david lagercrantz - a garota na teia de aranha
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David Lagercrantz - A Garota Na Teia de AranhaTRANSCRIPT
DADOSDECOPYRIGHT
Sobreaobra:
ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.
Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo
Sobrenós:
OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.siteouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.
"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."
SUMÁRIOPrólogo:Umanoantes,aoraiardodiaI.Oolhoobservador(1oa21denovembro)II.Oslabirintosdamemória(21a23denovembro)III.Problemasassimétricos(24denovembroa3dedezembro)
PRÓLOGOUMANOANTES,AORAIARDODIA
Esta história começa com um sonho, mas não um sonho particularmente notável. Apenas umamãobatendocommovimentosrítmicosecontínuoscontraumcolchãonovelhoquartodaLundagatan.Mesmoassim,osonhodespertaLisbethSalanderaoraiardodia,eemseguidaelasesentaemfrente
aocomputadorparadarinícioàcaçada.
I.OOLHOOBSERVADOR1oA21DENOVEMBRO
ANSA—National Security Agency— é um órgão federal dos EstadosUnidos subordinado aoDepartamento deDefesa.OescritóriocentraldaorganizaçãoficaemFortMeade,Maryland,naautoestradadePatuxent.
Desdequefoifundada,em1952,aNSAtrabalhacomespionagemdetelecomunicações—hojeemdiasobretudo
internetetelefone.Oórgãoaospoucosfoiganhandocadavezmaispoderesehojeinterceptadiariamentemaisdevintebilhõesdeconversasecorrespondências.
1.INÍCIODENOVEMBRO
FransBaldersempreseconsiderouummaupai.AugustjátinhaoitoanoseFransnuncahaviaseesforçadomuitoparaexercerasfunçõesdepaienem
podiadizerqueagorajásesentisseconfortávelnessepapel.Masodeverochamava,eeraassimqueeleestavaencarando.Omeninoandavapassandopormausbocadoscomamãe,ex-mulherdele,ecomLasseWestman,odesgraçadocomquemelatinhasecasado.Assim,FransBalderpediudemissãodeseuempregonoValedoSilício,pegouumaviãodevoltapara
casaenaquelemomento,quaseemestadodechoque,esperavaumtáxinoaeroportodeArlanda.Otempoestavainfernal.Umatempestadecastigavaseurosto,epelacentésimavezeleseperguntousehaviafeitoacoisacerta.Detodososmalucosnarcisistasdomundoquenãoveemnadaalémdopróprioumbigo,justamenteele
estava prestes a se tornar pai em tempo integral—que loucura seria essa?Era quase como arranjarempregonumzoológico.Elenãoentendianadadecrianças;parafalaraverdade,nãoentendianadasobreavida.Eoqueera aindamais estranho:ninguém tinhaexigidonadadele.Nemsuamãenemsuaavóhaviamtelefonadoexigindoqueeleassumisseaquelaresponsabilidade.FransBalder tomou a decisãopor conta própria e semavisoprévio, apesar deuma antigadecisão
judicialterdadoaguardadomeninoàmãe.Agoraelesimplesmentetinharesolvidoaparecernacasadaex-mulherelevarofilhoparaacasadele.Comcertezaaquilolhetrariaproblemas.ComcertezalevariaumasurradeLasseWestman,queficaria indignado.Masestavadecidido,eentrounumtáxiconduzidoporumamulherquemastigavachicletedesesperadamenteenquantotentavapuxarassunto.Maselanãootinhapegadonumbomdia.FransBaldernãogostavadeconversafiada.Simplesmente ficou sentadonobancode tráspensandono filhoeem tudoque tinhaacontecidonos
últimos tempos.Augustnãoeraaúnicanemaprincipal razãoparaele tersedemitidodaSolifon.Eleestava passando por uma fase crítica, e por um instante se perguntou se aguentaria. Quando estava acaminhodeVasastanfoicomoseosangueoabandonasseeeleprecisouresistiraoimpulsodemandartudoparaoinferno.Nãohaviamaiscomovoltaratrás.PagouotáxinaTorsgatan,pegousuabagageme,assimquecruzouoportão,largou-anochão,levando
consigo,aosubirosdegraus,nadaalémdabolsadeviagemvaziaeestampadacomummapa-múndiquehaviacompradonoaeroportodeSanFrancisco.Depoisparouofegantenafrentedaportadoapartamento,fechouosolhoseimaginoucenasdebrigaeloucura—e,verdadesejadita,quempoderiacriticá-losportal comportamento? Ninguém aparece do nada e leva uma criança embora, muito menos um pai que
jamais havia participado da vida do filho a não ser através de depósitos bancários. Mas era umaemergência,oupelomenosera issoqueeleachava,portanto tomoucorageme tocouacampainha,pormaisquesuavontadefossefugirparalongedaquilo.Aprincípioninguématendeu.MasminutosdepoisaportaseabriueLasseWestmanapareceucomseus
olhosazuisprofundos,peitomusculosoemãosenormes,quedavamaimpressãodeexistirapenasparacausarmal aosoutros,oquemuitasvezeso levavaa interpretarpapéisdevilãonas telasdecinema,mesmoquenenhumdessespapéis—quantoaistoFransBaldernãotinhaamenordúvida—fossetãovilquantoaquelequeelerepresentavanodiaadia.—Quemdiria!—exclamouLasseWestman.—Ogênioveionosvisitar.—EuvimbuscaroAugust—disseFransBalder.—Comoé?—Euquerolevarmeufilhocomigo,Lars.—Vocêsópodeestarbrincando.—Nãoestoubrincandonemumpouco—eledisse.Noinstanteseguinte,Hanna,suaex-mulher,surgiu
de um cômodo à esquerda do hall, já não tão bonita como em outros tempos. Tinham sido tristezasdemais, e provavelmente também cigarros e bebida demais.Mesmo assim, uma ternura inesperada oinvadiu, especialmente quando viu um hematoma no pescoço dela e percebeu queHanna veio com aintençãodelhedarboas-vindas,apesardetudo.Maselanãoconseguiunemabriraboca.—Porquevocêresolveuseinteressarporelederepente?—Porquejáchega.OAugustprecisadeumlugarseguroparamorar.—Evocêpor acaso temcomooferecer isso,ProfessorPardal?Mesmoquenunca tenha feitonada
alémdeolharparaateladeumcomputador?—Eumudei—disseFransBalder,sentindo-sepatético,poisnãotinhacertezadetermudadonemum
pouco.EleestremeceuquandoLasseWestmanseaproximoucomaquelecorpoenorme,cheiodeumaraiva
contida. Nesse instante, ficou totalmente claro para Frans que não haveria como resistir se aquelemaníacooatacasse,etambémqueaideiatodanãotinhapassadodeumaloucura,doinícioaofim.Masoestranhofoiquenãohouvenenhumaexplosão,nenhumacena;apenasumsorrisoassustadoreaspalavras:—Queótimanotícia!—Comoassim?—Jáestavamaisdoquenahora,nãoémesmo,Hanna?Atéqueenfimumpoucoderesponsabilidade
dosr.Ocupado.Bravo,bravo!—prosseguiu,batendopalmasnumgesto teatral.EaseguirveiooqueassustouFransBaldermaisdoquequalqueroutracoisa:afacilidadecomqueosdoislheentregaramomenino.Semnenhumprotesto,anãoserosdenaturezasimbólica,osdoisdeixaramqueele levasseAugust.
Paraeles,talvezomeninonãopassassedeumfardo.Nãohaviacomosaber.Hanna,commãostrêmulas,lançouolharesenigmáticosparaFranserangeuosdentes.Masnãofezmuitasperguntas.Eladeveriaterfeitouminterrogatório,apresentadomilexigênciasepedidos,esepreocupadocomaquelamudançanarotinadofilho.Noentantodisseapenas:—Temcertezadoqueestáfazendo?Vocêachaqueconsegue?
—Tenho certeza— ele respondeu, e os três foram para o quarto deAugust. Ao ver o filho pelaprimeiravezdepoisdemaisdeumano,Fransseenvergonhou.Como podia ter abandonado ummenino como aquele? Ele era bonito, encantador com seu cabelo
grossoeonduladoeseucorpoesguio,osolhosazuisesériosperdidosnumquebra-cabeçadeveleiro.Sua postura dava a impressão de dizer “Não me atrapalhe”, então Frans avançou devagar, como seestivesseseaproximandodeumacriaturaestranhaeimprevisível.Mesmo assim conseguiu atrair a atenção do garoto e fazer com que pegasse em sua mão e o
acompanhasseatéocorredor.Jamaisseesqueceriadessemomento.OqueAugustestavapensando?Oque achava daquilo?Não tinha olhado nem para o pai nem para amãe, e ignorara completamente osacenoseaspalavrasdeadeus.SimplesmentedesapareceucomFransnoelevador.Nadamais.Augusteraautista.Provavelmentetinhasériosproblemasdedesenvolvimento,emboraasopiniõesdos
médicos divergissem sobre o assunto e a ideia que ele passava quando observado de longe fossejustamenteaoposta.Comexpressãosériaeconcentrada,omeninopossuíaumaauradeimponência,oupelomenos dava a impressão de não se importar com omundo ao redor. Ao olhá-lomais de perto,porém,via-seumrostocomoquecobertoporumvéu;eeleaindanãohaviapronunciadoasprimeiraspalavras.Augustfrustraratodasasprevisõesfeitasquandoeletinhadoisanos.Naépoca,osmédicosdisseram
que ele provavelmente fazia parte da minoria de crianças autistas que não sofriam de deficiênciasmentaiseque,sefizesseterapiacomportamental,oprognósticoseriabom.Masnadaaconteceucomoseesperava.FransBaldernãotinhavistooresultadodetodoaqueletratamentoemuitomenosacompanhadoa vida escolar do filho. Frans vivia nummundo todo seu, e um dia pegou um avião para os EstadosUnidos,causandoumabrigacomtodasaspessoasqueconhecia.Ele tinha se comportado comoum idiota.Mas a partir daquelemomentoo que elemais queria era
pagaradívidacomo filhoecuidardele.Passouacomprarperiódicosacadêmicosea telefonarparaespecialistasepedagogos,esehaviaumacoisabastanteclaraeraquetodoodinheiroqueeleenviaranãoforausadoparaobem-estardomenino,masparaoutros fins,quecertamente tinhamavercomasextravagânciaseas jogatinasdeLasseWestman.Ogarotodavaa impressãode tersidoabandonadoàprópriasortee,assim,sehabituadoacomportamentosobsessivos;eprovavelmentetinhasidoexpostoacoisasaindapiores.PorissoFransvoltouparacasa.UmpsicólogohaviaentradoemcontatocomelenosEstadosUnidos,preocupadocomummisterioso
hematomanocorpodomenino.Fransviuessasmarcasaobuscarofilho,elasestavamportodaparte,nosbraços,naspernas,peitoeombrosdeAugust.SegundoHanna, elas eram resultadodocomportamentoautodestrutivodomeninonosmomentosemqueeleseatiravadeumladoparaoutro;nodiaseguinteàsua chegada, Frans Balder testemunhou um desses acessos e ficou apavorado.Mas aquilo ainda nãopareciaumaexplicaçãoconvincenteparaoshematomas.Suspeitandodeviolênciadoméstica,Fransrecorreuàajudadeumclínicogeraledeumex-policial
queconhecia.Porém,mesmoqueassuspeitasnãotivessemsidoconfirmadas,opaificoucadavezmaisaflitocomasituaçãoeporfimescreveuumasériededenúncias.Atéentão,eraquasecomosetivessese
esquecido da existência domenino. Frans Balder notou como era fácil esquecê-lo. August passava amaiorpartedotemposentadonochãodoquartoqueopaireformaraparaelenacasaemSaltsjöbaden,com vista para omar, montando com virtuosismo quebra-cabeças de centenas de peças, apenas paradesmontá-loserecomeçartudoassimqueterminava.No inícioFrans o observava fascinado.Era como acompanhar o trabalhode umartista, e às vezes
tinha a impressão de que a qualquer instante omenino iria levantar o rosto e fazer algum comentáriotípicodeumadulto.MasAugustnuncadizianada,equandodesviavaaatençãodoquebra-cabeçaapenaspiscavaosolhos,comacabeçadelado,eolhavaatravésdopaiemdireçãoàjanelaeaosolrefletidonaáguadoladodefora,demodoqueFrans,porfim,resolviadeixá-loempaz.Augustpodiaficarsozinhootempoquequisesse.Naverdade,Franstambémnãosaíamuitocomele,nemmesmoparaojardim.Dopontodevistaformal,eleaindanãotinhapermissãoparacuidardogaroto,portantonãoqueriase
aventurarmuitoemlugarespúblicosenquantonão tivesseresolvidoaparte jurídica.Ascompras,bemcomoasrefeiçõesealimpezadacasa,ficavamacargodeLottieHask,aempregada—FransBaldernãoera bomnos aspectos práticos da vida.Entendia de computadores, algoritmos e de praticamentemaisnada,eàmedidaqueotempopassavaseocupavamaisdessesassuntosedatrocadecorrespondênciacomseusadvogados.ÀnoitedormiatãomalcomoquandovivianosEstadosUnidos.Eleseangustiavaeanteviaproblemaspelafrente,etodasasnoitesbebiaumagarrafainteiradevinho
tinto,quasesempreumAmarone,oquesótraziaalíviomomentâneo.Começouasesentircadavezpior,afantasiarsobredesapareceremumanuvemdefumaçaoufugirparaumlugarselvagem,livredequalquernoçãodehonraedever.Emumsábadodenovembro,aconteceu.Eraumanoitegeladaedeventania,eeleeAugustcaminhavamaolongodaRingvägen,emSöder,tiritandodefrio.OsdoishaviamjantadonacasadeFarahSharif,naZinkensVäg,eAugustjádeviaestarnacamahá
muitotempo.MasojantarseestenderaeFransBalderhaviafaladomaisdoquedevia.FarahShariftinhaessetalento.Aspessoasabriamocoraçãoparaela.FransaconheciadesdeaépocaemquetinhamsidocolegasdeciênciasdacomputaçãonoImperialCollege,deLondres,eFaraheraumadasraraspessoasnaSuéciacomconhecimentoscomparáveisaosdele,oupelomenosumadaspoucaspessoasporquemeletinhaalgumcarinho.Eraumalívioconversarcomalguémqueoentendia.FarahShariftambémoatraía,masapesardeváriastentativaselenuncatinhaconseguidoconquistá-la.
FransBaldernãoeradotiposedutor.Nessedia,porém,oabraçodedespedidaporpouconãohaviasetransformadonumbeijo,oquepareceuaFransumgrandeprogresso.EranissoqueelepensavaquandopassoucomAugustpeloginásioZinkensdamm.Fransresolveuquedapróximavezcontratariaumababá,assimtalvez…Quemsabe?Umpoucomais
aolonge,umcachorrolatia.Umavozfemininasoltouumgritodeirritaçãooudealegrialogoatrás,eleolhounadireçãodaHornsgatanedocruzamentoondehaviapensadoempegarumtáxiouentãoometrôaté Slussen. Parecia que ia chover, e junto à faixa de pedestres o semáforo ficou vermelho. Nesseinstante,aonotarumhomemdeaparênciadesleixadacomcercadequarentaanoseaspectovagamentefamiliarnooutroladodarua,FranspegouamãodeAugust.Quisseassegurardequeofilhonãosairiadacalçadaepercebeucomoamãodomeninoestavatensa,
comoseeleestivessereagindoaalgumacoisa.Alémdisso,seusolhosestavamfixos,límpidos,comoseovéuqueemgeralosencobriativessesidoremovidonumpassedemágica,eAugust,emvezdeolhar
paradentrodesi,deseuíntimo,tivessecompreendidocomprofundidadeosignificadodaquelafaixadepedestresedaquelecruzamento.PorissoFransnãosemoveuquandoosemáforomudouparaoverde.Simplesmentedeixouofilhoobservarocenárioe,sementenderbemporquê,ficouemocionado,oque
lhe pareceu bastante peculiar. Afinal, era um simples olhar, nadamais, não era nem sequer um olharespecialmente alegre ou radiante. Mesmo assim, Frans se lembrou de algo distante e esquecido,adormecidoemsuaslembranças,epelaprimeiravezemmuitotemposesentiuesperançoso.
2.20DENOVEMBRO
MikaelBlomkvisttinhadormidoapenasduashorasporquehaviapassadoboapartedanoitelendoumromancepolicialescritoporElizabethGeorge.Comcertezanãoforaumadecisãosensata.Demanhã,oguru do jornalismo,Ove Levin, da SernerMedia, apresentaria novas diretrizes para aMillennium, eMikaelprecisavaestardescansadoeapostos.Mas ele não tinha a menor vontade de se comportar como alguém razoável. Sentia-se um tanto
contrariado, e foi contra a sua vontade que se levantou e preparou um cappuccino bem forte na JuraImpressaX7,amáquinaqueumdiaelehaviarecebidoemcasacomaspalavras:“Eunãoconsigousaressenegócio”equeagoraocupavapartedacozinhacomoummonumentoemhomenagemaumpassadomelhor. Não tinhamais contato com a pessoa que o presenteara e também não sentia que o trabalhoexecutadopelamáquinafossealgodemuitoespecial.Nofimdesemana,tinhasequestionadosenãoestarianahorademudardeárea,umaideiaumtanto
drásticaparaumhomemcomoMikaelBlomkvist.AMillenniumerasuavidaesuapaixão,esemdúvidaboapartedascoisasmais interessantesemais intensasqueele tinhavivido forana revista.Masnadaduraparasempre,talveznemmesmoseuamoràMillennium,ealémdomaisaquelanãoeraumaépocamuitoboaparaserdonodeumarevistadejornalismoinvestigativo.Todas as publicações com aspirações grandiosas estavam sofrendo uma verdadeira sangria, e lhe
ocorreuque a visãoque ele tinhadaMillennium talvez fosse bela e verdadeira quando vista de umaperspectivamaisnobre,masqueelanãogarantia,necessariamente,asobrevivênciadarevista.MikaelBlomkvist entrou na sala, bebericou seu café e olhoupara o lago deRiddarfjärden.Lá fora caía umatempestade.Overanicoquetinhailuminadoacidadeemplenooutubroemantidoosrestaurantescommesasaoar
livrefuncionandopormaistempoqueonormalderepentehaviasetransformadonumclimahostil,comrajadas de vento e aguaceiros constantes, o que obrigava as pessoas a correr encolhidas pela cidade.Mikaeltinhapassadoofimdesemanaemcasa,enãoapenasporcausadotempo.Tambémfizeraplanosde uma vingança grandiosa, no entanto tudo havia falhado, e nem uma coisa nem outra era umacontecimentocomum.Mikaelnãoeranenhumjoão-ninguémqueprecisasseficarrevidandootempointeironem,aocontrário
demuitosfigurõesdaimprensasueca,umsujeitodeegoinflado,carentedeatençãootempointeiro.Poroutrolado,osúltimosanostinhamsidodifíceis,epoucomaisdeummêsantesojornalistaeconômicoWilliamBorg havia escrito um artigo na revistaBusiness Life, também da Serner, intitulado “Mikael
Blomkvistécoisadopassado”.AsimplesexistênciadoartigoeseutamanhosemdúvidaeramsinaldequeBlomkvistaindaocupava
uma posição importante, e ninguém achou o texto especialmente bem formulado nem original. Pelocontrário:podiaser facilmente tomadocomooataquegratuitodeumcolega invejoso.Mas,poralgummotivo que acabou não sendo bem entendido, a história ganhou uma dimensão maior, podendo serinterpretadacomoumadiscussãosobreotrabalhodorepórter.Nocaso,debaterseafunçãodorepórterera atuar como Blomkvist, “dedicando-se a buscar deficiências na economia e praticar o jornalismoultrapassado dos anos 1970”, ou atuar como o próprioWilliam Borg, “abrindo mão de rabugices ereconhecendo de uma vez por todas a grande contribuição dada pelos empreendedores quemovem aSuécia”.Aos poucos o debate perdeu o rumo e surgiram alegações inflamadas de que não fora por simples
acaso queBlomkvist acabara esquecido nos últimos anos, “uma vez que ele parece sempre partir dopressupostodequetodasasgrandesempresassãocriminosas”,poressemotivo“exagerandoashistóriasquelheinteressacontareindoatéasúltimasconsequências”.Essaformadeprocederacabavacobrandoseu preço com o passar do tempo, dizia o artigo. Nesse contexto, atémesmo o criminosoHans-ErikWennerström,supostamente levadoàmorteporBlomkvist, recebeualgumasolidariedade,e,aindaqueveículos praticantes de um jornalismo sério tivessem se mantido fora da discussão, insultos foramdisparados para todos os lados nas mídias sociais, com ataques lançados também por jornalistaseconômicoserepresentantesdogovernocommotivosparainvestircontrauminimigopegonummomentodefraqueza.Uma série de jovens jornalistas aproveitou a oportunidade para aparecer, afirmando que Mikael
Blomkvist tinha uma mentalidade ultrapassada, não estava no Twitter nem no Facebook e devia serconsideradoumarelíquiadeumtempopassadoemqueseganhavamuitodinheiropublicandotodotipode bizarrice. Outros aproveitaram a chance para criar hashtags engraçadinhas como#naepocadeblomkvist, e assimpordiante.Tudonãopassoudeum festivalde cretinices, eninguémseimportoumenoscomissoqueopróprioMikaelBlomkvist.Oupelomenoseraoqueeletentavadizerasimesmo.Poroutrolado,nãoajudavamemnadaBlomkvistnãoterlevantadonenhumaoutraboahistóriadesdeo
caso Zalachenko e aMillennium estar afundada numa crise financeira. A tiragem ainda era boa e arevistatinhavintemilassinantes.Masareceitapublicitáriahaviadespencado,oslivrosdesucessonãogarantiam uma renda extra pormuito tempo e, como o grupoVanger, que controlava parte da revista,estavasendodilaceradopordiscordânciasinternasenãoqueriainvestirmaisdinheiro,adiretoriahaviapermitido,contraavontadedeMikael,queoimpériodecomunicaçãonorueguêsSerneradquirissetrintaporcentodasaçõesdarevista.Aprincípioaoperaçãopareceuestranha,poisaSernerpublicavarevistassemanaisejornaisvespertinoseeraproprietáriadeumgrandesitederelacionamentos,doiscanaisdetelevisãoporassinaturaedeumcampeonatodefuteboldaprimeiradivisãonorueguesa,nadaquetivesseavercomumarevistacomoaMillennium.Entretanto, os representantes da Serner— acima de tudo Ove Levin, o diretor de publicações—
haviam garantido que o grupo queria ter em seu catálogo um produto de prestígio, que “todos” nadiretoriaadmiravamaMillenniumequedesejavamapenasquearevistacontinuasseexatamentecomo
era. “Não estamos aqui para ganhar dinheiro!”, havia dito Levin. “Queremos realizar coisasimportantes”,eemseguidatomouprovidênciasparaqueaMillenniumrecebesseumconsiderávelaportefinanceiro.AprincípioaSernernãointerferiunotrabalhodarevista.Tudocontinuoucomoantes,apenascomum
orçamentoumpoucomaisfolgado,enquantoumnovosentimentodeesperançatomavacontadaredaçãoeàs vezes atémesmo deMikael Blomkvist, que por vezes chegou a acreditar que enfim iria poder sededicar ao jornalismo em vez de se preocupar com dificuldades financeiras. Porém, mais ou menosquandoaperseguiçãoaelecomeçou—asuspeitadequeogrupoSernerhaviaseaproveitadodissonãooabandonava—,houveumamudançadetom,eosprimeirossinaisdepressãocomeçaramasurgir.Estavaclaro,disseLevin,quearevistadeviacontinuarcomsuasinvestigaçõesprofundas,seuestilo
literárioeviés social.Masnem todososartigosprecisavamabordar fraudeseconômicas, injustiçaseescândalospolíticos.Tambémerapossívelfazerumjornalismobrilhantecomumtoquemaisglamoroso—escrevendosobrecelebridadeseestreias—,afirmouLevinenquantofalavacomverdadeirapaixãosobreasamericanasVanityFaireEsquire, sobreGayTalese e seu clássicoperfil deSinatra, “FrankSinatraestáresfriado”,esobreNormanMailer,TrumanCapote,TomWolfeeoutros.MikaelBlomkvistnãoteveobjeçõesafazer,pelomenosnãonaquelemomento.Seismesesanteshavia
escritoumalongareportagemsobreaindústriadospaparazzie,desdequeencontrasseumaabordagemsériaeadequada,imaginava-secapazderetratarqualquerpessoa,pormaisinsignificantequeelafosse.Costumavadizerquenãoeraoassuntoquedefiniaobomjornalismo;eraaabordagem.Não,suaobjeçãotinha a ver com o que havia percebido nas entrelinhas: que aquele era o início de uma ameaçageneralizada, e que aMillennium corria o risco de se transformar emmais uma revista qualquer dogrupo, ou seja, umapublicação sujeita a todo tipo de interferência, até enfim se tornar lucrativa—etotalmenteinsípida.Então, quando em plena sexta-feira descobriu que Ove Levin havia chamado um consultor e
encomendadoumasériedepesquisasdemercadoparaseremapresentadasnasegunda-feira,Mikaelfoiparacasaàtardeepassouumbomtempoàmesadetrabalhooudeitadonacamaformulandodiscursosinflamados sobre a necessidade de a Millennium se manter fiel ao enfoque de sempre: pessoasprotestando na periferia; um partido racista no governo; o aumento progressivo da intolerância; ofascismo apresentando propostas; e, por toda parte, moradores de rua e mendigos. Por uma série demotivos, aSuéciahavia se transformadonopaís davergonha.Nosvários e admiráveis discursosqueMikaelconcebeuemseusdevaneios,elevivencioutriunfosfantásticos,revelandoverdadestãoprofundaseinquestionáveisqueviatodaaredaçãoetodoogrupoSernerabandonaremsuasvelhaseequivocadasconvicçõeseporunanimidaderesolveremsegui-lo.Mas quando voltou a siMikael percebeu que essas palavras não teriam peso em pessoas que não
acreditavamnelasdopontodevistaeconômico.Afinal,odinheiromandaeamentiravematrás.Acimadetudoarevistaprecisavacontinuarexistindo.Transformaromundopodiaficarparadepois.Eraassimquefuncionava,e,emvezdeplanejarumasériedediscursosindignados,perguntou-seseomelhornãoseriairatrásdeumaboahistória.TalvezumarevelaçãobombásticadevolvesseaautoestimaàredaçãoefizessecomquetodosignorassemaspesquisaseosprognósticosdeLevinsobreocaráterultrapassadodaMillenniumouoquequerqueOveestivesseinventando.
Desde seu grande furo, Blomkvist havia se transformado numa espécie de central de informações.Todososdiasrecebiadenúnciassobreirregularidadesenegóciosescusos.Amaiorparte,noentanto,nãopassavadelixo.Ativistasradicais,defensoresdeteoriasconspiratórias,mentirososcrônicosegenteembusca de autopromoção procuravam-no com histórias implausíveis, que não resistiam sequer a umaanálisesuperficial,ouentãodesinteressantesparaviremasetransformarnumbomartigo.Poroutrolado,àsvezes,portrásdeumassuntobanaloucotidianoescondia-seumahistóriaimpressionante.Osimplescasodeumsinistronumaseguradoraouomeroregistrodeumdesaparecimentonapolíciapodiamtrazeremsiumanarrativahumanagrandiosa.Masnãohaviacomosaberdeantemão.Eraprecisoagirdeformametódicae repassar todosos indícioscomamenteaberta.Assim,namanhãde sábadoMikael sentoucomseunotebookeblocodeanotaçõesecomeçouaanalisaroquetinha.Parou apenas às cincoda tarde, depois de encontrar umaouduas histórias quedez anos antes sem
dúvidateriamchamadoaatençãodopúblico,masquenaquelesdiasnãodespertariaminteressenenhum,eesseeraumproblemaclássico.Quandovocêpassadécadasnamesmaárea,tudodáaimpressãodejáserconhecidoe,mesmoquenoplanointelectualumdeterminadocasotenhapotencialparasetransformarnuma boa história, ele não vem acompanhado do arrebatamento de antes. Foi por essa razão que, nomomento em que mais uma tempestade gelada desabava sobre o teto de sua casa, Mikael resolveuinterromperotrabalhoevoltarparaElizabethGeorge.Nãoeraescapismo, tentoudizerasimesmo.Àsvezesasmelhores ideiassurgiamnummomentode
ócio— pelomenos era o que a experiência lhe havia ensinado. Quando se está ocupado com outroassunto,derepenteaspeçasdoquebra-cabeçaseencaixam.Noentantonenhumpensamentoreveladorlheocorreu,anãoseraideiadequeseriabomsedeitarcommaisfrequênciaparalerumromance.Equandoamanhãdesegunda-feirachegoutrazendomaisumatempestadeodiosa,MikaelBlomkvisthavialidoumromanceemeiodeGeorgeetrêsediçõesdaNewYorkerqueestavamabandonadasnamesadejantar.Sentadono sofá da sala como cappuccinonamão, ele observava a chuva caindodo ladode fora.
Sentia-se cansado e imprestável, mas de repente, como se de um momento para o outro tivesserecuperadosuasforças,levantou-se,colocouabotaeocasacodeinvernoesaiu.Naruaodesconfortobeiravaocômico.Rajadas gélidas e carregadas de chuva castigavam-lhe até os ossos enquantoMikael avançava em
direção à Hornsgatan, onde, ao chegar, deparou com um estranho panorama cinzento. Todo o Söderparecia privado de cores. Nenhuma folha de outono rodopiava no ar, e, de cabeça baixa e braçoscruzados,Mikael Blomkvist passou em frente à igreja deMariaMadalena e seguiu pela Slussen atédobraràdireitanaGötgatan,onde,comodehábito,entrounoprédioentrealojaderoupasMonkieobarIndigo. Em seguida subiu até o quarto andar, onde ficava a redação, logo acima do escritório doGreenpeace.Jánopatamardaescada,começouaouviroburburinho.Haviaumgrandenúmerodepessoasládentro.Todosdaredação,osfreelancersmais importantese
trêsrepresentantesdogrupoSerner—doisconsultoreseOveLevin,que,paraaocasião,tinhacolocadoroupasumpoucomenoselegantesdoquedecostume.Nãopareciamaisumdiretore,alémdisso,usavaexpressõesnovas,comoopopular“oi”.
—Oi,Micke!Comovãoascoisas?—Dependedevocê—respondeuMikael,sincero,enãoparademonstrarmauhumor.Essaresposta,noentanto,foirecebidacomoumadeclaraçãodeguerra.Levinretrucoucomumaceno
de cabeça, entrou e se sentou emumadas cadeiras que haviam sido dispostas na redação, comonumpequenoauditório.Ove Levin limpou a garganta e lançou um olhar nervoso para Mikael Blomkvist. O conceituado
repórter,quepareceraexaustoàporta,derepentepassouademonstraruminteresseeducado,sememitirnenhumsinaldequeestavapropensoadiscutiroupolemizar.Isso,porém,nãoacalmouOve.Emoutrostempos, ele e Blomkvist tinham estagiado como repórteres no Expressen. Na época, escreviamprincipalmente notícias curtas e outras bobagens.Mas depois, no bar, os dois sonhavam comgrandesreportagens e denúncias avassaladoras, e passavam horas dizendo que jamais iriam se render aojornalismo convencional emedíocre, porque jamais iriam poupar esforços para descobrir a verdade.Eram jovens ambiciosos e queriam tudo para já.Ove às vezes sentia saudades dessa época, não porcausadosalário,claro,nemdaslongashorasdetrabalhooudosencontrosnosbarescomoscolegasdeprofissão—mas por causa dos sonhos, que pareciam imbuídos de uma força que depois se perdeu.Sentiasaudadesdaqueledesejopulsantedetransformarasociedadeeojornalismo,dequeseustextosfizessemomundopararporuminstanteeopodersecurvar.Porvezesmesmoumpeixegraúdocomoeleinevitavelmenteseperguntava:oquehaviaacontecido?Paraondetinhamidoaquelessonhos?MickeBlomkvisthaviarealizadotodoseles,enãoapenasportersidoresponsávelporalgumasdas
denúnciasmaisimportantesdahistóriarecentedopaís.Eletambémcontinuavaescrevendocomamesmaforça e omesmo arrebatamento daquela época distante, e jamais havia cedido às pressões exercidaspelosquedetinhamopodernemrelativizadoosideaisemqueacreditava,enquantoOve…Bem,eraelequemtinhaumacarreirabrilhante,nãoera?SemdúvidaganhavaumasdezvezesmaisdoqueBlomkvistenãoprecisavademaisnadaparasesentirimensamentesatisfeito.DequeadiantavaMicketerpublicadoumgrande furo se nemmesmopodia comprar umchalémais ajeitadodoque seupequeno refúgio emSandhamn?MeuDeus,oqueeraaquelacasinhacomparadaànovacasadeOveemCannes?Nada!Não,comcertezaelehaviaescolhidoocaminhocerto.Emvezdecircularpelaimprensadiária,Ovetinhaarranjadoumempregocomoanalistademídiana
SernereiniciadoumaamizadecomopróprioHaakonSerner,oquetransformousuavidaeotornourico.Hojeocupavaopostomais alto da área jornalística da empresa, sendo responsável por uma série deperiódicosecanaisdetelevisão,eadoravasuasfunções.OveLevintambémadoravapoder,dinheiroesobretudoascoisasqueelespodiamproporcionarquandoapareciamjuntos.Mesmoassim,erahonestoosuficiente para reconhecer que de vez em quando ainda sonhava com aquelas outras coisas, emborasempreemdosescontroladas.Tambémqueriaserreconhecidocomoumbomjornalista,exatamentecomoBlomkvist,esemdúvidaesseforaumdosmotivosqueofizeramrecomendaraogrupoSerneraaquisiçãodepartedasaçõesdaMillennium.Graçasaumamensagemtrazidaporumpassarinho,tinhadescobertoquearevistaviviaumacrisefinanceiraequearedatora-chefe,ErikaBerger,umaantigapaixãosecretasua,queriamantersuasduasúltimascontratações,SofieMelkereEmilGrandén,oquesópoderiaser
feitosearevistaachasseumanovafontedecapital.Emsuma,Ove tinha encontradoumaoportunidade inesperadade adquirir partedeumdosveículos
mais respeitados da imprensa sueca. Mas não se podia dizer que a diretoria do grupo Sernercompartilhava domesmo entusiasmo.Pelo contrário: ela acreditava que aMillennium tinha um estiloultrapassado e um viés de esquerda e, como se não bastasse, uma tendência a comprar brigas comanunciantesdepesoeoutrosparceiroscomerciais.SenãofossemasargumentaçõesinflamadasdeOve,onegócionãoteriasaído.Eleinsistiu.Explicouque,naquelecontexto,investirnaMillenniumcustariaumamixaria.Despenderiamumasomainsignificanteporalgoquetalveznãogerasselucros,masqueajudariaareconquistaracredibilidadequeaSernerhaviaperdidoemcortesdeorçamentoedepessoal.ApostarnaMillennium seriavistocomoumsinaldeque,apesarde tudo,ogrupovalorizavao jornalismoealiberdadedeexpressão.EmboraosdiretoresdaSernernãofossem,obviamente,grandessimpatizantesdaliberdadedeexpressãoedojornalismoinvestigativoàlaMillennium,acharamqueumpoucomaisdecredibilidadenãofariamal.Todosconcordaramsobreisso,eOveconseguiufecharacompraepormuitotempoaconsiderouumverdadeirogolpedesorteparatodososenvolvidos.ASernerganhouumaboapublicidade,eaMillenniumpôdemanter todaaequipeeapostarnaquilo
que sabia fazer— reportagens detalhadas e bem escritas—, enquantoOve brilhava como o sol numdebatenoClubedosPublicitários,afirmandocomhumildade:—Euacreditonessaempresa.Semprefuiumdefensordojornalismoinvestigativo.Mas depois… Ove Levin não quis mais pensar no assunto. Quando a perseguição a Blomkvist
começou,elenemsequerlamentou,pelomenosnãonumprimeiromomento.Ovenãoconseguiadisfarçaraalegriasecretadeveramaiorestreladojornalismosuecoridicularizadanaimprensa.Masdessavezsuasatisfaçãonãoduroumuito.Thorvald,ofilhomaisnovodeSerner,percebeuaagitaçãonasmídiassociaisedeuaoassuntogrande importância,enãoporquese importasse.Thorvaldnãose interessavapelasopiniõesdosjornalistas.Masgostavadepoder.Adoravafazerintrigaseviunessecasoumaboaoportunidadedeganharpontos,oudepelomenosdar
uma lição à geração mais velha da diretoria. Em pouco tempo, conseguiu fazer com que o diretorexecutivoStigSchmidt—queemgeralnãotinhatempoparacuidardeassuntosmenores—declarasseque aMillennium não receberia nenhum tipo de tratamento especial e teria de se adaptar aos novostempos,comotodososdemaisprodutosdogrupo.Ove,quetinhaacabadodegarantiraErikaBergerquenãoiriainterferirnotrabalhodaredação,anão
ser como “amigo e conselheiro”, viu-se demãos atadas e obrigado a desempenhar umpapel bastantecomplexonosbastidores.TentoudetodasasmaneirasconvencerErika,MonikaeChristeraajudaremnaelaboraçãodeumanovaproposta,quenuncachegouaserformuladaemtermosclaros—oquesempreacontececomideiasqueirrompem,abruptamente,deumacrisedepânico—,equeseresumiaasugerirumarenovaçãoeumaadaptaçãodaMillenniumapadrõesmaiscomerciais.EmdiversasocasiõesOvereiterouquenenhumadessasmedidascomprometeriaaessênciaeoestilo
agressivodarevista,emboranemelemesmosoubessebemoquepretendiadizercomisso.Sabiaapenasque precisava acrescentar um toque de glamour à revista para satisfazer a diretoria e que as longasanálises econômicas deviam ser publicadas com uma frequência menor, para não aborrecer osanunciantesenãocriarinimigosparaadiretoria.Contudo,jamaismencionouessesdetalhesparaErika.
Nãoqueriaentraremconflitodesnecessáriocomaredatora-chefee,parasesentirmaisseguro,tinhaescolhido roupasmais informaispara a reuniãocoma redação.Nãoqueriaprovocarninguémcomosternos e as gravatas vistosos que haviam se tornado tendência no escritório central. Em vez disso,escolheuumacalçajeans,camisabrancaeumsuéterazul-escurodegolaVquenãoeranemdecashmere,com seu longo cabelo ondulado— que lhe acrescentava um toque rebelde— preso em um rabo decavalo, exatamente como faziam os jornalistasmais durões da televisão. E, acima de tudo, iniciou areuniãocomnaturalidade,comotinhaaprendidonoscursosdeliderança:—Oi,pessoal—disse.—Parecequeeste temponão toma jeitomesmo!…Bem,oquevoudizer
agora eu já disse várias vezes, mas repito: todo o grupo Serner se orgulha de participar dessaempreitada,egarantoavocêsqueomeuentusiasmoéaindamaior.Éocomprometimentodepublicaçõescomo aMillennium que confere significado ao meu trabalho e me faz lembrar por que escolhi essacarreira.Micke,lembradequandoíamosaoOperabarenesonhávamoscomtodasascoisasqueíamosfazerjuntos?Parecequeaindanãoestamostotalmentesóbrios,hehe!MikaelBlomkvistfezcaradequemnãoselembravadenada.OveLevinnãosedeixouabater.—Não,estanãoéumareuniãonostálgica—prosseguiu.—Naverdadenãotemostempoparaessas
coisas.Naquelaépoca,odinheiroquecirculavananossaáreaerapraticamente ilimitado.Bastavaumsimples homicídio em Kråkemåla para alugarmos um helicóptero, reservarmos um andar inteiro nomelhorhoteldaregiãoepedirmoschampanhe.Quandoeuestavamepreparandoparaaminhaprimeiraviagem ao exterior, perguntei ao correspondente internacional Ulf Nilson sobre a cotação do marcoalemão.Nãofaçoamenorideia,elemerespondeu;acotaçãoquemdecidesoueu.Hehe!Eraassimquesalgávamosos gastos das viagens naquela época, lembra,Micke?Talvez fosse a área emque éramosmaiscriativos.Nomais,bastavaagentefazeronossotrabalhoeojornalvendiacomoágua.Mastodosnóssabemosquemuitacoisamudoudeláparacá.Hojeemdiaaconcorrênciaéferrenhaenãoémaistão simples ganhar dinheiro com jornalismo, nemmesmo quando se tem amelhor redação da Suécia,comoéonossocaso.Porissoacheiquehojedevíamosconversarumpoucosobreosdesafiosquenosesperam no futuro. O grupo Serner encomendou pesquisas com os leitores daMillennium e sobre aopiniãoqueaspessoastêmsobrearevista.Partedosresultadostalvezdêumbelosustoemvocês.Maseu gostaria que, em vez de se abaterem, vocês encarassem esses percalços como um desafio elembrassemqueomundoestávivendoumperíodomuitomalucodetransformações.Ove fez uma breve pausa e pensou se não teria sido um erro usar a expressão “muitomaluco”, se
aquilonãoteriasidoumatentativaexageradadeparecerrelaxadoejovialeseelenãoteriacomeçadodeformaapressadaedescontraídademais. “Nuncasubestimea faltadehumordemoralistasmalpagos”,HaakonSernercostumavadizer.Maseledariaumjeitodeconsertaraquilo.Voutrazê-losparaomeulado!MikaelBlomkvist tinhaparadodeouvirmaisoumenosquandoOvediziaque todosdeviampensar
sobre seu“amadurecimentodigital”, por issoperdeua explicação sobreporqueos jovens ignoravamtantoaexistênciadaMillenniumquantoadeMikaelBlomkvist.Masazarmesmofoiquandosecansoudaquilo e foi até a copa, sem a menor ideia de que o consultor norueguês Aron Ullman tinha dito
abertamente:—Issoépatético.Seráqueeletemtantomedodeseresquecido?Naquelemomento,defato,MikaelBlomkvistpoucoseimportavacomisso.Estavaéindignadocoma
atitude de Ove Levin, que parecia acreditar que a redação se deixaria convencer por pesquisas deopinião.Afinal,arevistanãoerafeitadeanalistasdemercado.Erafeitadepaixãoecomprometimento!E aMillennium tinha chegado aonde chegou justamente porque todos na redação apostavam no quepareciacertoerelevante,semlevaremcontamodismospassageiros.MikaelBlomkvistpermaneceuumbomtempoali,perguntando-sequantoaindaprecisariaesperaratéErikasairdareunião.Arespostaveioemmaisoumenosdoisminutos.Pelobarulhodossaltos,Mikaeltentouavaliarafúria
desuacolega.MasquandoErikasurgiu,elatraziaumsorrisoresignadonorosto.—Comovocêestá?—elaperguntou.—Nãoaguenteiescutartudoaquilo.—Vocêsabequeaspessoasficamdesconcertadasquandovocêagedessejeito.—Eusei.—E acho que também sabe que a Serner não pode fazer nada sem a nossa aprovação.Nós ainda
controlamosarevista.—Nãocontrolamosmaisporranenhuma.Somosrefénsdeles,Ricky!Seráquevocênãoentende?Sea
gentenãofizeroqueelesquerem,aSernervairetiraroapoioenósvamosficarnapior—disseMikael,umpoucoalterado,equandoErikapediusilêncioebalançouacabeçaeleacrescentouemtomumpoucomaiscauteloso:—Euestouchateado.Mesintotratadocomocriança.Vouparacasa.Precisopensar.—Vocênãotemficadomuitoaquinaredação.—Devoterumbelosaldodehorasextras.—Comcerteza.Querreceberumavisitahojeàtarde?—Nãosei.Nãoseimesmo,Erika—elerespondeu.Emseguida,deixouaredaçãoecaminhoupela
Götgatan.Atempestadeeasrajadasdeventoogolpeavam,eMikaelseenregelou,amaldiçoouotempoeporum
instantepensouementrarnaPocketshopecomprarmaisumromancepolicialinglêsparaarejarumpoucoasideias.Emvezdisso,porém,seenfiounaSanktPaulsgatan,equandopassavapelorestaurantejaponêsquehaviaà suadireita seucelular tocou.Mikael tevecertezadequeeraErika.MaseraPernilla, suafilha,quetinhaescolhidoopiormomentopossívelparamandarnotíciasparaumpaicomaconsciênciajásuficientementepesadaporacharquenãofaziaobastanteporela.—Oi,querida—eledisse.—Quebarulhoéesse?—Éachuva,acho.—Tudobem,tudobem,vouserrápida.FuiaceitanocursodeescritaemBiskops-Arnö!—Ah,entãoagoravocêresolveuescrever,é?—Mikaeldissedemaneiraumtantodura,beirandoo
sarcasmo,oquelogodepoisachouinjusto.
Deviasimplesmente ter felicitadoa filhae lhedesejadosucesso.MasPernillahaviapassado tantosanosestudandoe frequentandoseitascristãsesquisitassemnuncachegara lugarnenhum,queaoouviressanovidadesuaprimeirareaçãosobremaisessainiciativafoideceticismo.—Vocênãoparecemuitoanimado.—Medesculpe,Pernilla.Nãoestounumbomdiahoje.—Equandopretendeestar?—Euqueromuitoquevocêachealgumacoisaquefuncioneparavocê.Masnãoseiseacarreirade
escritoraéumaboaideiahojeemdia,tendoemvistaasituaçãodomercado.—Maseunãovouescreverjornalismochatoquenemvocê.—Oquevocêpensaemfazer?—Escreverdeverdade.—Tudobem, então—afirmouMikael, semperguntaroque a filhaqueriadizer com“escreverde
verdade”.—Vocêtemdinheirosuficiente?—EstoutrabalhandonoWayne’sCoffee.—Nãoquerjantarcomigohoje,paraagentediscutiroassunto?—Hojeeunãoposso.Sóquismesmotedaranotícia—dissePernillaantesdedesligar.Pormaisque
Mikaeltentasseveroladopositivodaqueleentusiasmotodo,ficouaindamaisaborrecido.Logoestavaatravessando oMariatorget e subindo aHornsgatan em direção ao apartamento de sótão que tinha naBellmansgatan.Aochegar,sentiucomosetivesseacabadodevoltardaredaçãopelasegundaveznumcurtoespaçode
tempo e foi tomado pelo estranho sentimento de haver perdido o emprego e estar vivendo uma novaexistência,naqualemvezdepassaravidaemfunçãodotrabalhoelederepentedispunhadeumoceanodetempolivre.Poucodepoisseperguntousenãoestarianahoradeorganizarumpoucoacasa;haviarevistas,livroseroupasportodaparte.Emvezdisso,porém,pegouduasPilsnerUrquellnageladeira,sentounosofáeficoupensandosobretudoquehaviaacontecidodemaneiramaissóbria;oupelomenosdamaneiramaissóbriapossívelquandosetemumpoucodecervejanacabeça.Oqueiriafazer?Mikaelnão tinhaamenor ideia e, talvezoque fossemaispreocupante,não sentiamaisvontadede
lutar.Aocontrário,sentia-seresignado,comoseaMillenniumestivesseficandocadadiamaisdistantedeseusinteresses.Porissovoltouaseperguntar:seráquenãoestavanahoradefazeralgonovo?ClaroqueiaserumaenormetraiçãocomErikaeoscolegasderedação.Masseráqueeleeraapessoamaisadequada para comandar uma revista que pretendia viver de anúncios e assinaturas?Talvez ele fossemaisútilemoutrolugar.Masonde?Até mesmo os grandes jornais matutinos estavam enfrentando dificuldades, e só havia recursos e
dinheiroparaojornalismoinvestigativonosveículosdecomunicaçãodoserviçopúblicoounasequipesde investigação da rádio Dagens Eko ou na Sveriges Television. E por que não? Lembrou de KajsaÅkerstam, uma pessoa incrível com quem de vez em quando ele saía para beber.Kajsa era chefe doprogramade jornalismo investigativoUppdragGranskning e porvários anos tentara contratá-lo.Masnuncatinhasidoomomentopropício.Pouco importara o queKajsa tinha a oferecer, pouco importaram as promessas de apoio e de total
integridade jornalística.AMillennium era o lar deMikael. Porém agora…Talvez devesse embarcar
nessajornada,seoconviteaindaestivessedepémesmodepoisdetodaasujeiraquehaviamjogadoemcimadele.Mikaeljátinhafeitomuitacoisanaárea,masnuncatrabalhadoemtelevisão,anãoserpelascentenas de contribuições feitas a programas de debate, entretenimento e noticiários. Trabalhar noUppdraggranskningtalvezlhedesseumainjeçãodeânimo.SeucelulartocoueporuminstanteMikaelficoufeliz.SefosseErikaouPernilla,prometeuasimesmo
seramistosoeprestaratençãodeverdadenoqueumaououtrativesseadizer.Masnão;eraumnúmerodesconhecido,oqueofezatendercomcertahesitação.—MikaelBlomkvist?—perguntouumavozquepareciajovem.—Eumesmo—elerespondeu.—Vocêtemalgumtempopraconversar?—Sevocêseapresentar,talvez.—MeunomeéLinusBrandell.—Eoquevocêquer,Linus?—Eutenhoumahistóriapravocê.—Soutodoouvidos.—ContotudosevocêatravessararuaemeencontrarnoBishop’sArms.Mikaelse irritou.Nãoapenascomo tomcondescendentedosujeito,mas tambémcomsuapresença
indesejadanolugarondeelemorava.—Achoquepodemosfalarportelefonemesmo.—Nãoéassuntoparaserdiscutidonumalinhaaberta.—Porquenãoestougostandomuitodefalarcomvocê,hein,Linus?—Talvezporquevocêestejanumdiaruim.—Estounumdiaruim,éverdade.—Não falei?Venha correndo aoBishop’sArmsque eu te pago uma cerveja e ainda te conto uma
históriadasboas.Mikaeltevevontadederetrucar:Paredemedizeroqueeudevofazer!Mas,sementenderdireitopor
que, ou talvez porque não tivesse nadamais sensato a fazer senão ficar ruminando sobre seu futuro,acaboudizendo:—Eumesmopagoasminhascervejas.Tudobem,estouindo.—Foiumadecisãoacertada.—Mas,Linus,escutebem.—Sim?— Se você me contar uma história longa demais e cheia de conspirações malucas, tentando me
convencerdequeoElvisestávivoouquevocêsabequematirouemOlofPalme,euvoltoimediatamenteparacasa.—Combinado—disseLinusBrandell.
3.20DENOVEMBRO
Hanna Balder estava na cozinha de seu apartamento, na Torsgatan, fumando um Prince sem filtro.Vestiaumroupãoazuleumapantufacinzaepuída,e,mesmocomseucabelovolumosoealgunstraçosdebeleza preservados, seu aspecto era de uma pessoa maltratada. Os lábios estavam inchados, e amaquiagem forte ao redor dosolhosnão tinha fins puramente estéticos.HannaBalder havia apanhadomaisumavez.HannaBalder apanhavacom frequência.Masnão seria razoável afirmarque tivesse se acostumado
comisso.Ninguémjamaisseacostumacomagressões.Noentanto,elasfaziampartedoseudiaadia,eHannamalselembravadapessoaalegrequeforaemoutrostempos.Omedotinhasetransformadoemumacaracterísticadesuapersonalidade,ejáfaziatempoqueelahaviapassadoafumartrêsmaçosdecigarropordiaeatomarcalmantes.Nasala,LasseWestmanpraguejava sozinho,oquenãoa surpreendia.Hanna sabiaqueele tinha se
arrependidode sua atitudegenerosa comFrans.Naverdade,Lassehavia lamentadodesdeoprimeiroinstante. Lasse dependia da pensão que Frans pagava a August. Por muito tempo vivera com essedinheiro, e por muitas vezes Hanna tinha sido obrigada a escrever e-mails inventando despesasinesperadascomumpedagogooucomalgumtratamentoquenaverdadenuncatinhaexistido.Porissoasituaçãopareciatãoestranha.PorqueLassehaviaabdicadodetudoedeixadoFranslevarAugust?No fundoHanna sabia a resposta.Tinha sidoa arrogânciadoálcool.Tinha sidoapromessadeum
papelnumasériepolicialdaTV4queohavialevadoaestufaropeitoaindamais.Mas,acimadetudo,tinha sido August. Lasse achava o menino estranho e perturbador, e essa era a parte maisincompreensível.ComoalguémpodiasentirrepulsaporAugust?Omenino passava o tempo inteiro sentado no chão, às voltas comquebra-cabeças, sem incomodar
ninguém.Mesmo assim,Lasse parecia sentir verdadeiro ódio dele, o que provavelmente tinha algumarelaçãocomoolhardeAugust, comaquelesolhos estranhosque sevoltavamparadentro, enãoparafora,equecostumavamfazeraspessoassorriredizerqueAugustdeviaterumavidainteriormuitorica.MasemLasseelescausavamarrepios.—Porra,Hanna!Eleolhaparamimcomoseeunãoexistisse—Lasseàsvezesexclamava.—VocêmesmojádissequeoAugustnãopassadeumidiota.—Elepodeserumidiota,masmesmoassimmeperturba.Tenhoaimpressãodequeelequeromeu
mal.Issonãofaziasentido.AugustnãoolhavaparaLassenemparaqualqueroutracoisa,enãodesejavao
maldeninguém.Omundosimplesmenteeraumlugardesconfortávelparaomenino,queporsorteestavafechado, sozinho, em uma bolha.Mas em seus delírios provocados pelo álcool Lasse acreditava queAugustandavatramandoumavingança,eessecomcertezatinhasidoomotivoqueofizeradeixarAugusteodinheirosumiremdavidadocasal.Erapatético.PelomenosnaopiniãodeHanna.Elaestavadepéjunto à pia e fumava com tamanha angústia e nervosismo que acabou com fiapos de tabaco na línguaenquantorefletiasobreoquetinhaacontecido.TalvezAugustrealmenteodiasseLasse.Talvezoquisessecastigarportodasasvezesquehaviaapanhado,etalvez…Hannafechouosolhosemordeuoslábios…talvezomeninopensassemaldelatambém.Hannavinhatendoessespensamentosautopunitivosdesdequehaviacomeçadoasentirumasaudade
quaseinsuportáveldofilhoechegouapensarqueelaeLassetalvezfossemprejudiciaisaobem-estardeAugust. Fui uma pessoa má, balbuciou, e nesse instante ouviu Lasse gritar alguma coisa. Hanna nãoentendeu.—Oquevocêdisse?—elaperguntou.—OndediabosestáadecisãosobreaguardadoAugust?—Oquevocêquercomela?—QueromostraraoFransqueelenãotemessedireito.—Nãofazmuitotempovocêestavafelizporeleteridoembora.—Euestavabêbadoefizumabesteira.—Eagoravocêestásóbrioetomandoadecisãocerta?—Umadecisãomuitocerta—elerespondeu,bufando,enquantoseaproximavadeHannacomuma
expressãoirritadaedecidida.Elafechouosolhoseseperguntoupelamilésimavezporquetudohaviadadotãoerrado.FransBalderjánãopareciaohomemelegantequecostumavaacompanharaex-mulher.Tinhaocabelo
desgrenhado,olábiosuperiorbrilhavaporcausadosuoracumuladoefaziapelomenostrêsdiasqueelenãosebarbeavanemtomavabanho.Apesardetodososesforçosparasetornarpaiemtempointegral,eapesardaquele instantedeesperançaeentusiasmonaHornsgatan,estavamaisumavezentregueaumaprofundaconcentraçãoqueseconfundiacomraiva.Seusdentesrangiam,eporváriashorasatempestadeeomundoláforatinhamdeixadodeexistir;ele
nempercebiaoqueestavaacontecendonochãoondepisava.Erammovimentospequenosedesajeitados,como se um gato ou um bicho tivesse se enfiado entre suas pernas. Passado algum tempo, notou queAugusthaviaengatinhadoparabaixodesuamesa.Franslançouumolharsonolentoemdireçãoaofilho,comoseumasequênciadelinhasdecódigoaindalheobscurecesseavisão.—Oquevocêquer?Augustencarou-ocomumolharlímpidoeinsistente.—Oquehouve?—Franscontinuou.—Oquehouve?Efoientãoqueaconteceu.O menino pegou no chão um pedaço de papel cheio de algoritmos quânticos e passou a mão
insistentementedeumladoaoutro,fazendoFranspensar,poruminstante,queofilhoestavatendouma
crise.Masnão:Augustpareciaescreveralgumacoisacommovimentosapressados,portantoFranstornouarelaxar.Masderepenteselembroudeumacoisaimportanteelongínqua,comoaquepresenciaranocruzamentodaHornsgatan.Adiferençafoiquedestavezelesabiaexatamenteoqueera.Tinhase lembradodaprópria infância,quandoasequaçõeseosnúmeroserammais importantesdo
queaprópriavida.EntãoorostodeFransseiluminoueeledisseaofilho:—Vocêquerfazercálculos,é isso?Quercalcular?—perguntou,emseguida indobuscarcanetase
folhasdepapelparaAugust.Fransescreveuasériedenúmerosmaissimplesqueconseguiuimaginar:asequênciadeFibonacci,na
qualcadanúmeroéasomadosdoisnúmerosanteriores—1,1,2,3,5,8,13,21—,edeixouumespaçoem branco para o número seguinte, que seria 34. Em seguida, achou isso simples demais e escreveutambémumasériegeométrica:2,6,18,54…Nessasérie,cadanúmeroémultiplicadoportrês,portantoo número seguinte seria 162, e Frans pensou que uma criança talentosa não precisaria de grandesconhecimentos para encontrar a solução do cálculo. Em outras palavras, a concepção de Frans sobrematemática era bastante especial, e naquele instante começou a pensar que o filho não era uma cópiaatrasadadesimesmo,esimumacópiaamplificada,que,seeleestavaatrasadonodesenvolvimentodalinguagemedasinteraçõessociais,jáentendiaasrelaçõesmatemáticasantesmesmodeaprenderafalar.Pormuitotempopermaneceusentadojuntodomenino,esperando.Masnadaaconteceu.Augustapenas
observava os números com olhar vidrado, como se esperasse que a resposta se revelasse sozinha nopapel.Passadoalgumtempo,opaiodeixoucomasfolhaseascanetas.Comoaconcentraçãopareciateridoembora,FranssedistraiuporcercademeiahoracomumexemplardaNewScientist.Depois se levantouparaveroqueAugustestava fazendoedescobriuquenada tinhaacontecido.O
meninocontinuavaagachadonamesmaposiçãoemqueohaviadeixado.EmseguidaFranspercebeuumdetalhequeaprincípioapenasaguçousuacuriosidade.Noinstanteseguinte,porém,acreditouestardiantedeumfenômenototalmenteinexplicável.Nãohaviamuitos clientesnoBishop’sArms.Passavaumpoucodomeio-dia eo tempona ruanão
estavamuitoconvidativoparaumpasseio,mesmoparaumpasseiosóatéobar.Mikaelfoirecebidocomgritoserisadasporumavozrouca:—Super-Blomkvist!Eraumhomemderosto inchadoevermelhocomcabelodesgrenhadoebigodecaídoqueMikael já
tinha visto na vizinhança em outras ocasiões e que, se não estava enganado, se chamava Arne. Elecostumava aparecer no bar sempre às duas da tarde em ponto, embora nesse dia tivesse chegado umpoucoantesesesentadoaumamesaàesquerdadosalãocomoutrostrêscompanheirosdecopo.—Mikael—disseBlomkvist,corrigindo-ocomumsorriso.Arne,oucomoquerqueohomemsechamasse, riucomosamigos,comoseonomeMikaelfossea
piadamaisengraçadaquejátivessemouvido.—Algumfuroàvista?—Arneperguntou.—EstoupensandoemrevelartodasasfalcatruasqueacontecemaquinoBishop’sArms.—VocêachaqueaSuéciaestáprontaparaumahistóriadessas?
—Não,provavelmentenão.Naverdade,Mikaelgostavadaquelepessoal,aindaqueseucontatocomelesnãotivesseidoalémde
cumprimentos e demeia dúzia de frases.Mas aqueles homens eramparte do cotidianoqueo fazia sesentirbemnavizinhança,porissonãolevouamalquandoumdelesdissederepente:—Ouvidizerquevocêestáacabado.Pelocontrário:abrincadeirapareciadevolveraperseguiçãoquevinhasofrendoaocontextotriviale
ridículodeondeelajamaisdeveriatersaído.—“Estouacabadoháquinzeanos!Eueagarrafanosencontramos”—respondeuMikael,citandoo
escritor sueco Fröding e em seguida correndo os olhos ao redor, à procura de alguém que parecessesuficientementeinfluenteparaordenaraumjornalistaqueoencontrassenobar.MascomoalémdeArneedasuaturmadeamigosnãohavianinguém,MikaelfoiconversarcomAmirnobalcão.Amireragrande,gordoebem-humorado,umdosquatroirmãosmuitodedicadosquetocavamobar.
EleeMikaelerambonsamigos.NãoporqueMikaelfosseumclienteassíduo,masporquejáhaviamseajudado em algumas situações. Amir tinha fornecido vinho tinto em duas ou três ocasiões em que oSystembolaget,aredepúblicacriadapararegularoconsumodeálcoolnopaís,jáhaviafechadoquandoMikael esperava companhia feminina para o jantar, eMikael ajudara um amigo deAmir quemoravailegalmentenopaísaescreverpetiçõesàsautoridades.—Aquedevoahonradavisita?—Marqueiumencontrodetrabalhoaqui.—Algumahistóriaemocionante?—Achoquenão.ComovaiaSara?SaraeraamulherdeAmir,quetinhaacabadodepassarporumacirurgianabacia.—Gemendoetomandoanalgésicos.—Nãodeveserfácil.Digaquemandeiumabraço.—Podedeixar—disseAmir,eosdoiscomeçaramaconversarsobreoutrosassuntos.ComoLinusBrandell não aparecia,Mikael ficou com a impressão de que tinham lhe pregado uma
peça.Masjáquehaviacoisaspioresnavidadoqueseratraídoparaobardavizinhança,Mikaelpassoucercadequinzeminutosdiscorrendosobrequestõesdeeconomiaesaúdeantesdevirarascostasparairembora.Efoinesseinstantequeosujeitochegou.Não que August tivesse completado as séries com os números corretos. Esse tipo de coisa não
impressionariaalguémcomoFransBalder.Eraalgoao ladodosnúmeros,quenumprimeiromomentopareceuumafotografiaouumapintura,umareproduçãoexatadosemáforopeloqualhaviampassadonaHornsgatan.Tudocapturadonosmínimosdetalhes,comprecisãomatemática.Odesenho,semexagero,erabrilhante.Semqueninguémjamais tivesseensinadoaAugustqualquer
coisa sobre o desenho de formas tridimensionais ou a maneira como um artista representa luzes esombras, o menino parecia dominar a técnica à perfeição. O olho vermelho do semáforo dava aimpressãodereluzir,aescuridãooutonaldaHornsgatantambémpareciacintilar,enomeiodaruaestavaohomemqueFranstinhavistoetidoavagaimpressãodeconhecer.Orostotraziaumcortelogoacima
das sobrancelhas. O homem parecia assustado ou ao menos perturbado, como se August o tivessecapturadonomomentoemquehaviaperdidooequilíbrio,ecaminhavacompassoshesitantes,fossequalfosseatécnicaencontradaporAugustpararepresentá-lodaquelamaneira.—MeuDeus!—exclamouFrans.—Foivocêquefezessedesenho?August não respondeu, apenas inclinou a cabeça e olhou para a janela, enquanto Frans Balder era
tomadopelasensaçãodequesuavidanãoseriamaisamesmadaliparaafrente.Mikaelnãosabiaaocertooqueesperar—talvezumjovemelegantedobairrodeStureplan.Maso
rapaz que entrou era um grosseirão com uma calça jeans velha, cabelo longo e seboso e um olharsonolentoeevasivo.Deviaterunsvinteecincoanosoumenos,tinhapeleruim,umafranjaqueescondiaosolhoseumaferidabemfeianaboca.LinusBrandellnãopareciaalguémquepudesseterumgrandefuroaoferecer.—VocêdeveserLinusBrandell.—Eumesmo.Desculpe o atraso.Quando eu vinha para cá encontrei uma garota que eu conhecia.
Fomoscolegasnononoanoeela…—Vamospularessaparte—Mikaelointerrompeuesedirigiuaumamesa.Em seguida Amir foi atendê-los com um sorriso discreto, e os dois pediram duas Guinness e
permaneceram em silêncio por alguns instantes.Mikael não entendia por que estava tão irritado.Nãocostumava reagirdessa forma,mas talvez fosseefeitode todoodramana revista.SorriuparaArneeparaaturmadele,enquantotodosoacompanhavamcomolharesatentos.—Voudiretoaoassunto.—Ótimaideia.—VocêconheceoSupercraft?MikaelBlomkvistnãoentendiamuitodejogosdecomputador,masjátinhaouvidoonomeSupercraft.—Conheçodenome.—Nadamais?—Nada.—Oquetornaessejogoespecialéqueexisteumainteligênciaartificialquepermiteaosjogadores
falarcomoutroscombatentessobreaestratégiadeguerrasemqueelessaibam,pelomenosnoinício,seesseoutrocombatenteéumapessoarealouumacriaçãodigital.—Nãodiga—respondeuMikael.Nadapoderia interessá-lomenosdoquedetalhessobreumjogo
inútil.—Ele foi umapequena revolução na área e eu ajudei a desenvolver esse programa—prosseguiu
LinusBrandell.—Meusparabéns.Vocêdeveterganhadoumdinheiroetanto.—Oproblemaéjustamenteesse.—Comoassim?—Esseprogramafoiroubadodenós,eagoraaTruegamesestáganhandobilhõessemnospagarum
centavo.
Mikaeljátinhaouvidohistóriascomoessa.Certavezhaviaconversadocomumamulherqueafirmavaser a verdadeira autora de Harry Potter e que acusava J. K. Rowling de ter roubado seus livrostelepaticamente.—Comofoiqueaconteceu?—Fomoshackeados.—Comovocêssabem?—TemosacomprovaçãodeperitosemtelecomunicaçõesquetrabalhamparaoMinistériodaDefesa,
noFörsvaretsRadioanstalt.Eutenhoumnomeparatedar,ealémdisso…Linussedeteve.—Sim?—AtéopessoaldaPolíciadeSegurançaNacional,aSäpo,seenvolveu.PodefalarcomaGabriella
Grane,umaanalista,quevaiconfirmaraminhahistória.Ela tambémmencionaocasoemumrelatóriooficialpublicadonoanopassado.Tenhoonúmerodorelatórioaqui…—Nessecaso,ahistórianãotemnadadenovo—Mikaelointerrompeu.—Nãonosentidotradicionaldapalavra.ANyTeknikeaComputerSwedenpublicaramartigossobre
tudoqueaconteceu.MascomooFransnuncaaceitoucomentaroassuntoeduasoutrêsvezesatéchegouanegarquetivesseacontecidoalgumacoisa,ahistórianuncafoiparaagrandeimprensa.—Mesmoassimoquevocêestámecontandoéumanovidadevelha.—Decertaforma,sim.—Entãoporqueeudariaouvidosavocê,Linus?—PorqueagoraoFransvoltoudeSanFranciscoepareceterentendidooqueaconteceu.Achoqueo
Fransestásentadonumbarrildepólvora.Tenhocertezadequeeleestámuitopreocupadocomaprópriasegurança,porquecomeçouausarcriptografianotelefoneenaconexãodainternete,comoseissonãofosse suficiente,mandou instalar umalarmenovo emcasa, cheiode câmeras, sensores e tudoomais.Achoquevocêdeviaconversarcomele;éporissoqueresolvitecontartudo.UmcaracomovocêtalvezconsigafazeroFranscontaroquesabe.Elenãomeescuta.—EvocêmetrouxeaquiparamedizerqueparecequeumsujeitochamadoFransestásentadonum
barrildepólvora?—Blomkvist, eunãoestou falandodeumsujeitoqualquer chamadoFrans,masdoprofessorFrans
Balder!Eunãotinhaditoisso?Trabalheiporumtempocomoassistentedele.Mikael puxou pelamemória e a única pessoa com sobrenomeBalder que lhe ocorreu foiHanna, a
atriz.—QueméFransBalder?OolharqueMikaelBlomkvistrecebeurevelouumdesprezosuficienteparaconstrangê-lo.—VocêporacasoveiodeMarte?FransBalderéumalendaviva!—Émesmo?— Com certeza!— prosseguiu Linus.— É só procurar no Google. Ele começou como professor
universitáriodeciênciasdacomputaçãocomvinteeseteanosenosúltimosvinteanossedestacoucomoumadasmaioresautoridadesmundiaiseminteligênciaartificial.Nãoexistepraticamentemaisninguémnomundoquedetenhaconhecimentostãoavançadossobreodesenvolvimentodecomputadoresquânticos
e redes neurais. Ele sempre encontra soluções estranhas e nada ortodoxas para os mais diversosproblemas.Temumcérebrogenialqueparecefuncionaraocontrário.Pensasempredemaneiraoriginaleinovadora, e, como você pode imaginar, as grandes empresas de tecnologia vêm brigando por ele háanos.Mas Balder não cede. Prefere trabalhar sozinho.Oumelhor, quase sozinho, porque teve váriosassistentes,dosquais,aliás,eletiraosangue.Acimadetudo,eleexigeresultadoseseguiapelolema“Nadaéimpossível,eonossotrabalhoéexpandiroslimites”,eblá,blá,blá.Masaspessoasacreditamnisso.Elesempreconsegueoquequer.Todomundoestádispostoamorrerporele.Nomundonerdeleéumdeus.—Sei.—Nãopensequeeusouumadmiradorsemespíritocrítico.Nãomesmo.Seiqueexisteumpreçoa
pagar.Vocêpodefazercoisasgrandiosasaoladodele.Mastambémsedarmal.OFransnemconseguecuidardoprópriofilho.Elefracassoucomopaideformaimperdoável,eexistemváriashistóriasdessetiponavidadele.Assistentesquesurtaram,quetiveramavidaarruinadaesabe-selámaisoquê.Masmesmoqueelesempretenhasidoumobcecado,nuncaagiudamaneiracomoestáagindoagora.Nuncafoihistéricocomquestõesdesegurança,eétambémporissoqueeuestouaqui.Queroquevocêconversecomele.Seiqueelefezumadescobertaimportante.—Eissoétudoquevocêsabe.—OquevocêprecisaentenderéqueoFransnuncafoidotipoparanoico.Pelocontrário.Dáatépra
dizerqueelesofriadeumacertafaltadeparanoia,considerandootipodecoisacomquesempreesteveenvolvido.Masagoraelesetrancouemcasaequasenãosaidelá.Pareceestarcommedo,emboranuncatenhaseassustadoàtoa.Elesemprefoiumdemônioenlouquecidoquenãoconheciaoutrocaminhoanãoseraquelequeolevavaparaafrente.—Eelegostavadejogosdecomputador?—perguntouMikael,semconseguiresconderoceticismo.—Bem…oFranssabiaquetodosnóséramosfanáticosporjogoseachavaquedevíamostrabalhar
com o que gostávamos. O programa de inteligência artificial que ele desenvolveu também podia serusado pelo mercado de jogos. Seria um experimento perfeito, e conseguimos resultados incríveis.Chegamosaondeninguémhaviachegado.Etudograças…—Linus,porfavor,vádiretoaoponto.—A questão é que quando o Balder e os advogados dele entraram com o pedido de patente dos
aspectos mais inovadores dessa tecnologia, tivemos o primeiro choque. Um engenheiro russo daTruegamestinhaacabadodeentrarcomumasolicitaçãodepatentequeacaboubloqueandoanossa,oquedificilmentepodiasermeracoincidência.Naverdade,poucoimportava.Issodapatenteeraodemenos,comparadocomtudoqueestavaacontecendo.OimportanteeradescobrircomoaTruegamestinhasabidodo nosso projeto.Como todos da nossa equipe erammuito leais ao Frans, só restou uma explicação:alguémtinhanoshackeado,apesardetodasasmedidasdesegurançaquetomávamos.—EfoidepoisdissoquevocêsentraramemcontatocomaSäpoeoMinistériodaDefesa?—Não.OFranstemsériosproblemascomgentedeternoegravataquetrabalhadasnoveàscinco.
Elepreferemalucosobcecadosquepassamnoitesemclaroemfrenteaocomputador.Então,emvezdepedirumaajudaoficial,resolveuchamarumahackermisteriosaqueeletinhaconhecidonãoseionde,edecaraeladissequetínhamossidoinvadidos.Nãoqueela tenhaparecidolámuitoconfiável;eupelo
menosnãochamariaaquelagarotaparatrabalharnaminhaempresa;provavelmenteelanemsabiadireitooqueestavadizendo.SóquedepoisosagentesdoFörsvaretsRadioanstaltconfirmaramasconclusõesdela.—Eninguémsabequemhackeouvocês?—Não,ninguémsabe.Équaseimpossívelseguirosrastrosdeumainvasãodessetipo.Semdúvidafoi
coisadeprofissional.Nóstrabalhamosdurononossoesquemadesegurançadigital.—EagoravocêachaqueoFransBaldertemmaisdetalhesdoqueaconteceu?— Com certeza. Ele não teria outra razão para agir como está agindo. Tenho certeza de que ele
descobriualgumacoisanaSolifon.—Eletrabalhoulá?—Trabalhou,pormaisestranhoquepareça.Comoeufalei,oFranssempresenegouatrabalharpara
os gigantes da computação. No mundo todo não havia ninguém que falasse com mais convicção deindependência,daimportânciadeserlivreedenãosetornarescravodaquelesquedetêmopoder,essahistória toda.Mas quando nos pegaram de guarda baixa e roubaram a nossa pesquisa, ele de repenteaceitou uma oferta da Solifon, e aí ninguém entendeu nada. Tudo bem que ofereceram um saláriomonstruosoecartabrancaparaele:vocêvaipoderfazeroquebementender,desdequetrabalheparaagente;deve tersidoumaproposta tentadora.Pelomenosseria tentadoraparaqualquerpessoaquenãofosseFransBalder.Mas ele já tinha recebidopropostas semelhantes daGoogle, daApple e dequemmaisvocêpossaimaginar.PorqueesseconvitedaSolifonderepentepareceumaisinteressante?OFransnunca explicou isso. Ele simplesmente pegou suas coisas e foi embora. Pelo que fiquei sabendo, nocomeçodeu tudocerto.OFranscontinuoudesenvolvendoanossa tecnologia lá,eachoqueoNicolasGrant,odonodaSolifon,começouafantasiarsobreosnovosbilhõesquecomeçariamaentrar.Oclimaeradeentusiasmo.Masnomeiodissoalgumacoisadeveterdadoerrado.—Algumacoisaquevocênãosabeoqueé.—Issomesmo,perdemoscontatocomoFrans.Eleseafastoudomundo.Tenhocertezadequedeve
estar acontecendo alguma coisa grave.O Frans era defensor da transparência, da abertura, adepto deideiascomooconhecimentoàdisposiçãodamassaecoisasdogênero;acreditavanaimportânciadeseutilizaroconhecimentodeumgrandenúmerodepessoas,enfim,emtodasessasideiasportrásdoLinux.Mas na Solifon ele guardou sigilo absoluto de tudo, inclusive de pessoasmuito próximas a ele, e derepentepediudemissão,voltouparaaSuéciaeagoravivecomoumreclusonasuacasaemSaltsjöbaden.Nãocuidadasuaaparênciapessoalnemsaiparaumacaminhadanopátio.—Ouseja,Linus,oquevocêteméahistóriadeumprofessoruniversitárioquesesentepressionadoe
parecenãoseimportarcomsuaaparência.Mascomoosvizinhossabemdissoseelenãosaidecasa?—Bem,euachoque…—Linus,euconcordoquepodeserumahistóriainteressante.Masinfelizmentenãoéumahistóriapara
mim.Eunãosourepórterdetecnologia.Souumhomemdaidadedapedra,comoandaramescrevendo.Sugiro que você fale com Raoul Sigvardsson, do Svenska Morgon-Posten. Ele é um jornalista queconhecebemessemundo.—Não,não,oSigvardssonnãoserve.Essahistóriaestámuitoalémdacapacidadedele.—Achoquevocêestáenganado.
—Blomkvist,nãofujajustoagora!Essapodeserumachanceúnicaparavocêvoltaremgrandeestilo.MikaelfezumgestodeaborrecimentonadireçãodeAmir,quelimpavaumamesaafastada.—Possotedarumconselho?—disseMikael.—Como…pode,claro.—Na próxima vez em que você tentar vender uma história para um repórter, não tente dizer que
importânciaessahistóriavaiterparaele.Vocêfazideiadequantasvezeseujáviessefilme?“Essavaiser a grande reportagemda suavida.Maior até doqueWatergate!”Você chegaria bemmais longe sefosseumpoucomaisobjetivo,Linus.—Eusóqueria…—Oquevocêqueria?—QuevocêconversassecomoFrans.Achoqueeleiagostardevocê.Vocêsdoistêmesseespíritode
quemnãoaceitafazerconcessões.Derepente,Linuspareceuterperdidototalmenteaconfiança,eMikaelachouquetalveztivessesido
durodemaiscomele.Emgeraldemonstravabomhumoreanimaçãoaofalarcominformantes,pormaisloucos que eles fossem—não apenas porque talvez houvesse umagrande história por trás de toda aloucura, mas também porque sabia que emmuitos casos ele era visto como uma tábua de salvação.Muitos o procuravam depois de todo mundo ter lhes virado as costas. Em muitos casos, Mikaelrepresentavaumaúltimaesperança,enãohaviaporquetrataraspessoascomdesprezo.—Escute—disseMikael.—Eutiveumdiapéssimo.Nãoquisparecersarcástico.—Tudobem.—Evocêtemrazão—prosseguiu.—Temumacoisaquemeinteressanessahistória.Vocêdisseque
umahackerfoichamada.—É,masissonãotemnadaavercomahistóriatoda.Foiapenasumaespéciedeexperimentosocial
doBalder.—Maselapareceusercompetente.—Ouacertoutudonasorte.Agarotadiziamuitabobagem.—Vocêchegouafalarcomela?—Sim,logodepoisqueoBalderfoiparaoValedoSilício.—Quantotempofazisso?—Onzemeses.Eutinhalevadoosnossoscomputadoresparaomeuapartamento,naBrantingsgatan.
Minhavidanãoeramuitoinvejávelnaépoca.Euestavasolteiro,quebradoeviviaderessaca.Aminhacasaeraumverdadeirocaos.EutinhaacabadodefalarcomoFransportelefone,eelefalandocomigocomosefosseomeupai.Nãojulgueagarotapelaaparência,asaparênciasenganam,enãoseimaisoquê…Eledisseessascoisastodaspramim!Poxa,eunãosouexatamenteogenrodossonhosdeninguém.Nuncapus terno egravatanavida e seimuitobemcomoéqueoshackers sevestem.Bom, eu fiqueiesperandoagarota.Acheiqueelapelomenosiabaternaporta.Maselasimplesmentefoientrando.—Comoelaera?—Satânica…Paradizeraverdadetambémerasexy,masdeumjeitoassustador.Massatânica!—Linus, eunãopediumaavaliaçãodosatributos físicosdagarota.Queriaapenas sabercomoela
estavavestidaesechegouadizerseunome.
—Nãofaçoamenorideiadequemelaé—Linusprosseguiu—,mesmoqueeutenhaachadoqueareconheciadealgumlugar…mastiveumaimpressãoruim.Elaeracheiadetatuagensepiercings,essascoisastodas,pareciaumametaleiraouumadessasgóticas,oupunks,eeramagracomoumesqueleto.Quasesemsedarconta,MikaelfezsinalparaqueAmirtrouxessemaisumcanecodeGuinness.—Eoqueaconteceu?—eleperguntou.—Bem, como posso dizer?…Achei que não íamos falar de cara sobre negócios, então sentei na
minhacama,jáquepraticamentenãohaviaoutrolugarprasentar,epergunteiseelaqueriabeberalgumacoisa.Sabeoqueelafez?Pediuqueeusaísse.Essagarotamemandouemboradaminhaprópriacasacomo se fosse a coisamais normal domundo. Eume recusei, claro, disse alguma coisa como “Esteapartamentoémeu”.Maseladisse:“Sumaagoramesmodaqui”,entãoeuviquenãohaveriajeitoseeunãofosseembora,esaíepasseiumbomtempofora.Quandovoltei,elaestavadeitadanaminhacama,fumandoelendoumlivrosobreteoriadascordas,umacoisaassim,umaloucura,eachoqueeuolheideumjeitomeioestranhoparaela,seilá,porqueeladissequenãotinhaamenorintençãodeirparaacamacomigo.Acho que em nenhummomento ela olhou nosmeus olhos. Simplesmente disse que os nossoscomputadores estavam infectados por um trojan, um RAT, e que dava pra reconhecer os padrões dainvasão e o alto nível da programação usada. “Alguém ferrou com vocês”, ela disse. E depois foiembora.—Semnemsedespedir?—Semdizernemmaisumapalavra.—Putz—Mikaeldeixouescapar.— Acho que ela estava fazendo tipo. O especialista do Försvarets Radioanstalt que examinou os
computadores depois, e que deve ter bemmais experiência nesse tipo de ataque, disse que nãohaviadados suficientespara chegar a essas conclusõesequepormaisque tivesseprocuradonãoencontrounenhumtipodevírusespião.Mesmoassimesseespecialista,quealiássechamaStefanMolde,tambémachouquetínhamossidovítimasdeumainvasão.—Emnenhummomentoessagarotaseapresentou?—Euinsistiparaqueeladissesseonomedela,masaúnicacoisaqueelafalou,eaindademauhumor,
foiqueeupodiachamá-ladePíppi.Comcertezanãoeraonomedela,mesmoassim…—Oquê?—Acheiquecombinavacomela.—Escute—disseMikael.—Euestavamepreparandoparairembora.—É,eupercebi.—Masagoraasituaçãomudoucompletamente.VocêdissequeoFransBalderconheciaessagarota?—Issomesmo.—Nessecasoeuquerofalarcomeleomaisrápidopossível.—Porcausadagarota?—Algoassim.—Tudobem—Linusrespondeu,pensativo.—Masvocênãovaisabercomoentraremcontatocom
ele.Comoeudisse,oFransestáescondido.VocêtemiPhone?—Tenho.
—Entãoesquece.OFransachaqueaApplesevendeuparaaNSA.Prafalarcomelevocêvaiprecisarcomprar um Blackphone ou então arranjar um celular com Android e baixar um aplicativo decriptografia.Maseuvoutentarconvencê-loaentraremcontatocomvocê,eaívocêscombinamumlugarseguroparaseencontrarem.—Ótimo,Linus.Obrigado.Mikael permaneceu sentado depois que Linus foi embora, bebendo sua Guinness e observando a
tempestade lá fora. Mais atrás, Arne ria com sua turma. Porém Mikael estava tão perdido empensamentosquenãoouviunadadoqueelesdiziamnempercebeuquandoAmirsesentouaoladodeleecomeçoualeraprevisãodotempo.Aprevisãoparaosdiasseguinteseradeumtempoabsolutamentelouco.Atemperaturacairiaparadez
grausnegativos.Esperava-seaprimeiranevedoano,e tudoindicavaqueelanãochegariademaneiraagradável,aconchegante.SeriaapiornevascaaatingiraSuéciaemmuitosanos.—Pode haver furacões—Amir disse por fim, eMikael, que ainda não estava prestando atenção,
respondeudemaneiralacônica:—Quebom.—Bom?—É…bem…Melhordoquenãotertemponenhum.—Verdade.Tudobem?Vocêpareceestaremestadodechoque.Oencontronãofoibom?—Não,deutudocerto.—Masasnotíciasdeixaramvocêabalado,nãofoi?—Aindanãoseibem.Estátudomeioconfusoparamim.EstoupensandoemsairdaMillennium.—Euachavaquevocêearevistaeramumacoisasó.—Eutambém.Mastudotemseutempo.—Éverdade—Amirconcordou.—Omeupaicostumavadizerqueatéascoisaseternas têmseu
tempo.—Comoassim?—Achoqueeleestavapensandonoamoreterno.Eledisse issoumpoucoantesdedeixaraminha
mãe.Mikaelconteveumarisada.—Ah,certo.Eumesmonãomedeimuitobemnoamor.Emcompensação…—Oquê,Mikael?—Temumamulherqueeuconhecihámuitotempoequedesdeentãosumiudaminhavida.—Complicado.—Nãoéfácil.Masagoraeladeuumsinaldevida,oupelomenosachoquedeu,etalvezporissoeu
estejaassim.—Sei.—Masprecisoirparacasa.Quantotedevo?—Depoisagenteacerta.
—Estábem.Secuide,Amir—disseMikael.Emseguidapassoupelosclienteshabituais,quefaziamcomentáriosabsurdossobrecomoenfrentaratempestade.Foiumaexperiênciadequasemorte.Apesardasrajadasdeventoquecastigavamseucorpo,Mikael
caminhoudevagaremmeioaotempohorrível,entregando-seaantigaslembrançasenquantovoltavaparacasa.Ali,poralgumarazão,tevedificuldadeemabriraporta.Precisoulutarcomachavenafechadura,edepoisqueenfimconseguiuentraremcasatirouosapato,sentou-seemfrenteaocomputadorecomeçoualersobreoprofessorFransBalder.QuandoMikaeldesistiudecontinuartentandoseconcentrar,aperguntaquejásehaviafeitoinúmeras
vezesvoltou:ondeelaestaria?Alémdoqueconstavanorelatóriodoex-chefedela,DraganArmanskij,elenuncamaistinhatidonotícias.Eracomoseelativessesidoengolidapelochão,e,aindaqueosdoisfossempraticamentevizinhos,Mikaelnuncamaisatinhavisto.PorissoaspalavrasdeLinusoabalaramdaquelaforma.Emprincípio,outragarotapoderiateridoaoapartamentodeLinusnaqueledia.Erapossível,embora
nãoprovável.Afinal,quemalémdeLisbethSalanderchegariadaquelejeito,jáentrando,semnemolharnorostodapessoaeamandariaemboradaprópriacasaparavasculharoconteúdodoscomputadores,concluindoavisitacomafrase“Nãotenhoamenorintençãodeirparaacamacomvocê”?SóLisbeth.Quantoa“Píppi”,essenomeeraacaradela.NaportadoapartamentodeLisbeth,naFiskargatan,haviaaidentificação“V.Kulla”,onomedacasa
dePíppiMeialonga,eMikaelentendiamuitobemporqueelanãodeixavaaliseuverdadeironome.Eleseria facilmente identificado, pois estava associado a tumultos e escândalos. Mas onde ela moravaagora?NãoeraaprimeiravezqueLisbethdesaparecia.Mesmoassim,desdeodiaemqueMikaelhaviabatido na porta do apartamento dela, na Lundagatan, e a insultado por ter escrito um relatório bemcompletosobreavidadele,osdoisnuncahaviampassadotantotemposemcontato,oqueeraumpoucoestranho,poisapesardetudoLisbetherasua…Suaoquê,afinal?Dificilmenteumaamiga.Amigosseencontram.Amigosnãodesaparecemsemdeixarrastros.Amigos
nãomandamnotíciainvadindocomputadores.Mesmoassim,MikaelestavaligadoaLisbeth,e,acimadetudo,nãohaviacomoescapardapreocupaçãoquetinhacomela.Oex-tutordeLisbeth,HolgerPalmgren,costumava dizer que ela sabia cuidar de si mesma. Apesar da infância terrível que tivera, ou talvezjustamente por causa de tudo que havia lhe acontecido, Lisbeth tinha se transformado em umasobrevivente.Impossívelnegaroquantodeverdadehavianisso.Praticamente não existiam garantias para uma garota com um passado como o dela e com uma
habilidade ímpar de fazer inimigos. Talvez Lisbeth tivesse mesmo perdido o rumo, como DraganArmanskijhaviadadoaentenderquandoeleeMikaelalmoçaramnoGondolencercadeseismesesantes.EraumsábadodeprimaveraeDragantinhainsistidoempagaracerveja,aaquavitetudoomais.Mikaelteve a impressão de que Dragan estava precisando desabafar, e, mesmo que oficialmente os doisestivessemseencontrandonacondiçãodevelhosamigos,nãohaviadúvidadequeDragan,naverdade,queriafalarsobreLisbetheentregar-seaumpoucodesentimentalismoregadoaálcool.Entre outras coisas, Dragan contou que sua empresa, aMilton Security, tinha instalado alarmes de
segurançaemumacasaderepousoemHögdalen—alarmesexcelentes,deacordocomele.Masdenadaadiantatodooequipamentosefaltaenergiaelétrica.Ninguémsepreocupacomisso.À
noitefaltouluznacasaderepouso,eRutÅkerman,umadasmoradoras,caiu,quebrouofêmurepassouhorasnochãoacionandooalarmesemquenadaacontecesse.Demanhã,a situaçãodelaeracrítica,ecomonaépocaos jornaisestavampublicandoumasériedereportagenssobreproblemasnoscuidadoscomidosos,oepisódioganhoudestaque.Felizmente Rut melhorou. No entanto, como ela era mãe de um político importante do Partido
Democrata,oSverigedemokraterna,ositeoficialdopartidopublicouumartigodizendoqueDraganeraárabe—oquenãoeraverdade, emboraàsvezesochamassemassim—,eo campodecomentários,então, virou uma zona de guerra. Centenas de anônimos escreveram que aquilo era o que aconteciaquando“confiamosnossasegurançaaessescabeçasdeturbante”.EDraganseofendeu,sobretudoporquesuamãetambémfoimencionadaemcomentáriosumtantorudes.Masderepente,comonumpassedemágica,todasaspessoasquehaviamdeixadoaliseuscomentários
perderamoanonimato,passandoaseridentificadascomnome,endereço,idadeeprofissão.Tudomuitobemorganizado, como se elas houvessempreenchido um formulário.Evidentemente, não eramapenasradicaisdesajustados,mastambémcidadãosbemestabelecidoseconcorrentesdeArmanskijnaáreadesegurança,todostendoqueseresponsabilizarpeloquehaviamescrito,sempodermaisseesconderatrásdoanonimato.Ninguémentendeunada.Arrancaramoscabelosatéquealguémconseguiutirarapáginadoar,ejuraramvingançaaquemquerqueestivesseportrásdaqueleataque.Sóqueaquestãoerajustamenteesta:ninguémsabiaquemeraoresponsávelpelainvasão,anãoserDraganArmanskij.—UmaatitudetípicadeLisbeth—eledisse—,eclaroqueeuestavaenvolvido.Nãotivepenadas
pessoasexpostas,aindaqueomeutrabalhosejagarantirasegurançadeinformações.EutinhapassadoumaeternidadesemnotíciasdeLisbetheestavacertodequeelanãoligavaamínimaparamim,eque,aliás, não ligava amínimaparanadanemninguém.E aí aconteceu isso…Foimuitobom.Lisbethmeajudouquandopreciseieagradeciaelaefusivamentepore-mail.Paraaminhasurpresaelarespondeu.Sabeoqueelaescreveu?—Não.— Só esta frase: “Como você pode proteger aquele asqueroso do Sandvall, da clínica de
Östermalm?”.—QueméSandvall?—Umcirurgiãoplásticoparaquemprestamosserviçosdesegurançapessoaldepoisqueelecomeçou
a receber ameaças por ter assediado uma jovempaciente, estoniana, que havia feito uma cirurgia nosseios.Agarotaeranamoradadeumgângster.—Ops…—É,não foinada fácil.EudisseaLisbethqueeu tambémnãoachavaSandvallumadasmelhores
criaçõesdeDeus.Naverdadetinhacertezadequeelenãoera,eudisse.Masdeiaentenderquenãocabeamimentrarnessetipodejulgamento.Nãopossotrabalharapenasparapessoasmoralmenteexemplares.Mesmoosporcostêmdireitoaumpoucodesegurança,ecomoSandvallvinhasofrendoameaçasgravese nos pediu ajuda, nós o ajudamos… pelo dobro do preço normal. Para mim nunca foi um grandeproblema.—ELisbethaceitouoseuraciocínio?—Elanemrespondeu…pelomenosnãopore-mail.Maspareceterrespondidodeoutromodo.
—Como?—Elaapareceunaclínicaeordenouaosnossossegurançasqueficassemcalmos.Parecequechegou
inclusive a dizer que eu mandava lembranças. Em seguida atravessou toda a clínica, passou porpacientes, médicos e enfermeiras, entrou no consultório de Sandvall, quebrou três dedos dele e oameaçou.—Putamerda!—Éomínimoquesepodedizer.Foiumaloucuraelafazerissonafrentedetestemunhase,alémdo
mais,dentrodeumconsultóriomédico.—É,loucuramesmo.—Claroqueavidadelasecomplicoudepoisdessecaso,compedidosdeprocessosjudiciais,acoisa
toda. Imagine:quebrarosdedosdeumcirurgiãoplásticoqueganhariosdedinheiro fazendo incisões,liftings…Éotipodecrimequelevaqualqueradvogadofamosoacomeçaravercifrõesportodaparte.—Eoqueaconteceudepois?—Nada.Absolutamentenada,eessetalvezsejaodetalhemaisestranho.Oepisódiosimplesmentefoi
ignoradoe,aoquetudoindica,porqueocirurgiãonãoquisprocessá-la.Dequalquerforma,Mikael,foiumatodeloucura.Nenhumapessoaequilibradaentranumconsultóriomédicoparaquebrardedosdeumcirurgião.NemLisbethSalanderemseusmomentosmaisdesvairadosfariaumacoisadessas.MikaelBlomkvistnãoestavatotalmenteconvencido.Achavatudomuitológico,oupelomenosdentro
da lógica de Lisbeth, e ele era praticamente um especialista no assunto. Sabiamuito bem que aquelagarota pensava de forma racional, mas não com amesma racionalidade damaioria das pessoas. Elaseguiapremissasestabelecidasporelamesma,eMikaelnemporuminstanteduvidouqueaquelemédicotivessefeitocoisasbemmaisgravesdoquepassaramãonagarotaerrada.TeveaimpressãodenãoserumcasoqualquerparaLisbeth,sobretudopeloaltoriscoqueelahaviacorrido.MikaelBlomkvisttinhachegadoapensarquemaiscedooumaistardeelaacabariaseenvolvendoem
problemas,talvezparasesentirvivadenovo.Mastodoessejulgamentoerainjusto.Eledesconheciaosmotivos de Lisbeth. Não sabia absolutamente nada da vida que ela estava levando, e, enquanto atempestadebalançavaasjanelaseelecontinuavasentadodiantedocomputador,pesquisandosobreFransBalder, tentou ver a beleza de terem topado um com o outro,mesmo que daquelamaneira torta. Eramelhordoquenada, eMikael achouquedevia estar felizpor elanão termudado.Tudo indicavaqueLisbethcontinuavaamesma,etalvez—quemsabe?—atétivessearranjadoumahistóriaparaele.Poralgunsmotivos,Linusoirritaradesdeoprimeiroinstante,etalvezporissoMikaeltivesseignoradotudoqueeledisse,pormaissensacionalquepudesseser.MasquandoLisbethentrounahistória,tudomudoudefigura.Nãohaviadúvidas sobrea inteligênciadeLisbeth.Seela tinhadecidido seenvolvernaquelecaso,
talvezhouvesse razõessuficientesparaqueele tambémfizesseomesmo.Podiaaomenos investigaroassuntoumpoucomaisdepertoe,comalgumasorte,conseguiralgumainformaçãosobreLisbeth.Porqueelatinhasumidodomapa?Bem,elanãoeranenhumaconsultoradeTI,edeviaestarrevoltadacomasinjustiçasdavida.Podia
sumir domapa e administrar a justiça domodo que bem entendesse.Mas que aquela garota, que nãotemia hackear computador nenhum, tivesse se comovido com uma simples invasão digital era
surpreendente. Quebrar os dedos de um cirurgião ainda fazia sentido. Mas se engajar na luta contraataquescibernéticosilegaiseracomomorarsobumtelhadodevidroejogarpedranotelhadodosoutros,não?MasMikaelnãotinhacertezadenada.Erarazoávelsuporquehouvesseumaboahistóriaportrásdoquehaviaacontecido.TalvezLisbethe
Balderfossemamigosoucorrespondentes—nãoseriaimpossível.EntãoMikaelprocurouocorrênciascom os dois nomes juntos, mas nada encontrou, ou pelo menos nada interessante. Em seguida ficouobservandoatempestadeepensandonodragãotatuadonumcorpomagro,nofriodeHedestadenacovaabertaemGosseberga.DepoisvoltouapesquisarsobreFransBalder,eoquenãofaltavaeramaterial.Onomedoprofessor
gerou dois milhões de ocorrências, mas apesar disso não era fácil encontrar uma biografia dele. Amaioriadosresultadoseramartigoseanálisescientíficas;pelovisto,FransBaldernãodavaentrevistas.Por isso, tudo acerca da vida dele tinha uma certa aura mítica, como se fosse superdimensionado eromantizadoporalunosqueoadmiravam.ConstavaquenainfânciaFransBalderforatratadocomosetivessedistúrbiosdeaprendizagem,atéo
dia em que procurou o diretor da escola onde estudava em Ekerö paramostrar um erro no livro dematemática do nono ano, no capítulo sobre números imaginários. Uma correção foi feita nas ediçõesposteriores,emaistardeFransganhouumconcursonacionaldematemática.Diziamqueconseguiafalardetrásparaafrenteeescreverlongospalíndromos.Emumantigotextoescolarpublicadonainternet,elecriticavaAguerra dosmundos, deH.G.Wells, por não conceber que criaturas superiores a nós emtodosossentidosnãosoubessemadiferençaentreaflorabacterianaemMarteenaTerra.Depois do colegial, Frans Balder foi estudar ciências da computação no Imperial College, em
Londres, e publicou um trabalho sobre algoritmos aplicados a redes neurais, tido como ummarco naárea.Tornou-seomaisjovemprofessordetodosostemposdaTekniskaHögskolan,deEstocolmo,efoiadmitidonaAcademiaRealdeEngenharia.Foiconsideradoumdosmaioresespecialistasdomundonoconceitoteóricode“singularidadetecnológica”—omomentoemqueainteligênciadoscomputadoresultrapassaainteligênciahumana.Apesarde tudo,FransBaldernãoeraumtipoatraentenemelegante.Emtodasas fotos,pareciaum
troll desleixado, de olhos pequenos e cabelo desgrenhado. Mesmo assim, tinha se casado com aglamorosaatrizHannaLind,quehaviaadotadoosobrenomeBalder.Ocasalteveumfilhoque,segundoareportagemdeumjornalvespertino,encimadapelamanchete“AgrandetragédiadeHanna”, tinhaumagrave deficiência mental, embora o menino, pelo menos nas fotos que ilustravam a matéria, nãoaparentassenadadeerrado.Ocasamentonãodurou,e,naaudiência judicialno forodeNacka,quedecidiriasobreaguardado
menino,LasseWestman,oenfantterribledoteatro,declaroudemaneirabastanteagressivaqueBaldernão devia ter a guarda do filho, uma vez que Frans se preocupava “mais com a inteligência doscomputadores do que com a inteligência das crianças”. Mikael não se aprofundou nos aspectos daseparaçãoepreferiusededicaraentenderaspesquisasdeBaldereasdisputasjudiciaisemqueeleseenvolvera, além de passar um bom tempo lendo um artigo tortuoso sobre processamento quântico dedados.Depois deu uma olhada em seus próprios documentos no computador e abriu uma pasta que havia
criadoanosantescomonomedeLisbethSalander.MikaelBlomkvistnãosabiaseLisbethcontinuavainvadindoocomputadordelenemseaindaseinteressavapelotipodejornalismoqueelefazia.Mastinhaesperançasdequeelanãootivesseabandonadoeseperguntousenãoseriabomdeixarumamensagemparaela.Haviaapenasumproblema:oqueescrever?UmalongacartapessoalnãofaziaoestilodeLisbeth;sóiriaconstrangê-la.Omelhorseriadeixaruma
mensagemcurtaeenigmática.Mikaelarriscouumapergunta:OquedevemospensarsobreainteligênciaartificialdeFransBalder?Depoisselevantouemaisumavezcontemplouatempestade.
4.20DENOVEMBRO
EdwinNeedham,ouEd“theNed”,comoàsvezesochamavam,nãoeraotécnicodesegurançamaisbempagodosEstadosUnidos.Mastalvezfosseomelhoreomaisorgulhoso.Sammy,seupai,tinhasidouma ovelha negra, um alcoólatra descontrolado que às vezes fazia bicos na zona portuária, mas quepassavaamaiorpartedotempoembebedeirasdesenfreadasquenãoraroterminavamnacadeiaounohospital.Apesardetudo,osporresdeSammyeramosmelhoresmomentosvividospelafamíliadele.Quandoo
paiestavaseembriagandonarua,acasaadquiriaumaatmosferaacolhedora,eentãoRita,amãe,podiaabraçarseufilhoesuafilhaeprometer-lhesquetudoiamelhorar.Comexceçãodessesmomentos,nadafuncionavanacasa.AfamíliamoravaemDorchester,umbairrodeBoston,equandoopaiestavaemcasaacabava batendo com frequência emRita, que então passava horas e às vezes o dia todo trancada nobanheiro,chorandoetremendo.Em épocasmais difíceis,Rita chegava a vomitar sangue, e não foi surpresa quando elamorreu de
hemorragiainternacomquarentaeseisanos,nemquandoairmãmaisvelhadeEdseviciouemcrack,emenosaindaquandomaistardepaiefilhosquaseseviramobrigadosamorarnarua.AinfânciadeEdprometiainúmerosproblemasenaadolescênciaelesejuntouaumaganguechamada
“TheFuckers”,queaterrorizavaDorchesterpromovendobrigas, ataquese roubosa supermercados.OmelhoramigodeEd,umgarotochamadoDanielGottfried,acaboupenduradoemumganchodecarneeassassinadoagolpesdemachete.Naadolescência,Edesteveaumpassodoabismo.Desdecedoteveumaaparênciarústicaebrutal,eaagitaçãodogaroto,somadaàfaltadedoisdentes
superiores,nãoajudavamuitoasuavizá-la.Ederaalto,forteedestemido,eseurostocostumavatrazermarcasdebrigas—fossemdearranca-raboscomopaioudepancadariasentregangues.AmaioriadosprofessorestemiaEd.Todosacreditavamquecedooutardeeleacabariapresooumortocomumabalanacabeça.Mastambémhaviaadultosqueseinteressavamporele—talvezporteremdescobertoquehaviamaisdoqueagressividadeeviolêncianaquelesolhos.Ed tinha uma sede incontrolável de conhecimento, energia que o levava a devorar um livro com o
mesmoímpetocomquedepredavaumônibus,emuitasvezesadiavaavoltaparacasa.Preferiaficarna“saladetecnologia”daescola,ondeseentretinhaporhorasehorascomosdoiscomputadoresquehavialá.UmprofessordefísicachamadoLarsonpercebeuotalentodeEdparalidarcommáquinase,depoisde reuniões com autoridades do Serviço Social, conseguiu oferecer-lhe uma bolsa de estudos e aoportunidadedesetransferirparaumaescolacomalunosmaismotivados.
Ed se destacou nos estudos e, aos poucos, foi conseguindomais bolsas emais distinções.No fim,contrariandoasexpectativasiniciais,começouaestudarnaEECS,aElectricalEngineeringandComputerSciences, noMIT. Sua tese de doutorado tratou de alguns temores específicos sobre os sistemas decriptografiaassimétrica,comooRSA.GalgouposiçõesnaMicrosoftenaCisco,atésercontratadopelaNSA,emFortMeade,Maryland.Na verdade, o currículo de Ed não era totalmente adequado ao posto, e não apenas por ele ter se
envolvido com a criminalidade na adolescência. Tinha fumado um bocado de maconha na época dafaculdade e demonstrado certa simpatia pelos ideais socialistas e atémesmo anarquistas, e já adultohaviasidodetidoduasvezesporperturbaraordempública.Nadamuitograve:quasesemprebrigasdebar.Seutemperamentopermaneceuviolento,etodosqueoconheciamevitavamsedesentendercomele.MasaNSAviuqualidadesemEd,ealémdomaiseraoutonode2001.Oserviçodeinformaçãodos
EstadosUnidosandavatãodesesperadoatrásdetécnicosdedadosquepraticamentecontratavaqualquerum.Nosanosqueseseguiram,porém,ninguémjamaisquestionoualealdadeeopatriotismodeEd.Ou,sequestionou,concluiuquesuasqualidadeserammaisimportantes.Ed não tinha apenas um talento espetacular. Em sua personalidade havia também obsessão, uma
precisãomaníacaeumaeficiênciafuriosaprenunciandosucessoparaalguémencarregadodasegurançadigital das mais secretas autoridades norte-americanas. Ninguém seria capaz de entrar no sistemadesenvolvidoporele.EraumaquestãopessoalparaEd,quelogosetornoufiguraindispensávelemFortMeade;muitasvezesoscolegasfaziamfilaparaconsultá-lo.Muitossentiampavordele,eeraverdadequecomfrequênciaEdxingavaedestratavacolegas,indoalémdoqueseriarazoável.CertavezchegouamandarparaoinfernoatéodiretordaNSA,olendárioalmiranteCharlesO’Connor.“Trate de ocupar essa sua cabeça demerda com assuntos que você entende”, Ed bradou quando o
almirantequisdarumaopiniãosobreotrabalhoqueeleestavafazendo.Mas Charles O’Connor, assim como os outros, simplesmente não se importava com esse tipo de
atitude.SabiaqueEdgritavaebrigavaporbonsmotivos,ouporquealguémhaviasidorelapsocomosprotocolosdesegurança,ouporquetinhadadoumaopiniãosobrealgodequenãoentendia.Alémdisso,elejamaishaviaseintrometidonotrabalhodaagênciadeespionagem,mesmoqueporforçadaposiçãoqueocupavativesseacessoaquasetudoemesmoqueanosdepoisaNSAtenhasidopeganomeiodeumatempestade, emque tanto representantes da direita comoda esquerda passarama ver o órgão como aprópriaencarnaçãododemôniooucomoaconcretizaçãodoGrandeIrmãodeOrwell.ParaEd,aNSApodia fazer o que bem entendesse, desde que os sistemas de segurança fossem rigorosos e semantivessemindevassáveis.Comoaindanãotinhafamília,Edpraticamentevivianoescritório.Eleeraumaforçacomaqualsepodiacontar.Mesmosendosubmetidoavárioscontrolesdesegurança
por causa de seu trabalho, nunca se encontrou nada questionável sobre ele— a não ser bebedeirasmonumentais —, nem mesmo quando ficava sentimental e começava a falar sobre o passado. Nãoexistiam indícios de que alguma vez ele tivesse falado com outras pessoas sobre o trabalho querealizava. No mundo exterior, mantinha a boca fechada como um túmulo, e se acontecia de alguémpressioná-loelerecorriaàsmentirasensaiadas,possíveisdeserconfirmadaspelainterneteporoutrosbancosdedados.Nãofoiporacasonematravésdeintrigasoujogosujo:Edaospoucossubiudeposiçãoesetornouo
chefemaisgraduadodesegurançadasededaNSA,virandotudodecabeçaparabaixo,“paraquenenhumdelator venha aqui dar outro tapa na cara da gente”.Ed e a equipe que ele comandava aumentaram avigilância internaemtodosospontosimagináveisedepoisdenoitesenoitesemclaroapresentaramoqueeleàsvezeschamavade“muralhaimpenetrável”,àsvezesde“cachorrobravo”.“Nenhum filho da mãe vai entrar aqui, nenhum filho da mãe vai xeretar sem permissão”, disse,
sentindoumorgulhoimensodesimesmo.Esseorgulhoimensosódurouatéaquelafatídicamanhãdenovembro,umdiabonitoedecéuclaro.
EmMaryland,nenhumsinaldotemposinistroqueassolavaaEuropa.Aspessoasandavamdecamisetaejaquetas finas, e Ed, que com o passar dos anos havia adquirido uma barriguinha, vinha voltando damáquinadecafécomseutípicoandarcambaleante.Por causa de sua função, Ed não dava a mínima para roupas. Vestia calça jeans e camisa xadrez
vermelha de lenhador, e suspirou ao sentar em frente ao computador. Suas costas e seu joelhodireitodoíam,epodiajurarquesuacolega,aantigapolicial lésbicadoFBI,aarticuladaeencantadoraAlonaCasales,ohaviaprovocadoapenasporumprazersádico.Porsortenãotinhanadademuitourgenteparafazer.Sóprecisavamandarumamensageminternacom
informações sobre o novo código de conduta para os responsáveis pelo OST, um programa decolaboração comoutras grandes empresas deTI—Ed haviamudado a senha de acesso.Mas não sealongoudemais.Escreveunoseuestilosecodesempre:Paraque ninguémcaia na tentaçãode agir comoum imbecil e paraque todos continuem sendo
bonsagentesdigitaisparanoicos,eugostariaderessaltarque…Derepenteumdosváriosalarmesointerrompeu.Ednãosepreocupoumuito.Osistemadealarmeeratãosensívelquereagiaaqualquermudançano
fluxodeinformações.Comcertezadeviaserumapequenaanomalia,talvezumsinaldequealguémhaviatentado acessar partes do sistema para as quais não tinha a necessária autorização— enfim, nada demais.Maso fato é queEdnem teve a oportunidadede verificar.No instante seguinte aconteceu algo tão
extraordinárioqueporunsbonssegundoseleserecusouaacreditar.Limitou-seaficarolhandoparaomonitor.Mesmoassim,sabiaexatamenteoquetinhaacontecido,pelomenoscomapartedeseucérebroqueaindaconseguiapensarracionalmente:haviaumRATnaNSANet,a intranetdaagência.Comaoutraparte do cérebro Ed pensou: vou acabar com esses filhos da puta! Porém, invadir aquele ambientetotalmentecontroladoefechadoqueeleesuaequipetinhamvasculhadomilhõesdevezesnoúltimoano,a fimde rastrear qualquer possível vulnerabilidade, pormais ínfima que fosse…Não, não, não tinhacomo,eraimpossível!Sem perceber, Ed fechou os olhos, como se esperasse que tudo aquilo pudesse desaparecer se ele
piscasseosolhosumnúmerosuficientedevezes.Masquandoolhoudenovoparaomonitorafrasequeelehaviacomeçadoaescrevertinhasidoconcluída.Otrecho“…eugostariaderessaltarque…”vinhaseguidodasseguintespalavras:…vocêsdevemparardecometerumasériedeatividadesilegais,oquenaverdadeémuitosimples.Quemespionaapopulaçãoacabasendoespionadopelapopulação.Essaéumalógicafundamentaldademocracia.“Merda,merda”,elemurmurou,noquepareciaserumsinaldequeestavaserecompondo.
Masotextocontinuou:Nãofiquenervoso,Ed.Presteatençãonoquevaiacontecer.Eutenhoacessoroot,ecomissoEdsoltouumgrito.Apalavra“root”feztodooseuservirabaixo,enospoucosminutosemqueocomputadornavegouàvelocidadedaluzpelosrecônditosmaissecretosdosistemaeleachouquefosseterumataquecardíaco,efoisomenteatravésdeumasensaçãomuitonebulosaqueelesedeucontadequepessoasiamsejuntandoemtornodele.HannaBalder precisava ir fazer compras. Faltavam cerveja e comida na geladeira.Além domais,
Lassepodiachegaraqualquermomentoenãogostarianemumpoucodedescobrirquenãohaviasequerumapilsenemcasa.Mascomootempoestavahorrível,Hannaadiouasaídaeficoufumandonacozinha,mesmoqueaquilofosseruimparaapeleeparatudoomais,emexendonoseucelular.Porduasoutrêsvezespercorreualistadecontatosnaesperançadeencontrarumnomenovo.Masnão
haviaum.Eramasmesmaspessoasdesempre,todasjácansadasdela.MesmoassimresolveutelefonarparaMia.MiaeraaagentedeHanna,eemoutrasépocastinhamsidoduasgrandesamigassonhandoemconquistaromundo juntas.No fim,Hannahavia se tornadoacimade tudoumpesona consciênciadeMia,que jáperderaacontadonúmerodepretextosedesculpasque tinhaouvidonosúltimos tempos.“Nãoéfácilenvelhecercomoatriz”,blá,blá,blá.NemHannaaguentavamaisaquilo.PorqueMianãofalavalogo:“Vocêparececansada,Hanna.Opúbliconãogostamaisdevocê”?ClaroqueMianãoqueriaatender.Aconversanãoteriafeitobemanenhumadasduas,eHannanão
pôdedeixardeolharparaoquartodeAugustafimdesentirapontadadesaudadequeafaziaperceberquetinhaperdidoachancededesempenharaúnicatarefaimportantequetinhanavida—adesermãe—, o que, contraditoriamente, renovou suas forças. Consolou-se de maneira perversa com a própriaautopiedadee,apesardetudo,estavaprestesasairparacomprarumacervejaquandootelefonetocou.EraFrans,eaoatenderotelefoneHannafezumacareta.Odiainteirohaviapensado—semcoragem
—emligarparaoex-maridoepedirqueeledevolvesseAugust.Emborasentissesaudadedofilho,nãoachavaqueomeninoiaterumavidamelhoraoladodela.Eraapenasparaevitarumacatástrofe.Nadamais.LassequeriaomeninodevoltaparacontinuarrecebendoapensãodeFrans,esóDeussabiaoque
poderia acontecer se Lasse aparecesse em Saltsjöbaden para exigir seus direitos. Talvez arrancasseAugustdacasaeodeixasseapavorado,edepoisencheriaFransdeporrada.Fransprecisavasaberdoriscoquecorria.Masquandotentouabordaroassunto,Hannanãotevetempodefalar.Fransdespejousobreelaumahistóriaesquisitaqueclassificoucomo“totalmenteincrívelesemprecedentes”.—Desculpe,Frans,masnãoestouentendendo.Doquevocêestáfalando?—elaperguntou.—OAugustéumsavant!Umgênio!—Vocêenlouqueceu?—Pelocontrário!Eufinalmentevia luz.Vocêprecisavirparacáagora!Achoqueéoúnicojeito.
Nãohácomoexplicardeoutraforma.Eupagoumtáxiparavocê.Juroquevocêvaificardebocaaberta.Eledeve termemória fotográficae, sabe lácomo,aprendeuossegredosda técnica tridimensionalporcontaprópria.Élindo,Hanna,perfeitodemais.Temumaauracomosefossedeoutromundo.—Oquetemessaaura?
—OsemáforoqueoAugustfez.Vocênãoouviu?Hojeànoitepassamosporesselugareagoraelefezumareproduçãoperfeitadetudo.Maisatédoqueperfeita…—Maisatédoqueperfeita?…—Oquemaispossodizer?Nãoéumasimplescópia,Hanna.Alémdecapturarosdetalhesdemaneira
exata, o August também acrescentou uma… uma dimensão artística. O desenho resplandece e,paradoxalmente,tambéméumarepresentaçãomatemática,comrequintesdeaxonometria.—Axooquê?—Ah,nãoimporta,Hanna!Vocêprecisaviraquiparavercomosprópriosolhos—prosseguiuFrans,
eaospoucoselacomeçouaentender.De repente, donada,August tinha começadoadesenhar comvirtuosismo,oupelomenos eraoque
Fransachava,oqueseriaincrívelsefossemesmoverdade.OmaistristefoiqueHannanãoficoufeliz,ea princípio nem ela mesma entendeu por quê. Mas em seguida teve um palpite. Era porque aquelatransformaçãohaviaocorridoenquantoAugustestavacomFrans.August tinhavividocomelaeLasseporanosafiosemqueabsolutamentenadaacontecesse.Augustpassavao tempointeirodistraídocomquebra-cabeças e blocos demontar sem dizer uma única palavra, tendo surtos periódicos durante osquaissoltavagritosestridenteseirritantes,atirando-sedeumladoparaoutro,eagora,depoisdeumaspoucassemanasnacasadopai,jáestavasendochamadodegênio.EramaisdoqueHannapodiasuportar.Nãoquenãoestivessefelizpelomenino.Masaquilotambém
eradoloroso,eopiordetudo:elanãoestavatãosurpresaquantodeviaestar.Nãoficoubalançandoacabeçaemurmurando“Nãoépossível,nãoépossível”.Pelocontrário, tinhaa impressãode jáhaverpressentidoaquilo—nãoqueofilhofossecapazdedesenharsemáforoscomperfeição,masquehaviaalgumacoisaportrásdoquesevianasuperfície.Hanna tinha pressentido tudo nos olhos de August, naquele olhar que às vezes, em momentos de
exaltação,parecia registrarosmínimosdetalhesdoambienteao redordele.Tinhapressentido tudonaformacomoomeninoescutavaosprofessoresdaescola,namaneiranervosacomofolheavaoslivrosdematemáticaqueelacompravae,principalmente,nosnúmerosdeAugust.Nadaeratãosingularquantoosnúmeros de August. Omenino era capaz de passar horas e horas escrevendo séries intermináveis denúmeros incompreensivelmente grandes. Hanna havia tentado entendê-los, mas nunca conseguiu nemimaginar do que se tratava. Pormais que tivesse se esforçado, não havia chegado a lugar nenhum, enaqueleinstantepercebeuquetinhadeixadopassarumdetalheimportantesobreaquelesnúmeros.Estavatristedemaisepreocupadademaisconsigomesmaparaentenderoque iapelospensamentosdo filho.Nãoeraessaaverdade,afinal?—Nãosei—disseHanna.—Nãosabeoquê?—Fransperguntou,irritado.—Nãoseiseposso iratéaí—elaprosseguiu,ouvindonomesmoinstanteumbarulhonaportada
frente.LassechegoucomseugrandeamigoRogerWinter,oquealevouadaralgunspassosassustadospara
trás,balbuciarumpedidodedesculpasparaFranse,pelamilésimavez,acharqueeraumapéssimamãe.
