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DAS PALAVRAS POR DIZER AO ASSUJEITAMENTO SEM AS PALAVRAS? COM-PARTILHA-ANDO AGÊNCIAS COM ALGUNS JOVENS KAIOWÁ DE PANAMBIZINHO/MS Simone Becker (UFGD/CNPq) 1 [email protected] Esmael Alves de Oliveira (FCH/UFGD) 2 [email protected] Resumo: O presente ensaio intenta disparar reflexões sobre o modo como discursos e práticas de assujeitamentos são constituídos, reiterados e transgredidos em torno de e por grupos minoritários, no caso específico por agentes Kaiowá de Panambi/Mato Grosso do Sul. Ao enunciarmos de que se trata de um “ensaio”, o que se busca é com-partilhar no sentido mais foucaultiano atribuído ao “ensaiar-se”, algumas das impressões mais plurais e críticas possíveis dos resultados até então “pinçados” dos projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos junto aos Kaiowá da TI de Panambizinho/MS. Mais especificamente, nossos dados/enunciados emergem de nossas imersões junto à escola indígena – Pa´i Chiquito, Dourados/MS e de nossas múltiplas interlocuções lá estabelecidas. Para além do flanar de maneira mais rizomática possível pelo espaço, buscamos há alguns meses interagir especialmente com os jovens (em detrimento das categorias “criança e/ou adolescente”) Kaiowá de duas "turmas regulares" – 8º e 9º anos. A escolha pelas interlocuções com os jovens se deu estrategicamente, face ao fato de sobre eles repousarem o peso, por vezes, estigmatizante das faltas, dos excessos, isto é, da transgressão ao estabelecido, porque outsiders. Aliás, se educar vem de educere e esse se liga ao “conduzir para fora”, Foucault já nos inspira há tempos a perceber o quanto ela, a Escola, caminha de mãos dadas com as grades prisionais de outras instituições, incluindo a Prisão. Ao invés de colocar para fora, ela aprisiona os sentidos que podem e devem ser plurais no processo educacional que alia sabor a saber – sapere e sapore. Com os indígenas Kaiowá percepções outras na relação com os Karaí (os não indígenas) nos permitem perceber sentidos mais plurais quanto à maneira como eles produzem o espaço da escola e vice-versa. Assim, essas percepções, vivências, experiências e trocas com os jovens Kaiowá nos possibilitam pensar sobre a importância de se criar estratégias que permitam outras dinâmicas de ensino-aprendizagem e, deste modo, nos questionarmos sobre os processos de institucionalização que produzem violências, subalternidades e invisibilidades. Não haveria outras maneiras de produzirmos nossa existência humana e social para além do modelo que a escola ocidental historicamente nos impõe? Formas outras de rechearmos o conteúdo da formatação que as escolas nos impõem. Há outras maneiras de nos produzirmos e de nos colocarmos nas mais múltiplas relações sociais. Palavras-chave: Antropologia, Psicanálise, Guarani-Kaiowá 1 Doutora em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), docente associada I da Universidade Federal da Grande Dourados (FADIR-PPGANT-PPGS) e bolsista de produtividade CNPq. 2 Doutor em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), docente do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós- Graduação em Antropologia (PPGAnt) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

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DAS PALAVRAS POR DIZER AO ASSUJEITAMENTO SEM AS PALAVRAS? COM-PARTILHA-ANDO AGÊNCIAS COM ALGUNS JOVENS KAIOWÁ DE

PANAMBIZINHO/MS Simone Becker (UFGD/CNPq)1

[email protected] Esmael Alves de Oliveira (FCH/UFGD)2

[email protected]

