daniel barreiro_ performer e meios eletrônicos

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1 PERFORMER E MEIOS ELETRÔNICOS: ASPECTOS DA INTERATIVIDADE NA MÚSICA ELETROACÚSTICA MISTA 1 PAULO AGENOR MIRANDA 2 DANIEL LUÍS BARREIRO 3 Resumo O presente artigo apresenta alguns dos resultados de uma pesquisa de Iniciação Científica financiada através do programa PIBIC/UFU/CNPq e atrelada ao projeto “Composição e improvisação musical com recursos eletroacústicos em tempo real”, financiado pela FAPEMIG. Realizada de Agosto de 2009 a Julho de 2010, a pesquisa teve como tema a interação na música eletroacústica mista, mais especificadamente em obras tanto para flauta e sons eletroacústicos fixados em suporte quanto para flauta e eletrônica em tempo real (live electronics), centrando-se no estudo da relação entre intérprete e sons eletroacústicos. Em outro trabalho (Miranda e Barreiro, 2010), tivemos a oportunidade de abordar Synchronisms n o 1, de Mario Davidovsky, como um exemplo de obra para flauta e sons eletroacústicos fixados em suporte. Jupiter, de Philippe Manoury, é abordada aqui como um exemplo de obra para flauta e eletrônica em tempo real. O presente artigo apresenta considerações gerais sobre a música eletroacústica mista, apontamentos sobre os conceitos que foram utilizados para fundamentar a análise da interação na escritura e na performance de Jupiter e os resultados alcançados com tal análise. Palavras-Chave: música eletroacústica mista; eletrônica em tempo real; análise musical; Jupiter; Philippe Manoury. Abstract This article presents some of the results of a Scientific Initiation research sponsored by the PIBIC/CNPq/UFU program and related to the project “Music composition and improvisation with realtime electroacoustic resources”, supported by FAPEMIG. The research was carried out from August 2009 to July 2010 and focused on the interaction in mixed electroacoustic music, more specifically in works for flute and tape and for flute and live electronics, aimed at the study of the relationship between the performer and the electroacoustic sounds. In another paper (Miranda e Barreiro, 2010), we had the opportunity to present some results of the analysis of Synchronisms n o 1, by Mario Davidovsky, which was taken as an example of a work for flute and electroacoustic sounds (tape). Jupiter, by Philippe Manoury, is approached here as an example of a work for flute and live electronics. This article presents some general considerations on the topic of mixed electroacoustic music, points outs some concepts that were used to support the analysis of the interaction in Jupiter and the results obtained with such analysis. The analysis was done in two stages – first focusing on the interaction as conceived by the composers and, second, on the interaction that actually takes place in the performance of the work. Keywords: mixed electroacoustic music; live electronics; musical analysis; Jupiter; Philippe Manoury. 1. INTRODUÇÃO Mudanças estéticas e técnicas da linguagem musical no âmbito das alturas, do ritmo, do timbre, da textura, das dinâmicas e de diversos outros parâmetros musicais, bem como a evolução das ferramentas – conceituais ou materiais – utilizadas na produção artística provocam mudanças significativas na postura do compositor, do intérprete e do ouvinte. A 1 Agradecimentos ao CNPq pela bolsa de Iniciação Científica concedida através do PIBIC/CNPq/UFU e à FAPEMIG pelo auxílio concedido através do Edital 21/2008. 2 Bacharel em Música (Flauta Transversal) pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Instituto de Artes (IARTE), Curso de Música. Av. João Naves de Ávila, 2121 – Campus Santa Mônica – Bloco 1V – CEP: 38400- 902 – Uberlândia (MG). E-mail: [email protected] 3 Orientador. Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Instituto de Artes (IARTE), Curso de Música. Av. João Naves de Ávila, 2121 – Campus Santa Mônica – Bloco 1V – CEP: 38400-902 – Uberlândia (MG). E-mail: [email protected]

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    PERFORMER E MEIOS ELETRNICOS: ASPECTOS DA INTERATIVIDADE NA

    MSICA ELETROACSTICA MISTA1

    PAULO AGENOR MIRANDA2 DANIEL LUS BARREIRO3 Resumo O presente artigo apresenta alguns dos resultados de uma pesquisa de Iniciao Cientfica financiada atravs do programa PIBIC/UFU/CNPq e atrelada ao projeto Composio e improvisao musical com recursos eletroacsticos em tempo real, financiado pela FAPEMIG. Realizada de Agosto de 2009 a Julho de 2010, a pesquisa teve como tema a interao na msica eletroacstica mista, mais especificadamente em obras tanto para flauta e sons eletroacsticos fixados em suporte quanto para flauta e eletrnica em tempo real (live electronics), centrando-se no estudo da relao entre intrprete e sons eletroacsticos. Em outro trabalho (Miranda e Barreiro, 2010), tivemos a oportunidade de abordar Synchronisms no1, de Mario Davidovsky, como um exemplo de obra para flauta e sons eletroacsticos fixados em suporte. Jupiter, de Philippe Manoury, abordada aqui como um exemplo de obra para flauta e eletrnica em tempo real. O presente artigo apresenta consideraes gerais sobre a msica eletroacstica mista, apontamentos sobre os conceitos que foram utilizados para fundamentar a anlise da interao na escritura e na performance de Jupiter e os resultados alcanados com tal anlise. Palavras-Chave: msica eletroacstica mista; eletrnica em tempo real; anlise musical; Jupiter; Philippe Manoury. Abstract This article presents some of the results of a Scientific Initiation research sponsored by the PIBIC/CNPq/UFU program and related to the project Music composition and improvisation with realtime electroacoustic resources, supported by FAPEMIG. The research was carried out from August 2009 to July 2010 and focused on the interaction in mixed electroacoustic music, more specifically in works for flute and tape and for flute and live electronics, aimed at the study of the relationship between the performer and the electroacoustic sounds. In another paper (Miranda e Barreiro, 2010), we had the opportunity to present some results of the analysis of Synchronisms no1, by Mario Davidovsky, which was taken as an example of a work for flute and electroacoustic sounds (tape). Jupiter, by Philippe Manoury, is approached here as an example of a work for flute and live electronics. This article presents some general considerations on the topic of mixed electroacoustic music, points outs some concepts that were used to support the analysis of the interaction in Jupiter and the results obtained with such analysis. The analysis was done in two stages first focusing on the interaction as conceived by the composers and, second, on the interaction that actually takes place in the performance of the work. Keywords: mixed electroacoustic music; live electronics; musical analysis; Jupiter; Philippe Manoury.

    1. INTRODUO Mudanas estticas e tcnicas da linguagem musical no mbito das alturas, do ritmo,

    do timbre, da textura, das dinmicas e de diversos outros parmetros musicais, bem como a

    evoluo das ferramentas conceituais ou materiais utilizadas na produo artstica

    provocam mudanas significativas na postura do compositor, do intrprete e do ouvinte. A

    1 Agradecimentos ao CNPq pela bolsa de Iniciao Cientfica concedida atravs do PIBIC/CNPq/UFU e FAPEMIG pelo auxlio concedido atravs do Edital 21/2008. 2 Bacharel em Msica (Flauta Transversal) pela Universidade Federal de Uberlndia (UFU), Instituto de Artes (IARTE), Curso de Msica. Av. Joo Naves de vila, 2121 Campus Santa Mnica Bloco 1V CEP: 38400-902 Uberlndia (MG). E-mail: [email protected] 3 Orientador. Universidade Federal de Uberlndia (UFU), Instituto de Artes (IARTE), Curso de Msica. Av. Joo Naves de vila, 2121 Campus Santa Mnica Bloco 1V CEP: 38400-902 Uberlndia (MG). E-mail: [email protected]

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    msica eletroacstica insere-se nesse contexto ao revelar, desde sua origem em finais da

    dcada de 1940, inmeras contribuies ao pensamento, criao e s prticas musicais.

    Dentre tais contribuies, a mais evidente a explorao de novos timbres, o que

    evidenciado tanto na msica eletroacstica acusmtica4 quanto na msica eletroacstica mista.

