darwinismo literário - o globo

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PROSA & VERSO PROSA & VERSO SÁBADO, 30 DE DEZEMBRO DE 2006 O GLOBO PROSA & VERSO PÁGINA 1 - Edição: 30/12/2006 - Impresso: 29/12/2006 — 01: 48 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO Ficção: Contos e romance do mineiro Wander Piroli 5 José Castello: Crítico será o novo colunista do Prosa & Verso 6 Miguel Conde N um ensaio intitulado “Literatura, ciência e natureza humana”, o escritor inglês Ian McEwan observou: “se lemos relatos sobre a observação sistemática e não-intrusiva de grupos de bonobos (N.R: uma espécie de chimpanzé), vemos ensaiados todos os prin- cipais temas do romance inglês do século XIX”. O artigo de McEwan foi publicado em 2005 na coletânea “The li- terary animal”. Organizado pelo psicólogo David Sloan Wilson e pelo crítico literário Jonathan Gottschall, o livro reúne ensaios de críticos que procuram aplicar princípios da biologia evolutiva à análise de obras literárias. Ainda marginais na comunidade acadêmica, esses pesquisadores têm sido chamados de darwinistas literários, embora alguns deles prefiram nomes al- ternativos, como evocriticismo. — As premissas básicas do darwinismo literário são que a literatura surge das necessidades da natureza humana e satisfaz essas necessidades, que ela repre- senta o comportamento humano, que o comportamento humano é fundamental- mente moldado por uma estrutura evoluída e adaptada de disposições codificadas geneticamente, e que o conhecimento científico moderno sobre a natureza humana pode nos dar um bom contexto básico para entender a literatura — diz Joseph Carroll, pesquisador da faculdade de Missouri, St. Louis. Embora existam discordâncias entre os integrantes do movimento, a crença fun- damental de todos eles é que o homem não é uma tabula rasa inteiramente deter- minada pelos ambientes sociais, mas que há uma natureza humana universal, con- figurada pela evolução da espécie, e de que essa natureza, nas diversas inflexões que ela assume em épocas e lugares distintos, é o tema principal da literatura. “Não seria possível ler e apreciar literatura de um tempo distante do nosso, ou de uma cultura profundamente diferente da nossa, a não ser que partilhássemos de algum fundamento emocional comum, algum profundo reservatório de pressupos- tos, com o escritor”, diz McEwan. “Podemos dizer que a literatura exemplifica a natureza humana, mais do que a define”. Continua na página 2 Darwinismo literário Críticos tentam aplicar biologia evolutiva à análise da ficção Cavalcante

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Page 1: Darwinismo Literário - O Globo

PROSA&VERSOPROSA&VERSOSÁBADO, 30 DE DEZEMBRO DE 2006

O GLOBO � PROSA & VERSO � PÁGINA 1 - Edição: 30/12/2006 - Impresso: 29/12/2006 — 01: 48 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

Ficção: Contos eromance domineiro WanderPiroli � 5

José Castello:Crítico será onovo colunista doProsa & Verso � 6

Miguel Conde

Num ensaio intitulado “Literatura, ciência e natureza humana”, oescritor inglês Ian McEwan observou: “se lemos relatos sobre aobservação sistemática e não-intrusiva de grupos de bonobos(N.R: uma espécie de chimpanzé), vemos ensaiados todos os prin-cipais temas do romance inglês do século XIX”.O artigo de McEwan foi publicado em 2005 na coletânea “The li-terary animal”. Organizado pelo psicólogo David Sloan Wilson epelo crítico literário Jonathan Gottschall, o livro reúne ensaios de

críticos que procuram aplicar princípios da biologia evolutiva à análise de obrasliterárias. Ainda marginais na comunidade acadêmica, esses pesquisadores têmsido chamados de darwinistas literários, embora alguns deles prefiram nomes al-ternativos, como evocriticismo.

— As premissas básicas do darwinismo literário são que a literatura surge dasnecessidades da natureza humana e satisfaz essas necessidades, que ela repre -senta o comportamento humano, que o comportamento humano é fundamental-mente moldado por uma estrutura evoluída e adaptada de disposições codificadasgeneticamente, e que o conhecimento científico moderno sobre a natureza humanapode nos dar um bom contexto básico para entender a literatura — diz JosephCarroll, pesquisador da faculdade de Missouri, St. Louis.

