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Daniel Kahneman - algo realmente novo em gestão Em 2002, dois psicólogos israelenses - Daniel Kahneman e Amos Tversky - ganharam o prêmio Nobel de Economia, a mais alta distinção que um pesquisador de qualquer campo pode almejar. Psicólogos? Economia? Deve ter coisa interessante aí. Tem sim. Kahneman e Tversky (seu parceiro já falecido) saíram a campo para examinar a maneira pela qual pensamos. Sua conclusão foi a seguinte: “... pensar direito (pensar rigorosamente) em situações que envolvam risco, não é natural. Geralmente nos damos por satisfeitos com avaliações superficiais que vêm rapidamente à mente e que nos parecem plausíveis, e isso independe do nível de preparo intelectual da pessoa”. Pare aqui leitor. Releia. Quer dizer, seja você um Einstein ou um “pé rapado” intelectual, a tendência é que escolha (você está de dieta), um sanduíche que “tem apenas 25% de gordura” e não um que seja “75% livre de gordura”, apesar de serem exatamente a mesma coisa. São a mesma coisa, mas não soam como sendo a mesma coisa, entende? Você decide pelo que parece ser, não pelo que é. Nós, que somos naturalmente péssimos estatísticos, ficamos ainda piores em situação de risco. Se alguém levanta uma possibilidade de que algo horrível possa acontecer com um filho seu, mesmo que a possibilidade seja remotíssima, você não consegue pensar em outra coisa. Seja sincero: você inventa um pretexto e liga para se certificar se está tudo bem, não liga? Liga três vezes por dia, não liga?

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Page 1: Daniel Kahneman

Daniel Kahneman - algo realmente novo em gestão

Em 2002, dois psicólogos israelenses - Daniel Kahneman e Amos Tversky - ganharam o prêmio Nobel de Economia, a mais alta distinção que um pesquisador de qualquer campo pode almejar.

Psicólogos? Economia? Deve ter coisa interessante aí. Tem sim.

Kahneman e Tversky (seu parceiro já falecido) saíram a campo para examinar a maneira pela qual pensamos. Sua conclusão foi a seguinte:

“... pensar direito (pensar rigorosamente) em situações que envolvam risco, não é natural. Geralmente nos damos por satisfeitos com avaliações superficiais que vêm rapidamente à mente e que nos parecem plausíveis, e isso independe do nível de preparo intelectual da pessoa”.

Pare aqui leitor. Releia.

Quer dizer, seja você um Einstein ou um “pé rapado” intelectual, a tendência é que escolha (você está de dieta), um sanduíche que “tem apenas 25% de gordura” e não um que seja “75% livre de gordura”, apesar de serem exatamente a mesma coisa. São a mesma coisa, mas não soam como sendo a mesma coisa, entende? Você decide pelo que parece ser, não pelo que é.

Nós, que somos naturalmente péssimos estatísticos, ficamos ainda piores em situação de risco. Se alguém levanta uma possibilidade de que algo horrível possa acontecer com um filho seu, mesmo que a possibilidade seja remotíssima, você não consegue pensar em outra coisa. Seja sincero: você inventa um pretexto e liga para se certificar se está tudo bem, não liga? Liga três vezes por dia, não liga?

Esse tipo de viés (bias, em inglês) está programado em nós e influencia muito a qualidade de nossas decisões. Em situações que percebemos como sendo de risco então é uma festa, porque o medo amplifica nossa natural superficialidade no pensar.

Após ganhar o Nobel, Kahneman passou a ser muito requisitado por grandes corporações desejosas de aperfeiçoarem seus processos de decisão. Muito justo: empresas são “máquinas de decidir” - que produtos lançar, que investimento fazer, que empresa comprar ou vender, essas coisas... Bilhões de dólares são perdidos por causa de decisões que, mais adiante, se revelam desastrosas. Se tivéssemos um processo para monitorar nossos processos de decisão, garantindo menos viéses e mais racionalidade, seria bom, né? Ele dá várias dicas de como poderia ser feito isso (veremos adiante), mas as empresas não têm dado muita bola não. Por que agem assim, hein?

Kahneman hoje é consultor de várias grandes corporações. Mas, a julgar por uma entrevista que deu em 2003 à revista Strategy and Business (na qual me baseio em parte para escrever este artigo), está muito decepcionado com o mundo empresarial.

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Neste e em artigos seguintes, vou tratar de Daniel Kahneman. Vou tentar explicar seu desapontamento “conosco”, mas antes quero dar um gostinho mais apurado de seu trabalho e mostrar porque acho vital prestarmos atenção ao que diz.

A questão é a seguinte: se as empresas vivem ou morrem dependendo da qualidade das decisões que tomam, elas deveriam ter um processo muito bem estruturado para examinarem, checarem e aprimorarem essas decisões, certo? Deveriam, mas não têm. E, segundo as pesquisas de Daniel Kahneman, não têm porque optam por não ter apesar de saberem racionalmente que seria melhor ter. Que coisa, hein!

Isso acontece porque gestores (os humanos em geral) sofrem de uma série de disfunções cognitivas, ou viéses, que depois do trabalho de Kahneman estão recebendo atenção crescente no mundo das empresas. Eu sou fã de seu trabalho. Se me pedissem para apontar uma novidade relevante no mundo das empresas nos últimos tempos, eu não teria dúvida: Daniel Kahneman é o cara. Colocou ciência de primeira qualidade (não especulação, não achismo, não bobajada politicamente correta) no estudo do comportamento humano em situações de risco (tudo a ver com o que acontece nas reuniões de diretoria). Mediu coisas, fez experimentos exaustivos. É um empiricista: tudo o que diz é baseado em experimentos controlados. Suas conclusões são indispensáveis para quem pretende dizer algo sobre gestão.

Na entrevista, Kahneman relata o seguinte experimento realizado com grupos de estudantes das universidades americanas de Princeton e Michigan:

“Um taco e uma bola de beisebol custam U$1.10 no total. O taco custa US$1 a mais que a bola, quanto custa a bola?” - pergunta ele aos estudantes.

