

volta,viuqueeraumalarmefalso,talvezconsequênciadetudoquehaviaacontecidocomelenosúltimosdias.Aúnicapessoaali,atrásdele,eraumajovemincrivelmentebonita,comumcasacolongovermelho,

cabeloloirosoltoaovento,quesorriuparaeledeumjeitomeiotímido.Mikaelretribuiucomummeiosorriso,pensandoemcontinuarsuacaminhada.Seusolhos,porém,sedemoraramumpoucomaisnela,quemsabeintrigados,eMikaelficoupensandoseajovemnãoseriaumaespéciedealucinaçãoquelogoiasetransformaremoutrapessoa,emalguémmaiscomum.Quantomaiso tempopassava,mais fascinanteela ia se tornandoa seusolhoseMikael foi ficando

comoquehipnotizadopor sua beleza, como se ela fosse umagrande estrela quehavia se perdido emmeio àgente comum, e a verdade éque exatamente ali, naquelesprimeiros instantes deperplexidade,Mikaelmalseriacapazdedescrevê-laoudese lembrardeumminúsculodetalhesequerdaaparênciadela.Agarotapareciaumestereótipo,uma ilustraçãodeslumbrante saídadeumapáginade revistademoda.—Precisadealgumaajuda?—eleperguntou.—Não,não—elarespondeu,semostrandodenovoumpoucoenvergonhada,enãohaviacomonegar:

suainibiçãoeracativante.Nãoeraotipodemulherquedeviasertímida.Elapoderiateromundoaseuspés,sequisesse.—Entãoboanoite—eledisse,sevirandoparairembora,maselaodetevecomumpigarronervoso.—Desculpe,mas…vocênãoéoMikaelBlomkvist?—perguntoucomumtomdeincertezanavoz,

baixandoosolhosparaosparalelepípedosdarua.—Sim,soueu—elerespondeu,dandoumsorrisoeducado.Eleseesforçavaparacontinuarsorrindodaquelejeitoeducado,comofariacomqualquerpessoa.— Eu só queria dizer que admiro muito você— ela prosseguiu, levantando a cabeça devagar e

dirigindoumolharsombrioparaofundodosolhosdele.—Ficofelizdeouvirisso.Masjáfazmuitotempoquenãoescrevonadainteressante.Evocê?Quemé

você?—MeunomeéRebeckaSvensson.EumoronaSuíçaatualmente.—Eveiovisitarseupaís.—Infelizmenteporpoucotempo.SintosaudadesdaSuécia.AtédeEstocolmoemnovembro.—Agoravocêexagerou.—Masnãoéassimmesmo,quandoagenteestácomsaudadesdecasa?—Como?—Agentesentesaudadesatédascoisasruins.—Éverdade.—Massabeoqueeufaço?Euacompanhoasnotíciassuecas.Achoquenosúltimosanoslitodasas

reportagensdaMillennium—agarotadisse,eMikaelolhouparaelaoutravez,prestandoatençãoemcadadetalhedesuaroupa,desdeosapatopretodesaltoaltoatéoxalexadrezdecashmere,tudodealtaqualidade,peçascaraseexclusivas.RebeckaSvenssonnão tinhaoperfilda leitora típicadaMillennium.Masnãohavia razãoparaele

discriminarsuecosricosquemoravamnoexterior.

Page 220: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—VocêtrabalhanaSuíça?—eleperguntou.—Não,eusouviúva.—Entendo.—Àsvezesmesintoentediadademaisaqui.Vocêestáindoparaalgumlugar?— Eu estava pensando em beber e comer alguma coisa — ele respondeu, se arrependendo

imediatamente.Pareciaumconvite,maseraamaispuraverdade.Elepretendiamesmojantar.—Possolhefazercompanhia?—elaperguntou.— Claro — ele respondeu, hesitante, e então ela tocou rápido na mão dele, aparentemente sem

segundasintenções,oupelomenosfoinissoqueelequisacreditar.Elaaindapareciaacanhada.OdoisforamcaminhandolentamenteporHornsgatspuckeln,passandoporváriasgalerias.—Quedelíciaestarandandoporaquicomvocê—eladisse.—Foimeioinesperado.—Nãofoibemoqueeupenseiquefosseacontecerquandoacordeihoje.—Eoquevocêpensou?—Queseriamaisumdiachato,comosempre.—Nãoseisehojeeusouacompanhiamais indicada—eledisse.—Estoumuitoenvolvidonuma

novahistória.—Vocêandatrabalhandodemais?—Achoquesim.—Entãoprecisadeumapequenapausa—eladisse, sorrindoparaMikaeldeum jeitoencantador,

carregadodedesejoedealgumtipodesugestão.Naqueleinstante,eleteveasensaçãodequeaconheciadealgumlugar,comosejátivessevistoaquelesorriso,masemoutroformato,numespelhodistorcido.—Nósjánosencontramosantes?—eleperguntou.—Achoquenão.Claroqueeujávivocêumaporçãodevezesnatelevisãoenosjornais.—VocênuncamorouaquiemEstocolmo?—Sóquandoeuerapequena.—Ondevocêmorava?ElaapontounadireçãodaHornsgatan.—Foiumaépocamaravilhosa—disse.—Nossopaitomavacontadagente,cuidavadetudo.Devez

emquandopensonisso.Sintosaudadesdele.—Elejáfaleceu?—Morreumuitojovem.—Umapena.—É,àsvezesaindasintomuitafaltadele.Paraondeestamosindo?—Nãoseibem—eledisse.—TemumpublogoalinaBellmansgatan,oBishop’sArms.Conheçoo

dono.Éumbomlugar.—Tenhocerteza…Seurostovoltouaassumiraquelearenvergonhadoetímidoemaisumavezsuamãotocoudelevenos

dedosdele.DessavezMikaelnãotevecertezasetinhasidoporacasooudepropósito.—Ouseráquenãoéumlugarmuitoeleganteparavocê?

Page 221: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Não,estáótimo—eladisse,comoquesedesculpando.—Équecostumomesentirexpostaempubs.Jáencontreimuitoscafajestesneles.—Euimagino…—Seráque…—Oquê?Elaolhouparaochãoecoroudenovo.Aprincípioeleachouqueestavavendocoisas,poisadultos

não coravam daquele jeito, certo? Mas aquela Rebecka Svensson, que parecia tão incrivelmentesedutora,realmenteenrubesciacomoumagarotadeescola.—Vocênãogostariademeconvidarpara ir à sua casa tomarumaouduas taçasdevinho?—ela

propôs.—Seriabemmaisagradável.—Bem…Elehesitou.Precisavadormirumpoucoparaestaremformanodiaseguinte.Aindaassimrespondeu:—Claro.TenhoumagarrafadeBaroloemcasa.—Porinstanteseleachouquealgumacoisamuito

excitantepodiaestarprestesaacontecer,comoseestivessemuitopróximodeembarcaremumaaventura.Suainsegurança,porém,nãotinhadesaparecido.Aprincípio,nãoentendeuporquê.Normalmentenão

tinhanenhumproblemacomessetipodesituaçãoe,paradizeraverdade,lidavabemcomoassédiodasmulheres.Noentanto foiobrigadoaadmitirquenaquelecaso tudoestavaacontecendo rápidodemais.Mas ele também já havia passado por situações semelhantes e costumava enfrentá-las demodomuitoprático. Portanto, não, não era a velocidade com que aquele encontro estava acontecendo o que oincomodava.Ounãoapenasisso.AlgumacoisanaprópriaRebeckaSvenssonoinquietava.Nãoeraapenasofatodeelaserjovemedeumabelezaestonteante,edequedeviatercoisasmelhores

parafazerdoquecaçarjornalistassuadoseexaustosdemeia-idade.Haviaalgonoolhardelaenomodocomo passava da confiança à timidez e depois da timidez à confiança de novo, além daqueleaparentementecasualtoquenasmãosdele.Tudoqueaprincípiotinhaparecidotãoirresistívelcomeçouaparecercadavezmaispremeditado.—Vocêémuitogentil—eladisse.—Prometonãoficaratémuitotarde.Nãoqueroprejudicarasua

história.—Euassumoaresponsabilidadepeloestragonaminhahistória—elerespondeu,tentandosorrir.Seu sorriso foi tudo menos espontâneo, e nesse instante Mikael captou algo estranho no olhar de

Rebecka,uma frieza repentinaquenumsegundo,porém, se transformounooposto, emafeiçãoe caloroutravez, comose ela fosseumaatriz famosa fazendoumademonstraçãode seu talento.Entãoele seconvenceudequerealmentehaviaalgoestranho.Apenasisso.Nãofaziaideiadoqueseriae,pelomenosporenquanto,nãopensavaemdeixarclaraasuadesconfiança.Primeiroqueriaentender.Oqueestavaacontecendo,afinal?Mikaelsentiuqueeraimportanteparaeleresolveraqueleenigma.ContinuaramandandopelaBellmansgatan, emboraMikaelnãopretendessemais levá-laparaacasa

dele.Masprecisavaganhartempoparadescobriroqueestavaacontecendo,eolhoudenovoparaela.Defatoeraumamulheradorável.Masnãotinhasidoabelezaaprimeiracoisaqueoatraíranela.Tinhasidoalgomaisdoque isso,algomais fugidioque transportousuamenteparaummundomuitodiferentedoglamorosomundodasrevistasdemoda.NaqueleinstanteRebeckaSvenssoneraumenigmaqueeledevia

Page 222: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

resolver.—Queparteagradáveldacidade…—elacomentou.—Nãoédaspiores—elerespondeu,pensativo,olhandonadireçãodoBishop’sArms.Na esquina oposta aoBishop’s, um pouco acima na rua, um homemmagro de boné preto e óculos

escurosconsultavaummapa.Nãoseriadifíciltomá-loporumturista.Eleseguravaumamaletadecouromarrom numa das mãos, usava tênis brancos e jaqueta preta de couro com gola de pele. Emcircunstânciasnormais,Mikaelnemteriareparadonele.Mas agora que ele tinha deixado de ser um observador inocente, achou que alguma coisa nos

movimentosdohomempareciatensaeartificial.ClaroquepodiasersóporqueMikaeltinhacomeçadoasuspeitar de algo.Mas ele realmente achou que o jeito levemente casual como o homem segurava econsultavaomapapareciaumaencenação,eagoraohomemtinhaatémesmoerguidoacabeçaparaolharMikaeleamulher.Eleosanalisoudetidamenteporalgunssegundos,depoisvoltouaolharparaoseumapa.Masnãofez

issomuitobem.Ohomempareciaincomodado,comosequisesseesconderorostocomoboné,ealgonessegesto,namaneiracomoeleinclinouquasetimidamenteacabeça,lembrouaMikaeloutracoisa,eelemaisumavezlançouumolharavaliadorparaosolhosescurosdeRebeckaSvensson.Olhava-a com insistência, de forma profunda, e ela lhe devolveu um olhar cheio de afeição, que

Mikaelnãoretribuiu.Aocontrário,analisou-acomseriedadeeaindamaisdeterminaçãoeconcentração.Então, nomesmo instante a expressão deRebecka se tornou fria, e foi só nessemomento queMikaelretribuiuosorrisodela.Eelesorriuporquederepenteafichatinhacaído.

Page 223: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

22.NOITEDE23DENOVEMBRO(HORÁRIOSUECO)

Lisbethselevantoudamesaredonda.NãoqueriamaisincomodarAugust.Omeninojásofriapressãosuficienteeaideiadelahaviafracassado.Étípicoaspessoasdespejaremgrandesexpectativassobreossavants.OqueAugusttinhafeitocom

osnúmerosjáerabemimpressionante,eLisbethfoiseencaminhandoparaavarandaenquantoapalpavacom cuidado seu ferimento, que ainda doía muito. Então ouviu um ruído atrás de si, como alguémraspandonumpapelapressadamenteevoltouparaamesa.Eemseguida,deuumsorriso.Augusttinhaescrito:2333319Lisbeth se sentou perto dele e, dessa vez sem encarar o menino, disse: — Muito bem! Estou

impressionada.Masvamosdificultarumpoucomaisascoisas.Tente18206927.Augustestavacurvadosobreamesa,eLisbethachouquepodiaterexageradoaolhedar,direto,um

númerodeoitodígitos.Se,noentanto,elesquisessemteramínimachancedeprogredir,precisariamirmuitoalémdisso,eelanãosesurpreendeuquandoviuocorpodeAugustbalançandoparaafrenteeparatrásdenovo,nervosamente.Algunssegundosdepoiseleseinclinousobreamesaeescreveunafolhadepapel:941931933—Muitobem!Quetal971230541?Augustescreveu:98339913997.—Grande!—disseLisbeth,propondooutrosdesafiosaogaroto.AlonaeEdestavamdoladodeforadoedifíciopretoemformadecubocomsuasparedesdevidro

espelhado, emFortMeade,noestacionamento lotado,nãomuitodistantedogrande radomo, comsuasantenasesatélites.Edgiravanervosamenteaschavesdeseucarronumadasmãos,observandoaflorestaqueoscircundavaparaalémdacercaelétrica.Precisavairlogoparaoaeroportoedissequejáestavaatrasado.MasAlonanãoqueriadeixá-lopartir.Elabalançavaacabeça,comamãopousadanoombrodele.—Quecoisamaisdoentia!—Comcertezaébemforadocomum—eledisse.— Então, cada pseudônimo que pegamos no grupo, Spider, Thanos, Enchantress, Zemo, Alkhema,

Cycloneetodososoutros,naverdadesão…

Page 224: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—…inimigosdaWaspnosprimeirosquadrinhosdasérie.Éissoaí.—Quemaluquice!—Umpsicólogoadorariaessematerial.—Sópodeseralgumtipodefixação.—Comcerteza.Eutenhoasensaçãodequeexisteumódiopesadoporlá.—Prometetomarbastantecuidado?—Nãoseesqueçadequeeujáfuimembrodeumagangue.—Masfoihámuitotempo,Ed,muitosquilosatrás.—Nãotemnadaavercompeso.Écomosedizporaí:“Vocêpodetirarocaradogueto…”.—…“masnãopodetiraroguetodocara”—completouAlona.—Agentenuncase livradopassado.Alémdisso,voureceberajudaemEstocolmo.Eles têmtanto

interessequantoeuemacabarcomessehackerdeumavezportodas.—EseoJonnyIngramdescobrir?—Aínãoserianadabom.Mas,comovocêpode imaginar,andeipreparandoo terreno.Até troquei

umaouduaspalavrinhascomoO’Connor.—Eubemquedesconfiei.Possoteajudarcomalgumacoisa?—Pode.—Diga.—OpessoaldoJonnyIngramparecequeestápordentrodetodaainvestigaçãodapolíciasueca.—Vocêdesconfiaqueelesestejamespionandoapolíciasueca?—Ouissoouelestêmuminformanteemalgumlugar,porexemploalgumaalmaambiciosadaPolícia

deSegurançasueca.Seeupuservocêemcontatocomdoisdosmeusmelhoreshackers,vocêdariaumainvestigadanissopramim?—Parecearriscado.—Estácerto,esqueça.—Não,eugosteidaideia.—Obrigado,Alona.Eumandomaisinformações.—Boaviagementão!—eladisse.Edsorriucomarconfiante,entrounocarroepartiu.Aorepassaroquetinhaacontecido,Mikaelnãoconseguiaexplicarcomoelehaviasedadocontade

tudo.Talvez tivesse sidoalgumacoisa aomesmo tempodesconhecidae familiarno rostodeRebeckaSvensson, e quando a total harmonia daquele rosto lhe lembrou seu oposto eMikael juntou tudo comoutrospressentimentosesuspeitasquevieramàsuamenteenquantotrabalhavaemseuartigo,foiqueeletevearesposta.Aindanãopossuíatodasasrespostas,masagoratinhacertezadequealgoestavamuitoerrado.O homem da esquina que ele agora via se afastando com suamaletamarrom e seumapa era sem

sombra de dúvida o mesmo que as câmeras de segurança haviam flagrado na casa de Balder emSaltsjöbaden.Comoera altamente improvávelqueohomemestivesse lá apenaspor coincidência, por

Page 225: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

algunssegundosMikaelpermaneceuquieto,parado,refletindo.Emseguida,sevoltouparaajovemquediziasechamarRebeckaSvenssonedisse, tentandodemonstrarautoconfiança:—Seuamigoestáindoembora.—Meuamigo?—Asurpresadelapareceuverdadeira.—Comoassim?—Aquele lá—eledisse, apontandoparaascostasmagrasdohomemque já iadesaparecendodo

campodevisãodeles,meioclaudicante,rumoàTavastgatan.—NãoconheçoninguémaquiemEstocolmo…Vocêestábrincandocomigo?—Oquevocêquerdemim?—Eusóqueriateconhecermelhor,Mikael—elarespondeu,fazendoumgestodequemiadesabotoar

ablusa.—Podeparar com isto!—ele exclamoucom firmeza e ia começar a dizer a elaoque ele estava

achando,quandoRebeckaoolhoudeumjeitotãofrágilecomovente,queodeixoucompletamentesemação,fazendo-oseesquecerdoqueiadizer,eporummomentoeleachouquehaviaseenganado.—Vocêestázangadocomigo?—elaperguntoucomarmagoado.—Não,éque…—Oquê?—Eunãoconfioemvocê—eledisse,deumjeitomaisgrosseirodoquepretendia.Elasorriumelancolicamente.— Bem que eu notei que você não estava inteiro aqui, Mikael, que você não estava sendo você.

Melhornosvermosoutrodia.Eladeuumbeijoemseurostotãorápidaediscretamente,queelemaltevetempodeimpedi-la.Em

seguidaacenouparaeledeummodosedutoredesapareceuladeiraacimacomseusapatodesaltoalto,tão segura de si e tranquila como se nada no mundo a preocupasse. Por um momento Mikael ficoupensando se não deveria detê-la e encontrar alguma forma de interrogá-la, mas depois percebeu ainutilidadedaquiloedecidiuapenassegui-la.Sabiaqueeraloucura,masnãoviaoutrasolução.Deixou-adesaparecermaisacimanaruaedepois

foi atrás dela, apressando o passo até o cruzamento, convencido de que a jovem não teria idomuitolonge.Masaochegarlánãoviunemsinaldela.Nemelanemohomemestavamporali,comoseaterraostivesseengolido.Aruaestavavazia,anãoserporumaBMWpretatentandoestacionarmaisadianteeporumrapazdecavanhaqueecomumantigocasacoafegãoquevinhacaminhandonosentidodeledooutroladodarua.Paraondeosdois teriam ido?Alinãoexistiamvielasporonde seevadir,nenhumbecoescondido.

Teriamentradoemalgumprédio?MikaeldesceupelaTorkelKnutssonsgatan,olhandoparaaesquerdaeparaadireita.Nada.PassoupeloantigoSamirsGryta,quenopassadotinhasidoseulugarfavoritoequeagora se chamava Tabbouli e era um restaurante libanês, onde tanto ela quanto o homem da esquinapoderiamterpensadoemseesconder.SebemqueMikaelnãoentendiacomoelateriatidotempodechegaratéalisemqueeleavisse,jáque

aestavaseguindobemdeperto.Ondediaboselaestava?Seráqueelaeohomemoestariamobservandodealgumlugar?Porduasvezesseviroudepressa,coma impressãodequealguémtinhasurgidoatrásdele,eumavezaté saltouquandosentiuumarrepionocorpoporcausadasensaçãodequealguémo

Page 226: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

observavaatravésdeumamiratelescópica.Maspelojeitoeraumalarmefalso.Ohomemeamulhernãoestavamàvista,equandoeleporfimdesistiudeprocurá-losecomeçoua

voltar para casa, teve o pressentimento de haver escapado de um grande perigo. Não sabia se essasuspeitatinhabasesólida,masofatoéqueseucoraçãobatiaforteesuagargantaestavaseca.Elenãocostumavaseassustarcomfacilidade,masagoracaminhavaamedrontadoporumaruatotalmentevazia.Nãodavaparaentender.AúnicacoisaqueeledefatoentendiaeraanecessidadedefalarcomHolgerPalmgren,oex-tutorde

Lisbeth.Antes,porém,iriacumprirseudeverdecidadão.SeohomemqueeleacabaradevernaruaeraamesmapessoaqueeletinhavistonascâmerasdesegurançadacasadeBalder,ehouvessepelomenosuma pequena chance de ele ser encontrado, a polícia precisava saber disso. Telefonou para JanBublanski,enãofoinadafácilconvenceroinspetor.Nãoforafácilconvencernemasimesmo.MasprovavelmenteMikaelaindatinhaalgumareservade

credibilidade com que contar, embora ultimamente tivesse sido obrigado a contornar um pouco averdade.Bublanskidissequemandariaumaunidadeaolocal.—Porqueeleestariaaínoseubairro?—Nãosei,masachoquenãodóinadaprocurá-lo.—É,achoquenão.—Boasorte,então!—ÉumverdadeirodesastreAugustBalderaindaestarperdidoporaí—acrescentouBublanskiem

tomdereprimenda.—Eéumdesastreaindamaiorovazamentodainformaçãotervindodevocês—rebateuMikael.—Poislheinformoquejáidentificamosdeondevinhaonossovazamento.—Émesmo?Issoéfantástico.—Infelizmentenãoé tão fantásticoassim.Achamosquepode terhavidováriosoutrosvazamentos,

embora,comexceçãodesteúltimo,amaioriasejarelativamenteinofensiva.—Entãovocêsprecisamseassegurardequeencontraramoinformantecerto.—Estamostrabalhandomuitonisso.Começamosasuspeitarque…—Oquê?—Nada…—Tudobem,vocênãoéobrigadoamecontar.—Vivemosnummundodoente,Mikael.—Sério?—Ummundoemqueparavocêsemantersaudávelvocêprecisaserparanoico.—Vocêdevetertodaarazão.Boanoite,inspetor!—Boanoite,Mikael!Nãovámefazernenhumabesteira.—Voutentar.Mikael atravessou a Ringvägen e desceu para o metrô. Pegou a linha vermelha para Norsborg e

desembarcouemLiljeholmen,ondeHolgerPalmgren,faziaalgunsanos,moravanumpequenoemoderno

Page 227: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

apartamentosemportaria.HolgerPalmgrenpareceuassustadoaoouviravozdeMikaelpelointerfone,masassimqueelegarantiuqueestavatudobemcomLisbeth—Mikaeltorciaparanãoestarmentindoaoafirmarisso—,sentiuqueeramaisdoquebem-vindo.HolgerPalmgreneraumadvogadoaposentadoquehaviasidooresponsávellegalporLisbethdesde

que ela tinha treze anos e fora internada na clínica psiquiátrica infantil do hospital Sankt Stefan, emUppsala.Holgernãoenvelhecerabem, tinhasobrevividoadoisoutrêsderrames.Nosúltimostempos,vinhasemovimentandocomdificuldade,eprecisavadaajudadeumandador.O ladoesquerdodeseurostoestavaparalisadoeamãoesquerdaperderaa função.Massuamente

mostrava-seativaetinhaumamemóriasensacional,principalmentepararesgatareventosdopassadodeLisbethSalander.NinguémconheciaLisbethcomoele.Palmgrenforabem-sucedidocomelaonde todosospsiquiatrashaviamfalhado,ou talvezondenem

tivessemseesforçadoparaobtersucesso.Depoisdeumainfânciainfernal,emqueLisbethperderatodaaconfiançanosadultoseeminstituições,Holgerconseguirasetornaralguémpróximodelaefazê-lafalar.Mikaelviaissocomoumpequenomilagre.LisbetheraopesadelodetodososterapeutaseforaaHolgerqueelarevelaraaspartesmaisdolorosasdesuainfância,porissoMikaelagora,depoisdeterdigitadoocódigodeentradadonúmero96daLiljeholmstorget,pegavaoelevadorparaoquintoandaretocavaacampainhadacasadele.—Meuvelhoequeridoamigo—Holgerosaudou,abrindoaporta.—Quecoisamaravilhosaver

você!Masvocêestáparecendoumpoucopálido,Mikael.—Nãoandodormindobem.—Énatural,quandohápessoasatirandoemvocê.Fiqueisabendopelosjornais.Quehistóriahorrível!—Poisé.—Aconteceumaisalgumacoisa?— Já lhe conto tudo—disseMikael, sentando-se numvistoso sofá amarelo, próximo à varanda e

aguardandoHolgerseacomodarcommuitoesforçonumacadeiraderodas,aolado.Emseguida,Mikael lhecontoutodaahistóriaempoucaslinhas.Aochegaràparteemquedizia ter

tido aquele súbito pressentimento ou suspeita na Bellmansgatan, a rua de paralelepípedos onde elemorava,Holgerointerrompeubruscamente:—Oquevocêestáinsinuando?—AchoqueeraCamilla.Holgerestavaatônito.—AquelaCamilla?—Essamesmo.—MeuDeus!Eoqueaconteceudepois?—Elasumiuemeucérebropareciaqueiaexplodir.—Énatural.PenseiqueCamillativessedesaparecidodafacedaTerraparasempre.—Eumesmojátinhameesquecidodequeexistiaessaoutra.—Sim,comcerteza.Duasirmãsgêmeasqueseodiavam.—Eujásabiadessahistória.Maspreciseimerelembrardelaparadarimportânciaaocaso.Fiqueime

perguntandoporqueLisbethteriaseenvolvidotantonessahistória,porqueumasuper-hackercomoelaficoutãointeressadanumsimplesvazamentodedados.

Page 228: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Eagoravocêqueraminhaajudaparaentender.—Émaisoumenosporaí.—Estábem—começouHolger.—Vocêjáconheceoenredodahistória,nãoé?Amãedelas,Agneta

Salander, trabalhava como caixa no supermercado Konsum e morava sozinha com as duas filhas naLundagatan. Elas poderiam ter tido uma boa vida juntas.Não haviamuito dinheiro,Agneta eramuitojovemenãotiveraapossibilidadedeestudar,maseraumamãeamorosaequecuidavabemdasmeninas.Queriaproporcionarumaboainfânciaparaelas.Noentanto…—Opaidevezemquandoiavisitá-las…— Isso mesmo, o pai, Alexander Zalachenko, às vezes passava por lá, e suas visitas sempre

terminavamdamesmamaneira.EleviolentavaeespancavaAgneta,enquantoasfilhas,noquartoaolado,ouviamtudo.UmdiaLisbethencontrouamãeinconscientenochão.—Foiquandoelasevingoudelepelaprimeiravez.—Não,pelasegundavez.ElajáhaviaesfaqueadoZalachenkonoombro.—Ah,issomesmo.Nessasegundavezelajogouumacaixadeleitecheiadegasolinanocarrodelee

pôsfogo.—Exatamente.Zalachenkoardeucomouma tochae suasqueimaduras foram tãogravesqueele foi

obrigadoaamputarumdospés.Lisbethfoiinternadanumaclínicapsiquiátricainfantil.—EamãefoiinternadanacasadesaúdedeÄppelviken.—Sim,eparaLisbethessafoiapartemaisdolorosadetodaahistória.Suamãetinhaapenasvintee

nove anos e depois disso nuncamais foi amesma. Viveu nessa clínica por catorze anos com lesõescerebraisgravesedoressemfim.Malconseguiasecomunicar.Lisbethavisitavasemprequepodiaeseiqueelasonhavaqueumdiaamãeserecuperasseeelaspudessemvoltaraconversareacuidarumadaoutranovamente.Masissonuncaaconteceu.ÉagrandetristezadavidadeLisbeth.Tervistoamãesofrertantoeirmorrendoaospoucos.—Eusei,éhorrível.MasnuncaentendiopapeldeCamillanessahistória.—Éumaquestãomuitodelicadaeachoqueameninadealgumaformadeviaserperdoada.Elanão

passavadeumacriançae,antesmesmodetertidoconsciênciadealgumacoisa,acabousetornandoumfantochenaquelejogo.—Oqueaconteceu?—Cadaumaescolheuoseuladonadisputa,vamosdizerassim.Elassãogêmeas,mas,nuncaforam

parecidas em nada, nem fisicamente nem no temperamento. Lisbeth nasceu primeiro. Camilla chegouvinteminutosdepoisedesdepequenaeraextremamentebonita.EnquantoLisbetheraumacriançasemprezangada,Camillaescutavadetodomundo“Ah,quemeninamaislinda!”,enãodevetersidoàtoaquedesdeosprimeirosmomentosdevidadesuas filhasZalachenko tenhasemostradomais tolerantecomCamilla,acriançamaisperfeita.Digotolerânciaporquenãopassoudissonosprimeirosanos.Damesmaforma que ele viaAgneta como apenas uma prostituta, as filhas dela eram somente as filhas daquelaprostituta,umascoitadinhasqueestavamnoseucaminho.Mesmoassim…—Oquê?— Mesmo assim até Zalachenko notou a beleza impressionante de uma das meninas. Lisbeth

costumavadizerquehaviaumerrogenéticoemsuafamília,eaindaqueeuduvidequeessaafirmação

Page 229: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

resistaaumaanáliseclínica,nãosepodenegarqueZala tevefilhoscomalgumtipodeanormalidade.VocêconheceuRonald,omeio-irmãodaLisbeth,não foi?Ele era loiro, enormee sofriade analgesiacongênita, a incapacidade de sentir dor, por isso acabou se tornandoumhomemcruel e umassassinoideal,enquantoCamilla…bem,nelaoerrogenéticoestavaemelaserincrívelecovardementelinda,oquesófoipiorandoàmedidaquecrescia.Edigoquesófoipiorandoporqueestouconvencidodequesuabelezafoiumaespéciedeazarqueficouaindamaisevidentenacomparaçãocomairmã,queviviadesleixadae emburrada.Muitos adultosnãoescondiamseudesagradodiantedeLisbeth.Mas,quandoestavamcomCamillasetransformavam,ficavamfelizeseiluminadospelabelezadaquelacriança.Vocêconsegueimaginaroquantoissopodetê-laafetado?—Devetersidobemcomplicado.—Nãome refiro aLisbeth, poisnuncanoteinenhumsinalde invejanela.Se fosse apenaspor sua

beleza, a irmã seriamuito bem-vinda na vida dela. Estou falando de Camillamesmo.Você consegueimaginaroquesignificaparaumacriançaquejánãoéempáticapornaturezaouvirotempotodocomoelaédivinaemaravilhosa?—Sobeàcabeçadela.—Issolhedáumasensaçãodepoder.Quandoelasorri,todossederretem.Quandoelanãosorri,as

pessoas se sentem excluídas e farão de tudo para vê-la alegre novamente. Desde pequena Camillaaprendeu a explorar esse poder.Tornou-semestre nessa arte, na arte damanipulação.Ela tinha olhosgrandeseexpressivos.—Aindatem.—LisbethmecontouqueCamillaficavahorasnafrentedoespelho,treinandooseuolhar.Seusolhos

eramumaarma fantástica,podiamencantaredesdenhar, atraire repelir, fazendocriançaseadultos sesentiremprivilegiadoseespeciaisnumdiae totalmentemiseráveise rejeitadosemoutro.Eraumdomperverso,e,comovocêpodeimaginar,elalogosetornoumuitopopularnaescola.Todosqueriamestarcomela,eCamillaseaproveitavadissode todasasmaneiras.Todososdiasdavaumjeitodeganharalgumpresentedeseuscolegas:balas,chocolates,moedas,brinquedos,pérolas,broches.Quemnãolhedessecoisaounãosecomportassecomoelaqueria,nãorecebianemumolharounemumcumprimentoseunodiaseguinte,etodosquehaviamumdiatidooprivilégiodesebanharemseuesplendorsabiamcomoeradolorososerexpulsodomundoencantadodeCamilla.Seuscolegasfaziamdetudoparacairnasgraçasdela.Todosaidolatravam,comumaexceção,claro.—Airmã.—Exatamente.PoressarazãoCamillajogouseuscolegascontraLisbeth.Elaincentivouperseguições

cruéis à irmã, em que eles punham a cabeça de Lisbeth no vaso sanitário enquanto a chamavam demonstro,retardadaeaxingavamdetodososnomes.Issocontinuouatéodiaemquedescobriramcomquemestavammexendo.Masessaoutrahistóriavocêjáconhece.—Lisbethnuncafoideofereceraoutraface.—Nãomesmo.Masointeressantenessahistória,psicologicamentefalando,équeCamillaaprendeua

controlareamanipularseuentorno.Eladominavatodomundo,comexceçãodeduaspessoasimportantesemsuavida,Lisbetheopai,eissoacontrariavademais.Elainvestiumuitaenergiaemvenceraslutascontraosdois,eéclaroquecomelesprecisavaadotarestratégiasdiferentes.Elanuncaconseguiufazer

Page 230: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Lisbethficardoseulado,masachoquenofundoessenãoeraseugrandeobjetivo.ParaCamilla,Lisbetherasóumagarotaestranha,arroganteeeternamentemal-humorada.Jáopai…—Amaldadeempessoa.—Eleeramau,mastambémoeixogravitacionaldafamília.Tudogiravaemtornodele,aindaqueele

nãoestivessesemprenacasa.Eraopaiausente,emesmoemfamíliasnormaisessaausênciaassumeumcarátermísticoparaumacriança.Masnessecasofoibemmaisqueisso.—Comoassim?— Acho que Camilla e Zalachenko eram uma combinação infeliz. Embora Camilla dificilmente

entendesseistonaquelaépoca,achoqueelajáestavainteressadanumaúnicacoisa:poder.Equantoaseupai… Bem, podemos dizer muitas coisas sobre ele, menos que não tivesse poder de sobra. Muitaspessoas podem confirmar isso, inclusive a nossa pobre Säpo. Eles enfiavam o pé na porta, falavamgrosso, faziam exigências, investigavam, mas quando se viam frente a frente com Zalachenko seencolhiam como um rebanho de carneirinhos amedrontados. Havia em Zalachenko uma grandiosidadedetestável,claramenteamplificadapelofatodeleserumintocávelenãofazerdiferençanenhumaquantasvezes ele fosse denunciado aos serviços sociais. A Säpo o protegia, e quando Lisbeth percebeu quesempreseriaassim,convenceu-sedequecabiaaelaassumiraresponsabilidadedefazerjustiçacomasprópriasmãos.ParaCamilla,porém,ascoisasforambemdiferentes.—Eladesejavaserigualaopai.— Sim, creio que sim. O pai era o seu ideal. Ela também queria para si aquela mesma aura de

imunidadeeforça.Mas,acimadetudo,oquetalvezelamaisquisessefosseoreconhecimentodele.Servistacomoumafilhaàalturadele.—Eladeviasaberqueelemaltratavasuamãedeumaformaterrível.—Claroquesabia.Mesmoassimescolheuoladodopai.Preferiuaforçaeopoder,digamosassim.

Mesmoquandoeraapenasumagarotinha,eladiziafrequentementequedesprezavapessoasfracas.—Entãovocêachaqueeladesprezavaaprópriamãe?—Infelizmenteéoqueeuacho.UmavezLisbethmecontouumacoisaquenuncamaisvouesquecer.—Oquê?—Nuncaconteiissoaninguém.—Seráquenãochegouahoradecontar?—É,talvez,masantesprecisodeumabebidaforte.Quetalumaboadosedeconhaque?—Nãoseriamáideia.Masfiquesentadoaíqueeuvoupegaragarrafaeunscopos—disseMikael,

indoatéoarmáriodemognoqueficavajuntoàportadacozinhaeondeestavamguardadasasbebidas.Quandoelecomeçavaadarumaespiadanasgarrafas,seuiPhonetocou.EraAndreiZander,oupelo

menosseunomeaparecianatela.Porém,quandoeleatendeu,aligaçãojátinhasidoencerrada.MikaelachouqueAndreideviaterligadosemquerer.Emseguida,umpoucopensativo,eleserviuduasdosesdeRémyMartinevoltouasesentarnosofá.—Entãomeconte—disse.—Nem sei bempor onde começar.Enfim…Numdia lindo de verão, pelo que entendi,Camilla e

Lisbethestavamtrancadasnoquartodelas.