Aindacomotelefonenamão,Franssepôsapraguejarnoquartodepisoxadrez.Tinhaescolhidoessepadrãoporqueaquelaorganizaçãomatemática lheagradava,e tambémporqueoxadrezseestendiaemdireção ao infinito nos espelhos dos guarda-roupas nos dois lados da cama. Em certos momentos,observavaamultiplicaçãodosquadradosqueavançavamparadentrodosespelhoscomoseaquilofosseumenigmapulsante,comoseumaforçaquasevivaemanassedaquelarepetiçãoedaquelaregularidade,damesmaformaqueospensamentoseossonhossurgemdosneurôniosnocérebroouosprogramasdecomputador surgemdoscódigosbinários.Masnaquele exatomomentoestavaentregueaoutro tipodepensamento.—Filho,oquefoiquehouvecomasuamãe?—Fransperguntou.August, que estava sentado no chão, próximo ao pai, comendo um sanduíche de queijo compicles,
encarou-ocomumolharconcentrado,enesseinstanteFransteveoestranhopressentimentodequeofilhoia lhe dar uma resposta sábia e adulta. Mas esse tipo de expectativa, naturalmente, era equivocado.Augustcontinuavafalandotãopoucoquantoantesenadasabiasobremulheresabandonadaspelomarido,eopróprioFranssóhaviapercebidoissograçasaosdesenhos.Osdesenhos,queatéentãoeramtrês,àsvezeslhepareciamprovanãoapenasdeumtalentoartísticoe
matemático,mas também de uma espécie de sabedoria. As obras pareciam tãomaduras e complexasnaquela perfeição geométrica, que Frans não conseguia associá-las com a imagem de um Augustdeficientemental.Ou,melhordizendo,nãodesejavaassociá-las,poisdesdemuitotempovinhatentandodescobriroqueseescondiaportrásdacondiçãodeseufilho,enãoapenasporquetivesseassistidoaRainMan,comotodomundo.Como pai de uma criança autista, desde cedo Frans havia deparado com o conceito de savant,
utilizadoparadescreverpessoascomgravesproblemascognitivosequemesmoassimapresentamumdesempenho brilhante em áreas específicas. Talentos em geral relacionados com uma impressionantecapacidade de memorização e com uma percepção apurada de detalhes. Frans havia percebido quemuitos pais ansiavampor esse diagnóstico como umprêmio de consolação.Mesmo assim as chanceserampequenas.Segundoestimativas,apenasdezporcentodosautistastêmcapacidadesdesavante,mesmoassim,a
maioriadelesnãodemonstraum talento tão impressionantequantooRainMando filme.Existem,porexemplo,autistascapazesdedizeremquediadasemanacaiudeterminadadata,mesmodeséculosatrás.Ou,emcasosextremos,datasdequarentamilanosatrás.Outros detinham conhecimentos enciclopédicos em áreas extremamente restritas, como tabelas de
horários de ônibus ou listas telefônicas.Certos autistas eram capazes de fazer cálculos complexos decabeça,oudeselembraremcomprecisãoquetempoestavafazendoemdeterminadodiadesuavida,ouaindasaberemsempreahoraexata,inclusiveossegundos,semconsultarumrelógio.Existiaumasériedetalentosmaisoumenosnotáveis,eFranssabiaqueindivíduoscomessascapacidadeseramchamadosdesavants—pessoasque,apesardeteremumadeficiênciamentalqueasafetavaempraticamentetodososaspectosdesuavida,demonstravamhabilidadesextraordinárias.Tambémexistiaumoutrogrupoaindamaisraro,eFransacreditavaqueAugusteraumadessaspessoas
conhecidas como savants prodígios, indivíduos com talentos absolutamente sensacionais. Havia, porexemplo,KimPeek,quepoucotempoantestinhamorridodeinfarto.Kimnãoconseguiasevestirsozinho
eeraportadordeumadeficiênciamentalsevera.Mesmoassim, tinhamemorizadoo textodedozemillivroseconseguiaresponderdeimediatoaquasequalquerperguntasobredadosouestatísticas.Eraumbancodedadosvivo.Ganhouoapelidode“Kimputer”.HaviatambémmúsicoscomoLeslieLemke,umhomemcegoecomretardomentalquecertavez,com
dezesseisanos,selevantounomeiodanoitee,semnenhumtipodetreinoouestudo,sentou-seetocouoconcertoparapianono1deTchaikóvksisemcometernenhumerrodepoisdetê-loouvidoumaúnicaveznatelevisão.E,acimadetudo,garotoscomoStephenWiltshire,ummeninoinglêsintrovertidoaoextremoequepronunciousuaprimeirapalavracomseisanosdeidade:“papel”.Com oito, dez anos, Stephen conseguia desenhar prédios imensos perfeitamente e com detalhes
complexosdepoisde tê-losvisto apenasde relanceumaúnicavez.Umdia,passeandodehelicópterosobre Londres, ficou olhando para as casas e as ruas lá embaixo. De volta ao solo, desenhou umpanoramavibrantedacidadeinteira.Maselenãoeraumsimplescopiador.AsobrasdeStephentinhamumgrauelevadodeindependência,eogarotopassouaservistocomoumartistacompleto.Eramquasesempregarotos.Apenasumemcadaseissavantseramenina,oqueprovavelmentetinharelaçãocomumadasgrandes
causasdoautismo: excessode testosteronaemcirculaçãonoúteromaterno, especialmentenocasodefetos masculinos. A testosterona pode danificar o tecido cerebral do feto, e quase sempre ataca ohemisfério esquerdo, que se desenvolve mais devagar e é mais frágil. A síndrome de savant é umatentativadohemisfériodireitodecompensaroestragosofridopelohemisférioesquerdo.Comooshemisférios sãodiferentes, eo esquerdoéo responsávelpelopensamentoabstratoepela
capacidade de perceber grandes contextos, o resultado torna-se aindamais especial. Surge uma novaperspectiva,umafixaçãopordetalhes,e,seFranshaviaentendidobem,eleeAugusttinhamobservadoaquelesemáforodemaneiratotalmentediferente.Enquantoomeninoerabemmaisfocado,océrebrodeFrans descartava os detalhes insignificantes à velocidade da luz, concentrando-se nas coisas maisimportantes—asegurançaaoatravessararuaeaprópriamensagememitidapelosemáforo:“Pare”ou“Siga”.Erabemprovávelqueoolhardeletivessesofridováriasoutrasinfluênciasexternas,acimadetudoadeFarahSharif.Paraele,afaixadepedestresmisturava-secomtodoumfluxodelembrançaseexpectativassobreela,enquantoAugustdeviatervistoapenasosemáforoemsi.Omeninoohaviaregistradonopapelnosmínimosdetalhes,juntocomohomemvagamenteconhecido
que atravessava a rua naquele instante.Tinha carregado essa imagem consigo, como se ela tivesse segravadoemseuspensamentos,esomenteapósduassemanassentiunecessidadedeexterná-la,ecomumdetalhenotável:haviafeitomaisdoquesimplesmentereproduzirosemáforoeohomem.Tinhaconferidoaambosumaauraperturbadora,eFransnãoconseguiaafastara ideiadequeAugustqueriadizeralgomaisdoquesimplesmente“Vejaoqueeufiz”.Pelamilésimavez,examinouosdesenhos,eentãosentiuumaagulhadanocérebro.Frans sentiamedo.Não conseguia entender bem o que estava acontecendo.Mas tinha a ver com o
homemdodesenho.Seusolhoseramduros,brilhantes.Asmaçãsdorostopareciamtensaseos lábioseram estranhamente finos, quase inexistentes, mesmo que esse detalhe não depreciasse o trabalho deAugust. Cada vez que Frans o examinava, o homem pareciamais assustador e de repente Balder foiinvadidoporumverdadeiroterror,comosetivesseacabadodeterumapremonição.
—Filho,euteamo—elebalbuciousemdarporsi,edeveterrepetidoafrasepormaisduasoutrêsvezes,porqueaspalavrascomeçaramaparecercadavezmaisestranhasemsuaboca.Comumadorrenovada,Franssedeucontadequenuncaastinhapronunciado,equandoserecompôs
doprimeirochoqueocorreu-lhequehaviaumelementoaindamaislamentávelnaquilo.Serianecessárioumdomexcepcionalparaque fossecapazdeamaropróprio filho?Então seriaumasituaçãobastantetípica.Elehaviaconstruídoasuavidabaseadoapenasemresultados.Franspoucoseimportavacomtudoquenãofosseinovadorouexcepcional,emalhaviapensadoem
AugustquandodeixouaSuéciaparairtrabalharnoValedoSilício.Grossomodo,ofilhosemprefoiparaeleapenasumincômodomomentâneoparaascoisasrevolucionáriasqueestavaprestesadescobrir.Naqueleinstante,porém,Fransprometeuasimesmoquehaveriamudanças.Abandonariaaspesquisas
etudoqueohaviaincomodadoeperturbadonaquelesúltimosmesesparadedicar-seaomenino.Afinal,estavadecididoasetornarumnovohomem.
5.20DENOVEMBRO
NinguémentendiacomoGabriellaGranetinhaidopararnaSäpo,nemelamesma.Quandogarota,umfuturo promissor aguardava por ela. O fato de já ter trinta e três anos, não ser rica nem famosa etampoucotersecasado,mesmoquesópordinheiro,preocupavasuasvelhasamigasdeDjursholm.—Oqueacontececomvocê,Gabriella?Poracasopretendetrabalharnapolíciaorestodavida?Namaioriadasvezesemqueouviaisso,elanãosedavaaotrabalhodediscutirnemdeexplicarque
nãotrabalhavacomopolicial,esimcomoanalista,equeescreviatextosdequalidademuitosuperioràdosqueescreveranoMinistériodasRelaçõesExterioresounosverõesemquehaviatrabalhadocomoredatora-chefedoSvenskaDagbladet.Alémdomais,nãogostavamuitodeconversar,fossequalfosseoassunto.Erabomficaremsilêncioeignorartodasaquelasobsessõescretinassobrestatus;trabalharnaSäpoeravistocomofracasso—tantoporseusconhecidosdeboacondiçãosocialcomoporseusamigosintelectuais.Aos olhos dessas pessoas, na Säpo só havia conservadores imbecis que caçavam curdos e árabes
motivadospor racismo, gente quenão se furtaria a cometer crimesgraves e atentar contra os direitoshumanosparaoferecercoberturaaantigosespiõessoviéticos.Porconsequência,claroqueelatambémdeviaseencaixarnesseperfil,pensavam.ASäpoeraumlugardeincompetênciaedejuízosduvidosos,eocasoZalachenkoaindaeraumamanchanareputaçãodoórgão.Masnãoerabemassim.Tambémhaviaumtrabalhoimportanteeatraenteaserfeito,especialmentedepoisdoprocessointernodelimpezaqueocorrera.ÀsvezesGabriellaachavaqueaSäpoeraolugarondeospensamentosinteressantesganhavamvoz,equeeralá,enãonoseditoriaisounassalasdeauladasuniversidades,quesepodiaentenderdemaneiraabrangenteasprofundasmudançasqueocorriamnomundo.Masclaroquedevezemquandoelatambémseperguntava:comoeuvimpararaquieporquecontinuoaqui?Aexplicaçãoprovavelmenteestavarelacionadaaumcertoelogioquerecebeu.Ninguémmenosque
HelenaKraft,aentãorecém-nomeadachefedaSäpo,tinhaentradoemcontatocomelaeditoque,depoisdetodasascatástrofesedetodososartigospublicadosnaimprensacomoobjetivoderidicularizaroórgão,estavanahoraderecrutarpessoaldeoutraforma.Precisamosadotarumamentalidadeumpoucomais britânica, Helena tinha dito, e “ter conosco os verdadeiros talentos das universidades; e,sinceramente, Gabriella, não consigo pensar em ninguémmelhor do que você”. Foi o suficiente paraGabriella.Ela começou a trabalhar como analista de contraespionagem, atémais tarde ser transferida para a
divisãodeproteçãoàindústria.Mesmoquenãotivesseumperfiltãoadequadoàfunção,porserjoveme,
acimadetudo,atraentedeumaformaumtantoexuberante,eraapessoacertanosdemaisaspectos.Erachamadade “filhinhade papai” e “burguesinha”, o quegerava alguma tensãodesnecessária.Contudo,nunca deixou de ser uma funcionária primorosa, eficaz e receptiva, que sempre apresentava ideiasoriginaiseinusitadas.Alémdomais,falavarusso.Tinha aprendido o idioma enquanto cursava economia na Handelshögskolan, em Estocolmo, onde
haviasidoalunaexemplar,aindaquenofundosoubessequejamaisiriasedarporsatisfeitaapenasnomundodosnegócios.Gabrielladesejavamais,porissoaoconcluirseusexamesconcorreuaumavaganoMinistério das Relações Exteriores, e foi admitida. Mas também não se sentiu estimulada naqueleambiente.Osdiplomataserampessoassisudasebastanteformais,efoinessaépocaqueHelenaKraftaprocurou. Agora fazia cinco anos que Gabriella estava na Säpo; aos poucos seu talento foi sendoreconhecido,aindaqueascoisasnemsempretivessemsidofáceisparaela.Etambémhojenãoestavasendonadafácil,enãosóporcausadotempohorrível.RagnarOlofsson,
chefedoescritório,tinhaaparecidoemsuasalacomcaradepoucosamigos,dizendoqueelanãodevianamorarnotrabalho.—Namorar?—Gabriellaperguntou.—Alguémmandoufloresparavocê.—Eporacasoéculpaminha?—Vocêtemalgumaresponsabilidade,sim.Precisamosnoscomportardemaneirasóbrianotrabalho.
Afinalrepresentamosumainstituiçãodegrandeautoridade.—Quecurioso,Ragnar!Agentesempreaprendecoisasnovascomvocê.Finalmenteeuentendiqueé
minhaculpaochefedepesquisasdaEricssonnãosaberadiferençaentreumaamigaeumanamorada.Eagoraestouvendoquetambéméminhaculpaquealgunshomensinterpretemumsimplessorrisocomoumconviteparasexo.—Nãodigabobagem—retrucouRagnarantesdesair.EnesseinstanteGabriellasearrependeu.Essasrespostasagressivasraramenteajudam,mas,poroutrolado,elajátinhaaguentadoquietatempo
demais.Jáestavanahoradereagir,eentãoGabriellaarrumousuamesaàspressasepegouumrelatóriodo
Government Communications Headquarters britânico (GCHQ) sobre a espionagem industrial feita pelaRússiaqueaindanãotinhaconseguidoler.Nesseinstanteotelefonetocou.EraHelenaKraft,eGabriellasealegrou.Helenanuncaaprocuravapararesmungaroureclamar;pelocontrário.—Vou ser direta— anunciouHelena.—Recebi uma ligação dos EstadosUnidos que talvez seja
urgente.Vocêpodeatendê-lanoseutelefonedaCisco?Pedimosumalinhasegura.—Claro.—Ótimo.Queroquevocêanaliseasinformaçõesemeavisesenotaralgoestranho.Parecesério,mas
tiveumaimpressãomeioesquisitadapessoa…Aliás,eladissequeconhecevocê.—Podetransferiraligação.EraAlonaCasales,daNSAdeMaryland,emboraporuminstanteGabriellatenhaseperguntadoseera
mesmo ela. Quando as duas se encontraram pela última vez em Washington, D.C., Alona tinha semostradoumapalestrantecarismáticaeexperientenaquiloque,comumleveeufemismo,elachamavade“interceptação ativa de dados”— ou seja, hacking de computadores—, e depois da palestra ela e
Gabriellahaviampassadoum tempo juntas tomandoalgunsdrinques.Alona fumavacigarrilhase tinhauma voz grave e sensual quemuitas vezes se expressava através de frases curtas e impactantes, comfrequentes alusões a sexo.Mas no telefone ela parecia um tanto confusa e por vezes perdeu o fio daconversa.Alonanãocostumavaficarnervosaporqualquerrazãonemterproblemasparamanteraconcentração.
Tinhaquarentaeoitoanos,eraumamulheraltaebemarticulada,comseiosfartoseolhosinteligentes,capazesdefazerqualquerumsesentir inseguro.Muitasvezesdavaa impressãode lerpensamentos,enão tinha nenhum tipo de deferência especial com pessoas que ocupassem cargos elevados. Xingavaquem bem entendesse— atémesmo oministro da Justiça em visita à agência— e esse era um dosmotivos de Ed “theNed” se dar bem com ela.Nenhum dos dois se importavamuito com hierarquia.Levavamemcontaapenaso talentodaspessoas,por issoachefedaPolíciadeSegurançadeumpaíspequenocomoaSuéciaeraumpeixemaisquecomumparaAlona,deacordocomseuspadrões.Noentanto,quandoelaeHelenaKraftestavamfazendooscontrolesdeinformaçãoportelefone,Alona
viu-se completamente atordoada. Nada a ver com Helena Kraft. É que o clima no escritório tinhaacabado de explodir. Todos já estavam acostumados com os surtos de fúria de Ed.Muitas vezes elefalavaalto,berravae esmurravaasmesaspormotivosbanais.Masa intuiçãodeAlona lhediziaquedessavezeradiferente.Edpareciaparalisado, e, enquantoAlona tentava juntar as palavras e formaruma frase ao telefone
comHelena, havia pessoas reunidas em volta dele,muitas com um telefone namão, todas parecendoperturbadasouassustadas.Masporserumaidiota,outalvezporaindaestarchocada,Alonaficousemação,nãodesligounemdissequevoltariaatelefonarmaistarde.DeixouquealigaçãofossetransferidaeacaboutopandojustamentecomGabriellaGrane,aencantadoraejovemanalistaqueelahaviaconhecidoem Washington e na mesma hora tentado seduzir. Mesmo que não tenha dado certo, Alona tinha sedespedidocomumasensaçãodeprofundobem-estar.—Olá,amiga—disse.—Comovãoascoisas?—Bem—respondeuGabriella.—Estáfazendoumtempohorrívelaqui,masforaissotudocerto.—Foibemdivertidonaqueledia,nãofoi?—Comcerteza.Passeiodiaseguinteinteiroderessaca.Masachoquehojevocênãomeligoupara
fazerumconvite.—Infelizmentenão.Estouligandoporquedescobrimosumaameaçasériaaumpesquisadorsueco.—Quem?—Tivemosdificuldadesparainterpretarainformaçãooumesmoparaentenderdequepaíssetratava.
Temos apenas códigos um tanto vagos. Boa parte das informações estava criptografada e nãoconseguimosdescriptografá-la,mesmoassim,comoaconteceumuitasoutrasvezes,comaajudademaispeçasdoquebra-cabeça…putz…—Oquefoi?—Espereumpouco!OmonitordeAlonapiscoueemseguidaseapagou,eatéondeelapôdeveramesmacoisaestava
acontecendocomtodososcomputadoresdoescritório.Poruminstante,perguntou-seoquedeviafazer.Resolveu continuar a conversa, pelomenos pormais algum tempo; talvez fosse apenas uma falha nofornecimentoelétrico,aindaqueasluzesestivessemfuncionandonormalmente.—Estouaquiteaguardando—avisouGabriella.—Obrigada.Medesculpe,Gabriella.Estátudocaóticoporaqui.Ondeeuestavamesmo?—Vocêestavafalandosobreaspeçasdoquebra-cabeça.—Ah,claro,claro.Fomosjuntandoumacoisaeoutra,afinaltemsemprealguémquedeixaescaparum
detalhe,pormaisprofissionalquetenteserou…—Ou?—…alguémabreobico,mencionaumendereço,porexemplo,ounessecasoconcreto…Alonaficouemsilênciodenovo.NinguémmenosqueocomandanteJonnyIngram,umdosheróisda
organização,comcontatosaténaCasaBranca,entrounoescritório.Comosempre,JonnyIngramtentoupareceraomesmotempoaristocráticoedescolado.Chegouaacenarparaalgumaspessoasqueestavamumpoucomaisafastadas,masnãoconseguiuenganarninguém.Apesarde sua superfíciebempolidaebronzeada—desdequesetornarachefedocentrodecriptografiadaNSA,emOahu,viviabronzeadooano todo—,percebia-seumelementonervosonoolhardo comandante, e naquele instante eledava aimpressãodequereratrairaatençãodetodos.—Alô,vocêaindaestáaí?—perguntouGabriella.— Infelizmente preciso desligar. Telefono de novo assim que puder— disse Alona, desligando e
ficandonervosadeverdade.Sentia-se no ar que algo terrível tinha acontecido— talvez um novo ataque terrorista de grandes
dimensões.MasJonnyIngramcontinuoucomsuaencenaçãotranquilizadora,emesmoquetodosovissemtorcendoasmãosecomsuornatestaenolábiosuperior,prosseguiudizendoquenadadegravehaviaacontecido.Segundoafirmou, apenasumvírus tinha infectado a intranet, apesarde todas asproteçõesimplementadas.—Pormedidadesegurança,desligamos todososnossosservidores—informou,eporuminstante
realmenteconseguiutranquilizaroambiente.“Caramba”,aspessoaspareciamdizer.“Umvírus…entãonãoémesmotãograve.”MasemseguidaJonnyIngramcomeçouasetornarprolixoeafalardemaneiravaga,eentãoAlona
nãoconteveumgrito:—Faledeumavezoquevocêtemparadizer!—Aindanãodispomosdemuitosdetalhes…acaboudeacontecer.Mastudoindicaquetenhahavido
uma invasão. Vamos atualizar vocês assim que tivermos mais notícias — respondeu Jonny Ingram,claramenteperturbado.Entãoumburburinhotomoucontadoambiente.—Sãoosiranianosdenovo?—perguntoualguém.—Achamosque…Mas Ingramnão terminoua frase.Apessoaquedevia ter estado coma equipedesdeo iníciopara
explicar oque tinha acontecidoo interrompeude formabrusca e se levantou comoumurso.Ninguémpodia negar que era uma visão impressionante. EdNeedham, quemomentos antes parecia chocado earrasado,irradiavaumaauradeconfiançainabalável.
—Não—ele respondeupor entreosdentes.—Éumhacker,ummalditodeumsuper-hackerdosinfernosqueeuvoudarumjeitodecapar.
***Gabriella Grane tinha acabado de vestir o casaco e se preparava para ir embora, quando Alona
Casales telefonou outra vez. A princípio Gabriella se irritou, e não apenas por causa do últimotelefonemaconfuso.Queriairparacasaantesqueatempestadepiorasse.Segundoosboletinsdenotícias,asrajadasdeventoatingiriamcentoedezquilômetrosporhoraeatemperaturacairiaamenosdezgraus,eelanãoestavacomumaroupaadequadaparaenfrentarumtempodesses.—Desculpe a demora— disseAlona Casales.—Tivemos umamanhã enlouquecedora. Isto aqui
virouumcaos.—Aquitambém—respondeuGabriellaeducadamente,olhandoparaorelógio.—Bem,comoeudisse, tenhoumassunto importantepara tratarcomvocê,oupelomenosachoque
tenho.Difíciltercerteza.Euchegueiatedizerqueestourastreandoumgrupoderussos?—Não.—Provavelmentetambémexistemalemãeseamericanosenvolvidosnisso,etalvezumeoutrosueco.—Equetipodegrupoéesse?—Criminososbemsofisticados,quenãoassaltambancosnemseenvolvemcomotráficodedrogas.
Elesroubamsegredosindustriaiseinformaçõesconfidenciaisdeempresas.—Hackers?— Eles não são simples hackers. Também chantageiam pessoas e oferecem subornos. E talvez se
dediquem a algumas atividades da velha guarda, como assassinatos. Para ser bem sincera, ainda nãoconsegui juntar informações suficientes.Tudoque tenho sãomensagens emcódigo, ligações aindanãoconfirmadaseosnomesdealgunsjovensengenheirosdecomputaçãoemcargosdepoucaimportância.Masogrupopraticaespionagemindustrialeépor issoqueocasoestácomigo.Acreditamosqueumatecnologianorte-americanadepontapodetercaídonasmãosdosrussos.—Sei.—Masnãoestásendofácilchegaraeles.Estátudomuitobemcriptografadoe,apesardetodoomeu
empenho,nãodescobriquasenadasobreochefedaorganização,anãoserqueochamamdeThanos.—Thanos?—Isso.ÉumaderivaçãodeThanatos,odeusdamortenamitologiagrega,queéfilhodeNyx,anoite,
eirmãogêmeodeHypnos,osono.—Quecoisamaisdramática.—Naverdadeparecemaiséinfantil.ThanostambéméumvilãodaMarvel,sabia?Amesmaeditora
que publica revistas de heróis como Hulk, Homem de Ferro e Capitão América. Não é algoparticularmentetípicodosrussos,masparece…comopossodizer…—Lúdicoepretensiosoaomesmotempo?—Isso.Comosefosseumaganguedeadolescentesmetidosadurões,oquemeirrita.Naverdadeessa
históriaestácheiadedetalhesquemeincomodam,porissofiqueitãointeressadaquandoonossosistema
deinterceptaçãodedadosrevelouqueessaredepodeterumdesertorcapazdenosdarumpoucomaisdeinsights, desde, claro, que a gente o encontre antes queos outrosmembros da organizaçãodescubramondeeleestá.Masagora,quandoanalisamostodaessahistóriamaisdeperto,percebemosquenãoeranadadoquetínhamosimaginado.—Comoassim?—Quemabandonouobarconãofoiumcriminoso,ouseja,umdeles,masalguémhonestoqueestava
trabalhando em uma empresa onde essa organização tem agentes infiltrados e que por acaso deve terdescobertoalgumacoisamuitoimportante.—Continue.—Acreditamos que essa pessoa está correndo um grande risco e precisa de proteção. Até pouco
temponãofazíamosamenorideiadeondeprocurá-la.Nemsabíamosparaqueempresaelatrabalhava,masagoratemosquasecertezadequealocalizamos—prosseguiuAlona.—Umdiadessesoutrapessoadaorganizaçãosereferiuaessesujeitodizendoque“comeletodososmalditosTsforamparaoinferno”.—TodososmalditosTs?—É.Noiníciotambémacheiestranho,enigmático,masdepoisacabousendobemfácilpesquisaressa
expressão. “Malditos Ts” não trouxe nenhum resultado, mas os Ts no contexto empresarial, eparticularmente no de tecnologias de ponta, sempre me levavam ao mesmo resultado: a máxima deNicolasGrant,“Tolerância,talentoetrabalhoemequipe”.—EntãotemavercomaSolifon—disseGabriella.—Éoqueparece.Aspeçascomeçarama seencaixar,portanto fomospesquisarquemhavia saído
recentementedaSolifon.Aprincípionãoconseguimoschegaralugarnenhum,porqueaempresatrabalhacomumagranderotatividadedefuncionários.Achoqueatéfazpartedamentalidadedeles.Ostalentos,lá,entramesaema todahora.EntãocomeçamosapensarsobreosTs.SabecomoGrantentendeessamáxima?—Não.—Comoumareceitaparaacriatividade.Atolerânciapregaorespeitoaideiasepessoasdiferentes.
Quantomaioraboavontadecompessoasquenãoseenquadramnospadrõesdasociedade,minoriasdeformageral,maiorseráareceptividadeanovasformasdepensar.FuncionameiocomoogayindexdoRichard Florida, sabe? Se há tolerância a pessoas como eu, também existe mais abertura e maiscriatividade.—Organizaçõeshomogêneasdemaisepreconceituosasnãochegammuitolonge.—Exato.Quantoatalentos…bem,segundoGrant,ostalentosnãogarantemapenasbonsresultados;
eles também atraem outras pessoas competentes para atuar com eles. Criam um ambiente onde todosqueremestar,enoinícioaSolifonestavamaispreocupadaematrairpessoasgeniaisdoqueespecialistasem determinados assuntos. A empresa achava que o certo a fazer era deixar que o talento coletivodecidisseosrumosdela,enãoocontrário.—Etrabalhoemequipe?—Aideiaéqueessestalentosdevemtrabalharcomoumaequipeindependente,semqueprecisemde
nenhuma burocracia para se encontrar, sem que dependam de agendas de reuniões e contatos comsecretárias.Bastapuxarumacadeiraeconversar.Asideiasprecisamcircularlivrementee,comovocê
devesaber,aSolifonacabouescrevendoumaverdadeirasagaemtermosdeavançostecnológicos.Crioutecnologiasrevolucionáriasemumaporçãodeáreas,inclusiveparaaNSA.Atéquesurgiuumnovogênio,umcompatriotaseu,ecomele…—“…todososmalditosTsforamparaoinferno.”—Exato.—EessesujeitoéoBalder.—Issomesmo.Paradizeraverdade,nãoacreditoqueoBalder tenhaalgumtipodeproblemacom
tolerânciaoucomtrabalhoemequipe.Masdesdeoinícioelepareceuespalharumvenenoaoredordesieserecusouaintegraraequipe.Conseguiudestruiroótimoambientequehaviaentreospesquisadoresemtemporecorde,principalmentedepoisquecomeçouaacusá-losdeplagiadorese ladrões.Comosenãobastasse,comproubrigacomodonodaSolifon,NicolasGrant.MasGrantsenegaarevelaroqueaconteceu.Alegaqueéassuntoparticular.EmseguidaBalderpediudemissão.—Eusei.—Boapartedeseuscolegasficoufelizcomasaídadele.Oclimasetornoumaisleveeaspessoas
voltaramaconfiarumasnasoutras,pelomenosumpouco.MasNicolasGrantnãoficoumuitosatisfeito,eosadvogadosdelemenosainda.BalderlevouemboratodasaspesquisasquehaviafeitonaSolifon,e,segundo a opinião geral, eram descobertas sensacionais, que poderiam revolucionar o computadorquânticoqueaSolifonvinhadesenvolvendo.—Legalmenteessaspesquisaspertencemàempresa,enãoaele.—Exato.Balder,quesemprerecriminouroubos,dessavezfezopapeldoladrão,elogoessahistória
deve chegar aos tribunais, como você deve imaginar, a não ser que Balder esteja em condições deintimidarosadvogadoscomalgumtrunfo.Paraeleserácomoumsegurodevida,eascoisaspodemficarcomoestão.Masessetrunfotambémpodecausar…—Amortedele.—Éoquemepreocupa—admitiuAlona.—Temosindícioscadavezmaissegurosdequealgograve
estáparaacontecer,esuachefedeuaentenderquevocêpoderianosajudar,encaixandomaisumapeçanessequebra-cabeça.Gabriellaolhouparaatempestadeláforaesentiuumavontadeenormedeirparacasaedeixartudo
aquiloparatrás.Noentanto,tirouocasacoesesentoudenovo,profundamenteincomodada.—Ajudarcomo?—Oquevocêachaqueelesabe?—Vocêestámedizendoquenãoconseguiramgrampearascomunicaçõesnemhackearocomputador
dele?—Querida,porenquantoprefironãoresponder.Masoquevocêacha?Gabriella se lembrou de Frans Balder parado junto à porta do escritório, não muito tempo antes,
balbuciandoqualquercoisasobre“umavidanova”—fosseláoqueissoquisessedizer.—VocêdevesaberqueBalderachavaquehaviamroubadoosresultadosdaspesquisasdeleaquina
Suécia— ela disse.—O Försvarets Radioanstalt fez uma análise bastante abrangente domaterial edecidiuqueumapartedefatopertenciaaele.FoinessecontextoqueBaldereeunosconhecemos,enãoposso dizer que fiqueimuito contente.OBalder falava pelos cotovelos e era cego para tudo que não
fosse ele e suas pesquisas. Lembro de ter pensado que progresso nenhum nomundo justificaria umaobsessão como aquela. Se uma atitude dessas é necessária para alguém se tornar uma pessoamundialmentefamosa,queroqueafamasemantenhabemlongedemim.Mastalvezeutenhamedeixadoinfluenciarpeladecisãojudicialcontraele.—Sobreaguardadomenino?—É.Eletinhaacabadodeperderodireitodecuidardofilhoautistapornuncaterdadoamínimapara
eleenemaomenosterpercebidoqueomeninohaviamemorizadoquaseumaestanteinteiradelivros.QuandofiqueisabendoquetodosnaSolifonestavamcontraele,euentendinahora.Penseiqueeraoqueelemerecia.—Edepois?—DesdequeelevoltouparaaSuécia,começaramafalaremlheoferecerproteção,efoiporissoque
nosreencontramos.Issoaconteceuhápoucassemanaseparamimfoiumaexperiênciainacreditável.OBalderestavacompletamentemudado.Enãoapenasporestarbarbeado,tercortadoocabeloeperdidopeso.Eletambémestavamaiscalmo,eàsvezespareciaatéinseguro.Jánãohavianadadaquelaantigaobsessãonele,elembroquepergunteiseestavapreocupadocomosprocessosqueoaguardavam.Sabeoqueelerespondeu?—Não.— Ele disse, da maneira mais sarcástica que você pode imaginar, que não estava nem um pouco
preocupadoporquetodossãoiguaisperantealei.—Eoqueelepretendeudizercomessaresposta?—Quesósomos iguaissepagamosdemaneira igual.Edepoismedissequenomundoemqueele
viveasleisnãosãonadamaisqueumaespadausadaparaatravessarpessoascomoele.Equeporcausadisso,sim,estavapreocupado.Equetambémestavapreocupadoporquesabiadecoisasquelhepesavamnosombros,mesmoqueelastambémpudessemsalvá-lo.—Elenãofalouquecoisaseramessas?—Disse que não queria mostrar a última carta que tinha. Preferia esperar para ver até onde seu
adversárioestavadispostoair.Euoacheibemabalado,eumaoutravezeledeixouescaparquealgumaspessoasqueriamomaldele.—Comoassim?—Eleexplicouquenãosetratavadeameaçafísica,masquesimplesmenteeleachavaquealgumas
pessoasqueriamdestruirsuahonraesuaspesquisas.Apesardisso,nãomeconvencidequeeleachavamesmoqueaameaçaselimitavaaisso,esugeriquearranjasseumcãodeguarda.Naminhaopinião,umcachorroseriaótimacompanhiaparaumhomemquemoraemumacasaenormenossubúrbios.Maselenãoquissaber.“Nãopossoterumcachorroagora”,disse.—Porquenão?—Naverdadeeunãosei.MastiveaimpressãodequeBalderestavasofrendoalgumtipodepressão,
eelenãoprotestoumuitoquandotomeiprovidênciasparaqueacasadelefosseequipadacomumnovosistemadealarme.Ainstalaçãoacaboudeficarpronta.—Qualfoiaempresaresponsável?—AMiltonSecurity.Trabalhamoscomelahámuitotempo.
—Ótimo,ótimo.Mesmoassimsugiroquevocêsomantenhamnumlugaraindamaisseguro.—Asituaçãoétãograve?—Jáqueoperigoexiste,émelhornãoarriscar,concorda?—Claro—disseGabriella.—Vocêpodemeenviaralgumtipodedocumentação?Assimeufalocom
aminhachefeagoramesmo.—Bem…nãoseioqueeupoderiamandarparavocêagora.Estamostendoum…umproblemabem
sériocomoscomputadores.—Vocêspodemsedaraessetipodeluxo?—Você temrazão, temtodaa razão.Eu te ligomais tarde,querida—disseAlona,sedespedindo.
Gabriellapermaneceu sentadaporalguns instantes,observandoa tempestadequebatia contra a janelacomcadavezmaisforça.Em seguida pegou o Blackphone e telefonou para Frans Balder. Diversas vezes. Não apenas para
alertá-lo de que ele deveria ir o mais breve possível para um lugar seguro, mas também porque derepentesentiuvontadedefalarcomeleedescobriroqueeletinhaqueridodizercom“Nessesúltimostemposeutenhosonhadocomumavidanova”.O que ninguém sabia, nem iria acreditar se soubesse, é que naquele instante Frans Balder estava
ocupadoincentivandoseufilhoaproduzirmaisumdesenhocomoaquelequeresplandeciacomumaauradeoutromundo.
6.20DENOVEMBRO
Aspalavraspiscaramnomonitor:Missionaccomplished!Pragagritoucomumavozrouca,quaseenlouquecida,etalvezissotivessesidoumdescuido.Porém,
mesmoqueosvizinhosoescutassem,nãotinhamnemmesmocomoimaginardoquesetratava.AcasadePraga não parecia um local típico para ataques de segurança de nível internacional. Mais parecia orefúgiodealguémàmargemdasociedade.Praga morava na Högklintavägen, em Sundbyberg, região nem um pouco glamorosa e cheia de
pequenosprédiosdequatroandarescomtijolosdesbotados.Quantoaoapartamento,tambémnãohaviaelogiosafazer,nãoapenasporqueoaralifosseviciadoeolugarcheirassearanço,mastambémporqueemcimadamesadetrabalhohaviamuitolixo.RestosdesanduíchesdoMcDonald’s,latasdecoca-cola,folhasamassadas,farelosdebolo,canecascomrestodecaféepacotesvaziosdebala.Mesmoquepartedetudoissoestivessenolixo,faziasemanasqueelenãoeraesvaziado,emalsepodiadarumpassoalisempisaremfarelosdepãoouempedrinhas.Masninguémqueconhecesseomoradorsesurpreenderiacomisso.Praga também não costumava tomar banho nem trocar de roupa, a não ser em caso de muita
necessidade.Passavao tempotodoemfrenteaocomputadore,mesmoemperíodosmenosintensosdetrabalho,suaaparênciaeradeplorável:estavaacimadopesoeviviadesleixado,apesardatentativadeadotarumcavanhaqueestiloso.Masatéocavanhaquehaviase transformadonummatagalpor faltadecuidados. Praga tinha a altura de um gigante, uma postura desajeitada e quase sempre ofegava ao semovimentar.Emcompensação,sabiafazeralgumascoisasinteressantes.Em frente ao computador, Praga era um virtuose, um hacker que voava sem limites no espaço
cibernéticoequetalveztivesseumúnicocompetidoràaltura—nocaso,umacompetidora—,everseusdedos dançar sobre um teclado era uma alegria para os olhos.Na internet, exibia toda uma leveza eagilidadequelhefaltavamnomundoreal,ondeerapesadoedesastrado.Enquantoumvizinho—talvezosr.Jansson—batianotetoporcausadobarulho,Pragarespondeuamensagemquehaviarecebido:Porra,Wasp,vocêégenial!Deviamfazerumaestátuaemsuahomenagem.Depois se recostou na cadeira comum sorriso satisfeito e tentou recapitular os acontecimentos, ou
aproveitaraquelemomentodetriunfo,antesdepedirtodososdetalhesaWaspesecertificardequeelanãohaviaseesquecidodeapagartodasaspistasdeles.Ninguémpoderiadescobri-los—ninguém!Osdois já tinhamaprontadocomorganizaçõespoderosasnopassado.Masdessavezeradiferente.
Váriosmembrosdasociedadeexclusivaqueosdoisfrequentavam,aHackerRepublic,haviamseopostoà ideia, principalmente Wasp. Se fosse necessário, Wasp compraria briga com qualquer pessoa ouautoridadeimaginável,masnãobrigavaapenaspeloprazerdebrigar.Wasp não gostava de algumas bobagens que os hackers faziam. Não havia se envolvido com
supercomputadores para chamar a atenção. Tinha sempre um objetivo claro emmente e sempre faziaanálisedasconsequências.Comparavaosriscosalongoprazocomanecessidadedesatisfaçãoacurtoprazo,enessascircunstânciasninguémpoderiadizerqueerasensatohackearoscomputadoresdaNSA.Mesmoassim,elaacabouaceitandoaideia,emboraninguémtenhaentendidobemporquê.Talvezestivesseprecisandodealgumestímulo,andasseaborrecidaequisessecriarumpequenocaos
paranãomorrerdetédio.OuentãoestavaemconflitocomaNSA,comoafirmavamalgunsmembrosdogrupo,enessecasoa invasão teriasidoumavingançapessoal.Mashaviaquemnãoacreditassenessateoria e afirmasse que ela estava em busca de informações — isso desde que seu pai, AlexanderZalachenko,tinhasidoassassinadonohospitalSahlgrenskaemGotemburgo.Ofatoéqueninguémsabiaaocerto.Waspviviacercadadesegredos,etodosacabaramconcordando
que o motivo da invasão não tinha grande importância, ou pelo menos era disso que tentavam seconvencer.QuandoWaspsedispunhaaajudar,omelhoreraagradecereaceitarsemfazerperguntasnemse preocupar se no começo ela não demonstrasse entusiasmo nem emoção pelo projeto. No entanto,qualquerquetenhasidoasuarazão,elanãoresistiumaisàideia,oquejátinhasidobomdemais.ComoapoiodeWasp,aschanceserammaiores.Todosnogruposabiammelhordoqueninguémque
nosúltimosanosaNSAhaviacometidoabusosgrosseirosdeautoridade.Atualmente,aagênciaamericanadesegurançagrampeavapraticamentetudo,enãoapenasorganizaçõesterroristasegruposquepudessemoferecer riscosà segurançadopaís,oupessoas,comochefesdeEstado.Milhões,bilhões, trilhõesdeconversas,correspondênciaseatividadesdesenvolvidasnainterneteramvigiadasedepoisarquivadas.A cada dia a NSA penetrava mais fundo na vida dos indivíduos, transformando-se num enorme olhovigilantedomal.VerdadequeninguémdaHackerRepublicsecomportavademododiferentenessaárea.Todos, sem
exceção, jáhaviamexploradoterrenosdigitaisondenãotinhamautorizaçãoparaentrar.Faziapartedaregradojogo.Umhackeréalguémdispostoairalémdasfronteirasdobemedomal,alguémque,porforçadesuaatividade,desafiaregras,ampliaoshorizontesdopróprioconhecimentoenemsemprelevaemcontaasdiferençasentreopúblicoeoparticular.Mesmoassim,nãoerampessoasdesprovidasdemoral.Porexperiênciaprópria, sabiamoquantoo
podercorrompe,sobretudoumpodersemcapacidadedeautocrítica.Tampoucogostavamdaideiadequeospioresemaisinescrupulososatentadoscibernéticosnãoerammaisperpetradosporrebeldessolitáriose forasda lei, e simpororganizaçõescolossaisdeumEstadoque tinhacomoobjetivocontrolar seuscidadãos. Praga, Trinity, Bob the Dog, Flipper, Zod, Cat e toda a turma da Hacker Republic tinharesolvidodarotrocohackeandoaNSAecausandoalgumtipodeprejuízoparaaagênciadesegurançaamericana.Umatarefanemumpoucosimples.Decertaforma,eracomoroubarourodoForteKnox,e,comobons
malucos que eles eram, não se dariam por satisfeitos em simplesmente entrar no sistema. Queriamdominá-lo.Queriamobterostatusdesuperusuário,ouroot,comosedizemLinux,eparaconseguiressa
façanhaprecisariamencontrarfalhasdesegurançaconhecidascomozerodays—primeironaplataformado servidor da NSA, depois na NSANet, a intranet da agência, ambiente onde ocorriam todas asinterceptaçõesfeitaspelaNSAaoredordomundo.Comosempre,ogrupocomeçoucomumpoucodeengenhariasocial.Precisaramencontraronomedos
administradoresdesistemaedosanalistasdeinfraestruturaquepossuíamascomplexassenhasdeacessoàintranet,enãoserianadamauseumcretinoqualquertivessebancadooirresponsávelcomasrotinasdesegurança.Assim,atravésdecanaispróprios,aHackerRepublicobtevequatro,cinco,seisnomes,entreosquaisosdeumsujeitochamadoRichardFuller.Richard Fuller trabalhava noNISIRT— Information Systems Incident Response Team, ouGrupo de
RespostaaIncidentesnoSistemadeInformação—,erasupervisordaintraneteestavasempreembuscadebrechaseinfiltrados.Umgarotodeouro.FormadoemdireitopelaUniversidadeHarvard,republicanoeex-quarterback,eraaverdadeiraencarnaçãodosonhopatrióticoamericano.MasBobtheDogsoube,atravésdeumaantigaamante,queeletambémerabipolarepossivelmenteviciadoemcocaína.Quandoseirritava,RichardFullercometiatodotipodebobagem,porexemplomexeremarquivose
documentossemcolocá-losnumasandbox.Alémdomais,tinhaumaspectobemcuidado,talvezatémeiolustroso, que lembrava mais um homem de finanças como Gordon Gekko do que um agente secreto.Alguém—possivelmenteBobtheDog—chegouasugerirqueWaspfosseaBaltimore,acidadenataldeFuller,transarcomele,paraqueentãopudessemchantageá-lo.Waspmandoutodomundoparaoinferno.Depois ela também descartou a ideia de escrever um documento que parecesse bombástico, com
detalhessobrebrechaseinfiltradosemFortMeade.Odocumentoiriainfectadocomumvírusespião,umtrojandeúltimageraçãocomaltograudeoriginalidadeaserdesenvolvidoporPragaeWasp.Aideiaeradeixar rastros que Fuller mais tarde seguisse. Se tudo desse certo, ele ficaria curioso a ponto denegligenciar a segurança. Não era um plano ruim e, acima de tudo, poderia levá-los ao sistema decomputadoresdaNSAsemqueprecisassemfazerumainvasãoforçada,maisfácilderastrear.MasWaspdissequenãoiaficarsentadaesperandooimbecildoFullerfazerumabesteira.Nãoqueria
dependerdoserrosdosoutros.E,comoeramuitoteimosaeobstinada,ninguémtambémsesurpreendeuquandoderepenteeladecidiuassumiraoperação inteirasozinha.Depoisdeprotestosediscussões,ogrupoacaboucedendo.Oplanosofreuumasériedealterações,Waspanotoucomcuidadoosnomeseasinformaçõespessoaisdosadministradoresdesistemaqueeleshaviamconseguidoatéentãoepediuajudacoma “operação fingerprint”: omapeamentodas plataformasde servidor e de sistemasoperacionais.Feitoisso,WaspfechouaportanacaradaHackerRepublicedomundointeiro.Pragaachouqueelanãotinhadadoouvidosaosconselhosdele,comoasugestãodequenãousasseumcodinomenemtrabalhasseemcasa,masseinstalasseemumhoteldistantesobumaidentidadefalsa,senãooscãesfarejadoresdaNSAiriamconseguirrastreá-lamesmopeloscaminhosmaislabirínticos.MascomoWaspsempreresolviaascoisasdeseujeito,PraganãopôdefazermaisdoqueficaresperandosentadoemSundbyberg,comosnervosemfrangalhos,semteramenorideiadecomoWaspestavasesaindo.Agora tinha certeza de uma coisa: o que ela havia conseguido era um feito grandioso e lendário.
Enquantoatempestadedesabavaláfora,Pragalimpouumpoucodasujeiradamesa,sedebruçousobreotecladoeescreveu:
Meconta!Comovocêestásesentindo?Vazia,Wasprespondeu.Vazia.Eraassimqueelaestavasesentindo.LisbethSalandertinhapassadoumasemanaquasesemdormire
se alimentandomal. Sua cabeça doía, os olhos estavam vermelhos, asmãos tremiam e, mais do quequalqueroutracoisa, ela tinhavontadede jogar todooequipamentonochão.Outro ladodela,porém,estavasatisfeito,emboranãopelas razõesquePragaeosdemaismembrosdaHackerRepublic talvezimaginassem. Lisbeth Salander estava satisfeita por ter feito uma nova descoberta sobre o grupocriminosoqueandavarastreando,eporqueagorahaviaobtidoprovasconcretasdeumaligaçãoqueantesnãopassavadeumasuspeita.Guardoutudoparasiesesurpreendeuaoverqueseuscolegasrealmenteacreditavamqueelahaviahackeadoosistemaapenaspormerocapricho.Elanãoeranenhumaadolescentecomhormôniosàflordapele,nemumaidiotacomnecessidadedese
exibir.Quandosearriscavanessetipodeação,tinhasempreumobjetivoconcretoemmente,mesmoqueohacking,emcasosisolados,tambémfosseparaelaumaferramentadeoutrotipo.Nospioresmomentosdesuainfância,tinhasidotambémumamaneiradefugiredelevarumavidaumpoucomaislivre.Comaajuda dos computadores, ela ultrapassou muros e barreiras que de outra forma teriam permanecidointransponíveis e viveumomentos de liberdade.E com certeza havia tambémumaboamedida dessessentimentosemtudoqueaconteciaagora.Mas,acimadetudo,LisbethSalanderestavaemumacaçadaquehaviacomeçadodesdeoinstanteem
queelaacordaradeumsonhoemqueumamãobatiacommovimentosrítmicoseinsistentescontraumcolchãonaLundagatan.Ninguémpoderiaapostarqueiaserumacaçadafácil.Osadversáriosescondiam-seatrásdecortinasdefumaça,etalvezessetambémfosseumdosmotivosparaqueelaestivesseaindamaisásperaeobstinadanosúltimostempos.Eracomoseumanovaescuridãotivessecaídosobreela,e,anãoserporObinze,seutreinadordeboxecorpulentoeexpansivo,epordoisoutrêsamantesdeambosos sexos, Lisbeth praticamente não via ninguém. Emais do que nunca estava parecendo uma garota-problema. Seu cabelo vivia desgrenhado, seu olhar era sombrio e, pormais que se empenhasse, nãoconseguiasesairmuitobememconversascasuais.Lisbethdiziaabsolutamentetudoquelhevinhaàcabeçaouentãonãodizianada,eoapartamentona
Fiskargatan…Bem,oapartamentoeraumcapítuloàparte.Eraumimóvelenormee,mesmoqueanosjátivessemsepassadodesdequeoadquirira,aindanãoestavamobiliadonempareciaaconchegante.HaviaapenasunspoucosmóveisdaIkeaaquieali,dispostosaoacaso,eelanãotinhasequerumaparelhodesom, talvezpornãoentendermuitodemúsica.Elapercebiamaismúsicanumaequaçãodiferencialdoque numa peça deBeethoven.Mesmo assim, estava podre de rica.O dinheiro que havia roubado docanalha Hans-Erik Wennerström tinha crescido e atingido cinco milhões de coroas. Mas por algummotivoessa fortunanãohaviadeixadonenhumamarcaemsuapersonalidade,anãoser talvezomedoaindamaiorqueaconsciênciade todoessedinheiro lhecausava.Pelomenosela tinha sededicadoacoisasbemmaisemocionantesnosúltimostempos,comoquebrarosdedosdeumestupradorexeretaraintranetdaNSA.
Talvez Lisbeth tivesse mesmo extrapolado os limites. Mas considerava essa invasão um malnecessário,epordiasenoitesafiohaviasedeixadolevareesquecidotodooresto.Agoraolhavacomolhoscansadosequasefechadosparaasduasmesasdetrabalho,organizadasemformadeL.Emcimadelas,estavatodooseuequipamento:umcomputadorcomumeamáquinadetestesquehaviacomprado,naqualinstalaraumacópiadoservidoredosistemaoperacionaldaNSA.O computador de testes foi atacado com um programa de fuzzing desenvolvido especialmente para
encontrar erros e falhas de segurança na plataforma. Depois, Lisbeth completou os testes com umdebugging,umablackboxeataquesbeta.Oresultadoserviudebaseparaacriaçãodeumvírusespião,umRAT,porissonãohaveriaespaçoparanenhumtipodeerro.Lisbethpôdeexaminartodoosistemaevirá-lodoavesso,afinaltinhaumacópiadoservidoremcasa.Setentassevasculharaplataformareal,ostécnicosdaNSAteriamfarejadoalgumacoisaestranhaepostofimnabrincadeira.A partir dessemomento ela pôde fazer o que bem entendeu, dia após dia, sem dormir nem comer
direito,eseporacasosaíadafrentedocomputadorquasesempreeraparacochilarnosofáouesquentarumapizzanomicro-ondas.Norestodotempo,seesfalfavanocomputadorcomoZerodayExploit,umsoftwarequeprocuravafalhasdesegurançadesconhecidasequeatualizariaostatusdelaquandotivesseconseguidoinvadirocomputador,oquenãoeranadamenosqueumaloucura.Lisbethhaviadesenvolvidoumprogramaquenãoapenaslhedavaocontroledetodoosistema,mas
tambémapossibilidadedecontrolaràdistânciatudoqueestivessenaquelaintranet,arespeitodaqualelatinhaconhecimentosapenassuperficiais,oqueeraaindamaisabsurdo.LisbethnãoqueriaapenasinvadiraintranetdaNSA.Queriairmaislonge,entrarnaprópriaNSANet,um
verdadeiro universo à parte que praticamente não tinha ligação com a internet comum. Talvez elaparecesse uma adolescente reprovada em todas as matérias da escola, mas com os códigos-fontedisponíveiseumasériedeassociaçõeslógicas,seucérebronãoparavadefazerclique,clique,clique,ederepenteLisbethhaviacriadoumnovoerequintadoprogramaespião—umvírusavançadíssimocomumaespéciedevidaprópria.Quandosedeuporsatisfeita,veioasegundafasedo trabalho.Entãoelaprecisouparardebrincarnaoficinaepartirparaoataquedeverdade.Assim,Lisbeth instalou em seu celular um chip pré-pago daT-Mobile que ela havia comprado em
Berlimeemseguidaacessouainternetporali.Talvezdevesseestaremoutrapartedomundo,numlugarbemdistante,usandoaidentidadefalsadeIreneNesser.Naquele momento, se os responsáveis pela segurança da NSA fossem realmente dedicados e
cautelosos, talvez a tivessem rastreado até a estação da Telenor, na vizinhança. Mais longe nãochegariam,oupelomenosnãosóatravésderecursostécnicos.Masjáseriapertoobastante,enadabom.Mesmoassim,asvantagensdepermaneceremcasapareciammaiores,eLisbethhaviatomadotodasasprecauções possíveis.Comomuitos outros hackers, estavausandooTor, uma redeque fazia comquetodootráfegogeradopelocomputadordelapassassepormilharesemilharesdeoutrosusuários.MaselasabiaquenemmesmooToreratotalmenteseguronaqueleambiente—aNSAtinhaumprogramachamadoEgoisticalGiraffeparaquebraracriptografiadosistema—,portantoeladedicoumuitotempoareforçarsuasegurançaantesdecomeçaraagir.Lisbeth abriu a plataforma como quem desdobra uma folha de papel.Mesmo assim, não conseguiu
evitar que a excitação a dominasse. Precisava encontrar depressa, o mais depressa possível, os
administradorescujosnomeshaviaconseguido,parainjetaroprogramaespiãoemalgunsarquivosqueelescontrolavam,paraentãocriarumaponteentrearededoservidoreaintranet.Nãofoiumaoperaçãoparticularmentecomplexa.Nãohouvealertasenenhumantivírusdisparou.PorfimLisbethescolheuumadministrador chamado Tom Breckinridge, assumiu a identidade dele na NSANet e… sentiu todos osmúsculosde seucorpo tensos.DiantedosolhosdeLisbeth,daquelesolhoscansadose tresnoitados, amágicaaconteceu.Oprograma espião levava-a cadavezmais fundonaquele segredo, e ela provavelmente sabia para
ondeestavaindo:acaminhodoActiveDirectory,oudequalquerquefosseseuequivalentenosistemadaNSA, para conseguir um status mais alto. Deixaria de ser uma simples visitante indesejada para setransformarnumasuperusuáriadaqueleuniverso fervilhante, e sóentão tentariaobterumpanoramadosistema,oquenãoserianadafácil.Naverdade,seriaimpossível,ealémdomaisnãohaviamuitotempo.Tudoprecisavaserfeitocomrapidez,commuitarapidez,eLisbethseesforçavaparaaprenderausar
osistemadebuscaseentendertodososcódigos,expressõesereferências,todaalinguagemprópriadosistema, e estava prestes a desistir quando encontrou um documento assinalado como “Top Secret—NOFORN”—“Confidencial—DISTRIBUIÇÃOPROIBIDANOEXTERIOR”—quenãopareciaconternadademuitoespecial.Noentanto,juntando-ocomunspoucoselosdecomunicaçãoentreZigmundEckerwald,daSolifon,eaosagentescibernéticosdadivisãodemonitoraçãodetecnologiasestratégicasdaNSA,essematerial era dinamite pura. A essa altura, Lisbeth sorriu e memorizou cada detalhe, mesmo que noinstante seguinte tenha deixado escapar um palavrão ao encontrar mais um documento que pareciarelacionadocomocaso.Odocumentoestavacriptografado,porissonãohaviaoutracoisaafazersenãocopiá-lo,oqueprovavelmentefariadispararumalarmeemFortMeade.Asituaçãotornava-secadavezmaisemergencial,Lisbethpensou.Alémdisso,elaprecisavacomeçar
suas tarefas oficiais, se é que a palavra “oficial” podia ser usada nesse contexto.De qualquermodo,haviaprometidoaPragaeaosdemaisintegrantesdaHackerRepublicqueabaixariaascalçasdaNSAedariaum jeitode acabar comumpoucodaquela arrogância, entãocomeçoua escolher comquem iriaestabelecercontato.Quemreceberiaamensagemdela?O escolhido foi EdwinNeedham, Ed theNed. Era quase impossível falar de segurança de TI sem
mencionar esse nome, e quando Lisbeth se informou sobre ele na intranet, não teve como evitar umsentimentode respeito.Ed theNederaumastro.Elaohaviaderrotadonaquelabatalhade intelectos,mas,mesmoassim,hesitouantesderevelarsuapresençanosistema.Oataqueproduziriaumverdadeirocaos.MascomocaoserajustamenteoqueLisbethdesejava,ela
partiu para o ataque. Não fazia amenor ideia de que horas eram. Podia ser noite ou dia, outono ouprimavera.Demaneiravaga,nos recônditosde suaconsciência,Lisbethpercebiaquea tempestade láforatinhaadquiridomaisforça,exatamentecomoseoclimaestivessesincronizadocomasuainvestida,enquantonadistanteMaryland—nãomuitolongedofamosocruzamentodaBaltimoreParkwaycomaMarylandRoute32—EdtheNedcomeçavaaescreverume-mail.Elenãoconseguiuirmuitolonge,porquenoinstanteseguinteLisbethassumiuocontroledosistemae
deucontinuidadeàfrasequeEdhaviacomeçado:Quemespionaapopulaçãoacabasendoespionadopelapopulação.Essaéumalógicafundamentaldademocracia,eporuminstanteasfrasespareceramacertarnamosca, comoumverdadeirogolpedegênio.Ela sentiuodoce sabordavingança, edepois
levouEdtheNedparaumpasseiopelosistema.Juntos,dançaramedeslizaramporummundocintilantepovoadoportudoquedeviasemanterocultoaqualquerpreço.Era sem dúvida uma experiência vertiginosa, mesmo assim… mesmo assim… Foi apenas quando
Lisbethsedesconectoueoslogsforamautomaticamentedeletadosqueafichacaiu.Foicomogozarcomo parceiro errado, e as frases que momentos antes tinham parecido precisas e contundentes soaraminfantis e estúpidas. De repente Lisbeth sentiu vontade de encher a cara. Com passos cansados ecambaleantes,foiatéacozinhaepegouumagarrafadeTullamoreDewemaisduasoutrêscervejasparaenxaguar a boca. Em seguida, sentou-se em frente aos computadores e começou a beber. Não paracomemorar.Não havia nenhuma sensação de vitória.Eramais uma…o quê, afinal?Talvezmais umasensaçãodemenosprezo.ElacontinuoubebendoenquantoatempestadecaíaláforaeosgritosdesaudaçãodaHackerRepublic
começavamachegar.MastudoaquilonãodiziamaisrespeitoaLisbeth.Elamalseaguentavaempée,comummovimentoamploerápido,varreucomamãoamesatodaeemseguidaolhoucomindiferençaparaasgarrafaseoscinzeirosespalhadospelochão.DepoispensouemMikaelBlomkvist.Comcerteza erao álcool.Blomkvist costumava surgir emseuspensamentosquandoestavabêbada,
comoosamantesdeoutrostemposcostumamsurgirduranteumporre,equasesemsedarcontadoqueestavafazendo,Lisbethhackeouocomputadordele,cujasdefesasnãochegavamnemaospésdasdaNSA.Havia algum tempo Lisbeth tinha um atalho para o computador dele, e num primeiro momento seperguntouoqueelairiafazerlá.Afinal,estavapoucoselixandoparaBlomkvist,nãoestava?Elepertenciaaopassado,eraapenasum
idiotacharmosoporquemelahaviaseapaixonado,enãotinhaamenorintençãodeincorrernomesmoerro de novo. Não,melhor se desconectar e passar umas semanas sem nem aomenos olhar para umcomputador.Mesmoassim,LisbethcontinuounoservidordeBlomkvist—eno instanteseguinte ficouradiante. Super-Blomkvist criara uma pasta chamada Lisbeth Salander, e nesse documento havia umapergunta:OquedevemospensarsobreainteligênciaartificialdeFransBalder?Entãoelasorriuumpouco,apesardetudo,eempartegraçasaFransBalder.Balder era o tipo de nerd que atraía Lisbeth— afundado em códigos-fonte, operações quânticas e
possibilidadeslógicas.MasacimadetudoLisbethsorriuporqueMikaelBlomkvisttinhamaisumavezacabado nomesmo lugar que ela, e mesmo que algumas vezes ela tivesse pensado em simplesmentefecharoprogramaeirparaacama,respondeu:AinteligênciadeBaldernãotemnadadeartificial.Porfalarnisso,comovaiasua?E,Blomkvist,oquevaiacontecersecriarmosumamáquinamaisinteligentedoquenós?DepoisLisbethfoiparaumdosquartoseseatirounacamaderoupaetudo.
7.20DENOVEMBRO
Maisalgumacoisa tinhaacontecidonaredação—ealgumacoisaquenãoeranadaboa.MasErikanãoquiscontarosdetalhesportelefone.Insistiuemiràcasadele.Mikaeltentoudissuadi-la:—Vocêvaicongelaressasuabundalindanestefrio!Erikanãodeuamínima,esenãofossepelotomdevozdela,Mikaelficaria lisonjeadocomaquela
insistência.Depoisquefoiemboradaredação,tevevontadedefalarcomErikaetalvezdelevá-laparaoquartoedespi-la.Masalgo lhediziaqueessaparteestaria foradecogitaçãonaquelemomento.Erikapareciatranstornadaehaviabalbuciadoumpedidodedesculpasqueserviuapenasparadeixá-loaindamaispreocupado.—Voupegarumtáxiagora—eladisse.Mesmoassim,comoErikademorava,na faltadoque fazerMikael foiatéobanheiroe seolhouno
espelho.Suaaparênciajátinhavistodiasmelhores.Ocabeloestavadesgrenhadoenãorecebiaumcortefazia tempo, o rostomarcado por olheiras bastante visíveis. Tudo culpa deElizabethGeorge.Mikaelpraguejouemvozalta,saiudobanheiroedeumaisumaorganizadanoapartamento.Erikanãoiapoderreclamardabagunça.Mesmoquefizessemuitotempoqueosdoisseconheciame
queavidadecadaumestivesseinextricavelmenteligadaàdooutro,Mikaelsofriadecertocomplexodeorganização.Eleeraofilhojovem,solteiroetrabalhador;Erika,umamulhercasadadeclassealtaquemoravanumacasaderevistadedecoraçãoemSaltsjöbadene, independentementedoqueacontecesse,nãofariamalseolugarparecessearrumado.Mikaelencheuamáquinadelavar-louça,limpouobalcãodacozinhaelevouolixoparafora.Conseguiu até passar aspirador de pó na sala, regar as plantas da janela e organizar um pouco o
revisteiroeaestantede livrosantesque,enfim,ouvissebatidasnaporta.Batidas,campainha, tudoaomesmo tempo. Uma pessoa impaciente queria entrar rápido, e assim que abriu a porta Mikael seenterneceu.Erikaestavacongelando.Ela se livroudeuma folhadechoupoquehavia seprendidoà sua roupa.Seucongelamentonãose
devia apenas ao tempo implacável.Erika também tinha umaparcela de culpa, pois não estava sequerusandoumgorro.Seupenteadobonitododiaanteriorforatotalmentedesfeitopelasrajadasdeventoenabochechadireitahaviaumamarcaquepareciaumarranhão.—Ricky!—exclamouMikael.—Oqueaconteceucomvocê?—Minhabundalindacongelou.Nãoconseguiencontrarumtáxi.—Eoqueéissonasuabochecha?
—Escorreguei.Achoqueumastrêsvezes.Mikaelolhouparaabotaitalianamarrom-avermelhadadesaltoaltodela.—Vocêescolheuumcalçadoperfeitoparasairnumdiacomohoje.—Absolutamenteperfeito.Semfalarqueontemresolvidispensarameia-calçadelã.Coisadegênio!—Entre,deixequeeuaqueçavocê.ErikaseentregouaosbraçosdeMikaelecomeçouatremeraindamaisquandoeleaenvolveu.—Desculpe—eladissemaisumavez.—Peloquê?—Portudo.PelaSerner.Eufuiumaidiota.—Nãoexagere,Ricky.Mikael tirouosflocosdenevedocabeloedatestadeErikaeolhoudiscretamenteparaaferidana
bochecha.—Euvoutecontartudo—eladisse.—Masprimeiroeuvoutirarsuaroupaeprepararumbanhoquenteparavocê.Querumataçadevinho
brancoparaacompanhar?ErikaaceitouabebidaepermaneceunabanheiratemposuficienteparaMikaelencherataçamaisduas
ou três vezes. Ele ficou sentado num banquinho, ouvindo a história, e apesar de todas as notíciasdesfavoráveisaconversateveumtomconciliatório,comoseosdoistivessemporfimderrubadoomuroquehaviamerguidoentresinosúltimostempos.—Euseiquedesdeoiníciovocêmeachouumaidiota—disseErika.—Nãoadiantanegar.Eute
conheçomuitobem.Masvocêprecisa entenderque eu, oChrister e aMonikanãovimosoutra saída.Tínhamos acabado de contratar oEmil e a Sofie e estávamos orgulhosos deles.Não havia repórteresmaisrespeitados,concorda?Ganhamosmuitoprestígiocomavindadeles.Essascontrataçõesmostraramqueestávamosnocaminhocerto,elogovoltaramanoselogiarnoResuméenoDagensMedia.Foicomonosvelhostempos,eeudisseàSofieeaoEmilqueelesestavamtotalmentesegurosnaredação.Faleique a economia do país ia bem.Que podíamos contar como apoio do grupoVanger. E que teríamosorçamentoparaasreportagensinvestigativasmaisincríveisqueelespodiamimaginar.Comovocêvê,eumesmaacrediteinissotudo.Atéque…—Atéqueocéucomeçouadesabarsobreasuacabeça.—Poisé.Enãofoisóacrisedosjornaisimpressoseodesaparecimentodosanunciantes.Também
teve toda aquela história como grupoVanger.Não sei se você realmente entendeu o que representouaqueleescândalo.ÀsvezespensoquefoiquasecomoumgolpedeEstado.Todososreacionáriosetodasasreacionáriasdafamília,quevocêconhecemuitobem,todososracistaseconservadoressejuntarameapunhalaramHarrietpelascostas.Nuncavoumeesquecerdadeclaraçãodela.Eumesintoatropelada,eladisse.Esmagada.Oempenhodelaem reformularemodernizarogrupo irritoudemaisosoutros, etambémadecisãodelevarDavidGoldmanparaadiretoria,ofilhodorabinoViktorGoldman.Masvocêsabequeagentenãofaziapartedessecenário:oAndreitinhaacabadodeescreverareportagemsobreosmendigosdeEstocolmo,naopiniãodetodaaredaçãoamelhorcoisaqueelejátinhaescrito,citadaatéportodososgrandesveículosdecomunicação,inclusivenoexterior.Mesmoassim,osVanger…—Tacharamareportagemdelixoesquerdista.
—Pior,Mikael.Chamaramde“propagandaafavordevagabundossemdignidadesequerdearrumarumemprego”.—Mesmo?—Disseramalgodo tipo,mas achoque a reportagemnão foi o principal.Oque eles queriamera
acharumpretexto,umbodeexpiatórioquejustificassearetiradadoapoioquevinhamnosdando.ElesqueriampôrumpontofinalemtudoqueHenrikeHarriethaviamdefendido.—Bandodecretinos.—Eumelembromuitobemdaquelaépoca.Foicomoseochãotivesseseabertosobosmeuspés,e
claro…euseiquedeviaterenvolvidovocêumpoucomais.Masacheiquetodomundoiriaganharseeudeixassevocêconcentradoapenasnassuashistórias.—Emesmoassimeunãoapresenteinadaqueprestasse.— Você tentou, Mikael. Tentou mesmo. O que eu queria dizer é que foi bem nessa hora, quando
parecíamosterchegadoaofundodopoço,queoOveLevinmetelefonou.—Alguémdevetercontadoaeleoqueestavaacontecendo.—Comcerteza.Enemprecisotedizercomonoiníciofiqueirelutante.JustamenteaSerner,otipode
empresaqueeditavatabloidesdapiorqualidade.MasoOvecomeçouadespejartodaaverborragiadeleemcimademimedepoismeconvidouparaconheceracasanovadeleemCannes.—Comoé?—Desculpe,eusei.Eutambémnãocomenteiissocomvocê.Achoqueeuestavacomvergonha.De
qualquerforma,decidiiraofestivaldecinemaparaescreverumperfildaqueladiretorairaniana,sabe?AquefoiperseguidaporterfeitoumdocumentáriosobreSara,ameninadedezenoveanosapedrejada.AcheiquenãohaviaproblemaemaceitarapropostadaSernerdecobrirosnossoscustosdeviagem.Eue o Ove conversamos a noite inteira, e o meu ceticismo só aumentou. Ele contou vantagem o tempointeiro,falavacomoumvendedor.Masnofimacabeiescutandotudoaquilo,esabeporquê?—Porqueeleeraincrívelnacama.—Ha!Não.Porcausadarelaçãoqueeletinhacomvocê.—Elequeriairparaacamacomigo?—Eletemumaadmiraçãoenormeporvocê.—Quebobagem.—Não,Mikael,vocêestáenganado.OOveadorapoder,dinheiroeacasaquetememCannes.Masse
rói por dentro porque sabe que não é considerado um cara incrível como você. Quando o assunto écredibilidade,oOveépobreevocêummagnata.Nofundoelequeriasercomovocê.Percebinahora,masdevia tervistoqueessetipodeinvejapodeserperigoso.Todaaperseguiçãocontravocêfoiporcausadisso,vocêdevesaber.Asuaobstinaçãofazaspessoassesentiremmal.Asuameraexistênciafaztodosselembraremdecomosevenderambarato,equantomaisvocêéexaltado,pioressaspessoassesentem.Então,sóexisteumaformadesedefender:arrastarvocêparaalama.Sevocêcair,essagentesesenteumpoucomelhor.Essascampanhasdedifamaçãoservemparadevolverumpoucodedignidadeaosseusadversários,oupelomenoséoqueelesdizemasimesmos.—Obrigado,Erika,masestoumelixandopraessahistóriadeperseguição.—Claro,eusei.Esperoqueestejamesmo.OqueeupercebinaépocafoiqueoOvequeriafazerparte
dissodeverdade,sesentirdanossaequipe.Queriaumpoucodanossaboareputação,eacheiqueesseincentivotalvezfuncionasse.SeOvepretendiasertãodescoladocomovocê,seriadevastadorparaeletransformaraMillenniumemmaisumprodutocomercialqualquerdaSerner.Seeleficasseconhecidocomo o sujeito que destruiu uma das publicações mais lendárias da história sueca, o que ainda lherestassedecredibilidadeiriapeloralo.PorissoacrediteiquandoeledissequeogrupoSernerprecisavadeumapublicaçãodeprestígio,deumálibi,porassimdizer,etambémquandogarantiuquenosajudariaa continuar fazendo o tipo de jornalismo em que acreditamos. Com certeza ele também sonhava emparticipardaredação,masacheiqueissonãopassavadevaidadedele,devontadedeseexibirumpoucoecontaraosamigosqueeraporta-vozdarevista,coisadotipo.NuncaimagineiqueeleiasemeternocoraçãodaMillennium.—Éoqueeleestáfazendonesteinstante.—Infelizmente.—Enessecasooqueacontececomtodaasuasofisticadateoriapsicológica?—Eu subestimei a força do oportunismo. Como você deve ter notado, tanto Ove quanto a Serner
estavam se comportando de maneira exemplar conosco antes da perseguição a você começar. Masdepois…—DepoisoOveseaproveitoudoqueestavaacontecendo.—Não,não,foioutrapessoa.Alguémquequeriapegá-lo.Sódepoisentendicomonãodevetersido
nadafácilparaeleconvencerosoutrosanoscomprar.Comovocêsabe,todosdaSernersofremdeumcertocomplexodeinferioridadejornalística.Sãonamaioriahomensdenegóciosquedetestamconversassobreadefesadecausasimportantes,essetipodecoisa.Elesseirritaramcomoquechamaramde“falsoidealismo”doOve,equandoaperseguiçãoavocêcomeçouviramachanceperfeitaparacobraremumaposiçãodele.—Caramba.—Vocênemimagina.Primeirotudocorreubem.Fizeramapenasalgumasexigênciasdeadaptaçãoao
mercado,ecomovocêsabeeumesmaconcordeiquehaviaideiasboasnapropostadeles.Eutambémjátinhapensadobastanteemcomoalcançar leitoresmais jovens.Parasersincera,acheiqueeueoOvetínhamostidoumaótimaconversasobreesseassunto,porissonãomepreocupeicomaapresentaçãodehoje.—Eupercebi.—Masdepoisveiooescândalo.—Queescândalo?—OquecomeçoudepoisquevocêpeitoualiderançadoOve.—Eunãopeiteinada,Erika.Simplesmentefuiembora.Aindadeitadanabanheira,Erikatomouumgoledevinhoeemseguidaabriuumsorrisomelancólico.—QuandovocêvaientenderquevocêéMikaelBlomkvist?—elaperguntou.—Acheiquejátinhacomeçadoamedarconta.— Pois não parece, senão você saberia que quando Mikael Blomkvist sai no meio de uma
apresentaçãosobrearevistadele,issosetransformanumacontecimento,querMikaelBlomkvistqueira,quernão.
—Entãopeçodesculpaspelaminhaprovocação.—Não,nãoestoutecriticando.Pelocontrário.Euéquedevopedirdesculpas,comovocêestávendo.
Dequalquerforma,areuniãoteriaacabadoemconfusãomesmoquevocênãotivessesaído.—Oqueaconteceu?—Depoisquevocêfoiembora,todomundoficousemgraça,eoOve,comaautoestimamaisabalada
doquenunca,desistiudecontinuaraapresentação.Nãoadianta, eledisse.Depois saiupara telefonarpara o escritório central e contar o que tinha acontecido, e eu não vou me surpreender se acabardescobrindoqueeledescreveuasituaçãodeformabemmaisdramática.Ainvejaqueeletemdevocêdeve ter se transformado agora num sentimento aindamais egoísta emal-intencionado.Depois de umtempoelevoltoudizendoqueaSernerestavadispostaaapostargrandenaMillenniumeusartodososcanaisdisponíveisparadivulgararevista.—Eessanãofoiumaboanotícia.—Não,eeusoubequenãoiaserantesmesmoqueoOvecomeçasseafalar.Deuparavernorosto
dele.Eraumaexpressãocomumaaurademedoetriunfo,enoinícioelenemsoubedireitooquedizer.Começouafalarummontedecoisassemsentido,dissequeogrupoSernergostariadeterumcontrolemaiordotrabalhoqueagentedesenvolve,quegostariadepromoverarevistacomopúblicomaisjovemedepublicarmaisreportagenssobrecelebridades.Depois…Erikafechouosolhos,passouasmãospelocabeloúmidoebebeuoúltimogoledevinho.—Depoisoquê?—Eledissequequeriavocêforadaredação.—Comoé?—ClaroquenemoOvenemaSernerpodemdizerissocomtodasasletras,muitomenosdeixarque
apareçammanchetesdo tipo“SernermandaBlomkvistparaa rua”.Amensagemfoipassadade formamuitoelegante.OOvedissequequeriadarmaisliberdadeparavocêseconcentrarnoquesabefazerdemelhor: escrever reportagens. Então falou de umposto estratégico emLondres num cargo de redator-chefe.—EmLondres?—OOvedissequeaSuéciaépequenademaisparaumjornalistadoseucalibre,masvocêsabemuito
bemoqueelequisdizercomisso.—Elesachamquenãovãoconseguirimplantarasmudançasquequeremseeuestivernaredação?—Émaisoumenosisso.Poroutrolado,achoqueninguémsesurpreendeuquandoeu,oChristerea
Monikadissemosquenão,dejeitonenhum.ParanãofalarnareaçãodoAndrei.—Oqueelefez?—Ficoconstrangidasódefalar.OAndreiselevantouedissequeaquiloeraacoisamaisvergonhosa
queelejátinhaouvidonavida.Dissequevocêeraumexemplodoquehaviademelhornonossopaís,umorgulhoparaademocraciaeojornalismo,equetodomundodogrupoSernerdeviaeraesconderorostodevergonha.Dissequevocêéumgrandehomem.—Resolveuirpracima,então.—Eleéumbomgaroto.—Comcerteza.EoqueopessoaldaSernerfezdepois?
—Ovejáesperavaessetipodereação.Dissequesequisermos,podemoscomprarapartedeles.Oúnicoporém…—Équeopreçosubiu—Mikaelcompletou.—Exato.Eleexplicouque,deacordocomumaavaliaçãopreliminar, apartedaSernernomínimo
dobroudepreçoporcausadamais-valiaedootimismoqueaparticipaçãodogrupocriou.—Otimismo?Elesenlouqueceram?—Pelo contrário: são é espertosdemais, e estãodispostos anospassaruma rasteira.Tambémme
pergunto se não estão querendomatar dois coelhos comuma cajadada só.Ganhar umbomdinheiro eaindaselivrardeumconcorrenteempotencial,porqueentãoestaríamosquebrados.—Oquevamosfazer?—Oquefazemosdemelhor,Mikael:lutar.Vouusardinheirodomeubolsoparacompraranossaparte
daSernerdenovoelutarparacontinuarmossendoumdosmelhoresperiódicosdetodaaEuropa.—Aideiaéexcelente,Erika,mas…edepois?Asnossasfinançasvãocontinuarruinsevocênãovai
poderfazernada.—Eusei,masvaidarcerto.Jáenfrentamossituaçõesdifíceisnopassado.Podemoszerarosnossos
saláriosporumtempo,omeueoseu.Nãoachaquedá?—Erika,tudoacabaumdia.—Nãofaleassim!Vocênãopodefalarassimnunca!—Nemquesejaaverdade?—Nessecaso,menosainda.—Tudobem,então.—Você tem alguma outra carta namanga?—Erika perguntou.—Alguma coisa que pudesse cair
comoumabomba?Mikael cobriu o rosto com as mãos e pensou no comentário de Pernilla, que havia dito que,
diferentementedopai,queria“escreverdeverdade”—emboraMikaelnãoconseguisseimaginaroquenãoera“deverdade”notipodejornalismoqueelefazia.—Achoquenão—elerespondeu.Erikabateuamãonasuperfíciedaágua,espirrandolíquidonasmeiasdeMikael.—Vocêtemqueteralgumacoisa!Ninguémnopaísrecebetantasdenúnciasquantovocê.— A maioria não passa de um monte de bobagem— respondeu Mikael. —Mas talvez… Estou
investigandoumahistória.Erikasesentounabanheira.—Oquê?—Ah,nadaainda.Estouapenassonhando.—Temosmesmoquesonharnumasituaçãocomoesta.—Eusei,masaindanãoénada.Apenasummontedefumaçaenenhumaprova.—Masapesardissovocêacreditanahistória,nãoé?—Podeser…masoquemelevaaacreditaréumdetalhequenãotemnadaavercomahistóriaemsi.—Oqueé?—Digamosqueaminhaantigaescudeiratambémestánahistória.
—Ah,jáentendi.Éela?—Aprópria.—Entãoparecepromissor,hein?—disseErika,saindonuaelindadabanheira.
8.NOITEDE20DENOVEMBRO
Augustestavaajoelhadonopisoxadrezdoquarto,diantedeumalamparinadequeroseneemcimadeumabandejaazul,ondehaviatambémduasmaçãsverdeseumalaranjaqueopaihaviapreparado.Masnadaaconteceu.Augustsimplesmentecontinuavacomseuolharvaziofixonatempestadedoladodeforadajanela,eFransseperguntouseteriasidomáideiaproporotemanatureza-morta.Bastavaseufilhovislumbrarumacenaparaqueaimagemsefixasseparasempreemsuamente.Nesse
caso,porqueopainãopoderiaescolherotemadodesenho?EraprovávelqueAugusttivesseinúmerasimagensnacabeça,etalvezfrutaseumabandejafossemacomposiçãomaispatéticaeaborrecidaqueelepudesseconceber.TalvezAugustseinteressasseporcoisastotalmentediferentes,emaisumavezFransse perguntou se o menino teria alguma relação especial com aquele semáforo. O desenho não eraresultadodeumasimplesobservação.Pelocontrário:aluzvermelhabrilhavacomoumolhomalignoeofuscante,etalvez—comosaberaocerto?—Augusttivessesesentidoameaçadopelohomemnafaixadepedestres.Fransolhouparaofilhopelacentésimaveznaqueledia.AntespensavaemAugustapenascomoum
meninoestranhoeinexplicável.Agora,maisumavezseperguntavaseeleeofilhonãoseriamnofundomuito parecidos. Na época de Frans, osmédicos não gostavammuito de diagnósticos. Simplesmentemandavamaspessoasemboracomapechadeesquisitaseestúpidas.Elemesmotinhapassadoainfânciasesentindodiferentedasoutraspessoas,sériodemaisesemexpressão,enenhumdeseuscolegaspareciaachar aquilo legal. Por outro lado, ele também não achava os colegas especialmente legais, então serefugiavanosnúmerosenasequações,esófalavaonecessário.Aindaassim,FransnãopoderiaserdefinidocomoautistadamesmaformaqueAugust.Entretanto,com
certezahojeeleseriadiagnosticadocomoportadordesíndromedeAsperger,enãovinhaaocasoseissoseria bom ou ruim. O mais importante era que tanto ele como Hanna tinham acreditado que umdiagnóstico precoce da condição de August poderia ajudá-los. Apesar disso, pouca coisa haviaacontecido,esomentequandoo filho já tinhaoitoanosFranspercebeuqueomeninopossuíaumdomespacialematemáticoimpressionante.ComoHannaeLassenãoperceberamnada?Embora Lasse fosse um merda, Hanna no fundo era uma pessoa boa e receptiva. Frans jamais
esqueceriaoprimeiroencontrodeles,numanoitenaAcademiaRealdeEngenharia.Elehaviarecebidoumprêmioaoqualnãodavanenhumaimportânciaedepoispassoutodoointervalodojantarentediado,desejandovoltarparacasaeparaafrentedocomputador.Derepenteumamulherlinda,quelhepareceraumpoucofamiliar—oconhecimentodeFransdomundodascelebridadeseraextremamentelimitado—,
aproximou-seepuxouassunto.MasFransainda seviacomoonerddaTappströmsskolanque recebiaapenasolhareszombeteirosdasgarotas.FransnãoconseguiaentenderoqueumamulhercomoHannatinhavistonele,enaépoca—elenão
demorouadescobrir—Hannaestavanoaugedesuacarreira.Maselaoseduziuenaquelanoitefezamorcomelecomonuncamulhernenhumahaviafeito.Emseguida,veioamelhorépocadavidadeFrans,atéque…oscódigosbináriosvenceramoamor.PrimeiroFransdestruiuseucasamentocomexcessodetrabalho,depoistudopiorou.LasseWestman
assumiu o posto, Hanna se apagou — August também, possivelmente — e Frans se enfureceu, pormotivos um tanto compreensíveis.Mas ele também sabia que parte da culpa era sua. Tinha resolvidopagarparanão terquecuidardofilho,e talvezoquehaviamditono julgamentodaguardadomeninofosse verdade—Frans optoupelo sonhodavida artificial emdetrimentodo filho.Ele tinha sidoumtremendoidiota.FranspegouonotebookebuscounoGooglemaisinformaçõessobreacondiçãodesavant. Jáhavia
encomendadouma série de livros, entre os quais umadasmaiores referências sobre o tema, Ilhas degênios,doprofessorDaroldA.Treffert.Comosempre, tinha resolvidoaprender tudosobreoassunto.NenhumpsicólogoenenhumpedagogoiriamdizeraopaideAugustcomoeledeviatratá-lo.Iriaentenderoproblemadofilhomelhordoquetodoseles,portantocontinuoulendo—agoraumahistóriasobreumameninaautistachamadaNadia.AvidadeNadiaestavanarradanolivrodeLornaSelfeintituladoNadia:Umcasodeextraordinária
habilidadeparaodesenhoemumacriançaautistae tambémnolivrodeOliverSacksOhomemqueconfundiusuamulhercomumchapéu.Fransficoufascinadocomasleituras.Eraumahistóriacuriosae,decertamaneira,umcasosemelhanteaodeseufilho.ComoAugust,Nadiapareceuumacriançasaudávelaonascer,eapenascomopassardotemposeuspaisperceberamquehaviaalgumacoisaerrada.Nadianão falava.Nãoolhavaparao rostodaspessoas.Nãogostavadenenhuma formade contato
físicoenãoreagiaaosorrisonemàsaçõesdamãe.Passavaamaiorpartedotempoemsilêncio,afastadadas pessoas, e cortava folhas de papel obsessivamente em tiras finíssimas.Com seis anos, ainda nãotinhaditoumapalavra.Mesmo assim,Nadia desenhava comoDaVinci. Com três anos começou a desenhar cavalos e, ao
contráriodasoutrascrianças,nãocomeçavacomaformadeles,comocontorno,mascomumpequenodetalhe,ocasco,abotadocavaleiro,acauda.Eomais impressionante:osdesenhoseramfeitoscomenormerapidez.Comumavelocidade impressionante,Nadia juntavaaspartes,umaaqui,outraali,atéquetudoseencontrassecomperfeiçãoabsoluta—umcavalogalopandoousimplesmentecaminhando.Combaseemsuaexperiêncianaadolescência,Franssabiaquenãohavianadamaisdifícildedesenhardoqueumanimalemmovimento.Pormaisquesetente,oresultadoacabasendopouconaturaloudandoaimpressãoderigidez.Éprecisoserummestreparaconseguirrepresentaralevezadeumsalto.EcomtrêsanosNadiaeramestrenisso.Oscavalosdameninaeramperfeitos,desenhadoscomtraçosleves,eeraevidentequenadadaquilose
deviaaanosdeprática.Todoaquelevirtuosismopareciasaídodeumaforçarepresadaqueenfimhaviaencontrado uma via de escape, e a história fascinou seus contemporâneos. Como era possível? OspesquisadoresaustralianosAllanSnydereJohnMitchellfizeramumestudodosdesenhosdeNadiaeem
1999apresentaramumateoriaqueaospoucosganhouumaaceitaçãoquaseuniversal—aideiadequetodos temosumacapacidade latenteparaesse tipodevirtuosismo,queestábloqueadanamaioriadaspessoas.Quandovemosumaboladefutebolououtroobjetoqualquer,nãoentendemosde imediatoqueeleé
tridimensional. Pelo contrário: numa fração de segundo, o cérebro percebe detalhes, sombras que seprojetam e pequenas diferenças de profundidade e nuance, e é com base nessas informações queclassificamos sua forma.Não temos consciênciadenadadisso,maspara entenderque estamosvendoumabolaenãoummerocírculoprecisamosfazerumaanálisedaspartesindividuais.Oprópriocérebrocriaaformafinale,quandoacompleta,jánãovemososdetalhesquenumprimeiro
momentohavíamosnotado.Aflorestaescondeasárvores,porassimdizer.MasoquechamouaatençãodeMitchelleSnyderfoique,seconseguíssemosrecuperaraimagemoriginalcaptadapornossocérebro,seria possível ver omundo demodo radicalmente diferente, e talvez pudéssemos recriá-lo commaisfacilidade,exatamentecomoNadiahaviafeitosemnenhumtreinamento.A ideia,emoutraspalavras,eraqueNadia tinhaacessoà imagemoriginaldomundo—àmatéria-
primadocérebro.Podiaverumainfinidadedesombrasedetalhesantesqueelesfossemtrabalhados,porissosemprecomeçavaporumpontoespecífico,comoocasco,ofocinho,enãocomocontornodafigura,poisessa formacompleta,damaneiracomoaentendemos,aindanãoestavapronta.MesmoqueFransBaldervisse certosproblemasnessa explicação, oupelomenos tivesseuma série dequestionamentoscríticos,eraumateoriaatraente.Decertomodo,Baldersemprehaviabuscadoessaobservaçãooriginalnaspesquisasquedesenvolvia,
cujaperspectivaeranãofazerpressuposiçõesdenenhumtipo,masapenasanalisarascoisasnosmínimosdetalhes.Estava cada vezmais obcecado por esse assunto e lia a respeito comum fascínio cada vezmaioreporvezesestremecia.Chegavaapraguejaremvozaltaeolhavaparaofilhocomumapontadeangústia.Masoqueoabalavanãoeramasobservaçõescientíficas,esimadescriçãodoprimeiroanodeNadianaescola.Nadia tinha sido colocada numa turma especial de crianças autistas. Ali o foco do ensino era o
desenvolvimentodafala,eameninachegouafazerprogressos.Aospoucosaspalavrassurgiram.Masopreço foi alto. Assim que começou a falar, sua genialidade artística desapareceu, porque, segundo aautora Lorna Selfe, uma linguagem foi substituída por outra. Antes um prodígio artístico, Nadia setransformounumameninaautistacomlimitaçõesextremasque,emboraconseguissefalarumpouco,haviaperdidoo talentoque tanto impressionaraomundo.Teriavalidoapena?Paraquepudessedizerumaspoucasfrases?Não,Franstevevontadedegritar,talvezporqueavidainteirativessesedispostoasacrificarqualquer
coisaparasetornarumgênioemsuaárea.Melhorserincapazdepronunciarumapalavrasensatanumaconversa do que sermedíocre. Qualquer coisamenos amediocridade! Esse tinha sido o objetivo deBalderaolongodavida,mesmoassim…Elesabiamuitobemquenocasodeseufilhoessesprincípioselitistasnãoseriamumbomcaminhoaseguir.Talvezdesenhosincríveisnãofossemnadacomparadosàcapacidadedesaberpedirumcopodeleiteoudetrocaralgumaspalavrascomumamigo,oumesmocomopai.Quemeraeleparadecidir?Mesmoassim,Fransserecusavaaenfrentaressadecisão.Nãosuportavaaideiadedeixardeladoo
acontecimento mais incrível de toda a vida do filho. Não, não… simplesmente isso estava fora decogitação.Nenhumpaideviaserobrigadoaescolherentreasopções“gênio”e“nãogênio”.Ninguémtinhacomosaberdeantemãooqueseriamelhorparaacriança.QuantomaisFranspensavanoassunto,maisabsurdotudoaquilolheparecia,ederepentepercebeu
quenãoacreditavaemmaisnada,ouquetalveznãoquisesseacreditar.Afinal,Nadiaconstituíaumúnicocaso,oqueéinsuficienteparaestabelecerumprincípiocientífico.Precisavaseinformarmelhor,portantocontinuoupesquisandonainternet.Derepenteotelefonetocou.
Aliás,elehaviatocadoumbocadonasúltimashoras.Primeirotinhasidoumnúmeronãoidentificadoedepois,parapiorarascoisas,Linus,seuantigoassistentequehaviacomplicadoasuavidaeemquemelenemsequerconfiava.Ebemnahoraemqueoqueelemenostinhavontadedefazereraconversar.TudoquequeriaeracontinuarpesquisandosobreocasodeNadia.Mesmoassimatendeu—talvezpornervosismo.DestavezeraGabriellaGrane,aencantadoraanalista
daSäpo,oqueolevouaabrirumsorrisodiscreto.LogodepoisdeFarahSharif,Gabriellaocupavaumhonrososegundolugar.Tinhaolhoslindoseumraciocínioveloz.Franssentiaumaquedapormulheresrápidas.—Gabriella—eledisse.—Euadoraria falarcomvocê,mas infelizmenteestousemtempo.Ando
ocupadocomumacoisamuitoimportante.—Tenhocertezadequevocêvaipoderarranjarumtempinhoparaesteassunto—rebateuGabriella
numtomdevozestranhamenteautoritário.—Suavidaestácorrendorisco.—Ora,quebobagem!Eujádisseavocê…talvezelesmeprocessem,masnadaalémdisso.— Frans, nós recebemos novas informações de uma fonte altamente confiável. Existe uma ameaça
concreta.—Comoassim?—Fransperguntou,meiodistraído.Comotelefonepresoentreoombroeaorelha,elecontinuoupesquisandosobreotalentoperdidode
Nadia.—Édifícilfazerumaavaliaçãoprecisadasinformações,masestoupreocupada.Achoquevaleapena
vocêlevaresseassuntoasério.—Tudobem.Prometoquevoutomarasprecauçõesnecessárias.Nãovousairdecasa,paravariar.
Mas,comoeudisse,estouocupadoagora,ealémdomaistenhocertezadequevocêestáenganada.NaSolifon…—Claro,claroqueeupossoestarenganada—Gabriellaointerrompeu.—Épossível.Masfaçade
contaqueeuestoucerta,estábem?Façadecontaquerealmenteexisteumrisco,pormenorqueseja,deeuestarcerta.—Tudobem,mas…—Nadade“mas”,Frans.Chegade“mas”.Meescute.Achoquevocêtemrazão.NinguémdaSolifon
representaumaameaçaàsuaintegridadefísica.Afinal,éumaempresacivilizada.Masparecequeumapessoadelá,outalvezumgrupodepessoas,temcontatocomumaorganizaçãocriminosa,comumgrupoperigosíssimoque temramificações tantonaRússiacomonaSuécia.Essaspessoaséque representamumaameaçaparavocê.Pelaprimeiravez,Fransdesviouosolhosdomonitor.ElesabiaqueZigmundEckerwald,daSolifon,
haviatrabalhadocomumgrupocriminoso.Umavezatéchegouaouvirumaspalavrasemcódigosobreolíder,masnãoentendiaporqueessegrupoestariaatrásdele.Ouseráqueentendia?—Organizaçãocriminosa?—elerepetiu.—Issomesmo—prosseguiuGabriella.—Nãoélógico?Vocêmesmojádeveterpensadonisso,não?
Quandovocêroubaideiasdosoutrosparaganhardinheirocomelas,vocêultrapassaoslimites,eapartirdaíascoisastendemapiorar.—Acheiqueumbandodeadvogadosfossemaisquesuficiente.Vocêsabequecomadvogadosbem
treinadosvocêpoderoubaroquequisercomacertezadaimpunidade.Osadvogadossãoospistoleirosdaeramoderna.—Tudobem,podeser.Masescute…euaindanãorecebiumarespostasobreasuasegurançapessoal.
Enquantoessarespostanãochegar,queroquevocêfiquenumesconderijo.Estouindobuscarvocêagora.—Comoé?—Precisamosagirrápido.—Dejeitonenhum—protestouFrans.—Eue…Houveummomentodehesitação.—Hámaisalguémcomvocê?—perguntouGabriella.—Não,não.Sóqueagoranãopossoiralugarnenhum.—Vocênãoouviunadadoqueeudisse?—Ouvimuitobem.Mas,comtodoorespeito,paramimissonãopassadeespeculação.—Aespeculaçãofazpartedanaturezadeumaameaça,Frans.Essainformaçãoqueconseguimos…Eu
nãopoderiatedizeristo,mas…elaveiodeumaagentedaNSAqueestáinvestigandoessaorganizaçãocriminosa.—ANSA—elerepetiucomdesdém.—Euseiquevocêduvidadeles.—Duvidarépouco.— Tudo bem, tudo bem. Mas desta vez eles estão do seu lado, ou pelo menos a agente que me
telefonouestá.Elaéumaboapessoa.Conseguiuinterceptarinformaçõesqueapontamparaumplanodeassassinato.—Contramim?—Muitoprovavelmente.—Muitoprovavelmente?Issoparecemeiovago.Na frente do pai, August estendia a mão em direção às canetas, e Frans concentrou-se nesse
movimento.—Euvouficaraqui.—Vocêsópodeestarbrincando.—Não,não.Sevocêsreceberemmaisinformações,entãoeusaio.Masagoranão.Alémdomais,o
alarmequeaMiltonSecurityinstalouaquiemcasaéincrível.Hácâmerasesensoresportodaparte.—Vocêestáfalandosériomesmo?—Estou.Vocêsabequeeusouteimoso.—Vocêtemumaarmaemcasa?
—Gabriella,doquevocêestá falando?Eucomumaarmaemcasa?Acoisamaisperigosaqueeutenhoaquiéumaespátuladequeijo!—Então…—Entãooquê?— Eu vou pedir que uma equipe faça a vigilância da sua casa, queira você ou não. Mas não se
preocupe.Vocênemvaipercebernada.Eseprefereinsistirnessateimosia,tenhoumconselhoparavocê.—Queconselho?—Chamea imprensa.Vaisercomoumsegurodevida.Conte tudoquesabe,assimtalveznãohaja
maisnecessidadedetiraremvocêdocaminho.—Voupensar.FranspercebeuumadistraçãorepentinanavozdeGabriella.—Alô?—eledisse.—Espereumpouco—elapediu.—Precisoatenderoutraligação.Preciso…Gabriellasumiu,eFrans,comoutrasideiasocupandosuacabeça,naqueleinstantesópensavanuma
coisa:seráqueotalentoartísticodeAugustvaidesaparecerseeuoensinarafalar?—Frans,vocêaindaestáaí?—Claro.—Infelizmenteprecisodesligar.Mas juroquevouarrumarumavigilânciaparavocêomaisrápido
possível.Ligodepois.Enãoesqueça:vocêestácorrendoperigo!Fransdesligouotelefone,soltouumsuspiroepensoudenovoemHanna,emAugust,sentadonopiso
xadrez,queserefletianoguarda-roupa,eemtudoquepareciaterpoucaimportâncianaquelemomento.Porfim,demaneiradistraída,quasecômica,balbuciou:—Estãoatrásdemim.Umapartedeleachavaqueissoerapossível,mesmoqueelesenegasseaacreditarqueoassuntofosse
acabaremviolência.Oqueelesabia,nofinaldascontas?Nada.Alémdomais,nãopodiacuidardaquilonomomento. Portanto, continuou pesquisando sobre o destino deNadia, pois pretendia descobrir quesignificadoahistóriapoderiatertambémparaavidadeseufilho.Nãoeraumaatitudemuitoprudente.Fransagiacomosenadativesseacontecido.Apesardaameaça,continuounavegandopelainternet.Logoencontrou o nome do professor de neurologia Charles Edelman, grande especialista em síndrome desavant.Emvezdecontinuarlendosobreele,comotinhaohábitodefazer—Baldersemprepreferiaaleituraàspessoas—,resolveutelefonarparaoInstitutoKarolinska.Logo se deu conta de que já era tarde. Edelman dificilmente estaria no trabalho àquela hora, e o
númeropessoaldeleeraconfidencial.Masespere…oprofessortambémeraresponsávelporumprojetochamadoEkliden,umainstituiçãoparacriançasautistascomtalentosespeciais,eFransligouparalá.Otelefonechamoudiversasvezes,atéqueumamulherqueseidentificoucomoLindros,irmãdeEdelman,atendeu.— Desculpe ligar a uma hora destas — disse Frans Balder —, mas estou tentando falar com o
professorEdelman.Poracasoeleaindaestáaí?—Está.Ninguémconseguevoltarparacasacomestetempo.Quemgostariadefalarcomele?— Frans Balder— ele respondeu, e em seguida repetiu seu nome com uma informação extra que
talvezajudasse.—ProfessorFransBalder.—Ummomento—disseLindros.—Vouverseelepodeatender.BalderolhouparaAugust,quemaisumavezpegouumacanetaehesitou,eissoperturbouFranscomo
ummaupresságio.Umaorganizaçãocriminosa,elerepetiu.— Charles Edelman— disse uma voz.— Será que estou tendo mesmo o prazer de falar com o
professorFransBalder?—Sim,soueu,professor.Tenhoumpequeno…—Osenhornão imaginacomomesintohonrado—prosseguiuoprofessorEdelman.—Acabode
voltardeumaconferênciaemStanford,eláfalamosmuitoarespeitodasuapesquisasobreredesneurais.Acreditamosqueosneurologistastalvezpossamaprendermuitacoisainteressantesobreocérebrocomaspesquisassobreinteligênciaartificial.Pensamosse…—Ficomuitolisonjeado,masnaverdadeligueiparalhefazerumapergunta.—Ah,émesmo?Estáprecisandodeajudaparaassuaspesquisas?—Não, équemeu filhoé autista.Ele temoito anos, aindanão fala,masumdiadesses estávamos
paradosnumsemáforodaHornsgatane…—Sim?—Quando voltamos para casa ele começou a desenharmuito depressa, um desenho absolutamente
perfeito.Foiimpressionante!—Eosenhorgostariaqueeuanalisasseodesenhodoseufilho?—Gostariamuito.Masnãoéporissoqueestouligando.Naverdade,estoupreocupado.Liquetalvez
esses desenhos sejam uma forma de se comunicar com omundo exterior e que talvez ele perca essacapacidadeseaprenderafalar.Quetalvezumalinguagemsejasubstituídaporoutra.—SemdúvidaosenhorandoulendosobreNadia.—Comoosenhorsabe?—Porqueemcasosassimela sempreémencionada.Mas tenhacalma,Frans…possochamá-lode
Frans?—Claro.—Muito bem, Frans. Estou feliz por você ter ligado e garanto que você não temmotivo para se
preocupar.Pelocontrário:Nadiafoiaexceçãoqueconfirmaaregra,nadamais.Todososdemaisestudosdemonstramqueodesenvolvimentodalinguagemfazafloraraindamaisostalentosdossavants.ComoaconteceunocasodeStephenWiltshire,porexemplo.Vocêleusobreele?—OmeninoquedesenhouLondres.—Issomesmo.Eleteveumenormedesenvolvimentoemtodososaspectos,nãoapenasartístico,mas
tambémintelectualelinguístico.Hojeéconsideradoumgrandeartista.Entãonãosepreocupe,Frans.Defatopodeacontecerdeumacriançasavantperdero talento,masnamaioriadasvezesarazãoéoutra.Elassimplesmenteseaborrecemouentãopassamporalgumaoutrasituaçãotraumática.VocêdevesaberqueaNadiatambémperdeuamãenamesmaépoca.—Sei.—Pode ter sido essa a verdadeira razão.Claro que nem eu nem ninguém pode ter certeza,mas é
difícilqueessaperdadacapacidadeartísticatenhaocorridoporcausadaaquisiçãodalinguagem.Não
existepraticamentenenhumrelatodecasossemelhantes,enãoafirmo issoapenasporqueéahipótesecientíficaqueeuapoio.Hojeexisteoconsensodequeossavantssótêmaganharquandodesenvolvemoutrashabilidadesintelectuais.—Osenhorestáfalandosério?—Claro.—Eletambémtemumtalentocomnúmeros.—Émesmo?—CharlesEdelmanexclamou.—Porquê?— Porque num savant a combinação de talento artístico com talentomatemático é rara. São duas
habilidadesquasesemnenhumarelação,eacredita-sequeumaatépossabloquearaoutra.— Bem, mas é o que acontece com o meu filho. Os desenhos dele têm um aspecto de precisão
geométrica,comosetodasasproporçõesestivessemcalculadasdemaneiracorreta.—Muitointeressante.Quandopossoveroseufilho?—Nãoseiaocerto.Anteseuqueriapedirumconselho.—Entãomeu conselho é: aposte nomenino.Estimule-o. Permita que ele desenvolva todas as suas
habilidadesaomáximo.—Eu…Franssentiuumnónopeitoetevedificuldadeparaencontraraspalavras.—Euqueriaagradeceraosenhor—elecontinuou.—Agradecerdeverdade.Masagoraeupreciso…
—balbuciouFrans,semsabercomocontinuar.—Muitoobrigadoeatéapróxima.—Denada.Esperomaisnotíciasembreve.Fransdesligouepermaneceualgumtempodebraçoscruzados,olhandoparaAugust,queseguravaa
canetaamarelacomexpressãohesitanteenquantomantinhaosolhosfixosnalamparinadequerosene.Noinstanteseguinte,umarrepiopercorreuascostasdeFransBalder,ederepentevieramaslágrimas.MuitosepodiadizerdeBalder,menosqueelefossehomemdesecomoverfacilmente.Fransnãoselembravamaisdaúltimavezquehaviachorado.Nãochorounemaoperderamãeenunca
chorava quando lia notícias tristes ou presenciava acontecimentos desse tipo— considerava-se umaverdadeirarocha.Masnaquelemomento,aoverofilhocercadodeumaporçãodecanetaselápisdecor,o professor chorou como ummenino, simplesmente permitindo que as emoções tomassem conta dele,graçastalvezàspalavrasdeCharlesEdelman.Augustpoderiaaprenderafalarecontinuardesenhando,oqueeraumaperspectivaesplêndida.Mas
claroqueFransnãoestavachorandoapenasporisso.TambémhaviaodramadaSolifon.Aameaçademorte.OssegredosqueeleguardavaeodesejoporHanna,porFarahouporquemquerquepreenchesseovazioquetinhanopeito.—Meufilho!—eledisse,eestavatãocomovidoquenempercebeuateladonotebookseacendere
mostrarimagensdeumadascâmerasdesegurançaqueelehaviamandadoinstalarpelacasatoda.Nopátio,sobachuvatorrencial,haviaumhomemdejaquetadecouroebonécinzacomaabavirada
parabaixoparaesconderorosto.Quemquerqueelefosse,sabiaqueestavasendofilmado,emesmosuafiguramagraeesbelta semovimentavademaneiracambaleantee teatral, sugerindoumpesopesadoacaminhodoringue.
GabriellaGraneestavanasaladaSäpopesquisandona internetenosregistrosdogoverno.Mesmo
assim,nãoconseguiuasinformaçõesqueprocuravaporque,paradizeraverdade,elanãosabiabemoqueestavabuscando.Masumsentimentonovoepreocupanteacorroíapordentro—umsentimentovagoeobscuro.SuaconversacomBaldertinhasidointerrompidaporHelenaKraft,achefedaSäpo,eoassuntoerao
mesmoqueodaúltimavez.AlonaCasales,daNSA,queriafalarcomela;adiferençaeraqueagoraAlonapareciamaiscalmaeumpoucomaissedutora.—Conseguiramarrumaroscomputadoresdevocês?—perguntouGabriella.—Ah…foiumcircoetanto.Masnofimachoquenãohouvenadademais,epeçodesculpasporter
sidomeioenigmáticanonossoúltimocontato.Etambémpeçodesculpasadiantadasseeupassaramesmaimpressão agora.Masquerooferecer umpoucomais a você, e enfatizar que, de acordo comaminhaavaliação,aameaçaaoprofessorBalderérealedeveserlevadaasério,mesmoqueagentenãotenhacertezadenada.Vocêstomaramalgumaprovidência?—EuconverseicomoBalder,maselesenegaadeixaracasa.Dissequeestavaocupado.Masvou
solicitarproteção.— Ótimo. Como você deve imaginar, eu também fiz mais do que bisbilhotar um pouco. Estou
realmente impressionada, srta. Grane. Não acha que alguém como você devia estar trabalhando noGoldmanSachseganhandomilhões?—Nãofazomeuestilo.—Nemomeu.Eunãorecusariaodinheiro,masacontecequeessabisbilhoticemalpagatemmaisa
vercomaminhapersonalidade.Masagorameescute:noquenosdizrespeito,esseassuntonãotemmuitaimportância…oqueameuveréumerrodeavaliação.Enãosóporqueestouconvencidadequeessegrupo representa uma ameaça aos interesses econômicos da nação. Também acredito que hajaenvolvimento político. Um daqueles engenheiros de computação que mencionei, um sujeito chamadoAnatoliChabarov, tem ligações comumconhecidomembrodaAssembleiaLegislativa russa chamadoIvanGribanov,queéumgrandeacionistadaGazprom.—Sei.—Oquetemosporenquantosãováriasinformaçõessoltas,epasseiumbomtempotentandodescobrir
queméoresponsávelportodaessaintriga.—Thanos.—Ouaresponsável.—Vocêachaquepodeserumamulher?— Acho, mas também posso estar errada, porque esse tipo de organização criminosa costuma se
aproveitardasmulheres,enãocolocá-lasemposiçõesdeliderança.—Entãooquealevaapensarquepodeserumamulher?—Umsentimentodereverência,porassimdizer.Falamdessapessoadamesmaformaqueoshomens
falamdasmulheresqueelesdesejameadmiram.—Seriaalguémmuitobonito,então?
—Éoqueparece,mastalvezeuapenastenhafarejadoumpoucodehomoerotismo.Ninguémficariamaisfelizdoqueeuseosgângsteresemandachuvasrussosseenvolvessemumpoucomaiscomessetipodecoisa.—Ah,éverdade!—Estoufalandodesseassuntoparaquevocêmantenhaamenteabertacasoessabagunçaacabeindo
parar nas suas mãos. Também há advogados envolvidos. Sempre há advogados envolvidos, não émesmo?Oshackersroubameosadvogadoslegitimamoroubo.OquefoimesmoqueoBalderdisse?—Queapenassomosiguaissepagamosdemaneiraigual.—Issomesmo.Hojeemdia,quem temumbomadvogadopode seapropriardoquebementender.
Você conhece o escritório de advocacia Dackstone & Partner, que está processando o Balder, nãoconhece?—Claro.—Entãovocêsabequeoescritóriodeles tambéméprocuradoporempresasde tecnologia,quando
precisamdarumaliçãoeminventoreseinovadoresqueesperamreceberunstrocadosporsuascriações.—Comcerteza.FoioqueeuaprendiquandoestávamoslidandocomosprocessosdoinventorHåkan
Lans.—Quehistóriaterrível,não?OmaisinteressanteéqueoDackstone&Partnertambémémencionado
numadaspoucasconversasda redecriminosaqueconseguimos rastrear edescriptografar,mesmoquenasgravaçõeselesejachamadoapenasdeD.P.ouD.—EntãoaSolifoneessescanalhastêmosmesmosadvogados.—Enãoésóisso.AgoraoDackstone&PartnervaiabrirumescritórioemEstocolmo,esabecomo
descobrimos?—Não—respondeuGabriella,sentindo-secadavezmaisestressada.QueriaencerraraconversadepressaesolicitarproteçãoparaBalder.—Investigandoessaorganização—prosseguiuAlona.—FoioChabarovquemtocounoassunto,o
quemostraqueaorganização tem laçospróximoscomoDackstone&Partner.Afinal, eles sabiamdaaberturadonovoescritórioantesqueainformaçãosetornassepública.—Émesmo?—É.EemEstocolmooDackstone&PartnervaitrabalharcomumsuecochamadoKennyBrodin,um
ex-advogadocriminalistaqueeraconhecidoporsermuitopróximodeseusclientes.—UmavezosjornaisvespertinospublicaramumafotodoKennyBrodincomgângsteresecomuma
garotadeprograma—disseGabriella.—Euvi.AchoqueBrodinpodeserumbomcomeçosequisermosinvestigaressahistóriatodamais
deperto.Talvezsejaoeloentreomundofinanceiroeessaorganizaçãocriminosa.—Voudarumaolhadanisso—disseGabriella.—Agoraprecisoresolveroutrascoisas.Nosfalamos
depois.EmseguidaGabriellatelefonouparaodepartamentodeproteçãopessoaldaSäpoefoiatendidapor
ninguémmenosqueStigYttergren,oquenãotornouascoisasnadafáceis.StigYttergrentinhasessentaanos, era corpulento egostavadebeberumpouco alémda conta ede jogarpaciênciana internet.Àsvezeserachamadode“SenhorNadaaFazer”,porissoGabriellafaloucomeledaformamaisassertiva
possível,exigindoqueoprofessorFransBalder,deSaltsjöbaden,estivessesobproteçãoomaisrápidopossível.StigYttergren respondeucomosempre,dizendoque tudoseriamuitocomplicado,que talveznão fosse possível, e quandoGabriella ressaltou que aquela era uma ordemde ninguémmenos que achefedaSäpoeleresmungoualgumacoisaquenamelhordashipótesesincluíaum“malcomida”.—Voufingirquenãoouvi—eladisse.—Tratedeprovidenciar tudoomaisrápidopossível—o
que, claro, não aconteceu.Enquanto aguardava, tamborilando os dedos namesa,Gabriella começou aprocurar informações sobre o escritório Dackstone & Partner e sobre as coisas que Alona tinhamencionado,enesseinstanteumasensaçãofamiliaraincomodou.Masnadapareciafazersentido,eantesqueelachegasseaalgumaconclusão,StigYttergrentelefonou
com a notícia nemumpouco surpreendente de que não havia ninguémdisponível no departamento deproteçãopessoal.Estavamtodosàsvoltascomafamíliareal,trabalhandonumespetáculoquetinhacomoconvidadosopríncipeeaprincesadaNoruega,alémdomaisalguémhaviaconseguidojogarumcopodeleite na cabeça do líder doPartidoDemocrataSverigedemokraterna semqueos seguranças pudessemimpedir,oqueexigiuumaumentodepessoalparaodiscursodeleemSödertälje.Mesmoassim,Yttergrendisseterconseguido“doispoliciaisincríveis”,chamadosPeterBlomeDan
Flinck, e que Gabriella devia se dar por satisfeita. Esses sobrenomes lhe lembraram os personagensKlingeKlangdoslivrosdeAstridLindgreneafizeramterummaupressentimento.MaslogoGabriellaseirritouconsigomesma.Eratípicodegentecomoelajulgarosoutrossópelonome.Fariamaissentidoelasepreocuparseeles
tivessem sobrenomes pomposos, como Gyllentofs. Nesse caso, sem dúvida seriam degenerados erelapsos.Estáótimoassim,elapensou,deixandoasapreensõesdelado.Gabriellavoltouaotrabalho.Seriaumanoitelonga.
9.MADRUGADADE21DENOVEMBRO
Lisbeth acordou atravessada na imensa camade casal e lembrouque tinha sonhado comopai.Umsentimentoameaçadoraenvolviacomoumvéu.Masemseguidaselembroudanoiteanterioreconcluiuquedeviaserumareaçãoquímicadocorpo.Estavaderessacaeselevantoucomaspernasaindabambasparairvomitarnoenormebanheirodemármoreequipadocombanheiradehidromassagemetodasessasidioticesdosricos.Masapenasseajoelhouecomeçouarespirarfundo.Depoisdealgumtemposelevantoueseolhounoespelho,oquenãofoimuitoanimador.Seusolhos
estavamvermelhos.Malpassavadameia-noite.Nãopodiaterdormidosóumaspoucashoras.Aosairdobanheiro,pegouumcopoeoencheucomágua.Nomesmoinstante,aslembrançasdosonhovoltaram,eLisbethapertoucomforçaocopoqueseguravaesecortounosestilhaços.Osanguepingounoassoalhoeelasoltouumpalavrãoaoperceberquenãoiriamaisconseguirdormir.Seráquedeviatentardescriptografaroarquivoquehaviabaixadonodiaanterior?Não,nãovaliaa
pena,pelomenosnãonaqueleinstante.Lisbethenrolouumcurativonamão,foiatéaestantedelivrosepegouomaisrecenteestudodapesquisadoradePrincetonJulieTammetnoqualeladescreviaocolapsoeatransformaçãodasestrelasemburacosnegros.DepoissedeitounosofávermelhoqueficavajuntoàjanelacomvistaparaSlusseneolagodeRiddarfjärden.Lisbethsesentiuumpoucomelhorassimquecomeçoualer.Osanguedamãopingavanaspáginase
suacabeçanãoparavadelatejar.Mesmoassimsedeixoulevarpelaleituraedevezemquandofaziaumaanotaçãonamargem.Sabiamelhordoqueamaioriadaspessoasqueumaestrelasemantémvivagraçasaduasforçasopostas—asexplosõesnuclearesemseu interior,quea levama tentarseexpandir,eaforçadagravidade,queassegurasuaintegridadeestrutural.Lisbethviaissocomoumcabodeguerraquepassamilhões de anos empatado e que apenas no fim, depois que o combustível nuclear acaba e asexplosõesperdemforça,achegaaoinevitávelvencedor.Quandoagravidadevence,ocorpocelesteencolhe,comoumbalãoqueperdearesetornacadavez
menor.Dessemodo,umaestrelapodese transformarempoucomaisdoquenada.Comumaelegânciaincrível,descritapelafórmula
ondeG é a força da gravidade,KarlSchwarzschild descreveu, durante aPrimeiraGuerraMundial, oestágioemqueagravidadedeumaestrelasetornaforteosuficienteparaquenemmesmoaluzescape,e
apartirdessepontonãohámaisvolta.Umavezatingidoesseestágio,ocorpocelesteestá fadadoaocolapso.Cadaátomoqueocompõeéatraídoparadentro, rumoaumpontosingularondeo tempoeoespaçocessamdeexistireondeprovavelmentecoisasaindamaisestranhasocorrem—ummomentodepurairracionalidadenumuniversoregular.Essa singularidade, que talvez seja mais um acontecimento do que um simples ponto, uma última
paradaparatodasasleisdafísica,écercadapelohorizontedeeventos,surgindoassimumburaconegro.Lisbethgostavadosburacosnegros.Sentiaumacertafamiliaridadecomeles.Lisbeth não se interessava pelos buracos negros em si, como Julie Tammet,mas pelo processo de
formação deles e, acima de tudo, pelo fato de o colapso das estrelas começar na extensa parte douniversoquepodeserexplicadapelateoriadarelatividadedeEinsteinmasterminarnodiminutomundoregidopelosprincípiosdamecânicaquântica.Lisbethcontinuouconvencidadeque,sepudessedescreveresseprocesso,tambémpoderiaunificaras
duaslínguasirreconciliáveisdouniverso—ateoriadarelatividadeeafísicaquântica.Mascomoissoestava além de suas capacidades, exatamente como aquela maldita criptografia, ela, inevitavelmente,voltouapensaremseupai.DuranteainfânciadeLisbeth,eletinhaviolentadosuamãerepetidasvezes.Asviolaçõescontinuaram
atéamãecomeçarasofrerdetremoresincuráveiseaprópriaLisbeth,comdozeanos,resolverrevidarcomumaviolência assombrosa.Naépoca, ameninanão sabiaqueopai eraumdissidentedoGRU, aagênciamilitardeinformaçõesdaantigaUniãoSoviética,emenosaindaqueumasubdivisãodaSäpo,conhecidacomoSeção,ohaviaprotegidoporumaltopreço.Mesmoassim,elajápercebiaqueumaaurademistériocercavaopai—umasombradaqualninguémpodiaseaproximarecujaexistêncianinguémpodiaapontar.Umasombraqueencobriaonomedele.Emtodasascartasemensagensendereçadasaele,constavaonomeKarlAxelBodin,easpessoaso
chamavamdeKarl.MasafamíliaquemoravanaruaLundagatansabiaqueesseeraumpseudônimoequeoverdadeironomedeleeraZala,ouAlexanderZalachenko.Eleeraumhomemcapazdeaterrorizaraspessoascompequenascoisase,alémdisso,pareciacobertoporummantodeinvencibilidade—oupelomenoseraassimqueLisbethpensavanaépoca.Mesmo sem conhecer o segredo do pai, ela já tinha percebido que ele podia fazer o que bem
entendesse semsofrernenhum tipodeconsequência—umdosmotivosparaqueele emanasseaquelaterrível aura de grandiosidade. Era uma pessoa da qual não havia possibilidade de se aproximar demaneiranormal,eele tinhaplenaconsciênciadisso.Outrospaispodiamserdenunciadosàpolíciaeaoutras autoridades sociais. Mas Zala tinha à disposição forças que estavam acima de todas essasinstituições,eosonhofezLisbethlembrardodiaemqueencontrouamãejásemvidanochãoeresolveudarsozinhaumjeitonopai.Essadecisãotinhasidoumdosdoisburacosnegrosdesuavida.Oalarmedisparouà1h18eFransBalderacordousobressaltado.Seráquehaviaalguémnacasa?O
professorsentiuummedoinexplicávele,aindanacama,estendeuamão.Augustestavaaseulado.Comosempreomeninodeviateridodemansinhoparaacamadopaienaqueleinstantechoramingavacomose
obarulhotivesseinvadidoseussonhos.Meufilho,pensouFrans.Entãosentiuocorposeenrijecer.Teriamesmoouvidopassos?Não, com certeza tinha sido apenas uma impressão equivocada. Era impossível ouvir algum ruído
enquanto o alarme soava. Frans lançou um olhar preocupado para a tempestade que caía lá fora. Elapareciamaisfortedoqueantes.Asondasquebravamcomforçanocaisenabeiradapraia.Asjanelassacudiamebatiamcomas rajadasdevento.Aventania teriadisparadooalarme?Talvez fosseessaaexplicação.Mesmoassimserianecessáriodarumaolhadaepedirajudasefossenecessário,paraentãoversea
proteçãoqueGabriellahaviaprometidorealmentehaviachegado.Doispoliciaisestavamacaminhodelá fazia horas. Era cômico. Foram atrasados pelo mau tempo e por uma série de outras ordensconflitantes:Venhamajudarcomistoeaquilo!Semprehaviaumacoisaououtra,eFransporfimtinhaconcordadocomGabriella—aquiloprovocavaumsentimentoindeléveldeincompetência.Mas esses detalhes ficariam para depois. Omomento era de telefonar e pedir ajuda. August tinha
acordado,oupodiaacordar,eFranssentiaqueprecisavaagirdepressa.Aúltimacoisaquedesejavaeravê-lohistérico,batendoocorpocontraacama.Osprotetoresdeouvido,pensouFrans.OsprotetoresdeouvidoverdesquehaviacompradoemFrankfurt.Frans pegou os protetores na gaveta do criado-mudo e os pôs com cuidado nos ouvidos do filho.
Depois o ajeitou na cama, beijou seu rosto e acariciou seu cabelo volumoso e cacheado. Por fim,certificou-se de que a gola do pijama estava bem dobrada e a cabeça confortavelmente apoiada notravesseiro.Quesituaçãomaisinconcebível.Fransestavacommedoeapressado,oupelomenosdeveriaestar.Apesardisso,tentoufazermovimentosvagarososaoseocupardofilho.Talvezumsentimentalismoem
meioàtensão.OuentãoFranstentavaretardaroencontrocomoquequerqueoaguardasseláfora.Poruminstantedesejouterumaarma,emboranãotivesseamenorideiadecomousá-la.Fransnãopassavadeumprogramadorinútilqueatépoucotempoantesquasenãotinhadentrodesio
sentimentodapaternidade.Elenãodeviateracabadonomeiodetodaaquelaconfusão.QueaSolifon,aNSAetodasasorganizaçõescriminosasfossemparaoinferno!Masnomomentonãohavianadaafazersenãoenfrentarasituação.Assim,compassoshesitanteseinseguros,Fransfoiatéocorredore,antesdequalquer coisa, atémesmo de olhar para fora, desligou o alarme.O barulho o havia deixado com osnervosàflordapele,ecomosilênciorepentinoqueveioaseguir,eleficouparadonocorredor,incapazdefazermaisnada.Logoseucelulartocoue,apesardosusto,sentiu-segratoporaquelainterrupção.—Alô?—eledisse.—AquiéJonasAnderberg,daMiltonSecurity.Estátudobemporaí?—Tudo,eu…achoquesim.Oalarmedisparou.—Eusei.Deacordocomasnossas instruções,nessecasovocêsdevem irparaa salaespecialdo
porãoetrancaraporta.Vocêsjáestãonoporão?—Já—Fransmentiu.—Ótimo.Ejásabemoqueaconteceu?—Não.Euacordeicomoalarme.Nãofaçoideiadoquepodeterfeitoeledisparar.Seráquefoia
tempestade?
—Dificilmente,mas…espereumpouco.Apartirdesseinstante,avozdeJonasAnderbergpassouatransmitiralgumaindecisão,umacertafalta
deconcentração.—Oquefoi?—Fransperguntou,nervoso.—Pareceque…—Putaquepariu,faledeumavez!Estouapavorado.— Desculpe, por favor mantenha a calma… estou dando uma olhada nas imagens gravadas pelas
câmerasdasuacasaepareceque…—Queoquê?—Quevocêstêmvisita.Umhomem…enfim,vocêsmesmosvãoverdepois.Umhomemdeaparência
normal,óculosescuros,boné,bisbilhotandoasuapropriedade.Jáesteveaíduasvezes,peloqueestouvendo,apesar…apesardeeuteracabadodedescobririsso.Precisoexaminarmelhorasimagensparaobtermaisinformações.—Comoéessehomem?—Nãoéfácildizer.JonasAnderbergdeuaimpressãodeestarrevendoasimagens.—Talvez,nãosei…não,nãoseriabomfazerespeculaçõesagora—prosseguiu.—Porfavor—pediuFrans.—Precisodealgumacoisamaisconcreta.Nemquesejaapenasparaeu
meacalmar.—Tudobem.Nessecasopossodizerquepelomenosumdetalhepodenosdeixarumpoucomenos
preocupados.—Equedetalheéesse?—Amaneira de andar desse homem.Parece um junkie que acabou de tomar umadose cavalar de
heroína. Os movimentos dele são exagerados, então pode ser apenas um viciado atrás de algo pararoubar.Sóque…—Oquê?—Elemantémorostoescondidootempointeiroe…Jonasficouquietodenovo.—Fale!—Espereumpouco.—Vocêestámedeixandonervoso,sabia?—Nãoéaminhaintenção.Massaibaque…OcorpodeBalderenrijeceu.Eleouviuobarulhodomotordeumcarronaentradadagaragem.—…vocêstêmvisita.—Oqueeufaço?—Fiquemondeestão.— Está bem— disse Frans, paralisado, num lugar totalmente diferente de onde Jonas Anderberg
supunhaqueosdoisestivessem.