    Inicialmente composta para instrumentos musicais e sons eletroacsticos fixados em suporte,

    a msica eletroacstica mista abarcou posteriormente propostas de interao entre sons

    instrumentais e sons gerados por processamento e/ou sntese sonora em tempo real (live

    electronics). Com isso, os sons eletroacsticos tecem relaes com os sons instrumentais, o

    que amplia a palheta sonora e reinsere a dramaticidade do gesto instrumental (ausente na

    msica acusmtica) no seio da produo eletroacstica (Iazzetta, 1997). A msica

    eletroacstica mista mostra-se como um ponto de convergncia de diferentes aspectos

    tcnicos e esttico-musicais do sculo XX ao empregar a escritura instrumental (com toda

    uma gama de exploraes tpicas deste sculo) em associao potencialidade das

    sonoridades geradas pelos meios eletrnicos.

    O objetivo que guiou esta pesquisa foi entender os diferentes processos de interao na

    msica eletroacstica mista, ou seja, tanto as relaes criadas em obras para instrumentista e

    sons eletroacsticos fixados em suporte quanto em obras que fazem uso da escritura

    instrumental atrelada aos recursos de eletrnica em tempo real (live electronics). A pesquisa

    centrou-se na anlise da escritura e no estudo interpretativo da interao em duas obras

    importantes para o repertrio flautstico da msica eletroacstica mista, as quais so:

    Synchronisms n 1 (para flauta e sons fixados em suporte), de Mario Davidovsky, e Jupiter

    (para flauta e eletrnica em tempo real), de Philippe Manoury. A escolha das obras foi

    baseada na importncia histrica das mesmas, pois Synchronisms n 1 foi uma das primeiras

    obras compostas para flauta e tape da histria da msica eletroacstica5. J a obra de Manoury

    representa a primeira msica para flauta e live electronics da histria.

    4Msica composta em estdio e fixada em suporte, apresentada em concerto atravs da difuso dos sons com um conjunto de alto-falantes e sem a presena de instrumentistas ou recursos visuais. 5 Em 1952, Bruno Maderna comps Musica su due dimensioni, para flauta, percusso e tape uma importante obra na histria da produo eletroacstica por ser uma das peas pioneiras tanto na insero de sons acsticos em meio produo da msica eletrnica, quanto no uso da interao entre performer e meios eletrnicos na sua execuo. At recentemente, havamos conseguido levantar a informao de que Synchronisms n 1, de Mario Davidovsky, havia sido a primeira obra composta para flauta solo e tape. Com base em Neidhfer (2007), no entanto, foi possvel verificar que, em 1958, Maderna comps uma nova verso de Musica su due dimensioni, desta vez para flauta e tape (sem percusso) fazendo dela, portanto, a primeira obra para flauta e tape da histria. De qualquer forma, isso no invalida a importncia de Synchronisms n 1 como uma das obras precursoras do repertrio flautstico no mbito da msica eletroacstica.

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    Este artigo se concentra na abordagem de Jupiter. Os resultados encontrados com o

    estudo de Synchronisms n 1 foram abordados em Miranda e Barreiro (2010) e so aqui

    mencionados apenas brevemente. Vale destacar que a anlise dos processos de interao entre

    instrumento e sons eletroacsticos nessas duas obras foi precedida por um estudo da histria

    da msica eletroacstica, desde suas origens at o surgimento das primeiras obras

    eletroacsticas mistas, o que contribuiu para compreender as obras abordadas num contexto

    histrico mais geral.

    No que tange ao contedo deste artigo, o tpico Material e Mtodos trata das

    referncias e metodologias utilizadas para desenvolver a pesquisa. Faz-se referncias aos

    autores que se mostraram mais relevantes para o estudo da interao na escritura e na

    performance de Synchronisms n 1 e de Jupiter, e tambm trabalha-se com a Morfologia da

    Interao, desenvolvida por Menezes (2006) e utilizada aqui como ferramenta conceitual para

    o estudo da interao nas escrituras das obras.

    O tpico Resultados e Discusso traz um histrico da msica eletroacstica mista e do

    conceito de interatividade nesse gnero, bem como os resultados do estudo da interao na

    escritura e na performance das obras, com o foco centrado principalmente em Jupiter. Esse

    tpico se subdivide nos seguintes subtpicos: Musique Concrte e Eletronische Musik:

    premissas da interatividade entre intrprete e computador; De Davidovsky a Manoury:

    trajetrias da msica eletroacstica mista e aspectos da interatividade em tempo diferido e

    tempo real; Synchronisms n 1, de Mario Davidovsky; e Jupiter, de Philippe Manoury. Em

    Musique Concrte e Eletronische Musik: premissas da interatividade entre intrprete e

    computador aborda-se o surgimento da msica eletroacstica mista. Partindo do estudo das

    relaes entre as duas principais escolas de composio eletroacstica surgidas no final da

    dcada de 1940, a Musique Concrte e a Eletronische Musik, o gnero misto nasce da

    reinsero do instrumentista na produo da msica eletrnica ou, fazendo-se uso das palavras

    de Menezes (1996), da concretizao da msica eletrnica. Em De Davidovsky a Manoury:

    trajetrias da msica eletroacstica mista e aspectos da interatividade em tempo diferido e

    tempo real traz-se tona o conceito de interatividade na msica eletroacstica mista e so

    mencionados alguns embates entre os defensores do tempo diferido e do tempo real na

    execuo dos sons eletroacsticos. Em Synchronisms n 1, de Mario Davidovsky e Jupiter, de

    Philippe Manoury so abordados os resultados do estudo da interao na escritura e na

    performance dessas obras.

    O ltimo tpico trata das Consideraes Finais do trabalho.

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    2. MATERIAL E MTODOS

    Como ferramenta para a abordagem da interao musical e das questes interpretativas

    das obras estudadas, props-se a utilizao de material bibliogrfico, estudo das partituras,

    registros sonoros das obras e do aplicativo computacional (patch) programado em Pure Data

    (Pd)6 para a execuo da obra Jupiter.

    Como referncias bibliogrficas, foram utilizados trabalhos que auxiliassem no

    entendimento da interao musical em aspectos estruturais e expressivos. Dessa forma, focou-

    se ateno tanto em estudos tcnicos de elaborao estrutural da interao, tendo como

    referncia principal Menezes (2006), quanto em estudos sobre performance musical em

    msica eletroacstica mista, tendo como referncia principal McNutt (2003). Alm disso, a

    tese de doutorado de Rocha (2008) tornou-se uma importante referncia para sugestes de

    caminhos de estudo tanto analtico quanto interpretativo da interao nas obras aqui

    propostas.

    Alm disso, o uso da partitura para anlise da interao nas obras mostra-se pertinente,

    uma vez que as suas funes englobam tanto comunicar a parte da flauta para o performer e

    mediar o flautista com os sons eletroacsticos quanto documentar as informaes a respeito

    das perspectivas do compositor e das relaes interativas mais significativas das obras.

    O estudo do aplicativo (patch) em Pure Data (Pd), por sua vez mostra-se relevante

    para esclarecer de que forma os meios eletrnicos interagem com os sons da flauta na obra

    Jupiter, na qual as funes dos meios eletrnicos so mltiplas, no se limitando apenas ao

    disparo dos sons eletroacsticos.

    Quanto apreciao do resultado sonoro da obra Jupiter, utilizou-se tanto a gravao

    realizada por Elizabeth McNutt quanto alguns ensaios realizados pelos autores no Instituto de

    Artes da Universidade Federal de Uberlndia.