Embora existam discordâncias entre os integrantes do movimento, a crença fun -damental de todos eles é que o homem não é uma tabula rasa inteiramente deter-minada pelos ambientes sociais, mas que há uma natureza humana universal, con -figurada pela evolução da espécie, e de que essa natureza, nas diversas inflexões queela assume em épocas e lugares distintos, é o tema principal da literatura.

“Não seria possível ler e apreciar literatura de um tempo distante do nosso, oude uma cultura profundamente diferente da nossa, a não ser que partilhássemos dealgum fundamento emocional comum, algum profundo reservatório de pressupos-tos, com o escritor”, diz McEwan. “Podemos dizer que a literatura exemplifica anatureza humana, mais do que a define”. Continua na página 2

Darwinismo literário Críticos tentam aplicar biologia

evolutiva à análise da ficção

Cavalcante

Page 2: Darwinismo Literário - O Globo

2 � PROSA & VERSO Sábado, 30 de dezembro de 2006O GLOBO.

O GLOBO � PROSA & VERSO � PÁGINA 2 - Edição: 30/12/2006 - Impresso: 29/12/2006 — 01: 48 h PRETO/BRANCO

DARWINISMO LITERÁRIO • Continuação da página 1

Críticos afirmam que pós-estruturalismo resultou em relaxamento no rigor e na clareza de pesquisas acadêmicas

Reação ao construtivismo social extremadoSegundo seus integrantes, odarwinismo literário é tambémuma reação à crítica hoje domi-nante nas universidades, maisinteressada nas relações entreos textos e as construções cul-turais. Essa escola, que os ame-ricanos chamam simplesmente“Teoria”, enfatiza os aspectosideológicos da linguagem e con-sidera aproximações entre o cul-tural e o natural como potencial-mente coercivas e reacionárias.

Além disso, pós-estruturalis-tas como Derrida empreendemuma leitura detalhada de obrasteóricas e literárias para de-monstrar ambiguidades e in-coerências que os próprios au-tores dos textos não percebem.Assim, a leitura crítica é conce-bida como um ato criativo, emque o fundamental não é deter-minar o sentido (inapreensível)do texto, mas estabelecer umdiálogo entre o crítico e o autor.Joseph Carroll e outros estudio-sos acreditam que essa posiçãoresultou num relaxamento dospadrões de clareza e rigor noambiente acadêmico, validandoleituras mais interessadas nasconsiderações do crítico doque nas intenções originais doautor da obra.

Crítica é chamada de proto-fascista em encontro

O darwinismo literário pre-tende não apenas mostrar quehá um mundo fora do texto, mastambém estabelecer uma possi-bilidade de comparação entrediferentes interpretações deuma obra literária. Uma preten-são de objetividade e rigor cien-tífico que a muitos críticos pare-ce descabida, ou mesmo antide-mocrática.

“Num encontro da ModernLanguages Association (N.R:órgão que reúne pesquisadoresde literatura), alguém se levan-tou e me chamou de proto-fas-cista”, disse à revista “Nature”a professora Nancy Sterling,especialista em literatura ro-mântica na Universidade deNova Orleans.

A associação entre darwinis-mo e eugenia, estabelecida apartir do horror nazista, talvezseja um dos motivos da persis-tente desconfiança, entre os es-tudiosos de ciências humanas,às abordagens que tentam pen-sar o homem a partir de sua bio-

logia. Mesmo um pensador co-mo o antropólogo francês Clau-de Lévi-Strauss, para quem “ofim último das ciências” seria“reintegrar a cultura na nature-za, e, finalmente, a vida no con-junto de suas condições físico-químicas”, tem sido um críticocético da sociobiologia.

Isso não tem impedido, po-rém, que tentativas de aproxi-mação tenham sido feitas, prin-cipalmente pela psicologia evo-lutiva (que pensa as funções docérebro humano em termos deadaptações evolutivas) e pelaneurobiologia, que estuda a ba-se fisiológica de estados subje-tivos como o ódio, o amor, osentimento estético etc. Inevita-velmente, ao estudar a mente dohomem, pesquisadores dessasáreas levantaram questões an-tes consideradas próprias dasciências humanas.