Quando seu celular tocou, à 1h58,MikaelBlomkvist ainda estava acordado,mas como o aparelhohaviaficadonobolsodasuacalça jeans jogadanochão,elenãoconseguiuatendera tempo.Alémdomais,eraumnúmeronãoidentificado,oqueofezpraguejarevoltarparaacama.Desejavamuitonãopassarmaisumanoiteemclaro.DesdequeErikatinhaadormecido,poucoantes
dameia-noite,Mikael se revirara na cama refletindo sobre suavida, semque aquilo lhe fizessebem.Nem mesmo quando pensou em seu relacionamento com Erika. Ele a amava fazia décadas, e nadaindicavaqueosentimentodelaporelefossediferente.Mesmoassimascoisasnãoeramtãosimples,etalvezMikaelhouvessecomeçadoaseidentificarum
pouco comLars. LarsBeckman era o artista plástico comquemErika era casada, e ninguémpoderiatachá-lo de ciumento ou mesquinho. Pelo contrário: quando percebeu que Erika jamais conseguiriaesquecerMikaelousemanterlongedacamadele,LarsnãofezescândalonemameaçousemudarcomamulherparaaChina.Simplesmentepropôsumacordo:—Vocêpodeficarcomelesequiser…desdequesemprevolteparamim.Juntoselesviviamumaespéciedeménageàtrois,umavezqueErikaemgeraldormiaemcasacom
Lars, emSaltsjöbaden,eàsvezescomMikaelnaBellmansgatan.PoranosBlomkvist realmenteachouqueaquelaeraumasoluçãoincrível,otipodesaídaqueoutroscasaisquesofremcomaditaduradavidaa dois podiam adotar commais frequência. Todas as vezes que Erika dizia “Amo aindamais omeumaridoporqueelemedeixaficarcomvocê”,ouquandonumeventoqualquerLarscolocavaobraçoaoredordeMikael,numabraçofraterno,Blomkvistagradeciaasuaboaestrelapelasortedaquelearranjo.Nosúltimostempos,porém,elehaviacomeçadoaquestionartudoisso,talvezporquedispusessede
maistempopararefletirsobreavida,etinhachegadoàconclusãodequeascoisasqueparecemfeitasemcomumacordonemsempresãoassim.Porvezes,umadaspartespode imporumacondiçãosobamáscaradeumadecisãoemcomum,ea
longo prazo quase sempre acaba ficando evidente que alguém cedeu, apesar de todas as garantias emcontrário.AconversaqueErikahavia tidocomLarsnaquelanoitenão tinhasidoexatamente recebidacomaplausos.Talvezeletambémestivessepassandoumanoiteemclaro.Mikaelseesforçouparapensaremoutracoisa.Poralgumtempo,tentouseentregaradevaneios,mas
como issonãoajudoumuitopor fimse levantou,decididoa fazeralgosensato.Porquenão ler sobreespionagemindustrialouentãopensarnumplanofinanceiroalternativoparaaMillennium?Elesevestiu,sentoudiantedocomputadoreolhouseuse-mails.Comosempre,amaioriaiaparaolixo,mesmoquealgunsservissemparalhedarumpoucodeânimo.
Erammensagens de Christer,Monika, Andrei Zander e Harriet Vanger, oferecendo apoio na iminentebatalhadeMikael contra aSerner, e ele respondeu a todos exagerandoo furor que sentia.Depois foiolharnapastadeLisbeth,massemesperarnada.EentãoosemblantedeMikaelseiluminou.Elahaviarespondido!Depoisdeumaeternidade,elatinhadadoumsinaldevida:AinteligênciadeBaldernãotemnadadeartificial.Porfalarnisso,comovaiasua?E,Blomkvist,oquevaiacontecersecriarmosumamáquinamaisinteligentedoquenós?MikaelsorriuecomeçouaselembrardoúltimoencontroquetevecomLisbethnoKaffebardaSankt
Paulsgatan,portantodemorouumpoucoparaperceberquenamensagemdelahaviaduasperguntas—aprimeira,umaprovocaçãoamigável,queinfelizmentetinhalásuapontadeverdade.OqueMikaelvinha
escrevendonarevistanosúltimos temposcareciamesmode inteligênciaeoriginalidade.Comomuitosoutros jornalistas, ele trabalhava apenas com conceitos e informações cuidadosamente apurados,garantidos.Ainda assim as coisas estavam como estavam.Em seguida, começou a pensar na segundapergunta deLisbeth, umpequeno enigma, não porque tivesse grande interesse na questão,mas porquequeriaresponderdeformaespirituosa.Secriarmosumamáquinamaisinteligentedoquenós,pensouMikael,oquevaiacontecer?Foiatéa
cozinha,abriuumaáguamineralRamlösaesentou-seàmesa.Noandardebaixoasra.Gernertossiaenoburburinho da cidade a sirene de uma ambulância abria espaço em meio à tempestade. Bem, elerespondeu,nessecasovamosterumamáquinacapazderealizartodasascoisasinteligentesdequesomoscapazes, além de outras, como… Mikael riu alto e só então entendeu a intenção da pergunta. Umamáquinadessastambémseriacapazdecriarumamáquinamaisinteligentedoqueelamesma—eoqueaconteceriadepoisdisso?Naturalmenteanovamáquinatambémseriacapazdecriarumamáquinamaisinteligentedoqueela,e
omesmoaconteceriacomamáquinaseguinte,easeguinte,eaqueviriadepoisdesta,elogoaorigemdetudo — a raça humana — não passaria de um ratinho de laboratório para o último computador. Oresultado seria uma explosão descontrolada de inteligência, comonos filmes da sérieMatrix.Mikaelsorriu,voltouaocomputadorerespondeu:SecriarmosumamáquinadessaspassaremosavivernummundoondenemmesmoLisbethSalander
vaisertãoincrívelassim.Depoiscontinuouporalgumtemposentadoemsilêncio,tentandoenxergaroqueerapossívelatravés
danevascaquecaía lá foraedevezemquando lançandoumolharparaooutro ladodaportaaberta,onde Erika dormia um sono pesado, sem pensar em máquinas que vão se tornando mais e maisinteligentesqueohomem,oupelomenossemsepreocuparcomissonaquelemomento.PorfimMikaelpegouseucelular.Tinhaaimpressãodeterouvidoumsomvindodeleantes,edefatoencontrouumanovamensagemde
voz,oqueodeixouumpoucoapreensivo.Anãoserporex-namoradasquetelefonambêbadasàprocurade sexo, notícias que chegam demadrugada costumam ser ruins.Mikael ouviu-a de imediato. A vozpareciaacuada:MeunomeéFransBalder.Seiqueéfaltadeeducaçãoligaraestahora.Desculpe.Maséqueestou
numa situação crítica, ou pelomenos é assim queme sinto, e acabo de saber que você quer falarcomigo, o queme pareceu uma coincidência um tanto conveniente. Sei de coisas que quero contarpara alguém há um certo tempo e que talvez possam te interessar. Seria bom se você entrasse emcontatocomigoomaisrápidopossível,poisachoquenãotenhomuitotempo.Emseguida,FransBalderdeixouumnúmerodetelefoneeumendereçodee-mail.Mikaeltomounotae
ficoualgumtempoparado,tamborilandoosdedosnamesadacozinha,atéresolverligar.FransBalderestavanacama,encurraladoecommedo,emborajásesentisseumpoucomaiscalmo.O
carroqueeletinhaouvidonaentradadesuagaragemeraatãoesperadaproteçãopolicial:doishomenscomcercadetrintaanos,umaltoeooutrobaixo.Ambospareciamumpoucoorgulhososdesieusavamo
mesmocortedecabelo.Masforameducadosesedesculparampeloatraso.—FomosmandadosaquipelaMiltonSecurityepelaGabriellaGrane—elesexplicaram.Tudoindicavaqueumhomemdebonéeóculosescuroshaviaandadoporalibisbilhotandoopátioda
casa,porissoospoliciaisprecisavamficaratentoseatérecusaramoconviteparatomarumaxícaradechánacozinha.Queriaminspecionarolocal,eFransachouissobastanteprofissionalesensato.Emboranão tivesse tido uma impressão muito boa dos homens, também não teve nenhuma impressão muitonegativa.AnotouosnúmerosdostelefonesdelesevoltouparaacamaeparaAugust,queaindadormiaencolhidocomseusprotetoresdeouvidoverdes.EvidentementeFransnãoconseguiudormir.Ficououvindoossonsdatempestade,eporfimsesentou
na cama. Precisava fazer alguma coisa, senão enlouqueceria. Resolveu ouvir as mensagens da caixapostal do seu celular. Dois recados de Linus Brandell, que parecia ao mesmo tempo irritado e nadefensiva,deixaramFranscomvontadededesligar.NãoiaaguentarouvirasladainhasdeLinusnaquelahora.Mas em seguida ele descobriu duas coisas interessantes. Linus tinha conversado com Mikael
Blomkvist, da revistaMillennium, e Blomkvist queria falar com ele. Frans ficou pensativo. MikaelBlomkvist,elebalbuciou.Seráqueelepodeseromeuelementodeligaçãocomomundo?Frans Balder não conhecia muito bem o meio jornalístico sueco, porém sabia quem era Mikael
Blomkvistequeeleeraumrepórterqueiafundonasinvestigações,semcederanenhumtipodepressão.Entretanto,nadadissoeraumagarantiadequeelefosseapessoacertaparaotrabalho.Fransselembroudequetambémtinhaouvidocoisasnãomuitolisonjeirassobreeleeselevantouparatelefonardenovopara Gabriella Grane, que conhecia bem o ambiente midiático e havia dito que ia passar a noiteacordada.—Alô?—ela disse, atendendo já nos primeiros toques.—Eu iamesmo te ligar.Estouvendo as
imagens que as câmeras de segurança captaram do homem que esteve aí. Temos que tirar vocês daídepressa.—MeuDeus,Gabriella,ospoliciaisjáestãoaquivigiandoaentrada!—Oseuvisitantenãoprecisanecessariamenteusaraporta.—Masporquevocêachaqueelevoltaria?OpessoaldaMiltondissequeelepareciamaisumvelho
drogado.— Não estou muito convencida disso. Ele deu a impressão de estar com uma maleta. É melhor
prevenirdoqueremediar.FransolhouparaAugust.—Amanhãeusaio.Talvezatéváfazerbemparaosmeusnervos.Masagora,ànoite,eunãovoufazer
nada.Ospoliciaisquevocêmandoudãoaimpressãodeserbemprofissionais,etambémsimpáticos.—Vocêquerbancaroteimosodenovo?—Quero.—Estácerto.EntãovoupedirqueoFlinckeoBlomfiquemdeolhonasuapropriedade.—Ótimo,masnãoligueiporcausadisso.Vocêtinhameditoparaeucontartudoqueseiparaalguém
daimprensa,lembra?
—Lembro,claro…NãoéumconselhoqueaSäpocostumadar,sabia?Masachoquepodeserumaboaideia.Sóqueprimeiroeugostariaquevocêcontasseoquesabeparanós.Estoucomeçandoaterummaupressentimentosobreessahistóriatoda.— Então podemos conversar amanhã de manhã, quando estivermos descansados. E me diga uma
coisa…Oquevocê achadoMikaelBlomkvist, daMillennium?Será que ele poderia ser umcontatointeressanteparamim?Gabrielladeuumagargalhada.—Sevocêquiserqueosmeuscolegastenhamuminfarto,comcertezaéamelhorescolha.—Eleétãoruimassim?—AquinaSäpoaspessoasoabominam.CostumamdizerqueseoMikaelBlomkvistaparecernasua
porta,oseuanoestáarruinado.Todomundoaqui,inclusiveaHelenaKraft,aconselhariavocêadeixaressaideiapralá.—Maseuestouperguntandoavocê.—Bom,nessecasoeudigoqueachoumaótimaideia.OBlomkvistéumjornalistaexcelente.—Maseletambémnãoandourecebendocríticas?— Claro. Nos últimos tempos andam dizendo que ele está ultrapassado, que nunca escreve nada
positivo,ousejalácomoachamquesedeveescrever.Maseleéumgranderepórterinvestigativoàmodaantiga.Vocêtemcomoentraremcontatocomele?—Umex-assistentemeumedeuotelefonedele.—Ótimo.Masantesvocêtemquecontartudoparanós.Promete?—Prometo,Gabriella.Agoravoutentardormirumashoras.—Tudobem.EuvouficaremcontatocomoFlinckeoBlometambémarranjarumlugarseguropara
vocêirdemanhã.Depois que desligou, Frans Balder tentou se acalmar. Mas era impossível, e a tempestade que
desabava na rua despertava pensamentos obsessivos nele. Era como se alguma coisa estivesseatravessandoomar lá fora evindo emdireção a ele.Pormaisque evitasse, não conseguiadeixar deprestar atenção em todos os ruídos estranhos à sua volta, o que o deixava ainda mais inquieto eperturbado.HaviaprometidoaGabriellacontartudoquesabiaprimeiroàSäpo,maspassadoalgumtemposentiu
queascoisasnãopodiamesperar.Tudoqueeleguardavaconsigolutavaparasair,mesmoqueisso,semdúvida,nãopassassedeumsentimentoirracional.Nadapodiasertãourgente.Eramadrugadae,apesardoqueGabriellatinhadito,eleestavamaissegurodoquenunca.Contavacomaproteçãodospoliciaisedeumsistemade alarmedeúltimageração.Masnadadisso adiantava, ele sabia.Estavamatrásdele.FranspegouonúmeroqueLinushavialhedadoetelefonouparaMikaelBlomkvist,queobviamentenãoatendeu.Porqueatenderia?Eramuitotarde.EntãoFransdeixouumamensagemcomvozsussurrante,paranão
acordarAugust, e em seguida acendeu o abajur e olhou para a pequena estante de livros à direita dacama.Nelahaviaalgunslivrossemnenhumarelaçãocomseutrabalho,enomesmoinstanteelecomeçoua
folheardespreocupadamenteumvelhoromancedeStephenKing,Ocemitério.Porémissoofezpensar
aindamaisemcriaturasmalignascaminhandonastrevasepassouumbomtempoparadocomolivronasmãos.FoientãoquealgoaconteceucomFransBalder.Eleteveumaimpressão,umpressentimentoqueàluzdodiaeletalvezdescartassecomoabsurdo,masquenaquelahorapareciaabsolutamenteplausível,eumdesejofortedefalarcomFarahSharifoucomStevenWarburton,emLosAngeles,quecomcertezajáestariaacordado.Enquantorefletiasobreoassuntoeimaginavaváriascenasterríveis,observouomar,anoite e as nuvens que deslizavam incansáveis pelo céu. Nesse instante o telefone tocou, como seatendendoaumaprecesilenciosa.MasnãoeraFarahnemSteven.—AquiéMikaelBlomkvist—disseavoz.—Vocêmeligou.—Issomesmo.Peçodesculpasporterligadoaumahoradessas.—Nãotemproblema.Euestavaacordado.—Eutambém.Vocêpodefalaragora?—Claro.Naverdade,acabeideresponderamensagemdeumapessoaquenósdoisconhecemos.O
nomedelaéSalander.—Quem?—Desculpe,podeterhavidoummal-entendido.Acheiquevocêativessecontratadoparaanalisaros
computadoresdevocêserastrearumapossívelinvasão.Fransdeuumagargalhada.—Essagarotaémesmoespecial—disse.—Elanuncamerevelouseusobrenome,apesardotempo
emquetrabalhamosjuntos.Imagineiquedeviaterasrazõesdelaenuncaapressionei.NosconhecemosduranteasminhasaulasnoInstitutoRealdeTecnologia.Possotecontartodaahistória;paramimfoiumasurpresaetanto.Masoquepenseiemteperguntarfoi…bem,vocêcomcertezavaimedizerqueéumaideiamaluca.—Devezemquandoeugostodeideiasmalucas.—Vocênãoquervirparacáagora?Euficariamuitoagradecido.Tenhoumahistóriabombásticapara
você.Epossopagarseutáxideidaevolta.—Éumagentilezaetanto,masprefiroquecadaumdenósseencarreguedasprópriasdespesas.Epor
quevocêprecisafalarcomigoaestahora?—Porque…—Frans hesitou.—Porque estou comumpressentimento de que nãome restamuito
tempo, oumelhor, é bemmais que umpressentimento.Acabei de saber queminhavida está correndorisco, e há algumas horas um homem estava bisbilhotando o pátio aqui da minha casa. Para dizer averdade,estoucommedoequeropassaradianteasinformaçõesquetenhoomaisrápidopossível.Nãoqueroqueessascoisasfiquemapenascomigo.—Tudobem.—Tudobemoquê?—Estouindo…seeuconseguirumtáxi.Frans passou o endereço a Blomkvist e desligou. Em seguida, telefonou para o professor Steven
Warburton, emLosAngeles, e teve uma conversa intensa de cerca de vinte, trintaminutos numa linhasegura.Depoisselevantou,pôsumacalçajeans,umacamisapolodecashmereepegouumagarrafadeAmarone,casoMikaelBlomkvistseinteressasseporessesprazeres.MasaestaalturaFransBalderteveumsobressaltoenãofoialémdaportadoquarto.
Eleimaginoutervistoummovimento,umvultoatravessandoocaminho,eolhounervosoparaocaisepara omar.Mas não viu nada.Apenas amesma paisagemhostil e tempestuosa de antes, o que o fezconsideraroocorridoapenascomoprodutodesuaimaginaçãoedeseusnervosàflordapele.Oupelomenosele tentouinterpretarassim.Depoissaiudoquartoecaminhouaolongoda janelaemdireçãoàescada que levava ao andar de cima. Incomodado por uma sensação perturbadora, Frans se virou derepenteedessavezdefatoviuumapessoanacasavizinha,dafamíliaCedervall.Umvulto avançava entre as árvores, emesmo que Frans não tenha podido ver a pessoa pormuito
tempo,notouque eraumhomem fortede roupa escura e comumamochilanas costas.O sujeito tinhacorridomeioabaixado,ealgumacoisanomodocomoelesemovimentavapareceubastanteprofissional,como se ele já houvesse corrido daquela forma inúmeras vezes, talvez numa guerra em algum paísdistante. Havia um toque de eficiência e destreza em sua atitude que Frans associou com cenasassustadorasdocinema,etalvezporissoeletenhademoradounssegundosamaisparatirarotelefonedobolsoeencontraronúmerodospoliciaisqueestavamdoladodeforadesuacasa.Elenãotinhaincluídoosdoisnasualistadecontatos,simplesmentehavialigadoparaeles,afimde
queonúmeroficasseregistradonamemóriadocelular,masnaquelemomentonemdissoelepareciatercerteza.Quenúmeroseriaodeles?Fransnãosabiae,commãostrêmulas,experimentouligarparaumqueimaginouserocorreto.Aprincípioninguématendeu.Foramtrês,quatro,cincotoquesatéumavozarquejanteresponder:—AquiéoBlom.Oqueaconteceu?—Euviumhomemcorrendoentreasárvoresdacasavizinha.Nãoseiondeeleestáagora.Maspode
muitobemestarindonadireçãodevocês.—Tudobem.Vamosaveriguar.—Eleparecia…—Fransprosseguiu.—Pareciaoquê?—Nãosei.Rápido?DanFlinckePeterBlomestavamnaviaturapolicialdiscutindootamanhodabundadacolegadeles
AnnaBerzelius.FaziapoucotempoquetantoPetercomoDanhaviamsedivorciado.Tinhamsidodivórciosdolorosos.Osdoistinhamfilhospequenos,mulheresquesesentiamtraídase
sogros que, com um vocabulário bastante variado, davam a entender que eles não passavam de unsmerdasirresponsáveis.Masquandoapoeirabaixoueosdoisconseguiramaguardacompartilhadadosfilhosenovoslares,começaramasentiromesmotipodeimpulso:faltadavidadesolteiro,enosúltimostempos,nassemanasemquenãoestavamcomosfilhos,entregavam-seàfarracomonuncaantes,paradepois, comonaadolescência, ficarem trocandodetalhes sobreas festaseavaliandoasmulherescomquem haviam saído, com direito a resenhas detalhadas de seus corpos e dos talentos que exibiam nacama.Dessavez,noentanto,nãopuderamseaprofundarcomogostariamnabundadeAnnaBerzelius.OcelulardePeter tocoueosdoisseassustaram,primeiroporqueo toqueeraumaversãoumtanto
exageradade “Satisfaction”, depois, e acimade tudo,porque anoite, a tempestade e a ruadesertaoshaviamdeixadopropensosasustos.Petertinhaguardadoocelularnobolsodacalçae,comoelaestava
umpoucojusta—asextravagânciasdavidanoturnafizeramsuabarrigaaumentar—,eledemorouumpoucoatéconseguiratender.Quandodesligoupareciapreocupado.—Oquefoi?—perguntouDan.—OBalderviuumhomem,semovendomuitorápido.—Onde?—Entreasárvoresdacasadovizinho.Eledissequeprovavelmenteosujeitoestavavindonanossa
direção.PetereDansaíramdocarroemaisumavezsechocaramcomofrioquefazia.Osdoishaviampassado
umbomtemponaruaduranteanoiteeaquelalongamadrugada.Masnãotinhamsentidofrionosossoscomoagoraeporuminstantepermaneceramimóveis,olhandodeumladoparaoutro.EmseguidaPeter—omais alto— assumiu o comando e ordenou queDan permanecesse junto à estrada enquanto eleseguiaemdireçãoàpraia.Eraumpequenomorroqueseestendiaparaalémdeumacercademadeiraedeumapequenaaleia
comárvoresrecém-plantadas.Haviacaídoumpoucodeneve,ochãoestavaescorregadioemaisabaixovia-seabaíadeBaggensfjärden,quePeterestranhounãoestarcongelada.Talvezasondasestivessemsemovimentandodemais.Aforçadatempestadeeratremenda,ePeteraamaldiçooujuntamentecomessamissãonoturna,queestavaarruinandosuanoite.Aindaassim,elequeriarealizarotrabalho.Talveznãocomtodaaboavontadedomundo,masmesmoassimqueria.Peter aguçou os ouvidos, olhou ao redor e a princípio não percebeu nada de anormal.Mas estava
escuro.Umpostedeiluminaçãosolitáriobrilhavanoterrenoemfrenteaocais,entãoeledesceu,passoupor uma cadeira de jardim cinza, ou verde, que havia sido arrastada pela tempestade e no instanteseguinteviuFransBaldernointeriordacasa,pertodaenormejanela.Balderestavacurvadosobreumacama,comumaposturatensa.Talvezestivesseajeitandoascobertas,
dali não havia como saber. Parecia ocupado com algum detalhe na cama, mas Peter não deu muitaimportância a isso. Sua tarefa era investigar a área.Mesmo assim, a linguagem corporal deBalder ofascinava,eodesconcentrouporalgunspoucossegundos.EmseguidaPetervoltouàrealidade.Teve o pressentimento incômodo de que alguém o observava, então se virou depressa e correu os
olhosdeumladoaoutro.Masnãoviunada,pelomenosnãonaqueleinstante,equandojáseacalmavapercebeuduascoisasaomesmotempo—ummovimentorepentinonaslixeirasdeaçopróximasdacercaeobarulhodeumcarromaisacimanaestrada.Ocarroparoueumaportaseabriu.Nadadisso,emsi,deveriachamaraatenção.Omovimentopertodaslixeiraspoderiatersidocausado
poralgumanimal,ecomtodaacertezahaviatráfegodeveículosnaquelaregiãotambémdemadrugada.MesmoassimatensãodePetereraenormeeporuminstanteficouparalisado,semsabercomoreagir.EntãoouviuavozdeDan.—Alguémestávindoparacá!Peternãosemexeu.Sentia-seobservadoe,comummovimentoquaseinvoluntário,levouamãoàarma
que trazia na cintura enquanto pensava em sua mãe, na ex-mulher e nos filhos, como se algo graveestivesseparaacontecer.SeupensamentofoiinterrompidocommaisumgritodeDan,destaveznumtomdesesperado:—Polícia!Pareondeestá!
Peter correu instintivamente em direção à estrada,mas não conseguiu afastar a ideia de que haviadeixado uma ameaça para trás, perto das lixeiras. Porém, com seu colega gritando daquele jeito, nãohouve escolha, e ele chegou a se sentir aliviado. Estavamais assustado do que gostaria de admitir ecomeçouacorrerparachegardepressaàestrada.Maisadiante,Danperseguiaumhomemcambaleante,decostaslargaseroupaslevesdemais.Mesmo
pensandoqueaquelafiguranãopodiaserdefinidacomoumviciado,Petertambémcorreuatrásdela,epoucodepoisosdoispoliciaisaalcançarampertododique,juntoaduascaixasdecorreioeumpequenopostedeiluminaçãoqueconferiaumaluminosidadeopacaatodooespetáculo.—Quemévocê,porra?—Danberroudemaneira surpreendentementeagressiva—talvez também
estivessecommedo—,enomesmoinstanteohomemencarouosdoiscomumolharapavorado.Eletinhaperdidoobonéehaviageloemsuabarba,emseucabelo,oquedavaaimpressãodequeele
passavafrioenecessidade.Mas,acimadetudo,seurostopareciafamiliaraPeter.Peterachouqueeleshaviamprendidoumcriminosoprocurado,esentiuorgulhodesimesmo.FransBaldertinhavoltadoaoquartoemaisumavezidoveracamaemqueAugustdormia,quemsabe
até para escondê-lo sob as cobertas caso algo acontecesse. Depois ocorreu-lhe uma ideia absurda,causadapelaimpressãoquetinhaacabadodeter,eessaideiaganhouforçadepoisdaconversaquetiveracomStevenWarburton.Aprincípioela foradescartadacomoumagrande imbecilidade,dessasque sósurgemaltashorasdanoite,quandoospensamentoscostumamficarturvadospelaemoçãoepelomedo.Em seguida se deu conta de que não era uma ideia nova, mas que ela tinha amadurecido em seu
inconsciente no decorrer das incontáveis noites em claro que ele passara nosEstadosUnidos.Assim,pegouseunotebook,opequenosupercomputadorconectadoaumasériedeoutrosequipamentosparaqueadquirisseacapacidadenecessáriaepudesserodaroprogramadeIA,aoqualFranshaviadedicadotodaasuavida,eagora…Incompreensível,não?FransBaldernãosedeteveparapensar.Simplesmenteapagouoarquivoetodososbackups,sentindo-
seumdeuscruelexterminandoumavida—e talvezfosse issomesmoqueele tinhaacabadodefazer.Nãohaviacomosaber,eporalgumtempoBaldercontinuousentado,pensandoseoarrependimentoeoremorsoacabariamporconsumi-lo.Otrabalhodeumavidainteirahaviadesaparecidocomoapertardeunspoucosbotões.MasestranhamenteBaldersentiu-semaistranquilo,comosetivesseseprotegidoempelomenosuma
frentedebatalha.Depoisselevantoueolhoumaisumavezparaanoiteescuraeatempestade.Otelefonetocou.EraDanFlinck,umdospoliciais.—Euqueriadizerquepegamososujeitoquevocêviu—eledisse.—Podeficartranquiloagora.A
situaçãojáestásobcontrole.—Equeméele?—Fransperguntou.—Nãoseidizer.Eleestámuitobêbadoeestamostentandoacalmá-lo.Ligueiapenasparadizerqueo
pegamos.Depoisligodenovoparadarmaisdetalhes.Fransdesligouotelefonequeestavanamesadecabeceira,bemaoladodonotebook,eprocurouse
congratular.Apolíciatinhapegadoohomemesuaspesquisasnãoiriammaiscairemmãoserradas.Mas
nemassimconseguiuseacalmar.Nãoentendeuporque,masdepoispercebeu:adescriçãodeumhomembêbadonãobatia.Ovultoqueeletinhavistocorrendoentreasárvorespodiaserqualquercoisa,menosumbêbado.AlgunsminutossepassaramatéPeterBlomperceberqueelesnãohaviamcapturadonenhumcriminoso
conhecidoeprocurado,esimoatorLasseWestman,quemuitasvezestinhafeitoopapeldegângsteredeassassino profissional na televisão,mas que dificilmente teria contra si ummandado de prisão. Essaconstatação,porém,emnadaserviuparaacalmarPeter.Nãoapenasporterachadoqueforaumerroelesse afastarem das árvores e das lixeiras,mas também porque nomesmo instante percebeu que aqueleinterlúdiopoderiaacabaremescândaloemanchetesdejornais.PetersabiaqueLasseWestmanvoltaemeiaviravanotícianaimprensavespertina,eninguémpoderia
afirmarqueelepareciacontenteali.Bufavaepraguejavaenquantotentavasepôrdepé,ePetertentavaimaginaroqueeleestariafazendonaquelelugaremplenamadrugada.—Vocêmoraporaqui?—perguntouopolicial.—Nãotenhonenhummotivoparafalarcomvocê,seumerda!—gritouLasseWestman.Peterentão
olhouemvolta,tentandoacharDan,paraentendercomotodaaquelahistóriatinhacomeçado.MasDanhavia se afastadoumpoucoe falavaao telefone, semdúvidacomBalder.Queriamostrar
serviçoeinformarqueosuspeitoforacapturado,seéqueaqueleeradefatoosuspeito.—VocêandouxeretandoopátiodoprofessorBalder?—perguntouPeter.—Vocênãoouviuoque eu falei?Nãovoudizermerdanenhuma.Porra, eu estava aqui passeando
tranquilamente e de repente aquelemaluco apontou uma arma paramim!É um absurdo.Vocês sabemquemeusou?—Eu sei, e se você acha que o nosso comportamento não foi adequado eu peço desculpas. Com
certezavamosteraoportunidadederetomaresseassunto.MasestamostrabalhandosobmuitapressãoeexijoquevocêmeexpliquedeumavezportodasoqueestavapretendendoaorondaracasadoprofessorBalder.Enempenseemfugir!Lasse Westman enfim conseguiu se levantar e não tentou fugir; tinha dificuldade para manter o
equilíbrio.Emseguidapigarreouecuspiuparacima,àvistadospoliciais.Masocuspenãofoilongee,comoumprojétil,caiudevoltaemsuabochecha,ealicongelou.—Quersaberdeumacoisa?—LasseWestmanperguntouenquantolimpavaorosto.—Não.—Nãosoueuocriminosodessahistóriatoda.Peterolhoupreocupadonadireçãodaáguaedaaleiaemaisumavezseperguntouoqueteriavistolá
embaixo.Aindaassim,permaneceuali,paralisadoporaquelasituaçãoabsurda.—Equemé,então?—OBalder.—Porquê?—Porqueelelevouofilhodaminhanamorada.—Eporqueelefariaisso?
—Nãopergunteparamim.Pergunteprogêniodainformáticaqueestánaquelacasa!Essedesgraçadonãotemodireitodeficarcomomenino—disseLasseWestmanenquantoremexiaobolsointernodocasaco,comoseestivesseàprocuradealgumacoisa.—Nãotemnenhumacriançaládentro,seéissoquevocêestápensando—dissePeter.—Claroquetem,porra.—Temcerteza?—Tenho.—Entãovocêresolveuviraquiemplenamadrugada,bêbadocomoumgambá,parapegaromenino
—continuouPeter,eelejáiafazeroutrocomentáriomaldoso,quandofoiinterrompidoporumtilintarsuavequepareciavirdadireçãodomar.—Oquefoiisso?—disse.— Isso o quê?— perguntou Dan, que estava próximo dele e parecia não ter ouvido nada, e era
verdadequeosomnãotinhasidomuitoaltonemvindodolugarondeelesestavam.Peter sentiu um arrepio que lhe lembrou omovimento que achava ter visto perto das árvores e da
lixeira,eestavaprestesavoltarpara lá,quandomaisumavez recuou.Talvezestivessecommedoousimplesmenteindecisoeincapazdetomarumadecisão—nãosoubedizeraocerto.Olhoupreocupadoaoredoreouviuosomdeumcarroseaproximando.UmtáxipassouporeleseparounafrentedacasadeFransBalder,oquedeuaPeterumadesculpa
paracontinuarjuntodaestrada.Enquantoomotoristaeopassageiroacertavamopagamento,opoliciallançou um olhar inquieto em direção à água e imaginou ter ouvido um barulho nem um poucotranquilizador.Masnãotevecertezadenada.Naqueleinstante,aportadotáxiseabriueumhomemdesceu.Confuso,
depois de alguns segundos Peter reconheceu o jornalistaMikael Blomkvist. Por que diabos todas ascelebridadestinhamresolvidoirparalánaquelamadrugada?
10.MANHÃDE21DENOVEMBRO
FransBalderestavanoquarto,emfrenteaocomputadoreaotelefone,olhandoparaAugust,quenãoparava de resmungar enquanto dormia. Perguntou-se com o que omenino estaria sonhando. Será queexistiaummundoqueeleentendesse?Baldergostariadesaber.Gostariadecomeçaraviveredenãoseenterrarmaisemalgoritmosquânticosecódigos-fonte,edenãosentirmedoeparanoia.Queriaserfeliz,nãosermaisatormentadoporaquelapressãoconstantenocorpo.Tinhavontadedese
deixarlevarporqualquercoisaespontâneaegrandiosa,umromanceouatémesmoumamorverdadeiro,e por instantes seu pensamento se voltou com intensidade para algumas mulheres que o fascinavam:Gabriella,Farahemuitasoutras.PensoutambémemSalanderenoquantoesteveenfeitiçadoporela.Lembroudeumdetalheaomesmo
tempo novo e já conhecido que nunca lhe vinha com clareza à mente.Mas então ele surgiu: ela lhelembravaAugust.Claro,parecialoucura,Augusteraummeninoautista.Noentanto,Lisbetherajovemetinha um certo jeito de menino. Não, os dois eram totalmente diferentes. Lisbeth se vestia de preto,adotavaumestilopunkenãofazianenhumtipodeconcessão.Aindaassim,Balderrecordouoolhardela,e nele havia o mesmo brilho singular que percebera nos olhos de August enquanto ele observava osemáforodaHornsgatan.FranstinhaconhecidoLisbethemEstocolmo,numapalestranoInstitutoRealdeTecnologia,naqual
elehaviafaladosobresingularidadetecnológica,ahipótesedeoscomputadoresviremasetornarmaisinteligentesdoquearaçahumana.Tinhacomeçadoapalestraexplicandooconceitodesingularidadenafísicaenamatemática,quandoderepenteaportaseabriueumagarotamagrae todavestidadepretoentrounoauditório.Balderpensoucomoera lamentável aquilo, e seosviciadosnão tinhamum lugarmelhorpara ir.Masdepoisduvidouqueagarota fossemesmoumaviciada.Nãodavaa impressãodeestarpassandonecessidades.Poroutro lado,pareciacansadaedemauhumor,semprestaratençãoemumapalavradoqueeledizia.Simplesmenteficoulargadanacadeira,atéque,depoisdeumraciocíniosobre ponto singular numa análise matemática complexa, em que os valores dos limites se tornavaminfinitos,Balderdecidiuperguntaroqueelaachavadaquilo.Umaatitudecondenáveladele,esnobe.Porqueesfregarseusconhecimentosnacaradagarota?Equalfoioresultado?Ela ergueuo rosto e disse que, emvez de ele ficar alardeando todos aqueles conceitos duvidosos,
deviaeraalimentaralgumceticismosobreaquilo,assimestariaprontonodiaemqueosfundamentosdetodososcálculosdeleviessemabaixo.Emvezdeumcolapsoda físicadomundoreal,aquiloeraumsinaldequeamatemáticaadotadaporBaldererainsuficiente.Portanto,amistificaçãodasingularidade
dos buracos negros não passava de populismo dele, porque na verdade o grande problema era,obviamente,ainexistênciadeumamecânicaquânticacapazdecalcularaforçadagravidade.Depois, com uma clareza assustadora, que causou furor no auditório, Lisbeth fez uma crítica
devastadoraaosteóricosdasingularidadequeBalderhaviacitado,eelenãoconseguiurebatermaisdoquecomumaperguntaexasperada:—Quemdiabosévocê?Essetinhasidooprimeirocontatoentreosdois,emaistardeLisbethvoltariaasurpreendê-lo.Elao
entendiadeimediato,àsvezescomseusimplesolharreluzente,equandoBalderporfimpercebeuqueatecnologiaqueelehaviadesenvolvidoforaroubada,pediuajudaaela,oqueosaproximoumais.Desdeentãoosdoispassaramapartilharumsegredo,eeraemLisbetheemtudoissoqueBalderpensavaemseuquarto,quandoderepentefoitomadoporumenormedesconfortoqueofezolharparaooutroladodaportaaberta,ondeseavistavaagrandejanelavoltadaparaomar.Emfrenteàjanelaeleviuumvultoimponentetododepreto,comumgorrotambémpretonacabeçae
umapequenalanternapresaàtesta.Ovultomexeunajanelaeemseguidagolpeou-acomummovimentoimpetuoso,comoumartistadandoinícioaumanovaobra.AntesqueFransconseguissegritar,ajanelatodadesaboueovultosepôsemmovimento.O vulto se chamava Jan Holtser e costumava dizer que trabalhava com segurança industrial. Na
verdadeeleeraumvelhosoldadorussodeeliteque,emvezdeproporsoluçõesdesegurança,preferiacolocá-lasàprova.Executavaoperaçõescomoaquelaeemgeralfaziaumestudopréviotãometiculosodesuasmissõesquenapráticaosriscosnuncaeramtãograndesquantopareciam.Tinhaumapequenaequipedeprofissionaiscompetentesejánãoeraumgaroto.Comcinquentaeum
anos,mantinha-seemformaàcustade treinosduroseeraconhecidoporsuaeficáciaecapacidadedeimprovisação.Aodepararcomcircunstânciasinesperadas,eracapazdeavaliá-lasrapidamenteefazerosajustesnecessáriosaoplano.Acimadetudo,usavasuaexperiênciaparacompensarovigorperdidocomofimdajuventude,eàs
vezes — no pequeno grupo em que podia falar abertamente — mencionava um sexto sentido quefuncionavacomouminstintodepreservação.Osanoslhehaviamensinadoomomentocertodeaguardaredeatacare,mesmoquenosúltimostemposhouvesseperdidoaformaedadosinaisdefraqueza—suafilhachamavadesinaisdehumanidade—,sentia-semaispreparadodoquenunca.Havia recuperado a alegria com seu trabalho, o velho sentimento de emoção e adrenalina e,
naturalmente,continuavaingerindoseusdezgramasdeStesolidantesdequalqueroperação.Eraapenasparamelhoraraprecisãonomanejodasarmas,poiscontinuavatotalmentelúcidoealertanosmomentoscríticos e sempre conseguia fazer o que havia planejado. Jan Holtser não era o tipo de sujeito quedecepcionavaoudesistia.Essaeraaimagemquetinhadesipróprio.Naquela noite, porém, havia pensado em abortar a operação, por mais que seu cliente houvesse
enfatizadoquenãodispunhademuitotempo.Oclimaerasemdúvidaumfatoraselevaremconta,eascondiçõesdodiaeramumtantoadversasparaaexecuçãodoserviço.Masatempestade,apenas,jamaisoteriafeitoconsiderarapossibilidadedecancelaraoperação.Afinal,erarusso,militarehavialutado
emcircunstânciasbempioresdoqueaquelas,alémdeabominarpessoasquereclamavamsemmotivo.OquemaispreocupavaJanHoltsereraavigilânciapolicialquehaviasurgidoderepente,semqueele
soubesse.Passaraumbomtempoobservandoosagenteseanalisandoamaneiracomoinspecionavamopátio,comevidentemávontade,comogarotosforçadosairparaaruadebaixodeummautempo.Oqueelesmaisqueriameraficarnocarrojogandoconversafora.Alémdomais,osdoisseassustavamcomfacilidade,oupelomenosoagentemaisalto.Ele parecia ter medo de escuro, de tempestade e do mar sombrio. Um pouco antes tinha dado a
impressão de estar apavorado enquanto fazia uma varredura entre as árvores. Talvez houvessepressentidoapresençadeJan,emboraJannãoestivessenemumpoucopreocupadocomisso.Sabiaquenãofaziabarulhoaosemovimentarequepoderiacortaragargantadopolicialnumpiscardeolhos,senecessário.Apesardisso,apresençadapolíciaalinãoeraagradável.Mesmo que fossem policiais de segunda categoria, o fato de estarem lá representava um risco
considerável e, acima de tudo, uma indicação de que parte dos planos havia vazado e de que osadversáriosestavampreparados.Talvezoprofessorhouvessepassadoadiantealgumas informações,enessecasoaoperaçãoseriainútil,podendoatémesmoagravarasituaçãodeseucliente.Jannãoqueriaexpô-loariscosdesnecessários.Gostavadepensarqueessaerapartedesuaforça.Sempreconseguiaanteverasituaçãoe,apesardotrabalhoquefazia,muitasvezeseraelequemaconselhavaoclienteasermaiscauteloso.JanHoltsersabiamuitobemqueváriasorganizaçõescriminosasdeseupaístinhamsidodesmontadas
exatamenteporcausadesuaforteinclinaçãoparaaviolência.Aviolênciainspirarespeito.Elaécapazdeassustarecalar,e tambémdeeliminar riscoseameaças.Mas tambémpodeproduzirocaoseumasérie de consequências indesejadas. Jan havia pensado em todas essas coisas enquanto se mantinhaescondidoentreasárvoreseatrásdaslixeiras.Emalgunsmomentosteveacertezadequehaviachegadoahoradeabortaraoperaçãoedevoltarparaoseuquartonohotel.Masnãofoioqueelefez.Um carro havia surgido e distraído a atenção dos policiais, e foi nesse instante que Jan viu uma
possibilidade,umabrecha,eassim,semnemmuitaconsciênciadeseusmovimentos,ajustoualanternanacabeça.Emseguidapegouaserradediamanteeaarma,uma1911R1Carrycomsilenciadorespecial,sentindoopesodesuasferramentasdetrabalho.Entãodisse,comocostumavafazer:—Sejafeitaatuavontade,amém.Mesmoassimpermaneceuimóvel.Aindaestavainseguro.Seriamesmoahoracertadefazeraquilo?
Eleteriadeagircomenormerapidez.Poroutrolado,conheciabemaplantadacasa,eJurijtinhaestadoláduasvezesparahackearo sistemadealarme.Alémdisso,ospoliciaiseramamadores inveterados.Mesmoquedemorasseumpoucomaisdoqueoplanejado—casoocomputadornãoestivesseaoladodacama,porexemplo,eospoliciaischegassemparasocorreroprofessor—,Janpoderialiquidarosdoisagentessemdificuldade.Nofundo,estavaansiosoparaentraremação,porissosussurroudenovo:—Sejafeitaatuavontade,amém.Entãodestravouaarma,avançoudepressaatéagrandejanelavoltadaparaomareolhoucommuito
cuidadoointeriordacasa,talvezaindaconsiderandooriscodasituação.JanteveumareaçãobastanteextremaaoverFransBalderdepénoquarto,profundamenteconcentrado,quemsabetentandogarantirasi mesmo que tudo estava bem. Seu alvo ali exposto. No entanto, Jan sentiu de novo um mau
pressentimentoevoltouaseperguntarsenãoseriaprudentesuspenderaoperação.Elenãosuspendeu.Emvezdisso,estendeuobraçodireitoeempregoutodasassuasforçasparaquea
serradediamantecorressepelovidro,atéqueelecedeucomumbarulhopreocupante.Jan,então,saltouparadentrodacasaeapontouaarmaparaFransBalder,queoencaravasemdesviarosolhoseacenavacom a mão como se o estivesse cumprimentando de forma desesperada. Em seguida, como que numtranse,oprofessorcomeçouarecitardemaneiraconfusaegrandiloquenteoquepareciaserumaoração.Masemvezde“Jesus”oude“Deus”,eleapenasdizia“deficiente”.Jannãoconseguiuentendermaisdoqueisso,masqueimportava?Ele já tinhaouvidoaspessoasdizeremtodaespéciedecoisasestranhasnessahora.Eelenuncademonstrounenhumapiedade.Depressa e num silêncio quase absoluto, o vulto passou do corredor para o quarto. Frans se
surpreendeuqueosistemadealarmenãotivessedisparadoenotounablusadohomemodesenhodeumaaranha cinza logo abaixo do ombro e que em sua testa, entre o gorro e a lanterna, havia uma cicatrizestreitaecomprida.SóentãoFransBalderviuaarma.OhomemapontouapistolaparaeleeFransergueuamãonuma
tentativa inútil de se proteger, e aomesmo tempopensando emAugust.Mesmoque sua vida corresseperigoeseuspensamentosestivessemcheiosdemedo,acimade tudopreocupava-secomofilho.Queacontecessecomeleoquetinhadeacontecer!Quemorresse,seeraparaserassim,masqueAugustfossepoupado.EntãoFransdisse:—Nãomatemeufilho!Eleédeficiente,nãoentendenada.MasFransBaldernãosabiaquelherestavatãopoucotempo.Omundointeirodesapareceu,anoiteea
tempestadeláforapareceramirdeencontroaele,etudoficouescuro.JanHoltser atirou e, comoesperava, suaprecisãonãodeixou a desejar.Atingiu a cabeçadeFrans
Baldercomdois tiroseoprofessorcaiunochãocomoumboneco—nãohaviadúvidadequeestavamorto.Mas alguma coisa parecia fora do lugar.Uma rajada de vento soprou domar e deslizou pelopescoçodeJancomoumacriaturadecorpogelado,eeleaindanãoentendiaoqueestavaacontecendo.Tudohaviasaídocomoplanejado,umpoucomaisadianteeleviuocomputadordeBalderexatamente
onde lhe disseram que estaria, portanto bastava pegá-lo e fugir dali. Jan precisava agir com toda aeficácia possível.Mesmo assim, permaneceu como que congelado, e só foi entender o porquê de suahesitaçãomomentosdepois.Nacamadecasal,praticamenteocultoporumedredom,ummeninodecabelodesgrenhadooencarava
comolhosvidrados,eJansentiuumestranhomal-estar.Nãoapenasporqueogarototivesseumolharquepareciasondarsuaalma;haviamaisalgumacoisa.Mas…queimportânciatinhaisso?JanHoltser tinhaum trabalho a cumprir.Nadapoderia transformar aquelaoperaçãonumaaventura,
nadapoderiacolocá-laemrisco.Naqueleinstantehaviasurgidoumatestemunha,equandosemostraorostonãopodehaver testemunha.Entãoapontouaarmaparaomeninoeparaaquelesestranhosolhosbrilhantesebalbucioupelaterceiravez:—Sejafeitaatuavontade,amém.
MikaelBlomkvistdesceudotáxicalçadocombotaspretaseusandoumcasacodepelebrancocom
goladecourodecarneiro,bemcomoumvelhogorrodepeleherdadodopai.Eram vinte para as três da manhã. O Ekonyheterna havia noticiado um acidente grave com um
caminhãoquesupostamentebloquearao trânsitoemVärmdöleden,porémMikaeleo taxistanãoviramnada — tinham feito o percurso sozinhos, em meio à escuridão e aos subúrbios açoitados pelatempestade.Mikael estava exausto eoquemaisdesejavaera ficar emcasapara sedeitar ao ladodeErikaedormir.Mas não tinha conseguido dizer não aBalder, e não sabia por quê. Podia ter sido uma espécie de
chamadoaodever,umsentimentodequenãopoderiarelaxarenquantoarevistaestivesseemcrise,ouentão tinha sidoporcausado jeito solitárioeassustadodeBalder,oquedespertou suacuriosidadeesolidariedade. Não que Mikael acreditasse em alguma história sensacional. Pelo contrário: suaexpectativaeradequeteriaumagrandedecepção.MastalvezpudesseapenasouviroprofessorBalderedesempenharopapeldeterapeutaouodeumguarda-noturnoemdiadetempestade.Nãohaviacomotercerteza de nada, e ele pensou em Lisbeth de novo. Ela só fazia o que quer que fosse se tivesse umexcelente motivo. No entanto, Frans Balder era uma pessoa excêntrica, que nunca aceitava darentrevistas, e falar com ele podia ser interessante, Mikael pensou enquanto corria os olhos pelaescuridão.Umpostequeemitiaumbrilhoazuladoiluminavaacasa,umbeloprojetoarquitetônicocomjanelas
amplasequelembravaumtrem.Juntoàcaixadecorrespondência,Mikaelviuumpolicialcomcercadequarentaanos,pelelevementebronzeadaeexpressãotensaenervosanorosto.Umpoucomaisadiantenaestrada, outro policial, de estatura menor, discutia com um homem aparentemente alcoolizado quegesticulavacomosbraços.OlugarestavamaisagitadodoqueMikaeltinhaimaginado.—Oqueestáacontecendo?—eleperguntouaopolicialmaisalto.Nãohouve resposta.O telefonedopolicial tocouenomesmo instanteMikaelpercebeuquealguma
coisatinhaacontecido.Osistemadealarmenãoestavafuncionandocomoseesperava.Masnãohouvetempoparaentendertodososdetalhes.Logoeleouviuumbarulhopreocupantenopátioeinstintivamenteoassociouàconversatelefônica.Deudoispassosparaadireitaeolhounadireçãodeumpequenomorroqueseestendiaparaumcaiseomar,etambémnadireçãodeumoutropostequereluziacomumbrilhoazuladoefosco.Nesseinstanteviuumvultocorrendo,eentãoMikaelentendeuquehaviaalgoerrado.JanHoltserestavacomodedonogatilhoeprestesaatirarnomenino,quandoouviuobarulhodeum
carro na estrada e hesitou.Não por causa do carro. Voltou a pensar na palavra “deficiente”, emborasoubessemuitobemqueoprofessor teria razõesdesobraparamentiremseuúltimo instantedevida.Aindaassimolhounovamenteparaomeninoeseperguntousedefatonãoseriaverdade.Osilêncionocorpodomeninoeragrandedemaiseorostotransmitiaumasensaçãodeespanto,enão
demedo, como se ele realmentenãohouvesse entendidooque tinha acabadode acontecer.Seuolharvaziopareciavidradodemaisparaperceberqualquercoisa.
Eraoolhardealguémsemfala,semconsciência,eissonãofoiapenasumaimpressãodeJan.Eleselembroudeumtextoquehavialidoemsuaspesquisassobreaquelaoperação.DefatoBaldertinhaumfilhoportadordeumadeficiênciamentalsevera,emboraosjornaiseadecisãojudicialsobreaguardadomenino tivessemafirmadoqueelenãosededicavaàcriança.Maselaestava lá, e Jannãopodianemprecisavamatá-la.Seriaalgototalmentesemsentidoeumatentadoàsuaéticaprofissional.Janbaixouapistola,pegouocomputadoreocelulardeBalder,queestavamnocriado-mudo,eos
colocounamochila.Depoissaiucorrendonomeiodanoiteedatempestade,seguindoarotadefugaquehaviaescolhido.Masnãotinhaidomuitolongequandoouviuumavozesevirou.Noaltodaestrada,viuumhomemquenãoeranenhumdosdoispoliciais,esimumnovopersonagem,decasacoegorrodepelee cuja atitudevinha investidadeumaautoridademuitodiferente, oquepode ter levado JanHoltser aergueraarmamaisumavez.Elepressentiuperigo.Ohomemquepassoucorrendoestavatododepreto,tinhaexcelenteformafísicaeumalanternapresa
àtesta,eporalgummotivoMikaelteveaimpressãodequeaquelevultoerapartedeumtodomaior,deuma operação cuidadosamente orquestrada. Chegou a pensar que outros vultos iriam emergir daescuridão,oquelhecausougrandedesconforto.Elegritou:—Ei!Pare!Foiumerro,eMikaelentendeuissonoinstanteemqueviuocorpodohomemseenrijecercomoode
umsoldadonocalordabatalha,semdúvidaporcausadesuareaçãoprecipitada.Quandoodesconhecidosacouumaarmaedisparoudemaneiradecidida,Mikaeljáhaviasejogadonochãoeseprotegidonumadasextremidadesdacasa.Odisparofoiquasesilencioso,mas,comoatingiuacaixadecorrespondênciadeBalder,nãohouvedúvidasobreoqueacabaradeacontecer.Opolicialaltoencerrouabruptamenteaconversa,mas não semoveu. Estava paralisado, e a única pessoa a dizer alguma coisa foi o homemalcoolizado.—Masqueporradecircoéesse?Oqueestáacontecendo?—gritouLasseWestmancomumavoz
poderosaeestranhamentefamiliar.Foiapenasnessemomentoqueospoliciaiscomeçaramafalar,comvozassustada:—Issofoiumtiro?—Achoquefoi.—Oquevamosfazer?—Precisamospedirreforços.—Masosuspeitoestáfugindo!—Entãotemosquedarumaolhada—disseopolicialmaisalto,ecommovimentoshesitantes,como
sepretendessemdeixaroatiradorfugir,osdoissacaramsuasarmasedesceramemdireçãoaomar.Umpoucomaisadiantenaescuridãodeinverno,umcachorrolatia,umcachorropequenoebravo,e
umventofortesopravadomar.Flocosdeneverodopiavameochãoestavaliso.Opolicialmaisbaixoquaseescorregoueprecisouseequilibraragitandoosbraçoscomoumpalhaçoparanãocair.Comumpouco de sorte, os dois conseguiriam evitar um encontro com o homem lá embaixo. Mikael teve aimpressãodequeovultopoderia se livrar daqueles jovenspoliciais com imensa facilidade.Omodo
rápido e eficaz comohavia seviradoe sacadoa armamostrava treinopara situações comoaquela, eMikaelachouquetalvezfossenecessárioagir.Elenãotinhanadacomquepudessesedefender.Levantando-sedochão,espanouanevedaroupae
olhoumaisumavezparaomorro,e,peloqueobservou,nãohaviaacontecidonadademuitodramático.Ospoliciaisestavamcorrendoao longodapraiaemdireçãoàcasavizinha.Oatiradordepretohaviadesaparecido e Mikael resolveu ir para a casa de Balder. Ali, logo notou uma das janelas lateraisquebrada.Haviaumenormeburaconacasa.EmfrenteaMikael,noladodedentro,umaportaestavaaberta,eele
pensouquetalvezdevessechamarospoliciais.Masnãofezisso.Ouviuumsom,umaespéciedechoro,eentroupelajanelaquebrada,indodarnumcorredorcompisodecarvalhoquecintilavanaescuridão.Foiavançandodevagaremdireçãoàportaaberta.Comcertezaosomvinhadelá.—Balder?—elechamou.—Soueu,MikaelBlomkvist.Aconteceualgumacoisa?Não houve resposta. O choro ganhou força, e nesse instante Mikael respirou fundo e entrou. No
instante seguinte, teve um sobressalto que o paralisou por completo; depois já não sabia o que havianotadoprimeironemoqueoassustaramais.Nãotevecertezadequeeraumcorpooqueviunochão,apesardosangue,daexpressãodorostoedoolharvidrado.Essacenapodiamuitobemestarreproduzidanaenormecamadecasallogoaolado.Aprincípionão
foisimplesentenderoquehaviaacontecido.Ummeninodesete,oitoanos,defeiçõesdelicadasecabeloloiroedesgrenhado,comumpijamaxadrezazul,seatiravarepetidamentecontraacabeceiradacamaeaparede. O garoto parecia fazer o possível para semachucar, e seu choro não soava como o de umacriança,mascomoodealguémconcentradoembateromaisfortepossível.Antesquepudessecolocarsuasideiasemordem,Mikaelcorreuparaele,gestoqueinfelizmentenãoajudouamelhorarasituação.Omeninocomeçouasedebaterdemaneiraaindamaisincontrolável.—Calma—pediuMikael.—Calma—disse,abraçandoacriança.Omeninosecontorciaesedebatiacomumaforçasurpreendenteeexplosiva,eassim,talvezporque
Mikaelrelutasseemsegurá-locomforça,conseguiusesoltare ircaminhandodescalçoatéocorredor,seus pés sobre os cacos de vidro, enquantoMikaelBlomkvist corria atrás dele gritando “Não, não!”.Nesseinstanteosdoispoliciaisapareceram.Estavamdoladodeforadacasacomumaexpressãodeabsolutaperplexidade.
11.21DENOVEMBRO
Maistardeficouconstatadoqueapolícianãohaviaadotadoosprocedimentoscorretosequenenhumbloqueio tinha sido feito na região antes que já fosse tarde demais.Ohomemquematara o professorBalder tinha fugido semnenhumadificuldade, e os policiais que estavamno local, PeterBlom eDanFlinck, apelidados por seus colegas de “os Casanova”, tinham demorado para dar o alarme, ou pelomenosnãohaviamprocedidocomaforçaeaautoridadenecessárias.Osperitoseinvestigadoresdadivisãodehomicídioschegaramaolocalsomenteàstrêsequarentada
manhã, acompanhadosporuma jovemchamadaGabriellaGrane,que todos imaginaramserparentedeBalderemrazãodeseuestadodenervos.MaistardeficouesclarecidoquesetratavadeumaanalistadaSäpoenviadaaolocaldocrimepelaautoridademáximadoórgão.NãoqueGabriellaseimportasse,mas,por força do preconceito de seus colegas, ou talvez porque fosse vista como uma pessoa tambémestranha,coubeaelaaresponsabilidadepelomenino.— Você parece ser a pessoa ideal para essa tarefa — disse Erik Zetterlund, responsável pela
investigação, ao vê-la examinando os ferimentos nos pés domenino.Mesmo que tivesse retrucado eexplicadoquetinhaoutrascoisasafazer,GabriellaseenterneceuquandoolhounosolhosdeAugust.August—esseeraonomedele—estavaparalisadodemedo,epormuitotempoficouolhandoparao
chão,noandarsuperiordacasa,epassandoosdedosmecanicamentenumtapetepersavermelho.PeterBlom,queemoutrassituaçõeshaviademonstradocertaincapacidadedetomardecisões,achouumameiaefezcurativosnospésdomenino.TambémseconstatouqueAugusttinhahematomasportodoocorpoeumaferidaabertanoslábios.SegundoojornalistaMikaelBlomkvist—cujapresençanacasacausavaumnervosismoperceptível—,omeninohaviabatidoacabeçacontraaparedeeacamanoandardebaixoedepoiscorridodescalçopelocorredor,pisandonoscacosdevidro.GabriellaGrane,queporalgummotivorelutavaemseapresentaraBlomkvist,percebeudeimediato
queAugusthaviatestemunhadooassassinatodopai.Maselanãoconseguiaestabelecercontatocomomenino nem lhe oferecer consolo. Bastou uma rápida observação para concluir que abraços e umtratamentocarinhososeriamineficazes.AugustpareciaseacalmarmaisquandoGabriellasimplesmenteficavaaoladodele—nãomuitopróxima—cuidandodeseusprópriosassuntos,eumaúnicavezAugustpareceuseinteressarpeloqueGabriellafazia.FoiquandoelaconversavacomHelenaKraftaotelefoneemencionouonúmerodacasa,79.MasGabriellanãodeumuitaatençãoaessedetalheepoucodepoiscomeçouafalarcomHannaBalder,queestavamuitoabalada.Hannaqueriaterofilhodevoltaimediatamentee,demaneiraumtantoinusitada,pediuque,assimque
possível,Gabriellapegasseumquebra-cabeça,depreferênciaoqueretratavaonavioVasa,quedeviaestaremalgumlugarnacasadeFrans.Acrescentouquenãoculpavaoex-maridoporterlevadoofilhodemaneirailegalequenãosabiaporqueseunoivotinhaidoparaafrentedacasadeFransexigirqueeledevolvesseAugust.Equeointeressepelobem-estardomeninonãodeviaseroquetinhamotivadoLasseWestmanafazerisso.Amera presença domeninona casa trouxe luz a alguns antigos pontos de interrogaçãoque vinham
incomodando Gabriella. Só então ela entendeu por que Frans Balder parecia se esquivar de certassituaçõesetambémporquenãohaviacompradoumcãodeguarda.Aindademanhã,GabriellapediuqueummédicoeumpsicólogolevassemAugustàcasadesuamãe,emVasastan,casoelenãoprecisassedemaiscuidadosmédicos.Emseguida,umpensamentonovolheocorreu.TalvezoassassinatodeBaldernãotivessecomoobjetivosilenciá-lo.Poderiamuitobemtersidouma
tentativade roubo—nãoo roubodealgobanalcomodinheiro,masdo resultadodaspesquisasdele.GabriellanãotinhaamenorideiadoqueBalderhaviafeitoemseuúltimoanodevida.Talvezninguémsoubesse.Masnãoseriadifícilimaginar:provavelmentetinhaavercomodesenvolvimentodoprogramadeIAquejáparecerarevolucionárionaprimeiravezemqueforaroubado.OscolegasdeledaSolifontinhamfeitodetudoparadescobriremqueoprofessorestavatrabalhando,
e,a julgarpeloquecertavezFranshaviadeixadoescapar,eleprotegiasuaspesquisascomoumamãezelosaolhaporseufilhorecém-nascido,oquetalvezsignificassequeeleasmantinhapertodesiquandoiadormir,quemsabeaoladodesuacama.Assim,Gabriellaselevantou,pediuaPeterBlomqueficassedeolhoemAugustedesceuatéoquartoondeosperitosestavamtrabalhando.—Vocêsnãoencontraramumcomputadoraqui?—perguntou.Os peritos balançaram a cabeça, dizendo que não, e Gabriella pegou seu telefone para falar com
HelenaKraft.Logo se constatou que LasseWestman havia sumido. Certamente tinha aproveitado o tumulto para
escapar,oquelevouoresponsávelpelomonitoramentodecomunicações,ErikZetterlund,apraguejaregritar,sobretudoquandorecebeuanotíciadequeWestmannãoestavanoapartamentodaTorsgatan.ErikZetterlund chegou a pensar em emitir uma ordem de prisão, o que fez seu jovem colegaAxel
Andersson perguntar se LasseWestman devia ser procurado como um homem perigoso. Talvez AxelAnderssonfosseincapazdenotaradiferençaentreWestmaneospersonagensqueeleinterpretava.Masemsuadefesapodia-sedizerqueasituação,defato,estavacadavezmaisconfusa.Erabastanteevidentequeoassassinatonãoforaumacertodecontasemfamília,nemresultadodeuma
bebedeiraquehaviaescapadodecontrole,nemumcrimepraticadoàspressas.Haviasidoumataquefrioebemplanejadocontraumdosmaiorescientistassuecos.Eascoisasnãoficaramnemumpoucomaisfáceis quando Jan-Henrik Rolf, chefe da polícia do condado, afirmou que o assassinato devia serencaradocomoumdurogolpecontraosinteressesdaindústriasueca.ErikZetterlundviu-sederepenteàsvoltascomumacontecimentodeprofundasconsequênciasparaapolíticainternadopaís,emesmoquenãofosseomembromaisilustradodaforçapolicial,sabiamuitobemquetudoqueelefizesseapartirdeagorateriaumimpactodecisivonocursodainvestigação.
Erik Zetterlund, que havia feito quarenta e um anos dois dias antes e ainda sentia os efeitos dacelebração,nunca tinhaestadonempertodeassumira responsabilidadeporuma investigaçãodaquelenível.Essaoportunidadecaiuemsuasmãos,mesmoquesóporpoucashoras,porcausadaausênciadepessoalmaisqualificadonoturnodanoite,etambémdarelutânciadeseusuperioremacordarosagentesdaPolíciaFederaleoutrospoliciaismaisqualificadosdeEstocolmo.Sentindo-secadavezmaisinseguronomeiodaquelaconfusão,ErikZetterlundpassouadarordensaos
gritos. Acima de tudo, queria iniciar uma investigação porta a porta. Queria reunir depressa amaiorquantidade possível de testemunhas, ainda que não tivessemuita esperança de conseguir grande coisacom elas. Era madrugada, estava muito escuro e uma tempestade caía. Parecia improvável que osvizinhos tivessem visto alguma coisa. Por outro lado, não havia como ter certeza de nada, por issotambém tinha interrogado Mikael Blomkvist, que, sabe-se lá por que cargas-d’água, estava ali nasredondezasnahoradocrime.ApresençadeumdosjornalistasmaisconceituadosdaSuécianãomelhoravaemnadaasituação,e
porinstantesErikZetterlundteveaimpressãodequeBlomkvistoobservavacomointuitodeescreverumartigodedenúnciasobreele.Mascomcertezaesseseramapenasseusprópriosdemônios.Blomkvistpareciabastanteabaladoeduranteointerrogatóriohaviasidoeducadoesolícito.Mesmoassimnãotevemuitocomquecontribuirparaainvestigação.Tudoacontecerarápidodemais,oqueporsisó,segundoojornalista,jáerabastantesignificativo.Haviasinaisdetécnicaeferocidadenamaneiracomoocriminososemovimentara,enaopiniãode
Blomkvistnãoseriaexagerosuporqueelefosseummilitarouex-militar,etalvezatémesmoumsoldadodeelite.Aformacomohaviagiradoocorpoedisparadosuaarmapareceuummovimentotreinado,ealanternapresaàtestaimpediuBlomkvistdeversuasfeições.Ele estava a uma grande distância eMikael se jogou no chão no instante emque o vulto se virou.
Deviaagradecerporestarvivo.Pôdeapenasdescreverofísicoea roupadosuspeito,oquealiás fezcommuitaprecisão.Segundoojornalista,ohomemnãopareciamuitojovem,deviatermaisdequarentaanos.Estavaemboaformafísicaeeramaisaltodoqueamédia,deviamedirentreummetroeoitentaecincoeummetroenoventaecinco,comumacompleiçãorobusta,cinturafinaeombroslargos.Estavadebotaseroupamilitar.Carregavaumamochilaeprovavelmentelevavaumafacapresaàpernadireita.MikaelBlomkvistacreditavaqueohomemtinhadesaparecidopróximoàmargemdapraiaeseguido
ao longo das casas vizinhas, o que coincidia com os depoimentos de Peter Blom e Dan Flinck. Ospoliciaisnãohaviamvistoosuspeito,mastinhamouvidoseuspassosemdireçãoaomar,quandoentãoselançaramemsuaperseguição, semsucesso.ErikZetterlund,porém,nãopareciamuitoconvencidodasexplicaçõesdadaspelosdois.OmaisprováveléqueBlomeFlincktivessemseacovardadoesimplesmenteaguardadonoescuro,
tremendodemedo,incapazesdeagir.Ocrimedeviateracontecidojustamentenesseintervalo.Emvezdeuma operação policial commapeamento das rotas de fuga e bloqueios, quase nada havia sido feito.Flinck e Blom ainda não tinham entendido que se tratava de um homicídio quando viram ummeninodescalçogritandoe saindocorrendodacasa.Tinha sidomesmodifícilmanteracabeça friadiantedeumacenadessas.Otempocontinuavapassando,emesmoqueodepoimentodeMikaelBlomkvisttivessesido moderado, foi fácil perceber uma crítica velada por trás dele. Por duas vezes perguntara aos
policias se eles já haviamdadoo alarme, e nasduasvezes eleshaviam respondido comumgestodecabeça.Mais tarde, aoouvir a conversadeFlinck coma central de comunicações,Mikael concluiuqueos
gestosprovavelmentequeriamdizer“não”ouentãoquetinhahavidoalgumaespéciedemal-entendido.Ospoliciaisdemoraramadaroalarme,enemquando,enfim, tiveramessa iniciativaascoisassaíramcomodeviam—provavelmenteporqueasinformaçõestransmitidasporFlincknãoforammuitoclaras.Essaincapacidadedeagirtambématingiaoutrosníveis,eErikZetterlundsentiu-seinfinitamentefeliz
por ninguém poder culpá-lo pelo que tinha acontecido: até então ele ainda não fazia parte dainvestigação.Poroutrolado,agoraeleestavaláeprecisavasercautelosoparanãopiorarascoisas.Osméritos que havia acumulado nos últimos tempos não erammuitos, para dizer omínimo, portanto eraprecisoaproveitaraoportunidadeparabrilhar,ounomínimoparanãofazerumpapelridículo.ErikZetterlundestava juntoàportadasalaehaviaacabadodeconversarcomopessoaldaMilton
Securitysobreovultoquetinhaaparecidonasimagensdosistemadesegurançaantesdocrime.EraumhomemqueemnadacorrespondiaàdescriçãodosupostoassassinofeitaporMikaelBlomkvist,masquefaziapensarnumjunkievelhoemagrocomumagrandefamiliaridadecomaparelhosdealtatecnologia.OpessoaldaMiltonSecurityachavaqueessehomem tinhahackeadooalarmeedesligadocâmerasesensores,oquenãocontribuíaemnadaparatornarahistóriamenosdesagradável.Nãosetratavaapenasdotoquedeprofissionalismonoplanejamentodaquelaoperação.Eraaousadia
de cometer um assassinato apesar da vigilância policial e da presença de um avançado sistema dealarmes.Quetipodeconfiançaessaatitudeindicava?Erikiadescerparaconversarcomosperitosqueestavamnoandardebaixo,mas resolveupermanecermaisumpouco lá emcimaobservando tudoemvolta,profundamenteinquieto,eseuolharsefixounofilhodeBalder,umatestemunha-chave,incapaznoentantodedizerumaúnicapalavraeque,paracomplicarascoisas,tambémnãoentendianadadoquelhediziam,maisoumenoscomosepodiaesperarnumaconfusãodaquelagrandeza.Erik viu que omenino segurava umapequena peça de um enormequebra-cabeça, e em seguida foi
andandonadireçãodaescadacurvaquelevavaaoandardebaixo.Derepenteseucorposeenrijeceu.Erikvoltouapensarnaprimeiraimpressãoqueomeninohavialhecausado.Assimqueentrounacasa,aindasemsaberdireitooquetinhaacontecido,omeninolhedeuaimpressãodeserumacriançacomooutraqualquer.Nãopareciahavernadadediferentenele,pensouErik,anãoseroolharperturbadoeosombros tensos.Erik talvezo tivessedescritoapenascomoummeninodocedeolhosgrandesecabelocacheado. Mas depois soube que o garoto era autista e portador de uma grave deficiência mental.Portanto, não tinha sido algo que ele notara à primeira vista,mas uma informação que havia chegadodepois,oque significava, refletiuErik,queouoassassino já conheciaomenino,ouqueentãoestavamuitobeminformadosobreacondiçãodele.Deoutromodo,dificilmenteoteriadeixadovivo,paranãocorrer o risco de ser identificado mais tarde, certo? Embora não tenha dado tempo a si mesmo dedesenvolver esse pensamento de forma completa, Erik se deixou levar pelo que ainda era umpressentimentoeseaproximoudomeninocompassosrápidos.—Precisamosinterrogá-loassimquepossível—disseemvozmuitoaltaeexasperada.—MeuDeus,tenhaumpoucomaisdecuidadocomomenino—disseMikaelBlomkvist,queestava
porperto.
—Não semeta nos assuntos da polícia— retrucouErik.—Omeninopode ter visto o assassino.Precisamosmostraraelefotosdossuspeitos.Dealgumaforma,temosque…O menino o interrompeu embaralhando o quebra-cabeça com as mãos num gesto súbito, e Erik
Zetterlundnãoteveopçãosenãomurmurarumpedidodedesculpasedescerparairfalarcomosperitos.QuandoErikZetterlundsaiu,MikaelBlomkvistficouobservandoomenino.Pareciaquemaisalguma
coisaiaacontecercomele—talvezumnovosurto—,eoqueMikaelmenosqueriaeraqueAugustsemachucasseoutravez.Masemvezdissoomeninoenrijeceuocorpoecomeçouaesfregaramãodireitanotapetecomumavelocidadealucinante.Depoisparouderepenteelevantouorostocomumolharsuplicante,emesmoqueporalgunssegundos
Mikaeltivesseseperguntadooquesignificavaaquilo,deixoudepensarnoassuntoassimqueopolicialmais alto, que se chamavaPeterBlom, sentou-se ao lado domenino e tentou convencê-lo amontar oquebra-cabeça de novo.Mikael foi à cozinha para se acalmar um pouco. Estavamorto de cansaço equeria ir para casa. Mas provavelmente ainda iriam chamá-lo para ver as imagens das câmeras desegurança.Nãosabiaquandoissoiriaacontecer.Tudonaquelainvestigaçãosearrastavaepareciafeitodemaneiradesleixadaedesorganizada,eMikaelansiavadesesperadamenteporsuacama.Já tinha falado comErika duas vezes para informá-la do que havia acontecido e,mesmo que eles
soubessempoucacoisasobreohomicídio,osdoisconcordavamqueMikaeldeviaescreverumartigolongosobreocasoparaopróximonúmerodaMillennium.EnãoapenasporqueocasoeraumdramadavidarealnemporqueavidadeFransBalderparecia interessanteosuficienteparamerecerumartigo.Mikael também tinha uma ligação pessoal com a história, o que aumentaria em muito o valor dareportagemeseriaumimportantediferencialsobreaconcorrência.AconversaquehaviaprecedidotodoaqueledramaeolevaraàcasadeFransBalderbastariaparadarumtoquesurpreendenteàreportagem.NemMikaelBlomkvistnemFransBalderhaviammencionadoacrisedaMillenniumouoconflitode
interesses com o grupo Serner. Eram coisas subentendidas na conversa, e Erika já havia designado oestagiárioAndreiZanderparacomeçarafazerasprimeiraspesquisas,enquantoMikaeldescansava.Emtomperemptório,nummistodeautoridadedemãeternacomadeumaredatora-chefemandona,tinhaditoqueserecusavaaverorepórtermaisbadaladodarevistamortodecansaçoantesmesmodeotrabalhocomeçar.Mikaelconcordou.Andreierasimpáticoeambicioso,eseriabomacordarnodiaseguinteeencontrar
aspesquisasbásicasjáfeitas,depreferênciacomumalistadenomesdepessoaspróximasaBalderquetalvezsedispusessemadarentrevistas.Porinstantes,parasedistrairumpouco,MikaelselembroudosconstantesproblemasqueAndreitinhacomasmulheresedosquaiselelhefalaranodecorrerdeváriosfinsdetardenacervejariaKvarnen.Andreierajovemeinteligenteepareciaumótimopartido.Seriaumachadoetanto.Masporcausadesuanaturezafrágilecarente,nofimasmulheressempreodeixavam,eesses episódios de abandonoo faziam sofrermuito.Andrei era um romântico incorrigível. Sonhava otempointeirocomumgrandeamoreumgrandefuro.Mikael se sentouàmesada cozinhadeBalder eolhoua escuridão lá fora.Namesa,pertodeuma
caixadefósforos,deumexemplardaNewScientistedeumblococheiodeequaçõesincompreensíveis,
havia um desenho ao mesmo tempo bonito e assustador de uma faixa de pedestres. Próximo a umsemáforo, via-se um homem de olhos baços e estreitos, e de lábios finos. Ele tinha sido capturadocaminhandorápidoemesmoassimsepodiavercadarugadeseurostoecadadobradesuajaquetaedesua calça. Não era uma figura particularmente agradável. O homem tinha uma verruga em forma decoraçãonoqueixo.Apesar disso, era o semáforo que dominava o desenho. Ele reluzia com um brilho perturbador e
repleto de significados e tinha sido reproduzido comuma simplicidade que parecia resultante de umaapurada técnicamatemática.A impressãoeradeque aqualquermomento seriapossívelveropadrãogeométricoportrásdaquilo.ProvavelmenteFransBaldertinhafeitoodesenho,eMikaelseperguntoudeondeelehaviatiradoaqueletema.Nãoeramuitoconvencional.Poroutrolado,porquealguémcomoBalderdesenhariaumpôrdosolouumnavio?Umsemáforocom
certeza também era um tema tão interessante quanto qualquer outro. Mikael se impressionou com orealismodarepresentação.MesmoqueFransBaldertivesseparadoparaanalisarcomtodaaatençãoosemáforo,dificilmente teriapedidoaohomemqueatravessassea ruadiversasvezes.Talvezohomemfosseapenasumacréscimoficcional,ouentãoFransBaldertinhamemóriafotográfica,como…Mikaelficoupensativo.EmseguidapegouotelefoneeligoupelaterceiravezparaErika.—Vocêestávindoparacasa?—elaperguntou.—Aindanão,infelizmente.Tenhounsassuntosparacuidar.Maseuqueriatepedirumfavor.—Épraissoqueestouaqui.—Euqueriaquevocêentrassenomeucomputador.Vocêsabeaminhasenha,nãosabe?—Nósnãotemossegredos.—Ótimo.EntrenosmeusdocumentoseabraapastachamadaLisbethSalander.—Achoqueestoucomeçandoaentenderondeessahistóriavaiacabar.—Émesmo?Bom,euqueroquevocêescrevanessedocumento…—Espere um pouco. Eu ainda preciso abrir o arquivo. Está quase… espere. Já tem ummonte de
coisasnessedocumento.—Nãosepreocupecomnadadisso.Euqueroquevocêescrevabemnoaltodapágina,acimadetudo
queestáaí,certo?—Certo.—Entãoescreva:Lisbeth, talvezvocê jásaiba,masoprofessorFransBalder foimortocomdois
tirosnacabeça.Seráquevocêpodemeajudaradescobrirporquequiserammatá-lo?—Sóisso?—Não é pouca coisa, especialmente porque faz muito tempo desde que eu e ela nos falamos. A
Lisbethcomcertezavaiacharmuitoatrevimentomeu,masnãoserianadamauseelanosajudasse.—Nãoserianadamauumapequenainvasãodecomputadores,vocêquerdizer.—Nãoouvioquevocêdisse.Esperoteverlogo.—Eutambém.Lisbethtinhavoltadoadormireacordousomenteàsseteemeiadamanhãseguinte.Mesmoassim,não
sesentianasuamelhorforma.Acabeçadoíaeelasentiaenjoo,emboranogeralestivessebemmelhor,portanto se vestiu depressa e tomou um rápido café da manhã, composto de dois pirogues de carneaquecidosnomicro-ondaseumcopograndedecoca-cola.Depoisenfiouasroupasdetreinonumabolsapreta e saiu. A tempestade havia perdido força. Mesmo assim, lixo e jornais carregados pelo ventoespalhavam-se pela cidade. Lisbeth saiu do mercado deMosebacke e seguiu pela Götgatan dando aimpressãodeestarfalandosozinha.Pareciafuriosa,epelomenosduaspessoasseafastaramdela,assustadas.MasLisbethnãoestavanem
um pouco zangada, apenas concentrada e determinada. Não sentia a menor vontade de se exercitar.Desejava apenas tocar sua rotina normalmente e tirar os venenos do corpo. Assim, desceu até aHornsgatane,umpoucoantesquearuacomeçasseavirarumasubida,entrouàdireita,emdireçãoaoclubedeboxeZero,queficavanumporãoequenaquelamanhãpareciaaindamaisdecadente.Olugarficariacomumaspectobemmelhorserecebesseumademãodetintaepequenasmelhorias.
Masaimpressãoeradequenadatinhasidoalteradoládesdeadécadade1970,tantonadecoraçãocomonos cartazes. Foreman e Ali ainda decoravam as paredes. O tempo parecia haver parado na manhãseguintedolendáriocombateemKinshasa,oquetalvezsedevesseaofatodeObinze,oresponsávelpeloclube,terassistidoàlutanainfânciaedepoissaídocorrendoegritando“AliBomaye!”debaixodachuvademonções.Essacorridanãoapenaserasualembrançamaisfeliz,mastambémhaviacolocadoumpontofinalnoqueelechamavade“diasdeinocência”.Pouco tempo depois, Obinze tinha sido obrigado a fugir com a família do terror instaurado por
Mobutu,edesdeentãonadamaisfoicomoantes.Emvistadisso,talveznãoparecessetãoestranhoqueele desejasse preservar aquele momento da história ou de alguma forma transportá-lo para aqueladecrépitaacademiadeboxeemSöder,nacapitaldaSuécia.Obinzeaindafalavacomfrequênciasobrealuta.Aliás,falavaotempointeirosobreoquequerquefosse.Obinze era um homem grande, robusto e careca que também fazia as vezes de porta-voz da
misericórdia divina, e um dos muitos homens na academia que estavam sempre de olho em Lisbeth,mesmoque,como tantosoutros,eleaachassemeio louca.HaviaépocasemqueLisbeth treinavacommaisafincodoquequalquerhomemalie investiacomoumamalucacontraosequipamentosdetreino,bases,sacosdepancada,econtraseuscolegas.GuardavadentrodesiumafúriaprimordialqueObinzetinhavistoempoucaspessoas,oquecertavezolevouasugerirqueLisbethcomeçasseaparticipardecompetições.Arisadazombeteiraquerecebeucomorespostafezcomquenuncamaisrepetisseoconvite,eObinze
continuousementenderoquemotivavaagarotaa treinarcomtantoempenho,mesmoquenofundoelenãoprecisassedeumaresposta.Qualquerumpodiatreinarcomempenhosemquetivesseumobjetivoemvista.Eraamotivaçãoperfeita,etalvezLisbethestivessefalandosérioquandoumavezdisse,játardedanoite,quetreinavaparaestarprontacasosemetesseemproblemasdenovo.Obinzesabiaqueelahaviasemetidoemproblemasnopassado.TinhaprocuradoseunomenoGoogle.
TinhalidocadapalavraquehavianainternetsobreLisbethSalandereentendiamuitobemporqueelaqueriaestaremformacasoumasombradopassadovoltasseparaassombrá-la.Aliás,Obinzenuncatinhaentendidoumacoisatãobemnavida.EletambémhaviaperdidoopaieamãeparaasminasterrestresdeMobutu.
O que ele não entendia era por que, de tempos em tempos, Lisbeth abandonava os treinos, não sededicava a nenhum outro tipo de condicionamento físico e se entupia de junk food. Essa maneiracontraditóriadesecomportareraincompreensívelparaele,equandoLisbethchegouàacademianaquelamanhã,comsuasroupaspretaseospiercingsdesempre,jáfaziaduassemanasqueosdoisnãoseviam.—Oi,gata.Porondevocêandou?—Cuidandodeunsnegóciosdesagradáveis.—Imagino.Tipochicoteandoumaganguedemotoqueiros?Lisbeth não quis saber de brincadeira.Continuou andandopara o vestiário comexpressão azeda, e
entãoObinzefezumcomentárioque,eletinhacerteza,iriaenfurecersuaaluna.—Seusolhosestãovermelhos.—Estoucomumaputaressaca.Eagorasaiadaminhafrente!—Sevocêestáderessacaeunãoquerovocêaqui.—Nãomevenhacomessahistória.Tudoqueeuprecisoéquevocêmeajudeatirarestamerdado
corpo—resmungouLisbeth.Emseguidaentrounovestiárioepoucodepoissaiucomumcalçãograndedemaisecomumtopbrancocomestampadecaveirapreta,eObinzeviuquesólherestavaajudá-la.Obinze a pressionou até que ela tivesse vomitado três vezes na lixeira e a xingou o quanto pôde.
Lisbethtambémoxingouamistosamente.Depoisvoltouaovestiário,trocouderoupaefoiemborasemnem se despedir, enquantoObinze— como sempre acontecia naquelesmomentos— sofria com umasensaçãodevazio.Talvez estivesseumpoucoapaixonado.Oupelomenos abalado, porquenãohaviacomosesentirdeoutraformaquandoseviaumagarotalutarboxedaquelejeito.AúltimavisãoquetevedeLisbethfoidesuaspanturrilhasdesaparecendopelaescada,portantonão
teveamenorideiadecomoomundogiravanacabeçadelaquandoLisbethchegouàHornsgatan.Elaseapoiounaparededeumprédioerespiroufundo.DepoisseguiuatéseuapartamentonaFiskargatane,jáemcasa,bebeumaisumcopograndedecoca-colaemeiolitrodesuco.Porfimatirou-senacamaeficouolhandoparaotetopordez,quinzeminutos,enquantopensavaemdiversascoisas,comosingularidades,horizontesdeeventos,algunsaspectosespeciaisdasequaçõesdeSchrödingereEdtheNed.Porfim,quandoomundorecuperouseuaspectooriginal,Lisbethselevantouefoiparaocomputador.
Pormenos que desejasse, sentia-se o tempo inteiro atraída para aquela direção por uma força que aacompanhava desde a infância. Mas naquela manhã não estava disposta a manobras arriscadas.SimplesmenteinvadiuoscomputadoresdeMikaelBlomkvisteuminstantedepoissentiuseucorpogelar.Nãofaziamuitotempo,osdoishaviambrincadosobreBalder.EagoraMikaelescreviaparadizerqueeletinhasidoassassinadocomdoistirosnacabeça.—Merda—sussurrouLisbethenquantodavaumalidanasediçõeseletrônicasdosjornais.Aindanãohavianada sobreo caso,pelomenosnãodemaneira explícita.Masnãoerapreciso ser
muito perspicaz para entender que manchetes como “Acadêmico sueco morto em sua casa emSaltsjöbaden” se referiam a Balder. A polícia ainda não tinha revelado os detalhes e os jornalistashaviam fracassado em seu papel de cães farejadores, talvez porque não houvessem se dado conta daimportânciadahistóriaouaindanãotivessemencontradoumaformapoderosadecontá-la.Alémdisso,pareciahaveroutroseventosmaisimportantesnaquelanoite:astempestadeseosblecautespelopaís,osenormesatrasosnoshoráriosdos trenseumaououtranotícia sobrecelebridadesqueLisbethnemfez
forçaparaentender.Quanto ao assassinato, constava apenas que ele havia ocorrido por volta das três damanhã, que a
polícia estava buscando mais testemunhas e analisando quaisquer informações sobre possíveismovimentações duvidosas.Ainda não havia nenhum suspeito, embora algumas testemunhas houvessemapontadoapresençadepessoasdesconhecidaspertodacasa.Apolíciabuscavamaisinformaçõessobreelas.Amatéria terminavacoma informaçãodequenodecorrerdodiao inspetorJanBublanskidariaumaentrevistacoletiva.Lisbethabriuumsorrisomelancólicoao leranotícia.Nopassado,havia tidocontato comBublanski—ouBubolha, como seus colegas o chamavam— e achava que, se eles nãopusessem um bando de imbecis no grupo de investigação, o inquérito transcorreria sem maioresproblemas.DepoisLisbethreleuamensagemdeMikaelBlomkvist.Elehaviapedidoajuda,esemnempensarela
respondeu“Tudobem”.EnãoapenasporqueMikael tinhapedido.Aquilohaviase transformadonumaquestão pessoal para ela. Lisbeth não tinha ficado compena, pelomenos não damaneira tradicional.Havia, istosim,ficadocomódio,sentidoumafúriaviolenta,e,apesardenutrircertorespeitoporJanBublanski,normalmenteelanãoconfiavaemautoridades.Lisbethestavaacostumadaa resolverosproblemasdoseupróprio jeito,eela tinhaváriosmotivos
para querer descobrir por que haviam matado Frans Balder. Não o procurara e se inteirara de suasituação pormero acaso.Era bastante provável que o inimigo deFransBalder também fosse inimigodela.TudohaviacomeçadocomumaespeculaçãosobreapossibilidadedequeopaideLisbethdealguma
formaaindaestivessevivo.AlexanderZalachenko,ouZala,nãotinhaapenasmatadoamãedeLisbethedestruídoainfânciadesuafilha.Tambémhaviachefiadoumaorganizaçãocriminosa,vendidodrogasearmamentos,eviveradeexplorareoprimirmulheres.Lisbethentendiaqueessetipodeperversidadenãodesapareciadanoiteparaodia.Apenasmigravaparaoutrasformasdevida,edesdeodiaemque,faziapoucomaisdeumano,elatinhaacordadonumquartodohotelSchlossElmau,nosalpesbávaros,Lisbethestavapesquisandooquepoderiateracontecidocomesselegadodeseupai.A maioria dos antigos companheiros dele eram perdedores natos, marginais depravados, gigolôs
asquerosos ou pequenos gângsteres. Ninguém havia se transformado num canalha do calibre deZalachenko, e pormuito tempoLisbeth esteve convencida de que a organização tinha sido aniquiladadepoisdamortedeseupai.Aindaassimelanãodesistiu,eporfimencontrouumapistaqueapontavaparaumadireçãoinesperada,graçasaosrastrosdeixadosporSigfriedGruber,umdosjovensseguidoresdeZala.QuandoZalaestavavivo,Grubereraumdosmembrosmaisinteligentesdaorganização.Aocontrário
damaiorpartedeseuscompanheiros,elepossuíadiplomasuniversitáriosemciênciasdacomputaçãoeadministraçãodeempresas,oquesemdúvidalhegarantiuacessoacírculosmaisrestritos.Nosdiasdehoje,seunomesurgiaemalgumasinvestigaçõesdecrimespraticadoscontraempresasdetecnologiadeponta:roubodenovastecnologias,extorsão,espionagemindustrialeataquescibernéticos.Numasituaçãonormal,Lisbethnão teria seguidoseu rastroalémdesseponto,nãoapenasporque,a
nãoserpeloenvolvimentodeGruber,oassuntoparecesseterpoucoavercomasantigasatividadesdopai,como tambémporqueparaLisbethera indiferentequeduasou trêsempresasmilionárias tivessem
roubadoalgumasdesuasinovaçõestecnológicas.Masdepoistudomudou.Num relatório altamente sigiloso do GCHQ que Lisbeth tinha acessado, ela encontrou códigos
relacionadoscomoatualgrupodeSigfriedGruber,eoque leuali foiobastantepara impressioná-la.Depoisnãoconseguiumaisparardepensarnahistória.Informou-seomelhorquepôdesobreogrupoe,porfim,numsitedehackersumtantoquestionável,encontrouboatosrecorrentesdequeaorganizaçãohavia roubadooprogramade IAdeFransBalderparavendê-loà fabricante russo-americanade jogosTruegames.Por issoLisbeth apareceu na palestra do professor FransBalder no InstitutoReal deTecnologia e
começouadebatercomelesobreassingularidadesdosburacosnegros—oupelomenospartedarazãofoiessa.
II.OSLABIRINTOSDAMEMÓRIA21A23DENOVEMBRO
Eidética:estudodepessoascommemóriaeidética,tambémconhecidacomomemóriafotográfica.
Pesquisasmostramquepessoascommemóriaeidéticasãomaisnervosaseestressadasdoqueoutras.
Embora haja exceções, a maioria das pessoas commemória eidética tem autismo. Também existe uma relação
entre memória fotográfica e sinestesia — condição em que dois ou mais sentidos funcionam de maneiraconcomitante,oquelevaaspessoasnessacondiçãoapercebercoresemalgarismos,porexemplo,ouaverimagensdesenhadasporsériesnuméricas.
12.21DENOVEMBRO
JanBublanskivinhaesperandoansiosoporumdialivre,parapoderconversardemoradamentecomorabinoGoldman,dasinagogadeSöder,sobrequestõesrelacionadasàexistênciadeDeusqueovinhamatormentandonosúltimostempos.Não que estivesse prestes a se tornar ateu, mas o conceito de Deus lhe parecia cada vez mais
problemático.Queriaconversarsobreisso,etambémsobreumsentimentorecentedefaltadesentidodavida,etalvezsobreosonhodepedirdemissão.JanBublanskiseconsideravauminvestigadordehomicídioscompetente.Seuíndicederesoluçãode
crimesmantinha-seextraordinário,edevezemquandosesentiabastanteestimuladopelotrabalho.Masnãosabiasequeriacontinuaresclarecendohomicídios.Talvezdevessevoltaraosestudosenquantoaindahaviatempo.Sonhavaemdaraulaseemajudarosjovensasedesenvolvereaacreditaremsimesmos,talvezporquemuitasvezeseleprópriocedesseasentimentosdeinadequação.Masnãosabiaquematériagostariadelecionar.JanBublanskinuncatinhaseespecializadoemnenhumaárea,anãosernaquiloqueavidalhereservara:mortesbrutaiseperversõesmórbidas—definitivamente,assuntossobreosquaisnãogostariadefalar.Eramoitoedezdamanhãeeleestavaemfrenteaoespelhodobanheiroajeitandoseuquipá,quejá
tinhavistodiasmelhores.Emoutrasépocas,exibiaumabelacorazul-claraquepareciaatéumpoucoextravagante.Hojenãopassavadeumapeçadesbotadaepuída,comoummodestosímbolodaevoluçãodele,pensouBublanski,quenãoestavanadasatisfeitocomaprópriaaparência.Bublanskisentia-seinchado,cansadoecarecademais,esemperceberpegouoromanceOmagode
Lublin,deIsaacBashevisSinger,umlivroqueeleamavatantoqueodeixavapertodovasosanitário,casosentissevontadedelê-lonosmomentosemqueabarrigaoincomodava.Porémnãoconseguiulermuito. O telefone tocou, e as coisas não melhoraram nem um pouco quando percebeu que era oprocurador Richard Ekström. Uma ligação de Ekström significava não apenas trabalho, masprovavelmenteumtrabalhodeconotaçõespolíticasederepercussãonamídia,senãoopróprioEkströmteriaseencarregadodoassunto.—Oi,Richard.Quebomternotíciassuas—mentiuBublanski.—Infelizmenteestouocupadoagora.—Como…?Nãoparaesseassunto, Jan.Estevocênãopodedeixarpassar.Ouvidizerqueestáde
folgahoje.—Éverdade,masestousaindopara…—JanBublanskinãoqueriadizer“sinagoga”.Suaafiliação
religiosanãoeramuitobem-vistanapolícia.—…paraumaconsultamédica—emendou.
—Vocêestádoente?—Naverdade,não.—Oquesignificaisso?Quevocêestámeiodoente?—Algoassim.—Entãonãovejonenhumproblema.Todosnósestamosmeiodoentes,nãoémesmo?Alémdomais,
esseéumcasoimportante,Jan.AministradaIndústria,LisaGreen,metelefonoueconcordouqueocasodeviaficarsobasuaresponsabilidade.—Sinceramente,duvidoqueLisaGreensaibaquemeusou.—Talvezelanãoteconheçapessoalmente,enaverdadeéatémelhorqueelanãoseenvolvamuitoa
fundonainvestigação.Mastodosnósconcordamosqueprecisamosdealguémcombastanteexperiência.—Eujánãocedomaisaessetipodebajulação,Richard.Masquecasoéesse,afinal?—perguntou
Bublanski,arrependendo-seemseguida.Aquelasimplesperguntajávaliacomoummeio“sim”,eelepercebeuqueEkströmaconsiderouuma
pequenavitória.—OprofessorFransBalderfoiassassinadoestamadrugadanacasadeleemSaltsjöbaden.—Equemeraessesujeito?—Umdosnossoscientistasmaisconhecidosinternacionalmenteeumdosnomesmaisimportantesem
tecnologiasrelacionadasaIAnomundointeiro.—Tecnologiasrelacionadasaquê?—OprofessorBaldertrabalhavacomredesneurais,processosdigitaisquânticoseessetipodecoisa.—Continuosementender.—Ele estava tentando fazerumcomputadorpensar.Estava tentandocriarumcérebroartificialque
funcionassedemaneiraidênticaàdocérebrohumano.Demaneira idênticaàdocérebrohumano? JanBublanski ficoucuriosoparasaberoqueo rabino
Goldmanteriaadizersobreisso.—HáindíciosdequeoprofessorBalderjátinhasidovítimadeespionagemindustrial—prosseguiu
RichardEkström.—PorissooMinistériodaIndústriaestáenvolvidonainvestigação.Vocêdevesaberque a ministra Lisa Green andou fazendo um discurso pomposo sobre a importância de defender aspesquisaseasinovaçõestecnológicasdesenvolvidasnopaís.—É,talvez.— E já havia uma ameaça concreta anterior ao homicídio. O professor Balder estava recebendo
proteçãopolicial.—Vocêestáquerendomedizerquemesmoassimelefoiassassinado?—Parecequeelenãorecebeuamelhorproteçãodomundo.OsresponsáveiseramFlinckeBlom.—OsCasanova?—Os próprios. Eles foram designados para fazer a proteção e tiveram que sair à noite, debaixo
daquela tempestade. Em defesa deles, pode-se dizer que a situação realmente não foi fácil. Pelocontrário,houveumaconfusãoetanto.FransBalderfoimortoatirosenquantoosrapazesseocupavamdeumbêbadoqueapareceudonadaemfrenteàcasadoprofessor.Ébempossívelqueoassassinotenhavistoaíumaoportunidadeeseaproveitadodessadistração.
—Essahistórianãoestámecheirandobem.—Foitudoextremamenteprofissional.Alémdisso,osistemadealarmedacasatinhasidohackeado.—Entãoforamváriaspessoas?—Éoqueestamosachando.Ah,e…—Sim?—Existemalgunsdetalhesmeioincômodos.—Detalhesqueamídiavaiadorar?— Detalhes que a mídia vai adorar — prosseguiu Ekström. — O bêbado que apareceu lá, por
exemplo,eraninguémmenosdoqueLasseWestman.—Oator?—Opróprio.Eissonostrazproblemas.—Porquevaipararnosjornais?— Em parte, sim, mas também porque vai acabar caindo sobre os nossos ombros um monte de
problemasrelacionadosaumaseparação.OLasseWestmandissequetinhaidolábuscarseuenteadodeoitoanos,queestavacomoFransBalder,eomenino…Espereumpouco,precisomecertificardequeestoupassandoainformaçãocorreta.OmeninoéfilhobiológicodoBalder,masoprofessorfoijulgadoincapazdetomarcontadele.—Como assim?Umcientista que pretendia criar umcérebro artificial que funcionasse demaneira
idênticaàdeumcérebrohumanoeraincapazdecuidardoprópriofilho?— Exato. O Balder já tinha sido negligente no passado e assumiu apenas as responsabilidades
financeiraspelofilho…Enfim,elefoiumverdadeirofracassocomopai,seentendiahistóriadireito.Dequalquer forma, é umahistória bastante delicada.E essemenino, que não devia estar na casa do pai,provavelmenteéaúnicatestemunhadocrime.—Eoquefoiqueeledisse?—Nada.—Eleestáemestadodechoque?—Também,maselenãodirianadadequalquerforma.Omeninoémudoetemumadeficiênciamental
grave.Porissonãovaipodernosajudar.—Entãonãotemossuspeitos.— Não teríamos nenhum se o Lasse Westman não tivesse aparecido bem no momento em que o
assassinoentrounacasaeatirounoBalder.Por issoé importantequevocêso interroguemassimquepossível.—Seeuaceitarocaso,vocêquerdizer.—Vocêvaiaceitar.—Temcerteza?—Eudiriaquevocênãotemescolha.Alémdomais,guardeiamelhorparteparaofim.—Eoquetemosnaúltimaparte?—MikaelBlomkvist.—Oqueéquetemele?—Poralgummotivoeleestava lá.MinhasuspeitaéqueoBalder tenhachamadooBlomkvistpara
fazeralgumadenúncia.—Demadrugada?—Claro.—Edepoisfoiassassinado?—NoexatoinstanteemqueoBlomkvisttocouacampainha.Elechegouaverderelanceoassassino.JanBublanski soltouumagargalhada.Umcomportamento totalmente inadequado,queelenão soube
explicarnemasimesmo.Talvezfosseumareaçãonervosaoupossivelmenteosentimentodequeavidaestavaserepetindo.—Oquefoi?—perguntouEkström.—Um acesso de tosse, só isso. Ou seja, agora vocês estão preocupados, porque não querem um
investigadorparticularfazendorevelaçõespoucolisonjeirassobrevocês.— É, talvez. De qualquer modo, como imaginamos que a Millennium esteja preparando uma
reportagemsobreocaso,jáestouembuscadeumrecursolegalparadetê-los,oupelomenosparaimporalgumas restrições ao trabalho deles. É bem possível que esse caso seja tratado como assunto desegurançanacional.—EntãoaSäpotambémestáenvolvida?—Nadaadeclarar—respondeuEkström.Váparaoinferno,pensouBublanski.—ÉoRagnarOlofssoneopessoaldoServiçodeProteçãoàIndústriaqueestãotrabalhandonocaso?
—eleperguntou.—Comoeudisse,nadaadeclarar.Quandovocêcomeça?Váparaoinfernodenovo,pensouBublanski.—Eu tenhoumacondiçãoparacomeçar—dissepor fim.—Quero trabalharcomaminhaequipe:
SonjaModig,CurtSvensson,JerkerHolmbergeAmandaFlod.—Tudobem,masoHansFastetambémvaifazerpartedaequipe.—Nãomesmo!Nemporcimadomeucadáver!—Medesculpe, Jan,masessaéumacondição inegociável.Você jádevia sergratopor terpodido
escolherquasetodooseupessoal.—Vocênãotomajeitomesmo,hein?—Éoquedizemporaí.—EntãooFastevaiseronossoagenteinfiltradodaSäpo?—Na verdade, não,mas acho que qualquer grupo funcionamelhor com uma pessoa que pensa de
maneiradiferentedasoutras.—Agora que finalmente conseguimosnos livrar de ideias preconcebidas, você quer trazer oFaste
paraagenteretroceder?—Nãodigabobagem.—VocêsabequeoFasteéumimbecil.—Não,Jan,nãomesmo.Pelocontrário,eleé…—Oquê?—Conservador.Éumapessoaquenãosedeixalevarporessaondarecentedefeminismo.
—Nempelasondasmaisantigas.Naverdade,achoqueoFasteacabadesereconciliarcomaideiadequeasmulherestambémpodemvotar.— Jan, você devia ter umpoucomais de cuidado como que diz.OHansFaste é um investigador
absolutamenteconfiáveleleal,enãoqueroouvirmaisfalardisso.Vocêtemmaisalgumaexigência?Quevocêsumadaminhafrente,pensouBublanski.—Vou àminha consultamédica e, nessemeio-tempo, quero que a SonjaModig se encarregue da
investigação—eledisse.—Vocêachamesmoumaboaideia?—Achoumaexcelenteideia.— Tudo bem, tudo bem, vou pedir que o Erik Zetterlund passe a investigação para ela— disse
RichardEkström,fazendoumacareta.NemRichardEkströmestavaconvencidodequeeleprópriodeviateraceitadoainvestigação.AlonaCasalesraramentetrabalhavaànoite.Faziaváriosanosquetentavaevitarisso,sobretudopor
causadeseu reumatismo.De temposem temposeleaobrigavaa tomar fortesdosesdecortisona,quefaziambemmaisdoqueconferirumaspectodeluacheiaaseurosto.Suapressãosanguíneadisparavaeentãoelaprecisavadormirbastanteenãosairdarotina.Mesmoassim,láestavaela.Eramtrêsedezdamanhã.Elatinhasaídodecarrodesuacasa,emLaurel,Maryland,sobumachuvafraca,seguidopela175Eastepassadopelaplaca“NSA—entradaàdireita—somentepessoalautorizado”.Alona Casales ultrapassou as barreiras e as cancelas de segurança e seguiu em direção ao prédio
principalemformatocúbico,emFortMeade.Deixouocarronoestacionamento,àdireitadosradomosazul-clarosedasfrenéticasparabólicas,epassouporoutrasbarreirasdesegurançaantesdechegaraoescritórioondetrabalhava,nodécimosegundoandar.Nãohaviaumagrandeatividadeládentro.Porissosesurpreendeucomumacertainquietaçãonoambiente,enãofoiprecisomuitotempopara
notarqueEd theNedeogrupode jovenshackersque trabalhavacomele eramos responsáveispeloclimadeabsolutaseriedadequedominavaoescritório—mesmoconhecendoEdmuitobem,Alonanãoocumprimentou.Ed parecia possuído e havia acabado de se levantar para xingar um jovem cujo rosto parecia
iluminadoporumbrilhopálido.Eraumrapazestranho,pensouAlona,exatamentecomotodososjovensgêniosdainformáticacomquemEdserelacionava.Orapazeramagroeanêmicoeseucabelodavaaimpressão de ter acabado de sair do inferno. Além disso, tinha ombros arredondados que pareciamatacadosporespasmos.Ocorpodeletremiadetemposemtempos:deviaestarassustadodeverdade,eochutequeEddesferiucontraapernadeumacadeiranãocolaborouemnadaparaqueorapazconseguisseseacalmar.Elepareciaàesperadeumabofetadaoudeumsoconorosto.Masoqueaconteceufoiumtantoinesperado.Edseacalmouemexeunocabelodorapaz,comoumpaiamorosofaria—nãoeraumaatitudetípica
dele.Ednãogostavadedemonstraçõesdeafetoeconversamole.Eraotípicocaubói,quejamaisfariaalgotãosuspeitocomoabraçaroutrohomem.Masàsvezespareciatãodesesperadoquesepermitiaumademonstraçãoextremadehumanidade.AcalçadeEdestavadesabotoada.Elehaviaderramadocaféou
coca-colanacamisa,seurostoestavacomumacoloraçãoavermelhadaedoentiaeavoz,roucaeríspida,como se tivesse gritadomuito, o que levou Alona a pensar que ninguém com aquela idade e aquelesobrepesodeviaseexcederassimnotrabalho.Embora só tivessem se passado poucomais de doze horas, a impressão era queEd e seus garotos
estavamacampadosalihavianomínimoumasemana.Por todapartehaviacanecasdecafé, restosdecomida, tampas de garrafa e blusões comnomede universidade, e daqueles corpos desprendia-se umcheiroazedodesuoreansiedade.Ogrupotinhasedispostoaviraromundodecabeçaparabaixoafimdeencontrarohacker,ecomumentusiasmofingidoAlonagritou:—Nãodeemmoleza,rapazes!—Vocênemimaginaoqueestamosplanejando!—Quebom.Acabemcomessedesgraçado!Mas Alona não estava sendo totalmente sincera. Não achava invasões cibernéticas uma coisa
divertida.Muitosdaquelesrapazespareciamacreditarquepodiamfazeroquebementendessem,comosetivessemcartabrancaparatomarqualquertipodedecisão,eseriabastantesaudávelquepercebessemque o outro lado podia revidar ao ataque. “Quem espiona a população acaba sendo espionado pelapopulação”, o hacker teria escrito. Era uma frase bem interessante, pensou Alona, embora não fosseverdadeira.OPuzzlePalacerepresentavaumavantagemincrível,mesmoassimpareciainsuficientequandoaNSA
tentava entender algo a fundo, como fazia naquele instante.CatrinHopkins a havia acordado comumtelefonemaparainformarqueoprofessorFransBaldertinhasidomortoemsuacasa,nosarredoresdeEstocolmo,emesmoqueesseassunto,pelomenosporenquanto,nãofossemuitoimportanteparaaNSA,eraimportanteparaAlona.A vítima era uma prova de que ela havia interpretado os sinais demaneira correta, e agora seria
necessário dar mais um passo adiante. Alona fez o login no computador e abriu o diagrama daorganizaçãocriminosa,ondeofugazemisteriosonomedeThanosocupavaaposiçãomaisalta,emboratambém houvesse nomes como o de Ivan Gribanov, integrante da Assembleia Legislativa russa, e doalemãoGruber,umjovemcomformaçãoinvejávelenvolvidonumasofisticadaoperaçãodetráfico.Alonanãoentendiaporqueesseassunto tinha recebidoumaprioridade tãobaixanaNSA eporque
seussuperioresotransferiamconstantementeparaórgãoscomunsdecombateàviolência.Aseuver,nãoseria impossível que essa rede criminosa estivesse recebendo proteção do governo, ou então tivesseligaçõescomoserviçodeinformaçãorusso,enessecasotudonãopassariademaisumaquedadebraçoentre Ocidente e Oriente. Mesmo que existissem poucos indícios e as provas fossem um tantoquestionáveis, havia sinais bastante claros de que uma tecnologia ocidental tinha sido roubada e idopararnamãodosrussos.Nãohaviacomonegarqueeraumcasocomplicadoequenemsempreerafácilsaberseumcrimetinha
defatosidocometidoouseosurgimentodeumatecnologiaidênticaemoutrolugarnãopassavademeracoincidência. Com o avanço tecnológico, o roubo de segredos industriais havia se transformado numconceito extremamente fluido. Roubava-se e copiava-se o tempo inteiro, às vezes como parte de umintercâmbiocriativo,àsvezesporqueessesataquesconseguiamobterlegitimaçãojurídica.Comfrequênciagrandesempresastentavamintimidarpequenascompanhiascomseusadvogados,com
ameaças,eninguémachavaestranhoalgunsinovadoresseremprivadosdeseusdireitosdepropriedade.
Alémdomais,aespionagemindustrialeas invasõesdecomputadoresmuitasvezeseramvistascomopoucomais do que um simples procedimento analítico, e não constava que o Puzzle Palace estivessecontribuindomuitoparamoralizaressaárea.Por outro lado, seria difícil relativizar um assassinato, e Alona tomou a decisão quase solene de
examinar cadapeçadaquelequebra-cabeçaa fimdepenetrarmais fundonaorganização.Masnão foimuitolonge.Naverdade,tudoqueconseguiufoiestenderosbraçosparamassagearsuanuca,quandoderepenteouviupassosatrásdesi.EraEd, e ele nãoparecia emboas condições.Seu corpo estava todo torto.As costas dele também
deviamestararrebentadas.AnucadeAlonamelhorouassimqueelapôsosolhosemseucolega.—Ed,aquedevoahonra?—Achoqueestamoscomomesmoproblema.—Sente-se,meuvelho.Vocêprecisasentarumpouco.— Ou ser esticado numa mesa de tortura. Sabe, de acordo com o meu ponto de vista um tanto
limitado…—Ed,nãosedesmereça.—Nãoestoumedesmerecendoporranenhuma.Comovocêsabe,eunãodouamínimaparaquemtem
ounãotemstatus,ouparaquempensaistoouaquilo.Eumeconcentronosmeusassuntos,epronto.Souoencarregadodeprotegeronossosistema,eaúnicacoisaquerealmentemeimpressionaécompetênciaprofissional.—VocêcontratariaoprópriodemônioseelefosseumtécnicomaravilhosodeTI.—Eurespeitoosmeusinimigosquandoelesmostramcompetência.Entendeoqueestoudizendo?—Entendo.—Estoucomeçandoaacharquenósdoissomosparecidos,eueessecara,mesmoquesejasóuma
coincidênciaincrível.Comovocêdeveestarsabendo,umRAT,ouseja,umprograma-espião,infectouosnossoscomputadoreseseespalhoupelaintranet,eesseprograma,Alona…—Oqueéquetem?—Esseprogramaémúsicapura.Extremamentecompactoeescritocomumaelegânciaincrível.—Finalmentevocêencontrouuminimigoàaltura.—Comcerteza,eomesmovaleprosmeusrapazes.Estãotodoslábancandoospatriotasindignados,
mas no fundo tudo que eles querem é achar esse hacker e exibir seus conhecimentos para ele, contarvantagem.Porumtempoeutenteipensarquetudobem,queeraassimmesmo.Oestragonãofoigrande.Estamos atrásdeumgênioda informáticaque estáquerendoaparecer, e talvez essahistória até tenhaconsequênciaspositivas,afinalestamosaprendendomuitacoisasobreanossavulnerabilidadeenquantoagenteprocuraessecara.Sóquedepois…—Oquê?—Depoiseucomeceiapensarseeunãoestavaenganado…setodaaquelaexibiçãonomeuservidor
nãoerasóumacortinadefumaçapradisfarçaralgumaoutracoisa.—Quecoisa?—Algumacoisaqueocaraestavaprocurando.—Agorafiqueicuriosa.
—Énatural.Agentedescobriuexatamenteoqueohackerestavaprocurando,etemtudoavercomaquelaredequevocêandavapesquisando,Alona.OnomedelesnãoéSpiders?—TheSpiderSociety.Maséumnomeusadomaiscomobrincadeira.—Ohacker estava procurando informações sobre esse grupo e o trabalho que eles fizeram com a
Solifon,entãoacheiqueeletalvezfizessepartedaredeequisessesaberoqueagentetinhadescobertosobreeles.—Nãoéumateoriaabsurda.Eficouclaroqueohackertemacompetêncianecessáriaparabisbilhotar
onossosistema.—Masdepoiscomeceiaduvidardessaminhateoria.—Porquê?—Porquefiqueicomaimpressãodequeohackerquerianosmostraralgumacoisa.Eleconseguiuo
statusde superusuárioe teveacessoa arquivosque talveznemvocêpossaacessar, comodocumentossecretos,eoarquivoqueelecopiouebaixoutemumacriptografiatãoforte,quenemelenemagentetêmamenorchancedeacessaroconteúdo,anãoserqueofilhodaputaqueescreveuoprogramadêachavesecretaparaagente,sóque…—Oquê?—Ohackermostrou,atravésdonossoprópriosistema,queagentetambémestátrabalhandoparaa
Solifon.Vocêsabiadisso?—Caramba.Não.—Euimaginei.MasparecequerealmentetemosgentenossanogrupodoEckerwald.ASolifonestá
participando da nossa espionagem industrial, por isso o seu caso recebeu uma prioridade tão baixa.Estavamcommedodequeasuainvestigaçãofizesseamerdaespirrarnagente.—Cretinos.—Concordo.Epodeserquetiremvocêdocaso.—Euvouficarfuriosaseissoacontecer.—Calma,calma.Agenteaindatemumasaída,foiporissoqueeuvimarrastandomeupobrecorpinho
atéaqui.Vocêpodecomeçaratrabalharpramim.—Comoassim?—Esse hacker filho da puta tem informações sobre osSpiders, e se a gente descobrir quemele é
vamosfazerumbeloprogresso.Eaívocêvaipoderdizerasverdadesquebementender.—Estoucomeçandoaveraondevocêquerchegar.—Issoéumsim?—Éumtalvez.AindaprecisomeconcentrarnainvestigaçãodoassassinatodoFransBalder.Quero
descobrirquemfoi.—Evocêpodedividiressainformaçãocomigo?—Tudobem.—Ótimo.—Masescute—prosseguiuAlona—,seohackerétãobomassim,porqueelenãolimpouosrastros
quedeixou?— Não se preocupe com isso. Não importa o quanto ele possa ter sido cuidadoso. A gente vai
encontrá-lo,eencontrá-lovivo.—Oqueaconteceucomoseurespeitopeloinimigo?—Elecontinuaexistindo,minhacara.Masassimmesmoagentevaipegarocaraejogarelenaprisão
prorestodavida.Nenhumfilhodaputainvadeomeusistemaeficaporissomesmo.
13.21DENOVEMBRO
MikaelBlomkvistnãoconseguiudormir.Osacontecimentosdaquelamadrugadaoassombravam,eàsonzeequinzedamanhãeledesistiueselevantou.Foiatéacozinha,preparoudoissanduíchesdequeijocheddarepresuntodeParmaenumatigelapôs
granolaeiogurte.Masnãocomeuquasenada.Apostou,então,emcafé,águaecomprimidosparadordecabeça.BebeucincoouseiscoposdeáguamineralRamlösa,tomoudoiscomprimidosdeparacetamol,pegouumblocodeanotaçõesecomeçouaescreverumresumodoquehaviaacontecido.Masnão foimuito longe. Logo o caos se instalou.Os telefones começaram a tocar e não demoroumuito para eleentenderoquetinhaacontecido.Anotíciahaviaseespalhadoeinformavaque“oastrodojornalismoMikaelBlomkvisteoatorLasse
Westman”estavamnocentrodeum“misterioso”assassinato—misteriosopoisninguémsabiaexplicarporqueWestmaneBlomkvist, juntosouseparados, tinhamestadonolocalondeofamosopesquisadorsuecohaviasidoassassinadocomdoistirosnacabeça.Asinsinuaçõeserammuitas,efoiporessarazãoqueMikaelresolveudizerclaramentequeeletinhaidoàcasadoprofessoremplenamadrugadaportermotivosparaacreditarqueBalderquerialhefazerumarevelaçãourgente.—Fuiláfazeromeutrabalho—explicou.Umadefesaquenemteriasidonecessária.PorémMikaelsentiu-seacusadoequisdarumaexplicação,
mesmoque com isso atraíssemais repórterespara ahistória.Depois se limitou aumnãomuito ideal“Nada adeclarar”,maspelomenos essaspalavras tinhamavantagemde ser claras ediretas.DepoisMikael desligou o celular, pôs de novo o antigo casaco de pele herdado do pai e saiu em direção àGötgatan.Aatividadena redação lembrou-lheosvelhos tempos.Por todaparte, emcada canto, seus colegas
trabalhavammuitoconcentrados.ComcertezaErikadevia ter feitoumdiscurso inflamadoparaeles,ecomcertezatodosestavamcientesdaseriedadedomomento.Alémdeestaremadezdiasdofechamento,aameaçadeLevinedogrupoSernertambémpairavasobreacabeçadetodomundo,eaequipepareciadispostaa reagir.Mesmoassim,elesseagitaramaovê-loentrarecomeçaramafazerperguntassobreBalder,sobreanoiteanterioresobreasreaçõesdeleàsmedidasadotadaspelogruponorueguês.Mikael,porém,tentoudeixaressesassuntosparadepois.—Maistarde,pessoal,maistarde—disseenquantoiaatéamesadeAndreiZander.AndreiZandertinhavinteeseisanoseeraomaisjovemdaredação.Haviaentradonarevistacomo
estagiário, e acabou ficando, às vezes trabalhando como temporário, como agora, às vezes como
freelancer.Mikaellamentavanuncapoderteroferecidoaelealgofixo,especialmentedepoisquehaviamcontratado EmilGrandén e SofieMelker.Mikael teria preferidoAndrei.MasAndrei ainda não tinhanomenomercado,etalvezfaltassealgumacoisaparaestarprontocomoredator.Apesardisso,tinhaumespíritodeequipeinvejável,oqueeraótimoparaarevista,emboranãomuito
para o próprioAndrei.Não numa área tão individualista como o jornalismo.O garoto era um poucovaidoso, e não lhe faltavam motivos para isso. Andrei parecia uma versão mais jovem de AntonioBanderaseraciocinavamaisdepressadoqueamaioriadaspessoas.Entretantonãofazianadaparasepromover.Queriaapenasestarjuntocomosoutroseescreverbonsartigos,eadoravaaMillennium,ederepenteMikaelsentiuqueadoravatodosqueadoravamaMillennium.UmdiaaindafariaalgorelevanteparaAndreiZander.—Oi,Andrei—disseMikael.—Comoestãoascoisas?—Oi.Bemagitadas.—Eunemesperavaoutraresposta.Oquevocêconseguiu?— Bastante material. Está tudo na sua mesa, e também escrevi um resumo.Mas posso te dar um
conselho?—Tudoqueeuestouprecisandoédeumbomconselho.—VáagoraseencontrarcomFarahSharifnaZinkensVäg.—Quem?—Elaéumaprofessoradeciênciasdacomputaçãobembonitaquemoranessaruaetemodiainteiro
livrehoje.—Vocêestámedizendoqueoqueeuprecisonestemomentoédeumamulherinteligenteelinda?—Nãoébemisso.AprofessoraSharifacaboudeligarparaaredaçãodizendoquetinhaaimpressão
dequeFransBalderestavadispostoarevelaralgumacoisaparavocê.Elaachaquesabedoquesetrataequerfalarcomvocê.TalvezapenasparafazeravontadedoBalder.Paramimpareceumjeitoidealdevocêcomeçar.—Vocêjápesquisoualgumacoisasobreela?—Claro,enãopodemosdescartarapossibilidadedeelaterseusprópriosinteressesnessahistória.