    Utilizou-se o conceito de Morfologia da Interao, desenvolvido por Menezes (2006),

    como referencial terico para o estudo da interao na escritura da obra. Levando-se em

    considerao que a interao entre a escritura instrumental e os sons eletroacsticos no gnero

    misto direciona-se no s para momentos de fuso e que, para Menezes (1998, p.15), o

    contraste entre ambas as esferas no era apenas reconhecido pelos compositores que se

    enveredaram pelos caminhos da msica eletroacstica mista, mas por vezes at mesmo visado 6 Trata-se de um aplicativo computacional (patch) programado por Miller Puckette no ambiente de programao Pure Data (Pd) para realizar a interao em tempo real entre sons instrumentais e eletroacsticos na obra Jpiter, de Philippe Manoury. Para maiores informaes sobre o Pure Data (Pd), ver http://puredata.info/

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    por suas estratgias composicionais, o ponto importante da Morfologia da Interao para o

    estudo analtico das obras a insero dos estgios intermedirios que se colocam entre os

    extremos representados pela fuso total e pelo contraste absoluto. Alm disso, a similaridade

    ou distino entre os dois universos sonoros so analisados, principalmente, pelos seus

    comportamentos espectromorfolgicos (sobre esse conceito, ver Smalley, 1997). Menezes

    (2006) denomina dez estgios entre os extremos de fuso total e contraste absoluto. O

    Quadro 1 abaixo demonstra e explica esses estgios, partindo do momento de maior fuso

    entre os sons instrumentais, at o estgio de maior contraste entre essas esferas. O quadro foi

    produzido tendo como referncia os escritos de Dias (2006) e Menezes (2006).

    MORFOLOGIA DA INTERAO

    Estgios de transio entre Fuso e Contraste Fuso por meio da virtualizao Simulao eletroacstica dos sons instrumentais

    Fuso por meio da similaridade textural Anulao de uma distino categrica do que instrumental e do que eletroacstico

    Transferncia no-reflexiva

    Transmutao de uma esfera para outra em que h uma dissoluo do som instrumental pela

    eletroacstica, que projeta, por sua vez, aquilo que foi executado pelo instrumentista

    Interferncia convergente

    Estgio em que o universo instrumental realiza determinadas intervenes na parte eletroacstica, porm, inexistindo o contraste absoluto entre tais

    universos sonoros

    Transferncia reflexiva

    Um dos universos surge a partir do outro, interage com aquele que o originou e, pouco a pouco integra-o e anula-o por meio de suas prprias

    inflexes

    Contaminao direcional da textura Inicialmente contrastante, mas que, entretanto, resulta em fuso, devido metamorfose de uma

    das esferas sonoras

    Interferncia potencializadora Potencializa-se os sons instrumentais no espao

    por meio dos recursos eletroacsticos, contudo sem se tratar de contraste ou fuso propriamente ditos

    Interferncia no-convergente

    Apresenta uma distino relativa, na qual um universo sonoro acentuado pelo outro, sem que

    haja fuso entre ambos ou distino de um deles no outro

    Contraste por distino textural Os dois universos esto presentes e em total divergncia

    Contraste por silncio estrutural Um dos nveis no interage com o outro, permanecendo em silncio Quadro 1: Morfologia da Interao estgios transicionais entre fuso e contraste

    3. RESULTADOS E DISCUSSO

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    3.1. Musique Concrte e Eletronische Musik: premissas da interatividade entre intrprete e computador

    Um dos principais aspectos de convergncia entre as diversas vanguardas musicais

    surgidas no sculo XX a valorizao tmbrica e a busca de novos sons. Nesse sentido, a

    incorporao do universo eletrnico para a produo sonora pode ser vista tanto como uma

    conseqncia da importncia dada ao som em si, quanto um fator crucial para a incluso de

    outros sons que no proviam dos instrumentos tradicionais acsticos.

    Pode-se considerar que a mola propulsora da histria da msica eletroacstica foi a

    gravao sonora, possibilidade que provm da criao de instrumentos mecnicos e eltricos a

    partir das ltimas dcadas do sculo XIX, e tambm a criao de instrumentos eletrnicos,

    tais como o Telarmnio e o Theremin7.

    O marco inicial da produo musical eletroacstica deve-se a Pierre Schaeffer (1966),

    o qual no ano de 1948 desenvolveu um grupo de pesquisa em msica na Rdio Francesa,

    dando origem ao movimento denominado de Musique Concrte. A Musique Concrte, tal

    como idealizada por Schaeffer, incorporava sons gravados tomados do cotidiano para a sua

    produo musical, tais como sons de objetos diversos, rudos, estruturas inarmnicas ou

    mesmo qualquer outro evento sonoro considerado at ento como no-musical. nesse

    sentido que Menezes (1996) considera tal produo como pan-musical, na medida em que a

    incorporao de eventos musicais antes no possveis de serem encontrados e notados na

    escrita musical tradicional tomou espao nessa proposta.

    Fundamentada em trs principais pilares quais sejam: fenomenologia, semiologia e

    acstica a teoria de Schaeffer apropriou-se da reduo fenomenolgica (poch) de Edmund

    Husserl para desenvolver os conceitos de escuta reduzida e objeto sonoro. Segundo Holmes

    (2009), a escuta reduzida seria a intencionalidade, no contexto da percepo sonora, de se

    ouvir o som pelo som, esforando-se para eliminar qualquer associao com sua fonte sonora,

    interpretaes simblicas ou qualquer outra forma de significao. Assim, a reduo

    fenomenolgica de Husserl serviu de base noo de escuta reduzida de Schaeffer. Quanto ao

    objeto sonoro, Holmes (2009) explica que as suas origens remetem ausncia de visibilidade

    a qual a gravao sonora propiciou (o que obriga o ouvinte a concentrar-se no som em si) e

    tambm ao sulco fechado ou sillon ferm, um tipo de arranho no disco de vinil que isola o

    som do seu contexto e o repete. Schaeffer desenvolve os conceitos de escuta reduzida e de

    7 Esses instrumentos eletrnicos foram criados, respectivamente, em 1897 por Thaddeus Cahill e em 1919 por Lon Theremin.

  • 7

    objeto sonoro como correlatos na medida em que estes se definem mutuamente e

    respectivamente como atividade perceptiva e como objeto de percepo (Chion, 2009, p. 31).

    Um aspecto de destaque da Musique Concrte a se pontuar aqui que a abolio da

    significao em msica, das causas que demonstravam a forma de produo sonora e do gesto

    musical/instrumental, aponta-nos para a importncia da matria face fonte sonora, ou, como

    afirma Menezes (1996), a transfigurao ou desnaturalizao da fonte sonora. Uma das

    conseqncias dessa postura esttica o abandono da figura do intrprete humano no incio

    da produo eletroacstica.

    Em uma esfera oposta aos princpios concretos de distanciamento do explcito e

    das significaes (embora haja elementos de convergncia com a msica concreta)

    encontramos a Eletronische Musik, desenvolvida a partir do ano de 1949 nos estdios de

    Colnia, na Alemanha, especialmente por Herbert Eimert, Karlheinz Stockhausen, Henri

    Pousseur, Gottfried Michael Koenig e Karel Goeyvaerts.

    A vertente eletrnica revigora a expresso e a significao e, para Menezes (1996),

    apresenta-se como herdeira da tradio musical por se mostrar como uma continuidade da

    linguagem serial de Webern. Nesse sentido, a Eletronische Musik faz uso do serialismo para a

    sua produo musical e leva s ltimas conseqncias a emancipao do som (leia-se cor

    sonora) esboada por Webern na sua escritura instrumental8.

    Assim, a Klangfarbenkomposition ou composio do timbre representou a

    serializao do timbre e o domnio absoluto dos dados sonoros da obra. O apogeu do

    pensamento serial, a atomizao e o mximo controle do som atravs dos meios eletrnicos

    so as principais caractersticas da vertente eletrnica (Menezes, 1998).

    Esse tipo de abstrao, racionalidade e controle excessivo do material musical levou s

    ltimas conseqncias a autonomia do compositor ante o intrprete na produo eletrnica e a

    refuta de qualquer tipo de indeterminao na manifestao da obra. Para os msicos da

    vertente eletrnica, a escritura instrumental apresentava-se cheia de limitaes e a sua

    abolio representou a negao quanto s imprecises da execuo instrumental e uma

    exatido sobre-humana no controle sonoro, podendo inclusive levar os preceitos seriais para a

    composio do timbre.

    Porm, tanto a Musique Concrte quanto a Eletronische Musik esboavam, desde o

    incio, contradies em suas escrituras que foram decisivas para a revalidao de algumas 8 Apesar de o compositor Arnold Schoenberg ter usado o termo cor sonora ou melodia por timbres em relao s suas Cinco Peas para Orquestra, especificadamente a terceira pea, Farben, deve-se Webern a busca pela atomizao do som.