Resumo: O presente ensaio intenta disparar reflexões sobre o modo como discursos e práticas de assujeitamentos são constituídos, reiterados e transgredidos em torno de e por grupos minoritários, no caso específico por agentes Kaiowá de Panambi/Mato Grosso do Sul. Ao enunciarmos de que se trata de um “ensaio”, o que se busca é com-partilhar no sentido mais foucaultiano atribuído ao “ensaiar-se”, algumas das impressões mais plurais e críticas possíveis dos resultados até então “pinçados” dos projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos junto aos Kaiowá da TI de Panambizinho/MS. Mais especificamente, nossos dados/enunciados emergem de nossas imersões junto à escola indígena – Pa´i Chiquito, Dourados/MS e de nossas múltiplas interlocuções lá estabelecidas. Para além do flanar de maneira mais rizomática possível pelo espaço, buscamos há alguns meses interagir especialmente com os jovens (em detrimento das categorias “criança e/ou adolescente”) Kaiowá de duas "turmas regulares" – 8º e 9º anos. A escolha pelas interlocuções com os jovens se deu estrategicamente, face ao fato de sobre eles repousarem o peso, por vezes, estigmatizante das faltas, dos excessos, isto é, da transgressão ao estabelecido, porque outsiders. Aliás, se educar vem de educere e esse se liga ao “conduzir para fora”, Foucault já nos inspira há tempos a perceber o quanto ela, a Escola, caminha de mãos dadas com as grades prisionais de outras instituições, incluindo a Prisão. Ao invés de colocar para fora, ela aprisiona os sentidos que podem e devem ser plurais no processo educacional que alia sabor a saber – sapere e sapore. Com os indígenas Kaiowá percepções outras na relação com os Karaí (os não indígenas) nos permitem perceber sentidos mais plurais quanto à maneira como eles produzem o espaço da escola e vice-versa. Assim, essas percepções, vivências, experiências e trocas com os jovens Kaiowá nos possibilitam pensar sobre a importância de se criar estratégias que permitam outras dinâmicas de ensino-aprendizagem e, deste modo, nos questionarmos sobre os processos de institucionalização que produzem violências, subalternidades e invisibilidades. Não haveria outras maneiras de produzirmos nossa existência humana e social para além do modelo que a escola ocidental historicamente nos impõe? Formas outras de rechearmos o conteúdo da formatação que as escolas nos impõem. Há outras maneiras de nos produzirmos e de nos colocarmos nas mais múltiplas relações sociais.

Palavras-chave: Antropologia, Psicanálise, Guarani-Kaiowá

1 Doutora em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), docente associada I da Universidade Federal da Grande Dourados (FADIR-PPGANT-PPGS) e bolsista de produtividade CNPq. 2 Doutor em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), docente do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Algumas das (conscientes) inquietações aqui apresentadas foram suscitadas a partir

da leitura da obra “Palavras para nascer” (SZEJER, 1999), mas também por conta de nosso

diálogo, dos a(u)tores que assinam, com jovens indígenas Kaiowá da Terra Indígena (TI) de

Panambizinho, localizada a aproximadamente 20km de Dourados-MS, no distrito de

Panambi. Esse é um dos poucos lugares legitimados pelo papel da lei brasileira como sendo

dos indígenas, no estado de Mato Grosso do Sul (ANDRADE e BECKER, 2013), em meio a

um contexto onde pre-vale-ce a soja e o capital do agronegócio (BECKER, OLIVEIRA,

MARTINS, 2016; BECKER, OLIVEIRA, CAMPOS, 2016).

Dualidade – capital e agronegócio - que faz sentido para os sentidos ríspidos do des-

respeito em relação a sujeitos que não vivem suas experimentações do que é o viver sob os

mesmos reg®amentos. Eis as ameaças de entrar no tato do contato com outros possíveis e

onde as reações violentas são (re)produzidas com rispidez. Por mais que os verbos sejam em

si mesmos agentes e então sujeitos/performativos (inspirados tanto em Zélia Duncan quanto

em Judith Butler), trazendo em si fluxos de contradições. Eis o verbo-ação-movimento

“reg®ar”. Quais são os múltiplos sentidos que tal palavra oferta aos nossos sentidos?

Ao anunciarmos que regaremos algo, a vida que banhamos/molhamos/irrigamos

florescendo à nossa mente fantasiosa são as das flores e afins, com o “r” cravado no meio de

regar, tão arranhado nos exercícios de experimentação das falações de letras, sílabas e

palavras, sinalizando para a existência de regras misturadas aos regares, nem sempre áridas

e/ou impostas. O desafio parece-nos morar na capacidade de potencializarmos as interações

entre os agentes da gente, em detrimento da reprodução de representações. Como bem coloca

Viveiros de Castro, em Metafísicas canibais (2015, p.111-112):

o conhecer não é mais um modo de representar o desconhecido, mas de interagir com ele, isto é, um modo de criar antes que um modo de contemplar , de refletir ou de comunicar (D&G, 1991). A tarefa do conhecimento deixa de ser a de unificar o diverso sob a representação, passando a ser a de “multiplicar o número de agências que povoam o mundo (Latour 1996a). Os harmônicos deleuzianos são audíveis. Uma nova imagem do pensamento. Nomadologia. Multiculturalismo.