MaselaerabempróximadoBalder.Osdoisestudaramjuntos,escreveramartigoscientíficosjuntos,eeutambémencontreiduasoutrêsfotosdosdoisladoaladoemeventos.AprofessoraShariféumnomedepesonaáreadela.—Tudobem,nessecasoestouindo.Vocêpodeavisá-laqueestouacaminho?—Posso—disseAndreipassandooendereçoaMikael.Nem bem havia chegado à redação Mikael já estava na rua de novo, caminhando em direção à
HornsgataneaomesmotempolendoomaterialdepesquisapreparadoporAndrei.Porduasoutrêsvezesesbarrou em alguns pedestres. Mas estava tão concentrado que mal pedia desculpas, por isso ficousurpresoaoperceberquenãoestavaindodiretoparaoendereçodeFarahSharif.EleparounobarecaféMellqvistetomoudoisespressosduplosempé.Enãoapenasparatirarocansaçodocorpo.Mikaeltambémachavaqueumchoquedecafeínapodiafazersuadordecabeçapassar.Masdepois
ficou pensando se teria sidomesmo o remédiomais indicado.Ao sair do café, sentia-se pior do quequandohaviachegado,enãosóporculpadosespressos.Eraporcausadobandodeimbecisquetinham
lidosobreoqueaconteceranamadrugadaecomeçadoaescreveridioticessobreocaso.Diziamqueomaiordesejodosjovenseravirarumacelebridade.Mikaelsentiavontadededizeraelesqueissonãoera algo para se desejar. Pelo contrário: podia ser enlouquecedor, principalmente se você não tinhadormidonadaànoiteetinhavistocoisasqueninguémdeviaver.MikaelBlomkvistsubiuaHornsgatan,passoupeloMcDonald’sepeloCoop,atravessouemdireçãoà
Ringvägenesentiuocorpotensoaoolharparaadireita,comosetivessevistoalgoimportante.Masoquepoderiahaverdeimportanteali?Nada!Eraapenasmaisumcruzamentodacidade,cheiodefumaçadeescapamento,sóisso.Continuouandando,porémemseguidaeleentendeu.Aquele era o semáforo, exatamente o semáforo, que Frans Balder havia desenhado com absoluta
precisãomatemática,eissofezMikaelrefletirmaisumavezsobreaescolhadaquelecenário.Afaixadepedestresdesgastadatambémnãodespertavanenhuminteresse.Quemsabefossejustamenteessaarazãodaescolha?Nãoeraotemaemsi.Eraoquecadaumvianele.Aobradearteestánoolhodoobservador,enãono
temaqueeleescolhe.TudoquesepoderiadizeréqueFransBaldertinhaestadonaquelelugaretalvezsesentadonumacadeiraporaliparaestudarosemáforo.MikaelpassounafrentedoginásioZinkensdammevirouàdireitanaZinkensVäg.A inspetora Sonja Modig havia trabalhado muito de manhã. Agora ela estava em seu escritório,
olhandoparaumafotografianumporta-retratosquetinhaemcimadamesa.Nela,Axel,seufilhodeseisanos,comemoravaumgolquehaviamarcadonumjogodefutebol.Sonjaeramãesolteiraenãolevavaumavidafácil.Emuitofriamenteelasabiaquesuavida,pelomenosacurtoprazo,continuarianãosendofácil.Umabatidanaporta.EraBublanski.Porfimelairiapodertransferiraelearesponsabilidadepelainvestigação.MasBubolhanãopareciamuitoansiosoparaassumirnenhumtipoderesponsabilidade.Bublanskiestavamaisbemvestidoqueonormal,compaletó,gravataeumacamisaazulnovinhaem
folha.Tinhapenteadoocabelodeumjeitoquedisfarçavaacareca.Seuolharpareciasonhador,distante,comardequemestavapensandoemqualqueroutracoisa,menosnumainvestigaçãodehomicídio.—Oqueomédicodisse?—Sonjaperguntou.—QueoimportantenãoéacreditarmosemDeus.Deusnãoémesquinho.Oimportanteéentendermos
queavidaécoisasériaerepletadeoportunidades.Temosquesaberapreciaressasqualidadesqueelatem e tentar fazer domundo um lugarmelhor.Quem atinge o equilíbrio se encontramais próximo deDeus.—Entãovocêandoufalandocomorabino?—É.—Tudobem,Jan,maseunãoseioquefazerparaapreciaravida.Nomáximopossolheoferecerum
pedaçodechocolatesuíçocomlaranjaqueeuporacasotenhoaquinaminhamesa.MassepegarmosocaraquematouFransBalder,semdúvidavamospoderfazerdestemundoumlugarmelhor.—Chocolatesuíçocomlaranjaeasoluçãodeumhomicídiomeparecemumótimocomeço.Sonjapegouochocolate,quebrouumpedaçoeoentregouaBublanski,quecomeçouamastigá-locom
umaexpressãoquasereverencial.
—Delicioso—disseBublanski.—Nãoé?—Imagineseavidapudesseserassimdevezemquando—eledisse,apontandoparaafotografiade
Axelemseumomentodetriunfo.—Comoassim?—Comafelicidadesemanifestandocomamesmaforçaqueatristeza—eleprosseguiu.—É.Imagina…—ComoestáofilhodoBalder?—eleperguntou.—August,nãoé?—Édifícildizer—respondeuSonja.—Eleestánacasadamãe.Recebendoacompanhamentodeum
psicólogo.—Eoquetemosatéagora?— Não muita coisa, infelizmente. Temos o modelo da arma. Uma Remington 1911 R1 Carry,
provavelmentenova.Aindaestamosinvestigando,mastenhoquasecertezadequenãovamosconseguirrastreá-la.Temosasimagensdascâmerasdesegurança,eelasjáestãosendoanalisadas.Maspormaisqueagenteolheessematerialdetodososângulosimagináveis,nãodáparaverorostodosuspeito,nemalgumsinal característicodele,umamarcadenascença, enfim,nadaalémdeumrelógiodepulsoqueparececaro.Aroupaétodapreta.Obonéécinza,semnadaescritonele.OJerkerdissequeosujeitosemovimentacomoumvelhodrogado.Numadasimagens,eletemnasmãosumacaixinhapreta,quetalvezsejaumcomputadorouumaestaçãodeGSM.Osistemadealarmepodetersidohackeadoassim.—Ecomoéquesehackeiaumsistemadealarme?— O Jerker foi atrás disso, e não parece ser nada fácil, principalmente no caso de um alarme
complexocomoodoBalder,mastambémnãoéimpossível.OsistemaestavaligadonainternetenarededetelefoniamóveledetemposemtemposmandavainformaçõesparaaMiltonSecurity.Osuspeitopodeter gravado a frequência do alarme para hackeá-lo. Ou então ter topado com o Balder durante umacaminhadaqualquereroubadoainformaçãoeletronicamente,doNFCdoprofessor.—Roubadoainformaçãodeonde?—DoNearFieldCommunicationdele.UmafunçãodocelulardoBalder,queeleusavaparaativaro
alarme.—Erabemmaissimplesquandoosladrõesusavampésdecabra—disseBublanski.—Algumcarro
nasproximidades?—Haviaumcarroescuroparadonoacostamento,acercadecemmetrosdacasa,comomotorligado,
masaúnicapessoaqueviuessecarrofoiumamulherchamadaBirgittaRoos,eelanãotemamenorideiadequemodeloeleera.DisseapenasquetalvezfosseumVolvo.Ouumcarroparecidocomodofilhodela.OfilhodelatemumBMW.—Putz.— É, essa investigação não está nada fácil — prosseguiu Sonja. — Os criminosos souberam se
aproveitardanoiteedatempestade.Assimsemovimentaramsemnenhumimpedimentoe,foraoMikaelBlomkvist,temosapenasmaisumatestemunha.OnomedeleéIvanGrede.Umsujeitopequeno,magro,alegreque teve leucemiana infânciaedecorouo seuquartoemestilo japonês.Faladeum jeitomeiopedante.OIvanselevantoudemadrugadaparairaobanheiroe,ládajaneladobanheiro,viuumhomem
fortecaminhandobempertodomar.Ohomemsevirouparaomare fezo sinaldacruzcomopunhocerrado.Eledissequeosmovimentospareciamaomesmotemporeligiososeagressivos.—Nãoéumaboacombinação.—Não,religiãoeviolênciadificilmentedãoemboacoisaquandosemisturam.MasoIvannãotem
certezasefoimesmoumsinaldacruz.Pareciaumsinaldacruzcomummovimentoamais,eledisse.Talvezumjuramentomilitar.PoralgumtempooIvanficoucommedodequeohomemfosseentrarnaáguaesesuicidar.Eledissequehaviaalgodesolenenaquelacena,algobastanteagressivo.—Masnãoeraumsuicídio.—Não.LogoohomemsaiucorrendoemdireçãoàcasadoBalder.Tinhaumamochilanascostase
estavausandoumaroupaescuraepossivelmenteumacalçacamuflada.Ohomemeraforte,comumbomfísico,eIvandissequeaovê-loselembroudeumantigobrinquedoseu,osguerreirosninja.—Issotambémnãoparecemuitobom.—Nemumpouco,eprovavelmentefoiessehomemqueatiroucontraoMikaelBlomkvist.—EoBlomkvistnãoviuorostodele?—Não, porque ele se jogou no chão quando viu o homem se virando para atirar. Foi tudomuito
rápido. Segundo o Blomkvist, o homem parecia ter recebido treinamento militar, o que bate com odepoimentodeIvanGrede,eeutambémmesintoinclinadaaconcordarcomisso.Arapidezeaeficáciadessaoperaçãoapontamparaisso.—VocêsdescobriramoqueoBlomkvistestavafazendolá?—Descobrimos.Sehouveumacoisabem-feitaontemànoite,foiointerrogatóriodoBlomkvist.Você
pode dar uma olhada— disse Sonja, entregando um documento a Bublanski. — O Blomkvist tinhaconversadocomumex-assistentedoBalder,eessapessoacontouqueoprofessorhaviasidovítimadeumroubodetecnologiaatravésdeumainvasãodigital,eahistóriadespertouointeressedoBlomkvist.ElequisfalarcomoBalder,masoprofessornãooprocurou.Aliás,elenuncaprocuravaninguém.Nosúltimostempos,viviaisolado,praticamentesemcontatocomomundoexterior.Todasascomprasetodososassuntosdomésticoseramresolvidosporumaempregadachamada…espereumpouco…LottieRask,easra.RasktinharecebidoordensdenãocontaraninguémqueofilhodeBalderestavanacasadopai.Jávouexplicaressaparte.Masànoitealgumacoisaaconteceu.TalvezoBalderestivessepreocupadoetenharesolvido tirarumpesodascostas.NãoesqueçaqueoBalder tinhaacabadodesaberquehaviaumaameaça realcontraele.Alémdomaisosistemadealarme tinhadisparadoehaviadoispoliciaisvigiando a casa. Talvez ele achasse que estava com os dias contados. Não sei. De madrugada eletelefonouparaMikaelBlomkvistedissequetinhaumahistóriaparacontar.—Antigamenteaspessoasligavamparaumpadrenessahora.—Hojeparecequeaspessoasligamparaumjornalista.Bem,tudoésóespeculação.Oquesabemos
com certeza é o que o Balder deixou gravado na secretária eletrônica do Blomkvist. No mais, nãofazemosamenorideiadoquepodeseressahistória.OBlomkvistdissequetambémnãosabe,eacreditonele.Masparecequesóeu.ORichardEkström,quealémdetudoéumchato,estáconvencidodequeoBlomkvistestásonegandoinformaçõesparapublicarnarevista.Paramimédifícilacreditarnisso.Todomundo sabe o quanto o Blomkvist é esperto, mas ele não sabotaria uma investigação policial depropósito.
—Éverdade.—AquestãoéqueoEkströmagoracomeçouaapelaredissequeoBlomkvisttemqueserdetidopor
obstruçãodejustiça,perjúrioenãoseimaisoquê.Elesóficarepetindo:“Elesabe,elesabe…”.Elevaiacabarfazendoalgumacoisa.—Issonãovaiacabarbem.—Nãovaimesmo.EconsiderandoacapacidadeinvestigativadoBlomkvist,eudiriaqueseriauma
boaideianãocriarnenhumtipodeinimizadecomele.—Achoquevamosprecisarinterrogá-lomaisumavez.—Eutambémacho.—EquantoaoLasseWestman?—Acabamosdeinterrogá-lo,eahistóriaqueelecontounãoémuitoedificante,paradizeromínimo.
OWestman foi aoKonstnärsbaren, ao Teatergrillen, aoOperabaren, aoRiche, e sóDeus sabe aondemais, e ficou tagarelando sobre o Balder e o menino por horas e horas. Os amigos dele quaseenlouqueceram,equantomaisoWestmanbebiaetorravadinheiro,maisobcecadoeleficava.—Eporqueissoeratãoimportanteparaele?—Empartetemavercomocomportamentoobsessivodosalcoólatras.Euseiporqueomeutioera
assim.Semprequeenchiaacara,elegiaumassunto.Masaquinonossocasotemalgomais:oWestmanfalouotempointeirosobreojulgamentoquehaviadadoaguardadomeninoàmãe,oquetalvezpesasseafavordeleseelefosseumapessoacomumpoucomaisdeempatia.Nessecasoatépoderíamosacharqueeleestavaapenaspensandonobem-estardomenino.Porém,comovocêdevesaber,oWestmanjáfoicondenadoporagressão.—Eunãosabia.—Algunsanosatráselenamorouaquelablogueirademoda,aRenataKapusinski.Eeledeuumasurra
nela.Achoquechegouafraturarorostodela.—Poxa.—Alémdisso…—Sim?—OBaldertinhaescritováriaspetições,quetalvezporcausadasituaçãolegalemqueeleestavanão
chegaramaserenviadas,enessesdocumentosficabemclaroqueelesuspeitavaqueoWestmantambémagrediaomenino.—Oquevocêestádizendo?—Balderencontrouhematomasnocorpodofilho,eumapsicólogadoCentrodeAutismoconfirmoua
denúncia.Então…—…dificilmenteLasseWestmanteriaidoaSaltsjöbadenporamor.—Exato.Omaisprováveléquetenhasidopordinheiro.Depoisquelevouofilhoembora,oBalder
suspendeuoupelomenosdiminuiuapensãoquevinhapagando.—EoWestmannãofeznenhumadenúncia?—Nãoseatreveu,emvistadascircunstâncias.—Equeoutrasinformaçõeshánasentençasobreaguardadomenino?—perguntouBublanski.—QueoBaldereraumanegaçãocomopai.
—Émesmo?— Não que ele fosse uma pessoa ruim, como o Westman. Mas houve um incidente. Depois do
divórcio,oBalderficavacomomeninoumfimdesemanaacadaquinzena,enessaépocaelemoravanumapartamentoemÖstermalmcomestantesdelivrosqueiamdochãoatéoteto.Numdessesfinsdesemana, quandoAugust tinha seis anos, ele estava na sala enquanto oBalder, como sempre, ficava otempo todo concentrado em frente ao computador num cômodo ao lado. Havia uma pequena escadaencostadanumadasestantes,eAugustsubiunela.Eledevetertentadopegarumlivronaprateleiramaisalta,próximaaoteto,caiueacabounochão,inconscienteecomocotoveloquebrado.MasoFransnãoouviu nada. Simplesmente continuou lá trabalhando, e só depois de várias horas encontrou Augustbalbuciandonochão,pertodoslivros.Bom,aíeleficouhistéricoelevouomeninoparaohospital.—Efoiassimqueeleperdeudevezaguardadofilho?—Nãofoisóporisso.TambémconstataramqueoBaldereraemocionalmenteimaturoeincapazde
cuidar do filho.A partir daí ele não pôdemais ficar sozinho comAugust.Mas, sinceramente, eu nãoacreditomuitonessejulgamento.—Porquenão?—Porquefoiumprocessosemdefesa.Oadvogadodaex-mulherdoFransbateucomtudo,enquanto
elemesmoadmitiaserumimprestável,umirresponsável,inadaptadoàvida,esóDeussabemaisoquê.Naminhaopinião,asentençafoitendenciosa,demá-féecontémtrechosemqueconstaqueoBaldereraincapazdeserelacionarcomoutraspessoas,porissoserefugiavanoscomputadores.Agoraqueacabeidemeinformarumpoucosobreavidadele,nãoacreditomuitoemnadadisso.AsadmissõesdeculpadoBalderesuasautocríticasforamtomadascomoverdadesabsolutaspelotribunal,enquantoelesóestavasendo extremamente cooperativo. Como eu disse, o Balder aceitou pagar uma pensão substancial, dequarentamilcoroaspormês,senãomeengano,maisnovecentasmilcoroasparadespesaseventuais.EpoucotempodepoissemudouparaosEstadosUnidos.—Maseleacabouvoltandoparacá.—Voltou,eprovavelmentedeveterhavidováriosmotivosparaeletervoltado.Atecnologiaqueele
desenvolviafoiroubada,etalvezoBalderatésoubessequemtinhafeitoisso.Alémdomais,eleestavaemsériosconflitoscomaempresaondetrabalhava.Masachoqueofilhotambémpesou.ApsicólogadoCentro de Autismo que eu mencionei há pouco, que se chama Hilda Melin, a princípio tinha umprognósticomuitoanimadorparaomenino.Masnadasaiucomoelahaviapensado.ElatambémrecebeuumrelatórioemqueconstavaqueHannaeLasseWestmannãoestavamcumprindoodeverdeassegurarumaeducaçãodequalidadeaAugust.Segundooacordo,omeninodeveriateraulasparticularesemcasa,masosprofessoresresponsáveisparecemtersedesentendido,dizemquetambémhouvetraições,desviodedinheiro,professores-fantasma,enfim, todotipodemerdaquevocêpodeimaginar.Masessaéumahistóriaparaalguéminvestigarmelhordepois.—VocêfaloudeumapsicólogadoCentrodeAutismo.— Exato. Hilda Melin. Ela suspeitou de alguma coisa estranha, ligou para Hanna e Lasse e eles
disseramquetudocorriaàsmilmaravilhas.Masela tevea intuiçãodequenãoerabemassim.Então,indocontraosprocedimentosinternosdoCentro,elafezumavisitasurpresaàcasadelese,quandoporfimadeixaramentrar, teveumasensaçãomuito fortedequeomeninonãoestavanadabemequeseu
desenvolvimentotinhaestagnado.Comosenãobastasse,viuostaishematomas,eentãoligouparaFransBalder em San Francisco e teve uma longa conversa com ele. Pouco depois o Balder voltou para aSuéciaelevouofilhoparasuanovacasaemSaltsjöbaden,apesardasentençaquehaviadadoaguardadomeninoàex-mulherdele.—Ecomoissoaconteceu,seoLasseestavatãopreocupadocomapensão?—Boapergunta.PeloqueoWestmandisse,oBalderpraticamentesequestrouomenino.Masaversão
deHannafoibemdiferente.EladissequeoFransapareceusemavisarequepareciamudado,porissoeladeixouquelevasseofilho.AchouqueAugustteriaumavidamelhorcomopai.—EoWestman?—SegundoHanna,Westmantinhabebidoeacabadodeconseguirumpapelnatelevisão,estavatodo
arroganteecheiodesi.EletambémconcordouqueoFranslevasseomenino.PormaisqueoWestmanreclamedogarototeridoembora,tenhoaimpressãodequeparaelefoiumaalegriaselivrardeAugust.—Edepois?—Depois ele se arrependeu e, para piorar, foi dispensado de seu papel na televisão porque não
conseguiaficarsóbrio.ApartirdaíquisAugustdevolta,oumelhor,nãoexatamenteAugust,esim…—…apensãodomenino.— Isso mesmo. Essa versão foi confirmada pelos companheiros de bar de Westman, entre eles
Rindevall, um promotor de eventos. Quando o limite do cartão de crédito deWestman estourou, elecomeçouase indignareaclamarpelomenino.DepoispediuquinhentascoroasemprestadasparaumagarotanobarepegouumtáxidiretoparaSaltsjöbaden.JanBublanskipassoualgumtempopensativo,emsilêncio,emaisumavezolhouparaafotografiade
Axelemseumomentodetriunfo.—Quebagunça—disse.—Poisé.— Em circunstâncias normais, já estaríamos perto de uma solução. O motivo do crime estaria
relacionadocomadisputapelaguardadomeninoecomodivórciodeFranseHanna.Masessessujeitoshackeando sistemas de alarme e parecidos com guerreiros ninja não são exatamente os suspeitos desempre.—Nãomesmo.—Porissomeocorreuoutracoisa.—Oquê?—SeAugustnãosabeler,oqueeleestariafazendocomaqueleslivros?MikaelBlomkvistestavasentadoàmesacomumacanecadechá,nafrentedeFarahSharif,olhando
para Tantolunden e, apesar de saber que aquele era um sinal de fraqueza, desejou não ter histórianenhumaparaescrever.Desejoupoderapenasficarlásentado,sempressioná-la.Não parecia que uma boa conversa ajudaria Farah Sharif. Era como se todo o seu rosto houvesse
desabado,eosolhosescuroseintensosquenaportahaviamdadoaimpressãodeterpenetradoMikaelatéaalmapareciamagoradesorientados,eàsvezeselabalbuciavaonomedeFranscomosefosseum
mantraouumencantamento.Talvezoamasse.Elecomcertezaaamara.Farahtinhacinquentaedoisanoseeraumamulheratraente,comumabelezanãoexatamenteclássicaeaposturadeumarainha.—Comoeleera?—Blomkvistperguntou.—OFrans?—É.—Umparadoxo.—Dequemaneira?—Detodasasmaneiraspossíveis.Masachoqueprincipalmenteporquesededicavamuitoàscoisas
quemaisoperturbavam.MaisoumenoscomoOppenheimeremLosAlamos.OFransestavatrabalhandojustamentenumacoisaqueeleimaginavaqueumdiafossecausaranossaruína.—Nãoestouentendendo.— O Frans queria recriar a evolução biológica em nível digital. Ele trabalhava com algarismos
inteligentes—algarismosque,atravésde tentativaeerro,vãoseaprimorando.Ele tambémcontribuiupara o desenvolvimento dos computadores quânticos, como esses usados peloGoogle, pela Solifon epelaNSA.OobjetivomaiordeleeraatingiraIAG,aInteligênciaArtificialGeral.—Eoqueéisso?— Um programa tão inteligente quanto um cérebro humano, porém rápido e preciso como um
computador em todas as questões mecânicas. Uma criação dessas seria uma vantagem enorme paraqualquercampodepesquisa.—Semdúvida.—Osestudosnessaáreatêmumaabrangênciaenorme,emesmoqueamaioriadospesquisadoresnão
tenha a ambição expressade atingir a IAG, é nessa direção que a concorrência nos empurra.Ninguémpodesedaraoluxodecriaraplicativosquenãosejamosmaisinteligentesqueatecnologiaécapazdeproduzir,ouentãodedeteroprogresso tecnológico.Penseemtudoque já fizemosatéaqui.Pensenosaplicativosdoseutelefonecincoanosatrásecomparecomosdehoje.—Vocêtemrazão.—Antesdesetornarumrecluso,oFransimaginavaquefôssemosatingiraIAGemtrintaouquarenta
anos,oquepodeparecerambiciosodemais.Masaminhaopiniãoéquetalvezaprevisãodeletenhasidomuitoconservadora.Acapacidadedoscomputadoresdobraacadadezoitomeses,enãoéfácilparaonossocérebroentenderoqueumaprogressãodessasrealmentesignifica.Émeiocomooproblemadosgrãos de arroz num tabuleiro de xadrez, sabe? Você coloca um grão no primeiro quadrado, dois nosegundo,quatronoterceiro,oitonoquarto…—Enesseritmoosgrãosdearrozlogoseespalhariampelomundointeiro.— A progressão vai crescendo a uma velocidade cada vez maior e logo perdemos totalmente o
controle.Omaisinteressante,naverdade,nãoseráomomentoemqueatingirmosaIAG,masoquepoderáacontecerdepois.Existemváriaspossibilidades,eelasdependemdamaneiracomochegarmoslá.Mascomcertezavamosusarprogramasquecriamupdatesparasimesmosafimdeseaperfeiçoar,eapartirdessemomentohaveráumanovaconcepçãodetempo.—Comoassim?—Aslimitaçõeshumanasnãoexistirãomais.Vamosserlançadosnumanovaera,naqualasmáquinas
farãoupdatesemsimesmasàvelocidadeda luzvinteequatrohoraspordia,setediasporsemana.EpoucosdiasdepoisdetermosatingidoaIAGvamosatingiraSIA.—EoqueéaSIA?—ASuperinteligênciaArtificial…uma inteligênciamaior do que a nossa. E a partir daí tudo vai
acontecermaisrápido.Oscomputadoresvãoseaperfeiçoarsozinhosaumavelocidadecadavezmaior,talveznumfatordedez,elogovamosternovoscomputadorescem,mil,dezmilvezesmaisinteligentesdoquenós.Eoquevaiacontecerdepois?—Diga.—Eunãosei.Ainteligêncianãoéalgoprevisível.Nãosabemosaondea inteligênciahumanapode
noslevar.Esabemosaindamenosoquepodeacontecercomumasuperinteligência.—Napiordashipótesesvamosnos tornar tão interessantesquanto ratinhosbrancosde laboratório
paraoscomputadores—disseMikael,pensandonoquetinhaescritoparaLisbeth.—Nopiordashipóteses?NossoDNA énoventaporcento idênticoaodos ratos, eestima-sequea
nossainteligênciasejamaisoumenoscemvezesmaiorqueadeles,nãomaisqueisso.Agoraestamosdiantedealgo totalmentenovoequedeacordocomosmodelosmatemáticosnão temnenhum tipodelimitação, algoquepode se tornarmilhõesdevezesmais inteligentedoquenós.Entendeoque estoudizendo?—Estoutentando—respondeuMikaelcomumsorrisocauteloso.—Ouseja—prosseguiuFarahSharif—,comovocêachaqueumcomputadorvaisesentirquando
acordaredescobrirqueestásendocontroladoporcriaturasprimitivascomonós?Porqueaceitaráessasituação?Porquevaiteralgumtipodeconsideraçãoconoscoequemotivoteráparanosdeixarmexernassuasentranhasafimdeinterrompermosesseprocesso?Corremosoriscodenosverdiantedeumaexplosão de inteligências, de uma singularidade tecnológica, como disse Vernor Vinge. Tudo queacontecerdepoisestaráforadonossohorizonte.—Então,noinstanteemquecriarmosumasuperinteligênciavamosperderocontrole.—O risco é que tudo que sabemos domundonão vai termais utilidade, o que pode ser o fimda
existênciahumana.—Vocêestábrincando?—Sei que parece loucura para quem não conhece a fundo essa problemática.Mas é uma questão
absolutamente concreta. Hoje em dia, há milhares de pessoas no mundo trabalhando para impedir odesenvolvimentodessainteligência.Muitastêmumaexpectativabastanteotimistaeatéutópica.Falamdeumasuperinteligênciaamigável,umasuperinteligênciaprogramadadesdeoinícioparanãofazermaisdoque nos ajudar. De certa forma o que Asimov imaginou emEu, robô, com normas incorporadas queimpeçam as máquinas de nos fazer mal. O escritor e inventor Ray Kurzweil acredita num mundomaravilhoso, em que vamos nos integrar aos computadores através da nanotecnologia e dividir nossofuturocomeles.Masclaroquenãohánenhumagarantia.Normaspodemseranuladas.Opropósitodesseprogramainicialpodeseralterado,eémuito,muitofácilcometererrosantropomórficos,ouseja,atribuirtraçoshumanosàsmáquinaseentenderdeformaequivocadaasmotivaçõesdelas.OFranseraobcecadoporessasquestõese,comoeudisse,estavadividido.Porumlado,desejavacomputadoresinteligentes;poroutro,essaideiaopreocupava.
—Elesesentiatentadoaconstruiroseumonstro.—Demaneiraumpoucoteatral,foimaisoumenosisso.—Eatéondeeletinhachegado?—Maislongedoquesepoderiaimaginar,euacho,eacreditoqueporissoelesecomportoudeforma
tãosigilosaemrelaçãoaoseutrabalhonaSolifon.OFranstinhamedodequeoseuprogramacaísseemmãoserradas.Etambémdequeoprogramacaíssenarede.EleochamoudeAugust,omesmonomedofilho.—Eondeestáoprogramaagora?—Fransolevavacomeleaondequerquefosse.Deviaestaraoladodacama,quandoomataram.O
pioréqueapolíciadissequenãoencontrounenhumcomputadornacasa.—Eutambémnãovinenhum,mesmoestandomaisconcentradoemoutrascoisas.—Devetersidohorrível.—Talvezvocê saibaqueeuvioassassino—prosseguiuMikael.—Eleestavacomumamochila
grande.—Issonãoestámecheirandonadabem.Quemsabecomumpoucodesorteagenteaindarecebaa
notíciadequeocomputadorestánacasa.Faleirapidamentecomapolícia,mastiveaimpressãodequeelesaindanãotêmmuitaideiadoqueaconteceu.—Vamos torcerparaquevocêesteja certa sobreo computador.Você sabequempode ter roubado
essatecnologianaprimeiravez?—Paradizeraverdade,sei,sim.—Agorafiqueirealmenteinteressado.—Euimagino.Omaistristedessahistóriaéquepartedaculpafoiminha.OFransestavatrabalhando
comoumlouconaépocaefiqueicommedodequeelenãoaguentasse.Ele tinhaacabadodeperderaguardadoAugust.—Quandofoiisso?—Hádoisanos.OFranspareciaexaustoenãoparavadeseculparpeloquetinhaacontecido.Mesmo
assim,nãolargavaapesquisa.Sejogounaquilocomosefosseaúnicacoisaimportantedavidadele,efoi aí que eu decidi procurar alguns assistentes, para que ele não ficasse tão sobrecarregado.Escolhialgunsalunosmeus,mesmosabendoquenãoeramasmelhorescriaturasqueDeusjáhaviacriado.Maseram pessoas com ambição e talento e que tinham uma admiração enorme peloBalder. Tudo pareciamuitopromissor,sóque…—RoubaramoBalder.—Eleteveaconfirmaçãodequeissotinhaacontecidoquandooinstitutodepatentesnorte-americano
recebeu uma solicitação de patente daTruegames em agosto do ano passado.Todos os detalhesmaisespecíficosdatecnologiadesenvolvidapeloFransestavamcopiadosedescritosnessasolicitação,enocomeço todomundo achou que os computadores tinham sido invadidos. Eu não acrediteimuito nisso,afinal eu conhecia o alto nível da criptografia que o Frans usava.Mas comonão parecia haver outraexplicação,esseacabousendoopontodepartida,eporumbomtempoatéoFransacreditounahipótesederoubo.Masclaroquenãofoinadadisso.—Oquevocêquerdizer?—Mikaelperguntou.—Osperitosnãoconfirmaramainvasão?
—Confirmaram, um idiota qualquer do Försvarets Radioanstalt que quis chamar atenção.O Franstinhaamaniadeprotegeropessoaldele,enãoésóissoquemeassusta.Eutambémachoqueelepodeterresolvidobancarodetetive,pormaisidiotaqueelepudesseparecernessepapel.Sabe,eu…Farahtomouumlongofôlego.—Oquê?—disseMikael.—Eu só fiquei sabendode tudo isso hámais oumenosduas semanas.OFrans e oAugust vieram
jantaraquiemcasaeeu logopercebiqueele tinhaalgumacoisa importanteparamedizer.Davaparasentirnoar,edepoisdebeberumpoucoelepediuqueeulargasseocelularecomeçouafalarbaixinho.Admitoquenoiníciomeirritei.Elecomeçouafalardenovodaquelahackergenialdele.—Hackergenial?—repetiuMikael,tentandoparecernatural.—Umagarotasobrequemelevinhafalandootempointeiro.Nãovouaborrecervocêcomahistória
toda,masumdiaelaapareceudonadanumapalestradoFransecomeçoua falarsobreoconceitodesingularidade.—Comoassim?FarahSharifficoupensativa.—Ela…ah,naverdadeissonãotemnadaavercomoqueaconteceu—eladisse.—Masoconceito
desingularidadetecnológicafoiinspiradopelasingularidadegravitacional.—Eoqueéisso?—Costumo dizer que é o coração das trevas; é o que existe no interior dos buracos negros, uma
espéciedebecosemsaídaparatudoquesabemossobreouniversoequetalvezpossanosdaracessoaoutros mundos e a outras épocas. Muitos pesquisadores veem a singularidade como um conceitototalmente irracional e que portanto precisaria ser protegido por um horizonte de eventos. Mas essagarota estavaprocurandouma formamecânico-quântica de fazer os cálculos necessários e alegouquepoderiamuitobemhaversingularidadesexpostas,semumhorizontedeeventos,e…Bem,nãovoumeaprofundar no assunto. Mas ela impressionou muito o Frans e ele começou a ficar cada vez maisreceptivoàgarota,oquealiásécompreensível.UmsupernerdcomooFransnão tinhamuitaspessoascomquempudesseconversardeigualparaigual,equandoelesoubequeagarotatambémerahackerelepediuqueelaexaminasseoscomputadoresqueeleestavausandonapesquisa.TodoesseequipamentoficavanacasadeumassistentedelechamadoLinusBrandell.Maisumavez,Mikaelachoumelhornãorevelaroquesabia.—LinusBrandell—eledisseapenas.—Issomesmo—continuouFarah.—Agarotafoivê-loemÖstermalm,ondeelemorava,eassimque
chegouomandousairdoapartamento.Depoisanalisouoscomputadoresenãoencontrounenhumsinaldeinvasão.Masnãosedeuporsatisfeita.ComoelatinhaumalistacomosnomesdosassistentesdoFrans,alimesmo,docomputadordoLinus,elacomeçouahackeartodoseles,enãodemorouparadescobrirqueumdelestinhasevendidoparaaSolifon.—Quem?—OFransnãoquismecontar,pormaisqueeuinsistisse.Masessagarotatelefonouparaeleaindado
apartamentodoLinus.OFransestavaemSanFranciscoquandoissoaconteceu,masimagine:traídoporumdeseusassistentes!Imagineiqueelefossedenunciarorapazassimquesoube,paradesmascará-lo,
enfim,acheiquefosse transformaravidadelenuminferno.MasoFrans teveoutra ideia.Pediuqueagarotaagissecomoserealmentetivessehavidoumainvasão.—Porquê?—Ele não quis que as provas e os rastros fossem apagados. Queria entendermelhor o que tinha
acontecido,edefatofazsentido.Descobrirqueumadasmaioresdesenvolvedorasdesoftwaredomundohaviaroubadoevendidoumatecnologiadesenvolvidaporeleeramaisgravedoquedescobrirquehaviaumaovelhanegranaequipe,queumestudanteinescrupulosootinhaapunhaladopelascostas.Afinal,nãoésóporqueaSolifonéumadasmaisrenomadasempresasdepesquisadosEstadosUnidos.ElaficoutentandocontrataroFransporanoseanos,eissoodeixoufurioso.“Aquelesdesgraçadosmefizerammilelogiosedepoismeroubaram”,eledesabafou,indignado.—Espereumpouco—disseMikael.—Queroentendermelhoressaparte.Vocêestáachandoqueo
BalderaceitoutrabalharnaSolifonsóparadescobrircomoeporqueohaviamroubado?— Se há uma coisa que eu aprendi com o passar dos anos é que nem sempre é fácil entender as
motivações das pessoas. O salário e o acesso a uma infinidade de recursos certamente também oinfluenciaram.Masrespondendoàsuapergunta:sim!Foiummotivomaisdoquesuficiente.Mesmoantesdagarotaanalisaroscomputadoresdele,oFransjáachavaqueaSolifonestavaenvolvidanoroubo.Masela conseguiu informações mais específicas, e foi a partir daí que ele realmente começou a cavar asujeira toda. Claro que foi bemmais difícil do que ele havia imaginado, e de quebra o Frans geroususpeitas,fezváriosinimigosnaSolifonefoificandocadavezmaisrecluso.Masacabouachandooquequeria.—Oquê?—Éapartirdessepontoqueahistóriaficarealmentedelicada.Eunãodeviaestartecontandotudo
isso.—Mesmoassimestamosaquiconversando.—Mesmoassimestamosaqui,enãoéapenaspeloenormerespeitoqueeutenhopeloseutrabalho.
HojedemanhãmeocorreuquenãodevetersidoporacasoqueoFranstelefonouparavocê,enãoparaoServiço de Proteção à Indústria da Säpo, com o qual ele também mantinha contato. Ele começou asuspeitar de vazamentos nesse setor. Claro que pode ter sido só paranoia dele. O Frans tinha váriossintomasdemania de perseguição.Mas como foi comvocêque ele resolveu conversar, agora esperorealizaressedesejodele.—Entendo.—NaSolifonexisteumadivisãochamadasimplesmentedeY—prosseguiuFarah.—Omodeloéo
Google X, a divisão do Google que cuida dos chamados moonshots, que são ideias absurdas eimprováveis,comodescobriravidaeternaoutentarestabelecerumarelaçãoentreummotordebuscaseosneurôniosdocérebro.SeexisteumlugarcapazdecriaraIAGouaSIA,esselugarélá,eoFransestavaligadoaoY.Masnãofoiumaideiamuitoboa.—Porquenão?—PorqueessahackerdescobriuquenadivisãoYhaviaumgruposecretodeanalistaslideradospor
umhomemchamadoZigmundEckerwald.—ZigmundEckerwald?
—É.ConhecidocomoZeke.—Equeméele?—ExatamenteosujeitoquemantinhacontatocomoassistentetraidordoFrans.—EntãooladrãoeraesseEckerwald.—Pode-sedizerquesim.Umladrãodealtonível.Vistodefora,otrabalhodogrupodeEckerwald
parecia totalmente legítimo. Eles reuniam informações sobre pesquisadores notáveis e ideiaspromissoras.Todasasgrandesempresasde tecnologiadesenvolvematividadescomoessasparasaberquemestáfazendoprogressosequemdeveserrecrutado.MasoBalderpercebeuqueogrupofaziamaisdoqueisso.Nãoerasóumrastreamento.Elestambémroubavam…atravésdeinvasões,espionagemesuborno.—EporqueoBaldernãoosdenunciouàpolícia?—Nãoeranadafácilproduzirprovas.Ogrupoagiacommuitacautela.MasnofimoFransresolveu
falar com Nicolas Grant, dono da Solifon. Grant ficou bem perturbado e supostamente ordenou umainvestigação interna.Mas essa investigação não chegou a nada, ou porque Eckerwald tinha destruídotodasasevidências,ouporqueainvestigaçãonãopassavadeencenação.OFransacabouficandonumasituaçãohorrível.Todosestavamfuriososcomele.AchoqueEckerwaldfoiumadasprincipais forçasdesseprocesso,enãodevetersidodifícilconseguiraadesãodeoutraspessoas.SeoFransjáeravistocomouma pessoa desconfiada e paranoica, depois disso passou a ser aindamais isolado e ignorado.Imaginobemcomodeviaser.Quasepossovê-lonumcanto,irritado,antissocial,contrariado,recusando-seafalarcomquemquerquefosse.—Vocêachaqueelenãotinhanenhumaprovaconcreta?— Ele tinha pelo menos a prova obtida pela hacker: que Eckerwald havia roubado a tecnologia
desenvolvidapeloFransparavendê-la.—EntãodissooBaldertinhacerteza.—Tudoindicaqueelenãoduvidavadisso.Equetambémhaviachegadoàconclusãodequeogrupo
do Eckerwald não trabalhava sozinho. O grupo recebia apoio externo, provavelmente do serviço deinformaçãoamericanoe…Farahsedeteve.—Eoquemais?—OFransfoiaindamaisenigmáticosobreisso,talvezporquenãotivesseinformaçõesmuitoexatas.
MaseleencontrouocodinomedoverdadeirolíderdeforadaSolifon.“Thanos”.—Thanos?—É.OFransdissequeaspessoas tinhammedodessafigura,só isso.Eque iriaprecisar fazerum
segurodevida,paraquandoosadvogadosfossematrásdele.—Vocêdissequenão sabequeméoassistenteque traiuaconfiançadoFrans.Masvocêdeve ter
pensadobastantearespeitodoassunto—disseMikael.—Claro,eàsvezes…Ah,nãosei.—Oquê?—Achoqueelespodemteragidojuntos.—Porquê?
—QuandoelescomeçaramatrabalharcomoFrans,todoseramgarotoscheiosdetalentoeambição.Quandopararam,estavamexaustos,perturbados.PodeserqueoFrans tenhasugadoavidadeles,mastambémpodeserqueestivessematormentadoscomalgumacoisa.—Vocêtemonomedeles?—Claro. São todosmeus alunos, infelizmente.O que eumencionei há pouco, LinusBrandell, tem
vinteequatroanosefazpoucacoisaalémdejogarjogosdecomputadorebeber.Tinhaumbomempregocomo desenvolvedor de jogos na Crossfire,mas acabou desempregado quando começou a apresentaratestadosmédicos demais e a acusar os colegas de espionagem. Depois há ArvidWrange, que vocêtalvezconheçadenome.Elefoiumenxadristapromissor.Opaideleopressionavasempiedade,nofimArvidsecansoudaquiloecomeçouaestudarcomigo.Acheiqueelejátivesseseformadomuitotempoatrás, mas ele começou a frequentar os bares de Stureplan e a se comportar de forma errática. EletambémmorouporalgumtempocomoFrans.Haviaumaforteconcorrênciaentreosrapazes,eArvideBasim,queerao terceiroassistente,passaramaseodiar,oupelomenosArvidpassouaodiarBasim.BasimMaliknãoéumrapazmuitodadoaódios.ÉumsujeitotalentosoesensívelquefoicontratadopelaSolifonNorden há cerca de um ano.Mas as forças dele não durarammuito.Agora está internado nohospitalErstatratandodeumadepressão,ehojedemanhãamãedelemeligouparadizerqueeleestavasedado.QuandoficousabendooquetinhaacontecidocomoFranselecortouospulsos,eclaroquefoiumanotíciamuitodolorosaparamim.Aomesmo tempo, nãopossodeixar demeperguntar: terá sidomesmoapenasportristezaqueelefezisso?Seráquenãofoiculpa?—Ecomoeleestá?—Dopontodevistaclínico,bem.Nãocorrenenhumrisco.EhátambémNiklasLagerstedt,que…o
quepossodizer?Elenãoécomoosoutros rapazes.Nãoédo tipoquebateacabeçanaparedee temimpulsos autodestrutivos. Mas Niklas é um rapaz que tem objeções morais à maioria das coisas,inclusive a jogos de computador e pornografia. Ele é membro da IgrejaMissionária da Suécia. SuamulherépediatraeosdoistêmummeninochamadoJesper.Alémdisso,éoconsultordaPolíciaFederalresponsável pelo sistema que vai ser implementado lá no ano que vem, então é claro que seusantecedentesforamtodosverificadosparaqueelepudesseserindicadoaocargo.Masnãoseiseessasaveriguaçõessãorealmenteminuciosas.—Porquevocêestádizendoisso?—Porqueportrásdesuaaparênciadehomemdebem,oNiklaséumcriminososedentopordinheiro.
Tenhoinformaçõesdequeeleseapossoudeformailegaldepartedafortunadossogros.Ouseja,éumestelionatário.—Osrapazesforaminterrogados?—ASäpofaloucomeles,masnãodescobriunadadeimportante.NaépocaseacreditavaqueoFrans
tivessesidovítimadeumainvasãodigital.—Agoraachoqueapolíciavaiquererouvi-losdenovo.—Tambémacho.—Aliás,vocêsabeseoBaldertinhaohábitodedesenharnashoraslivres?—Desenhar?—É.Poracasoelegostavadefazerdesenhosextremamentedetalhados?
—Não,eunãoseinadasobreisso—respondeuFarahSharif.—Porquê?—Euviumdesenhoimpressionantenacasadele.EraosemáforodocruzamentodaHornsgatancoma
Ringvägen.Umdesenhoperfeito,quasefotográfico,emuitoescuro.—Queesquisito.QueeusaibaoFransnãodesenhava.—Estranho.—É.—Algumacoisanessedesenhomeintrigou—disseMikael,percebendo,surpreso,queFarahhavia
pegadosuamão.Mikaelpassouamãonacabeçadela.Entãoselevantoucomasensaçãodequeestavaprestesafazer
umadescoberta.Elesedespediuefoiembora.VoltandopelaZinkensVäg, telefonouparaErikaepediuqueelaescrevesseoutraperguntanapasta
LisbethSalander.
14.21DENOVEMBRO
OveLevinestavasentadoemseuescritóriocomvistaparaSlusseneRiddarfjärdensemfazernadaanãoserbuscarocorrênciasdeseunomenoGoogle,naesperançadeacharalgumacoisaqueoalegrasse.Em vez disso, encontrou comentários que o chamavam de gordo pegajoso e que o acusavam de tervendidoseusideais—tudonumblogdeumajovemestudantedaUniversidadedeEstocolmo.Ficoutãoindignadoquenemconseguiuanotaronomedagarotaemsualistanegra,paraondeelemandavaonomedetodasaspessoasqueogrupoSernerjamaiscontrataria.Ovenãoaguentavaperder tempocomidiotasquenãoentendiamnadadoqueeranecessáriofazere
quenuncasededicariamanadaalémdeescreverartigosmalpagosemrevistasdeculturainsignificantes.Emvezdeficarpresoempensamentosdestrutivos,acessouseuhomebankingparadarumaolhadaemseuportfóliodeinvestimentos,oqueoanimouumpouco,aomenosnaquelemomento.Eraumdiabomparaomercado.TantoaNasdaqcomooDowJonestinhamsubidonatardeanterioreoStockholmsindexsubira1,1%.Odólar tambémestavavalendomaise,deacordocomaatualizaçãosegundoasegundo,naqueleinstantetodososseusinvestimentossomavam12161389coroas.Nadamauparaquem,emoutrostempos,redigianotíciassobreincêndiosebrigasdefacanaedição
matutinadoExpressen.DozemilhõesmaisoapartamentodeVillastadeneacasaemCannes!Osoutrosqueescrevessemoquebementendessem,porqueapartedeleestavagarantida.EntãoOveolhoumaisumavezototal.12149101.Porra,seráqueasaçõestinhamsedesvalorizado?12131737.Seurostosecontorceunumacareta.Nãohaviarazãoparaabolsaestarcaindo.Acifraanteriorerabemmelhor.OveLevin tomou a desvalorização como ofensa pessoal, e, mesmo contra a vontade, voltou a pensar naMillennium,pormaisirrelevantequeoassuntofossenaquelecontexto.Exaltou-seoutraveze,pormaisquetentasseafastaressepensamento,selembroudecomoorostolindodeErikaBergersetornarasérioeinamistosonatardeanterioretambémdecomonãohaviamelhoradonadanaquelamanhã.OveLevintinhaquasesurtado.MikaelBlomkvistestavaemtodosossitesimagináveis,everaquilo
doeunele.Enãoapenasporquenodiaanterior tivesseditoqueninguémdageraçãomais jovemsabiaquem eraMikaelBlomkvist,mas ele também abominava aquela lógicamidiática segundo a qual todomundose transformavanumastro—jornalistas,celebridadesesabe-se lámaisquem—assimqueseenvolvesseemalgumtipodeconfusão.Pelocontrário:deviamchamá-loédedinossauroBlomkvist,umavezque,noquedependessedeOveedaSernerMedia,elenemiriapodercontinuarnaredaçãodesuaprópriarevista.JustamenteFransBalder?Por que justamente Frans Balder tinha sido assassinado na frente de Mikael Blomkvist? Era uma
situação típica.Mesmoque amassa ignara de jornalistas que haviamundo afora não soubesse, FransBaldereraumgrandenome.AprópriaDagensAffärsliv,editadapelaSerner,tinhapublicadoumencarteespecialsobreosgrandespesquisadoressuecosnãomuitotempoantesnoqualconstavaatémesmoumaetiquetadepreçoemFransBalder:quatrobilhõesdecoroas.Mascomohaviamchegadoaessevalor?Baldereraumastroe,alémdetudo,nãodavaentrevistas,oqueovalorizavamaisainda.Quantas vezes jornalistas da própria Serner não teriam solicitado uma entrevista com ele? Balder
semprehavianãoapenassenegado,mastambémtratadoopedidocomomaisabsolutodescaso.Muitoscolegas—Ovetinhacerteza—acreditavamqueBlomkvisttinhanasmãosumahistóriaincrível,eelesentiaódioaopensarqueBalder,comoos jornaisestavamnoticiando,haviachamadoBlomkvistparaumaconversaemplenamadrugada.SeráqueBlomkvist,alémdisso,tinhaumfurodereportagem?Seriapéssimo.Mais uma vez, quase por obrigação,Ove acessou o site doAftonbladet e foi recebido pelaseguintemanchete:OqueobrilhantepesquisadorsuecoquiscontaraMikaelBlomkvist?ConversamisteriosapoucoantesdoatentadoO artigo trazia uma foto grande deMikaelBlomkvist em boa forma.Aqueles editores desgraçados
tinham escolhido amelhor fotografia que devia existir dele, o que fezOve praguejarmais umpouco.Precisotomarumaatitude,pensou.Masqual?ComodeterMikaelsembancarumcensordostemposdaAlemanhaOrientalepiorartudo?Como…OveolhoumaisumavezemdireçãoaRiddarfjärdeneteveuma ideia.WilliamBorg, ele pensou. O inimigo domeu inimigo pode se transformar nomeu grandealiado.—Sanna!—elegritou.SannaLinderaajovemsecretáriadeOveLevin.—Sim,Ove?—MarqueumalmoçocomWilliamBorgnoSturehofagoramesmo.Seeletiveroutrocompromisso,
digaqueémuitoimportante.Emencionequeosaláriodelepodeatéaumentar—disseOve,pensando:Porquenão?Seelemeajudarnessaenrascada,possomuitobemlheoferecerumdinheiroextra.HannaBalder estava sentada no chão da sala de seu apartamento naTorsgatan, olhando apavorada
paraAugust,quemaisumavez tinha idobuscarpapele lápis.Deacordocomas instruçõesquehaviarecebido,aqueleeraomomentodeconterofilho,maselanãogostavanemumpoucodessaideia.Nãoqueestivessequestionandoosconhecimentoseasrecomendaçõesdopsicólogo,maselahesitouemfazerisso.August tinha visto o pai sermorto e, se ele queria desenhar, por que ela haveria de impedi-lo?Afinal,ascoisasjánãoestavamnadafáceisparaomenino.OcorpodeAugusttremeuquandoelecomeçouadesenhareseusolhosseiluminaramcomumbrilho
intensoeatormentado,epadrõesxadrez,comquadradosqueserefletiamemespelhos,eramumtemabeminesperado quando se levava em conta tudo que tinha acontecido. Talvez fosse como as séries de
números.Mesmoqueelanãoentendessenadadaquilo,nãohaviadúvidadequeeleseramimportantespara August, que talvez— como saber?— estivesse lidando com o que tinha acontecido por meiodaquelespadrõesgeométricos.Nãoseriamelhorignoraraproibiçãoimpostapelopsicólogo?Ninguémficariasabendo,eelajátinhalidoemoutroslugaresqueasmãesdevemsempreconfiaremseuinstinto.Muitasvezesesseinstintoéumaferramentamaispoderosadoquequalquerteoriapsicológica,portantoHannadecidiuqueAugustpoderiacontinuardesenhando.De repente as costas do menino se envergaram como um arco. Hanna pensou nas palavras do
psicólogo e se inclinou para ver a folha de papel. Sentiu um sobressalto e teve uma sensaçãomuitodesagradável.Aprincípionãoentendeuoquetinhaacontecido.Omesmopadrãoxadrezserepetianosdoisespelhosqueocircundavam,etudoeradesenhadomuito
depressa.Mashaviamaisumelemento,umasombraqueseerguiadaquelepadrãocomoumdemônioouumfantasma,efoiissoquedeixouHannaapavorada.Começouaselembrardefilmesemquecriançassão possuídas por criaturas do mal, e nesse instante tirou o desenho do filho e o amassou com ummovimento rápido, sem saber por quê. Depois fechou os olhos, à espera daquele grito de cortar ocoração.Porémnãohouvenenhumgrito,apenasumbalbucioquesoouquasecomoumasequênciadepalavras.
Masnãopodiaser.Augustnãofalava,eHannasepreparouparaenfrentarmaisumsurtodofilho,aquelemomentode agressividade emqueAugust se jogavadeum ladoparaoutrono chãoda sala.Masnãohouvenenhumsurto—apenassilêncioedeterminaçãoenquantoAugustpegavaoutra folhadepapelemais uma vez começava a desenhar o mesmo padrão xadrez, e aí Hanna não viu alternativa senãocarregar o menino para o quarto. No relato que fez mais tarde, ela descreveria essa cena como deabsolutoterror.Augustcomeçouagritar,achutareasedebater,eHannamalconseguiasegurá-lo.Pormuitotempo
precisoucontero filhocomumabraço forteenquantoosdoispermaneciamdeitadosnacama.PoruminstantepensouemacordarLasseepedirqueeleenfiassenabocadeAugustostranquilizantesqueelestinhamrecebido,mas logoabandonoua ideia.Lasseestariacomumhumorhorrível e,mesmoqueelamesmatomasseValium,nãogostavadedartranquilizantesparaofilho.Tinhaquehaveroutrasolução.Hanna estava prestes a perder o controle da situação e pensava desesperadamente numa forma de
acabarcomaquilo.Pensouemsuamãe,quemoravaemKatrineholm,emsuaagenteMia,emGabriella,amulher gentil quehavia telefonado ànoite, emais umaveznopsicólogoque tinha cuidadodeAugustdepois do assassinato de Frans,Einar Fors alguma coisa, e que o levara para casa.Hanna não haviagostadomuitodele.Poroutro lado, ele sedispôs a cuidardeAugustpor algum tempo, sóque aquelesurtotinhaacontecidojustamenteporqueelahaviaseguidoasorientaçõesdele.FoielequemdissequeAugustnãopoderiadesenhar,por issoagoraeleéquemdeviaarcarcomas
consequências.Hannasoltouofilho,pegouocartãodevisitasdopsicólogoeligouparaele,enquantoAugustfoicorrendoparaasaladesenhardenovoaquelemalditopadrãoxadrez.EinarForsbergnão tinhaumagrandeexperiência.Comquarentaeoitoanos,olhosazuisprofundos,
óculos recém-comprados na Dior e casaco de veludo marrom, poderia facilmente passar por um
intelectual.Masquemtentavadiscutircomeledeparavacomumapersonalidadeinflexíveledogmática,capazdeocultarsuafaltadeconhecimentocomfrasesdeefeitoeafirmaçõescategóricas.Fazia apenas dois anos que ele tinha se formado em psicologia. Na verdade era um professor do
colegialnascidoemTyresö,esepedissemqueumex-alunoseufalassealgumacoisasobreele,oalunogritaria: “Silêncio,meu rebanho!Quietas, criaturasminhas!”.Einar adoravabradar essas palavras emtommeiobrincalhãoquandoprecisavade silêncioemsaladeaula.Mesmoquenão fosseoprofessormaisadmiradodaescola,elerealmenteconseguiadisciplinarseusalunos,efoiessacapacidadequeoconvenceudequesuasaptidõespsicológicastalvezfossemmaisbemaproveitadasemoutroscontextos.FaziaumanoqueeletrabalhavanaclínicapsiquiátricaOden,queficavanaSveavägenemEstocolmo.
Ainstituiçãorecebiacriançasejovenscujospaisnãoestavamemcondiçõesdecuidardosfilhos.NemmesmoEinar,queerasempreumlealdefensordequalquerempregoque tivesse,achavaqueaclínicafuncionavabem.Ascriançaschegavamdepoisdevivenciarexperiênciastraumáticasemcasa,eograndeinteresse dos psicólogos era cuidar dos surtos e comportamentos agressivos, emvez de se dedicaremmais às causas subjacentes.Mesmo assim, Einar sentia-se útil, especialmente quando, com sua antigaautoridadedeprofessor,calavaadolescentesemplenosurtohistéricoou tratavadepacientesemcriseforadaclínica.Elegostavadetrabalharcomapolíciaeadoravaaemoçãoeosilêncioquepermeavamoambientede
acontecimentos dramáticos. Quando foi à casa de Saltsjöbaden, cumprindo seu turno da noite, estavacheio de entusiasmo e expectativa. Havia um clima hollywoodiano no caso, pensou. Um pesquisadorsuecotinhasidoassassinado,seufilhodeoitoanoseraaúnicatestemunhaeaninguémmenosqueEinarcabia a tarefa de fazer com que omenino se abrisse.Durante o trajeto, ajeitou o cabelo e os óculosdiversasvezesnoretrovisor.Queria fazer uma entrada em grande estilo, mas ao chegar não fez muito sucesso. Não conseguiu
entenderoquehaviacomomenino.Mesmoassim,sentiu-seimportante.Ospoliciaisperguntaramqualeraoprocedimentocorretoparainterrogarumacriança,emesmoqueEinarnãotivesseamenorideia,aresposta que deu foi levadamuito a sério.Ele se ofereceu para ajudar e descobriu que omenino eraautista,nãofalavaequenãodemonstravanenhuminteressepelomundoqueocercava.—Nãohánadaquepossamosfazerporenquanto—eledisse.—Acapacidadeintelectualdogarotoé
muitolimitada.Comopsicólogo,meudeveréassegurarqueobem-estardelevenhaemprimeirolugar—declarou Einar, enquanto os policiais o escutavam com uma expressão séria no rosto. Em seguidapermitiramqueelelevasseomeninoparaacasadamãe,oqueeleencaroucomoumbônusnessahistóriatoda.AmãeeraaatrizHannaBalder.EinaraadmiravadesdequeatinhavistoemMysteristerna,eaindase
lembravadaquelesquadrisedaquelaspernaslongilíneas.Mesmoumpoucomaisvelha,elacontinuavaatraente.Alémdomais,seuatualmaridoerasemdúvidaumimbecil,eEinarseempenhouemparecercultoecharmoso.Praticamentedecarateveachancedeseexibir,oqueoencheudeorgulho.Comumaexpressãodesvairada,omeninocomeçouadesenharblocosouquadradospretos,eEinar
entendeudeimediatoqueaqueleeraumcomportamentoprejudicial.Otípicocomportamentoobsessivoedestrutivoque facilmente acometia as crianças autistas, por isso insistiu emdizerqueomeninodeviaparar com aquilo. Sua recomendação, porém, não foi aceita com a gratidão que ele havia imaginado.
Mesmoassim, continuou se sentindocompetente emásculo, enomeiodaquilo tudoesteve apontodeelogiarHanna por seu papel emMysteristerna. Em seguida se deu conta de que não era omomentoapropriado.Talveztivessesidoumerropensarnisso.Eraumadatarde,eEinartinhaacabadodechegaràsuacasa,emVällingby.Estavanobanheiro,coma
escovadedenteelétricanamão,sentindo-seexausto.Ocelular tocouenahoraelese irritou.Masemseguidaabriuumsorrisodiscreto.EraHannaBalder.—Forsbergfalando—eledisse,comoquemestavahabituadoarecebermuitostelefonemas.—Olá—disseHanna.Elapareciadesesperadaeirritada.MasEinarnemimaginouoquepodiaestaracontecendo.—OAugust—eladisse.—OAugust…—Oquehouvecomele?—Elesóquerficardesenhandoaquelesquadrados.Masvocêdissequeeunãodeviadeixar.—Não,nãodeixemesmo,éumcomportamentoobsessivo.Mastenteficarcalma.—Ficarcalma?Vocêachamesmopossível?—Édoqueoseufilhoprecisa.—Maseunãoconsigo.Eleestágritandoesedebatendo.Evocêdissequepodiaajudar.— Claro… — respondeu Einar, um pouco hesitante. Mas logo seu rosto se iluminou, como se
houvesseconquistadoumavitória.—Claro,comcerteza.VouarrumarumlugarparaelenaclínicaOden.—Masnãoseriatraiçãominha?—Não,pelocontrário.Vocêestácuidandodasnecessidadesdoseufilho,evocêpodevê-losempre
quequiser.—Derepenteémelhorassim.—Tenhocerteza.—Vocêpodeviragora?— Chego o mais rápido possível — disse Einar, pensando que precisava cuidar um pouco da
aparênciaantesdeir.Depoisacrescentou:—EujádissequeadoreivocêemMysteristerna?OveLevinnãosesurpreendeunemumpoucoaoverqueWilliamBorgjáoesperavanoSturehof,e
menosaindaquejáhouvesseescolhidoopratomaiscarodocardápio,linguadoàbellemeunière,eumataçadePouillyFumé.Osjornalistascostumavamtirarproveitoquandoeleosconvidavaparaalmoçar.OqueosurpreendeufoiWilliamtertomadoainiciativadefazeropedido,comoseodinheiroeopoderfossemdele, e isso irritouOve.Por que já havia lhe prometido umadicional no salário?Devia tê-lodeixadonaexpectativa,suandodetensãonafrentedele.—Umpassarinhomecontouquevocêsestão tendoproblemascomaMillennium—disseWilliam
Borg,eOvepensou:eudariameubraçodireitoparaarrancaressesorrisinhodesatisfaçãodacaradele.—Entãovocêestámalinformado—retrucouOve.
—Émesmo?—Estátudosobcontrole.—Dequemaneira,semepermiteacuriosidade?—Se a redação estiver disposta amudar e a entendermelhor os problemas que está enfrentando,
vamoscontinuarapoiandoarevista.—Esenãoestiver?…—Vamospularfora,enessecasoaMillenniumvaiagonizarpormaisalgunsmesesatédesaparecer,o
queseriamuitoruim.MasaverdadeéquejornaiserevistasmelhoresdoqueaMillennium jáforamàfalência,eparanósfoiuminvestimentomodesto.Podemosnosvirarmuitobemsemeles.—Podepararcomessepapofurado,seiqueéumaquestãodeprestígioparavocê.—Negócioénegócio.—OuvidizerquevocêsqueriamtiraroMikaelBlomkvistdaredação.—Pensamosemtransferi-loparaLondres.—Seriaumabaitafaltadeconsideração,levandoemcontatudoqueelejáfezpelarevista.—Apresentamosumapropostamuitointeressanteparaele—prosseguiuOve,dando-secontadeque
estavanumaposiçãomuitodefensivaedesfavorávelnaconversa.Eraquasecomosetivesseesquecidoafinalidadedaqueleencontro.—Eunãoestoucriticandovocês—disseWilliamBorg.—Pormim,vocêpodemmandá-loatéparaa
China,sequiserem.MasseráquenãovaificarmeiocomplicadopravocêsseoMikaelvoltaremgrandeestilocomessahistóriadoprofessorFransBalder?—Porque isso aconteceria?OBlomkvist perdeuo ferrão.Vocêmesmoalardeou essanotícia com
razoávelsucesso—disseOve,arriscandoumcomentáriosarcástico.—Ah,foi,mastiveajudadeoutraspessoas.—Nãoaminha,comcerteza.Euodieiaqueleartigo.Acheimalescrito,tendencioso.Quemcomeçou
essahistóriafoioThorvaldSerner,vocêsabemuitobem.—Masnaatualcircunstânciavocênãopodesertotalmentecontra,nãoémesmo?—William,escuteoquevoudizer.EutenhoumrespeitoenormepeloMikaelBlomkvist.—Ove,vocêsabequecomigonãoprecisabancarodiplomático.OvetevevontadedefazerWilliamengoliraquelediplomático.— Apenas estou sendo muito sincero — continuou Ove. — Sempre achei o Mikael um repórter
incrível,oníveldeleémuitosuperioraoseueaodetodososoutrosjornalistasdageraçãodele.—Ah, certo então— disseWilliamBorg, com expressãomais submissa, o que fezOve se sentir
melhor.—Éumfato.TemosquesergratosatodasasdenúnciasqueoMikaelfez,eeurealmentedesejotudo
debomparaele.Masomeutrabalhonãoéficarolhandoparatrásevivendodenostalgia,enissodourazão a você.OBlomkvist está fora de sintonia com os novos tempos e pode ser um entrave para amodernizaçãodaMillennium.—Éverdade,éverdade.—Porissoomelhor,agora,seriaelenãoestarmuitonasmanchetes.—Nasmanchetespositivas,vocêquerdizer.
—Talvez—respondeuOve.—Essefoiumdosmotivosparaeuterchamadovocêparaestealmoço.—Agradeçomuitooconvite.Eachoquepossoteajudar.Hojedemanhãeuconverseicomumvelho
parceiro meu de squash — disse William Borg, numa tentativa evidente de recuperar a autoestimaperdida.—Equeméele?—RichardEkström,oprocurador-chefe.Eleéoresponsávelpelasinvestigaçõessobreoassassinato
doBalder.Edigamosquenãopertenceaofã-clubedoBlomkvist.—PorcausadaquelahistóriadoZalachenko?— Exatamente. O Blomkvist atrapalhou toda a estratégia dele naquela vez, e agora Ekström está
achandoqueonossoamigopodequerersabotarainvestigaçãodenovo,ouatéquejátenhasabotado.—Como?— O Blomkvist nunca conta tudo o que sabe. Ele falou com o Balder um pouco antes dele ser
assassinado,etambémviuorostodoassassino.Mesmoassim,passoupouquíssimasinformaçõesquandofoiinterrogado.ORichardEkströmsuspeitaqueoBlomkvistestejaguardandoasmelhorespartesparaamatériaquevaiescrever.—Interessante.—Nãoé?Estamosfalandodeumsujeitoque,depoisdetersidoridicularizadoportodaamídia,está
tãodesesperadoatrásdeumnovofuroqueatésearriscaadeixarumassassinosoltoporaí.Umavelhaestrela do jornalismoque, ao ver a revista emque trabalha namaior crise financeira, está disposto ajogar toda a sua responsabilidade social pela janela. E que acaba de saber que a SernerMedia querchutá-lodaredação.Vocêachaestranhoqueeletenhaidotãolonge?—Entendo.Vocêestápensandoemescreveralgumacoisasobreisso?—Pradizeraverdade,nãoachoumaboaideia.TodomundosabequeeueoBlomkvisttemosumas
questõespendentes.Omelhorseriavocêvazaressanotíciapraoutrorepórteredepoisdarsustentaçãoparaelanumeditorial.OEkströmficariabemagradecido.—Hum—fezOve.EntãodesviouoolharnadireçãodaStureplaneviuumabelamulherdecasaco
vermelhoeumlongocabeloruivo-avermelhado.Pelaprimeiraveznaquelediaabriuumsorrisolargoesincero.—Talveznãosejamáideia,afinal—acrescentou,eemseguidapediuumataçadevinho.
***MikaelBlomkvistfoicaminhandopelaHornsgatanatéoMariatorget.Umpoucomaisadiante,pertoda
igreja deMariaMadalena, havia um furgãobranco comumamassadograndeno capô, e dois homensgesticulandoegritandoumcomooutro.Mesmoqueasituaçãodespertasseo interessedamaioriadaspessoasaoredor,Mikaelpraticamentenemsedeucontadela.Estava pensando no filho de Frans Balder, que no andar de cima da casa enorme de Saltsjöbaden
passava amão sobre o tapete persa. Blomkvist lembrou que amão domenino estava branca e tinhamanchasnosdedosenodorso,comoseAugusttivessemexidocomlápisecanetas,eaquelemovimentosobre o tapete… não dava a impressão de o menino estar fazendo um desenho complexo no ar? De
repente Mikael reinterpretou a cena de forma totalmente diferente, e de novo lhe ocorreu o mesmopensamentoquehaviatidonacasadeFarahSharif.TalveznãofosseFransBalderoautordodesenhodosemáforo.Talvez o menino tivesse um talento enorme e surpreendente, e por algum motivo essa ideia não
espantou Mikael tanto quanto talvez espantasse outras pessoas. Quando encontrou August Balder noquartodoandardebaixoeoviuseatirandocontraacabeceiradacama,pressentiuquehaviaalgodediferente no menino. Enquanto atravessava o Mariatorget, Blomkvist foi tomado por um pensamentoestranhoesemdúvidaimprovável,quenoentantonãoodeixouporuminstantesequer.QuandochegouàGötgatan,eleparou.Seria necessário pelomenos averiguar a possibilidade, entãoMikael pegou o celular e procurou o
númerodeHannaBalder.Eraumalinhasegura,dificilmenteestarianalistadecontatosdaMillennium.Oque poderia fazer? Lembrou de FrejaGranliden. Freja era repórter de variedades doExpressen e ascoisas que ela escrevia não engrandeciamnemumpouco a classe dos jornalistas.Eramartigos sobredivórcios, romances e assuntos ligados à família real.Mesmo assim, Freja era uma garota esperta eextrovertida,enaspoucasvezesemquehaviampassadoalgumtempojuntososdoistinhamsedivertido,portantoMikaeldecidiutelefonar.Masonúmerodelaestavaocupado.Osrepórteresdosjornaisvespertinosficavamotempotodoaotelefone.Eramtãopressionadospara
fazertudoomaisdepressapossível,quenuncaconseguiamselevantardacadeiraparaveroqueestavaacontecendonomundoreal.Simplesmentepassavamodiasentados,escrevendotextoatrásdetexto.Masdepois de mais algumas tentativas Mikael conseguiu falar com ela, e ele não ficou nem um poucosurpresoaoouvirFrejadarumgritinhodealegria.—Mikael!Quehonra!Seráquevocê finalmentevaimepassarum furo?Estouesperandohámuito
tempo.—Desculpe,masdestavezévocêquepodemeajudar.Precisodeumendereçoedeumtelefone.—Eoquevocêmedáemtroca?Quemsabeumafrasebemvenenosasobreestamadrugada?—Oqueeupossotedaréumconselhoprofissional.—Qualconselho?—Paredeescreverlixo.—Ah,certo!Masaíondeéqueosrepórteresmaisclassudosiamconseguirosnúmerosdetelefone
queelestantoprecisam?Quemvocêestáprocurando?—HannaBalder.—Jáimaginoomotivo.Onamoradodelatomouumporresensacionalontemànoite.Vocêschegaram
aseencontrarlá?—Nãotenteconseguirnotíciascomigo.Vocêsabeondeelamora?—NaTorsgatan,número40.—Vocêsabeoendereçodecor?—Eutenhoumamemóriaincrívelpraessetipodebobagem.Masespere!Euaindaprecisotedaro
códigodoportãoeotelefonedela.—Obrigado.—Sóque…
—Oquê?—VocênãoéoúnicoqueestáquerendofalarcomaHanna.Osnossoscãesfarejadores tambémjá
estãoatrásdelae,peloqueeusoube,elanãoestáatendendootelefone.—Sábiadecisão.DepoisMikael ficou parado na calçada por alguns instantes, sem sabermuito bem qual o próximo
passo.Nãosepodiadizerqueeleestivessegostandodasituação.Iratrásdeumamãeinfelizjuntocomosrepórterespoliciaisdosjornaisvespertinosnãoeraexatamenteoqueelegostariadefazer.Porfim,acenouparaumtáxiepediuqueomotoristaolevasseaVasastan.
***HannaBaldertinhaacompanhadoAugusteEinarForsbergatéaclínicaOden,naSveavägen,emfrente
ao Observatorielunden. Embora a decoração e os pátios da clínica dessem a sensação de um lugarexclusivoeaconchegante,aimpressãogeraleramesmoadeumainstituiçãopública,oquesedeviamaisàsexpressõesseverasevigilantesno rostodos funcionáriosdoqueaoscorredores longoseàsportasfechadas.Osempregadospareciamteradquiridocertadesconfiançadascriançasqueatendiam.OdiretorTorkelLindéneraumhomembaixinhoevaidosoqueseapresentoucomoalguémcommuita
experiênciano trato comcrianças autistas, oque semdúvida teve comoobjetivo transmitir confiança.MasHannanãogostoudamaneiracomoeleolhouparaAugustnem,principalmente,dadivisãoetárianaclínica.Viucriançaseadolescentesjuntos.Maspareciatardedemaispararecuar,enocaminhodevoltapara casa se consolou prometendo a simesma que seria por pouco tempo.Quem sabe ela não fossebuscarAugustjánocomeçodanoite?Comacabeçalonge,HannacomeçouapensaremLasseeemsuasbebedeiras,emaisumavezdissea
simesmaqueprecisavaseafastardeleedarumjeitonavida.AosairdoelevadordeseuapartamentonaTorsgatan,levouumsusto.Umhomemmuitoatraentefaziaanotaçõesnumbloquinho,sentadonopatamardaescada.Quandoeleselevantoueacumprimentou,HannapercebeuqueeraMikaelBlomkvist,eentãoficouapavorada.Talvezestivessesesentindotãoculpadaqueimaginouqueojornalistafossedenunciá-la.Mas claro que era um pensamento estúpido.Mikael abriu um sorrisomeio constrangido, por duasvezespediudesculpaspelaintromissão,eentãoHannasentiuumprofundoalívio.Faziamuitotempoqueoadmirava.—Nadaadeclarar—eladisse,numtomquenaverdadeindicavajustamenteocontrário.—Nãovimatrásdedeclarações—Mikaeldisse,eentãoHannaselembroudequeBlomkvisteLasse
haviamchegadojuntosouentãoaomesmotempoàcasadeFransnanoiteanterior,mesmoqueelanãoconseguisse imaginaroqueosdoispodiamteremcomum,umavezqueumpareciaoexatoopostodooutro.—VocêestáprocurandooLasse?—elaperguntou.— Eu gostaria de falar com você sobre os desenhos do August— ele disse, e Hanna sentiu uma
aguilhoadadepânico.MesmoassimconvidouBlomkvistparaentrar.Eraumaatitudemeioimpensada.Lassetinhaidopara
algumbotecosecurardaressacaepodiavoltaraqualquermomento.Comcertezaiaficarloucoaover
um jornalista do calibre deMikael Blomkvist na casa deles.Mas além de preocupadaHanna estavacuriosa.ComoBlomkvistsabiadosdesenhos?Elaoconvidouparasesentarnosofácinzadasalaefoiàcozinha pegar chá e biscoitos.Quando voltou comuma bandeja,Mikael disse:—Eu não teria vindoincomodarvocêsenãofossemesmomuitonecessário.—Vocênãoestámeincomodando—elarespondeu.— Você deve saber que eu tive um breve encontro com o August ontem de madrugada — ele
prosseguiu—,enãoconsigotirardacabeçaumacoisaqueeuvi.—Émesmo?—disseHanna,demonstrandointeresse.—Nahoraeunãoentendioqueestavaacontecendo,masdepoisfiqueicomaimpressãodequeele
querianosdizeralgumacoisa,eagora,pensandomelhor,achoqueelequisfazerumdesenho.OAugustpareciamuitoconcentradoenquantodeslizavaamãopelotapete.—Eleestavaobcecado.—Elecontinuouaagirassimdepoisquevoltouparacasa?—Ecomo!Elecomeçouadesenharassimquechegamosemcasa.Ocomportamentoera totalmente
obsessivo,eleficoucomorostovermelhoearespiraçãoofegante,eopsicólogoqueveiotrazê-lodissequeoAugusttinhaquepararcomaquilo.Queeraumcomportamentoobsessivoedestrutivo,eledisse.—EoquefoiqueoAugustdesenhou?—Nadadeespecial,nadamesmo,achoqueeraumaimageminspiradanoquebra-cabeçadele.Muito
bem-feita,comsombras,perspectivaetudoomais.—Masoqueeraodesenho?—Eramquadrados.—Quetipodequadrados?—Pareciamascasasdeumtabuleirodexadrez—explicouHanna,pensandosetalvezelanãotivesse
imaginadocoisas.MasnoinstanteseguintenotouumbrilhotensonosolhosdeMikaelBlomkvist.—Elenãodesenhoumaisnadaalémdessesquadrados?—eleperguntou.—Nada?—Tambémdesenhouespelhos.Quadradosdeumtabuleirodexadrezrefletidosemespelhos.—VocêjáestevenacasadoFrans?—perguntouBlomkvistcomvozaindamaistensa.—Porquevocêquersaber?—Porqueopisodoquartoondeelefoiassassinadoéfeitodequadradoscomoosdeumtabuleirode
xadrez,eelesserefletemnosespelhosdoguarda-roupa.—Ah,não!—Oquefoi?—Eu…Hannafoitomadaporumprofundosentimentodevergonha.— Porque a última coisa que eu vi antes de tirar o desenho dasmãos doAugust foi uma sombra
ameaçadoraseerguendodosquadrados—elaconcluiu.—Eodesenhoestáaqui?—Está.Querdizer,não.—Não?—Eujogueifora.
—Ah.—Mastalvez…—Talvezoquê?—Talvezaindaestejanolixo.Mikael Blomkvist estava com as mãos sujas de borra de café e iogurte quando tirou um papel
amassadodolixoeodesdobroucomomaiorcuidadonobalcãodacozinha.Limpoupartedasujeiracomo dorso dos dedos e o examinou sob a luz dos spots embutidos no armário. O desenho não estavaacabadoe,exatamentecomoHannatinhadito,consistiadequadradosqueformavamumpadrãoxadrez,vistos de cima ou de lado. Para qualquer pessoa que não conhecesse o quarto deFransBalder, seriadifícil entender que os quadrados representavam o chão. Porém Mikael reconheceu de imediato osespelhosdoguarda-roupaàdireitadacamaeteveaimpressãodereconheceratémesmoaescuridão—aestranhaescuridãodaquelamadrugada.Mikael se viu transportado para o instante em que entrou pela janela quebrada, a não ser por um
pequenodetalhe.Ocômodoonde ele tinha entrado estavapraticamente às escuras.Nodesenho, haviaumapequenafontedeluzincidindodoaltoeemdiagonalsobreosquadrados,revelandooscontornosdeumasombranãomuitoprecisanemmuitosignificativa,masquenoentanto,etalvezjustamenteporessemotivo,causavaumaimpressãosinistra.A sombra tinha um braço estendido, eMikael, que via o desenho de um ponto de vista totalmente
diferentedodeHanna,não tevenenhumadificuldadeparaentenderoqueaquelamãoestavaprestesafazer.Eraumamãodispostaamatar,eacimadosquadradosedasombrahaviaumrostoinacabado.—OndeestáoAugust?—eleperguntou.—Dormindo?—Não.Ele…—Oquê?—Eunãoconseguimantê-loemcasa.Eunãoestavamaisaguentando.—Ondeeleestá?—NaclínicaOden,naSveavägen.—Quemmaissabequeeleestálá?—Ninguém.—Sóvocêeopessoaldaclínica?—É.—Cuideparaquetudocontinueassim.Porfavor,medêlicençauminstante.MikaelpegouseucelularetelefonouparaJanBublanski.Mentalmente,jáhaviapreparadomaisuma
perguntaparaapastaLisbethSalander.JanBublanskiestavafrustrado,ainvestigaçãonãocaminhava.NemoBlackphonenemonotebookde
FransBalderhaviamsidoencontradose,alémdisso,mesmocomtodaacolaboraçãodaoperadoradetelefoniamóveldele,apolícianão tinhaconseguidorastrearoscontatosqueocientistahaviamantido
comomundoexteriornemterumaideiadosprocessosjurídicosemqueestavaenvolvido.Atéaquele instante, elesnãohaviamencontradonadaalémdecortinasde fumaçaeclichês,pensou
Bublanski. Era como se um guerreiro ninja tivesse se materializado e desmaterializado no meio daescuridão.Aoperaçãopareciaperfeitademais,comoseseuexecutornãohouvessecometidonenhumadas falhas e contradições comuns e que acabam sendo pressentidas durante uma investigação deassassinato.A operação tinha sido limpa, cirúrgica, eBublanski não conseguia afastar a ideia de queaquele havia sido apenasmais umdia comumna rotina do assassino.Ele refletia sobre esse e outrosassuntosquandoMikaelBlomkvistligou.—Comovai?—disseBublanski.—Acabamosdefalaremvocê.Gostaríamosdeconversardenovo
eomaisbrevepossível.—Tudo bem. Só que agora eu tenho uma informação urgente para lhe passar. OAugust Balder, a
principaltestemunhadocrime,éumsavant.—Umoquê?—Umgarotoquesofredeumaprofundadeficiênciamental,masquetemhabilidadesmuitoespeciais.
Ele desenha como ummestre, comprecisãomatemática.Vocês viram os desenhos do semáforo?ElesestavamemcimadamesadacozinhaemSaltsjöbaden.—Muitoporalto.VocêestádizendoqueosdesenhosnãoforamfeitospeloBalder?—Issomesmo.Foramfeitospelomenino.—Atécnicapareciamuitoapurada.—Masfoiomeninoquedesenhou,ehojedemanhãelecomeçouadesenharopadrãoxadrezdopiso
doquartodoBalder.Enãofoisóisso.Eletambémdesenhouumafontedeluzeumasombra.Suspeitoquesejaasombradoassassinoealuzdalanternadetestaqueeleestavausando.Masnãodáparadizernadacomcertezaaestaaltura.Odesenhodomeninofoiinterrompido.—Vocêestádebrincadeiracomigo?—Nãomepareceumahoramuitopropíciaparabrincadeiras.—Mascomovocêficousabendodetudoisso?—EuestounaTorsgatan,nacasadeHannaBalder,amãedomenino,olhandoparaodesenhoqueele
fez.Masogarotonãoestámaisaqui.Estáno…—Mikaelpareceuhesitar.—Nãovoudizermaisnadaportelefone—acrescentou.—Vocêdissequeodesenhodomeninofoiinterrompido?—Umpsicólogooproibiudecontinuardesenhando.—Comoalguémpodeproibirumacriançadedesenhar?— O psicólogo não percebeu o significado do desenho, apenas o tratou como o impulso de um
comportamentoobsessivo.Sugiroquevocêmandeseupessoalparacáomaisrápidopossível.Vocêstêmumatestemunha.—Estamosindoagoramesmo.Eassimaproveitamosparafalarmaisumpoucocomvocê.—Infelizmenteestouindoembora.Precisovoltarparaaredação.—Seriamuitobomsevocêpudessenosesperar,masentendo.Nomais…—Sim?—Obrigado!
JanBublanskidesligouotelefoneerepassouasinformaçõesatodoogrupodeinvestigação,decisãoquemaistardeserevelariaumerro.
15.21DENOVEMBRO
LisbethSalanderestavanoClubedeXadrezRaucher,naHälsingegatan.Esemnenhumavontadedejogar.Estavacomdordecabeça.Tinhapassadoodiainteirocaçando,eosrastrosdesuapresahaviam-na levado àquele lugar. Mesmo depois de descobrir que Frans Balder fora enganado por seuscompanheiros,elahaviaprometidoaoprofessordeixarostraidoresempaz.Emboranãotivessegostadonemumpoucodessaestratégia,Lisbethhaviacumpridoapalavra.MasdepoisdoassassinatodeBalderpassouaseconsiderardispensadadapromessaquefizera.Apartirdeentão,sentiu-selivreparaagiraseumodo.Masnãofoitãosimples.ComoArvidWrange
nãoparavaemcasa,emvezdetentarachá-lopelotelefone,Lisbethpreferiucaircomoumraionavidadele. Por isso tinha dado voltas e mais voltas com o capuz na cabeça. Arvid levava uma vida devagabundo. Mas, como acontece com tantos outros vagabundos, por trás daquela existênciaaparentemente caótica existia uma certa regularidade, e pelas fotos que ele postara no Instagram e noFacebook,Lisbethhaviaencontradoalgumasconstantes:oRiche,naBirgerJarlsgatan;oTeatergrillen,naNybrogatan; eoClubedeXadrezRaucher eoKaféRitorno,naOdengatan, alémde lugares comoumestandedetiro,naFridhemsgatan,eoendereçodeduasnamoradas.ArvidWrangeestavamudadodesdeaúltimavezemqueapareceranoradardeLisbeth.Elenãotinhasimplesmentepostofimàsuaaparênciadenerd.Amoraldeletambémpareciaembaixa.
Lisbethnãoeramuitodadaa teoriaspsicológicas,mesmoassimpercebeuqueaprimeira transgressãohavia levado a uma série de novas transgressões. Arvid já não era um aluno dedicado e ambicioso.Agorapassavaotemposurfandonainternetatrásdepornografiaviolenta,quebeiravaaagressão,etinhacomeçadoacomprar sexopela internet—sexoviolento.Duasou trêsgarotasqueelehaviachamadoameaçaramdenunciá-lo.Emvez de jogos de computador e pesquisas sobre IA, o interesse deArvid era por bebedeiras no
centrodacidadeeprostitutas.Estavaevidentequeelepossuíaumbocadodedinheiro.Etambémestavaevidente que tinha um bocado de problemas.Naquelamanhã, ele havia buscado informações sobre oprogramadeproteçãoa testemunhasnaSuécia,oquesemdúvidaforaumpassoemfalso.MesmoqueArvidnãomantivessecontatocomaSolifon,oupelomenosnãoemseucomputadorpessoal,eracertoque a empresa acompanhava os passos dele pelo mundo digital. Qualquer outra atitude seria poucoprofissional.TalvezArvidestivesseruindoportrásdesuanovaaparênciamundana,oquepareciabom.Facilitariaotrabalhodela.EquandoLisbethligoudenovoparaoclubedexadrez—ojogoeraaúnicaligação que ele mantinha com sua antiga vida—, disseram-lhe que ArvidWrange havia acabado de
chegar.LisbethdesceuapequenaescadaquecomeçavanaHälsingegatanecontinuouaolongodeumcorredor
atéchegaraumpequenocômodocinzentoeausteroondeumgrupocompostoprincipalmentedehomensmaisvelhosestavadebruçadosobre tabuleirosdexadrez.Aatmosferaerameio soporífica, eninguémprestouatençãoemLisbethnemestranhousuapresençaali.Todosestavamocupadoscomseusjogos,eos únicos barulhos que se ouviam eram os cliques dos relógios de xadrez e de vem em quando umpalavrãoaquieali.NasparedeshaviafotografiasdeKasparov,MagnusCarlseneBobbyFischer,eatémesmoadeumadolescentecheiodeespinhas.EraArvidWrangenumapartidacontraaestreladoxadrezJuditPolgár.Numaversãoumpoucomaisenvelhecida,Arvidestavasentadoaumamesamaisaofundoeàdireita,
parecendoensaiarumanovaabertura.Aseulado,sacolasdecompras.Eleusavaumblusãoamarelodelãdecarneirosobreumacamisabrancarecém-passadaesapatosinglesesdeverniz.Pareciaumpoucoarrumadodemaisparaaocasião,ecompassoscautelososehesitantesLisbethseaproximoueperguntouseelegostariadejogar.Deimediatoelerespondeucomumolharqueaexaminoudacabeçaaospés.—Estábem—eledisse.—Vocêémuitogentil—Lisbethdisse,comoumamenininhabem-educada,esentou-sediantedele
semdizermaisumapalavra.QuandoelaabriucomE4,ArvidrespondeucomB5,numaaberturadupladopeãodorei,edepoiselafechouosolhosedeixouqueArvidcontinuassejogando.ArvidWrangetentouseconcentrarnojogo.Masnãohaviacomo.Porsorteaquelagarotapunknãoera
nenhuma grande jogadora. Não que fosse ruim: com certeza era uma jogadora esperta. Mas de queadiantaria?Arvid ficoubrincandocomagarota,quesemdúvidadeviaestar impressionada,e…quemsabe?Talvezdepois conseguisse ir para a casadela.Ela tinhaumaexpressãomeio azedano rosto, eArvid não gostava de garotas azedas. Por outro lado, seus seios eram atraentes, e talvez ele pudessedescontar todaasuafrustraçãonela.Tinhasidoumamanhãinfernal.AnotíciadoassassinatodeFransBalderquaseohavianocauteado.Maselenãosentiaexatamentetristeza.Eramedo.ArvidWrangetentavaconvencerasimesmodeque
haviafeitoacoisacerta.Oquemaisaquelemalditoprofessorpodiaesperardepoisdetratá-locomtantodesprezo?Mesmoassim,nãoserianadabomseviesseàtonaqueArvidotinhatraído,eopioreraquecomcertezahaviaumaligação.ElenãoentendiamuitobemanaturezadessaligaçãoetentavaseconsolardizendoasimesmoqueumidiotacomoBalderdeviatermilharesdeinimigos.Masnofundoelesabia:umacontecimentoestavaligadoaooutro,eessaconstataçãoodeixavaapavorado.DesdequeFranshaviacomeçadoatrabalharnaSolifon,Arvidtemeuqueaquelahistóriatomasseum
rumopreocupante,eagoraláestavaeledesejandoquetudodesaparecesse,ecomcertezatinhasidoissoqueofeziràcidadedemanhãeteraquelesurtodesenfreadodecompras,edepoisaoclubedexadrez.Oxadrezàsvezesoajudavaaclarearasideias,e,paradizeraverdade,jáestavabemmelhor.Sentia-senocontrole e esperto o suficiente para enganar qualquer adversário. Era assim que estava jogando, e agarotanãoeranadaruim.Pelo contrário, jogava de um jeito inusitado e criativo, que certamente poderia servir de uma
inesquecívelliçãoàmaioriadosenxadristasdoclube.Masele,ArvidWrange,poderiaderrotá-lamesmoassim.Jogavademaneiratãoapuradaesofisticadaqueagarotanempercebiaqueocercoiasefechandoemtornodela.Comjogadasfurtivas,Arvidaumentavaavantagemaospoucos,ederepentecapturouarainha da adversária com o sacrifício de ummero cavalo, acrescentando num tom de flerte que comcertezaaimpressionou:—Sorry,baby.Yourqueenisdown!Mas não houve nenhuma reação, nenhum sorriso, nenhum comentário, nada. A garota simplesmente
começou a jogarmais depressa, como se quisesse pôr fim àquela humilhação, e por que não?Arvidestavamaisdoquedispostoaabreviaraqueleprocessoomáximopossívelelevaragarotaparatomardois ou três drinques em algum bar antes de cair matando sobre ela. Não tinha a intenção de serespecialmente gentil na cama. E provavelmente ela depois ainda lhe agradeceria. Para estar azedadaquele jeito, sópodia fazer tempoqueelanão transava, e tambémnãodeviaestarmuitoacostumadacomcarasbacanascomoele—equeaindaporcimajogavaumxadrezdaquelenível.Arvidresolveuseexibir e começou a explicar teorias avançadas de xadrez.Mas sua exibição não levou a nada. Algoparecia estar errado. Arvid começou a enfrentar no jogo uma resistência inesperada que ele nãoconseguia entender, uma espécie de estagnação, e pormuito tempo continuoudizendo a simesmoqueaquiloerasóumaimpressãopassageira,ouentãooresultadodejogadasprecipitadas.Semdúvidaaindaconseguiriaendireitarascoisasseconseguissesemanterconcentradonapartida,portantomobilizoutodooseuinstintomatador.Masascoisassópioraramparaele.Arvidcomeçouasesentirencurralado,epormaisqueseesforçasseagarotabatiadevoltacomainda
maisforça.Porfimviu-seobrigadoaadmitirqueavantagemhaviapassadodemaneirairreversívelparaaadversária.Nãoeraumaloucura?ElehaviacapturadoarainhadeLisbeth,masemvezdeaumentaravantagemArvidtinhaacabadonumasituaçãodeenormedesvantagem.Oqueteriaacontecido?Seráqueagarotapodiatersacrificadoarainha?Noiníciodapartida?Impossível.Essetipodecoisasóacontecenoslivrosdexadrez,nãonumpequenoclubedeVasastannemquandoojogadoremquestãoéumagarotapunkcheiadepiercingseproblemasdeatitude,emenosaindaquandooadversárioéumenxadristadedestaquecomoele.Mesmoassim,nãohaviamaissalvação.Oxeque-mateviriaemquatrooucincolances,eArvidnãoviualternativasenãoderrubaroreicomo
indicador e balbuciar um cumprimento.Mesmo que tivesse vontade de inventar uma desculpa, teve aimpressãodequeissodeixariaascoisaspiores.Sentiuquesuaderrotanãotinhasidoconsequênciadeumapartidadesastrosa,emaisumaveztevemedo.Quemdiaboseraaquelagarota?Arvid lançouumolhar cautelosoparaosolhosdela, e agarota jánãoparecia azedanem insegura.
Agoraexibiaafriezadeumblocodegelo,comoumpredadorobservandoapresa.Arvidfoitomadoporumintensodesconforto,comoseaderrotanotabuleirofosseapenasoiníciodealgopior.Emseguidaolhouparaaporta.—Vocênãovaialugarnenhum—disseagarota.—Quemévocê?—perguntouArvid.—Ninguémemespecial.—Entãoagentenuncaseviu?—Caraacara,não.—Edequeoutrojeito?
—Vocêjámeviunosseuspesadelos,Arvid.—Issoporacasoéumabrincadeira?—eleperguntou.—Nãoexatamente.—Doquevocêestáfalando,afinal?—Doquevocêacha?—Comoéqueeuvousaber?Arvidnãoconseguiaentenderporquesentiatantomedo.—FransBalderfoiassassinadonestamadrugada.—É,eu…euliarespeito.—Coisaterrível,não?—Comcerteza.—Principalmenteparavocê,nãoémesmo?—Porquê?—Porquevocêtraiuoprofessor,Arvid.PorquevocêfoiumJudasparaele.Arvidsentiuocorpoenregelar.—Vocênãosabeoqueestádizendo—eleretrucou.—Paradizeraverdade,seimuitobemoqueestoudizendo.Euinvadioseucomputador,quebreia
criptografiadosseusarquivosevitudodeformamuitoclara.Esabedeumacoisa?Arvidrespiravacomdificuldade.—Estouconvencidadequehojedemanhãvocêficouseperguntandoseamortedelefoiculpasua.
Sobreisso,achoquepossoajudarvocêumpouco.Sim,foiculpasua.Sevocênãofossetãoinvejoso,amargoedesprezívelapontodetraí-loevenderaquelatecnologiaparaaSolifon,oFransBalderestariavivo hoje. E não vou esconder que eu estou furiosa,Arvid. Pretendo fazer bastantemal a você. Paracomeçar,euqueroteofereceromesmotipode tratamentoquevocêdispensaàsmulheresqueconhecepelainternet.—Vocêporacasoestálouca?—Provavelmenteumpouquinho,sim—ela respondeu.—Tenhoproblemasdeempatia,sabe.Não
consigocontrolarmeusimpulsosviolentos.Essascoisas.LisbethpegouamãodeArvidcomumaforçaqueodeixouaterrorizado.—Vouserbemdireta,Arvid.Asituaçãonãoestánadaboaparavocê.Esabeoqueeuvoufazeragora
mesmo?Sabeporqueeuestouparecendoassimmeiodistraída?—elaperguntou.—Não.—Porqueestouaquipensandonoquevoufazercomvocê.Queroteoferecerumsofrimentodignoda
Bíblia.Éporisso.—Oquevocêquer?—Vingança.Aindanãoficouclaro?—Vocêsóestáfalandomerda.—Nãomesmo.Vocêsabemuitobemquenão.Masvocêtemcomosesafar.—Oquevocêquerqueeufaça?Arvidnãoentendeucomopôdeterdeixadoescaparumafrasedaquelas.Oquevocêquerqueeufaça?
Erapraticamenteumaconfissão,umacapitulação,eelepensouemretiraroquehaviaditobemdepressae começar a pressionar a garota para descobrir se ela realmente tinha provas ou se estava apenasblefando.Masnãoconseguiu—esómais tardeelepercebeuquenão tinhasidoporcausadaameaçadelanemdaforçaimpressionantecomqueagarotahaviaseguradosuamão.Tinhasidoapartidadexadrez,osacrifíciodarainha.Arvidestavachocado,eseu inconsciente lhe
diziaqueumagarotacapazdejogarxadrezdaquelaformatambémteriacomorevelarossegredosdele.—Oquevocêquerqueeufaça?—elerepetiu.—Queroquevocêvenhacomigoemecontetudo,Arvid.Queroquevocêmecontetodososdetalhes
decomotraiuFransBalder.—Éummilagre—disseJanBublanskinacozinhadeHannaBalderaoverodesenhoamassadoque
MikaelBlomkvisthaviaresgatadodolixo.—Cuidado,nãohárazãoparatantoentusiasmo—observouSonjaModigaoladodele,eelaestava
certa.Nopapelnãohaviamuitomaisquequadradosdeumtabuleirodexadrez,porém,comoMikaeltinha
ditoaotelefone,notava-sealiumaintriganteorganizaçãomatemática,comoseomeninoestivessemaisinteressadonageometriaenamultiplicaçãodosquadradosnosespelhosdoquenaameaçadorasombramais acima.Ainda assimBublanski não escondia sua admiração. Tinha ouvido repetidos comentáriossobreadeficiênciamentaldeAugustBalderesobrecomoeleseriaincapazdeajudarapolícia.Masomenino havia feito um desenho que era a melhor pista de toda a investigação, e essa descoberta ocomoveue fortaleceusuavelhacrençadequenãosedevesubestimarninguém, tampoucoseagarraraideiaspreconcebidasdequalquerespécie.Naverdade,nãohaviacomo tercertezadequeomomento retratadoporAugustBaldernodesenho
fosse o momento do crime. A sombra podia, pelo menos em tese, estar relacionada com outroacontecimento qualquer, e não havia garantia de que omenino tivesse visto o rosto do assassino nemmesmoseseriacapazdedesenhá-lo.Noentanto,nofundodoseucoração,eranissoqueJanBublanskiacreditava,enãoapenasporqueodesenho,mesmoinacabado,fosseumademonstraçãoindiscutíveldevirtuosismoartístico.JanBublanskitinhaanalisadoosoutrosdesenhos,feitocópiasdeleseficadocomelas.Nasimagens
havianãoapenasuma faixadepedestres eumsemáforo,mas tambémumhomemde lábios finos e arcansado que, se analisado do ponto de vista policial, tinha sido pego em flagrante. O homem estavaatravessandoosinalnovermelhoeseurostohaviasidoreproduzidocomtamanhariquezadedetalhesqueAmandaFlod,daequipe,reconheceuneleoex-atorRogerWinter,atualmentedesempregadoequejáforacondenadoporembriaguezaovolanteeagressão.A precisão fotográfica do olhar de August Balder seria um sonho para qualquer investigador de
homicídios. Mas Bublanski também sabia que não seria muito profissional de sua parte alimentarexpectativas exageradas. Talvez o assassino estivesse com o rosto coberto nomomento do crime, ouentãosuasfeiçõesjápodiamterseapagadodamemóriadeAugust.Haviainúmeraspossibilidades,ederepenteBublanskilançouumolhardesanimadoparaSonjaModig.
—Entãovocêachaqueeuestoumeiludindo.—ParaalguémquecomeçouaquestionaraexistênciadeDeus,vocêpareceterumafacilidadeetanto
paraencontrarmilagres.—É,podeser.—Masclaroquevaleapenainvestigarmuitobemessedesenho.Quantoaissoestamosdeacordo—
disseSonjaModig.—Estácerto.Vamosveromenino,então.Lisbeth eArvidWrange chegaram aoVasaparken de braços dados, como dois velhos amigos.Mas
tambémdestavezasimpressõeseramenganosas.Arvidestavaapavorado,eLisbethSalandercomeçouacaminharemdireçãoaumbanco.Porcausadotemporuim,nãoeraexatamenteomelhordiaparaficaralisentados, jogandocomidaparaospombos.Ventavaforte,a temperaturacontinuavacaindo,eArvidWrangeestavagelado.MasLisbethachouqueobancoserviria,apertoucomforçaobraçodeleeofezsentar.—Pronto—eladisse.—Podemoscomeçar.—Vocêprometequevaimanteromeunomeforadessahistória?—Eunãoprometonada,Arvid.Masaschancesdevocêcontinuarvivendoasuavidamiserávelvão
aumentarconsideravelmentesevocêmecontaroquesabe.—Tudobem—disseArvid.—VocêconheceaDarknet?—Conheço—Lisbethdisse.A resposta tinha sido o understatement do dia. Ninguém conhecia a Darknet melhor que Lisbeth
Salander.ADarkneteraumsubstratodainternet,umaterrasemlei.NinguémacessaaDarknetsemumsoftwareespecialecriptografado.NaDarknet,oanonimatodousuárioégarantido.Ninguémtemcomoprocurarinformaçõessobreoutraspessoasnemrastrearsuasatividades.PorissoaDarknetestácheiadetraficantes de drogas, terroristas, desertores, gângsteres, contrabandistas de armas, homens-bomba,cafetõeseblackhats.Emnenhumlugardomundodigitalexistetantaatividadeilícita.Seainternettemuminferno,eleéaDarknet.MasaDarknettambémtemseuladobom,eLisbethsabiamuitobemdisso.Hoje,comasagênciasde
espionagem e os grandes fabricantes de softwares espionando cada passo que se dá na internet, aspessoasdebemprecisamdeumlugarondeninguémasveja,porissoaDarknettambémsetransformouno lugar ideal para dissidentes, fontes secretas e delatores. Na Darknet opositores podem falar eprotestarsemquegovernososalcancem,eeranaDarknetqueLisbethSalanderfaziasuaspesquisasmaissecretaselançavaseusataques.Ouseja,LisbethSalanderconheciaaDarknet.Conheciaossiteseosmotoresdebuscadaquelevelho
organismoquesemantinhamuitolongedainternetvisível.—VocêcolocouatecnologiadoBalderàvendanaDarknet?—Não,não…eunãotinhanenhumplano.OBaldermedesprezava,quasenuncamecumprimentava,
me tratavacomo lixoe,paradizeraverdade, tambémnãodavaamínimaparaa tecnologiaquevinhadesenvolvendo.Sóqueriafazersuaspesquisas,nãoseimportavadevercomoelasfuncionariamdepois.
Etodosnóssabíamosqueatecnologiadeletinhaumvalorincalculávelepodianostornarricos.MasoBaldernemligava,queriaapenasficarbrincando,fazendoexperiênciascomoumacriança.Lembroqueuma vez, depois de uma bebedeira, postei uma pergunta num site nerd: “Alguém aí tem grana paracomprarumatecnologiadeIArevolucionária?”.—Ealguémrespondeu?—Essarespostademorou.Euatéjátinhaesquecidoquehaviapostadoaquelapergunta.Masaíumtal
deBogeyescreveuecomeçouamefazerperguntas…perguntasdequemestavamuitobeminformado.No começo eu fiz a besteira de ir respondendomeio de qualquer jeito, semmuito cuidado, como seestivesse brincando. Mas depois vi que eu estava me envolvendo de verdade na história e fiqueiapavoradoqueoBogeyfosseroubaratecnologia.—Ficouapavoradoqueelefosseroubaratecnologiasemtepagar,vocêquerdizer.—Eunãotivenoçãodeondeestavamemetendo.Aíaconteceuumproblemaquedeveserclássico.
Pra vender a tecnologia do Frans eu seria obrigado a dar informações sobre ela, mas se eu desseinformaçõesdemais,acabariaperdendoavenda,eoBogeynãoparavademebajular.Nofimeleacaboudescobrindoexatamenteoqueagentetinhaecomquesoftwareestávamostrabalhando.—Eleestavahackeandovocês.—Provavelmente.Enessemeio-tempoacaboudescobrindoomeunome,oqueacaboucomigo.Fiquei
paranoicoe faleiqueeunãoqueriamaiscontinuarcomaquilo.Sóque jáera tarde.NãoqueoBogeytivesseme ameaçado…pelomenos não de forma direta.Mas ele ficava dizendo que podíamos fazercoisasgrandiosasjuntoseganharummontededinheiro,enofimconcordeiemmeencontrarcomelenumrestaurantechinêsquefuncionadentrodeumbarcoemSöderMälarstrand.Lembroqueeraumdiafrio,ventavamuitoeeuquasecongeleiesperandoocara.MasoBogeynãoapareceu,edepoisdeumameiahoracomeceiaacharquetalvezelesestivessemmevigiando.—Edepoiseleapareceu?—Apareceu,equandoeuviocarafiqueiperplexo.Nãoacreditava.OBogeypareciaumdrogado,um
mendigo,eseeunãotivessevistooPatekPhilippenopulsodeleeuteriadadounstrocadospraele.Ocaratinhaumascicatrizesbemfeiasnosbraçosetatuagensfeitasdeumjeitoamador.Osbraçosficavamlargadosquandoeleandava,eo sobretudodelepareciaum trapo.Fiqueicoma impressãodequeelemoravanarua,eomaisestranhoéqueelepareciaorgulhosodaquelejeitodele.Sóorelógioeosapatofeito àmãomostravam que ele tinha saído damerda.Nomais, parecia fazer questão demanter suasraízes,equandomaistardeeujáhaviapassadotudoparaeleeagentecomemoravaonossoacordocomduasgarrafasdevinho,pergunteisobreopassadodele.—Eeuespero,paraoseuprópriobem,queoBogeytenhatedadopelomenosalgunsdetalhes.—Sevocêestápensandoemiratrásdele,devoavisarque…—Nãoqueroconselhos,Arvid.Querofatos.—Tudo bem. Claro que ele foi cauteloso— prosseguiuArvid—,mesmo assim consegui alguma
coisa.OBogey não tinha comome negar, ele ainda dependia de algumas informaçõesminhas, não iaconseguirsevirarsozinho.EledissequecresceunumacidadegrandedaRússia,masnãodeuonome.Etambémcontouque tinhaabsolutamente tudocontraele.Tudo!Amãeeradrogadaeprostituta,eopaipodiaserqualquerum.Quandoerapequeno,acabouindopararnumorfanatodosinfernos.Mecontouque
um louco que trabalhava naquele lugar o colocava numa mesa de carnear que havia na cozinha e oespancavacomumabengalavelha.Comonzeanoselefugiudoorfanatoefoivivernarua.Roubavaedormia em porões e escadarias pra se esquentar um pouco, enchia a cara com vodca vagabunda echeiravasolventesecola.Foiviolentadoeapanhoumuito.Mastambémdescobriuumacoisa.—Oquê?—Queeleeramuitotalentoso.Oqueosoutroslevavamhorasparafazer,eleconseguiaemsegundos.
Eraummestreemarrombamentos,eessefoioprimeiroorgulhoquesentiunavida,aprimeiraidentidadequeteve.Antesnãopassavadeumpivetedesprezadoportodos.Derepentepassouaserogarotoqueentravaemqualquerlugar,elogoissovirouumaobsessão.PassavaosdiassonhandoemserumaespéciedeHoudiniaocontrário.Nãoqueriasairdoslugares.Elequeriaentrar,ecomeçouatreinarparaficarcadavezmelhor,treinavadez,doze,catorzehoraspordia,atéquevirouumalendavivadasruas,pelomenosfoioqueelemedisse,ecomeçouatrabalharemoperaçõescadavezmaioresquedepoisdeumtempopassaramaenvolvercomputadores,queeleroubavaereconfigurava.Conseguiahackearqualquersistemaecomeçouaganharmuitodinheiro.Masgastavatudocomdrogasenegociatas,emuitasvezesera roubadoeenganado.Nahorade trabalharestavasemprealertaeconcentrado,masdepoiscaíanaapatiadasdrogaseacabavampassandoapernanele.Bogeydissequeeraaomesmotempoumgênioeumburro.Masumdiatudomudoueelesaiudesseinferno.—Oqueaconteceu?— Ele estava dormindo numa construção abandonada e seu aspecto era o pior possível. Mas de
repenteeleacordourodeadoporumaluzdouradaeviuumanjonafrentedele.—Umanjo?—Foioqueeledisse.Umanjo.Devetersidoporcausadocontrastecomasoutrascoisasqueele
tinhaládentro,agulhas,restosdecomida,baratasesóDeussabeoquemais.Elefalouqueeraamulhermaislindaqueelejátinhavisto.Malaguentavaolharpraelaesentiucomosefossemorrerali.Foiumsentimentoesplêndido,grandioso.Aíamulherexplicou,comosefosseacoisamaisnaturaldomundo,queiafazerdeleumhomemricoefeliz,eseeuentendibemelacumpriumesmoapromessa.Pagouumtratamentodentáriopraeleeocolocounumaclínicadereabilitação.Etomoutodasasprovidênciasparaquedepoiseleseformasseemengenhariadacomputação.—Edesdeentãoelehackeiacomputadoreseroubaparaessamulherearedequeelacomanda.— Émais ou menos isso. Ele virou outra pessoa. Talvez não totalmente outra, porque emmuitos
sentidoseleaindaéomesmoladrãodeantes.Masdissequenãousamaisdrogasenoseutempolivresededica a obter informações sobre os últimos desenvolvimentos tecnológicos que existem no mundo.EncontroumuitacoisanaDarknetemefalouquehojeeleéumhomemmuitorico.—Esobreessamulher?Elenãofaloumaisnadasobreela?—Não,eleeradiscretodemais.Falavadelacomtantaadmiraçãoereverênciaqueporalgumtempo
chegueiapensarseelanãoseriaapenasumafantasiacriadaporele.Masachoqueelaexistemesmo.Também havia um sentimento perceptível de medo no ar quando ele falava dela. Disse que preferiamorreratrairaconfiançadessamulher,enessemomentomemostrouumacruzpatriarcalrussadeouroqueamulhertinhadadopraele.Umadessascruzesquetêmumbraçoextrameionadiagonal,queapontaaomesmotempopracimaeprabaixo,sabe?ElemeexplicouqueessacruzeraumaalusãoaoEvangelho
deMateuseaosladrõescrucificadoscomJesus.Umdosladrõesacreditouneleefoiparaocéu.Ooutrooridicularizouefoiparaoinferno.—Eeraissoqueiaacontecercomvocês,setraíssemessamulher.—É,maisoumenos.—EntãoelasecomparavaaJesus?—Naquelasituação,acruznãodeviaternadaavercomocristianismo.Eraapenasumamensagem
queelaqueriatransmitir.—Fidelidadeouostormentosdoinferno.—Algonessalinha.—Emesmoassimvocêestáaquicomigo,Arvid.Contandotudoquesabe.—Eunãotiveescolha.—Esperoquevocêtenhaganhadoumbomdinheiro.—É,eu…ganhei.—EdepoisatecnologiadoBalderfoivendidaparaaSolifoneaTruegames.—É…masnãoconsigoentenderumacoisa.—Nãoconsegueentenderoquê?—Comovocêdescobriu?—Vocêcometeuaburricedeenviarume-mailparaoEckerwald,daSolifon,lembra?—Maseunãoescrevinadaquedesseaentenderqueeutinhavendidoatecnologia.Tomeiomaior
cuidado.—Oquevocêdisseláfoiosuficienteparamim—respondeuLisbethselevantando,enesseinstante
foicomoseArvidperdesseochão.— Espere um pouco! E como vão ficar as coisas agora? Você vai deixar meu nome longe dessa
história?—Seriasortedemaisparavocê—eladisse,eemseguidaseafastoucompassosrápidosedecididos
rumoaOdenplan.Enquanto Bublanski descia a escada do prédio da Torsgatan, seu celular tocou. Era o professor
CharlesEdelman.Bublanskiestavaatrásdeledesdequesouberaqueogarotoeraumsavant.Nainternet,tinhadescobertodoisespecialistassuecosmencionadosdeformasempreconsistentequandootemaeraesse— a professora LenaEk, daUniversidade de Lund, eCharles Edelman, do InstitutoKarolinska.Comonãohaviaconseguido fazercontatocomnenhumdosdois, tinhadeixadooassuntoumpoucodeladoparairàcasadeHannaBalder.AgoraCharlesEdelmanrespondiaàsualigação,parecendomuitoperturbado.Explicouque estava emBudapeste, para uma conferência sobre capacidade aumentada dememória.TinhaacabadodeaterrissaredeveranotíciadoassassinatonositedaCNN.—Senãoeumesmojáteriaprocuradovocês.—Comoassim?—OFransBaldermetelefonouontemànoite.Bublanskiestremeceu,comoemgeralaconteciaquandodeparavacomessetipodecoincidência.
—Paratratardequeassunto?—Elequeriafalarsobreotalentodofilhodele.—Ossenhoresseconheciam?—Não.Elemeligouporqueestavapreocupadocomomenino.Fiqueiestupefato.—Porquê?— Por ser o professor Frans Balder. Para os neurologistas, o Balder é praticamente um conceito.
Costumamosdizerqueelequerentenderocérebrohumanodamesmaformaquenós.Adiferençaéquedepoiselequerconstruirumapartirdonada,eaprimorá-lo.—Jáouvicomentáriosparecidos.—Eutinhaouvidodizerqueeleeraumhomemextremamentereclusoedifícil.Umpoucocomouma
máquina, as pessoas diziam às vezes, de brincadeira: pensamento lógico e puro.Mas comigo ele semostroumuitoemotivo,oque,parasersincero,medeixouatônito.Foi…nãoseiexplicar,foicomosevocêvisseoagentemaisdurãodapolíciachorar,eacheiquedevia teracontecidomaisalgumacoisaalémdaquiloqueeleestavamecontando.—Efoiuma impressãocorreta.OprofessorBalderpercebeuqueexistiaumaameaçarealcontraa
vidadele—disseBublanski.—Maseletinhaoutrasrazõesparaestaralterado.Eledissequeosdesenhosdofilhoerammagistrais,
o que não é muito comum nessa idade, nem mesmo entre os savants, e menos ainda quando essahabilidadevemacompanhadaporumtalentomatemático.—Omeninotemhabilidadesmatemáticastambém?—PeloqueoBaldermecontou,tem.Eeupoderiadiscorrerhorasehorassobreesseassunto.—Oqueosenhorquerdizer?—Fiqueiaomesmotempomuitoimpressionadoepoucoimpressionado.Hojesabemosqueexisteum
fator hereditário relacionado à síndrome de savant, e no caso o pai era uma lenda viva graças aoslogaritmosavançadosquehaviadesenvolvido.Aomesmotempo…—Sim?—Aomesmo tempo a capacidade artística e a aptidão matemática não costumam aparecer juntas
nessascrianças.—Ointeressantedavidaéqueelasempreencontraumjeitodenossurpreender—disseBublanski.—Éverdade.Mascomopossoajudá-lo?BublanskiselembroudetudoquehaviaacontecidoemSaltsjöbadeneachouqueseriaumaboaideia
agircomamaiorcautelapossível.—Precisamosdasuaajudaedoseuconhecimentotécnicoomaisdepressapossível.—Omeninotestemunhouoassassinato,nãofoi?—Issomesmo.—Eagoravocêsqueremqueeutentefazê-lodesenharoqueviu?—Prefironãofazercomentários.CharlesEdelmanestavanarecepçãodohotelBoscolo,emBudapeste,próximoàságuasreluzentesdo
Danúbio,ondeserealizariaaconferência.Olugarpareciaumpequenosaguãodeumteatrodeópera.Erasuntuoso, com pé-direito alto e repleto de cúpulas e pilares em estilo antigo. Ele tinha esperadoansiosamenteporaquelasemananaHungria,repletadepalestrasejantares.Masnaqueleinstantecrispouorostoepassouamãopelocabelo.TinharecomendadoojovemprofessorMartinWolgers.—Lamento,masporenquantonãovoupoderajudá-lo.Tenhoumapalestramuitoimportanteamanhã
—eletinhaditoaoinvestigadorBublanski,oqueeraverdade.Charles Edelman havia se preparado durante semanas para essa apresentação, e sabia que ela
provocaria uma grande polêmica com outros importantes pesquisadores dos processos de memória.Porém,quandodesligouetrocouumolharfurtivocomLenaEk—quepassavadepressaporelecomumsanduíche namão—, se arrependeu. Chegou atémesmo a invejar o jovemMartin, que sem ter nemcompletadotrintaecincoanosfaziasempreboafiguraejátinhacomeçadoaconstruirseunome.VerdadequeCharlesEdelmannãoentendiamuitobemoquehaviaacontecido.O investigador tinha
sidoumtantomisterioso.Provavelmentetemiaqueotelefoneestivessegrampeado,porémnãoeradifícilimaginar o que havia por trás daquela conversa. O menino era um desenhista extraordinário etestemunhara o crime. Essa situação podia ser resolvida de forma bem evidente, não? Quanto maisEdelman pensava no assunto, mais se preocupava. Ainda teria a oportunidade de fazer muitasapresentaçõesimportantesaolongodavida.Masparticipardeumainvestigaçãodehomicídiodaquelenível—essaeraumachancequenãoserepetiria.QuandopensavanatarefaquehaviapassadoaMartin,tinhaacertezadequeelaseriamaisinteressantedoquequalqueroutracoisaqueviesseaaconteceremBudapeste,equemsabe?Talvezelapudesselhetrazerumapequenadosedefama.Edelman imaginou as manchetes: “Neurologista ajuda polícia a desvendar assassinato”. Ou ainda
melhor:“PesquisasdeEdelmaninauguramnovaeranainvestigaçãocriminal”.Comopodiatersidotãoidiota e ter passado o seu bastão? Havia sido uma atitude estúpida, não? Charles Edelman pegou ocelulardenovoeligouparaBublanski.JanBublanskidesligouotelefone.EleeSonjaModigtinhamencontradoumestacionamentopertoda
bibliotecamunicipaldeEstocolmoeacabadodeatravessararua.OtempocontinuavahorríveleasmãosdeBublanskiestavamquasecongelando.—OEdelmanmudoudeideia?—perguntouSonja.—Mudou.Agoradissequeestáselixandoparaapalestraqueiadar.—Equandoelevolta?—Disse que dará notícias assim que tiver certeza.Mas acha que nomáximo amanhã demanhã já
estaráaqui.OsdoisestavamacaminhodaclínicaOden,naSveavägen,paraencontrarodiretor,TorkelLindén.O
encontroeraapenasparaacertarosdetalhessobreotestemunhodeAugustBalder—pelomenoseraoque Bublanski pensava. Embora Torkel Lindén nada soubesse sobre as reais intenções dos policiais,tinha sido um tanto esquivo ao telefone e dito que o menino não devia ser incomodado “de formanenhuma”.Bublanskitinhapercebidocertahostilidadeehaviafeitoabesteiraderetribuircomamesmafaltadegentileza.Nãotinhasidouminíciomuitopromissor.
Ao chegar, Bublanski descobriu que Torkel Lindén não era o homem grande e robusto que haviaimaginado.Pelocontrário,nãodeviamedirmaisqueummetroemeio,tinhacabelopretoecurto,talvezpintado,elábiosimpassíveisquerealçavamaimpressãodeumcaráterbastantesevero.Usavacalçadebrimpreto,camisapolopretaeumapequenacruznopescoço.Tinhaumarmeioeclesiástico,enãohaviadúvidadequesuahostilidadeerareal.Osolhosdodiretortinhamumbrilhoarrogante,eBublanskisesentiumaisjudeudoquenunca,como
em geral acontecia quando encontrava aquele tipo de má vontade. O olhar daquele homem tambémdesejava firmar sua superioridade moral. Torkel Lindén queria mostrar como seu caráter era maisrefinado porque se preocupava com o bem-estar psíquico do garoto, ao contrário da polícia, quedesejava usá-lo como uma ferramenta a seu serviço, e Bublanski não viu outra saída senão iniciar aconversadaformamaisamistosapossível.—Muitoprazer—eledisse.—Ahã—respondeuTorkelLindén.—Eobrigadoporternosrecebidosemhoramarcada.Possogarantirquenãooincomodaríamosse
nãoacreditássemosqueoassuntoédeextremaimportância.—Imaginoquevocêsqueiraminterrogaromenino.—Nãoexatamente—prosseguiuBublanskicomumtomdevoznãomuitoamável.—Queremos…
bem,primeiroeugostariadedeixarbemclaroquetudooquedissermosaquideveficarentrenós.Porquestãodesegurança.—Osigiloénossamaneirahabitualdetrabalhar.Nãotemosvazamentodeinformaçõesaqui—disse
TorkelLindén,comosetivesseinsinuandoquejánapolícianãosepodiadizeromesmo.—Eusóquerogarantirasegurançadomenino—Bublanskiretrucou.—Entãoessaéaprioridadedevocês?—Paradizeraverdade,é—respondeuBublanskiaindamaisagressivo.—Porissoeugostariade
enfatizarmaisumavez:nadadoqueeudisserpodechegaraoutraspessoas.Enãomerefiroapenasaconversasaovivo,masespecialmentepore-mailetelefone.Podemosiraumlugarmaisreservado?SonjaModignãoestavamuitoentusiasmadacomaquelelugar.Talvezochoroaestivesseperturbando.
Pertodaliumameninachoravadesesperadamente,semparar.Ostrêsestavamnumasalaquecheiravaadesinfetanteeaalgumacoisamais—talvezincenso.Naparedevia-seumacruzenochãoumursodepelúciavelho.Praticamentenãohaviamaisnadapara tornaro ambiente agradávelouaconchegante, eBublanski,queemgeralnãoperdiaobomhumor,estavaapontodeexplodir.PorissoSonjaassumiuocomandoeofereceuumrelatosóbrioeobjetivodoquehaviaacontecido.—Eagora—elaprosseguiu—soubemosqueoseucolegaEinarForsbergdissequeoAugustnão
podiadesenhar.—Foiumaavaliaçãoprofissionaldele,comaqualconcordo.Desenharnãofazbemàcondiçãodo
menino—declarouTorkelLindén.— Por outro lado, me parece que pouca coisa poderia melhorar a condição dele neste momento.
Afinal,elepresenciouoassassinatodopai.
—Masnemporissoprecisamosdeixarascoisaspiores,certo?—Éverdade.MasessedesenhoqueoAugustfoiimpedidodeterminarpodetrazerumainformação
decisiva à investigação, por isso estamos insistindo. Concordamos que um psicólogo o acompanhe otempointeiro.—Mesmoassimminharespostaénão.Sonjamalconseguiuacreditarnoqueouviu.—Comoé?—perguntou.—Respeitomuitootrabalhodevocês—prosseguiuTorkelLindéncomosenadativesseacontecido
—,masnossotrabalhoaquinaclínicaOdenéajudarcriançasquesofreramqualquertipodeabuso.Esseé o nosso dever e a nossa vocação. Não somos um braço da polícia. Essa é a nossa conduta, e nosorgulhamosmuitodela.Enquantonossascriançasestiveremaqui,elasprecisamsentirqueosinteressesdelasestãoacimadetudo.SonjaModigpôsamãonapernadeBublanskiparaimpedirqueocolegaperdesseacabeça.—Podemos conseguir ummandado judicial sem nenhuma dificuldade—Sonja continuou.—Mas
preferimosevitarumamedidadessas.—Quebomparavocês.—Desculpe,masquerolhefazerumapergunta—eladisse.—VocêeoseucolegaEinarForsberg
realmentesabemoqueémelhorparaoAugustouparaessameninaqueestáchorando?Seráquetodosnósnãotemosanecessidadedenosexpressar?Euevocêpodemosescrever,conversarouatémesmonoscomunicar um com o outro através dos nossos advogados, mas o August Balder não tem essapossibilidade.Poroutrolado,elesabedesenhar,eparecequedesejanosmostraralgumacoisa.Seráqueimpedir essa comunicação é mesmo amelhor coisa a fazer por ele? Não seria tão desumano quantoimpedirumacriançade falar?Seráqueo idealé realmente impediroAugustdeexpressaraquiloquemaisodeveestaratormentandonestemomento?—Nonossoentendimento…—Não!—Sonjaointerrompeu.—Chegadefalarsobreoqueéoentendimentodevocês.Entramos
emcontatocomapessoamaiscapacitadadetodaaSuéciaparalidarcomessetipodequestão.Seunomeé Charles Edelman, ele é professor de neurologia e está vindo da Hungria agora mesmo para ver omenino.Nãoseriamaisrazoáveldeixarqueeledecida?— Claro que podemos ouvir o que esse neurologista tem a dizer — respondeu Torkel Lindén a
contragosto.—Nãoapenasouvir.Podemosdeixarqueeledecida.—Prometoquemedisponhoaterumdiálogoconstrutivoentredoisespecialistas.—Ótimo.OqueoAugustestáfazendoagora?—Dormindo.Eleestavaexaustoquandochegou.SonjaconcluiuquenãoajudariaemnadasugerirqueacordassemAugust.—EntãonósvoltaremosamanhãcomoprofessorEdelman,eesperoquepossamos trabalhar juntos
nessecaso.