No caso da literatura, issotem ocorrido não apenas naanálise de obras literárias, masna reflexão sobre a própria na-tureza da poesia, da ficção e, de

forma mais geral, da arte. Se éverdade que o ser humano foimoldado num processo decompetição pela sobrevivênciae seleção natural, se perguntamos evolucionistas, porque algo

aparentemente tão inútil quan-to a arte tornou-se tão impor-tante para nós?

As respostas variam entreos que consideram a arte umsubproduto acidental da evo-

lução, e os que acreditam queela serve a funções específi-cas, que conferem ao homemuma vantagem evolutiva. Opsicólogo Steven Pinker, de-fensor da primeira hipótese,criou a metáfora do “cheese-cake” para a mente. A arte, co-mo o açúcar refinado, seriaapenas uma concentraçãoacentuada de certos elemen-tos agradáveis ao nosso cére-bro. Já o psicólogo GeoffreyMiller acredita que a inteligên-cia criativa, o humor e tam-bém a arte se desenvolveramcomo formas de sedução se-xual — teoria que talvez nãosoe tão despropositada paraalguns artistas. Em “The litera-ry animal”, Brian Boyd, biógra-fo de Nabokov e um dos maisrespeitados estudiosos do es-critor russo, faz uma crítica dediferentes explicações e pro-põe que a arte, em sua origem,é um meio de moldar e com-partilhar atenção, que servepara fortalecer a coesão sociale estimular a criatividade. Nu-

Busca pelos fundamentos de todos os ramos do saberColetânea tem a difícil meta de criar paralelos entre produções da evolução orgânica e as da mente humana

The literary animal, de DavidSloan Wilson e JonathanGottschall (orgs.). NorthwesternUniversity Press, 336 páginas. US$29,95

Silviano Santiago

O biólogo e entomolo-gista norte-americanoEdward O. Wi lson(1929), estudioso do

comportamento social das for-migas e inventor do conceitode biodiversidade, tornou-se,no novo milênio, uma presençaalvissareira para os teóricos daliteratura. Tendo dedicado a vi-da à pesquisa empírica, sendoautor do clássico “Sociobiolo-gia, uma nova síntese”, o ento-mologista se interessou tam-bém por um diálogo teórico efrutífero entre as grandes rami-ficações do conhecimento hu-mano, como atesta “A consi-liência” (traduzido pela editoraCampus). Na terceira idade, oestudioso do comportamentosocial das abelhas e dos cupinspassou a se empenhar pelo co-nhecimento do que chama de“reino literário”.

Estaríamos diante de umanova escola crítica, a dos estu-dos literários darwinianos? Avocação e o pendor humanospara a literatura e a arte pode-riam ser julgados com proprie-dade como autêntico proble-ma evolucionista?

Sob a co-responsabilidadede Wilson, foi publicada nosEstados Unidos uma aguarda-da antologia de ensaios, “The

literary animal” (O animal lite-rário). A questão que intrigaos vários especialistas e cola-boradores da coletânea é ainadiável conversa entredarwinianos convictos e cons-trutivistas sociais pós-moder-nos com vistas à busca da“consiliência”. Isto é, da provade que tudo no mundo está or-ganizado segundo um peque-no número de leis naturaisfundamentais, que constituemos princípios subjacentes a to-dos os ramos do saber. Naqualidade de “última fronteiranos estudos evolucionistashumanos”, o texto literáriovolta à tona entre os darwinia-nos. O novo interesse deles é ode estabelecer paralelos entreas produções da evolução or-gânica, expressas pelos ecos-sistemas, e as produções damente humana, expressas pe-la cultura. Não é fácil a tarefa.

A “Ilíada” como um“drama de macacos nus”A presente coletânea é es-

crita numa linguagem acessí-vel ao leitor instruído. Mas eledeve se ligar ao fato de que aciência, antes de ser um tema,é um método. Ficar ainda aten-to ao fato de que a alta volta-gem da pesquisa inovadoranão repousa na concordânciaentre as vozes dos especialis-tas, mas no desacordo frutífe-ro entre elas. As melhores des-cobertas científicas (e artísti-cas) são as que levantam no-vas questões e estimulam ou-tras investigações.