  • 8

    posturas sectrias. Dentre elas, destaca-se o uso exclusivo de sons de origem eletrnica e a

    serializao do timbre, para a vertente alem, e, em outra esfera, o uso exclusivo de sons

    tomados do cotidiano e a abolio total da significao em msica para a vertente francesa.

    Por fim, verifica-se a abolio do intrprete em ambas.

    A crise quanto abolio do intrprete na msica eletroacstica era inevitvel. Com o

    passar dos anos, algumas questes como o resgate pelos fenmenos direcionais e um discurso

    musical que ia de encontro esttica pontilhista do serialismo integral, a incorporao do

    rudo (antepondo-se ao controle totalizante do som) e a no-funcionalidade da percepo

    serial do timbre geraram obras importantes para o nascimento do gnero misto da msica

    eletroacstica. Como exemplo de tais obras, pode-se citar Glissandi, de Gyorgi Ligeti a qual

    no faz uso da serializao do timbre , Scambi, de Henri Posseur a qual utiliza apenas

    rudo e incorpora elementos de aleatoriedade na obra , Gesang der Jnglinge de Stockhausen

    a qual, em meio aos sons eletrnicos difundidos pelos alto-falantes, ouve-se a voz de um

    adolescente recitando textos da bblia do livro de Daniel9.

    Alm disso, o fundador da vertente concreta admitiu, posteriormente, a reinsero da

    figura do performer, em uma entrevista de 1990, na qual disse: [...] a falta de gesto na manipulao da msica eletroacstica uma carncia, uma privao, uma enfermidade que me afetou muito. Quando eu trabalhei [...] na eletroacstica [...], o fato de no mais ter gestos para fazer, o fato de no mais encontrar composies musicais ou mesmo fontes sonoras em harmonia com a gestual humana j era um sofrimento, no ? certo que esta separao do som de suas razes, de seu gesto instrumental, tambm uma fonte de abstrao temvel (Schaeffer & Zagonel, 1990 apud Holmes, 2009, p. 29).

    Nesse sentido, o mesmo gnero musical que aboliu a presena do intrprete humano

    no ato composicional reinseriu essa figura do performer, notada como muito importante e,

    talvez, indispensvel para a manifestao musical.

    Surgida, portanto, a partir da Musique Concrte e da Eletronische Musik, a msica

    eletroacstica mista apresenta-se como uma continuidade histrica entre a produo musical

    pr-eletroacstica e ps-eletroacstica, na medida em que esse gnero mescla, em sua

    escritura, aspectos da linguagem instrumental com a produo eletroacstica.

    3.2. Aspectos da interatividade na msica eletroacstica mista em tempo diferido e tempo real

    9 importante ressaltar que essas obras mencionadas, apesar de terem tido uma inegvel importncia para o nascimento do gnero misto da msica eletroacstica, fazem parte do gnero acusmtico.

  • 9

    Pode-se argumentar que o termo interao sempre esteve presente no fazer musical

    (nas performances). No entanto, um conceito que ganhou maior relevo a partir do sculo

    XX (assim como o conceito de gesto musical). Antes desse perodo, as relaes camersticas

    inerentes s msicas que envolvessem mais de um instrumentista (ou cantor) e as relaes do

    prprio instrumentista com o seu instrumento j eram tidas como interao musical. Na

    msica eletroacstica, no entanto, a interao musical ganha um outro matiz. A interao

    passa, ento, a ser abordada do ponto de vista das diferentes relaes musicais que se

    estabelecem entre o homem e os meios eletrnicos.

    Segundo McNutt (2003), para a maioria dos compositores eletroacsticos, a

    interatividade refere-se tecnologia que responde a um impulso do intrprete. Do ponto de

    vista dos intrpretes, em contraste, a performance pode ser descrita como interativa quando o

    performer interage com dispositivos tais como microfones, alto-falantes, pedais, sensores,

    e/ou interage com parceiros invisveis, tais como software de computador.

    Obras para instrumento e fita pr-gravada (ou sons eletroacsticos fixados em

    suporte) e composies para instrumento e live electronics, nas quais ocorre

    sntese/transformao sonora em tempo real, representam diferentes possibilidades de relao

    entre o intrprete e meios eletrnicos. As duas obras que foram estudadas na pesquisa

    representam, a princpio, dois extremos da msica eletroacstica mista em termos de

    interatividade intrprete-computador.

    As diferentes formas de interao na msica eletroacstica mista tornam-se pontos

    para discusses e investigaes relativas concepo da interao musical, nos aspectos

    estrutural ou seja, as relaes entre o que se ouve nas partes instrumentais e nos sons

    eletroacsticos e performtico. H um embate desenvolvido em torno da interao na

    msica eletroacstica mista denominado, por Manoury (1998), de querela dos tempos. A

    querela dos tempos divide os msicos defensores da concepo dos sons eletroacsticos em

    tempo diferido (ou seja, num momento distinto ao da performance) e, por outro lado, os

    msicos que defendem a sntese/processamento em tempo real dos sons eletroacsticos (no

    momento da performance).

    Segundo as consideraes feitas por Dias (2006), os sectrios que defendem a gerao

    sonora em tempo real acreditam que os sons eletroacsticos fixados em suporte no

    possibilitam ao intrprete liberdade interpretativa, o que ocasiona uma dependncia em

    relao a um tempo externo ao instrumentista, com ausncia de liberdade aggica.

  • 10

    Em outra esfera, os defensores da concepo sonora em tempo diferido acreditam que

    a sntese/processamento em tempo real expe o intrprete a situaes inesperadas, tais como

    sons no previstos ou eventos que deveriam ocorrer e falharam por algum motivo. Alm

    disso, a composio dos sons eletroacsticos em tempo diferido permite um maior controle

    das nuances sonoras e das relaes entre sons eletroacsticos e sons instrumentais.

    Porm, indo ao encontro das idias de Dias (2006), acredita-se que a flexibilidade

    interpretativa em uma obra mista determinada mais pelas idias da composio do que por

    uma resultante da liberdade cronomtrica aferida a um condicionante fsico.

    Menezes (2006) afirma que uma das formas de interao mais eficaz ocorre entre em

    composies mistas com tempo diferido, j que, dessa forma, durante o processo de criao

    da escritura instrumental e dos sons eletroacsticos em estdio, o compositor pode estabelecer

    relaes musicais coerentes tanto estruturalmente, quanto expressivamente entre os dois

    meios.

    importante ressaltar que os sons eletroacsticos da msica com eletrnica em tempo

    real quase sempre esto atrelados morfologia espectral dos sons do instrumentista, o que no

    possibilita uma grande variedade tmbrica. Alm disso, pelo curto espao de tempo de sntese

    ou processamento dos sons eletroacsticos, no se pode esperar uma rebuscada elaborao

    espectral e estrutural desses sons. Embora essa crtica seja em parte procedente, o

    desenvolvimento dos recursos computacionais tem aberto possibilidades de superao desse

    problema.

    No que diz respeito interao, Lippe (2002) e Dobrian (2004) tm uma concepo

    interessante. Segundo esses autores, a interao se d quando o computador e o intrprete tem

    um certo nvel de autonomia para tomar decises em tempo real, com base em suas

    influncias recprocas.

    Independentemente de a obra fazer uso de sons eletroacsticos fixados em suporte ou

    com eletrnica em tempo real, acredita-se que a interao depende muito mais da escritura da

    obra do que da existncia de sons eletroacsticos em tempo diferido ou processamento/sntese

    em tempo real. Mesmo porque h a possibilidade de combinar ambas as abordagens numa

    mesma obra (ver Barreiro, 2007).

    Dessa forma, o processo metodolgico de estudo da interao nas obras de

    Davidovsky e Manoury (eleitas na pesquisa como objetos de estudo da interao na msica

    eletroacstica mista para flauta) levou em conta a escritura e o estudo interpretativo das

    mesmas. No primeiro caso, estudou-se como os compositores estabeleceram as relaes

  • 11

    interativas entre a flauta e os sons eletroacsticos na escritura da obra. No segundo caso, os

    aspectos de interao foram considerados sob o vis do intrprete abordando-se os processos

    de estudo para adequao da performance proposta dos compositores e das obras, e de que

    forma as relaes interpretativas nos dois meios de interao influenciam na construo de

    uma prtica interpretativa.