16.NOITEDE21DENOVEMBROEMANHÃDE22DENOVEMBRO
Gabriella Grane afundou o rosto nas mãos. Fazia quarenta horas que ela estava acordada e seusentimentodeculpasópioravacomafaltadesono.Mesmoassim,haviatrabalhadoduroedemaneiraintensa o dia todo. De manhã, ela havia passado a integrar uma equipe da Säpo— uma espécie deunidadesecreta—quetambéminvestigavaamortedeFransBalder.Oficialmente,cabiaàequipeavaliarasimplicaçõesdocrimenocenáriopolíticonacional,masdeformasigilosaacompanhavacadamínimodetalhequeenvolviaoassassinatodocientista.Na coordenação do grupo, estava o intendente Mårten Nielsen, que recentemente voltara ao país
depoisdeumanodeestudosnaUniversidadedeMaryland,nosEstadosUnidos.Nielsenerasemdúvidainteligentee instruído,mas tinhaposiçõespolíticasmuitodedireitaparaogostodeGabriella.Mårtendeviaseroúnicosuecocomnívelsuperioraapoiarcomentusiasmoopartidorepublicanoamericano,inclusive manifestando alguma simpatia pelo movimento Tea Party. Além disso, era apaixonado porhistóriadasguerrasepalestranteassíduodaAcademiaMilitar.Mesmoaindabemjovem—trintaenoveanos—,Nielsentinhamuitoscontatosforadopaís.Apesardisso,eleestavaencontrandomuitadificuldadeemseencaixarnogrupo,quenapráticaera
liderado porRagnarOlofsson,mais velho,mais inteligente e capaz de fazerMårten se calar comumsimples suspiro rabugentooucomum franzirde suas sobrancelhas cerradas.Parapiorar a situação,oinvestigadorLarsÅkeGrankvisttambémfaziapartedogrupo.Antes de se integrar à Säpo, Lars Åke havia sido um semilendário investigador da Comissão de
HomicídiosdaPolíciaNacional,pelomenosnoquese referiaàsuahabilidadedebebermaisdoquetodososcompanheiroseaofatodetermantidoumaamanteemcadacidadedopaís.Mascomcertezaaquelenãoeraumgrupofácilparaseadaptar,eatémesmoGabriellasemostroucautelosaatardetoda,muitomaisporaindaestarcheiadedúvidassobreocasodoquepelarivalidadeentreseuscolegas.Elapercebeu,porexemplo,queasprovassobreoantigocasodeespionagemcibernéticaeramvagase
quaseinexistentes.TudoquehaviaeraadeclaraçãodeStefanMolde,doFörsvaretsRadioanstalt,enemmesmoeleestavamuitoconvictodoqueafirmara.NaopiniãodeGabriella,elehaviaditomaisbobagensdoquequalqueroutracoisa,eFransBalderpareciaterconfiadomuitomaisnaquelajovemhackerqueele havia contratado e cujo nome nem sequer constava da investigação. Tudo que eles sabiam era aperfeitadescriçãoqueoassistentedeBalder,LinusBrandell, fizeradahacker.GabriellaconcluiuqueFransBalderhaviaescondidomuitasinformaçõesdela,antesdesemudarparaosEstadosUnidos.
TeriasidoapenascoincidênciaeleteraceitadooempregonaSolifon?GabriellaestavacheiadedúvidaseirritadapornãoestarmaisrecebendoajudadeFortMeade.Ela
nãoconseguiamaisfalarcomAlonaCasalesemuitomenosestabelecercontatodiretocomaNSA.Poressarazão,nãotinhacomoobternovasinformaçõessobreocaso.Sentia-seexatamentecomoMårteneLarsÅke,àsombradeRagnarOlofsson,que,aorecebernotíciasfrescasdesuafontenaComissãodeHomicídios,aslevavadiretoàchefedaSäpo,HelenaKraft.Gabriellanãoestavagostandonadadaquelasituaçãoe,emvão,jáhaviaapontadoquedaquelejeito
corriam não só o risco de as informações vazarem, mas também de eles perderem parte de suaindependência, pois em vez de usarem suas próprias fontes ficavam subordinados ao fluxo deinformaçõesquevinhadaequipedeBublanski.— Estamos parecendo alunos que vão colar na prova e só ficam esperando receber as respostas
prontas—eladisseaogrupotodo,oquenãofezsuapopularidadecrescernemumpouco.Agoraelaestavasozinhaemsuasala,decididaaseguiremfrenteporcontaprópria,tentandoenxergar
ahistóriademaneiramais amplae fazer algumprogresso.Talveznãochegasseanenhumaconclusão,mastambémnãofariamaltentarseguirumcaminhoseu,semficarolhandosempreparaomesmolugar,comoosoutrosestavamfazendo.Ouviupassosnocorredore,pelobarulhodosaltoalto,percebeuquesópodiaserumapessoa.HelenaKraftentrounasalacomseublazerArmanicinzaeocabelopresonumcoqueelegante.Helenaolhou-acomcarinhoeGabriellaseincomodou.Nãoerasemprequegostavadesesentirapredileta.—Comoestãoascoisas?Muitocansada?—Demais—respondeuGabriella.—Depoisdanossa conversa, queroquevocêvápara casadormir.Precisamosdeumaanalistade
segurançapensandocomclarezaporaqui.—Umadecisãosensata.—SabeoqueErichMariaRemarquedisse?—Quenastrincheirasnãoénadadivertidooualgodotipo…—Ah,não, que é sempre a pessoa erradaque se sente culpada.Aspessoasque realmente causam
sofrimentoaomundonemseimportam.Aquelesquelutamdoladocertoéquesedeixamconsumirpelaculpa.Vocênãotemdoqueseenvergonhar,Gabriella.Vocêfezoquepôde.—Nãotenhomuitacertezadisso,masobrigadadequalquerforma.—VocêouviusobreofilhodeBalder?—OuvialgumacoisarapidamentedoRagnar.—Amanhãàsdezhoras,oinspetorBublanski,ainspetoraModigeumtalprofessorCharlesEdelman
vãoseencontrarcomomeninonaclínicaOden,naSveavägen.Elesvãotentarfazeromeninodesenharmaisalgumacoisa.—Tomaraquefuncione,masnãomeagradamuitosaberdisso.—Calma,deixeaparanoiaparamim.Asúnicaspessoasquetêmessainformaçãosãoasquesabem
ficardebocafechada.—Seéassim,ótimo.—Querotemostrarumacoisa
—Oquê?—FotografiasdorapazquehackeouoalarmedeBalder.—Eujávi,analiseitodascuidadosamente.—Temcerteza?—perguntouHelenaKraft,estendendoaelaumafotoampliadaemaldefinidadeum
pulso.—Oqueéquetem?—Olhedenovo!Oquevocêestávendo?Gabriellaviuduascoisas.Umrelógiodegrife,queelajátinhanotadoantes,e,embaixodele,traços
deumatatuagemquepareciafeitaporumamador.—Háumcontrasteaqui—eladisse.—Umrelógiocarosobretatuagensbaratas.—Maisqueisso—rebateuHelenaKraft.—ÉumPatekPhilippede1951,modelo2499,deprimeira
ousegundasérie.—Fiqueinamesma.—É um dos relógiosmais caros domundo.Há alguns anos um exemplar desses foi vendido num
leilãodaChristie’semGenebrapormaisdedoismilhõesdedólares.—Vocêestábrincando?—Não,enãofoiumvelhotequalquerquecomprouesserelógio.FoiJanvanderWaal,advogadodo
escritórioDackstone&Partner.Elefezacompraemnomedeumcliente.—ODackstone&PartnerquerepresentaaSolifon?—Exatamente.—Caramba!—Claroquenãotemoscertezaseorelógioflagradopelascâmerasdesegurançaéomesmodoleilão
deGenebrae tambémnãoconseguimosdescobrirqueméesseclientedoJanvanderWaal.Maséumpontodepartida,Gabriella.Agoratemosumhomemesqueléticoparecidocomumdrogadoequeusaumrelógioespetacularcomoesse.Issojárestringebastanteanossabusca.—EoBublanskijátemessainformação?—Foiotécnicodele,JerkerHolmberg,quemdescobriutudoisso.Oqueeuqueroagoraéqueoseu
cérebroanalíticotrabalhecomessainformação.Váparacasa,durmaumpoucoecomecenissoamanhãcedo.
***O homem que dizia se chamar Jan Holtser estava sentado em seu apartamento em Helsinque, na
Högbergsgatan,nãomuitodistantedoparquedaEsplanada.ElefolheavaumálbumdefotografiasdesuafilhaOlga,agoracomvinteedoisanos,queestudavamedicinaemGdansk,naPolônia.Olgaeramorenaealtae,comoelecostumavadizer,amelhorcoisaquehaviaacontecidoemsuavida.
Ele dizia isso não só porque soava bonito e o fazia parecer um pai responsável. Ele também queriaacreditarnisso.MasOlgavinhacomeçandoasuspeitardesuasreaisatividades.—Vocêdefendepessoasruins?—elaperguntouumdia,antesdecomeçaraficarobcecadacomoque
eladiziaserseucompromissocomos“pobreseoprimidos”.
Janachavaqueeraapenasumencantamentopassageirocomasideiasdeesquerda,oque,aliás,nãocombinava em nada com a personalidade da filha. Ele interpretava aquilo mais como um grito deindependênciadela.Por trásde todoaquelediscursoelaboradosobremendigosedoentes, eleachavaqueelaeraigualaele.Olgahaviasidoumaatletapromissoradoscemmetrosrasos.Mediaummetroeoitentaeseis,eramusculosaetinhaexplosão.Nosvelhostemposelaadoravaassistirafilmesdeaçãoeouvi-lofalardesuas lembrançasdeguerra.Naescola, todoshaviamaprendidoanãopuxarbrigacomela,poiselabatiadevolta,comoumguerreiro.Olgadefinitivamentenãotinhasidofeitaparaampararfracosedegenerados.Mesmoassimelaagoradiziaquequeria trabalharparaosMédicosSemFronteirasouentãoirpara
Calcutá como uma espécie deMadre Teresa. Jan Holtser não suportava nem pensar nisso. Omundopertenceaosfortes,eleachava.Mastambémamavaafilha,pormaisamalucadosquefossemseusideais,e no dia seguinte ela viria ficar alguns dias em casa, depois de seismeses.Ele havia prometido a simesmoserumouvintemelhordestavez,nãoficardiscursandosobreStálin,osgrandeslíderesnemsobretodasascoisasqueelaodiava.Pretendia trazê-la paramais perto.Tinha certezadeque ela estavaprecisandodele.Tinha absoluta
certeza de que ele estava precisando dela. Eram oito da noite, ele foi até a cozinha, espremeu trêslaranjasnacentrífuga,colocouSmirnoffnumcopoepreparouumscrewdriver.Oterceirododia.Depoisdeencerrarumtrabalho,elepodiadarcontadeseisousetedesses,etalvezfizesseissoagora.Estavacansadoe sentiaopesode todaa responsabilidadequehavia sido jogadaemseusombros.Precisavarelaxar e por algunsminutos continuou ali com seu drinque namão e sonhando com um tipo de vidacompletamentediferente.Masohomemquedizia se chamar JanHoltser tinha aumentadodemais suasexpectativas.SuatranquilidadeterminouquandorecebeuumaligaçãodeJurijBogdanovnocelular.Noinício,Jan
pensouqueJurijquisesseapenasbaterpapo,pôrumpoucopara fora todaacargade tensãoquefaziaparte de todo o trabalho deles. Mas seu colega estava telefonando para tratar de um assunto bemespecíficoenãoparecianadafeliz.—FaleicomT—eledisse,eJansentiuumaporçãodecoisasaomesmotempo,acimadetudociúme.Por queKira tinha telefonado para Jurij e não para ele?Mesmo que fosse Jurij quem trouxesse o
dinheirogrossoerecebessecomoretribuiçãoosmelhorespresentesemaiorsalário,Janvinhasempresendo persuadido de que era ele, Jan, o mais próximo de Kira. Mas Jan Holtser estava tambémpreocupadoagora.Seráquealgumacoisatinhadadoerrado?—Algumproblema?—Janperguntou.—Otrabalhonãoterminou.—Ondevocêestá?—Nacidade.—Bom,entãovenhaatéaquimeexplicarquediabosvocêquerdizercomisso.—ReserveiumamesanoPostres.—Eunãoestoucomvontadedeiranenhumrestaurantechiqueagoranemdeposardenovo-ricodo
seulado.Venhaparacádeumavez.—Euaindanemcomi.
—Eufaçoalgumacoisaparavocê.—Estábem.Temosumalonganoitepelafrente.TudoqueJanHoltsernãoqueriaeraoutra longanoite.Emenosaindadizerà sua filhaqueelenão
estariaemcasanodiaseguinte.MasJannãotinhaescolha.SabiatãobemdissoquantosabiaqueamavaOlga.NãosepodiadizernãoaKira.Elaexerciaumpoderinvisívelsobreelee,pormaisqueseesforçasse,Jannuncaconseguiasemostrar
um homem admirável para ela. Kira o reduzia a um garotinho, e quase sempre ele estava fazendo oimpossívelparavê-lasorrir.Kiraeradeumabelezavertiginosae,comoninguém,sabiaextrairomáximodeseusatributosfísicos.
Eramagníficanosjogosdepoder,conheciatodososseuslances.Sabiasemostrarfracaesuplicanteetambém indomável, dura, fria como gelo; era muitas vezes a própria encarnação do mal. Ninguémconseguiadespertartantooladosádicodelecomoela.Podia não ser uma pessoa extremamente inteligente, no sentido convencional da palavra, e muitos
comentavamisso, talvezporquequisessemabaixarumpoucoacristadela.Aindaassimessasmesmaspessoasficavamaparvalhadasemsuapresença.Kiraosmanipulavacomoaumbrinquedo,emesmooshomensmaisdurõescoravamedavamrisadinhascomomeninosdeescola.Eramnovedanoite e Jurij estava sentadoperto de Jandevorandoo filé de carneiroque ele havia
preparado. Por mais estranho que parecesse, Jurij até demonstrava algumas boas maneiras à mesa.Provavelmente por influência de Kira. Em muitos aspectos, Jurij havia se transformado quase numhomem civilizado, embora de vez em quando, naturalmente, voltasse a ser o que era. Por mais quetentasseposardebacana,elemesmonãoconseguiaselivrardaquelejeitodebatedordecarteiradrogadoe da sensação de ainda ser um. Mesmo que Jurij não usasse drogas havia muitos anos e tivesse seformado em engenharia da computação, ele parecia destruído e seus movimentos e andar desleixadoaindaexibiamasmarcasdosdescuidosdeummoradorderua.—Cadêoseurelógiobacana?—perguntouJan.—Aposenteiporenquanto.—Vocêestáencrencado?—Nósdoisestamos.—Asituaçãoéassimgrave?—Talveznão.—Masvocêdissequeotrabalhonãoterminou,nãofoi?—É,aindatemaquelemenino…—Quemenino?Janfingiuquenãotinhaentendido.—Aquelequevocêaliviou.Quecoisanobre…—Oqueéquetemele?Vocêsabequeeleédeficiente.
—Talvezseja,masagoraelecomeçouadesenhar.—Desenharcomo?—Eleéumsavant.—Umoquê?—Vocêdevialerumasoutrascoisas,alémdessassuasrevistassobrearmamentos.—Doquevocêestáfalando?—Umsavantéumapessoaautistaoucomalgumtipodedeficiência,masquemesmoassimtemum
talentoespecial.Essegarotonãofalanempensadireito,masparecequeeletemmemóriafotográfica.OinspetorBublanski achaqueomeninovai conseguirdesenharo seu rosto comprecisãomatemática e,depois,elepretendejogaressedesenhonoprogramadereconhecimentodefacesdapolícia,eaívocêvaisefoder,nãovai?VocênãoestáláemalgumarquivodaInterpol?—Estou,mascomcertezaaKiranãoquerque…—Issoéexatamenteoqueelaquer.Agentevaiterquedarumjeitonomenino.Umaonda de emoção e confusão percorreu Jan, e ele se viu de novo diante daquele olhar vazio e
brilhantequevinhadacamadecasalequeofizerasesentirtãodesconfortável.—Dejeitonenhum!—elegritou,massemacreditarnisso.—Euseiquevocê temproblemacomcrianças.Eu tambémnãogosto.Mas infelizmentenão temos
saída.Aliás,vocêdeviaatéagradecer.AKirapodiasimplesmenteteracabadocomvocê.—Imaginoquesim.—Tudocertoentão!Jáestoucomaspassagensaéreasaquinobolso.Agentepegaoprimeirovoode
amanhã paraArlanda, às seis emeia, e depois vamos direto pra um lugar chamado clínicaOden, naSveavägen.—Omeninoestánumainstituição?—Sim,oquevaiexigirumbomplanejamento.Assimqueeuacabardecomer,agentecomeça.OhomemquediziasechamarJanHoltserfechouosolhoseficoutentandopensarnoqueiriadizera
Olga.Nodiaseguinte,LisbethSalanderselevantouàscincodamanhãeinvadiuosupercomputadorNSFMRI
doInstitutodeTecnologiadeNovaJersey.Elaprecisavadetodoopotencialmatemáticoqueconseguissereunir.Emseguida,saiudeseupróprioprogramadefatoraçãodecurvaselípticas.Depois disso começou a trabalhar na decodificação do arquivo que ela havia baixado daNSA. Por
mais que tentasse de todas as formas, não conseguiu, e na verdade ela já esperava que isso pudesseacontecer.Tratava-sedeumasofisticadacriptografiaRSA—nomedeseusdescobridores,Rivest,ShamireAdleman—deduaschaves,baseadanafórmuladeEulerenotestedeprimalidadedeFermat,masoprincipaleraquepodiaserfacilmentemultiplicadaemdoisnúmerosprimosmaiores.Umacalculadoralhedaráarespostaemumafraçãodesegundos,noentantoéimpossíveltrabalharde
tráspara a frente e, da respostaobtida, saber quenúmerosprimos foramutilizados.Os computadoresaindanãosãomuitobonsemfatoraçãodenúmerosprimos,realidadecontraaqualtantoLisbethSalandercomoosserviçosdeinteligênciadomundotodopraguejarammuitasvezesnopassado.
Normalmente,oalgoritmoGNFSétidocomoomaiseficienteparaesseobjetivo,masfaziacercadeumanoqueLisbethvinhapensandoqueoECM,oMétododaCurvaElíptica,seriaomaispromissor.Porissoelajáhaviapassadoinúmerasnoitesemclaroescrevendoseupróprioprogramadefatoração.Masagora,nessasprimeirashorasdodia,elasedeucontadequeprecisavacontinuaraprimorandooprogramaparaconseguirterumamínimachancedesucesso,edepoisdetrêshorasininterruptasdetrabalhoeladecidiufazerumapausa.Foiatéacozinha,tomousucodelaranjadiretonacaixinhaeesquentoudoispiroguesnomicro-ondas.VoltouàsuamesaeentrounocomputadordeMikaelBlomkvistparaverseeletinhadescobertoalgo
novo.Elehavialhedeixadooutrasduasperguntas,eelasfizeramLisbethpercebernahoraque,apesardetudo,elenãoeraumcasoperdido.QualdosassistentesdeFransBalderotraiu?,eleescreveu,edefatoeraumaperguntasensata.Aindaassim,Lisbethnãorespondeu.NãoqueseimportassecomArvidWrange.Massuainvestigação
parachegaraodrogadodeolhosfundosqueestiveraemcontatocomWrangehaviaprogredido.Osujeitotinhase identificadocomoBogey,eTrinity,daHackerRepublic, lembrouquealguémexatamentecomesse apelidohavia chamadoa atençãoemalguns sitesdehackers anos antes.Embora isso, claro,nãosignificasse,necessariamente,algumacoisa.Bogeynãoeraumpseudônimoexclusivonemmuitooriginal.Masdepoisdetê-lorastreadoelidoseus
posts,Lisbeth teve a sensaçãodequepoderia estar certa, sobretudoquandoalguémcomesse apelidodescuidadamente tinha escrito alguma coisa sobre ter se formado em engenharia da computação naUniversidadedeMoscou.Lisbeth não havia conseguido descobrir em que ano o engenheiro se graduara nem outras datas
relacionadasaesseassunto.Mastinhaencontradoalgoaindamelhor:algunsdetalhesnerdsmostravamqueBogeyeraapaixonadoporrelógiosdeluxoemalucoporfilmesfrancesesdadécadade1970sobreArsèneLupin,oladrãoelegante.Em seguida Lisbeth postou uma pergunta em todos os sites imagináveis para novos e ex-alunos da
UniversidadedeMoscou.Elaqueriasabersealguém,poracaso,conheciaumcaraesqueléticoedeolhosfundos, ex-drogado, ex-menino de rua que depois tinha se tornado um célebre ladrão e que adoravafilmesdeArsèneLupin.Nãodemoroumuitoparareceberumaresposta.“PareceseroJurijBogdanov”,escreveuumagarotaqueseapresentoucomoGalina.Segundo Galina, Jurij era uma lenda na universidade. Não apenas por ter conseguido hackear os
computadoresdetodososconferencistasedescobrirpodresdecadaum,mastambémporviverfazendoapostascomaspessoas.Eledizia:“Apostocemrubloscomvocêcomoeuentronaquelacasa”.Muitosquenãooconheciamachavamque iamganharumdinheiro fácil.MasJurij conseguiaentrar
ondeelequisesse.Seporalgummotivoelenãoconseguiaultrapassaralgumaporta,escalavaasparedes.Eraconhecidoporsuaousadiaeperversidade.Diziamqueumavezhaviachutadoumcãoatéamorte,porque o animal estava atrapalhando o seu trabalho. E também roubava as pessoas o tempo todo, namaioria das vezes só para atormentá-las. Galina achava que ele devia ser cleptomaníaco. Mas Jurijtambémeraconsideradoumhackergenialeumanalistatalentosoe,depoisdeformado,omundoficouaseuspés.Maselenãoquisnenhumemprego.Queriaseguirseucaminho,eletinhadito,enãofoidifícilparaLisbethdescobrirquecaminhoelepercorreradepoisdauniversidade—pelomenosdeacordocom
aversãooficial.JurijBogdanov tinhaagora trintaequatroanos.Elehavia trocadoaRússiapor seuatual endereço,
Budapester Strasse no 8, em Berlim, próximo ao requintado restaurante Hugos. Ele comandava umaempresadesegurançachamadaOutcastSecurity,quecontavacomsetefuncionáriosecujofaturamento,noúltimoanofiscal,tinhasidodevinteedoismilhõesdeeuros.Eraumtantoirônico,aindaquedealgummodológico,queoseunegóciodefachadafossejustamenteumaempresaqueprotegiagruposindustriaisdepessoascomoele.Elenãohaviasidocondenadopornenhumoutrocrimedesdequeseformaraem2009 e parecia dispor de uma rede de contatos bem ampla, entre eles Ivan Gribanov, membro daAssembleiaLegislativarussaeacionistadacompanhiadepetróleoGazprom.E,fora isso,Lisbethnãoencontroumaisnadaquepudesseajudá-laairmaislonge.AsegundaperguntaqueMikaelBlomkvistlhefaziaera:ClínicapsiquiátricaOden,naSveavägen:éumlugarseguro? (Delete issoassimque terminarde
ler.)Elenãoexplicavaporqueointeressenessaclínica.MaselasabiaqueMikaelBlomkvistnãoerade
fazerperguntasàtoa.Nemtinhaohábitodeservagosobrenada.Seeleestavasendocautelosoapontodeapagarapergunta,éporquedeviaserumaquestãodelicada.
Com certeza havia algo importante sobre esse lugar, e Lisbeth logo descobriu inúmeras reclamaçõescontraaclínicaOden.Criançashaviamsidodeixadasàsuaprópriasorteali,negligenciadas,correndoorisco de se ferir. Era uma instituição particular, administrada por seu diretor, Torkel Lindén, e pelaempresa Care Me, de propriedade dele. Alguns antigos funcionários afirmavam, se é que se podiaacreditarneles,queTorkelLindéndirigiaaclínicacomtotalautonomiaepoder,ealiapalavradeleeralei.Apenasobásicoeraadquiridoe,emconsequênciadisso,amargemdelucroqueaclínicaobtinhaerasemprealta.TorkelLindénhaviasidoumginastaconsagradoe,entresuasconquistas,estavaadecampeãosueco
de barra fixa. Atualmente se dedicava com paixão à caça e eramembro da CongregaçãoAmigos deCristo, que combatia com veemência a homossexualidade. Lisbeth entrou nas páginas oficiais daAssociaçãoSuecadeCaçadoresedaCongregaçãoAmigosdeCristo,paraverquetentadorasatividadesestavamagendadasparaaquelesdias.Emseguida,enviouaTorkeldoise-mailsfalsos,muitosimpáticoseenvolventes,emnomedessasentidades.Emcadae-mailelaanexouumarquivoemPDFcomumvírusespião bastante sofisticado, que se instalaria no computador de Torkel assim que ele abrisse asmensagens.Às 8h23 ela já havia conseguido entrar no servidor e começado a trabalhar. E suas suspeitas se
confirmaram.AugusthaviasidointernadonaclínicaOdennatardedodiaanterior.Emsuafichamédica,logo abaixo de um relato das tristes circunstâncias que haviam ocasionado a admissão de August naclínica,elaleu:
Autismo infantil, grave atraso no desenvolvimento mental. Inquieto. Fortemente traumatizado com a morte do pai. Exigeobservaçãoconstante.Difícildelidar.Trouxeumquebra-cabeça.Proibidodedesenhar!Comportamentocompulsivoedestrutivo.DecisãodopsicólogoForsberg,confirmadaporTL.
Abaixo,haviaoseguinte—enãohaviadúvidaquetinhasidoacrescentadodepois:
OprofessorCharlesEdelman,oinspetorBublanskieainspetoraModigfarãoumavisitaaomeninonaquarta-feira,22denovembro,às10h.TLestarápresente.Desenhosobmonitoração.
Emaisabaixo:
Mudança de local. TL e o professor Edelman levarão o menino para sua mãe, Hanna Balder, na Torsgatan. O inspetorBublanskieainspetoraModigosencontrarãolá.Acreditamqueogarotodesenhamelhoremseuambientefamiliar.
Lisbethfezumarápidapesquisa,parasaberquemeraoprofessorCharlesEdelmane,quandoviuque
eleeraespecialistaemsíndromedesavant, entendeuoque iaacontecer.Elespareciamestaratrásdealgum tipo de testemunho através de um desenho. Senão, por que Bublanski e SonjaModig estariaminteressadosnosdesenhosdomenino?EporqueMikaelBlomkvistteriasidotãocautelosocomaquelapergunta?Porque,claro,nadadissopodiavazar.Oassassinonãopodiadescobrirqueomeninopossivelmente
seria capaz de fazer um desenho dele, portantoLisbeth decidiu verificar seTorkel Lindén havia sidocuidadoso com sua correspondência. Por sorte parecia tudo bem. Ele não tinha escrito nada sobre ahabilidade de desenhar domenino.Mas na noite anterior, às 23h10, ele havia recebido um e-mail doprofessorCharlesEdelman,comcópiaparaSonjaModigeJanBublanski.Porissoolocaldoencontrotinhasidomudado.CharlesEdelmanescreveu:
Olá,Torkel!Muito obrigadoporme receber em sua clínica.Ficomuito agradecido.Mas infelizmente terei que importuná-lo umpouco.
Acredito que as chances de obtermos bons resultados serão maiores se dermos a oportunidade ao menino de desenhar numambienteondeelesesintaseguro.Nãoqueeuestejacriticandoasuaclínica.Sóouçofalarcoisasboasdela.
Sósefornoinferno,pensouLisbeth,econtinuoualer:
Porissoeugostariadetransferiromeninoparaamãe,HannaBalder,naTorsgatan,amanhãdemanhã.Omotivoparaissopodemos encontrar na literatura especializada, que admite que a presençamaterna traz grandes benefícios para as criançassavants.Euagradeceriasevocêeomeninomeesperaremnaportadasuaclínica,às9h15.Comoémeucaminho,possopegarvocês.Assimteremosachancedeconversarumpoucocomocolegastambém.
Atenciosamente,CharlesEdelman
Bublanski respondeu ao e-mail às 7h01 e Modig às 7h14. Havia bons motivos para confiar no
professor Edelman e seguir sua recomendação, eles escreveram. Às 7h57, Torkel Lindén tinhaconfirmado que estaria na frente da clínica com omenino, aguardando o professor Edelman. LisbethSalander continuou sentada por alguns instantes, absorvida por seus pensamentos. Depois foi até acozinhaepegouumasbolachasvelhasnoarmário,enquantoadmiravaSlusseneoRiddarfjärden.Então,olugardoencontrohaviamudado,pensou.
Emvezdedesenharnaclínica,omeninoiaserlevadoparaamãe,paraasuacasa.Isso“trazgrandesbenefícios”, Edelman escreveu, “a presençamaterna traz grandes benefícios”. Alguma coisa na frasedesagradouaLisbeth.Pareciaumjeitomeioantigodefalar,nãoparecia?Eocomeçonãodeixavapormenos:“Omotivoparaissopodemosencontrarnaliteraturaespecializada…”.Soavaultrapassado,estavamalescrito.Ela já tinhavistopessoasde formaçãosuperiorescreverem
muitomal,etambémelanãofaziaamenorideiadecomoCharlesEdelmanseexpressava,masseráqueum neurologista tão capacitado e renomado como ele sentiria a necessidade de convencer alguém seapoiandonaliteraturaespecializada?Onaturalnãoseriaeletersemostradomaisseguro?LisbethfoiatéocomputadoreleuporaltoalgunstrabalhosdeEdelmanqueachounainternet.Notou,
sim,umapequenapontadevaidadeemseus textos,atémesmonaspassagensmenosautorais,masnãoencontrou trechos descuidados nem raciocínios ingênuos. Ao contrário, o professor era bem esperto,entãoelavoltouaose-mailspara tentardescobrirqueservidorSMPT elesestavamusando,e levouumchoque. O nome do servidor era Birdino, desconhecido para Lisbeth, e não deveria ser. Enviou umasequência de comandos, para tentar entender o que exatamente ele era, e um segundo depois tudo seesclareceu. O servidor usava a retransmissão aberta de e-mail, por isso o remetente podia mandarmensagensdoendereçoeletrônicoquequisesse.Ou seja, o e-mail de Edelman era falso e as cópias dele enviadas a Bublanski eModig parte da
encenação, pois tinham sido bloqueadas antes de saíremdo servidor. Portanto ela já tinha certeza: asrespostasdosdoispoliciaisaprovandoamudançadelocalnadamaiseraqueumamontagem,eissonãoerapoucacoisa,Lisbethconcluiunahora.Significavaquealguém,alémdequerersefazerpassarpeloprofessorEdelman,desejava,acimadetudo,omeninoforadaclínica.Alguémqueriaogarotonarua,desprotegido,paraque…oquê?Pretendiamsequestrá-looumatá-lo?
Lisbetholhou as horas no relógio. Já eramcincopara as nove.Dali a vinteminutos,TorkelLindén eAugust Balder sairiam da clínica para esperar alguém que não era Charles Edelman e que não tinhanenhumaboaintenção.Oqueeladeviafazer?Ligarparaapolícia?Lisbethnãoeraotipodepessoaquechamavaapolícia.Relutavaemfazerisso
principalmentequandohaviariscodevazamentos.FoiparaapáginadaclínicaOdenepegouotelefonedeTorkelLindén.Ligou,masnãopassoudamesadasecretária,quedissequeeleestavanumareunião.Entãodescobriuonúmerodocelulardele,ligou,mascaiunacaixapostal.Elasoltouumpalavrãoemvozaltaemandouumamensagemde textoparaocelulardeleeoutraparaoe-mail,dizendoparaele,emhipótesealguma,irparaaruacomomenino,qualquerquefosseomotivo.AssinouWasp.Nãoconseguiupensaremnadamelhor.Em seguida pôs sua jaqueta de couro e saiu.Mas voltou imediatamente ao apartamento, pegou seu
notebookcomoarquivocriptografado,suapistola,umaBeretta92,ecolocoutudonasuabolsapretadaacademia. Saiu depressa, pensando se pegava seu carro todo empoeirado na garagem, uma BMW M6conversível, ou um táxi. Decidiu-se pelo táxi, achando que ia mais rápido.Mas logo se arrependeu.Primeiro demorou para achar um e, quando finalmente conseguiu um táxi livre, ficou evidente que omovimentodahoradorushaindanãohaviadiminuído.O trânsito seguia lento e na Ponte Central estava tudo parado. Teria havido algum acidente? Tudo
caminhava tãodevagar,comexceçãodo tempo,quevoava.Logo jáeramnoveecinco,depoisnovee
dez.Elatinhapressa,muitapressa,etalvezjáfossetardedemais.OmaisprováveléqueTorkelLindéneogarototivessemidoparaaSveavägenumpoucoantesdahoraeoassassino,ouquemquerquefosse,jáhouvesseatacadoosdois.TelefonouparaLindéndenovo.Ouviuo sinal de chamadaváriasvezes,mas elenão atendeue ela
praguejououtravez.EntãopensouemMikaelBlomkvist.Faziaséculosqueelanãofalavacomele,masagora ia falar. Ligou e ele atendeu aparentemente demau humor. Só depois de perceber que era ela,Mikaelseanimoueexclamou:—Évocê,Lisbeth?—Fiquequietoeescute!Mikaelestavanaredação,naGötgatan,depéssimohumor,enãoapenasporterdormidomaldenovo.
EraporcausadaTT.Aagênciadenotícias,quenormalmenteatuavadeformaséria,correta,semapelarpara sensacionalismos, tinha divulgado uma informação que, resumidamente, dizia queMikael estavasabotando a investigação de um homicídio e ocultando informações decisivas da polícia porquepretendiapublicá-lasnaMillennium.OobjetivodeMikael,deacordocomaTT,erasalvararevistadeumcolapsofinanceiroerecuperar
sua própria reputação como jornalista, que estava “arruinada”.Mikael ficou sabendo que a notícia iasair,poisnanoiteanteriortinhatidoumalongaconversacomseuautor,HaraldWallin.Masnãoimaginouque o resultado fosse ser tão devastador, principalmente porque tudo não passava de insinuaçõesestúpidaseacusaçõessemfundamento.ApesardissoHaraldWallinhaviaescritoumartigoquepareciaisentoeconvincente.Estavaclaroque
elecontavacomboasfontestantonogrupoSernercomonapolícia.Otítulonãopodiasermaisdanoso:“ProcuradorcriticaBlomkvist”,eoartigodavamuitamargemparaMikaelsedefender.Anotíciaemsinem teria feito um estrago tão grande.Mas quem quer que fosse o seu inimigo, ele tinha plantado ahistória sabendomuito bem como funcionava a lógica da imprensa. Se uma agência séria como a TTdivulgaumanotíciadaquela,issonãosóalegitimaparatodomundocomoabreespaçoparaqueveículosmenossériosacompanhemaonda.Issocomoqueosautorizaabatermaisforte.SeaTTrosna,osjornaisdamanhãsedãoodireitode
rugiregritar.EsseéumvelhoprincípiobásicodojornalismoeexplicaporqueMikaelacordouvendonainternet manchetes como “Blomkvist sabota investigação de assassinato” e “Blomkvist quer salvar arevista edeixa assassino solto”.Os jornais impressos adorampôr aspas emsuasmanchetes.Masportodapartea impressãoaindaeraqueumanovaverdadeestavasendoservidanocafédamanhã,eumcolunista chamado Gustav Lund, que alegou estar farto de tanta hipocrisia, tinha escrito: “MikaelBlomkvist, que sempre quis ser melhor que todos nós, agora se revela o maior cínico de todos ostempos”.—Tomara que a gente agora não comece a receber intimação de todos os lados—disseChrister
Malm,designereumdossóciosdarevista,bempertodeMikael,mascandonervosamenteseuchiclete.—TomaraqueelesnãochamemaMarinhadeGuerra—acrescentouMikael.—Oquê?
—Foisóumapiada.—Euentendi.Masnãoestougostandodesseclimatodo—disseChrister.—Ninguémgosta.Masomelhorafazerérangerosdentesecontinuartrabalhandocomosempre.—Oseutelefoneestávibrando.—Elesempreestávibrando.—Nãoseriabomatender,antesqueelesvenhamcomalgumacoisapior?—Claro,claro—grunhiuMikael,atendendocomumavoznãomuitoamistosa.Era uma garota. Ele achou que conhecia a voz, mas como estava esperando algo completamente
diferente,nãoaidentificou.—Quemé?—perguntou.—Salander—avozrespondeu,eaoouvirissoeleabriuumsorrisoenorme.—Évocê,Lisbeth?—Fiquequietoeescute!—eladisse,efoiissoqueelefez.Otrânsitohaviamelhorado.Lisbetheomotoristado táxi,umjovemiraquianochamadoAhmedque
tinha visto a guerra de perto e perdera a mãe e dois irmãos em ataques terroristas, entraram naSveavägen,passandopelasaladeconcertoKonserthusetàesquerda.Lisbeth,quenãogostavadeficaralisentadapassivamentecomoumapassageira,envioumaisumamensagemde textoparaTorkelLindénetentoutelefonarparaalgumfuncionáriodaclínicaOden,afimdequeelefosseatéaruaavisarTorkel.Ninguématendeueelasoltououtropalavrão,torcendoparaqueMikaeltivessemaissorte.—Éalgumaemergência?—perguntouAhmed.—É—ela respondeu, e ao ouvir issoAhmedpassou pelo sinal vermelho, arrancando um sorriso
rápidodeLisbeth.Emseguida,elaseconcentrouemcadametroqueeles iampercorrendoemaisàfrente,àesquerda,
vislumbrouaFaculdadedeEconomiaeabibliotecaestadual.Nãofaltavamuitoagoraeelacomeçouaconferir a numeração do lado direito da rua, avistou a clínica e viu que não havia ninguémmorto nacalçada.Eramaisumdiasombriodenovembro,nadamaisqueisso,easpessoasseguiamemdireçãoaotrabalho.Masespereumpouco…LisbethjogoualgumascentenasdecoroasparaAhmedeolhou,maisadiante,paraumacercavivadooutroladodarua.Umhomemdeconstituiçãoforte,gorrodelãeóculosescurosestavaaliparado,olhandointensamente
paraaportadaclínica,bememfrenteaele,dooutroladodarua.Sualinguagemcorporaleraesquisita.Nãoseviaamãodireitadele.Obraço,porém,estavarígidoepreparado.Lisbetholhouparaaentradadaclínicadenovoe,atéondeconseguiuverdasuaposiçãomeiodiagonal,notouaportaseabrindo.Elaseabriamuitodevagar,comoseapessoaqueiasairestivesseumpoucoemdúvidaoucomosea
porta fosse muito pesada. Lisbeth gritou para Ahmed parar o táxi. Então ela saltou do carro emmovimento,enquantoohomemdooutroladodaruaerguiaamãodireitaeapontavaumapistolacommiratelescópicaparaaportaqueseabriaaospoucos.
17.22DENOVEMBRO
OhomemquediziasechamarJanHoltsernãoestavagostandonemumpoucodasituação.Olocaleraabertodemaiseeraahoraerradadodia.Haviamuitagentepassandoe,apesardeele ter feitooquepodiaparaesconderorosto,estavadesconfortávelàluzdodia,incomodadocomaspessoascirculandoatrásdelenoparquee,maisdoquenunca,sentiuoquantoodiavamatarcrianças.Masascoisasestavamdaquelejeito,efoiobrigadoareconhecerqueelemesmoeraoresponsávelpor
aquelasituação.Haviasubestimadoogarotoeagoraprecisavacorrigirseuerrosemficartorcendoporummilagre.Ia
apenas se concentrarno trabalhoe executá-locom todooprofissionalismoqueele sabiaque tinha, e,acima de tudo, não pensar em Olga e muito menos se lembrar daquele olhar vazio que o haviasurpreendidonoquartodeBalder.PrecisavaseconcentrarnaportadooutroladodaruaeemsuapistolaRemington,escondidaemseu
casaco,parasacá-laaqualquer instante.Porquenãoestavaacontecendonada?Sentiuabocaseca.Oventoestavacortanteegelado.Havianevenacalçadaenarua.Eleapertoucommaisforçaocabodapistolaeolhouseurelógio.Viuqueeram9h16edepois9h17.Ninguém tinhasaídodaclínicaaindaeeleesbravejoubaixinho:
será que alguma coisa havia dado errado? Afinal, sua única garantia era a palavra de Jurij. Masnormalmenteelabastava.Jurijeraextraordináriocomcomputadoresenanoitepassadatinhamergulhadonotrabalho,enviandoe-mailsfalsosedescobrindoolinguajarcorretocomaajudadeseuscontatosnaSuécia, enquanto Jan seenvolveucoma suaparte, estudando fotografiasdo local, escolhendoarmae,acima de tudo, preparando o carro de fuga que Dennis Wilton, do Moto Clube de Svavelsjö, tinhaalugadoparaelessobumnomefalsoequeagoraestavaapostosaalgunsquarteirõesdali,comJurijaovolante.Jan sentiu umamovimentação atrás de si e seu corpo ficou alerta.Mas eram só dois rapazes que
passarammuitopróximodele.Notouquea ruaestava ficandomaismovimentadapertodeondeeleseencontrava e não gostou daquilo. Seu desconforto com a situação só aumentava. Ouviu um cachorrolatindoàdistânciaesentiuocheirodealgumacoisafrita,talvezcomidadoMcDonald’s.Então…enfimeleviu,portrásdaportadevidrodooutroladodarua,umhomembaixodecasacocinza,aoladodeummeninodescabeladodejaquetavermelha.Janfezosinaldacruzcomamãoesquerda,comosempre,eencaixouodedonogatilhodaarma.Mas…oqueestavaacontecendo?Aporta não abriu.O homematrás da porta de vidro hesitou e olhou para o seu celular.Vamos lá,
pensou Jan, abra essa porta! Ah, finalmente. Muito, muito devagar, a porta foi se abrindo e elescomeçaramasair.Janergueuapistola,mirounorostodomeninopelamiratelescópica,maisumavezviuaquelesolhosvaziosede repente sentiuuma inesperadaeestranhaondadeviolência.De repentequismuitomatarogaroto.Derepentequismuitoapagaraqueleolharvazioparasempre.Masemseguidaalgoaconteceu.Uma jovem veio correndo sabe-se lá de onde, se jogou em cima do menino, Jan atirou e acertou
alguémoualgumacoisa.Disparoudenovoedenovo.Comoumrelâmpago,omeninoeajovemtinhamroladoparatrásdeumcarro.JanHoltserprendeuarespiração,olhouparaosdoisladoseatravessouarua,decidido.Destaveznãoiriafalhar.TorkelLindéntinhaumapéssimarelaçãocomtelefones.AocontráriodeSaga,suamulher,quesempre
corriaparaatenderas ligaçõesnaesperançadequeelasfossemlhe trazeraoportunidadedeumnovotrabalho,eleseincomodavaquandootelefonetocava,eissoclaramentetinhaavercomaquantidadedereclamaçõesquerecebia.Eleeaclínicaeramalvosconstantesdequeixas,masTorkelLindénachava issoumaconsequência
natural do tipo de negócio que ele conduzia. A Oden era uma clínica de emergências psiquiátricas,portantoasemoçõestendiamaseexaltar.Porémeletambémsabiaquealgumasreclamaçõeseramjustas.Elehaviaidolongedemaiscomseucortedecustose,parafugirdaquilotudo,devezemquandoviajavapara a floresta, deixando seus funcionários à frente da clínica. Em compensação, ele também recebiaaplausosporseutrabalhoe,recentemente,deninguémmenosqueoprofessorEdelman.Noinício,oprofessoroirritou.Nãogostavaqueestranhossemetessemnassuasatividades,masoe-
mail tão elogioso daquela manhã o tinha desarmado, e quem sabe ele até conseguisse o apoio doprofessorparaqueomeninopermanecessenaclínicapormaisalgumtempo?Seissoacontecesse,seriacomoumafagulhadefelicidadenavidadele,emboranãosoubesseporquê.Eletinhaohábitodemanterdistânciadascriançasinternadas.Mas havia algummistério emAugust Balder que o atraía e desde o início tinha se irritado com a
polícia e suas exigências. Queria August só para si, talvez esperasse absorver um pouco do climaenigmáticoqueenvolviaomeninooupelomenosdecifraraquelassequênciasintermináveisdenúmerosqueelehaviarabiscadonasrevistasinfantisdehistóriasemquadrinhosdasaladeesperadaclínica.Masnãoeraumacoisafácil.AugustBalderparecianãogostardenenhumtipodecontatoeagorasenegavaasair para a rua comele.Denovo estava semostrandodecididamente contrário a essa ideia, eTorkelprecisouempurrá-loparaquesemexesse.—Vamos,ande—eleresmungou.Seutelefonetocou.Alguémestavaligandootempotodoparaele.Mas Torkel nem se incomodou em atender. Devia ser alguma coisa sem importância ou outra
reclamação.Jápróximoàporta,resolveudarumaolhadanoseucelular.Haviaumaporçãodemensagensdetextodeumnúmeronãoidentificado,dizendoumacoisaestranha,queeleachouquefosseumtroteouuma brincadeira. Todas diziam para ele não sair da clínica. Para ele não ir para a rua em hipótese
nenhuma.Ele não viu sentido nenhum naquilo, além disso August estava aproveitando para escapar. Torkel
pegoucomfirmezanobraçodogaroto,abriuaportacomalgumahesitaçãoeempurrouomeninoparafora. Tudo estava normal. Pessoas passavam por ali como se nada estivesse acontecendo nem fosseacontecer,eelecomeçouapensarnasmensagensquehaviarecebido,masantesqueconseguisseconcluirseus pensamentos alguém veio correndo do lado esquerdo da rua e se jogou sobre o menino. Nesseinstante,eleouviuumtiro.Torkel percebeu que estava correndo perigo, olhou aterrorizado para o outro lado da rua e viu um
homemaltoemusculosoatravessandoaSveavägencorrendo,nadireçãodele.Eoqueeraaquiloqueeletinhanamão?Umaarma?Semnemse lembrardeAugust,Torkel tentouvoltarparaaclínicae,porum instante, achouque ia
conseguir.MasTorkelLindénnãofezissodeformasegura.Lisbethtinhaagidoporinstintoquandosejogousobreomeninoparaprotegê-lo.Haviasemachucado
aocairnacalçada,oupelomenosachouquesim,poisseuombroeseupeitodoíamdemais.Masagoranãotinhatempoparaficarpensandonisso.Agarradaàcriança,seescondeucomelaatrásdeumcarro,onde os dois ficaram respirando pesadamente enquanto alguém tentava atirar neles. Em seguida tudoficouquieto,preocupantementequieto,equandoLisbethdeuumaolhadanaruaporbaixodocarro,viuaspernasdoatirador.Pernasfortesatravessandoaruacomenormerapidez,eporuminstanteelapensouempegarsuaBerettanasacolaeatirarnosujeito.Maspercebeuqueprovavelmentenãoiatertempoparafazerisso.NesseinstanteviuumVolvogrande
se aproximando devagar e não pensou duas vezes. Agarrou com força o menino e, numa corridadesajeitada, avançou em direção ao carro, abriu a porta de trás com violência e se atirou dentro doveículodesconhecidocomomenino.—Acelere!Rápido!—gritou,vendoobancoseencherdeumsanguequeelanãosabiaseeradelaou
dogaroto.
***Jacob Charro tinha vinte e dois anos e era o feliz proprietário de um Volvo XC60, adquirido em
prestações,tendoseupaicomofiador.EleestavaacaminhodeUppsala,ondeiaalmoçarcomseustioseprimos,umencontroaguardadocommuitaexpectativa.JacobnãoviaahoradecontaraelesquehaviaconseguidoumlugarnotimeprincipaldoSyrianskaFutebolClube.Orádio tocava“Wakemeup”,deAvicii,eJacobacompanhavao ritmodamúsica tamborilandono
volante, enquantopassava em frente àKonserthuset e àFaculdadedeEconomia.Algumacoisa estavaacontecendomais adiante. Pessoas corriam de um lado para o outro. Um homem gritava e os carrosestavamdesviandodealgo,entãoelediminuiuavelocidade,massemsepreocuparmuito.Sefosseumacidente,elepoderiaajudar.JacobCharrosonhavaemsetornarumheróidanoiteparaodia.Masdestavezficoucomumpoucodemedo,talvezporcausadohomemqueatravessouaruacorrendo
daesquerdaparaadireitaequepareciaumsoldadoemcombate.Haviaalgoassustadoramenteselvagemnamovimentaçãodele,eJacobjáiaafundaropénoaceleradorquandosentiuaportadetrásdocarroseabrircomviolência.Alguémestavaentrandoegritandoalgumacoisaqueelenãoentendeu.Talvezfosseumoutroidioma.Masapessoa—eraumajovemcomumacriança—gritoudenovo:—Acelere!Rápido!Por um instante ele hesitou. Quem eram aquelas pessoas? Talvez quisessem assaltá-lo e levar seu
carro.Nãoconseguiapensarcomclareza.Quesituaçãomaissurreal.Masemseguidanãoteveescolhasenão agir. O vidro traseiro foi estraçalhado. Alguém estava atirando neles, portanto Jacob aceleroucomoum loucoe,comocoraçãobatendodescompassado,atravessouosinalvermelhodocruzamentocomaOdengatan.—Oqueéisso?—gritou.—Oqueestáacontecendo?—Caleaboca!—agarotarespondeucomagressividade,epeloretrovisoreleaviuexaminandocom
agilidadeumgarotinhodeolhosmuito abertos e assustados, commovimentos experientes comoosdeumaenfermeira,esóentãoelepercebeuquenãohaviaapenascacosdevidroespalhadospelobancodocarro.Haviasanguetambém.—Elefoiatingido?—Eunãosei.Apenasdirija,sigaemfrente.Não,espere,vireàesquerdaali…Aqui!— Tudo bem, tudo bem— ele disse, aterrorizado, pegando com dificuldade a faixa esquerda da
VanadisvägeneemseguidaentrandoemaltavelocidadenaVasastan,enquantopensavaseestariamsendoperseguidosousealguémiaatirarnelesnovamente.Eleabaixouacabeçaemdireçãoaovolanteesentiuoventoentrandopelovidrotraseiroquebrado.
Emquemerdaelehavia semetidoequemera aquelagarota?Olhoupelo retrovisor.Ela tinhacabelopreto,piercingseumolharraivoso,eporummomentoJacobteveasensaçãodequeparaelaeracomoseelenãoestivesseali.Mas,emseguida,elamurmuroualgocomumtomdevozquasecontente.—Notíciasboas?—eleperguntou.Elanão respondeu.Emvezdisso, tirou sua jaquetade couro, depoispuxoua camisetabrancapara
cimae…caramba!Elaaarrancoucomumpuxãorepentinoeficoualicompletamentenuadacinturaparacima, semsutiãnemnada,epor instantes Jacob ficouolhandoperplexoparaos seiosexpostosdelaeprincipalmente para o sangue que escorria sobre eles como uma pequena cascata descendo para oabdômeneacalçajeansdela.Agarotatinhasidoatingidalogoabaixodoombro,pertodocoração,esangravamuito,esóentãoele
entendeuqueelahaviatiradoacamisetaparaestancarosangue.Ajovemcontinuouajeitandoacamisetasobreoferimento,apertandobem,edepoisvoltouavestirajaquetadecouroporcima,eseuararroganteeraagoraumtantoridículoporcausadeumpoucodesanguequehaviaemsuatestaenabochecha,comoseelativessefeitoaliumapinturadeguerra.—Entãoanotíciaboaéquefoivocêquemlevoubalaenãoomenino—disseJacob.—Poraí—elarespondeu.—QuerqueeuteleveaohospitalKarolinska?—Não—elarespondeu.
Lisbeth havia descoberto um orifício de entrada e um de saída em seu ferimento.A bala devia ter
atravessadoseuombropela frente.Elasangravademaisesentiaadorse refletindodocoraçãoatéastêmporas.Masachavaquenenhumaartériatinhaserompido.Teriasidopior.Bem,pelomenosesperavaquenão,eolhouparatrásdenovo.Oassassinodeviaterumcarrodefugaaliperto.Masnomomentoeles não pareciam estar sendo seguidos. Com um pouco de sorte conseguiram escapar bem rápido,pensou,olhandoparaAugust.Eleestavasentadocomasmãoscruzadasnopeito,sebalançandoparaafrenteeparatrás,eLisbeth
achouquedeviafazeralgumacoisa.Resolveutiraroscacosdevidrodocabeloedaspernasdele,oquefezAugustseaquietar.MasLisbethnãosabiaseeraumbomsinal.Oolhardogarotoestavadistante,etambémparadoevazio,eelaassentiucomacabeçaparaele,comumardequeestavatudobem.Nãodeveterparecidomuitoconvincente.Sentia-seenjoada,tontaeacamisetacomaqualhaviaenvolvidooombrojáestavaencharcadadesangue.Seráqueiriaacabarperdendoaconsciência?Commedodequeissofosseacontecer,começoudepressaatentarcriaralgumplano,elogoumacoisaficouclara:apolícianão seria uma opção. A polícia havia deixado o garoto nas mãos de seu agressor e parecia não ternenhumcontroledasituação.OqueLisbethiafazerentão?Nãopodiacontinuarnessecarro.EletinhasidovistonaruadaclínicaOdennahoradostirosesua
janelaestilhaçadachamariamuitoaatenção.Precisavadarumjeitodeorapazlevá-laatéaFiskargatan,alipegariaseuBMW,registradoemnomedeIreneNesser,suaoutraidentidade.Masseráqueconseguiriadirigirnoestadoemqueestava?Sentia-sepéssima.—VáparaapontedeVästerbron!—ordenou.—Tudobem,tudobem—disseorapaznobancodomotorista.—Vocêtemalgumabebidaaqui?—Eutenhoumagarrafadeuísquequevoudarparaomeutio.—Medê—eladisse,epegouumagarrafadeGrant’s,abrindo-acomesforço.Lisbetharrancouabandagemimprovisadaederramoupartedouísquesobreoferimento,emseguida
tomouum,dois,trêsgrandesgolesejáiaoferecerabebidaaomenino,quandolheocorreuquetalveznãofosse uma boa ideia. Crianças não bebem uísque. Nem mesmo crianças em estado de choque. Seuraciocínioestavacomeçandoaficarconfuso.Eraissoqueestavaacontecendo?—Vocêvaiterquetiraracamisa—eladisseaorapaznobancodafrente.—Comoé?—Euprecisoenfaixaroombrocomumacamisalimpa.—Estábem,mas…—Semdiscussão.—Se eu vou te ajudar, você poderia pelomenosme dizer por que atiraram em vocês. Vocês são
criminosos?—Estoutentandoprotegerestegaroto,simplesassim.Temunsfilhosdaputaatrásdele.—Porquê?—Nãoédasuaconta.
—Entãoelenãoéseufilho.—Eunãooconheço.—Entãoporqueoestáajudando?Lisbethhesitou.—Porquetemosinimigosemcomum—elarespondeu,eaoouvir issoorapazcomeçouatirarseu
pulôverdegolaemVcomcertarelutânciaedificuldade,enquantocontrolavaocarroapenascomamãoesquerda.Emseguida,desabotoouacamisaeentregou-aaLisbeth,quecomeçouaenrolá-lacomcuidadoem
voltadoombro,enquantodavamaisumaolhadaemAugust.Ogarotoestavaimóvel,comoolharfixoemsuaspernasfinas,emaisumavezLisbethseperguntouoquedeviafazer.PodiamseescondernoapartamentodeladaFiskargatan.NinguémalémdeMikaelBlomkvistsabiada
existênciadoapartamentoeeraimpossívelencontrá-loemqualquerregistrodeimóveiscomoseunome.Maselanãoqueriacorrernenhumrisco.Emtempospassadostinhaficadoconhecidanopaístodocomomaluca,eesseinimigopareciaaltamentequalificadoparadesencavarinformações.NãoeranadaimpossívelquealguémativessereconhecidonaSveavägenequeapolíciajáestivesse
revirandotudoparaencontrá-la.Precisavacomurgênciadeumlugarnovoparaseesconder,umquenãopudesseserassociadoanenhumadesuas identidades,por issoprecisavadeajuda.Masdequem?DeHolger?Seuex-tutorHolgerPalmgrenjáhaviaserecuperadododerramecerebralquesofreraeagoramorava
numapartamentoemLiljeholmstorget.Holgereraaúnicapessoaqueaconheciadeverdade.Elesempreserialealaelaemqualquercircunstânciaefariatudoaseualcanceparaajudá-la.Maselejátinhaumaidadeavançadaeelanãoqueriapreocupá-lonemenvolvê-lonaquilo,sepudesseevitar.HaviasempreMikaelBlomkvist,claro,ecomelenãohavianenhumproblema.Mesmoassimnãotinha
certezasedeviaprocurá-lo—justamente,talvez,pornãohavernenhumproblemacomele.Mikaeleraumfilhodaputaexcelente,corretoehonestodemais,todasessasbobagens.Masquemerda…nãodavamuitoparaesconderaquilodele.Lisbethtelefonouparaele.Mikaelrespondeuimediatamenteepareciaassustado.—Oi,émuitobomouvirasuavoz.Oqueaconteceu?—Nãopossotecontaragora.—Vocêsdevemestarferidos.Hámanchasdesangueaqui.—Omeninoestábem.—Evocê?—Euestoubem.—Entãovocêestáferida.—Vocêvaiterqueesperar,Blomkvist.ElaolhouparaaruaondeestavameviuquejáhaviamchegadoàVästerbron.Eladisseaomotorista
docarro:—Parenopontodeônibus.—Vocêsvãodescer?—Vocêvaidescer.Vaimedarseutelefoneeesperarláforaeuterminarestaligação.Entendido?
—Claro,claro.Ele olhou assustado para ela, entregou-lhe o celular, parou o carro e desceu. Lisbeth continuou
conversando.—Oqueestáacontecendo?—perguntouMikael.—Nãohánadaparasepreocuparaqui.Euqueroqueapartirdeagoravocêusesomenteumcelular
Android,umSamsung,porexemplo.Vocêsnãotêmumdessesnaredação?—Temos.Achoqueháunsdoislá.—Ótimo.Depoisvá aoGooglePlay ebaixeo aplicativoRedphone e tambémoThreema,para as
mensagens.Precisamosdeumcanalseguroparanoscomunicar.—Certo.—Esevocêétãoburroquantoeuachoqueé,seporacasoprecisardaajudadealguémparafazer
isso,apessoadeveficarnoanonimato.Nãoqueroproblemas.—Claro.—Alémdisso…—Sim?—Sóuseo telefone emcasosde emergência.Toda anossa comunicaçãovai ser feita porum link
especialnoseucomputador.Porissovocêouapessoaquenãoéburraequevaiteajudardeveentraremwww.pgpi.orgebaixarosoftwaredecriptografiaparaosseuse-mails.Queroquevocêfaçaissoagoraedepois encontre umbomesconderijo paramime para omenino, um lugar que não tenha a ver comaMillenniumnemcomvocê,ememandeoendereçonume-mailcriptografado.—Lisbeth,asegurançadomeninonãoésuaobrigação.—Nãoconfionapolícia.—Entãonósvamosencontrarmaisalguém,umapessoaemquemvocêconfie.Omeninoéautista,tem
necessidadesespeciais,nãoachoquevocêdevaassumiraresponsabilidadeporele,principalmentesevocêestivercomumabala…—Vocêvaificarfalandomerdaouvaimeajudar?—Ajudarvocê,claro.— Ótimo. Dê uma olhada na pasta Lisbeth Salander daqui a cinco minutos. Vou deixar mais
informaçõeslá.Deletetudodepois.—Lisbeth,escute!Vocêprecisa irparaumhospitalveresseferimento.Dáparasentirpelasuavoz
que…Elatinhadesligadootelefoneechamadoorapaznopontodeônibus.Pegouseunotebookeentrouno
computadordeMikael.Láescreveu todasas instruções sobrecomocarregare instalaroprogramadecriptografia.Depois disse ao rapaz para levá-la atéMosebackeTorg.Apesar de ser arriscado, não sabia o que
maispoderiafazer.Aneblinavinhaencobrindomaisemaisacidade.MikaelBlomkvistpraguejouemvozbaixa.EleestavanaSveavägen,próximoaocorpoeaocordãode
isolamento que a polícia civil, a primeira a chegar ao local, estava montando. Depois do primeiro
telefonemadeLisbeth,elese lançounumaaçãofrenética.PegoudepressaumtáxiparaaSveavägene,duranteaviagem,feztudoquepodiaparaimpedirqueodiretordaclínicaeomeninofossemparaarua.Elehaviaconseguidofalarcomumafuncionáriadaclínica,BirgittaLindgren,queentãocorreuparao
saguão,mas já encontrando ali seu colega caído junto à porta, baleado na cabeça com um tiro fatal.QuandodezminutosdepoisMikaelchegou,BirgittaLindgrenestava foradesi,maselaeumamulher,UlrikaFranzén,queestavaacaminhodaeditoraAlbertBonniers,localizadamaisacimanamesmarua,aindaconseguiramrelataraMikaeldeformaapropriadaoquehaviaacontecido.PorissoMikaeljásabia,antesmesmodeotelefonetocarnovamente,queLisbethhaviasalvadoavida
deAugustBalder.Peloqueeleconseguiuentender,elaeogarotoagoraestavamnumcarrocujomotoristanãodeviaestarlámuitoanimadoemajudá-los,umavezqueseuprópriocarroforaatingidopelostiros.OsanguequeMikaeltinhavistonacalçadaenaruafoioquemaisohaviapreocupadoe,apesardeterficado um pouco mais tranquilo depois do telefonema dela, continuava profundamente preocupado.Lisbethnãopareceranadabemaotelefone,masaindaassim—oquenãoosurpreendianemumpouco—continuavamaisobstinadadoquenunca.Apesardeelaprovavelmenteestarferida,mostrava-sedeterminadaaescondereprotegeromenino,o
que era perfeitamente compreensível tendo em vista sua história de vida. Mas será que ele e aMillenniumdeveriamrealmenteajudá-lanisso?PormaiscorajosaeheroicaqueLisbethtivessesidonaSveavägen,sobopontodevistaestritamentelegalsuaatitudepoderiaserinterpretadacomosequestro.Elenãoiapoderajudá-la.Játinhaproblemasdesobracomaimprensaecomoprocurador.MassetratavadeLisbetheelejáhaviaprometidoaela.Claroqueiaajudá-la,mesmoqueErikanão
achasseconveniente,eaísóDeussabeoquepodiaacontecer.Entãorespiroufundoepegouseutelefone.Masnãotevetempodetelefonarparaninguém.Ouviuumavozalteradaeconhecidaàssuascostas.EraJan Bublanski. Jan vinha apressado pela calçada, acompanhado da inspetora Sonja Modig e de umhomemdeporteatlético,nacasadoscinquentaanos,quedeviaseroprofessorqueLisbethmencionaraaotelefone.—Ondeestáogaroto?—perguntouBublanski,ofegante.—ElesumiunumVolvovermelhoemdireçãoaonorte,alguémosalvou.—Quem?—Voucontaroque sei—disseMikael, aprincípio semsaberoquedeveriaeoquenãodeveria
dizer.—Masprimeiroprecisofazerumtelefonema.—Não,nadadisso,primeirovocêvaiconversarcomagente.Precisamosemitirumalertanacional.—Conversecomaquelamulherlá.OnomedelaéUlrikaFranzén.Elasabebemoqueaconteceu.Viu
tudoepodeatéfazerumadescriçãodoassaltante.Eusóchegueidezminutosdepois.—Eohomemquesalvouogaroto?— A mulher que salvou o garoto. Ulrika Franzén também pode descrevê-la. Agora, se me dão
licença…—Emprimeirolugar—disparouSonjaModigcomumafúriainesperada—,comoéquevocêsabia
quealgumacoisaiaaconteceraqui?Elesdisseramnorádioquevocêligouparaaemergênciadapolíciaantesmesmodostirosseremdisparados.—Eurecebiumadica.
—Dequem?MikaelrespiroufundoeolhouparaSonjacomfirmeza,maisdeterminadodoquenunca.—Apesarde todaamerdaqueos jornais andaramescrevendo, esperoquevocêsentendamqueeu
realmentedesejocolaborarcomapolíciadamelhorformaqueeupuder.—Eusempreconfieiemvocê,Mikael—disseSonja.—Maspelaprimeiravez,sinceramente,estou
começandoaterdúvidas.—Tudobem,respeitosuaopinião.Masnestecasovocêsprecisamrespeitarofatodequeeutambém
nãoconfioemvocês.Alguémnapolíciaestávazandoinformações.Vocêsaindanãosederamcontadisso,nãoé?Senãoistoaquinãoteriaacontecido—eledisse,apontandoparaocorpodeTorkelLindén.—Issoéverdade.Umacoisaterrível—admitiuBublanski.—Muitobem.Agoravoudarmeutelefonema—disseMikael,seafastandoumpoucodelesnarua
parapoderfalarsemserincomodado.Noentantoelenãotelefonouparaninguém.Mikaelconcluiuquejáerahoradelevarmuitoasérioa
questãodasegurança,portantoavisouBublanskieModigqueinfelizmenteprecisavairparaaredaçãonaquele instante,mas que, claro, estaria à disposição deles quando precisassem, e naquelemomento,surpreendendoasiprópria,Sonja,odetevepelobraço.—Primeirovocêvaiterquenoscontarcomoficousabendoquealgumacoisaiaaconteceraqui—ela
dissecomseveridade.—Infelizmentesouobrigadoainvocarodireitoqueeutenhodeprotegerminhasfontes—respondeu
Mikaelcomumsorrisoatormentado.Emseguida,acenouparaumtáxiepartiuparaaredaçãomergulhadoemseuspensamentos.Quandoa
Millenniumnecessitavadesuportetécnicoparaquestõesmaiscomplicadasnaáreadeinformática,elarecorria à Tech Source, empresa de consultoria formada por um grupo de garotas que prestava umserviço rápido e eficiente à redação.MasMikael não queria envolvê-las nesse caso. Lembrou-se deChrister Malm, que do editorial era o que mais conhecia esses assuntos, mas também achou melhordeixá-lodefora.EntãopensouemAndrei.Afinalorapazjáestavaenvolvidonaquelahistóriaetambémtinhagrandehabilidadecomcomputadores.Mikaeldecidiu falarcomeleeprometeua simesmo lutarpelacontrataçãodorapaz.Isso,claro,seeleeErikaconseguissemescapardaquelaenrascada.AmanhãdeErikatinhasidoumpesadeloantesmesmodequalquertiroserdisparadonaSveavägen,e
isso, naturalmente, por causa da notícia diabólica divulgada pela TT, que de certo modo podia serconsideradaumacontinuaçãodavelhacampanhadesferidacontraMikael.Maisumaveztodosaquelesratos invejosos e degenerados tinham deixado suas tocas para empestear Twitter, e-mails, fóruns dediscussãoetodasasmídiassociaiscomseuscomentáriosvenenosos,enaqueleinstanteaturbaracistatambémsejuntaraaeles,obviamenteporqueaMillenniumvinhase levantandocontra todaequalquerformadexenofobiaeracismohaviamuitosanos.Opiordetudoéqueesseclimadificultavaavidadetodosnaredação.Derepente,ninguémparecia
teramenorvontadededividiralgumainformaçãocomosjornalistasdaMillennium.Parapiorar,corriaoboatodequeoprocuradorRichardEkströmestavapreparandoumaordemdebuscaeapreensãona
redação.ErikaBergernãoacreditavanisso.Emitirumaaçãodebuscaeapreensãonosescritóriosdeumórgãodaimprensaeraumadecisãomuitoséria,principalmentequandoselevavaemcontaodireitoqueosjornalistastinhamdeprotegersuasfontes.Apesar disso ela concordava com Christer Malm que naquele momento, com aquele clima tão
desfavorável,atémesmoadvogadosepessoasnormalmentesensataspodiamacabartendoideiasidiotas,e Erika pensava numa maneira de responder à altura, quando Mikael entrou na redação. Para suasurpresa,elenãoquisfalarcomela.FoidiretoatéAndreiZandereolevouàsaladela.Depoisdealgunsminutoselafoiatélá.Quandoentrou,viuqueAndreipareciatensoemuitoconcentradoeErikaouviuapalavraPGP.Como
játinhafeitoumcursodetecnologiadainformação,elasabiaoquesignificava,eviuqueAndreifaziaanotaçõesemseubloco.Emseguida,semnemmesmolhedirigirumolhar,elesaiudasalaefoidiretoatéonotebookdeMikael,queestavanamesadelenaredaçãoaberta.—Oqueestáacontecendo?—elaperguntou.Mikael lhe contou tudo em voz baixa e o que ele disse teve um efeito entorpecedor nela. Ela não
conseguiaabsorveroqueestavaacontecendo.Mikaelprecisourepetirváriasvezes.—Vocêquerqueeuarranjeumesconderijoparaeles?—elaperguntou.—Desculpeenvolvê-lanissotudo,Erika.Masnãoconheçooutrapessoaquetenhamaisamigoscom
casasnocampoquevocê.—Nãosei,Mikael.Nãoseimesmo.—Nãopodemosdeixá-losnamão,Erika.Lisbethlevouumtiro.Asituaçãoégrave.—Seelalevouumtiro,deveriairparaohospital.—Elaserecusa.Querprotegeromeninoacimadetudo.—Paraqueelepossadesenharoassassinoempaz.—É.—Émuitaresponsabilidade,Mikael,emuitoarriscadotambém.Seaconteceralgumacoisa,vaicair
tudo em cimade nós, e isso poderá destruir a revista. Pelo queme consta, não prestamos serviço deproteçãoatestemunhas,nãoéesseonossonegócio.Issoéassuntodapolícia.Imaginequantoselementosimportantes podem surgir desses desenhos tanto para a investigação do caso como em termospsicológicos.Devehaveroutraformaderesolverisso.—Tenhocertezadequesim,senãoestivéssemoslidandocomLisbethSalander.—Sabe,àsvezesficodesacocheiodojeitocomovocêsempreadefende.—Sóestoutentandoserrealista.AsautoridadesjáfalharamfeiocomAugustBalder,puseramavida
deleemrisco,eseicomoissoenfureceLisbeth.—Enóséquetemosquenosadaptaraela?Éissoquevocêquerdizer?—Nãotemosescolha.Elaestáesperandoemalgumlugarporaí,enlouquecida,semterparaondeir.—LeveosdoisparaSandhamn,então.—ÉmuitofácilassociarLisbethcomigo.Seelesdescobriremqueelaestáenvolvida,vãoprocurá-la
diretonosmeusendereços.—Estácerto.—Estácertooquê?
—Estácerto,vouarrumarumlugar.—Elamalpodiaacreditarquetinhaditoisso.MaserasempreassimcomMikael:Erikanãoconseguiadizernãoaumpedidodele,eomesmoaconteciacomMikaelemrelaçãoaela.Elefariaqualquercoisaporela.—Beleza,Ricky.Onde?Erikatentoupensaremalgumacoisa,masnadalheocorreu.Nãoconseguiapensarnumsimplesnome,
numapessoa;foicomosederepenteelanãotivessemaisumarededecontatos.—Precisoquebrarumpoucoacabeça—disse.—Bem,façaissorápidoedepoispasseoendereçoeocaminhoaoAndrei.Elevaicuidardoresto.Erika sentiu necessidade de sair umpouco e desceu as escadas. Foi caminhandodaGötgatan até a
Medborgarplatsen com uma série de nomes passando pela sua cabeça,mas nenhum lhe parecia bom.Haviamuitacoisaemjogoeemcadanomequelheocorriaelaencontravaalgumacoisaerrada,oueraumdefeito,ouentãoelanãoqueriaexporapessoaàquelerisco,ouaborrecê-lacomumpedidodaqueles,eissotalvezporqueelamesmaestivessemuitoincomodadacomaquestão.Poroutrolado…eraavidadeumgarotinho,pessoas estavamatirandonele e elahaviaprometido aMikael.Precisavapensar emalgumacoisa.Asirenedeumcarrodepolíciadisparouemalgumlugardistante,eelaolhounadireçãodoparque,da
estaçãodemetrôemaisaofundoparaacúpuladamesquita.Umrapazpassouporela levandoalgunspapéiscomtantocuidado,quepareciaestarcarregandoalgosecreto,ederepente…GabriellaGrane.Nocomeçoonomea surpreendeu.Gabriellanão eraumaamiga tãopróxima.Alémdisso trabalhavanumlugar onde seria uma imprudência não cumprir a lei à risca. Portanto, não, era uma ideia maluca.Gabriellaarriscariaseuemprego,issoseelasequerchegasseapensarnapossibilidade.MesmoassimErikanãoconseguiatirá-ladacabeça.NãoerasóofatodeGabriellaserumapessoaboaeresponsável.Haviatambémumalembrançaque
teimavaemvoltar.Tinhasidonoúltimoverão,nasprimeirashorasdamanhã,outalvezatémesmoumpoucoantesdoamanhecer,depoisdeumafestanacasadecampodeGabriella,nailhadeIngarö,quandoelaeGabriellaestavamsentadasnumbalançonavaranda,olhandoparaaágua láembaixoatravésdeumaclareiraentreasárvores.“É aqui que eu voume esconder quando as hienas vierem atrás demim”, Erika havia dito sem na
verdadesaberaquetipodehienasereferia,masprovavelmenteestavaesgotadaesesentindovulnerávelnotrabalho,ealgonaquelacasaafaziavê-lacomoumbomrefúgio.Aconstruçãoficavanoaltodeumpequenopromontório,easárvoreseoterrenoinclinadoaprotegiam
decuriosos,eelaselembrouclaramentedeGabrielladizendoemtomdepromessa:“Seumdiavocêprecisarfugirdashienas,serámuitobem-vindaaqui,Erika.”Agoraelaselembrou
dissoeimaginousenãoseriaomomentodeprocurarGabriella.Talvezfossemuitodescaramentopediracasaemprestada.MasassimmesmoErikaresolveufazeruma
tentativa. Procurou o número de Gabriella em seus contatos e voltou à redação para telefonar doaplicativoRedphonecriptografadoqueAndreihaviainstaladotambémemsualinha.
18.DIA22DENOVEMBRO
GabriellaGraneestava indoparaareuniãodeemergênciaqueteriacomHelenaKrafteogrupodetrabalhodaSäpo,paradiscutiremsobreoquehaviaocorridonaSveavägen,quandoseucelulartocoue,emboraestivesseirritada,outalvezporissomesmo,elaatendeunahora:—Sim?—ÉaErika.—Oi,Erika.Nãopossofalaragora.Vamosterqueconversardepois.—Eutenhoum…—continuouErika.MasGabriella já tinhadesligado—nãoerahorapara telefonemaspessoaiseelaentrounasalade
reuniõescomcaradequemestavadispostaaarrumarbrigapelomenormotivo.Umainformaçãocrucialhaviavazadoe,emconsequênciadisso,umapessoahaviamorridoeoutra talvezestivessegravementeferida,eoqueelamaisqueriaagoraeramandartodosparaoinferno.Elestinhamsidotãodescuidadoseávidospornovasinformaçõesquehaviamperdidoacabeça.Porunstrintasegundos,elanãoouviuumapalavradoqueogrupodizia.Apenas ficouali sentada, fervendode raiva.Masentãoseusouvidosseaguçaram.AlguémestavadizendoqueMikaelBlomkvist tinha ligadoparaonúmerodeemergênciadapolícia
antesmesmodeos tirosseremdisparadosnaSveavägen.Defatoera tudomuitoestranho,agoraErikaBergerhaviatelefonado,eelanãocostumavaligaràtoa,aindamaisemhoráriodetrabalho.Talvezelativessealgoimportanteouurgenteparadizer.Gabriellaselevantouepediulicença.—Gabriella,achomuitoimportantevocêficareescutaristo—disseHelenaKraftnumtomincisivoe
queelanãocostumavausarcomGabriella.—Precisofazerumtelefonema—elarespondeu,derepentesemamenorpreocupaçãoemagradarà
chefe.—Quetipodetelefonema?—Umtelefonema—eladisse,saindodasalaeindodiretoaseuescritório,ondeligouimediatamente
paraErikaBerger.ErikapediuqueGabrielladesligasseetelefonasseparaoseuSamsung.Quandovoltouaouviravoz
da amiga, percebeu algo diferente nela, que seu jeito de falar sempre entusiasmado e amistoso haviadesaparecido.Gabriellapareciapreocupadaetensa,comosejásuspeitassequeErikaialhedizeralgo
importante.—Oi—disseGabriella.—Aindaestáumacorreriaaqui.MastemavercomoAugustBalder?Erikasentiuumsúbitodesconfortoedisse:—Comoéquevocêsabe?—EstoutrabalhandonainvestigaçãodocasoeacabeidesaberqueoMikael,dealgummodo,recebeu
umadicadoqueiaacontecernaSveavägen.—Entãovocêsjásouberamdisso?—Já.Eagora,claro,queremossabercomofoiqueissoaconteceu.—Desculpe,masnãopossorevelarasnossasfontes.—Tudobem.Masoquevocêqueria?Porquemetelefonou?Erikafechouosolhoserespiroufundo.Comopôdetersidotãoidiota?—Achoquevouterqueprocuraroutrapessoa—disse.—Nãoqueroenvolvervocênumconflitode
interesses.—Eu tirode letraqualquerconflitode interesses,Erika.Oquenãodáparaaceitaréquevocême
escondaalgumainformação.Essecasoémaisimportanteparamimdoquevocêimagina.—Émesmo?—Sim,muito importante,porqueeutambémrecebiumadica.FiqueisabendoqueavidadeBalder
corriaumsérioriscoe,mesmoassim,nãoconseguievitarqueomatassem.Vouserobrigadaavivercomessepesoorestodavida.Portanto,nãomeescondanada.—Infelizmentevouprecisaresconder,Gabriella.Nãoquerocriarproblemasparavocê.—EuviMikaelemSaltsjöbadennanoitedocrime.—Elenãocomentoucomigo.—Acheidesnecessáriomeidentificar.—Fazsentido.—Poderíamosnosajudarnessaconfusãotoda.—Pareceumaboaideia.VoupedirqueMikaelteliguemaistarde.Agoraprecisocontinuartocando
istoaqui.—Euseitãobemquantovocêqueestáhavendoumvazamentodeinformaçõesnapolícia.Eentendoa
necessidade,aestaaltura,deformarmosalgumasaliançasquenormalmentenãoseriamcomuns.—Claro.Mas,desculpe,precisomesmocorreraqui.— Está bem — disse Gabriella, decepcionada. — Vou fazer de conta que esta conversa nunca
aconteceu.Boasorteaí.—Obrigada—disseErika,evoltouaprocuraroutrapessoaentreosseuscontatos.Gabriellavoltouàreuniãocomacabeçarodandoempensamentos.OqueseráqueErikaqueria?Ela
nãohavia entendidomuitobeme, aindaque fizesseumavaga ideia,não tinha tempode se concentrarnissoagora.Assimquepisounasaladereuniões,todossecalarameolharamparaela.—Oqueaconteceu?—perguntouHelenaKraft.—Assuntoparticular.
—Evocêprecisavatratardissoagora…—Sim,euprecisavatratardissoagora.Ondevocêsestavam?—EstávamosfalandodoqueaconteceunaSveavägen,e,comoeu jádisse,aindanão temosmuitas
informações—lembrouolíderdogrupo,RagnarOlofsson.—Porenquantoasituaçãoestácaótica.EtudoindicaqueestamosperdendonossoinformantenogrupodeBublanski.Oinspetorparecequeficouparanoicodepoisdoqueaconteceu.—Nãosepodecensurá-loporisso—observouGabriella,rude.—Bem…é, talvez, tambémestávamos falandosobre isso.Claroquenãovamossossegarenquanto
nãodescobrirmoscomooatiradorsabiaqueogarotoestavainternandonaclínicaequeestarianaruabemnaquela hora.Desnecessário dizer quenão iremosmedir esforçospara resolver esse caso.Alémdisso, preciso ressaltar que o vazamento pode não ter vindo necessariamente de dentro da polícia.Ainformação parece que estava circulando à vontade pela clínica, já tinha chegado àmãe do garoto eàquele noivo dela nada confiável, LasseWestman, e também à redação daMillennium. E, claro, nãopodemosexcluirahipótesedeumataquehacker.Falodissodepois.Possocontinuaromeurelato?—Claro.—EstávamosdiscutindoopapeldeMikaelBlomkvistnessahistória,eestamosbastantepreocupados.
Comoelesoubequehaveriaumatentadoantesdostirosocorrerem?Naminhaopinião,oinformantedeledeve ser alguémpróximodospróprios criminosos, enesse casoentendoqueelenão temodireitodealegarsigiloprofissionalparanãorevelarasuafonte.Temosquesaberondeeleobteveainformação.—Principalmenteporqueeleparecedesesperadoedispostoafazerqualquercoisaparaconseguirum
furodereportagem—acrescentouointendenteMårtenNielsen.— Parece que o Mårten também tem fontes excelentes nos seus jornais de fofocas — debochou
Gabriella.—Nãonos jornaisde fofocas,querida.NaTT.Uma fonteque aténósdaSäpoconsultamosvezou
outra.—Essanotíciafoiplantadaeéumatentativadedifamação,vocêsabedissotantoquantoeu—rebateu
Gabriella.—EunãosabiaquevocêeratãodeslumbradapeloBlomkvist.—Idiota.—Paremcomisto!—gritouHelena.—Quebobageméessaagora?Prossiga,Ragnar.Oquemais
sabemossobreoqueaconteceu?—OsprimeirosachegaraolocalforamospoliciaisErikSandströmeTordLandgren—continuou
Ragnar Olofsson. — Por enquanto é deles que tenho recebido as informações. Eles chegaram láexatamenteàs9h24,quandotudojáhaviaacontecido.TorkelLindénestavamortocomumtiroatrásdacabeça, e o garoto, bem, realmente dele não sabemos. Algumas testemunhas afirmaram que o garototambémfoiatingido.Hámanchasdesanguenacalçadaenoasfalto.Masnadaestáconfirmado.OgarotodesapareceunumVolvovermelho.Pelomenostemosinformaçõessobreomodeloepartedaplaca.Embreveteremosonomedoproprietáriodocarro,éoqueeuespero.Gabriella viu que Helena Kraft anotava todos os detalhes, como costumava fazer quando elas se
reuniam.
—Masoqueaconteceuexatamente?—elaperguntou.—Segundodoisrapazes,estudantesdaFaculdadedeEconomiaqueestavamparadosdooutroladoda
rua,pareciaumacertodecontasentreduasganguesqueestavamatrásdogaroto,AugustBalder.—Nãoparecemuitoprovável…—Maspodeser—continuouRagnarOlofsson.—Oquetefazpensarisso?—perguntouHelenaKraft.—Haviaprofissionaisdosdoislados.Parecequeumhomemficouvigiandoaentradadaclínicajunto
à cerca viva do outro lado da rua, logo em frente ao parque.Quase tudo indica que ele também é ohomemquematouBalder.Nãoquealguémtenhavistoseurostomuitobem;eledeviaestarusandoalgumaespéciedemáscara.Masosrapazesrepararamqueessesuspeitosemovimentoudamesmamaneiraqueooutroprofissional,comamesmarapidezeeficiência.Sóquenosegundocasotemosumamulher.—Oquesabemossobreela?—Nãomuito.Acreditamosqueelaestavacomumajaquetapretadecouroecalçajeansescura.Era
jovem,cabelopreto, tinhaalgunspiercings,deacordocomodepoimentodealguém,meioroqueiraoupunk,deestaturabaixaeumtantoexplosiva.Surgiudonadaesejogouemcimadomeninoparaprotegê-lo.Todasastestemunhastêmcertezadequeelanãoeraumapedestre,alguémqueestavaaliporacaso.Ela chegou voando, como se tivesse sido treinada para fazer isso, ou então como se já estivesseacostumada comesse tipo de situação.Agiu comumadeterminação impressionante, disseram.Depoistemoso carro, oVolvo, e aqui osdepoimentos são conflitantes.Umapessoadissequeo carro estavapassando ali como qualquer outro, e que a mulher e o menino se jogaram para dentro dele. Outros,principalmenteosdoisuniversitários,acharamqueocarrofaziapartedaoperação.Sejacomofor,tudolevaacrerqueagoratemosumsequestro.—Equalseriaomotivo?—Nãomepergunte.—Entãoessamulhernãosósalvouomeninocomotambémolevoucomela—disseGabriella.—Parecequesim,nãoé?Senãojáteríamostidoalgumanotícia.—EcomoelachegouàSveavägen?—Aindanãosabemos.Masumatestemunha,umex-editordeumjornaldealgumsindicato,disseque
a mulher lhe pareceu familiar, talvez até bem conhecida por todos — continuou Ragnar Olofsson,acrescentandomaisalgumacoisa.Mas Gabriella já não escutava mais nada. Estava paralisada e pensando “Deve ser a filha de
Zalachenko, sópodesera filhadeZalachenko”, sabendomuitobemcomoera injustochamara jovemassim.Afilhanadatinhaavercomopai.Muitopelocontrário,haviaodiadoopai.Maseracomo“afilha de Zalachenko” queGabriella vinha se referindo a ela desde que, nãomuito tempo antes, tinhacomeçadoaler tudoquelhecaíssenasmãossobreocasoZalachenko,eenquantoRagnarOlofssonseocupavadesuasespeculações,Gabriellateveasensaçãodequeaspeçasestavamenfimseencaixando.JánodiaanteriorelaperceberaalgunspontosemcomumentreavelharededeZalachenkoeogrupoquese autodenominava Spiders. Mas deixara de lado esse raciocínio, por achar que estava imaginandocoisasimpossíveisdeacontecer,comocriminososcomplanodecarreira.Haviaumabismoentreserumcriminosocomum,dessesqueusamcoletedecouroefolheiamrevistas
pornôsna frentedoclubedemotoqueiros,e serumcriminosoenvolvidoempiratariacibernéticacomtecnologiadeponta.Mesmoassim,issotinhalheocorridoeelaatéjáhaviaseperguntadoseagarotaqueajudaraLinusBrandellarastrearasbrechasnoscomputadoresdeBaldernãoseriaafilhadeZalachenko.EmumarquivodaSäpo,estavaescritosobreamesmagarota:“hacker?especialistaemcomputadores?”.Mesmoquefosseumaperguntaaleatória,suscitadapelasreferênciassurpreendentementefavoráveisquea jovem recebera por seu trabalho naMilton Security, estava claro, pelo documento policial, que eladedicaramuitotempopesquisandosobreaorganizaçãocriminosadopai.Porém,oquemaislhechamavaaatençãoéquehaviaumaconhecidaligaçãoentreagarotaeMikael
Blomkvist.Gabriellanãosabiabemdequenaturezaeraessaligaçãoetambémnãodavamuitocréditoaoscomentáriosmaliciososdequetudoentreelesseresumiaachantagemouasexosadomasoquista.Aligaçãonoentantoexistia,etudoindicavaquetantoMikaelBlomkvistcomoagarota—cujadescriçãobatiacomadafilhadeZalachenkoeque,alémdisso,pareceufamiliaraumatestemunha—já tinhamconhecimento prévio dos tiros na Sveavägen antes de eles ocorrerem. Além disso, Gabriella haviarecebido um telefonema de Erika Berger querendo lhe contar algo importante sobre o incidente. Nãoeramcoincidênciasdemais?— Eu estava pensando numa coisa— disse Gabriella, talvez alto demais, interrompendo Ragnar
Olofsson.—Sim?—eledisse,irritado.—Euestavapensandose…—continuouela,ejáiaapresentarsuateoriaquandosedeucontadeuma
coisaqueafezhesitar.Nãoeranadaextraordinário.ErasóqueHelenaKraftcontinuavaanotandotudoqueRagnarOlofsson
tinha acabado de dizer. Claro que eramuito bom ter uma chefe tão interessada e comprometida,masGabriellaviunaquelacanetaquenãoparavaumsóinstantemaisdoquezeloexcessivo,oqueafezseperguntar seumchefedealtoescalão,cuja funçãoeraolharparaoconjunto,deveriavoltaraatençãodaquele jeito para cada detalhe, cadaminúcia, e, sem saber direito por quê,Gabriella começou a sesentirmuitodesconfortável.Claro,deviaserporqueelaestavaapontandoodedoparaalguémapoiadaembasestãoinconsistentes,
emboraarazãomaisprovávelfosseHelenaKraftterpercebidoqueestavasendoobservadaedesviadooolharembaraçada,ouatémesmoruborizada,portantoGabrielladecidiunão terminara fraseque tinhacomeçado.—Outalvez…—Oquê,Gabriella?—Não,nada—disse,sentindoderepenteumavontadeenormedesairdali,e,mesmosabendoque
nãoseriaapropriado,deixouasaladereuniõesoutravez,efoiparaobanheiro.Maistarde,elaselembrariadecomoficoulá,olhandoseuprópriorostonoespelho,tentandoentender
oqueexatamenteela tinhavistona salade reuniões.HelenaKrafthaviamesmose ruborizadoe, searespostaerasim,oquesignificavaaquilo?Provavelmentenada,concluiu,absolutamentenada,emesmoquetivessesidoumareaçãodevergonhaoudeculpa,poderiaserporqualquermotivo,poralgumacoisaconstrangedoraquetivessepassadopelacabeçadeHelenaKraftnaquelemomento,eGabriellaadmitiuque,naverdade,nãoaconheciatãobemassimparajulgá-la.Masdequalquerformaconheciaobastante
parasaberqueHelenajamaisporiaemriscoavidadeumacriançapordinheiroouporqualqueroutrotipodevantagem.Não,issoestavaforadequestão.AverdadeéqueGabriellatinhasetornadoparanoica,umatípicaespiãdesconfiadadetudo,quevia
traidores em toda parte, atémesmo em sua própria imagem refletida no espelho. “Idiota”,murmurou,sorrindoconstrangidaparasimesma,comoseparaafastar todasasbobagensdesuacabeçaevoltarapôrospésnochão.Masnãoadiantounada.Nesseinstanteachoutercaptadoumanovaverdadeemseusolhos.Tevea impressãodesermuitoparecidacomHelenaKraft.Asduaseraminteligentes,ambiciosase
gostavamdeouvirelogiosdeseussuperiores,oquenemsempreeraalgobom.Quandoseatuavanumaculturanociva,essetipodeinclinaçãopodiatransformarapessoaemalguémtambémnocivo,eseessanecessidadede reconhecimento fosse exageradaeramgrandesos riscosde acabar levandoapessoaaumacondutaimoral,gananciosa,acometerexcessosetransgressões,atémesmocrimes.Todo mundo deseja se encaixar e mostrar serviço, por isso há quem acabe fazendo coisas
inacreditavelmenteestúpidas,ederepenteelaseperguntou:seráquefoiissoqueaconteceuaqui?Seopróprio Hans Faste — pois tinha certeza de que era ele o informante da Säpo dentro do grupo deBublanski— vinha passando informações para eles por achar que era isso que se esperava que elefizesseetambémporquequeriaganharpontoscomaSäpo,eseRagnarOlofsson,pelomenosatéagora,tambémvinhamantendoHelenaKraft informadadecadadetalhe,umavezqueela era suachefe e elepretendiaimpressioná-la,quemsabeHelenaKraft,porsuavez,nãotivessepassadoalgumainformaçãoadiante porque também lhe interessavamostrar todo o seu profissionalismo e empenho para alguém?Mas, se era isso, para quem? Para o chefe da polícia nacional, para o governo, para um serviço deinteligência estrangeiro, e nesse caso o provável é que fosse americano ou britânico, que então teriarepassadopara…Gabriellainterrompeuessacadeiadehipótesesemaisumavezseperguntousenãoestariaimaginando
coisase,mesmoachandoquetalvezestivesse,continuoupensandoquenãodeviaconfiaremseugrupo.Claroqueelatambémqueriamostrartodaasuacapacidadeprofissional,sóquenãonecessariamentedojeitoquesefazianaSäpo.ElasóqueriaqueAugustBalderestivessebem,eemvezdeorostodeHelenaKraftsurgiràsuafrenteelaviuosolhosdeErikaBerger,oqueafezirdepressaàsuasalaepegarseuBlackphone,omesmoqueelausaraparamantercontatocomFransBalder.Erika tinha ido de novo para a rua falar ao telefone com tranquilidade e agora estava na frente da
livrariaSöder,naGötgatan,seperguntandoseteriafeitoalgumabesteira.MasGabriellaGranesustentarasuaposiçãodetalformaqueErikanãotevecomosepreservar,eessaeraadesvantagemdeteramigosinteligentes.Elesveemvocêpordentro.GabriellanãosótinhaentendidooqueErikaqueriaconversarcomelacomoaconvencidodequeela
se sentiamoralmente responsável e que jamais revelaria a localização do esconderijo, pormais queaquilo fosse conflitante com suas responsabilidades profissionais. Gabriella disse que se sentia emdívidanaquelahistóriaequeportantoqueriaajudare iriamandaraschavesdesuacasadecampodeIngaröporummensageiroeprovidenciarparaqueasinstruçõesdocaminhofossemenviadasatravésdo
linkcriptografadoqueAndreiZandercriarasegundoasinstruçõesdeLisbethSalander.Mais adiante, naGötgatan, ummendigo tropeçou e caiu, e dois sacos grandes e cheios de garrafas
recicláveisqueelecarregavaseespalharampelacalçada.Erikacorreuparaajudá-lo,masohomemjátinhase levantadoerecusouajuda.Erika lhedeuumsorriso tristeecontinuousuacaminhadadevoltaparaaredação.Quandoentrou,viuMikaelcomaraborrecidoeesgotado.Estavatododescabelado,acamisaparafora
dacalça.Faziatempoqueelanãooviatãoextenuado.Mesmoassim,nãosepreocupou.Quandoosolhosdele brilhavam daquele jeito, nada o detinha. Significava que ele havia entrado naquele estado deconcentraçãoabsolutadoqualsóemergiriadepoisdeterchegadoaofundodahistória.—Conseguiuacharumesconderijo?—eleperguntou.Elafezquesimcomacabeça.— Talvez seja melhor não dizer mais nada. Temos que manter isso no menor círculo de pessoas
possível.—Parecesensato.Masvamostorcerparaquesejaumasoluçãoprovisória.Nãomeagradaaideiade
Lisbethestartomandocontadogaroto.—Quemsabeumacabefazendobemaooutro…—Oquevocêdisseparaapolícia?—Muitopouco.—Achoquenãoéumahoramuitoboaparamanterascoisasembaixodopano.—Realmentenãoé.—TalvezLisbethsedisponhaafazeralgumadeclaração,paraaliviarumpoucoasuabarra.— Eu não quero pressioná-la agora. Estou preocupado com ela. Você pode pedir que o Andrei
pergunteaLisbethsenãodeveríamoslhemandarummédico?—Voufalarcomele.Sabe…—Oquê?—Estoucomeçandoaacharqueelaestáfazendoacoisacerta—disseErika.—Porqueestádizendoissoassimderepente?—Porqueeutambémtenhoasminhasfontes.Eestoucomasensaçãodequeapolícianãoéumlugar
particularmenteseguronestemomento—elarespondeu,dirigindo-secompassosdecididosparaamesadeAndreiZander.
19.NOITEDE22DENOVEMBRO
JanBublanskiestavasozinhoemsuasala.NofimHansFasteacabaraadmitindoquevinhapassandoinformações para a Säpo o tempo todo, e, sem nem ouvir o que Faste tinha a dizer em sua defesa,desligou-o das investigações.Mesmo sabendo que Faste era ambicioso, nãomuito confiável e queriasubir rapidamentenacarreira, tinhademoradoaacreditarqueele tambémvinhavazando informações.Bublanskiachoudifícilacreditarquealguémdelápudessefazerisso.Claro que na polícia também havia pessoas desonestas e corruptas. Mas entregar uma criança
deficientenasmãosdeassassinosfrioserademais,eeleserecusavaaacreditarquealguémnapolíciaseriacapazde fazer isso.Talveza informaçãohouvessevazadodeoutramaneira.Talvezos telefonesdeles tivessem sido grampeados ou os computadores invadidos por algum hacker, embora não lheconstassequealguémtivesseregistradoemalgumarquivonocomputadorqueAugustBalderseriacapazde desenhar o assassino emenos ainda que ele estava na clínica psiquiátrica Oden. Bublanski vinhatentandoentraremcontatocomachefedaSäpo,HelenaKraft,paradiscutiremaquestão.Apesardeeleterenfatizadoqueoassuntoeraimportante,elaaindanãohavialigadodevolta.OstelefonemasqueBublanskihaviarecebidodoConselhodeExportaçãoedoMinistériodaIndústria
odeixarampreocupado,e,emboraistonãotivessesidoditodemaneiraexplícita,amaiorpreocupaçãonão era com omenino nem com as consequências dos tiros na Sveavägen, e sim com o programa depesquisas em que Frans Balder estivera envolvido, que de fato parecia ter sido roubado na noite docrime.Apesardemuitosdosmaiscapacitadostécnicosdecomputaçãodapolíciateremsidoenviadosàcasa
deBalderemSaltsjöbaden,alémdetrêsespecialistasemtecnologiadainformaçãodaUniversidadedeLinköpingedaAcademiaRealdeEngenhariadeEstocolmo,nenhumdelesencontrouumrastrosequerdapesquisadeFransBaldernemnoscomputadoresnememtodaapapeladadele.“Agora,comosenãobastasse,temosumainteligênciaartificialdesaparecida”,Bublanskimurmurara
consigo mesmo, e por algum motivo se lembrou de uma velha charada que seu primo Samuel, umbrincalhão,gostavadeproporaosamigosdeledasinagoga,paraconfundi-los.Era um paradoxo que dizia assim: se Deus é o todo-poderoso, será que poderia criar algo mais
inteligente do que Ele mesmo? A charada fora considerada desrespeitosa, ele lembrou, e até mesmoblasfema,porseucaráterevasivo,oquesignificavaquequalquerquefossearespostaelaseriaerrada.MasBublanski não teve tempo de se aprofundarmais nessa questão.Ouviu uma batida na porta. EraSonjaModig,quecerimoniosamentelheentregououtropedaçodechocolatesuíçocomlaranja.
—Obrigado—eledisse.—Oquevocêtemparamim?—AchamosqueoscriminososderamumjeitodefazercomqueTorkelLindénlevasseomeninopara
arua.Mandarame-mailsfalsosemnomedoprofessorCharlesEdelman,edonossotambém,marcandoumencontrocomeleeomeninodoladodeforadaclínica.—Épossívelfazerisso?—Muitofácil.—Assustador.— É verdade, mas isso ainda não explica como os criminosos sabiam que era no computador da
clínicaOdenqueelesprecisavamentrarnemcomosouberamdaparticipaçãodoprofessorEdelman.—Achoquedeveríamosolharnossospróprioscomputadores.—Jácomeçamosafazerisso.—Seráqueeraparaserassim,Sonja?—Oquevocêquerdizer?—Todomundocomreceiodeescreveroudedizeralgumacoisacommedodeestarsendoespionado.—Nãosei.Esperoquenão.TemosumtaldeJacobCharroláforaaguardandoparaserinterrogado.—Queméele?—Umbom jogador do Syrianska FutebolClube. E também o homem que tirou amulher eAugust
BalderdaSveavägen.SonjaModig estavana sala de interrogatório comum jovemmusculosode cabelo curto e escuro e
maçãsdorostosalientes.EleusavaumpulôvermostardadegolaemV,semcamisaporbaixo,epareciaaomesmotempoperturbadoeumpoucoorgulhoso.Ela começouassim:— Interrogatório iniciadoàs18h35dodia22denovembro, coma testemunha
JacobCharro,vinteedoisanos,residenteemNorborg.Conte-nosoqueaconteceuhojedemanhã.—Sim,claro…—disseJacobCharro.—Euestava indodecarropelaSveavägen,quandovique
estavaacontecendoalgumtumultonarua.Acheiqueeraumacidenteediminuíavelocidade.Masaíviumhomemsaircorrendodacalçadadoladoesquerdoeatravessararua.Elecontinuavacorrendosemnemolharparaotrânsitoeacheiquefosseumterrorista.—Porquevocêachouisso?—Porqueelepareciaestarapontodeexplodirdetantoódio.—Deutempodevocêobservaraaparênciadele?—Nãoseidizer,masdepoismeocorreuquehaviaalgumacoisaartificialnorostodele.—Comoassim?—Comosenãofosseorostodeledeverdade.Eleestavacomóculosdesolredondos,quedeviam
estarpresosatrásdasorelhas.Asbochechas tambémpareciamestranhas,comoseeleestivessecomabocacheia,nãosei,etambémobigode,assobrancelhas,acordorosto.—Vocêachaqueeleestavausandomáscara?—Comcertezatinhaalgumacoisaestranha.Nãodeutempodepensarmuitonissoporquederepentea
portadomeucarrofoiescancaradaeaí…comoéqueeuvoudizer?Foiumdessesmomentosemque
muitacoisaaconteceaomesmotempo,comoseomundointeirodesabasseemcimadasuacabeça.Derepentetinhaunsdesconhecidosdentrodomeucarroetodoovidrotraseiroestavaestilhaçado.Eufiqueiemestadodechoque.—Oquevocêfez?—Euacelereiquenemumdoido.Achoqueagarotaqueentrounomeucarrogritouparaeufazerisso.
Euestavatãoassustadoquenempercebidireitooqueestavafazendo.Apenasfuiseguindoasordens.—Ordens,vocêdisse?—Foiasensaçãoqueeutive.Acheiqueestávamossendoperseguidosenãovioutrasaídaanãoser
obedeceràgarota.Euvireiaqui,vireiali,faziaoqueelamandava,ealémdisso…—Oquê?—Haviaalgonavozdela.Eraumavoz tão friaeconcentrada,quemevi comandadoporela.Era
comoseavozdagarotafosseaúnicacoisaqueestavacontroladanomeiodaquelaloucuraedestruiçãotoda.—Vocêdissequeachaquesabequeméessagarota?— Acho que sei quem ela é. Mas não reconheci na hora, com certeza não foi na hora. Eu nem
conseguiapensaremnada,estavaapavorado.Etambémtinhasanguejorrandoatrásdemim.—Damulheroudomenino?—Nocomeçoeunãosabia,epareciaquenemeles.Masderepenteeuouvium“Ufa!”,comosealgo
debomtivesseacontecido.—Eoqueera?—Agarotaviuqueelaéquetinhasidobaleada,enãoomenino,elembroqueacheiissoestranho,
parecia que ela até estava comemorando, “Oba, levei um tiro”, e posso lhe garantir que não era ummachucadinhoàtoa,não.Elatentoutamparaferida,masnãoconseguiuestancarosangramento.Osanguecontinuavajorrandoeagarotaestavaficandocadavezmaisbranca.Elaestavabemmal.—Emesmoassimelaestavafelizdetersidobaleadaemvezdomenino…—Issomesmo.Comoqualquermãe.—Maselanãoeraamãedomenino…—Nãomesmo.Elesnemseconheciam,foioqueeladisse,edealgumaformaissofoificandobem
claro.A garota parecia não entender nada de criança. Ela nem abraçou omenino, não disse nenhumapalavradeconsoloparaele.Elaotratavacomoseelefosseadulto,falavacomelenomesmotomdevozqueusavacomigo.Umahoraviqueelaquaseiaoferecerumpoucodeuísqueparaele.—Uísque?—perguntouBublanski.—É,eutinhaumagarrafanocarro,queiadardepresenteparaomeutio,masacabeidandoparaela
desinfetaraferidaebeberumpouquinho.Maselaacaboubebendobastante.—Deformageral—perguntouSonjaModig—,comovocêachouqueelaestavatratandoomenino?— Para dizer a verdade, não sei bem como responder. Ela não parecia ser nenhuma campeã de
sociabilidade,metratavacomoseeufosseumempregadodelaenãotinhaamenorhabilidadeparalidarcomumacriança,comoeufalei,mesmoassim…—Oquê?—Acheiqueelaeraumaboapessoa.Eununcaacontratariacomobabá,seéquemeentendem.Mas
elaeralegal.—Entãovocêachaqueacriançaestáseguracomela?—Eunãotenhodúvidadequeagarotapodesermortalmenteperigosaeatéumadoidadepedra.Mas
omenino…onomedeleéAugust,nãoé?—Issomesmo.—Elairáprotegê-locomsuavida,senecessário.Foiaimpressãoqueeutive.—Ondevocêosdeixou?—Ondeelamandou:emMosebackeTorg.—Éondeelamora?—Nãosei.Elanãomedeuexplicaçãodenada.Sóquisirparalá.Fiqueicomasensaçãodequeela
tinhaumcarroestacionadopor lá.Elanãomedissenadaalémdoestritamentenecessário.Apenasmepediuqueeudeixasseosmeusdadoscomela.Dissequevaimepagarpelosdanosnomeucarro,maisumextra.—Elapareciaterdinheiro?—Bom…seeufossejulgarsópelaaparência,diriaqueelamoranumbarraco.Maspelasatitudes…
não sei. Eu não ficaria surpreso se ela fosse cheia da grana. Tive a sensação de que ela estavaacostumadaafazertudodojeitodela.—Eoqueaconteceudepois?—Elamandouomeninodescerdocarro.—Eeledesceu?—Eleestavaparalisado.Ficousebalançandoparaafrenteeparatrásenãosaíadolugar.Masaíela
faloucomelenumtomdevozmaisduro.Dissequeeraumaquestãodevidaoumorte,coisaassim,eaíelefoiindobemdevagar,meiocambaleando,comosbraçosdurosquenemumsonâmbulo.—Vocêviuparaondeelesforam?—Sóviqueforamparaoladoesquerdo,nadireçãodeSlussen.Masagarota…—Sim?—Elaestavamalmesmo.Foitropeçando,pareciaqueiadesabaraqualquermomento.—Issonãoénadabom.Eomenino?—Tambémnãoparecia namelhor forma.Oolhar dele eramuito estranho, e fiquei preocupadono
caminhotodo,porqueacheiqueelefosseterumataqueoualgoassim.Masquandoosdoisdesceramdocarroelepareciajáteraceitadoasituação,esóficouperguntando“Onde”váriasvezes,“Onde,onde”.SonjaModigeBublanskiolharamumparaooutro.—Vocêtemcertezadisso?—perguntouSonja.—Porqueeunãoteriacerteza?—Bom,porexemplo,vocêpode terachadoqueeleestavadizendo issoporqueviuumaexpressão
interrogativanorostodele.—Porquevocêsestãoduvidandotantodeeuterouvidoisso?—PorqueamãedeAugustBalderdissequeelenãofala—explicouSonja.—Sério?— Sério. E parece muito estranho que ele tenha falado suas primeiras palavras sob aquelas
circunstâncias.—Maseuouvioqueouvi.—Estácerto.Eoqueagarotarespondeu?—Achoqueeladisse“longe”.“Longedaqui.”Umacoisaassim.Depoiselaquasedesmaiou,comoeu
falei.Ememandouiremboradali.—Evocêobedeceu?—Rapidinho.Saícantandopneu.—Esódepoisvocêpercebeuquemeleseram.—Eujátinhadeduzidoqueomeninoeraofilhodaquelegêniodequemelesestãofalandoummonte
decoisasnainternet.Masagarota…eutinhaumavagalembrançadela.Elamelembravaalgumacoisa,bom, mas aí não aguentei mais continuar dirigindo. Eu tremia todo e parei na Ringvägen, perto deSkanstull,entreinohotelClarionepediumacervejaparaverseeumeacalmava,e foiaíquea fichacaiu.Elaeraaquelagarotaquetinhasidoprocuradaporassassinatounsanosatrás,masdepoisviramqueelanãoeraculpada,retiraramtodasasacusaçõesedescobriramquedesdepequenaelatinhapassadoporumascoisashorrorosasnumhospitalpsiquiátrico.EumelembrobemporquenaépocaopaideumamigomeuquetinhasidotorturadonaSíriaestavapassandomaisoumenospelasmesmascoisasnumhospital,comterapiadechoqueeoutrasmerdasassim,sóporqueelenãoconseguiaesqueceropassado.Foicomoseestivessemtorturandoeledenovoaqui.—Vocêtemcerteza?—Queelefoitorturado?—Não.QueagarotaeraLisbethSalander.—Nahoraeuprocureifotosdelanainternetnomeucelular,enãotivedúvidanenhuma.Etambémtem
outrascoisasquebatem,tipo…Jacobhesitou,parecendoconstrangido.—Quandoelatirouacamisetaparaenfaixaroferimentoesevirouumpoucoparapassaracamiseta
peloombro,euviumatatuagemenormedeumdragãonascostasdela,depontaaponta.Emelembrodessatatuagemtersidomencionadanumareportagemdaquelaépoca.ErikaBergerestavanacasadecampodeGabriella,emIngarö,comduassacolascheiasdealimentos,
lápisdecolorir,papel,doisquebra-cabeçascomplicadosemaisalgumascoisas.NãohavianemsinaldeAugusteLisbethnemcomoentraremcontatocomeles.LisbethnãoatendiapeloaplicativoRedphonenempelolinkcriptografado,eissoestavadeixandoErikadoentedepreocupação.De qualquer ângulo que ela analisasse a situação, não conseguia deixar de lado os maus
pressentimentos.Ela sabiamuitobemqueLisbethSalander sóerade falarominimamentenecessário,nadadegrandesexplicaçõesnemdepalavrastranquilizadoras.Lisbethsótinhapedidoumesconderijoseguro.Umacriançaestavasobsua responsabilidadee, seelanãoestavaatendendoàs ligaçõesdelesmesmo sob essas circunstâncias, com certeza algo de ruim tinha acontecido. Na pior das hipóteses,Lisbethpoderiaestarcaídaemalgumlugar,mortalmenteferida.Erikapraguejouefoiparaavaranda,amesmaondeelahaviasesentadoumdiacomGabriellaetido
aquelaconversasobreseesconderdomundo.Sófaziaalgunsmeses,maspareciatersidodécadasantes.Agoranãohavianenhumamesaláforanemcadeiras,garrafas,nenhumburburinhodentrodacasa,apenasneve,galhoseolixoqueatempestadehaviatrazido,comoseaprópriavidativesseidoemboradali,ede algummodo a lembrança daquela festa fez crescer a sensação de abandono da casa, como se asfestividadesfossemfantasmasvoltandoparaassombraracasa.Erika foi para a cozinha de novo e guardou os congelados no freezer— almôndegas, espaguete à
bolonhesa,estrogonofe,filésdepeixe,bolinhosdebatataeumafartaquantidadedapiorjunkfood,queMikaelrecomendaraqueelacomprasse:pizzasprontas,pirogues,batataschips,coca-cola,umagarrafade uísque Tullamore Dew, um pacote de cigarros, três sacos de salgadinhos, balas, três barras dechocolateebalasdealcaçuz.Naamplamesaredondadacozinha,eladeixoupapelparadesenhar,lápisdecolorir,canetas,umaborracha,umaréguaeumcompasso.NumadasfolhasembrancoErikadesenhouumsoleumafloreescreveu“Bem-vindos”emquatrocoresmuitovivas.Acasaficavanoaltodeumpequenopromontório,nasproximidadesdapraiadeIngarö,enãosepodia
vê-lade longe,poisestavaencobertaporpinheirosmuitoaltos.Haviaquatrocômodos,eacozinha,omaior deles, com suas portas de vidro abertas para a varanda, era o coração da casa.Alémdamesaredonda,haviaumavelhacadeiradebalançoedois sofásgastose tortosquehaviam rejuvenescidoeganhadovidanovagraçasadoispequenostapetesxadrezrecém-comprados.Eraumacasaaconchegante.Eprovavelmenteumbomesconderijotambém.Erikaguardouaschavesdacasadentrodagavetade
cimadoarmáriodohall,comotinhamcombinado,saiudacasasemtrancaraportaecomeçouadesceralongaeíngremeescadademadeiraqueeraoúnicomeiodeacessoàcasaparaquemchegavadecarro.Océuestavaescuroeameaçador,ventavafortedenovoeoestadodeespíritodeErika,quejánãoera
nada bom, nãomelhorou nemumpouco enquanto ela voltava de carro para casa pensando emHannaBalder.Erikanãoaconheciapessoalmenteeestava longedeser fãdaatriz.Hannacostumava fazeropapeldemulheresaomesmotemposexyeinocentementedesmioladasquetodososhomensachavamquepodiamseduzir, eErikadetestavacomoa indústriadocinemacultuavaesse tipodepersonagem.Masagora tudo issoerapassado, eErika sentiuvergonhade tê-la julgadodemaneira tão rígidana época.TinhasidoduracomHannaBalder,atitudemuito fácilde tomarcontraumameninabonitasubindo tãocedonacarreira.Hoje,naspoucasvezesemqueHannaeravistaemalgumagrandeprodução,seusolhostransmitiam
umadorcontidaquedavaprofundidadeàssuaspersonagensequetalvez,Erikapensavaagora,fosseumadorgenuína.EstavaclaroqueHannaBalder enfrentara temposdifíceis.Pelomenosasúltimasvinte equatrohorasdesuavidatinhamsidodifíceisparaela,edesdeocomeçodamanhãErikavinhainsistindoque Hanna fosse informada do que estava acontecendo e ficasse com August. Parecia ser o tipo desituaçãoemqueumacriançanecessitadamãe.MasLisbeth,queatéentãoestavaemcontatocomeles,seopôsàideia.Aindanãosesabiadeonde
vinhaovazamentodeinformações,elaescreveu,eelestambémnãopodiamdescartarahipótesedequefossealguémpróximodeHannaedaqueleLasseWestman,emquemninguémconfiavaequeatéagoranãotinhasaídodecasa,aoquepareceparaevitarosjornalistasacampadosláfora.ElesestavamnumatoleiroeErikanãogostavadisso.Torciaparaquenofimconseguissemcontarahistóriacomdignidadeeprofundidade,semquenemarevistanemninguémsaísseprejudicado.
ElanãoduvidavadacapacidadedeMikael.AlémdissoAndreiZanderoestavaajudando.ErikatinhaumaquedaporAndrei,umjovemdeótimaaparênciaquedevezemquandoaspessoasachavamsergay.NãofaziamuitotempoeletinhaidojantarcomelaeLarsnacasadelesemSaltsjöbaden,Andreihaviacontadosuahistória,oquesófezcresceraindamaisaafeiçãoqueErikasentiaporele.Andreiperdeuospaiscomonzeanos,numatentadoabombaemSarajevo,edepoisdissofoimorarna
Suécia,emTensta,subúrbiodeEstocolmo,comumatiaquesemostrouinsensívelparaperceberafomeintelectualdeleeatémesmoasferidasqueomeninocarregava.Andreinãopresenciouamortedospais.Seucorpo,porém,ainda reagiacomoseele sofressedeestressepós-traumático, e aindahojeelenãosuportavaruídosaltosemovimentosrepentinos.TambémficavaaflitoquandoviasacolasabandonadasemrestaurantesoulugarespúblicoseabominavaaviolênciaeaguerracomumardorqueErikajamaisvira.Durante a infância, ele se fechou em seu próprio mundo. Mergulhou na literatura fantástica, em
poesias, biografias, amava Sylvia Plath, Borges e Tolkien, e aprendeu tudo o que pôde sobrecomputadores, sonhando em escrever livros sobre tragédias e amores não correspondidos. Era umromânticoincorrigívelqueesperavacicatrizarsuasferidasatravésdepaixõesavassaladorasequenãoseimportavanemumpoucocomoqueaconteciaàsuavolta,nasociedadeounomundo.Umanoite,jáadolescente, assistiu a uma palestra aberta de Mikael Blomkvist na Faculdade de Jornalismo daUniversidadedeEstocolmoquemudariasuavida.AlgonoentusiasmocomqueMikaelfalavaofezlevantarosolhoseenxergarummundotransbordando
deinjustiças,intolerânciasepequenascorrupções,eelecomeçouaseimaginarescrevendoreportagenscomcríticas à sociedade, emvezde romances lacrimosos.Nãomuito tempodepois, bateu à porta daMillenniumperguntandosehaviaqualquerserviçoqueelepudessefazer:preparareservircafé,revisartextos, entregar pacotes. Ele queria estar lá, não importava como. Queria fazer parte da redação darevista, e Erika, que desde o começo tinha visto a chama em seus olhos, encarregou-o de pequenastarefas:avisos,pesquisaseperfiscurtos.E,acimadetudo,elaomandouestudarmuito,oqueelefezcoma mesma energia que direcionava a tudo que se dispunha a fazer. Lia sobre ciências políticas,comunicaçãodemassa,economia,soluçãodeconflitosinternacionais,aomesmotempoquefaziaalgunstrabalhostemporáriosparaMillennium.Suaambiçãoerase tornarumjornalista investigativotãopesopesadoquantoMikael.Mas,diferentementedequasetodososjornalistasinvestigativos,elenãoeradotipodurão.Continuava
ojovemromânticoquesonhavaemencontrarseugrandeamor,eMikaeleErikajáhaviampassadomuitotempoconsolando-oporseusrelacionamentosimpossíveis.Asmulheressentiam-seatraídasporelecomamesma frequência com que o abandonavam. Talvez elas notassem a enorme carência dele emuitastalvezseassustassemcomaintensidadedeseussentimentos,ealémdissoeledeviaterumainclinaçãoexagerada para falar de seus próprios defeitos e fraquezas. Era bastante franco e transparente. Bomdemais,comoMikaelcostumavadizer.ErikacomeçouaacharqueAndreiestavamuitopertodeselibertardesuafragilidadejuvenil.Tinha
notadoissonostextosdele.Aqueledesejoimensodetocaraspessoas,quetornavasuaescritabastantepesada,haviasidosubstituídoporumnovoestilo,maisconcretoepragmático,eelasabiaqueagoraqueeletinharecebidoachancedeajudarMikaeltãodepertonocasoBalder,elefariaoquefossepreciso
parasesairbem.A ideia é queMikael escrevesse o texto principal e que Andrei, além de ajudá-lo nas pesquisas,
também redigisse alguns artigos paralelos relacionados com o caso e perfis curtos, planejamento queErikaachoubempromissor.DepoisdedeixarocarroestacionadonaHökensgata,elacaminhouatéaredaçãoe,aoentrar,encontrouMikaeleAndreiprofundamenteconcentradosnotrabalho,comoelatinhaimaginadoqueencontraria.DevezemquandoMikaelmurmuravaalgumacoisaconsigomesmo,eelanotounosolhosdelenãosó
aquele conhecido brilho de obstinação, mas também um certo sofrimento, o que não a surpreendeu.Mikaelmalvinhadormindoànoite.Aimprensatodaoestavaatacandoeelehaviasidointerrogadopelapolícia,ondeforaobrigadoafazerjustamenteaquiloqueaimprensaoacusavadeestarfazendo,ouseja,omitiraverdade,eMikaelnãogostavadisso.Mikael Blomkvist era uma pessoa que andava de mãos dadas com a lei. Em muitos sentidos, um
cidadão-modelo,esehaviaalguémqueconseguiaarrastá-loparaoterritóriodoproibido,essealguémeraLisbethSalander.Mikaelpreferiacairemdescréditoa traí-la,por issoelecontinuava repetindoàpolícia:“Reservo-meodireitodeprotegerminhasfontes”,emborasemdúvidaeleestivesseaborrecidocomissoeponderandoasconsequências.Mas,assimcomoErika,suamaiorpreocupaçãoeramLisbetheo garoto.Depois de observá-lo por algunsmomentos,Erika foi até ele e perguntou:—Comovão ascoisas?—Quê?Ah…Bem.Comoestátudoporlá?—Arrumeiascamasedeixeicomidanageladeira.—Quebom.Nenhumvizinhoviuvocê?—Nãoháumaalmavivanaquelelugar.—Porqueelesestãodemorandotanto?—eleperguntou.—Nãosei,tambémestoumuitopreocupada.—TomaraqueelessóestejamdescansandonacasadeLisbeth.—Éoqueeutambémespero.Oquemaisvocêdescobriu?—Muitacoisa.—Quebom.—Mas…—Oquê?—Temumacoisa…—Oquê?—Parecequeeuestouvoltandonotempooumeaproximandodelugaresondejáestive.—Vocêvaiterquemeexplicarissoumpoucomelhor—eladisse.—Vouexplicar…Mikaelolhouderelanceparaateladocomputador.—Masprimeiroquerocavarumpoucomais.Depoisagenteconversa—eledisse,eelaodeixou
sozinho e se preparou para voltar para casa, sabendo que estaria pronta para ajudá-lo assim que eleprecisasse.