Quase todo mundo é tentado a responder “10 cents”. Isso porque a soma total (US$1.10) se separa intuitivamente em nossas mentes em US$1.00 e 10 cents, e também porque 10 cents “parece ser” o preço certo para uma bolinha (leve e pequena) em comparação com um taco (grande e pesado). Mais da metade dos estudantes de duas das mais prestigiosas universidades americanas deu essa resposta. Resposta errada. A bola custa US$0,05 (um nickel) - eu confesso que tive de fazer a conta direitinho, lápis e papel na mão, se não, teria errado também.

Kahneman insiste muito em dois pontos (baseado neste e em muitos outros experimentos):

a) Todas as pessoas que participaram do experimento eram de alto nível intelectual.

Num outro experimento em que participaram só estatísticos profissionais, ele investigou como eles lidavam com trivialidades do dia-a-dia, quando não estavam “pensando profissionalmente”. Notou que cometiam erros incríveis - não aplicavam no pensamento informal as regras estatísticas que conheciam muito bem e usavam a todo momento em “situações profissionais”.

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b) Esse tipo de julgamento errado (superficial/ pouco rigoroso) é geral. Repete-se em todas as circunstâncias, portanto, reflete condicionamentos pré-programados na mente humana por alguma razão sobre a qual vamos especular um pouco mais à frente.

Em artigos seguintes vamos ver por que esses viéses existem, por que é inútil tentar eliminá-los (sem eles não funcionamos, aguarde!) e o que devemos fazer para minimizar seus efeitos nas decisões que tomamos.

Vamos ver uns casinhos interessantes - o caso do jato supersônico Concorde e o do patinete elétrico Segway, lançado há alguns anos com a pretensão de revolucionar o transporte urbano. Vai ser curioso examinar esses exemplos em função das idéias de Kahneman.

Seu entrevistador, no artigo que citei, diz que é difícil para uma pessoa intelectualmente honesta ler um trabalho de Kahneman sem sentir “um choque de auto-reconhecimento e consciência de quão disfuncional é seu próprio pensamento”.

Seu trabalho, para mim, não pode ser desconsiderado por quem se interesse por gestão. Vamos ver por que.

Kahneman (2) - Entra em cena o “idiota racional”

Voltemos ao ponto central do comentário anterior: os voluntários para as pesquisas de Kahneman eram especialistas em várias disciplinas de alto conteúdo intelectual. Foi sempre a mesma coisa: o matemático erra ao somar os itens da conta no restaurante, o estatístico é viciado em roleta de cassino, o médico fuma. Não pensamos racionalmente em situações fora de nosso contexto de especialização profissional.

Em situações de risco, nossas mentes buscam (por instinto) sinais que são determinados por emoções que nos vêm com facilidade à mente. Não fazemos raciocínios frios naturalmente. O que nos parece distante é preterido em favor do que percebemos ser mais “próximo”. As pessoas não registram riscos que lhes pareçam muito abertos ou abstratos. Se você diz: "um terremoto vai causar milhares de mortes em algum lugar dos Estados Unidos", isso é considerado mais improvável do que: "um terremoto vai causar milhares de mortes na Califórnia", apesar da Califórnia estar contida nos Estados Unidos!

É assim que pensamos. Ofereça a um grupo de turistas um seguro que paga um milhão em caso de morte por qualquer razão durante a viajem. Depois, ofereça, pelo mesmo preço, um seguro que paga um milhão por morte causada apenas por atentados terroristas. Adivinha qual seguro vende mais? Apesar de a segunda hipótese estar contida na primeira, é a segunda que ganha.

Mas, independentemente das demonstrações inequívocas de Kahneman, adoramos pensar em nós próprios como formuladores sempre racionais e “técnicos”. Simplesmente não somos assim. Pergunte a razão do sucesso de alguém e você terá uma explicação perfeitamente racional (e falsa, grande parte das vezes). O fracasso? Ora, "foi causado por fatores que estão fora do meu controle".

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Tendemos a atribuir o sucesso a fatores bem determinados e que conhecíamos antes (outro viés: "eu sempre soube que isso iria acontecer"). Kahneman descobriu que, em geral, todos nos achamos "acima da média" em vários atributos, o que é ridículo (além de ser um absurdo estatístico). Este viés vitima de modo especial os tomadores de decisão no mundo empresarial.

O operador financeiro Nassim Taleb, autor de um livro brilhante sobre esse tema, diz o seguinte: “grande parte do que o pensamento racional parece fazer, é improvisar alguma lógica que dê conta daquilo que fizemos (depois de termos feito)”. Isso é puro Kahneman.

A tese de Kahneman e Tversky que deu o prêmio Nobel a ambos, chama-se Prospect Theory (teoria da perspectiva no sentido de teoria das possibilidades de sucesso futuro -vá ao Google e procure,tem muita coisa interessante).

Segundo eles, as falhas, viéses e distorções em nossos processos cognitivos são a regra, não a exceção. Nós humanos temos, segundo eles, dois sistemas de pensamento (popularmente: intuição e razão) que chamam de "sistema 1" e "sistema 2".

SISTEMA 1: quando estamos nesse “modo de operação”, as operações mentais que fazemos são rápidas, feitas sem esforço, baseadas em associações e, frequentemente, potencializadas por emoções. São dirigidas pelo hábito, o que as torna muito difíceis de modificar. São os pensamentos que vêm à mente por conta própria, quase no "piloto automático".

SISTEMA 2: é o sistema de pensar baseado no raciocínio. É consciente, deliberado. É mais lento, é serial (ou seja, uma etapa vem após outra), exige esforço, pode ser controlado deliberadamente e pode seguir regras.

O que diferencia os dois sistemas é o esforço envolvido.

Aqueles especialistas do experimento a que me referi no início, estavam usando o "sistema 1" durante a experiência, respondendo com base em intuição. Durante seu trabalho profissional eles só usam o "sistema 2".

Mas há uma sutileza embutida nisso: não lute para eliminar de dentro de você seu "cérebro 1" - heurístico, superficial, emocional, irracional - pois na hipótese muito improvável de você ser bem sucedido, você ficará paralisado; será um rational fool, como dizem os especialistas. Um perfeito idiota racional.