    3.3. Synchronisms no1, de Mario Davidovsky Conforme mencionado na Introduo, embora o foco do presente artigo seja a obra

    Jupiter, de Philippe Manoury (tomada como exemplo de obra para flauta e eletrnica em

    tempo real), so aqui apresentados breves apontamentos sobre Synchronisms n 1, de Mario

    Davidovsky, a qual foi o foco de um trabalho anterior (Miranda e Barreiro, 2010) que tambm

    fez parte da pesquisa.

    Em Synchronisms n 1, Davidovsky utiliza os sons eletrnicos para enriquecer a

    tradio musical, e no substitu-la. Segundo Chasalow (2006), na srie Synchronisms

    Davidovsky aprofundou-se nas mais bsicas propriedades acsticas dos instrumentos musicais

    utilizados. Em vez de fazer uso das tecnologias mais sofisticadas de anlises acsticas dos

    instrumentos musicais, o compositor preferiu seguir a forma mais sensvel de anlise a sua

    audio. Assim, cada detalhe do som tornou-se, portanto, uma pea importante para a

    construo do material bsico a ser utilizado nas obras. Essas obras apresentam o uso de

    tcnicas seriais, embora Synchronisms n 1 no seja estritamente serial. Segundo

    Bassingthwaighte (2000), a ateno se volta para um movimento largo e focado sobre gestos

    sonoros mais expandidos, uma vez que o senso mtrico e de pulsaes raro na obra.

    Percebe-se que em Synchronisms n 1 Davidovsky utiliza tanto a fuso quanto o

    contraste entre o universo eletroacstico e o instrumental para articular o dinamismo da obra.

    Assim, com base no conceito de Morfologia da Interao, potencializam-se os gestos

    musicais de um universo em outro, ou acentua-se uma relativa distino entre eles. Em outros

    momentos, h uma total divergncia entre os dois universos ou um contraste absoluto,

    estabelecido principalmente atravs do silncio estrutural de um deles.

    Segundo Chasalow (2006), na srie Synchronisms h uma unio entre as esferas

    eletroacstica e instrumental de forma que uma revigore a outra de maneira surpreendente.

    Segundo o autor, nessas peas Davidovsky cria o primeiro e verdadeiro hiper-instrumento,

    onde o instrumento e os sons eletrnicos modulam um ao outro e tornam-se algo totalmente

    novo, criando uma forma de realidade musical virtual. Indo ao encontro do pensamento de

  • 12

    Chasalow (2006), Bassingthwaighte (2000) afirma que em alguns momentos os dois

    universos sonoros so tratados de maneira igual, de forma que haja uma interdependncia e

    uma relao de complementaridade entre os universos instrumental e eletroacstico, mesmo

    que se faa uso da fuso ou do contraste entre eles.

    A partir da Morfologia da Interao, pode-se nomear essa caracterstica das obras de

    Davidovsky como Interferncia Potencializadora, na qual potencializa-se os sons

    instrumentais no espao por meio dos recursos eletroacsticos, contudo sem se tratar de

    contraste ou fuso propriamente ditos (Dias, 2006, p. 58). A Figura 1 ilustra essa

    caracterstica, representando o primeiro gesto musical da obra, momento no qual a nota R da

    flauta prolongada pelo tape.

    Figura 1: Interferncia Potencializadora no primeiro gesto de Synchronisms n 1 (imagem reproduzida a partir

    da edio da partitura de Davidovsky, 1966)

    Davidovsky prope a interao entre os sons eletroacsticos e os sons de flauta

    durante a performance e garante certas liberdades interpretativas em Synchronisms no 1

    mesmo sendo esta uma obra com sons eletroacsticos fixados em suporte. Segundo McNutt

    (2003), performances de obras com sons eletroacsticos fixados em suporte apresentam-se

    como um tipo de msica de cmara em que o parceiro do instrumentista (leia-se os sons

    eletroacsticos) mostra-se como egosta, inflexvel, irresponsvel e completamente surdo.

    Entretanto, a autora afirma tambm que existem duas estratgias bsicas de composio em

    obras mistas com tempo diferido que podem ser combinadas em uma mesma obra:

    coordenao fluida e rgida.

    Um interessante caminho que Davidovsky tomou para solucionar o problema da

    sincronizao em sua srie Synchronisms refere-se alternncia de sees curtas que fazem

    uso de clulas rtmicas e de uma mtrica tradicional as quais exigem do performer uma

  • 13

    perfeita sincronizao com a parte eletroacstica com sees mais longas nas quais o tempo

    pode ser mais flexvel e com notao proporcional/espacial10.

    Em Synchronisms n 1, Davidovsky segmenta a parte eletroacstica em cinco

    diferentes trechos, os quais podem ser disparados tanto pelo performer (com a utilizao de

    um pedal MIDI, por exemplo), quanto por outra pessoa. Segundo Rocha (2008), a

    segmentao dos sons eletroacsticos em diferentes arquivos de udio promove uma maior

    liberdade interpretativa. Para Stroppa (1999), a possibilidade de disparo de cada uma dos

    cinco arquivos de udio de Synchronisms n 1 durante a performance torna a obra interativa,

    na medida em que, para ele, a interatividade na difuso da msica eletroacstica mista ocorre

    a partir do momento em que esta possibilita algum controle sobre o sistema sonoro.

    3.4. Jupiter, de Philippe Manoury

    Jupiter a primeira obra da srie Sonus ex Machina. Essa srie, escrita entre 1987 e

    1991, abrange um ciclo de obras interativas para instrumentos e meios eletrnicos.

    Segundo Rocha (2008), foi em Jupiter que se utilizou pela primeira vez o software

    Max desenvolvido em 1987 no IRCAM (Institut de Recherche et Coordination

    Acoustique/Musique)11 por Miller Puckette, e que hoje uma das principais ferramentas

    utilizadas em obras eletroacsticas com live electronics.

    O software Max um ambiente de programao que permite ao compositor (ou

    assistente) construir suas prprias ferramentas de anlise, de processamento ou de sntese

    sonora. O uso do Max na performance de obras eletroacsticas volta-se, normalmente, para

    executar a parte eletrnica. O software, nesse sentido, pode processar digitalmente o som,

    reproduzir arquivos de som disparados pelo performer e tambm criar sons eletronicamente

    usando sntese digital em tempo real (Rocha, 2008). Esses processos so utililizados por

    Manoury em Jupiter.

    Uma alternativa ao uso do Max criada tambm por Miller Puckette o software Pd

    (Pure Data), com caractersticas similares ao Max, porm disponvel gratuitamente. Para a

    10Para Sacramento (2007, p. 97), a execuo de msica em notao espacial, ao contrrio da tradicional, no ritmicamente precisa, pois contar tempo muito mais preciso do que julgar distncias. , portanto, um sistema utilizado quando se pretende flexibilidade rtmica, duraes vagas ou desencontradas, desfasamentos e outras situaes semelhantes. 11IRCAM (Instituto de Pesquisa e Coordenao de Msica e Acstica) uma instituio dedicada pesquisa e criao de msica erudita contempornea, inaugurado em 1977 em Paris, Frana. Para maiores informaes, consultar o site oficial da Instituio: http://www.ircam.fr/

  • 14

    execuo de Jupiter, Puckette criou a verso do patch em Pd, o qual foi utilizado para a

    pesquisa aqui proposta12.

    Alm disso, Jupiter tambm fez uso, pela primeira vez na histria, do sistema score

    following, o qual garante uma interao eficiente e bastante responsiva entre intrprete e

    meios eletrnicos. Esse sistema ser detalhado no tpico A interao na performance de

    Jupiter.

    3.4.1. A interao na escritura de Jupiter

    Segundo May (2005), arqutipos sonoros, gestuais e interativos so estabelecidos na

    primeira seo da obra e depois desenvolvidos ou recapitulados nas sees posteriores,

    criando, assim, uma teia de conexes musicais. Apesar de a recorrncia e a recapitulao

    serem importantes para a construo formal de Jupiter, a interao entre a parte da flauta e os

    sons eletroacsticos varia tremendamente quando os materiais musicais so retomados.