20.23DENOVEMBRO
Anoitetinhasidocalma,estranhamentecalma,eàsoitodamanhãumpensativoJanBublanskiestavana sala de reuniões diante de seu grupo. Depois de ter dispensado Hans Faste, ele se sentiarazoavelmentesegurodepoderfalarlivrementesobreocasodenovo.Pelomenossesentiamaisseguroali,comseugrupo,doqueemfrenteaoseucomputadoroucomseucelular.— Vocês já estão a par da gravidade da situação — ele começou. — Houve um vazamento de
informações sigilosas e uma pessoa morreu por causa disso. E agora a vida de uma criança estáameaçada. Apesar de termos trabalhado duro, ainda não sabemos como foi que isso aconteceu. Asinformaçõespodemtersaídodaquidedentro,oudaSäpo,oudaclínicaOden,oudealguémligadoaoprofessorEdelman,ouatémesmodamãedomeninoedocompanheirodela,LasseWestman.Aindanãotemoscertezadenada,portantodevemosserextremamentecautelosos,paranoicosmesmo.— Podemos ter sido hackeados ou grampeados— acrescentou SonjaModig.— Tudo indica que
estamoslidandocomcriminososcujodomíniodasnovastecnologiasvaimuitoalémdaquelecomoqualestamoshabituados.—Verdade,oquesó tornaasituaçãomaispreocupante—continuouBublanski.—Precisamosser
cuidadososemtodososníveisenãofalarnadadeimportanteaotelefone,mesmoquenossossuperioresgarantamqueonossonovosistemadetelefoniamóvelésuficientementeseguro.—Elesachamosistemasensacionalsóporqueaimplantaçãodelecustoumuitocaro—disseJerker
Holmberg.—Talveztambémdevêssemosrefletirumpoucosobreonossoprópriopapel—continuouBublanski.
—AcabeidefalarcomumajovemanalistadaSäpo,muitotalentosa,GabriellaGrane,nãoseisevocêsjáouviram falardela.Ela lembrouqueoconceitode lealdadeparanós,policiais,nemsempreéumacoisatãoóbviacomoparece.Podemosterváriostiposdelealdade,nãoé?Amaisóbviaéalealdadeàlei. Há também a lealdade à população, aos colegas, aos nossos superiores, a nós mesmos, à nossacarreira,eàsvezes,comotodosvocêssabem,podemsurgirconflitosentreessasváriaslealdades.Paraproteger umcolega, por exemplo, podemos ser desleais coma nossa população.Epor vezes, quandoobedecemosaordensvindasdecima,comofoiocasodeHansFaste,essa lealdadeentraemconflitocomaquelaquesedevetercomoscolegas.Masdeagoraemdiante—eeuestoufalandomuitosério—sóseaplicaumalealdadeaqui:aquevamostercomaprópriainvestigação!Iremosprenderosculpadosegarantirqueninguémmaissejavítimadeles.Estamosentendidos?Nemqueoprimeiro-ministroouochefedaCIAtelefonemparavocêsfalandodepatriotismoeprometendonovaspossibilidadesdecarreira,
euqueroquevocêsabramaboca,entendido?—Entendido!—todosresponderamemcoro.—Ótimo!Comovocêsjásabem,apessoaqueinterferiunocasodaSveavägenfoininguémmenosque
LisbethSalander,eestamosfazendotudoaonossoalcanceparalocalizá-la—continuouBublanski.—Porissoéqueagenteprecisadivulgaronomedelaparaaimprensa—gritouCurtSvensson,um
tantoinflamado.—Precisamosdaajudadapopulação!—Seiquehádivergênciasentrenóssobreesseponto,eéporissoquequerodiscutiraquestãomais
umavez.Emprimeirolugar,nemprecisodizeroquantoSalanderfoimaltratadapelapolíciaepelamídiaháalgunsanos.—Masissonãovemaocasoagora—disseCurtSvensson.—ÉbemprovávelquemuitaspessoasatenhamreconhecidonaSveavägeneque,dequalquerforma,
seunomelogovenhaapúblico,eentãoissonãoserámaisumaquestão.Masantesdeixe-melembrar-lhesqueLisbethSalandersalvouavidadogarotoeporissomerecetodoonossorespeito.— Quanto a isso, nenhuma dúvida— disse Curt Svensson. —Mas depois ela meio que acabou
sequestrandoacriança.—Ainformaçãoquetemosindicaqueelaestavadeterminadaaprotegeromeninoaqualquerpreço—
acrescentou SonjaModig.—Lisbeth Salander teve experiênciasmuito negativas com as autoridades.TodaasuainfânciafoimarcadaporinjustiçaseabusoscometidoscontraelapelaburocraciadoServiçoSocialese,comonós,elasuspeitaqueháuminformantedentrodapolícia,nãovainosprocurardeformaalguma,podemtercerteza.—Issoéaindamenosrelevante—insistiuCurtSvensson.—Decertaformaéverdade—continuouSonja.—ÉclaroqueeueJanconcordamoscomvocêquea
única coisa importante é saber se tornar público o nome dela ajudaria ou não nas investigações. Asegurançadomeninoémaisimportantedoquequalqueroutracoisa,eaquitemosumgrandecomponentedeincerteza.—Entendooseuraciocínio—disseJerkerHolmbergnumtomdevozbaixoecauteloso,quefeztodos
oescutaremcomatenção.—SeaspessoasviremSalander,omeninotambémficaráexposto.Masissoaindadeixamuitasperguntassemresposta.Aprimeiraeamaisimportante,etambémamenosformaldetodasé:qualéacoisacertaafazer?EaquitendoaafirmarquemesmoquehajauminformanteentrenósnãopodemosaceitarqueSalandercontinueescondendoAugustBalder.Ogarotoéparte importantedainvestigaçãoe,comouseminformante,somosmaiscapacitadosparaprotegerumacriançadoqueumajovememocionalmenteperturbadacomoela.—Claro,comcerteza—concordouBublanski.—Exatamente—continuouJerker.—Emesmoquenãoestejamoslidandocomumcasoclássicode
sequestro, sim,mesmoqueela tenha feitooque fezcomamelhordas intenções,osdanoscausadosàcriançapodemserenormes.Emtermospsicológicos,deveserextremamenteprejudicialaomeninoestarfugindo,depoisdetudooqueelejápassou.—Éverdade,éverdade—murmurouBublanski.—Masadúvidapermanece:comovamoslidarcom
essainformação?—AquieurealmenteconcordocomoCurt.Devemosdivulgaronomeeumafotodelalogo.Podemos
obterinformaçõesimportantesassim.— Sim, pode dar certo mesmo — continuou Bublanski —, mas também pode ser tudo que os
assassinosestejamesperando.Temosquepartirdoprincípiodequeelesnãodesistiramdeencontraromenino,muitopelocontrário,ecomonãotemosideiadequaléaconexãoentreogarotoeaSalander,não temos como saber que tipo de pistas eles vão obter com a divulgação do nome dela. Não estoutotalmentesegurodequegarantiremosasegurançadogarotodivulgandoessesdetalhesàimprensa.—Mastambémnãosabemosseeleestaráprotegidosenãofizermosisso—rebateuJerkerHolmberg.
— Há muitas peças faltando nesse quebra-cabeça para que a gente consiga tirar qualquer tipo deconclusão.SeráqueaLisbethSalanderestáfazendoissoamandodealguém,porexemplo?Seráqueelanãotemseusprópriosplanosparaacriançamaisdoqueprotegê-la?— E como ela sabia que Torkel Lindén e o menino iam sair da clínica da Sveavägen justamente
naquelehorário?—acrescentouCurtSvensson.—Talvezelaestivesseláapenasporacaso.—Nãopareceprovável.—A verdade não costuma parecer provável— continuou Bublanski.— É exatamente isso que a
define.Masconcordo:époucoprovávelqueelaestivesseláporacaso.Nãonaquelascircunstâncias.—MikaelBlomkvisttambémsabiaquealgoiaacontecer—acrescentouAmandaFlod.—ÉóbvioqueháumaligaçãoentreBlomkvisteSalander—disseJerkerHolmberg.—Éverdade.—MikaelBlomkvistsabiaqueomeninoestavanaclínicaOden,nãosabia?—Amãedomenino,HannaBalder,tinhacontadoaele—disseBublanski.—E,comovocêspodem
imaginar, ela agora está se sentindo péssima. Acabei de ter uma longa conversa com ela. Mas daíBlomkvistchegaraterideiadequeTorkelLindéneomeninoiamserenganadoseatraídosparaarua…—SeráqueeleentrounocomputadordaOden?—indagouAmandaFlod,pensativa.—NãoconsigoimaginarMikaelBlomkvisthackeandocomputadores—disseSonjaModig.—MaseaSalander?—perguntouJerkerHolmberg.—Oque,afinal, sabemossobreela?Mesmo
comodossiêcompletoquetínhamosdagarota,naúltimavezemquenosenvolvemoscomela,elanosenganou de todas as formas. Talvez agora as aparências também sejam tão enganadoras quanto foramnaquelaépoca.—Éverdade—concordouCurtSvensson.—Temosmuitospontosdeinterrogação.—Nós só temos pontos de interrogação, por isso é que devíamos seguir estritamente as regras do
códigopolicial—observouJerkerHolmberg.— Eu não sabia que o código era tão abrangente— disse Bublanski com um sarcasmo que não
agradouaHolmberg.—Eusóestoudizendoqueagentedeviaconsiderarasituaçãopeloqueelarealmenteé:osequestro
deumacriança.Fazquasevinteequatrohorasqueosdoisdesapareceramenãofizeramnenhumcontato.DevíamosdivulgaronomeeafotodeSalanderedepoisavaliarcomtodoocuidadoasinformaçõesquechegarem às nossas mãos — disse Jerker Holmberg com grande autoridade, e os outros policiaispareceramconcordarcomele.Bublanskifechouosolhosepensouemcomoamavaaquelegrupo.Tinhamaisafinidadecomelesdo
quecomseusirmãos,irmãsepais,masagorasesentianodeverdecontrariá-los.—Estamosfazendotudoquepodemosparaencontrarosdois,porissovamosaguardarumpoucomais
antesdesoltarnomesefotos.Issosóserviriaparapôrmaislenhanafogueira,ealémdissoeunãoquerodarnenhumapistaaoscriminosos.—Ealémdissovocêsesenteculpado—disseJerkersemnenhumtomsolidárionavoz.—Ealémdissoeume sintomuito culpado—respondeu JanBublanski, pensandodenovoemseu
rabino.MikaelBlomkvistestavaextremamentepreocupadocomomeninoecomLisbeth,porissonemtinha
conseguidodormirdireito.HavialigadodiversasvezesparaLisbethpeloRedphone,semobternenhumaresposta.Elenãorecebianotíciasdeladesdeatardedodiaanterior.Agoraestavanaredação,tentandoseconcentrarnotrabalhoeanalisaroquepodiaterlheescapado.Poralgumtempoopressentimentodeque faltava alguma peça fundamental no quadro todo, algo que poderia trazer uma nova luz ao caso,insistiuemnãoabandoná-lo.Mastalvezestivesseiludindoasimesmo,talvezfosseapenasimaginação,seu desejo de encontrar alguma estruturamaior por trás de tudo.A últimamensagem que Lisbeth lhemandaraatravésdolinkcriptografadofora:JurijBogdanov,Blomkvist.Dêumaolhadanele.FoielequemvendeuatecnologiadeBalderparaoEckerwalddaSolifon.
AlgumasfotografiasdeBogdanovnainternetomostravamdeternoslistradosfeitossobmedida,mas
que ainda assim não pareciam lhe cair bem, como se ele os tivesse roubado a caminho do fotógrafo.Bogdanov tinhacabeloscompridosedesalinhados,muitascicatrizes,olheiras fundase tatuagens feitasporalgumamador,quepodiamservislumbradasporbaixodasmangasdacamisa.Seuolharerasombrio,intensoepenetrante.Eraalto,porémnãodeviapesarmaisquesessentaquilos.Parecia um ex-presidiário, e alguma coisa em sua postura fez Mikael se lembrar do homem que
aparecia nas imagens das câmeras de segurança da casa deBalder, em Saltsjöbaden. Ele irradiava amesmadecadência e armiserável.Nas raras entrevistasquehaviadadocomoempresário emBerlim,Bogdanovderaaentenderquepraticamentehaviasecriadonasruas.“Euestavacondenadoafracassarouaserencontradomortonumbecoqualquercomumaseringano
braço.Masconseguisairdalamaemerestabelecer.Souinteligenteeumverdadeiroguerreiro”,elesegabara.Poroutrolado,nadaemsuavidadesmentiaessasafirmações,excetoasuspeitadequeelepoderianão
terprogredidoapenasatravésdeseusprópriosesforços.Haviaindicaçõesdequeelereceberaajudadepessoas influentesque identificaramseus talentos e apostaramneles.Uma revistade tecnologia alemãreproduziaadeclaraçãodeumchefedesegurançadafinanceiraHorst,dizendo:“Bogdanovtemmágicanosolhos.Eleenxergaafragilidadedeumsistemadesegurançacomoninguém.Eleésimplesmenteumgênio”.Bogdanov, na verdade, era um hacker superstar e oficialmente considerado um “white hat”, uma
pessoavoltadaparaobem,prontaaservireaajudarasempresasaencontrarfalhasemseussistemasde
segurança.Tambémnãohavianadadesuspeitoemsuaempresa,aOutcastSecurity, indicandoqueelafosseapenasumnegóciodefachada.Osmembrosdadiretoriaerampessoasdeboareputação,comnívelsuperior,cujosnomesnuncahaviamsidoligadosaatividadesilícitas.Apesardeparecereminformaçõesgenuínas,Mikael não se contentou em apenas aceitá-las. Ele e Andrei investigaram a fundo todas aspessoasque tiveramcontato,emesmoomínimocontato,comaOutcastSecurity,amigosdeamigos,eencontraramumhomemchamadoOrlov,que,porumbreveperíodo,haviaparticipadodoconselhocomosuplente e que, já à primeira vista, pareceu um tanto suspeito. Vladimir Orlov não era da área detecnologiadainformação,masapenasumpeixepequenodosetordeconstrução.HaviasidoumboxeadorpesopesadodefuturonaCrimeia,eajulgarporalgumaspoucasfotografiasqueMikaelencontroudelenainternet,oqueseviaeraumhomembrutaledesfigurado,dotipoqueumajovemjamaisconvidariaàsuacasaparaochádatarde.Tambémhaviainformações,emboranãoconfirmadas,dequeelecumprirapenaporagressãofísicae
lenocínio.Tinhasecasadoduasvezeseproduzidoduasviúvas,cujacausamortisMikaelnãoconseguiudescobrir.Oachadomais interessante,porém,foiOrlov terparticipadocomosuplentedoconselhodeumaempresa insignificante, fechada faziamuito tempo,chamadaBodinConstrução&Exportação,queatuavanaáreade“vendademateriaisdeconstrução”.OproprietáriotinhasidoKarlAxelBodin,maisconhecidocomoAlexanderZalachenko,umnomeque
não apenas lhe trouxe lembranças de um mundo totalmente do mal como também do maior furojornalísticodesuacarreira.Zalachenko,claro,eraopaideLisbeth,ohomemquehaviamatadoamãedelaedestruídosuainfância.AsombranegradeLisbeth,ocoraçãodastrevasquehaviaalimentadoseusplanosdevingança.Seriameracoincidênciaonomedeleaparecernessecaso?Maisdoqueninguém,Mikaelsabiaque,
quandosevaiafundoemqualquerhistória,pode-seencontrartodotipodeconexões.Avidaestásemprenos aproximando de conexões enganadoras. No entanto, em se tratando de Lisbeth Salander ele nãoacreditavamuitoemcoincidências.Fosse quebrando o dedo de um cirurgião ou se propondo a analisar o roubo de uma avançada
tecnologiade inteligênciaartificial,vocêpodiaestarcertodequeLisbethnãoapenashaviaplanejadotudocommuitocuidado.Elatambémtinhaumarazão,ummotivoparafazerisso.Lisbethnãoeradotipoqueesqueciainjustiçasoucoisaserradas.Elarevidavaeapresentavaafatura.Seráqueoenvolvimentodelanessecasoteriaalgumaligaçãocomseupassado?Nãoeranadaimpossível.Mikael levantou os olhos da tela do computador e olhou paraAndrei, que acenou para ele com a
cabeça. Lá fora, do corredor, vinha um cheiro leve de comida e, da Götgatan, o som de um rockbarulhento.A tempestade estava ali bemnaporta, uivando,mantendoo céu ainda escuro e turbulento.Mikael entrou no link criptografadomais uma vez, apenas para cumprir sua nova rotina, sem esperarnada.Masentãoeleseanimou.Haviaumamensagem.Soltouumpequenogritodetriunfoeleu:Tudobem.Vamosparaoesconderijoembreve.Elerespondeudepressa:Ótimo.Dirijacomcuidado.Edepoisnãoresistiueacrescentou:Lisbeth,afinalestamosatrásdequem?
Elarespondeuimediatamente:Vocêlogovaiadivinhar,espertinho!Lisbeth tinha exageradoquandodisse que ia tudobem.Ela estava umpoucomelhor,mas ainda em
péssimaforma.Haviapassadometadedodiaanteriorquasesemconsciênciadotempoedoespaço,efoisomentecomgrandedificuldadequeconseguiusearrastarparaforadacamaafimdeofereceralgumacoisaparaAugustcomerebeber,seassegurandotambémdequeele tivessepapele lápisàmão,paradesenharoassassinodeseupai.Enquantoseaproximavadeleagora,elajáviadelongequeelenãotinhadesenhadonada.Haviamuitopapelespalhadopelamesaqueficavapertodosofá,emfrenteàqualomeninoestava.
Mas, em vez de desenhos, ela viu apenas fileiras e mais fileiras de rabiscos e, numa reação maisautomáticadoquemovidaporumaverdadeiracuriosidade,Lisbethtentouentenderoqueeraaquilo.Elehaviaescritonúmeros,sequênciasintermináveisdenúmeros,emesmoqueaprincípioelesnãofizessemsentidoparaela,Lisbethfoificandocadavezmaisintrigada,atéquederepentedeuumassobio.—Quedemais!—balbuciou.No começo ela tinha visto apenas alguns números bem extensos, que na verdade não lhe disseram
nada,masdepoisviuque,combinadoscomosnúmerosvizinhos,elesformavamumpadrãofamiliar,equando olhou nos diferentes tipos de folhas de papel e chegou a deparar com a simples sequêncianumérica641,647,653e659,entãonãotevemaisdúvida.Eramos“sexyprimequadruplets”,comosediziaeminglês,umasequênciadequatronúmerosprimoscomadiferençadeseisunidadesentresi.Haviatambémsériesdenúmerosprimosgêmeos,comtodasascombinaçõespossíveis,eLisbethnão
conteveumsorriso,aomesmotempoqueexclamava:—Incrível!Legal!MasAugustnãoolhouparaela.Continuouajoelhadoemfrenteàmesadecentro, comosequisesse
apenascontinuarescrevendoseusnúmeros,eelaselembrouvagamentedeter lidoalgumacoisasobresavantsenúmerosprimos,masemseguidanemquismaispensarnisso.Nãoestavasesentindobemparaagoracomeçarumareflexãosobrecálculosavançadosouembarcaremraciocínioscomplicados.FoiatéobanheiroeengoliudoiscomprimidosdeVibramicinaqueestavamporalifaziaanos.Lisbethvinhatomandoantibióticoporcontaprópriadesdequedesmaiaranoapartamento.Emseguida
pôsapistola,ocomputadorealgumasroupasnasacola,edisseparaomeninoselevantar.Maselenãoquis.AugustcontinuousegurandoseulápiscomforçaeporalgunsinstantesLisbethficouparadadiantedele,perplexa.Entãodissecomumavozbemfirme:—Levanteagoramesmo!—eeleobedeceu.Porsegurança,elapôsumaperucaeóculosdesol.Porúltimo,vestiramseuscasacos,desceramde
elevadoratéagaragemeentraramnaBMWdela,comaqualiriamparaIngarö.Elacontrolavaovolanteapenascomamãodireita.Comoombroesquerdoenfaixadoeapartesuperiordopeitodoendomuito,eaindacomfebre,elafoiobrigadaapararocarronoacostamentoalgumasvezesparadescansar.QuandoenfimchegaramàpraiaeaoancoradourodebarcosdeStoraBarnvikemIngaröe,seguindoasinstruçõesrecebidas, subiram a longa escadaria demadeira que levava à casa e entraramnela, Lisbeth desabou
exaustanacamadoquartomaispróximoàcozinha.Estavatremendo,gelada.Mesmoassim, logodepoisse levantoue, respirandocomdificuldade, foiparaamesaredondacom
seu notebook, para tentar,mais umavez, decifrar o arquivo daNSA que ela havia baixado.Claro quetambém não conseguiu.Não chegou nem perto disso.August foi sentar perto dela, olhando como quehipnotizado para as pilhas de papéis e lápis que Erika Berger havia deixado para ele. Nesse exatomomentoAugustnãopareciainteressadoemescrevernenhumasériedenúmerosprimosemuitomenosemdesenharassassinonenhum.Pareciamaravilhadodemaisparaisso.O homem que se dizia chamar JanHoltser estava hospedado num quarto do hotel ClarionArlanda
conversandoaotelefonecomsuafilhaOlga,que,comoeletinhaimaginado,nãoestavaacreditandonoqueeledizia.— Você está com medo de mim? Está com medo de que eu te coloque contra a parede?— ela
perguntou.—Não,claroquenão—elerespondeu.—Éque…Ele demorou para encontrar as palavras. Sabia que Olga desconfiava que ele estava escondendo
algumacoisa,portantoencerrouaconversamaisrápidodoquenofundodesejava.Aseulado,nacamadohotel, Jurijpraguejavamuito.DepoisdeexaminarocomputadordeFransBalderpelomenosumascem vezes, ele não havia encontrado “porra nenhuma”, como gostava de dizer.—Nadinha demerdanenhuma!—Entãoroubeiumcomputadorsemconteúdo—disseJanHoltser.—Éissoaí.—Entãoporqueoprofessorestavausandoessecomputador?—Praalgumacoisamuitoimportante,issoestáclaro.Dáparaverqueumarquivopesado,quedevia
estarsendocompartilhadocomoutroscomputadores,foideletadonãofazmuitotempo.Estoutentando,tentando,masnãoconsigorecuperaressearquivo.Odesgraçadosabiaoqueestavafazendo.—Quedecepção—disseJanHoltser.—Decepçãodocaralho—acrescentouJurij.—Eotelefone,oBlackphone?— Tem umas ligações lá que eu não consegui identificar, talvez da Säpo ou do Försvarets
Radioanstalt.Masoquemaisestámepreocupandoéoutracoisa.—Oquê?—Umalongaconversaqueoprofessor teveumpoucoantesdevocê invadiracasadele.Elefalou
comalgumfuncionáriodoMIRI,MachineIntelligenceResearchInstitute.—Eondeestáoproblema?—Ahoraemqueeleligou.Fiqueicomaimpressãoqueotelefonematinhaavercomalgumtipode
crise. Só que tem o fato de ter sido pro MIRI. O trabalho desse instituto é garantir que no futurocomputadores inteligentes não se tornem uma ameaça para a humanidade. Sei lá, isso não está mecheirandobem.EstouachandoqueoBalderpassouumapartedassuaspesquisasproMIRIouentão…—Oquê?
—Elepodeterpassadotodaainformaçãosobreagente,oupelomenosoqueelesabiadagente.—Issoseriapéssimo.Jurij concordou e Jan Holtser soltou um palavrão baixinho. Nada tinha saído como eles haviam
planejado,enenhumdosdoisestavaacostumadoafalhar.Agorajáacumulavamdoisfracassosseguidos,etudoporcausadeumacriança,umacriançaaindaporcimaretardada,oqueerabemruim.Masaindanãoeraopior.O pior é que Kira ia chegar, enlouquecida, e nenhum dos dois estava preparado para isso. Eles
estavam acostumados a ser bem tratados por ela, com aquela fria elegância que dava um ar deinvencibilidadeaosnegóciosdela.MasKiraestavapossessa,gritandoqueeleseramdoisimprestáveis,incompetenteseidiotas.Earazãodosgritosnãoeratantoelesteremerradoaquelestiros,quepodiamounãoteratingidoogarotonascostas.ArazãoeraamulherquehaviasurgidodonadaparaprotegerAugustBalder.ElaéquemfizeraKirasedescontrolar.QuandoJancomeçouadescreverajovem,opoucoquetinhaconseguidoverdela,Kiraobombardeou
deperguntas.Mesmoqueeletivesselhedadoarespostacertaouerrada,dependendodoânguloemqueseolhasseparaisso,Kiraseencolerizou,aosberrosdissequeelesdeveriamtermatadoagarotaecomoeratípicodelesaquelecomportamentoinútil.NemJannemJurijentenderamoporquêdaquelareaçãotãoviolenta.Nuncaatinhamouvidogritardaquelejeito.Poroutrolado,haviamuitacoisaqueelesnãosabiamsobreKira.JanHoltserjamaisseesqueceriade
quandotransaracomelanumasuítedohotelD’Angleterre,emCopenhague,pelaterceiraouquartavez,edeitados na cama, bebendo champanhe, ele lhe contara sobre a guerra e seus crimes. Ao acariciar oombroeobraçodela,Janviuastrêscicatrizesemseupulso.—Comovocêfezisso?—eleperguntou,recebendocomorespostaapenasumolharfurioso.Depois desse episódio, ela nunca mais o convidou para a sua cama, o que ele interpretou como
puniçãoporaquelapergunta.Kiracuidavadeleselhesdavamuitodinheiro,masnemelenemJurijnemninguémdogrupoestavaautorizadoaperguntarsobreopassadodela.Faziapartedasregrasnãoescritas,eatéomomentonenhumdeleshaviatidoacoragemdesequerpensaremdescumpri-las.Paraobemoupara omal, ela era a benfeitora deles— sobretudo para o bem, eles achavam—, e cabia a eles seadaptar a seus caprichos e viver na incerteza de ela tratá-los com carinho, com frieza ou atémesmocastigá-los,seassimdecidisse.Jurij fechou o computador e tomou um gole do seu drinque. Os dois estavam tentando diminuir o
consumo de álcool, para que Kira não usasse isso contra eles. Mas era quase impossível. Muitafrustraçãoemuitaadrenalinaosfaziambeber.Janmexianocelularnervosamente.—AOlganãoacreditouemvocê?—perguntouJurij.—Nemumpouco,eembreveelaveráemtodososjornaisomeuretratofaladofeitoporumacriança.—Nãolevemuitoasérioessahistóriadoretratofalado.Parecemaisinvençãodapolícia.—Entãoestamostentandomatarumacriançasemamenornecessidade?—Oquenãomesurpreenderia.NãoeraparaKirajáterchegado?—Deveestarchegandoaqualquermomento.—Quemvocêachaqueera?—Quem?
—Aquelagarotaquesurgiudonada.—Nãofaçoamenorideia—disseJan.—NemseiseaprópriaKirasabe.Parecemaiséqueelaestá
preocupadacomalgumacoisa.—Imaginaseelaagoranãovaiquererqueagenteacabecomosdois,comagarotaeomenino.—Desconfioqueteremosquefazermaisqueisso.August não estava bem, e isso ficou evidente com asmanchas avermelhadas que surgiram em seu
pescoço. Ele cerrava os punhos com força. Sentada a seu lado, à mesa da cozinha em Ingarö etrabalhandoemseuRSAcriptografado,LisbethSalandertevemedodequeomeninofosseterumataque.MastudoqueaconteceufoiAugustpegarumgizdecerapreto.No mesmo instante, um vento forte sacudiu a janela ampla da cozinha, fazendo August hesitar e
começarapassaramãoesquerda ritmadamentena superfíciedamesa.Entãocomeçouadesenhar,umrisco aqui, outro ali, depois pequenos círculos, queLisbeth achou que erambotões, depois umamão,detalhesdeumqueixo,umacamisadesabotoada.Emseguida,começouadesenharmaisrápido,atensãofoidesaparecendodeseucorpoeseusombrosrelaxaram.Comoseumaferidaabertativessecomeçadoacicatrizar.Masaindaassimomeninonãopareciatotalmentecalmo.Seusolhostinhamumbrilhodesofrimentoedevezemquandoeletremiaderepente.Massemdúvida
algodentrodelehaviaseapaziguado,eagoraelepegavaalgunslápisdecornovos,passandoadesenharum chão de tábuas de madeira, um piso de carvalho coberto por peças de um quebra-cabeça que,possivelmente, formariam uma cidade iluminada à noite. Mesmo a essa altura já estava claro que odesenhoseriatudo,menosagradável.Amãoeacamisadesabotoadaeramdeumhomemforteecomumabarrigasaliente.Ohomemestava
parado, dobrado como um canivete suíço e inclinado sobre uma pessoa pequena deitada no chão,espancando-a,umapessoaquenãoeravisívelpelasimplesrazãodeserelaquemobservavaacenaerecebiaosgolpes.Nãohaviadúvidadequeeraumdesenhodesagradáveldever.Maselenãopareciaestarrelacionadoaoassassino,apesardetambémrevelarumcriminoso.Bemno
centrododesenho,Lisbethobservouumrostofuriosoemolhadodesuor,ondecadarugaforadesenhadacom grande precisão. Lisbeth reconheceu o rosto, ainda que não assistisse a muitos filmes nemfrequentassecinemas.MesmoassimelasabiaqueeraorostodoatorLasseWestman,opadrastodeAugust,porissoelase
aproximoumaisdomeninoedisse,comumaraivaindignadaecerteira:—Nósnuncamaisvamosdeixarelefazerissodenovocomvocê!Nuncamais!
21.23DENOVEMBRO
AlonaCasales entendeu que alguma coisa grave estava acontecendo quando viu a figura esguia docomandante Jonny Ingram se aproximar deEd theNed.Pelo seumodohesitante, estava claro que eletraziamásnotícias,oque,emcircunstânciasnormais,nãooincomodarianemumpouco.Jonny Ingramsempre tinhano rostoumesgarde satisfaçãoquandoapunhalavaalguémpelascostas.
ComEd,noentanto,eradiferente.AtéossuperioresmaisantigostemiamEd,quearmavaumaconfusãodos infernoscomquemmexessecomele,eJonnyIngramnãoerado tipoquegostavadeescândalosemenosaindadefazeropapeldeidiotanafrentedetodomundo.MasseeleiacomprarbrigacomEd,eraissoqueoaguardava.EnquantoEderafisicamenteforteedotipoexplosivo,JonnyIngrameraumrapazbem-apessoadode
classealta,pernasmagrasemodosligeiramenteafetados.Oponentederespeito,suainfluênciaalcançavadomíniosimportantes,fosseemWashingtonounomundodosnegócios.NaNSAelesóestavaabaixododiretor,CharlesO’Connor,emesmoqueJonnysemprefossevistocomumsorrisoabertoeparecendoumsujeitoagradávelqueelogiavatodomundo,essesorrisonuncachegavaaosolhosdele.JonnyIngrameratemidocomopoucosnaNSA.Eleconheciaopontofracodecadaumeeraresponsável,entreoutrasatividades,pela“monitoração
de tecnologiasestratégicas”,umamaneiracínicadedefiniradivisãodeespionagemindustrialdaNSA,quedavasuporteàindústriaamericanadealtatecnologiaemsuaconcorrêncianomercadointernacional.Masagora,alidiantedeEdcomseuternoelegante,ocorpodeJonnypareciaterencolhido,emesmo
sentadaatrintametrosdamesadeEd,Alonasabiaexatamenteoqueiaacontecer.Edestavaprestesaexplodir. Seu rosto cansado e pálido tinha começado a ficar vermelho, e de repente ele se levantou,exibindosuaimensabarrigaesuascostasassimétricas,berrandoaplenospulmões:—Seumerdaseboso!NinguémmaisalémdeEdchamariaJonnyIngramde“merdaseboso”,eAlonaoamouporisso.Augusttinhacomeçadoumnovodesenho.Elehaviaesboçadoalgumaslinhasnopapel.Agorapunhatantaforçaemseutraçoqueogizdecera
preto quebrou. Como na última vez, ele desenhava rápido, um detalhe aqui, outro ali, fragmentosdispersosiamseaproximandounsdosoutrosatéformaremumtodo.Denovo,omesmoquarto.Masoquebra-cabeçanochãoeraoutroe,dessavez,fácildereconhecer.Aliestavareproduzidoumcarrode
corridavermelhoeumamultidãonasarquibancadas,e,acimadisso,viam-sedoishomensparados.UmdeleseraLasseWestmandenovo.Dessavezeleestavadecamisetaebermudaecomumolhar
meio estrábico, avermelhado, parecendo bêbado e meio tonto. Mas essa condição não tornava suasfeiçõesmaissuaves.Elebabava.Emesmoassimnãoeraafiguramaisassustadoradailustração.Haviaooutro homem. Seu olharmortiço brilhava de puro sadismo. Tinha a barba por fazer e também estavaalcoolizado. Seus lábios eram finos, quase invisíveis, e ele parecia estar chutandoAugust. Embora omeninonãoaparecessedenovonodesenho,aausênciadeleeraoqueotornavaextremamentepresente.—Queméesseoutro?—perguntouLisbeth.Augustnão respondeu,mas seusombros se sacudirame suaspernas se torcerame se cruzarampor
baixodamesa.—Queméesseoutro?—insistiuLisbeth,eAugustentãoescreveuemseudesenho,comsuacaligrafia
infantileumpoucotrêmula:
Roger.OnomenãodizianadaaLisbeth.EmFortMeade,algumashorasdepoisdeseushackersteremlimpadoasalaeidoembora,Edfoiatéa
mesadeAlona.Oestranhoéqueelenãopareciamais furiosonemofendido.Emvezdisso, tinhaumaexpressãodesafiadoraenemestavamaisreclamandodedornascostas.Traziaumcadernonamão,eumdeseussuspensóriosestavasolto.—Eaí,meuvelho?—eladisse.—Estoumorrendodecuriosidade.Oquefoiqueaconteceu?—Mederamumasférias—elerespondeu.—VoudiretodaquiparaEstocolmo.—Comtantoslugaresparair,Estocolmo.Nãoéfriodemaislánestaépoca?—Sim,muitofrio.—Masnaverdadevocênãoestáindoparaládeférias.—Muitocáentrenós,claroquenão.—Agorafiqueimaiscuriosaainda.—JonnyIngrammandouagenteabandonarainvestigação.Ohackerquefaçaoquequiser,agoranós
sóprecisamosécuidardeunspoucosvazamentosdesegurançaedepoiséparaesquecerdetudo.—Comoeleteveacoragemdeordenarumacoisadessas?—Elealegouqueéparanãopiorarascoisaseagentenãocorreroriscodealguémdescobrirsobreo
ataque.Seriadevastadorparanós sedescobrissemque fomoshackeados.Sem falar da satisfaçãoquemuitaspessoasiamterdesaberqueachefiaiamandarmuitagenteparaaruaparasalvarasaparências,inclusiveestequevosfala.—Elechegouateameaçar?—Meameaçouomaisquepôde.Dissequeseriaumahumilhaçãopúblicaparamim,queeu ia ser
processadoepunidorigorosamente.—Masvocênãoestáparecendomuitopreocupadocomisso.—Euvouacabarcomessecara.
—Ecomovocêvaifazer isso?Esseimbecilestácheiodecontatosemtodosossetores,vocêsabedisso.—Eutambémtenhoosmeuscontatos.Alémdisso,agoranãoésóoIngramqueconheceospodresdos
outros.Omalditohackerteveagentilezadecolocarosnossoscomputadoresemredeenosdeixouverumpoucodanossaprópriaroupasuja.—Meioirônicoisso,hein?—Ecomo!Nadamelhor queumcriminosopara dedurar outro criminoso.No começonãovi nada
assimdetãoespecialcomparadoatudoqueandamosfazendo,masquandoexamineimaisdeperto…—Eaí?—Dinamitepura.—Comoassim?—Os subordinados do Jonny Ingram não guardam apenas informações confidenciais das empresas
para ajudar osnossosgrandes conglomerados.Muitasvezes, elesvendemessas informações a preçosaltíssimos,eessedinheironãovaiparaoscofresdaorganização…—…esimparaosbolsosdeles—completouAlona.—Exatamente.EutenhoprovassuficientesparamandarJoacimBarclayeBrianAbbotparaacadeia.—MeuDeus!—Isso já seriamais complicadocom Ingram.Tenhocertezadequeele éo cérebropor trásdessa
história.Senãoacoisatodanãofazsentido.Masinfelizmenteeuaindanãotenhonenhumaprova,oquepõetodaaoperaçãoemrisco.Claroquesempreháumachancedeexistiralgumacoisaconcretacontraelenoarquivoqueohackerbaixou,emboraeuduvide.Masagentenãovaiconseguirdecodificar.ÉumRSAcriptografadodojeitoqueodiabogosta.—Eoquevocêestápensandoemfazer?—ApertarocercoemvoltadoIngram.Deixarbemclaroparatodomundoqueosfuncionáriosdele
sãoaliadosdegrandescriminosos.—ComoosSpiders.—ComoosSpiders.Elesestãonomesmobarco.Foramsejuntarjustamentecomospiores.Eunãome
espantarianadaseelesestivessemenvolvidosaténoassassinatodoseuprofessordeEstocolmo.Elestinhampelomenosumgrandemotivoparaveressesujeitomorto.—Vocêsópodeestarbrincando.—Dejeitonenhum.Oseuprofessorsabiademuitacoisaquepoderiaincriminá-los.—Caralho!—Émaisoumenosporaí.—EagoravocêvaiparaEstocolmo,comosefosseumdetetiveparticular,investigaracoisatoda.—Nãocomoseeufosseumdetetiveparticular,Alona.Estouindocomtodaaretaguarda,eenquanto
euestivercuidandodissovoupegaraquelahackerdeumjeitoqueelanuncamaisvaiconseguirficarempé.—Espera,achoqueeuouvimal,Ed.Vocêdisseela?—Sim,minhacara,eudisseela.Ela!
OsdesenhosdeAugustfizeramLisbethviajarnotempoemaisumavezelaselembroudaquelepunho
batendonocolchão,ritmadaeincansavelmente.Lembrou-sedasbatidassurdas,dosgemidosedochoroquevinhamdoquartoaolado.Lembrou-seda
épocaemqueviveranaLundagatan,quandoasrevistasemquadrinhoseasfantasiasdevingançaeramseuúnico refúgio.Mas logodeixoude ladoessas lembranças.Limpouseu ferimento, trocoude roupa,verificouseapistolaestavadevidamentecarregadaeentrounolinkPGP.AndreiZanderqueriasabercomoelesestavameelalhedeuumarespostacurta.Láfora,atempestade
sacudiaasárvoreseosarbustos.Serviu-sedeumadosedeuísque,pegouumpedaçodechocolate,foiatéavarandaedaliatéumapequenainclinaçãorochosa,ondefezumminuciosoreconhecimentodoterreno,sobretudodeumapequena fendana parte inferior da encosta.Chegou até a contar seus passos até lá,memorizandocadadetalhedaquelaárea.Quando voltou para casa, viu queAugust tinha feito um novo desenho de LasseWestman eRoger.
Lisbethachouqueomeninodeviaestar sentindonecessidadede tirar tudoaquilodedentrodele.MasAugustaindanãohaviadesenhadonadasobreomomentodoassassinato,nemumsórabisco.Seráquesuamentehaviabloqueadoaexperiência?Lisbethfoi invadidapelasensaçãodesconfortáveldequeo tempoestavapassandosemquenadase
resolvesse.LançouumolharpreocupadoparaAugust,paraseunovodesenhoeparaosnúmerosqueeleregistrara no papel, e por um minuto ou dois concentrou-se neles, analisando sua estrutura. Então,subitamenteidentificouumasequênciadenúmerosquenãopareciaemsintoniacomasdemais.Erarelativamentecurta:2305843008139952128.Dessaveznãoeraumnúmeroprimo,esim—oque
elaachoubrilhante—umnúmeroque,namaisperfeitaharmonia,eraasomadetodososseusdivisorespositivos.Emoutraspalavras,eraumnúmeroperfeito,assimcomoo6podeserdivididopor3,por2epor1e3+2+1=6.Lisbethsorriuaoperceberissoederepenteumaideiabeminteressantepassouporsuacabeça.—Agoravocêvaiterquemeexplicartudo—disseAlona.—Euexplico—respondeuEd.—E,mesmosabendoquecomvocêistonemseriapreciso,queroque
meprometanãocontarnadaparaninguém.—Claroqueeuprometo,seutonto.— Ótimo. Foi assim: depois que eu falei umas verdades para o Jonny Ingram, para manter as
aparências eu acabei fingindo que dava razão para ele. Falei até que estava agradecido por ele tercolocadoumpontofinalnasnossasinvestigações.Sejacomofor,agentenãoiaconseguirnada,eudisse,e de certo modo isso é a mais pura verdade. Tecnicamente falando, havíamos esgotado as nossaspossibilidades. Havíamos feito de tudo e mais um pouco, mas não adiantava nada. O hacker tinhacolocado informações falsas por toda parte, nos fazia cair em novas armadilhas e labirintos o tempotodo.Umdosmeus rapazesdissequemesmoque, contra todasasprevisões, agentechegasseao fim,aindaassimnãoíamosacreditarquetínhamosconseguido.Agenteiapensarqueeraumanovaarmadilha.Estávamos esperando tudo desse hacker,menos fraquezas e erros. Então, se continuássemos domodo
usual,iríamosficaraliparasempre.—Masvocênãoémuitochegadoaomodousual.—Nãomesmo.Eu costumopôr fé em abordagensmais indiretas.Na verdade, nós não desistimos.
Continuamosfalandocomnossoscontatoseamigosdasempresasdesoftware.Fizemosnossasprópriasbuscas avançadas, escutas telefônicas e fomos atrás das nossas brechas. Sabe como é, num ataquesofisticado como esse que a gente sofreu, pode ter certeza de que há sempremuita pesquisa por trás.Algumasperguntasespecíficassãofeitas,determinadossitessãovisitados.Comisso,éinevitávelqueagenteacabeconhecendoalgumacoisadessetodo.Mas,acimadetudo,Alona,haviaumfatorpesandoanosso favor: a capacidade extraordinária desse hacker. Ela era tão grande, ele era um talento tãoinigualável, que isso reduziumuito o número de suspeitos. Imagina um criminoso que de repente saicorrendodacenadocrimeepercorrecemmetrosem9,7segundos.VocêconseguesabercomcertezaqueoculpadosópodeseroUsainBoltouumdeseusconcorrentes,nãoémesmo?—Entãoénessenível?—Hácoisasnesseataquequemedeixamdebocaaberta,eolhequeeu jávimuitacoisanaminha
vida.Por issoéqueagentededicoumuito tempo,muitomesmo,paraconversarcomoutroshackersecompessoasdedentrodessaindústria,parapodermosperguntar:gente,quemhojetemacapacidadedefazeralgograndeassim?Queméqueestádandoascartashojeemdia?Claroquetivemosquefazeressasperguntasdemodobemdissimulado,paraqueninguémdesconfiassedoquerealmentetinhaacontecidoconosco.Pormuitotempoficamosnamesma.Eracomodartirosnoescuroouberrarnumanoitevazia.Ninguémsabiadenadaoufingiaquenãosabia.Váriosnomesforammencionados,masnenhumpareciaserocorreto.PoralgumtempoachamosqueeraumrussochamadoJurijBogdanov,umex-drogadoqueconseguiaentraremqualquer lugare tambémhackear tudooque lhedessena telha.Quandoeleviviacomo mendigo em São Petersburgo, roubando carros com extrema facilidade, várias empresas desegurança tentaram contratar esse sujeito, que na época mais parecia um saco de ossos de quarentaquilos.Atémesmoopessoaldapolíciaedosserviçosdeinteligênciaqueriamtrazerocaraparaoladodeles,paraqueasorganizaçõescriminosasnãochegassemaeleprimeiro.Neméprecisodizerqueoshomensdaleiperderamessabatalha.HojeBogdanovestálivredasdrogas,ébem-sucedidoechegouacinquentaquilosdepele e osso.Temosquase certezadeque ele éumdos criminososda suagangue,Alona,porissoagentetambémacabouseinteressandoporele.Depoisdetodasasbuscasquefizemos,acabamospercebendoumaconexãocomosSpiders,masaí…—Vocêsnãoentenderamporqueumdelesirianosfornecernovaspistas?—Exatamente.Entãocontinuamosprocurandoe,depoisdeumtempo,apareceuoutrogruponasnossas
conversas.—Qual?— Eles se deram o nome de Hacker Republic e têm uma reputação incrível. São todos muito
competentesecuidadososcomsuascriptografias,esouobrigadoareconhecerquefazemissomuitobem.Nós emuitosoutroshackers já tentamosnos infiltrar nessegrupo, não sópara saberoque eles estãofazendo,mastambémparacontrataroscaras.Hojeabrigapelosmelhoreshackersécerrada.—Hoje,quandotodosnósviramoscriminosos.—É,talvezsim.Bom,dequalquermaneiraummontedegentenosdissequeénaHackerRepublicque
estão os maiores talentos. E temmais. Corria um rumor de que eles estavam armando alguma coisagrandeequeumsujeitoconhecidocomoBobtheDog,queachamosquedeveestarligadoaessegrupo,ficoupesquisandoefazendoperguntassobreumdosnossosrapazes,oRichardFuller.VocêconheceoRichard?—Não.—Éummaníaco-depressivotodocheiodesiquevemmedandoumadordecabeçatremendahámuito
tempo.Ocasoclássicodefuncionárioquerepresentariscodesegurança,umcaravaidosoedescuidadoquandoestánafasemaníaca.Ouseja,operfilclássicoqueosgruposdehackerscostumamternamira,epara saber disso é necessário ter acesso a informações confidenciais. A saúde mental dele não éexatamenteotipodecoisaqueandanabocadopovo.Nemaprópriamãedeleparecesabermuitodisso.MaseuestourazoavelmenteconvencidodequeachavedeentradadelesnaNSAnãofoioFuller.Nósexaminamos cada arquivo que ele recebeu nos últimos tempos e não encontramos nada. Nós oinvestigamosdacabeçaaospés.AchoqueoRichardFullerfaziapartedosplanosdaHackerRepublicdesdeoinício.Nãoqueeutenhaalgumaprovacontraogrupo,nãotenhomesmo,masalgumacoisamedizqueessegrupoéoresponsávelpelainvasão,especialmentedepoisqueexcluímosaparticipaçãodealgumapotênciaestrangeiranaoperação.—Vocêfaloudeumagarota.—Isso.Quandoinvestigamosessegrupo,agentelevantoutodasasinformaçõespossíveissobreeles,
apesardenãotersidonadafácilsepararosboatosdosfatosreais.Masteveumacoisaqueapareceucomtamanhaconstância,quenofimeunãotivemaiscomoquestionar.—Eoquefoi?—AgrandeestreladogrupoRepúblicadosHackerséalguémqueadotaonomeWasp.—Wasp?—Exatamente.Nãovou te aborrecer comdetalhes técnicos,masWasp éumaespéciede lenda em
algunscírculos,eumadasrazõeséasuacapacidadedefazerpoucodosmétodostradicionais.AlguémjádissequesepodereconheceramãodeWaspnumataquehackerdamesmaformaqueseidentificaMozartemumloopmelódico.Wasptemumestiloinconfundível,eissofoiumadasprimeirascoisasqueumdosmeusrapazesdissedepoisdeterestudadooataquequesofremos:“Issoédiferentedetudoquejávimosatéagora,uma formanova, surpreendente,umacoisaaomesmo tempo tradicional e inusitada, e aindaassimdiretaeeficiente”.—Ouseja,coisadegênio.— Sem dúvida. E assim começamos a procurar minuciosamente tudo o que pudéssemos encontrar
sobreesseWaspnainternet,paratomarmosadianteira.Eninguémficounemumpoucosurpresoquandonãoachamosabsolutamentenada.Essapessoanãodeixarastros,nadaabertoatrásdesi.Massabeoqueacabeifazendo?—disseEd,cheiodesi.—Oquê?—FuipesquisaraorigemdonomeWasp.—Claroquealgumacoisaalémdosignificadoliteral,“vespa”.—Isso,exatamente,masnãoporqueeuoualguémachassequeissoirianoslevaraalgumlugar.Mas
comoeujáfalei,senãodáparaandarpelaestradaprincipal,nãocustaprocurarumarotaalternativanas
estradaspróximas.Nuncasesabeoqueagentepodeencontrar.EoqueeuacabeiencontrandofoiqueWasppodesignificarqualquercoisa.WaspéonomedeumaviãodeguerrabritânicodaSegundaGuerraMundial, é uma comédia de Aristófanes, um curta-metragem bem conhecido de 1915, é uma revistasatírica da San Francisco do século XIX e também, é claro, a abreviação de White Anglo-SaxonProtestant.Sóqueachei todasessasreferênciasmeiosofisticadasparaumgêniodoshackers.Nãotemnadaavercomaculturadessemeio.Esabeoqueeuacheiqueencaixou?—Não.—Wasp,aheroínadaMarvelComics,umadasfundadorasdosVingadores.—Aqueladosfilmes.—Sim,domesmogrupodoThor,doHomemdeFerro,doCapitãoAméricaemaisunsoutros.Nos
primeirosquadrinhosoriginais,elainclusiveeraalíderdogrupo.Umapersonagembemlegal,tenhoqueadmitir,meio roqueira, rebelde, sevestedepretoedourado, temasasde inseto,cabelopretoecurto,todaseguradesi.Umagarotaoprimidaquesabesedefenderedaro trocoequetemacapacidadedemudar de tamanho. Todas as fontes que consultamos concordam que é essa a Wasp que estamosprocurando.Nãosignificaqueessapessoa,hoje,sejaumasuperfãdaMarvel;nãodeveserfaztempo,jáquenãoédeagoraqueessenomeandacirculando.Talvez seja algumacoisa ligadaà infânciaouumtoquedeironia,nadaquesignifiquemuito.Sóque…—Oquê?—Só que acabei descobrindo que essa rede criminosa que aWasp andou investigando também já
adotou apelidos dos personagens daMarvel uma época. Agora passou dessa fase. Às vezes eles sechamamdeTheSpiderSociety,nãoéisso?—Sim,mas tenho impressãodequeé sóumabrincadeiraqueeles fazemconosco,queosestamos
monitorando.—Claro, também acho.Mas até brincadeiras deixam suas pistas ou escondem alguma coisa séria.
VocêsabeoqueogrupoTheSpiderSocietydaMarvelfaz?—Não.—EleslutamcontraaSisterhoodoftheWasp.—Entendi. É um detalhe para a gente não esquecermesmo,mas ainda não sei como isso pode te
ajudar.—Vocêjávaificarsabendo.Nãoquerircomigoatéomeucarro?Euprecisoestarnoaeroportodaqui
apouco.MikaelBlomkvistsentiaosolhospesados.Nãoeratãotarde,masseucorpotodolheenviavasinaisde
quenãoestavaaguentandomais.Precisavairparacasadormirumpoucoedepoisrecomeçarotrabalhoànoiteounodiaseguintecedo.Talvezajudassesenocaminhoeleparasseparatomarumascervejas.Afaltadesonofaziasuacabeçadoereeleaindalutavaparaafastaralgumaslembrançasetemores.TalvezpudessepedirqueAndreioacompanhasse.Olhouparaoseucolega.Andreitinhajuventudeeenergiadesobra.Estavasentadoaliperto,escrevendonocomputadorcomo
setivesseacabadodechegar,edevezemquandofolheandosuasanotaçõescomentusiasmo.Noentanto
estavanaredaçãodesdeascincodamanhã.Eramquinzeparaasseisdatardeeelenãotinhafeitomuitaspausas.—Então,Andrei?Quetalirmostomarumacervejaecomermosalgumacoisaenquantodiscutimoso
caso?Andrei pareceu não ter entendido.Mas em seguida ergueu a cabeça e já não parecia tão cheio de
disposição.Fezumacaretaenquantomassageavaoombro.—Oquê?…Bem…talvez…—disse,hesitante.—Vouconsiderarissoumsim.QuetaloFolkoperan?OFolkoperaneraumbarerestaurantequeficavanaHornsgatan,pertodali, frequentadopormuitos
jornalistasepessoasligadasàarteeàculturadacidade.—Éque…—disseAndrei.—Oquê?—Équeeutenhoesseperfilparaescrever,édeummarchanddoBukowskisquepegouumtremna
estaçãocentraldeMalmöenuncamaisfoivisto.Erikaachouquecabianomix.—MeuDeus,quecoisasessamulherteobrigaafazer!— Bem, para ser sincero não penso assim, mas de fato não estou conseguindo encaixar na nossa
história.Estáconfuso,artificial.—Vocêquerqueeudêumaolhada?—Euadoraria,masantesprecisoescrevermais.Voumorrerdevergonhasevocêlerdojeitoqueestá.— Então vamos esperar. Mas qual é, Andrei? Vamos sair pelo menos para comer alguma coisa.
Depoisvocêvoltaecontinuatrabalhando,seprecisarmesmo—disseMikael.OlhouparaAndrei.Eleguardariaessalembrançapormuitotempo.Andreiestavacomumblazermarromexadrezeuma
camisabrancaabotoadaatéocolarinho.Pareciaumartistadecinema,umjovemAntonioBanderas,umBanderastodoindeciso.—Achomelhoreuficareresolveristoaquideumavez—disse,hesitante.—Eutenhocomidaaqui
nofreezer,depoisesquentonomicro-ondas.Mikael ficoupensandosedeviaapelarparaasuacondiçãodehomemmaisvelhoesuaposiçãode
chefeparafazercomqueeleoacompanhassenumacerveja,masacaboudizendo:—Estácerto.Amanhãdemanhãagentesevêentão.Eosdois?Comoelesestão indo lá?Nenhum
retratofaladodocriminosoainda?—Parecequenão.—Amanhã temosquepensar emoutra solução.Secuida.—Mikael sedespediuevestiuocasaco
parasair.LisbethselembroudealgumacoisaqueelatinhalidosobreossavantsnaSciencehaviamuitotempo.
Era um artigo do matemático italiano Enrico Bombieri, um especialista em teoria dos números, quemencionavaumapassagemdeOhomemqueconfundiusuamulhercomumchapéu,deOliverSacks,emque dois gêmeos autistas e portadores de deficiência mental ficavam confortavelmente sentados,balbuciandonúmerosprimoselevadosumparaooutro,comosediantedosolhosdeleshouvesseuma
espéciedepainelmatemáticointerioroucomoseosdoistivessemencontradoumatalhosecretoparaomistériodosnúmeros.Obviamente, o que esses gêmeos eram capazes de fazer e o queLisbeth pretendia conseguir agora
eram coisas diferentes.Mesmo assim achava que havia uma similaridade e estava decidida a tentar,mesmoquenofundoestivesseumpoucocética.Assim,acessounovamenteoarquivocriptografadodaNSAeseuprogramadefatoraçãodecurvaselípticas.Emseguidavirou-separaAugust,quelherespondeubalançandoocorpoparaafrenteeparatrás.—Númerosprimos—eladisse.—Vocêadoranúmerosprimos.Augustnãoolhouparaelanemparoudesebalançar.—Eutambémgostodeles—eladisse.—Mastemumacoisaquemeinteressamaisagora,queéa
fatoração.Vocêsabeoqueé?Comocorpobalançandoeosolhosfixosnamesa,Augustdavaaimpressãodenãoestarentendendo.—Afatoraçãoéaexpressãodeumnúmerocomooprodutodenúmerosprimos.Nessecontexto,eu
estouchamandodeprodutooresultadodeumamultiplicação.Estáentendendo?AugustnãopareciaestarouvindoeLisbethpensousenãodeviasimplesmentecalaraboca.—Segundo os princípios fundamentais da aritmética, cada número inteiro temuma única fatoração
primal, e isso é superbacana. Podemos obter um número simples como o 24 de muitas formas. Porexemploatravésdamultiplicaçãode12por2,oude3por8,oude4por6.Massóháumamaneiradefatoraressenúmerocomnúmerosprimos,queé2x2x2x3.Estáacompanhando?Todosessesnúmerostêmumaúnica fatoração.Oproblemaéqueé fácilmultiplicarnúmerosprimosparaproduzirnúmerosaltos,maséquaseimpossívelfazerocontrário,partirdoresultadoparachegaraosnúmerosprimos.Sóque uma pessoa bem malvada fez isso numa mensagem secreta, entendeu? É mais ou menos comoprepararumsucoouumabebida.Éfácilfazer,masdifícildesfazer.Augustnãopiscou,nãodisseumapalavra,maspelomenosnãoestavamaisbalançandoocorpo.—Vamosversevocêébomnafatoraçãodosprimos,August?Vamos?Augustnãosemoveunemumcentímetro.—Possoentenderissocomoumsim?Vamoscomeçarcomonúmero456?OolhardeAugustsetornoubrilhante,ausente,eLisbethmaisdoquenuncaachouaquelasuaideiaum
absurdo.Estavafrioeventavamuito,masMikaelachouqueoarfriolhefaziabemeodeixavamaisanimado.
NãohaviamuitagentenaruaeelecomeçouapensaremsuafilhaPernillaenoqueelatinhaditosobreescrever,queelaqueria“escreverdeverdade”.PensoutambémemLisbethenogaroto.Oqueosdoisestariamfazendoagora?NasubidaacaminhodeHornsgatspuckeln,parouuminstanteemfrenteaumavitrineparaobservarumquadro.Apinturamostravapessoasfelizesedescontraídasnumafesta,enaquelemomentopareceuaMikael,
provavelmente de forma enganosa, que fazia muito tempo que ele não se via daquele jeito, com umdrinquenamãoesempreocupaçãonenhuma,eporumsegundodesejouestarbemlongedali.Derepente,sentiuumarrepionocorpoeumasensaçãofortedeestarsendoseguido.Quandosevirouparaolharem
volta,viuqueeraumalarmefalso,talvezconsequênciadetudoquehaviaacontecidocomelenosúltimosdias.Aúnicapessoaali,atrásdele,eraumajovemincrivelmentebonita,comumcasacolongovermelho,
cabeloloirosoltoaovento,quesorriuparaeledeumjeitomeiotímido.Mikaelretribuiucomummeiosorriso,pensandoemcontinuarsuacaminhada.Seusolhos,porém,sedemoraramumpoucomaisnela,quemsabeintrigados,eMikaelficoupensandoseajovemnãoseriaumaespéciedealucinaçãoquelogoiasetransformaremoutrapessoa,emalguémmaiscomum.Quantomaiso tempopassava,mais fascinanteela ia se tornandoa seusolhoseMikael foi ficando
comoquehipnotizadopor sua beleza, como se ela fosse umagrande estrela quehavia se perdido emmeio àgente comum, e a verdade éque exatamente ali, naquelesprimeiros instantes deperplexidade,Mikaelmalseriacapazdedescrevê-laoudese lembrardeumminúsculodetalhesequerdaaparênciadela.Agarotapareciaumestereótipo,uma ilustraçãodeslumbrante saídadeumapáginade revistademoda.—Precisadealgumaajuda?—eleperguntou.—Não,não—elarespondeu,semostrandodenovoumpoucoenvergonhada,enãohaviacomonegar:
suainibiçãoeracativante.Nãoeraotipodemulherquedeviasertímida.Elapoderiateromundoaseuspés,sequisesse.—Entãoboanoite—eledisse,sevirandoparairembora,maselaodetevecomumpigarronervoso.—Desculpe,mas…vocênãoéoMikaelBlomkvist?—perguntoucomumtomdeincertezanavoz,
baixandoosolhosparaosparalelepípedosdarua.—Sim,soueu—elerespondeu,dandoumsorrisoeducado.Eleseesforçavaparacontinuarsorrindodaquelejeitoeducado,comofariacomqualquerpessoa.— Eu só queria dizer que admiro muito você— ela prosseguiu, levantando a cabeça devagar e
dirigindoumolharsombrioparaofundodosolhosdele.—Ficofelizdeouvirisso.Masjáfazmuitotempoquenãoescrevonadainteressante.Evocê?Quemé
você?—MeunomeéRebeckaSvensson.EumoronaSuíçaatualmente.—Eveiovisitarseupaís.—Infelizmenteporpoucotempo.SintosaudadesdaSuécia.AtédeEstocolmoemnovembro.—Agoravocêexagerou.—Masnãoéassimmesmo,quandoagenteestácomsaudadesdecasa?—Como?—Agentesentesaudadesatédascoisasruins.—Éverdade.—Massabeoqueeufaço?Euacompanhoasnotíciassuecas.Achoquenosúltimosanoslitodasas
reportagensdaMillennium—agarotadisse,eMikaelolhouparaelaoutravez,prestandoatençãoemcadadetalhedesuaroupa,desdeosapatopretodesaltoaltoatéoxalexadrezdecashmere,tudodealtaqualidade,peçascaraseexclusivas.RebeckaSvenssonnão tinhaoperfilda leitora típicadaMillennium.Masnãohavia razãoparaele
discriminarsuecosricosquemoravamnoexterior.
—VocêtrabalhanaSuíça?—eleperguntou.—Não,eusouviúva.—Entendo.—Àsvezesmesintoentediadademaisaqui.Vocêestáindoparaalgumlugar?— Eu estava pensando em beber e comer alguma coisa — ele respondeu, se arrependendo
imediatamente.Pareciaumconvite,maseraamaispuraverdade.Elepretendiamesmojantar.—Possolhefazercompanhia?—elaperguntou.— Claro — ele respondeu, hesitante, e então ela tocou rápido na mão dele, aparentemente sem
segundasintenções,oupelomenosfoinissoqueelequisacreditar.Elaaindapareciaacanhada.OdoisforamcaminhandolentamenteporHornsgatspuckeln,passandoporváriasgalerias.—Quedelíciaestarandandoporaquicomvocê—eladisse.—Foimeioinesperado.—Nãofoibemoqueeupenseiquefosseacontecerquandoacordeihoje.—Eoquevocêpensou?—Queseriamaisumdiachato,comosempre.—Nãoseisehojeeusouacompanhiamais indicada—eledisse.—Estoumuitoenvolvidonuma
novahistória.—Vocêandatrabalhandodemais?—Achoquesim.—Entãoprecisadeumapequenapausa—eladisse, sorrindoparaMikaeldeum jeitoencantador,
carregadodedesejoedealgumtipodesugestão.Naqueleinstante,eleteveasensaçãodequeaconheciadealgumlugar,comosejátivessevistoaquelesorriso,masemoutroformato,numespelhodistorcido.—Nósjánosencontramosantes?—eleperguntou.—Achoquenão.Claroqueeujávivocêumaporçãodevezesnatelevisãoenosjornais.—VocênuncamorouaquiemEstocolmo?—Sóquandoeuerapequena.—Ondevocêmorava?ElaapontounadireçãodaHornsgatan.—Foiumaépocamaravilhosa—disse.—Nossopaitomavacontadagente,cuidavadetudo.Devez
emquandopensonisso.Sintosaudadesdele.—Elejáfaleceu?—Morreumuitojovem.—Umapena.—É,àsvezesaindasintomuitafaltadele.Paraondeestamosindo?—Nãoseibem—eledisse.—TemumpublogoalinaBellmansgatan,oBishop’sArms.Conheçoo
dono.Éumbomlugar.—Tenhocerteza…Seurostovoltouaassumiraquelearenvergonhadoetímidoemaisumavezsuamãotocoudelevenos
dedosdele.DessavezMikaelnãotevecertezasetinhasidoporacasooudepropósito.—Ouseráquenãoéumlugarmuitoeleganteparavocê?
—Não,estáótimo—eladisse,comoquesedesculpando.—Équecostumomesentirexpostaempubs.Jáencontreimuitoscafajestesneles.—Euimagino…—Seráque…—Oquê?Elaolhouparaochãoecoroudenovo.Aprincípioeleachouqueestavavendocoisas,poisadultos
não coravam daquele jeito, certo? Mas aquela Rebecka Svensson, que parecia tão incrivelmentesedutora,realmenteenrubesciacomoumagarotadeescola.—Vocênãogostariademeconvidarpara ir à sua casa tomarumaouduas taçasdevinho?—ela
propôs.—Seriabemmaisagradável.—Bem…Elehesitou.Precisavadormirumpoucoparaestaremformanodiaseguinte.Aindaassimrespondeu:—Claro.TenhoumagarrafadeBaroloemcasa.—Porinstanteseleachouquealgumacoisamuito
excitantepodiaestarprestesaacontecer,comoseestivessemuitopróximodeembarcaremumaaventura.Suainsegurança,porém,nãotinhadesaparecido.Aprincípio,nãoentendeuporquê.Normalmentenão
tinhanenhumproblemacomessetipodesituaçãoe,paradizeraverdade,lidavabemcomoassédiodasmulheres.Noentanto foiobrigadoaadmitirquenaquelecaso tudoestavaacontecendo rápidodemais.Mas ele também já havia passado por situações semelhantes e costumava enfrentá-las demodomuitoprático. Portanto, não, não era a velocidade com que aquele encontro estava acontecendo o que oincomodava.Ounãoapenasisso.AlgumacoisanaprópriaRebeckaSvenssonoinquietava.Nãoeraapenasofatodeelaserjovemedeumabelezaestonteante,edequedeviatercoisasmelhores
parafazerdoquecaçarjornalistassuadoseexaustosdemeia-idade.Haviaalgonoolhardelaenomodocomo passava da confiança à timidez e depois da timidez à confiança de novo, além daqueleaparentementecasualtoquenasmãosdele.Tudoqueaprincípiotinhaparecidotãoirresistívelcomeçouaparecercadavezmaispremeditado.—Vocêémuitogentil—eladisse.—Prometonãoficaratémuitotarde.Nãoqueroprejudicarasua
história.—Euassumoaresponsabilidadepeloestragonaminhahistória—elerespondeu,tentandosorrir.Seu sorriso foi tudo menos espontâneo, e nesse instante Mikael captou algo estranho no olhar de
Rebecka,uma frieza repentinaquenumsegundo,porém, se transformounooposto, emafeiçãoe caloroutravez, comose ela fosseumaatriz famosa fazendoumademonstraçãode seu talento.Entãoele seconvenceudequerealmentehaviaalgoestranho.Apenasisso.Nãofaziaideiadoqueseriae,pelomenosporenquanto,nãopensavaemdeixarclaraasuadesconfiança.Primeiroqueriaentender.Oqueestavaacontecendo,afinal?Mikaelsentiuqueeraimportanteparaeleresolveraqueleenigma.ContinuaramandandopelaBellmansgatan, emboraMikaelnãopretendessemais levá-laparaacasa
dele.Masprecisavaganhartempoparadescobriroqueestavaacontecendo,eolhoudenovoparaela.Defatoeraumamulheradorável.Masnãotinhasidoabelezaaprimeiracoisaqueoatraíranela.Tinhasidoalgomaisdoque isso,algomais fugidioque transportousuamenteparaummundomuitodiferentedoglamorosomundodasrevistasdemoda.NaqueleinstanteRebeckaSvenssoneraumenigmaqueeledevia
resolver.—Queparteagradáveldacidade…—elacomentou.—Nãoédaspiores—elerespondeu,pensativo,olhandonadireçãodoBishop’sArms.Na esquina oposta aoBishop’s, um pouco acima na rua, um homemmagro de boné preto e óculos
escurosconsultavaummapa.Nãoseriadifíciltomá-loporumturista.Eleseguravaumamaletadecouromarrom numa das mãos, usava tênis brancos e jaqueta preta de couro com gola de pele. Emcircunstânciasnormais,Mikaelnemteriareparadonele.Mas agora que ele tinha deixado de ser um observador inocente, achou que alguma coisa nos
movimentosdohomempareciatensaeartificial.ClaroquepodiasersóporqueMikaeltinhacomeçadoasuspeitar de algo.Mas ele realmente achou que o jeito levemente casual como o homem segurava econsultavaomapapareciaumaencenação,eagoraohomemtinhaatémesmoerguidoacabeçaparaolharMikaeleamulher.Eleosanalisoudetidamenteporalgunssegundos,depoisvoltouaolharparaoseumapa.Masnãofez
issomuitobem.Ohomempareciaincomodado,comosequisesseesconderorostocomoboné,ealgonessegesto,namaneiracomoeleinclinouquasetimidamenteacabeça,lembrouaMikaeloutracoisa,eelemaisumavezlançouumolharavaliadorparaosolhosescurosdeRebeckaSvensson.Olhava-a com insistência, de forma profunda, e ela lhe devolveu um olhar cheio de afeição, que
Mikaelnãoretribuiu.Aocontrário,analisou-acomseriedadeeaindamaisdeterminaçãoeconcentração.Então, nomesmo instante a expressão deRebecka se tornou fria, e foi só nessemomento queMikaelretribuiuosorrisodela.Eelesorriuporquederepenteafichatinhacaído.
22.NOITEDE23DENOVEMBRO(HORÁRIOSUECO)
Lisbethselevantoudamesaredonda.NãoqueriamaisincomodarAugust.Omeninojásofriapressãosuficienteeaideiadelahaviafracassado.Étípicoaspessoasdespejaremgrandesexpectativassobreossavants.OqueAugusttinhafeitocom
osnúmerosjáerabemimpressionante,eLisbethfoiseencaminhandoparaavarandaenquantoapalpavacom cuidado seu ferimento, que ainda doía muito. Então ouviu um ruído atrás de si, como alguémraspandonumpapelapressadamenteevoltouparaamesa.Eemseguida,deuumsorriso.Augusttinhaescrito:2333319Lisbeth se sentou perto dele e, dessa vez sem encarar o menino, disse: — Muito bem! Estou
impressionada.Masvamosdificultarumpoucomaisascoisas.Tente18206927.Augustestavacurvadosobreamesa,eLisbethachouquepodiaterexageradoaolhedar,direto,um
númerodeoitodígitos.Se,noentanto,elesquisessemteramínimachancedeprogredir,precisariamirmuitoalémdisso,eelanãosesurpreendeuquandoviuocorpodeAugustbalançandoparaafrenteeparatrásdenovo,nervosamente.Algunssegundosdepoiseleseinclinousobreamesaeescreveunafolhadepapel:941931933—Muitobem!Quetal971230541?Augustescreveu:98339913997.—Grande!—disseLisbeth,propondooutrosdesafiosaogaroto.AlonaeEdestavamdoladodeforadoedifíciopretoemformadecubocomsuasparedesdevidro
espelhado, emFortMeade,noestacionamento lotado,nãomuitodistantedogrande radomo, comsuasantenasesatélites.Edgiravanervosamenteaschavesdeseucarronumadasmãos,observandoaflorestaqueoscircundavaparaalémdacercaelétrica.Precisavairlogoparaoaeroportoedissequejáestavaatrasado.MasAlonanãoqueriadeixá-lopartir.Elabalançavaacabeça,comamãopousadanoombrodele.—Quecoisamaisdoentia!—Comcertezaébemforadocomum—eledisse.— Então, cada pseudônimo que pegamos no grupo, Spider, Thanos, Enchantress, Zemo, Alkhema,
Cycloneetodososoutros,naverdadesão…
—…inimigosdaWaspnosprimeirosquadrinhosdasérie.Éissoaí.—Quemaluquice!—Umpsicólogoadorariaessematerial.—Sópodeseralgumtipodefixação.—Comcerteza.Eutenhoasensaçãodequeexisteumódiopesadoporlá.—Prometetomarbastantecuidado?—Nãoseesqueçadequeeujáfuimembrodeumagangue.—Masfoihámuitotempo,Ed,muitosquilosatrás.—Nãotemnadaavercompeso.Écomosedizporaí:“Vocêpodetirarocaradogueto…”.—…“masnãopodetiraroguetodocara”—completouAlona.—Agentenuncase livradopassado.Alémdisso,voureceberajudaemEstocolmo.Eles têmtanto
interessequantoeuemacabarcomessehackerdeumavezportodas.—EseoJonnyIngramdescobrir?—Aínãoserianadabom.Mas,comovocêpode imaginar,andeipreparandoo terreno.Até troquei
umaouduaspalavrinhascomoO’Connor.—Eubemquedesconfiei.Possoteajudarcomalgumacoisa?—Pode.—Diga.—OpessoaldoJonnyIngramparecequeestápordentrodetodaainvestigaçãodapolíciasueca.—Vocêdesconfiaqueelesestejamespionandoapolíciasueca?—Ouissoouelestêmuminformanteemalgumlugar,porexemploalgumaalmaambiciosadaPolícia
deSegurançasueca.Seeupuservocêemcontatocomdoisdosmeusmelhoreshackers,vocêdariaumainvestigadanissopramim?—Parecearriscado.—Estácerto,esqueça.—Não,eugosteidaideia.—Obrigado,Alona.Eumandomaisinformações.—Boaviagementão!—eladisse.Edsorriucomarconfiante,entrounocarroepartiu.Aorepassaroquetinhaacontecido,Mikaelnãoconseguiaexplicarcomoelehaviasedadocontade
tudo.Talvez tivesse sidoalgumacoisa aomesmo tempodesconhecidae familiarno rostodeRebeckaSvensson, e quando a total harmonia daquele rosto lhe lembrou seu oposto eMikael juntou tudo comoutrospressentimentosesuspeitasquevieramàsuamenteenquantotrabalhavaemseuartigo,foiqueeletevearesposta.Aindanãopossuíatodasasrespostas,masagoratinhacertezadequealgoestavamuitoerrado.O homem da esquina que ele agora via se afastando com suamaletamarrom e seumapa era sem
sombra de dúvida o mesmo que as câmeras de segurança haviam flagrado na casa de Balder emSaltsjöbaden.Comoera altamente improvávelqueohomemestivesse lá apenaspor coincidência, por
algunssegundosMikaelpermaneceuquieto,parado,refletindo.Emseguida,sevoltouparaajovemquediziasechamarRebeckaSvenssonedisse, tentandodemonstrarautoconfiança:—Seuamigoestáindoembora.—Meuamigo?—Asurpresadelapareceuverdadeira.—Comoassim?—Aquele lá—eledisse, apontandoparaascostasmagrasdohomemque já iadesaparecendodo
campodevisãodeles,meioclaudicante,rumoàTavastgatan.—NãoconheçoninguémaquiemEstocolmo…Vocêestábrincandocomigo?—Oquevocêquerdemim?—Eusóqueriateconhecermelhor,Mikael—elarespondeu,fazendoumgestodequemiadesabotoar
ablusa.—Podeparar com isto!—ele exclamoucom firmeza e ia começar a dizer a elaoque ele estava
achando,quandoRebeckaoolhoudeumjeitotãofrágilecomovente,queodeixoucompletamentesemação,fazendo-oseesquecerdoqueiadizer,eporummomentoeleachouquehaviaseenganado.—Vocêestázangadocomigo?—elaperguntoucomarmagoado.—Não,éque…—Oquê?—Eunãoconfioemvocê—eledisse,deumjeitomaisgrosseirodoquepretendia.Elasorriumelancolicamente.— Bem que eu notei que você não estava inteiro aqui, Mikael, que você não estava sendo você.
Melhornosvermosoutrodia.Eladeuumbeijoemseurostotãorápidaediscretamente,queelemaltevetempodeimpedi-la.Em
seguidaacenouparaeledeummodosedutoredesapareceuladeiraacimacomseusapatodesaltoalto,tão segura de si e tranquila como se nada no mundo a preocupasse. Por um momento Mikael ficoupensando se não deveria detê-la e encontrar alguma forma de interrogá-la, mas depois percebeu ainutilidadedaquiloedecidiuapenassegui-la.Sabiaqueeraloucura,masnãoviaoutrasolução.Deixou-adesaparecermaisacimanaruaedepois
foi atrás dela, apressando o passo até o cruzamento, convencido de que a jovem não teria idomuitolonge.Masaochegarlánãoviunemsinaldela.Nemelanemohomemestavamporali,comoseaterraostivesseengolido.Aruaestavavazia,anãoserporumaBMWpretatentandoestacionarmaisadianteeporumrapazdecavanhaqueecomumantigocasacoafegãoquevinhacaminhandonosentidodeledooutroladodarua.Paraondeosdois teriam ido?Alinãoexistiamvielasporonde seevadir,nenhumbecoescondido.
Teriamentradoemalgumprédio?MikaeldesceupelaTorkelKnutssonsgatan,olhandoparaaesquerdaeparaadireita.Nada.PassoupeloantigoSamirsGryta,quenopassadotinhasidoseulugarfavoritoequeagora se chamava Tabbouli e era um restaurante libanês, onde tanto ela quanto o homem da esquinapoderiamterpensadoemseesconder.SebemqueMikaelnãoentendiacomoelateriatidotempodechegaratéalisemqueeleavisse,jáque
aestavaseguindobemdeperto.Ondediaboselaestava?Seráqueelaeohomemoestariamobservandodealgumlugar?Porduasvezesseviroudepressa,coma impressãodequealguémtinhasurgidoatrásdele,eumavezaté saltouquandosentiuumarrepionocorpoporcausadasensaçãodequealguémo
observavaatravésdeumamiratelescópica.Maspelojeitoeraumalarmefalso.Ohomemeamulhernãoestavamàvista,equandoeleporfimdesistiudeprocurá-losecomeçoua
voltar para casa, teve o pressentimento de haver escapado de um grande perigo. Não sabia se essasuspeitatinhabasesólida,masofatoéqueseucoraçãobatiaforteesuagargantaestavaseca.Elenãocostumavaseassustarcomfacilidade,masagoracaminhavaamedrontadoporumaruatotalmentevazia.Nãodavaparaentender.AúnicacoisaqueeledefatoentendiaeraanecessidadedefalarcomHolgerPalmgren,oex-tutorde
Lisbeth.Antes,porém,iriacumprirseudeverdecidadão.SeohomemqueeleacabaradevernaruaeraamesmapessoaqueeletinhavistonascâmerasdesegurançadacasadeBalder,ehouvessepelomenosuma pequena chance de ele ser encontrado, a polícia precisava saber disso. Telefonou para JanBublanski,enãofoinadafácilconvenceroinspetor.Nãoforafácilconvencernemasimesmo.MasprovavelmenteMikaelaindatinhaalgumareservade
credibilidade com que contar, embora ultimamente tivesse sido obrigado a contornar um pouco averdade.Bublanskidissequemandariaumaunidadeaolocal.—Porqueeleestariaaínoseubairro?—Nãosei,masachoquenãodóinadaprocurá-lo.—É,achoquenão.—Boasorte,então!—ÉumverdadeirodesastreAugustBalderaindaestarperdidoporaí—acrescentouBublanskiem
tomdereprimenda.—Eéumdesastreaindamaiorovazamentodainformaçãotervindodevocês—rebateuMikael.—Poislheinformoquejáidentificamosdeondevinhaonossovazamento.—Émesmo?Issoéfantástico.—Infelizmentenãoé tão fantásticoassim.Achamosquepode terhavidováriosoutrosvazamentos,
embora,comexceçãodesteúltimo,amaioriasejarelativamenteinofensiva.—Entãovocêsprecisamseassegurardequeencontraramoinformantecerto.—Estamostrabalhandomuitonisso.Começamosasuspeitarque…—Oquê?—Nada…—Tudobem,vocênãoéobrigadoamecontar.—Vivemosnummundodoente,Mikael.—Sério?—Ummundoemqueparavocêsemantersaudávelvocêprecisaserparanoico.—Vocêdevetertodaarazão.Boanoite,inspetor!—Boanoite,Mikael!Nãovámefazernenhumabesteira.—Voutentar.Mikael atravessou a Ringvägen e desceu para o metrô. Pegou a linha vermelha para Norsborg e
desembarcouemLiljeholmen,ondeHolgerPalmgren,faziaalgunsanos,moravanumpequenoemoderno
apartamentosemportaria.HolgerPalmgrenpareceuassustadoaoouviravozdeMikaelpelointerfone,masassimqueelegarantiuqueestavatudobemcomLisbeth—Mikaeltorciaparanãoestarmentindoaoafirmarisso—,sentiuqueeramaisdoquebem-vindo.HolgerPalmgreneraumadvogadoaposentadoquehaviasidooresponsávellegalporLisbethdesde
que ela tinha treze anos e fora internada na clínica psiquiátrica infantil do hospital Sankt Stefan, emUppsala.Holgernãoenvelhecerabem, tinhasobrevividoadoisoutrêsderrames.Nosúltimostempos,vinhasemovimentandocomdificuldade,eprecisavadaajudadeumandador.O ladoesquerdodeseurostoestavaparalisadoeamãoesquerdaperderaa função.Massuamente
mostrava-seativaetinhaumamemóriasensacional,principalmentepararesgatareventosdopassadodeLisbethSalander.NinguémconheciaLisbethcomoele.Palmgrenforabem-sucedidocomelaonde todosospsiquiatrashaviamfalhado,ou talvezondenem
tivessemseesforçadoparaobtersucesso.Depoisdeumainfânciainfernal,emqueLisbethperderatodaaconfiançanosadultoseeminstituições,Holgerconseguirasetornaralguémpróximodelaefazê-lafalar.Mikaelviaissocomoumpequenomilagre.LisbetheraopesadelodetodososterapeutaseforaaHolgerqueelarevelaraaspartesmaisdolorosasdesuainfância,porissoMikaelagora,depoisdeterdigitadoocódigodeentradadonúmero96daLiljeholmstorget,pegavaoelevadorparaoquintoandaretocavaacampainhadacasadele.—Meuvelhoequeridoamigo—Holgerosaudou,abrindoaporta.—Quecoisamaravilhosaver
você!Masvocêestáparecendoumpoucopálido,Mikael.—Nãoandodormindobem.—Énatural,quandohápessoasatirandoemvocê.Fiqueisabendopelosjornais.Quehistóriahorrível!—Poisé.—Aconteceumaisalgumacoisa?— Já lhe conto tudo—disseMikael, sentando-se numvistoso sofá amarelo, próximo à varanda e
aguardandoHolgerseacomodarcommuitoesforçonumacadeiraderodas,aolado.Emseguida,Mikael lhecontoutodaahistóriaempoucaslinhas.Aochegaràparteemquedizia ter
tido aquele súbito pressentimento ou suspeita na Bellmansgatan, a rua de paralelepípedos onde elemorava,Holgerointerrompeubruscamente:—Oquevocêestáinsinuando?—AchoqueeraCamilla.Holgerestavaatônito.—AquelaCamilla?—Essamesmo.—MeuDeus!Eoqueaconteceudepois?—Elasumiuemeucérebropareciaqueiaexplodir.—Énatural.PenseiqueCamillativessedesaparecidodafacedaTerraparasempre.—Eumesmojátinhameesquecidodequeexistiaessaoutra.—Sim,comcerteza.Duasirmãsgêmeasqueseodiavam.—Eujásabiadessahistória.Maspreciseimerelembrardelaparadarimportânciaaocaso.Fiqueime
perguntandoporqueLisbethteriaseenvolvidotantonessahistória,porqueumasuper-hackercomoelaficoutãointeressadanumsimplesvazamentodedados.
—Eagoravocêqueraminhaajudaparaentender.—Émaisoumenosporaí.—Estábem—começouHolger.—Vocêjáconheceoenredodahistória,nãoé?Amãedelas,Agneta
Salander, trabalhava como caixa no supermercado Konsum e morava sozinha com as duas filhas naLundagatan. Elas poderiam ter tido uma boa vida juntas.Não haviamuito dinheiro,Agneta eramuitojovemenãotiveraapossibilidadedeestudar,maseraumamãeamorosaequecuidavabemdasmeninas.Queriaproporcionarumaboainfânciaparaelas.Noentanto…—Opaidevezemquandoiavisitá-las…— Isso mesmo, o pai, Alexander Zalachenko, às vezes passava por lá, e suas visitas sempre
terminavamdamesmamaneira.EleviolentavaeespancavaAgneta,enquantoasfilhas,noquartoaolado,ouviamtudo.UmdiaLisbethencontrouamãeinconscientenochão.—Foiquandoelasevingoudelepelaprimeiravez.—Não,pelasegundavez.ElajáhaviaesfaqueadoZalachenkonoombro.—Ah,issomesmo.Nessasegundavezelajogouumacaixadeleitecheiadegasolinanocarrodelee
pôsfogo.—Exatamente.Zalachenkoardeucomouma tochae suasqueimaduras foram tãogravesqueele foi
obrigadoaamputarumdospés.Lisbethfoiinternadanumaclínicapsiquiátricainfantil.—EamãefoiinternadanacasadesaúdedeÄppelviken.—Sim,eparaLisbethessafoiapartemaisdolorosadetodaahistória.Suamãetinhaapenasvintee
nove anos e depois disso nuncamais foi amesma. Viveu nessa clínica por catorze anos com lesõescerebraisgravesedoressemfim.Malconseguiasecomunicar.Lisbethavisitavasemprequepodiaeseiqueelasonhavaqueumdiaamãeserecuperasseeelaspudessemvoltaraconversareacuidarumadaoutranovamente.Masissonuncaaconteceu.ÉagrandetristezadavidadeLisbeth.Tervistoamãesofrertantoeirmorrendoaospoucos.—Eusei,éhorrível.MasnuncaentendiopapeldeCamillanessahistória.—Éumaquestãomuitodelicadaeachoqueameninadealgumaformadeviaserperdoada.Elanão
passavadeumacriançae,antesmesmodetertidoconsciênciadealgumacoisa,acabousetornandoumfantochenaquelejogo.—Oqueaconteceu?—Cadaumaescolheuoseuladonadisputa,vamosdizerassim.Elassãogêmeas,mas,nuncaforam
parecidas em nada, nem fisicamente nem no temperamento. Lisbeth nasceu primeiro. Camilla chegouvinteminutosdepoisedesdepequenaeraextremamentebonita.EnquantoLisbetheraumacriançasemprezangada,Camillaescutavadetodomundo“Ah,quemeninamaislinda!”,enãodevetersidoàtoaquedesdeosprimeirosmomentosdevidadesuas filhasZalachenko tenhasemostradomais tolerantecomCamilla,acriançamaisperfeita.Digotolerânciaporquenãopassoudissonosprimeirosanos.Damesmaforma que ele viaAgneta como apenas uma prostituta, as filhas dela eram somente as filhas daquelaprostituta,umascoitadinhasqueestavamnoseucaminho.Mesmoassim…—Oquê?— Mesmo assim até Zalachenko notou a beleza impressionante de uma das meninas. Lisbeth
costumavadizerquehaviaumerrogenéticoemsuafamília,eaindaqueeuduvidequeessaafirmação
resistaaumaanáliseclínica,nãosepodenegarqueZala tevefilhoscomalgumtipodeanormalidade.VocêconheceuRonald,omeio-irmãodaLisbeth,não foi?Ele era loiro, enormee sofriade analgesiacongênita, a incapacidade de sentir dor, por isso acabou se tornandoumhomemcruel e umassassinoideal,enquantoCamilla…bem,nelaoerrogenéticoestavaemelaserincrívelecovardementelinda,oquesófoipiorandoàmedidaquecrescia.Edigoquesófoipiorandoporqueestouconvencidodequesuabelezafoiumaespéciedeazarqueficouaindamaisevidentenacomparaçãocomairmã,queviviadesleixadae emburrada.Muitos adultosnãoescondiamseudesagradodiantedeLisbeth.Mas,quandoestavamcomCamillasetransformavam,ficavamfelizeseiluminadospelabelezadaquelacriança.Vocêconsegueimaginaroquantoissopodetê-laafetado?—Devetersidobemcomplicado.—Nãome refiro aLisbeth, poisnuncanoteinenhumsinalde invejanela.Se fosse apenaspor sua
beleza, a irmã seriamuito bem-vinda na vida dela. Estou falando de Camillamesmo.Você consegueimaginaroquesignificaparaumacriançaquejánãoéempáticapornaturezaouvirotempotodocomoelaédivinaemaravilhosa?—Sobeàcabeçadela.—Issolhedáumasensaçãodepoder.Quandoelasorri,todossederretem.Quandoelanãosorri,as
pessoas se sentem excluídas e farão de tudo para vê-la alegre novamente. Desde pequena Camillaaprendeu a explorar esse poder.Tornou-semestre nessa arte, na arte damanipulação.Ela tinha olhosgrandeseexpressivos.—Aindatem.—LisbethmecontouqueCamillaficavahorasnafrentedoespelho,treinandooseuolhar.Seusolhos
eramumaarma fantástica,podiamencantaredesdenhar, atraire repelir, fazendocriançaseadultos sesentiremprivilegiadoseespeciaisnumdiae totalmentemiseráveise rejeitadosemoutro.Eraumdomperverso,e,comovocêpodeimaginar,elalogosetornoumuitopopularnaescola.Todosqueriamestarcomela,eCamillaseaproveitavadissode todasasmaneiras.Todososdiasdavaumjeitodeganharalgumpresentedeseuscolegas:balas,chocolates,moedas,brinquedos,pérolas,broches.Quemnãolhedessecoisaounãosecomportassecomoelaqueria,nãorecebianemumolharounemumcumprimentoseunodiaseguinte,etodosquehaviamumdiatidooprivilégiodesebanharemseuesplendorsabiamcomoeradolorososerexpulsodomundoencantadodeCamilla.Seuscolegasfaziamdetudoparacairnasgraçasdela.Todosaidolatravam,comumaexceção,claro.—Airmã.—Exatamente.PoressarazãoCamillajogouseuscolegascontraLisbeth.Elaincentivouperseguições
cruéis à irmã, em que eles punham a cabeça de Lisbeth no vaso sanitário enquanto a chamavam demonstro,retardadaeaxingavamdetodososnomes.Issocontinuouatéodiaemquedescobriramcomquemestavammexendo.Masessaoutrahistóriavocêjáconhece.—Lisbethnuncafoideofereceraoutraface.—Nãomesmo.Masointeressantenessahistória,psicologicamentefalando,équeCamillaaprendeua
controlareamanipularseuentorno.Eladominavatodomundo,comexceçãodeduaspessoasimportantesemsuavida,Lisbetheopai,eissoacontrariavademais.Elainvestiumuitaenergiaemvenceraslutascontraosdois,eéclaroquecomelesprecisavaadotarestratégiasdiferentes.Elanuncaconseguiufazer
Lisbethficardoseulado,masachoquenofundoessenãoeraseugrandeobjetivo.ParaCamilla,Lisbetherasóumagarotaestranha,arroganteeeternamentemal-humorada.Jáopai…—Amaldadeempessoa.—Eleeramau,mastambémoeixogravitacionaldafamília.Tudogiravaemtornodele,aindaqueele
nãoestivessesemprenacasa.Eraopaiausente,emesmoemfamíliasnormaisessaausênciaassumeumcarátermísticoparaumacriança.Masnessecasofoibemmaisqueisso.—Comoassim?— Acho que Camilla e Zalachenko eram uma combinação infeliz. Embora Camilla dificilmente
entendesseistonaquelaépoca,achoqueelajáestavainteressadanumaúnicacoisa:poder.Equantoaseupai… Bem, podemos dizer muitas coisas sobre ele, menos que não tivesse poder de sobra. Muitaspessoas podem confirmar isso, inclusive a nossa pobre Säpo. Eles enfiavam o pé na porta, falavamgrosso, faziam exigências, investigavam, mas quando se viam frente a frente com Zalachenko seencolhiam como um rebanho de carneirinhos amedrontados. Havia em Zalachenko uma grandiosidadedetestável,claramenteamplificadapelofatodeleserumintocávelenãofazerdiferençanenhumaquantasvezes ele fosse denunciado aos serviços sociais. A Säpo o protegia, e quando Lisbeth percebeu quesempreseriaassim,convenceu-sedequecabiaaelaassumiraresponsabilidadedefazerjustiçacomasprópriasmãos.ParaCamilla,porém,ascoisasforambemdiferentes.—Eladesejavaserigualaopai.— Sim, creio que sim. O pai era o seu ideal. Ela também queria para si aquela mesma aura de
imunidadeeforça.Mas,acimadetudo,oquetalvezelamaisquisessefosseoreconhecimentodele.Servistacomoumafilhaàalturadele.—Eladeviasaberqueelemaltratavasuamãedeumaformaterrível.—Claroquesabia.Mesmoassimescolheuoladodopai.Preferiuaforçaeopoder,digamosassim.
Mesmoquandoeraapenasumagarotinha,eladiziafrequentementequedesprezavapessoasfracas.—Entãovocêachaqueeladesprezavaaprópriamãe?—Infelizmenteéoqueeuacho.UmavezLisbethmecontouumacoisaquenuncamaisvouesquecer.—Oquê?—Nuncaconteiissoaninguém.—Seráquenãochegouahoradecontar?—É,talvez,masantesprecisodeumabebidaforte.Quetalumaboadosedeconhaque?—Nãoseriamáideia.Masfiquesentadoaíqueeuvoupegaragarrafaeunscopos—disseMikael,
indoatéoarmáriodemognoqueficavajuntoàportadacozinhaeondeestavamguardadasasbebidas.Quandoelecomeçavaadarumaespiadanasgarrafas,seuiPhonetocou.EraAndreiZander,oupelo
menosseunomeaparecianatela.Porém,quandoeleatendeu,aligaçãojátinhasidoencerrada.MikaelachouqueAndreideviaterligadosemquerer.Emseguida,umpoucopensativo,eleserviuduasdosesdeRémyMartinevoltouasesentarnosofá.—Entãomeconte—disse.—Nem sei bempor onde começar.Enfim…Numdia lindo de verão, pelo que entendi,Camilla e
Lisbethestavamtrancadasnoquartodelas.
23.NOITEDE23DENOVEMBRO
O corpo de August tinha enrijecido de novo. Ele não conseguia mais encontrar as respostas. Osnúmeroshaviamsetornadoimensose,emvezdesegurarolápis,eletinhaapertadoospunhoscomtantaforçaqueodorsodesuasmãosficoubranco.Eletambémdeuumacabeçadanotampodamesa,eclaroqueLisbethdeviateridoconsolá-loouaomenosteridoverseelenãotinhasemachucado.Mas elanão estavamuito atenta aoque estava acontecendocomAugust.Sua cabeça tinha idopara
outrolugar,paraoarquivocriptografado,eelacomeçavaaperceberquenãoiachegaralugarnenhumseguindo esse caminho, o que também não a surpreendia nem um pouco.ComoAugust iria conseguiralgumacoisaquenemmesmosupercomputadoreshaviamconseguido?Asexpectativasdelatinhamsidoaltasdemaisdesdeoinício,eoqueogarotofizerajáerabemimpressionante.Apesardissoelasesentiafrustradaefoiparaavarandaàsescurasobservaraquelapaisagemestérilemaltratadapelotempo.Maisabaixoelaviuumcampocobertodeneveeumpavilhãoabandonadoondeantestinhahavidoumapistadedança.Nos dias perfeitos de verão aquele lugar devia fervilhar de gente. Agora tudo estava deserto. Os
barcostinhamsidoretiradosdaágua,nãoseviaumasópessoa,nãohavialuzesacesasnascasasnooutroladodolagoevoltaraaventarforte.Aomenos,elapensou,olugarserviriacomoesconderijoatéofimdenovembro.Claroquedificilmenteelaescutariaosomdealgummotor,seaparecessealguém.Oúnicolugaronde
sepodiaestacionarumcarroeraláembaixo,juntoàpraia,edepoisseriaprecisogalgarosdegrausdemadeira ao longo da íngreme elevação rochosa. Protegido pela escuridão, alguém poderia subir esurpreendê-los.MasLisbethachouqueiaconseguirdormirnaquelanoite.Precisavadisso.Oferimentoabalaaindaaincomodavabastante,eprovavelmenteporissoéqueelareagiradeformatãoveementeaoinsucessodeAugust,mesmoquenuncativesseacreditadoqueaideiadelafossefuncionar.Masaovoltarparadentrodacasaelapercebeuoutracoisa.—Emcondiçõesnormais,claroqueLisbethnãoéo tipodepessoaquesepreocupa,porexemplo,
comoclimaoucomcoisasquenãolhedigamrespeitode imediato—continuouHolgerPalmgren.—Seu olhar elimina tudo que não tem importância para ela. Nesse dia, porém, ela comentou que o solbrilhava na Lundagatan e no Skinnarviksparken. Ela ouvia as risadas das crianças na rua. Talvez elaquisessedizerquedoladodeforadajanelahaviapessoasfelizes.Salientarocontraste.Pessoascomuns
tomavamsorvete,empinavampipas,jogavambola.CamillaeLisbethestavamtrancadasemseuquarto,escutandoopaiviolentareespancaramãedelas.CreioqueissoaconteceuumpoucoantesdeLisbethpunirZalachenkoàaltura,emboraeunãotenhamuitacertezadacronologiadosacontecimentos.Houvemuitosestuprosetodosseguiamomesmopadrão.Zalaapareciaàtardeouànoite,sempremuitobêbado,eàsvezesfaziaumcafunénocabelodeCamilla,dizendocoisascomo“Mascomoépossívelqueumameninalindadessastenhaumairmãtãorepulsiva?”.Emseguidatrancavaasfilhasnoquartoevoltavaparaacozinhaparabebermais.Tomavavodcapura,enamaioriadasvezessesentavaquieto,comoumanimalfaminto,estalandooslábios.Depoismurmuravaalgumacoisacomo“Eaminhaputa?Comovaiaminha puta hoje?”, demodo carinhoso.MasAgneta sempre fazia algo errado, oumelhor, Zalachenkodecidia que ela tinha feito algo errado, e lá vinha o primeiro golpe, geralmente um tapa, seguido daspalavras: “Eupenseiqueaminhaputinha fosse secomportardireitohoje”.Entãoele a levavaparaoquartoecontinuavaaespancá-lae,passadoalgumtempo,aesmurravanorosto,oqueLisbethpercebiapelosom.Sópelosomelaconseguiaidentificarexatamentequetipodegolpeeraeondeeleacertava.Sentiaosgolpesnamãedemodotãointensocomoseelaprópriafosseavítimadeles.Depoisdossocosvinhamoschutes.ZalachutavaejogavaAgnetacontraaparede,xingando-ade“puta”,“vadia”,“vaca”,eexcitando-secomisso.Fazê-lasofrerodeixavadepauduro.SomentequandoAgnetajáestavacobertadehematomas,eleaviolentava,gritandoaindamaispalavrõesaogozar,edepoistudoficavaquietoporalgumtempo.OsúnicossonsquevinhamdoquartoeramossoluçosdechorodeAgnetaearespiraçãopesadadele.Mais tardeZala se levantava, bebiamais umpouco,murmurava, praguejava e cuspia nochão.Às vezes destrancava a porta do quarto das filhas e dizia algo como: “Agora amamãe já estáboazinha de novo”. E saía do apartamento, batendo a porta. Essa era a rotina. Mas nesse dia algoaconteceu.—Oquê?—Oquartodasmeninaserabempequeno.Pormaisqueelastentassemsemanterlongeumadaoutra,
enquantoopaisurravaeviolentavaAgneta,cadaumaficavasentadaemsuacama,defrenteparaaoutra.Evitavamseolhareraramentediziamalgumacoisa.Naqueledia,LisbethficouamaiorpartedotempoolhandoparaaLundagatanpelajanela,eprovavelmenteporissodescreveutãobemodiadeverãoeaalegriadascriançasláfora.Masdepois,quandosevoltouparaairmã,foiqueelaviu.—Viuoquê?—AmãodireitadeCamillabatendoritmadamentenocolchão.Talveznãofossenadademais,apenas
um tiquenervoso, algoqueela faziade forma inconsciente.FoioqueLisbethachouaprincípio.MasdepoispercebeuqueamãodeCamillaacompanhavaoritmodosgolpesquevinhamdoquartodeseuspais, e ela olhou para o rosto da irmã.Os olhos deCamilla brilhavam de satisfação, e a coisamaisestranhafoiquenaquelemomentoCamillapareciaumretratoperfeitodeZala.MesmoqueaprincípioLisbethnãoquisesseacreditar,nãohaviadúvidas:suairmãestavasorrindo.Elatinhaumrisomalicioso,eentãoLisbethpercebeuqueairmãnãosóestavatentandosealinharaopaicomotambémimitá-lo.Elatambémsesatisfaziacomosgolpesdele.Camillaoapoiavatotalmente.—Quedoentioisso.—Masfoiassimqueaconteceu.EsabeoqueLisbethfez?—Não.
—Comtodaacalma,elasesentouaoladodeCamillaepegousuamãoquasecomternura.AchoqueCamillanãopercebeuoqueestavaacontecendo.Talveztenhapensadoqueairmãestivesseprocurandoumpoucodeconsolo,decarinho.MasLisbethlevantouamangadablusadeCamillaeemseguida...—Oquê?—Cravouasunhasprofundamentenopulsodairmã,atingindoatéoossoeprovocandoumferimento
bemfeio.Osanguecomeçouajorrar,LisbethderrubouCamillanochão,jurandoquematariaelaeopaiseosespancamentoseestuprosnãoacabassem.NofinalCamillapareciatersidoatacadaporumtigre.—MeuDeus!—Imagineoódioquehaviaentreessasirmãs.AgnetaeoServiçoSocialsepreocuparam,temeram
quedepoisdissoalgosériopudesseacontecer.Elasforamseparadas.Camillafoimorarprovisoriamentecomumafamília,emborasoubessemqueissonãoseriasuficiente,poiscedooutardeelaspoderiamseconfrontarnovamente.Mas,comovocêsabe,ascoisasnãoocorreramdessemodo.Agnetasofreuumalesão cerebral, Zalachenko ardeu como uma tocha e Lisbeth foi internada. Se eu entendi bem, depoisdisso as irmãs só se viramumavez,muitos anos depois, quandoparece quequase ocorreuumanovatragédia,emboraeudesconheçaosdetalhesdesseencontro.Camillaestádesaparecidahámuitotempo.Aúltima notícia que se tem dela veio da família comquem elamorou emUppsala, osDahlgren. Possoconseguir o telefone damãe, se você quiser.Mas depois que Camilla fez dezoito ou dezenove anos,arrumousuascoisas,saiudopaísenuncamaisseouviufalarnela.Porissoquasecaídecostasquandovocê disse que a havia encontrado. Nem mesmo Lisbeth, com sua habilidade para rastrear pessoas,conseguiulocalizá-la.—Entãoelatentou?—Sim,queeusaibafoiquandoiamfazerapartilhadosbensdopai.—Eunãosabiadisso.—Lisbethmecontouapenasdepassagem.Claroqueelanãoquerianemumcentavododinheirodele,
paraelaumdinheirocobertodesangue.Maselapercebeuquehaviaalgoestranho.Nototal,eramquatromilhõesdecoroassuecas,umafazendaemGosseberga,algumasações,umprédioindustrialemNorrtäljeempéssimascondiçõeseumacabana.Nãoerapoucacoisa,nãomesmo,mas…—Eledeviatermuitomais.—Sim.MaisdoqueninguémLisbethsabiaqueastransaçõeseosnegóciosdopaisuperavamaqueles
quatromilhões.Issoeraapenasapequenapartedeumagrandefortuna.—VocêestáquerendodizerqueeladesconfiouqueCamillateriaficadocomaoutraparte.—Achoqueéoqueelatentoudescobrir.Sóaideiadequeodinheirodopai,mesmodepoisdesua
morte, continuava a causar danos e sofrimento lhe fazia muito mal. Por muito tempo, porém, suastentativasdedescobriralgumacoisanãoderamemnada.—Camilladeveterseescondidomuitobem.—Imaginoquesim.—VocêachaqueCamillapodeterassumidoonegóciodetráficodepessoasdopai?—Talvezsim,talveznão.Podeserqueelatenhacomeçadoumnovonegócio.—Comooquê?HolgerPalmgrenfechouosolhosetomouumgolegenerosodeseuconhaque.
—Nãofaçoideia,Mikael.MasquandovocêmecontousobreFransBalder,meocorreuumacoisa.VocêsabeporqueLisbethconhecetãobemcomputadores?Sabecomotudocomeçou?—Não,nemimagino.—Entãovoulhecontar.Quemsabeachavedasuahistórianãoestejaaqui.OqueLisbethpercebeuquandovoltoudavarandaeviuAugustsentadomeio tortoàmesaredonda,
numaposturaforçada,ascostasrígidasetensas,foiqueogarotolembravaelamesmaquandocriança.Era exatamente assimque ela se via naLundagatan, até o dia emque ficou claroque ela teria que
cresceromaisrápidopossívelparasevingardopai.Isso,claro,nãotornouascoisasmaisfáceis.Eraum peso que nenhuma criança deveria carregar. No entanto, tinha sido esse o início de uma vida deverdade,umavidamaisdigna.NenhumvagabundopoderiafazeromesmoqueZalachenkoouoassassinode Frans Balder fizeram sem ser severamente punidos. Nenhuma pessoa tão má assim poderia sairimpune. Lisbeth foi até August e lhe disse demodo solene, como se estivesse lhe dando uma ordemimportante:—Agoravocêvaiparaacama.Quandoacordar,queroquevocêfaçaodesenhoquevainosajudara
pegaroassassinodoseupai.Estamosentendidos?—Omeninoassentiucomacabeçaefoidiretoparaoquarto. Lisbeth abriu seu laptop e começou a buscar informações sobre o ator LasseWestman e seusamigos.—NãoachoqueoZalachenkofossemuitochegadoemcomputadores—continuouHolgerPalmgren
—,elenãoeradessageração.Mastalvezseusnegóciosescusosestivessemcrescendotantoqueelefoiobrigado a armazenar suas informações numprograma de computador.Ou quem sabe tenha precisadoescondersuacontabilidadedosolhosvorazesdeseuscompanheiros.UmdiaelechegouaoapartamentodaLundagatancomumcomputadorda IBMeo instalounumamesajuntoà janela.Desconfioquenuncaninguémda famíliadele tivessevistoumcomputador, eZalachenkoameaçouarrancar apeledequemmexesse no seu novo brinquedo. Por tudo que sei agora, essa ameaça acabou funcionando como algopositivodopontodevistapsicológico.Fezcresceratentação.—Ofrutoproibido.—Lisbethdeviateronzeanos.IssofoiantesdelamachucarCamilla,deesfaquearopaiedetentar
queimá-lovivo.Ouseja,umpoucoantesdelasetornaraLisbethqueconhecemoshoje.Naquelaépoca,elanãoestavaocupadaapenaspensandonummeiodeneutralizarZalachenko.Faltavam-lheestímulosdetodo tipo. Ela não tinha amigos para conversar, primeiro porque, claro, Camilla fazia intrigas e adifamavanaescola,assegurandoqueninguémseaproximassedela;edepoisporqueLisbetheramesmodiferentedasoutrascrianças,eachoqueelaaindanãotinhaentendidoissonaépoca.Seusprofessoresetodosàsuavoltacertamentenão.Maselaeraumacriançaextremamentebem-dotada.Seutalentotambémaseparoudosdemais.AescolaeramortalmentetediosaparaLisbeth.Tudoeramuitosimpleseóbviolá.Elasóprecisavadarumaolhadanasliçõesparaentendertudo,eduranteasaulaspassavaamaiorpartedotemposonhandoacordada.Mesmoqueelatenhaconseguidoencontraralgumascoisasparasedivertir
no seu tempo livre, como livros de matemática para crianças mais velhas do que ela, coisas assim,basicamenteelaviviaentediada.Grandepartedotempoelapassavalendosuashistóriasemquadrinhos,seusgibisdaMarveleoutrascoisasqueficavammuitoabaixodasuacapacidadeintelectual,masquetalvezfuncionassemcomoumaespéciedeterapia.—Comoassim?—Olha,eurelutomuitoemtraçaressaespéciedeperfilpsicológicodaLisbeth.Elameodiariaseme
ouvissedizendoisto,masashistóriasemquadrinhosqueelaliaestavamrepletasdesuper-heróisemlutacontrasupervilões,quefaziamjustiçacomasprópriasmãos,sevingavamegarantiamqueobemsemprevencessenofinal.Por tudoquesei,essepodetersidoo tipocertode leituraparaela.Talvezaquelashistóriascomsuavisãoempretoebrancodomundoa tenhamajudadoaverascoisasde formamaisclara.—Vocêquerdizerqueelaconcluiuquequandocrescesseiasetornarumaespéciedesuper-heroína?—Decertaformatalvezsejaisso,umaheroínanoseuprópriomundo.Naquelaépocaelaaindanão
sabiaqueZalachenkotinhasidoumespiãodeelitedaantigaUniãoSoviéticaequeasuacondiçãodedelator lhe havia propiciado uma posição privilegiada na Suécia. E também não sabia que havia umdepartamentoespecialdentrodaSäpoencarregadodeprotegê-lo.Mas,assimcomoCamilla,ela intuíaqueopaigozavadealgumaimunidadeeprivilégios.Certavez,umhomemdesobretudocinzafoiatéacasadelaseinsinuouqueZalachenkonuncadeveriaserincomodado,oualgoparecido.LisbethpercebeubemcedoquenãopoderiadenunciaropaiàpolíciaouaoServiçoSocial.Issoapenasfariacomqueelasrecebessemavisitadeoutrohomemdesobretudocinza.“O sentimento de impotência pode ser uma força destrutiva, Mikael. Até Lisbeth crescer e ter
condiçõesdefazeralgumacoisaarespeitodisso,elaprecisavadeumlugarparaondefugireirreunindoforças.Esselugarfoiouniversodossuper-heróisdashistóriasemquadrinhos.Muitosdaminhageraçãodesprezavamessetipodeleitura,claro,masseimuitobemcomoaliteraturaéimportante,sejanaformade histórias emquadrinhos, seja na forma dos velhos e excelentes romances. Sei queLisbeth cresceuparticularmentefascinadaporumajovemheroínachamadaJanetvanDyne.”—VanDyne.— Exatamente. Uma garota cujo pai era um cientista rico. Se a memória não me falha, o pai é
assassinadoporalienígenase,parapoderexecutarseusplanosdevingança,JanetvanDyneprocuraumdoscolegasdopaieadquiresuperpoderesnolaboratóriodele.Elaganhaasaseacapacidadedemudardetamanho,crescendoouencolhendo,alémdemaisoutrascoisinhas.Basicamente,setransformanumajovem extremamente descolada, que se veste de preto e amarelo e por isso adota o codinomeWasp,vespa.Umapessoaqueninguémseatreveriaaesmagar,sejaliteraloumetaforicamente.—Ah,eunãosabia.EntãofoidaíqueLisbethtirouseuapelido?—Nãoapenasoapelido.Claroqueatéentãoeunãoconhecianadadessemundotodo,eueraumvelho
dinossauro que ainda confundia Fantasma com Mandrake, mas quando vi pela primeira vez umailustraçãodeWasp,entenditudo.EraaprópriaLisbeth!Epode-sedizerqueaindaé.Creioqueelaseinspirounoestilodevidadapersonagem,emboraissonãotenhatantaimportância.EnquantoWasperaapenasumapersonagemdehistóriaemquadrinhos,Lisbethtinhaumavidareal,masseiqueelapensavamuitona transformaçãopelaqualJanetvanDynepassouquandose tornouWasp.Dealgumaformaela
entendeuquetambémprecisavamudardrasticamente.Decriançaevítimaparaalguémcapazdecombaterumespiãobemtreinadoeumhomemsemescrúpulos.“EssespensamentosocupavamLisbethdiaenoite,eWaspse tornouumafigura importanteparaela
duranteseuperíododetransição,umafontedeinspiraçãofictícia.MasnãodemoroumuitoparaCamilladescobrir a importância que a personagem tinha para Lisbeth. Essa garota possuía uma capacidadefantástica para descobrir as fragilidades dos outros. Com seus tentáculos, ia rondando, sondando,envolvendo, até achar o ponto fraco e lá injetar seu veneno.No caso deLisbeth,Camilla começou aridicularizarWaspdetodasasformaspossíveis,epior:foidescobrirquemeramosinimigosdeWaspnashistóriasemquadrinhosepassouausarseusnomes.FoiassimcomThanoseoutrosmais.”—VocêdisseThanos?—Mikaelointerrompeu,subitamentealerta.—Sim,achoqueeraesseonomedeumpersonagemmasculinoqueseapaixonoupelaMortedepois
queelaapareceparaelesobaformadeumamulher.Apartirdaíelequerprovarasimesmoqueédignodela,algoassim.CamillasetornoufãdesseThanossóparaprovocarairmã.ChegouachamarobandodeamigosdeladeTheSpiderSocietysóporquenosquadrinhosessegrupoeraoinimigomortaldaTheSistherhoodoftheWasp.—Émesmo?—exclamouMikael,comacabeçacheiadequestionamentos.—Embora fosse uma atitude aparentemente infantil, não havia nada de inocente nela.A inimizade
entreas irmãs,que jáeraumarealidadebemantesdelasadotaremessespersonagens,depoisdissosóficoupior,maissórdida.Eracomonumaguerra,sabe,ondeatémesmoossímbolosadquiremdestaqueeumaauramortífera.—Vocêachaquetudoissoaindatemalgumsignificadoparaelas?—Vocêserefereaosnomes?—É,achoquesim…osnomes.Mikaelnãosabiabemaondeestavaquerendochegar.Apenas tinhaumavagasensaçãodequehavia
esbarradoemalgoimportante.— Não sei — continuou Holger Palmgren. — Embora hoje as duas sejam adultas, não se pode
esquecer que aquela época foimuito difícil, commuitasmudanças e acontecimentosmarcando a vidadelas para sempre.É perfeitamente possível quemesmodetalhes possam ter desempenhado umpapelsignificativo.SeLisbethfoiafastadadamãeeemseguidainternadanumaclínicapsiquiátricainfantil,avidadeCamillatambémdesmoronou.Elaperdeuseular,eopai,queelaidolatrava,sofreuqueimadurasgravíssimas.Comovocêsabe,Mikael,ZalachenkonuncamaisfoiomesmodepoisqueLisbethoatacou,eCamilla ficousoboscuidadosdeumanovafamília,numlugaramuitosquilômetrosdedistânciadomundoemqueelaestavaacostumadaaserocentrodasatenções.Tambémdevetersidoterrivelmentedolorosoparaela,enãoduvidonemporumsegundoquedesdeentãoelapassouaodiarLisbethdofundodesuaalma.—Realmenteparecequesim—disseMikael.HolgerPalmgrentomoumaisumgoledeseuconhaque.—Como eu disse, não podemos subestimar essa fase da vida delas. As irmãs viviam num estado
constantedeguerra,eminha impressãoéqueelassabiamqueascoisasnão iriam terminarnadabem.Achoqueelasjáestavamsepreparandoparaisso.
—Masdemaneirasdiferentes.—Ah,claro.Lisbeth,comsuainteligênciarara,complanoseestratégiasfervilhandootempotodoem
sua mente. Mas ela estava sozinha. Camilla não era particularmente brilhante, não no sentidoconvencional.Nuncatevepropensãoparaosestudos,eraincapazdeentenderoraciocínioabstrato.Masdemanipulaçãoelaentendia,sabiacomoninguémmanipulareenfeitiçaraspessoas,porissonuncaficousozinhacomoLisbeth.Camillasempretinhapessoasfazendooqueelaqueriae,sedescobriaqueLisbetheraboaemalgumacoisaque significasseumaameaçaparaela,não tentava se igualar à irmã,porquesabiaquenãoseriacapazdesuperá-la.—Eoqueelafazia?—Descobriaalguémbomnaquilo,ousepossívelmaisdeumapessoa,ecomoauxíliodemaisgente
elacontra-atacava.Camillasempre tevesubordinadosdispostosa tudoporela.Mas,desculpe,acabeimeadiantandoumpouco.—Sim,ocomputadordeZalachenko.Oqueaconteceucomele?— Como eu já disse, Lisbeth não dispunha de desafios intelectuais à sua volta. Além disso, mal
dormiaànoite.Ficavaacordada,preocupadacomamãe.DepoisdosestuprosAgnetatinhahemorragiasviolentas,emesmoassimsenegavaaprocurarummédico.Provavelmentesesentiaconstrangidaecomfrequênciacaíaemdepressõesprofundas.Nãotinhaforçasparairtrabalharouparacuidardasfilhas,eCamillaadesprezavacadavezmais.Diziaqueamãeeraumafraca,enomundodelapessoasassimeramapiorespéciedegente.Lisbeth,emcompensação...—Oquê?—Lisbeth olhava para amãe, a única pessoa que ela havia amado na vida, e o que via era uma
injustiçaterrível.Elapassavanoitesacordadapensandonisso.Elaerasóumacriança,edecertaformaaindaé,mascadavezmaisfoiseconvencendodequeeraaúnicapessoanomundocapazdeprotegeramãeedeimpedirqueelafosseespancadaatéamorte.Pensandonissoeemmuitasoutrascoisas,numanoite ela se levantou, commuito cuidado para não acordar Camilla, e saiu do quarto. Talvez tivessepensado apenas em ir buscar algo para ler. Talvez não estivesse aguentando seus pensamentos. Nãoimporta.OfatoéquenasalaelaviuocomputadorjuntoàjanelaquedavaparaaLundagatan.“Naquelaépocaelanão sabiacomo ligarumcomputador,mas logodescobriucomose fazia issoe
quandoviu amáquinaganharvida sentiuumcalorpercorrer todoo seu corpo.Ocomputadorpareciaestarcochichandoparaela: ‘Descubraosmeussegredos’.Masclaroqueelanãofoimuito longe,umasenha foipedidaeLisbeth tentouuma,eoutra,emaisoutra,enada.ComooapelidodopaieraZala,tentouessenome,depois ‘Zala666’, combinaçõesparecidascomessase tudoqueconseguiu imaginar.Masnadafuncionou.Elamedissequepassouduasoutrêsnoitesemclaronisso.Quandodormia,eranasaladeaulaoudepoisdaescola,aochegaremcasa.“Umdia ela se lembroudeumpapelqueopai tinhadeixadona cozinhacomuma frase escrita em
alemão: ‘Was mich nicht umbringt, macht mich stärker’, ou seja, ‘Aquilo que não me mata mefortalece’. Ela não entendeu o que significava,mas percebeu que era importante para o pai, por issotentouusá-lacomosenha.Tambémnãofuncionou,onúmerodecaractereseramuitogrande.Entãotentou‘Nietzsche’,oautordacitação,ederepente…elaentrou!,etodoumnovomundodesegredosseabriuparaLisbeth.Elamecontouqueessemomentomudousuavidaparasempre.Elasesentiupotenteporter
conseguidoultrapassaraquelabarreiraedepoisdissoseachoucapazdeexplorartudoquetivessesidocriadoparasemanterescondido.Porém…”—Oquê?—No início elanão conseguiu entendernadadoque encontrou, pois estava tudo escrito em russo.
Havia muitas listas e números. Imagino que fossem cálculos sobre o dinheiro que as atividades deZalachenkonotráficolherendiam.Atéhojenãoseioquantoelaentendeudaquilonaépocanemcomoseinteirou do resto.MasLisbeth entendeu o bastante para se dar conta de que suamãe não era a únicamulherquesofrianasmãosdeZalachenko.Eletambémhaviadestruídoavidademuitasoutrasmulheres,e essa descoberta a enfureceu, tornando-a a Lisbeth que conhecemos hoje, aquela que odeia homensque…—…odeiammulheres.— Exatamente. Isso a fortaleceu ainda mais e ela percebeu que não havia mais como retroceder:
precisavadeter seupai.Ela continuou suas pesquisas emoutros computadores, principalmente nos daescola.Muitasvezesentravaescondidanasaladosprofessoresoumentiaparaamãequeiadormirnacasadealgumaamigaqueelanemtinhaepassavaanoitetodanaescola,semninguémsaber,emfrenteaoscomputadoresatéodiaclarear.Ecomeçouaaprendertudosobreprogramaçãoehacking.Elaestavafascinada.Sentiuquehavianascidoparaaquilo,emuitosdosseuscontatosnomundodigitalcomeçaramanotá-la,domodocomoasvelhasgeraçõesseentusiasmamcomosnovostalentos,sejaparaencorajá-los ou para esmagá-los. Lisbeth encontrou muita resistência e bobagens nesse caminho, e muitos seirritavamcomelapelaformanãoortodoxadefazerascoisas,comumaabordagemabsolutamentenova.Masoutrosficarambastanteimpressionados,eelaatéfezamizades,comoaqueelatemcomotalPraga.Suasprimeirasamizadesforamfeitasatravésdoscomputadores,epelaprimeiraveznavidaelasesentiulivre.Podiavoarlivrementepelociberespaço,assimcomoWasp.Ninguémpodiacortarsuasasas.—ECamillapercebeucomoLisbethtinhasetornadoboanaquilo?—Deve ter percebido alguma coisa, mas na verdade eu não sei nem quero especular sobre isso.
MuitasvezespensoemCamillacomosendooladonegrodeLisbeth,asuasombra.—Agêmeamá.—Maisoumenosisso.Nãogostoderotularaspessoasdemás,principalmenteosjovens,maséassim
queaimaginocomfrequência.Porémnuncameincomodeiempesquisarmaissobreela,pelomenosnãotãoafundo.Sequiserseaprofundar,recomendoqueprocureMargaretaDahlgren,amulherqueficoucomaguardaprovisóriadeCamilladepoisdosacontecimentosnaLundagatan.MargaretaviveemSolna,aquiemEstocolmomesmo.Elaéviúvaeteveumavidabemtrágica.—Comoassim?— Essa história também é muito interessante. Kjell, o marido de Margareta, um programador de
sistemas daEricsson, enforcou-se umpouco antes deCamilla deixá-los.Um ano depois, a filhamaisvelhadocasal,dedezenoveanos, tambémsesuicidou, jogando-sedeumabalsanaFinlândia,oupelomenosfoiessaaconclusãodocasonaépoca.Ameninasempreteveproblemas,sesentiafeia,obesa.Suamãe, porém, nunca acreditou na versão de suicídio e contratou um detetive particular. Margareta éobcecadaporCamilla,e,parasersincero,nuncativemuitapaciênciacomessasenhora.Agoraatémearrependoumpouco.Margaretameprocurouassimqueasua reportagemsobreocasoZalachenkofoi
publicadanaMillennium,oque,vocêsabe,sedeunoexatomomentoemqueeutinhaacabadodereceberaltadocentrodereabilitaçãoErsta.Euaindaestavadebilitado,eessasenhorafalavacomigosemparar,completamentealucinada.Ameravisãodonúmerodelanateladomeutelefonejámedeixavaexausto,epasseiadevotarumbomtemposóemevitá-la.Masagora,quandopensocommaisclarezanocaso,euaentendoperfeitamente.Achoqueelavaificarcontentesevocêaprocurar,Mikael.—Vocêtemoendereçodela?—Espereumpoucoqueeujápegoparavocê.Sómediga:vocêtemcertezadequeLisbetheomenino
estãonumlugarseguro?—Certeza absoluta—disseMikael. “Pelomenos é o que eu espero”, ele pensou. Em seguida se
levantouedeuumabraçoemHolger.Láfora,emLiljeholmstorget,atempestadedesabousobreeledenovo.Mikaelpuxouefechoumaiso
casaco,tentandoseproteger,enquantopensavaemCamilla,emLisbethe,sementenderporque,tambémemAndreiZander.Decidiutelefonarparaeleesabercomoestavasesaindocomoperfildomarchanddesaparecido.Mas
Andreijamaisatendeusualigação.