Em meu livro O GLORIOSO ACIDENTE - falei das pesquisas de Antonio Damásio que demonstraram isso de forma brilhante. Resumidamente é o seguinte: você remove um pedaço do cérebro de alguém (durante uma cirurgia para extirpar um tumor, por exemplo). Isso resulta na perda da capacidade dela de registrar emoções. A parte racional (inteligente) fica intacta. O QI não muda. Você separou inteligência e emoção (sistemas 1 e 2). O que vai ocorrer com essa pessoa? Segundo Damásio, o que teremos é alguém incapaz de tomar as decisões mais simples. Não consegue atravessar uma rua, não levanta da cama de manhã.

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Fica se consumindo em avaliações e avaliações sobre o que vai fazer e não faz nada. Conclusão: você não pode tomar decisões sem emoção!

Cuidado com as receitas dos livros de auto-ajuda: a única coisa certa sobre eles é que ajudam muito ($$) a seus autores. Mesmo os que não são escritos por picaretas valem pouco, e a razão é simples: só registramos conselhos e recomendações de forma superficial e por períodos de tempo muito curtos. Não adianta apresentar argumentos apenas racionais para "nos tornarmos vencedores", pois só somos racionais em circunstâncias muito específicas em nossas vidas. Vivemos no dia-a-dia obedecendo a regras superficiais (heurísticas) que foram programadas em nós no passado distante e contra as quais nada podemos fazer.

As emoções existem para fornecer "atalhos" que nos levem a escapar do paralisante ciclo infinito de ponderações e avaliações. Por essa não esperávamos! É errado, errado, errado, achar que "ser racional é melhor". Só não podemos é deixar-nos envolver pelo "sistema 1" quando, profissionalmente (alô gestores, me aguardem!) teríamos de estar no "sistema 2". Mas a emoção – no sentido do não racional – não é errada ou defeituosa, sem ela não existimos (mais sobre isso no próximo artigo).

O melhor que podemos fazer quando estamos lidando com tomadas de decisão que envolvam risco, é estar conscientes de nossa irracionalidade e tolices, por meio de um exercício de introspecção que nos ajude a contorná-las de modo prático. O leitor percebe onde vou chegar: gestão de pessoas é 100% sobre isso. Adiante (em outros artigos na seqüência deste), vamos ver que tudo o que tem a ver com gestão, tem a ver com a montagem cuidadosa de um sistema que contorne as armadilhas emocionais pré-históricas que todos trazemos programadas em nós. Nunca (jamais!) devemos tentar extirpá-las, pois se fizermos isso, nos transformaremos em idiotas racionais.

Isso tudo é perfeito para o mundo empresarial. Talvez em nenhum outro contexto profissional a ação ponderada, racional, esteja mais ausente do que no mundo da gestão, ainda que se diga o contrário. Principalmente (e não por acaso) nessa área que convencionamos chamar de gestão de pessoas. E não está presente porque não pode estar presente se nós não a colocamos deliberadamente lá, pois naturalmente ela não vem. Naturalmente somos "sistema 1". Só somos "sistema 2" quando enquadrados pelo contexto profissional: imagine um cirurgião comandado pelo sistema 1 durante a cirurgia, ou um bombeiro durante o incêndio, ou o dentista enquanto trata seu canal. Não dá, né?

Qualquer sistema de gestão de pessoas deveria levar em conta esses achados sobre o funcionamento da mente. Não é á toa que Kahneman está sendo ouvido por grandes grupos empresariais pelo mundo a fora.

Kahneman (3) - Por que nossas mentes são tão “mal projetadas”?

Antes de prosseguir com as implicações das descobertas de Daniel Kahneman na gestão, vamos ver uma explicação sobre a origem de nossos vícios de pensamento. De onde vem os viéses que nos forçam a usar “atalhos” de raciocínio nos impedindo de pensar direito?

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Daniel Kahneman não adotou o tipo de explicação que vou dar abaixo, quem adota é outra escola (chamada “psicologia evolucionária”). Ambas, porém, concordam no seguinte:

1- Ao fazer escolhas, não pensamos, mas usamos “atalhos”.

2- Cometemos erros crassos de avaliação, seja qual for a razão .

A evolução biológica não nos desenhou para avaliarmos rigorosamente o que as coisas são de fato. Ela nos desenhou para gerar descendentes. Para isso, tivemos de aprender a fugir dos perigos que nos impediriam de cumprir nosso mandato evolucionário ("crescei e multiplicai-vos!" - pode resumir esse mandato assim).

Isso não tem nada a ver com avaliar “as coisas em profundidade”. Tem a ver com adaptação a ambientes ancestrais, nos quais os riscos que “tínhamos” de avaliar eram completamente diferentes dos que temos de avaliar hoje. Nós somos descentes de antepassados que sobreviveram porque avaliavam riscos sem rigor, por isso, somos bons em avaliar riscos sem rigor. Vou explicar:

Quando um vulto, parecendo ser um tigre, se aproximava da caverna em que nossos antepassados dormiam, nossos “avós” saiam correndo, não ficavam teorizando sobre as probabilidades daquilo realmente ser um tigre, ou especulando sobre a espécie de tigre, ou se o tigre estaria com fome. Os que teorizavam, foram sendo dizimados pelos tigres que, volta e meia, eram reais o suficiente (e estavam famintos o suficiente) para devorarem os “pensadores rigorosos”.

Com o passar do tempo, os genes dos que eram “rigorosos na avaliação de seus riscos” foram sendo gradualmente eliminados da população dos humanos. Sobramos nós, assim, superficiais, cheios de “defeitos de fabricação”. Não éramos rigorosos, mas funcionávamos muito bem naqueles mundos do passado. Funcionar significava ficar vivo e procriar, lembre-se. Essa era a definição de “sucesso” naquela época. Porém, de uns 10 mil anos para cá, o ambiente passou a mudar tão rápido que perdemos completamente a capacidade de nos adaptar em sintonia com ele. Deu no que deu. Achamos-nos o máximo, mas somos pouco mais que “primatas” não adaptados às conseqüências das tecnologias que nós mesmos criamos. Começou com a agricultura há dez mil anos e chegou à essa outra tecnologia a que chamamos de empresa, há pouco mais de um século.