Nossas interações em du(et)o pelo enlace entre nós com os jovens de Panambizinho

foram disparadas com um projeto de extensão coordenado por uma das pessoas a(u)toras. Os

contrapelos em forma de chamamentos por parte da comunidade de Panambizinho para que lá

estejamos-sendo têm nos (en)levado para o espaço da escola, Pa’i Chiquito.

Desde o primeiro dia de trabalho de campo conjunto, um das inquietações suscitada e

com-partilhada por Esmael foi: em que medida a estrutura da escola, apesar de se localizar

dentro de uma comunidade indígena e ter como perspectiva pedagógica uma prática

“intercultural”, pouco se coadunava com o contexto de onde estava situada e também em

relação ao público atendido: crianças e jovens indígenas. Para Esmael (Oliveira) foi

emblemático tanto a estrutura da escola, quanto algumas mensagens fixadas em algumas

salas, como também a própria forma de organização da sala de aula e das formas de relação

estabelecidas entre professores e alunos/as.

Imagem-em-ação 1

Impressões que por imagens imprimem também os agenciamentos desses a-gentes3

sobre o famigerado modelo prisional da escola não indígena, considerando as regências do

3 Usamos essa decupagem da palavra agente/a-gente para sublinhar a concomitância de multiplicidade de sentidos dessa combinação. “Gente” é usado para referenciarmos pessoas (nos incluindo) que fazem parte de um mesmo grupo relacional, com modos de ser-estar-fazer similares. Ao mesmo tempo, “agente” é o sujeito-verbo que dá vida à ação, e que no coletivo da gente capilariza rizomaticamente os movimentos de propagação dos ditos e dos feitos. Algo que tende a ofertar ao termo sujeito e assujeitamento maior pluralização dos sentidos para além das relações de dominação, onde a re-elação de se faz a partir do reencontro com o sublime do agente

maestro Michel Foucault. Orquestrações tecidas especialmente em Vigiar e Punir

(FOUCAULT, 1983), Em Defesa da Sociedade (FOUCAULT, 2010) e em a Microfísica do

Poder (FOUCAULT, 2001). A partir das três obras, observamos o modo como o Estado

(re)produz dispositivos que atravessam a vida no que há de mais biológico na e da sua

construção para potencializar separação assimétrica de corpos merecedores de dignidade. As

vidas dos indígenas tendem a serem mais precarizadas em termos, por exemplo, de acesso a

direitos e a espaços por parte do Estado (BUTLER, 2015) do que outras. Como nos co-move

Butler em “quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”, em um dos itens nomeado

como “apreender a vida”, a despensadora das ontologias principiológicas, para re-pensarmo-

nos na interação com esses jovens indígenas:

Se queremos ampliar as reivindicações sociais e políticas sobre os direitos à proteção e o exercício do direito à sobrevivência e à prosperidade, temos antes que nos apoiar em uma nova ontologia corporal que implique repensar a precariedade, a vulnerabilidade, a dor, a interdependência, a exposição, a subsistência corporal, o desejo, o trabalho e as reivindicações sobre a linguagem e o pertencimento social (BUTLER, 2015, p.15).

A imagem-movimento-da-pintura na parede abre alas à escola Pa´i Chiquito e nos re-

mete a como os saberes dos meses que encadeiam e enlaçam a passagem do ano-calendário-

judaico-cristão para os Kaiowá se de-cantam pelo sabores-sentidos das cores engendrando

novas tessituras significativas que subvertem a lógica eurocêntrica e apontam para a quebra da

hegemonia do discurso logocêntrico homogeneizador historicamente constituído. Ali os

meses não apenas passam a ser enunciados a partir da língua nativa guarani, mas

principalmente evocam ciclos da vida que permitem uma compreensão de sentidos outros que

não aqueles da temporalidade ocidental (Fabian, 2013). Tempos e cores que se replicam nas

frutas ainda por eles comidas-colhidas, e no círculo virtuoso nietzschiano de como dentro da

prisão-escola eles se reinventam e a reinventam.