24.NOITEDE23DENOVEMBRO
Andrei Zander tinha mudado de ideia e telefonado para Mikael. Claro que ele queria tomar umacervejacomele,nãoentendiaporquehaviarecusadooconvite.MikaelBlomkvisteraseuídolo,arazãodeeleterescolhidoacarreiradejornalismo.Andreitinhachegadoapegarotelefoneeateclaronúmerodele,masdepoisficouencabuladoeacaboudesligando.Mikaeldeviaterencontradocoisamelhorparafazer.Andreinãogostavadeincomodaraspessoas,muitomenosMikael.Entãocontinuoutrabalhando.Pormaisqueseesforçasse,porém,nãoconseguiasairdolugar,seutexto
nãoandava,elenãoencontravaaspalavrascertase,depoisdeumahoranisso,decidiufazerumapausaesair.ArrumouumpoucosuamesaemaisumavezverificousehaviadeletadomesmocadapalavraqueescreveraparaLisbethnolinkcriptografado.AcenouumtchauparaEmilGrandén,oúnicoquealémdeleaindaestavanaredação.Nãohavianadade erradocomEmilGrandén.Com trinta e seis anos, ele tinha trabalhadoemdois
programasdaTV4,oColdFactseoSvenskaMorgon-Posten,enoanoanteriorganharaoprêmioStorademelhorjornalistainvestigativodoano.Mas,pormaisquetentasseevitar,AndreicontinuavaachandoEmilumsujeitoconvencidoeantipático.—Voudarumasaída—disseAndrei.Emil oolhou como se fossedizer algumacoisa e tivesse se esquecido.Por fim, respondeu apenas,
despreocupadamente:—Estábem.Andrei se sentiu arrasado semsaberporquê.Talvez fossepor causado ar arrogantedeEmil,mas
provavelmente o queo estava incomodando era o artigo sobre omarchanddesaparecido.Por que eleestavacomtantadificuldadeparaescreveresseartigo?TalvezporqueoqueelemaisqueriaeraajudarMikaelnocasoBalder.Orestoficavaemsegundoplano.Maseleeraumbocadomedrosomesmo.PorquenãotinhadeixadoMikaelleroqueelejáhaviaescrito?Ninguém conseguiamexer tão bem num texto comoMikael.Com apenas alguns golpes de caneta e
cortes,ahistória ficavamuitomelhor.Tudobem.Amanhãeleprovavelmenteencararia seuartigocomoutroânimoedeixariaMikaelleroqueeletinhaescrito,porpiorqueestivesse.Andreisaiudaredação,fechou a porta e se encaminhou para o elevador. Nesse instante, ouviu algo no andar de baixo, e aprincípioeletevedificuldadeementenderoqueestavaacontecendo.Deuumaolhadadiscretadaescadaeviuumhomemmagromolestandoumajovemmuitobonita.Andreisesentiumal,ficouparalisado.Nãosuportavaviolênciaeodiavabrigas.DesdequeperderaospaisemSarajevo,eleseassustavadiantedamenor ameaça.Mas agora também era a sua honra que estava em jogo, o respeito por simesmo, ele
concluiu,poisumacoisaerafugirparasalvaraprópriapeleeoutrabemdiferenteerafugirdeixandoumapessoaemperigo.Então,numimpulso,eledesceuaescadacorrendoegritando:—Parecomisso!Deixeamoçaempaz!Eissopareceuumerrofatal.O homem magro puxou uma faca e murmurou algo ameaçador em inglês. Andrei sentiu tremer as
pernas,masjuntouorestodecoragemquetinhaegritou,comoseestivessenumfilmepolicialdesegundacategoria:—GetlostorIwillmakeyouregretit!E pareceu funcionar, porque num instante o homem desistiu e saiu correndo assustado, deixando
Andreieajovemsozinhos.Efoiassimquetudocomeçou,exatamentecomonumfilme.Aprincípiohouvemuitatimidezehesitação.Agarotaestavanervosaeenvergonhada,falavatãobaixo
que Andrei se viu obrigado a se aproximar bem dela para tentar ouvir o que ela dizia. A moça,aparentemente, vivia num relacionamento infernal e, mesmo estando divorciada e vivendo sob outraidentidade,oex-maridoatinhaencontradoemandadoalguémparapersegui-laeatormentá-la.—Foiasegundavezqueaquelacriaturaseatirousobremimhoje—elacontou.—Eoquevocêsestavamfazendoaqui?—Entreinesteprédioparaescapardele,masnãoadiantou.—Quehorror!—Nemseicomolheagradecer.—Nãoprecisameagradecer.—Estoutãofartadehomensruins.—Eu sou um homem bom—Andrei disse, talvez um pouco rápido demais, o que o fez se sentir
ridículo.E ele não se surpreendeu nemumpouco que a jovemnão tivesse respondido nada e apenasmantivesseosolhosfixosnosdegrausdaescadacomarenvergonhado.Elesentiuvergonhade terqueridoseexibircomumafala tãobarata,equando jáhaviaperdidoas
esperanças,achandoqueforarejeitado,elalevantouacabeçaesorriuparaeledeumjeitoencantador.—Achoquevocêpodemesmoserumhomembom.MeunomeéLinda.—EuomeuéAndrei.—Prazeremconhecê-lo,Andrei,emaisumavezmuitoobrigada.—Euéqueagradeço.—Peloquê?—Por...Elenãoconseguiucompletarafrase.Seucoraçãobatiaacelerado,suabocaestavasecaeeleolhou
paraosdegrausdebaixo.—Oquefoi,Andrei?—Vocênãogostariaqueeuaacompanhasseatéasuacasa?Tambémsearrependeudeterditoisso.Tevemedodesermalinterpretado.Maselalhedeuoutrosorrisoaomesmotempotímidoesedutore
dissequecomcertezairiasesentirmaisseguraaoladodele,eassimosdoissaíramdoprédioeforamcaminhandonadireçãodeSlussen,elalhecontandocomovinhalevandoumavidamaisoumenosreclusanuma mansão em Djursholm. Ele disse que entendia o que ela estava vivendo, ou que pelo menos
entendiaatécertoponto,poisjáhaviaescritoumasériedeartigossobreviolênciacontramulheres.—Vocêéjornalista?—EutrabalhonaMillennium.—Uau!—elaexclamou.—Sériomesmo?Euadmirodemaisessarevista.—Jápublicamosmuitasmatériasimportantes—eledissetimidamente.—Éverdade.HáalgumtempoeuliumartigomaravilhosonaMillenniumsobreumferidodeguerra
iraquiano que foi demitido do seu trabalho de faxineiro num restaurante da cidade. Ele ficou numasituação extremamente precária, mas passado algum tempo acabou se tornando dono de uma rede derestaurantes.Euchoreidetantaemoçãoquandolioartigo.Estavaescritodeumamaneiratãosensível!Passavaumsentimentodetantaesperança…dequeavidasemprepodemudarparamelhor.—Fuieuqueescrevioartigo—eledisse.—Nãobrinca!Eramaravilhoso!Andrei não estava acostumado a receber elogios pelo seu trabalho jornalístico, muito menos de
mulheres que acabava de conhecer. Assim que o nomeMillennium era mencionado, as pessoas sóqueriamfalardeMikaelBlomkvist.NãoqueAndrei tivessealgocontra,massecretamentesonhavaemtambémserreconhecido,eagoraessamulherlindaotinhaelogiado.AndreificoutãofelizeorgulhosoqueousousugerirquefossembeberalgumacoisanoPapagallo,um
pubpeloqualestavampassando.—Queótimaideia—eladisse,eosdoisentraramnoPapagallo.OcoraçãodeAndreibatiamuitoforte,elefaziaforçaparanãoficarolhandoparaelaotempotodo,
pois os olhos da jovem o faziam perder o equilíbrio. Não acreditava que aquilo estivesse mesmoacontecendo,quandoelessesentaramaumamesapróximaaobareLindacomtimidez lheofereceuamão,queAndreiaceitou,sorrindoemurmurandoalgumacoisaqueelenemsoubeoqueera.ViuapenasqueEmilGrandénhaviatelefonado,eele,parasuaprópriasurpresa,oignorou,deixandootelefonenosilencioso.Umaveznavidaarevistaiaterqueesperar.TudoqueelequeriaeraadmirarorostodeLinda,seafogarnele.Abelezadelaeratãoincrívelque
chegava a doer como um soco no estômago, e aquela fragilidade e delicadeza dela…ela parecia umpequenopássaroferido.—Nãoentendocomoalguémpossaquererlhefazermal—eledisse.—Maséoqueaconteceotempotodo—eladisse,eentãoeleachouquecomeçavaaentender.Uma mulher como ela acabava atraindo psicopatas. Nenhum homem ousaria abordá-la, convidá-la
paraalgumacoisa,oshomensdeviamsesentircomplexados,inferioresdiantedetantabeleza.Somenteosdemaucaráterteriamacoragemdeseaproximaredepoiscravarosdentesnela.—Émuitobomestaraquicomvocê—eledisse.— É muito bom estar aqui com você — ela repetiu, afagando devagar a mão dele. Em seguida,
pediramumataçadevinhotintoparacadaumecomeçaramaconversaranimadamente.Elenempercebeuqueseu telefone tinha tocadodenovonãoapenasuma,masduasvezes,equepelaprimeiravezhaviadeixadodeatenderumaligaçãodeMikaelBlomkvist.Assimqueterminaramelaselevantou,pegou-opelamãoeolevouparafora.Elenemperguntoupara
ondeestavamindo,sentia-sedispostoasegui-laparaqualquerlugar.Elaeraacriaturamaismaravilhosa
queelejátinhaencontradonavida.Elasorriuparaeledeumjeitoquefezcomqueoarcondensadoquea respiração deles produzia sob aquele tempo frio parecesse uma promessa de que algo grandioso etransformador estavapara acontecer.Pode-sepassar todaumavida à espera deuma caminhada comoesta,Andreipensou,semnemsedarcontadetudoomaisàsuavolta,ofrio,acidade.Eleestavacomoque intoxicadopelapresençadela epor aquiloqueoaguardava.Embora, elenão
sabiadireito,parecessehaver tambémalgumacoisanaquiloqueodeixava ressabiado,e seuprimeiroimpulso foipôresse receionacontadoseuhabitualceticismodiantedequalquerchancedeser feliz.Masemseguidanãopôdedeixardeseperguntarsetudoaquilonãoestavasendobomdemaisparaserverdade.AndreicomeçouaanalisarLindasobumanova luz,maiscrítica,enotouquenemtudonelaera tão
encantador.QuandopassarampeloKatarinahissen,atépensoutervistoumacertafriezanosolhosdelae,preocupado,Andreiolhouparaaságuasagitadaspelatempestade.—Paraondeestamosindo?—elequissaber.—Tenho uma amiga que de vez em quandome empresta um pequeno apartamento que ela tem na
MårtenTrotzigGränd.Penseiqueagentepodia irpara lábebermaisalgumacoisa—eladisse,eaoouviressapropostaAndreisorriu,comosefosseaideiamaissensacionalquejátivesseouvidonavida.Mas ele começava a se sentir cada vez mais confuso. Até havia pouco, era ele quem a estava
protegendoeagoraelaéquemassumiaainiciativa.AoolharderelanceparaocelulareverqueMikaeltinha ligadoduasvezes,Andreiquis telefonar imediatamenteparaele.Acontecesseoqueacontecesse,nãopodiavirarascostasparaarevista.—Claro,seriabom—eledisse—,masprimeiroprecisodarumtelefonema,coisadetrabalho,estou
nomeiodeumahistóriaimportante.—Não,Andrei!—elaexclamou,num tomdevoz surpreendentementeautoritário.—Vocênãovai
ligarparaninguém…Estanoiteésónossa.—Estácerto—eledisse,sentindo-seumpoucointranquilo.Chegarama Järntorget,onde, apesardo tempo ruim,haviamuitagente.EnquantoLindamantinhaos
olhos pregados no chão, como se temesse ser vista, ele olhou para a direita, na direção daÖsterlånggatan,edepoisparaaestátuadeEvertTaube.Opoetacontinuavaali,imóvel,segurandoumapartituranamãodireitaeolhandoparaocéuatravésdeseusóculosescuros.Seráquedeviasugerirquedeixassemoencontrodelesparaodiaseguinte?—Talvez...—Andreicomeçou.Masnãoconseguiucompletarafrase,poiselaopuxouparasiedeu-lheumbeijotãoardentequeofez
esquecerdetudoquehaviapensado.Depois,pegando-opelamão,elaretomouopasso,conduzindo-oàesquerda, para a Västerlånggatan. De repente, viraram à direita e entraram numa viela escura. Haviaalguématrásdeles?Não,ospassoseasvozesqueeleouviavinhamdemaislonge.ApenaseleeLindaestavam ali, não era?Assim que passaram por uma janela demoldura vermelha e venezianas pretas,Lindaparoudiantedeumaportacinzentaqueelaabriucomcertadificuldadecomumachavequepegaranabolsa.Eleobservouqueasmãosdelatremiameseperguntouporquê.Seráqueestavacommedodoex-maridoedeseucomparsa?Subiramporumaescadaescuradepedra.Seuspassosecoavameelesentiuumlevecheirodealguma
coisapodre.Numdegraudoterceiroandar,viuumacartadebaralhocaída,umadamadeespadas,e,semsaber por que, se incomodou, provavelmente alguma superstição. Tentou esquecer isso e pensar emcomo, apesar de tudo, tinha sido incrível eles se conhecerem. Linda respirava pesadamente. A mãodireitadela estava fechada.Davaparaouvir umhomem rindonaviela lá embaixo.Esperavaquenãofossedele.Quebobagem!Estavaapenastenso.Achouqueosdoisjáestavamandandopormuitotempo,andavam,andavamsemchegaralugarnenhum.Seráqueoprédioeratãoaltomesmo?Não,agoratinhamchegado.AamigadeLindamoravanoúltimoandar,eraisso,numapartamentodesótão.NaportaestavaescritoOrlov.Lindapegouseumolhodechavesdenovoe,dessavez,suamãonão
tremia.MikaelBlomkvistestavasentadonumapartamentotododecoradocommóveisantigos,localizadona
Prostvägen, em Solna, muito próximo do cemitério municipal. Como Holger Palmgren havia dito,MargaretaDahlgrennãohesitouemrecebê-loassimqueeleligou,emesmoqueelatenhaparecidoumpoucofrenéticaaotelefone,Mikaeldeparoucomumamulherfinaeelegante,nacasadossessentaanos.Estavavestidacomumvistosopulôveramarelosobreumacalçapretacomvincosmuitobemdefinidosede salto alto. Talvez tivesse se arrumado assim apenas para recebê-lo. Se não fosse por seu olharsobressaltado,Mikael teria achadoMargaretaumapessoa empaz consigomesma, apesarde tudoquehaviapassado.—EntãovocêquersaberdeCamilla—eladisse.—Principalmentedosúltimosanosdela,sevocêsouberdealgumacoisa.—Eumelembrodequandonósapegamos—elacomeçou,comosenãootivesseouvido.—Kjell,
meumarido, achouquecomonossogestopoderíamosnão sóaumentar anossa família como tambémfazeralgobomparaasociedade.Tínhamosapenasumafilha,sabe,anossapobreMoa.Elatinhacatorzeanosnaépocaesesentiamuitosozinha.Achamosqueirialhefazerbemseacolhêssemosumameninadaidadedela.—VocêssabiamoquetinhaacontecidocomafamíliaSalander?— Não tínhamos conhecimento de todos os detalhes, mas sabíamos que havia acontecido algo
horroroso e traumatizante, que a mãe dela estava doente e o pai tinha sofrido queimaduras graves.Ficamos sensibilizados com a história e nos preparamos para receber uma menina destroçada, quenecessitariamuitodonossoamorecarinhoparaserecuperar.Esabeoquenosapareceu?—Não.—Ameninamais adorável domundo, e não estoume referindo apenas à beleza dela.MeuDeus,
Camillatinhaodomdapalavra,eramuitomaduraeinteligenteparaasuaidadeenoscontouhistóriashorríveisdecomosuairmã,quetinhaproblemasmentais,aterrorizavaafamília.Claroquehojeeuseique muita coisa não era verdade. Mas como podíamos duvidar dela? Seus olhos brilhavam, nospassavammuitaconvicção,equandodizíamos“Pobrezinha,comodevetersidohorrívelparavocê”,elafalava:“Nãoerafácil,maseuamoaminhairmã,elaédoenteeagoraestárecebendoajuda”.Pareciaumadulto falando,mostrava-se tão compreensiva, e por algum tempo a nossa impressão foi de que ela équemestavacuidandodenós.Afamíliainteiraseiluminoucomasuachegada,comosealgoglamoroso
tivesseentradoemnossavidae tornado tudomaisbonitoegrandioso.NósdesabrochamoseatéMoapassoupormudanças,começouacuidardesuaaparênciaesetornoumaispopularnaescola.NãohaviaoqueeunãofizesseporCamilla,eKjell,meumarido,oqueeupossodizer?Elemudouradicalmente,começouasorrirmais,adar risadaeatévoltouameprocurarnacama,ah…desculpeasinceridade.Agora sei que eu deveria ter começado ame preocupar nessemomento,mas na época achei que eraapenasafelicidadevindofinalmenteseinstalarnanossafamília.Fomosmuitofelizesporalgumtempo,comotodossãoquandoconhecemCamilla.Todoscomeçammuitofelizesao ladodela,masdepoisdealgumtempocomela,vocênãotemmaisvontadedeviver.—Foitãoruimassim?—Muitoruim.—Oqueaconteceu?— Com o passar do tempo, foi como se um veneno tivesse se espalhado entre nós. Camilla foi
dominandoaospoucosanossafamília.Quandoanalisooqueaconteceu,nãoconsigolocalizarquandoafestaacaboueopesadelocomeçou.Aconteceudeummodoimperceptívelegradual,umdiaacordamosesimplesmente descobrimos que estava tudo destruído: a nossa confiança, a nossa segurança, toda aestrutura da nossa família.A autoestima deMoa, que tinha começado a se firmar, caiu por terra. Elapassavaasnoitesacordada,chorandoedizendoqueerafeia,umapessoahorrívelquenãomereciaestarviva. Sómais tarde descobrimos que a sua poupança no banco estava a zero.Até hoje não sei o queaconteceu,mas tenho quase certeza de queCamilla a chantageou.Chantagear era tão natural para elaquanto respirar.Camilla tinhaohábitode ir juntando informaçõescomprometedorassobreaspessoas.Pormuitotempoacrediteiqueelamantivesseumdiário,masoqueelaanotavaláeratodaasujeiraquedescobriasobreaspessoaspróximasaela.EKjell…aquelefilhodaputa.Sabe,acrediteinelequandoelemedissequeestavatendoinsôniaquasetodasasnoitesequeprecisavairparaoquartodehóspedes,noporãodecasa,tentardormir.MaseleialáparaficarcomCamilla.Desdequeelafezdezesseisanos,começouairseencontrarcomeleànoitenoporãoparafazeremsexopervertido.ChamodepervertidoporquepercebioqueestavaacontecendoquandopergunteiaKjelloqueeramaquelescortesnopeitodele.Elenãomeexplicou,claro.Apenasdeualgumarespostaevasivaeconfusa,queeuaceiteipara,dealgumaforma,negarminhassuspeitas.MasumdiaKjellacabouconfessando tudo.Camillacostumavaamarrá-lo e cortá-lo comuma faca.Ele disse que ela sentiamuito prazer com isso. Pode até parecerestranho,mas cheguei a desejar que fossemesmo verdade, que ela pelomenos sentisse algum prazernaquilo,nãoapenasquisessetorturá-loedestruiravidadele.—Elatambémchantageavaseumarido?—Ah,sim,masaindaficaramalgunspontosdeinterrogação.ElefoitãohumilhadoporCamillaque
nemmesmoquandotudojáestavaperdidoeleconseguiumecontartodaaverdade.Kjellsemprefoioportosegurodanossa família.Eleéquemnosacalmavaseerrássemosocaminhonumaviagemenosperdêssemos,seumcanoestourasseemcasa,sealguémficassedoente.Elenosgarantiaquetudoiadarcerto,comaquelejeitocalmoesensíveldele,comsuavozsempretranquilaqueeuescutoatéhojeemmeus pensamentos. Mas os anos de convivência com Camilla o arruinaram. Ele virou um trapo, umhomemquemaltinhacoragemdeatravessararua,queolhavacentenasdevezesparatodososladoscommedode que alguémo estivesse perseguindo e que perdeu toda amotivação para o trabalho.Apenas
ficava lá sentadoemsua sala, sem fazernada.Umde seuscolegasmaispróximos,MatsHedlund,metelefonouumdiaemedissequeaEricsson,aempresaondeeletrabalhava,tinhaabertoumainvestigaçãoparadescobrirseKjellestavavendendoinformaçõesconfidenciais.JustoKjell,ohomemmaishonestoqueeuconheci!Masseele tivessemesmovendidoalgumacoisa,paraondetinhaidoodinheiro?Nósenfrentávamos uma situação financeira muito difícil, a conta dele no banco estava a zero e a nossapoupançatambém.—Comofoiqueelemorreu?—Eleseenforcousemnosdeixarumapalavradeexplicação.Euoencontreipenduradonoquartode
hóspedesdoporão,jámorto,quandovolteidotrabalho.OmesmoquartoondeCamillahaviasedivertidocom ele.Naquela época eu recebia um alto salário como chefe do departamento financeiro daminhaempresaetinhaumacarreirapromissora.MasdepoisdosuicídiodeKjell,omundodesabouparamimeparaMoa.Masnãovoumeaprofundarnisso,afinalvocêquersaberéoqueaconteceucomCamilla.Amorte domeumarido não pôs umponto final na nossa infelicidade.Moa começou a se automutilar eparoudesealimentar.Umdiameperguntouseeuaachavaasquerosa.“MeuDeus,minhaquerida,comoéquevocêpodedizerumacoisadessa?”,eurespondi.EntãoelamecontouqueCamillaatinhachamadoassimeditoquetodosqueaconheciamtambémaachavamasquerosa.Eurecorriatodaajudapossível,psicólogos,médicos,amigas,Prozac,masnadaajudouMoa.Numdiamagníficodeprimavera,quandoaSuéciainteiracomemoravaalgumaridículavitórianoEurovisionSongContest,minhafilhasejogoudeumabalsa,eaminhavidaafundoujuntocomela.Perdiavontadedeviverepasseimuitotempointernadanumhospital,metratandodeumadepressãoprofunda.Porémdepois…nãosei.Dealgumaformaadorea tristeza se transformaram em ódio e senti que precisava tentar entender o que realmente tinhaacontecidocomanossafamília.Queespéciedemaldadehavianosatingido?ComeceiainvestigaravidadeCamilla.Nãoqueeuquisessemeencontrar comeladenovo,não,de jeitonenhum.Maseuqueriaentendê-la, da mesma forma que a mãe de um filho assassinado busca entender o assassino e seusmotivos.—Eoqueasenhoradescobriu?—Noinício,nada.Elahaviaapagadotodososrastros,eracomoprocurarumasombra,umfantasma,e
nãofaçoideiadequantosmilharesdecoroasgasteicontratandodetetivesparticulareseoutraspessoasdesonestas que prometeram me ajudar. No entanto eu não chegava a lugar nenhum e essa frustraçãocomeçou a me enlouquecer. Fiquei obcecada, quase não dormia mais e meus amigos já não meaguentavam.Foioutraépocahorrível.Aspessoasmeachavamumaobcecada, teimosa,e talvezmuitasaindameachemassim.NãoseioqueHolgerPalmgrenlhedissearespeito,mas…—Oquê?—QuandoasuareportagemsobreocasoZalachenkofoipublicadanasuarevista,onomedelenãome
disse nada, mas à medida que fui lendo a história comecei a somar dois mais dois. Ao ler sobre aidentidadesuecadelecomoKarlAxelBodinesobrealigaçãodelecomoMCSvavelsjö,melembreidealgumasnoiteshorríveisquepassamos,quandoCamilla jáhavianosviradoas costas.Naquela épocacom frequência eu acordava com o barulho de motocicletas embaixo da janela do meu quarto e viaaquelescoletesdecourocomemblemassinistros.Nãomeespantavaqueelaandassecomaqueletipodegente,poiseujánãotinhanenhumailusãoquantoaela.Oqueeunãodesconfiavaéqueaquelebandode
motoqueiros tivesse ligação comopassadodeCamilla, comas atividadesdopai e que elapretendiaassumirosnegóciosdeledepoisdesuamorte.—Elafezisso?—Ah,sim.Nomundosujodela,Camillaachavaquefazerissoeralutarpelosdireitosdasmulheres,
oupelos seuspróprios,eudiria,e seicomoesse tipode faladevia ser importanteparaasgarotasdoclube,principalmenteparaKajsaFalk.—Quem?—Umameninalindaeatrevidaquenamoravaumdoslíderes.Elafrequentoumuitoanossacasano
últimoanoemqueCamillaesteveconosco,eeugostavadela.Kajsatinhaolhosazuisgrandeseumpoucoestrábicos. Por trás daquele estilo rebelde, havia um rosto humano e frágil, e depois que li a suareportagemeuaprocurei.Elanãodisseumapalavra sobreCamilla, claro.Foi simpáticaeviqueelatinhamudadodeestilo.Amotoqueirahaviasetornadoumamulherdenegócios.MasnãoquismecontarnadasobreCamillaeconcluíqueeutinhadadoemoutrobecosemsaída.—Enãotinha?—Não,porquehácercadeumanoKajsameprocuroue,denovo,aencontreibastantemudada.Não
restavamaisnadadaquela jovematrevidae cheiadevida; elaparecianervosae amedrontada.Poucodepoisdessenossoencontro, foiencontradamortaa tirosnoginásiodeesportesdeStoraMossen,emBromma.Quandoestivemosjuntas,elamecontouquehaviaumadisputapelaherançadeZalachenko.AirmãgêmeadeCamilla,Lisbeth,haviaherdadomuitopoucoenemessapequenaparteelaquis.OgrossodaherançaficouparadoisfilhosdeZalachenkoqueviviamemBerlimeparaCamilla,queherdaraosnegócios de tráfico do pai que você descreveu na sua reportagem, o que fez omeu coração sangrar.DuvidoqueCamillaseimportassecomaquelasmulheresousentissealgumacompaixãoporelas.Elasónãoquisseenvolvercomotráficodemulheresporacharqueeracoisaparafracassados,comoeladisseaKajsa.Elatinhaumavisãocompletamentediferente,maismoderna,doqueaorganizaçãopoderiafazeredepoisdemuitasnegociaçõesumdeseusmeios-irmãoscomprouapartedela.CamillapegouodinheiroefoiemboraparaMoscou, levando tambémalgunsfuncionáriosquequiseramacompanhá-la, inclusiveKajsaFalk.—Vocêtemideiadoqueelapretendiafazerlá?—OenvolvimentodeKajsanosnegóciosdeCamillanãoeratãograndeparaqueelapudessetertido
noçãodoquesetratava,masnósduastínhamosasnossassuspeitas.DeviaseralgumacoisarelacionadacomalgunssegredosdaEricsson,ondemeumarido trabalhava.Hoje tenhocertezadequeCamilla fezKjellroubarevender informaçõessigilosasevaliosasparaela,possivelmentechantageando-o.Fiqueisabendoque, jánosprimeirosanosemqueestavaconosco,Camilla se aproximoudealgunsnerdsdaescola e mandou que eles hackeassem o meu computador. Kajsa me contou que Camilla sempre foiobcecadaporhacking,nãoqueelamesmativesseaprendidoousededicadoaisso.Massemprefalavadodinheiroquesepodiaganharentrandonascontasbancáriasdaspessoas,hackeandoservidores,roubandoinformações, coisas desse tipo. Por isso acho que os negócios dela devem estar relacionados comatividadesnessaárea.—Evocêdeveestarcerta.—É,ecomcertezaécoisadealtonível.Camillanuncaficariasatisfeitacommenos.Kajsadisseque
Camilla logo se infiltrou em grupos influentes de Moscou, tornando-se amante de um membro daAssembleiaLegislativarussa,umsujeitoricoepoderoso,equeporintermédiodeleelafezcontatocomumgrupomuito suspeitode engenheirosdeponta e criminosos.Camilla sabia como lidar comeles, eidentificavamuitobemospontosfracosdaeconomiainterna.—Queeram?—OfatodeaRússianãopassardeumpostodegasolinacomumabandeiranoalto.Elesexportam
petróleoegásnatural,masnãofabricamnadaderelevante.ARússiaprecisadetecnologiaavançada.—Eelaiaconseguirissoparaeles?—PelomenosfoioqueCamillaprometeu,emboraclaroqueeladeviaterseusprópriosinteressese
prioridades. Kajsa ficou impressionada com a maneira como ela construiu alianças com pessoasinfluentesláeconseguiuproteçãopolíticaparasimesma.KajsateriasidolealaCamillaatéaeternidadesenãotivesseficadotãoassustada.—Assustadacomquê?— Kajsa conheceu um antigo soldado de elite, um major, acho, e depois disso se desestruturou
completamente. Segundo informações confidenciais que haviam chegado ao amante de Camilla, essehomem tinha feito alguns trabalhos sujos para o governo russo. Ele havia assassinado uma jornalistafamosa,vocêdeveterconhecido,IrinaAzarova.Elatinhadenunciadomuitacoisasobreoregimerussonumasériedereportagenselivros.—Claro,umaverdadeiraheroína.Foiumahistóriaterrível.—Exatamente.Sóquealgumacoisadeuerradonoplanejamentodoassassinatodela.IrinaAzarovaia
seencontrarcomumcríticodoregimenumapartamentonumaruadeserta,numsubúrbioaosudestedeMoscou.Segundooplano,omajoratirarianelaquandoelasaíssedecasa.OqueninguémficousabendoéqueairmãdeIrinahaviacontraídopneumoniaeajornalistaestavatomandocontadasduassobrinhas,deoitoedezanos.Assimqueasmeninassaíramparaaruajuntocomatia,omajoratirounastrês.Eleasatingiunorostoe,depoisdessatragédia,caiuemdesgraça.Nãoqueogovernorussoseimportassecomascrianças,masaopiniãopúblicaestava saindodecontrole e aparticipaçãodogovernonoatentadocorria o risco de ser descoberta. Omajor temeu ser transformado em bode expiatório e tevemuitosproblemas pessoais. Suamulher o abandonou, deixando-o comuma filha adolescente, e ele quase foidespejadodeseuapartamento.UmcenárioperfeitoparaCamilla,porquenadamelhordoqueterpodersobreumapessoasemescrúpulosqueestánumasituaçãodesesperadora.Eelaaproveitouachance.Elefariatudoporela.—Entãoelarecrutouessemajorcaídoemdesgraça.—Sim,elesmarcaramumencontroeKajsafoijuntoeficoucompletamentefascinadaporessehomem
assim que o viu. Ele não era o que ela havia imaginado nem se parecia com os assassinos doMC
Svavelsjöqueelaconhecia.Tinhaumporteatléticoe,separeciaviolento,tambémpareciaeducadoedecerta formaatévulnerávelesensível.Kajsapercebeuqueelesesentiamalpor ter tidoqueatirarnascrianças. Claramente era um assassino frio, um homem que na guerra da Chechênia atuou comotorturador,masquemantinhadentrodesialgumasreservasmorais,elamedisse,efoiporessarazãoqueelasepreocupouquandoeleliteralmentecaiunasgarrasdeCamilla.Issomesmo,literalmente.Camillapassousuasunhasnopeitodele,comoumgato,edisse:“Euqueroquevocêmatepormim”,carregando
essas palavras com uma tensão sexual, com poder erótico, sabe. Com uma habilidade diabólica, eladespertouo sadismodohomem.Quantomais ele contava sobredetalhes de suas torturas,mais ela seexcitava,enãoseiseentendobemessascoisas.Masfoiisso,eapenasisso,queassustouKajsa,enãoopróprio assassino. Foi ver Camilla, com sua beleza, conseguir despertar a besta contida dentro dele,fazeroolharmelancólicodelebrilharcomoodeumanimalselvagem.—Vocênuncalevouàpolíciatodasessasinformações?—EupergunteiaKajsaváriasvezesseelaachavaqueeudeveriaprocurarapolícia.Eudissequeela
pareciamuitoassustadaequeprecisavadeproteção.Elamegarantiuquejátinhaproteção.Alémdisso,meproibiudefalarcomapolícia,eeufuiumaidiotaemobedeceraela.Depoisdasuamorte,conteiaosinvestigadoresoqueeu tinhaouvido,maselesnãoacreditaramemmim.Tudoqueeusabiaeradeumhomemsemnomedeoutropaís,CamillanãoconstavaemnenhumregistroaquinaSuéciaenuncafiqueisabendoquenomeelatinhapassadoausar.Enfim,aminhadeclaraçãonãoajudouemnadaaesclareceroassassinatodeKajsa,queatéhojenãofoisolucionado.—Entendo—disseMikael.—Vocêentende?—Acho que sim— ele disse, e ia pôr amão no braço deMargareta, em sinal de solidariedade,
quandoavibraçãodocelularemseubolsoodeteve.EsperavaquefosseAndrei,maseraStefanMolde.Depoisdealgunsinstantes,Mikaelconseguiuidentificá-locomoapessoadoFörsvaretsRadioanstaltquehaviaconversadocomLinusBrandell.—Dequesetrata?—perguntouMikael.—É sobre uma reunião com alguém do alto escalão que está vindo para a Suécia encontrar você
amanhãcedonoGrandHotel.MikaelgesticulouumpedidodedesculpasparaMargaretaDahlgren.—Estoucomaagendacheia—eledisse.—Eseeufossemeencontrarcomalguém,precisariapelo
menossaberonomedapessoaedequeassuntosetrata.—O nome é Edwin Needham e o assunto se refere a alguém de codinomeWasp, suspeito de ter
cometidoumcrimegrave.Mikaelsentiuumaondadepânico.—Estábem—disse.—Aquehoras?—Àscincodamanhãseriaperfeito.—Vocêdeveestarbrincando!—Infelizmente,nãohánenhumabrincadeiraenvolvendoesseassunto.Eu recomendoquevocê seja
pontual.OsenhorNeedhamoreceberáemsuasuíte.Vocêdevedeixarocelularnarecepçãodohoteleserárevistado.—Euentendo—eledissecomumacrescentesensaçãodedesconforto.Encerradaaconversa,MikaelselevantouesedespediudeMargaretaDahlgren.
III.PROBLEMASASSIMÉTRICOS24DENOVEMBROA3DEDEZEMBRO
Muitasvezesémaisfáciljuntardoqueseparar.
Atualmente, os computadores conseguemmultiplicar com facilidadenúmerosprimos commilhõesdedígitos.No
entanto, é extremamente complicado reverter o processo. Números com apenas algumas centenas de dígitosapresentamproblemasimensos.
Algoritmos criptografados como o RSA se aproveitam das dificuldades que envolvem a fatoração de números
primos.Osnúmerosprimosacabaramsetornandoosmelhoresamigosdosigilo.
25.MADRUGADAEMANHÃDE24DENOVEMBRO
Não demorou muito para Lisbeth descobrir quem era o homem chamado Roger que August haviadesenhado. Num site sobre atores que haviam atuado no teatro Revolutionsteatern, em Vasastan, elareconheceuaversãomaisjovemdeRoger.SeunomeeraRogerWinter,ealidiziaqueeleganhoufamadeserumhomemviolentoeciumento.Nocomeçodacarreira,interpretarapapéisimportantesnocinema,mas nos últimos tempos caíra no esquecimento, tendo se tornado menos conhecido que seu irmãocadeiranteTobias,umloquazprofessordebiologiaque,peloquesedizia,haviacortadorelaçõescomRoger.Lisbeth anotou o endereço de Roger Winter e em seguida hackeou o supercomputador NSF MRI.
Também abriu seu programa de computador, no qual tentava construir um sistema dinâmico paraencontrarascurvaselípticasmaisapropriadas,comomenornúmeropossíveldeiterações.Porém,pormais que tentasse, não conseguia se aproximar de uma solução. Como o arquivo da NSA continuavaimpenetrável, Lisbeth desistiu, se levantou e foi dar uma olhada na cama em que August estava. Elasoltouumpalavrão.Omeninoestavaacordado,sentadonacamaeescrevendoalgumacoisanumpapelemcimadamesade cabeceira.Quandoela se aproximou,viuque eramnovas fatoraçõesdenúmerosprimos.Lisbethmurmuroualgumacoisaconsigomesmaedepois,nummesmotomdevozsério,disse:—Nãoéumaboaideia.Nãoestamoschegandoalugarnenhumcomisso.EquandoAugustmaisumavezcomeçouasebalançarparaafrenteeparatrás,freneticamente,elao
mandoupararcomaquiloedormir.Jáera tardeeela resolveudescansarumpouco também.Foi sedeitarnacamadoquartoao ladoe
tentoudormir.Masfoiimpossível.Augustviravaesereviravanacama,faziabarulho,choramingava,enofimLisbethdecidiuiratéládizermaisalgumacoisaparaele.Omelhorqueelaconseguiupensarfoi:—Vocêsabealgumacoisasobrecurvaselípticas?Como ela já esperava, não recebeu nenhuma resposta. Porém isso não a impediu de dar a ele uma
explicação,daformamaissimpleseclaraqueconseguiu.—Entendeu?—elaperguntou.ClaroqueAugustnãorespondeu.—Certo—eladisse.Pegueporexemploonúmero3034267.Euseiquevocêconsegueencontrar
comfacilidadeosfatoresprimosdele.Masissotambémpodeserfeitousandoascurvaselípticas.Vamosescolher,porexemplo,acurvay2=x3–x+4eopontoP=(1,2)naquelacurva.Elaseinclinousobreamesadecabeceiraeanotouaequaçãonumpapel,masAugustnãopareciaestar
acompanhando,eLisbethselembroudoquelerasobreosgêmeosautistas.Dealgumamaneiramisteriosaeles tinham a capacidade de encontrar números primos imensos, mas não conseguiam solucionarequações simples. Talvez fosse assim com August também. Talvez ele fosse mais uma máquina decalculardoqueumgêniodamatemática,oqueagoranãotinhaamenorimportância.Seuferimentoestavadoendo de novo e ela precisava dormir. Precisava espantar todos os demônios de sua infância quehaviamressuscitadoporcausadomenino.Passava da meia-noite quando Mikael Blomkvist chegou em casa. Mesmo exausto e precisando
acordarmuito cedo no dia seguinte, foi para o computador procurar alguma informação sobre EdwinNeedham.Descobriu que havia alguns EdwinsNeedham nomundo, entre eles um famoso jogador derúgbiquehaviavoltadoàativadepoisdesecurardeumaleucemia.HaviaumEdwinNeedhamespecialistaempurificaçãodeáguaeoutroqueerabomemposarnasfotos
comcaradeidiotaaoladodegentedasociedade.Nenhumdelespareciaalguémcapazdeterquebradoaidentidade de Wasp, acusando-a agora de crimes. Mas havia um Edwin Needham engenheiro decomputaçãocomdoutoradonoMIT quepelomenos erada área, emboranemesseparecesse serquemMikael buscava. Oficialmente ele era um executivo sênior da Safeline, empresa líder nomercado deproteçãoantivírusparacomputadores.Umaempresaquecertamenteseinteressariaporhackers.MasasdeclaraçõesqueesseEd,comoeleeraconhecido,davaemsuasentrevistaseramapenassobrefatiasdemercadoenovosprodutos.Nenhumapalavraqueelediziaiaalémdoshabituaisclichêsdevendedores,nemmesmoquandofoiconvidadoafalarumpoucosobreseushobbies,queeramobolicheeapesca.Eleamavaanatureza,disse,eleamavaoaspectocompetitivo…Acoisamaisperigosaqueelepareciasercapazdefazereramataraspessoasdetédio.Umafotoomostravasorrindoesemcamisa,segurandoumsalmãoenorme,otipodefotografiaqueé
figurinhacarimbadaemcírculosdepescadores.Elaera tãoenfadonhaquanto tudoalisobreele,eaospoucosMikaelcomeçouadesconfiarsetransmitirumaimagemtãodesinteressantecomoaquelanãoseriajustamentea intençãodeEd.Releu todoomateriale teveasensaçãodeque todaaquelavidapoderiamesmoserapenasfachada,elentamente,ecadavezmaisconvicto,concluiuqueaqueleeraohomemcomquem iria seencontrarnodia seguinte.Davapara sentirocheirodo serviço secretoaquilômetrosdedistância, não dava? Parecia ser coisa daNSA ou daCIA, e, olhando de novo para a foto do salmão,Mikaelagoranotoualgocompletamentediferente.Viualiumrapazcorajosofingindoseroutracoisa.Haviadeterminaçãonamaneiracomoeleestava
diantedacâmera,eseusorrisoparecialevementeirônico,pelomenosfoioqueMikaelimaginou,eentãoelepensouemLisbeth.Perguntou-sesedeveriacontaraela.Masaindanãohaviarazãoparapreocupá-la,principalmenteporqueatéentãoelenãosabiadenada.Resolveu irparaacama.Precisavadormirmesmo que só por algumas horas, para estar com a cabeça lúcida quando se encontrasse com EdNeedhamnamanhãseguinte.Pensativo,escovouosdentes,tirouaroupaesedeitounacama,percebendoqueestavamaiscansadodoquehaviaimaginado.AdormeceunahoraesonhouqueestavaseafogandonorioondeEdNeedhamhaviapescadoseusalmão.Depois,teveumavagaimagemdesimesmonofundodo rio, cercado de salmões agitados.Mikael não deve ter dormido pormuito tempo.Acordou de um
salto,comafortesensaçãodequehaviadeixadoescaparalgumacoisa.SeucelularestavanamesadecabeceiraeseupensamentosevoltouparaAndrei.Eleestiveranoseusubconscienteotempotodo.Lindahaviatrancadoaportacomdoiscadeados,eclaroqueissoeramuitonatural.Depoisdetudo
que ela havia passado, precisava tomar um cuidado extra com sua segurança.Ainda assimAndrei sesentiudesconfortável.Deviaseroapartamento,pensou,tentandosetranquilizar.Nãoeranadadoqueeleesperava.Aquiloseriamesmoacasadeumaamigadela?Acamaeralargamasumpoucocurta.Eacabeceiraeopédacamaeramumatreliçadeaçobrilhante.
Acolchapretao fezpensarnumesquifeounum túmulo, eelenãogostoudosquadrosnasparedes.Amaioriaeramfotografiasdehomenscomarmas,eoapartamentoeraestéril, frio.Nãopareciao lardeumapessoalegal.Mastambémpodiaserqueeleestivessenervosoeexagerandoascoisas.Outalvezapenasquisesse
umadesculpaparasairdali.“Umhomemsemprequerfugirdaquiloqueeleama”,nãofoimaisoumenosissoqueOscarWildehaviadito?EleolhouparaLinda.Nuncatinhavistoumamulhertãomagníficanavidaeisso,porsisó,jáerabemassustador,eagoraelavinhaseaproximandodelecomaquelevestidojustoeazulquedestacavasuasformasedizendo,comosetivesseadivinhadoseuspensamentos:—Vocêprefereirparacasa,Andrei?—Naverdade,euaindatenhomuitacoisaparafazer.—Euentendo—eladisse,dando-lheumbeijo.—Então,claroquevocêdeveirparacasatrabalhar.—Talvezsejamelhor—elemurmurouenquantoelaseencostavaneleeobeijavanovamente,com
tantaveemênciaqueelesedesarmou.Eleabeijoutambém,agarrando-apelosquadris.Entãoelaoempurroucomtantaviolênciaqueelese
desequilibrouecaiudecostasnacama,eporuminstantesentiumedo.MasquandoolhouparaLindaelalhesorriucomamesmaternuradeantes,oqueofezpensarqueaquiloeraapenasumabrincadeiradeamor agressivo. Ela realmente o queria, não queria? Queria transar com ele naquele momento e eledeixouLindasentaremcimadeleedesabotoarsuacamisa.Comosolhosbrilhandodeintensidade,elapassouasunhaspeloabdômendele,enquantoseusseiosvolumososarfavamsobovestido.AbocadeLinda estava entreaberta e um fio de saliva escorria pelo queixo. Ela cochichou algo para ele, masAndreinãoouviu.Era“Agora,Andrei”.—Agora!—Agora—elerepetiuumpoucoemdúvida,enquantoelaarrancavaacalçadele.Elaestavamais
excitadadoqueeleesperavaeeramuitomaislascivaeselvagemdoquequalquermulhercomquemelejáestivera.—Fecheosolhosenãosemexanemummilímetro—eladisse.Elefechouosolhosepermaneceuimóvel,ouvindo-amexeremalgoquepelosomelenãoconseguiu
identificar.Ouviuumcliqueesentiuumfriometálicoemvoltadospulsos.Olhouparacimaeviuqueestavaalgemado.Quisprotestar,dizerquenãogostavadaqueletipodesexo,mastudoestavaindorápidodemais.Àvelocidadeda luz, comose já tivesse experiêncianoassunto, elaprendeuasmãosdelenacabeceiradacama.Emseguidaamarrouseuspéscomumacorda,apertandobem.
—Cuidado—elealertou.—Nãosepreocupe.—Quebom—eledisse,eentãoviuqueelaoolhavadeumjeitocompletamentenovo,eeraumolhar
bemdesagradável,elepensou.Emseguidaeladeclaroualgumacoisanumtomsolenequeeleachouterentendidomal.—Oquefoiquevocêfalou?—Queagoraeuvoucortarvocêcomumafaca,Andrei.—Edepoisdedizerisso,pôsrapidamente
umafitaadesivanoslábiosdele.Mikaeltentavaseacalmar.OquepoderiateracontecidocomAndrei?NinguémalémdeleedeErika
sabia queAndrei estava envolvido na proteção de Lisbeth e domenino. Eles nunca haviam sido tãocautelososcomumainformaçãocomoagora.Noentanto…porquenãoconseguiafalarcomAndrei?Elenãoeradeignorartelefonemas.Pelocontrário,atendiarápido,aoprimeirosinal.Masagoraera
impossívelentraremcontatocomele,eissoeraestranho.Ouquemsabe…MaisumavezMikaeltentouseconvencerdequeAndreipodiaestarapenasconcentradodemaisnotrabalhoeterperdidoanoçãodotempoouque,napiordashipóteses,tivesseperdidoocelular.Nãodeviasernadaalémdisso.Mesmoassim… Depois de todos aqueles anos, Camilla havia surgido do nada. Alguma coisa estavaacontecendo,comcerteza.OqueeramesmoqueoinspetorBublanskitinhadito?“Vivemosnummundoemqueparavocêsemantersaudávelvocêprecisaserparanoico.”Mikaelesticouobraço,pegouotelefoneeligoudenovoparaAndrei,quemaisumaveznãoatendeu.
Entãodecidiuacordaromaisnovomembrodaequipe,EmilGrandén,quemoravapertodeAndrei,naRödaBergen,emVasastan.Emilatendeusemmuitoentusiasmo,masprometeuirnaqueleinstanteatéacasadeAndreiparaverseeleestavalá.Vinteminutosdepois,eleligouparaMikael,contandoquehaviabatidonaportadeAndreiváriasvezes.—Elenãoestáemcasa,dissoeutenhocerteza.Mikaeldesligouotelefone,sevestiuesaiudepressadecasa,percorrendoseutempestuosoedeserto
bairrodeSöder,emdireçãoàMillennium,naGötgatan.Comumpoucodesorte,pensou, iaencontrarAndreiadormecidonosofádaredação.NãoseriaaprimeiravezqueAndreicaíanosonoenãoescutavao telefone. Com alguma sorte seria essa a explicação. Mesmo assim Mikael se sentia mais e maisinquietoequandodesligouoalarmeeabriuaportadaredaçãoele tremeu,comosefossedardecaracom alguma cena trágica.No entanto, pormais cuidadosamente que tivesse inspecionado o local nãoencontrou nada fora do lugar, e todas as informações de seu e-mail criptografado haviam sidocuidadosamente deletadas, como eles tinham combinado. Tudo parecia estar certo; só não havia umAndreidormindonosofá.Osofádaredaçãopareciamaisnojentoevaziodoquenunca,eMikaelsesentoualicomacabeçaa
milporhora.Emseguida,telefonoudenovoparaEmilGrandén.—Emil—eledisse.—Desculpeeuincomodarvocêmaisumavezemplenamadrugada,mastoda
essahistóriaestámedeixandoparanoico.—Claro,euentendo.
—QuandoeulhepergunteisobreAndrei,vocêmepareceuumpoucoincomodado.Temalgumacoisaquevocênãomecontou?—Nadaquevocêjánãosaiba—respondeuEmil.—Oquevocêquerdizercomisso?—QueeutambémjáfaleicomaInspeçãodeDados.—Comoassim,vocêtambém?—Vocêquerdizerquevocênão…—Não!—gritouMikael,interrompendo-oeouvindoarespiraçãodeEmilsetornarpesadadooutro
ladodalinha,epercebendoquehaviaacontecidoalgumenganoterrível.—Desembucha,Emil,rápido!—Mas…—Oquê?—UmamoçamuitosimpáticaemuitoprofissionaldaInspeçãodeDados,chamadaLinaRobertsson,
telefonoudizendoquevocêshaviamcombinadodeaumentaroníveldesegurançadoseucomputadorporcausadasatuaiscircunstâncias.Tinhaavercomalgumasinformaçõespessoaisedenaturezadelicada.—Eoquemais?—Eladissequehaviapassadoinformaçõeserradasparavocêequeestavachateadacomisso.Disse
queestavaconstrangidacomafaltadeconhecimentoqueelademonstrouepreocupadaqueaproteçãonão fosse suficiente, por issoprecisava entrar emcontato comapessoaquehavia feito a criptografiaparavocê.—Eoquevocêdisse?—Eudissequenãosabiadenadadesseassunto,queeuapenas tinhavistoAndreimexendonoseu
computador.—EaívocêrecomendouqueelaentrasseemcontatocomAndrei.— Eu estava na rua quando ela telefonou, então eu falei pra ela que Andrei ainda devia estar na
redaçãoequeelapoderiatelefonarpraele.Foiisso.—MeuDeus,Emil!—Maselapareciatão…—Nãomeinteressacomoelaparecia,Emil!SóesperoquevocêtenhafaladocomAndreisobreessa
ligação.—Nãodeutempodefazerissonahora.Eutambémestousobrecarregado,comotodomundo.—Masdepoisvocêfaloucomele,certo?—Não,porqueeleacabousaindoantes.—Masvocêtelefonouparaele?—Claro,muitasvezes,sóque…—Oquê?—Elenãoatendeu.—Certo—disseMikaelcomumaevidentefriezanavoz.Assimquedesligou,MikaeltelefonouparaJanBublanski.Depoisdasegundatentativa,conseguiufalar
comumsonolentoinspetor.Mikaelnãoviuoutrasaídasenãocontartodaahistóriaparaele.Contou-lhe
tudomenosondeLisbetheAugustestavam.Emseguida,tambémpôsErikaapardetudo.LisbethSalanderhaviaadormecido.Masdealgumaformaestavaprontaparaaação,poiscostumava
dormircompletamentevestida,inclusivecomsuajaquetadecouroebota.AlémdissoacordavatodahoraouporcausadosbarulhosdatempestadeoudosqueAugustfaziaaodormir,gemendoechoramingando.Mas namaioria das vezes voltava a dormir, ou pelomenos cochilava, e de tempos em tempos tinhasonhoscurtoseextremamenterealistas.Agora estava sonhando que o pai espancava suamãe, emesmono sonho ela sentiu amesma raiva
intensa da infância. Tudo pareceu tão real que ela acordou de novo. Eram três e quarenta e cinco damanhã, e namesa de cabeceira estavamos papéis emque ela eAugust haviam escrito seus números.Nevava,masatempestadepareciaterseacalmadoumpouco,eagoranãoseouvianenhumruídoforadonormal,apenasoventoassobiandoeaçoitandoasárvores.Noentanto,elasesentiainquietaepensouquepodiaserosonhoaindapairandonoquartocomouma
redefinaevaporosa.Derepente,estremeceuaoveracamavaziaaoladodasua.Augustnãoestavalá.Lisbethselevantoudepressae,semfazernenhumsom,pegousuaBerettanabolsaqueestavanochãoefoiseencaminhandomuitodevagarparaocômodograndequedavaparaavaranda.Mas então voltou a respirar aliviada.August estava sentado àmesa redonda, entretido comalguma
coisa.Elaseaproximoudiscretamente,paranãoperturbá-lo,seinclinouportrásdosombrosdeleeviuqueAugust não estava escrevendonenhumanova fatoraçãode números primosnemdesenhando cenasviolentasprotagonizadasporLasseWestmaneRogerWinter.Ele estavadesenhandoquadradosdeumtabuleiro de xadrez que se refletiam nos espelhos de um armário, acima dos quais se via uma figuraameaçadoracomamãoestendida.Finalmenteoassassinocomeçavaaganharforma.Lisbethsorriueemseguidaseafastou.Noquarto,sesentounacama,tirouablusaeasataduraseexaminouseuferimento.Aindanãoparecia
nadabom,eelasesentiafracaezonza.Tomoumaisdoisantibióticos,sedeitouparadescansarumpoucoeacabouadormecendo.TeveavagasensaçãodetervistoZalaeCamillaemseusonho.Nesseinstantepercebeualgumacoisa.Nãotinhaideiadoqueera,excetoquepodiasentirumapresença.Umpássarobateuasasasláfora.OuviaarespiraçãopesadaedifícildeAugustnocômodoaolado.Lisbethestavaprestesaselevantaroutravez,quandoumgritopenetrantecortouoar.QuandoMikaelsaiudaredaçãonocomeçodamanhãparapegarumtáxieirparaoGrandHotel,ainda
não tinha tido notícia de Andrei, e de novo tentou se convencer de que estava se atormentando semnecessidadeequeaqualquermomentoseucolegairiatelefonardacasadealgumagarotaoudealgumamigo.Mas a preocupação não o deixava empaz e, enquanto observava que tinha começado a nevaroutravezequealguémhavialargadoumpédesapatofemininonacalçada,pegouseuSamsungeligouparaLisbethpeloaplicativoRedphone.Elanãoatendeu,oqueodeixoumaisnervoso.Tentououtravezeporfimenviouumamensagemde
textopeloappThreema:Camillaestáatrásdevocês.Melhorabandonaroesconderijo!EntãoacenouparaumtáxiquevinhadaHökensgatae,quandoocarroparou,Mikaelficoumomentaneamentesurpresoao perceber que o motorista se assustou ao vê-lo. Mikael devia mesmo estar parecendo alguémperigosamentedeterminadonaquelemomento,esuaexpressãonãomelhorouemnadaquandoomotoristatentoupuxarconversa.Mikaelpreferiunãorespondereapenasficousentadoláatrásnoescurocomosolhosfaiscandodeaflição.Estocolmoestavapraticamentedesertaàquelahora.Embora a tempestade tivesse amainado, as ondas ainda estavam encrespadas. Mikael observou o
GrandHoteldooutroladodaenseada,pensandosenãoseriamelhordesmarcarareuniãocomNeedhameirdiretoverLisbeth,ouentãopedirqueapolíciadesseumapassadaporlá.Não,nãopodiafazerissosemavisá-la.E, sehaviaumvazamento, seriaumacatástrofe se a informação sobreo esconderijodeLisbethseespalhasse.EleabriuoThreemadenovoeescreveu:Vocêsprecisamdeajuda?Nãorecebeuresposta.Claroquenãorecebeuresposta,etãologopagouacorridaedesceudotáxi,foi
caminhandopensativoemdireçãoàsportasgiratóriasdaentradadohotel.Eramquatroevintedamanhãeeleestavaquarentaminutosadiantado.Nuncahaviachegadoquarentaminutosmaiscedoanenhumtipodecompromisso,maseracomosehouvessealgoqueimandodentrodele.Antesdeiratéarecepçãoparaalideixarseutelefone,comohaviasidocombinado,ligouparaErikaepediuqueelatentassefalarcomLisbeth, que também se mantivesse em contato com a polícia e que tomasse a decisão que achassenecessária.—Sehouveralgumanovidade,ligueparaoGrandHotelepeçaquetransfiramaligaçãoparaosenhor
Needham.—Equeméele?—Umapessoaquequerfalarcomigo.—Aestahora?—Sim,aestahora—elerespondeu,dirigindo-seàrecepção.EdwinNeedhamestavahospedadonasuíte654.QuandoMikaelbateuàporta,elafoiabertaporum
homemqueexalavasuoreraiva.Eleeratãoparecidocomafotografiadapescarianainternetquantoumditador de ressaca e sua estátua. Ed Needham tinha uma bebida na mão e parecia de mau humor;descabelado,eraoprópriobuldogue.—Mr.Needham—disseMikael.—PodemechamardeEd.Peçodesculpasporincomodá-loaestahora,masoassuntoédeextrema
urgência.—Éoqueparece—respondeuMikael,seco.—Vocêtemideiadoqueeuestoufalando?Mikael fez que não com a cabeça e se sentou numa poltrona junto a umamesa em que havia uma
garrafadegimeumatônicaSchweppes.—Não,claro,porquevocêteria,nãoé?—disseEd.—Poroutrolado,comtiposcomovocêagente
nuncasabe.Andeiteinvestigando,eébomvocêficarsabendoquenãosoudeelogiarninguém.Mesobeumgostoamargonaboca.Masvocêérealmenteforadesérienasuaárea,nãoémesmo?
Mikaeldeuumsorrisoforçadoedisse:—Seráquevocêpodeirdiretoaoponto?—Calma,calma,embrevevouserclarocomoumcristal.Vocêjádevesabernoqueeutrabalho.—Nãotenhomuitacerteza—respondeuMikaelcomfranqueza.—NoPuzzlePalace,emSIGINTCity.Trabalhoparaaempresamaisodiadadoplaneta.—ANSA.—Exatamente.Evocêtemnoçãodoquantoalguémprecisaserestupidamenteimbecilpramexercom
agente,MikaelBlomkvist?—Possoimaginar.—Evocêsabeondeeuachoquerealmenteasuaamigadeveriaestar?—Não.—Nacadeia.Condenadaàprisãoperpétua!Mikaelabriuoqueeleesperavatersidoumbrevesorrisocalmoecontrolado.Masnarealidadeseus
pensamentosgiravamsemparar.Percebeuquequalquercoisapodiateracontecidoequeelenãodeviatirar conclusões precipitadas, mas um pensamento lhe ocorreu de imediato: será que Lisbeth tinhahackeado aNSA? Só a ideia já o deixava angustiado.Não bastava ela estar sendo perseguida por umassassino?Seráqueelatinhaconseguidopôrtodooserviçosecretoamericanoatrásdela?Issoparecia…bem,oqueissoparecia?Pareciainconcebível.O que diferenciava Lisbeth era que ela nunca tomava nenhuma decisão sem antes ter analisado
minuciosamenteasconsequências.Suasaçõesnãoeramfrutodaimpulsividadeoudecaprichos,porissoeleachavaimpossívelelaterfeitoalgotãoidiotaquantoentrarnoscomputadoresdaNSA,sehouvesseomenorriscodeelaserdescoberta.MuitasvezesLisbethfaziacoisasperigosas,éverdade.Masosriscoseram sempre proporcionais aos benefícios. Ele se negava a acreditar que ela teria invadido oscomputadoresdoserviçosecretoamericanoapenasparaserdescobertaporaquelebuldoguerabugentoparadoàsuafrente.—Achoquevocêsestãoseprecipitando—disseMikael.—Vai sonhando, cara. Você deve terme ouvido dizer a palavra “realmente” agora há pouco, não
ouviu?—Sim,ouvi.—Quepalavrinha,hein?Elapodeserusadademuitasmaneiras.Eurealmentenãobebodemanhã,
masaquiestoueucomumdrinquenamão,haha!Oqueeuestoutentandodizeréquetalvezvocêpossasalvarapeledasuaamigasemeajudarcomalgumascoisinhas.—Estouescutando—disseMikael.— Você é um cara honesto. Deixa eu primeiro te pedir uma garantia. Preciso saber se você vai
protegeromeusigilocomosuafonte.Mikaeloolhousurpreso,poisnãoeraoqueestavaesperandoouvir.—Vocêéalgumaespéciededelator?—Deusmelivre,não!Nãopassodeumvelhocãomuitoleal.—MasentãovocênãoestáoficialmentefalandopelaNSAagora.Éisso?—Digamosquenestemomentoeuestoucumprindoaminhaprópriaagenda,agindoporcontaprópria.
Eaí?—Seunomenãoserámencionado.—Ótimo,equeroquevocê tambémmegarantaqueoqueagenteconversaraquivai ficarsóentre
mimevocê.Parecemeioestranho,nãoé?Porque,afinal,euiriacontarumahistóriafantásticaparaumjornalistaedepoispedirqueelefiquedebicocalado?—Boapergunta.—Eu tenhoosmeusmotivose,pensandobem,achoquenemprecisopedirquevocêsejadiscreto.
Desconfioquevocêqueriaprotegerasuaamigae,noquetedizrespeito,ahistóriainteressanteestáemoutrolugar.Podeseratéqueeuteajudenisso,sevocêcolaborarcomigo.—Vamosver—disseMikael,sério.—Bom,unsdiasatrásanossaredeinterna,popularmenteconhecidacomoNSANet,foiinvadida.Você
ouviufalardisso,nãoouviu?—Maisoumenos.—ANSANet foi criada depois doOnze deSetembro como objetivo de aprimorar, por um lado, a
coordenação dos nossos serviços secretos e, por outro, a organização dos espiões nos países anglo-saxônicos,oschamadosFiveEyes.Elaéumsistemafechado,comseuspróprios roteadores,portaisepontes, e completamente separado da internet. É de lá, através de satélites e fibras ópticas, queadministramos o SIGINT, e é lá também que fica o nosso maior banco de dados, nossas análises erelatórios de alta segurança, sejam eles chamados deMoray, para falar domenos confidencial, ou deUmbraUltraTopSecret,quenemmesmoopresidentedopaísestáautorizadoaver.Aadministraçãodosistema é feita noTexas, o que eu acho amaior imbecilidade.Mas depois das últimas atualizações everificações, eu considero esse sistema como se fosse o meu filho. Fique sabendo, Mikael, que eutrabalheicomoumlouconoiteediapraquenenhumidiotaconseguissefazermauusodosistemaemuitomenosentrareespionar,ehojeemdiaomenorsinaldeirregularidade,omenormovimentoládentro,mefazdesconfiarqueeunãoestousozinho.Temosumaequipedeespecialistasquemonitoraosistema,eéimpossívelfazerqualquermovimentodentrodanossaredesemdeixaralgumrastro.Pelomenoserapraserassim.Tudoéregistradoedevidamenteanalisado.Éimpossívelapertarumateclaládentrosemquealguémperceba,sóquemesmoassim…—Acabouacontecendo.—Sim,eeuacabeiaceitandoisso.Semprehápontosfracos.Elesexistemparanosaperfeiçoarmos.
Ospontos fracos nos fazem ficar alertas e comos pés no chão.Masnão foi só porque ela conseguiuentrarqueeufiqueifurioso.Foiamaneiracomoelaentrou,forçandoonossoservidorderede,criandoumaconfiguraçãoavançadadeponteeinvadindoumdosnossossistemasadministrativosdaredeinterna.Sóessapartedaoperaçãojáfoiumgolpedemestre,masaindatevemais.Elasetransformounumghostuser.—Numoquê?—Numespírito,numfantasmaqueficoupairandoládentrosemagenteperceber.—Semqueoseualarmesoasse.—Essa filhadaputagenial introduziuumvírusespiãoquedevia serdiferentede tudoqueagente
conhecia,senãoonossosistemateriaidentificado.Essevírusfaziaatualizaçõesconstantesnostatusdela,
eassimelafoiganhandocadavezmaisespaçoládentroeconseguiudescobrirsenhasecódigossecretos.Depoiselacomeçouarelacionarregistrosebancosdedados,atéque…bingo!—Comoassim,bingo?—Elaencontrouoquebuscavaeapartirdaídeixoudeserumghostuserequisnosmostraroque
haviaencontrado.Efoisóaíqueosmeusalarmesinternoscomeçaramasoar.—Oquefoiqueelaencontrou?—Elaencontrouanossahipocrisia,Mikael,onosso jogoduplo,eéporessa razãoqueestouaqui
hojecomvocêenãoláemMarylandbotandoosFuzileirosNavaisatrásdela.Elaagiucomoumladrãoquearrombaumacasaapenasparamostrarqueacasajáhaviasidoroubada,e,noinstanteemqueaNSAdescobriuisso,elasetornourealmenteumperigo.Tãoperigosaquealgunsládentroquiseramdeixá-laempaz.—Masnãovocê.—Não,eunão.Euqueriaeraamarrá-lanumposteeflagelá-laviva,masfuiobrigadoadesistirda
minhacaça,Mikael,eissomedeixoufurioso.Euatépossoparecerrazoavelmentecalmoagora,masnaverdade…—Vocêestámaisquefurioso.—É,digamosquesim.Porissoéqueeuchameivocêaqui.EuqueroencontraraWaspantesqueela
fujadopaís.—Porqueelafugiria?—Porqueeladescobriuumaloucuraatrásdaoutra,nãofoi?—Eunãosei.—Vocêsabe,sim.—Oquefazvocêpensarqueelaéahackerquevocêestáprocurando?—Éoqueeupretendolhecontar,Mikael.MasEdnãopôdecontinuar.O telefone do quarto tocou e Ed atendeu. Era o recepcionista, à procura deMikael Blomkvist. Ed
passouoaparelhoparaMikaelepercebeuqueojornalistahaviarecebidoumanotíciagrave.Porissoelenãoestranhouquandoosuecomurmurouumpedidoconfusodedesculpase saiuàspressasdoquarto.Nãoestranhoue tambémnãoseconformou.Edarrancouseucasacodocabidee foicorrendoatrásdeMikael.Maisadiante,nocorredor,Blomkvistcorriacomoumatletae,mesmosemsaberdoquesetratava,Ed
desconfiou que o telefonema tivesse alguma relação com o assunto que os dois estavam discutindo edecidiu iratrásdo jornalista.Se tinhaavercomWaspouBalder,eleestaria lá.ComoBlomkvistnãotiverapaciênciaparaesperaroelevadoredesceraasescadascorrendo,Edchegouaotérreoumpoucodepoisesemfôlego.MikaelBlomkvist já tinhapegadoseu telefonenarecepçãoeestavafalandocomalguémnocelulareaomesmotempocorrendoparaasaídadohotel.—Oqueaconteceu?—perguntouEdassimqueMikaeldesligouetentavaconseguirumtáxi.—Problemas!—respondeuMikael.
—Eupossotedarumacarona.—Vocênãopodedirigir.Vocêbebeu.—Maspodemospegaromeucarro.MikaeldiminuiuopassoeencarouEd.—Oquevocêquer?—Euqueroqueagenteseajude.—Vocêvaiterquepegaroseuhackersozinho.—Eunãotenhoautoridadeparaprenderninguém.—Estábem.Ondeestáoseucarro?Emseguida,osdoiscorreramparaocarroqueEdhaviaalugadoequeestavaestacionadonafrentedo
Museu Nacional. Mikael Blomkvist lhe explicou rapidamente que estavam indo para um lugar noarquipélago,naregiãodeIngarö,equeelenãoiriasepreocuparemobedeceraoslimitesdevelocidade.
26.MANHÃDE24DENOVEMBRO
EnquantoAugustgritava,Lisbethouviapassosapressadosdoladoexternodacasa,oqueafezpegarsuapistolaepulardacama.Sentia-sepéssima,masnãoerahorade levar issoemconta.Correuatéaportadeentradaeviuumhomemcorpulentosurgirnavarandaeporuminstantejulgouqueaindatinhauma pequena vantagem sobre ele, um segundo de graça concedida. Mas a situação se alteroucinematograficamente.O vulto não diminuiu o passo nem se deixou intimidar pelas portas de vidro da varanda. Ele
simplesmentecorreudiretocontraelaseatravessou-assemparar,dearmaempunho,atirandonomeninocomdeterminação,eLisbethrespondeuaotiroteio,outalvezatéjátivessefeitoissomomentosantes.Nãoselembrava.Nemteveconsciênciadomomentoemquecomeçouacorrernadireçãodohomem.
Soubeapenasquehaviasechocadocontraelecomforçaedesajeitadamenteequeemseguidaestavaemcimadele,osdoisnochãoeemfrenteàmesaredondaàqualogarotoestiverasentado.Semhesitar,deuumacabeçadanele.Fezissocomtamanhaviolênciaquesuacabeçacomeçouazunireelamalconseguiusepôrdepé.A
sala girava. Sua camisa estava manchada de sangue. Teria levado outro tiro? Não havia tempo parapensarnisso.OndeestavaAugust?Nãohavianinguémàmesa,somenteascanetaseosdesenhosestavamali,ogizdecera,oscálculoscomnúmerosprimos.Ondediaboseleestava?Elaouviuumgemidopertodageladeira,eláestavaele, trêmuloesentadocomosjoelhosencolhidoscontraopeito.Eledevetertidotempodecorrereseesconderali.Lisbethestavaseaproximandodele,quandoouviuoutrossonsqueapreocuparam,vozesabafadase
barulhodegalhossequebrando.Maispessoasestavamchegandoeelaconcluiuquenãohaviatempoaperder, precisavam sair dali imediatamente.Se eraCamilla, haveriamais gente comela.Sempre foraassim, Lisbeth sempre sozinha e Camilla com sua corte de admiradores, por isso, como nos velhostempos,Lisbethprecisavasermaisespertaemaiságil.Depoisdeumaolhadarápidanoterrenoláfora,sevirouparaAugustedisse:—Vamos!Omenino não saiu do lugar, como se tivesse congelado ali onde se sentara, e com ummovimento
delicado e uma careta de dorLisbeth o pegou no colo.Tudo nela doía,mas eles não tinham tempo aperder,eAugustpareceuterentendidoasituação.Eleindicouquepodiacorrersozinhoeelafoidepressaatéamesaredondapegarseucomputador.Acaminhodavaranda,osdoispassarampelohomemferidonochão,queaindaseergueumeiogrogueetentousegurarAugustpelaperna.
Lisbeth pensou em matá-lo, mas no fim deu-lhe apenas alguns chutes violentos no pescoço e noestômago e jogou a arma dele para longe.Depois correu para a varanda comAugust, em direção aodecliverochoso.Derepenteelaparou.Selembroudodesenho.ElaaindanãotinhavistoatéondeAugustchegara.Seráquedeviavoltar?Não,osoutrosestariamaliaqualquermomento.Precisavamfugir.Noentanto…Odesenhotambémeraumaarma,nãoera?,eomotivodetodaessaloucura,porissodeixouAugusteocomputadornafendadasrochasqueelahavialocalizadonanoiteanteriorevoltoucorrendoparaacasa.Vasculhouamesaenãoencontrouodesenho,apenasilustraçõesdomalditoLasseWestmanportodaparteenúmerosprimos.Ah,ali…aliestavaele,eacimadochãoquadriculadoedosespelhosdodesenhodeAugustvia-seum
homemmuitopálidocomumacicatrizbemdefinidanatestaqueaessaalturaLisbethjáconheciamuitobem.Eraomesmohomemqueestavagemendobemalinochãoenafrentedela.Lisbethpegouocelular,tirouuma fotododesenhoemandoupara JanBublanski eSonjaModig.Emseguida escreveu algumacoisadepressanoaltodopapel.Masumsegundodepoispercebeuquetinhasidoumerro.Estavasendocercada.LisbethhaviamandadoparaoSamsungdeMikaelamesmapalavraqueenviaraaErika.Apalavraera
CRISE,enãohaviacomonãoentenderdoquesetratava,especialmentevindodela.NãoimportavacomoMikaelquisesseinterpretaraquilo,osignificadosópodiaserum,odequeoesconderijodeLisbethedeAugusthaviasidodescobertopeloscriminososeque,napiordashipóteses,elahaviasidosurpreendidapor eles enquantomandavaamensagem.Por issoele acelerouo carro assimquepassoupelo caisdeStadsgårdeentrounaautoestradaparaVärmdö.EledirigiaumAudiA8prata,novo,easeuladoEdNeedham,muitosério,devezemquandopegava
ocelulareescreviaalgumacoisanele.MikaelnãosabiaaocertoporquetinhadeixadoEdacompanhá-lo.TalvezquisessesaberoqueelequeriacomLisbeth,outalvezfosseoutracoisa.QuemsabeEdpodiaserútil.Dequalquermaneira,suapresençanãopiorariaascoisas.Jáhaviacrisesuficiente.Apolíciajátinhasidoavisada,masMikaelduvidavaquetivessemmandadoumaunidadeimediatamenteparaolocal,sobretudoporteremficadoumtantocéticoscomaspoucasinformaçõesquetinhamrecebido.Erikaeraquemtinhaconseguidooesconderijo,elaeraquemconheciaocaminhoaté lá,eeleprecisavadetodaajudapossível.PróximoàpontedeDanvik,EdNeedhamdissealgoqueMikaelnemouviu.Seuspensamentosestavam
emoutro lugar.PensavaemAndrei.Oque teriamfeitocomele?Mikaeloviasentadoalina redação,pensativoeindeciso.Quemerda,porqueAndreinãoohaviaacompanhadoparatomaraquelacerveja?Mikaelligouparaelemaisumavez.LigoutambémparaLisbeth.Nenhumdosdoisatendeu.EntãoouviuEddizer:—Vocêquersaberoquenóstemos?—Sim…talvez…digalá—eledisse.MaselesforaminterrompidospelocelulardeMikael.EraJanBublanski.—Esperoquevocêsaibaquenósdoisvamos termuitoqueconversardepois,e fiquecertodeque
haveráalgumasconsequênciaslegaisàsuaespera.
—Claro,euentendo.—Masagoraestouligandoparatepassarumainformação.SabemosqueLisbethSalanderestavaviva
àsquatrohorasevinteedoisminutos.Issofoiantesoudepoisdelatemandaramensagem?—Umpoucoantes.—Certo.—Ondevocêobteveessahoratãoprecisa?—Salandernosenviouumacoisamuitointeressante.—Oquê?—Umdesenho,edevodizer,Mikael,queelesuperaasnossasexpectativas.—EntãoLisbethconseguiuqueogarotodesenhasse.— Sim, conseguiu, e sei que um advogado de defesa esperto será capaz de levantar uma série de
objeçõescontraautilizaçãoeavalidadedodesenhocomoprovadocrime.Masparamimnãohádúvidadeque este é o assassino.Odesenho foi feito comabsolutaperfeição, denovo comaquela intriganteprecisãomatemática.Ehá tambémumaequaçãoescritaabaixododesenho,comascoordenadasxey.Nãofaçoideiaseelaéimportanteparaocaso,masjáenvieiodesenhoparaaInterpol,paraqueelespassempelo programade reconhecimentode faces deles. Se o homemestiver registradonobancodedadosdelá,éofimdele.—Vocêspretendemmandarodesenhoparaaimprensatambém?—Aindaestamospensando.—Quandovocêschegamàcasa?—Omaisrápidopossível…Medêumsegundo.Mikael tinhaouvidoumtelefone tocaraofundoeporalguns instantesBublanskiseocupoudaoutra
ligação.Quandovoltou,disserapidamenteparaMikael:—Acabamosde receber a informaçãodequeocorreuum tiroteiono local. Infelizmenteparece ter
sidosério.Mikaelrespiroufundo.—NenhumanotíciadeAndrei?—eleperguntou.—RastreamosotelefonedeleatéumaestaçãodebasenoCentrovelho,depoisdaínãoconseguimos
maisnada.Osinalsumiu,comoseocelulartivessesequebradoouparadodefuncionar.Mikaeldesligoueaumentouavelocidade.Iaacentoeoitentaquilômetrosporhoraesemvontadede
conversar. Já tinha feitoum resumoaEdNeedhamdoqueestavaacontecendo.Sóquepassadoalgumtemponãoaguentoumais.Precisavaocuparsuacabeçacomalgumaoutracoisa.—Maseaí,oquemaisvocêsapuraram?—SobreaWasp?—Sim.—Porumbomtempo,nada.Estávamoscertosdequetínhamoschegadoaofimdalinha.Agentetinha
feitotudoquepodiaemaisumpouco.Nãodeixamospedrasobrepedraemesmoassimnãochegamosalugarnenhum.Masacertaalturatudofezsentido.—Comoassim?—Claroqueumhackercapazdefazerumainvasãodaquelaseraalguémcapaztambémdenãodeixar
rastros.Entãoconcluíquenuncairíamosconseguirnadaagindodamaneiraconvencional.Mastambémnãoerarazãopradesistir.Nofim,deixeideladoasinvestigaçõesformaisefuidiretoaoponto:quemtemacapacidadedemontarumaoperaçãodessenível?Eujásabiaquearespostaaessaperguntaeraanossamelhorchance.Onívelda invasãoera tãosofisticadoquesóalguémmuitoespecialconseguiriaexecutaralgosemelhante.Nessesentido,pode-sedizerqueogabaritodohacker trabalhavacontraelemesmo.Alémdisso,quandoanalisamosovírusespião…EdNeedhamfezumapausaeolhouparaoseutelefone.—Sim,continue.Oquevocêiadizer?—Ovíruspossuíapeculiaridadesartísticas,edonossopontodevistaeleterpeculiaridadeseraalgo
muitobom.Tínhamos,porassimdizer,umaobradealtopadrãocomumestilotodopróprio,esóoqueprecisávamosfazereraencontraroartistaqueatinhaassinado.Entãocomeçamosaconversarmuitocomacomunidadedehackersenãodemoroumuitoparasurgirumnome,umapelido,eeleapareciaotempotodo.Consegueimaginarqual?—Talvez.—Wasp!Aparecerammuitosoutrostambém,masWaspfoisetornandocadavezmaisinteressante,e,
para dizer a verdade, por causa do próprio nome. Mas aí já é uma longa história, e eu não vou teaborrecercontandoelatoda,maséqueonome…— … foi inspirado numa personagem de uma revista em quadrinhos usada também pelo grupo
responsávelpelamortedeFransBalder.—Exatamente!Comoéquevocêsabe?—E eu também sei que raciocínios baseados em associações podem ser ilusórios e enganadores.
Quando procuramos profundamente por alguma coisa, sempre vamos achar alguma conexão entrepraticamentetudo.—Éverdade,éassimmesmo.Ficamosempolgadoscomassociaçõesquenadasignificamedeixamos
passar as importantes.Wasp poderia significar uma porção de coisas.Mas àquela altura eu não tinhamais para onde ir. Além disso, eu já tinha ouvido falar tanto da auramítica dessa pessoa que fiqueideterminado a descobrir a identidade dela, por isso voltamos com tudo ao passado. Reconstruímosdiálogos antigos de sites de hackers.Lemos cada palavra queWasp escreveu na internet e estudamoscada operação que a gente sabia que tinha por trás a assinatura dela, e logo passamos a saber umpouquinhomaissobreWasp.Tivemoscertezadequeeraumamulher,mesmoqueelanãoseexpressassedeumjeitotipicamentefeminino,econcluímosqueeradaquimesmo.Elahaviapostadomuitacoisaemsueco,emborasaberdissonãotenhasidonenhumagrandeajuda.Massaberquehaviaumaconexãosuecanaorganizaçãoqueelaestavainvestigando,esaberqueFransBaldertambémerasueco,issopelomenosmanteve quentes as nossas pistas. Falei com o pessoal do FörsvaretsRadioanstalt, eles começaram apesquisaremseusregistrosefoiaíque…—Oquefoiqueelesacharam?—Algomuitorevelador.Faziamuitosanoselestinhaminvestigadoumcasodeinvasãoenvolvendo
exatamente o codinome Wasp. Foi há tanto tempo, que naquela época Wasp ainda não era boa emcriptografia.—Oquetinhaacontecido?
—OFörsvaretsRadioanstaltdescobriuquequemassinavaWaspestavaatrásde informaçõessobrepessoas que haviamdesertado do serviço secreto de outros países, bom, e só isso bastou para que oFörsvarets Radioanstalt acionasse seu sistema de segurança. A investigação deles foi dar numcomputador de uma clínica psiquiátrica infantil deUppsala, umamáquina que pertencia a ummédicochamadoTeleborian.Poralgumarazão,provavelmenteporesseTeleborianterprestadoalgunsserviçosàpolíciasecretasueca,eleestavaacimadequalquersuspeita.EntãooFörsvaretsRadioanstaltvoltouaatenção para alguns enfermeiros da clínica que ela considerou suspeitos somente por serem… bem,imigrantes.Oquefoiumacoisadescabidaemalavaliada,equetambémnãodeuemnada.—Dáparaimaginar.—Poisé,masagora,passadotodoessetempo,eupediqueumcaradoFörsvaretsRadioanstaltme
mandassetodoomaterialqueelesolharamnaquelaépocaenóscomeçamosaanalisartudodenovo,maspartindodeumpontodevistadiferente.Vocêsabequepara serbomemhackingnãoénecessário sergrande,gordoefazerabarbatodososdias.Jáconhecicriançasdedoze,trezeanosquesãoverdadeirosexperts no assunto, por isso pra mim era natural a gente dar uma olhada nas crianças que estavaminternadaslánaclínicanaépoca.Alistacomtodosospacientesestavanessematerial,destaqueitrêsdosmeusrapazesparainvestigartodoseles,esabeoqueencontramos?Umadascriançasinternadaserafilhado ex-espião e arquicriminoso Zalachenko, por quem nossos colegas da CIA demonstraram grandeinteresse naqueles dias. Como você já deve saber, há alguns elos entre a rede que o hacker estavainvestigandoeoantigosindicatodocrimedeZalachenko.—Masissonãosignifica,necessariamente,quefoiWaspquemhackeouvocês.—Nãomesmo.Maspassamosaolharagarotamaisdeperto,eoqueéqueeupossodizer?Elatem
umpassadofascinante,hein?Muitas informaçõessobreelaquedeveriamconstarcomopúblicasforammisteriosamenteapagadas.Mesmoassim,encontramosmaisqueosuficiente,e,nãosei,talvezeuestejaenganado,mas tenho a sensação de que a raiz do problema pode estar aí, que algo traumático tenhaacontecido.TemosumpequenoapartamentoemEstocolmo,umamãesolteiraquetrabalhacomocaixadesupermercadoequelutamuitoparasustentarasiprópriaeàssuasfilhasgêmeas.Porumlado,elasestãoaquilômetrosdedistânciadograndemundocruel,masporoutro…—…ograndemundocruelestápresente.—Quando o pai chega pra visitar a família, o vento frio domundo da política e do poder entra
rasgando.Mikael,vocênãosabenadademim.—Nãomesmo.—Maseuseicomoépraumacriançaterumcontatoassimdiretocomaviolência.—Vocêsabe?Mesmo?—Éissoaí.Eseimaisaindaoqueacontecequandoasociedadeviraascostasenãopuneoculpado.
Dóipracaramba,cara,dóidemais,enãomesurpreendenemumpoucoqueamaioriadascriançasquepassamporumacoisadessavaiproburaco.Elassetornamdestrutivasquandocrescem.—Infelizmenteéassim.—Masemalgunscasos,eestessãopoucos,Mikael,essascriançascrescemfortescomoursos,ficam
depéedãootroco.Waspéumdessescasos,nãoé?Comartriste,Mikaelassentiucomacabeçaepisouumpoucomaisnoacelerador.
—Eles a trancaramnumhospício e tentaramacabar comacabeçadela.Masela aguentou firme, esabeoqueeuacho?—perguntouEd.—Não.—Queelasóficoumaisforte,queelaabraçouoseupróprioinfernoeamadureceucomisso.Paraser
sincero, acho que sem dúvida ela se transformou numa pessoa perigosa e não se esqueceu deabsolutamentenadadoqueaconteceu.Estátudolámarcadoaferronela.—Ébempossível.—Exato.Entãotemosduasirmãsqueforamafetadasdemaneirasdiferentesporalgoterrívelequese
transformaramnaspioresinimigas,e tambémnãopodemosesquecerdaherançadeumimensoimpériocriminoso,deixadapelopai.—Lisbethnãoquisnadadessaherança.Elaodeiatudoquevemdopai.—Jáseidisso,Mikael,nemprecisamedizer.Masentãooquefoifeitodaherança?Nãoseráissoque
elaestáprocurando?Nãoécomissoqueelaqueracabar,assimcomoqueracabarcomtudoqueserefereaopai?—Oquevocêestápretendendo?—perguntouMikaeldeformabrusca.—TalvezumpoucodomesmoqueWaspquer.Queroconsertaralgumascoisas.—Epôrasmãosnoseuhacker.—Euquerome encontrar com ela, dizer umas boas verdades e consertar todas as falhas da nossa
segurança, mesmo as menores. Mas acima de tudo quero mostrar para certas pessoas que não medeixaram acabar omeu trabalho, porque ficaram commedo daWasp expô-las aindamais, quem é ovencedordessahistória.Eachoquevocêvaiquerermeajudarnisso.—Porqueeuiriaquerer?—Porquevocêéumótimojornalista.Eótimosjornalistasnãogostamquesegredossujospermaneçam
escondidos.—EquantoaWasp?—Elavaiabrirabocaemecontartodosossegredosdelacomonuncafez,evocêvaimeajudarnessa
partetambém.—Senão?—Senãoeuvouacharumjeitodetornaravidadelauminfernooutravez,issoeuprometo.—Masporenquantovocêsóquerconversarcomela.—Nenhumputovaiinvadiromeusistemadenovo,Mikael,porissoeuprecisoentenderexatamente
comoelaconseguiu.Éissoqueeuqueroquevocêproponhapraela.Estoudispostoadeixarasuaamigasairlivredessaseelasesentarcomigoememostrarcomofez.—Voupassaramensagempraela.Sóesperoque…—…elaaindaestejaviva—completouEd.Emseguida,emaltavelocidade,elesentraramàesquerdaemdireçãoàpraiadeIngarö.Eramquatrohorasequarentaeoitodamanhã.JáfaziavinteminutosqueLisbethpediraajuda.NãoeracomumJanHoltsererraremsuasavaliações.
Jantinhaateoriaromânticadequejádelongeeleeracapazdedizerqualhomemtinhamaischancesdevencerumalutacorpoacorpo.Porissonãotinhasesurpreendido,comoOrloveBogdanov,quandooplanocomMikaelBlomkvistfracassou.OsoutrosdoistinhamcertezaabsolutadequeaindaestavaparanascerohomemquenãocairianaseduçãodeKira.Mas,depoisdeapenasobservarojornalistaporummomentoeàdistância,emSaltsjöbaden,Holtser tevedúvidasdequeelecairianaemboscada.MikaelBlomkvistpoderiasetornarumproblema,poisnãopareciaumhomemfácildeenganar,enadaqueJantivessevistoououvidoofariamudardeideia.Mascomojovemjornalistaeradiferente.Elepareciaoarquétipodohomemfracoeimpressionável.
Noentanto,nadapodiaestarmaiserrado.AndreiZanderhaviaresistidomaisquequalqueroutrapessoaqueJanjáhouvessetorturado.Apesardadormartirizante,elenãohaviacedido.Seusolhosbrilhavamcomumadeterminação inabalávelquepareciaescoradaporaltosprincípios,eporumbomtempoJanpensouqueelesteriamquedesistir,queAndreiZanderresistiriaatodosossofrimentossemfalar,efoisóquandoKirajurousolenementequeErikaeMikaeltambémiriampassarpelosmesmossofrimentos,queAndreifinalmentesedeuporvencido.Orelógio,então,marcavatrêsemeiadamanhã.FoiumdessesmomentosqueJanachouqueeleiriase
lembrar para sempre.A neve caía sobre a claraboia.O rosto do jovem jornalista estava ressecado eirreconhecível.Osanguehaviaespirradodeseupeitoemanchadosuabocaebochechas.Seus lábios,quepormuitotempotinhampermanecidocobertoscomfitaadesiva,estavamrachadosepurulentos.Eleestavaempéssimoestado.Mesmoassimaindadavaparaverqueeleeraumrapazbonito,eJanpensouemOlga.Oqueelateriasentidoporele?Essejornalistanãoeraexatamenteotipoderapazinstruídodequeelagostava,quelutavacontraas
injustiçasetomavaadefesadospobreseoprimidos?Ficoupensandonissoeemoutrosacontecimentosdesuavida.Depoisfezavarianterussadosinaldacruz,emqueumdoscaminhoslevaaoparaísoeooutroaoinferno,eentãoolhouparaKiraeelalhepareceumaisbonitadoquenunca.Seus olhos emanavam um brilho de fogo. Ela estava sentada num banquinho junto à cama, em seu
luxuoso vestido azul que de algummodo tinha sido poupado dasmanchas de sangue e disse algo emsuecoparaAndrei,algoquesooucarinhoso.EmseguidaelapegounamãodeJan.Eleapertouadelaemresposta.Afinal,elenãotinhamaisninguémaquemrecorrerembuscadeconforto.Oventouuivavaláforanaviela.KiraassentiucomacabeçaesorriuparaJan.Flocosdenevefrescoscobriamoparapeitodajanela.Mais tarde, todos estavamnumRangeRover indo para Ingarö. Jan se sentia vazio, não gostava do
rumoqueascoisasestavamtomando.Masnãopodiaignorarque,seestavamali,eraporcausadoseuerro,portantopermaneceucaladoocaminhotodo,ouvindoKira,que,estranhamenteexcitada,falavacomumódio violento damulher que estavam prestes a enfrentar. Jan não achava isso um bom sinal e, sepudessevoltaraserelemesmo,ateriaaconselhadoadesistirdaoperaçãoesairdopaís.Elepermaneceuemsilêncioenquantoobservavaanevecaindoeocarropenetrarnaescuridão.Muitas
vezesficavaassustadoaoolharparaKiraeverseusolhosfriosecintilantes.Deixouessespensamentosde lado e concluiu que pelomenos devia lhe dar crédito por uma coisa.Ela havia decifrado tudo de
maneiraimpressionantementerápida.NãoapenasdeduziraquemtinhasalvadoavidadomeninoAugustBaldernaSveavägencomotambém
adivinharaquemtinhaamaiorprobabilidadedesaberondeomeninoeamulhertinhamseescondido.OnomeaqueelatinhachegadonãoeraoutrosenãoodeMikaelBlomkvist.Nenhumdeleshaviaentendidoa lógicadela.Porqueumrenomado jornalista sueco iriaesconderumapessoaque, surgindodonada,tinhaabduzidoumacriançadacenadeumcrime?Masquantomaiselesexaminavamessa teoria,maisacreditavamnela.Amulheremquestão,LisbethSalander,eraumapessoamuitopróximaaojornalista.EalgumacoisatambémestavaacontecendonaredaçãodaMillennium.Na manhã seguinte ao assassinato em Saltsjöbaden, Jurij havia invadido o computador de Mikael
Blomkvist para tentar entender por queFransBalder chamara o jornalista nomeio da noite, e depoisdissoentrarnocomputadordelecontinuousendomuitofácil.Masdesdeamanhãdeontemnãofoimaispossível acessar as informações privadas de Blomkvist… Quando isso já tinha acontecido um dia?DesdequandoJurijseviuimpedidodelere-mailsdeumrepórterquefosse?Nunca,desdequeeleseentendia por gente. Mikael Blomkvist tinha se tornado cauteloso demais de repente, e isso haviacomeçadodepoisdodesaparecimentodamulheredomeninonaSveavägen.SóissonãobastavaparaprovarqueojornalistasabiaondeestavamSalandereomenino.Masquanto
maisotempopassava,maisclaroficavaqueateoriadeKirapodiaestarcerta,emboraelanãoparecesseprecisardeprovanenhuma.ElaqueriairatrásdeBlomkvistdequalquerjeito.Esenãopudesseserele,iria atrás de qualquer pessoa da revista. Estava completamente obcecada em encontrar a mulher e acriança,e só isso jádevia ter levantadoassuspeitasdeles.MassemdúvidaJan tinha razõesparasergratoaela.EletalveznãoentendessetodasassutilezasdamotivaçãodeKira,maseraprincipalmenteporcausa
deleque iammataromenino, e issoeramotivoparaagradecer.Kirapodia ter resolvido sacrificá-lo.Masescolheraassumirriscosconsideráveisparacontinuarcomele,eissoodeixavafeliz,deverdade,apesardeagora,nocarro,elenãoestarsesentindotãobem.TentavabuscarforçaspensandoemOlga.Acontecesseoqueacontecesse,elanãodeviaverumretrato
faladodeseupaiem todosos jornaisquandoacordasse,eeledissea simesmováriasvezesqueporenquanto tinham feito tudo certo e que o pior já havia passado. Contando queAndrei Zander tivessemesmodadooendereçocerto,o trabalhoseria simples.Eram trêshomens fortementearmados,quatrocomJurij,quecomosemprepassavaamaiorpartedotempocomacaraenfiadanocomputador.AequipeeraformadaporJan,Jurij,OrloveDennisWilton,umgângsterquetinhasidomembrodoMC
Svavelsjö e que agora prestava serviços regulares paraKira e os ajudara coma operaçãonaSuécia.Eram três ou quatro homens bem treinados, mais Kira, contra uma mulher sozinha, que com certezaestariadormindo,quando,paratodososefeitos,estavaláparaprotegeracriança.Nãoiahavernenhumproblemadessavez.Eles iamconseguir fazerumserviço rápidoe sairdopaís.MasKiraparecia tersurtado,erepetia:—NãosubestimemaSalander!Ela tinha dito isso tantas vezes que até Jurij, que normalmente concordava com tudo que ela dizia,
havia se irritado. Claro que na Sveavägen Jan tinha visto como a garota era bem treinada, rápida,corajosa. Mas Kira a descrevia como se ela fosse uma supermulher. Era ridículo. Jan nunca tinha
encontrado uma mulher que numa luta chegasse nem minimamente perto do nível dele ou de Orlov.Mesmoassimprometeuqueseriacuidadoso.Prometeuqueprimeirofariaoreconhecimentodoterrenoeplanejaria uma estratégia, um plano de ação. Eles não deveriam ter pressa, para não caírem emarmadilhas,foioqueeleassegurouaeladiversasvezes.Quandoestacionaramocarrojuntoaopédeummorro e a uma ponte abandonada, ele assumiu o comando da operação. Ordenou que os outros sepreparassemabrigadosnocarro,enquantoeleirianafrenteparalocalizaracasa.Nãopareciasermuitofácilencontrá-la.JanHoltsergostavadoamanhecer,gostavadosilêncioedasensaçãodetransiçãoquehavianoar,e
agoraiaandandocomascostasumpoucoencurvadasecomosouvidosaguçados.Aescuridãoemtornodeleo fazia se sentir seguro,nãohavianinguémpor ali, nenhuma luzacesa.Passoupelaponte epelaencostadomorro,chegandoaumacercademadeiraeaumportãoenferrujadoaoladodeumpinheiroede um arbusto espinhento. Abriu o portão e subiu uma escada de madeira mal construída, com umcorrimãodoladodireito,edepoisdealgumtempoconseguiuveracasalánoalto.Acasaestavaencobertaporpinheiroseálamosecompletamenteàsescuras,comumavarandadolado
sule,emfrenteaela,portasdevidroqueelenãoteriadificuldadeematravessar.Àprimeiravistanãoachouobstáculos.Elespoderiamentrarcomfacilidadenacasaatravésdaquelasportasdevidrofrágeiseneutralizaroinimigo.Issonãoseriaproblema.Notouquesemovimentavasemfazernenhumsomeporum instante pensou em terminar o serviço sozinho. Talvez fazer isso até fosse uma responsabilidademoraldele.Elehaviacolocadotodomundonaquelasituação,portantocabiaaeleencontrarumasolução.Nãoseriaumtrabalhomaisdifícildoqueoutrosqueelejátinharealizado.Pelocontrário.Ali visivelmente não havia policiais comona casa deBalder, nada de seguranças nem sistemas de
alarme.Nãotinhatrazidosuametralhadora.Nãohavianecessidadedela.AmetralhadoraeraumexagerodeKira,umaobsessãodela.Eleestavacomasuapistola,aRemington,eelaeramaisdoquesuficiente.E de repente, e sem o seu habitual e cuidadoso planejamento, ele entrou em ação com a mesmaefetividadedesempre.Commovimentosrápidoseprecisos,foiseaproximandodavarandaedasportasdevidrodacasa,até
pararrepentinamente.Aprincípionãoentendeuporquê.Poderiatersidoqualquercoisa,umruído,umamovimentação,umperigoqueele tivessepressentido,eolhoudepressaparaa janela retangularacimadele. De onde ele estava não conseguia enxergar seu interior. Mesmo assim, permaneceu imóvel,sentindo-secadavezmaisinseguro.Seráqueaquelaeraacasaerrada?Para ter certeza, decidiu se aproximar e dar uma olhada, e então… ficou paralisado na escuridão.
Estavasendoobservado.Aquelesolhosquejátinhamolhadoparaeleumavezoencaravam,vidrados,juntoaumamesaredondanointeriordacasa,enesseinstanteeledeviaterreagido.Deviaterentradocorrendopelavarandaeatirado.Deviaterconfiadonoseuinstintoassassino.Masdenovoelehesitou.Nãotinhaconseguidosacarsuaarma.Ficoucompletamenteperdidoquandodeparoucomaqueleolharetalvez tivessecontinuadoali,nomesmo lugarpormaisalgunssegundos, seomeninonão tivesse feitoumacoisaqueJannãopensouqueelefossecapazdefazer.Ogaroto soltouumgrito tão estridenteque fez tremerosvidros, e só então Jan saiude seu transe,
correuparaavarandae,semnempensar,jogou-secontraasportasdevidro,atirando.Achouquehaviaatiradocomasuaprecisãodesempre,masnãotevetempodeversehaviaatingidoseualvo.Umafigurasombriaeameaçadoraveionasuadireçãocomtamanhavelocidadequeelenãotevetempo
de se virar oude se colocar emposiçãodedefesa.Sabia quehavia dadomais um tiro e que alguémtambémtinhaatirado.Masnãotevemaistempoderaciocinar,poisnoinstanteseguintecaiunochãocomtodoopesodeseucorpoeuma jovemse jogousobreelecomumódioqueelenunca tinhavistonosolhosdealguém,eaoverissoeleteveamesmareaçãoinstintivadefúria.Atiroudenovo,masamulherpareciaumanimalselvagem,eagoraelaestavasentadaemcimadele,erguendoacabeçae…Bang!Jannuncasoubeoqueoatingiu.Quandorecobrouaconsciência,sentiugostodesanguenabocaeseupulôverestavapegajosoeúmido.
Achouquetinhasidoatacadoenessemomentoviuamulhereomeninopassandoporele.Aindatentoupegar apernadogaroto,pelomenos foioquequeria ter feito,mas foi agredidodenovo.De repentesentiuumanecessidadeurgentederespirar.Elenãoentendiamaisoqueestavaacontecendo,anãoserquehaviasidoespancadoederrotado,epor
quem?Porumagarota,esaberdissosetornoupartedesuadorenquantoaindaestavanochão,emmeioaos vidros quebrados e a seu próprio sangue, de olhos fechados, a respiração pesada, esperando queaquelepesadeloacabasselogo.Entãoachouterouvidoalgumacoisadenovo,vozesseaproximandoequandoabriuosolhos ficou surpresoaover amulher.Ela aindaestava lá.Masnão tinhaacabadodesair?Não,elaestavajuntoàmesadacozinhacomsuaspernasmagras,mexendoemalgumacoisa,eelefezumesforçoenormeparaselevantar.Nãoconseguiaacharsuaarma.MasconseguiusesentarenesseinstantevislumbrouOrlovpelajanelaeentãotentouatacá-lamaisumavez.Nãofezmaisdoquetentar.Amulherparecia ter explodido, foi essaa sua impressão.Elaagarroualgunspapéis, saiucorrendo
comumaforçaeumaagilidadeimpressionantese,numímpeto,selançoudavarandaparaomeiodomatoedasárvores,sendoseguidaportirosnaescuridão,eelemurmuroubaixinho,comosecomissofosseajudarosoutros:“Matemessesdesgraçados!”.Enãohaviamaisnadaqueelepudesse fazerporeles.Malconseguiaficardepéetambémnãoseimportavacomocaosláfora.Apenasficouali,esperandoqueOrloveWiltonacabassemcomamulhereogaroto.Noentantoeleestavamuitoocupadotentandosemanterempéeapenasdeuumaolhadaporaltonamesaàsuafrente.Haviaumaquantidadegrandedelápisepapéisespalhadosali,eeleolhouparaaquelabagunçasem
entendernada.Derepente,sentiucomoseumagarrativessearrancadooseucoração.Reconheceuasimesmo,oumelhor,viuumafiguradiabólicaderostopálidoecomamãoerguidaparamatar.Depoisdealgunssegundos,percebeuqueodemônioeraelemesmoecomeçouatremer,muitoassustado.Mesmoassim,nãoconseguiaparardeolharparaodesenho,haviaalgohipnotizanteali.Depoisviuumaespéciedeequaçãonocantodopapelenoaltodele,comumacaligrafiadesleixadaetrêmula,eleleu:
Enviadoparaapolícia4h22
27.MANHÃDE24DENOVEMBRO
QuandoAramBarzani,membro das forças especiais da polícia sueca, entrou na casa de campodeGabriellaGraneàsquatrohorasecinquentaedoisminutosdamanhã,deparoucomumhomemmusculosoederoupaspretascaídojuntoàmesaredondadacozinha.Aramseaproximoucomtodoocuidado.Acasapareciatersidodeixadaàspressas,masaindaassim
elenãoqueriacorrernenhumrisco.Nãofaziamuitotempoeleshaviamrecebidoainformaçãodetrocadetirosnolocal.Láfora,naescarparochosa,eleouviuseuscolegasgritarem,excitados:—Aqui!Aqui!Aramhesitou,sementenderoqueestavaacontecendo.Deveriasejuntaraeles?Resolveuficarever
emquecondiçõesestavaohomemestendidonochão.Emvoltadelehaviavidrosquebradosesangue.Emcimadamesaredonda,viupapéisrasgadoselápisquebrados.Ohomemestavadeitadodecostasefazia o sinal da cruz commovimentos fracos. Em seguidamurmurou alguma coisa, talvez uma prece.Parecia russoeAramconseguiuentender apalavra“Olga”.Abaixou-seao ladodele edissequeumaequipemédicaeumaambulânciajáestavamacaminho.—Theyweresisters—disseohomem.O comentário pareceu confuso, eAramo ignorou.Examinou suas roupas e constatou que o homem
estavadesarmadoequepareciaterumferimentodebalanoestômago.Seupulôverestavaensopadodesangue e seu rosto tinha uma palidez preocupante. Aram perguntou o que havia acontecido, mas nãorecebeu nenhuma resposta. Não de imediato. Depois de alguns segundos, muito ofegante, o homembalbucioualgoestranhoem inglês:—Mysoulwascaptured inadrawing—eledisse e emseguidadesmaiou.Aram ficou ali pormais algunsminutos, para ter certeza de que o homemnão causaria problemas.
Assimqueouviuasirenedaambulânciachegandocomosparamédicos,afastou-sedohomemesaiudacasa.Queria saber por que seus companheiros haviam gritado.Ainda nevava, o ar estava gelado e oterreno,escorregadio.Aramouviuvozeseosomdemaiscarrosseaproximando.Aindaestavaescuroenãoseenxergavamuitacoisa;haviaumaporçãodepedras,lascaseagulhasdepinheirosespalhadaspelocaminho. Era uma paisagem tenebrosa, com uma rocha lisa e inclinada terminando abruptamente numprecipício.NãoeraumterrenoconvenienteparaperseguiçõeseAramtevemauspressentimentos.Elesedeucontadecomotudoemvoltahaviaficadorepentinamentequieto,eelenãofaziaamenor ideiadeondeseuscompanheirospoderiamestar.Nãoestavammuito longedali.Viu seugrupo reunidopertodaencosta íngreme, atrásdeumgrande
álamo,equandooslocalizouteveumchoque.Nãoeratípicodelesertãosensível,masquandoviuseus
companheiros olhando para o chão, muito sérios, ficou alarmado. O que estavam vendo lá? Seria omeninoautista,morto?Aram foi andando devagar, pensando em seus próprios filhos, de nove e seis anos. Os dois eram
loucos por futebol, não faziam outra coisa, não falavam de outro assunto. Eles se chamavamBjörn eAnders.EleeDilvantinhamdadonomestipicamentesuecosaosfilhosporacharqueissotornariaavidadelesmaisfácil.Quetipodepessoaseriacapazdematarumacriança?Foitomadoporumasúbitaraivaesaudouseuscompanheiroscomumgritoparaalertá-losdesuachegada.Emseguidasoltouumsuspirodealívio.Nãohavianenhummeninolá,esimdoishomensadultosdeitadosnochão,quetambémpareciamter
sidobaleadosnoestômago.Umdeles,umtipovigorosoeanimalesco,comorostocheiodecicatrizesenarizdelutadordeboxe,tentouselevantar,masnomesmoinstantefoiaochãodenovo.Seusemblantepareciaodealguémhumilhado.Suamãodireita tremiadedorou talvezde raiva.Ooutrohomem,dejaquetadecouroecabelopresonumrabodecavalo,pareciaempiorescondições.Continuavadeitadocomosolhosfixosnocéuescurocomoseestivesseemestadodechoque.—Algumsinaldacriança?—perguntouAram.—Nada—respondeuseucompanheiroKlasLind.—Edamulher?—Nadatambém.Aramnãotinhacertezaseaquiloeraumbomsinalounão.Fezmaisalgumaspoucasperguntas,mas
ninguém da equipe tinha uma ideia clara do que havia acontecido.Duas armas automáticas damarcaBarrettREC7 foramencontradasauns trintaouquarentametrosdoprecipício.Osdoishomens feridosconfirmaramqueasarmaseramdeles,masnãoficouclarocomoelashaviamidopararlá.Osujeitocomcicatrizesnorostotinhacuspidoumarespostaqueninguémentendeu.Durante os quinze minutos seguintes, Aram e seus companheiros se dedicaram a fazer buscas
minuciosasno local, e tudoqueencontraram,alémdasarmas, foramsinaisde lutacorporal.Enquantoisso, mais pessoas chegaram: paramédicos, a inspetora Sonja Modig, dois ou três peritos criminais,muitospoliciaisciviseo jornalistaMikaelBlomkvist,acompanhadodeumamericanocorpulentocomcabelodecortemilitarque imediatamente inspirouumaboadosederespeitoemtodosali.Àscincoevinte e cinco veio a informação de que havia uma testemunha aguardando para ser interrogada noestacionamentojuntoàpraia.OhomemqueriaserchamadodeKG.NaverdadeseunomeeraKarl-GustafMatzon,quenãofaziamuitotempohaviaadquiridoumacasarecém-construídadooutroladodapraia.SegundoKlasLind,nãoeraalguémparaserlevadoasério:—Ovelhoteébemchegadonumashistóriasdepescador.Noestacionamento,SonjaModigeJerkerHolmbergtentavamjuntaraspeçasdoquehaviaacontecido.
Até então, só tinham imagens fragmentadas e esperavam que o sr. KG Matzon pudesse ajudá-los aesclarecerosepisódiosdaquelamanhã.No entanto, quando o viram caminhando pela praia para ir se encontrar com eles, duvidaram que
aquelehomempudessecontribuircomalgodeútil.KGMatzontrazianadamenosqueumchapéutirolêsna
cabeça e vestia uma calça xadrez de padrão esverdeado, jaqueta vermelha damarcaCanada-Goose etinhaumbigoderetorcidonaspontas.Pareciatersevestidoassimparasefazerdeengraçado.—Sr.KGMatzon?—perguntouSonjaModig.—Empessoa—eledisse,apressando-seemacrescentar,semquelhefossepedida,ainformaçãode
quedirigiaaeditoraTrueCrimes,especializadanapublicaçãodehistóriaspoliciaisdecrimesfamosos.Talveztenhaadiantadoessainformaçãoparaaumentaracredibilidadedeseudepoimentoàpolícia.—Ótimo!Masagoraqueremosdosenhorumrelatobastantefactual.Nadadepublicidadeparaoseu
próximolivro—disseSonjaModig,paraquedesdeocomeçoficassetudobementendido,eKGMatzonrespondeuqueclaro,sim,comcerteza,dizendoque,acimadetudo,seconsideravauma“pessoaséria”.Elecontouquetinhaacordadoabsurdamentecedoeficadonacamaouvindo“osilêncioeacalma”,
apreciandoaquelemomentododia.Umpoucoantesdasquatroemeiadamanhã,ouviualgoquepareciaumtirodepistola.Entãosevestiurápidoesaiuparaavaranda,quedavaparaapraia,paraodecliverochosoeparaoestacionamentoondeelesestavamagora.—Eoqueosenhorviu?— No começo, nada. Estava tudo sinistramente quieto. Mas de repente foi como se o ar tivesse
explodido,comoseumaguerrativesseestourado.—Osenhorouviutiros?—Eramsonsdearmasdefogovindodooutroladodabaíaeeufiqueialiparado,perplexo,olhando
e...Jáconteiavocêsquesouumobservadordeaves?—Não,aindanão.—Bom,essaatividadeafioumeusolhos.Tenhoolhosdeáguia,sabe,consigoverosmenoresdetalhes
demuitolonge,efoiporisso,tenhocerteza,queconseguienxergarumpequenopontonaquelasaliêncialáemcima,estãovendo?Aquelafendaformaumaespéciedeumbolsãonamontanha.Sonjaolhouparaoaltoeassentiucomacabeça.—Nocomeçonãoentendioqueeraaqueleponto—continuouKGMatzon—,masdepoispercebique
eraumacriança,ummenino,acho.Eleestavadecócorasetremendo,foioqueeuimagineipelaposiçãodele.Ederepente…MeuDeus,nuncavoumeesquecer!—Doquê?—Alguémvinhacorrendo,eraumajovem.Eladeuumsalto,seprojetounoaremergulhoucomtanta
violêncianafendadarochaquequasecaiudelá.Depois,elesficaramumbempertodooutro,elaeomenino,esperandopeloinevitável,então...—Oquehouve?—Doishomensapareceramatirandocommetralhadoras,eatiraram,atiraram,vocêsnãofazemideia.
Eume jogueinochão, commedode ser atingido.Mas tambémnãoqueriadeixardeveroqueestavaacontecendo.Vocêssabem,dolugarondeeuestava,eutinhaumavisãomuitoboadomeninoedajovem.Mas eles não podiam ser vistos pelos homens lá em cima. Para mim foi óbvio que era apenas umaquestãodetempoatéosdoisseremdescobertos,eviqueelesnãotinhamparaondeescapar.Noinstanteemquedeixassemaquelafenda,oshomensosveriameosmatariam.—Masnósnãoencontramosnemajovemnemogarotoláemcima—disseSonja.—Não,éexatamenteisto!Oshomensestavamchegandocadavezmaispertodeles,enofimachoque
até deviam estar ouvindo os dois respirando. Estavam tão perto que se eles se inclinassemmais umpoucoiamveramulhereomenino.Efoientãoque...—Sim?—Vocês nãovão acreditar.Aquele rapaz das forças especiais eu sei que não acreditou quando eu
contei.—Bem,masváemfrenteenosconte.Depoisvemosseacreditamosounãonosenhor.—Quando os homens pararam para escutar, ou talvez simplesmente porque sentiram que estavam
muito perto deles, amulher se levantou de um salto e atirou neles. Bang! Bang! Depois que os doiscaíramelacorreuatéelese jogou longeasarmasdosdois.Ela foideumaeficiência impressionante,pareciaqueeuestavavendoumfilmedeação.Depoiselacorreu,pegouomenino,osdoiscorreram,elarolou com ele e eles foram cair perto de uma BMW que estava estacionada aquimesmo.Antes delesentraremnocarro,viqueamulherestavasegurandoalgumacoisa,pareciaumabolsaouumcomputador.—ElessaíramnaBMW?—Sim,numavelocidadeimpressionante.Nãoseiparaondeforam.—Estábem.—Maseuaindanãoterminei.—Oqueosenhorquerdizer?—Tinhaoutrocarroestacionadoaqui,achoqueeraumRangeRover.Umcarroalto,preto,modelo
novo.—Oquetemele?—Eunãodei importância,porquemepreocupeimaisemir telefonar logoparapedirsocorro.Mas
assimquedesligueiotelefoneviduaspessoasdescendoaescadademadeiradacasa,umhomembemmagroealtoeumamulher.Nãoconseguiverosdoismuitobem,elesestavammaislongedoquemeusolhospodiamalcançar,masduascoisaseupossodizerdessamulher.—Equeduascoisassãoessas?—Elaerasublimeepareciafuriosa.—Comsublimeosenhorquerdizerbonita?—Sim,deslumbrante,tinhaclasse,issoseviadelonge.Mastambémestavamuitobrava.Antesdeles
entraremnoRangeRover,eladeuumtapanorostodohomemeoestranhofoiqueelenãotevenenhumareação.Apenasbalançouacabeçacomoseachassequetinhamerecidoaqueletapa.Depoiselesforamemboranocarro.Ohomemdirigindo.SonjaModig anotou tudo e só pensava em expedir omais rápido possível, em nível nacional, um
mandadodebuscaeapreensãodoRangeRoveredaBMW.GabriellaGranetomavaumcappuccinoemsuacozinha,naVillagatan,pensandonoquantosesentia
calmaapesardetudo.Masdeviaestarsobforteestresse.HelenaKraftqueriavê-laàsoitohorasemseugabinetenaSäpo.Gabriellaachavaqueiaserdemitida.
Certamentesofreriatambémumprocessodisciplinar,oqueiriaprejudicardemaisapossibilidadedeelaconseguirumempregoondequerquefosse.Comtrintaetrêsanosdeidade,elaviasuacarreirachegar
aofim.Eissonãoeraopior.Elatinhaagidocomtotalconsciênciadequeestavadesafiandoaleieassumindo
riscos.MasfizeraissoporacreditarqueeraamelhormaneiradeprotegerofilhodeFransBalder.Agoratinhaocorridoumtiroteioviolentoemsuacasadecampoeninguémsabiaondeomeninoestava.Talvezestivessegravementeferidooumorto.Gabriellaera torturadaporumasensaçãodevastadoradeculpa.Primeirotinhasidoopai,agoraofilho.Elaselevantoueolhouashoras.Eramseteequinzeeelaprecisavasair,porqueantesdareuniãocom
Helena queria esvaziar sua mesa. Tinha decidido se comportar com dignidade, sem se desculpar ouimplorar para permanecer no cargo. Pretendia ser forte ou pelomenos parecer forte. SeuBlackphonetocoueelanãotevevontadedeatender.Calçouasbotas,pôsseucasacoPradaeumvistosocachecolvermelho. Iria enfrentar aquela situação com classe e, antes de sair, parou na frente do espelho pararetocaramaquiagem.Nofim,comumaboadosedehumornegro,fezosinaldavitóriaparaasuaimagemnoespelho,comoNixontinhafeitoquandorenunciou.SeuBlackphonetocounovamentee,mesmodemávontade,dessavezelaatendeu.EraAlonaCasales,daNSA.—Jáestousabendodetudo—disseaamericana.Claroqueestavasabendo.—Comovocêestá?—Alonaperguntou.—Adivinhe.—Estásesentindoapiorpessoadomundo.—Maisoumenosporaí.—Equenuncamaisvaiconseguirtrabalho.—Namosca,Alona.—Bom,entãodeixeeutedizerquevocênãotemporqueseenvergonhar.Vocêfezacoisacerta.—Éalgumabrincadeiraparameanimar?—Nãoéumaboahoraparabrincadeiras,meubem.Háumtraidorentrevocês.Gabriellarespiroufundo.—Quem?—MårtenNielsen.Gabriellasentiuosanguegelar.—Háprovasdisso?—Ah,claro.Temandotudodaquiapouco.—PorqueMårtennostraiu?—Achoqueelenãovêissocomotraição.—Comoelevêentão?—Talvezcomocolaboração,comoumdeverdelecomanaçãolíderdomundolivre,seilá.—Então,eleestápassandoinformaçõesparavocês.—Naverdadeoqueelefezfoinosajudarparaquenósnosajudássemos.Elenospassouinformações
sobreoservidordevocêsesobreasuacriptografia,oquenormalmentenãoénadamuitomaisgravedoque todaamerdaquenósaquicostumamosproduzir.Nósescutamos tudo,desdefofocadevizinhoatételefonemadeprimeiro-ministro.