Instruído, ligado e atento,mas também curioso e toleran-te é o novo pesquisador em le-tras que os vários ensaios dra-matizam. Veja-se o caso exem-plar de Jonathan Gottschall, re-tratado no prefácio na épocaem que ainda era pós-graduan-do em letras. Cai-lhe às mãos olivro “O macaco nu”, de Des-mond Morris (Record), e umprofessor exige no curso de le-tras clássicas a leitura da “Ilía-da”, de Homero. Por que nãotentar compreender o poemaépico como “umdrama de macacosnus”? é o que Gotts-chall se pergunta.Empertigados, colo-ridos, belicosos,adornados de tatua-gens, a urrarem opróprio valor, lá es-tão os machos ho-méricos a se envol-verem em conflitospor controle territo-rial, escolha de par-ceiros sexuais e acúmulo de re-cursos materiais.

Empolgado pela confluênciados dois livros com os cursosem psicologia evolucionistaque seguia, ele procura o pro-fessor de literatura inglesa elhe propõe um ensaio em que“os conflitos masculinos nopoema de Homero seriam ana-lisados da perspectiva da teo-ria e da pesquisa evolucionis-tas”. Está colocado o alicercede uma nova metodologia nosestudos literários. A compre-ensão dos fundamentos evolu-

cionistas do comportamentohumano, da psicologia e da cul-tura autorizaria os pesquisado-res universitários a ganhar no-vas e poderosas perspectivasna análise da forma e da natu-reza da narrativa literária?

O professor rejeita o projeto,demonstrando a animosidadeque — julgam os autores dosensaios — caracteriza mais oterritório dos literatos do quedos evolucionistas. São aquelesque preservam o objeto literá-rio das mãos dos darwinianos

como a uma caixade Pandora. Abertapelos estudos literá-rios evolucionistas,os malefícios se es-palhariam pelospós-graduandos deLetras e trariam in-contáveis prejuízosà disciplina. Não é oque o romancistaIan McEwan, umdos colaboradores,prevê nas páginas fi-

nais do seu ensaio, quando à se-melhança do graduando, anali-sa trechos de Homero com anova metodologia.

Filósofos da arte, como Fre-derick Crews ou Giorgio Agam-ben (ver “Il aperto”, ainda semtradução em português), são naverdade um tanto céticos em re-lação à nova metodologia. Se-gundo eles, os estudos literáriosnão são sobre leis regidas pelofuncionamento mental, mas so-bre um corpo de textos únicos eheterogêneos, como, aliás, Ro-land Barthes provou à exaustão

no ensaio “S/Z”. Como conciliara singularidade do texto literá-rio com a sua inscrição teóricanuma determinada classe, numdeterminado “reino” governadosegundo leis científicas? Comoconciliar o estilo pessoal consti-tutivo duma obra de arte comos resultados que, na observa-ção, têm de ser repetitivos e en-fadonhos? Ou como conciliar avisão estilizada e surpreendentede mundo, que se depreendedum romance ou dum poema,com as medições testadas porinferências estatísticas?

Um narrador darwinianoem Clarice Lispector

No entanto, escritoras do por-te de Clarice Lispector nos sur-preendem pela vocação darwi-niana aos caracterizar narrado-res e personagens. Na crônica“Bichos”, lê-se pelo lado doavesso: “Não ter nascido bichoparece ser uma de minhas se-cretas nostalgias. Eles às vezesclamam do longe de muitas ge-rações e eu não posso respon-der senão ficando desassosse-gada”. E pelo lado direito: “Co-nheci uma mulher que humani-zava os bichos, conversandocom eles. Mas eu não humanizoos bichos, acho que é uma ofen-sa”. Como analisar apropriada-mente o narrador/personagemdarwiniano de Clarice?

Os sucessivos ensaios de “Oanimal literário” procuram res-ponder a esse tipo de indagaçãoe ao conflito entre os darwinia-nos e os construtivistas sociais.Eles estão divididos em três se-

ções. A primeira é intitulada“Evolução e Teoria literária”,com destaque para os ensaios“Literatura, ciência e a naturezahumana”, do já citado IanMcEwan, e “De Jacques Lacan aDarwin”, do filósofo e jornalistaDylan Evans, que liquida a teorialacaniana com golpes de, per-doem o trocadilho, macaco nu.A segunda seção tem por título“O enigma evolucionista da ar-te” e o destaque vai para BrianBoyd, professor de literatura,com o ensaio “Teorias de arteevolucionistas”. A terceira e úl-tima seção se intitula “Teoriadarwiniana e métodos científi-cos”. Desta seção, o mais suges-tivo tem um longo título, que va-le a pena ser citado: “Estudo li-terário quantitativo: um mani-festo modesto e o exame das hi-póteses em estudos feministassobre contos de fadas”. Seu au-tor, o também professor de lite-ratura Jonathan Gottschall.