Nassim Taleb, autor de “Fooled by Randomness”, diz com ironia:

“Por muito tempo nós humanos professamos a crença de que fomos privilegiados com uma máquina maravilhosa para pensar e entender as coisas. Porém, entre as especificações para funcionarmos no mundo real, está a ausência da consciência do que sejam as “verdadeiras” especificações... [nunca precisamos disso para cumprir nosso mandato evolucionário de gerar crias. Para que complicar as coisas?]... O problema com “pensar” é que isso faz você desenvolver ilusões. Pensar pode ser um tremendo desperdício de energia! Quem precisa disso?”.

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A regra prática que se revelou utilíssima para a sobrevivência da espécie humana foi: “se lembrar vagamente um tigre, saia correndo”.

Kahneman e Tversky descobriram que esse tipo de regra prática, nada rigorosa, superficial (tecnicamente chamada de heurística), é absolutamente essencial para que funcionemos no dia-a-dia. Elas tiveram origem na necessidade de interpretar rapidamente o ambiente em que estávamos, para ficarmos vivos e podermos procriar, mas ficaram programadas em nós (apesar de não haver mais tigres por aí) e são uma parte vital do que constitui nossa humanidade.

Eu repito, repito e repito: não depende de você, depende da natureza humana. Você tem isso (quase) da mesma maneira que tem fígado e pulmão. Você é assim, queira ou não. Pré-conceitos em geral - ou seja: julgamento superficial de uma pessoa ou grupo com base em sinais externos nada conclusivos - têm exatamente a mesma origem.

Deixe-me provocar um pouco: se você pega um ônibus no Rio de Janeiro, vai começar a tremer se entrarem dois ou três tipos assim: negros, aparência “estranha”, bermudões arriados (quase caindo), bonés com aba para trás, camiseta largona, chinelo... Jeitão pouco confiável, enfim.

Você sabe, o ônibus passa por algumas regiões perigosas da cidade, entende? O que vem imediatamente à sua mente é: "vou ser assaltado!"

Preconceito puro, claro. Mas diz aí: é isso que você pensa ou não? Claro que aquelas pessoas podem ser 100% inofensivas, mas o que vem de estalo em sua mente é uma sensação de perigo iminente. Você vai checar “com rigor”? Vai teorizar sobre o “tigre” ou vai se mandar?

(O nome técnico disso é heurística da representatividade: avaliamos a probabilidade de uma pessoa pertencer a um certo grupo social, julgando quão similar são suas características àquelas do “membro típico” do grupo).

Existe uma explicação evolucionária para isso também: em ambientes ancestrais, “nós” tivemos de desenvolver heurísticas para detectar (rapidamente / superficialmente) quem era estranho ao nosso grupo. Os três critérios nos quais costumeiramente (e muitas vezes, preconceituosamente) nos avaliamos uns aos outros são: sexo, idade e raça.

Os juízos baseados em sexo e idade fazem sentido porque, se nosso drive biológico é procriar, é natural avaliarmos com quem. O sexo e a idade de alguém que surja à sua frente dão imediatamente dicas sobre possibilidades ou não de sexo com essa pessoa. Mas em ambientes ancestrais, as pessoas não encontravam gente de outras raças, elas viviam em bandos de cerca de 150 pessoas constituídos por pessoas aparentadas geneticamente em graus variados. Acredita-se que a percepção da diferença racial é causada pela sobre-estimulação do que poderia ser chamado de um “detector de estranhos” na mente humana (mais uma heurística daquelas).

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Esse detector existe para identificar rapidamente os “estrangeiros genuínos” - que sempre representaram perigo iminente na era pré-agricultura e, portanto, exigiam reação rápida - daqueles que eram simplesmente membros do seu próprio clã que você não conhecia. Essa heurística tem de usar algo excepcional e óbvio, e há pouca coisa mais óbvia do que a cor de pele.

Preconceito puro, mas era questão de sobrevivência naquela época. Ficou conosco até hoje.

- Atenção: por favor, não vá imaginar que estou “defendendo” ou justificando o racismo. Sou negro e considero o preconceito uma desgraça completa (já fui vítima dele, e em ambientes mais refinados que um ônibus). Apenas - como interessado em gestão e, portanto, em resultados - afirmo que a melhor maneira de lidarmos com o racismo não é exortando as pessoas a serem menos preconceituosas, pois isso é inútil. É entendendo as raízes emocionais dessa manifestação e contornando essas raízes de forma consciente. Elas, as raízes, estão lá apesar de não gostarmos delas.

A melhor maneira de nos auto-gerenciarmos é por meio do entendimento das coisas como elas realmente são.

Então, aquelas regras que foram sendo programadas em nós aos pouquinhos durante os milhões de anos durante os quais nos tornávamos humanos, são totalmente inadequadas ao ambiente em que vivemos hoje - cheios de “estranhos”, telefones celulares, bigbrothersbrasil (arghh...), e-mails, atentados no Iraque, trânsito caótico, cidades violentas, chineses e hindus ameaçando nossos empregos... Nada a ver com os ambientes para os quais fomos projetados. É com isso que a gestão de pessoas tem que lidar.

Kahneman (4) - Viéses que nos programam e nós nem desconfiamos

Vejamos mais um pouco do que as pesquisas de Kahnemann e Tversky mostraram (e também outros viéses que estão relacionados ao que eles descobriram).

- Viés do otimismo

Executivos tendem a serem superotimistas em relação ao sucesso das iniciativas que tomam e, portanto, em relação à sua habilidade como gestores. Para eles, “médios são os outros”. Eles são o máximo. Isso é comum entre cientistas também - parece que tem a ver com personalidades que se expõe publicamente em função de resultados que prometem.

Aliás, cuidado com cientistas. Eles são um perigo (como humanos, são totalmente enrolados pelos vieses conhecidos). Ainda bem que a ciência os “enquadra”. A ciência é melhor que o cientista.

- Viés da confirmação

Todos nós (executivos ou não) buscamos (inventamos??!!) “evidências” que confirmem aquilo em que já acreditamos, e desprezamos as evidências que desconfirmam aquilo.

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Ou seja: tendemos a acreditar naquilo em que queremos acreditar, não naquilo que a evidência aponta.