Page 231: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

23.NOITEDE23DENOVEMBRO

O corpo de August tinha enrijecido de novo. Ele não conseguia mais encontrar as respostas. Osnúmeroshaviamsetornadoimensose,emvezdesegurarolápis,eletinhaapertadoospunhoscomtantaforçaqueodorsodesuasmãosficoubranco.Eletambémdeuumacabeçadanotampodamesa,eclaroqueLisbethdeviateridoconsolá-loouaomenosteridoverseelenãotinhasemachucado.Mas elanão estavamuito atenta aoque estava acontecendocomAugust.Sua cabeça tinha idopara

outrolugar,paraoarquivocriptografado,eelacomeçavaaperceberquenãoiachegaralugarnenhumseguindo esse caminho, o que também não a surpreendia nem um pouco.ComoAugust iria conseguiralgumacoisaquenemmesmosupercomputadoreshaviamconseguido?Asexpectativasdelatinhamsidoaltasdemaisdesdeoinício,eoqueogarotofizerajáerabemimpressionante.Apesardissoelasesentiafrustradaefoiparaavarandaàsescurasobservaraquelapaisagemestérilemaltratadapelotempo.Maisabaixoelaviuumcampocobertodeneveeumpavilhãoabandonadoondeantestinhahavidoumapistadedança.Nos dias perfeitos de verão aquele lugar devia fervilhar de gente. Agora tudo estava deserto. Os

barcostinhamsidoretiradosdaágua,nãoseviaumasópessoa,nãohavialuzesacesasnascasasnooutroladodolagoevoltaraaventarforte.Aomenos,elapensou,olugarserviriacomoesconderijoatéofimdenovembro.Claroquedificilmenteelaescutariaosomdealgummotor,seaparecessealguém.Oúnicolugaronde

sepodiaestacionarumcarroeraláembaixo,juntoàpraia,edepoisseriaprecisogalgarosdegrausdemadeira ao longo da íngreme elevação rochosa. Protegido pela escuridão, alguém poderia subir esurpreendê-los.MasLisbethachouqueiaconseguirdormirnaquelanoite.Precisavadisso.Oferimentoabalaaindaaincomodavabastante,eprovavelmenteporissoéqueelareagiradeformatãoveementeaoinsucessodeAugust,mesmoquenuncativesseacreditadoqueaideiadelafossefuncionar.Masaovoltarparadentrodacasaelapercebeuoutracoisa.—Emcondiçõesnormais,claroqueLisbethnãoéo tipodepessoaquesepreocupa,porexemplo,

comoclimaoucomcoisasquenãolhedigamrespeitode imediato—continuouHolgerPalmgren.—Seu olhar elimina tudo que não tem importância para ela. Nesse dia, porém, ela comentou que o solbrilhava na Lundagatan e no Skinnarviksparken. Ela ouvia as risadas das crianças na rua. Talvez elaquisessedizerquedoladodeforadajanelahaviapessoasfelizes.Salientarocontraste.Pessoascomuns

Page 232: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

tomavamsorvete,empinavampipas,jogavambola.CamillaeLisbethestavamtrancadasemseuquarto,escutandoopaiviolentareespancaramãedelas.CreioqueissoaconteceuumpoucoantesdeLisbethpunirZalachenkoàaltura,emboraeunãotenhamuitacertezadacronologiadosacontecimentos.Houvemuitosestuprosetodosseguiamomesmopadrão.Zalaapareciaàtardeouànoite,sempremuitobêbado,eàsvezesfaziaumcafunénocabelodeCamilla,dizendocoisascomo“Mascomoépossívelqueumameninalindadessastenhaumairmãtãorepulsiva?”.Emseguidatrancavaasfilhasnoquartoevoltavaparaacozinhaparabebermais.Tomavavodcapura,enamaioriadasvezessesentavaquieto,comoumanimalfaminto,estalandooslábios.Depoismurmuravaalgumacoisacomo“Eaminhaputa?Comovaiaminha puta hoje?”, demodo carinhoso.MasAgneta sempre fazia algo errado, oumelhor, Zalachenkodecidia que ela tinha feito algo errado, e lá vinha o primeiro golpe, geralmente um tapa, seguido daspalavras: “Eupenseiqueaminhaputinha fosse secomportardireitohoje”.Entãoele a levavaparaoquartoecontinuavaaespancá-lae,passadoalgumtempo,aesmurravanorosto,oqueLisbethpercebiapelosom.Sópelosomelaconseguiaidentificarexatamentequetipodegolpeeraeondeeleacertava.Sentiaosgolpesnamãedemodotãointensocomoseelaprópriafosseavítimadeles.Depoisdossocosvinhamoschutes.ZalachutavaejogavaAgnetacontraaparede,xingando-ade“puta”,“vadia”,“vaca”,eexcitando-secomisso.Fazê-lasofrerodeixavadepauduro.SomentequandoAgnetajáestavacobertadehematomas,eleaviolentava,gritandoaindamaispalavrõesaogozar,edepoistudoficavaquietoporalgumtempo.OsúnicossonsquevinhamdoquartoeramossoluçosdechorodeAgnetaearespiraçãopesadadele.Mais tardeZala se levantava, bebiamais umpouco,murmurava, praguejava e cuspia nochão.Às vezes destrancava a porta do quarto das filhas e dizia algo como: “Agora amamãe já estáboazinha de novo”. E saía do apartamento, batendo a porta. Essa era a rotina. Mas nesse dia algoaconteceu.—Oquê?—Oquartodasmeninaserabempequeno.Pormaisqueelastentassemsemanterlongeumadaoutra,

enquantoopaisurravaeviolentavaAgneta,cadaumaficavasentadaemsuacama,defrenteparaaoutra.Evitavamseolhareraramentediziamalgumacoisa.Naqueledia,LisbethficouamaiorpartedotempoolhandoparaaLundagatanpelajanela,eprovavelmenteporissodescreveutãobemodiadeverãoeaalegriadascriançasláfora.Masdepois,quandosevoltouparaairmã,foiqueelaviu.—Viuoquê?—AmãodireitadeCamillabatendoritmadamentenocolchão.Talveznãofossenadademais,apenas

um tiquenervoso, algoqueela faziade forma inconsciente.FoioqueLisbethachouaprincípio.MasdepoispercebeuqueamãodeCamillaacompanhavaoritmodosgolpesquevinhamdoquartodeseuspais, e ela olhou para o rosto da irmã.Os olhos deCamilla brilhavam de satisfação, e a coisamaisestranhafoiquenaquelemomentoCamillapareciaumretratoperfeitodeZala.MesmoqueaprincípioLisbethnãoquisesseacreditar,nãohaviadúvidas:suairmãestavasorrindo.Elatinhaumrisomalicioso,eentãoLisbethpercebeuqueairmãnãosóestavatentandosealinharaopaicomotambémimitá-lo.Elatambémsesatisfaziacomosgolpesdele.Camillaoapoiavatotalmente.—Quedoentioisso.—Masfoiassimqueaconteceu.EsabeoqueLisbethfez?—Não.

Page 233: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Comtodaacalma,elasesentouaoladodeCamillaepegousuamãoquasecomternura.AchoqueCamillanãopercebeuoqueestavaacontecendo.Talveztenhapensadoqueairmãestivesseprocurandoumpoucodeconsolo,decarinho.MasLisbethlevantouamangadablusadeCamillaeemseguida...—Oquê?—Cravouasunhasprofundamentenopulsodairmã,atingindoatéoossoeprovocandoumferimento

bemfeio.Osanguecomeçouajorrar,LisbethderrubouCamillanochão,jurandoquematariaelaeopaiseosespancamentoseestuprosnãoacabassem.NofinalCamillapareciatersidoatacadaporumtigre.—MeuDeus!—Imagineoódioquehaviaentreessasirmãs.AgnetaeoServiçoSocialsepreocuparam,temeram

quedepoisdissoalgosériopudesseacontecer.Elasforamseparadas.Camillafoimorarprovisoriamentecomumafamília,emborasoubessemqueissonãoseriasuficiente,poiscedooutardeelaspoderiamseconfrontarnovamente.Mas,comovocêsabe,ascoisasnãoocorreramdessemodo.Agnetasofreuumalesão cerebral, Zalachenko ardeu como uma tocha e Lisbeth foi internada. Se eu entendi bem, depoisdisso as irmãs só se viramumavez,muitos anos depois, quandoparece quequase ocorreuumanovatragédia,emboraeudesconheçaosdetalhesdesseencontro.Camillaestádesaparecidahámuitotempo.Aúltima notícia que se tem dela veio da família comquem elamorou emUppsala, osDahlgren. Possoconseguir o telefone damãe, se você quiser.Mas depois que Camilla fez dezoito ou dezenove anos,arrumousuascoisas,saiudopaísenuncamaisseouviufalarnela.Porissoquasecaídecostasquandovocê disse que a havia encontrado. Nem mesmo Lisbeth, com sua habilidade para rastrear pessoas,conseguiulocalizá-la.—Entãoelatentou?—Sim,queeusaibafoiquandoiamfazerapartilhadosbensdopai.—Eunãosabiadisso.—Lisbethmecontouapenasdepassagem.Claroqueelanãoquerianemumcentavododinheirodele,

paraelaumdinheirocobertodesangue.Maselapercebeuquehaviaalgoestranho.Nototal,eramquatromilhõesdecoroassuecas,umafazendaemGosseberga,algumasações,umprédioindustrialemNorrtäljeempéssimascondiçõeseumacabana.Nãoerapoucacoisa,nãomesmo,mas…—Eledeviatermuitomais.—Sim.MaisdoqueninguémLisbethsabiaqueastransaçõeseosnegóciosdopaisuperavamaqueles

quatromilhões.Issoeraapenasapequenapartedeumagrandefortuna.—VocêestáquerendodizerqueeladesconfiouqueCamillateriaficadocomaoutraparte.—Achoqueéoqueelatentoudescobrir.Sóaideiadequeodinheirodopai,mesmodepoisdesua

morte, continuava a causar danos e sofrimento lhe fazia muito mal. Por muito tempo, porém, suastentativasdedescobriralgumacoisanãoderamemnada.—Camilladeveterseescondidomuitobem.—Imaginoquesim.—VocêachaqueCamillapodeterassumidoonegóciodetráficodepessoasdopai?—Talvezsim,talveznão.Podeserqueelatenhacomeçadoumnovonegócio.—Comooquê?HolgerPalmgrenfechouosolhosetomouumgolegenerosodeseuconhaque.

Page 234: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Nãofaçoideia,Mikael.MasquandovocêmecontousobreFransBalder,meocorreuumacoisa.VocêsabeporqueLisbethconhecetãobemcomputadores?Sabecomotudocomeçou?—Não,nemimagino.—Entãovoulhecontar.Quemsabeachavedasuahistórianãoestejaaqui.OqueLisbethpercebeuquandovoltoudavarandaeviuAugustsentadomeio tortoàmesaredonda,

numaposturaforçada,ascostasrígidasetensas,foiqueogarotolembravaelamesmaquandocriança.Era exatamente assimque ela se via naLundagatan, até o dia emque ficou claroque ela teria que

cresceromaisrápidopossívelparasevingardopai.Isso,claro,nãotornouascoisasmaisfáceis.Eraum peso que nenhuma criança deveria carregar. No entanto, tinha sido esse o início de uma vida deverdade,umavidamaisdigna.NenhumvagabundopoderiafazeromesmoqueZalachenkoouoassassinode Frans Balder fizeram sem ser severamente punidos. Nenhuma pessoa tão má assim poderia sairimpune. Lisbeth foi até August e lhe disse demodo solene, como se estivesse lhe dando uma ordemimportante:—Agoravocêvaiparaacama.Quandoacordar,queroquevocêfaçaodesenhoquevainosajudara

pegaroassassinodoseupai.Estamosentendidos?—Omeninoassentiucomacabeçaefoidiretoparaoquarto. Lisbeth abriu seu laptop e começou a buscar informações sobre o ator LasseWestman e seusamigos.—NãoachoqueoZalachenkofossemuitochegadoemcomputadores—continuouHolgerPalmgren

—,elenãoeradessageração.Mastalvezseusnegóciosescusosestivessemcrescendotantoqueelefoiobrigado a armazenar suas informações numprograma de computador.Ou quem sabe tenha precisadoescondersuacontabilidadedosolhosvorazesdeseuscompanheiros.UmdiaelechegouaoapartamentodaLundagatancomumcomputadorda IBMeo instalounumamesajuntoà janela.Desconfioquenuncaninguémda famíliadele tivessevistoumcomputador, eZalachenkoameaçouarrancar apeledequemmexesse no seu novo brinquedo. Por tudo que sei agora, essa ameaça acabou funcionando como algopositivodopontodevistapsicológico.Fezcresceratentação.—Ofrutoproibido.—Lisbethdeviateronzeanos.IssofoiantesdelamachucarCamilla,deesfaquearopaiedetentar

queimá-lovivo.Ouseja,umpoucoantesdelasetornaraLisbethqueconhecemoshoje.Naquelaépoca,elanãoestavaocupadaapenaspensandonummeiodeneutralizarZalachenko.Faltavam-lheestímulosdetodo tipo. Ela não tinha amigos para conversar, primeiro porque, claro, Camilla fazia intrigas e adifamavanaescola,assegurandoqueninguémseaproximassedela;edepoisporqueLisbetheramesmodiferentedasoutrascrianças,eachoqueelaaindanãotinhaentendidoissonaépoca.Seusprofessoresetodosàsuavoltacertamentenão.Maselaeraumacriançaextremamentebem-dotada.Seutalentotambémaseparoudosdemais.AescolaeramortalmentetediosaparaLisbeth.Tudoeramuitosimpleseóbviolá.Elasóprecisavadarumaolhadanasliçõesparaentendertudo,eduranteasaulaspassavaamaiorpartedotemposonhandoacordada.Mesmoqueelatenhaconseguidoencontraralgumascoisasparasedivertir

Page 235: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

no seu tempo livre, como livros de matemática para crianças mais velhas do que ela, coisas assim,basicamenteelaviviaentediada.Grandepartedotempoelapassavalendosuashistóriasemquadrinhos,seusgibisdaMarveleoutrascoisasqueficavammuitoabaixodasuacapacidadeintelectual,masquetalvezfuncionassemcomoumaespéciedeterapia.—Comoassim?—Olha,eurelutomuitoemtraçaressaespéciedeperfilpsicológicodaLisbeth.Elameodiariaseme

ouvissedizendoisto,masashistóriasemquadrinhosqueelaliaestavamrepletasdesuper-heróisemlutacontrasupervilões,quefaziamjustiçacomasprópriasmãos,sevingavamegarantiamqueobemsemprevencessenofinal.Por tudoquesei,essepodetersidoo tipocertode leituraparaela.Talvezaquelashistóriascomsuavisãoempretoebrancodomundoa tenhamajudadoaverascoisasde formamaisclara.—Vocêquerdizerqueelaconcluiuquequandocrescesseiasetornarumaespéciedesuper-heroína?—Decertaformatalvezsejaisso,umaheroínanoseuprópriomundo.Naquelaépocaelaaindanão

sabiaqueZalachenkotinhasidoumespiãodeelitedaantigaUniãoSoviéticaequeasuacondiçãodedelator lhe havia propiciado uma posição privilegiada na Suécia. E também não sabia que havia umdepartamentoespecialdentrodaSäpoencarregadodeprotegê-lo.Mas,assimcomoCamilla,ela intuíaqueopaigozavadealgumaimunidadeeprivilégios.Certavez,umhomemdesobretudocinzafoiatéacasadelaseinsinuouqueZalachenkonuncadeveriaserincomodado,oualgoparecido.LisbethpercebeubemcedoquenãopoderiadenunciaropaiàpolíciaouaoServiçoSocial.Issoapenasfariacomqueelasrecebessemavisitadeoutrohomemdesobretudocinza.“O sentimento de impotência pode ser uma força destrutiva, Mikael. Até Lisbeth crescer e ter

condiçõesdefazeralgumacoisaarespeitodisso,elaprecisavadeumlugarparaondefugireirreunindoforças.Esselugarfoiouniversodossuper-heróisdashistóriasemquadrinhos.Muitosdaminhageraçãodesprezavamessetipodeleitura,claro,masseimuitobemcomoaliteraturaéimportante,sejanaformade histórias emquadrinhos, seja na forma dos velhos e excelentes romances. Sei queLisbeth cresceuparticularmentefascinadaporumajovemheroínachamadaJanetvanDyne.”—VanDyne.— Exatamente. Uma garota cujo pai era um cientista rico. Se a memória não me falha, o pai é

assassinadoporalienígenase,parapoderexecutarseusplanosdevingança,JanetvanDyneprocuraumdoscolegasdopaieadquiresuperpoderesnolaboratóriodele.Elaganhaasaseacapacidadedemudardetamanho,crescendoouencolhendo,alémdemaisoutrascoisinhas.Basicamente,setransformanumajovem extremamente descolada, que se veste de preto e amarelo e por isso adota o codinomeWasp,vespa.Umapessoaqueninguémseatreveriaaesmagar,sejaliteraloumetaforicamente.—Ah,eunãosabia.EntãofoidaíqueLisbethtirouseuapelido?—Nãoapenasoapelido.Claroqueatéentãoeunãoconhecianadadessemundotodo,eueraumvelho

dinossauro que ainda confundia Fantasma com Mandrake, mas quando vi pela primeira vez umailustraçãodeWasp,entenditudo.EraaprópriaLisbeth!Epode-sedizerqueaindaé.Creioqueelaseinspirounoestilodevidadapersonagem,emboraissonãotenhatantaimportância.EnquantoWasperaapenasumapersonagemdehistóriaemquadrinhos,Lisbethtinhaumavidareal,masseiqueelapensavamuitona transformaçãopelaqualJanetvanDynepassouquandose tornouWasp.Dealgumaformaela

Page 236: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

entendeuquetambémprecisavamudardrasticamente.Decriançaevítimaparaalguémcapazdecombaterumespiãobemtreinadoeumhomemsemescrúpulos.“EssespensamentosocupavamLisbethdiaenoite,eWaspse tornouumafigura importanteparaela

duranteseuperíododetransição,umafontedeinspiraçãofictícia.MasnãodemoroumuitoparaCamilladescobrir a importância que a personagem tinha para Lisbeth. Essa garota possuía uma capacidadefantástica para descobrir as fragilidades dos outros. Com seus tentáculos, ia rondando, sondando,envolvendo, até achar o ponto fraco e lá injetar seu veneno.No caso deLisbeth,Camilla começou aridicularizarWaspdetodasasformaspossíveis,epior:foidescobrirquemeramosinimigosdeWaspnashistóriasemquadrinhosepassouausarseusnomes.FoiassimcomThanoseoutrosmais.”—VocêdisseThanos?—Mikaelointerrompeu,subitamentealerta.—Sim,achoqueeraesseonomedeumpersonagemmasculinoqueseapaixonoupelaMortedepois

queelaapareceparaelesobaformadeumamulher.Apartirdaíelequerprovarasimesmoqueédignodela,algoassim.CamillasetornoufãdesseThanossóparaprovocarairmã.ChegouachamarobandodeamigosdeladeTheSpiderSocietysóporquenosquadrinhosessegrupoeraoinimigomortaldaTheSistherhoodoftheWasp.—Émesmo?—exclamouMikael,comacabeçacheiadequestionamentos.—Embora fosse uma atitude aparentemente infantil, não havia nada de inocente nela.A inimizade

entreas irmãs,que jáeraumarealidadebemantesdelasadotaremessespersonagens,depoisdissosóficoupior,maissórdida.Eracomonumaguerra,sabe,ondeatémesmoossímbolosadquiremdestaqueeumaauramortífera.—Vocêachaquetudoissoaindatemalgumsignificadoparaelas?—Vocêserefereaosnomes?—É,achoquesim…osnomes.Mikaelnãosabiabemaondeestavaquerendochegar.Apenas tinhaumavagasensaçãodequehavia

esbarradoemalgoimportante.— Não sei — continuou Holger Palmgren. — Embora hoje as duas sejam adultas, não se pode

esquecer que aquela época foimuito difícil, commuitasmudanças e acontecimentosmarcando a vidadelas para sempre.É perfeitamente possível quemesmodetalhes possam ter desempenhado umpapelsignificativo.SeLisbethfoiafastadadamãeeemseguidainternadanumaclínicapsiquiátricainfantil,avidadeCamillatambémdesmoronou.Elaperdeuseular,eopai,queelaidolatrava,sofreuqueimadurasgravíssimas.Comovocêsabe,Mikael,ZalachenkonuncamaisfoiomesmodepoisqueLisbethoatacou,eCamilla ficousoboscuidadosdeumanovafamília,numlugaramuitosquilômetrosdedistânciadomundoemqueelaestavaacostumadaaserocentrodasatenções.Tambémdevetersidoterrivelmentedolorosoparaela,enãoduvidonemporumsegundoquedesdeentãoelapassouaodiarLisbethdofundodesuaalma.—Realmenteparecequesim—disseMikael.HolgerPalmgrentomoumaisumgoledeseuconhaque.—Como eu disse, não podemos subestimar essa fase da vida delas. As irmãs viviam num estado

constantedeguerra,eminha impressãoéqueelassabiamqueascoisasnão iriam terminarnadabem.Achoqueelasjáestavamsepreparandoparaisso.

Page 237: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Masdemaneirasdiferentes.—Ah,claro.Lisbeth,comsuainteligênciarara,complanoseestratégiasfervilhandootempotodoem

sua mente. Mas ela estava sozinha. Camilla não era particularmente brilhante, não no sentidoconvencional.Nuncatevepropensãoparaosestudos,eraincapazdeentenderoraciocínioabstrato.Masdemanipulaçãoelaentendia,sabiacomoninguémmanipulareenfeitiçaraspessoas,porissonuncaficousozinhacomoLisbeth.Camillasempretinhapessoasfazendooqueelaqueriae,sedescobriaqueLisbetheraboaemalgumacoisaque significasseumaameaçaparaela,não tentava se igualar à irmã,porquesabiaquenãoseriacapazdesuperá-la.—Eoqueelafazia?—Descobriaalguémbomnaquilo,ousepossívelmaisdeumapessoa,ecomoauxíliodemaisgente

elacontra-atacava.Camillasempre tevesubordinadosdispostosa tudoporela.Mas,desculpe,acabeimeadiantandoumpouco.—Sim,ocomputadordeZalachenko.Oqueaconteceucomele?— Como eu já disse, Lisbeth não dispunha de desafios intelectuais à sua volta. Além disso, mal

dormiaànoite.Ficavaacordada,preocupadacomamãe.DepoisdosestuprosAgnetatinhahemorragiasviolentas,emesmoassimsenegavaaprocurarummédico.Provavelmentesesentiaconstrangidaecomfrequênciacaíaemdepressõesprofundas.Nãotinhaforçasparairtrabalharouparacuidardasfilhas,eCamillaadesprezavacadavezmais.Diziaqueamãeeraumafraca,enomundodelapessoasassimeramapiorespéciedegente.Lisbeth,emcompensação...—Oquê?—Lisbeth olhava para amãe, a única pessoa que ela havia amado na vida, e o que via era uma

injustiçaterrível.Elapassavanoitesacordadapensandonisso.Elaerasóumacriança,edecertaformaaindaé,mascadavezmaisfoiseconvencendodequeeraaúnicapessoanomundocapazdeprotegeramãeedeimpedirqueelafosseespancadaatéamorte.Pensandonissoeemmuitasoutrascoisas,numanoite ela se levantou, commuito cuidado para não acordar Camilla, e saiu do quarto. Talvez tivessepensado apenas em ir buscar algo para ler. Talvez não estivesse aguentando seus pensamentos. Nãoimporta.OfatoéquenasalaelaviuocomputadorjuntoàjanelaquedavaparaaLundagatan.“Naquelaépocaelanão sabiacomo ligarumcomputador,mas logodescobriucomose fazia issoe

quandoviu amáquinaganharvida sentiuumcalorpercorrer todoo seu corpo.Ocomputadorpareciaestarcochichandoparaela: ‘Descubraosmeussegredos’.Masclaroqueelanãofoimuito longe,umasenha foipedidaeLisbeth tentouuma,eoutra,emaisoutra,enada.ComooapelidodopaieraZala,tentouessenome,depois ‘Zala666’, combinaçõesparecidascomessase tudoqueconseguiu imaginar.Masnadafuncionou.Elamedissequepassouduasoutrêsnoitesemclaronisso.Quandodormia,eranasaladeaulaoudepoisdaescola,aochegaremcasa.“Umdia ela se lembroudeumpapelqueopai tinhadeixadona cozinhacomuma frase escrita em

alemão: ‘Was mich nicht umbringt, macht mich stärker’, ou seja, ‘Aquilo que não me mata mefortalece’. Ela não entendeu o que significava,mas percebeu que era importante para o pai, por issotentouusá-lacomosenha.Tambémnãofuncionou,onúmerodecaractereseramuitogrande.Entãotentou‘Nietzsche’,oautordacitação,ederepente…elaentrou!,etodoumnovomundodesegredosseabriuparaLisbeth.Elamecontouqueessemomentomudousuavidaparasempre.Elasesentiupotenteporter

Page 238: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

conseguidoultrapassaraquelabarreiraedepoisdissoseachoucapazdeexplorartudoquetivessesidocriadoparasemanterescondido.Porém…”—Oquê?—No início elanão conseguiu entendernadadoque encontrou, pois estava tudo escrito em russo.

Havia muitas listas e números. Imagino que fossem cálculos sobre o dinheiro que as atividades deZalachenkonotráficolherendiam.Atéhojenãoseioquantoelaentendeudaquilonaépocanemcomoseinteirou do resto.MasLisbeth entendeu o bastante para se dar conta de que suamãe não era a únicamulherquesofrianasmãosdeZalachenko.Eletambémhaviadestruídoavidademuitasoutrasmulheres,e essa descoberta a enfureceu, tornando-a a Lisbeth que conhecemos hoje, aquela que odeia homensque…—…odeiammulheres.— Exatamente. Isso a fortaleceu ainda mais e ela percebeu que não havia mais como retroceder:

precisavadeter seupai.Ela continuou suas pesquisas emoutros computadores, principalmente nos daescola.Muitasvezesentravaescondidanasaladosprofessoresoumentiaparaamãequeiadormirnacasadealgumaamigaqueelanemtinhaepassavaanoitetodanaescola,semninguémsaber,emfrenteaoscomputadoresatéodiaclarear.Ecomeçouaaprendertudosobreprogramaçãoehacking.Elaestavafascinada.Sentiuquehavianascidoparaaquilo,emuitosdosseuscontatosnomundodigitalcomeçaramanotá-la,domodocomoasvelhasgeraçõesseentusiasmamcomosnovostalentos,sejaparaencorajá-los ou para esmagá-los. Lisbeth encontrou muita resistência e bobagens nesse caminho, e muitos seirritavamcomelapelaformanãoortodoxadefazerascoisas,comumaabordagemabsolutamentenova.Masoutrosficarambastanteimpressionados,eelaatéfezamizades,comoaqueelatemcomotalPraga.Suasprimeirasamizadesforamfeitasatravésdoscomputadores,epelaprimeiraveznavidaelasesentiulivre.Podiavoarlivrementepelociberespaço,assimcomoWasp.Ninguémpodiacortarsuasasas.—ECamillapercebeucomoLisbethtinhasetornadoboanaquilo?—Deve ter percebido alguma coisa, mas na verdade eu não sei nem quero especular sobre isso.

MuitasvezespensoemCamillacomosendooladonegrodeLisbeth,asuasombra.—Agêmeamá.—Maisoumenosisso.Nãogostoderotularaspessoasdemás,principalmenteosjovens,maséassim

queaimaginocomfrequência.Porémnuncameincomodeiempesquisarmaissobreela,pelomenosnãotãoafundo.Sequiserseaprofundar,recomendoqueprocureMargaretaDahlgren,amulherqueficoucomaguardaprovisóriadeCamilladepoisdosacontecimentosnaLundagatan.MargaretaviveemSolna,aquiemEstocolmomesmo.Elaéviúvaeteveumavidabemtrágica.—Comoassim?— Essa história também é muito interessante. Kjell, o marido de Margareta, um programador de

sistemas daEricsson, enforcou-se umpouco antes deCamilla deixá-los.Um ano depois, a filhamaisvelhadocasal,dedezenoveanos, tambémsesuicidou, jogando-sedeumabalsanaFinlândia,oupelomenosfoiessaaconclusãodocasonaépoca.Ameninasempreteveproblemas,sesentiafeia,obesa.Suamãe, porém, nunca acreditou na versão de suicídio e contratou um detetive particular. Margareta éobcecadaporCamilla,e,parasersincero,nuncativemuitapaciênciacomessasenhora.Agoraatémearrependoumpouco.Margaretameprocurouassimqueasua reportagemsobreocasoZalachenkofoi

Page 239: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

publicadanaMillennium,oque,vocêsabe,sedeunoexatomomentoemqueeutinhaacabadodereceberaltadocentrodereabilitaçãoErsta.Euaindaestavadebilitado,eessasenhorafalavacomigosemparar,completamentealucinada.Ameravisãodonúmerodelanateladomeutelefonejámedeixavaexausto,epasseiadevotarumbomtemposóemevitá-la.Masagora,quandopensocommaisclarezanocaso,euaentendoperfeitamente.Achoqueelavaificarcontentesevocêaprocurar,Mikael.—Vocêtemoendereçodela?—Espereumpoucoqueeujápegoparavocê.Sómediga:vocêtemcertezadequeLisbetheomenino

estãonumlugarseguro?—Certeza absoluta—disseMikael. “Pelomenos é o que eu espero”, ele pensou. Em seguida se

levantouedeuumabraçoemHolger.Láfora,emLiljeholmstorget,atempestadedesabousobreeledenovo.Mikaelpuxouefechoumaiso

casaco,tentandoseproteger,enquantopensavaemCamilla,emLisbethe,sementenderporque,tambémemAndreiZander.Decidiutelefonarparaeleesabercomoestavasesaindocomoperfildomarchanddesaparecido.Mas

Andreijamaisatendeusualigação.

Page 240: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

24.NOITEDE23DENOVEMBRO

Andrei Zander tinha mudado de ideia e telefonado para Mikael. Claro que ele queria tomar umacervejacomele,nãoentendiaporquehaviarecusadooconvite.MikaelBlomkvisteraseuídolo,arazãodeeleterescolhidoacarreiradejornalismo.Andreitinhachegadoapegarotelefoneeateclaronúmerodele,masdepoisficouencabuladoeacaboudesligando.Mikaeldeviaterencontradocoisamelhorparafazer.Andreinãogostavadeincomodaraspessoas,muitomenosMikael.Entãocontinuoutrabalhando.Pormaisqueseesforçasse,porém,nãoconseguiasairdolugar,seutexto

nãoandava,elenãoencontravaaspalavrascertase,depoisdeumahoranisso,decidiufazerumapausaesair.ArrumouumpoucosuamesaemaisumavezverificousehaviadeletadomesmocadapalavraqueescreveraparaLisbethnolinkcriptografado.AcenouumtchauparaEmilGrandén,oúnicoquealémdeleaindaestavanaredação.Nãohavianadade erradocomEmilGrandén.Com trinta e seis anos, ele tinha trabalhadoemdois

programasdaTV4,oColdFactseoSvenskaMorgon-Posten,enoanoanteriorganharaoprêmioStorademelhorjornalistainvestigativodoano.Mas,pormaisquetentasseevitar,AndreicontinuavaachandoEmilumsujeitoconvencidoeantipático.—Voudarumasaída—disseAndrei.Emil oolhou como se fossedizer algumacoisa e tivesse se esquecido.Por fim, respondeu apenas,

despreocupadamente:—Estábem.Andrei se sentiu arrasado semsaberporquê.Talvez fossepor causado ar arrogantedeEmil,mas

provavelmente o queo estava incomodando era o artigo sobre omarchanddesaparecido.Por que eleestavacomtantadificuldadeparaescreveresseartigo?TalvezporqueoqueelemaisqueriaeraajudarMikaelnocasoBalder.Orestoficavaemsegundoplano.Maseleeraumbocadomedrosomesmo.PorquenãotinhadeixadoMikaelleroqueelejáhaviaescrito?Ninguém conseguiamexer tão bem num texto comoMikael.Com apenas alguns golpes de caneta e

cortes,ahistória ficavamuitomelhor.Tudobem.Amanhãeleprovavelmenteencararia seuartigocomoutroânimoedeixariaMikaelleroqueeletinhaescrito,porpiorqueestivesse.Andreisaiudaredação,fechou a porta e se encaminhou para o elevador. Nesse instante, ouviu algo no andar de baixo, e aprincípioeletevedificuldadeementenderoqueestavaacontecendo.Deuumaolhadadiscretadaescadaeviuumhomemmagromolestandoumajovemmuitobonita.Andreisesentiumal,ficouparalisado.Nãosuportavaviolênciaeodiavabrigas.DesdequeperderaospaisemSarajevo,eleseassustavadiantedamenor ameaça.Mas agora também era a sua honra que estava em jogo, o respeito por simesmo, ele

Page 241: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

concluiu,poisumacoisaerafugirparasalvaraprópriapeleeoutrabemdiferenteerafugirdeixandoumapessoaemperigo.Então,numimpulso,eledesceuaescadacorrendoegritando:—Parecomisso!Deixeamoçaempaz!Eissopareceuumerrofatal.O homem magro puxou uma faca e murmurou algo ameaçador em inglês. Andrei sentiu tremer as

pernas,masjuntouorestodecoragemquetinhaegritou,comoseestivessenumfilmepolicialdesegundacategoria:—GetlostorIwillmakeyouregretit!E pareceu funcionar, porque num instante o homem desistiu e saiu correndo assustado, deixando

Andreieajovemsozinhos.Efoiassimquetudocomeçou,exatamentecomonumfilme.Aprincípiohouvemuitatimidezehesitação.Agarotaestavanervosaeenvergonhada,falavatãobaixo

que Andrei se viu obrigado a se aproximar bem dela para tentar ouvir o que ela dizia. A moça,aparentemente, vivia num relacionamento infernal e, mesmo estando divorciada e vivendo sob outraidentidade,oex-maridoatinhaencontradoemandadoalguémparapersegui-laeatormentá-la.—Foiasegundavezqueaquelacriaturaseatirousobremimhoje—elacontou.—Eoquevocêsestavamfazendoaqui?—Entreinesteprédioparaescapardele,masnãoadiantou.—Quehorror!—Nemseicomolheagradecer.—Nãoprecisameagradecer.—Estoutãofartadehomensruins.—Eu sou um homem bom—Andrei disse, talvez um pouco rápido demais, o que o fez se sentir

ridículo.E ele não se surpreendeu nemumpouco que a jovemnão tivesse respondido nada e apenasmantivesseosolhosfixosnosdegrausdaescadacomarenvergonhado.Elesentiuvergonhade terqueridoseexibircomumafala tãobarata,equando jáhaviaperdidoas

esperanças,achandoqueforarejeitado,elalevantouacabeçaesorriuparaeledeumjeitoencantador.—Achoquevocêpodemesmoserumhomembom.MeunomeéLinda.—EuomeuéAndrei.—Prazeremconhecê-lo,Andrei,emaisumavezmuitoobrigada.—Euéqueagradeço.—Peloquê?—Por...Elenãoconseguiucompletarafrase.Seucoraçãobatiaacelerado,suabocaestavasecaeeleolhou

paraosdegrausdebaixo.—Oquefoi,Andrei?—Vocênãogostariaqueeuaacompanhasseatéasuacasa?Tambémsearrependeudeterditoisso.Tevemedodesermalinterpretado.Maselalhedeuoutrosorrisoaomesmotempotímidoesedutore

dissequecomcertezairiasesentirmaisseguraaoladodele,eassimosdoissaíramdoprédioeforamcaminhandonadireçãodeSlussen,elalhecontandocomovinhalevandoumavidamaisoumenosreclusanuma mansão em Djursholm. Ele disse que entendia o que ela estava vivendo, ou que pelo menos

Page 242: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

entendiaatécertoponto,poisjáhaviaescritoumasériedeartigossobreviolênciacontramulheres.—Vocêéjornalista?—EutrabalhonaMillennium.—Uau!—elaexclamou.—Sériomesmo?Euadmirodemaisessarevista.—Jápublicamosmuitasmatériasimportantes—eledissetimidamente.—Éverdade.HáalgumtempoeuliumartigomaravilhosonaMillenniumsobreumferidodeguerra

iraquiano que foi demitido do seu trabalho de faxineiro num restaurante da cidade. Ele ficou numasituação extremamente precária, mas passado algum tempo acabou se tornando dono de uma rede derestaurantes.Euchoreidetantaemoçãoquandolioartigo.Estavaescritodeumamaneiratãosensível!Passavaumsentimentodetantaesperança…dequeavidasemprepodemudarparamelhor.—Fuieuqueescrevioartigo—eledisse.—Nãobrinca!Eramaravilhoso!Andrei não estava acostumado a receber elogios pelo seu trabalho jornalístico, muito menos de

mulheres que acabava de conhecer. Assim que o nomeMillennium era mencionado, as pessoas sóqueriamfalardeMikaelBlomkvist.NãoqueAndrei tivessealgocontra,massecretamentesonhavaemtambémserreconhecido,eagoraessamulherlindaotinhaelogiado.AndreificoutãofelizeorgulhosoqueousousugerirquefossembeberalgumacoisanoPapagallo,um

pubpeloqualestavampassando.—Queótimaideia—eladisse,eosdoisentraramnoPapagallo.OcoraçãodeAndreibatiamuitoforte,elefaziaforçaparanãoficarolhandoparaelaotempotodo,

pois os olhos da jovem o faziam perder o equilíbrio. Não acreditava que aquilo estivesse mesmoacontecendo,quandoelessesentaramaumamesapróximaaobareLindacomtimidez lheofereceuamão,queAndreiaceitou,sorrindoemurmurandoalgumacoisaqueelenemsoubeoqueera.ViuapenasqueEmilGrandénhaviatelefonado,eele,parasuaprópriasurpresa,oignorou,deixandootelefonenosilencioso.Umaveznavidaarevistaiaterqueesperar.TudoqueelequeriaeraadmirarorostodeLinda,seafogarnele.Abelezadelaeratãoincrívelque

chegava a doer como um soco no estômago, e aquela fragilidade e delicadeza dela…ela parecia umpequenopássaroferido.—Nãoentendocomoalguémpossaquererlhefazermal—eledisse.—Maséoqueaconteceotempotodo—eladisse,eentãoeleachouquecomeçavaaentender.Uma mulher como ela acabava atraindo psicopatas. Nenhum homem ousaria abordá-la, convidá-la

paraalgumacoisa,oshomensdeviamsesentircomplexados,inferioresdiantedetantabeleza.Somenteosdemaucaráterteriamacoragemdeseaproximaredepoiscravarosdentesnela.—Émuitobomestaraquicomvocê—eledisse.— É muito bom estar aqui com você — ela repetiu, afagando devagar a mão dele. Em seguida,

pediramumataçadevinhotintoparacadaumecomeçaramaconversaranimadamente.Elenempercebeuqueseu telefone tinha tocadodenovonãoapenasuma,masduasvezes,equepelaprimeiravezhaviadeixadodeatenderumaligaçãodeMikaelBlomkvist.Assimqueterminaramelaselevantou,pegou-opelamãoeolevouparafora.Elenemperguntoupara

ondeestavamindo,sentia-sedispostoasegui-laparaqualquerlugar.Elaeraacriaturamaismaravilhosa

Page 243: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

queelejátinhaencontradonavida.Elasorriuparaeledeumjeitoquefezcomqueoarcondensadoquea respiração deles produzia sob aquele tempo frio parecesse uma promessa de que algo grandioso etransformador estavapara acontecer.Pode-sepassar todaumavida à espera deuma caminhada comoesta,Andreipensou,semnemsedarcontadetudoomaisàsuavolta,ofrio,acidade.Eleestavacomoque intoxicadopelapresençadela epor aquiloqueoaguardava.Embora, elenão

sabiadireito,parecessehaver tambémalgumacoisanaquiloqueodeixava ressabiado,e seuprimeiroimpulso foipôresse receionacontadoseuhabitualceticismodiantedequalquerchancedeser feliz.Masemseguidanãopôdedeixardeseperguntarsetudoaquilonãoestavasendobomdemaisparaserverdade.AndreicomeçouaanalisarLindasobumanova luz,maiscrítica,enotouquenemtudonelaera tão

encantador.QuandopassarampeloKatarinahissen,atépensoutervistoumacertafriezanosolhosdelae,preocupado,Andreiolhouparaaságuasagitadaspelatempestade.—Paraondeestamosindo?—elequissaber.—Tenho uma amiga que de vez em quandome empresta um pequeno apartamento que ela tem na