Ao final da leitura do livro ésurpreendente o modo como agrandeza de Clarice se soma àdo romancista inglês IanMcEwan, autor de notável lei-tura biográfica de CharlesDarwin, onde a análise dasemoções humanas pelo cien-tista se soma a uma intrépidaviagem do romancista pelasnossas reações corporais ditasespontâneas. A certo momen-to, ecoando Darwin, perguntaele: “Nós aprendemos a sorrir,ou o sorriso é algo inato?” �

SILVIANO SANTIAGO é crítico eescritor

ma abordagem mais especifi-camente literária, Joseph Car-roll argumenta que a literaturatem um valor evolutivo por-que cria um “mapa cognitivo”,quer dizer, permite que enten-damos melhor a nós mesmos ea outras pessoas. Outra críticaevolutiva, Michelle Sugiyama,diz que a capacidade de fabu-lação, de imaginar eventos fic-cionais, confere ao homem acapacidade de antecipar no-vas situações e desafios.

Até agora, o único livro decrítica biológica (para usar umtermo mais amplo) publicadono Brasil foi “Os ovários de Ma-dame Bovary” (Relume Duma-rá), de David Barash e NanelleBarash. A obra, porém, é tidacomo um exemplo de uso rudi-mentar da teoria, pois faz pou-co mais do que repetir, a respei-to de personagens literários, oque a biologia já diz sobre osanimais. Pensar a cultura a par-tir de um determinismo genéti-co seria um erro, diz Boyd.

— Como leitores, nós trata-mos os personagens como“objetos intencionais”, comoos filósofo diriam, ou como al-go a respeito do qual temospensamentos e sentimentos,em linguagem comum. Nóstambém, a menos que sejamosleitores ingênuos, pensamosem termos das intenções doescritor. Um não exclui o outro— explica.

Sobrevivência do grupo nomeio literário é incerta

Os darwinistas literários têmatraído a atenção de publica-ções importantes, como o “NewYork Times” e as revistas “Scien-ce” e “Nature”. Mas a sobrevi-vência deles em seu própriomeio, onde ainda são minoritá-rios, não parece garantida.

— A maior parte da pesquisaacadêmica literária ainda estábaseada em fundações de umconstrutivismo social “duro” —— lamenta Gottschall. — Nãohá dúvida quanto a isso: este éum paradigma defunto. Entãoeu não estou insistindo (oumesmo querendo) que todosacadêmicos leiam como eu.Mas eu realmente quero queeles se atualizem teoricamente.Se nossa área fizer isso, vai selivrar de um monte de erros fa-cilmente evitáveis. (M.C.) �

Re p r o d u ç ã o

CHRISTOPHER LAMBERT em cena do filme “Greystoke”: críticos enfatizam importância da evolução na formação da psicologia humana

DIRETO À FONTE

� DENIS DUTTON: Professorde filosofia na Universidadede Canterbury, Nova Zelân-dia, o crítico literário é tam-bém editor do site Arts &Letters Daily (aldaily.com).Dutton comenta diversos li-vros sobre darwinismo lite-rário e teorias da arte basea-das na psicologia evolutivaem: denisdutton.com.

� JOSEPH CARROLL: Consi-derado um dos melhorescríticos entre os darwinis-tas literários, Carroll tam-bém se dedica a criticar oque ele considera serem in-

consistências do pós-estru-turalismo. Artigos, rese-nhas e capítulos de livrosescritos por Carroll podemser encontrados em: jcar-ro l l . n o t l o n g . c o m .