O mundo empresarial está repleto até a borda de decisões erradas que não são desfeitas sem intervenção de fora - (às vezes essa intervenção tem que ser pesada e quase violenta) - porque os gestores envolvidos não conseguem ver objetivamente o que está ocorrendo. Por exemplo: os autores do livro “Smart Choices” relatam o seguinte sobre esse viés que chamam de viés do custo afundado (sunk cost bias):

"... esse viés aparece com muita regularidade no negócio bancário... quando uma empresa que tomou empréstimo no banco fica sem condições de pagar, o gerente que fez o empréstimo frequentemente empresta ainda mais, na esperança de dar espaço para que a empresa recupere o fôlego... Anos atrás, nós ajudamos a um dos maiores bancos americanos a recuperar-se de uma série de empréstimos ruins que tinha feito a empresas estrangeiras. Nós descobrimos que os gerentes responsáveis pelos empréstimos eram muito mais propensos a adiantar ainda mais dinheiro do que os gerentes que tinham se tornado responsáveis pelo cliente depois do empréstimo inicial. Com muita freqüência, as estratégias e os empréstimos dos gerentes iniciais terminavam em fracasso, mas eles caíam na armadilha de (por meio de cada vez mais empréstimos) - ficarem cada vez mais comprometidos com o erro. Conscientemente ou não, eles tentavam proteger suas decisões iniciais. Vítimas do viés dos custos afundados. O banco finalmente resolveu o problema instituindo uma política que exigia que um empréstimo passasse imediatamente para a responsabilidade de outro gerente assim que qualquer problema ficasse sério. O novo gerente sim, poderia avaliar tecnicamente (isentamente, sem viés) se o cliente merecia ou não mais crédito”.

Isto é um exemplo do que considero boa gestão de pessoas porque parte da aceitação dos viéses da natureza humana não tenta negá-los nem modificá-los: o sistema é que blinda a empresa do natural “pensamento enviesado” de seus colaboradores.

Os gerentes que concederam os empréstimos iniciais não são substituídos por “gerentes especiais”, mais competentes ou mais preparados. Os substitutos não são melhores. Apenas, por nada terem a proteger, estão livres dos viéses que os anteriores têm.

- Viés para “ancorar”

Em muitas circunstâncias temos a tendência para “ancorar” (to anchor) nossas escolhas de uma maneira completamente irracional e aleatória. Isso quer dizer o seguinte: crie uma referência bem maluca para alguma coisa, e essa referência passa a ser a base a partir da qual sua mente vai decidir, por mais irracional que isso seja.

Por exemplo, pergunte a alguém: “a população da Turquia é maior ou menor do que 35 milhões de pessoas?”.

Você (que não tem a menor idéia de qual seja o número real) chuta algo como: “acho que está em torno de uns 40 milhões”. Você ficou com os 35 milhões citados, como referência.

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Se eu tivesse falado num número inicial próximo a 80 milhões, você teria dito: “talvez uns 85 milhões”.

Você se ancora à primeira referência numérica que vêm à mente.

Nunca se esqueça: a mente é naturalmente preguiçosa e por isso lança mão de “heurísticas” (que têm uma origem qualquer no passado ancestral) para decidir.

O razoável seria dizer: "não tenho a menor idéia de qual seja a população da Turquia", mas preferimos nos “ancorar” numa referência estúpida qualquer.

Kahneman e Tversky fizeram experiências notáveis com relação a isso (mais uma vez: com pessoas de todo tipo e lugares; não houve qualquer vício oculto que pusesse em risco a generalidade das conclusões; os experimentos foram controlados).

Quando eles pedem para as pessoas pensarem nos 4 últimos dígitos de seu número telefônico e, depois, a qualquer pretexto, pedem que avaliem, digamos, a quantidade de médicos em Nova York , é batata: o número formado (totalmente ao acaso) pelos dígitos do número do telefone, vira a âncora para a resposta quanto aos médicos.

Vendedores conhecem esse viés há muito tempo. Quando notam um interesse genuíno de um comprador, dão um chute irrealista para ancorar o preço, pois sabem intuitivamente, que mesmo que tenham de baixar depois, a âncora sempre faz o cliente gravitar para mais perto do chute inicial.

É como sempre: superficial, irracional, assustadoramente instintivo. Nós somos assim.

- Viés do staus quo ou viés da aversão à perda

O medo de perder é um motivador muito maior que o prazer de ganhar. Isso se chama, tecnicamente, aversão à perda e é uma das razões (talvez a maior) da ausência de inovação efetiva nas empresas.

Tendemos a nos apegar ao que já temos. Quem vai arriscar a propor um projeto que pode vir a ser perdedor e com isso prejudicar sua reputação? Business as usual é mais seguro para os CEOs médios (para os empreendedores é diferente, mas CEOs, em geral, não são empreendedores). Inovação não é natural. Os autores de “Smart Choices” dão o seguinte exemplo:

“Você herda 100 ações de uma empresa que jamais teria comprado por sua livre iniciativa. Você pode vender as ações e reinvestir o dinheiro. O que você faz? A maioria das pessoas mantém as ações. Elas consideram o status quo confortável e evitam qualquer ação que possa perturbá-lo. 'Pode ser que eu pense nisso mais tarde', eles dizem. Mas esse “mais tarde” nunca chega. A maior parte dos tomadores de decisão (alô gestores!) tem um viés muito forte por alternativas que perpetuem a situação atual... muitos experimentos mostraram a atração magnética que o status quo exerce”.

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- O viés do sobrevivente (survival bias)

Nesse, eu vou me alongar um pouco mais porque suas implicações para o mundo da gestão são enormes.

Quando nos preocupamos em entender, por exemplo, o que faz alguém ficar rico, nós estudamos quem? Os ricos. Mas os ricos são uma amostra muito viciada, pois são os sobreviventes, são os que sobraram de uma população muito maior que não ficou rica. Quem não ficou rico saiu fora da amostra. Nós os ignoramos porque não os vemos.

Os que sobrevivem, como já vimos, têm sempre o viés de racionalizar as causas de seu sucesso contando uma história épica (e muitas vezes falsa), para explicá-lo (viés: "eu sou o máximo"), mas é muito razoável perguntar o seguinte (e nós devemos fazê-lo sempre, por ser um hábito intelectualmente muito saudável):

"Quem perdeu não teria perdido por azar? Você que ganhou, não teria sido por sorte?".