MårtenTrotzigGränd.Penseiqueagentepodia irpara lábebermaisalgumacoisa—eladisse,eaoouviressapropostaAndreisorriu,comosefosseaideiamaissensacionalquejátivesseouvidonavida.Mas ele começava a se sentir cada vez mais confuso. Até havia pouco, era ele quem a estava

protegendoeagoraelaéquemassumiaainiciativa.AoolharderelanceparaocelulareverqueMikaeltinha ligadoduasvezes,Andreiquis telefonar imediatamenteparaele.Acontecesseoqueacontecesse,nãopodiavirarascostasparaarevista.—Claro,seriabom—eledisse—,masprimeiroprecisodarumtelefonema,coisadetrabalho,estou

nomeiodeumahistóriaimportante.—Não,Andrei!—elaexclamou,num tomdevoz surpreendentementeautoritário.—Vocênãovai

ligarparaninguém…Estanoiteésónossa.—Estácerto—eledisse,sentindo-seumpoucointranquilo.Chegarama Järntorget,onde, apesardo tempo ruim,haviamuitagente.EnquantoLindamantinhaos

olhos pregados no chão, como se temesse ser vista, ele olhou para a direita, na direção daÖsterlånggatan,edepoisparaaestátuadeEvertTaube.Opoetacontinuavaali,imóvel,segurandoumapartituranamãodireitaeolhandoparaocéuatravésdeseusóculosescuros.Seráquedeviasugerirquedeixassemoencontrodelesparaodiaseguinte?—Talvez...—Andreicomeçou.Masnãoconseguiucompletarafrase,poiselaopuxouparasiedeu-lheumbeijotãoardentequeofez

esquecerdetudoquehaviapensado.Depois,pegando-opelamão,elaretomouopasso,conduzindo-oàesquerda, para a Västerlånggatan. De repente, viraram à direita e entraram numa viela escura. Haviaalguématrásdeles?Não,ospassoseasvozesqueeleouviavinhamdemaislonge.ApenaseleeLindaestavam ali, não era?Assim que passaram por uma janela demoldura vermelha e venezianas pretas,Lindaparoudiantedeumaportacinzentaqueelaabriucomcertadificuldadecomumachavequepegaranabolsa.Eleobservouqueasmãosdelatremiameseperguntouporquê.Seráqueestavacommedodoex-maridoedeseucomparsa?Subiramporumaescadaescuradepedra.Seuspassosecoavameelesentiuumlevecheirodealguma

Page 244: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

coisapodre.Numdegraudoterceiroandar,viuumacartadebaralhocaída,umadamadeespadas,e,semsaber por que, se incomodou, provavelmente alguma superstição. Tentou esquecer isso e pensar emcomo, apesar de tudo, tinha sido incrível eles se conhecerem. Linda respirava pesadamente. A mãodireitadela estava fechada.Davaparaouvir umhomem rindonaviela lá embaixo.Esperavaquenãofossedele.Quebobagem!Estavaapenastenso.Achouqueosdoisjáestavamandandopormuitotempo,andavam,andavamsemchegaralugarnenhum.Seráqueoprédioeratãoaltomesmo?Não,agoratinhamchegado.AamigadeLindamoravanoúltimoandar,eraisso,numapartamentodesótão.NaportaestavaescritoOrlov.Lindapegouseumolhodechavesdenovoe,dessavez,suamãonão

tremia.MikaelBlomkvistestavasentadonumapartamentotododecoradocommóveisantigos,localizadona

Prostvägen, em Solna, muito próximo do cemitério municipal. Como Holger Palmgren havia dito,MargaretaDahlgrennãohesitouemrecebê-loassimqueeleligou,emesmoqueelatenhaparecidoumpoucofrenéticaaotelefone,Mikaeldeparoucomumamulherfinaeelegante,nacasadossessentaanos.Estavavestidacomumvistosopulôveramarelosobreumacalçapretacomvincosmuitobemdefinidosede salto alto. Talvez tivesse se arrumado assim apenas para recebê-lo. Se não fosse por seu olharsobressaltado,Mikael teria achadoMargaretaumapessoa empaz consigomesma, apesarde tudoquehaviapassado.—EntãovocêquersaberdeCamilla—eladisse.—Principalmentedosúltimosanosdela,sevocêsouberdealgumacoisa.—Eumelembrodequandonósapegamos—elacomeçou,comosenãootivesseouvido.—Kjell,

meumarido, achouquecomonossogestopoderíamosnão sóaumentar anossa família como tambémfazeralgobomparaasociedade.Tínhamosapenasumafilha,sabe,anossapobreMoa.Elatinhacatorzeanosnaépocaesesentiamuitosozinha.Achamosqueirialhefazerbemseacolhêssemosumameninadaidadedela.—VocêssabiamoquetinhaacontecidocomafamíliaSalander?— Não tínhamos conhecimento de todos os detalhes, mas sabíamos que havia acontecido algo

horroroso e traumatizante, que a mãe dela estava doente e o pai tinha sofrido queimaduras graves.Ficamos sensibilizados com a história e nos preparamos para receber uma menina destroçada, quenecessitariamuitodonossoamorecarinhoparaserecuperar.Esabeoquenosapareceu?—Não.—Ameninamais adorável domundo, e não estoume referindo apenas à beleza dela.MeuDeus,

Camillatinhaodomdapalavra,eramuitomaduraeinteligenteparaasuaidadeenoscontouhistóriashorríveisdecomosuairmã,quetinhaproblemasmentais,aterrorizavaafamília.Claroquehojeeuseique muita coisa não era verdade. Mas como podíamos duvidar dela? Seus olhos brilhavam, nospassavammuitaconvicção,equandodizíamos“Pobrezinha,comodevetersidohorrívelparavocê”,elafalava:“Nãoerafácil,maseuamoaminhairmã,elaédoenteeagoraestárecebendoajuda”.Pareciaumadulto falando,mostrava-se tão compreensiva, e por algum tempo a nossa impressão foi de que ela équemestavacuidandodenós.Afamíliainteiraseiluminoucomasuachegada,comosealgoglamoroso

Page 245: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

tivesseentradoemnossavidae tornado tudomaisbonitoegrandioso.NósdesabrochamoseatéMoapassoupormudanças,começouacuidardesuaaparênciaesetornoumaispopularnaescola.NãohaviaoqueeunãofizesseporCamilla,eKjell,meumarido,oqueeupossodizer?Elemudouradicalmente,começouasorrirmais,adar risadaeatévoltouameprocurarnacama,ah…desculpeasinceridade.Agora sei que eu deveria ter começado ame preocupar nessemomento,mas na época achei que eraapenasafelicidadevindofinalmenteseinstalarnanossafamília.Fomosmuitofelizesporalgumtempo,comotodossãoquandoconhecemCamilla.Todoscomeçammuitofelizesao ladodela,masdepoisdealgumtempocomela,vocênãotemmaisvontadedeviver.—Foitãoruimassim?—Muitoruim.—Oqueaconteceu?— Com o passar do tempo, foi como se um veneno tivesse se espalhado entre nós. Camilla foi

dominandoaospoucosanossafamília.Quandoanalisooqueaconteceu,nãoconsigolocalizarquandoafestaacaboueopesadelocomeçou.Aconteceudeummodoimperceptívelegradual,umdiaacordamosesimplesmente descobrimos que estava tudo destruído: a nossa confiança, a nossa segurança, toda aestrutura da nossa família.A autoestima deMoa, que tinha começado a se firmar, caiu por terra. Elapassavaasnoitesacordada,chorandoedizendoqueerafeia,umapessoahorrívelquenãomereciaestarviva. Sómais tarde descobrimos que a sua poupança no banco estava a zero.Até hoje não sei o queaconteceu,mas tenho quase certeza de queCamilla a chantageou.Chantagear era tão natural para elaquanto respirar.Camilla tinhaohábitode ir juntando informaçõescomprometedorassobreaspessoas.Pormuitotempoacrediteiqueelamantivesseumdiário,masoqueelaanotavaláeratodaasujeiraquedescobriasobreaspessoaspróximasaela.EKjell…aquelefilhodaputa.Sabe,acrediteinelequandoelemedissequeestavatendoinsôniaquasetodasasnoitesequeprecisavairparaoquartodehóspedes,noporãodecasa,tentardormir.MaseleialáparaficarcomCamilla.Desdequeelafezdezesseisanos,começouairseencontrarcomeleànoitenoporãoparafazeremsexopervertido.ChamodepervertidoporquepercebioqueestavaacontecendoquandopergunteiaKjelloqueeramaquelescortesnopeitodele.Elenãomeexplicou,claro.Apenasdeualgumarespostaevasivaeconfusa,queeuaceiteipara,dealgumaforma,negarminhassuspeitas.MasumdiaKjellacabouconfessando tudo.Camillacostumavaamarrá-lo e cortá-lo comuma faca.Ele disse que ela sentiamuito prazer com isso. Pode até parecerestranho,mas cheguei a desejar que fossemesmo verdade, que ela pelomenos sentisse algum prazernaquilo,nãoapenasquisessetorturá-loedestruiravidadele.—Elatambémchantageavaseumarido?—Ah,sim,masaindaficaramalgunspontosdeinterrogação.ElefoitãohumilhadoporCamillaque

nemmesmoquandotudojáestavaperdidoeleconseguiumecontartodaaverdade.Kjellsemprefoioportosegurodanossa família.Eleéquemnosacalmavaseerrássemosocaminhonumaviagemenosperdêssemos,seumcanoestourasseemcasa,sealguémficassedoente.Elenosgarantiaquetudoiadarcerto,comaquelejeitocalmoesensíveldele,comsuavozsempretranquilaqueeuescutoatéhojeemmeus pensamentos. Mas os anos de convivência com Camilla o arruinaram. Ele virou um trapo, umhomemquemaltinhacoragemdeatravessararua,queolhavacentenasdevezesparatodososladoscommedode que alguémo estivesse perseguindo e que perdeu toda amotivação para o trabalho.Apenas

Page 246: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

ficava lá sentadoemsua sala, sem fazernada.Umde seuscolegasmaispróximos,MatsHedlund,metelefonouumdiaemedissequeaEricsson,aempresaondeeletrabalhava,tinhaabertoumainvestigaçãoparadescobrirseKjellestavavendendoinformaçõesconfidenciais.JustoKjell,ohomemmaishonestoqueeuconheci!Masseele tivessemesmovendidoalgumacoisa,paraondetinhaidoodinheiro?Nósenfrentávamos uma situação financeira muito difícil, a conta dele no banco estava a zero e a nossapoupançatambém.—Comofoiqueelemorreu?—Eleseenforcousemnosdeixarumapalavradeexplicação.Euoencontreipenduradonoquartode

hóspedesdoporão,jámorto,quandovolteidotrabalho.OmesmoquartoondeCamillahaviasedivertidocom ele.Naquela época eu recebia um alto salário como chefe do departamento financeiro daminhaempresaetinhaumacarreirapromissora.MasdepoisdosuicídiodeKjell,omundodesabouparamimeparaMoa.Masnãovoumeaprofundarnisso,afinalvocêquersaberéoqueaconteceucomCamilla.Amorte domeumarido não pôs umponto final na nossa infelicidade.Moa começou a se automutilar eparoudesealimentar.Umdiameperguntouseeuaachavaasquerosa.“MeuDeus,minhaquerida,comoéquevocêpodedizerumacoisadessa?”,eurespondi.EntãoelamecontouqueCamillaatinhachamadoassimeditoquetodosqueaconheciamtambémaachavamasquerosa.Eurecorriatodaajudapossível,psicólogos,médicos,amigas,Prozac,masnadaajudouMoa.Numdiamagníficodeprimavera,quandoaSuéciainteiracomemoravaalgumaridículavitórianoEurovisionSongContest,minhafilhasejogoudeumabalsa,eaminhavidaafundoujuntocomela.Perdiavontadedeviverepasseimuitotempointernadanumhospital,metratandodeumadepressãoprofunda.Porémdepois…nãosei.Dealgumaformaadorea tristeza se transformaram em ódio e senti que precisava tentar entender o que realmente tinhaacontecidocomanossafamília.Queespéciedemaldadehavianosatingido?ComeceiainvestigaravidadeCamilla.Nãoqueeuquisessemeencontrar comeladenovo,não,de jeitonenhum.Maseuqueriaentendê-la, da mesma forma que a mãe de um filho assassinado busca entender o assassino e seusmotivos.—Eoqueasenhoradescobriu?—Noinício,nada.Elahaviaapagadotodososrastros,eracomoprocurarumasombra,umfantasma,e

nãofaçoideiadequantosmilharesdecoroasgasteicontratandodetetivesparticulareseoutraspessoasdesonestas que prometeram me ajudar. No entanto eu não chegava a lugar nenhum e essa frustraçãocomeçou a me enlouquecer. Fiquei obcecada, quase não dormia mais e meus amigos já não meaguentavam.Foioutraépocahorrível.Aspessoasmeachavamumaobcecada, teimosa,e talvezmuitasaindameachemassim.NãoseioqueHolgerPalmgrenlhedissearespeito,mas…—Oquê?—QuandoasuareportagemsobreocasoZalachenkofoipublicadanasuarevista,onomedelenãome

disse nada, mas à medida que fui lendo a história comecei a somar dois mais dois. Ao ler sobre aidentidadesuecadelecomoKarlAxelBodinesobrealigaçãodelecomoMCSvavelsjö,melembreidealgumasnoiteshorríveisquepassamos,quandoCamilla jáhavianosviradoas costas.Naquela épocacom frequência eu acordava com o barulho de motocicletas embaixo da janela do meu quarto e viaaquelescoletesdecourocomemblemassinistros.Nãomeespantavaqueelaandassecomaqueletipodegente,poiseujánãotinhanenhumailusãoquantoaela.Oqueeunãodesconfiavaéqueaquelebandode

Page 247: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

motoqueiros tivesse ligação comopassadodeCamilla, comas atividadesdopai e que elapretendiaassumirosnegóciosdeledepoisdesuamorte.—Elafezisso?—Ah,sim.Nomundosujodela,Camillaachavaquefazerissoeralutarpelosdireitosdasmulheres,

oupelos seuspróprios,eudiria,e seicomoesse tipode faladevia ser importanteparaasgarotasdoclube,principalmenteparaKajsaFalk.—Quem?—Umameninalindaeatrevidaquenamoravaumdoslíderes.Elafrequentoumuitoanossacasano

últimoanoemqueCamillaesteveconosco,eeugostavadela.Kajsatinhaolhosazuisgrandeseumpoucoestrábicos. Por trás daquele estilo rebelde, havia um rosto humano e frágil, e depois que li a suareportagemeuaprocurei.Elanãodisseumapalavra sobreCamilla, claro.Foi simpáticaeviqueelatinhamudadodeestilo.Amotoqueirahaviasetornadoumamulherdenegócios.MasnãoquismecontarnadasobreCamillaeconcluíqueeutinhadadoemoutrobecosemsaída.—Enãotinha?—Não,porquehácercadeumanoKajsameprocuroue,denovo,aencontreibastantemudada.Não

restavamaisnadadaquela jovematrevidae cheiadevida; elaparecianervosae amedrontada.Poucodepoisdessenossoencontro, foiencontradamortaa tirosnoginásiodeesportesdeStoraMossen,emBromma.Quandoestivemosjuntas,elamecontouquehaviaumadisputapelaherançadeZalachenko.AirmãgêmeadeCamilla,Lisbeth,haviaherdadomuitopoucoenemessapequenaparteelaquis.OgrossodaherançaficouparadoisfilhosdeZalachenkoqueviviamemBerlimeparaCamilla,queherdaraosnegócios de tráfico do pai que você descreveu na sua reportagem, o que fez omeu coração sangrar.DuvidoqueCamillaseimportassecomaquelasmulheresousentissealgumacompaixãoporelas.Elasónãoquisseenvolvercomotráficodemulheresporacharqueeracoisaparafracassados,comoeladisseaKajsa.Elatinhaumavisãocompletamentediferente,maismoderna,doqueaorganizaçãopoderiafazeredepoisdemuitasnegociaçõesumdeseusmeios-irmãoscomprouapartedela.CamillapegouodinheiroefoiemboraparaMoscou, levando tambémalgunsfuncionáriosquequiseramacompanhá-la, inclusiveKajsaFalk.—Vocêtemideiadoqueelapretendiafazerlá?—OenvolvimentodeKajsanosnegóciosdeCamillanãoeratãograndeparaqueelapudessetertido

noçãodoquesetratava,masnósduastínhamosasnossassuspeitas.DeviaseralgumacoisarelacionadacomalgunssegredosdaEricsson,ondemeumarido trabalhava.Hoje tenhocertezadequeCamilla fezKjellroubarevender informaçõessigilosasevaliosasparaela,possivelmentechantageando-o.Fiqueisabendoque, jánosprimeirosanosemqueestavaconosco,Camilla se aproximoudealgunsnerdsdaescola e mandou que eles hackeassem o meu computador. Kajsa me contou que Camilla sempre foiobcecadaporhacking,nãoqueelamesmativesseaprendidoousededicadoaisso.Massemprefalavadodinheiroquesepodiaganharentrandonascontasbancáriasdaspessoas,hackeandoservidores,roubandoinformações, coisas desse tipo. Por isso acho que os negócios dela devem estar relacionados comatividadesnessaárea.—Evocêdeveestarcerta.—É,ecomcertezaécoisadealtonível.Camillanuncaficariasatisfeitacommenos.Kajsadisseque

Page 248: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Camilla logo se infiltrou em grupos influentes de Moscou, tornando-se amante de um membro daAssembleiaLegislativarussa,umsujeitoricoepoderoso,equeporintermédiodeleelafezcontatocomumgrupomuito suspeitode engenheirosdeponta e criminosos.Camilla sabia como lidar comeles, eidentificavamuitobemospontosfracosdaeconomiainterna.—Queeram?—OfatodeaRússianãopassardeumpostodegasolinacomumabandeiranoalto.Elesexportam

petróleoegásnatural,masnãofabricamnadaderelevante.ARússiaprecisadetecnologiaavançada.—Eelaiaconseguirissoparaeles?—PelomenosfoioqueCamillaprometeu,emboraclaroqueeladeviaterseusprópriosinteressese

prioridades. Kajsa ficou impressionada com a maneira como ela construiu alianças com pessoasinfluentesláeconseguiuproteçãopolíticaparasimesma.KajsateriasidolealaCamillaatéaeternidadesenãotivesseficadotãoassustada.—Assustadacomquê?— Kajsa conheceu um antigo soldado de elite, um major, acho, e depois disso se desestruturou

completamente. Segundo informações confidenciais que haviam chegado ao amante de Camilla, essehomem tinha feito alguns trabalhos sujos para o governo russo. Ele havia assassinado uma jornalistafamosa,vocêdeveterconhecido,IrinaAzarova.Elatinhadenunciadomuitacoisasobreoregimerussonumasériedereportagenselivros.—Claro,umaverdadeiraheroína.Foiumahistóriaterrível.—Exatamente.Sóquealgumacoisadeuerradonoplanejamentodoassassinatodela.IrinaAzarovaia

seencontrarcomumcríticodoregimenumapartamentonumaruadeserta,numsubúrbioaosudestedeMoscou.Segundooplano,omajoratirarianelaquandoelasaíssedecasa.OqueninguémficousabendoéqueairmãdeIrinahaviacontraídopneumoniaeajornalistaestavatomandocontadasduassobrinhas,deoitoedezanos.Assimqueasmeninassaíramparaaruajuntocomatia,omajoratirounastrês.Eleasatingiunorostoe,depoisdessatragédia,caiuemdesgraça.Nãoqueogovernorussoseimportassecomascrianças,masaopiniãopúblicaestava saindodecontrole e aparticipaçãodogovernonoatentadocorria o risco de ser descoberta. Omajor temeu ser transformado em bode expiatório e tevemuitosproblemas pessoais. Suamulher o abandonou, deixando-o comuma filha adolescente, e ele quase foidespejadodeseuapartamento.UmcenárioperfeitoparaCamilla,porquenadamelhordoqueterpodersobreumapessoasemescrúpulosqueestánumasituaçãodesesperadora.Eelaaproveitouachance.Elefariatudoporela.—Entãoelarecrutouessemajorcaídoemdesgraça.—Sim,elesmarcaramumencontroeKajsafoijuntoeficoucompletamentefascinadaporessehomem

assim que o viu. Ele não era o que ela havia imaginado nem se parecia com os assassinos doMC

Svavelsjöqueelaconhecia.Tinhaumporteatléticoe,separeciaviolento,tambémpareciaeducadoedecerta formaatévulnerávelesensível.Kajsapercebeuqueelesesentiamalpor ter tidoqueatirarnascrianças. Claramente era um assassino frio, um homem que na guerra da Chechênia atuou comotorturador,masquemantinhadentrodesialgumasreservasmorais,elamedisse,efoiporessarazãoqueelasepreocupouquandoeleliteralmentecaiunasgarrasdeCamilla.Issomesmo,literalmente.Camillapassousuasunhasnopeitodele,comoumgato,edisse:“Euqueroquevocêmatepormim”,carregando

Page 249: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

essas palavras com uma tensão sexual, com poder erótico, sabe. Com uma habilidade diabólica, eladespertouo sadismodohomem.Quantomais ele contava sobredetalhes de suas torturas,mais ela seexcitava,enãoseiseentendobemessascoisas.Masfoiisso,eapenasisso,queassustouKajsa,enãoopróprio assassino. Foi ver Camilla, com sua beleza, conseguir despertar a besta contida dentro dele,fazeroolharmelancólicodelebrilharcomoodeumanimalselvagem.—Vocênuncalevouàpolíciatodasessasinformações?—EupergunteiaKajsaváriasvezesseelaachavaqueeudeveriaprocurarapolícia.Eudissequeela

pareciamuitoassustadaequeprecisavadeproteção.Elamegarantiuquejátinhaproteção.Alémdisso,meproibiudefalarcomapolícia,eeufuiumaidiotaemobedeceraela.Depoisdasuamorte,conteiaosinvestigadoresoqueeu tinhaouvido,maselesnãoacreditaramemmim.Tudoqueeusabiaeradeumhomemsemnomedeoutropaís,CamillanãoconstavaemnenhumregistroaquinaSuéciaenuncafiqueisabendoquenomeelatinhapassadoausar.Enfim,aminhadeclaraçãonãoajudouemnadaaesclareceroassassinatodeKajsa,queatéhojenãofoisolucionado.—Entendo—disseMikael.—Vocêentende?—Acho que sim— ele disse, e ia pôr amão no braço deMargareta, em sinal de solidariedade,

quandoavibraçãodocelularemseubolsoodeteve.EsperavaquefosseAndrei,maseraStefanMolde.Depoisdealgunsinstantes,Mikaelconseguiuidentificá-locomoapessoadoFörsvaretsRadioanstaltquehaviaconversadocomLinusBrandell.—Dequesetrata?—perguntouMikael.—É sobre uma reunião com alguém do alto escalão que está vindo para a Suécia encontrar você

amanhãcedonoGrandHotel.MikaelgesticulouumpedidodedesculpasparaMargaretaDahlgren.—Estoucomaagendacheia—eledisse.—Eseeufossemeencontrarcomalguém,precisariapelo

menossaberonomedapessoaedequeassuntosetrata.—O nome é Edwin Needham e o assunto se refere a alguém de codinomeWasp, suspeito de ter

cometidoumcrimegrave.Mikaelsentiuumaondadepânico.—Estábem—disse.—Aquehoras?—Àscincodamanhãseriaperfeito.—Vocêdeveestarbrincando!—Infelizmente,nãohánenhumabrincadeiraenvolvendoesseassunto.Eu recomendoquevocê seja

pontual.OsenhorNeedhamoreceberáemsuasuíte.Vocêdevedeixarocelularnarecepçãodohoteleserárevistado.—Euentendo—eledissecomumacrescentesensaçãodedesconforto.Encerradaaconversa,MikaelselevantouesedespediudeMargaretaDahlgren.

Page 250: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

III.PROBLEMASASSIMÉTRICOS24DENOVEMBROA3DEDEZEMBRO

Muitasvezesémaisfáciljuntardoqueseparar.

Atualmente, os computadores conseguemmultiplicar com facilidadenúmerosprimos commilhõesdedígitos.No

entanto, é extremamente complicado reverter o processo. Números com apenas algumas centenas de dígitosapresentamproblemasimensos.

Algoritmos criptografados como o RSA se aproveitam das dificuldades que envolvem a fatoração de números

primos.Osnúmerosprimosacabaramsetornandoosmelhoresamigosdosigilo.

Page 251: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

25.MADRUGADAEMANHÃDE24DENOVEMBRO

Não demorou muito para Lisbeth descobrir quem era o homem chamado Roger que August haviadesenhado. Num site sobre atores que haviam atuado no teatro Revolutionsteatern, em Vasastan, elareconheceuaversãomaisjovemdeRoger.SeunomeeraRogerWinter,ealidiziaqueeleganhoufamadeserumhomemviolentoeciumento.Nocomeçodacarreira,interpretarapapéisimportantesnocinema,mas nos últimos tempos caíra no esquecimento, tendo se tornado menos conhecido que seu irmãocadeiranteTobias,umloquazprofessordebiologiaque,peloquesedizia,haviacortadorelaçõescomRoger.Lisbeth anotou o endereço de Roger Winter e em seguida hackeou o supercomputador NSF MRI.

Também abriu seu programa de computador, no qual tentava construir um sistema dinâmico paraencontrarascurvaselípticasmaisapropriadas,comomenornúmeropossíveldeiterações.Porém,pormais que tentasse, não conseguia se aproximar de uma solução. Como o arquivo da NSA continuavaimpenetrável, Lisbeth desistiu, se levantou e foi dar uma olhada na cama em que August estava. Elasoltouumpalavrão.Omeninoestavaacordado,sentadonacamaeescrevendoalgumacoisanumpapelemcimadamesade cabeceira.Quandoela se aproximou,viuque eramnovas fatoraçõesdenúmerosprimos.Lisbethmurmuroualgumacoisaconsigomesmaedepois,nummesmotomdevozsério,disse:—Nãoéumaboaideia.Nãoestamoschegandoalugarnenhumcomisso.EquandoAugustmaisumavezcomeçouasebalançarparaafrenteeparatrás,freneticamente,elao

mandoupararcomaquiloedormir.Jáera tardeeela resolveudescansarumpouco também.Foi sedeitarnacamadoquartoao ladoe

tentoudormir.Masfoiimpossível.Augustviravaesereviravanacama,faziabarulho,choramingava,enofimLisbethdecidiuiratéládizermaisalgumacoisaparaele.Omelhorqueelaconseguiupensarfoi:—Vocêsabealgumacoisasobrecurvaselípticas?Como ela já esperava, não recebeu nenhuma resposta. Porém isso não a impediu de dar a ele uma

explicação,daformamaissimpleseclaraqueconseguiu.—Entendeu?—elaperguntou.ClaroqueAugustnãorespondeu.—Certo—eladisse.Pegueporexemploonúmero3034267.Euseiquevocêconsegueencontrar

comfacilidadeosfatoresprimosdele.Masissotambémpodeserfeitousandoascurvaselípticas.Vamosescolher,porexemplo,acurvay2=x3–x+4eopontoP=(1,2)naquelacurva.Elaseinclinousobreamesadecabeceiraeanotouaequaçãonumpapel,masAugustnãopareciaestar

Page 252: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

acompanhando,eLisbethselembroudoquelerasobreosgêmeosautistas.Dealgumamaneiramisteriosaeles tinham a capacidade de encontrar números primos imensos, mas não conseguiam solucionarequações simples. Talvez fosse assim com August também. Talvez ele fosse mais uma máquina decalculardoqueumgêniodamatemática,oqueagoranãotinhaamenorimportância.Seuferimentoestavadoendo de novo e ela precisava dormir. Precisava espantar todos os demônios de sua infância quehaviamressuscitadoporcausadomenino.Passava da meia-noite quando Mikael Blomkvist chegou em casa. Mesmo exausto e precisando

acordarmuito cedo no dia seguinte, foi para o computador procurar alguma informação sobre EdwinNeedham.Descobriu que havia alguns EdwinsNeedham nomundo, entre eles um famoso jogador derúgbiquehaviavoltadoàativadepoisdesecurardeumaleucemia.HaviaumEdwinNeedhamespecialistaempurificaçãodeáguaeoutroqueerabomemposarnasfotos

comcaradeidiotaaoladodegentedasociedade.Nenhumdelespareciaalguémcapazdeterquebradoaidentidade de Wasp, acusando-a agora de crimes. Mas havia um Edwin Needham engenheiro decomputaçãocomdoutoradonoMIT quepelomenos erada área, emboranemesseparecesse serquemMikael buscava. Oficialmente ele era um executivo sênior da Safeline, empresa líder nomercado deproteçãoantivírusparacomputadores.Umaempresaquecertamenteseinteressariaporhackers.MasasdeclaraçõesqueesseEd,comoeleeraconhecido,davaemsuasentrevistaseramapenassobrefatiasdemercadoenovosprodutos.Nenhumapalavraqueelediziaiaalémdoshabituaisclichêsdevendedores,nemmesmoquandofoiconvidadoafalarumpoucosobreseushobbies,queeramobolicheeapesca.Eleamavaanatureza,disse,eleamavaoaspectocompetitivo…Acoisamaisperigosaqueelepareciasercapazdefazereramataraspessoasdetédio.Umafotoomostravasorrindoesemcamisa,segurandoumsalmãoenorme,otipodefotografiaqueé

figurinhacarimbadaemcírculosdepescadores.Elaera tãoenfadonhaquanto tudoalisobreele,eaospoucosMikaelcomeçouadesconfiarsetransmitirumaimagemtãodesinteressantecomoaquelanãoseriajustamentea intençãodeEd.Releu todoomateriale teveasensaçãodeque todaaquelavidapoderiamesmoserapenasfachada,elentamente,ecadavezmaisconvicto,concluiuqueaqueleeraohomemcomquem iria seencontrarnodia seguinte.Davapara sentirocheirodo serviço secretoaquilômetrosdedistância, não dava? Parecia ser coisa daNSA ou daCIA, e, olhando de novo para a foto do salmão,Mikaelagoranotoualgocompletamentediferente.Viualiumrapazcorajosofingindoseroutracoisa.Haviadeterminaçãonamaneiracomoeleestava

diantedacâmera,eseusorrisoparecialevementeirônico,pelomenosfoioqueMikaelimaginou,eentãoelepensouemLisbeth.Perguntou-sesedeveriacontaraela.Masaindanãohaviarazãoparapreocupá-la,principalmenteporqueatéentãoelenãosabiadenada.Resolveu irparaacama.Precisavadormirmesmo que só por algumas horas, para estar com a cabeça lúcida quando se encontrasse com EdNeedhamnamanhãseguinte.Pensativo,escovouosdentes,tirouaroupaesedeitounacama,percebendoqueestavamaiscansadodoquehaviaimaginado.AdormeceunahoraesonhouqueestavaseafogandonorioondeEdNeedhamhaviapescadoseusalmão.Depois,teveumavagaimagemdesimesmonofundodo rio, cercado de salmões agitados.Mikael não deve ter dormido pormuito tempo.Acordou de um

Page 253: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

salto,comafortesensaçãodequehaviadeixadoescaparalgumacoisa.SeucelularestavanamesadecabeceiraeseupensamentosevoltouparaAndrei.Eleestiveranoseusubconscienteotempotodo.Lindahaviatrancadoaportacomdoiscadeados,eclaroqueissoeramuitonatural.Depoisdetudo

que ela havia passado, precisava tomar um cuidado extra com sua segurança.Ainda assimAndrei sesentiudesconfortável.Deviaseroapartamento,pensou,tentandosetranquilizar.Nãoeranadadoqueeleesperava.Aquiloseriamesmoacasadeumaamigadela?Acamaeralargamasumpoucocurta.Eacabeceiraeopédacamaeramumatreliçadeaçobrilhante.

Acolchapretao fezpensarnumesquifeounum túmulo, eelenãogostoudosquadrosnasparedes.Amaioriaeramfotografiasdehomenscomarmas,eoapartamentoeraestéril, frio.Nãopareciao lardeumapessoalegal.Mastambémpodiaserqueeleestivessenervosoeexagerandoascoisas.Outalvezapenasquisesse

umadesculpaparasairdali.“Umhomemsemprequerfugirdaquiloqueeleama”,nãofoimaisoumenosissoqueOscarWildehaviadito?EleolhouparaLinda.Nuncatinhavistoumamulhertãomagníficanavidaeisso,porsisó,jáerabemassustador,eagoraelavinhaseaproximandodelecomaquelevestidojustoeazulquedestacavasuasformasedizendo,comosetivesseadivinhadoseuspensamentos:—Vocêprefereirparacasa,Andrei?—Naverdade,euaindatenhomuitacoisaparafazer.—Euentendo—eladisse,dando-lheumbeijo.—Então,claroquevocêdeveirparacasatrabalhar.—Talvezsejamelhor—elemurmurouenquantoelaseencostavaneleeobeijavanovamente,com

tantaveemênciaqueelesedesarmou.Eleabeijoutambém,agarrando-apelosquadris.Entãoelaoempurroucomtantaviolênciaqueelese

desequilibrouecaiudecostasnacama,eporuminstantesentiumedo.MasquandoolhouparaLindaelalhesorriucomamesmaternuradeantes,oqueofezpensarqueaquiloeraapenasumabrincadeiradeamor agressivo. Ela realmente o queria, não queria? Queria transar com ele naquele momento e eledeixouLindasentaremcimadeleedesabotoarsuacamisa.Comosolhosbrilhandodeintensidade,elapassouasunhaspeloabdômendele,enquantoseusseiosvolumososarfavamsobovestido.AbocadeLinda estava entreaberta e um fio de saliva escorria pelo queixo. Ela cochichou algo para ele, masAndreinãoouviu.Era“Agora,Andrei”.—Agora!—Agora—elerepetiuumpoucoemdúvida,enquantoelaarrancavaacalçadele.Elaestavamais

excitadadoqueeleesperavaeeramuitomaislascivaeselvagemdoquequalquermulhercomquemelejáestivera.—Fecheosolhosenãosemexanemummilímetro—eladisse.Elefechouosolhosepermaneceuimóvel,ouvindo-amexeremalgoquepelosomelenãoconseguiu

identificar.Ouviuumcliqueesentiuumfriometálicoemvoltadospulsos.Olhouparacimaeviuqueestavaalgemado.Quisprotestar,dizerquenãogostavadaqueletipodesexo,mastudoestavaindorápidodemais.Àvelocidadeda luz, comose já tivesse experiêncianoassunto, elaprendeuasmãosdelenacabeceiradacama.Emseguidaamarrouseuspéscomumacorda,apertandobem.

Page 254: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Cuidado—elealertou.—Nãosepreocupe.—Quebom—eledisse,eentãoviuqueelaoolhavadeumjeitocompletamentenovo,eeraumolhar

bemdesagradável,elepensou.Emseguidaeladeclaroualgumacoisanumtomsolenequeeleachouterentendidomal.—Oquefoiquevocêfalou?—Queagoraeuvoucortarvocêcomumafaca,Andrei.—Edepoisdedizerisso,pôsrapidamente

umafitaadesivanoslábiosdele.Mikaeltentavaseacalmar.OquepoderiateracontecidocomAndrei?NinguémalémdeleedeErika

sabia queAndrei estava envolvido na proteção de Lisbeth e domenino. Eles nunca haviam sido tãocautelososcomumainformaçãocomoagora.Noentanto…porquenãoconseguiafalarcomAndrei?Elenãoeradeignorartelefonemas.Pelocontrário,atendiarápido,aoprimeirosinal.Masagoraera

impossívelentraremcontatocomele,eissoeraestranho.Ouquemsabe…MaisumavezMikaeltentouseconvencerdequeAndreipodiaestarapenasconcentradodemaisnotrabalhoeterperdidoanoçãodotempoouque,napiordashipóteses,tivesseperdidoocelular.Nãodeviasernadaalémdisso.Mesmoassim… Depois de todos aqueles anos, Camilla havia surgido do nada. Alguma coisa estavaacontecendo,comcerteza.OqueeramesmoqueoinspetorBublanskitinhadito?“Vivemosnummundoemqueparavocêsemantersaudávelvocêprecisaserparanoico.”Mikaelesticouobraço,pegouotelefoneeligoudenovoparaAndrei,quemaisumaveznãoatendeu.

Entãodecidiuacordaromaisnovomembrodaequipe,EmilGrandén,quemoravapertodeAndrei,naRödaBergen,emVasastan.Emilatendeusemmuitoentusiasmo,masprometeuirnaqueleinstanteatéacasadeAndreiparaverseeleestavalá.Vinteminutosdepois,eleligouparaMikael,contandoquehaviabatidonaportadeAndreiváriasvezes.—Elenãoestáemcasa,dissoeutenhocerteza.Mikaeldesligouotelefone,sevestiuesaiudepressadecasa,percorrendoseutempestuosoedeserto

bairrodeSöder,emdireçãoàMillennium,naGötgatan.Comumpoucodesorte,pensou, iaencontrarAndreiadormecidonosofádaredação.NãoseriaaprimeiravezqueAndreicaíanosonoenãoescutavao telefone. Com alguma sorte seria essa a explicação. Mesmo assim Mikael se sentia mais e maisinquietoequandodesligouoalarmeeabriuaportadaredaçãoele tremeu,comosefossedardecaracom alguma cena trágica.No entanto, pormais cuidadosamente que tivesse inspecionado o local nãoencontrou nada fora do lugar, e todas as informações de seu e-mail criptografado haviam sidocuidadosamente deletadas, como eles tinham combinado. Tudo parecia estar certo; só não havia umAndreidormindonosofá.Osofádaredaçãopareciamaisnojentoevaziodoquenunca,eMikaelsesentoualicomacabeçaa

milporhora.Emseguida,telefonoudenovoparaEmilGrandén.—Emil—eledisse.—Desculpeeuincomodarvocêmaisumavezemplenamadrugada,mastoda

essahistóriaestámedeixandoparanoico.—Claro,euentendo.

