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Daiane Dordete Steckert Jacobs - A Voz e a Palavra Organizadas Socialmente Ind Cios de Logocentrismo Em Cena

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  • JACOBS, Daiane Dordete Steckert. A voz e a palavra organizadas socialmente: indcios de logocentrismo em cena. Florianpolis: UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina; professora assistente. UDESC PPGT Programa de Ps-Graduao em Teatro; Doutoranda em Teatro; Orientadora Maria Brgida de Miranda; Co-orientadora Janana Trsel Martins. Atriz, diretora e dramaturga.

    RESUMO

    A partir de pesquisas sobre palavra, voz e vocalidade, problematiza-se o teatro dramtico logocntrico, pautado na semntica das palavras e eficcia do discurso dramatrgico em detrimento da materialidade da voz para criao de sentido em cena. Analisa-se brevemente a presena da retrica na cena teatral ocidental desde a Grcia antiga at o sculo XIX, e o surgimento de uma nova retrica no sculo XX, com o realismo/naturalismo.

    Palavras-chave: Voz . Palavra. Vocalidade. Retrica.

    ABSTRACT

    Based on research about word (speech), voice and vocality, the text discusses the logocentric dramatic theater, based on the semantics of words and efficacy of discourse dramaturgical over the materiality of the voice to create meaning on stage. It analyzes briefly the presence of rhetoric in western theater from ancient Greece until the nineteenth century, and the emergence of a new rhetoric in the twentieth century, with the realism / naturalism.

    Key-words: Voice. Word. Vocality. Rhetoric.

    Voz e palavra a oratria, da vida para o palco

    Is it true that actors have simply lost the "art of speech", or is this the point of view held by a few traditionalists, who prefer a theatre which resembles spoken literature to a living art form?1

    Jacqueline Martin.

    Voz e palavra estabelecem uma multiplicidade de inter-relaes na cena teatral ocidental durante a histria. Algumas delas ainda ressoam como herana (s vezes longnqua) em nossa atualidade. Para discutir melhor estas relaes, primeiro necessrio entender suas diferenas.

    Paul Zumthor em Introduo poesia oral diferencia voz de palavra. O autor conceitua a palavra como "[...] a linguagem vocalizada, realizada fonicamente na emisso da voz." (ZUMTHOR, 2009, p. 09), e diz que a voz existe anteriormente palavra, pois "[...] a voz uma coisa: descrevem-se suas qualidades materiais, o tom, o timbre, o alcane, a altura, o registro... e a cada uma delas o costume liga um valor simblico." (ZUMTHOR, 2009, p. 11). Zumthor afirma ainda que nossa cultura tende a codificar a vocalidade. Deste modo, cada manifestao artstica, escola ou

    1 " verdade que os atores simplesmente perderam a 'arte da fala' [ou discurso], ou este o ponto de vista defendido por alguns poucos tradicionalistas, que preferem um teatro que se assemelha literatura falada a uma forma de arte viva? Traduo minha.

    1

  • esttica busca seu "lugar comum" da voz, pautado em seus padres de vocalidade potica (artstica).

    Jean-Jacques Roubine concorda com Zumthor quando aponta que, no teatro ocidental, "Desde muito cedo, ao que parece, uma tcnica vocal (e gestual) apropriada aos diversos gneros foi elaborada." (ROUBINE, 2011, p. 13).

    A voz na histria do teatro ocidental amplamente influenciada pela palavra e pela retrica. De acordo com Jacqueline Martin (2001), desde a Grcia antiga at o sculo XIX a retrica clssica traava as diretrizes da utilizao da voz em cena, assim como era matria de grande importncia no convvio e persuaso social.

    Martin afirma que a retrica "[...] uma arte prtica baseada em conselhos concretos e regras, em conjunto com uma teoria geral sobre o que realmente acontece no processo de expresso e de como as pessoas reagem geralmente a diferentes meios de expresso, intelectual, esttica e emocionalmente."2 (MARTIN, 2001, p. 01). Ela segue apontando as cinco partes mais importantes da retrica clssica: inventio, dispositio, elocutio, memoria e actio/pronunciato, onde inventio seria o argumento, dispositio os princpios regradores do argumento, elocutio a forma verbal adequada para a fala, memoria a necessidade do orador registrar mentalmente seu discurso e actio/pronunciato a apresentao audincia, visando um mximo efeito.

    A autora enfatiza que o elocutio foi sempre o elemento da retrica mais investigado, para comover a audincia: um padro de vocalidade criado a partir das demandas do texto e sua estrutura, capaz de atingir a eficcia esperada. Aristteles em suas obras Potica e Retrica - segue a autora - indica que o actio deveria ser regido pelas indicaes e demandas do texto, onde palavras, voz, expresses faciais e gestos deveriam estar em harmonia com o inventio e o dispositio.