Pode ter sido sorte ou não, mas, em geral, não se pode dispensar o papel do acaso nos resultados que se obtém, dentro ou fora da empresa.

Nassim Taleb, diz em “Fooled By Randomness” :

“Há um livro bobo chamado “O milionário ao lado” - (um dos autores escreveu um ainda mais tolo chamado “A Mente do Milionário”). Eles entrevistaram um punhado de milionários para entender como enriqueceram e descobriram algumas características que os ricos têm. Você precisa de um pouco de inteligência, muito trabalho duro, e aceitar correr muito risco. E aí eles concluíram que - oh! - correr riscos é bom para você, se você quer ser um milionário. Eles esqueceram de dar uma olhada no cemitério. Veriam gente falida, fracassos, empresas que tiveram de fechar. Teriam descoberto que algumas das mesmas características estavam presentes nesses cadáveres - trabalho duro e correr riscos entre elas. Isso me diz que a única coisa que os milionários têm em comum é uma sorte danada”.

Kahneman (5) - O jogo do acaso e o “viés do sobrevivente”

O viés do sobrevivente causa um estrago monumental nas cabeças de quem usa exemplos de pessoas “vitoriosas” como modelos para sua vida.

Em ambientes em que o acaso (randomness, aleatoriedade) desempenha um papel - como muito do que nos cerca no mundo dos negócios hoje - alguém pode acabar emergindo vencedor por pura sorte. Por ter tomado decisões que, na hora em que ocorreram, foram tomadas sem nenhuma antevisão do que viria em seguida. Chance pura. Esses “sobreviventes” despertam a ilusão de que tinham algum talento que os outros não tinham. Pior ainda, eles consideram-se predestinados, possuidores de uma percepção diferente das coisas, alguma conexão mágica com forças sobrenaturais.

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Por coincidência, estou escrevendo isto no domingo de carnaval de 2006. A Revista VEJA que acabo de comprar traz na capa a seguinte chamada: "Ambição - ela produziu maravilhas e tragédias. Agora se sabe como usá-la na medida certa na vida pessoal e profissional".

Opa! Fui correndo ler.

No início, as platitudes de sempre: "[as pessoas que fazem sucesso] parecem visualizar claramente o que querem, planejam para atingir esse objetivo, e acertam na hora de colocá-lo em prática" - informação que, para mim, é tão conclusiva quanto a que diz que para ganhar dinheiro basta comprar o bilhete certo da loteria.

E lá vem os exemplos de vitoriosos sobreviventes: Adriane Galisteu, Paulo Coelho, Bill Clinton, Britney Spears... pessoas que correram atrás de seus sonhos etc. e tal. Mas, sem querer ser chato: e os milhares e milhares que não conseguiram, apesar de terem sonhado, desejado, corrido atrás, etc...?

Nunca consigo pensar nos conselhos dos vitoriosos sem considerar os não vitoriosos. Eles são a maioria, e não vejo por que considerá-los perdedores.

A reportagem prossegue: "Nas empresas, a ambição é praticamente um mantra. Dez entre dez gurus na área de RH afirmam que sem ela um profissional não vai longe". Os gurus estão certos. Ambição é condição necessária para vencer, mas não é suficiente. O cemitério corporativo está atulhado de ambiciosos.

Ao estudar, digamos, as empresas “feitas para durar”, nós estudamos, muito naturalmente, as que duraram. Fazemos isso na suposição de que, se duraram, é porque fizeram a coisa certa . Haveria um padrão a ser aprendido do passado, que seria extrapolável pelo futuro, e generalizável para outras empresas.

Não se pode afirmar nada conclusivamente olhando só os sobreviventes. Seu sucesso pode ter tido realmente causas relacionadas a algum talento singular, mas também pode ter acontecido por pura chance.

Depende de como o acaso joga seu jogo naquela situação específica.

Para você entender: uma sala de cirurgia é um ambiente maximamente controlado. Tudo ali é pensado para, digamos, não dar chance ao azar. Há alternativas previstas para as eventualidades que possam acontecer durante um procedimento de risco: equipamentos em standby, protocolos alternativos se algo complicar etc... O acaso está o máximo possível sob controle do sistema 2 porque a “estrutura do acaso” é razoavelmente conhecida, digamos assim.

Portanto, se certo cirurgião começa a obter resultados consistentemente melhores que seus colegas para a mesma cirurgia, realizada naquele mesmo ambiente, você pode jurar: “esse cara sabe algo que os demais não sabem. Seu sucesso está vindo de algo que o diferencia, vamos aprender com ele o que é”.

Page 13: Daniel Kahneman

Para que isso seja assim, lembre-se, a “estrutura do acaso” tem que poder ser minimamente controlada.

Agora imagine milhares de cirurgiões, bem formados e competentes, mas usando os procedimentos que bem entendessem na mesma cirurgia. Sem padronização de nada, certamente haveria alguém que teria melhores resultados por pura chance. Mesmo que esse alguém tivesse talento (como tem), não teria sido necessariamente esse talento a causa de seu sucesso.

Se fosse possível repetir o experimento é praticamente certo que outro cirurgião iria ficar no topo (se o primeiro repetisse a façanha, aí sim, poderíamos estar razoavelmente certos de que ele tinha mesmo “algo mais”).

O exemplo dos “macacos datilógrafos” é muito usado para explicar isso (eu mesmo ousei em meu livro “Em Busca da Empresa Quântica”).

É o seguinte: qual a chance de um bando de macacos batucando à esmo em teclados de computador, produzirem algo inteligível? Resposta: depende do número de macacos. O tamanho da amostra conta demais.

Parafraseando Nassim Taleb: se há 5 macacos na amostra eu ficaria muito surpreso se algum deles escrevesse, digamos, “O diário de um mago”, do Paulo Coelho (se acontecesse, eu consideraria isso uma mágica do Paulo Coelho, ou alguma intervenção sobrenatural que fez com que o macaco encarnasse o autor).