Page 255: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—QuandoeulhepergunteisobreAndrei,vocêmepareceuumpoucoincomodado.Temalgumacoisaquevocênãomecontou?—Nadaquevocêjánãosaiba—respondeuEmil.—Oquevocêquerdizercomisso?—QueeutambémjáfaleicomaInspeçãodeDados.—Comoassim,vocêtambém?—Vocêquerdizerquevocênão…—Não!—gritouMikael,interrompendo-oeouvindoarespiraçãodeEmilsetornarpesadadooutro

ladodalinha,epercebendoquehaviaacontecidoalgumenganoterrível.—Desembucha,Emil,rápido!—Mas…—Oquê?—UmamoçamuitosimpáticaemuitoprofissionaldaInspeçãodeDados,chamadaLinaRobertsson,

telefonoudizendoquevocêshaviamcombinadodeaumentaroníveldesegurançadoseucomputadorporcausadasatuaiscircunstâncias.Tinhaavercomalgumasinformaçõespessoaisedenaturezadelicada.—Eoquemais?—Eladissequehaviapassadoinformaçõeserradasparavocêequeestavachateadacomisso.Disse

queestavaconstrangidacomafaltadeconhecimentoqueelademonstrouepreocupadaqueaproteçãonão fosse suficiente, por issoprecisava entrar emcontato comapessoaquehavia feito a criptografiaparavocê.—Eoquevocêdisse?—Eudissequenãosabiadenadadesseassunto,queeuapenas tinhavistoAndreimexendonoseu

computador.—EaívocêrecomendouqueelaentrasseemcontatocomAndrei.— Eu estava na rua quando ela telefonou, então eu falei pra ela que Andrei ainda devia estar na

redaçãoequeelapoderiatelefonarpraele.Foiisso.—MeuDeus,Emil!—Maselapareciatão…—Nãomeinteressacomoelaparecia,Emil!SóesperoquevocêtenhafaladocomAndreisobreessa

ligação.—Nãodeutempodefazerissonahora.Eutambémestousobrecarregado,comotodomundo.—Masdepoisvocêfaloucomele,certo?—Não,porqueeleacabousaindoantes.—Masvocêtelefonouparaele?—Claro,muitasvezes,sóque…—Oquê?—Elenãoatendeu.—Certo—disseMikaelcomumaevidentefriezanavoz.Assimquedesligou,MikaeltelefonouparaJanBublanski.Depoisdasegundatentativa,conseguiufalar

comumsonolentoinspetor.Mikaelnãoviuoutrasaídasenãocontartodaahistóriaparaele.Contou-lhe

Page 256: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

tudomenosondeLisbetheAugustestavam.Emseguida,tambémpôsErikaapardetudo.LisbethSalanderhaviaadormecido.Masdealgumaformaestavaprontaparaaação,poiscostumava

dormircompletamentevestida,inclusivecomsuajaquetadecouroebota.AlémdissoacordavatodahoraouporcausadosbarulhosdatempestadeoudosqueAugustfaziaaodormir,gemendoechoramingando.Mas namaioria das vezes voltava a dormir, ou pelomenos cochilava, e de tempos em tempos tinhasonhoscurtoseextremamenterealistas.Agora estava sonhando que o pai espancava suamãe, emesmono sonho ela sentiu amesma raiva

intensa da infância. Tudo pareceu tão real que ela acordou de novo. Eram três e quarenta e cinco damanhã, e namesa de cabeceira estavamos papéis emque ela eAugust haviam escrito seus números.Nevava,masatempestadepareciaterseacalmadoumpouco,eagoranãoseouvianenhumruídoforadonormal,apenasoventoassobiandoeaçoitandoasárvores.Noentanto,elasesentiainquietaepensouquepodiaserosonhoaindapairandonoquartocomouma

redefinaevaporosa.Derepente,estremeceuaoveracamavaziaaoladodasua.Augustnãoestavalá.Lisbethselevantoudepressae,semfazernenhumsom,pegousuaBerettanabolsaqueestavanochãoefoiseencaminhandomuitodevagarparaocômodograndequedavaparaavaranda.Mas então voltou a respirar aliviada.August estava sentado àmesa redonda, entretido comalguma

coisa.Elaseaproximoudiscretamente,paranãoperturbá-lo,seinclinouportrásdosombrosdeleeviuqueAugust não estava escrevendonenhumanova fatoraçãode números primosnemdesenhando cenasviolentasprotagonizadasporLasseWestmaneRogerWinter.Ele estavadesenhandoquadradosdeumtabuleiro de xadrez que se refletiam nos espelhos de um armário, acima dos quais se via uma figuraameaçadoracomamãoestendida.Finalmenteoassassinocomeçavaaganharforma.Lisbethsorriueemseguidaseafastou.Noquarto,sesentounacama,tirouablusaeasataduraseexaminouseuferimento.Aindanãoparecia

nadabom,eelasesentiafracaezonza.Tomoumaisdoisantibióticos,sedeitouparadescansarumpoucoeacabouadormecendo.TeveavagasensaçãodetervistoZalaeCamillaemseusonho.Nesseinstantepercebeualgumacoisa.Nãotinhaideiadoqueera,excetoquepodiasentirumapresença.Umpássarobateuasasasláfora.OuviaarespiraçãopesadaedifícildeAugustnocômodoaolado.Lisbethestavaprestesaselevantaroutravez,quandoumgritopenetrantecortouoar.QuandoMikaelsaiudaredaçãonocomeçodamanhãparapegarumtáxieirparaoGrandHotel,ainda

não tinha tido notícia de Andrei, e de novo tentou se convencer de que estava se atormentando semnecessidadeequeaqualquermomentoseucolegairiatelefonardacasadealgumagarotaoudealgumamigo.Mas a preocupação não o deixava empaz e, enquanto observava que tinha começado a nevaroutravezequealguémhavialargadoumpédesapatofemininonacalçada,pegouseuSamsungeligouparaLisbethpeloaplicativoRedphone.Elanãoatendeu,oqueodeixoumaisnervoso.Tentououtravezeporfimenviouumamensagemde

Page 257: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

textopeloappThreema:Camillaestáatrásdevocês.Melhorabandonaroesconderijo!EntãoacenouparaumtáxiquevinhadaHökensgatae,quandoocarroparou,Mikaelficoumomentaneamentesurpresoao perceber que o motorista se assustou ao vê-lo. Mikael devia mesmo estar parecendo alguémperigosamentedeterminadonaquelemomento,esuaexpressãonãomelhorouemnadaquandoomotoristatentoupuxarconversa.Mikaelpreferiunãorespondereapenasficousentadoláatrásnoescurocomosolhosfaiscandodeaflição.Estocolmoestavapraticamentedesertaàquelahora.Embora a tempestade tivesse amainado, as ondas ainda estavam encrespadas. Mikael observou o

GrandHoteldooutroladodaenseada,pensandosenãoseriamelhordesmarcarareuniãocomNeedhameirdiretoverLisbeth,ouentãopedirqueapolíciadesseumapassadaporlá.Não,nãopodiafazerissosemavisá-la.E, sehaviaumvazamento, seriaumacatástrofe se a informação sobreo esconderijodeLisbethseespalhasse.EleabriuoThreemadenovoeescreveu:Vocêsprecisamdeajuda?Nãorecebeuresposta.Claroquenãorecebeuresposta,etãologopagouacorridaedesceudotáxi,foi

caminhandopensativoemdireçãoàsportasgiratóriasdaentradadohotel.Eramquatroevintedamanhãeeleestavaquarentaminutosadiantado.Nuncahaviachegadoquarentaminutosmaiscedoanenhumtipodecompromisso,maseracomosehouvessealgoqueimandodentrodele.Antesdeiratéarecepçãoparaalideixarseutelefone,comohaviasidocombinado,ligouparaErikaepediuqueelatentassefalarcomLisbeth, que também se mantivesse em contato com a polícia e que tomasse a decisão que achassenecessária.—Sehouveralgumanovidade,ligueparaoGrandHotelepeçaquetransfiramaligaçãoparaosenhor

Needham.—Equeméele?—Umapessoaquequerfalarcomigo.—Aestahora?—Sim,aestahora—elerespondeu,dirigindo-seàrecepção.EdwinNeedhamestavahospedadonasuíte654.QuandoMikaelbateuàporta,elafoiabertaporum

homemqueexalavasuoreraiva.Eleeratãoparecidocomafotografiadapescarianainternetquantoumditador de ressaca e sua estátua. Ed Needham tinha uma bebida na mão e parecia de mau humor;descabelado,eraoprópriobuldogue.—Mr.Needham—disseMikael.—PodemechamardeEd.Peçodesculpasporincomodá-loaestahora,masoassuntoédeextrema

urgência.—Éoqueparece—respondeuMikael,seco.—Vocêtemideiadoqueeuestoufalando?Mikael fez que não com a cabeça e se sentou numa poltrona junto a umamesa em que havia uma

garrafadegimeumatônicaSchweppes.—Não,claro,porquevocêteria,nãoé?—disseEd.—Poroutrolado,comtiposcomovocêagente

nuncasabe.Andeiteinvestigando,eébomvocêficarsabendoquenãosoudeelogiarninguém.Mesobeumgostoamargonaboca.Masvocêérealmenteforadesérienasuaárea,nãoémesmo?

Page 258: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Mikaeldeuumsorrisoforçadoedisse:—Seráquevocêpodeirdiretoaoponto?—Calma,calma,embrevevouserclarocomoumcristal.Vocêjádevesabernoqueeutrabalho.—Nãotenhomuitacerteza—respondeuMikaelcomfranqueza.—NoPuzzlePalace,emSIGINTCity.Trabalhoparaaempresamaisodiadadoplaneta.—ANSA.—Exatamente.Evocêtemnoçãodoquantoalguémprecisaserestupidamenteimbecilpramexercom

agente,MikaelBlomkvist?—Possoimaginar.—Evocêsabeondeeuachoquerealmenteasuaamigadeveriaestar?—Não.—Nacadeia.Condenadaàprisãoperpétua!Mikaelabriuoqueeleesperavatersidoumbrevesorrisocalmoecontrolado.Masnarealidadeseus

pensamentosgiravamsemparar.Percebeuquequalquercoisapodiateracontecidoequeelenãodeviatirar conclusões precipitadas, mas um pensamento lhe ocorreu de imediato: será que Lisbeth tinhahackeado aNSA? Só a ideia já o deixava angustiado.Não bastava ela estar sendo perseguida por umassassino?Seráqueelatinhaconseguidopôrtodooserviçosecretoamericanoatrásdela?Issoparecia…bem,oqueissoparecia?Pareciainconcebível.O que diferenciava Lisbeth era que ela nunca tomava nenhuma decisão sem antes ter analisado

minuciosamenteasconsequências.Suasaçõesnãoeramfrutodaimpulsividadeoudecaprichos,porissoeleachavaimpossívelelaterfeitoalgotãoidiotaquantoentrarnoscomputadoresdaNSA,sehouvesseomenorriscodeelaserdescoberta.MuitasvezesLisbethfaziacoisasperigosas,éverdade.Masosriscoseram sempre proporcionais aos benefícios. Ele se negava a acreditar que ela teria invadido oscomputadoresdoserviçosecretoamericanoapenasparaserdescobertaporaquelebuldoguerabugentoparadoàsuafrente.—Achoquevocêsestãoseprecipitando—disseMikael.—Vai sonhando, cara. Você deve terme ouvido dizer a palavra “realmente” agora há pouco, não

ouviu?—Sim,ouvi.—Quepalavrinha,hein?Elapodeserusadademuitasmaneiras.Eurealmentenãobebodemanhã,

masaquiestoueucomumdrinquenamão,haha!Oqueeuestoutentandodizeréquetalvezvocêpossasalvarapeledasuaamigasemeajudarcomalgumascoisinhas.—Estouescutando—disseMikael.— Você é um cara honesto. Deixa eu primeiro te pedir uma garantia. Preciso saber se você vai

protegeromeusigilocomosuafonte.Mikaeloolhousurpreso,poisnãoeraoqueestavaesperandoouvir.—Vocêéalgumaespéciededelator?—Deusmelivre,não!Nãopassodeumvelhocãomuitoleal.—MasentãovocênãoestáoficialmentefalandopelaNSAagora.Éisso?—Digamosquenestemomentoeuestoucumprindoaminhaprópriaagenda,agindoporcontaprópria.

Page 259: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Eaí?—Seunomenãoserámencionado.—Ótimo,equeroquevocê tambémmegarantaqueoqueagenteconversaraquivai ficarsóentre

mimevocê.Parecemeioestranho,nãoé?Porque,afinal,euiriacontarumahistóriafantásticaparaumjornalistaedepoispedirqueelefiquedebicocalado?—Boapergunta.—Eu tenhoosmeusmotivose,pensandobem,achoquenemprecisopedirquevocêsejadiscreto.

Desconfioquevocêqueriaprotegerasuaamigae,noquetedizrespeito,ahistóriainteressanteestáemoutrolugar.Podeseratéqueeuteajudenisso,sevocêcolaborarcomigo.—Vamosver—disseMikael,sério.—Bom,unsdiasatrásanossaredeinterna,popularmenteconhecidacomoNSANet,foiinvadida.Você

ouviufalardisso,nãoouviu?—Maisoumenos.—ANSANet foi criada depois doOnze deSetembro como objetivo de aprimorar, por um lado, a

coordenação dos nossos serviços secretos e, por outro, a organização dos espiões nos países anglo-saxônicos,oschamadosFiveEyes.Elaéumsistemafechado,comseuspróprios roteadores,portaisepontes, e completamente separado da internet. É de lá, através de satélites e fibras ópticas, queadministramos o SIGINT, e é lá também que fica o nosso maior banco de dados, nossas análises erelatórios de alta segurança, sejam eles chamados deMoray, para falar domenos confidencial, ou deUmbraUltraTopSecret,quenemmesmoopresidentedopaísestáautorizadoaver.Aadministraçãodosistema é feita noTexas, o que eu acho amaior imbecilidade.Mas depois das últimas atualizações everificações, eu considero esse sistema como se fosse o meu filho. Fique sabendo, Mikael, que eutrabalheicomoumlouconoiteediapraquenenhumidiotaconseguissefazermauusodosistemaemuitomenosentrareespionar,ehojeemdiaomenorsinaldeirregularidade,omenormovimentoládentro,mefazdesconfiarqueeunãoestousozinho.Temosumaequipedeespecialistasquemonitoraosistema,eéimpossívelfazerqualquermovimentodentrodanossaredesemdeixaralgumrastro.Pelomenoserapraserassim.Tudoéregistradoedevidamenteanalisado.Éimpossívelapertarumateclaládentrosemquealguémperceba,sóquemesmoassim…—Acabouacontecendo.—Sim,eeuacabeiaceitandoisso.Semprehápontosfracos.Elesexistemparanosaperfeiçoarmos.

Ospontos fracos nos fazem ficar alertas e comos pés no chão.Masnão foi só porque ela conseguiuentrarqueeufiqueifurioso.Foiamaneiracomoelaentrou,forçandoonossoservidorderede,criandoumaconfiguraçãoavançadadeponteeinvadindoumdosnossossistemasadministrativosdaredeinterna.Sóessapartedaoperaçãojáfoiumgolpedemestre,masaindatevemais.Elasetransformounumghostuser.—Numoquê?—Numespírito,numfantasmaqueficoupairandoládentrosemagenteperceber.—Semqueoseualarmesoasse.—Essa filhadaputagenial introduziuumvírusespiãoquedevia serdiferentede tudoqueagente

conhecia,senãoonossosistemateriaidentificado.Essevírusfaziaatualizaçõesconstantesnostatusdela,

Page 260: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

eassimelafoiganhandocadavezmaisespaçoládentroeconseguiudescobrirsenhasecódigossecretos.Depoiselacomeçouarelacionarregistrosebancosdedados,atéque…bingo!—Comoassim,bingo?—Elaencontrouoquebuscavaeapartirdaídeixoudeserumghostuserequisnosmostraroque

haviaencontrado.Efoisóaíqueosmeusalarmesinternoscomeçaramasoar.—Oquefoiqueelaencontrou?—Elaencontrouanossahipocrisia,Mikael,onosso jogoduplo,eéporessa razãoqueestouaqui

hojecomvocêenãoláemMarylandbotandoosFuzileirosNavaisatrásdela.Elaagiucomoumladrãoquearrombaumacasaapenasparamostrarqueacasajáhaviasidoroubada,e,noinstanteemqueaNSAdescobriuisso,elasetornourealmenteumperigo.Tãoperigosaquealgunsládentroquiseramdeixá-laempaz.—Masnãovocê.—Não,eunão.Euqueriaeraamarrá-lanumposteeflagelá-laviva,masfuiobrigadoadesistirda

minhacaça,Mikael,eissomedeixoufurioso.Euatépossoparecerrazoavelmentecalmoagora,masnaverdade…—Vocêestámaisquefurioso.—É,digamosquesim.Porissoéqueeuchameivocêaqui.EuqueroencontraraWaspantesqueela

fujadopaís.—Porqueelafugiria?—Porqueeladescobriuumaloucuraatrásdaoutra,nãofoi?—Eunãosei.—Vocêsabe,sim.—Oquefazvocêpensarqueelaéahackerquevocêestáprocurando?—Éoqueeupretendolhecontar,Mikael.MasEdnãopôdecontinuar.O telefone do quarto tocou e Ed atendeu. Era o recepcionista, à procura deMikael Blomkvist. Ed

passouoaparelhoparaMikaelepercebeuqueojornalistahaviarecebidoumanotíciagrave.Porissoelenãoestranhouquandoosuecomurmurouumpedidoconfusodedesculpase saiuàspressasdoquarto.Nãoestranhoue tambémnãoseconformou.Edarrancouseucasacodocabidee foicorrendoatrásdeMikael.Maisadiante,nocorredor,Blomkvistcorriacomoumatletae,mesmosemsaberdoquesetratava,Ed

desconfiou que o telefonema tivesse alguma relação com o assunto que os dois estavam discutindo edecidiu iratrásdo jornalista.Se tinhaavercomWaspouBalder,eleestaria lá.ComoBlomkvistnãotiverapaciênciaparaesperaroelevadoredesceraasescadascorrendo,Edchegouaotérreoumpoucodepoisesemfôlego.MikaelBlomkvist já tinhapegadoseu telefonenarecepçãoeestavafalandocomalguémnocelulareaomesmotempocorrendoparaasaídadohotel.—Oqueaconteceu?—perguntouEdassimqueMikaeldesligouetentavaconseguirumtáxi.—Problemas!—respondeuMikael.

Page 261: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Eupossotedarumacarona.—Vocênãopodedirigir.Vocêbebeu.—Maspodemospegaromeucarro.MikaeldiminuiuopassoeencarouEd.—Oquevocêquer?—Euqueroqueagenteseajude.—Vocêvaiterquepegaroseuhackersozinho.—Eunãotenhoautoridadeparaprenderninguém.—Estábem.Ondeestáoseucarro?Emseguida,osdoiscorreramparaocarroqueEdhaviaalugadoequeestavaestacionadonafrentedo

Museu Nacional. Mikael Blomkvist lhe explicou rapidamente que estavam indo para um lugar noarquipélago,naregiãodeIngarö,equeelenãoiriasepreocuparemobedeceraoslimitesdevelocidade.

Page 262: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

26.MANHÃDE24DENOVEMBRO

EnquantoAugustgritava,Lisbethouviapassosapressadosdoladoexternodacasa,oqueafezpegarsuapistolaepulardacama.Sentia-sepéssima,masnãoerahorade levar issoemconta.Correuatéaportadeentradaeviuumhomemcorpulentosurgirnavarandaeporuminstantejulgouqueaindatinhauma pequena vantagem sobre ele, um segundo de graça concedida. Mas a situação se alteroucinematograficamente.O vulto não diminuiu o passo nem se deixou intimidar pelas portas de vidro da varanda. Ele

simplesmentecorreudiretocontraelaseatravessou-assemparar,dearmaempunho,atirandonomeninocomdeterminação,eLisbethrespondeuaotiroteio,outalvezatéjátivessefeitoissomomentosantes.Nãoselembrava.Nemteveconsciênciadomomentoemquecomeçouacorrernadireçãodohomem.

Soubeapenasquehaviasechocadocontraelecomforçaedesajeitadamenteequeemseguidaestavaemcimadele,osdoisnochãoeemfrenteàmesaredondaàqualogarotoestiverasentado.Semhesitar,deuumacabeçadanele.Fezissocomtamanhaviolênciaquesuacabeçacomeçouazunireelamalconseguiusepôrdepé.A

sala girava. Sua camisa estava manchada de sangue. Teria levado outro tiro? Não havia tempo parapensarnisso.OndeestavaAugust?Nãohavianinguémàmesa,somenteascanetaseosdesenhosestavamali,ogizdecera,oscálculoscomnúmerosprimos.Ondediaboseleestava?Elaouviuumgemidopertodageladeira,eláestavaele, trêmuloesentadocomosjoelhosencolhidoscontraopeito.Eledevetertidotempodecorrereseesconderali.Lisbethestavaseaproximandodele,quandoouviuoutrossonsqueapreocuparam,vozesabafadase

barulhodegalhossequebrando.Maispessoasestavamchegandoeelaconcluiuquenãohaviatempoaperder, precisavam sair dali imediatamente.Se eraCamilla, haveriamais gente comela.Sempre foraassim, Lisbeth sempre sozinha e Camilla com sua corte de admiradores, por isso, como nos velhostempos,Lisbethprecisavasermaisespertaemaiságil.Depoisdeumaolhadarápidanoterrenoláfora,sevirouparaAugustedisse:—Vamos!Omenino não saiu do lugar, como se tivesse congelado ali onde se sentara, e com ummovimento

delicado e uma careta de dorLisbeth o pegou no colo.Tudo nela doía,mas eles não tinham tempo aperder,eAugustpareceuterentendidoasituação.Eleindicouquepodiacorrersozinhoeelafoidepressaatéamesaredondapegarseucomputador.Acaminhodavaranda,osdoispassarampelohomemferidonochão,queaindaseergueumeiogrogueetentousegurarAugustpelaperna.

Page 263: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Lisbeth pensou em matá-lo, mas no fim deu-lhe apenas alguns chutes violentos no pescoço e noestômago e jogou a arma dele para longe.Depois correu para a varanda comAugust, em direção aodecliverochoso.Derepenteelaparou.Selembroudodesenho.ElaaindanãotinhavistoatéondeAugustchegara.Seráquedeviavoltar?Não,osoutrosestariamaliaqualquermomento.Precisavamfugir.Noentanto…Odesenhotambémeraumaarma,nãoera?,eomotivodetodaessaloucura,porissodeixouAugusteocomputadornafendadasrochasqueelahavialocalizadonanoiteanteriorevoltoucorrendoparaacasa.Vasculhouamesaenãoencontrouodesenho,apenasilustraçõesdomalditoLasseWestmanportodaparteenúmerosprimos.Ah,ali…aliestavaele,eacimadochãoquadriculadoedosespelhosdodesenhodeAugustvia-seum

homemmuitopálidocomumacicatrizbemdefinidanatestaqueaessaalturaLisbethjáconheciamuitobem.Eraomesmohomemqueestavagemendobemalinochãoenafrentedela.Lisbethpegouocelular,tirouuma fotododesenhoemandoupara JanBublanski eSonjaModig.Emseguida escreveu algumacoisadepressanoaltodopapel.Masumsegundodepoispercebeuquetinhasidoumerro.Estavasendocercada.LisbethhaviamandadoparaoSamsungdeMikaelamesmapalavraqueenviaraaErika.Apalavraera

CRISE,enãohaviacomonãoentenderdoquesetratava,especialmentevindodela.NãoimportavacomoMikaelquisesseinterpretaraquilo,osignificadosópodiaserum,odequeoesconderijodeLisbethedeAugusthaviasidodescobertopeloscriminososeque,napiordashipóteses,elahaviasidosurpreendidapor eles enquantomandavaamensagem.Por issoele acelerouo carro assimquepassoupelo caisdeStadsgårdeentrounaautoestradaparaVärmdö.EledirigiaumAudiA8prata,novo,easeuladoEdNeedham,muitosério,devezemquandopegava

ocelulareescreviaalgumacoisanele.MikaelnãosabiaaocertoporquetinhadeixadoEdacompanhá-lo.TalvezquisessesaberoqueelequeriacomLisbeth,outalvezfosseoutracoisa.QuemsabeEdpodiaserútil.Dequalquermaneira,suapresençanãopiorariaascoisas.Jáhaviacrisesuficiente.Apolíciajátinhasidoavisada,masMikaelduvidavaquetivessemmandadoumaunidadeimediatamenteparaolocal,sobretudoporteremficadoumtantocéticoscomaspoucasinformaçõesquetinhamrecebido.Erikaeraquemtinhaconseguidooesconderijo,elaeraquemconheciaocaminhoaté lá,eeleprecisavadetodaajudapossível.PróximoàpontedeDanvik,EdNeedhamdissealgoqueMikaelnemouviu.Seuspensamentosestavam

emoutro lugar.PensavaemAndrei.Oque teriamfeitocomele?Mikaeloviasentadoalina redação,pensativoeindeciso.Quemerda,porqueAndreinãoohaviaacompanhadoparatomaraquelacerveja?Mikaelligouparaelemaisumavez.LigoutambémparaLisbeth.Nenhumdosdoisatendeu.EntãoouviuEddizer:—Vocêquersaberoquenóstemos?—Sim…talvez…digalá—eledisse.MaselesforaminterrompidospelocelulardeMikael.EraJanBublanski.—Esperoquevocêsaibaquenósdoisvamos termuitoqueconversardepois,e fiquecertodeque

haveráalgumasconsequênciaslegaisàsuaespera.

Page 264: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Claro,euentendo.—Masagoraestouligandoparatepassarumainformação.SabemosqueLisbethSalanderestavaviva

àsquatrohorasevinteedoisminutos.Issofoiantesoudepoisdelatemandaramensagem?—Umpoucoantes.—Certo.—Ondevocêobteveessahoratãoprecisa?—Salandernosenviouumacoisamuitointeressante.—Oquê?—Umdesenho,edevodizer,Mikael,queelesuperaasnossasexpectativas.—EntãoLisbethconseguiuqueogarotodesenhasse.— Sim, conseguiu, e sei que um advogado de defesa esperto será capaz de levantar uma série de

objeçõescontraautilizaçãoeavalidadedodesenhocomoprovadocrime.Masparamimnãohádúvidadeque este é o assassino.Odesenho foi feito comabsolutaperfeição, denovo comaquela intriganteprecisãomatemática.Ehá tambémumaequaçãoescritaabaixododesenho,comascoordenadasxey.Nãofaçoideiaseelaéimportanteparaocaso,masjáenvieiodesenhoparaaInterpol,paraqueelespassempelo programade reconhecimentode faces deles. Se o homemestiver registradonobancodedadosdelá,éofimdele.—Vocêspretendemmandarodesenhoparaaimprensatambém?—Aindaestamospensando.—Quandovocêschegamàcasa?—Omaisrápidopossível…Medêumsegundo.Mikael tinhaouvidoumtelefone tocaraofundoeporalguns instantesBublanskiseocupoudaoutra

ligação.Quandovoltou,disserapidamenteparaMikael:—Acabamosde receber a informaçãodequeocorreuum tiroteiono local. Infelizmenteparece ter

sidosério.Mikaelrespiroufundo.—NenhumanotíciadeAndrei?—eleperguntou.—RastreamosotelefonedeleatéumaestaçãodebasenoCentrovelho,depoisdaínãoconseguimos

maisnada.Osinalsumiu,comoseocelulartivessesequebradoouparadodefuncionar.Mikaeldesligoueaumentouavelocidade.Iaacentoeoitentaquilômetrosporhoraesemvontadede

conversar. Já tinha feitoum resumoaEdNeedhamdoqueestavaacontecendo.Sóquepassadoalgumtemponãoaguentoumais.Precisavaocuparsuacabeçacomalgumaoutracoisa.—Maseaí,oquemaisvocêsapuraram?—SobreaWasp?—Sim.—Porumbomtempo,nada.Estávamoscertosdequetínhamoschegadoaofimdalinha.Agentetinha

feitotudoquepodiaemaisumpouco.Nãodeixamospedrasobrepedraemesmoassimnãochegamosalugarnenhum.Masacertaalturatudofezsentido.—Comoassim?—Claroqueumhackercapazdefazerumainvasãodaquelaseraalguémcapaztambémdenãodeixar

Page 265: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

rastros.Entãoconcluíquenuncairíamosconseguirnadaagindodamaneiraconvencional.Mastambémnãoerarazãopradesistir.Nofim,deixeideladoasinvestigaçõesformaisefuidiretoaoponto:quemtemacapacidadedemontarumaoperaçãodessenível?Eujásabiaquearespostaaessaperguntaeraanossamelhorchance.Onívelda invasãoera tãosofisticadoquesóalguémmuitoespecialconseguiriaexecutaralgosemelhante.Nessesentido,pode-sedizerqueogabaritodohacker trabalhavacontraelemesmo.Alémdisso,quandoanalisamosovírusespião…EdNeedhamfezumapausaeolhouparaoseutelefone.—Sim,continue.Oquevocêiadizer?—Ovíruspossuíapeculiaridadesartísticas,edonossopontodevistaeleterpeculiaridadeseraalgo

muitobom.Tínhamos,porassimdizer,umaobradealtopadrãocomumestilotodopróprio,esóoqueprecisávamosfazereraencontraroartistaqueatinhaassinado.Entãocomeçamosaconversarmuitocomacomunidadedehackersenãodemoroumuitoparasurgirumnome,umapelido,eeleapareciaotempotodo.Consegueimaginarqual?—Talvez.—Wasp!Aparecerammuitosoutrostambém,masWaspfoisetornandocadavezmaisinteressante,e,

para dizer a verdade, por causa do próprio nome. Mas aí já é uma longa história, e eu não vou teaborrecercontandoelatoda,maséqueonome…— … foi inspirado numa personagem de uma revista em quadrinhos usada também pelo grupo

responsávelpelamortedeFransBalder.—Exatamente!Comoéquevocêsabe?—E eu também sei que raciocínios baseados em associações podem ser ilusórios e enganadores.

Quando procuramos profundamente por alguma coisa, sempre vamos achar alguma conexão entrepraticamentetudo.—Éverdade,éassimmesmo.Ficamosempolgadoscomassociaçõesquenadasignificamedeixamos

passar as importantes.Wasp poderia significar uma porção de coisas.Mas àquela altura eu não tinhamais para onde ir. Além disso, eu já tinha ouvido falar tanto da auramítica dessa pessoa que fiqueideterminado a descobrir a identidade dela, por isso voltamos com tudo ao passado. Reconstruímosdiálogos antigos de sites de hackers.Lemos cada palavra queWasp escreveu na internet e estudamoscada operação que a gente sabia que tinha por trás a assinatura dela, e logo passamos a saber umpouquinhomaissobreWasp.Tivemoscertezadequeeraumamulher,mesmoqueelanãoseexpressassedeumjeitotipicamentefeminino,econcluímosqueeradaquimesmo.Elahaviapostadomuitacoisaemsueco,emborasaberdissonãotenhasidonenhumagrandeajuda.Massaberquehaviaumaconexãosuecanaorganizaçãoqueelaestavainvestigando,esaberqueFransBaldertambémerasueco,issopelomenosmanteve quentes as nossas pistas. Falei com o pessoal do FörsvaretsRadioanstalt, eles começaram apesquisaremseusregistrosefoiaíque…—Oquefoiqueelesacharam?—Algomuitorevelador.Faziamuitosanoselestinhaminvestigadoumcasodeinvasãoenvolvendo

exatamente o codinome Wasp. Foi há tanto tempo, que naquela época Wasp ainda não era boa emcriptografia.—Oquetinhaacontecido?

Page 266: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—OFörsvaretsRadioanstaltdescobriuquequemassinavaWaspestavaatrásde informaçõessobrepessoas que haviamdesertado do serviço secreto de outros países, bom, e só isso bastou para que oFörsvarets Radioanstalt acionasse seu sistema de segurança. A investigação deles foi dar numcomputador de uma clínica psiquiátrica infantil deUppsala, umamáquina que pertencia a ummédicochamadoTeleborian.Poralgumarazão,provavelmenteporesseTeleborianterprestadoalgunsserviçosàpolíciasecretasueca,eleestavaacimadequalquersuspeita.EntãooFörsvaretsRadioanstaltvoltouaatenção para alguns enfermeiros da clínica que ela considerou suspeitos somente por serem… bem,imigrantes.Oquefoiumacoisadescabidaemalavaliada,equetambémnãodeuemnada.—Dáparaimaginar.—Poisé,masagora,passadotodoessetempo,eupediqueumcaradoFörsvaretsRadioanstaltme

mandassetodoomaterialqueelesolharamnaquelaépocaenóscomeçamosaanalisartudodenovo,maspartindodeumpontodevistadiferente.Vocêsabequepara serbomemhackingnãoénecessário sergrande,gordoefazerabarbatodososdias.Jáconhecicriançasdedoze,trezeanosquesãoverdadeirosexperts no assunto, por isso pra mim era natural a gente dar uma olhada nas crianças que estavaminternadaslánaclínicanaépoca.Alistacomtodosospacientesestavanessematerial,destaqueitrêsdosmeusrapazesparainvestigartodoseles,esabeoqueencontramos?Umadascriançasinternadaserafilhado ex-espião e arquicriminoso Zalachenko, por quem nossos colegas da CIA demonstraram grandeinteresse naqueles dias. Como você já deve saber, há alguns elos entre a rede que o hacker estavainvestigandoeoantigosindicatodocrimedeZalachenko.—Masissonãosignifica,necessariamente,quefoiWaspquemhackeouvocês.—Nãomesmo.Maspassamosaolharagarotamaisdeperto,eoqueéqueeupossodizer?Elatem

umpassadofascinante,hein?Muitas informaçõessobreelaquedeveriamconstarcomopúblicasforammisteriosamenteapagadas.Mesmoassim,encontramosmaisqueosuficiente,e,nãosei,talvezeuestejaenganado,mas tenho a sensação de que a raiz do problema pode estar aí, que algo traumático tenhaacontecido.TemosumpequenoapartamentoemEstocolmo,umamãesolteiraquetrabalhacomocaixadesupermercadoequelutamuitoparasustentarasiprópriaeàssuasfilhasgêmeas.Porumlado,elasestãoaquilômetrosdedistânciadograndemundocruel,masporoutro…—…ograndemundocruelestápresente.—Quando o pai chega pra visitar a família, o vento frio domundo da política e do poder entra

rasgando.Mikael,vocênãosabenadademim.—Nãomesmo.—Maseuseicomoépraumacriançaterumcontatoassimdiretocomaviolência.—Vocêsabe?Mesmo?—Éissoaí.Eseimaisaindaoqueacontecequandoasociedadeviraascostasenãopuneoculpado.

Dóipracaramba,cara,dóidemais,enãomesurpreendenemumpoucoqueamaioriadascriançasquepassamporumacoisadessavaiproburaco.Elassetornamdestrutivasquandocrescem.—Infelizmenteéassim.—Masemalgunscasos,eestessãopoucos,Mikael,essascriançascrescemfortescomoursos,ficam

depéedãootroco.Waspéumdessescasos,nãoé?Comartriste,Mikaelassentiucomacabeçaepisouumpoucomaisnoacelerador.

Page 267: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Eles a trancaramnumhospício e tentaramacabar comacabeçadela.Masela aguentou firme, esabeoqueeuacho?—perguntouEd.—Não.—Queelasóficoumaisforte,queelaabraçouoseupróprioinfernoeamadureceucomisso.Paraser

sincero, acho que sem dúvida ela se transformou numa pessoa perigosa e não se esqueceu deabsolutamentenadadoqueaconteceu.Estátudolámarcadoaferronela.—Ébempossível.—Exato.Entãotemosduasirmãsqueforamafetadasdemaneirasdiferentesporalgoterrívelequese

transformaramnaspioresinimigas,e tambémnãopodemosesquecerdaherançadeumimensoimpériocriminoso,deixadapelopai.—Lisbethnãoquisnadadessaherança.Elaodeiatudoquevemdopai.—Jáseidisso,Mikael,nemprecisamedizer.Masentãooquefoifeitodaherança?Nãoseráissoque

elaestáprocurando?Nãoécomissoqueelaqueracabar,assimcomoqueracabarcomtudoqueserefereaopai?—Oquevocêestápretendendo?—perguntouMikaeldeformabrusca.—TalvezumpoucodomesmoqueWaspquer.Queroconsertaralgumascoisas.—Epôrasmãosnoseuhacker.—Euquerome encontrar com ela, dizer umas boas verdades e consertar todas as falhas da nossa

segurança, mesmo as menores. Mas acima de tudo quero mostrar para certas pessoas que não medeixaram acabar omeu trabalho, porque ficaram commedo daWasp expô-las aindamais, quem é ovencedordessahistória.Eachoquevocêvaiquerermeajudarnisso.—Porqueeuiriaquerer?—Porquevocêéumótimojornalista.Eótimosjornalistasnãogostamquesegredossujospermaneçam

escondidos.—EquantoaWasp?—Elavaiabrirabocaemecontartodosossegredosdelacomonuncafez,evocêvaimeajudarnessa

partetambém.—Senão?—Senãoeuvouacharumjeitodetornaravidadelauminfernooutravez,issoeuprometo.—Masporenquantovocêsóquerconversarcomela.—Nenhumputovaiinvadiromeusistemadenovo,Mikael,porissoeuprecisoentenderexatamente

comoelaconseguiu.Éissoqueeuqueroquevocêproponhapraela.Estoudispostoadeixarasuaamigasairlivredessaseelasesentarcomigoememostrarcomofez.—Voupassaramensagempraela.Sóesperoque…—…elaaindaestejaviva—completouEd.Emseguida,emaltavelocidade,elesentraramàesquerdaemdireçãoàpraiadeIngarö.Eramquatrohorasequarentaeoitodamanhã.JáfaziavinteminutosqueLisbethpediraajuda.NãoeracomumJanHoltsererraremsuasavaliações.

Page 268: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Jantinhaateoriaromânticadequejádelongeeleeracapazdedizerqualhomemtinhamaischancesdevencerumalutacorpoacorpo.Porissonãotinhasesurpreendido,comoOrloveBogdanov,quandooplanocomMikaelBlomkvistfracassou.OsoutrosdoistinhamcertezaabsolutadequeaindaestavaparanascerohomemquenãocairianaseduçãodeKira.Mas,depoisdeapenasobservarojornalistaporummomentoeàdistância,emSaltsjöbaden,Holtser tevedúvidasdequeelecairianaemboscada.MikaelBlomkvistpoderiasetornarumproblema,poisnãopareciaumhomemfácildeenganar,enadaqueJantivessevistoououvidoofariamudardeideia.Mascomojovemjornalistaeradiferente.Elepareciaoarquétipodohomemfracoeimpressionável.

