damas-da-noite - prefácio

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50 anos após sua publicação original, chega ao Brasil o romance histórico que marcou uma geração nos Estados Unidos. Damas-da-Noite, livro autobiográfico de Jetta Carletton, mostra o cenário rural americano em uma época conturbada depois da Segunda Guerra Mundial. Com National Book Award recebido em 1963, tornou-se um clássico da literatura norte-americana.

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Page 1: Damas-da-Noite - Prefácio

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Prefácio de JANE SMILEY

Tradução Regina Lyra

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A maioria dos romancistas, por mais populares que sejam, acaba caindo na obscuridade. Charles Dickens passou décadas sem ser lido após sua morte; Anthony Trollope, quase inacreditavelmente prolí(co, precisou ser ressuscitado na década de 1940. Quem é obscuro atualmente? Você já ouviu falar de Rhoda Broughton? Já leu Summer Locke Elliott ou Camilla R. Bittle? Ainda assim, graças aos caprichos dos leitores e à lealdade editorial, um punhado de romances continua a aparecer. Um desses é Damas-da-noite, de Jetta Carleton, publicado aqui em uma nova edição, pela primeira vez em vinte e quatro anos.

Quando Damas-da-noite, ambientado no início do século XX na zona rural do Missouri, foi publicado, sua autora, Jetta Carleton, tinha a forte impressão de que ele era diferente do que havia em geral no mercado da época. Ela observou na nota biográ(ca para a versão dos Livros condensados da Reader’s Digest: “Realmente é muito fora de moda gostar de alguma coisa hoje em dia, e eu gosto de muitas. Os Rapazes Zangados estão na moda, mas sou uma Velha Garota Contente.” Talvez Jetta Carleton, quase cinquentona, estivesse pensando em Norman

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Jetta Carleton

Mailer, James Baldwin e Gore Vidal, escritores dez ou doze anos mais jovens que ela, que haviam conquistado reputação ao desa(ar o sistema. Carleton, porém, que trabalhara em Damas-da-noite durante cerca de seis anos, nada tinha de simplória. Após se formar na Universidade do Missouri e de trabalhar no rádio em Kansas City, foi para a Costa Leste experimentar o mercado de publicidade. Em 1962, morava em Hoboken, Nova Jersey, casada com um publicitário, e trabalhava em Manhattan. Escreveu os comerciais para televisão do Sabonete Ivory — em outras palavras, estava no topo de uma pro(ssão que era a quintessência da mo-dernidade. Sua família, no Missouri, considerava-a incrivelmente so(sti-cada — a sobrinha-neta, Susan Beasley, comenta que “ela era extrovertida e espirituosa, a estrela da família, a exótica. Sempre identi(cávamos seus comerciais na TV porque tinham a sua cara. Ela era muito original na maneira de se expressar. Era fantástica, adorava rir e adorava diversão”.

Sem dúvida, a própria Jetta Carleton sabia que Damas-da-noite es-tava longe de ser uma obra nostálgica sobre a cultura sentimental ame-ricana. Foi considerada complexa e ousada por ocasião do lançamento e assim permanece no século XXI — uma abordagem delicada e carinhosa de alguns dos tópicos mais delicados da vida em família, apresentados em um estilo direto, notável por sua beleza e precisão moral. Damas-da-noite é um daqueles livros que deixam o leitor com vontade de ler a continuação. Até Robert Gottlieb, um dos editores mais experientes do mercado, sentiu isso ao escrever em 1984: “Das centenas e mais centenas de romances que publiquei, este é literalmente o único que reli várias vezes desde o lançamento. E, toda vez que o lia, me emocionava nova-mente com ele — com as pessoas, suas vidas, com a verdade, a clareza e a generosidade da escrita e do sentimento.”

Damas-da-noite começa com uma ouverture. Somos apresentados à família Soames, em sua pequena fazenda na zona rural do Missouri.