Mas, se o número de macacos é um bilhão elevado à potência de um bilhão, eu ficaria muito menos impressionado. Na verdade, eu ficaria surpreso se algum macaco não reproduzisse um livro bem conhecido (mas não especificado) por pura sorte. Um deles poderia até mesmo escrever o próximo livro do Paulo Coelho que ele mesmo ainda nem sabe qual será (quem sabe esse macaco escritor não poderia aproveitar o embalo e dar uma melhorada no estilo do cara? Ou, melhor ainda: quem sabe ele não motiva seus colegas a apreciarem o livro, poupando-nos do incômodo?).

“Se alguém se deu melhor que a multidão no passado, é válido presumir que tenha alguma habilidade que o fará dar-se melhor no futuro também. Mas essa presunção PODE ser tão fraca a ponto de ser inútil para a tomada de decisão. Por quê? Porque tudo depende de dois fatores: o conteúdo de acaso em sua profissão, e o número de macacos na amostra”.

Há muita gente competente, que PODE ter ficado famosa por acaso, por sorte. Essa gente nada tem a nos ensinar, pois não têm nada de especial.

Suponha que os resultados do experimento com aquele cirurgião que se destacou dos demais por sorte, tenham sido divulgados intensamente. O cirurgião então, graças à publicidade, começaria a ser mais procurado e, como é competente, estabeleceria uma ótima reputação. Sua reputação é merecida, mas teve origem no acaso, não em qualquer talento acima da média. A média é média. A profecia forçou sua própria realização.

Page 14: Daniel Kahneman

Muitos desses “masters do universo” que se apresentam como portadores de saberes especiais e conexões cósmicas que os habilitam a nos ensinar suas “receitas de sucesso”, PODEM ser simplesmente sortudos. Podem ter talento, mas pode não ter sido por causa dele que fizeram sucesso.

Acho essa gente arrogante e presunçosa (porque nunca admitem a possibilidade da sorte como razão do sucesso e se acham sempre o máximo). Tenho de admitir, porém, que eles têm uma vantagem sobre nós: não podemos provar que foi o acaso que determinou seu sucesso.

Temos de aturá-los. A única coisa que podemos dizer é que PODE ter sido sorte. Eles dão de ombros e continuam curtindo sua riqueza e fama enquanto nós (morrendo de inveja) continuamos torcendo para que chegue a nossa hora de sorte.

Não estou dizendo que Bill Gates não tem talento, estou dizendo que numa grande população de empreendedores competentes, ao acaso, é praticamente certo que apareça alguém como Bill Gates.

Bill Gates não planejou ser Bill Gates.

Ele é um cara preparado, inteligente, empreendedor brilhante, mas será o melhor? “Seu sucesso veio por mérito singular? Não, não veio. Veio por acaso (todo mundo usa Windows porque todo mundo usa Windows, se você quiser sair desse padrão corre um risco que a maior parte das pessoas prefere não correr)”.

Bill Gates ajudou o acaso com seu preparo; se não tivesse preparo não teria tido sucesso, mas seu preparo não foi a causa de seu sucesso porque na turbulência da época em que ele tomou as decisões que levaram a ele, ninguém poderia saber que elas eram as decisões certas. Só fica claro depois, mas dá sempre a ilusão de que já estava definido antes. Não estava. Foi sorte.

Há uma razão técnica para combatermos essa mentalidade “sobrevivente” e é por isso que o faço, não por birra (eu acho).

Adoramos esse negócio de “gente especial”, fora da média. Dizem até que grandes empresas só podem ser construídas com pessoas “fora da média”. Será? Adotamos explicitamente o “viés do sobrevivente” em nossas empresas como meio de selecionar e promover gente, o que é um absurdo gerencial. Voltarei a isso.

Kahneman (6) - Tomando a decisão certa: talento ou sorte?

"... é claro que o talento conta, mas ele conta menos em ambientes altamente randômicos do que no consultório do dentista." (Nassim Taleb)

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Taleb quer dizer o seguinte: entre um dentista muito rico e um operador da bolsa de valores igualmente rico, é mais provável que o dentista tenha o talento mais genuíno. Isso porque sua atividade tem um “conteúdo de acaso” menor do que o do operador da bolsa. É muito menos provável que o dentista tenha enriquecido por sorte.

Talento especial em ambientes randômicos (alto conteúdo de acaso) é praticamente impossível de atestar. Lembre-se daquele cirurgião do artigo anterior.

Para saber se você venceu por talento ou por sorte, temos de conhecer “o número de macacos” (veja artigo anterior) e a “estrutura do acaso” da sua situação: na sua profissão, o acaso é minimamente controlável?

Mesmo uma longa seqüência de tacadas certas pode ser sorte. Eu (este humilde autor mesmo) sei como montar um processo (totalmente honesto) que faça uma mesma pessoa, dentro de um grande grupo, acertar dezenas de vezes seguidas num “cara ou coroa”.

Você pode pensar que tenho algum talento especial. Nada. É acaso. Se estiver curioso mande uma mensagem através do FORUM que eu explico como se faz.

É saudável pensar numa explicação alternativa para o sucesso de quem tem sucesso. Veja só o exemplo que dei num livro anterior:

... suponha que você envie vinte mil cartas a apostadores em corridas, predizendo que um certo cavalo, Pretty Boy, vai vencer o próximo grande prêmio de Abril. Você faz a mesma coisa com outro cavalo, Sunny Girl, e para os outros oito cavalos que vão correr o grande prêmio. O detalhe é que você faz cada previsão para um grupo diferente de dois mil apostadores.

Depois da corrida, não importando que cavalo ganhasse, haverá dois mil apostadores, dos vinte mil originais, que vão acreditar (vão saber!) que você previu o resultado corretamente. Esqueça os outros 18000 que se deram mal. Para os dois mil que receberam as cartas com a previsão correta, você agora vai prever o resultado do grande prêmio de Maio, dizendo para cada grupo de 200 o nome de um cavalo diferente entre os dez que disputarão. Depois do grande prêmio de Maio haverá 200 pessoas que saberão que você acertou os resultados de dois grandes prêmios seguidos. Para esses, você envia um telegrama oferecendo sua Newsletter especializada em corridas de cavalo. Apenas 100 dólares por mês. Não precisa falar nada sobre seus métodos ou sobre o sucesso que você tem conseguido. Eles tirarão suas próprias conclusões. "Esse cara sabe algo que ninguém mais sabe, porque a performance dele é muito melhor que o simples acaso".