    Paul Zumthor indica ainda o cristianismo como propulsor da extrema valorizao da palavra e do discurso em detrimento da vocalidade:

    A tradio crist, para quem o Cristo Verbo, valoriza a palavra. As tradies africanas ou asiticas consideram mais a forma da voz, atribuindo a seu timbre, a sua altura, seu fluxo, dbito [sic], o mesmo poder transformador ou curativo [da palavra de Cristo]. (ZUMTHOR, 2010, p.15).

    Como o cristianismo surge em um contexto no qual a oratria e a retrica j haviam se estabelecido, no de se estranhar a adeso deste palavra, suas representaes discursivas e potencialidades persuasivas, e a procura da vocalidade mais adequada para cada argumento no discurso.

    A retrica no teatro criou padres de vocalidade, adequados prosdia e estilo de cada texto. Discorrendo sobre a vocalidade na cena trgica francesa dos sculos XVII e XVIII, Roubine afirma que "Com a repetio, certas situaes se tornam esteretipos cuja eficcia emocional comprovada. O intrprete precisar dominar a tcnica vocal apropriada a essas situaes e, em funo de suas 2 "[...] a pratical art based on concrete advice and rules together with a general theory about what really happens in the process of speech and how people react generally to different means of expression, intellectually, aesthetical and emotionally." Traduo minha.

    2

  • possibilidades, ele se especializar num ou noutro tipo de papel." (ROUBINE, 2001, p. 15). O domnio da vocalidade mais eficaz (elocutio) ao efeito desejado (actio/pronunciato) no argumento dramtico era essencial, e demonstrava a habilidade e o virtuosismo do intrprete na declamao do texto.

    Erika Fisher-Lichte tambm aponta para a subservincia da voz palavra no teatro deste perodo histrico:

    Teorias da retrica e declamao popular desde o sculo XVII reforam esta ligao entre voz e linguagem. Atores da poca tinham que empregar suas vozes como ferramentas parassintticas, parassemnticas e parapragmticas para transmitir significado lingustico. Por um lado, a voz esclareceria a estrutura sinttica do que falado, em segundo lugar, ela acentuaria e enfatizaria o significado pretendido e, terceiro, poderia reforar ainda mais o efeito desejado sobre o ouvinte. [...] A voz tinha de servir palavra falada.3 (FISCHER-LICHTE, 2008, P. 125-126).

    Segundo Martin, no incio do sculo XX, com o desenvolvimento da semitica, surge uma "nova retrica", mais adequada s demandas da filosofia e vida modernas. Emergem novas possibilidades de interpretao do mundo, da linguagem e da literatura, como conjuntos de signos, gerando demandas de novas poticas para a voz em cena.

    Neste contexto, Roubine aponta para os questionamentos que comeam a emergir sobre o trabalho vocal neste momento de transio esttica na cena, da virtuoses declamatria para a mmesis vocal:

    Desde essa poca, os termos de um debate fundamental esto colocados: ser que a voz deve ser instrumento trabalhado, utenslio essencial seno nico de um virtuose da declamao, meio de estilizao deliberada? Ser que, atravs de artifcios, ela deve ser transformada em eco teatral dos artifcios formais encontrados no texto? Ou ser que, ao contrrio, ela deve reproduzir mimeticamente a 'vida', ser o reflexo de uma 'realidade humana'? (ROUBINE, 2001, p. 17).

    Com a emergncia do realismo/naturalismo em cena, a arte da declamao perde seu espao de estilizao em prol de uma maior aproximao da "vida" atravs da mmesis (imitao).

    O realismo/naturalismo em cena uma nova retrica

    Com o surgimento da figura do encenador, na virada do sculo XIX para o sculo XX, e tambm da semitica, no s o trabalho do ator, mas tambm o teatro enquanto gnero artstico passa a ser entendido como linguagem, constitudo por um sistema de signos inerente a sua realizao.

    Todavia, a esttica realista ganha sua configurao formal na cena teatral com Constantin Stanislavski (1863-1938), e a nova retrica apresentada em seu teatro buscava agora uma criao vocal mais preocupada com a composio do 3 "Theories of rhetoric and declamation popular since the seventeenth century have stressed this link between voice and language. Actors of the time had to employ their voices as parasyntactic, parasemantic, and parapragmatic tools to convey linguistic meaning. For one, the voice would clarify the syntactic structure of what is spoken; second, it would accentuate and emphasize the intended meaning; and third, it could further reinforce its desired effect on the listener. [] The voice had to serve the spoken word." Traduo Minha.

    3

  • universo ficcional, levando em conta as caractersticas fsicas e psicolgicas dos personagens. O subtexto no sistema Stanislavski denota a preocupao do diretor com um elocutio pautado nestas caractersticas, e nas relaes interpessoais entre os personagens: conflitos e desejos nem sempre revelados diretamente. A vocalidade buscada por Stanislavski em seus atores tambm procurava a melhor eficcia na comoo do pblico. Segundo Aslan (2003, p. 70), ele percebe que as entonaes e as pausas podem provocar emoo em um espectador estrangeiro que no entende a lngua. Interessa-se pelo ritmo interior oriundo das emoes.