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Matthew e Callie, setentões, estão hospedando três das (lhas — Jessica, na casa dos cinquenta anos; Leonie, de quarenta e muitos; e Mary Jo, bem mais moça — para a visita anual de verão. Faz calor. A fazenda carece de muitos confortos, como sempre aconteceu, e temos a sensação de que as (lhas apreciam essa visita anual porque sabem que logo irão embora e retomarão suas vidas. Parte da força do romance, porém, reside no fato de que não vemos coisa alguma dessas vidas. No último dia da estada, várias obrigações inconvenientes com a vi-zinhança ameaçam, e depois desmontam, o projeto da família Soames de fazer um piquenique junto da velha árvore das abelhas e colher mel. Relu tantemente, todos fazem o que todos sabem ser preciso fazer, até que (nalmente escapam dos vizinhos e parentes e voltam para casa a (m de admirar o desabrochar noturno das damas-da-noite. Jetta Carleton conta a história num ritmo lânguido, apropriado ao calor e às circuns-tâncias. Ela deixa o leitor tentado a conjeturar sobre a família Soames, mas também o induz a pensar que Matthew e Callie são um casal sim-ples e antiquado, e que a vida das (lhas também sempre foi típica e ba-sicamente americana, do tipo que a gente vê nos (lmes de censura livre sobre o Meio-Oeste rural.

No entanto, à medida que a estrutura das partes seguintes leva a história a progredir através do ponto de vista (embora não da voz) de cada um dos membros da família, as coisas mostram não ser o que apa-rentavam: a vida familiar coesa dos Soames é tão idiossincrática e se revela um triunfo sobre a adversidade tão grande quanto o de qualquer outra família, vista com constância e honestidade. O que emerge é uma narrativa extraordinariamente verdadeira, mas que jamais soa elitista ou tacanha — a anatomia de uma família realizada com honestidade e amor, simultaneamente.

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A promessa do romance, como forma artística, é sempre contar uma história com toda a complexidade e, como observou certa vez Edith Wharton, com cada elemento tão “cuidadosamente pensado e pesado” que o leitor não imagine que algo possa estar faltando ou seja desconhecido do autor. Tal integridade deve ser uma ilusão, mas essa é a ilusão essencial de todo romance de sucesso — mesmo partes da história que a narrativa não aborda parecem ter sido compreendidas e consideradas pelo autor. É aí que Damas-da-noite, com suas 490 páginas, se supera.

O verdadeiro tema de Damas-da-noite é o amor romântico. O nar-rador explora as escolhas afetivas de cada personagem, inserindo-as ple-namente no contexto da história de cada um deles e na visão que têm de si mesmos. E, ainda que Matthew, Leonie, Jessica, Mathy e Callie te-nham boas intenções e se sintam ligados aos outros membros da família por laços fortes, suas escolhas invariavelmente tensionam esses laços. É Matthew quem dá o tom, com sua noção quase trágica dos próprios fracassos — mesmo quando conquista Callie, que considera a moça mais atraente e desejável que existe, ele não é capaz de se reconciliar total-mente com a vida familiar ou com o mundinho em que vive. Consciente dos próprios fracassos, torna-se mais severo e mais repressor, e as me-ninas se veem atraídas por jovens que lhes oferecem a possibilidade de fugir. Jetta Carleton é notável no sentido de ser igualmente competente ao retratar o temperamento de cada um de seus personagens. Mathy, a rebelde, é convincente e deliciosamente anárquica; Leonie, a boa moça, está dolorosamente ciente de que a retidão não a torna sedutora; Callie se sente meio intimidada pelo marido, mas, mesmo assim, ela o entende perfeitamente.

A descrição de Matthew é um festival de empatia. Ele teme a ten-tação e sempre tenta estar acima dela — sua posição na cidade e suas crenças religiosas exigem retidão absoluta. Tanto o desejo que o impele como a culpa que o consome são honesta e convincentemente retratados.

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Todas essas paixões acontecem em uma paisagem natural, linda-mente trabalhada, de plantas, )ores, animais, clima e contornos da re-gião. A fazenda Soames nada tem de especial e jamais vicejou, mas deu às (lhas a noção da beleza do mundo natural, que, em geral, funciona para elas como conforto e inspiração. A certa altura, as moças colhem alfaces onde Matthew as havia plantado no início da estação, num local em que ele queimara moitas cerradas, e “o solo, enriquecido com esse adubo puro, produziu uma colheita abundante”. A natureza também dá à mãe um sentido de plenitude. “Callie considerou o verão completo. Às vezes, tinha a impressão de que não podia pedir nada além disso — os longos dias ocupados e as noites cálidas e doces, quando o aroma de madressilvas enchia o ar e o marido cantava com as (lhas na varanda.” Alguns romancistas, com suas observações próximas e ternas das ati-vidades cotidianas dos personagens, acabam esboçando retratos deta-lhados de estilos de vida posteriormente desaparecidos. Seus romances se tornam artefatos de lugares evaporados e mundos perdidos. Carleton nitidamente entendia que Damas-da-noite era uma espécie de cápsula do tempo: os membros da família Soames, a despeito de si mesmos e de suas tentações, continuam a existir em um Éden em miniatura, onde a terra é capaz de incríveis demonstrações que, às vezes, os personagens têm sorte ou sensibilidade su(ciente para observar.