    Para o cumprimento dos objetivos aqui propostos, o estudo da interao na obra

    Jupiter esteve centrado na seo I, abordada do ponto de vista da anlise da escritura, e nas

    sees II e V, abordadas do ponto de vista da anlise interpretativa.

    Manoury cria, em Jupiter, relaes entre a flauta e meios eletrnicos de alcance

    orquestral. Para May (2005), o computador na obra atua como maestro, msicos e

    instrumentos, em uma invisvel, porm altamente interativa orquestra digital.

    As relaes interativas entre flauta e meios eletrnicos na obra so apresentadas na

    partitura, no software e no resultado sonoro da mesma. Segundo May (2005) [] todos os trs elucidam a inteno do compositor e so necessrios para compreender essa obra. Cada um representa uma perspectiva diferente sobre a msica a partitura fala primeiramente ao performer, o software para o tcnico e o resultado sonoro para a audincia. A obra em si est situada indefinidamente entre notao, software, performance e som (May, 2005, p. 145).

    Dessa forma, para a anlise da interao na escritura de Jupiter, levou-se em

    considerao a partitura, o software e o resultado sonoro. A funo da partitura, alm de

    comunicar a parte da flauta para o performer e mediar o flautista com a orquestra digital,

    documentar as informaes a respeito das perspectivas do compositor e das relaes

    interativas mais significativas em cada seo. A abordagem do software volta-se para alguns

    aspectos relevantes para se esclarecer de que forma os meios eletrnicos interagem com os

    sons da flauta. Para a abordagem do resultado sonoro da obra utilizou-se tanto a gravao de 12 O patch de Jupiter est disponvel no website site http://crca.ucsd.edu/~msp/pdrp/latest/

  • 15

    Jupiter por Elizabeth McNutt quanto alguns ensaios da obra realizados pelo bolsista durante a

    pesquisa no Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlndia. Esses ensaios

    possibilitaram analisar as estratgias de interao utilizadas por Manoury na obra e apontadas

    por May (2005) em seu trabalho, juntamente com os conceitos oriundos da Morfologia da

    Interao, desenvolvida por Menezes (2006).

    Na partitura, Manoury voluntariamente utiliza representaes dos sons eletroacsticos

    que nem sempre so fceis de associar com o resultado sonoro, forando o flautista a voltar

    sua ateno para as principais relaes interativas desejadas em cada seo da obra. Assim,

    por exemplo, na subseo IA a notao de Manoury aponta para uma dimenso fcil de ser

    seguida pelo flautista, que a insero de alturas que do suporte linha da flauta, tanto

    temporalmente, quanto harmonicamente. Alm disso, a notao mostra, tambm, o momento

    de finalizao de cada uma dessas alturas, fazendo-se uso da notao espacial. Essa uma

    caracterstica importante na escrita de Jupiter: em um mesmo momento da obra, Manoury

    mescla diferentes formas de notao para melhor representar a interao e o resultado sonoro

    desejado. Nesse caso, linha da flauta, escrita com o uso da mtrica tradicional, incorporada

    uma linha em que os sons eletroacsticos so grafados de forma espacial. Abaixo, a Figura 2

    representa parte da subseo IA.

    Figura 2: Subseo IA da obra Jupiter (imagem reproduzida a partir do manuscrito de Manoury, 1987, rev.

    1992)

    J na subseo ID, rpidas seqncias na parte eletroacstica apresentam-se de uma

    maneira complicada de ser seguida auditivamente. Dessa forma, o compositor nota na

    partitura os padres rtmicos e as alturas das seqncias, de forma que o flautista consiga

  • 16

    acompanhar visualmente o gesto musical dos sons eletroacsticos. importante notar que,

    nessa subseo, acompanhar o perfil meldico dos sons eletroacsticos apresenta-se mais

    eficaz do que seguir o ritmo e as alturas desses. Abaixo segue a Figura 3, representando essa

    subseo.

    Figura 3: Subseo ID da obra Jupiter (imagem reproduzida a partir do manuscrito de Manoury, 1987, rev.

    1992)

    Alm disso, a sincronizao representada na partitura atravs de deixas numeradas

    do computador (cues), as quais representam cada disparo ou mudanas nos sons

    eletroacsticos. Os principais eventos que ocorrem na parte eletroacstica so representados

    tambm na partitura (ver Figura 2).

    Atravs da anlise do aplicativo (patch) da obra programado em Pure Data e da

    instrumentao utilizada na orquestra digital, pode-se extrair algumas consideraes a

    respeito da interao entre flauta e meios eletrnicos em Jupiter. Os recursos sonoros e as

    respectivas tcnicas utilizadas para a produo dos sons eletroacsticos apresentam maior ou

    menor aproximao com a linha da flauta. Esses instrumentos digitais podem ser divididos

    em trs distintos naipes: samplers, sintetizadores e processadores de sinal (ver May, 2005,

    p.149). Abaixo, o Quadro 2 apresenta os instrumentos digitais, com breves explicaes a

  • 17

    respeito de cada um, e a identificao do naipe ao qual pertencem. A ordem em que os

    instrumentos so apresentados abaixo foi retirada do trabalho de May (2005) e demonstra

    uma crescente distncia dos sons eletroacsticos em relao linha da flauta. Para maiores

    informaes, consultar May (2005, p. 149 e 181).

    Flrvb reverb de manuteno infinita aplicado ao som da flauta um tipo de processador de sinal

    flharmrvb o som da flauta passa por um harmonizer e o resultado sonoro deste passa por um reverb de manuteno inifinita constituem processadores de sinal

    paf synth tipo de sintetizador no qual h oito vozes de sntese por formantes com fase alinhada

    freq shifter modulador de banda lateral, com sadas separadas de adio e de subtrao de freqncias; um tipo de processador de sinal

    noise mod processador de sinal com uma rede de filtros de pente comb filters e moduladores de anel

    spatializer processador de sinal que espacializa o som em quarto canais em tempo real

    fl phase mod modulador de fase, aplicado diretamente sada da flauta um tipo de processador de sinal samp: flute note sampler baseado em amostras de sons de flauta

    add synth vinte vozes de sntese aditiva, com oito diferentes formas de onda disponveis um tipo de sintetizador

    syn/sampharm o sinal tanto dos sintetizadores quanto dos samplers enviado para o harmonizer

    samp: tongue-rams sampler baseado em amostras de sons de tongue-ram da flauta (um tipo de som produzido atravs de tcnica estendida)

    samp: tam-tam sampler baseado em amostras de sons percussivos de tam-tam samp: pno chord sampler baseado em amostras de acordes de piano

    chapo synth vinte e oito vozes de sntese aditiva com envelope espectral aplicado a cada parcial um tipo de sintetizador

    Quadro 2: Instrumentos Digitais utilizados em Jupiter

    Em se tratando da seo I de Jupiter, Manoury utiliza as seis primeiras tcnicas da

    lista acima, quais sejam: (flrvb), (flharmrvb), (paf synth), (freq shifter), (noise mod) e (spatializer). Dessa forma, pode-se concluir que, timbricamente, h uma estreita

    interao entre flauta e sons eletroacsticos na seo I, demonstrando um foco em momentos

    de fuso entre essas duas esferas (ver May, 2005, p.181).

    A seo I dividida em oito subsees, considerando-se como integrante tambm o

    solo de abertura da flauta. Manoury nomeia as sees com nmeros romanos, e as subsees

    com letras. Assim, a seo I se compe de abertura e subsees de IA a IG.

    Em se tratando das divises da seo I, pode-se pontuar que as subsees que se focam

    mais no solo de flauta so a abertura e a subseo IE (ver May, 2005, p.175). Isso porque na

  • 18

    abertura no h interao entre flauta e sons eletroacsticos, ocasionado por silncio estrutural

    da esfera eletroacstica. J na subseo IE, a flauta interage com os meios eletrnicos, o que

    ocorre em direo ao final dessa subseo, quando o som da flauta passa pelo reverb com

    manuteno infinita (rev(f)) e gera um processo de sntese por formante com fase alinhada

    (paf). Esses recursos eletrnicos utilizados na subseo IE representam o segundo e terceiro

    instrumentos digitais, respectivamente, na ordem de distncia entre a linha da flauta e os sons

    eletroacsticos.