Não, não é. É acaso puro. Havia muito mais “macacos” do que os 200 que acertaram (neste caso, havia precisamente 19800 macacos perdedores).

Outro viés que assombra os gestores é o viés da clarividência após o fato ou viés da percepção tardia (hindsight bias).

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Ele é análogo ao viés do sobrevivente na ilusão de que “sempre soubemos” que certa coisa iria acontecer.

Exemplo: Bill Gates de novo (nada contra o cara, é que ele é o mais rico do mundo, portanto, alvo fácil).

Para tornar-se o mais rico do mundo ele tomou decisões que depois se revelaram certas, mas que ele não podia saber que eram certas quando tomou. O cara que um dia pensou que seria o rei do mundo digital foi Steve Jobs - inventor do computador pessoal, criador da interface gráfica que usamos em nossos PCs, presidente da Apple, lançador do Macintosh, do computador NEXT, da PIXAR Films, do Ipod e, agora, maior acionista da Disney. Jobs, quando era CEO da Apple, tomou uma decisão oposta à de Gates e perdeu.

O sistema Apple não tem nem 5% do mercado de PCs, o Windows tem mais de 90%.

Isso quer dizer que Jobs- que para mim tem um sucesso muito mais consistente (menos aleatório) que Gates - tomou a decisão errada no passado? Não!

Gates deu sorte, Jobs deu azar, mas se algum dos dois tem de fato um “talento especial”, dada a forma repetida com que suas iniciativas têm tido sucesso em contextos diferentes, eu diria que é Jobs, não Gates.

Parafraseando Nassim Taleb:

Um “erro” não pode ser declarado erro após o fato ter ocorrido. Uma decisão só pode ser declarada “errada”, à luz da informação disponível até o momento em que foi tomada.

Em 1994, a Merck estava numa corrida tipo “matar ou morrer” com a Monsanto para ver quem desenvolvia e lançava primeiro, um analgésico baseado numa nova tecnologia (que usava certos inibidores COX-2). A Monsanto estava na frente das pesquisas com o Celebrex e a Merck chegara a duas possibilidades de formulação para o seu Vioxx.

Ambas as versões da Merck tinham passado pelos testes preliminares com animais e era hora de investir nos testes com humanos que é onde se gasta dinheiro pesado. Havia três possibilidades igualmente prováveis:

- nenhuma funcionar;- as duas funcionarem;- apenas uma funcionar.

O CEO da Merck podia decidir testar uma variante de cada vez e gastar um bom dinheiro, ou testar as duas ao mesmo tempo gastando uma montanha de grana ainda maior.

Ele decidiu gastar a montanha e testar as duas ao mesmo tempo. Uma funcionou, a outra não.

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Aí vem aquele especialista e diz: “ele tomou a decisão errada: devia ter testado uma versão de cada vez, se a primeira funcionasse logo da cara ele pouparia a grana de testar a segunda”.

É, mas se o teste não fosse conclusivo de primeira, o Celebrex da Monsanto iria ganhar uma vantagem irrecuperável no mercado e aí, babau. Também poderia ser que testando em seqüência nenhuma das duas variantes funcionasse. Não era possível saber antes. Ele tinha de tentar controlar a “estrutura do acaso” da situação e foi o que fez.

Quando perguntado sobre sua decisão, o CEO da Merck - Edward Scolnick - disse: "foi pura sorte" (It was just dumb luck).

Taí, gostei desse cara. Nunca vi em meus muitos anos de vida empresarial, nenhum executivo, jamais, reconhecer que seu acerto em alguma circunstância tenha sido por sorte. E sorte (acaso / "randomness") tem que ser determinante muito mais vezes do que os livros e gurus fazem acreditar.

No caso do Vioxx foi sorte mesmo, mas a decisão de Solnick fazer os dois testes ao mesmo tempo teria sido certa mesmo que os dois testes tivessem falhado. O resultado teria sido o fracasso, mas a decisão teria sido certa! Diante das informações que ele dispunha até a hora de tomar a decisão ele tinha de ter decidido como decidiu.

Na circunstância específica em que Edward Solnick estava, a coisa mais inteligente que ele podia fazer era garantir um processo correto, não um resultado correto.

Deu sorte e conseguiu os dois.

No livro “Empresas feitas para vencer”- Jim Collins se revela surpreso por ter identificado o que ele chama de “líderes empresariais nível 5” - um tipo que demonstra grande humildade e determinação ao mesmo tempo.

São low profile, nada carismáticos, tímidos, mas conduzem suas empresas a grandes performances (não vou exercitar meu ceticismo chato. Não vou perguntar: - “Mr. Collins, o senhor considerou os líderes “humildes e determinados” que não deram certo? Quantos “macacos” havia na sua amostra?”).

O que chocou Collins mesmo foi o fato de todos eles atribuírem seu sucesso à sorte. Eu não me chocaria. Para mim, ao admitirem isso, eles são apenas mais inteligentes que os “masters do universo” convencionais do mundo empresarial. Palmas para eles.

Para você se exercitar: um amigo meu foi um dos primeiros a cair num golpe doloroso. Um bandido ligou para sua casa exigindo resgate e dizendo estar com uma “pessoa da sua família”. Era um domingo, 11 horas da noite, seu filho tinha saído uma meia hora antes e estava sem celular (ele não sabia que o filho tinha perdido o celular; chamava e ninguém atendia). Sua “heurística para percepção de perigo iminente” o fez passar a operar imediatamente no sistema 1 (ele é um engenheiro que atua na área financeira. É muito bem sucedido). Outros detalhes tornavam plausível a história do seqüestro. Ele nunca tinha

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ouvido falar desse golpe (que depois ficou muito “popular” e se sofisticou; acho que ninguém mais cai nele hoje). O “resgate” foi pago (na forma de números de cartelas de telefone pré-pago transmitidos por telefone ao “seqüestrador”). Só depois meu amigo ficou sabendo que aquilo era um golpe.

Diz aí: ele tomou a decisão certa ao pagar?

FIM