Noentanto,nadapodiaestarmaiserrado.AndreiZanderhaviaresistidomaisquequalqueroutrapessoaqueJanjáhouvessetorturado.Apesardadormartirizante,elenãohaviacedido.Seusolhosbrilhavamcomumadeterminação inabalávelquepareciaescoradaporaltosprincípios,eporumbomtempoJanpensouqueelesteriamquedesistir,queAndreiZanderresistiriaatodosossofrimentossemfalar,efoisóquandoKirajurousolenementequeErikaeMikaeltambémiriampassarpelosmesmossofrimentos,queAndreifinalmentesedeuporvencido.Orelógio,então,marcavatrêsemeiadamanhã.FoiumdessesmomentosqueJanachouqueeleiriase

lembrar para sempre.A neve caía sobre a claraboia.O rosto do jovem jornalista estava ressecado eirreconhecível.Osanguehaviaespirradodeseupeitoemanchadosuabocaebochechas.Seus lábios,quepormuitotempotinhampermanecidocobertoscomfitaadesiva,estavamrachadosepurulentos.Eleestavaempéssimoestado.Mesmoassimaindadavaparaverqueeleeraumrapazbonito,eJanpensouemOlga.Oqueelateriasentidoporele?Essejornalistanãoeraexatamenteotipoderapazinstruídodequeelagostava,quelutavacontraas

injustiçasetomavaadefesadospobreseoprimidos?Ficoupensandonissoeemoutrosacontecimentosdesuavida.Depoisfezavarianterussadosinaldacruz,emqueumdoscaminhoslevaaoparaísoeooutroaoinferno,eentãoolhouparaKiraeelalhepareceumaisbonitadoquenunca.Seus olhos emanavam um brilho de fogo. Ela estava sentada num banquinho junto à cama, em seu

luxuoso vestido azul que de algummodo tinha sido poupado dasmanchas de sangue e disse algo emsuecoparaAndrei,algoquesooucarinhoso.EmseguidaelapegounamãodeJan.Eleapertouadelaemresposta.Afinal,elenãotinhamaisninguémaquemrecorrerembuscadeconforto.Oventouuivavaláforanaviela.KiraassentiucomacabeçaesorriuparaJan.Flocosdenevefrescoscobriamoparapeitodajanela.Mais tarde, todos estavamnumRangeRover indo para Ingarö. Jan se sentia vazio, não gostava do

rumoqueascoisasestavamtomando.Masnãopodiaignorarque,seestavamali,eraporcausadoseuerro,portantopermaneceucaladoocaminhotodo,ouvindoKira,que,estranhamenteexcitada,falavacomumódio violento damulher que estavam prestes a enfrentar. Jan não achava isso um bom sinal e, sepudessevoltaraserelemesmo,ateriaaconselhadoadesistirdaoperaçãoesairdopaís.Elepermaneceuemsilêncioenquantoobservavaanevecaindoeocarropenetrarnaescuridão.Muitas

vezesficavaassustadoaoolharparaKiraeverseusolhosfriosecintilantes.Deixouessespensamentosde lado e concluiu que pelomenos devia lhe dar crédito por uma coisa.Ela havia decifrado tudo de

Page 269: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

maneiraimpressionantementerápida.NãoapenasdeduziraquemtinhasalvadoavidadomeninoAugustBaldernaSveavägencomotambém

adivinharaquemtinhaamaiorprobabilidadedesaberondeomeninoeamulhertinhamseescondido.OnomeaqueelatinhachegadonãoeraoutrosenãoodeMikaelBlomkvist.Nenhumdeleshaviaentendidoa lógicadela.Porqueumrenomado jornalista sueco iriaesconderumapessoaque, surgindodonada,tinhaabduzidoumacriançadacenadeumcrime?Masquantomaiselesexaminavamessa teoria,maisacreditavamnela.Amulheremquestão,LisbethSalander,eraumapessoamuitopróximaaojornalista.EalgumacoisatambémestavaacontecendonaredaçãodaMillennium.Na manhã seguinte ao assassinato em Saltsjöbaden, Jurij havia invadido o computador de Mikael

Blomkvist para tentar entender por queFransBalder chamara o jornalista nomeio da noite, e depoisdissoentrarnocomputadordelecontinuousendomuitofácil.Masdesdeamanhãdeontemnãofoimaispossível acessar as informações privadas de Blomkvist… Quando isso já tinha acontecido um dia?DesdequandoJurijseviuimpedidodelere-mailsdeumrepórterquefosse?Nunca,desdequeeleseentendia por gente. Mikael Blomkvist tinha se tornado cauteloso demais de repente, e isso haviacomeçadodepoisdodesaparecimentodamulheredomeninonaSveavägen.SóissonãobastavaparaprovarqueojornalistasabiaondeestavamSalandereomenino.Masquanto

maisotempopassava,maisclaroficavaqueateoriadeKirapodiaestarcerta,emboraelanãoparecesseprecisardeprovanenhuma.ElaqueriairatrásdeBlomkvistdequalquerjeito.Esenãopudesseserele,iria atrás de qualquer pessoa da revista. Estava completamente obcecada em encontrar a mulher e acriança,e só isso jádevia ter levantadoassuspeitasdeles.MassemdúvidaJan tinha razõesparasergratoaela.EletalveznãoentendessetodasassutilezasdamotivaçãodeKira,maseraprincipalmenteporcausa

deleque iammataromenino, e issoeramotivoparaagradecer.Kirapodia ter resolvido sacrificá-lo.Masescolheraassumirriscosconsideráveisparacontinuarcomele,eissoodeixavafeliz,deverdade,apesardeagora,nocarro,elenãoestarsesentindotãobem.TentavabuscarforçaspensandoemOlga.Acontecesseoqueacontecesse,elanãodeviaverumretrato

faladodeseupaiem todosos jornaisquandoacordasse,eeledissea simesmováriasvezesqueporenquanto tinham feito tudo certo e que o pior já havia passado. Contando queAndrei Zander tivessemesmodadooendereçocerto,o trabalhoseria simples.Eram trêshomens fortementearmados,quatrocomJurij,quecomosemprepassavaamaiorpartedotempocomacaraenfiadanocomputador.AequipeeraformadaporJan,Jurij,OrloveDennisWilton,umgângsterquetinhasidomembrodoMC

Svavelsjö e que agora prestava serviços regulares paraKira e os ajudara coma operaçãonaSuécia.Eram três ou quatro homens bem treinados, mais Kira, contra uma mulher sozinha, que com certezaestariadormindo,quando,paratodososefeitos,estavaláparaprotegeracriança.Nãoiahavernenhumproblemadessavez.Eles iamconseguir fazerumserviço rápidoe sairdopaís.MasKiraparecia tersurtado,erepetia:—NãosubestimemaSalander!Ela tinha dito isso tantas vezes que até Jurij, que normalmente concordava com tudo que ela dizia,

havia se irritado. Claro que na Sveavägen Jan tinha visto como a garota era bem treinada, rápida,corajosa. Mas Kira a descrevia como se ela fosse uma supermulher. Era ridículo. Jan nunca tinha

Page 270: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

encontrado uma mulher que numa luta chegasse nem minimamente perto do nível dele ou de Orlov.Mesmoassimprometeuqueseriacuidadoso.Prometeuqueprimeirofariaoreconhecimentodoterrenoeplanejaria uma estratégia, um plano de ação. Eles não deveriam ter pressa, para não caírem emarmadilhas,foioqueeleassegurouaeladiversasvezes.Quandoestacionaramocarrojuntoaopédeummorro e a uma ponte abandonada, ele assumiu o comando da operação. Ordenou que os outros sepreparassemabrigadosnocarro,enquantoeleirianafrenteparalocalizaracasa.Nãopareciasermuitofácilencontrá-la.JanHoltsergostavadoamanhecer,gostavadosilêncioedasensaçãodetransiçãoquehavianoar,e

agoraiaandandocomascostasumpoucoencurvadasecomosouvidosaguçados.Aescuridãoemtornodeleo fazia se sentir seguro,nãohavianinguémpor ali, nenhuma luzacesa.Passoupelaponte epelaencostadomorro,chegandoaumacercademadeiraeaumportãoenferrujadoaoladodeumpinheiroede um arbusto espinhento. Abriu o portão e subiu uma escada de madeira mal construída, com umcorrimãodoladodireito,edepoisdealgumtempoconseguiuveracasalánoalto.Acasaestavaencobertaporpinheiroseálamosecompletamenteàsescuras,comumavarandadolado

sule,emfrenteaela,portasdevidroqueelenãoteriadificuldadeematravessar.Àprimeiravistanãoachouobstáculos.Elespoderiamentrarcomfacilidadenacasaatravésdaquelasportasdevidrofrágeiseneutralizaroinimigo.Issonãoseriaproblema.Notouquesemovimentavasemfazernenhumsomeporum instante pensou em terminar o serviço sozinho. Talvez fazer isso até fosse uma responsabilidademoraldele.Elehaviacolocadotodomundonaquelasituação,portantocabiaaeleencontrarumasolução.Nãoseriaumtrabalhomaisdifícildoqueoutrosqueelejátinharealizado.Pelocontrário.Ali visivelmente não havia policiais comona casa deBalder, nada de seguranças nem sistemas de

alarme.Nãotinhatrazidosuametralhadora.Nãohavianecessidadedela.AmetralhadoraeraumexagerodeKira,umaobsessãodela.Eleestavacomasuapistola,aRemington,eelaeramaisdoquesuficiente.E de repente, e sem o seu habitual e cuidadoso planejamento, ele entrou em ação com a mesmaefetividadedesempre.Commovimentosrápidoseprecisos,foiseaproximandodavarandaedasportasdevidrodacasa,até

pararrepentinamente.Aprincípionãoentendeuporquê.Poderiatersidoqualquercoisa,umruído,umamovimentação,umperigoqueele tivessepressentido,eolhoudepressaparaa janela retangularacimadele. De onde ele estava não conseguia enxergar seu interior. Mesmo assim, permaneceu imóvel,sentindo-secadavezmaisinseguro.Seráqueaquelaeraacasaerrada?Para ter certeza, decidiu se aproximar e dar uma olhada, e então… ficou paralisado na escuridão.

Estavasendoobservado.Aquelesolhosquejátinhamolhadoparaeleumavezoencaravam,vidrados,juntoaumamesaredondanointeriordacasa,enesseinstanteeledeviaterreagido.Deviaterentradocorrendopelavarandaeatirado.Deviaterconfiadonoseuinstintoassassino.Masdenovoelehesitou.Nãotinhaconseguidosacarsuaarma.Ficoucompletamenteperdidoquandodeparoucomaqueleolharetalvez tivessecontinuadoali,nomesmo lugarpormaisalgunssegundos, seomeninonão tivesse feitoumacoisaqueJannãopensouqueelefossecapazdefazer.Ogaroto soltouumgrito tão estridenteque fez tremerosvidros, e só então Jan saiude seu transe,

Page 271: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

correuparaavarandae,semnempensar,jogou-secontraasportasdevidro,atirando.Achouquehaviaatiradocomasuaprecisãodesempre,masnãotevetempodeversehaviaatingidoseualvo.Umafigurasombriaeameaçadoraveionasuadireçãocomtamanhavelocidadequeelenãotevetempo

de se virar oude se colocar emposiçãodedefesa.Sabia quehavia dadomais um tiro e que alguémtambémtinhaatirado.Masnãotevemaistempoderaciocinar,poisnoinstanteseguintecaiunochãocomtodoopesodeseucorpoeuma jovemse jogousobreelecomumódioqueelenunca tinhavistonosolhosdealguém,eaoverissoeleteveamesmareaçãoinstintivadefúria.Atiroudenovo,masamulherpareciaumanimalselvagem,eagoraelaestavasentadaemcimadele,erguendoacabeçae…Bang!Jannuncasoubeoqueoatingiu.Quandorecobrouaconsciência,sentiugostodesanguenabocaeseupulôverestavapegajosoeúmido.

Achouquetinhasidoatacadoenessemomentoviuamulhereomeninopassandoporele.Aindatentoupegar apernadogaroto,pelomenos foioquequeria ter feito,mas foi agredidodenovo.De repentesentiuumanecessidadeurgentederespirar.Elenãoentendiamaisoqueestavaacontecendo,anãoserquehaviasidoespancadoederrotado,epor

quem?Porumagarota,esaberdissosetornoupartedesuadorenquantoaindaestavanochão,emmeioaos vidros quebrados e a seu próprio sangue, de olhos fechados, a respiração pesada, esperando queaquelepesadeloacabasselogo.Entãoachouterouvidoalgumacoisadenovo,vozesseaproximandoequandoabriuosolhos ficou surpresoaover amulher.Ela aindaestava lá.Masnão tinhaacabadodesair?Não,elaestavajuntoàmesadacozinhacomsuaspernasmagras,mexendoemalgumacoisa,eelefezumesforçoenormeparaselevantar.Nãoconseguiaacharsuaarma.MasconseguiusesentarenesseinstantevislumbrouOrlovpelajanelaeentãotentouatacá-lamaisumavez.Nãofezmaisdoquetentar.Amulherparecia ter explodido, foi essaa sua impressão.Elaagarroualgunspapéis, saiucorrendo

comumaforçaeumaagilidadeimpressionantese,numímpeto,selançoudavarandaparaomeiodomatoedasárvores,sendoseguidaportirosnaescuridão,eelemurmuroubaixinho,comosecomissofosseajudarosoutros:“Matemessesdesgraçados!”.Enãohaviamaisnadaqueelepudesse fazerporeles.Malconseguiaficardepéetambémnãoseimportavacomocaosláfora.Apenasficouali,esperandoqueOrloveWiltonacabassemcomamulhereogaroto.Noentantoeleestavamuitoocupadotentandosemanterempéeapenasdeuumaolhadaporaltonamesaàsuafrente.Haviaumaquantidadegrandedelápisepapéisespalhadosali,eeleolhouparaaquelabagunçasem

entendernada.Derepente,sentiucomoseumagarrativessearrancadooseucoração.Reconheceuasimesmo,oumelhor,viuumafiguradiabólicaderostopálidoecomamãoerguidaparamatar.Depoisdealgunssegundos,percebeuqueodemônioeraelemesmoecomeçouatremer,muitoassustado.Mesmoassim,nãoconseguiaparardeolharparaodesenho,haviaalgohipnotizanteali.Depoisviuumaespéciedeequaçãonocantodopapelenoaltodele,comumacaligrafiadesleixadaetrêmula,eleleu:

Enviadoparaapolícia4h22

Page 272: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

27.MANHÃDE24DENOVEMBRO

QuandoAramBarzani,membro das forças especiais da polícia sueca, entrou na casa de campodeGabriellaGraneàsquatrohorasecinquentaedoisminutosdamanhã,deparoucomumhomemmusculosoederoupaspretascaídojuntoàmesaredondadacozinha.Aramseaproximoucomtodoocuidado.Acasapareciatersidodeixadaàspressas,masaindaassim

elenãoqueriacorrernenhumrisco.Nãofaziamuitotempoeleshaviamrecebidoainformaçãodetrocadetirosnolocal.Láfora,naescarparochosa,eleouviuseuscolegasgritarem,excitados:—Aqui!Aqui!Aramhesitou,sementenderoqueestavaacontecendo.Deveriasejuntaraeles?Resolveuficarever

emquecondiçõesestavaohomemestendidonochão.Emvoltadelehaviavidrosquebradosesangue.Emcimadamesaredonda,viupapéisrasgadoselápisquebrados.Ohomemestavadeitadodecostasefazia o sinal da cruz commovimentos fracos. Em seguidamurmurou alguma coisa, talvez uma prece.Parecia russoeAramconseguiuentender apalavra“Olga”.Abaixou-seao ladodele edissequeumaequipemédicaeumaambulânciajáestavamacaminho.—Theyweresisters—disseohomem.O comentário pareceu confuso, eAramo ignorou.Examinou suas roupas e constatou que o homem

estavadesarmadoequepareciaterumferimentodebalanoestômago.Seupulôverestavaensopadodesangue e seu rosto tinha uma palidez preocupante. Aram perguntou o que havia acontecido, mas nãorecebeu nenhuma resposta. Não de imediato. Depois de alguns segundos, muito ofegante, o homembalbucioualgoestranhoem inglês:—Mysoulwascaptured inadrawing—eledisse e emseguidadesmaiou.Aram ficou ali pormais algunsminutos, para ter certeza de que o homemnão causaria problemas.

Assimqueouviuasirenedaambulânciachegandocomosparamédicos,afastou-sedohomemesaiudacasa.Queria saber por que seus companheiros haviam gritado.Ainda nevava, o ar estava gelado e oterreno,escorregadio.Aramouviuvozeseosomdemaiscarrosseaproximando.Aindaestavaescuroenãoseenxergavamuitacoisa;haviaumaporçãodepedras,lascaseagulhasdepinheirosespalhadaspelocaminho. Era uma paisagem tenebrosa, com uma rocha lisa e inclinada terminando abruptamente numprecipício.NãoeraumterrenoconvenienteparaperseguiçõeseAramtevemauspressentimentos.Elesedeucontadecomotudoemvoltahaviaficadorepentinamentequieto,eelenãofaziaamenor ideiadeondeseuscompanheirospoderiamestar.Nãoestavammuito longedali.Viu seugrupo reunidopertodaencosta íngreme, atrásdeumgrande

álamo,equandooslocalizouteveumchoque.Nãoeratípicodelesertãosensível,masquandoviuseus

Page 273: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

companheiros olhando para o chão, muito sérios, ficou alarmado. O que estavam vendo lá? Seria omeninoautista,morto?Aram foi andando devagar, pensando em seus próprios filhos, de nove e seis anos. Os dois eram

loucos por futebol, não faziam outra coisa, não falavam de outro assunto. Eles se chamavamBjörn eAnders.EleeDilvantinhamdadonomestipicamentesuecosaosfilhosporacharqueissotornariaavidadelesmaisfácil.Quetipodepessoaseriacapazdematarumacriança?Foitomadoporumasúbitaraivaesaudouseuscompanheiroscomumgritoparaalertá-losdesuachegada.Emseguidasoltouumsuspirodealívio.Nãohavianenhummeninolá,esimdoishomensadultosdeitadosnochão,quetambémpareciamter

sidobaleadosnoestômago.Umdeles,umtipovigorosoeanimalesco,comorostocheiodecicatrizesenarizdelutadordeboxe,tentouselevantar,masnomesmoinstantefoiaochãodenovo.Seusemblantepareciaodealguémhumilhado.Suamãodireita tremiadedorou talvezde raiva.Ooutrohomem,dejaquetadecouroecabelopresonumrabodecavalo,pareciaempiorescondições.Continuavadeitadocomosolhosfixosnocéuescurocomoseestivesseemestadodechoque.—Algumsinaldacriança?—perguntouAram.—Nada—respondeuseucompanheiroKlasLind.—Edamulher?—Nadatambém.Aramnãotinhacertezaseaquiloeraumbomsinalounão.Fezmaisalgumaspoucasperguntas,mas

ninguém da equipe tinha uma ideia clara do que havia acontecido.Duas armas automáticas damarcaBarrettREC7 foramencontradasauns trintaouquarentametrosdoprecipício.Osdoishomens feridosconfirmaramqueasarmaseramdeles,masnãoficouclarocomoelashaviamidopararlá.Osujeitocomcicatrizesnorostotinhacuspidoumarespostaqueninguémentendeu.Durante os quinze minutos seguintes, Aram e seus companheiros se dedicaram a fazer buscas

minuciosasno local, e tudoqueencontraram,alémdasarmas, foramsinaisde lutacorporal.Enquantoisso, mais pessoas chegaram: paramédicos, a inspetora Sonja Modig, dois ou três peritos criminais,muitospoliciaisciviseo jornalistaMikaelBlomkvist,acompanhadodeumamericanocorpulentocomcabelodecortemilitarque imediatamente inspirouumaboadosederespeitoemtodosali.Àscincoevinte e cinco veio a informação de que havia uma testemunha aguardando para ser interrogada noestacionamentojuntoàpraia.OhomemqueriaserchamadodeKG.NaverdadeseunomeeraKarl-GustafMatzon,quenãofaziamuitotempohaviaadquiridoumacasarecém-construídadooutroladodapraia.SegundoKlasLind,nãoeraalguémparaserlevadoasério:—Ovelhoteébemchegadonumashistóriasdepescador.Noestacionamento,SonjaModigeJerkerHolmbergtentavamjuntaraspeçasdoquehaviaacontecido.

Até então, só tinham imagens fragmentadas e esperavam que o sr. KG Matzon pudesse ajudá-los aesclarecerosepisódiosdaquelamanhã.No entanto, quando o viram caminhando pela praia para ir se encontrar com eles, duvidaram que

aquelehomempudessecontribuircomalgodeútil.KGMatzontrazianadamenosqueumchapéutirolêsna

Page 274: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

cabeça e vestia uma calça xadrez de padrão esverdeado, jaqueta vermelha damarcaCanada-Goose etinhaumbigoderetorcidonaspontas.Pareciatersevestidoassimparasefazerdeengraçado.—Sr.KGMatzon?—perguntouSonjaModig.—Empessoa—eledisse,apressando-seemacrescentar,semquelhefossepedida,ainformaçãode

quedirigiaaeditoraTrueCrimes,especializadanapublicaçãodehistóriaspoliciaisdecrimesfamosos.Talveztenhaadiantadoessainformaçãoparaaumentaracredibilidadedeseudepoimentoàpolícia.—Ótimo!Masagoraqueremosdosenhorumrelatobastantefactual.Nadadepublicidadeparaoseu

próximolivro—disseSonjaModig,paraquedesdeocomeçoficassetudobementendido,eKGMatzonrespondeuqueclaro,sim,comcerteza,dizendoque,acimadetudo,seconsideravauma“pessoaséria”.Elecontouquetinhaacordadoabsurdamentecedoeficadonacamaouvindo“osilêncioeacalma”,

apreciandoaquelemomentododia.Umpoucoantesdasquatroemeiadamanhã,ouviualgoquepareciaumtirodepistola.Entãosevestiurápidoesaiuparaavaranda,quedavaparaapraia,paraodecliverochosoeparaoestacionamentoondeelesestavamagora.—Eoqueosenhorviu?— No começo, nada. Estava tudo sinistramente quieto. Mas de repente foi como se o ar tivesse

explodido,comoseumaguerrativesseestourado.—Osenhorouviutiros?—Eramsonsdearmasdefogovindodooutroladodabaíaeeufiqueialiparado,perplexo,olhando

e...Jáconteiavocêsquesouumobservadordeaves?—Não,aindanão.—Bom,essaatividadeafioumeusolhos.Tenhoolhosdeáguia,sabe,consigoverosmenoresdetalhes

demuitolonge,efoiporisso,tenhocerteza,queconseguienxergarumpequenopontonaquelasaliêncialáemcima,estãovendo?Aquelafendaformaumaespéciedeumbolsãonamontanha.Sonjaolhouparaoaltoeassentiucomacabeça.—Nocomeçonãoentendioqueeraaqueleponto—continuouKGMatzon—,masdepoispercebique

eraumacriança,ummenino,acho.Eleestavadecócorasetremendo,foioqueeuimagineipelaposiçãodele.Ederepente…MeuDeus,nuncavoumeesquecer!—Doquê?—Alguémvinhacorrendo,eraumajovem.Eladeuumsalto,seprojetounoaremergulhoucomtanta

violêncianafendadarochaquequasecaiudelá.Depois,elesficaramumbempertodooutro,elaeomenino,esperandopeloinevitável,então...—Oquehouve?—Doishomensapareceramatirandocommetralhadoras,eatiraram,atiraram,vocêsnãofazemideia.

Eume jogueinochão, commedode ser atingido.Mas tambémnãoqueriadeixardeveroqueestavaacontecendo.Vocêssabem,dolugarondeeuestava,eutinhaumavisãomuitoboadomeninoedajovem.Mas eles não podiam ser vistos pelos homens lá em cima. Para mim foi óbvio que era apenas umaquestãodetempoatéosdoisseremdescobertos,eviqueelesnãotinhamparaondeescapar.Noinstanteemquedeixassemaquelafenda,oshomensosveriameosmatariam.—Masnósnãoencontramosnemajovemnemogarotoláemcima—disseSonja.—Não,éexatamenteisto!Oshomensestavamchegandocadavezmaispertodeles,enofimachoque

Page 275: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

até deviam estar ouvindo os dois respirando. Estavam tão perto que se eles se inclinassemmais umpoucoiamveramulhereomenino.Efoientãoque...—Sim?—Vocês nãovão acreditar.Aquele rapaz das forças especiais eu sei que não acreditou quando eu

contei.—Bem,masváemfrenteenosconte.Depoisvemosseacreditamosounãonosenhor.—Quando os homens pararam para escutar, ou talvez simplesmente porque sentiram que estavam

muito perto deles, amulher se levantou de um salto e atirou neles. Bang! Bang! Depois que os doiscaíramelacorreuatéelese jogou longeasarmasdosdois.Ela foideumaeficiência impressionante,pareciaqueeuestavavendoumfilmedeação.Depoiselacorreu,pegouomenino,osdoiscorreram,elarolou com ele e eles foram cair perto de uma BMW que estava estacionada aquimesmo.Antes delesentraremnocarro,viqueamulherestavasegurandoalgumacoisa,pareciaumabolsaouumcomputador.—ElessaíramnaBMW?—Sim,numavelocidadeimpressionante.Nãoseiparaondeforam.—Estábem.—Maseuaindanãoterminei.—Oqueosenhorquerdizer?—Tinhaoutrocarroestacionadoaqui,achoqueeraumRangeRover.Umcarroalto,preto,modelo

novo.—Oquetemele?—Eunãodei importância,porquemepreocupeimaisemir telefonar logoparapedirsocorro.Mas

assimquedesligueiotelefoneviduaspessoasdescendoaescadademadeiradacasa,umhomembemmagroealtoeumamulher.Nãoconseguiverosdoismuitobem,elesestavammaislongedoquemeusolhospodiamalcançar,masduascoisaseupossodizerdessamulher.—Equeduascoisassãoessas?—Elaerasublimeepareciafuriosa.—Comsublimeosenhorquerdizerbonita?—Sim,deslumbrante,tinhaclasse,issoseviadelonge.Mastambémestavamuitobrava.Antesdeles

entraremnoRangeRover,eladeuumtapanorostodohomemeoestranhofoiqueelenãotevenenhumareação.Apenasbalançouacabeçacomoseachassequetinhamerecidoaqueletapa.Depoiselesforamemboranocarro.Ohomemdirigindo.SonjaModig anotou tudo e só pensava em expedir omais rápido possível, em nível nacional, um

mandadodebuscaeapreensãodoRangeRoveredaBMW.GabriellaGranetomavaumcappuccinoemsuacozinha,naVillagatan,pensandonoquantosesentia

calmaapesardetudo.Masdeviaestarsobforteestresse.HelenaKraftqueriavê-laàsoitohorasemseugabinetenaSäpo.Gabriellaachavaqueiaserdemitida.

Certamentesofreriatambémumprocessodisciplinar,oqueiriaprejudicardemaisapossibilidadedeelaconseguirumempregoondequerquefosse.Comtrintaetrêsanosdeidade,elaviasuacarreirachegar

Page 276: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

aofim.Eissonãoeraopior.Elatinhaagidocomtotalconsciênciadequeestavadesafiandoaleieassumindo

riscos.MasfizeraissoporacreditarqueeraamelhormaneiradeprotegerofilhodeFransBalder.Agoratinhaocorridoumtiroteioviolentoemsuacasadecampoeninguémsabiaondeomeninoestava.Talvezestivessegravementeferidooumorto.Gabriellaera torturadaporumasensaçãodevastadoradeculpa.Primeirotinhasidoopai,agoraofilho.Elaselevantoueolhouashoras.Eramseteequinzeeelaprecisavasair,porqueantesdareuniãocom

Helena queria esvaziar sua mesa. Tinha decidido se comportar com dignidade, sem se desculpar ouimplorar para permanecer no cargo. Pretendia ser forte ou pelomenos parecer forte. SeuBlackphonetocoueelanãotevevontadedeatender.Calçouasbotas,pôsseucasacoPradaeumvistosocachecolvermelho. Iria enfrentar aquela situação com classe e, antes de sair, parou na frente do espelho pararetocaramaquiagem.Nofim,comumaboadosedehumornegro,fezosinaldavitóriaparaasuaimagemnoespelho,comoNixontinhafeitoquandorenunciou.SeuBlackphonetocounovamentee,mesmodemávontade,dessavezelaatendeu.EraAlonaCasales,daNSA.—Jáestousabendodetudo—disseaamericana.Claroqueestavasabendo.—Comovocêestá?—Alonaperguntou.—Adivinhe.—Estásesentindoapiorpessoadomundo.—Maisoumenosporaí.—Equenuncamaisvaiconseguirtrabalho.—Namosca,Alona.—Bom,entãodeixeeutedizerquevocênãotemporqueseenvergonhar.Vocêfezacoisacerta.—Éalgumabrincadeiraparameanimar?—Nãoéumaboahoraparabrincadeiras,meubem.Háumtraidorentrevocês.Gabriellarespiroufundo.—Quem?—MårtenNielsen.Gabriellasentiuosanguegelar.—Háprovasdisso?—Ah,claro.Temandotudodaquiapouco.—PorqueMårtennostraiu?—Achoqueelenãovêissocomotraição.—Comoelevêentão?—Talvezcomocolaboração,comoumdeverdelecomanaçãolíderdomundolivre,seilá.—Então,eleestápassandoinformaçõesparavocês.—Naverdadeoqueelefezfoinosajudarparaquenósnosajudássemos.Elenospassouinformações

sobreoservidordevocêsesobreasuacriptografia,oquenormalmentenãoénadamuitomaisgravedoque todaamerdaquenósaquicostumamosproduzir.Nósescutamos tudo,desdefofocadevizinhoatételefonemadeprimeiro-ministro.

Page 277: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Eainformaçãovazouparavocês.—Veio devagarzinho para nós, como se fôssemos um funil. Eu sei, Gabriella, que você não agiu

exatamentedeacordocomomanual.Masmoralmentefalando,vocêfezacoisacerta,nãotenhonenhumadúvida, e vou fazer seus superiores saberem disso. Você percebeu que havia algo podre na suaorganizaçãoe,mesmonãopodendoagirdeacordocomasregrasestabelecidas,vocênãofugiudasuaresponsabilidade.—Emesmoassimdeutudoerrado.—Àsvezesascoisasdãoerradopormaiscuidadoqueagentetome.— Obrigada, Alona, é muita delicadeza sua me dizer tudo isso. Mas se alguma coisa de ruim

aconteceucomAugustBalder,nuncavoumeperdoar.—Gabriella,omeninoestábem.Eleeajovemsrta.Salanderestãonumcarroporaí,indoparaalgum

lugardesconhecido,casoalguémaindaestejaatrásdeles.Gabriellaachouquetinhaouvidomal.—Espere,nãoentendi.Oquevocêfalou?—Queomeninoestásãoesalvo,meubem,egraçasaeleoassassinodoBalderjáfoiidentificadoe

preso.—VocêestádizendoqueAugustBalderestávivo?—Sim,éoqueeuestoudizendo.—Comovocêsabe?—Digamosqueeutenhouminformantenumlugarbemestratégico.—Alona...—Sim?—Seoquevocêestádizendoéverdade,podetercertezadequevocêmefeznascerdenovo.Terminada a conversa, Gabriella Grane telefonou paraHelenaKraft e insistiu queMårtenNielsen

participassedareunião.Mesmocontrariada,HelenaKraftconcordou.EramseteemeiadamanhãquandoEdNeedhameMikaelBlomkvistdesceramaescadademadeirada

casadeGabriellaGraneparapegaroAudinoestacionamentojuntoàpraia.Apaisagemestavacobertadeneveeosdoisseguiamcalados.Àscincoemeiadamanhã,MikaeltinharecebidoumamensagemdetextodeLisbeth,curtacomosempre:Augustsalvo.Escondidosporumtempo.Mais uma vez Lisbeth não tinha mencionado seu próprio estado de saúde, mas ainda assim era

tranquilizador saber que o menino estava bem. Depois disso, Sonja Modig e Jerker Holmberg ointerrogaramdemoradamentesobrecomoeleearevistatinhamagidonosúltimosdias.Osinvestigadoresnão demonstraramnenhuma boa vontade com ele,masMikael teve a impressão de que no fundo elesentenderamsuasrazões.Agora,umahoradepoisdesseinterrogatório,elecaminhavapelopíer.Aolonge,umveadofugiucorrendoparaobosque.MikaelsesentouaovolantedoAudieficouaguardandoEd,quevinhachegandodevagarporcausadascostas.AcaminhodeBrunn,elesforamsurpreendidosporumcongestionamento.Poralgunsminutosotrânsito

ficoucompletamenteparadoeopensamentodeMikaelsevoltouparaAndrei.Naverdade,nuncatinha

Page 278: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

deixadodepensarnele.Elesaindanãohaviamrecebidonenhumsinaldevidadele.—Vocêpodepôremalgumarádiobembarulhenta,porfavor?—pediuEd.Mikaelsintonizouna107.1eimediatamenteouviuJamesBrowngritando“likeasexmachine”.—Medêaquiosseuscelulares—disseEd.Mikael entregou-lhe os aparelhos eEd os pôs bemperto dos alto-falantes traseiros do carro.Com

certezaeleiacontaralgoconfidencial,eMikaelnãotinhanadacontra.Precisavadetodasasinformaçõespossíveis para escrever sua história, mas também tinha consciência de que ninguém deixa umainformaçãovazarsemteralguminteressenisso.MesmoqueMikaelsentisseumacertaafinidadecomEdNeedhameatéachassecharmosatodaaquelatruculência,nãoconfiavanelenemporumsegundo.— Bom, o negócio é o seguinte — começou Ed. — Sabemos que nas empresas comerciais e

industriaisalguémsempretiraproveitodasinformaçõesinternas.Mesmoqueumououtroacabesendodescoberto,ospreçossempresobemquandoasnotíciassetornampúblicas.Alguémsempreaproveitaachanceparacomprar.—Éverdade.— No serviço secreto, ficamos longe disso por um bom tempo pela simples razão de que as

informaçõesconfidenciaisquepossuíamoseramdeoutranatureza.Adinamitepuraestavaemoutrolugar.Mas desde o fim da Guerra Fria muita coisa mudou. A espionagem industrial e o monitoramento depessoaseempresassedisseminaramtantoesetornaramtãoinevitáveisquecomoimensomaterialquetemoshojepoderíamosenriquecerfacilmenteedemaneiramuitorápida.—Hápessoastirandovantagemdisso,éoquevocêquerdizer?— A ideia principal é essa. A espionagem industrial beneficia os grandes grupos empresariais

americanos,queficamapardeondeestãoospontosfortesefracosdosnossosconcorrentes.Elaépartedas atribuições patrióticas daNSA.Mas, como todo o trabalho de inteligência, o serviço secreto atuanumazonacinzenta.Quandoexatamenteaajudapassaaserumaatividadecriminosa?—Poisé.Quando?— Boa pergunta. O que há algumas décadas era considerado criminoso ou antiético hoje já é

consideradoumapráticapadrão.Advogados são recrutadospara legitimar roubose açõesabusivas, esouobrigadoaadmitirquenaNSAnãotemosnossaídomuitomelhor,possolhedizerquetalvezaté...—Estãosendopiores.—Calma,calma,deixaeuterminar—prosseguiuEd.—Euprovavelmentediriaquemantemosuma

certamoralidade,apesardetudo.Massomosumaorganizaçãogigantesca,comdezenasdemilharesdefuncionários,e,inevitavelmente,temosmaçãspodresentrenós,inclusivealgumasdealtoescalãocujosnomeseupretendoentregaravocê.—Evocêfaráisso,claro,apenasporgenerosidade—disseMikael,sarcástico.—Ah,nãosóporgenerosidade.Masescute isto.Quandoalgunsdosnossoschefesmaisgraduados

cruzamafronteiradalegalidadeepassamasededicaraatividadescriminosasdetodotipo,oquevocêachaqueacontece?—Nadamuitoagradável.— Eles se tornam sérios concorrentes do crime organizado. Na Solifon há um departamento

extremamentequalificado,comandadoporZigmundEckerwald,cujotrabalhoédescobriroqueempresas

Page 279: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

dealtatecnologiaconcorrentesestãofazendo.—Masnãoésóisso.—Não,elestambémroubamevendemoqueroubam,oqueémuitonegativoparaaSolifonequem

sabeatéparaomercadodeaçõesdaNasdaq.—EparavocêsdaNSAtambém.— Issomesmo, pois acabamos sabendo que os nossos traidores eram dois executivos seniores da

espionagemindustrial,JoacimBarclayeBrianAbbot.Depoispassopravocêtodososdetalhes.Essesdois e seus subordinados recebem ajuda de Eckerwald e de sua gangue e, em troca, os auxiliam nomonitoramento de comunicações em larga escala.ASolifonmostra a eles onde asmaiores inovaçõesestãosendofeitaseosfilhosdaputaseapossamdosprojetosedetodososdetalhestécnicos.—EodinheirorecebidonemsemprevaiparaoscofresdoEstado.—Issoneméopior.SevocêfazumacoisadessasendofuncionáriodoEstado,vocêseexpõe,fica

numaposiçãomuitovulnerável, especialmente porqueEckerwald e seubando tambémestão ajudandocriminosos da pior espécie,mesmoque no início não tivessem conhecimento de que estavam fazendoisso.—Maseramcriminososmesmo?—Ah,sim!Oshackersdelestinhamumníveldeconhecimentotãoaltoqueseriaumsonhocontratá-

los.Averdadeiranaturezadonegóciodeleseratirarpartidodainformação,daíjádápravocêimaginaro que aconteceu. Quando eles perceberam o que os funcionários da NSA faziam, eles acharam queestavamsentadosnumaminadeouro.—Informaçõesquepodiamserusadasparachantagear.—Ecomo!Elestiraramvantagemdissoaomáximo.Osnossosfuncionáriosnãoroubavamapenasdas

grandes empresas. Eles também fizeram uma limpeza em pequenas empresas e em empreendedoresindividuais,que lutamparasobreviver.Nãoserianadabomse tudoviesseà tonaeosnossos rapazesficassemna lamentávelsituaçãode terqueajudarnãosóEckerwaldesuagangue,mas tambémoutrosgruposcriminosos.—VocêestásereferindoaosSpiders?—Exato,etalvezporalgumtempotodosestivessemsatisfeitos.Eranegóciodosgrandeseodinheiro

corria fácil.Maseisquesurgeumpequenogênionomeiodahistória,umcertoprofessorBalder,quedescobre essa atividade, ou pelomenos parte dela. Então todos ficam se borrando demedo, claro, econcluemqueprecisamfazeralgumacoisa.Nãoestoubemcertodecomoadecisãofoitomada.Achoqueos nossos rapazes daNSA esperavam que procedimentos legais bastassem, que ameaças e advogadosraivosos resolveriam tudo. Mas isso não foi suficiente, não quando você está no mesmo barco quebandidos.OsSpiderspreferemaviolência,portantoenvolveramosnossos rapazesnaúltimaetapadoplanocomointuitodeteremaindamaispodersobreeles.—MeuDeus!—Aviolênciatemsuapróprialógica.Vocêdeveterminaraquiloquecomeçou.Esabeoqueéomais

engraçadodetudo?—Nãoimaginonadadeengraçadonisso.—Certo,paradoxal,então.Eunãoteriasabidonadadissoseanossaredenãotivessesidohackeada.

Page 280: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Maisumarazãoparavocêdeixaressahackerempaz.—Éexatamenteissoqueeuvoufazer,prometo,assimqueelamecontarcomoconseguiunosinvadir.—Porqueissoétãoimportante?—Para que nenhum filho da puta consiga invadir omeu sistemade novo!Quero saber exatamente

comoelafez,paraqueeupossatomarasminhasprecauções.Depoisdessaconversaeudeixoamoçaempaz.—Nãoseisevocêédecumprirsuaspromessas.Masandeipensandoemoutracoisa—acrescentou

Mikael.—Manda!— Você mencionou dois nomes, Barclay e Abbot, não foi? Você tem certeza de que não há mais

ninguémenvolvido?Queméosuperiordeles?Deveseralguémnumcargomaiselevado,nãoé?—Nãopossodizeronomedele,infelizmente.Éconfidencial.—Entãovouterquemeconformarcomisso?—Vai, não tem jeito— disse Ed sem hesitar, e nesse instanteMikael notou que o trânsito tinha

passadoafluirmaisrápido.