    J subsees como a IB, IF e IG, por exemplo, apresentam o uso de instrumentos

    digitais um pouco mais afastados da linha da flauta, tais como freq shifter, noise mod e

    spatializer.

    Considerando o resultado sonoro da obra para anlise da interao na escritura, Jupiter

    apresenta sete diferentes relaes interativas entre flauta e meios eletrnicos. Manoury

    combina de forma flexvel e simultnea essas estratgias, de modo que relaes estticas tais

    como pergunta-resposta sejam evitadas na obra. Abaixo seguem as estratgias de interao

    utilizadas por Manoury em Jupiter conforme apontadas por May (2005, p.153 e p.155-157)

    em seu trabalho:

    1) Extenso Temporal (ET): as notas da flauta so estendidas no tempo, geralmente

    atravs do reverb com manuteno infinita;

    2) Ativao Rtmica (AR): eventos sintetizados ou gerados a partir de amostras gravadas

    so apresentados em seqncias com comportamento rtmico independente (em geral,

    mais rpido) que o comportamento rtmico da flauta;

    3) Extenso Sonora (ES): h uma extenso sonora gerada atravs de timbres que

    transformam ou que contrastam com o timbre da flauta;

    4) Extenso Harmnica (EH): novas alturas geradas pelo computador proporcionam

    suporte ou contraste em relao linha da flauta (May, 2005, p.153);

    5) Coordenao Motora (CM): relao em que o flautista segue o ritmo motriz inflexvel

    de uma seqncia gerada pelo computador;

    6) Comportamento Independente (CI): seqncias de sons da flauta so gravadas em

    trechos de uma determinada seo e determinam o comportamento rtmico do

    computador em sees posteriores. Como o computador realiza uma interpolao

    entre as seqncias gravadas e como os dados rtmicos surgem posteriormente com

    outros timbres a correlao com as seqncias originais pode no se mostrar to bvia

  • 19

    ver no tpico A interao na performance de Jupiter consideraes sobre a relao

    entre flauta e sons eletroacsticos nas sees II e V da obra;

    7) Dinmica Sonora (DS): nas sees VI e XII, as notas da flauta controlam o timbre dos

    sons produzidos pelo computador mudando continuamente e de forma independente o

    envelope espectral (a amplitude de cada um dos 28 osciladores) de um mdulo de

    sntese aditiva (chapo synthesizer).

    Todas essas tticas, utilizadas em Jupiter de diferentes formas e com diferentes

    objetivos no que diz respeito interao entre flauta e meios eletrnicos, podem aumentar ou

    diminuir a autonomia do computador em relao linha da flauta, o que acrescenta

    profundidade e variedade na interao, segundo May (2005, p. 155).

    Na seo I, diferentes combinaes de algumas dessas tticas acima mencionadas

    promovem uma variedade na interao entre flauta e meios eletrnicos. O Quadro 3

    representado abaixo uma reproduo com algumas modificaes de um quadro de May

    (2005, p. 175) na qual apresentam-se, em cada subseo da seo I, as relaes tticas de

    interao utilizadas (ver as sete estratgias de interao listadas acima para uma legenda das

    siglas utilizadas no quadro).

    Solo de Abertura IA IB IC ID IE IF IG

    Relaes tticas de interao Nenhuma

    ET

    EH

    ET

    ES

    AR

    ET

    EH

    ET

    EH

    AR

    (solo)

    No final:

    ET

    ET

    EH

    ES

    ET

    ES

    Quadro 3: Relaes tticas de interao na seo I da obra Jupiter

    A partir dos apontamentos de May (2005), analisou-se a seo I com base na

    Morfologia da Interao (Menezes, 2006). O Quadro 4 abaixo demonstra os resultados do

    estudo da interao na escritura da seo I com base nessas duas referncias.

    Solo de Abertura IA IB IC

    RELAES

    TTICAS DE

    INTERAO

    Nenhuma

    Extenso

    Temporal e

    Harmnica

    Extenso

    Temporal e

    Sonora E

    Ativao

    Rtmica

    Extenso

    Temporal e

    Harmnica

  • 20

    Contraste por

    silncio estrutural

    Transferncia

    reflexiva;

    Interferncia

    potencializadora

    Interferncia

    no-

    convergente

    Transferncia

    reflexiva;

    Interferncia

    no-

    convergente

    ID IE IF IG

    RELAES

    TTICAS DE

    INTERAO

    Extenso

    Temporal e

    Harmnica E

    Ativao

    Rtmica

    Extenso

    Temporal

    Extenso

    Temporal,

    Harmnica e

    Sonora

    Extenso

    Temporal e

    Sonora

    Interferncia

    no-

    convergente

    Contraste por

    silncio

    estrutural;

    Transferncia

    no-reflexiva

    Interferncia

    no-

    convergente

    Interferncia

    no-

    convergente

    Quadro 4: Relaes tticas de interao na seo I da obra Jupiter, com base na Morfologia da Interao

    3.4.2. A interao na performance de Jupiter

    Como mencionado anteriormente, Jupiter fez uso da tcnica de score following pela

    primeira vez na histria. Com essa tcnica, que poderia ser traduzida como seguidor de

    partitura, o computador acompanha o performer atravs da identificao de alturas que so

    tocadas (pitch tracking), disparando eventos previstos em momentos especficos. O score

    follower permite ao intrprete uma maior liberdade para moldar o tempo, o que o liberta do

    enclausuramento cronomtrico de obras com sons eletroacsticos fixados em suporte.

    Entretanto, segundo McNutt (2003) esse sistema constri outro tipo de "priso": a priso da

    perfeio. O identificador de alturas pode ser negativamente afetado por variaes de

    acstica, microfones e seus posicionamentos e erros de notas. Qualquer um destes fatores

    pode produzir dados inesperados, o que ir comprometer o funcionamento do score follower.

    Apesar dos obstculos mencionados acima, o score following usado em Jupiter para

    criar uma interao eficaz e altamente responsiva entre intrprete e meios eletrnicos. A

    interao que o score following promove em Jupiter pode ser vista em uma micro e macro

    escala. O primeiro caso refere-se resposta dos meios eletrnicos a partir do reconhecimento

    de alturas da linha da flauta e, assim, o disparo de alguns eventos pr-concebidos ou

    processados/sintetizados em tempo real. Essa resposta muito rpida e promove uma

    excelente coordenao entre instrumentista e meios eletrnicos. Em uma escala maior, alguns

  • 21

    trechos do material musical da flauta so registrados pelo computador, transformados e

    reproduzidos em sees posteriores da pea, construindo a interao entre flauta e sons

    eletroacsticos na forma global da obra. Segundo McNutt (2003) isso adiciona um certo grau

    de incerteza para a performance: se alguns disparos ou deixas de gravao so perdidas

    durante as sesses gravadas, as conseqncias s sero sentidas muito mais tarde na pea.

    Alm desse fator acima mencionado, graus de incerteza para a performance de Jupiter

    so dados atravs de correlaes entre fragmentos gravados a partir da linha da flauta e sua

    reproduo transformada em sees posteriores. Esse o caso da interao em macro escala

    que ocorre entre as sees II e V, por exemplo. Na seo II alguns gestos sonoros da flauta

    so gravados como material musical para as interpolaes eletroacsticas da seo V ( o caso

    do Comportamento Independente (CI), mencionado acima).

    Segundo May (2005), a diferena entre os timbres dessas duas sees obscurecem a

    estreita relao entre a interpretao do flautista de certos gestos e a reinterpretao desses por

    parte do computador. Porm, a forma, velocidade e trajetria das interpolaes so um espelho da interpretao do flautista de figuras na seo II.[...] Nesse caminho, ao flautista dado autoridade em uma seo para controlar em tempo real a composio de outra (May, 2005, p. 178).