Romancistas que escrevem um único e excelente romance são uma espécie rara. Os mais famosos romancistas americanos a fazerem isso foram Harper Lee e Ralph Ellison, sendo que ambos, como Jetta Carleton, beberam sobretudo na fonte das próprias experiências para criar suas tramas. Tanto Lee quanto Ellison exploraram as rami(ca-ções privadas de um tópico político, o racismo, e conseguiram um efeito extremamente potente e bem-sucedido, despertando seus numerosos

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Jetta Carleton

leitores não só para a difusa injustiça do preconceito mas também para seu custo psicológico. Lee e Ellison, ao que parece, porém, rejeitaram o enorme sucesso que tiveram. Dizem que Lee comentou que a recepti-vidade a O sol é para todos foi “sob certos aspectos [...] praticamente tão assustadora quanto a morte rápida e piedosa que eu esperava”. Ellison chegou mesmo a relatar que um incêndio doméstico destruíra centenas de páginas do seu segundo romance, embora, conforme se soube mais tarde, essas páginas não existissem.

Damas-da-noite em contraste com Homem invisível e O sol é para todos, explora as rami(cações da paixão e parece encai xar-se bem na categoria dos romances que são privados, não políticos. As próprias observações de Carleton para a Reader’s Digest incentivam essa visão, e é tentador ler o romance como uma encantadora história da vida privada de uma única família. No entanto, o romance continua revivendo porque Carleton realmente toca em temas perenes da vida americana: religião, sexualidade, ambições femininas, a vida numa ci-dade pequena e a paisagem pastoril. Com efeito, esses mesmos temas, ainda privados em 1963, logo se tornariam políticos, graças ao movi-mento feminista. A controvérsia que Jetta Carleton consegue amortecer ao usar um foco fechado, um estilo compreensivo e um cenário muito particular seria, dez anos mais tarde, impossível de conter.

Beasley se recorda de que os membros mais velhos de sua família (-caram chocados, e até certo ponto consternados, com o que Jetta escreveu (os membros mais jovens “acharam o livro maravilhoso”, contudo). Em 1962, estava em curso uma virada de maré na maneira como a vida das mulheres deveria ser vista. Por volta da época em que Carleton pu-blicou seu romance, Gloria Steinem escreveu um artigo controverso na Esquire sobre as escolhas que as mulheres faziam na vida. E Betty Friedan publicou A mística feminina em 1963, enquanto Damas-da-noite

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encontrava uma plateia entre os leitores dos Livros condensados. Steinem, porém, era vinte anos mais moça que Carleton, e Friedan, oito. Carleton conseguiu escrever seu romance de um jeito não político; seu tema tornou-se político a despeito de seu esforço.

O sol é para todos, Homem invisível e Damas-da-noite partilham uma característica: (zeram sucesso porque são retratos profundamente íntimos, intensamente sentidos, baseados em material autobiográ(co. Os leitores os adoram por causa de sua autenticidade, porque, em certo sentido, o decoro poderia ter impedido seus autores de escrevê-los, mas isso não aconteceu. São surpreendentes, em parte, porque não são con-fessionais — o romancista se retira do material a (m de examiná-lo com mais objetividade. Cada romance parece “verdadeiro”, com uma força que um livro de memórias ou um relato em não (cção talvez não possuam. Um romancista estreante, mesmo so(sticado como Carleton, talvez não antecipe a noção de autoexposição envolvida na intimidade novelística. Outros romancistas (Dickens me vem à mente) só chegam ao material autobiográ(co mais tarde na carreira, quando já se habitua- ram ao olhar público e à pro(ssão de escritor.

O fato de Carleton aparentemente ter trabalhado em um romance posterior durante vários anos (segundo Susan Beasley) torna este mais pungente. Nenhum dos parentes vivos de Jetta Carleton viu o romance ou sabe onde estão suas páginas. É possível que o manuscrito estivesse junto com seus documentos, perdidos em um tornado (um toque da característica ironia do Missouri) que destruiu a cidade em que se en-contravam guardados em 2003. Mas Damas-da-noite aqui está para ser aproveitado, e a sorte é nossa.

Jane Smiley sinceramente agradece a assistência de Susan Beasley e Carlin Landoll, sobrinhas-netas de Jetta Carleton, na elaboração deste prefácio.

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