Acompanhemos alguns desses sentidos por eles atribuídos aos seus sentidos

propulsores de ações e agenciamentos no espaço em tela.

no e como coletivo (ver VIVEIROS DE CASTRO, 2016 para os sentidos potencializados nos sentidos dos direitos coletivos envolvendo indígenas).

Com relação às mensagens castradoras havia muitas com conteúdo enunciando

interdições: “não se pode usar o computador da secretaria para trabalhos pessoais”, “não se

pode colocar os capacetes de motocicletas em cima dos assentos existentes na secretaria”,

“não se pode isso”, “não se pode aquilo”...Muitos “nãos”, muitos “não pode”.

Muitas palavras interditas, mal-ditas. Se levarmos em conta, como afirma Myriam

Szejer (1999) que o sujeito da psicanálise é o sujeito da linguagem, fica4 a pergunta: mas

quem tem o direito de ser sujeito? Se a linguagem nos torna sujeitos, não existem processos

político-sociais, e não apenas psíquicos, que negam o acesso à linguagem? À fala? À

capacidade de ser, de tornar-se sujeito? Num contexto do “não pode”, “não faça”, “não é

permitido”, de uma permanente interdição, negação do outro, não há espaço para a existência,

ou pelo menos não a existência autônoma. Não se daria aí a emergência de regime de verdade

que busca produzir um su-jeito sem palavras? Haveria um sujeito sem palavras, já que nos

instituímos e somos instituídos pelas palavras5?

Durante o trabalho de campo, acima relatado ou atado em relatos, ocorreram duas

situações que consideramos paradigmáticas: uma delas referente a uma fala feita pelas

crianças indígenas durante uma atividade de desenho que realizávamos e outra diretamente

relacionada ao comportamento dos mesmos durante o intervalo para o lanche – sob os

disparos indeléveis da sineta do “recreio” (re-creio onde eles não só creem como operam uma

forma lúdica de circular correndo e muito pelo espaço de fora da escola). Logo que

começamos o trabalho, em um clima bem descontraído, as crianças e jovens estavam bem à

vontade com nossa presença.

4 De tudo como escreve de-clamando Carlos Drummond de Andrade, em Resíduo, “fica sempre um pouco de tudo”. 5 Vem à mente a instigante fala de Joziléia Jagso Inácio Jacodsen em duas mesas-redondas na semana de antropologia da UFPR, ocorrida em setembro último. Ao tocar na questão da permanência e ingresso dos indígenas nas pós-graduações stricto sensu Brasil, ainda não afora, ela mencionou o quanto o aparelho do Estado brasileiro é perverso. Isto porque exigiu do índio ao longo do processo de integração – ou genocídio escancarado como projeto político – apre(e)nder e manejar o idioma português e não falando sua língua nativa. A antropologia explorará o quanto falar de etnicidade é falar de linguagem (CUNHA, 2009), e então das fronteiras sempre fluidas entre o “eu” e o “outro” que nas sociedades indígenas em regra se dá condicionado à relação. Mas mais do que isto, o quanto quem detém o poder pode re-produzir vida mais precária (BUTLER, 2003) ainda a partir da negação de uso da linguagem falada, como no caso dos indígenas. Afinal como nos acalenta Walter Benjamin, não há produção do humano se não há (re)produção de memória (1987).

Imagem-em-ação 2

As crianças brincavam o tempo inteiro e, nesse aspecto, é possível observar que a

jocosidade como um elemento constantemente presente do processo de interação. Tal

comportamento não está livre de tensionamentos, principalmente com relação aos professores

não indígenas. Há certa exigência de que as crianças e jovens mantenham uma seriedade.

Como esquecer o formalismo cartesiano que se apresenta em nossas escolas, e quiçá a

indígena não esteja ilesa?

Certamente uma transposição de um modelo que se não impede de todo a fala, a

engessa, a normatiza e, por que não dizer, a medicaliza à medida que normaliza – evocamos

Georges Canguilhem, um dos mestres de Foucault e outros dos rebeldes franceses, que em O

Normal e o Patológico sinaliza que o normal é aquele capaz de produzir norma, algo que num

dado contexto o patológico não o é (ainda). Em relação a esse ponto, alguns comentários

chamaram muito nossa atenção: quando os indígenas eram interpelados pela professora a se

“comportarem” e prestarem atenção no que estávamos falando, eles, em tom de “brincadeira”

começaram a acusar uns aos outros de não ter tomado o medicamento. Isso não passou

despercebido por nós. Naquele mesmo momento tentamos instigá-los a falar mais e, no

entanto, não entraram em mais detalhes.