Page 281: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

28.TARDEDE24DENOVEMBRO

OprofessorCharlesEdelmanestavanoestacionamentodoInstitutoKarolinskaseperguntandoemquediabos ele havia, afinal, se envolvido. Mal podia acreditar naquilo, mas também não tinha tempo aperder.Agorajáhaviaaceitadoaproposta,oquesignificariaserobrigadoadesmarcarváriasreuniões,palestras,conferências.Noentantoelesesentiaestranhamenteexultante.Haviasidoenfeitiçadonãoapenaspelomenino,mas

tambémpelajovemquepareciasaídadeumabrigaderua,masquedirigiaumaBMWnovaefalavacomvozfriaeautoritária.Elemaltevenoçãodoqueestavafazendoquandorespondeu“Sim,claro,porquenão?” à pergunta dela, embora fosse obviamente uma decisão imprudente e precipitada, e a únicademonstraçãodeindependênciadelefoirecusartodasasofertasdeumacompensaçãofinanceira.Ele pagaria até mesmo suas despesas de viagem e de hotel, declarou. Provavelmente estava se

sentindoculpado.Queriamuitoajudaromenino,etambémhaviaumagrandechancedesuacuriosidadecientífica ter sidoatiçada.Era fascinanteaperspectivadeestarcomumsavantquenão sódesenhavacomprecisãofotográficacomoaindaeracapazdefatorarnúmerosprimos,eparasuaprópriasurpresaoprofessorEdelmandecidirainclusivenãocompareceraojantaranualdoprêmioNobel.Aquelajovemotinhatiradodoseixos.HannaBalderestavafumandonacozinhadeseuapartamentonaTorsgatan.Pareciaqueelanãotinha

feitomaisnadanosúltimosdiasanãoser ficar lásentadacomaquelenónoestômago,emboraviesserecebendomuitoapoioeajuda.Masissonemimportavatantodiantedaquantidadedevezesqueelaforaagredida.LasseWestman não suportava a ansiedade dela. Provavelmente porque ofendia a propensãodeleamártir.Ele sempre estourava, nervoso, berrando: “Vocênão conseguenem saber onde está o seu filho!”, e

com frequência levantava os punhos e a esmurrava ou então a jogava de um lado para outro doapartamentoeaarrastavacomoseelafosseumabonecadepano.Agoraeleprovavelmentetambémiaficarenlouquecido.Numgestodescuidado,ela tinhaderramadocafénocadernodeculturadoDagensNyheter,queofenderaLassepor terpublicadouma resenhade teatroqueeleachoumuito simpáticaaalgunsatoresdosquaiselenãogostava.—Quemerdavocêfezagora?—elegritou.—Desculpe—eladissedepressa.—Jávouenxugar.

Page 282: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Pela expressãodabocadeLasse, elapercebeuque aquilonão seria suficiente.Ela já sabiaque iaapanharantesmesmodeelesaberqueiabaternela,ejáficavadetalformapreparadaparaabofetadaquenãodiziaumapalavranemmexiaacabeça.Apenassentiaocoraçãodisparareosolhosseencheremde lágrimas.Porémas lágrimasnão tinham relaçãocomogolpe.Abofetadaera apenasogatilho.Demanhã ela havia recebido um telefonema tão confuso que tivera dificuldade de entender: August foraencontrado,mastinhadesaparecidodenovoe“provavelmente”nãoestavamachucado,“provavelmente”.Hannanãosabiaseficavamaispreocupadaoumenospreocupadacomessanotícia.Ela nem tinha conseguido escutar direito, e agora o tempo havia passado sem que nada tivesse

acontecido,eninguémpareciasaberdemaisnada.De repenteelase levantousemse importar se irialevarmaisumasurraounão.FoiparaasalaeouviuLassebufandoatrásdela.OspapéisdedesenhodeAugustaindaestavamnochãoeasirenedeumaambulânciauivavaláfora.Ouviupassosnoladodeforadoapartamento.Seriaalguémvindoprocurá-los?Acampainhatocou.—Nãoabra.Deveseralgumjornalistadesgraçado—vociferouLasse.Hannatambémnãoqueriaabrir.Sentia-sedesconfortável,nãotinhavontadedeverninguém.Masnão

podia ignorar a campainha.Talvez apolíciaquisesse falar comeladenovoouquemsabe agora elesviessem commais informações, com alguma notícia boa ou ruim. Enquanto caminhava em direção àporta,derepenteselembroudeFrans.Lembroudodiaemqueele ficaraaliplantadodizendoque tinhavindopegarAugust.Lembroudos

olhosdele,doseurostolisoesembarba,edecomoelasentiasaudadesdasuavidaantesdeseenvolvercom Lasse Westman, quando os telefones não paravam de tocar, as propostas de emprego eramabundanteseomedoaindanãoatinhaaprisionadoemsuasgarras.Emseguidaabriuaporta,mantendoporém a corrente de segurança fechada. A princípio não viu nada, apenas o elevador e as paredesmarrom-avermelhadas do hall. Então, foi como se uma descarga elétrica a tivesse atingido, e por uminstante não acreditou no que estava vendo. Mas realmente era August ali! Seu cabelo estava todoemaranhado,asroupassujasdemais,eelecalçavatênisumnúmeromuitomaiorqueodele,noentanto…eraeleali,olhandoparaelacomamesmaexpressãosériaeimpenetráveldesempre.EntãoHannatirouacorrentedesegurançaeabriuaporta,eclaroqueelanãoesperavaqueAugusttivessevindosozinho,masaindaassimumtremorpercorreuseucorpo.AoladodeAugusthaviaumajovemde jaquetadecouro,comcortesnorostoeterranocabelo,olhandoparaochão.Elaseguravaumamalagrandedeviagem.—Vimtrazerseufilho—disseajovemsemtirarosolhosdochão.—Ah,meuDeus!—exclamouHanna.—MeuDeus!Isso foi tudoqueHannaconseguiudizer, eporalguns segundosela ficoucompletamenteperdidana

frentedaporta.Depoisseusombroscomeçarama tremer,elacaiude joelhose ignoroutotalmentequeAugustnãogostavadeserabraçado.Coladanofilho,elamurmurava“Meumenino,meumenino”,atéquelágrimascomeçaramaescorrer,eomaisestranhofoiqueAugustnãoapenas tinhasedeixadoabraçarcomopareciaapontodedizeralgumacoisa,comose,alémdetudo,houvesseaprendidoafalar.Masomeninonãotevetempoparaisso,poisnesseinstanteLasseWestmanapareceujuntoàporta.—Quediabo…Masolhasóquemestáaqui!—eleexclamou,parecendoàprocuradesómaisum

motivoparacontinuarabrigadeles.Mas em seguida ele se conteve.De certa forma foi uma interpretação admirável.Num segundo ele

Page 283: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

mudoudeatitudeeadotouaposturaimponentequecostumavaimpressionarasmulheres.—Eaindanosentregamogarotonaportadanossacasa,nemmaisnemmenos—continuouele.—

Finíssimo!Eleestábem?— Ele está bem— respondeu a mulher junto à porta num tom de voz inexpressivo e, sem pedir

permissão,elaentrounoapartamentocomsuaenormemaladeviagemesuasbotaspretassujasdebarro.—Claro,entre,fiqueàvontade—disseLasse,irônico.—Váentrando.—Euvimteajudarafazeramala,Lasse—rebateuLisbethdemaneiraácida.EraumaafirmaçãotãoestranhaqueHannapensouterouvidomal,eestavaclaroqueLasse também

nãotinhaentendido.Eleficoualiparadodebocaaberta,parecendoumidiota.—Oquevocêfalou?—eleperguntou.—Quevocêvaisemudardaqui.—Vocêestásefazendodeengraçadinha?—Dejeitonenhum.Vocêvaiemboradaquideumavezpor todasenuncamaisvaichegarpertodo

Augustdenovo.Éaúltimavezquevocêpõeosolhosnele.—Entãovocêpiroudevezmesmo!— Na verdade, eu estou sendo até bem generosa. Eu tinha planejado te jogar pela escada e te

machucarbastante.Maseutrouxeumamalaedecidideixarvocêpegaralgumascamisasecuecas.—Quetipodeaberraçãoévocê,hein?—vociferouLasse,aumsótempoperplexoecheioderaiva,

avançandoparaLisbethcomtodoopesodesuahostilidade,eporumsegundooudoisHannaachouqueelefosseagredirtambémamulher.Masalgoodeteve.Talvezfossemosolhosdagarota,ouprovavelmenteosimplesfatodeelanãoter

reagidocomoasoutras.Emvezdeseencolherouficaratemorizada,elaapenassorriucomfriezaetiroualgunspapéisamassadosdobolsoeosentregouaLasse.—SeumdiavocêeoseuamigoRogersentiremsaudadesdeAugust,vocêspodemmatarasaudade

olhandopraistoaqui—eladisse.Lasseficounitidamentedesconcertadocomaquelaatitude.Olhouparaospapéis,confuso.Entãofez

umacaradehorror,eHannanãoconseguiuevitardetambémdarumaolhadarápida.Eramdesenhoseoqueestavaemcimadetodosmostrava…Lasse.Lasseagitandoospunhoseparecendodiabólico,tantoquemaistardeelamalconseguiriadescreveressaimagem.NãoeraapenasqueelativesseentendidooqueaconteciaquandoAugustficavasozinhoemcasacomLasseeRoger.Elatambémviualisuaprópriavida.Hannaagoraenxergava tudode formamuitoconscientee racional, comonunca tinhaconseguidofazeremtodosaquelesanos.LasseWestmanhaviaolhadoparaelaexatamentecomaquelamesmaexpressãolívidaetranstornada

centenasdevezes,aúltimanãofazianemumahora,eporfimelapercebeuqueaquilonãoeraalgoquealguémfosseobrigadoaaguentar,nemelanemAugust,eHannaseassustou.Pelomenosachouquetinhaseassustado,porqueajovemaolhavacomumnovointeresse,eHannatambémolhouparaela,etalvezfosseexageroafirmarqueasduas tivessemestabelecidoumcontatomaispróximo.Masdeviam ter seconectado em algumoutro nível.Amulher perguntou:—Eu não estou certa,Hanna?Ele não deve irembora?Eraumaperguntaperigosademais.HannaolhouparaotênisgrandenospésdeAugust.

Page 284: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Quetêniséessequeeleestáusando?—Émeu.—Porquê?—Tivemosquesaircorrendohojedemanhã.—Eoquevocêsestavamfazendo?—Nosescondendo.—Eunãoentendo…—elacomeçou,masnãopôdecontinuar.Lasseasegurouviolentamentepelobraço.—Porquevocênãodizaessapsicopataqueaúnicapessoaquevaiemboradestacasaéela?—ele

rugiu.—Sim,claro—disseHanna.—Entãofaçaissodeumavez!No entanto… Ela não entendeu o que houve. Pode ter sido alguma coisa no rosto de Lasse ou a

percepçãodealgoinflexívelnocorpoenosolhosgeladosdagarota,masofatoéquederepenteHannaseouviudizendo:—Vocêvaiemboradaqui,Lasse!Enãovaivoltarnuncamais!Elamalacreditounoqueestavaacontecendo.Eracomosealguémestivessefalandoporela,edepois

dissofoitudomuitorápido.LasselevantouamãoparabateremHanna.Masnãohouvenenhumgolpe;nenhumgolpevindodele.Ajovemreagiucomavelocidadedeumraioeoacertounorostouma,duas,trêsvezes,comoumaboxeadoratreinada,eporfimoderruboucomumchutenaspernas.—Masquemerdaé…—foioqueeleconseguiudizer.Lassedesabounochãoe a jovem ficouparadana frentedele, edepoisHanna iria se lembrarpara

sempre do que Lisbeth Salander falou naquele momento. Foi como se aquelas palavras tivessemdevolvidoaHannaumapartedesiprópria,eelapercebeuporquantotempoequãodesesperadamenteelavinhadesejandoqueLasseWestmanestivesseaquilômetrosdedistânciadesuavida.BublanskiestavacomvontadedeverorabinoGoldman.TambémsentiafaltadochocolatecomlaranjadeSonjaModig,desuanovacamaDuxedequefosse

outra época do ano.Mas agora seu trabalho era pôr ordem naquela investigação, e era isso que elepretendiafazer.Verdadequedecertaformaatéqueestavasatisfeito.TinharecebidoinformaçõesdequeAugustBaldersaírailesoeestavaacaminhodacasadesuamãe.EgraçasaomeninoeaLisbethoassassinodeFransBalderforapreso,emboraaindanãosoubessem

se ele iria sobreviver. Estava seriamente ferido e internado na unidade de tratamento intensivo dohospitalDanderyd.ElemoravaemHelsinqueesechamavaBorisLebedev,masvinhausandoumnomefalso:JanHoltser.Eramajoreex-soldadodeelitedoExércitosoviético,enopassadoseunometinhasurgidoemváriasoutrasinvestigaçõesdehomicídios,semnuncatersidocondenado.Oficialmente,eradonodeumnegócionaáreadesegurança,tendoduplacidadania,finlandesaerussa;enãohaviadúvidasdequealguémderaumjeitodeeditarseusarquivospessoais.Os outros dois homens que tinham sido encontrados feridos na casa de Ingarö foram identificados

atravésdesuasimpressõesdigitais;eramDennisWilton,umvelhogângsterdoMCSvavelsjö,quejátinha

Page 285: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

cumpridopenaporrouboeagressãofísica;eVladimirOrlov,umrussocomfichacorridanaAlemanhapor lenocínio e cujas duasmulheres haviammorrido em circunstânciasmisteriosas.Nenhumdos doisdisseraaindaumapalavrasobreoocorridonemsobrequalqueroutracoisa,eBublanskinãotinhamuitasesperançasdequecomeçassemafalar.Tiposcomoelesnãocostumavamsemostrarmuitoeloquentesnosinterrogatórios.Masfaziapartedojogo.Oquede fatodeixavaBublanskicontrariadoeraa sensaçãodequeesseshomensnãopassavamde

soldadosrasosequeacimadeleshaviaumaliderançacomligaçõesevidentescomaltosescalõestantodaRússiacomodosEstadosUnidos.Elenãotinhanenhumproblemacomofatodeumjornalistatermaisinformaçõessobreumcasodoqueele.Nãoeradadoavaidades.Tudoqueelequeriaeraavançarnasinvestigaçõeseficavagratoporquaisquerinformaçõesquerecebesse,viessemelasdeondeviessem.ApercepçãoqueMikaelBlomkvisttinhasobreocasoapontavaparafalhasdapolícia,eessasuspeitadojornalista lembrouaBublanskiovazamentode informaçõesna investigaçãoeosperigosqueogarototinhacorridoporcausadisso.Elenuncasuperariaaraivaquesentiu,etalvezissoexplicasseotamanhodasuairritaçãocomastentativasinsistentesdachefedaSäpo,HelenaKraft,defazercontatocomele,eela não fora a única.Agorahaviaumaporçãodegentequerendo falar comele: o pessoal da áreadetecnologiadainformaçãodapolícia,oprocuradorRichardEkströmeumprofessordaUniversidadedeStanford chamadoStevenWarburton, que trabalhava para oMachine IntelligenceResearch Institute, oMIRI,eque,segundoAmandaFlod,queriafalarcomelesobre“umperigoiminente”.Bublanskiestavairritadocomissoecommilharesdeoutrascoisas.Eaindahaviaalguémbatendoem

sua porta! Era Sonja Modig, que parecia muito cansada e estava sem maquiagem. Havia algo novoexpostoemseurosto.— Nossos três prisioneiros estão em cirurgia — ela informou. — Vai demorar para podermos

interrogá-losdenovo.—Tentarinterrogá-los,vocêquerdizer.—É,talvez.MasconseguiterumapequenaconversacomoLebedevantesdacirurgia,enquantoele

aindaestavaconsciente.—Eoqueeledisse?—Quequeriaconversarcomumpadre.—Porquetodososassassinossãoreligiososhojeemdia?—EnquantotodososvelhosesábiosinspetoresduvidamdaexistênciadeDeus,éissoquevocêquer

dizer?—Ora,ora!—MasLebedev parecia resignado, o que achei um bom sinal.Quando lhemostrei o desenho, ele

apenasvirouorostoparaooutroladocomartriste.—Elenãotentoualegarqueeraimaginaçãodomenino?—Não,apenasfechouosolhosecomeçouafalarsobreopadredele.—Vocêdescobriuoqueoprofessoramericanoquercomigo?Eleficametelefonandootempotodo.—Não,nãosei.Eleinsistequequerfalarcomvocê.Achoqueéalgumacoisasobreaspesquisasde

Balder.—EZander,ojovemjornalista?

Page 286: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Foisobreissoqueeuvimfalarcomvocê.Parecemeiosinistro.—Oquejásabemos?— Sabemos que ele ficou trabalhando até altas horas naMillennium e depois desapareceu nas

proximidades doKatarinahissen, tarde da noite, acompanhado por uma jovemmuito bonita de cabeloloiro-avermelhadoouloiro-escuro,elegante,comroupasdegrife.—Ah,dissoeunãosabia.—Umrapazviuosdois,umpadeirodoSkansenchamadoKenEklund,quemoranoprédioondeficaa

redaçãodaMillennium.Eledissequeocasalpareciamuitoapaixonado,oupelomenosZander.—Vocêachaqueelepodetercaídonumaespéciedearmadilhaamorosa?—Épossível.—EessajovempoderiaseramesmaquefoivistaemIngarö?—Estamosexaminandoessapossibilidade.Oquemepreocupaéqueelespareciamestaracaminho

do Centro velho. Orlov, aquele asqueroso que cuspiu em mim quando tentei interrogá-lo, tem umapartamentonaMårtenTrotzigGränd.—Jámandamosalguémlá?— Ainda não, mas estamos a caminho. A informação do apartamento acabou de chegar. Ele está

registradoemnomedeumadasempresasdele.—Vamostorcerparanãoencontrarmosnadadesórdidolá.—Vamos,sim.LasseWestman estava caído no hall do apartamento da Torsgatan, sem entender por que tinha se

acovardado.Eraapenasumagarota,umapunkcheiadepiercingsquemalchegavaàalturadopeitodele.Poderiaatirá-lacontraaparedecomofariacomumratinho.Mesmoassimestavacomoqueparalisado,enãoachavaquetinhaavercomojeitocomoagarotalutavaemuitomenosporelaestarcomopéemcimadoestômagodele.Eraalgomais,algumacoisaavercomaaparênciaoucomaatitudedela,eraisso que ele evitava cutucar. Por algunsminutos Lasse ficou lá quieto, como um idiota, ouvindo:—Acabeideme lembrar—eladisse—queháalgoassustadoramenteerradocomaspessoasdaminhafamília.Parecemossercapazesdequasetudo.Dasmaisinconcebíveiscrueldades.Deveseralgumtipode distúrbio genético, não sei. Eu, por exemplo, tenho aversão a homens que maltratam crianças emulheres.Issomefazficarmuitoperigosa,equandoviosdesenhosqueAugustfezdevocêedeRoger,aí eu quismachucarmuito vocês dois.Eu poderia ficar horas aqui falando sobre isso,masAugust jápassou pormais do que o suficiente, portanto há uma pequena possibilidade de você e o seu amigoescaparemdessaatéquesemmuitosdanos.—Eu…—começouLasse.— Quieto! Isto não é nenhuma negociação, não é nem mesmo uma conversa. Eu estou apenas

estabelecendocondições,maisnada.Juridicamente,nãohánenhumapendência.FransfoiespertoepôsoapartamentononomedeAugust.Quantoaoresto,vaiserassim:vocêtemexatamentequatrominutosparaarrumar as suas coisas edaro foradaqui.SevocêouRogervoltarempara esta casaouentrarememcontato comAugust de algumamaneira, eu vou fazer vocês dois sofrerem tanto que vocês vão ficar

Page 287: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

incapacitados de fazer qualquer coisa prazerosa pelo resto da vida.Nessemeio-tempo, eu preparareiumadenúnciacontravocêsparaapolícia,cheiadedetalhesdosabusosaosquaisvocêssubmeteramoAugust,e,comovocêsdevemsaber,eunãotenhoapenasosdesenhosparasustentaressaqueixa.Tambémhátestemunhosdepsicólogoseespecialistas.Alémdissopretendoentraremcontatocomosjornaisparainformá-losdomaterialquetenhocomigo,quesósubstancializaereforçaaimagemquevocêadquiriudepoisdoseuataqueaRenataKapusinski.Merefresqueamemória,Lasse,oquefoimesmoquevocêfezcomela?Vocêamordeunorostoelhedeupontapésnacabeça,nãofoiisso?—Entãovocêvaiprocurarosjornais.—Euvouprocurarosjornais.Euvouprejudicarvocêeoseuamigodetodasasformasimagináveis.

Mastalvez,vejabem,estoudizendotalvez,vocêspossamescapardapiordashumilhaçõessenuncamaischegarempertodeHannaedeAugust,enuncamaisvoltaremaagredirumamulher.Naverdade,estoupoucomelixandopravocês.SóquerogarantirqueoAuguste todosnósnuncamaisprecisemosolharparaasuacara.Portantovocêvaisairdaqui,epodeatéficarbemcasosecomportedireitoeváemborabemquietinho,comoumpequenomongeenvergonhado.Duvidoqueosabusosnãoserepitam,porqueareincidênciadecasosdemaus-tratosàsmulheresémuitogrande,comovocêsabe,evocêépornaturezaum depravado, uma criatura asquerosa. Mas quem sabe se, com um pouco de sorte, você talvez…Estamosentendidos?—Sim,euentendi—elerespondeu,odiando-seporfazerisso.MasLassenãoviuqueoutracoisapodiafazeranãoserconcordareagirdamaneiraqueelatinhadito,

então se levantou, foi até o quarto e colocou depressa suas coisas namala.Apanhou seu casaco, seucelularesaiudoapartamento.Nãosabiaparaondeir.Nunca se sentira tãopatéticonavida, equandochegouà ruaumamisturadesagradávelde chuva e

nevedesabousobreele.Lisbethouviu a porta do apartamento se fechar e o somdepassosdesaparecendonosdegraus.Ela

olhouparaAugust.Eleestavaparado,osbraçoscaídosaolongodocorpo,olhando-acomatenção,eelaficouperturbada.Agorahápouco,estavanocontroledasituação,masderepentesesentiuinsegurae…qualeraoproblema,afinal,comHannaBalder?Hanna parecia a ponto de explodir em lágrimas e August… para complicar as coisas ele tinha

começado a sacudir a cabeça e a murmurar algo incompreensível que desta vez não eram númerosprimos, e sim uma coisa completamente diferente. Lisbeth só queria fugir dali,mas não fez isso. Suamissãoaindanão tinha terminado.Entãoelamexeunobolsoda jaquetae tiroudaliduaspassagensdeavião,umareservadehoteleummaçogrossodedinheiro,comcoroassuecaseeuros.—Euapenasqueria,dofundodomeucoração…—começouHanna.—Fiquequieta—interrompeuLisbeth.—AquiestãoduaspassagensparaMunique.Ovoosaiàssete

equinzedestanoite,portantovocêstêmqueseapressar.EujáprovidencieiumtransportequelevaráosdoisdiretoparaoSchlossElmau.ÉumhotelbembacanapertodeGarmischPartenkirchen.Vocêsvãoficarnumquartogrande,noúltimoandar,sobonomedeMüller,eaprincípioficarãoláportrêsmeses.EufaleicomoprofessorCharlesEdelmanelhedissequesetratavadeumassuntoconfidencial.Eleirá

Page 288: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

vê-loscomregularidadeevaiprovidenciar todaaajudanecessáriaparaAugust.Edelman tambémvaiencontrarumaescolaadequadaequalificadaparaAugust.—Issoporacasoéumapiada?—Quieta,eujádisse.Issoéumassuntomuitosério.ApolíciajáestácomosdesenhosdeAugusteo

assassinodoseuex-maridofoipreso.Masosmandantescontinuamsoltoseéimpossíveladivinharoqueeles estão tramando. Vocês precisam sair do apartamento imediatamente. Eu tenho outras coisas parafazer.Jáarrumeiummotoristaquevailevarvocêsatéoaeroporto.Elepareceumpoucoestranho,maséconfiável.Podemchamá-lodePraga.Entendeutudo?—Entendi,mas…— Esqueça os “mas” e me escute: não use o seu cartão de crédito nem o seu celular durante a

permanênciadevocêslá,Hanna.Jáarranjeiumtelefoneseguroparavocê,umBlackphone,paraocasodeumaemergência.Omeunúmerojáestánoaparelho.Todososcustoscomohotelsãoporminhaconta.Vocêsvãorecebercemmilcoroassuecasemdinheiroparagastosinesperados.Algumapergunta?—Issotudopareceloucura!—Nãoé.—Mascomovocêtemcondiçõesdefinanciartudoisso?—Eutenho.—Mascomovamos…Hannanãoconseguiucontinuar.Estavaconfusa,comosejánãosoubessenoqueacreditar.Derepente

começouachorar.—Comovamospoderteagradecerumdia?—elaconseguiudizerporfim.—Agradecer?Lisbeth repetiuapalavracomosenãoaconhecesse, equandoHanna foi emsuadireçãodebraços

estendidos,Lisbethrecuou,dizendocomosolhospregadosnochão:—Sósecomporte!Vocêvaiparardeusaramerdaqueestiverusando,drogas,pílulasouqualqueroutracoisa!Essaéaformadevocêmeagradecer.—Claro,comcerteza…—EsealguémcolocarnacabeçaqueAugustprecisaser internadonumaclínicaoucoisaassimeu

quero que você lute contra isso com todas as suas forças, mostre suas garras. Vá ao ponto fraco doinimigo.Vocêtemqueserumaguerreira.—Umaguerreira?—Exatamente.Nãodeixeninguém…Lisbethnãoacaboudefalar,poissedeucontadequeaquelastalveznãofossemasmelhorespalavras

paraumadespedida.Elasevirouefoicaminhandoparaaporta.Porémnãochegoumuitolonge.Augustcomeçouamurmurarnovamenteedessavezfoipossívelouviroqueogarotodizia.—Nãová,nãová…—eleresmungava.Lisbethnão sabiaoque fazer, entãodisse apenas, abruptamente:—Vocêvai ficarbem.—Depois

acrescentou,comosefalasseconsigomesma:—Obrigadaportergritadohojedemanhã.Ostrêsficaramtodosemsilêncioporuminstante,eLisbethpensousedeviadizermaisalgumacoisa.

Masnãoiasedeixarabalar,entãosevoltouesaiudoapartamento.Hannaaindagritouládedentro:—

Page 289: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Vocênemimaginaoqueissosignificaparamim!Mas Lisbeth não ouviu uma palavra, pois já descia a escada correndo, a caminho de seu carro,

estacionado na Torsgatan. Quando chegou à Västerbron, seu aplicativo Redphone tocou e MikaelBlomkvistlhecontouqueaNSAatinhalocalizado.—Poisdigaqueeutambémestouatrásdeles—elarespondeu,séria.Emseguida, foiatéacasadeRogerWintereoassustoubastante.Porúltimo,voltouparacasaese

dedicouatrabalharnoarquivocriptografadodaNSA,massemchegarnempertodeumasolução.

***Ed eMikael haviam trabalhado duro o dia todo no quarto do Grand Hotel. Ed tinha uma história

fantástica paraMikael, e finalmente ele ia poder dar aquele tão esperado furo de que ele, Erika e aMillennium tantoprecisavam, e isso eramuitobom.Mas aindanão estava contente, e não era sóporcausadodesaparecimentodeAndrei.AlgumacoisaemrelaçãoaEdnãofechava.PorqueeleteriavindoparaaSuéciaeporqueseempenhavatantoemajudarumapequenarevistaaquilômetrosequilômetrosdedistânciadoscentrosdepoderdosEstadosUnidos?Onegóciopodiaserentendidocomoumasimplestrocadefavores,poisMikaelprometeranãorevelar

oataquedohackerehaviameioqueprometidoaomenos tentar fazerLisbethconversarcomEd.Mascomoissonãochegavaaserumaexplicaçãodetodoconvincente,MikaelsededicavaalerasentrelinhasdoqueEddizia.O americano se comportava como se corresse riscos enormes.As cortinas estavam abaixadas e os

telefonesdeixadosaumadistânciasegura.Umaauradeparanoiapairavasobreoquarto.Sobreacamaviam-se documentos secretos que Mikael foi autorizado a ler, mas que não poderia mencionar nemcopiar,edevezemquandoEdinterrompiaseurelatoparadiscutirosváriosaspectosdaproteçãodeumafontejornalística.Elepareciaobcecadoemnãopermitirqueovazamentofosseassociadoaele,àsvezesia nervoso até a porta achandoque tinhaouvidopassosno corredor, outras vezes abria uma fresta nacortinaparaversenãohaviaalguémláforaosespionando,eaindaassim…Mikaelnãoconseguiadeixardesentirquetudoaquilonãopassavadeencenação.CadavezmaisfoiseconvencendodequeEdtinhaocomandodasituaçãoequesabiaexatamenteo

quefaziaequenaverdadenãoestavanemumpoucopreocupadoemserespionado.OcorreuaMikaelqueEdpodiaestardesempenhandoumpapelcomoapoiodeseussuperioresequetalvezelepróprio,Mikael,tivesseumpapelnesseteatrotodoqueeleaindanãotinhaentendido.PorissoointeressantenãoeraapenasoqueEddizia,mastambémoqueeleescolhianãodivulgareo

queelepodiaestar tentandoconseguir.Havia, semsombradedúvida,umagrandeporçãode raiva lá.“Alguns idiotas” do departamento demonitoração de tecnologias estratégicas haviam impedidoEddepegarohackerquetinhainvadidooseusistema,somenteporqueelesnãoqueriamserflagradoscomacalçanasmãos,eissoodeixavafurioso,eledissera,eMikaelnãotinhamotivosparanãoacreditarneleemenosaindaparaduvidarqueEddefatoqueriaaniquilaressaspessoas,“esmagá-lasdebaixodaminhabota”.Aomesmotempo,pareciahaveroutrosaspectosnahistóriaquenãoodeixavamconfortável.Àsvezes

Page 290: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Edpareciaestarlutandocontraumtipodeautocensura,edetemposemtemposMikaelodeixavasozinhoeiaatéarecepçãodohotelparapoderpensarouentãotelefonarparaErikaeLisbeth.Erikacostumavaatender aoprimeiro toquee, apesardeosdois estarementusiasmadoscomahistória, haviaumclimapesadoesombrioemsuasconversas,umavezqueAndreicontinuavadesaparecido.Lisbethnãoatendia.Somenteàscincoevintedatardeeleconseguiufalarcomela,quepareceumuito

concentradaedistante.Elacontourapidamentequeogarotojáestavaemsegurançacomamãe.—Evocê?Comovocêestá?—eleperguntou.—Bem.—Nãoestámachucada?—Maisoumenos.Mikaelrespiroufundo.—VocêinvadiuaintranetdaNSA,Lisbeth?—VocêandoufalandocomEdtheNed?—Semcomentários.ElenãopodiafalardoassuntonemmesmocomLisbeth.Aproteçãodafonteerasagradaparaele.—EntãoEdnãoétãoburro,nofinaldascontas—eladisse,comosearespostadeMikaeltivesse

sidoafirmativa.—Entãofoivocêmesmo?—Épossível.Mikael sentiu vontade de xingá-la e de perguntar o que ela tinha pretendido com aquilo. Mas se

recompôs e disse o mais calmamente possível: — Eles prometeram não te incomodar, se você sedispuseraseencontrarcomeleseexplicarexatamentecomoconseguiuinvadi-los.—Digaaelesqueeutambémestouatrásdeles.—Oquevocêquerdizercomisso?—Queeutenhomaisdoqueelesimaginam.—Estábem—disseMikael,pensativo.—Masvocêestádispostaaseencontrarcom…—Ed?Masquecoisa,pensouMikael.Comoelasabia?Edéquemqueriasurpreendê-la,aparecendoparaela.—Ed—eleafirmou.—Aquelecretinopretensioso.—Muitopretensioso.Masvocêseencontrarácomele,selhedermosgarantiadequenãoserápresa?—Essasgarantiasnãoexistem.—EseeufalassecomAnnika,aminhairmã,epedissequeelaterepresentasse?—Eutenhooutrascoisasparafazer—Lisbethdisse,comosenãoquisessemaisfalardaquilo.Elenãoseconteve:—Essahistóriaemqueagenteseenvolveu…—Oquetemela?—Nãoseiseestouentendendototalmente.—Qualéoproblema?—perguntouLisbeth.—Paracomeçar,nãoentendoporqueCamillaapareceuderepentedepoisdetodosessesanos.

Page 291: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Eladeviaestaraguardandoomomentocerto.—Comoassim?—ElasempresoubequevoltariaparasevingardoqueeufizcontraelaecontraZala.Maspreferiu

esperar até se sentir forte. Nada émais importante para Camilla do que ser forte, e suponho que derepenteelaviuaoportunidade,achancedematardoiscoelhoscomumacajadadasó.Pelomenoséoqueeuimagino.Porquevocêmesmonãoperguntaaelanapróximavezemquepensaremtomarumdrinquecomela?—VocêfaloucomHolger?—Andomuitoocupada.—Maselanãoconseguiuoquequeria.Vocêescapou.—Eumevirobem.—Vocênãoestápreocupadaqueelaapareçaaqualquermomento?—Issomepassoupelacabeça.—Que bom. E você sabe que eu e Camilla não fizemos nada mais que dar uma caminhada pela

Hornsgatan?Lisbethnãorespondeu.—Euteconheço,Mikael.—Foitudoqueeladisse.—EagoravocêconheceuEd.Achoquepreciso

meprotegerdeletambém.Mikaelsorriu.—Sim—disse.—Vocêdeveestarcerta.Nãodevemosconfiarmuitonele.Nãoquerometornaro

idiotaútildele.—Nãopareceopapelidealparavocê,Mikael.—Não,eéporissoqueeuadorariasaberoquefoiquevocêdescobriunasuainvasão.—Ummontedemerdacomprometedora.—SobreasrelaçõesdeEckerwaldedosSpiderscomaNSA.—Issoemaisumpouco.—Evocêestariadispostaamecontar?—Sevocêtivessesecomportadobem,eucontaria—eladissecomumtomjocosoqueodeixoufeliz.Eentãoeleriubaixinho,porquenessemomentopercebeuoqueEdestavafazendo.Adescobertafoitãoimpactantequeeledemorouparaserefazerantesdevoltaraoquartodohotele

continuartrabalhandocomoamericanoatéasdezdanoite.

Page 292: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

29.MANHÃDE25DENOVEMBRO

ElesnãoencontraramnadadesórdidonoapartamentodeVladimirOrlov,naMårtenTrotzigGränd.Olugarestavaarrumado,cheirandoalimpezaecomlençóislimposnacamafeita.Ocestoderoupassujasnobanheiroestavavazio.Mesmoassimhaviaalgoerrado.Osvizinhoscontaramquealgunshomensdeuma empresa de mudança já tinham estado lá, e depois de uma inspeção mais minuciosa a políciadescobriu manchas de sangue no chão e na parede da cabeceira da cama. O sangue foi colhido ecomparadocomumaprovadesalivaretiradadoapartamentodeAndrei,eoresultadobateu.Ospresos—osdoisqueestavamemcondiçõesdesecomunicar—afirmaramquenadasabiamsobre

as manchas de sangue e que não conheciam Zander, por isso Bublanski e sua equipe concentraramesforçosemobtermais informações sobreamulherquehavia sidovistacomZander.Aessaaltura, aimprensa já tinha publicado inúmeras matérias sobre os tiros em Ingarö e também sobre odesaparecimentodojovemjornalistadaMillennium,emboraosrepórteresaindanãotivessementendidoasconexõesentreasduashistórias.Osdoisjornaisnoturnos,juntamentecomoSvenskaMorgon-PosteneoMetro,publicaramfotosgrandesdeAndreiZander.Como já seespeculavaqueelepodia ter sidoassassinado,adivulgaçãodesuafotonormalmentedeveriaafiaramemóriadaspessoas,ouentãofazê-las lembrar-se de alguma coisa que tivesse parecido suspeita. Mas o que se deu, nesse caso, foiexatamenteocontrário.Todososrelatosfeitosportestemunhasconfiáveisforamestranhamentevagos,eosquevieramdepois,

com exceção dos depoimentos de Mikael Blomkvist e do padeiro do Skansen, fizeram questão deressaltarquenãoacreditavamqueaquelabelamulherpudesseserculpadadealgumcrime.Todosquecruzaram com ela tinham ficado comuma excelente impressão.Umbartender demeia-idade chamadoSörenKarlsten, que havia atendido amulher eAndrei Zander no restaurante Papagallo, emGötgatan,chegouasegabardeserumbomavaliadordecaráteredisseterabsolutacertezadequeaquelamulher“jamaisfariamalaalguém”.—Elaeraapersonificaçãodaelegância.Ajulgarpeloquedisseramas testemunhas,elaeraapersonificaçãode todasascoisas,eBublanski

logoentendeuqueseriaextremamentedifícilproduzirumretratofaladodela.Astestemunhasaretrataramdeformasdiferentes,comoseestivessemprojetandonelaaimagemdamulherideal,enãosimplesmenteadescrevendo.Umaatitudeabsurda, e atéomomentoapolícia tambémnãopossuíanenhuma imagemdelagravadaporcâmerasdesegurança.MikaelBlomkvistafirmounãoterdúvidadequeamulhereraCamilla Salander, a irmã gêmea de Lisbeth, e de fato se acabou descobrindo que havia existido uma

Page 293: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

pessoacomessenome.Noentanto,mesmoconsultandoarquivosantigos,nãoseencontroumaisnenhumregistro,nenhumsinaldeCamillaSalander,comosederepenteelativessedeixadodeexistir.Seaindaestivesseviva,comcertezateriaassumidooutraidentidade.Bublanskinãogostounemumpoucodisso,principalmente por ter havido duasmortes inexplicadas na família que a acolhera, e as investigaçõespoliciais dosdois casos foramdeficientes, ficando repletas de lacunas, depontos de interrogação, debecossemsaídaparaosquaisjamaishouveresposta.Bublanski havia lido os relatórios policiais da época e se envergonhou de seus colegas. Eles, por

algumtipoderespeitopelatragédiafamiliardosDahlgren,nãotinhamdadoadevidaatençãoaofatodequeascontasbancáriasdopaiedafilhatinhamsidoencerradaspoucoantesdamortedecadaumdeles,e tampouco à carta que o pai tinha começado a escrever namesma semana emque se enforcara. Suaprimeiralinhaeraassim:“Camilla,porqueétãoimportanteparavocêdestruiraminhavida?”A pessoa que parecia ter lançado um feitiço sobre todas as testemunhas estava oculta por trevas

malignas.Eramoitodamanhã,eBublanskiestavaemsuasalanacentraldepolícia,examinandomaisumavez

investigações antigas que ele esperava que pudessem ajudar a esclarecer o que tinha acontecido. Elesabiamuitobemqueaindahaviacentenasdeinformaçõesqueelenãotiveratempodeanalisar,porissoaomesmotemposeirritoueseculpouquandosoubequealguémqueriavê-lo.EraumamulherquejátinhasidointerrogadaporSonjaModig,masqueagorainsistiaemfalarcom

ele,edepoiseleseperguntariasenãoteriasidoreceptivodemais,porqueaúnicacoisaqueelepodiaimaginareraqueiriamaparecernovosproblemasedificuldades.Amulherparadaàportanãoeraalta,mas tinha uma postura majestosa e olhos escuros e intensos que causaram em Bublanski uma levemelancolia. Ela devia ser uns dez anos mais nova que ele e vestia uma capa cinzenta e um vestidovermelhoquepareciaumpoucocomumsári.—MeunomeéFarahSharif—eladisse.—Souprofessoradeciênciadacomputaçãoeeragrande

amigadeFransBalder.— Isso, agora me lembro— disse Bublanski, um pouco envergonhado.— Sente-se, por favor, e

desculpeabagunça.Aquedevoahonra?—FuimuitoingênuaquandoconverseicomsuacolegaSonjaModig.—Porqueestádizendoisso?— Porque tenho outras informações agora. Tive uma longa conversa com o professor Steven

Warburton.—Eletambémmeprocurou,masaindanãoconseguifalarcomele.Estáumverdadeirocaosporaqui.— Steven leciona cibernética em Stanford e é um renomado pesquisador na área de singularidade

tecnológica. Ele trabalha noMIRI, uma instituição que tem como objetivo assegurar que a inteligênciaartificialnosajude,enãoocontrário.—Pareceumacoisamuitoboa—disseBublanski,quesesentiaincomodadosemprequeesseassunto

surgia.