    Partindo-se dos apontamentos de May (2005) acima mencionados, foram realizados

    alguns experimentos durante a pesquisa. Nesses experimentos, o bolsista buscou abordar de

    que forma ocorre a interao entre flauta e meios eletrnicos na performance das referidas

    sees da obra atravs da gravao de diferentes interpretaes dessas sees. Assim, foram

    realizadas algumas possibilidades de interpretao da seo IIA (seo onde o software grava

    trechos da linha da flauta) e analisou-se de que forma a seo V reagia a essas possibilidades.

    As possibilidades de interpretao da subseo IIA atentaram-se para questes de andamento

    e aggica. A escolha desses parmetros de interpretao se deu pela viabilidade na variao

    dos mesmos, fato impossvel para o mbito das alturas, por exemplo (as quais so

    especificadas precisamente pelo compositor e identificadas pelo score follower). Assim,

    foram executadas quatro diferentes interpretaes, com os parmetros lento/rpido e

    regular/irregular13:

    1) Subseo IIA lenta e regular;

    2) Subseo IIA lenta e irregular;

    13O parmetro lento ou rpido refere-se pulsao escolhida para a execuo da subseo IIA. J o parmetro regular ou irregular refere-se execuo mesma das clulas rtmicas apresentadas nessa seo.

  • 22

    3) Subseo IIA rpida e regular;

    4) Subseo IIA rpida e irregular.

    Os resultados obtidos na seo V para as diferentes interpretaes da subseo II

    convergiram para mudanas de tempo cronomtrico de cada uma das execues das

    interpolaes presentes nas subsees VA a VC. O Quadro 5 expe os valores de tempo de

    execuo de cada uma das possibilidades de interpretao da subseo II e tambm os valores

    de execuo das interpolaes em cada uma das subsees da seo V.

    IIA VA VB VC VC evento 24

    Lento e Irregular: 108 043 055 120 033

    Lento e Regular: 103 040 053 107 026

    Rpido e Irregular: 056 040 044 102 023

    Rpido e Regular: 050 041 041 059 017

    Quadro 5: Tempo cronomtrico da execuo da subseo IIA e da seo V

    Percebe-se que, da interpretao de Lento/Irregular Rpido/Regular da subseo IIA,

    h um decrscimo no tempo cronolgico dessa seo, bem como nas subsees VB, VC e a

    marcao 24 da subseo VC. A partir disso, pode-se concluir dois principais aspectos da

    interao entre as sees IIA e V nas suas execues. A primeira concluso que o tempo

    cronolgico das interpolaes eletroacsticas da subseo VA no depende do tempo de

    execuo da subseo IIA. Apesar de o material rtmico para as interpolaes dessa subseo

    partir das gravaes da linha da flauta na subseo IIA, o tempo cronolgico em que as

    interpolaes acontecem est atrelado execuo da linha da flauta da prpria subseo VA.

    importante ressaltar, porm, que o ritmo e o andamento das clulas rtmicas utilizadas nas

    interpolaes dessa subseo esto relacionadas execuo da subseo IIA. Assim, se essa

    seo interpretada de forma rpida e irregular, por exemplo, a forma e velocidade das

    interpolaes seguiro esse caminho.

    J a segunda concluso mostra que a interao na interpretao da subseo IIA e da

    seo V mais estreita do que se pode perceber atravs do resultado sonoro dessas. O grau de

    liberdade temporal do flautista na subseo IIA apresentado de forma convergente na

    execuo das interpolaes nos sons eletroacsticos da seo V. Assim, por exemplo, quanto

    mais rpida ou mais lentamente executa-se a subseo IIA, mais rpida ou mais lentamente

    finalizado o evento 24 da subseo VC.

  • 23

    Em suma, os apontamentos acima demonstram a importncia do conhecimento do

    software, da partitura e do comportamento do computador em cada seo da obra a fim de se

    construir uma proposta de interpretao condizente com a proposta do compositor. A

    interao na interpretao da obra mostra-se rica e variada e os meios em que Manoury se

    baseou para edificar uma relao no-esttica entre flauta e computador so viveis.

    4. CONSIDERAES FINAIS O presente artigo teve como tema a interao na msica eletroacstica mista com base

    nos estudos, realizados no mbito da pesquisa de Iniciao Cientfica, de obras tanto para

    flauta e sons eletroacsticos fixados em suporte quanto para flauta e eletrnica em tempo real

    (live electronics). O trabalho iniciou-se com uma reviso de literatura a respeito de questes

    estticas e histricas da msica eletroacstica, focando-se, sempre, no seu gnero misto.

    Dessa forma, pode-se pontuar os motivos pelos quais ocorreu a abolio do intrprete nas

    duas principais escolas de composio eletroacstica dos fins da dcada de 1940 a msica

    concreta produzida, na Frana, e a msica eletrnica, na Alemanha e a sua posterior

    reinsero na produo dos compositores eletroacsticos atravs do gnero da msica

    eletroacstica mista.

    Partindo-se das questes histricas, escolheu-se trabalhar o objetivo principal da

    pesquisa com duas obras significativas na produo eletroacstica mista da histria, trabalho

    cujo foco centrou-se no estudo da interao entre intrprete e meios eletrnicos em obras com

    tempo diferido (sons eletroacsticos fixados em suporte) e live electronics (sons

    eletroacsticos processados/sintetizados em tempo real). Dessa forma, escolheu-se as obras

    Synchronisms n 1, de Mario Davidovsky (para flauta e sons fixados em suporte), e Jupiter,

    de Philippe Manoury (para flauta e eletrnica em tempo real). A escolha das obras foi baseada

    na importncia histrica das mesmas, pois Synchronisms n 1 foi uma das primeiras obras

    compostas para flauta e tape da histria da msica eletroacstica, enquanto a obra de

    Manoury representa a primeira msica para flauta e live electronics da histria. Como

    mencionado anteriormente, este artigo se concentrou na abordagem de Jupiter. Os resultados

    encontrados com o estudo de Synchronisms n 1 foram abordados em Miranda e Barreiro

    (2010) e foram aqui pontuados apenas brevemente.

    As consideraes sobre Jupiter aqui apresentadas centraram-se na abordagem da

    interao na escritura e na performance da obra. A anlise da escritura tratou da maneira

    como o compositor criou relaes interativas entre o flautista e os meios eletrnicos atravs

  • 24

    da concepo da partitura e do software que controla a parte eletroacstica. J o estudo da

    interao na performance levou em considerao os aspectos de interao sob o vis do

    intrprete, considerando os processos de estudo para adequao da performance proposta do

    compositor.

    Ao longo deste trabalho, pode-se apontar as principais referncias sobre a msica

    eletroacstica, sobre o conceito de interao e sobre as obras trabalhadas. Atravs do estudo

    das duas obras foi possvel verificar de que forma as relaes interpretativas nos dois

    diferentes meios de interao (parte eletroacstica fixada em suporte e parte eletroacstica

    gerada em tempo real) influenciam a construo de uma prtica performtica. Os resultados

    obtidos no estudo tanto de Synchronisms n 1 quanto no estudo de Jupiter preencheram os

    objetivos do estudo proposto na Iniciao Cientfica e, em especial no caso de Jupiter,

    possibilitaram o contato com diferentes tcnicas de composio da interatividade entre

    performer e meios eletrnicos no gnero misto da msica eletroacstica.

    O estudo de Synchronisms n 1, de Mario Davidovsky, revelou que uma obra mista

    com a parte eletroacstica fixada em suporte, pode apresentar caractersticas composicionais

    que garantam uma certa flexibilidade ao intrprete, contrariando a crena de que esse tipo de

    msica imponha necessariamente uma priso cronomtrica ao intrprete. A liberdade

    cronomtrica garantida em obras com eletrnica em tempo real que utilizem um seguidor de

    partitura (score follower), geralmente acompanhada, em contrapartida, por uma maior

    exigncia de perfeio na articulao das notas (para que o score follower funcione

    corretamente) e uma maior susceptibilidade problemas no posicionamento dos microfones

    que captam o som do instrumento (entre outros aspectos). De qualquer forma, a possibilidade

    de influenciar o resultado sonoro da parte eletroacstica atravs de variaes de nuances de

    interpretao na parte instrumental revelou-se instigante para a construo de uma concepo

    interpretativa da obra.

    REFERNCIAS

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