Na semana seguinte durante outra atividade, voltaram a mencionar a tal falta de

“tomar o comprimido” para aqueles que estavam na agitação dando vida à sala de aula tão

prisional em suas carteiras que lá não são do modelo militar da continência. Se não, vejamos,

dois modelos bem distintos em proposta que recheiam salas escolares e universitárias. Em

comum, ambas tornam des-confortável a presença e a permanência no contexto que produz

com texto entre os diálogos permeados por silenciamentos entre as gentes-agentes que lá

disparam agenciamentos.

Imagem-em-ação 3

Fizemos uma nova tentativa de tentar estimulá-los a falar mais sobre isso. Afinal o que

era o comprimido? Quem precisava tomar o comprimido? Por que tinham que tomar? Quem

orientava tal procedimento? A resposta foi imediata: era preciso tomar o medicamento para se

controlar. Há muitos relatos de medicalização dos indígenas na cidade de Dourados - embora

até o momento não haja nenhuma pesquisa a esse respeito - e que geralmente são associados

à algumas situações de violência ou aos casos de suicídio. Em todos eles, a noção de que os

indígenas precisam ser contidos, estão desequilibrados, doentes, etc. Em todas essas

representações uma noção de patologização do sujeito que está à margem, com vidas

precarizadas pelo Estado e que trans-bordam as contenções das estruturas estatais. Cabe

compartilhar que há algumas pesquisas que suscitam justamente o crescente ato de

medicalização dos detentos do sistema carcerária brasileiro. O movimento talvez seja

potencializar os múltiplos sentidos dos agitos, dos gritos, do convite à decantação da

expressão LOU-CURA-ME, dessencializando a pulsão de morte contida nas seringas que

contêm os contidos remédios.

Uma breve digressão às contações de Hestórias de uma das a(u)toras, talvez valha à

pena, com a reprodução da ligação entre elx, Simone Becker e sua avó Alzira Becker6, em

meio às tessituras dos trilhares-com-partilhares do que há de fatal ou de fado, no amor-

amizade mediadas pelas cartas de tarot ofertas por Alzira à Simone:

Aliás, outra pessoa e segunda história importante na minha trajetória – porque ligada às curas pela palavra, foi a minha avó paterna, Alzira, que em “seu ser sendo” de alemã com o seu respectivo dialeto, manuseando comedidamente o português, colocava o tarot tanto para ela mesma –subvertendo as regras das tarólogas, quanto para outros da família. Ao ler as cartas para mim, fazia questão de enfatizar a beleza da carta do “louco” com toda a sua simbologia atrelada à criatividade e nunca ao sentido negativo e patológico do termo. Afinal, ela me mostrava esta imagem e interpretava dizendo que o louco é o andarilho que anda pelas ruas, pelas cidades, pelos espaços levando consigo uma trouxinha do que é indispensável enquanto bagagem para a viagem...em especial, ela remarcava a necessidade de ser louca em situações de conflitos que nos acompanham vida afora, ou seja, perante o inevitável que são as situações conflitantes de nossa vida, me incitava a deixar o lugar acomodado que eu me encontrava em situações de conflito para que eu tentasse enxergar por outros vieses o evento que deixaria de ser o mesmo se eu mudasse o lócus do meu olhar e/ou da minha escuta. Assim, tal como Foucault inspirado em Nietzsche fará na história da loucura, minha avó, Alzira com o tarot seu, cigano/Marselha, desde cedo mostrou-me o quanto ser louca é ser fora de série. Incitava-me a ser sempre fora de série, fora do comum, ser louca para lidar,

6 Trecho da palestra de Simone Becker no espaço Ágora realizada em março de 2016, e intitulada: Flanando por alguns ditos e escritos de Michel Foucault: do “normal” ao “patológico” lembrando da (lou)cura.

sobretudo, com as situações de conflito que recheiam o nosso bem-viver. Não por acaso, a carta do louco é a única sem numeração no tarot (nos que há, ele tem o número 0)...percebam se no sistema capitalista a maioria da normalidade é passível de ser formatada apertando e rosqueando e desparafusando parafusos – no sistema em série fordista, tapados com uma viseira, ser louco é sair deste comum...pois a norma, como encanta Manoel de Barros, deveria ser sempre desfazer a norma...