    Para Stanislavski, o ator precisa saber falar com preciso tcnica, como ele pondera em Minha vida na Arte (STANISLAVSKI, 1989). Porm a musicalidade da voz, o modo como o texto dito, tambm uma grande preocupao do encenador, que se relaciona diretamente com o desenvolvimento de seu mtodo de anlise ativa. Stanislavski incita o ator a identificar o subtexto do personagem: aquilo que no dito no texto, mas que refletir diretamente na construo de suas aes fsicas. Este um novo olhar sobre a retrica, j que agora os gestos/aes podem no ser anlogos ao texto, mas tm a funo de revel-lo em sua complexidade ficcional.

    Fisher-Lichte aponta este momento como a primeira ruptura entre voz e linguagem no teatro ocidental:

    Com o naturalismo, uma mudana significativa ocorreu. A ligao aparentemente indivisvel entre a voz e a lngua se rompeu. A voz j poderia agora ser utilizada sem necessariamente ser correspondente s palavras faladas na entonao, nfase, altura, e volume. Enquanto as palavras faladas podem sugerir uma saudao amigvel, a voz mesma poderia implicar medo ou agresso e ser reforada por correspondentes expresses faciais, gestos ou movimentos. O resultado foi uma ruptura na percepo que indica a contradio inerente entre o comportamento consciente e real, talvez s inconscientemente dado, atitude. [...] Voz e linguagem se separaram.4 (FISCHER-LICHTE, 2008, p. 126).

    Nesta nova retrica, existe espao para a ambiguidade, para uma dupla interpretao do texto. Mas apesar da abertura gerada por essa primeira separao entre voz e linguagem, a retrica ainda se faz presente em cena, pois existe no teatro dramtico um movimento dialtico, que culmina em uma sntese, ou seja, uma viso de mundo. Ao espectador no permitido interpretar o espetculo, pois a interpretao j foi dada pela dramaturgia e pela encenao.

    Deste modo, a vocalidade potica do ator desde a antiga Grcia at meados do sculo XX engendrada no teatro ocidental em prol quer de uma antiga ou de uma nova retrica. A voz ganha padres formais que se perpetuam em obras e correntes estticas que primam pela analogia ao universo emprico. Nesse contexto, qualquer vocalidade deslocada dos padres estabelecidos tende a ser relacionada ou com a caricatura ou com a patologia (erro/anormalidade). Mesmo o canto,

    4 "With naturalism, a significant change occurred. The seemingly indivisible link between voice and language loosened. The voice could now be used without necessarily corresponding to the spoken words in intonation, emphasis, pitch, and volume. While the words spoken might suggest a friendly greeting, the voice itself migth imply fear or aggression and be enhanced by corresponding facial expressions, gestures, or movements. The result was a break in perception that indicated the inherent contradiction between conscious behavior and actual, perhaps only subconsciously given, attitude. [] Voice and language split." Traduo Minha.

    4

  • quando presente, segue padres vocais de qualidade musical, determinados pela msica erudita ou popular.

    Consideraes instveis

    Neste breve estudo sobre a influncia da retrica no trabalho vocal do ator ocidental, no foram citados movimentos de teatro popular (teatro de feira, comdia dell'arte, etc.) nem renovadores do pensamento e da prtica teatral do sculo XX (Artaud, Grotowski, entre outros) que apontaram novos caminhos para o trabalho vocal cnico e para a relao entre voz e palavra na criao de sentido em cena.

    Tambm no houve espao para discutir como o teatro contemporneo (performativo, ps-dramtico, experimental) permite pensar em uma vocalidade performativa e dotada de corporeidade, instvel, que desestabiliza padres culturais de vocalidade e representao em cena, e consequentemente, pe em xeque a cena logocntrica e fabular, tradicional ao teatro dramtico, que se pauta na construo de um sentido unitrio dado pelo texto.

    E neste campo de interseco, em busca de uma vocalidade incorporada e performativa que desestabilize sentidos unitrios e padres de representao de gnero em cena, que esta pesquisa continuar a se desenvolver.

    Referncias Bibliogrficas

    ASLAN, Odette. O ator no sculo XX. Trad. de Rachel Arajo de Baptista Fuser, Fausto Fuser e J. Guinsburg. 1. ed. 1. reimp. So Paulo: Perspectiva, 2003.

    FISCHER-LICHTE, Erika. The transformative power of performance: a new aesthetics. Oxon: Routledge, 2008.

    MARTIN, Jacqueline. Voice in Modern Theatre. London: Routledge, 1991.

    ROUBINE, Jean-Jacques. A arte do ator. Traduo Yan Michalski e Rosyane Trotta. 2a. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

    STANISLAVSKI, Constantin. Minha Vida na Arte. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1989.

    ZUMTHOR, Paul. Introduo poesia oral. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lcia Diniz Pochat, Maria Ins de Almeida (Traduo). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

    ______________. Performance, recepo, leitura. Trad. Jerusa P. ferreira e Suely Fenerich. 2. Ed. Revista e ampliada. So Paulo: Cosac Naif, 2007.

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