� NEUROESTÉTICA: D ir ig i-do pelo professor Semir Ze-ki, o instituto de Neuroesté-tica reúne pesquisadoresinteressados em estudar asbases biológicas do senti-mento do belo. Textos deintrodução ao tema e estu-dos mais especializados po-dem ser lidos em neuroes-t h e t i c s . o rg

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Page 3: Darwinismo Literário - O Globo

PROSA & VERSO � 3Sábado, 30 de dezembro de 2006 O GLOBO

O GLOBO � PROSA & VERSO � PÁGINA 3 - Edição: 30/12/2006 - Impresso: 29/12/2006 — 01: 49 h PRETO/BRANCO

LANÇAMENTOS

E N T R E V I S TA

Daniel Dennett

Enciclopédiade termoslógico -filosóficos,editada por JoãoBranquinho,Desidério Murchoe NelsonGonçalves Gomes• Editora MartinsFontes, 803 pgs •R$ 99,90

� A primeiraediçãobrasileira daEnciclopédia

revisa e amplia a edição portuguesapublicada pela Gradiva em 2001, em Lisboa.De caráter interdisciplinar, o volume,editado por dois portugueses (JoãoBranquinho e Desidério Murcho) e umbrasileiro (Nelson Gonçalves Gomes), traz606 verbetes escritos por 45 especialistasnos diversos temas, que vão da computaçãoà biologia, da matemática à psicologia.Segundo os editores, o volume “abrange, deforma introdutória, mas desejavelmenterigorosa, uma diversidade de conceitos,temas, problemas, argumentos e teoriaslocalizados numa área relativamente recentede estudos, os quais têm sido habitualmentequalificados como ‘estudos lógico-filosóficos’”. Contemplando tantoespecialistas como estudantes e iniciados, aEnciclopédia busca uma linguagemacessível, sem abandonar o rigor científico.

Rebelião em NovaYork, de Kevin Baker.Tradução de VitoriaMantovani • EditoraRecord, 700 páginas •R$ 69,90

� Em julho de 1863,quando o presidenteLincoln implementoua lei do alistamentoobrigatório, excetopara quem pagasseUS$ 300, as classesmais pobres(compostas em boaparte por imigrantesirlandeses e negros)se revoltaram epromoveram cincodias de tumultosviolentos emNova York.

O casamento, deNelson Rodrigues •Editora Agir, 270páginas • R$ 39,90

� Segundo título deRodrigues lançadopela Agir, que desdeagosto vemreeditando a prosado escritor. Oromance, de 1966,que chegou a sercensurado “pelatorpeza das cenas elinguagemindecorosa”, revira avida de uma famíliaa partir docasamento deGlorinha e Teófilo,este acusado pelomédico da noiva deser homossexual.

A prisão e a ágora,de Marcelo Lopes deSouza • EditoraBertrand Brasil, 632páginas • R$ 69

� Professor da UFRJ,o autor trata daquestão doplanejamentourbano a partir dasrelações de podergeradas nesseespaço. Partindo daconstatação queplanejar e gerir umacidade é gerenciartambém as relaçõessociais, Souza refletesobre diversosproblemas dasgrandes cidadescontemporâneas.

Dez provas daexistência de Deus,com seleção e traduçãode Plínio JunqueiraSmith • EditoraAlameda, 304 páginas •R$ 40

� A obra reúne textosclássicos da filosofia,de Aristóteles aHume, que tentaramresponder, emdiversos momentosda História, àpergunta “Deusexiste?” A ediçãotambém procuracontextualizar omomento histórico efilosófico em que osautores produziramos textos.

A vida que ninguémvê, de Eliane Brum •Arquipélago Editorial,208 páginas • R$ 32

� A jornalista gaúchareúne aqui 21crônicas-reportagenspublicadas em 1999na coluna “A vida queninguém vê”, nojornal “Zero Hora”.Em todas, a buscapelos acontecimentosque não viram notíciae pelos personagenscomuns, quaseanônimos. Elianeencerra o volumecom um texto inéditosobre o que chamade “olharinsubordinado”.

O cavaleiro daspalavras, de LuizAntonio Aguiar.Ilustrações de MarceloMartins • EditoraSaraiva, 80 páginas •R$ 22,40

� Em mais uma obradedicada ao públicoinfanto-juvenil, oescritor transformaum dicionário doséculo XIX comonarrador do livro. Eleconta sua aventuradesde a tipografia emLisboa, onde foiimpresso, até chegarao Brasil. E vai pararnas mãos de ninguémmenos que Machadode Assis.