Eis a belezura da lou-cura:

Imagem-ação-4

A segunda situação que muito nos chamou a atenção foi no momento do recreio

(intervalo para o lanche das crianças). Ao toque da sineta, as crianças e jovens saíram em

disparada para o pátio. Ali se mantiveram apenas até o momento em que comiam o lanche que

era distribuído para eles. Comendo muito apressadamente, o ato seguinte foi o de sair dos

limites do espaço da escola. A criançada parecia outra fora dos “muros” - contenções da

escola. Nada se comparava ao comportamento reprimido visto em sala de aula. Um imenso

contraste entre uma vida que pulsa (fora) e uma “morte” que tenta se estabelecer nos corpos

docilizados pelo sistema de ensino (dentro).

Quando sabor e saber deixam-voltam a rimar. Certamente não podemos ignorar as

resistências (re-existências) que se operam no interior do sistema (as brincadeiras jocosas, a

fala em guarani, a corrida para fora do espaço escolar, o adormecer em meio às falações

disciplinadoras nas aulas), mas é visível que é fora da estrutura institucional que a “fala”

emerge, as palavras se tornam bem-ditas, o corpo se rizomativa e o amor fati se estabelece. O

amor fati à la Nietzsche acaba por ser a capacidade de nós, animais humanos, nos deixarmos

impactar (pacto interno) pelos sentidos dos acontecimentos cotidianos que nos afetam nos

sentires.

Palavras que também se costuram tecendo tessituras imagéticas. Se o simbólico nos

institui, em especial, para interagirmos nos enlaçando ao outro que de nós diverge, por mais

projeções que produzamos, esse simbólico não se faz apenas pela falação atada aos signos

grafados ou gravados das letras – do alfabeto. Faz-se por silêncios (“repare bem no que não

digo” leminskeando), por imagens, por gestos, enfim, por colocar nas relações estabelecidas a

expressão de nossas posições de sujeitos no mundo. E então, des-pensemos o processo de

educação, porque algumas de nossas tantas tocas-prosas prenhes de significados se deu

quando em roda estávamos em meio à contação de Hestórias. Numa delas, um dos jovens nos

alertou que as estórias sobre o lobisomen – (identificado com o cunhado-estrangeiro-aliado7),

eram lendas e não histórias. Afinal, era assim que a professora tinha “ensinado”. Num

contexto que tende a constituir corpos docilizados a passagem da negação da palavra à

“fabulação” do imaginário e práticas sociais remete à produção e naturalização de um sujeito

assujeitado. Em cena formas sutis de violência que negam a alteridade ao Outro-mesmo.

7 Claude Lévi-Strauss considerado o antropólogo do século a partir da teoria da aliança, inspirado no dom maussiano, sugere que as sociedades são instituídas pela troca de mulheres, não significada como objeto-coisa, mas agente que é tanto agenciada quanto se agencia no flanar por entre diferentes famílias, tendo o casamento selado uma em comum. Ao invés de guerrear, estabelece-se a paz por intermédio do casamento.

Educar' vem do latim educare, por sua vez ligado a educere, verbo composto do

prefixo ex (fora) + ducere (conduzir, levar), significando 'conduzir para fora', ou seja, preparar

o indivíduo para o mundo. Um indivíduo relacional, produzido na unicidade da troca entre

dois diferentes, correspondendo à fórmula n-1 deleuze-guattariana. O que seria essa fórmula?

“O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída: escrever a n-1” (FOUCAULT, 2013, s/p).

A proposta da multiplicidade faz enlace como se rizoma8 fosse com as noções de

Nietzsche ligadas ao colocar em perspectiva, pluralizando os sentidos experimentados na

interação dos contatos com os agentes e os seus agenciamentos espraiados no papel (adentro e

afora). Nesse sentido, como se Gregório de Matos fossem, os jovens da Pa´i Chiquito

subvertem o modelo domesticador de corpos e dilacerador de sabores nos saberes que é o

panóptico escolar. Subversão que se dá com eles não escondendo quando dormem, dis-

persam, riem, sorriem...