Page 294: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Stevenviveumpouquinhoemseuprópriomundo.SóontemficousabendooquetinhaacontecidocomFrans,porissoeleaindanãotinhametelefonado.MasmedissequeaúltimavezqueeleeFransconversaramfoiexatamentenasegunda-feira.—Sobreoqueelesfalaram?— Sobre a pesquisa de Frans. Sabe, desde que ele voltou dos Estados Unidos andava muito

misterioso.Nemmesmoeu,queeraumaamigamuitopróxima,sabiaoqueFransandavafazendo,mesmoquedoaltodaminhaarrogânciaeuachassequesabiadoquesetratava.Masagoravioquantoeuestavaenganada.—Enganadacomo?—Voutentarseromenostécnicapossível.Peloqueparece,Fransnãoestavaapenasdesenvolvendoo

seuantigoprogramadeinteligênciaartificial;eletambémtinhadesenvolvidonovosalgoritmoseumnovomaterialtopográficoparacomputadoresquânticos.—Desculpe,masvocêestásendomuitotécnicaparamim.—Computadores quânticos são computadores baseados namecânica quântica. Ainda é algomuito

novo.OGoogleeaNSAinvestirammuitodinheironumamáquinaque,emcertasáreas,jáétrintaecincomil vezes mais rápida que qualquer computador. A Solifon, onde Frans trabalhava, tem um projetosemelhante, embora, ironicamente, se é que a informação procede, eles ainda não tenham conseguidoalcançaromesmosucesso.—Sei—disseBublanski,umpoucoinseguro.—Amaiorvantagemdoscomputadoresquânticoséquesuasunidadesbásicas,osqubits,podemse

sobrepor.—Elaspodemoquê?—Elesnãoadotamapenasasposiçõesumouzerocomooscomputadorestradicionais,maspodemser

ozeroeoumaomesmotempo.Oproblemaéque,paraqueessasmáquinasfuncionemsatisfatoriamente,há a necessidade de métodos especiais de cálculos e percepções profundas de física, especialmenteaquiloquechamamosdedecoerênciaquântica,enissoporenquantonãofizemosmuitosprogressos.Oscomputadoresquânticosaindasãomuitoespecializadosepesadões.MasFrans,comopossoexplicaristodeumjeitomelhor?…pareciaterencontradométodosquepoderiamtorná-losmaisleves,maisflexíveiseautodidatas.Eleestavapertodealgogrande,oupelomenospotencialmentegrande.Masessaconquistanãoodeixouapenasorgulhoso;eleficoutambémmuitopreocupado.Efoiporisso,obviamente,queeletelefonouparaStevenWarburton.—Maspreocupadocomoquê?—Primeiro por suspeitar que a sua criação, a longo prazo, poderia se tornar uma ameaça para o

mundo, eu suponho.Depois, e esta seria uma preocupaçãomais imediata, porque ele sabia de coisassobreaNSA.—Quetipodecoisas?—Issoeujánãosei.Oqueeuseiéquetemavercomoladomaissujodaespionagemindustrialda

NSA.Mastenhoumbocadodeinformaçõessobreumoutrolado.NãoésegredoparaninguémqueaNSAtrabalha pesado no desenvolvimento específico de computadores quânticos. Para ela seria pura esimplesmenteoparaíso.Umamáquinaquânticapoderiacapacitá-laadecodificartodasascriptografias

Page 295: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

e, a longoprazo, todosos sistemasde segurançadigital.Entãoninguémmais estaria a salvodoolharvigilantedaNSA.—Éassustador—disseBublanskicomtantaênfasequeeleprópriosesurpreendeu.—Masumcenárioaindamaisassustador—continuouFarahSharif—ésealgodessetipocairnas

mãosdecriminosos.—Estouvendoaondevocêquerchegar.—Poressarazãoéqueeugostariamuitodesaberoquevocêsconseguiramextrairdoshomensque

vocêsprenderam.— Infelizmente, nada sobre esse assunto. Esses sujeitos não são propriamente conhecidos por sua

inteligência.Duvidoatéqueconseguissempassarnasprovasdematemáticadoensinofundamental.—Então,overdadeirogêniodoscomputadoresescapou?— Temo que sim. Ele e a mulher sumiram sem deixar pistas. Provavelmente os dois têm outras

identidades.—Ébempreocupante.BublanskiconcordoucomacabeçaeolhouparaosolhosescurosdeFarah,eeleslhedevolveramuma

expressão tãosuplicanteque talvezpor issoelesesentiumaisesperançosoenãoafundoudenovonodesânimo.—Nãoestoubemcertodoqueistosignifica…—eledisse.—Oquê?—OnossopessoaldetecnologiadainformaçãoexaminouoscomputadoresdeBalder.Nãofoiuma

tarefafácil,comovocêpodeimaginar,considerandoaobsessãodeleporsegurança,mascomumpoucode sorte pode-sedizer que eles conseguiram.Eoque constatamos foi queumdos computadores deledevetersidoroubado.—Eujásuspeitava!— Calma, ainda não terminei. Pelo que entendemos, diversas máquinas ficavam regularmente

conectadasentresiedevezemquandoseconectavamaumsupercomputadoremTóquio.—Oqueémuitorazoável.—Exato,efoipor issoquenotamosqueumgrandearquivo,oupelomenosalgogrande, tinhasido

apagadorecentemente.Aindanãoconseguimosrecuperá-lo,masjáfoiconstatadoqueissoaconteceu.—VocêestásugerindoqueFransdestruiusuaprópriapesquisa?—Não quero tirar conclusões precipitadas,mas depois do que vocême contou vou levar isso em

consideração.—Vocênãoachaqueoassassinopoderiaterdeletadooarquivo?—Depoisdefazerumacópiaparaele?—É.—Achodifícil.O assassino ficoumuito pouco tempona casa, ele não teria como fazer uma coisa

dessatãorápido.—Certo,parecetranquilizador,apesardetudo—disseFarahSharifhesitante.—Éque…—Oquefoi?—EunãoachoquecombinacomapersonalidadedeFrans.Nãoachoqueeleseriacapazdedestruira

Page 296: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

suarealizaçãomaisimportante.Seriacomo...nãosei...comoamputaroprópriobraçoou,pior,matarumamigo,umavidaempotencial.—Àsvezesénecessáriofazerumgrandesacrifício—disseBublanski,pensativo.—Destruiraquilo

queamamosedepoisvivercomisso.—Ouquemsabehajaumacópiaescondidaemalgumlugar.—Sabeoqueomeurabinodiz?—Não—elarespondeu.—Eledizqueamarcadeumhomemsãoassuascontradições.Queremosaomesmotempoficarem

casaeviajar.NãoconheciFransBalder,etalvezelemeachasseumvelhobobão.Masdeumacoisaeusei: nós podemos amar e temer o nosso trabalho com a mesma intensidade, exatamente como Franspareceteramadoasuacriaçãoedepoistidoquefugirdela.Viver,professoraSharif,nãosignificaserotempotodocoerente.Significaseaventurarnumasériededireçõesaomesmotempo,emeperguntoseoseuamigonãoestariaàsvoltascomumaespéciederebelião.Talvezelerealmentetenhadestruídotodoumtrabalhodeumavida.Talveztenhasedadocontadesuascontradiçõesinteriorese,nofinal,tenhasetornadoumserhumanonomelhorsentidodapalavra.—Vocêacha?—Eunãosei.Maseleestavamudado,nãoestava?Eletinhasidoconsideradoincapazdecuidardo

filho.Noentanto,foijustamenteissoqueelefez,eatémesmoconseguiuqueomeninocomeçasseasedesenvolvereadesenhar.—Éverdade,inspetor.—PodemechamardeJan.—Estábem.—OpessoalaquiàsvezesmechamadeBubolha.—Queapelidomaischarmoso…Tãocharmosoquantovocê.—Ah,não,achoquenão.Masumacoisaeuseicomcerteza.—Oquê?—Quevocêé...Ele não foi adiante nem precisou. Farah Sharif deu-lhe um sorriso tão espontâneo e sincero que

imediatamenteBublanskirecuperouafénavidaeemDeus.Àsoitodamanhã,LisbethSalanderse levantoudesuacamanaFiskargatan.Elanãohaviadormido

bemdenovo,enãosóportertrabalhadotantocomoarquivocriptografadodaNSAsemchegaralugaralgum.Ela tambémficaradeouvidoatentoasonsdepassosnaescadaea todo instante iaverificarosistemadealarmeeascâmerasdesegurançadaentrada.Assimcomotodomundo,elanãofaziaideiasesuairmãtinhaounãodeixadoopaís.DepoisdahumilhaçãoquesofreraemIngarö,erabempossívelqueCamillaestivessepreparandoum

outroataqueaindamaisviolento,ouqueaNSA invadisseo seuapartamento.Lisbethnão tinha ilusõessobre nenhum desses inimigos.Mas nessa manhã ela deixou tudo isso de lado, foi ao banheiro compassosdecididosetirouosutiãparavercomoestavaseuferimento.

Page 297: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Achou que parecia bemmelhor. E, embora ainda não fosse omomento ideal, decidiu ir treinar umpouconoclubedeboxedaHornsgatan.Dorsecombatecomdor.Horasdepois,elaestavalargadanovestiário,etãoexaustaquenãotinhaforçasnempararaciocinar.

Seucelularvibrava,maselaoignorou.Foiparaochuveiro,deixouaáguaquenteescorrersobreocorpo,e quando, aos poucos, seus pensamentos começaram a clarear, os desenhos deAugust voltaram à suamente.Masdessavezelanãoseconcentrounaimagemdoassassino,masemalgonaparteinferiordopapel.Na casa de campo de Ingarö, Lisbeth só tinha visto o desenho terminado por um instante, quando

estavamais concentrada em enviar uma foto dele para Bublanski eModig. Se tivesse tido tempo deanalisá-lo,como todomundo fezdepois, teria ficado fascinadacomosdetalhesdesuaexecução.Masagoraquesuamemóriafotográficaotraziadevoltaàmente,estavamaisinteressadanaequaçãoescritanopédapágina.Elasaiudochuveiroimersaempensamentos.Oproblemaéqueelamalconseguiaouvi-los,poisObinzeestavafazendoumbarulhodosdiabosdoladodeforadovestiário.—Caleaboca!—Lisbethgritouládedentro.—Estoutentandopensar!Mas isso não resolveu o problema.Obinze estava alucinado, e qualquer pessoa que não Lisbeth o

entenderiaperfeitamente.Obinze tinhaseadmiradocomoelapareciacansadaesemforçabatendonossacosdetreinamento,esepreocupouaoverqueelabaixavaacabeçacomexpressãodedornorosto.Por fim, intrigado, ele a surpreendeu e levantou a manga da camiseta de Lisbeth, descobrindo seuferimento de bala e ficando completamentemaluco por causa disso. E pelo jeito sua raiva não tinhapassado.—Vocêéumaidiota,sabia?Umalunática!—elegritava.Elaestavacansadademaispararesponder.Nãotinhamaisforçaseoqueelatinhavistonodesenho

estavadesaparecendoaospoucosdesuamente.Exausta,Lisbethsedeitounobancodovestiário.JamilaAchebeestavasentadaaoseulado.Eraumagarotabacanacomquemelacostumavalutarboxeetransar,normalmentenessaordem,porqueoscombatesmaisdurosentreasduaseramsempreconsideradosumaespécie de longa e selvagempreliminar.Umas poucas vezes, o comportamento delas no banheiro nãotinhasidodetodorecatado.Nenhumadasduasdavaamínimapararegrasdeetiqueta.—EusouobrigadaadarrazãoparaoObinze.Vocênãoestámuitobemdacabeça—disseJamila.—Podeser—respondeuLisbeth.—Esseferimentoestábemfeio.—Estácicatrizando.—Emesmoassimvocêprecisavatervindotreinar.—Pelojeito,sim.—Vamoslápracasa?Lisbeth não respondeu. Seu telefone vibrou de novo e ela decidiu dar uma olhada. Havia três

mensagensdetextocomomesmoconteúdo,enviadasporumnúmeronãoidentificado,equandoelaleuasmensagenscerrouospunhos,comexpressãodeódio,eJamilapercebeuqueeramelhordeixarpara

Page 298: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

outrodiaatransacomLisbeth.Mikaeltinhaacordadoàsseisdamanhãcomalgumasideiasbrilhantesparaareportagem,eacaminho

da redação um rascunhodela foi tomando forma em sua cabeça semgrandes esforços.Ele trabalhavamuitoconcentradonarevista,malnotandooqueaconteciaaoredor,mesmoqueselembrassedeAndreialgumasvezes.Apesardeaindateresperançadentrodasuafaltadeesperança,temiaqueAndreitivessepagadosua

reportagemcomavida,por issoemcada linhaqueescreviaprocuravahonrarocolega.Porum lado,MikaelpretendiacontarahistóriadeFransBalderedeseufilhoAugust,ummeninoautistadeoitoanosquetinhapresenciadooassassinatodeseupaieque,apesardesuaslimitações,encontraraumamaneirade se vingar. Por outro lado,Mikael tambémqueria que a reportagem fosse instrutiva, que falasse donovomundodavigilânciaedaespionagem,emqueasmarcasquedelimitavamafronteiraentreolegaleo ilegal haviam sido apagadas, o que para ele seria umamatéria fácil de escrever. Normalmente aspalavrasbrotavam.Masdessavezestavatendodificuldadeparaescrever.AtravésdeumcontatoantigoqueMikael tinhanapolícia,eleteveacessoaumafichadohomicídio

nãosolucionadodeKajsaFalk,emBromma,ajovemnamoradadeumdoslíderesdoMCSvavelsjö.Oassassino nunca tinha sido encontrado e, embora nenhuma testemunha se mostrara particularmentetagarela,Mikael concluiu que o clube passara por uma ruptura violenta e que uma nova incerteza seinstalara entre os membros da gangue, um medo crescente de alguém conhecido como “Lady Zala”,conformeumatestemunharevelara.Apesardetodososesforços,apolícianãoconseguiradescobrirquemeraLadyZala.ParaMikael,não

haviaamenordúvidadequesetratavadeCamillaequeelaestariaportrásdeumasériedecrimesnãosónaSuécia.Masnãoerafácilencontrarprovas,oqueodeixavamuitoaborrecido.Porenquantoiriachamá-lapeloseupseudônimo“Thanos”emseuartigo.Omaiordesafio,porém,nãoeraCamillaouseuenvolvimentocomaassembleiarussa.Oquemaiso

preocupava era que ele sabiamuito bem que EdNeedham jamais teria se dado ao trabalho de vir àSuécia lhepassarumainformaçãoaltamentesigilosaseoobjetivonãofosseesconderalgoaindamaisgrave.EdnãoeranenhumidiotaeelesabiaqueMikaeltambémnãoera.Porissonãosederaaotrabalhodemaquiarnenhumapartedeseurelato.Pelo contrário, Ed pintara um quadro bem tenebroso daNSA. No entanto, quando se analisava seu

depoimentomaisdeperto,via-sequeEddescreveraumaagênciadeespionagemquefuncionavamuitobemequeatuavadentrodeprincípios razoáveisdedecência, isso,claro, semconsideraro revoltantebandodecriminososdodepartamentoconhecidocomomonitoraçãode tecnologiasestratégicas—porcoincidênciaomesmoqueimpediraEddecolocarasmãosnohacker.Oamericanopodiaestarquerendoprejudicarseriamentedeterminadoscolegas,mas,antesdederrubar

umaorganizaçãointeira,preferiupropiciaraelaumpousomaisseguroemmeioàinevitávelqueda.Porisso Mikael não ficou especialmente surpreso ou contrariado quando leu o telegrama da agência denotíciasTTqueErika,vindoportrásdele,lheentregoucomarpreocupado.—Seráquenosfuraram?—elaperguntou.

Page 299: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Otelegramadizia:DoisexecutivosdoaltoescalãodaNSA,JoacimBarclayeBrianAbbot,forampresossobsuspeitadeterem cometido crimes financeiros graves. Os dois foram sumariamente demitidos pela agência eaguardamjulgamento.“Éumamanchaparaanossaorganizaçãoenãomediremosesforçosparasolucionaresseproblema

efazercomqueosculpadossejamresponsabilizados.TodosquetrabalhamparaaNSAdevempossuirelevado padrão moral. Durante o processo judicial prometemos toda a transparência, desde quesalvaguardadososinteressesdesegurançanacional”,afirmouoalmiranteepresidentedaNSA,CharlesO’Connor.Com exceção da declaração do almirante, o telegrama não trazia muita coisa e tampouco fazia

referência ao assassinato de Balder nem a algo que pudesse ser associado aos acontecimentos deEstocolmo. Mas claro queMikael entendeu a preocupação de Erika. Agora que a notícia tinha sidodivulgada,nãotardariaparaqueoWashingtonPost,oNewYorkTimesetodaaimprensaamericanasejogassemsobreahistória,eentãoseriaimpossívelpreveroquemaiselesconseguiriamdesencavar.—Nãoénadabommesmo—eledissecalmamente.—Masjáeraesperado.—Eramesmo?—Fazpartedamesmaestratégiaqueoslevouameprocurar.Reduçãodedanos.Queremretomara

iniciativa.—Comoassim?—Haviaalgumarazãoparaelesteremmepassadoofuro.Claroquepercebiquehaviaalgumacoisa

estranha.PorqueEdveiofalarcomigoaquiemEstocolmo,eaindamaisàscincodamanhã?Comopraxe,ErikatinhaconhecimentodetodasasinformaçõesqueMikaelrecebiadesuasfontese,

damesmaformaqueele,asmantinhasobasmaisrigorosascondiçõesdesigilo.—Entãovocêachaqueeleveioconversarcomvocêautorizadopelossuperioresdele?—Foioquesuspeiteidesdeoinício,mesmosementenderoqueelepretendia.Apenassentiquehavia

algoerrado.MasaíconverseicomLisbeth.—Eissofezvocêentender?—PercebiqueEdsabiamuitobemoqueelahaviaencontradoquandohackeouaNSAequeeletemia

queeuacabassetendoacessoatodososdetalhes.Elequisdiminuirosdanosomáximopossível.—Mesmoassim,elenãopintouumquadrocor-de-rosaparavocê.—Ele sabia que eununca iriame contentar comalgoqueparecesse tãoperfeito.Suspeito que ele

tenhamefornecidoosuficienteparamedeixarfelizeparaqueeupudesseteromeufurodereportagemsemquererinvestigarmaisnada.—Entãoelevaificardesapontado.—Esperoquesim.Sónãoseicomovouaprofundarisso.ANSAéumaportafechadaasetechaves.—Atéparaumvelhocãodecaçacomovocê?—Atéparamim.

Page 300: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

30.25DENOVEMBRO

AmensagemdetextonotelefonediziaFicaparaapróxima,irmã,paraapróxima!Amensagemforaenviada três vezes, e Lisbeth não entendeu se era um erro técnico ou uma absurda tentativa de sersuperexplícita.Dequalquerformanãofaziadiferença.Amensagem, claro, era de Camilla e não acrescentava nada ao que Lisbeth já sabia. Era de uma

obviedadeofuscantequeos acontecimentosde Ingaröhaviam fortalecido e aprofundadooódio antigoquesuairmãlhedevotava.Claroquehaveriauma“próximavez”.NãohaviaamenorchancedeCamilladesistirdepoisdeterchegadotãoperto.PortantonãoforaoconteúdodamensagemquetinhafeitoLisbethcerrarospunhosdeódio.Foramas

recordaçõesqueamensagemlhetrouxera,alembrançadosacontecimentosdodiaanterior,quandoelaeAugust ficaram agachados na fenda daquela rocha enquanto a neve caía e os tiros dasmetralhadorasexplodiam acima da cabeça deles. August, sem casaco e descalço, tremia violentamente enquanto ossegundospassavameLisbethconstatavacomoasituaçãodeleseradesesperadora.Elatinhaumacriançaparacuidareumapistolapatéticacomoarma,enquantoummontedeimbecislá

emcimaestavamarmadoscommetralhadoras,portantosólherestavapegá-losdesurpresa.Senão,elaeAugustiamserabatidoscomoovelhas.Elatinhaouvidoospassosdoshomensseaproximando,ostiros—calculandoentãodeondeelesvinham—edepoisatéarespiraçãodeleseofarfalhardesuasroupas.Masoestranhofoiquequandoelafinalmenteteveumachance,aindaassimhesitou,deixandopassar

momentoscruciaisenquantoquebravaemváriospedaçosumramoqueachounafendadarocha.Somenteentão Lisbeth deu um salto e surgiu de repente diante dos homens, e então hesitar não eramais umaopção. Ela precisava aproveitar aquele breve milissegundo de surpresa, então disparou duas ou trêsvezes,sabendo,porexperiênciasanteriores,quemomentoscomoaquelemarcavamsuamenteaferroefogo,comosetambémsuapercepçãoseaguçasse,enãoapenascorpoemúsculos.Cadadetalheadquiriaumanitidezpeculiareelaobservavatodasasmudançasnapaisagemcomoseo

fizesseatravésdozoomda lentedeumacâmera.Viuasurpresaeomedonosolhosdoshomens,suasrugas,seusrostos,suasroupas,além,claro,dasarmasqueelesdisparavamaesmo.Mas sua impressãomais forte não viera de nada disso, e simde uma silhuetamais acima, que ela

divisaracomocantodoolhoequenãoeraameaçadoraemsi,masquecausounelaumimpactomuitomaior que os homens nos quais ela havia atirado. Era a silhueta de sua irmã. Lisbeth a reconheceriamesmo a quilômetros de distância, apesar de não vê-la haviamuitos anos. Foi como se o próprio artivesse se envenenado com a presença dela, e mais tarde Lisbeth ficou pensando se não deveria ter

Page 301: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

atiradonelatambém.Suairmãpermaneceubastantetempolá,esemdúvidaforaumdescuidodelaseexpordaquelejeito.

ProvavelmenteCamilla não tinha resistido à tentação de presenciar a execução da irmã, e Lisbeth selembrou de ter chegado a pressionar o gatilho e da onda de ódio crescendo no peito.No entanto, aohesitar por meio segundo, deu tempo de Camilla se jogar atrás de uma pedra, e então um homemesquelético apareceu na varanda, atirando, o que fezLisbeth pular de volta para a fenda e rolar comAugustnadireçãodocarro.Agora,voltandoapédoclubedeboxeeselembrandodetudoqueocorrera,eracomoseseucorpo

permanecesseemprontidão,contraído,naexpectativadeumanovabatalha,eelapensouseemvezdevoltarparacasanãodeveriaficarforadopaísporalgumtempo.Mastambémhaviaalgofazendo-avoltaràsuamesaeaocomputador;eraoqueelatinhavisualizadoemsuamentenochuveirodoclubedeboxe,antesde leramensagemdeCamilla,equeagoraocupavamaisemaisseuspensamentos,concorrendocomaslembrançasdeIngarö.Era uma equação, uma curva elíptica que August tinha escrito na mesma folha de papel em que

desenhara o assassino. Se na primeira vez emqueLisbeth vira a equação já havia uma aura especialsobreela,mentalizá-lanovamentefezLisbethaceleraropassoedeixarCamillamaisoumenosdelado.Aequaçãoeraaseguinte:N=3034267E:y2=x32x220;P=(3,2)Do ponto de vistamatemático, não havia nada de único ou excepcional ali.Na verdade, o aspecto

matemático não era o que chamava a atenção. O fantástico na equação foi August ter partido de umnúmero aleatório que ela lhe dera em Ingarö e daí em diante desenvolver uma curva elípticaconsideravelmentemelhor do que a queLisbeth havia anotado namesa de cabeceira na noite emqueAugustnãoquisdormir.Nahora,pornãoterobtidodelenenhumarespostanemamenorreação,elafoisedeitarconvencidadequeAugust,assimcomoosgêmeosdosnúmerosprimossobreosquaiselatinhalido,nãoentendianadadeabstraçõesmatemáticasetambémeracomoumacalculadoradefatoraçãodenúmerosprimos.Mas,meuDeus... como ela tinha se enganado!Depois que ela foi se deitar,August ficou acordado

desenhando e demonstrou não somente ter entendido o que ela queria como ainda lhe deu uma lição,aperfeiçoandoaprópriamatemáticadeLisbeth.Quandoentrouemseuapartamento,não tirouasbotasnemajaquetaefoidiretoparaocomputadorabriroarquivocriptografadodaNSAeoseuprogramadecurvaselípticas.DepoistelefonouparaHannaBalder.Hanna mal havia fechado os olhos naquela noite, pois não tinha trazido seus comprimidos. Ainda

assim,ohoteleseusarredoresaanimaram.Aquelapaisagemmontanhosadetirarofôlegoafezpensar

Page 302: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

em como tinha vivido como uma reclusa nos últimos anos e agora sentia que lentamente estava selibertandoequeatéaquelemedoarraigadoemseucorpocomeçavaarecuar.Mastudopodiaserapenasum desejo, e era forçoso admitir que ela também se sentia um pouco perdida naquele ambiente tãorefinado.Houveumtempoemqueeladesfilavaemlugarescomoaquelecheiadeautoconfiança:“Olhempara

mim,aquiestoueu”.Agoraestavatímidaetrêmula,comdificuldadeparacomer,apesardofartocafédamanhãdohotel.Augustestavasentadoaseuladoescrevendocompulsivamenteumasériedenúmeros,eele tambémnão se alimentava,mas em compensação consumia quantidades inacreditáveis de suco delaranja.Seu novo telefone começou a tocar, e a princípio ela se assustou.Mas é claro que só podia ser a

mulherqueos tinhamandadoparaohotel.Ninguémmais tinhaaquelenúmero,eprovavelmenteelasóqueria saber se eles estavam em segurança. Assim, Hanna iniciou a conversa com uma entusiasmadadescriçãodo lugar, dizendocomo tudoali era fantástico emaravilhoso.Para sua surpresa, porém, foibruscamenteinterrompida:—Ondevocêsestão?—Estamostomandoocafédamanhã.—Entãosaiamdaíjáevoltemparaoquarto.EueAugustprecisamostrabalhar.—Trabalhar?—Vouenviaralgumasequaçõesparaeledarumaolhada.Entendeu?—Não,nãoentendi.—ApenasmostreasequaçõesparaAugust,depoismetelefoneeconteoqueeleescreveu.—Estábem—respondeuHanna,confusa.Emseguida,pegoualgunscroissants,umbolinhodecanelaesedirigiuaoselevadores,acompanhada

pelofilho.AajudadeAugust,defato,eraapenasumpontapéinicial.Masjáerasuficiente.Daíemdiante,ela

conseguiaenxergarospróprioserroscommaisclarezaeaperfeiçoarseuprograma,eelatrabalhouporhorasehoras,atéocéuescurecereanevevoltaracair.Derepente,eela jamaisseesqueceriadestemomentoemsuavida,algodemuitoestranhoaconteceucomoarquivoàsuafrente.Elecomeçouasedissolvereamudardeforma,eLisbethsentiuoequivalenteaumchoquepercorrerseucorpointeiro,eentãoelasocouoar.Tinhadescobertoaschavessecretaseconseguidodecodificarodocumento,eporuminstantesesentiu

tãovitoriosaquemalconseguialer.Depoiscomeçouaanalisaroconteúdoefoificandocadavezmaisadmirada.Seriapossível?Eramaisbombásticodoque tudoqueelahavia imaginado,eaúnica razãopela qual todas as informações estavam ali, escritas e protocoladas, só podia ser um excesso deconfiançanoalgoritmoRSA.Masaliestavam,pretonobranco,todaasujeiraesacanagem.Nãoeraumtexto fácil de interpretar, ele estava repleto de palavras técnicas, de abreviaturas estranhas e dereferênciasenigmáticas.MasparaLisbethtudoaquilonãoeraproblema,poisestavafamiliarizadacomoassunto,entendiamuitobemaquelalinguagem.Játinhalidoquatroquintosdotextoquandoacampainha

Page 303: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

tocou.Elaresolveuignorá-la.Provavelmenteeraocarteirocomdificuldadedecolocaralgumlivronacaixadecorrespondência,ou

algumaoutracoisasemimportância.MasentãoelaselembroudamensagemdetextodeCamillaeolhouparaateladocomputador,paraveroqueacâmeradosaguãodoprédiomostrava.Eficouparalisada.NãoeraCamilla,masaquelaoutrasombradela,eLisbethpraticamente tinhaseesquecidodelepor

causadetudooqueestavaacontecendo.OmalditoEdtheNeddealgumjeitoaencontrara.Emboraelefossebemdiferentedasfotosqueelatinhavistonainternet,mesmoassimelaoreconheceu.Elepareciamuito aborrecidoedeterminado, eo cérebrodeLisbeth começoua trabalhar.Oquedeveria fazer?OmelhorquelheocorreufoienviaroarquivodaNSAparaMikaelpelolinkPGP.Emseguidadesligouocomputadorefoidepressaabriraporta.OqueteriaacontecidocomJanBublanski?SonjaModignãoencontravaumaexplicação.Aexpressão

transtornadaqueelevinhatrazendonorostonasúltimassemanasdesapareceraporcompleto.Eleagoraestava sorridente, cantarolando, e a verdade é que havia razões de sobra para isso. O assassino deBalder fora capturado, o menino August sobrevivera a duas tentativas de homicídio e agora eles jáconheciamgrandepartedosmotivosedasramificaçõesdaempresadepesquisasSolifon.Porémtambémhaviaaindamuitasperguntassemresposta,e,peloqueelaconheciadeBublanski,ele

nãoeradesealegrarsemquehouvesseboasrazões.Pelocontrário.Tendiaaserpessimistamesmoemmomentos de triunfo, por isso ela estava bastante surpresa e intrigada com a atitude dele. Agora oinspetoreravistopeloscorredoresirradiandoalegria,sorrindo.Eatémesmoemsuasala,enquantoliaopoucoesclarecedorinterrogatóriodeZigmundEckerwaldfeitopelapolíciadeSanFrancisco,eletraziaumgrandesorrisonoslábios.—Sonja,minhaquerida,aíestávocê!EladecidiunãocomentarnadasobreocontentamentoincomumdeBublanskiefoidiretoaoponto.—JanHoltsermorreu.—Ah,não.—LásefoinossaúltimaesperançadedesvendaromundodosSpiders—concluiuSonja.—Vocêachaqueelenoscontariaalgumacoisa?—Pareciabempossível.—Porquevocêdizisso?—Eleentrouemdesesperoquandoafilhaapareceu.—Eunãosabia.Oqueaconteceu?—AfilhadelesechamaOlga—disseSonja.—ElaveiodeHelsinqueassimquesoubequeopai

estavaferido.Mas,depoisqueconversamoseelasoubequeHoltserhavia tentadomatarumacriança,ficoufuriosa.—Como?—Elaentroucomoumfuracãonoquartodelee lhedissealgumacoisaextremamenteagressivaem

russo.—Vocêentendeuoqueeladisse?

Page 304: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Algumacoisacomoqueopaimorreriasozinhoequeelaoodiava.—Palavrasfortes,hein?—Semdúvida,edepoismedissequefariatodoopossívelparanosajudarnainvestigação.—EoHoltser,comoelereagiu?—Eraoqueeuestavadizendo.Poruminstante,chegueiapensarqueelefosseseabrirconosco,ele

estavaarrasado,comlágrimasnosolhos.Eunãoacreditonacrençacatólicaquedizqueovalormoraldeumapessoaagenteconhecepertodesuamorte,masoqueaconteceu foicomovente.Ele,quecausaratantomal,estavadestruído.—Omeurabino...—começouBublanski.—Ah,não,Jan.Nãomevenhacomoseurabino,porfavor!Deixeeucontinuar.Holtsercomeçoua

falar comoele tinha sidoumapessoa ruime eu lhedisse que, comocristão, ele deveria aproveitar omomentoparaconfessarenosdizerparaquemele trabalhava,enessemomento, juro,chegamosmuitoperto.Elehesitoueseuolharficoudistante,sóqueemvezdeconfessarelecomeçouafalardeStálin.—DeStálin?—Sim,dissequeStálinnãosecontentavaemiratrásdosculpadosequetambémcaçavaosfilhose

osnetosdeles,afamíliatoda.Achoquequeriadizerqueseuchefeeradomesmotipo.—Elesepreocupoucomafilha.—Pormaisqueelaoodiasse,eleestavapreocupadocomela.Tenteiconvencê-lodequedaríamosa

elatodasasgarantias,queaporíamosnonossoprogramadeproteçãoatestemunhas,masnãoadiantou.Holtsercomeçouaficarapático,depoisperdeuaconsciênciaeumahoradepoismorreu.—Nãotemosmaisnadaentão?— Tudo que temos é um suspeito desaparecido e, ao que parece, dotado de uma inteligência

extraordináriaetambémnenhumsinaldojornalistaAndreiZander.—Eusei,eusei.—Aquelesquepoderiamnosdaralgumainformaçãoinsistememmanterabocabemfechada.—Jápercebi.Nadatemcaídodocéu.—Não, quer dizer, sim, na verdade recebemos uma informação. Sabe o homemqueAmanda Flod

reconheceunodesenhodeAugustBalder,aqueledosemáforo?—Oex-ator?—Isso.RogerWinter.Amandafoiinterrogá-loapenasparaobterinformaçõessobreorelacionamento

delecomomeninooucomBalder.Elanãoesperavaconseguirmuitacoisa,masRogerWinterpareciaapavoradoeantesmesmodeAmandacomeçarapôralgumapressãonele,osujeitoconfessouospecadosdavidainteira.—Émesmo?—Sim,enãoestamosfalandoexatamentedehistóriasinocentes.LasseWestmaneRogerWintersão

amigosdelongadata,desdeaépocadajuventudedelesnoRevolutionsteatern.OsdoiscostumavamseencontraràtardenoapartamentodaTorsgatan,quandoHannaestavafora,bebiameconversavam.Augustficava no cômodo ao lado,montando seus quebra-cabeças e nemLasse nemRoger davam atenção aogaroto. Numa dessas vezes, o menino tinha ganhado um livro de matemática de sua mãe, de nívelavançadoparaele.MesmoassimAugustfolheavaolivrodepressa,agitado,fazendomuitobarulhocom

Page 305: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

aspáginas.Lasseseirritou,arrancouolivrodasmãosdogarotoejogounolixo.AugustquasesurtoueLassedeuunstrêsouquatrochutesnele.—Queabsurdo.—Ésóocomeço.Depoisdesseepisódio,August ficouestranho,Rogerdisse.Ogarotocomeçoua

olhar para os dois com seu olhar esquisito, e um dia Roger encontrou sua jaqueta jeans cortada empedacinhos. Outra vez, alguém tinha esvaziado todas as latas de cerveja que havia na geladeira equebradoasgarrafasdebebidaalcoólica.Nãoseise...Sonjafezumapausa.—Oquehouve?—Issoinstalouumclimadeguerraentreosdoiseomenino,edesconfioqueLasseeRoger,emseus

delírios de bêbado, começarama imaginar todo tipo de coisa estranha sobreAugust e passarama termedodele.Aexplicaçãopsicológicadissonãoéfácildeentender.Talvezosdois tenhamcomeçadoaodiarogarotodeverdadeeàsvezesomaltratassemjuntos.Rogercontouquesesentiamuitomaldepoisde tudo e que ele e Lasse nunca conversavam sobre isso. Ele não queria bater no menino, mas nãoconseguiasecontrolar.Eracomosevoltasseàinfância,eledisseàAmanda.—Oqueelequisdizercomisso?—Émeiocomplicado.ParecequeRogerWinter temum irmãomaisnovodeficientequedurantea

infância sempre foi tido como o filhomais inteligente e o favorito dos pais. EnquantoRoger só lhescausavadecepção,oirmãomenoreramuitoquerido,elogiado,exaltadodetodasasmaneiras,eimaginoqueissotenhacausadomuitaamarguraeinvejaemRoger.Talvez,inconscientemente,batendoemAugustelesentiaqueestavasevingandodeseuirmão.Nãosei,ouentão...—Oquê?—Roger definiu de ummodo estranho.Disse que era como se ele estivesse tentando se livrar da

vergonha.—Quedoentio!—Poisé.Eomaisestranhofoieleterconfessadotudoissoderepente.Amandadissequeeleparecia

aterrorizado.Elemancavaeseusolhosestavamroxos.Elateveaimpressãodequeelepareciaquererserpreso.—Queestranho.—Muitomesmo.Masháoutracoisaqueestouachandoaindamaisestranha—disseSonjaModig.—Oquê?—Parecequeaquelemeuvelhoeangustiadocheferesmungãoderepentevirouumpequenoraiode

sol.Bublanskipareceuenvergonhado.—Entãovocênotou.—Estánacara.—Sim,éque…—elegaguejou.—Nãoénadademais.Équeumamulheraceitouomeuconvitepara

jantar,éapenasisso.—Nãomedigaquevocêestáapaixonado…—Ésóumjantar—Bublanskirespondeu,corando.