DARWINISMO LITERÁRIO • Continuação da página 1

A natureza e a cultura em DarwinPara filósofo da mente, é possível estudar a civilização a partir de uma perspectiva biológica

Cannarsa Basso/Grazia Neri/Brainpix

DANIEL DENNETT: filósofo acredita que o pensamento deve ser estudado a partir de suas bases físicas

� Filósofo formado em Harvarde Oxford, Daniel Dennett pro-cura em seus trabalhos elabo-rar uma teoria da mente queseja fundamentada pela pes-quisa empírica a respeito dofuncionamento do cérebro.Dennett, cujo livro sobre reli-giões, “Quebrando o encanto”(Globo), está sendo lançado noBrasil, é influenciado peloadaptacionismo darwinista.Por e-mail, ele falou ao GLOBOsobre a importância de Darwinpara as ciências humanas.

Miguel Conde

O GLOBO: O senhor disse certavez que Darwin acabou com aseparação entre as ciências na-turais e as sociais. Por quê?DANIEL DENNETT: As ciên-cias sociais e as humanidadestratam de propósitos e senti-do — teleologia e intenciona-lidade — e as ciências naturaistratam de fenômenos que nãoexibem nem propósito nemsentido — as coisas simples-mente acontecem. Darwinmostra como o mundo naturalcriou o mundo de propósitos esentido, unificando, dessa ma-neira todos os fenômenos nu-ma perspectiva única.

� As primeiras tentativas dese aplicar o darwinismo aopensamento social foram mui-to rudimentares, não? Comoessas tentativas evoluíram aolongo do tempo?DENNETT: Sim, parece ser ine-vitável que as pessoas sempretestem primeiro as versõesmais simples de uma boa idéia.Depois, elas reconhecem queas coisas são mais complexas.B. F. Skinner, por exemplo, dissemuito claramente que o apren-dizado em qualquer organismotinha que ser realizado por umprocesso que era uma versãoacelerada da seleção natural,ocorrendo dentro do organis-mo individual, uma questão dese reorganizar o próprio siste-ma nervoso por meio de umprocesso de tentativa e erro. Oque ele não percebeu é que nãohá um processo desse tipo,mas muitos: desenvolvimento,assim como o aprendizado, edentro do processo de aprendi-zado toda uma seqüência deprocessos cada vez mais sofis-ticados. Mas todos envolvem oprocesso fundamental de gerar-e-testar, que é o algoritmo bási-co da evolução.

� Quais o senhor diria que sãoas principais descobertas fei-tas até hoje por pessoas quetentam aproximar os doiscampos?DENNETT: William Hamilton eRobert Trivers iniciaram exce-lentes explorações da evolu-ção da cooperação e do al-truísmo, e Richard Dawkins,com seu conceito de meme,mostrou como a própria cultu-ra poderia ter uma histórianão genética, mas ainda assimevolutiva, um melhoramentonotável em relação às tentati-vas de E. O. Wilson e Lumsdende cobrir a mesma distânciaentre cultura e genes. Agoraexistem diversos modelos deevolução cultural que estãosendo examinados.

� Parece haver mais neurolo-gistas se aventurando no cam-po das ciências humanas doque cientistas sociais utilizan-do pesquisas neurológicas emseu trabalho. O senhor con-cor da?DENNETT: Não estou certoquanto aos números, mas tal-vez você tenha razão. As pes-soas na neurociência cogniti-

va e campos relacionados es-tão chegando ao ponto ondepodem formular, de forma útil,questões de pesquisa que in-fluem em fenômenos sociais, eestão se preparando para a ta-refa estudando trabalhos deciências sociais. Talvez issoseja mais fácil do que se trei-nar como neuro-cientista se vocêjá é um cientistasocial. Mas hápessoas se mo-vendo nas duasd i re ç õ e s .

� Os cientistashoje estudam osf u n d a m e n t o sneurológicos doamor, da moral,da estética.Es-sas coisas po-dem ser explica-das em termos puramente quí-micos/biológicos? Ou sempreteremos que abordá-las tam-bém de outra maneira?DENNETT: Claro que esses fe-nômenos não podem ser expli-cadas em “termos puramentequímicos/biológicos”, nãomais do que a competência de

um computador no xadrez po-de ser explicado em termos“elétricos/de silício”. Hoje nósentendemos como os diferen-tes níveis de explicação de-pendem uns dos outros semque possam ser substituídospelos níveis mais elementares.Nós tampouco explicamos a

reprodução a ní-vel dos elétrons!Subimos váriosníveis e falamossobre cromosso-mos e meiose edaí por diante. Abiologia não tra-ta apenas de ge-nes e proteínas eneurônios; a bio-logia incluí po-pulações e eco-logias e disputasentre predado-res e presas, e a

evolução dos órgãos diantedas exigências de diferentesambientes etc. Em outras pala-vras, a psicologia é um sub-campo importante da biolo-gia. E onde quer que existamenigmas aos quais não sabe-mos que perguntas lançar, aínós fazemos filosofia, goste-

mos disso ou não. Filosofia é oque você faz até entenderquais perguntas deve fazer, ecomo uma resposta deve ser.