—Eainformaçãovazouparavocês.—Veio devagarzinho para nós, como se fôssemos um funil. Eu sei, Gabriella, que você não agiu
exatamentedeacordocomomanual.Masmoralmentefalando,vocêfezacoisacerta,nãotenhonenhumadúvida, e vou fazer seus superiores saberem disso. Você percebeu que havia algo podre na suaorganizaçãoe,mesmonãopodendoagirdeacordocomasregrasestabelecidas,vocênãofugiudasuaresponsabilidade.—Emesmoassimdeutudoerrado.—Àsvezesascoisasdãoerradopormaiscuidadoqueagentetome.— Obrigada, Alona, é muita delicadeza sua me dizer tudo isso. Mas se alguma coisa de ruim
aconteceucomAugustBalder,nuncavoumeperdoar.—Gabriella,omeninoestábem.Eleeajovemsrta.Salanderestãonumcarroporaí,indoparaalgum
lugardesconhecido,casoalguémaindaestejaatrásdeles.Gabriellaachouquetinhaouvidomal.—Espere,nãoentendi.Oquevocêfalou?—Queomeninoestásãoesalvo,meubem,egraçasaeleoassassinodoBalderjáfoiidentificadoe
preso.—VocêestádizendoqueAugustBalderestávivo?—Sim,éoqueeuestoudizendo.—Comovocêsabe?—Digamosqueeutenhouminformantenumlugarbemestratégico.—Alona...—Sim?—Seoquevocêestádizendoéverdade,podetercertezadequevocêmefeznascerdenovo.Terminada a conversa, Gabriella Grane telefonou paraHelenaKraft e insistiu queMårtenNielsen
participassedareunião.Mesmocontrariada,HelenaKraftconcordou.EramseteemeiadamanhãquandoEdNeedhameMikaelBlomkvistdesceramaescadademadeirada
casadeGabriellaGraneparapegaroAudinoestacionamentojuntoàpraia.Apaisagemestavacobertadeneveeosdoisseguiamcalados.Àscincoemeiadamanhã,MikaeltinharecebidoumamensagemdetextodeLisbeth,curtacomosempre:Augustsalvo.Escondidosporumtempo.Mais uma vez Lisbeth não tinha mencionado seu próprio estado de saúde, mas ainda assim era
tranquilizador saber que o menino estava bem. Depois disso, Sonja Modig e Jerker Holmberg ointerrogaramdemoradamentesobrecomoeleearevistatinhamagidonosúltimosdias.Osinvestigadoresnão demonstraramnenhuma boa vontade com ele,masMikael teve a impressão de que no fundo elesentenderamsuasrazões.Agora,umahoradepoisdesseinterrogatório,elecaminhavapelopíer.Aolonge,umveadofugiucorrendoparaobosque.MikaelsesentouaovolantedoAudieficouaguardandoEd,quevinhachegandodevagarporcausadascostas.AcaminhodeBrunn,elesforamsurpreendidosporumcongestionamento.Poralgunsminutosotrânsito
ficoucompletamenteparadoeopensamentodeMikaelsevoltouparaAndrei.Naverdade,nuncatinha
deixadodepensarnele.Elesaindanãohaviamrecebidonenhumsinaldevidadele.—Vocêpodepôremalgumarádiobembarulhenta,porfavor?—pediuEd.Mikaelsintonizouna107.1eimediatamenteouviuJamesBrowngritando“likeasexmachine”.—Medêaquiosseuscelulares—disseEd.Mikael entregou-lhe os aparelhos eEd os pôs bemperto dos alto-falantes traseiros do carro.Com
certezaeleiacontaralgoconfidencial,eMikaelnãotinhanadacontra.Precisavadetodasasinformaçõespossíveis para escrever sua história, mas também tinha consciência de que ninguém deixa umainformaçãovazarsemteralguminteressenisso.MesmoqueMikaelsentisseumacertaafinidadecomEdNeedhameatéachassecharmosatodaaquelatruculência,nãoconfiavanelenemporumsegundo.— Bom, o negócio é o seguinte — começou Ed. — Sabemos que nas empresas comerciais e
industriaisalguémsempretiraproveitodasinformaçõesinternas.Mesmoqueumououtroacabesendodescoberto,ospreçossempresobemquandoasnotíciassetornampúblicas.Alguémsempreaproveitaachanceparacomprar.—Éverdade.— No serviço secreto, ficamos longe disso por um bom tempo pela simples razão de que as
informaçõesconfidenciaisquepossuíamoseramdeoutranatureza.Adinamitepuraestavaemoutrolugar.Mas desde o fim da Guerra Fria muita coisa mudou. A espionagem industrial e o monitoramento depessoaseempresassedisseminaramtantoesetornaramtãoinevitáveisquecomoimensomaterialquetemoshojepoderíamosenriquecerfacilmenteedemaneiramuitorápida.—Hápessoastirandovantagemdisso,éoquevocêquerdizer?— A ideia principal é essa. A espionagem industrial beneficia os grandes grupos empresariais
americanos,queficamapardeondeestãoospontosfortesefracosdosnossosconcorrentes.Elaépartedas atribuições patrióticas daNSA.Mas, como todo o trabalho de inteligência, o serviço secreto atuanumazonacinzenta.Quandoexatamenteaajudapassaaserumaatividadecriminosa?—Poisé.Quando?— Boa pergunta. O que há algumas décadas era considerado criminoso ou antiético hoje já é
consideradoumapráticapadrão.Advogados são recrutadospara legitimar roubose açõesabusivas, esouobrigadoaadmitirquenaNSAnãotemosnossaídomuitomelhor,possolhedizerquetalvezaté...—Estãosendopiores.—Calma,calma,deixaeuterminar—prosseguiuEd.—Euprovavelmentediriaquemantemosuma
certamoralidade,apesardetudo.Massomosumaorganizaçãogigantesca,comdezenasdemilharesdefuncionários,e,inevitavelmente,temosmaçãspodresentrenós,inclusivealgumasdealtoescalãocujosnomeseupretendoentregaravocê.—Evocêfaráisso,claro,apenasporgenerosidade—disseMikael,sarcástico.—Ah,nãosóporgenerosidade.Masescute isto.Quandoalgunsdosnossoschefesmaisgraduados
cruzamafronteiradalegalidadeepassamasededicaraatividadescriminosasdetodotipo,oquevocêachaqueacontece?—Nadamuitoagradável.— Eles se tornam sérios concorrentes do crime organizado. Na Solifon há um departamento
extremamentequalificado,comandadoporZigmundEckerwald,cujotrabalhoédescobriroqueempresas
dealtatecnologiaconcorrentesestãofazendo.—Masnãoésóisso.—Não,elestambémroubamevendemoqueroubam,oqueémuitonegativoparaaSolifonequem
sabeatéparaomercadodeaçõesdaNasdaq.—EparavocêsdaNSAtambém.— Issomesmo, pois acabamos sabendo que os nossos traidores eram dois executivos seniores da
espionagemindustrial,JoacimBarclayeBrianAbbot.Depoispassopravocêtodososdetalhes.Essesdois e seus subordinados recebem ajuda de Eckerwald e de sua gangue e, em troca, os auxiliam nomonitoramento de comunicações em larga escala.ASolifonmostra a eles onde asmaiores inovaçõesestãosendofeitaseosfilhosdaputaseapossamdosprojetosedetodososdetalhestécnicos.—EodinheirorecebidonemsemprevaiparaoscofresdoEstado.—Issoneméopior.SevocêfazumacoisadessasendofuncionáriodoEstado,vocêseexpõe,fica
numaposiçãomuitovulnerável, especialmente porqueEckerwald e seubando tambémestão ajudandocriminosos da pior espécie,mesmoque no início não tivessem conhecimento de que estavam fazendoisso.—Maseramcriminososmesmo?—Ah,sim!Oshackersdelestinhamumníveldeconhecimentotãoaltoqueseriaumsonhocontratá-
los.Averdadeiranaturezadonegóciodeleseratirarpartidodainformação,daíjádápravocêimaginaro que aconteceu. Quando eles perceberam o que os funcionários da NSA faziam, eles acharam queestavamsentadosnumaminadeouro.—Informaçõesquepodiamserusadasparachantagear.—Ecomo!Elestiraramvantagemdissoaomáximo.Osnossosfuncionáriosnãoroubavamapenasdas
grandes empresas. Eles também fizeram uma limpeza em pequenas empresas e em empreendedoresindividuais,que lutamparasobreviver.Nãoserianadabomse tudoviesseà tonaeosnossos rapazesficassemna lamentávelsituaçãode terqueajudarnãosóEckerwaldesuagangue,mas tambémoutrosgruposcriminosos.—VocêestásereferindoaosSpiders?—Exato,etalvezporalgumtempotodosestivessemsatisfeitos.Eranegóciodosgrandeseodinheiro
corria fácil.Maseisquesurgeumpequenogênionomeiodahistória,umcertoprofessorBalder,quedescobre essa atividade, ou pelomenos parte dela. Então todos ficam se borrando demedo, claro, econcluemqueprecisamfazeralgumacoisa.Nãoestoubemcertodecomoadecisãofoitomada.Achoqueos nossos rapazes daNSA esperavam que procedimentos legais bastassem, que ameaças e advogadosraivosos resolveriam tudo. Mas isso não foi suficiente, não quando você está no mesmo barco quebandidos.OsSpiderspreferemaviolência,portantoenvolveramosnossos rapazesnaúltimaetapadoplanocomointuitodeteremaindamaispodersobreeles.—MeuDeus!—Aviolênciatemsuapróprialógica.Vocêdeveterminaraquiloquecomeçou.Esabeoqueéomais
engraçadodetudo?—Nãoimaginonadadeengraçadonisso.—Certo,paradoxal,então.Eunãoteriasabidonadadissoseanossaredenãotivessesidohackeada.
—Maisumarazãoparavocêdeixaressahackerempaz.—Éexatamenteissoqueeuvoufazer,prometo,assimqueelamecontarcomoconseguiunosinvadir.—Porqueissoétãoimportante?—Para que nenhum filho da puta consiga invadir omeu sistemade novo!Quero saber exatamente
comoelafez,paraqueeupossatomarasminhasprecauções.Depoisdessaconversaeudeixoamoçaempaz.—Nãoseisevocêédecumprirsuaspromessas.Masandeipensandoemoutracoisa—acrescentou
Mikael.—Manda!— Você mencionou dois nomes, Barclay e Abbot, não foi? Você tem certeza de que não há mais
ninguémenvolvido?Queméosuperiordeles?Deveseralguémnumcargomaiselevado,nãoé?—Nãopossodizeronomedele,infelizmente.Éconfidencial.—Entãovouterquemeconformarcomisso?—Vai, não tem jeito— disse Ed sem hesitar, e nesse instanteMikael notou que o trânsito tinha
passadoafluirmaisrápido.
28.TARDEDE24DENOVEMBRO
OprofessorCharlesEdelmanestavanoestacionamentodoInstitutoKarolinskaseperguntandoemquediabos ele havia, afinal, se envolvido. Mal podia acreditar naquilo, mas também não tinha tempo aperder.Agorajáhaviaaceitadoaproposta,oquesignificariaserobrigadoadesmarcarváriasreuniões,palestras,conferências.Noentantoelesesentiaestranhamenteexultante.Haviasidoenfeitiçadonãoapenaspelomenino,mas
tambémpelajovemquepareciasaídadeumabrigaderua,masquedirigiaumaBMWnovaefalavacomvozfriaeautoritária.Elemaltevenoçãodoqueestavafazendoquandorespondeu“Sim,claro,porquenão?” à pergunta dela, embora fosse obviamente uma decisão imprudente e precipitada, e a únicademonstraçãodeindependênciadelefoirecusartodasasofertasdeumacompensaçãofinanceira.Ele pagaria até mesmo suas despesas de viagem e de hotel, declarou. Provavelmente estava se
sentindoculpado.Queriamuitoajudaromenino,etambémhaviaumagrandechancedesuacuriosidadecientífica ter sidoatiçada.Era fascinanteaperspectivadeestarcomumsavantquenão sódesenhavacomprecisãofotográficacomoaindaeracapazdefatorarnúmerosprimos,eparasuaprópriasurpresaoprofessorEdelmandecidirainclusivenãocompareceraojantaranualdoprêmioNobel.Aquelajovemotinhatiradodoseixos.HannaBalderestavafumandonacozinhadeseuapartamentonaTorsgatan.Pareciaqueelanãotinha
feitomaisnadanosúltimosdiasanãoser ficar lásentadacomaquelenónoestômago,emboraviesserecebendomuitoapoioeajuda.Masissonemimportavatantodiantedaquantidadedevezesqueelaforaagredida.LasseWestman não suportava a ansiedade dela. Provavelmente porque ofendia a propensãodeleamártir.Ele sempre estourava, nervoso, berrando: “Vocênão conseguenem saber onde está o seu filho!”, e
com frequência levantava os punhos e a esmurrava ou então a jogava de um lado para outro doapartamentoeaarrastavacomoseelafosseumabonecadepano.Agoraeleprovavelmentetambémiaficarenlouquecido.Numgestodescuidado,ela tinhaderramadocafénocadernodeculturadoDagensNyheter,queofenderaLassepor terpublicadouma resenhade teatroqueeleachoumuito simpáticaaalgunsatoresdosquaiselenãogostava.—Quemerdavocêfezagora?—elegritou.—Desculpe—eladissedepressa.—Jávouenxugar.
Pela expressãodabocadeLasse, elapercebeuque aquilonão seria suficiente.Ela já sabiaque iaapanharantesmesmodeelesaberqueiabaternela,ejáficavadetalformapreparadaparaabofetadaquenãodiziaumapalavranemmexiaacabeça.Apenassentiaocoraçãodisparareosolhosseencheremde lágrimas.Porémas lágrimasnão tinham relaçãocomogolpe.Abofetadaera apenasogatilho.Demanhã ela havia recebido um telefonema tão confuso que tivera dificuldade de entender: August foraencontrado,mastinhadesaparecidodenovoe“provavelmente”nãoestavamachucado,“provavelmente”.Hannanãosabiaseficavamaispreocupadaoumenospreocupadacomessanotícia.Ela nem tinha conseguido escutar direito, e agora o tempo havia passado sem que nada tivesse
acontecido,eninguémpareciasaberdemaisnada.De repenteelase levantousemse importar se irialevarmaisumasurraounão.FoiparaasalaeouviuLassebufandoatrásdela.OspapéisdedesenhodeAugustaindaestavamnochãoeasirenedeumaambulânciauivavaláfora.Ouviupassosnoladodeforadoapartamento.Seriaalguémvindoprocurá-los?Acampainhatocou.—Nãoabra.Deveseralgumjornalistadesgraçado—vociferouLasse.Hannatambémnãoqueriaabrir.Sentia-sedesconfortável,nãotinhavontadedeverninguém.Masnão
podia ignorar a campainha.Talvez apolíciaquisesse falar comeladenovoouquemsabe agora elesviessem commais informações, com alguma notícia boa ou ruim. Enquanto caminhava em direção àporta,derepenteselembroudeFrans.Lembroudodiaemqueele ficaraaliplantadodizendoque tinhavindopegarAugust.Lembroudos
olhosdele,doseurostolisoesembarba,edecomoelasentiasaudadesdasuavidaantesdeseenvolvercom Lasse Westman, quando os telefones não paravam de tocar, as propostas de emprego eramabundanteseomedoaindanãoatinhaaprisionadoemsuasgarras.Emseguidaabriuaporta,mantendoporém a corrente de segurança fechada. A princípio não viu nada, apenas o elevador e as paredesmarrom-avermelhadas do hall. Então, foi como se uma descarga elétrica a tivesse atingido, e por uminstante não acreditou no que estava vendo. Mas realmente era August ali! Seu cabelo estava todoemaranhado,asroupassujasdemais,eelecalçavatênisumnúmeromuitomaiorqueodele,noentanto…eraeleali,olhandoparaelacomamesmaexpressãosériaeimpenetráveldesempre.EntãoHannatirouacorrentedesegurançaeabriuaporta,eclaroqueelanãoesperavaqueAugusttivessevindosozinho,masaindaassimumtremorpercorreuseucorpo.AoladodeAugusthaviaumajovemde jaquetadecouro,comcortesnorostoeterranocabelo,olhandoparaochão.Elaseguravaumamalagrandedeviagem.—Vimtrazerseufilho—disseajovemsemtirarosolhosdochão.—Ah,meuDeus!—exclamouHanna.—MeuDeus!Isso foi tudoqueHannaconseguiudizer, eporalguns segundosela ficoucompletamenteperdidana
frentedaporta.Depoisseusombroscomeçarama tremer,elacaiude joelhose ignoroutotalmentequeAugustnãogostavadeserabraçado.Coladanofilho,elamurmurava“Meumenino,meumenino”,atéquelágrimascomeçaramaescorrer,eomaisestranhofoiqueAugustnãoapenas tinhasedeixadoabraçarcomopareciaapontodedizeralgumacoisa,comose,alémdetudo,houvesseaprendidoafalar.Masomeninonãotevetempoparaisso,poisnesseinstanteLasseWestmanapareceujuntoàporta.—Quediabo…Masolhasóquemestáaqui!—eleexclamou,parecendoàprocuradesómaisum
motivoparacontinuarabrigadeles.Mas em seguida ele se conteve.De certa forma foi uma interpretação admirável.Num segundo ele
mudoudeatitudeeadotouaposturaimponentequecostumavaimpressionarasmulheres.—Eaindanosentregamogarotonaportadanossacasa,nemmaisnemmenos—continuouele.—
Finíssimo!Eleestábem?— Ele está bem— respondeu a mulher junto à porta num tom de voz inexpressivo e, sem pedir
permissão,elaentrounoapartamentocomsuaenormemaladeviagemesuasbotaspretassujasdebarro.—Claro,entre,fiqueàvontade—disseLasse,irônico.—Váentrando.—Euvimteajudarafazeramala,Lasse—rebateuLisbethdemaneiraácida.EraumaafirmaçãotãoestranhaqueHannapensouterouvidomal,eestavaclaroqueLasse também
nãotinhaentendido.Eleficoualiparadodebocaaberta,parecendoumidiota.—Oquevocêfalou?—eleperguntou.—Quevocêvaisemudardaqui.—Vocêestásefazendodeengraçadinha?—Dejeitonenhum.Vocêvaiemboradaquideumavezpor todasenuncamaisvaichegarpertodo
Augustdenovo.Éaúltimavezquevocêpõeosolhosnele.—Entãovocêpiroudevezmesmo!— Na verdade, eu estou sendo até bem generosa. Eu tinha planejado te jogar pela escada e te
machucarbastante.Maseutrouxeumamalaedecidideixarvocêpegaralgumascamisasecuecas.—Quetipodeaberraçãoévocê,hein?—vociferouLasse,aumsótempoperplexoecheioderaiva,
avançandoparaLisbethcomtodoopesodesuahostilidade,eporumsegundooudoisHannaachouqueelefosseagredirtambémamulher.Masalgoodeteve.Talvezfossemosolhosdagarota,ouprovavelmenteosimplesfatodeelanãoter
reagidocomoasoutras.Emvezdeseencolherouficaratemorizada,elaapenassorriucomfriezaetiroualgunspapéisamassadosdobolsoeosentregouaLasse.—SeumdiavocêeoseuamigoRogersentiremsaudadesdeAugust,vocêspodemmatarasaudade
olhandopraistoaqui—eladisse.Lasseficounitidamentedesconcertadocomaquelaatitude.Olhouparaospapéis,confuso.Entãofez
umacaradehorror,eHannanãoconseguiuevitardetambémdarumaolhadarápida.Eramdesenhoseoqueestavaemcimadetodosmostrava…Lasse.Lasseagitandoospunhoseparecendodiabólico,tantoquemaistardeelamalconseguiriadescreveressaimagem.NãoeraapenasqueelativesseentendidooqueaconteciaquandoAugustficavasozinhoemcasacomLasseeRoger.Elatambémviualisuaprópriavida.Hannaagoraenxergava tudode formamuitoconscientee racional, comonunca tinhaconseguidofazeremtodosaquelesanos.LasseWestmanhaviaolhadoparaelaexatamentecomaquelamesmaexpressãolívidaetranstornada
centenasdevezes,aúltimanãofazianemumahora,eporfimelapercebeuqueaquilonãoeraalgoquealguémfosseobrigadoaaguentar,nemelanemAugust,eHannaseassustou.Pelomenosachouquetinhaseassustado,porqueajovemaolhavacomumnovointeresse,eHannatambémolhouparaela,etalvezfosseexageroafirmarqueasduas tivessemestabelecidoumcontatomaispróximo.Masdeviam ter seconectado em algumoutro nível.Amulher perguntou:—Eu não estou certa,Hanna?Ele não deve irembora?Eraumaperguntaperigosademais.HannaolhouparaotênisgrandenospésdeAugust.
—Quetêniséessequeeleestáusando?—Émeu.—Porquê?—Tivemosquesaircorrendohojedemanhã.—Eoquevocêsestavamfazendo?—Nosescondendo.—Eunãoentendo…—elacomeçou,masnãopôdecontinuar.Lasseasegurouviolentamentepelobraço.—Porquevocênãodizaessapsicopataqueaúnicapessoaquevaiemboradestacasaéela?—ele
rugiu.—Sim,claro—disseHanna.—Entãofaçaissodeumavez!No entanto… Ela não entendeu o que houve. Pode ter sido alguma coisa no rosto de Lasse ou a
percepçãodealgoinflexívelnocorpoenosolhosgeladosdagarota,masofatoéquederepenteHannaseouviudizendo:—Vocêvaiemboradaqui,Lasse!Enãovaivoltarnuncamais!Elamalacreditounoqueestavaacontecendo.Eracomosealguémestivessefalandoporela,edepois
dissofoitudomuitorápido.LasselevantouamãoparabateremHanna.Masnãohouvenenhumgolpe;nenhumgolpevindodele.Ajovemreagiucomavelocidadedeumraioeoacertounorostouma,duas,trêsvezes,comoumaboxeadoratreinada,eporfimoderruboucomumchutenaspernas.—Masquemerdaé…—foioqueeleconseguiudizer.Lassedesabounochãoe a jovem ficouparadana frentedele, edepoisHanna iria se lembrarpara
sempre do que Lisbeth Salander falou naquele momento. Foi como se aquelas palavras tivessemdevolvidoaHannaumapartedesiprópria,eelapercebeuporquantotempoequãodesesperadamenteelavinhadesejandoqueLasseWestmanestivesseaquilômetrosdedistânciadesuavida.BublanskiestavacomvontadedeverorabinoGoldman.TambémsentiafaltadochocolatecomlaranjadeSonjaModig,desuanovacamaDuxedequefosse
outra época do ano.Mas agora seu trabalho era pôr ordem naquela investigação, e era isso que elepretendiafazer.Verdadequedecertaformaatéqueestavasatisfeito.TinharecebidoinformaçõesdequeAugustBaldersaírailesoeestavaacaminhodacasadesuamãe.EgraçasaomeninoeaLisbethoassassinodeFransBalderforapreso,emboraaindanãosoubessem
se ele iria sobreviver. Estava seriamente ferido e internado na unidade de tratamento intensivo dohospitalDanderyd.ElemoravaemHelsinqueesechamavaBorisLebedev,masvinhausandoumnomefalso:JanHoltser.Eramajoreex-soldadodeelitedoExércitosoviético,enopassadoseunometinhasurgidoemváriasoutrasinvestigaçõesdehomicídios,semnuncatersidocondenado.Oficialmente,eradonodeumnegócionaáreadesegurança,tendoduplacidadania,finlandesaerussa;enãohaviadúvidasdequealguémderaumjeitodeeditarseusarquivospessoais.Os outros dois homens que tinham sido encontrados feridos na casa de Ingarö foram identificados
atravésdesuasimpressõesdigitais;eramDennisWilton,umvelhogângsterdoMCSvavelsjö,quejátinha
cumpridopenaporrouboeagressãofísica;eVladimirOrlov,umrussocomfichacorridanaAlemanhapor lenocínio e cujas duasmulheres haviammorrido em circunstânciasmisteriosas.Nenhumdos doisdisseraaindaumapalavrasobreoocorridonemsobrequalqueroutracoisa,eBublanskinãotinhamuitasesperançasdequecomeçassemafalar.Tiposcomoelesnãocostumavamsemostrarmuitoeloquentesnosinterrogatórios.Masfaziapartedojogo.Oquede fatodeixavaBublanskicontrariadoeraa sensaçãodequeesseshomensnãopassavamde
soldadosrasosequeacimadeleshaviaumaliderançacomligaçõesevidentescomaltosescalõestantodaRússiacomodosEstadosUnidos.Elenãotinhanenhumproblemacomofatodeumjornalistatermaisinformaçõessobreumcasodoqueele.Nãoeradadoavaidades.Tudoqueelequeriaeraavançarnasinvestigaçõeseficavagratoporquaisquerinformaçõesquerecebesse,viessemelasdeondeviessem.ApercepçãoqueMikaelBlomkvisttinhasobreocasoapontavaparafalhasdapolícia,eessasuspeitadojornalista lembrouaBublanskiovazamentode informaçõesna investigaçãoeosperigosqueogarototinhacorridoporcausadisso.Elenuncasuperariaaraivaquesentiu,etalvezissoexplicasseotamanhodasuairritaçãocomastentativasinsistentesdachefedaSäpo,HelenaKraft,defazercontatocomele,eela não fora a única.Agorahaviaumaporçãodegentequerendo falar comele: o pessoal da áreadetecnologiadainformaçãodapolícia,oprocuradorRichardEkströmeumprofessordaUniversidadedeStanford chamadoStevenWarburton, que trabalhava para oMachine IntelligenceResearch Institute, oMIRI,eque,segundoAmandaFlod,queriafalarcomelesobre“umperigoiminente”.Bublanskiestavairritadocomissoecommilharesdeoutrascoisas.Eaindahaviaalguémbatendoem
sua porta! Era Sonja Modig, que parecia muito cansada e estava sem maquiagem. Havia algo novoexpostoemseurosto.— Nossos três prisioneiros estão em cirurgia — ela informou. — Vai demorar para podermos
interrogá-losdenovo.—Tentarinterrogá-los,vocêquerdizer.—É,talvez.MasconseguiterumapequenaconversacomoLebedevantesdacirurgia,enquantoele
aindaestavaconsciente.—Eoqueeledisse?—Quequeriaconversarcomumpadre.—Porquetodososassassinossãoreligiososhojeemdia?—EnquantotodososvelhosesábiosinspetoresduvidamdaexistênciadeDeus,éissoquevocêquer
dizer?—Ora,ora!—MasLebedev parecia resignado, o que achei um bom sinal.Quando lhemostrei o desenho, ele
apenasvirouorostoparaooutroladocomartriste.—Elenãotentoualegarqueeraimaginaçãodomenino?—Não,apenasfechouosolhosecomeçouafalarsobreopadredele.—Vocêdescobriuoqueoprofessoramericanoquercomigo?Eleficametelefonandootempotodo.—Não,nãosei.Eleinsistequequerfalarcomvocê.Achoqueéalgumacoisasobreaspesquisasde
Balder.—EZander,ojovemjornalista?
—Foisobreissoqueeuvimfalarcomvocê.Parecemeiosinistro.—Oquejásabemos?— Sabemos que ele ficou trabalhando até altas horas naMillennium e depois desapareceu nas
proximidades doKatarinahissen, tarde da noite, acompanhado por uma jovemmuito bonita de cabeloloiro-avermelhadoouloiro-escuro,elegante,comroupasdegrife.—Ah,dissoeunãosabia.—Umrapazviuosdois,umpadeirodoSkansenchamadoKenEklund,quemoranoprédioondeficaa
redaçãodaMillennium.Eledissequeocasalpareciamuitoapaixonado,oupelomenosZander.—Vocêachaqueelepodetercaídonumaespéciedearmadilhaamorosa?—Épossível.—EessajovempoderiaseramesmaquefoivistaemIngarö?—Estamosexaminandoessapossibilidade.Oquemepreocupaéqueelespareciamestaracaminho
do Centro velho. Orlov, aquele asqueroso que cuspiu em mim quando tentei interrogá-lo, tem umapartamentonaMårtenTrotzigGränd.—Jámandamosalguémlá?— Ainda não, mas estamos a caminho. A informação do apartamento acabou de chegar. Ele está
registradoemnomedeumadasempresasdele.—Vamostorcerparanãoencontrarmosnadadesórdidolá.—Vamos,sim.LasseWestman estava caído no hall do apartamento da Torsgatan, sem entender por que tinha se
acovardado.Eraapenasumagarota,umapunkcheiadepiercingsquemalchegavaàalturadopeitodele.Poderiaatirá-lacontraaparedecomofariacomumratinho.Mesmoassimestavacomoqueparalisado,enãoachavaquetinhaavercomojeitocomoagarotalutavaemuitomenosporelaestarcomopéemcimadoestômagodele.Eraalgomais,algumacoisaavercomaaparênciaoucomaatitudedela,eraisso que ele evitava cutucar. Por algunsminutos Lasse ficou lá quieto, como um idiota, ouvindo:—Acabeideme lembrar—eladisse—queháalgoassustadoramenteerradocomaspessoasdaminhafamília.Parecemossercapazesdequasetudo.Dasmaisinconcebíveiscrueldades.Deveseralgumtipode distúrbio genético, não sei. Eu, por exemplo, tenho aversão a homens que maltratam crianças emulheres.Issomefazficarmuitoperigosa,equandoviosdesenhosqueAugustfezdevocêedeRoger,aí eu quismachucarmuito vocês dois.Eu poderia ficar horas aqui falando sobre isso,masAugust jápassou pormais do que o suficiente, portanto há uma pequena possibilidade de você e o seu amigoescaparemdessaatéquesemmuitosdanos.—Eu…—começouLasse.— Quieto! Isto não é nenhuma negociação, não é nem mesmo uma conversa. Eu estou apenas
estabelecendocondições,maisnada.Juridicamente,nãohánenhumapendência.FransfoiespertoepôsoapartamentononomedeAugust.Quantoaoresto,vaiserassim:vocêtemexatamentequatrominutosparaarrumar as suas coisas edaro foradaqui.SevocêouRogervoltarempara esta casaouentrarememcontato comAugust de algumamaneira, eu vou fazer vocês dois sofrerem tanto que vocês vão ficar
incapacitados de fazer qualquer coisa prazerosa pelo resto da vida.Nessemeio-tempo, eu preparareiumadenúnciacontravocêsparaapolícia,cheiadedetalhesdosabusosaosquaisvocêssubmeteramoAugust,e,comovocêsdevemsaber,eunãotenhoapenasosdesenhosparasustentaressaqueixa.Tambémhátestemunhosdepsicólogoseespecialistas.Alémdissopretendoentraremcontatocomosjornaisparainformá-losdomaterialquetenhocomigo,quesósubstancializaereforçaaimagemquevocêadquiriudepoisdoseuataqueaRenataKapusinski.Merefresqueamemória,Lasse,oquefoimesmoquevocêfezcomela?Vocêamordeunorostoelhedeupontapésnacabeça,nãofoiisso?—Entãovocêvaiprocurarosjornais.—Euvouprocurarosjornais.Euvouprejudicarvocêeoseuamigodetodasasformasimagináveis.
Mastalvez,vejabem,estoudizendotalvez,vocêspossamescapardapiordashumilhaçõessenuncamaischegarempertodeHannaedeAugust,enuncamaisvoltaremaagredirumamulher.Naverdade,estoupoucomelixandopravocês.SóquerogarantirqueoAuguste todosnósnuncamaisprecisemosolharparaasuacara.Portantovocêvaisairdaqui,epodeatéficarbemcasosecomportedireitoeváemborabemquietinho,comoumpequenomongeenvergonhado.Duvidoqueosabusosnãoserepitam,porqueareincidênciadecasosdemaus-tratosàsmulheresémuitogrande,comovocêsabe,evocêépornaturezaum depravado, uma criatura asquerosa. Mas quem sabe se, com um pouco de sorte, você talvez…Estamosentendidos?—Sim,euentendi—elerespondeu,odiando-seporfazerisso.MasLassenãoviuqueoutracoisapodiafazeranãoserconcordareagirdamaneiraqueelatinhadito,
então se levantou, foi até o quarto e colocou depressa suas coisas namala.Apanhou seu casaco, seucelularesaiudoapartamento.Nãosabiaparaondeir.Nunca se sentira tãopatéticonavida, equandochegouà ruaumamisturadesagradávelde chuva e
nevedesabousobreele.Lisbethouviu a porta do apartamento se fechar e o somdepassosdesaparecendonosdegraus.Ela
olhouparaAugust.Eleestavaparado,osbraçoscaídosaolongodocorpo,olhando-acomatenção,eelaficouperturbada.Agorahápouco,estavanocontroledasituação,masderepentesesentiuinsegurae…qualeraoproblema,afinal,comHannaBalder?Hanna parecia a ponto de explodir em lágrimas e August… para complicar as coisas ele tinha
começado a sacudir a cabeça e a murmurar algo incompreensível que desta vez não eram númerosprimos, e sim uma coisa completamente diferente. Lisbeth só queria fugir dali,mas não fez isso. Suamissãoaindanão tinha terminado.Entãoelamexeunobolsoda jaquetae tiroudaliduaspassagensdeavião,umareservadehoteleummaçogrossodedinheiro,comcoroassuecaseeuros.—Euapenasqueria,dofundodomeucoração…—começouHanna.—Fiquequieta—interrompeuLisbeth.—AquiestãoduaspassagensparaMunique.Ovoosaiàssete
equinzedestanoite,portantovocêstêmqueseapressar.EujáprovidencieiumtransportequelevaráosdoisdiretoparaoSchlossElmau.ÉumhotelbembacanapertodeGarmischPartenkirchen.Vocêsvãoficarnumquartogrande,noúltimoandar,sobonomedeMüller,eaprincípioficarãoláportrêsmeses.EufaleicomoprofessorCharlesEdelmanelhedissequesetratavadeumassuntoconfidencial.Eleirá
vê-loscomregularidadeevaiprovidenciar todaaajudanecessáriaparaAugust.Edelman tambémvaiencontrarumaescolaadequadaequalificadaparaAugust.—Issoporacasoéumapiada?—Quieta,eujádisse.Issoéumassuntomuitosério.ApolíciajáestácomosdesenhosdeAugusteo
assassinodoseuex-maridofoipreso.Masosmandantescontinuamsoltoseéimpossíveladivinharoqueeles estão tramando. Vocês precisam sair do apartamento imediatamente. Eu tenho outras coisas parafazer.Jáarrumeiummotoristaquevailevarvocêsatéoaeroporto.Elepareceumpoucoestranho,maséconfiável.Podemchamá-lodePraga.Entendeutudo?—Entendi,mas…— Esqueça os “mas” e me escute: não use o seu cartão de crédito nem o seu celular durante a
permanênciadevocêslá,Hanna.Jáarranjeiumtelefoneseguroparavocê,umBlackphone,paraocasodeumaemergência.Omeunúmerojáestánoaparelho.Todososcustoscomohotelsãoporminhaconta.Vocêsvãorecebercemmilcoroassuecasemdinheiroparagastosinesperados.Algumapergunta?—Issotudopareceloucura!—Nãoé.—Mascomovocêtemcondiçõesdefinanciartudoisso?—Eutenho.—Mascomovamos…Hannanãoconseguiucontinuar.Estavaconfusa,comosejánãosoubessenoqueacreditar.Derepente
começouachorar.—Comovamospoderteagradecerumdia?—elaconseguiudizerporfim.—Agradecer?Lisbeth repetiuapalavracomosenãoaconhecesse, equandoHanna foi emsuadireçãodebraços
estendidos,Lisbethrecuou,dizendocomosolhospregadosnochão:—Sósecomporte!Vocêvaiparardeusaramerdaqueestiverusando,drogas,pílulasouqualqueroutracoisa!Essaéaformadevocêmeagradecer.—Claro,comcerteza…—EsealguémcolocarnacabeçaqueAugustprecisaser internadonumaclínicaoucoisaassimeu
quero que você lute contra isso com todas as suas forças, mostre suas garras. Vá ao ponto fraco doinimigo.Vocêtemqueserumaguerreira.—Umaguerreira?—Exatamente.Nãodeixeninguém…Lisbethnãoacaboudefalar,poissedeucontadequeaquelastalveznãofossemasmelhorespalavras
paraumadespedida.Elasevirouefoicaminhandoparaaporta.Porémnãochegoumuitolonge.Augustcomeçouamurmurarnovamenteedessavezfoipossívelouviroqueogarotodizia.—Nãová,nãová…—eleresmungava.Lisbethnão sabiaoque fazer, entãodisse apenas, abruptamente:—Vocêvai ficarbem.—Depois
acrescentou,comosefalasseconsigomesma:—Obrigadaportergritadohojedemanhã.Ostrêsficaramtodosemsilêncioporuminstante,eLisbethpensousedeviadizermaisalgumacoisa.
Masnãoiasedeixarabalar,entãosevoltouesaiudoapartamento.Hannaaindagritouládedentro:—
Vocênemimaginaoqueissosignificaparamim!Mas Lisbeth não ouviu uma palavra, pois já descia a escada correndo, a caminho de seu carro,
estacionado na Torsgatan. Quando chegou à Västerbron, seu aplicativo Redphone tocou e MikaelBlomkvistlhecontouqueaNSAatinhalocalizado.—Poisdigaqueeutambémestouatrásdeles—elarespondeu,séria.Emseguida, foiatéacasadeRogerWintereoassustoubastante.Porúltimo,voltouparacasaese
dedicouatrabalharnoarquivocriptografadodaNSA,massemchegarnempertodeumasolução.
***Ed eMikael haviam trabalhado duro o dia todo no quarto do Grand Hotel. Ed tinha uma história
fantástica paraMikael, e finalmente ele ia poder dar aquele tão esperado furo de que ele, Erika e aMillennium tantoprecisavam, e isso eramuitobom.Mas aindanão estava contente, e não era sóporcausadodesaparecimentodeAndrei.AlgumacoisaemrelaçãoaEdnãofechava.PorqueeleteriavindoparaaSuéciaeporqueseempenhavatantoemajudarumapequenarevistaaquilômetrosequilômetrosdedistânciadoscentrosdepoderdosEstadosUnidos?Onegóciopodiaserentendidocomoumasimplestrocadefavores,poisMikaelprometeranãorevelar
oataquedohackerehaviameioqueprometidoaomenos tentar fazerLisbethconversarcomEd.Mascomoissonãochegavaaserumaexplicaçãodetodoconvincente,MikaelsededicavaalerasentrelinhasdoqueEddizia.O americano se comportava como se corresse riscos enormes.As cortinas estavam abaixadas e os
telefonesdeixadosaumadistânciasegura.Umaauradeparanoiapairavasobreoquarto.Sobreacamaviam-se documentos secretos que Mikael foi autorizado a ler, mas que não poderia mencionar nemcopiar,edevezemquandoEdinterrompiaseurelatoparadiscutirosváriosaspectosdaproteçãodeumafontejornalística.Elepareciaobcecadoemnãopermitirqueovazamentofosseassociadoaele,àsvezesia nervoso até a porta achandoque tinhaouvidopassosno corredor, outras vezes abria uma fresta nacortinaparaversenãohaviaalguémláforaosespionando,eaindaassim…Mikaelnãoconseguiadeixardesentirquetudoaquilonãopassavadeencenação.CadavezmaisfoiseconvencendodequeEdtinhaocomandodasituaçãoequesabiaexatamenteo
quefaziaequenaverdadenãoestavanemumpoucopreocupadoemserespionado.OcorreuaMikaelqueEdpodiaestardesempenhandoumpapelcomoapoiodeseussuperioresequetalvezelepróprio,Mikael,tivesseumpapelnesseteatrotodoqueeleaindanãotinhaentendido.PorissoointeressantenãoeraapenasoqueEddizia,mastambémoqueeleescolhianãodivulgareo
queelepodiaestar tentandoconseguir.Havia, semsombradedúvida,umagrandeporçãode raiva lá.“Alguns idiotas” do departamento demonitoração de tecnologias estratégicas haviam impedidoEddepegarohackerquetinhainvadidooseusistema,somenteporqueelesnãoqueriamserflagradoscomacalçanasmãos,eissoodeixavafurioso,eledissera,eMikaelnãotinhamotivosparanãoacreditarneleemenosaindaparaduvidarqueEddefatoqueriaaniquilaressaspessoas,“esmagá-lasdebaixodaminhabota”.Aomesmotempo,pareciahaveroutrosaspectosnahistóriaquenãoodeixavamconfortável.Àsvezes
Edpareciaestarlutandocontraumtipodeautocensura,edetemposemtemposMikaelodeixavasozinhoeiaatéarecepçãodohotelparapoderpensarouentãotelefonarparaErikaeLisbeth.Erikacostumavaatender aoprimeiro toquee, apesardeosdois estarementusiasmadoscomahistória, haviaumclimapesadoesombrioemsuasconversas,umavezqueAndreicontinuavadesaparecido.Lisbethnãoatendia.Somenteàscincoevintedatardeeleconseguiufalarcomela,quepareceumuito
concentradaedistante.Elacontourapidamentequeogarotojáestavaemsegurançacomamãe.—Evocê?Comovocêestá?—eleperguntou.—Bem.—Nãoestámachucada?—Maisoumenos.Mikaelrespiroufundo.—VocêinvadiuaintranetdaNSA,Lisbeth?—VocêandoufalandocomEdtheNed?—Semcomentários.ElenãopodiafalardoassuntonemmesmocomLisbeth.Aproteçãodafonteerasagradaparaele.—EntãoEdnãoétãoburro,nofinaldascontas—eladisse,comosearespostadeMikaeltivesse
sidoafirmativa.—Entãofoivocêmesmo?—Épossível.Mikael sentiu vontade de xingá-la e de perguntar o que ela tinha pretendido com aquilo. Mas se
recompôs e disse o mais calmamente possível: — Eles prometeram não te incomodar, se você sedispuseraseencontrarcomeleseexplicarexatamentecomoconseguiuinvadi-los.—Digaaelesqueeutambémestouatrásdeles.—Oquevocêquerdizercomisso?—Queeutenhomaisdoqueelesimaginam.—Estábem—disseMikael,pensativo.—Masvocêestádispostaaseencontrarcom…—Ed?Masquecoisa,pensouMikael.Comoelasabia?Edéquemqueriasurpreendê-la,aparecendoparaela.—Ed—eleafirmou.—Aquelecretinopretensioso.—Muitopretensioso.Masvocêseencontrarácomele,selhedermosgarantiadequenãoserápresa?—Essasgarantiasnãoexistem.—EseeufalassecomAnnika,aminhairmã,epedissequeelaterepresentasse?—Eutenhooutrascoisasparafazer—Lisbethdisse,comosenãoquisessemaisfalardaquilo.Elenãoseconteve:—Essahistóriaemqueagenteseenvolveu…—Oquetemela?—Nãoseiseestouentendendototalmente.—Qualéoproblema?—perguntouLisbeth.—Paracomeçar,nãoentendoporqueCamillaapareceuderepentedepoisdetodosessesanos.
—Eladeviaestaraguardandoomomentocerto.—Comoassim?—ElasempresoubequevoltariaparasevingardoqueeufizcontraelaecontraZala.Maspreferiu
esperar até se sentir forte. Nada émais importante para Camilla do que ser forte, e suponho que derepenteelaviuaoportunidade,achancedematardoiscoelhoscomumacajadadasó.Pelomenoséoqueeuimagino.Porquevocêmesmonãoperguntaaelanapróximavezemquepensaremtomarumdrinquecomela?—VocêfaloucomHolger?—Andomuitoocupada.—Maselanãoconseguiuoquequeria.Vocêescapou.—Eumevirobem.—Vocênãoestápreocupadaqueelaapareçaaqualquermomento?—Issomepassoupelacabeça.—Que bom. E você sabe que eu e Camilla não fizemos nada mais que dar uma caminhada pela
Hornsgatan?Lisbethnãorespondeu.—Euteconheço,Mikael.—Foitudoqueeladisse.—EagoravocêconheceuEd.Achoquepreciso
meprotegerdeletambém.Mikaelsorriu.—Sim—disse.—Vocêdeveestarcerta.Nãodevemosconfiarmuitonele.Nãoquerometornaro
idiotaútildele.—Nãopareceopapelidealparavocê,Mikael.—Não,eéporissoqueeuadorariasaberoquefoiquevocêdescobriunasuainvasão.—Ummontedemerdacomprometedora.—SobreasrelaçõesdeEckerwaldedosSpiderscomaNSA.—Issoemaisumpouco.—Evocêestariadispostaamecontar?—Sevocêtivessesecomportadobem,eucontaria—eladissecomumtomjocosoqueodeixoufeliz.Eentãoeleriubaixinho,porquenessemomentopercebeuoqueEdestavafazendo.Adescobertafoitãoimpactantequeeledemorouparaserefazerantesdevoltaraoquartodohotele
continuartrabalhandocomoamericanoatéasdezdanoite.
29.MANHÃDE25DENOVEMBRO
ElesnãoencontraramnadadesórdidonoapartamentodeVladimirOrlov,naMårtenTrotzigGränd.Olugarestavaarrumado,cheirandoalimpezaecomlençóislimposnacamafeita.Ocestoderoupassujasnobanheiroestavavazio.Mesmoassimhaviaalgoerrado.Osvizinhoscontaramquealgunshomensdeuma empresa de mudança já tinham estado lá, e depois de uma inspeção mais minuciosa a políciadescobriu manchas de sangue no chão e na parede da cabeceira da cama. O sangue foi colhido ecomparadocomumaprovadesalivaretiradadoapartamentodeAndrei,eoresultadobateu.Ospresos—osdoisqueestavamemcondiçõesdesecomunicar—afirmaramquenadasabiamsobre
as manchas de sangue e que não conheciam Zander, por isso Bublanski e sua equipe concentraramesforçosemobtermais informações sobreamulherquehavia sidovistacomZander.Aessaaltura, aimprensa já tinha publicado inúmeras matérias sobre os tiros em Ingarö e também sobre odesaparecimentodojovemjornalistadaMillennium,emboraosrepórteresaindanãotivessementendidoasconexõesentreasduashistórias.Osdoisjornaisnoturnos,juntamentecomoSvenskaMorgon-PosteneoMetro,publicaramfotosgrandesdeAndreiZander.Como já seespeculavaqueelepodia ter sidoassassinado,adivulgaçãodesuafotonormalmentedeveriaafiaramemóriadaspessoas,ouentãofazê-las lembrar-se de alguma coisa que tivesse parecido suspeita. Mas o que se deu, nesse caso, foiexatamenteocontrário.Todososrelatosfeitosportestemunhasconfiáveisforamestranhamentevagos,eosquevieramdepois,
com exceção dos depoimentos de Mikael Blomkvist e do padeiro do Skansen, fizeram questão deressaltarquenãoacreditavamqueaquelabelamulherpudesseserculpadadealgumcrime.Todosquecruzaram com ela tinham ficado comuma excelente impressão.Umbartender demeia-idade chamadoSörenKarlsten, que havia atendido amulher eAndrei Zander no restaurante Papagallo, emGötgatan,chegouasegabardeserumbomavaliadordecaráteredisseterabsolutacertezadequeaquelamulher“jamaisfariamalaalguém”.—Elaeraapersonificaçãodaelegância.Ajulgarpeloquedisseramas testemunhas,elaeraapersonificaçãode todasascoisas,eBublanski
logoentendeuqueseriaextremamentedifícilproduzirumretratofaladodela.Astestemunhasaretrataramdeformasdiferentes,comoseestivessemprojetandonelaaimagemdamulherideal,enãosimplesmenteadescrevendo.Umaatitudeabsurda, e atéomomentoapolícia tambémnãopossuíanenhuma imagemdelagravadaporcâmerasdesegurança.MikaelBlomkvistafirmounãoterdúvidadequeamulhereraCamilla Salander, a irmã gêmea de Lisbeth, e de fato se acabou descobrindo que havia existido uma
pessoacomessenome.Noentanto,mesmoconsultandoarquivosantigos,nãoseencontroumaisnenhumregistro,nenhumsinaldeCamillaSalander,comosederepenteelativessedeixadodeexistir.Seaindaestivesseviva,comcertezateriaassumidooutraidentidade.Bublanskinãogostounemumpoucodisso,principalmente por ter havido duasmortes inexplicadas na família que a acolhera, e as investigaçõespoliciais dosdois casos foramdeficientes, ficando repletas de lacunas, depontos de interrogação, debecossemsaídaparaosquaisjamaishouveresposta.Bublanski havia lido os relatórios policiais da época e se envergonhou de seus colegas. Eles, por
algumtipoderespeitopelatragédiafamiliardosDahlgren,nãotinhamdadoadevidaatençãoaofatodequeascontasbancáriasdopaiedafilhatinhamsidoencerradaspoucoantesdamortedecadaumdeles,e tampouco à carta que o pai tinha começado a escrever namesma semana emque se enforcara. Suaprimeiralinhaeraassim:“Camilla,porqueétãoimportanteparavocêdestruiraminhavida?”A pessoa que parecia ter lançado um feitiço sobre todas as testemunhas estava oculta por trevas
malignas.Eramoitodamanhã,eBublanskiestavaemsuasalanacentraldepolícia,examinandomaisumavez
investigações antigas que ele esperava que pudessem ajudar a esclarecer o que tinha acontecido. Elesabiamuitobemqueaindahaviacentenasdeinformaçõesqueelenãotiveratempodeanalisar,porissoaomesmotemposeirritoueseculpouquandosoubequealguémqueriavê-lo.EraumamulherquejátinhasidointerrogadaporSonjaModig,masqueagorainsistiaemfalarcom
ele,edepoiseleseperguntariasenãoteriasidoreceptivodemais,porqueaúnicacoisaqueelepodiaimaginareraqueiriamaparecernovosproblemasedificuldades.Amulherparadaàportanãoeraalta,mas tinha uma postura majestosa e olhos escuros e intensos que causaram em Bublanski uma levemelancolia. Ela devia ser uns dez anos mais nova que ele e vestia uma capa cinzenta e um vestidovermelhoquepareciaumpoucocomumsári.—MeunomeéFarahSharif—eladisse.—Souprofessoradeciênciadacomputaçãoeeragrande
amigadeFransBalder.— Isso, agora me lembro— disse Bublanski, um pouco envergonhado.— Sente-se, por favor, e
desculpeabagunça.Aquedevoahonra?—FuimuitoingênuaquandoconverseicomsuacolegaSonjaModig.—Porqueestádizendoisso?— Porque tenho outras informações agora. Tive uma longa conversa com o professor Steven
Warburton.—Eletambémmeprocurou,masaindanãoconseguifalarcomele.Estáumverdadeirocaosporaqui.— Steven leciona cibernética em Stanford e é um renomado pesquisador na área de singularidade
tecnológica. Ele trabalha noMIRI, uma instituição que tem como objetivo assegurar que a inteligênciaartificialnosajude,enãoocontrário.—Pareceumacoisamuitoboa—disseBublanski,quesesentiaincomodadosemprequeesseassunto
surgia.
—Stevenviveumpouquinhoemseuprópriomundo.SóontemficousabendooquetinhaacontecidocomFrans,porissoeleaindanãotinhametelefonado.MasmedissequeaúltimavezqueeleeFransconversaramfoiexatamentenasegunda-feira.—Sobreoqueelesfalaram?— Sobre a pesquisa de Frans. Sabe, desde que ele voltou dos Estados Unidos andava muito
misterioso.Nemmesmoeu,queeraumaamigamuitopróxima,sabiaoqueFransandavafazendo,mesmoquedoaltodaminhaarrogânciaeuachassequesabiadoquesetratava.Masagoravioquantoeuestavaenganada.—Enganadacomo?—Voutentarseromenostécnicapossível.Peloqueparece,Fransnãoestavaapenasdesenvolvendoo
seuantigoprogramadeinteligênciaartificial;eletambémtinhadesenvolvidonovosalgoritmoseumnovomaterialtopográficoparacomputadoresquânticos.—Desculpe,masvocêestásendomuitotécnicaparamim.—Computadores quânticos são computadores baseados namecânica quântica. Ainda é algomuito
novo.OGoogleeaNSAinvestirammuitodinheironumamáquinaque,emcertasáreas,jáétrintaecincomil vezes mais rápida que qualquer computador. A Solifon, onde Frans trabalhava, tem um projetosemelhante, embora, ironicamente, se é que a informação procede, eles ainda não tenham conseguidoalcançaromesmosucesso.—Sei—disseBublanski,umpoucoinseguro.—Amaiorvantagemdoscomputadoresquânticoséquesuasunidadesbásicas,osqubits,podemse
sobrepor.—Elaspodemoquê?—Elesnãoadotamapenasasposiçõesumouzerocomooscomputadorestradicionais,maspodemser
ozeroeoumaomesmotempo.Oproblemaéque,paraqueessasmáquinasfuncionemsatisfatoriamente,há a necessidade de métodos especiais de cálculos e percepções profundas de física, especialmenteaquiloquechamamosdedecoerênciaquântica,enissoporenquantonãofizemosmuitosprogressos.Oscomputadoresquânticosaindasãomuitoespecializadosepesadões.MasFrans,comopossoexplicaristodeumjeitomelhor?…pareciaterencontradométodosquepoderiamtorná-losmaisleves,maisflexíveiseautodidatas.Eleestavapertodealgogrande,oupelomenospotencialmentegrande.Masessaconquistanãoodeixouapenasorgulhoso;eleficoutambémmuitopreocupado.Efoiporisso,obviamente,queeletelefonouparaStevenWarburton.—Maspreocupadocomoquê?—Primeiro por suspeitar que a sua criação, a longo prazo, poderia se tornar uma ameaça para o
mundo, eu suponho.Depois, e esta seria uma preocupaçãomais imediata, porque ele sabia de coisassobreaNSA.—Quetipodecoisas?—Issoeujánãosei.Oqueeuseiéquetemavercomoladomaissujodaespionagemindustrialda
NSA.Mastenhoumbocadodeinformaçõessobreumoutrolado.NãoésegredoparaninguémqueaNSAtrabalha pesado no desenvolvimento específico de computadores quânticos. Para ela seria pura esimplesmenteoparaíso.Umamáquinaquânticapoderiacapacitá-laadecodificartodasascriptografias
e, a longoprazo, todosos sistemasde segurançadigital.Entãoninguémmais estaria a salvodoolharvigilantedaNSA.—Éassustador—disseBublanskicomtantaênfasequeeleprópriosesurpreendeu.—Masumcenárioaindamaisassustador—continuouFarahSharif—ésealgodessetipocairnas
mãosdecriminosos.—Estouvendoaondevocêquerchegar.—Poressarazãoéqueeugostariamuitodesaberoquevocêsconseguiramextrairdoshomensque
vocêsprenderam.— Infelizmente, nada sobre esse assunto. Esses sujeitos não são propriamente conhecidos por sua
inteligência.Duvidoatéqueconseguissempassarnasprovasdematemáticadoensinofundamental.—Então,overdadeirogêniodoscomputadoresescapou?— Temo que sim. Ele e a mulher sumiram sem deixar pistas. Provavelmente os dois têm outras
identidades.—Ébempreocupante.BublanskiconcordoucomacabeçaeolhouparaosolhosescurosdeFarah,eeleslhedevolveramuma
expressão tãosuplicanteque talvezpor issoelesesentiumaisesperançosoenãoafundoudenovonodesânimo.—Nãoestoubemcertodoqueistosignifica…—eledisse.—Oquê?—OnossopessoaldetecnologiadainformaçãoexaminouoscomputadoresdeBalder.Nãofoiuma
tarefafácil,comovocêpodeimaginar,considerandoaobsessãodeleporsegurança,mascomumpoucode sorte pode-sedizer que eles conseguiram.Eoque constatamos foi queumdos computadores deledevetersidoroubado.—Eujásuspeitava!— Calma, ainda não terminei. Pelo que entendemos, diversas máquinas ficavam regularmente
conectadasentresiedevezemquandoseconectavamaumsupercomputadoremTóquio.—Oqueémuitorazoável.—Exato,efoipor issoquenotamosqueumgrandearquivo,oupelomenosalgogrande, tinhasido
apagadorecentemente.Aindanãoconseguimosrecuperá-lo,masjáfoiconstatadoqueissoaconteceu.—VocêestásugerindoqueFransdestruiusuaprópriapesquisa?—Não quero tirar conclusões precipitadas,mas depois do que vocême contou vou levar isso em
consideração.—Vocênãoachaqueoassassinopoderiaterdeletadooarquivo?—Depoisdefazerumacópiaparaele?—É.—Achodifícil.O assassino ficoumuito pouco tempona casa, ele não teria como fazer uma coisa
dessatãorápido.—Certo,parecetranquilizador,apesardetudo—disseFarahSharifhesitante.—Éque…—Oquefoi?—EunãoachoquecombinacomapersonalidadedeFrans.Nãoachoqueeleseriacapazdedestruira
suarealizaçãomaisimportante.Seriacomo...nãosei...comoamputaroprópriobraçoou,pior,matarumamigo,umavidaempotencial.—Àsvezesénecessáriofazerumgrandesacrifício—disseBublanski,pensativo.—Destruiraquilo
queamamosedepoisvivercomisso.—Ouquemsabehajaumacópiaescondidaemalgumlugar.—Sabeoqueomeurabinodiz?—Não—elarespondeu.—Eledizqueamarcadeumhomemsãoassuascontradições.Queremosaomesmotempoficarem
casaeviajar.NãoconheciFransBalder,etalvezelemeachasseumvelhobobão.Masdeumacoisaeusei: nós podemos amar e temer o nosso trabalho com a mesma intensidade, exatamente como Franspareceteramadoasuacriaçãoedepoistidoquefugirdela.Viver,professoraSharif,nãosignificaserotempotodocoerente.Significaseaventurarnumasériededireçõesaomesmotempo,emeperguntoseoseuamigonãoestariaàsvoltascomumaespéciederebelião.Talvezelerealmentetenhadestruídotodoumtrabalhodeumavida.Talveztenhasedadocontadesuascontradiçõesinteriorese,nofinal,tenhasetornadoumserhumanonomelhorsentidodapalavra.—Vocêacha?—Eunãosei.Maseleestavamudado,nãoestava?Eletinhasidoconsideradoincapazdecuidardo
filho.Noentanto,foijustamenteissoqueelefez,eatémesmoconseguiuqueomeninocomeçasseasedesenvolvereadesenhar.—Éverdade,inspetor.—PodemechamardeJan.—Estábem.—OpessoalaquiàsvezesmechamadeBubolha.—Queapelidomaischarmoso…Tãocharmosoquantovocê.—Ah,não,achoquenão.Masumacoisaeuseicomcerteza.—Oquê?—Quevocêé...Ele não foi adiante nem precisou. Farah Sharif deu-lhe um sorriso tão espontâneo e sincero que
imediatamenteBublanskirecuperouafénavidaeemDeus.Àsoitodamanhã,LisbethSalanderse levantoudesuacamanaFiskargatan.Elanãohaviadormido
bemdenovo,enãosóportertrabalhadotantocomoarquivocriptografadodaNSAsemchegaralugaralgum.Ela tambémficaradeouvidoatentoasonsdepassosnaescadaea todo instante iaverificarosistemadealarmeeascâmerasdesegurançadaentrada.Assimcomotodomundo,elanãofaziaideiasesuairmãtinhaounãodeixadoopaís.DepoisdahumilhaçãoquesofreraemIngarö,erabempossívelqueCamillaestivessepreparandoum
outroataqueaindamaisviolento,ouqueaNSA invadisseo seuapartamento.Lisbethnão tinha ilusõessobre nenhum desses inimigos.Mas nessa manhã ela deixou tudo isso de lado, foi ao banheiro compassosdecididosetirouosutiãparavercomoestavaseuferimento.
Achou que parecia bemmelhor. E, embora ainda não fosse omomento ideal, decidiu ir treinar umpouconoclubedeboxedaHornsgatan.Dorsecombatecomdor.Horasdepois,elaestavalargadanovestiário,etãoexaustaquenãotinhaforçasnempararaciocinar.
Seucelularvibrava,maselaoignorou.Foiparaochuveiro,deixouaáguaquenteescorrersobreocorpo,e quando, aos poucos, seus pensamentos começaram a clarear, os desenhos deAugust voltaram à suamente.Masdessavezelanãoseconcentrounaimagemdoassassino,masemalgonaparteinferiordopapel.Na casa de campo de Ingarö, Lisbeth só tinha visto o desenho terminado por um instante, quando
estavamais concentrada em enviar uma foto dele para Bublanski eModig. Se tivesse tido tempo deanalisá-lo,como todomundo fezdepois, teria ficado fascinadacomosdetalhesdesuaexecução.Masagoraquesuamemóriafotográficaotraziadevoltaàmente,estavamaisinteressadanaequaçãoescritanopédapágina.Elasaiudochuveiroimersaempensamentos.Oproblemaéqueelamalconseguiaouvi-los,poisObinzeestavafazendoumbarulhodosdiabosdoladodeforadovestiário.—Caleaboca!—Lisbethgritouládedentro.—Estoutentandopensar!Mas isso não resolveu o problema.Obinze estava alucinado, e qualquer pessoa que não Lisbeth o
entenderiaperfeitamente.Obinze tinhaseadmiradocomoelapareciacansadaesemforçabatendonossacosdetreinamento,esepreocupouaoverqueelabaixavaacabeçacomexpressãodedornorosto.Por fim, intrigado, ele a surpreendeu e levantou a manga da camiseta de Lisbeth, descobrindo seuferimento de bala e ficando completamentemaluco por causa disso. E pelo jeito sua raiva não tinhapassado.—Vocêéumaidiota,sabia?Umalunática!—elegritava.Elaestavacansadademaispararesponder.Nãotinhamaisforçaseoqueelatinhavistonodesenho
estavadesaparecendoaospoucosdesuamente.Exausta,Lisbethsedeitounobancodovestiário.JamilaAchebeestavasentadaaoseulado.Eraumagarotabacanacomquemelacostumavalutarboxeetransar,normalmentenessaordem,porqueoscombatesmaisdurosentreasduaseramsempreconsideradosumaespécie de longa e selvagempreliminar.Umas poucas vezes, o comportamento delas no banheiro nãotinhasidodetodorecatado.Nenhumadasduasdavaamínimapararegrasdeetiqueta.—EusouobrigadaadarrazãoparaoObinze.Vocênãoestámuitobemdacabeça—disseJamila.—Podeser—respondeuLisbeth.—Esseferimentoestábemfeio.—Estácicatrizando.—Emesmoassimvocêprecisavatervindotreinar.—Pelojeito,sim.—Vamoslápracasa?Lisbeth não respondeu. Seu telefone vibrou de novo e ela decidiu dar uma olhada. Havia três
mensagensdetextocomomesmoconteúdo,enviadasporumnúmeronãoidentificado,equandoelaleuasmensagenscerrouospunhos,comexpressãodeódio,eJamilapercebeuqueeramelhordeixarpara
outrodiaatransacomLisbeth.Mikaeltinhaacordadoàsseisdamanhãcomalgumasideiasbrilhantesparaareportagem,eacaminho
da redação um rascunhodela foi tomando forma em sua cabeça semgrandes esforços.Ele trabalhavamuitoconcentradonarevista,malnotandooqueaconteciaaoredor,mesmoqueselembrassedeAndreialgumasvezes.Apesardeaindateresperançadentrodasuafaltadeesperança,temiaqueAndreitivessepagadosua
reportagemcomavida,por issoemcada linhaqueescreviaprocuravahonrarocolega.Porum lado,MikaelpretendiacontarahistóriadeFransBalderedeseufilhoAugust,ummeninoautistadeoitoanosquetinhapresenciadooassassinatodeseupaieque,apesardesuaslimitações,encontraraumamaneirade se vingar. Por outro lado,Mikael tambémqueria que a reportagem fosse instrutiva, que falasse donovomundodavigilânciaedaespionagem,emqueasmarcasquedelimitavamafronteiraentreolegaleo ilegal haviam sido apagadas, o que para ele seria umamatéria fácil de escrever. Normalmente aspalavrasbrotavam.Masdessavezestavatendodificuldadeparaescrever.AtravésdeumcontatoantigoqueMikael tinhanapolícia,eleteveacessoaumafichadohomicídio
nãosolucionadodeKajsaFalk,emBromma,ajovemnamoradadeumdoslíderesdoMCSvavelsjö.Oassassino nunca tinha sido encontrado e, embora nenhuma testemunha se mostrara particularmentetagarela,Mikael concluiu que o clube passara por uma ruptura violenta e que uma nova incerteza seinstalara entre os membros da gangue, um medo crescente de alguém conhecido como “Lady Zala”,conformeumatestemunharevelara.Apesardetodososesforços,apolícianãoconseguiradescobrirquemeraLadyZala.ParaMikael,não
haviaamenordúvidadequesetratavadeCamillaequeelaestariaportrásdeumasériedecrimesnãosónaSuécia.Masnãoerafácilencontrarprovas,oqueodeixavamuitoaborrecido.Porenquantoiriachamá-lapeloseupseudônimo“Thanos”emseuartigo.Omaiordesafio,porém,nãoeraCamillaouseuenvolvimentocomaassembleiarussa.Oquemaiso
preocupava era que ele sabiamuito bem que EdNeedham jamais teria se dado ao trabalho de vir àSuécia lhepassarumainformaçãoaltamentesigilosaseoobjetivonãofosseesconderalgoaindamaisgrave.EdnãoeranenhumidiotaeelesabiaqueMikaeltambémnãoera.Porissonãosederaaotrabalhodemaquiarnenhumapartedeseurelato.Pelo contrário, Ed pintara um quadro bem tenebroso daNSA. No entanto, quando se analisava seu
depoimentomaisdeperto,via-sequeEddescreveraumaagênciadeespionagemquefuncionavamuitobemequeatuavadentrodeprincípios razoáveisdedecência, isso,claro, semconsideraro revoltantebandodecriminososdodepartamentoconhecidocomomonitoraçãode tecnologiasestratégicas—porcoincidênciaomesmoqueimpediraEddecolocarasmãosnohacker.Oamericanopodiaestarquerendoprejudicarseriamentedeterminadoscolegas,mas,antesdederrubar
umaorganizaçãointeira,preferiupropiciaraelaumpousomaisseguroemmeioàinevitávelqueda.Porisso Mikael não ficou especialmente surpreso ou contrariado quando leu o telegrama da agência denotíciasTTqueErika,vindoportrásdele,lheentregoucomarpreocupado.—Seráquenosfuraram?—elaperguntou.
Otelegramadizia:DoisexecutivosdoaltoescalãodaNSA,JoacimBarclayeBrianAbbot,forampresossobsuspeitadeterem cometido crimes financeiros graves. Os dois foram sumariamente demitidos pela agência eaguardamjulgamento.“Éumamanchaparaanossaorganizaçãoenãomediremosesforçosparasolucionaresseproblema
efazercomqueosculpadossejamresponsabilizados.TodosquetrabalhamparaaNSAdevempossuirelevado padrão moral. Durante o processo judicial prometemos toda a transparência, desde quesalvaguardadososinteressesdesegurançanacional”,afirmouoalmiranteepresidentedaNSA,CharlesO’Connor.Com exceção da declaração do almirante, o telegrama não trazia muita coisa e tampouco fazia
referência ao assassinato de Balder nem a algo que pudesse ser associado aos acontecimentos deEstocolmo. Mas claro queMikael entendeu a preocupação de Erika. Agora que a notícia tinha sidodivulgada,nãotardariaparaqueoWashingtonPost,oNewYorkTimesetodaaimprensaamericanasejogassemsobreahistória,eentãoseriaimpossívelpreveroquemaiselesconseguiriamdesencavar.—Nãoénadabommesmo—eledissecalmamente.—Masjáeraesperado.—Eramesmo?—Fazpartedamesmaestratégiaqueoslevouameprocurar.Reduçãodedanos.Queremretomara
iniciativa.—Comoassim?—Haviaalgumarazãoparaelesteremmepassadoofuro.Claroquepercebiquehaviaalgumacoisa
estranha.PorqueEdveiofalarcomigoaquiemEstocolmo,eaindamaisàscincodamanhã?Comopraxe,ErikatinhaconhecimentodetodasasinformaçõesqueMikaelrecebiadesuasfontese,
damesmaformaqueele,asmantinhasobasmaisrigorosascondiçõesdesigilo.—Entãovocêachaqueeleveioconversarcomvocêautorizadopelossuperioresdele?—Foioquesuspeiteidesdeoinício,mesmosementenderoqueelepretendia.Apenassentiquehavia
algoerrado.MasaíconverseicomLisbeth.—Eissofezvocêentender?—PercebiqueEdsabiamuitobemoqueelahaviaencontradoquandohackeouaNSAequeeletemia
queeuacabassetendoacessoatodososdetalhes.Elequisdiminuirosdanosomáximopossível.—Mesmoassim,elenãopintouumquadrocor-de-rosaparavocê.—Ele sabia que eununca iriame contentar comalgoqueparecesse tãoperfeito.Suspeito que ele
tenhamefornecidoosuficienteparamedeixarfelizeparaqueeupudesseteromeufurodereportagemsemquererinvestigarmaisnada.—Entãoelevaificardesapontado.—Esperoquesim.Sónãoseicomovouaprofundarisso.ANSAéumaportafechadaasetechaves.—Atéparaumvelhocãodecaçacomovocê?—Atéparamim.
30.25DENOVEMBRO
AmensagemdetextonotelefonediziaFicaparaapróxima,irmã,paraapróxima!Amensagemforaenviada três vezes, e Lisbeth não entendeu se era um erro técnico ou uma absurda tentativa de sersuperexplícita.Dequalquerformanãofaziadiferença.Amensagem, claro, era de Camilla e não acrescentava nada ao que Lisbeth já sabia. Era de uma
obviedadeofuscantequeos acontecimentosde Ingaröhaviam fortalecido e aprofundadooódio antigoquesuairmãlhedevotava.Claroquehaveriauma“próximavez”.NãohaviaamenorchancedeCamilladesistirdepoisdeterchegadotãoperto.PortantonãoforaoconteúdodamensagemquetinhafeitoLisbethcerrarospunhosdeódio.Foramas
recordaçõesqueamensagemlhetrouxera,alembrançadosacontecimentosdodiaanterior,quandoelaeAugust ficaram agachados na fenda daquela rocha enquanto a neve caía e os tiros dasmetralhadorasexplodiam acima da cabeça deles. August, sem casaco e descalço, tremia violentamente enquanto ossegundospassavameLisbethconstatavacomoasituaçãodeleseradesesperadora.Elatinhaumacriançaparacuidareumapistolapatéticacomoarma,enquantoummontedeimbecislá
emcimaestavamarmadoscommetralhadoras,portantosólherestavapegá-losdesurpresa.Senão,elaeAugustiamserabatidoscomoovelhas.Elatinhaouvidoospassosdoshomensseaproximando,ostiros—calculandoentãodeondeelesvinham—edepoisatéarespiraçãodeleseofarfalhardesuasroupas.Masoestranhofoiquequandoelafinalmenteteveumachance,aindaassimhesitou,deixandopassar
momentoscruciaisenquantoquebravaemváriospedaçosumramoqueachounafendadarocha.Somenteentão Lisbeth deu um salto e surgiu de repente diante dos homens, e então hesitar não eramais umaopção. Ela precisava aproveitar aquele breve milissegundo de surpresa, então disparou duas ou trêsvezes,sabendo,porexperiênciasanteriores,quemomentoscomoaquelemarcavamsuamenteaferroefogo,comosetambémsuapercepçãoseaguçasse,enãoapenascorpoemúsculos.Cadadetalheadquiriaumanitidezpeculiareelaobservavatodasasmudançasnapaisagemcomoseo
fizesseatravésdozoomda lentedeumacâmera.Viuasurpresaeomedonosolhosdoshomens,suasrugas,seusrostos,suasroupas,além,claro,dasarmasqueelesdisparavamaesmo.Mas sua impressãomais forte não viera de nada disso, e simde uma silhuetamais acima, que ela
divisaracomocantodoolhoequenãoeraameaçadoraemsi,masquecausounelaumimpactomuitomaior que os homens nos quais ela havia atirado. Era a silhueta de sua irmã. Lisbeth a reconheceriamesmo a quilômetros de distância, apesar de não vê-la haviamuitos anos. Foi como se o próprio artivesse se envenenado com a presença dela, e mais tarde Lisbeth ficou pensando se não deveria ter
atiradonelatambém.Suairmãpermaneceubastantetempolá,esemdúvidaforaumdescuidodelaseexpordaquelejeito.
ProvavelmenteCamilla não tinha resistido à tentação de presenciar a execução da irmã, e Lisbeth selembrou de ter chegado a pressionar o gatilho e da onda de ódio crescendo no peito.No entanto, aohesitar por meio segundo, deu tempo de Camilla se jogar atrás de uma pedra, e então um homemesquelético apareceu na varanda, atirando, o que fezLisbeth pular de volta para a fenda e rolar comAugustnadireçãodocarro.Agora,voltandoapédoclubedeboxeeselembrandodetudoqueocorrera,eracomoseseucorpo
permanecesseemprontidão,contraído,naexpectativadeumanovabatalha,eelapensouseemvezdevoltarparacasanãodeveriaficarforadopaísporalgumtempo.Mastambémhaviaalgofazendo-avoltaràsuamesaeaocomputador;eraoqueelatinhavisualizadoemsuamentenochuveirodoclubedeboxe,antesde leramensagemdeCamilla,equeagoraocupavamaisemaisseuspensamentos,concorrendocomaslembrançasdeIngarö.Era uma equação, uma curva elíptica que August tinha escrito na mesma folha de papel em que
desenhara o assassino. Se na primeira vez emqueLisbeth vira a equação já havia uma aura especialsobreela,mentalizá-lanovamentefezLisbethaceleraropassoedeixarCamillamaisoumenosdelado.Aequaçãoeraaseguinte:N=3034267E:y2=x32x220;P=(3,2)Do ponto de vistamatemático, não havia nada de único ou excepcional ali.Na verdade, o aspecto
matemático não era o que chamava a atenção. O fantástico na equação foi August ter partido de umnúmero aleatório que ela lhe dera em Ingarö e daí em diante desenvolver uma curva elípticaconsideravelmentemelhor do que a queLisbeth havia anotado namesa de cabeceira na noite emqueAugustnãoquisdormir.Nahora,pornãoterobtidodelenenhumarespostanemamenorreação,elafoisedeitarconvencidadequeAugust,assimcomoosgêmeosdosnúmerosprimossobreosquaiselatinhalido,nãoentendianadadeabstraçõesmatemáticasetambémeracomoumacalculadoradefatoraçãodenúmerosprimos.Mas,meuDeus... como ela tinha se enganado!Depois que ela foi se deitar,August ficou acordado
desenhando e demonstrou não somente ter entendido o que ela queria como ainda lhe deu uma lição,aperfeiçoandoaprópriamatemáticadeLisbeth.Quandoentrouemseuapartamento,não tirouasbotasnemajaquetaefoidiretoparaocomputadorabriroarquivocriptografadodaNSAeoseuprogramadecurvaselípticas.DepoistelefonouparaHannaBalder.Hanna mal havia fechado os olhos naquela noite, pois não tinha trazido seus comprimidos. Ainda
assim,ohoteleseusarredoresaanimaram.Aquelapaisagemmontanhosadetirarofôlegoafezpensar
em como tinha vivido como uma reclusa nos últimos anos e agora sentia que lentamente estava selibertandoequeatéaquelemedoarraigadoemseucorpocomeçavaarecuar.Mastudopodiaserapenasum desejo, e era forçoso admitir que ela também se sentia um pouco perdida naquele ambiente tãorefinado.Houveumtempoemqueeladesfilavaemlugarescomoaquelecheiadeautoconfiança:“Olhempara
mim,aquiestoueu”.Agoraestavatímidaetrêmula,comdificuldadeparacomer,apesardofartocafédamanhãdohotel.Augustestavasentadoaseuladoescrevendocompulsivamenteumasériedenúmeros,eele tambémnão se alimentava,mas em compensação consumia quantidades inacreditáveis de suco delaranja.Seu novo telefone começou a tocar, e a princípio ela se assustou.Mas é claro que só podia ser a
mulherqueos tinhamandadoparaohotel.Ninguémmais tinhaaquelenúmero,eprovavelmenteelasóqueria saber se eles estavam em segurança. Assim, Hanna iniciou a conversa com uma entusiasmadadescriçãodo lugar, dizendocomo tudoali era fantástico emaravilhoso.Para sua surpresa, porém, foibruscamenteinterrompida:—Ondevocêsestão?—Estamostomandoocafédamanhã.—Entãosaiamdaíjáevoltemparaoquarto.EueAugustprecisamostrabalhar.—Trabalhar?—Vouenviaralgumasequaçõesparaeledarumaolhada.Entendeu?—Não,nãoentendi.—ApenasmostreasequaçõesparaAugust,depoismetelefoneeconteoqueeleescreveu.—Estábem—respondeuHanna,confusa.Emseguida,pegoualgunscroissants,umbolinhodecanelaesedirigiuaoselevadores,acompanhada
pelofilho.AajudadeAugust,defato,eraapenasumpontapéinicial.Masjáerasuficiente.Daíemdiante,ela
conseguiaenxergarospróprioserroscommaisclarezaeaperfeiçoarseuprograma,eelatrabalhouporhorasehoras,atéocéuescurecereanevevoltaracair.Derepente,eela jamaisseesqueceriadestemomentoemsuavida,algodemuitoestranhoaconteceucomoarquivoàsuafrente.Elecomeçouasedissolvereamudardeforma,eLisbethsentiuoequivalenteaumchoquepercorrerseucorpointeiro,eentãoelasocouoar.Tinhadescobertoaschavessecretaseconseguidodecodificarodocumento,eporuminstantesesentiu
tãovitoriosaquemalconseguialer.Depoiscomeçouaanalisaroconteúdoefoificandocadavezmaisadmirada.Seriapossível?Eramaisbombásticodoque tudoqueelahavia imaginado,eaúnica razãopela qual todas as informações estavam ali, escritas e protocoladas, só podia ser um excesso deconfiançanoalgoritmoRSA.Masaliestavam,pretonobranco,todaasujeiraesacanagem.Nãoeraumtexto fácil de interpretar, ele estava repleto de palavras técnicas, de abreviaturas estranhas e dereferênciasenigmáticas.MasparaLisbethtudoaquilonãoeraproblema,poisestavafamiliarizadacomoassunto,entendiamuitobemaquelalinguagem.Játinhalidoquatroquintosdotextoquandoacampainha
tocou.Elaresolveuignorá-la.Provavelmenteeraocarteirocomdificuldadedecolocaralgumlivronacaixadecorrespondência,ou
algumaoutracoisasemimportância.MasentãoelaselembroudamensagemdetextodeCamillaeolhouparaateladocomputador,paraveroqueacâmeradosaguãodoprédiomostrava.Eficouparalisada.NãoeraCamilla,masaquelaoutrasombradela,eLisbethpraticamente tinhaseesquecidodelepor
causadetudooqueestavaacontecendo.OmalditoEdtheNeddealgumjeitoaencontrara.Emboraelefossebemdiferentedasfotosqueelatinhavistonainternet,mesmoassimelaoreconheceu.Elepareciamuito aborrecidoedeterminado, eo cérebrodeLisbeth começoua trabalhar.Oquedeveria fazer?OmelhorquelheocorreufoienviaroarquivodaNSAparaMikaelpelolinkPGP.Emseguidadesligouocomputadorefoidepressaabriraporta.OqueteriaacontecidocomJanBublanski?SonjaModignãoencontravaumaexplicação.Aexpressão
transtornadaqueelevinhatrazendonorostonasúltimassemanasdesapareceraporcompleto.Eleagoraestava sorridente, cantarolando, e a verdade é que havia razões de sobra para isso. O assassino deBalder fora capturado, o menino August sobrevivera a duas tentativas de homicídio e agora eles jáconheciamgrandepartedosmotivosedasramificaçõesdaempresadepesquisasSolifon.Porémtambémhaviaaindamuitasperguntassemresposta,e,peloqueelaconheciadeBublanski,ele
nãoeradesealegrarsemquehouvesseboasrazões.Pelocontrário.Tendiaaserpessimistamesmoemmomentos de triunfo, por isso ela estava bastante surpresa e intrigada com a atitude dele. Agora oinspetoreravistopeloscorredoresirradiandoalegria,sorrindo.Eatémesmoemsuasala,enquantoliaopoucoesclarecedorinterrogatóriodeZigmundEckerwaldfeitopelapolíciadeSanFrancisco,eletraziaumgrandesorrisonoslábios.—Sonja,minhaquerida,aíestávocê!EladecidiunãocomentarnadasobreocontentamentoincomumdeBublanskiefoidiretoaoponto.—JanHoltsermorreu.—Ah,não.—LásefoinossaúltimaesperançadedesvendaromundodosSpiders—concluiuSonja.—Vocêachaqueelenoscontariaalgumacoisa?—Pareciabempossível.—Porquevocêdizisso?—Eleentrouemdesesperoquandoafilhaapareceu.—Eunãosabia.Oqueaconteceu?—AfilhadelesechamaOlga—disseSonja.—ElaveiodeHelsinqueassimquesoubequeopai
estavaferido.Mas,depoisqueconversamoseelasoubequeHoltserhavia tentadomatarumacriança,ficoufuriosa.—Como?—Elaentroucomoumfuracãonoquartodelee lhedissealgumacoisaextremamenteagressivaem
russo.—Vocêentendeuoqueeladisse?
—Algumacoisacomoqueopaimorreriasozinhoequeelaoodiava.—Palavrasfortes,hein?—Semdúvida,edepoismedissequefariatodoopossívelparanosajudarnainvestigação.—EoHoltser,comoelereagiu?—Eraoqueeuestavadizendo.Poruminstante,chegueiapensarqueelefosseseabrirconosco,ele
estavaarrasado,comlágrimasnosolhos.Eunãoacreditonacrençacatólicaquedizqueovalormoraldeumapessoaagenteconhecepertodesuamorte,masoqueaconteceu foicomovente.Ele,quecausaratantomal,estavadestruído.—Omeurabino...—começouBublanski.—Ah,não,Jan.Nãomevenhacomoseurabino,porfavor!Deixeeucontinuar.Holtsercomeçoua
falar comoele tinha sidoumapessoa ruime eu lhedisse que, comocristão, ele deveria aproveitar omomentoparaconfessarenosdizerparaquemele trabalhava,enessemomento, juro,chegamosmuitoperto.Elehesitoueseuolharficoudistante,sóqueemvezdeconfessarelecomeçouafalardeStálin.—DeStálin?—Sim,dissequeStálinnãosecontentavaemiratrásdosculpadosequetambémcaçavaosfilhose
osnetosdeles,afamíliatoda.Achoquequeriadizerqueseuchefeeradomesmotipo.—Elesepreocupoucomafilha.—Pormaisqueelaoodiasse,eleestavapreocupadocomela.Tenteiconvencê-lodequedaríamosa
elatodasasgarantias,queaporíamosnonossoprogramadeproteçãoatestemunhas,masnãoadiantou.Holtsercomeçouaficarapático,depoisperdeuaconsciênciaeumahoradepoismorreu.—Nãotemosmaisnadaentão?— Tudo que temos é um suspeito desaparecido e, ao que parece, dotado de uma inteligência
extraordináriaetambémnenhumsinaldojornalistaAndreiZander.—Eusei,eusei.—Aquelesquepoderiamnosdaralgumainformaçãoinsistememmanterabocabemfechada.—Jápercebi.Nadatemcaídodocéu.—Não, quer dizer, sim, na verdade recebemos uma informação. Sabe o homemqueAmanda Flod
reconheceunodesenhodeAugustBalder,aqueledosemáforo?—Oex-ator?—Isso.RogerWinter.Amandafoiinterrogá-loapenasparaobterinformaçõessobreorelacionamento
delecomomeninooucomBalder.Elanãoesperavaconseguirmuitacoisa,masRogerWinterpareciaapavoradoeantesmesmodeAmandacomeçarapôralgumapressãonele,osujeitoconfessouospecadosdavidainteira.—Émesmo?—Sim,enãoestamosfalandoexatamentedehistóriasinocentes.LasseWestmaneRogerWintersão
amigosdelongadata,desdeaépocadajuventudedelesnoRevolutionsteatern.OsdoiscostumavamseencontraràtardenoapartamentodaTorsgatan,quandoHannaestavafora,bebiameconversavam.Augustficava no cômodo ao lado,montando seus quebra-cabeças e nemLasse nemRoger davam atenção aogaroto. Numa dessas vezes, o menino tinha ganhado um livro de matemática de sua mãe, de nívelavançadoparaele.MesmoassimAugustfolheavaolivrodepressa,agitado,fazendomuitobarulhocom
aspáginas.Lasseseirritou,arrancouolivrodasmãosdogarotoejogounolixo.AugustquasesurtoueLassedeuunstrêsouquatrochutesnele.—Queabsurdo.—Ésóocomeço.Depoisdesseepisódio,August ficouestranho,Rogerdisse.Ogarotocomeçoua
olhar para os dois com seu olhar esquisito, e um dia Roger encontrou sua jaqueta jeans cortada empedacinhos. Outra vez, alguém tinha esvaziado todas as latas de cerveja que havia na geladeira equebradoasgarrafasdebebidaalcoólica.Nãoseise...Sonjafezumapausa.—Oquehouve?—Issoinstalouumclimadeguerraentreosdoiseomenino,edesconfioqueLasseeRoger,emseus
delírios de bêbado, começarama imaginar todo tipo de coisa estranha sobreAugust e passarama termedodele.Aexplicaçãopsicológicadissonãoéfácildeentender.Talvezosdois tenhamcomeçadoaodiarogarotodeverdadeeàsvezesomaltratassemjuntos.Rogercontouquesesentiamuitomaldepoisde tudo e que ele e Lasse nunca conversavam sobre isso. Ele não queria bater no menino, mas nãoconseguiasecontrolar.Eracomosevoltasseàinfância,eledisseàAmanda.—Oqueelequisdizercomisso?—Émeiocomplicado.ParecequeRogerWinter temum irmãomaisnovodeficientequedurantea
infância sempre foi tido como o filhomais inteligente e o favorito dos pais. EnquantoRoger só lhescausavadecepção,oirmãomenoreramuitoquerido,elogiado,exaltadodetodasasmaneiras,eimaginoqueissotenhacausadomuitaamarguraeinvejaemRoger.Talvez,inconscientemente,batendoemAugustelesentiaqueestavasevingandodeseuirmão.Nãosei,ouentão...—Oquê?—Roger definiu de ummodo estranho.Disse que era como se ele estivesse tentando se livrar da
vergonha.—Quedoentio!—Poisé.Eomaisestranhofoieleterconfessadotudoissoderepente.Amandadissequeeleparecia
aterrorizado.Elemancavaeseusolhosestavamroxos.Elateveaimpressãodequeelepareciaquererserpreso.—Queestranho.—Muitomesmo.Masháoutracoisaqueestouachandoaindamaisestranha—disseSonjaModig.—Oquê?—Parecequeaquelemeuvelhoeangustiadocheferesmungãoderepentevirouumpequenoraiode
sol.Bublanskipareceuenvergonhado.—Entãovocênotou.—Estánacara.—Sim,éque…—elegaguejou.—Nãoénadademais.Équeumamulheraceitouomeuconvitepara
jantar,éapenasisso.—Nãomedigaquevocêestáapaixonado…—Ésóumjantar—Bublanskirespondeu,corando.
Ed conhecia bem as regras do jogo.Era como estar novamente emDorchester. Seja lá o que você
tivesse feito, nãopodianunca se render.SeLisbethSalanderquisesse jogarduro, ele ficaria feliz emjogar duro com ela. Por isso encarou-a como se fosse umpeso pesado no centro do ringue.Mas nãofuncionou.Ela lhe devolveu um olhar frio e não disse uma palavra. Parecia um duelo, um duelo silencioso e
determinado, e no fim Ed se cansou, achando tudo aquilomuito ridículo. A garota, afinal, tinha sidodesmascarada.Elehaviaquebradosuaidentidadesecretaeaencontrara,eeladeviaficaragradecidadeelenãoterinvadidoseuapartamentoparaprendê-la.—Vocêseachamuitodurona,não?—Nãogostoquevenhamàminhacasasemavisar.—Eeunãogostodegentequeinvadeomeusistema,entãoestamosempatados—eledisse.—Você
nãoquersabercomoeuconseguiteachar?—Estoupoucomelixandopraisso.—FoiatravésdasuaempresaemGibraltar.Nãofoimuitoespertochamá-ladeWaspEnterprises.—Estánacaraquenão.—Paraumagarotatãointeligente,vocêcometeuumnúmerosurpreendentedeerros.—Paraumgarototãointeligente,vocêescolheuumtrabalhobemasqueroso.—Talvezumpoucoasqueroso.Massomosnecessários.Omundoláforaémuitoperverso.—EspecialmentetendocarascomoJonnyIngram.Ele não esperava por isso, realmente não. Mas não deixou que seu rosto revelasse surpresa. Ele
tambémerabomnisso.—Seusensodehumoréótimo—eledisse.—Seuidiota!Deveserbemdivertidoplanejarassassinatos,serparceirodeassassinosdaAssembleia
russa,ganharumbelodinheiroeaindasalvaraprópriapele,hein?Realmenteécômico—eladisse,eelenãoconseguiumaismanteraencenaçãoeporalgumtemponemraciocinardireito.Deondeelatinhatiradotudoaquilo?Edestavaapontodeexplodir.Masentãosedeuconta—esua
frequênciacardíacadesacelerouumpouco—dequeelasópodiaestarblefando,eseporumsegundoelehaviaacreditadonela,tinhasidoporqueemseuspioresmomentoseletambémchegouapensarqueJonnyIngramdeviaserculpado.Masdepoisdetertrabalhadocomoumlouco,EdsabiamelhordoqueninguémquenãoexistiaamenorevidênciacontraIngram.—Nemtentecolocarideiasabsurdasnaminhacabeça—eledisse.—Tiveacessoaomesmomaterial
quevocêteveeamuitosoutros.—Serámesmo,Ed?AmenosquevocêtambémtenhaaschavesdoalgoritmoRSAdeIngram...Ed Needham olhou para ela e disse a si mesmo que não podia ser verdade. Será que ela tinha
conseguidodescriptografar?Impossível.Nemmesmoele,comtodososrecursoseespecialistasdaáreaàsuadisposição,achavaquefossepossível.Mas agora ela afirmava com muita convicção que... Não, ele se recusava a acreditar. Devia ter
acontecidodealgumaoutramaneira,talvezelativesseuminformantenocírculodepessoaspróximasde
Ingram.Não,issotambémeraimpossível.MassuasconjecturasforaminterrompidasporLisbeth.—O negócio é o seguinte, Ed— ela disse com um novo tom autoritário na voz.—Você disse a
MikaelBlomkvistquemedeixaria empaz se eucontasse comoconsegui invadir aNSA. Pode ser quevocêestejadizendoaverdade,podeserquevocêestejablefando,oupodeseratéquevocênemprecisesemanifestarsobreisso,porquepodeserdemitido.Nãovejonenhumarazãoparaeuconfiaremvocêounaquelesparaquemvocêtrabalha.Edrespiroufundoetentouresponderàaltura.—Respeito suaposição—eledisse.—Pormais estranhoquepareça, eu costumocumprir oque
prometo, e não porque eu seja uma pessoa particularmente correta, muito pelo contrário. Eu souobcecado por vingança, exatamente como você. Eu não teria sobrevivido se tivesse traído pessoas, efiqueàvontadeparaacreditarounãonoqueeuestoudizendo.Masjuroquevoutransformarasuavidanuminfernosevocênãoabriraboca.Vocêvaisearrependerdeternascido,podeacreditar.—Certo—Lisbethdisse—,vocêéumcaradurão,mastambéméummalditodeumorgulhoso,não
é?Vocêquer ficarabsolutamentesegurodequeomeu trabalhodehackernãovenhaà tona.Massintoinformarquesoumuitoprecavida.Cadapequenodetalhesobreoassuntoviráapúblicoantesmesmoquevocêtenhatempodelevantarumdedo,eemboraeurealmentenãomesintanadabemfazendoisto,vouhumilhá-lo.Imaginesóafesta,obarulhoquevaitomarcontadainternet.—Vocêéumababacademerda.— Eu não teria sobrevivido se eu fosse uma babaca de merda — ela replicou. — Odeio esta
sociedadeque nos vigia o tempo todo. Já tiveminha cota deBigBrother e autoridades na vida.Masaindaestoudispostaafazeralgumacoisaporvocê,Ed.Sevocêmantiversuabocabemfechada,eutepassoinformaçõesquevãotecolocaremposiçãodepodereoajudarãoaeliminarasmaçãspodresdeFortMeade.Nãovoutecontarnadasobreomeuataque.Pramiméumaquestãodeprincípios.Masvouteajudarasevingardosfilhosdaputaqueteimpediramdemepegar.Edficouolhandoparaaquelamulherestranhaàsuafrentee,emseguida,fezumacoisaquepormuito
tempoosurpreenderia.Explodiunumagargalhada.
31.DIAS2E3DEDEZEMBRO
Ove Levin acordou de bom humor no hotel Häringe Slott depois de uma longa conferência sobredigitalizaçãodasmídias,quehaviaculminadonumagrandefestaemquechampanheebebidasalcoólicasforam servidos à vontade. Um representante mal-humorado do sindicato do jornal norueguêsKveldsbadet, sem se conter, disse aOve que as festas do grupoSerner “estão ficando cada vezmaiscaraseluxuosasàmedidaquevocêdemitemaisfuncionários”.OincidentefezOvederramarvinhotintoemseublazerfeitosobmedida.Maseleestavafelizenemseimportou,poistinhaconseguidoqueNatalieFossfosseencontrá-lona
suíte de seu hotel de madrugada. Natalie era analista de finanças, tinha vinte e sete anos e eraincrivelmentesexy,eapesardebastanteembriagadoOvetinhaconseguidotransarcomelademadrugadae demanhã.Agora já eramquase nove horas, seu celular tocava incessantemente e ele encarava umaressaca insuportável, aindamais quando se lembrava das coisas que ainda precisava fazer. Por outrolado,seulemaera“Workhard,playhard”,eNatalie,meuDeus…Quantoscinquentõesconseguiamumagarotadessas?Nãomuitos.Masagoraeleprecisavaselevantar.
Sentia tontura e mal-estar e se arrastou até o banheiro. Depois foi ver como andavam suas ações.Costumavaserumbomestímuloparaessasmanhãsderessaca,portantoelepegouocelular,acessousuacontabancáriaeaprincípionãoentendeunada.Tinhaalgumacoisaerrada.Suasaçõeshaviamsofridoumaquedaimpressionante,equando,comasmãostrêmulas,verificouseu
saldo, ficou em estado de choque. Sua participação na Solifon havia quase desaparecido. Elesimplesmentenãoentendiae,desesperado,entrounositedaBolsadeValores.Emtodososlugaresleuamesmanotícia:NSAeSolifon,mandantesdoassassinatodoprofessorFransBalder.AsrevelaçõesdarevistaMillenniumabalamomundo.
Elenãoselembravadoquefezdepois.Provavelmentegritou,xingou,deumurrosnamesa.Tinhauma
vaga lembrançadeNatalie acordando eperguntandooque estava acontecendo.Aúnica coisaque elesabia com certeza era que havia passadomuito tempo debruçado sobre a privada, vomitando até seuestômagoficarvazio.AmesadeGabriellaGranenaSäpotinhasidocuidadosamentelimpa.Elanuncamaispretendiavoltar.
Estavasentada,inclinadaemsuacadeira,lendoaMillennium.Aprimeirapáginanãoeraoqueelatinhaesperadodeumarevistaqueestavadandoofurodoséculo.Apágina,naverdade,pareciabemboa,todapreta,semimagens,fúnebre.Nãohaviaimagensenoaltodelaselia:
InmemoriamAndreiZander
Maisabaixoestavaescrito:O assassinato do professor FransBalder e a história de como aMáfia russa se uniu àNSA e a uma grande empresa americana detecnologia.
AsegundapáginatraziaumafotografiadeAndrei,e,mesmoqueGabriellajamaisotivessevisto,ficou
profundamente comovida. Andrei era bonito e tinha um ar vulnerável. Seu sorriso era desamparado,tímido.Haviaalgoaomesmotempointensoeinseguronele.Otextoqueacompanhavaafoto,assinadopor Erika Berger, contava que os pais dele tinham morrido num atentado a bomba em Sarajevo.ProsseguiadizendoqueeleamavaaMillennium,opoetaLeonardCoheneoromanceAfirmaPereira,deAntonioTabucchi.Elesonhavacomumgrandeamorecomumgrandefurodereportagem.SeusfilmesfavoritoseramOlhosnegros,deNikitaMichalkov,eSimplesmenteamor,deRichardCurtis,emesmoodiandopessoasqueofendiamosoutros,eraincapazdefalarmaldealguém.SuareportagemsobreosmoradoresderuadeEstocolmojáeraconsideradaumclássicodojornalismo,segundoErika.OperfildeErikacontinuava:Nomomentoemqueescrevo,minhasmãostremem.OntemnossoamigoecolegaAndreiZanderfoiencontradomortoemumcargueiroemHammarbyhamnen. Ele foi torturado e sofreu terrivelmente. Vou ter que viver com essa dor pelo resto da vida.Mas também háorgulhodentrodemim.
Sintoorgulhodoprivilégioque tivede trabalharcomele.Nuncaconhecium jornalista tãodedicadoeumapessoa tãogenuinamenteboa.Andrei tinhavinteeseisanos.Eleamavaavidaeo jornalismo.Elequeriadenunciaras injustiçaseajudarosmaisdesamparados.Andrei foi assassinado ao tentar proteger um menino chamado August Balder, e nesta edição em que revelamos um dos maioresescândalosdaatualidadeAndreiéhomenageadoemcadalinha.MikaelBlomkvistescreveuemsualongareportagem:“Andreiacreditavanoamor.Eleacreditavaemummundomelhoreemumasociedademaisjusta.Eleeraomelhordenós!”.
Areportagemseestendiapormaisdetrintapáginas,eprovavelmenteeraomelhortextojornalístico
queGabriellaGrane já tinha lido.Ficou tão absorvidana leitura queperdeu a noçãodo tempo e porvezeslágrimaslhevieramaosolhos.Masnãopôdedeixardesorriraolerasseguintespalavras:AtalentosaanalistadesegurançadaSäpo,GabriellaGrane,mostrouumacoragemexcepcional.
Ahistóriaerabastantesimples.Umgrupodefuncionáriosquerespondiamdiretamenteaocomandante
JonnyIngram—este,porsuavez,subordinadoaodiretordaNSA,CharlesO’Connor,ecomcontatosnaCasaBrancaenoCongressoamericano—tinhasevalidodagrandequantidadedesegredosindustriaisdequeaagênciadispunha,comacolaboraçãodeumgrupodeanalistasdodepartamentodepesquisasY
daSolifon.Seahistóriaacabasseaí,seriaumescândaloatécertopontocompreensível.Mas o grupo começou a percorrer um caminho bem mais perigoso ao se juntar à rede criminosa
Spiders.MikaelBlomkvistrevelavaprovasdecomoJonnyIngramobtiveraacolaboraçãodoconhecidolíderdaAssembleiaLegislativa russa, IvanGribanov, edomisteriosochefedoSpiders,Thanos,pararoubar,edepoisvender,ideiasenovastecnologiasdevalorastronômicodesenvolvidasporcompanhiasde ponta.Mas eles desceram às profundezas da depravação moral quando o professor Frans Balderdescobriuoqueogrupofazia.Ficoudecidido,então,queeranecessáriose livrardocientista,eessa,claro,eraapartemaisabsurdadetodaahistória.UmdoshomensmaisgraduadosdaNSAsabiaqueumpesquisadorsuecoimportanteseriaassassinadoenãomexeuumdedoparaimpedirqueissoacontecesse.Aomesmotempo—eaquiMikaelBlomkvistmostravasuaexcelência—,Gabriellasentira-semenos
tocadapelalamapolíticadocasoquepelodramahumanoquetinhasedesenroladoparalelamente,assimcomopelaconstataçãodequetodosviviamnummundodoentio,ondetudo,coisasgrandesoupequenas,eramonitorado,espionado,paraquemaistardesefizesseusodessasinformações.QuandoGabriellaterminoudeleramatéria,reparouquehaviaalguémparadoàsuaporta.EraHelena
Kraft,muitobemvestidacomosempre.—Oi!—disseHelena.Gabriella se lembrou de como chegara a suspeitar de que Helena fosse a responsável pelos
vazamentosnainvestigação.Masseusprópriosdemônioséquetinhamsidoosresponsáveisporisso.OqueelahaviainterpretadocomosentimentodeculpadeHelenaerasimplesmentedesconfortoporqueainvestigaçãonãoestavasendoconduzidacomprofissionalismo.PelomenosfoioqueHelenalhecontoudurantealongaconversaquetiveramdepoisqueMårtenNielsenconfessouefoipreso.—Olá—respondeuGabriella.—Precisolhedizeroquandoestoutristecomasuasaída?—continuouHelena.—Tudotemseutempo.—Vocêjásabeoquevaifazer?—VoumemudarparaNovaYork.Querotrabalharcomdireitoshumanose,comovocêsabe,recebi
umapropostadaONUháalgumtempocomvalidademeioindefinida.—Vaiserumaperdaparanós,Gabriella.Masvocêmerece.—Entãominhatraiçãojáfoiperdoada?—Nãoportodos,maseuentendiissoapenascomoumsinaldoseubomcaráter.—Obrigada,Helena.—Vocêtemalgumacoisaimportanteparafazeraquiantesdeirembora?—Hojenão.VouàhomenagemqueaimprensavaiprestaraAndreiZander.—Muitobom.Eutenhoumaapresentaçãoparaogovernosobretodoessecaos,masànoitetambém
fareiumbrindeaojovemZandereoutroavocê,Gabriella.Sentadaàsuamesaecomumsorrisocontido,AlonaCasalesobservavaàdistânciaodesesperodo
almiranteCharlesO’Connoratravessando todooandarcomosefosseumgarotovítimadebullyingnaescola,enãoodirigentedomaispoderososerviçodeinteligênciadafacedaTerra.Mashojetodosos
homensfortesdaNSAestavamencolhidoseacovardados,comexceçãodeEd,claro.No entanto Ed também não parecia muito satisfeito. Ele sacudia os braços, transpirava bastante e
estava irritado. Apesar disso, exalava sua costumeira autoridade e dava para ver que até O’Connorestava commedo dele, o que não era de estranhar. Ed tinha voltado de Estocolmo com dinamite nabagagemearmaraumacenaexigindomelhoriasemtodososníveisdaorganização,eclaroqueodiretordaNSAnão iaagradeceraelepor isso.Provavelmente,oqueelemaisdesejavaagoraeramandarEdparaaSibéria.Mas,comonãohavianadaqueelepudessefazer,O’Connorsimplesmenteseencolheuaoseaproximar
deEd,oqual,numaatitudetípicadele,nemsedeuaotrabalhodeolharparacima.EdignorouodiretordaNSA assim como costumava fazer com todos aqueles com quem ele não tinha tempo a perder, e asituaçãodeO’Connortambémnãomelhorounodecorrerdaconversadeles.Edpareciadesrespeitoso,emesmoqueAlonanãopudesseouviroqueelesfalavam,podiamuitobem
imaginaroqueestavaeatéoquenãoestavasendodito.ElahaviaconversadodemoradamentecomEdesabiaqueelenãoiadizeraoalmiranteumasópalavradecomotinhaobtidotodaainformação,equenãoiafazernenhumtipodeconcessão,eelagostoudisso.Ed estava disposto a se aproveitar aomáximo da situação, eAlona jurou solenemente que, de sua
parte,irialutarpelaretidãodentrodaagênciaeoapoiariaseeleenfrentassealgumproblema,qualquerque fosse. Também jurou que ia telefonar para Gabriella Grane e convidá-la para sair, se é que eraverdadequeGabriellaestavaacaminhodali.Naverdade,EdnãoestavaignorandoodiretordaNSAdepropósito.Maselenãoiainterromperoque
estava fazendo—repreendendodoiscontroladores—sóporqueoalmiranteestavaaliparadonasuafrente,efoisomentedepoisdeumoudoisminutosqueelesedirigiuaoseusuperiordeformabastantegentil,nãoparabajulá-lonemparacompensarafaltadeatençãocomqueotrataradeinício.Foimesmoumaatitudesincera.—Vocêmandoubemnacoletivacomaimprensa—disse.—Vocêachou?—perguntouoalmirante.—Massaibaquefoiuminferno.—Bem,vocêpodemeagradecerporeuterlhedadotempodesepreparar.—Agradecer?Vocêestálouco?Jáviuasnotíciasnainternet?Elesestãopostandotodasasfotosem
queeuapareçojuntocomIngram.Estoudesmoralizado.—Bem,entãotratedeficardeolhonosseussubordinadosdaquiparaafrente.—Comoousafalarcomigodessamaneira?—Eufalocomoeuquiser.Aagênciaestánamaiorcriseeoresponsávelpelasegurançasoueu.Não
tenhotemponemsoupagoparasereducadoebonzinho.—Cuidadocomoquevocêdiz...—começouodiretordaNSA.MassedeuporvencidoassimqueEdselevantouderepentedacadeira,comtodooseutamanhoe
pesodeurso,paraesticarascostasoumostrarautoridade.—EumandeivocêparaaSuéciapara resolver tudo isso—continuouoalmirante.—Masquando
vocêvoltou,tudovirouumaenormeconfusão.Umacatástrofe.
—Acatástrofejátinhaacontecido—retrucouEd.—Mascomotodaessamerdafoipararnaquelarevistasueca?—Eujálheexpliqueimilharesdevezes.—Vocêfalousobreoseuhacker,mastudoqueouvinãopassadesuposiçõeseconversamole.EdhaviaprometidodeixarWaspforadaquelecaosepretendiamantersuapalavra.—Suposiçõeseconversamoledealtaqualidade—elerespondeu.—Omalditohacker,quemquer
queeleseja,conseguiudescriptografarosarquivosdeIngrameentregoutudoparaarevistaMillennium,eadmitoqueissofoipéssimo.Massabeoquefoipior?—Não.—Opioréquetivemosachancedepegarohacker,cortarasasinhasdeleeimpedirqueelepassasse
ainformação.Masentãomandaramagentepararanossainvestigação,enãovenhamedizerquevocêmedeualgumtipodeapoionessaquestão.—EumandeivocêparaEstocolmo.—Masdeufolgaparaosmeusrapazes,etodoonossotrabalhoacaboudesperdiçado.Agoraohacker
encobriuaspistaseparapegá-loteríamosquecomeçartudodozero.Claro,agenteatépodefazerisso,masquevantagemagentevai ter, a esta altura, de anunciar paraomundoqueumhackernojentonosenganoufeio?—Vantagem nenhuma, provavelmente.Mas pretendo bater forte naMillennium e naquele repórter
Blomström,podeficarcertodisso.—OnomedeleéBlomkvist,naverdadeMikaelBlomkvist.Vocêéquesabe,eboasorte.Vaifazerum
bemdanadoparasuareputaçãoaNSAinvadiroterritóriosuecoeprenderojornalistamaisadmiradodomomento, um herói para eles — disse Ed. Então o almirante resmungou alguma coisa baixinho edesapareceudali.Ed sabiamais do que ninguém queCharlesO’Connor não iria prender nenhum jornalista sueco.O
almirante estava lutando por sua sobrevivência política e não podia correr o risco de tomar algumadecisãoimprudente.EddecidiuirbaterpapocomAlona.Jáestavasaturadodetantotrabalhar.Precisavasairumpoucodostrilhos,fazeralgumacoisadiferentepararelaxaredecidiuchamá-laparadarumgiroporalgunsbares.—Vamossairetomarumporreparaesquecertodaestamerda—eledisse,sorrindo.HannaBalder estavaparadanapequenacolinapróximaaohotelSchlossElmau.Depoisdedarum
leve empurrão nas costas deAugust, ficou observando-o deslizar até o fim da pequena elevação numvelhotrenódemadeiraqueelestinhampedidoemprestadoaohotel.Assimqueviuofilhopararaoladodoceleiromarrom,elacomeçouaandarnadireçãodelecomsuasbotasparaneve.Mesmosendoumdiadesol,nevavalevemente,semventar.Aolonge,otopodamontanhaquasealcançavaocéueàsuafrenteseabriamoscamposcobertosdeneve.Hanna nunca tinha estado num lugar tão bonito, e August se recuperava bem, e muito graças à
dedicação do professor Charles Edelman. Mas não estava sendo fácil para ela. Sentia-se péssima.Mesmonaquelepequenopercursoforaobrigadaapararduasvezescomfaltadear.Odesmamedeseus
comprimidos— todos benzodiazepínicos— estava sendomais doloroso do que tinha imaginado, e ànoiteelaficavaencolhidanacamarepassandosuavidadeformaimpiedosa.Muitasvezeschegouaselevantareaesmurraraparede,emprantos.MilharesdevezesamaldiçoouLasseWestmaneasimesma.Aindaassim...haviamomentosemquesesentiaestranhamentepurificada,edevezemquandochegava
quase a se sentir feliz. Por vezes, envolvido com suas equações e sequências de números, Augustrespondiaàsperguntasdela,emboracommonossílabosoupalavrasestranhas,eelaconcluíaquealgoestavarealmentemudando.Claroquenãoentendiaofilhointeiramente.Eleaindaeraummistérioparaela,eporvezeselefalava
emnúmeros,emnúmeroselevadosàpotênciadenúmerosaindamaiores,epareciaacharqueHannaiaentender.Masalgosemdúvidahaviamudado,eelanuncamaisiriaseesquecerdecomoviraAugustsesentardiantedamesadoquartodelesemseuprimeirodianohotelecomeçaraescreverasequaçõesintermináveisquebrotavamdeleequeelaiafotografandoeenviandoàjovememEstocolmo.Naqueledia,nocomeçodanoiterecebeuumamensagemdetextoemseuBlackphone:DigaaAugustquedeciframosocódigo!Elanuncatinhavistoofilhotãofelizetãoorgulhoso,emesmoqueelanãotivesseideiadoqueera
tudoaquiloenuncatenhamencionadooqueaconteceunemaopróprioCharlesEdelman,aquelemomentosignificoutudoparaela.Hannacomeçouasentirorgulhodofilho,umorgulhoimenso.E também desenvolveu um interesse apaixonado por se informar sobre a síndrome de savant, e
enquanto Charles Edelman estava hospedado no hotel, os dois com frequência, depois que Augustadormecia,ficavamconversandoatédemadrugadasobreascapacidadesdofilhoesobreváriosoutrosaspectos de sua síndrome. Ela só não tinha certeza se fora uma boa ideia ter ido para a cama comCharles.Poroutrolado,tambémnãotinhacertezaseforaumamáideia.CharlesafaziaselembrardeFrans,e
lheocorreuquetodoselesestavamcomeçandoaseconhecercomoumapequenafamília:ela,CharleseAugust, a rigorosa mas também gentil professora Charlotte Greber e o matemático dinamarquês JensNyrup,quefoivisitá-loseconstatouque,poralgumarazão,Augusteraobcecadoporcurvaselípticasepelafatoraçãodenúmerosprimos.Dealgummodo,aestadiadelesaliestavase transformandonumaviagemdedescobertadonotável
universodofilho.EnquantodesciadesajeitadamenteapequenacolinasobanevefinaparaseencontrarcomAugust e o via se levantar do trenó,Hanna sentiu pela primeira vez emanos que seria umamãemelhorequedariaumjeitoemsuavida.Mikael não entendia por que sentia o corpo tão pesado. Era como se estivesse tentando caminhar
dentro d’água. Lá fora rolava uma comoção barulhenta, de certa forma a celebração de uma vitória.Quase todosos jornais, sites, emissorasde rádio e canaisde televisãoqueriamentrevistá-lo.Elenãoaceitounenhumconvitenemprecisava.Antes,quandoaMillenniumpublicavaalgumfuro,eleeErika,sem ter certeza se receberiam apoio do restante da imprensa, tinham precisado recorrer a algumasestratégias,porexemploaparecernosveículoscertose,algumasvezes,atédividirumpoucodofurodereportagemcomoutrosveículosdecomunicação.Agoraissonãoeramaisnecessário.
Ahistóriaseespalharaexplosivamenteporsisó,equandoodiretordaNSA,CharlesO’Connor,eaministradoComérciodosEstadosUnidos,StellaParker,numaentrevistacoletiva, sedesculparamempúblicopeloquehaviaocorrido,asdúvidasqueaindarestavamdeahistóriatersidosuperdimensionadaouequivocada,desapareceramdeimediato,eórgãosdecomunicaçãodomundotododeraminícioaumacalorosadiscussãosobreasimplicaçõeseconsequênciasdessasdescobertas.Apesardetodoobarulhoedostelefonestocandosemparar,Erikahaviadecididoorganizarumafesta-
relâmpagonaredação.Elaachouquetodosmereciamescapardaquelealvoroçoporalgumashorascomalgunsdrinques.AprimeiraediçãodecinquentamilexemplarestinhaseesgotadonamanhãanterioreonúmerodevisualizaçõesdositedaMillennium,quetambémpossuíaumaversãoeminglês,jápassarademuitos milhões. Propostas de transformar a história num livro não paravam de chegar, o número deassinantes da revista crescia a cada minuto e os anunciantes faziam fila para não ficar fora dessemomento.ElestambémhaviamreadquiridodogrupoSernerasaçõesdaMillennium.Apesardacargaimensade
trabalho,Erikaconseguirafecharonegócioalgunsdiasantes.Nãotinhasidoumanegociaçãofácil.OsrepresentantesdogrupoSernerperceberamodesesperodelaetiraramomáximoproveitodisso,eporalgumtemponemelanemMikaelacreditaramqueonegóciosairia.Sónoúltimoinstante,quandochegouumagenerosacontribuiçãofeitaporumaempresadesconhecidadeGibraltar—oquefezMikaelabrirumgrandesorriso—,foiqueelesconseguiramselivrardosnoruegueses.Tendoemvistaasituação,opreçohaviasidoalto,masatransaçãotambémpodiaserencaradacomoumgolpedemestre,jáquenodiaseguinte,quandoarevistafoiàsbancascomseufurodereportagem,ovalordamarcaMillenniumsubira rapidamente.Portantoeleseram livrese independentesdenovo,emboraquasenão tenham tidotempodedesfrutaressasensação.JornalistasefotógrafosostinhamperseguidoinclusivenacerimôniadehomenagemaAndreinoClube
deImprensae,mesmoquenessaaproximaçãocadaumdelestambémquisessecumprimentá-los,Mikaelsesentiusitiado,sufocado,esuasrespostasnãoforamtãogentiscomoelegostaria.Alémdisso,asnoitesmaldormidaseasdoresdecabeçanãootinhamabandonado.Agora,nodiaseguinte,aredaçãotinhasidoredecoradaàspressas.Emcimadasmesashaviagarrafas
dechampanhe,devinho,decerveja,alémdacomidajaponesapedidanumrestaurante.Depoisaspessoascomeçaramachegar,primeiroosjornalistasfixos,osfreelancers,algunsamigosefamiliares.AtéHolgerPalmgrenapareceu,eMikaeloajudouaentrareasairdoelevador.Osdoisseabraçaramduasoutrêsvezes.—Anossagarotaconseguiu—disseHolgercomlágrimasnosolhos.—Elasempreconsegue—respondeuMikael,sorrindo.ElepôsHolgersentadonumlugardehonrano
sofádaredaçãoedeuinstruçõesparaqueocopodelenuncaficassevazio.Eramuitobomvertodososnovoseosvelhosamigos,comoGabriellaGraneeoinspetorBublanski,
que a rigor não deveria ter sido convidado — tendo em vista que aMillennium era uma revistainvestigativaedecertaformaàsvezesconcorriacomaforçapolicial—,masqueMikaelinsistiraqueviesseeque, surpreendentemente,passoua festa todanumaconversaanimadacomaprofessoraFarahSharif.Mikaelbrindoucomeleecomtodososoutros.Estavadejeansecomseumelhorblazerebeberaum
bocado,oquenãofaziacomfrequência.MasnemissoajudouaaliviaropesoeovazioquesentiapelaperdadeAndrei,quenãosaíadoseupensamentonemporumsegundo.A imagemdelesentadoalinaredaçãoquaseaceitandooconvitedeMikaelparatomarumacervejaerarecorrente,uminstantenavidadelesquetinhasidorotineiroeaomesmotempovital.AslembrançasdeAndreisurgiamotempotodoeMikaeltevedificuldadedeseconcentrarnasconversas.Játinharecebidoelogioseadulaçõessuficientes,eoúnicoaplausoqueoemocionouforaamensagem
detextodesuafilha,Pernilla:Vocêescrevedeverdade,pai!DevezemquandoeleolhavaparaaportanaesperançadeverLisbethchegando.Tinhapedidoqueelaviesseeobviamenteseriaaconvidadadehonra. Mas até agora nem sinal dela, o que não o surpreendia. Mikael pelo menos gostaria de lheagradecerpessoalmenteamaravilhosacontribuiçãoparaqueelespudessemselivrardogrupoSerner.AsensacionaldocumentaçãosobreIngram,GribanovesobreaSolifonlhepermitiradesvendartodoo
casoefazercomqueEdtheNedeopróprioNicolasGrand,daSolifon,lhefornecessemmaisdetalhes.Desde então, porém, só tivera notícias de Lisbeth uma vez, quando ele a entrevistara pelo aplicativoRedphonesobreoquetinhaacontecidonacasadecampodeIngarö.Issotinhasidoumasemanaantes,eMikaelnãosabiaseelahaviagostadodamatéria.Talvezestivesse
aborrecida,achandoqueeletinhadramatizadodemais,masnãohaviamuitooquefazercomasrespostasmonossilábicasdela.OutalvezestivessefuriosaporelenãotermencionadoonomedeCamillaetersereferidoaelaapenascomoumamulherdeorigemsuecaerussaqueadotavaopseudônimoThanosouAlkhema.Outalvezestivessedecepcionadacomtodaareportagem,achandoqueelenãohaviaadotadoumalinhamaisduracomtodoseles.Nãoera fácil saber, e as coisas andavammeio tensasporqueoprocuradorRichardEkströmestava
considerandoapossibilidadedeprocessarLisbethporsequestroeprivaçãodeliberdadedemenor.EraassimqueascoisasestavameporfimMikaelseencheudetudoefoiemboradafestasemsedespedirdeninguém.Otempoestavahorrorosoe,semnadaparafazer,eleficoualiparadonaGötgatandandoumaolhada
emsuasmensagensdetexto.Receberainúmeroscumprimentospelareportagem,pedidosdeentrevistaealgumaspropostasindecentes.MasnadadeLisbeth,oqueochateouumpouco.Emseguida,desligouocelularefoicaminhandoparacasacompassospesadosdemaisparaalguémquetinhaacabadodedarofurodoséculo.LisbethestavasentadaemseusofávermelhonaFiskargatan,observandocomumolharvazioaGamla
Stan e o lago de Riddarfjärden. Fazia um ano que ela havia começado a caçar sua irmã e o legadocriminosodeseupai,enãohaviacomonegarquejátinhafeitoalgumprogresso.HaviaencontradoCamillaegolpeadoseriamenteosSpiders.AassociaçãoentreaSolifoneaNSAfora
desfeita.OlíderdaAssembleiaLegislativarussa,IvanGribanov,estavasobgrandepressãoemseupaís.Omatador deCamilla tinhamorrido e o braço direito dela, Jurij Bogdanov, e outros engenheiros decomputação estavam sendo procurados pela polícia, o que os forçara a se esconder no submundo docrime.MasCamillaaindaestavavivaetudoindicavaquetinhasaídodopaísequeiriamontarumanovaorganizaçãocriminosa.
Nada tinhaacabado.Lisbethhavia feitooquepodia,masnão significavaqueerao suficiente,nempertodisso.Comexpressãoséria,olhouparaamesadecentroàsuafrente.HaviaummaçodecigarrosalieaediçãodaMillennium,queelaaindanãolera.Elapegouarevista,masalargoudenovonamesa.Emseguidapegou-adenovoecomeçoua ler a longa reportagemdeMikael.Quandochegouàúltimafrase, ficou olhando por algum tempo para uma foto recente dele perto de sua assinatura no fim damatéria.Depoisselevantou,foiatéobanheiroesemaquiou.Vestiuumacamisetapretajusta,suajaquetadecouroefoiparaaruanaquelecomeçodenoitededezembro.Elaestavacongelando.Suasroupasnãoeramnadaquentes,masnãoseimportoumuitoe,compassos
apressados, seguiu na direção do Mariatorget. Virou à esquerda na Swedenborgsgatan e entrou numrestaurante chamado Süd. Ela foi para o bar e bebeu, alternadamente, uísque e cerveja. Muitosfrequentadoresdolugareramjornalistasougentedaáreacultural,portantomuitosareconheceramenãofoi surpresa que ela acabasse se tornando muito observada e o assunto de muitas conversas ali. OguitarristaJohanNorberg,queassinavaumacolunanojornalViequeeraconhecidoporcaptarpequenosmassignificativosdetalhesnaspessoas,achouqueLisbethnãoestavabebendoporprazer,mascomosefosseumaincumbênciadesagradávelquelhecabia.Sualinguagemcorporalerabastantedeterminada,eninguémtevecoragemdeseaproximardela.Uma
mulherchamadaRegineRichter,quetrabalhavacomterapiacognitivacomportamentaleestavasentadanumamesapróxima,chegouaseperguntarseLisbethSalandersequertinhanotadoumrostoquefossenorestaurante.Reginenão se lembravadeverLisbeth examinandoo ambiente oudemonstrandoomenorinteresseporalgoali.Ogarçomdobar,SteffeMild,achouqueLisbethestavasepreparandoparaalgumtipodeoperaçãoouconfronto.Às21h15elapagouacontaemdinheiroedeixouoSüdsemumapalavraouaceno.Umhomemde
meia-idade,deboné,KennethHöök,jábastanteembriagadoenadaconfiável,segundosuasex-mulherese seus amigosmaispróximos, a tinhavisto cruzaroMariatorget comose ela “estivesse indoparaumduelo”.
***Apesardofrio,MikaelBlomkvistvoltavaparacasacaminhandodevagar,mergulhadoempensamentos
tristes,emboraumsorriso tenhabrotadoemseurostoquandoviuosvelhosfrequentadoresdoseupubfavorito,oBishop’sArms.—Então,nofinaldascontas,vocênãoestavaacabado,hein!—gritouArne,ousejalácomoelese
chamava.— Parece que não — respondeu Mikael, pensando que uma cerveja e um bom papo com Amir
poderiamlevantarseuânimo.Masestavadeprimidodemaisparaisso.Queriaficarsozinho,portantocontinuouseguindonadireção
de seu prédio. Subindo as escadas, sentiu um grande desconforto, consequência talvez de tudo o queviveranosúltimosdias,etentouselivrardessasensação.Odesconfortonãodesapareceu,esóaumentouquandoumaluzseapagounoandardecima.Aescuridãoeracompactaeelediminuiuospassosaoperceberoquelhepareceuumlevemovimento.
Emseguida, algobrilhou, como se fosse a luz fracadeumcelular, e então elevislumbrouuma figuraindistintacomoumfantasma,umapessoamagraedeolhosescurosefaiscantessentadanaescada.—Quemestáaí?—eleperguntou,commedo.MasentãoviuqueeraLisbeth,emesmotendoseanimadoaprincípio,ebaixadoaguarda,aindaassim
nãosentiuoalívioesperado.Lisbethpareciafuriosa,osolhospintadosdepreto,ocorpotenso,preparadoparaoataque.—Vocêestázangada?—Bastante.—Porquê?Lisbethdeuumpassoàfrenteeeleviuseurostopálidoeselembroudequeelahavialevadoumtiro
nãofaziamuitotempo.—Porqueeuvenhotevisitarenãoencontroninguémemcasa—eladisse.Mikaelseaproximoudela.—Eissoéumabsurdo,nãoé?—eledisse.—Eudiriaquesim.—Maseseeuagorateconvidarparaentrar?—Bom,vouserobrigadaaaceitar.—Nestecaso,sejabem-vinda—eledisse.Epelaprimeiravezdepoisdemuitosanos,seurostose
abriunumgrandesorriso.Láfora,umaestrelacadenteriscouanoite.
AGRADECIMENTOS
Meus sinceros agradecimentos à minha agente Magdalena Hedlund, a Erland Larsson e JoakimLarsson,respectivamentepaieirmãodeStiegLarsson,ameuspublishersEvaGedineSusannaRomanus,ameueditorIngemarKarlsson,eaLindaAltroveCatherineMörk,daagênciaNorstedt.Agradeço também a David Jacoby, pesquisador de segurança no Kaspersky Lab, e Andreas
Strömbergsson,professordematemáticanaUniversidadeUppsala.AgradeçoaindaaFredrikLaurin,daEkot,MikaelLagström,daOutpost24,aosescritoresDanielGoldbergeLinusLarssoneaMenachemHarari.E,claro,àminhaAnne.
MAGNUSLIAMKARLSSONDAVIDLAGERCRANTZnasceunaSuécia,em1962.FoirepórterpolicialdarevistaExpresseneé autor de diversos romances. Trabalhou com o jogador de futebol Zlatan Ibrahimović naautobiografiaEusouZlatan, finalistadoprêmioWilliamHill e indicadaparaoprêmioAugustdaSuécia.
Copyright©DavidLagercrantzPublicadooriginalmentepelaNorstedtsnaSuéciaem2015.PublicadomedianteacordocomaNorstedtsAgency.GrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.TítulooriginalDetsomintedödarossCapaRetina_78PreparaçãoCiçaCaropresoRevisão
AngeladasNeves
IsabelJorgeCuryISBN978-85-438-0375-3TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORASCHWARCZS.A.RuaBandeiraPaulista,702,cj.3204532-002—SãoPaulo—SPTelefone:(11)3707-3500Fax:(11)3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br