8 Como raiz de bulbos que não detém uma entrada e uma saída, posto que se impõe como agenciamentos que se espraiem solo adentro-afora-transbordando sua própria estrutura-forma

Imagem-em-ação 5

Descolada da estrutura física, prédio da Escola, há um espaço outro ao seu lado que

imprime à roda, sob as coberturas de palhas, uma dinâmica outra da tentativa de resgatar o

sabor do saber. Isto porque mescla tipos de mesas-cadeiras menos ofensivos e impostores de

imposições próprios do modelo militar, como adiante retomamos. No círculo a palavra tende a

circular e enfim, possibilidades de expressões e interações menos corriqueiras na cadência da

constância da disciplina ditando os exames escolares.

Imagem-em-ação 6

Rememoremos num movimento de amenizar a pobreza de nossos replicares de

experimentações da vida vivida vívida, que a palavra saber rima etimologicamente com a

sabor. Dito de maneira menos hermética e mais poética, ambas in-corporam origens de

sentidos similares. Segundo o "Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa" de José Pedro

Machado, a palavra saber vem do latim 'sapere', que significa «ter gosto; exalar um cheiro, um

odor; perceber pelo sentido do gosto; fig., ter inteligência, juízo; conhecer alguma coisa,

conhecer, compreender, saber". A palavra sabor, segundo o mesmo dicionário, deriva do latim

'sapore-', que quer dizer "gosto, o sabor característico de uma coisa, em sentidos próprios e

figurado; no pl., coisas de bom gosto; odor, perfume; gosto, acção de provar; (...)."

Imagem-em-ação 7

Esse cenário acima narrado, nos ajuda a pensar em que medida há um contexto de

medicalização do corpo, do sujeito. Medicalização essa entendida no sentido amplo. Pensada

a partir da perspectiva foucaultiana, poderíamos até dizer que há uma tentativa de docilização

dos corpos constituída a partir de um aparato biopolítico. Saber-poder, que opera endógena e

exogenamente, ou seja, no interior dos corpos e consciências, por meio da medicalização em

si, mas também nos comportamentos e subjetividades, através de um aparato

institucionalizante (escola, hospital/posto de saúde, etc).

Para Eduardo Sá (2008) a escola não tem sido uma amiga para as crianças. Além

disso, segundo ele, na sociedade contemporânea o trabalho tem assumido o protagonismo e os

vínculos têm se precarizado. Não poderíamos dizer, a partir disso, que numa sociedade

marcadamente virtualizada, individualista e medicalizante, como a atual, há uma intensa

criação e proliferação de subjetividades assujeitadas? Mecanismos mais sutis e eficazes,

sobretudo por seu caráter de dissimulação ao apontar para práticas ditas “inclusivas” mas que

no fim geram exclusão. Se em algum momento de nossa história a criança já foi um adulto em

miniatura (ARIÈS, 1981), hoje ela é uma objeto manipulável aos desejos de adultos, desejos

que as tornam praticamente um robô. E isso vem atrelado não apenas à criação de novos

comportamentos, desejos, expectativas, enfim, subjetividades, mas também da produção de

novas patologias: Transtorno do Déficit de Atenção (TDA), Transtorno do déficit de Atenção

com Hiperatividade (TDAH), Anorexia, Bulimia, Stress, dentre outras. Mas afinal, são

“crianças doentes” ou adultos adoecedores? Qual tem o papel da escola nesse processo? Há

um protagonismo da autonomia ou da medicalização-docilização do sujeito?

Enfim, esses e outros dilemas nos apontam para a necessidade de uma reflexão sobre

o lugar da infância – sem infantes no sentido literal - e juventude no mundo contemporâneo

no campo das ciências humanas e da saúde, mas também nos interpelam a pensarmos nos

desafios de um fazer antro-poético (e não lógico) diante dessas novas subjetividades que tem

engendrado formas perversas de assujeitamentos desses sujeitos. Quais estratégias de

resistência para o enfrentamento dos dispositivos que buscam negar a fala, o direito ao tornar-

se sujeito? Nesse cenário, os indígenas têm muito a nos ensinar sobre o bem viver, sobre o

Teko Porã. Mas estamos dispostos a dar-lhes a fala? Ou mesmo a escutá-los? Eis o desafio...

REFERÊNCIAS

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