� O senhor teme que uma me-lhor compreensão de como océrebro funciona possa ser uti-lizada para o desenvolvimentode métodos mais eficientes decontrole social?DENNET: Isso já está aconte-cendo, e nós precisamos estarvigilantes para possíveis abu-sos deste conhecimento emefeitos sutis, como o uso determos carregados de signifi-cados emocionas. Mas este éum fenômeno que se auto-cor-rige. Quanto mais aprendemossobre maneiras de manipularnossos cérebros, mais apren-demos como perceber a mani-pulação e impedi-la. Os alvosda manipulação estão cadavez mais conscientes disso, eportanto são mais difíceis dese enganar. Sempre foi possí-vel enganar as pessoas.

� E quanto à propaganda? Asgrandes companhias estão in-teressadas nas suas pesqui-sas, por exemplo?DENNETT: Anunciantes têmdesenvolvido suas técnicasem um ambiente de muitos da-dos e pouca teoria há mais oumenos um século. Eles podemencontrar algum esclareci-mento e unificação nas mi-nhas pesquisas, mas nada demuita utilidade prática — anão ser às vezes copiar minhamaneira de me expressar.

� Sigmund Freud, que come-çou sua carreira como neuro-logista, produziu uma teoriasobre o funcionamento damente que foi influente entrecientistas, artistas e intelec-tuais. O senhor tem interessepela obra freudiana?DENNETT: Sempre me inte-ressei por Freud, mas não naselaborações mais floreadasdo seu pensamento, que sãononsense pretensioso, na mi-nha opinião. Ele ele teve i n-sights excelentes sobre asfantasias. Pode-se com fre-qüência tomar as conclusõesmais cuidadosas e fundamen-tadas em experimentos deoutras pessoas e encontrarantecipações impressionan-tes dessas conclusões nos es-critos de Freud. Ele era umpensador maravilhosamentecriativo. Mas vagar por Freudprocurando as partes boassem um conhecimento consi-derável de outras aborda-gens teóricas é um processomuito ineficiente. �

“Dawkins mostroucomo a culturapoderia ter uma

história nãogenética, masainda assimevolutiva”

CARTASMACHADO DE ASSIS� Os estudos macha-dianos devem muito àobra de John Gledson.Em entrevista a MiguelConde (Prosa & Verso,23/12) ele julgou que otítulo do livro que edi-tei nos Estados Unidos,“The Author as Plagia-rist — The Case of Ma-chado de Ass is ” , é“pouco justificado”,“chamativo”, e “simpli-fica uma questão tãocomplexa e fascinan-te”. Não pretendo pole-mizar, mas esclareceralguns pontos.O volume possui 663páginas e foi editadopela Universidade deMassachusetts-Dar t-mouth. Sua prepara-ção exigiu três anosde trabalho diário. Ol ivro reúne 42 en -saios, quase todosinéditos, como é o ca-so do texto de JoséSaramago. O livro foilançado na Bibliotecado Congresso , emWashington, e tam-bém em Londres. O“chamativo” título foiextraído de textos deMachado de Assis;aliás, como duas epí-grafes esclarecem. Re-corde-se o capítulo IXde “Dom Casmurro”,“A ópera”. Numa pas-sagem que me inspi-rou, Machado deno-minou Shakespeare“um plagiário”. E o fezcomo o mais elevadoelogio. Por que nãoadotar o vocabuláriodo autor de “O alienis-ta”? Em lugar de im-por-lhe polêmicas ep r e o c u p a ç õ e salheias, por que nãoresgatar sua lingua-gem e visão do mun-do?Por fim, o público bra-sileiro poderá formardiretamente sua opi-nião, pois, em meadosde 2007, a AlamedaCasa Editorial publi-cará o livro com o tí-tulo “O plágio comocriação — O caso deMachado de Assis”.

João Cezar de CastroRocha

Pesquisador visitante daFundação Alexander von

Humboldt, Berlim

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