Page 306: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Ed conhecia bem as regras do jogo.Era como estar novamente emDorchester. Seja lá o que você

tivesse feito, nãopodianunca se render.SeLisbethSalanderquisesse jogarduro, ele ficaria feliz emjogar duro com ela. Por isso encarou-a como se fosse umpeso pesado no centro do ringue.Mas nãofuncionou.Ela lhe devolveu um olhar frio e não disse uma palavra. Parecia um duelo, um duelo silencioso e

determinado, e no fim Ed se cansou, achando tudo aquilomuito ridículo. A garota, afinal, tinha sidodesmascarada.Elehaviaquebradosuaidentidadesecretaeaencontrara,eeladeviaficaragradecidadeelenãoterinvadidoseuapartamentoparaprendê-la.—Vocêseachamuitodurona,não?—Nãogostoquevenhamàminhacasasemavisar.—Eeunãogostodegentequeinvadeomeusistema,entãoestamosempatados—eledisse.—Você

nãoquersabercomoeuconseguiteachar?—Estoupoucomelixandopraisso.—FoiatravésdasuaempresaemGibraltar.Nãofoimuitoespertochamá-ladeWaspEnterprises.—Estánacaraquenão.—Paraumagarotatãointeligente,vocêcometeuumnúmerosurpreendentedeerros.—Paraumgarototãointeligente,vocêescolheuumtrabalhobemasqueroso.—Talvezumpoucoasqueroso.Massomosnecessários.Omundoláforaémuitoperverso.—EspecialmentetendocarascomoJonnyIngram.Ele não esperava por isso, realmente não. Mas não deixou que seu rosto revelasse surpresa. Ele

tambémerabomnisso.—Seusensodehumoréótimo—eledisse.—Seuidiota!Deveserbemdivertidoplanejarassassinatos,serparceirodeassassinosdaAssembleia

russa,ganharumbelodinheiroeaindasalvaraprópriapele,hein?Realmenteécômico—eladisse,eelenãoconseguiumaismanteraencenaçãoeporalgumtemponemraciocinardireito.Deondeelatinhatiradotudoaquilo?Edestavaapontodeexplodir.Masentãosedeuconta—esua

frequênciacardíacadesacelerouumpouco—dequeelasópodiaestarblefando,eseporumsegundoelehaviaacreditadonela,tinhasidoporqueemseuspioresmomentoseletambémchegouapensarqueJonnyIngramdeviaserculpado.Masdepoisdetertrabalhadocomoumlouco,EdsabiamelhordoqueninguémquenãoexistiaamenorevidênciacontraIngram.—Nemtentecolocarideiasabsurdasnaminhacabeça—eledisse.—Tiveacessoaomesmomaterial

quevocêteveeamuitosoutros.—Serámesmo,Ed?AmenosquevocêtambémtenhaaschavesdoalgoritmoRSAdeIngram...Ed Needham olhou para ela e disse a si mesmo que não podia ser verdade. Será que ela tinha

conseguidodescriptografar?Impossível.Nemmesmoele,comtodososrecursoseespecialistasdaáreaàsuadisposição,achavaquefossepossível.Mas agora ela afirmava com muita convicção que... Não, ele se recusava a acreditar. Devia ter

acontecidodealgumaoutramaneira,talvezelativesseuminformantenocírculodepessoaspróximasde

Page 307: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Ingram.Não,issotambémeraimpossível.MassuasconjecturasforaminterrompidasporLisbeth.—O negócio é o seguinte, Ed— ela disse com um novo tom autoritário na voz.—Você disse a

MikaelBlomkvistquemedeixaria empaz se eucontasse comoconsegui invadir aNSA. Pode ser quevocêestejadizendoaverdade,podeserquevocêestejablefando,oupodeseratéquevocênemprecisesemanifestarsobreisso,porquepodeserdemitido.Nãovejonenhumarazãoparaeuconfiaremvocêounaquelesparaquemvocêtrabalha.Edrespiroufundoetentouresponderàaltura.—Respeito suaposição—eledisse.—Pormais estranhoquepareça, eu costumocumprir oque

prometo, e não porque eu seja uma pessoa particularmente correta, muito pelo contrário. Eu souobcecado por vingança, exatamente como você. Eu não teria sobrevivido se tivesse traído pessoas, efiqueàvontadeparaacreditarounãonoqueeuestoudizendo.Masjuroquevoutransformarasuavidanuminfernosevocênãoabriraboca.Vocêvaisearrependerdeternascido,podeacreditar.—Certo—Lisbethdisse—,vocêéumcaradurão,mastambéméummalditodeumorgulhoso,não

é?Vocêquer ficarabsolutamentesegurodequeomeu trabalhodehackernãovenhaà tona.Massintoinformarquesoumuitoprecavida.Cadapequenodetalhesobreoassuntoviráapúblicoantesmesmoquevocêtenhatempodelevantarumdedo,eemboraeurealmentenãomesintanadabemfazendoisto,vouhumilhá-lo.Imaginesóafesta,obarulhoquevaitomarcontadainternet.—Vocêéumababacademerda.— Eu não teria sobrevivido se eu fosse uma babaca de merda — ela replicou. — Odeio esta

sociedadeque nos vigia o tempo todo. Já tiveminha cota deBigBrother e autoridades na vida.Masaindaestoudispostaafazeralgumacoisaporvocê,Ed.Sevocêmantiversuabocabemfechada,eutepassoinformaçõesquevãotecolocaremposiçãodepodereoajudarãoaeliminarasmaçãspodresdeFortMeade.Nãovoutecontarnadasobreomeuataque.Pramiméumaquestãodeprincípios.Masvouteajudarasevingardosfilhosdaputaqueteimpediramdemepegar.Edficouolhandoparaaquelamulherestranhaàsuafrentee,emseguida,fezumacoisaquepormuito

tempoosurpreenderia.Explodiunumagargalhada.

Page 308: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

31.DIAS2E3DEDEZEMBRO

Ove Levin acordou de bom humor no hotel Häringe Slott depois de uma longa conferência sobredigitalizaçãodasmídias,quehaviaculminadonumagrandefestaemquechampanheebebidasalcoólicasforam servidos à vontade. Um representante mal-humorado do sindicato do jornal norueguêsKveldsbadet, sem se conter, disse aOve que as festas do grupoSerner “estão ficando cada vezmaiscaraseluxuosasàmedidaquevocêdemitemaisfuncionários”.OincidentefezOvederramarvinhotintoemseublazerfeitosobmedida.Maseleestavafelizenemseimportou,poistinhaconseguidoqueNatalieFossfosseencontrá-lona

suíte de seu hotel de madrugada. Natalie era analista de finanças, tinha vinte e sete anos e eraincrivelmentesexy,eapesardebastanteembriagadoOvetinhaconseguidotransarcomelademadrugadae demanhã.Agora já eramquase nove horas, seu celular tocava incessantemente e ele encarava umaressaca insuportável, aindamais quando se lembrava das coisas que ainda precisava fazer. Por outrolado,seulemaera“Workhard,playhard”,eNatalie,meuDeus…Quantoscinquentõesconseguiamumagarotadessas?Nãomuitos.Masagoraeleprecisavaselevantar.

Sentia tontura e mal-estar e se arrastou até o banheiro. Depois foi ver como andavam suas ações.Costumavaserumbomestímuloparaessasmanhãsderessaca,portantoelepegouocelular,acessousuacontabancáriaeaprincípionãoentendeunada.Tinhaalgumacoisaerrada.Suasaçõeshaviamsofridoumaquedaimpressionante,equando,comasmãostrêmulas,verificouseu

saldo, ficou em estado de choque. Sua participação na Solifon havia quase desaparecido. Elesimplesmentenãoentendiae,desesperado,entrounositedaBolsadeValores.Emtodososlugaresleuamesmanotícia:NSAeSolifon,mandantesdoassassinatodoprofessorFransBalder.AsrevelaçõesdarevistaMillenniumabalamomundo.

Elenãoselembravadoquefezdepois.Provavelmentegritou,xingou,deumurrosnamesa.Tinhauma

vaga lembrançadeNatalie acordando eperguntandooque estava acontecendo.Aúnica coisaque elesabia com certeza era que havia passadomuito tempo debruçado sobre a privada, vomitando até seuestômagoficarvazio.AmesadeGabriellaGranenaSäpotinhasidocuidadosamentelimpa.Elanuncamaispretendiavoltar.

Page 309: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Estavasentada,inclinadaemsuacadeira,lendoaMillennium.Aprimeirapáginanãoeraoqueelatinhaesperadodeumarevistaqueestavadandoofurodoséculo.Apágina,naverdade,pareciabemboa,todapreta,semimagens,fúnebre.Nãohaviaimagensenoaltodelaselia:

InmemoriamAndreiZander

Maisabaixoestavaescrito:O assassinato do professor FransBalder e a história de como aMáfia russa se uniu àNSA e a uma grande empresa americana detecnologia.

AsegundapáginatraziaumafotografiadeAndrei,e,mesmoqueGabriellajamaisotivessevisto,ficou

profundamente comovida. Andrei era bonito e tinha um ar vulnerável. Seu sorriso era desamparado,tímido.Haviaalgoaomesmotempointensoeinseguronele.Otextoqueacompanhavaafoto,assinadopor Erika Berger, contava que os pais dele tinham morrido num atentado a bomba em Sarajevo.ProsseguiadizendoqueeleamavaaMillennium,opoetaLeonardCoheneoromanceAfirmaPereira,deAntonioTabucchi.Elesonhavacomumgrandeamorecomumgrandefurodereportagem.SeusfilmesfavoritoseramOlhosnegros,deNikitaMichalkov,eSimplesmenteamor,deRichardCurtis,emesmoodiandopessoasqueofendiamosoutros,eraincapazdefalarmaldealguém.SuareportagemsobreosmoradoresderuadeEstocolmojáeraconsideradaumclássicodojornalismo,segundoErika.OperfildeErikacontinuava:Nomomentoemqueescrevo,minhasmãostremem.OntemnossoamigoecolegaAndreiZanderfoiencontradomortoemumcargueiroemHammarbyhamnen. Ele foi torturado e sofreu terrivelmente. Vou ter que viver com essa dor pelo resto da vida.Mas também háorgulhodentrodemim.

Sintoorgulhodoprivilégioque tivede trabalharcomele.Nuncaconhecium jornalista tãodedicadoeumapessoa tãogenuinamenteboa.Andrei tinhavinteeseisanos.Eleamavaavidaeo jornalismo.Elequeriadenunciaras injustiçaseajudarosmaisdesamparados.Andrei foi assassinado ao tentar proteger um menino chamado August Balder, e nesta edição em que revelamos um dos maioresescândalosdaatualidadeAndreiéhomenageadoemcadalinha.MikaelBlomkvistescreveuemsualongareportagem:“Andreiacreditavanoamor.Eleacreditavaemummundomelhoreemumasociedademaisjusta.Eleeraomelhordenós!”.

Areportagemseestendiapormaisdetrintapáginas,eprovavelmenteeraomelhortextojornalístico

queGabriellaGrane já tinha lido.Ficou tão absorvidana leitura queperdeu a noçãodo tempo e porvezeslágrimaslhevieramaosolhos.Masnãopôdedeixardesorriraolerasseguintespalavras:AtalentosaanalistadesegurançadaSäpo,GabriellaGrane,mostrouumacoragemexcepcional.

Ahistóriaerabastantesimples.Umgrupodefuncionáriosquerespondiamdiretamenteaocomandante

JonnyIngram—este,porsuavez,subordinadoaodiretordaNSA,CharlesO’Connor,ecomcontatosnaCasaBrancaenoCongressoamericano—tinhasevalidodagrandequantidadedesegredosindustriaisdequeaagênciadispunha,comacolaboraçãodeumgrupodeanalistasdodepartamentodepesquisasY

Page 310: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

daSolifon.Seahistóriaacabasseaí,seriaumescândaloatécertopontocompreensível.Mas o grupo começou a percorrer um caminho bem mais perigoso ao se juntar à rede criminosa

Spiders.MikaelBlomkvistrevelavaprovasdecomoJonnyIngramobtiveraacolaboraçãodoconhecidolíderdaAssembleiaLegislativa russa, IvanGribanov, edomisteriosochefedoSpiders,Thanos,pararoubar,edepoisvender,ideiasenovastecnologiasdevalorastronômicodesenvolvidasporcompanhiasde ponta.Mas eles desceram às profundezas da depravação moral quando o professor Frans Balderdescobriuoqueogrupofazia.Ficoudecidido,então,queeranecessáriose livrardocientista,eessa,claro,eraapartemaisabsurdadetodaahistória.UmdoshomensmaisgraduadosdaNSAsabiaqueumpesquisadorsuecoimportanteseriaassassinadoenãomexeuumdedoparaimpedirqueissoacontecesse.Aomesmotempo—eaquiMikaelBlomkvistmostravasuaexcelência—,Gabriellasentira-semenos

tocadapelalamapolíticadocasoquepelodramahumanoquetinhasedesenroladoparalelamente,assimcomopelaconstataçãodequetodosviviamnummundodoentio,ondetudo,coisasgrandesoupequenas,eramonitorado,espionado,paraquemaistardesefizesseusodessasinformações.QuandoGabriellaterminoudeleramatéria,reparouquehaviaalguémparadoàsuaporta.EraHelena

Kraft,muitobemvestidacomosempre.—Oi!—disseHelena.Gabriella se lembrou de como chegara a suspeitar de que Helena fosse a responsável pelos

vazamentosnainvestigação.Masseusprópriosdemônioséquetinhamsidoosresponsáveisporisso.OqueelahaviainterpretadocomosentimentodeculpadeHelenaerasimplesmentedesconfortoporqueainvestigaçãonãoestavasendoconduzidacomprofissionalismo.PelomenosfoioqueHelenalhecontoudurantealongaconversaquetiveramdepoisqueMårtenNielsenconfessouefoipreso.—Olá—respondeuGabriella.—Precisolhedizeroquandoestoutristecomasuasaída?—continuouHelena.—Tudotemseutempo.—Vocêjásabeoquevaifazer?—VoumemudarparaNovaYork.Querotrabalharcomdireitoshumanose,comovocêsabe,recebi

umapropostadaONUháalgumtempocomvalidademeioindefinida.—Vaiserumaperdaparanós,Gabriella.Masvocêmerece.—Entãominhatraiçãojáfoiperdoada?—Nãoportodos,maseuentendiissoapenascomoumsinaldoseubomcaráter.—Obrigada,Helena.—Vocêtemalgumacoisaimportanteparafazeraquiantesdeirembora?—Hojenão.VouàhomenagemqueaimprensavaiprestaraAndreiZander.—Muitobom.Eutenhoumaapresentaçãoparaogovernosobretodoessecaos,masànoitetambém

fareiumbrindeaojovemZandereoutroavocê,Gabriella.Sentadaàsuamesaecomumsorrisocontido,AlonaCasalesobservavaàdistânciaodesesperodo

almiranteCharlesO’Connoratravessando todooandarcomosefosseumgarotovítimadebullyingnaescola,enãoodirigentedomaispoderososerviçodeinteligênciadafacedaTerra.Mashojetodosos

Page 311: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

homensfortesdaNSAestavamencolhidoseacovardados,comexceçãodeEd,claro.No entanto Ed também não parecia muito satisfeito. Ele sacudia os braços, transpirava bastante e

estava irritado. Apesar disso, exalava sua costumeira autoridade e dava para ver que até O’Connorestava commedo dele, o que não era de estranhar. Ed tinha voltado de Estocolmo com dinamite nabagagemearmaraumacenaexigindomelhoriasemtodososníveisdaorganização,eclaroqueodiretordaNSAnão iaagradeceraelepor isso.Provavelmente,oqueelemaisdesejavaagoraeramandarEdparaaSibéria.Mas,comonãohavianadaqueelepudessefazer,O’Connorsimplesmenteseencolheuaoseaproximar

deEd,oqual,numaatitudetípicadele,nemsedeuaotrabalhodeolharparacima.EdignorouodiretordaNSA assim como costumava fazer com todos aqueles com quem ele não tinha tempo a perder, e asituaçãodeO’Connortambémnãomelhorounodecorrerdaconversadeles.Edpareciadesrespeitoso,emesmoqueAlonanãopudesseouviroqueelesfalavam,podiamuitobem

imaginaroqueestavaeatéoquenãoestavasendodito.ElahaviaconversadodemoradamentecomEdesabiaqueelenãoiadizeraoalmiranteumasópalavradecomotinhaobtidotodaainformação,equenãoiafazernenhumtipodeconcessão,eelagostoudisso.Ed estava disposto a se aproveitar aomáximo da situação, eAlona jurou solenemente que, de sua

parte,irialutarpelaretidãodentrodaagênciaeoapoiariaseeleenfrentassealgumproblema,qualquerque fosse. Também jurou que ia telefonar para Gabriella Grane e convidá-la para sair, se é que eraverdadequeGabriellaestavaacaminhodali.Naverdade,EdnãoestavaignorandoodiretordaNSAdepropósito.Maselenãoiainterromperoque

estava fazendo—repreendendodoiscontroladores—sóporqueoalmiranteestavaaliparadonasuafrente,efoisomentedepoisdeumoudoisminutosqueelesedirigiuaoseusuperiordeformabastantegentil,nãoparabajulá-lonemparacompensarafaltadeatençãocomqueotrataradeinício.Foimesmoumaatitudesincera.—Vocêmandoubemnacoletivacomaimprensa—disse.—Vocêachou?—perguntouoalmirante.—Massaibaquefoiuminferno.—Bem,vocêpodemeagradecerporeuterlhedadotempodesepreparar.—Agradecer?Vocêestálouco?Jáviuasnotíciasnainternet?Elesestãopostandotodasasfotosem

queeuapareçojuntocomIngram.Estoudesmoralizado.—Bem,entãotratedeficardeolhonosseussubordinadosdaquiparaafrente.—Comoousafalarcomigodessamaneira?—Eufalocomoeuquiser.Aagênciaestánamaiorcriseeoresponsávelpelasegurançasoueu.Não

tenhotemponemsoupagoparasereducadoebonzinho.—Cuidadocomoquevocêdiz...—começouodiretordaNSA.MassedeuporvencidoassimqueEdselevantouderepentedacadeira,comtodooseutamanhoe

pesodeurso,paraesticarascostasoumostrarautoridade.—EumandeivocêparaaSuéciapara resolver tudo isso—continuouoalmirante.—Masquando

vocêvoltou,tudovirouumaenormeconfusão.Umacatástrofe.

Page 312: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

—Acatástrofejátinhaacontecido—retrucouEd.—Mascomotodaessamerdafoipararnaquelarevistasueca?—Eujálheexpliqueimilharesdevezes.—Vocêfalousobreoseuhacker,mastudoqueouvinãopassadesuposiçõeseconversamole.EdhaviaprometidodeixarWaspforadaquelecaosepretendiamantersuapalavra.—Suposiçõeseconversamoledealtaqualidade—elerespondeu.—Omalditohacker,quemquer

queeleseja,conseguiudescriptografarosarquivosdeIngrameentregoutudoparaarevistaMillennium,eadmitoqueissofoipéssimo.Massabeoquefoipior?—Não.—Opioréquetivemosachancedepegarohacker,cortarasasinhasdeleeimpedirqueelepassasse

ainformação.Masentãomandaramagentepararanossainvestigação,enãovenhamedizerquevocêmedeualgumtipodeapoionessaquestão.—EumandeivocêparaEstocolmo.—Masdeufolgaparaosmeusrapazes,etodoonossotrabalhoacaboudesperdiçado.Agoraohacker

encobriuaspistaseparapegá-loteríamosquecomeçartudodozero.Claro,agenteatépodefazerisso,masquevantagemagentevai ter, a esta altura, de anunciar paraomundoqueumhackernojentonosenganoufeio?—Vantagem nenhuma, provavelmente.Mas pretendo bater forte naMillennium e naquele repórter

Blomström,podeficarcertodisso.—OnomedeleéBlomkvist,naverdadeMikaelBlomkvist.Vocêéquesabe,eboasorte.Vaifazerum

bemdanadoparasuareputaçãoaNSAinvadiroterritóriosuecoeprenderojornalistamaisadmiradodomomento, um herói para eles — disse Ed. Então o almirante resmungou alguma coisa baixinho edesapareceudali.Ed sabiamais do que ninguém queCharlesO’Connor não iria prender nenhum jornalista sueco.O

almirante estava lutando por sua sobrevivência política e não podia correr o risco de tomar algumadecisãoimprudente.EddecidiuirbaterpapocomAlona.Jáestavasaturadodetantotrabalhar.Precisavasairumpoucodostrilhos,fazeralgumacoisadiferentepararelaxaredecidiuchamá-laparadarumgiroporalgunsbares.—Vamossairetomarumporreparaesquecertodaestamerda—eledisse,sorrindo.HannaBalder estavaparadanapequenacolinapróximaaohotelSchlossElmau.Depoisdedarum

leve empurrão nas costas deAugust, ficou observando-o deslizar até o fim da pequena elevação numvelhotrenódemadeiraqueelestinhampedidoemprestadoaohotel.Assimqueviuofilhopararaoladodoceleiromarrom,elacomeçouaandarnadireçãodelecomsuasbotasparaneve.Mesmosendoumdiadesol,nevavalevemente,semventar.Aolonge,otopodamontanhaquasealcançavaocéueàsuafrenteseabriamoscamposcobertosdeneve.Hanna nunca tinha estado num lugar tão bonito, e August se recuperava bem, e muito graças à

dedicação do professor Charles Edelman. Mas não estava sendo fácil para ela. Sentia-se péssima.Mesmonaquelepequenopercursoforaobrigadaapararduasvezescomfaltadear.Odesmamedeseus

Page 313: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

comprimidos— todos benzodiazepínicos— estava sendomais doloroso do que tinha imaginado, e ànoiteelaficavaencolhidanacamarepassandosuavidadeformaimpiedosa.Muitasvezeschegouaselevantareaesmurraraparede,emprantos.MilharesdevezesamaldiçoouLasseWestmaneasimesma.Aindaassim...haviamomentosemquesesentiaestranhamentepurificada,edevezemquandochegava

quase a se sentir feliz. Por vezes, envolvido com suas equações e sequências de números, Augustrespondiaàsperguntasdela,emboracommonossílabosoupalavrasestranhas,eelaconcluíaquealgoestavarealmentemudando.Claroquenãoentendiaofilhointeiramente.Eleaindaeraummistérioparaela,eporvezeselefalava

emnúmeros,emnúmeroselevadosàpotênciadenúmerosaindamaiores,epareciaacharqueHannaiaentender.Masalgosemdúvidahaviamudado,eelanuncamaisiriaseesquecerdecomoviraAugustsesentardiantedamesadoquartodelesemseuprimeirodianohotelecomeçaraescreverasequaçõesintermináveisquebrotavamdeleequeelaiafotografandoeenviandoàjovememEstocolmo.Naqueledia,nocomeçodanoiterecebeuumamensagemdetextoemseuBlackphone:DigaaAugustquedeciframosocódigo!Elanuncatinhavistoofilhotãofelizetãoorgulhoso,emesmoqueelanãotivesseideiadoqueera

tudoaquiloenuncatenhamencionadooqueaconteceunemaopróprioCharlesEdelman,aquelemomentosignificoutudoparaela.Hannacomeçouasentirorgulhodofilho,umorgulhoimenso.E também desenvolveu um interesse apaixonado por se informar sobre a síndrome de savant, e

enquanto Charles Edelman estava hospedado no hotel, os dois com frequência, depois que Augustadormecia,ficavamconversandoatédemadrugadasobreascapacidadesdofilhoesobreváriosoutrosaspectos de sua síndrome. Ela só não tinha certeza se fora uma boa ideia ter ido para a cama comCharles.Poroutrolado,tambémnãotinhacertezaseforaumamáideia.CharlesafaziaselembrardeFrans,e

lheocorreuquetodoselesestavamcomeçandoaseconhecercomoumapequenafamília:ela,CharleseAugust, a rigorosa mas também gentil professora Charlotte Greber e o matemático dinamarquês JensNyrup,quefoivisitá-loseconstatouque,poralgumarazão,Augusteraobcecadoporcurvaselípticasepelafatoraçãodenúmerosprimos.Dealgummodo,aestadiadelesaliestavase transformandonumaviagemdedescobertadonotável

universodofilho.EnquantodesciadesajeitadamenteapequenacolinasobanevefinaparaseencontrarcomAugust e o via se levantar do trenó,Hanna sentiu pela primeira vez emanos que seria umamãemelhorequedariaumjeitoemsuavida.Mikael não entendia por que sentia o corpo tão pesado. Era como se estivesse tentando caminhar

dentro d’água. Lá fora rolava uma comoção barulhenta, de certa forma a celebração de uma vitória.Quase todosos jornais, sites, emissorasde rádio e canaisde televisãoqueriamentrevistá-lo.Elenãoaceitounenhumconvitenemprecisava.Antes,quandoaMillenniumpublicavaalgumfuro,eleeErika,sem ter certeza se receberiam apoio do restante da imprensa, tinham precisado recorrer a algumasestratégias,porexemploaparecernosveículoscertose,algumasvezes,atédividirumpoucodofurodereportagemcomoutrosveículosdecomunicação.Agoraissonãoeramaisnecessário.

Page 314: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Ahistóriaseespalharaexplosivamenteporsisó,equandoodiretordaNSA,CharlesO’Connor,eaministradoComérciodosEstadosUnidos,StellaParker,numaentrevistacoletiva, sedesculparamempúblicopeloquehaviaocorrido,asdúvidasqueaindarestavamdeahistóriatersidosuperdimensionadaouequivocada,desapareceramdeimediato,eórgãosdecomunicaçãodomundotododeraminícioaumacalorosadiscussãosobreasimplicaçõeseconsequênciasdessasdescobertas.Apesardetodoobarulhoedostelefonestocandosemparar,Erikahaviadecididoorganizarumafesta-

relâmpagonaredação.Elaachouquetodosmereciamescapardaquelealvoroçoporalgumashorascomalgunsdrinques.AprimeiraediçãodecinquentamilexemplarestinhaseesgotadonamanhãanterioreonúmerodevisualizaçõesdositedaMillennium,quetambémpossuíaumaversãoeminglês,jápassarademuitos milhões. Propostas de transformar a história num livro não paravam de chegar, o número deassinantes da revista crescia a cada minuto e os anunciantes faziam fila para não ficar fora dessemomento.ElestambémhaviamreadquiridodogrupoSernerasaçõesdaMillennium.Apesardacargaimensade

trabalho,Erikaconseguirafecharonegócioalgunsdiasantes.Nãotinhasidoumanegociaçãofácil.OsrepresentantesdogrupoSernerperceberamodesesperodelaetiraramomáximoproveitodisso,eporalgumtemponemelanemMikaelacreditaramqueonegóciosairia.Sónoúltimoinstante,quandochegouumagenerosacontribuiçãofeitaporumaempresadesconhecidadeGibraltar—oquefezMikaelabrirumgrandesorriso—,foiqueelesconseguiramselivrardosnoruegueses.Tendoemvistaasituação,opreçohaviasidoalto,masatransaçãotambémpodiaserencaradacomoumgolpedemestre,jáquenodiaseguinte,quandoarevistafoiàsbancascomseufurodereportagem,ovalordamarcaMillenniumsubira rapidamente.Portantoeleseram livrese independentesdenovo,emboraquasenão tenham tidotempodedesfrutaressasensação.JornalistasefotógrafosostinhamperseguidoinclusivenacerimôniadehomenagemaAndreinoClube

deImprensae,mesmoquenessaaproximaçãocadaumdelestambémquisessecumprimentá-los,Mikaelsesentiusitiado,sufocado,esuasrespostasnãoforamtãogentiscomoelegostaria.Alémdisso,asnoitesmaldormidaseasdoresdecabeçanãootinhamabandonado.Agora,nodiaseguinte,aredaçãotinhasidoredecoradaàspressas.Emcimadasmesashaviagarrafas

dechampanhe,devinho,decerveja,alémdacomidajaponesapedidanumrestaurante.Depoisaspessoascomeçaramachegar,primeiroosjornalistasfixos,osfreelancers,algunsamigosefamiliares.AtéHolgerPalmgrenapareceu,eMikaeloajudouaentrareasairdoelevador.Osdoisseabraçaramduasoutrêsvezes.—Anossagarotaconseguiu—disseHolgercomlágrimasnosolhos.—Elasempreconsegue—respondeuMikael,sorrindo.ElepôsHolgersentadonumlugardehonrano

sofádaredaçãoedeuinstruçõesparaqueocopodelenuncaficassevazio.Eramuitobomvertodososnovoseosvelhosamigos,comoGabriellaGraneeoinspetorBublanski,

que a rigor não deveria ter sido convidado — tendo em vista que aMillennium era uma revistainvestigativaedecertaformaàsvezesconcorriacomaforçapolicial—,masqueMikaelinsistiraqueviesseeque, surpreendentemente,passoua festa todanumaconversaanimadacomaprofessoraFarahSharif.Mikaelbrindoucomeleecomtodososoutros.Estavadejeansecomseumelhorblazerebeberaum

Page 315: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

bocado,oquenãofaziacomfrequência.MasnemissoajudouaaliviaropesoeovazioquesentiapelaperdadeAndrei,quenãosaíadoseupensamentonemporumsegundo.A imagemdelesentadoalinaredaçãoquaseaceitandooconvitedeMikaelparatomarumacervejaerarecorrente,uminstantenavidadelesquetinhasidorotineiroeaomesmotempovital.AslembrançasdeAndreisurgiamotempotodoeMikaeltevedificuldadedeseconcentrarnasconversas.Játinharecebidoelogioseadulaçõessuficientes,eoúnicoaplausoqueoemocionouforaamensagem

detextodesuafilha,Pernilla:Vocêescrevedeverdade,pai!DevezemquandoeleolhavaparaaportanaesperançadeverLisbethchegando.Tinhapedidoqueelaviesseeobviamenteseriaaconvidadadehonra. Mas até agora nem sinal dela, o que não o surpreendia. Mikael pelo menos gostaria de lheagradecerpessoalmenteamaravilhosacontribuiçãoparaqueelespudessemselivrardogrupoSerner.AsensacionaldocumentaçãosobreIngram,GribanovesobreaSolifonlhepermitiradesvendartodoo

casoefazercomqueEdtheNedeopróprioNicolasGrand,daSolifon,lhefornecessemmaisdetalhes.Desde então, porém, só tivera notícias de Lisbeth uma vez, quando ele a entrevistara pelo aplicativoRedphonesobreoquetinhaacontecidonacasadecampodeIngarö.Issotinhasidoumasemanaantes,eMikaelnãosabiaseelahaviagostadodamatéria.Talvezestivesse

aborrecida,achandoqueeletinhadramatizadodemais,masnãohaviamuitooquefazercomasrespostasmonossilábicasdela.OutalvezestivessefuriosaporelenãotermencionadoonomedeCamillaetersereferidoaelaapenascomoumamulherdeorigemsuecaerussaqueadotavaopseudônimoThanosouAlkhema.Outalvezestivessedecepcionadacomtodaareportagem,achandoqueelenãohaviaadotadoumalinhamaisduracomtodoseles.Nãoera fácil saber, e as coisas andavammeio tensasporqueoprocuradorRichardEkströmestava

considerandoapossibilidadedeprocessarLisbethporsequestroeprivaçãodeliberdadedemenor.EraassimqueascoisasestavameporfimMikaelseencheudetudoefoiemboradafestasemsedespedirdeninguém.Otempoestavahorrorosoe,semnadaparafazer,eleficoualiparadonaGötgatandandoumaolhada

emsuasmensagensdetexto.Receberainúmeroscumprimentospelareportagem,pedidosdeentrevistaealgumaspropostasindecentes.MasnadadeLisbeth,oqueochateouumpouco.Emseguida,desligouocelularefoicaminhandoparacasacompassospesadosdemaisparaalguémquetinhaacabadodedarofurodoséculo.LisbethestavasentadaemseusofávermelhonaFiskargatan,observandocomumolharvazioaGamla

Stan e o lago de Riddarfjärden. Fazia um ano que ela havia começado a caçar sua irmã e o legadocriminosodeseupai,enãohaviacomonegarquejátinhafeitoalgumprogresso.HaviaencontradoCamillaegolpeadoseriamenteosSpiders.AassociaçãoentreaSolifoneaNSAfora

desfeita.OlíderdaAssembleiaLegislativarussa,IvanGribanov,estavasobgrandepressãoemseupaís.Omatador deCamilla tinhamorrido e o braço direito dela, Jurij Bogdanov, e outros engenheiros decomputação estavam sendo procurados pela polícia, o que os forçara a se esconder no submundo docrime.MasCamillaaindaestavavivaetudoindicavaquetinhasaídodopaísequeiriamontarumanovaorganizaçãocriminosa.

Page 316: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Nada tinhaacabado.Lisbethhavia feitooquepodia,masnão significavaqueerao suficiente,nempertodisso.Comexpressãoséria,olhouparaamesadecentroàsuafrente.HaviaummaçodecigarrosalieaediçãodaMillennium,queelaaindanãolera.Elapegouarevista,masalargoudenovonamesa.Emseguidapegou-adenovoecomeçoua ler a longa reportagemdeMikael.Quandochegouàúltimafrase, ficou olhando por algum tempo para uma foto recente dele perto de sua assinatura no fim damatéria.Depoisselevantou,foiatéobanheiroesemaquiou.Vestiuumacamisetapretajusta,suajaquetadecouroefoiparaaruanaquelecomeçodenoitededezembro.Elaestavacongelando.Suasroupasnãoeramnadaquentes,masnãoseimportoumuitoe,compassos

apressados, seguiu na direção do Mariatorget. Virou à esquerda na Swedenborgsgatan e entrou numrestaurante chamado Süd. Ela foi para o bar e bebeu, alternadamente, uísque e cerveja. Muitosfrequentadoresdolugareramjornalistasougentedaáreacultural,portantomuitosareconheceramenãofoi surpresa que ela acabasse se tornando muito observada e o assunto de muitas conversas ali. OguitarristaJohanNorberg,queassinavaumacolunanojornalViequeeraconhecidoporcaptarpequenosmassignificativosdetalhesnaspessoas,achouqueLisbethnãoestavabebendoporprazer,mascomosefosseumaincumbênciadesagradávelquelhecabia.Sualinguagemcorporalerabastantedeterminada,eninguémtevecoragemdeseaproximardela.Uma

mulherchamadaRegineRichter,quetrabalhavacomterapiacognitivacomportamentaleestavasentadanumamesapróxima,chegouaseperguntarseLisbethSalandersequertinhanotadoumrostoquefossenorestaurante.Reginenão se lembravadeverLisbeth examinandoo ambiente oudemonstrandoomenorinteresseporalgoali.Ogarçomdobar,SteffeMild,achouqueLisbethestavasepreparandoparaalgumtipodeoperaçãoouconfronto.Às21h15elapagouacontaemdinheiroedeixouoSüdsemumapalavraouaceno.Umhomemde

meia-idade,deboné,KennethHöök,jábastanteembriagadoenadaconfiável,segundosuasex-mulherese seus amigosmaispróximos, a tinhavisto cruzaroMariatorget comose ela “estivesse indoparaumduelo”.

***Apesardofrio,MikaelBlomkvistvoltavaparacasacaminhandodevagar,mergulhadoempensamentos

tristes,emboraumsorriso tenhabrotadoemseurostoquandoviuosvelhosfrequentadoresdoseupubfavorito,oBishop’sArms.—Então,nofinaldascontas,vocênãoestavaacabado,hein!—gritouArne,ousejalácomoelese

chamava.— Parece que não — respondeu Mikael, pensando que uma cerveja e um bom papo com Amir

poderiamlevantarseuânimo.Masestavadeprimidodemaisparaisso.Queriaficarsozinho,portantocontinuouseguindonadireção

de seu prédio. Subindo as escadas, sentiu um grande desconforto, consequência talvez de tudo o queviveranosúltimosdias,etentouselivrardessasensação.Odesconfortonãodesapareceu,esóaumentouquandoumaluzseapagounoandardecima.Aescuridãoeracompactaeelediminuiuospassosaoperceberoquelhepareceuumlevemovimento.

Page 317: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Emseguida, algobrilhou, como se fosse a luz fracadeumcelular, e então elevislumbrouuma figuraindistintacomoumfantasma,umapessoamagraedeolhosescurosefaiscantessentadanaescada.—Quemestáaí?—eleperguntou,commedo.MasentãoviuqueeraLisbeth,emesmotendoseanimadoaprincípio,ebaixadoaguarda,aindaassim

nãosentiuoalívioesperado.Lisbethpareciafuriosa,osolhospintadosdepreto,ocorpotenso,preparadoparaoataque.—Vocêestázangada?—Bastante.—Porquê?Lisbethdeuumpassoàfrenteeeleviuseurostopálidoeselembroudequeelahavialevadoumtiro

nãofaziamuitotempo.—Porqueeuvenhotevisitarenãoencontroninguémemcasa—eladisse.Mikaelseaproximoudela.—Eissoéumabsurdo,nãoé?—eledisse.—Eudiriaquesim.—Maseseeuagorateconvidarparaentrar?—Bom,vouserobrigadaaaceitar.—Nestecaso,sejabem-vinda—eledisse.Epelaprimeiravezdepoisdemuitosanos,seurostose

abriunumgrandesorriso.Láfora,umaestrelacadenteriscouanoite.

Page 318: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos à minha agente Magdalena Hedlund, a Erland Larsson e JoakimLarsson,respectivamentepaieirmãodeStiegLarsson,ameuspublishersEvaGedineSusannaRomanus,ameueditorIngemarKarlsson,eaLindaAltroveCatherineMörk,daagênciaNorstedt.Agradeço também a David Jacoby, pesquisador de segurança no Kaspersky Lab, e Andreas

Strömbergsson,professordematemáticanaUniversidadeUppsala.AgradeçoaindaaFredrikLaurin,daEkot,MikaelLagström,daOutpost24,aosescritoresDanielGoldbergeLinusLarssoneaMenachemHarari.E,claro,àminhaAnne.

Page 319: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

MAGNUSLIAMKARLSSONDAVIDLAGERCRANTZnasceunaSuécia,em1962.FoirepórterpolicialdarevistaExpresseneé autor de diversos romances. Trabalhou com o jogador de futebol Zlatan Ibrahimović naautobiografiaEusouZlatan, finalistadoprêmioWilliamHill e indicadaparaoprêmioAugustdaSuécia.

Page 320: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

Copyright©DavidLagercrantzPublicadooriginalmentepelaNorstedtsnaSuéciaem2015.PublicadomedianteacordocomaNorstedtsAgency.GrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.TítulooriginalDetsomintedödarossCapaRetina_78PreparaçãoCiçaCaropresoRevisão

Page 321: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

AngeladasNeves

Page 322: David Lagercrantz - A Garota Na Teia de Aranha

IsabelJorgeCuryISBN978-85-438-0375-3TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORASCHWARCZS.A.RuaBandeiraPaulista,702,cj.3204532-002—SãoPaulo—SPTelefone:(11)3707-3500Fax:(11)3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br