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1 DAI A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR E AO PAPA O QUE É DO PAPA – A REFORMA ULTRAMONTANA NO SEGUNDO REINADO. Ítalo Domingos Santirocchi (UFMA) Resumo: O objetivo desta comunicação é discutir a reforma ultramontana do clero católico no Brasil imperial e suas relações com o Estado monárquico e a Santa Sé. A referida reforma foi apresentada por meio de diferentes periodizações e interpretada utilizando diferentes conceitos, como, por exemplo, o de “romanização” da Igreja brasileira. No entanto, a disponibilização da documentação do Arquivo Secreto Vaticano e do Arquivo dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários, permitiu um novo olhar sobre a temática, possibilitando avaliar o papel da Santa Sé neste processo histórico. Trabalhando com essa documentação e relacionando-a com a que foi produzida pelo clero e pelo Estado brasileiro, pretende-se realizar uma breve analise da Reforma Ultramontana no Brasil, focando principalmente no Segundo Reinado, quando o movimento ganhou força com a derrota do “liberalismo eclesiástico” liderado pelo Pe. Diogo Antônio Feijó. Palavras-chaves: Ultramontanismo; Romanização; Brasil Imperial. Abstract: Lo scopo di questa comunicazione è quello di discutere la riforma ultramontana del clero cattolico nel Brasile imperiale ed i suoi rapporti con lo Stato monarchico e la Santa Sede. Tale riforma è stata presentata utilizzando-se diverse periodizzazione e interpretata secondo differenti concetti come, ad esempio, la “romanizzazione” della Chiesa brasiliana. Tuttavia, la ricerca nell'Archivio Segreto Vaticano e nell'archivio dell’Affari Ecclesiastici Straordinari ha consentito uno nuovo sguardo sul questa tematica, dando la possibilità di valutare il ruolo della Santa Sede in questo processo storico. Relazionando questa documentazione con quella prodotta dal clero e dallo stato brasiliano, intendiamo condurre una breve analisi della riforma ultramontana, concentrandosi principalmente nel governo del secondo Re del Brasile, quando il movimento si è rafforzato con la sconfitta del “liberalismo ecclesiastico” guidato dal Pe. Diogo Antônio Feijó. Parole Chiave: Ultramontanismo; Romanizzazione; Brasile Imperiale.

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DAI A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR E AO PAPA O QUE É DO PAPA – A REFORMA ULTRAMONTANA NO SEGUNDO REINADO.

Ítalo Domingos Santirocchi (UFMA)

Resumo:

O objetivo desta comunicação é discutir a reforma ultramontana do clero católico no Brasil imperial e suas relações com o Estado monárquico e a Santa Sé. A referida reforma foi apresentada por meio de diferentes periodizações e interpretada utilizando diferentes conceitos, como, por exemplo, o de “romanização” da Igreja brasileira. No entanto, a disponibilização da documentação do Arquivo Secreto Vaticano e do Arquivo dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários, permitiu um novo olhar sobre a temática, possibilitando avaliar o papel da Santa Sé neste processo histórico. Trabalhando com essa documentação e relacionando-a com a que foi produzida pelo clero e pelo Estado brasileiro, pretende-se realizar uma breve analise da Reforma Ultramontana no Brasil, focando principalmente no Segundo Reinado, quando o movimento ganhou força com a derrota do “liberalismo eclesiástico” liderado pelo Pe. Diogo Antônio Feijó.

Palavras-chaves: Ultramontanismo; Romanização; Brasil Imperial.

Abstract:

Lo scopo di questa comunicazione è quello di discutere la riforma ultramontana del clero cattolico nel Brasile imperiale ed i suoi rapporti con lo Stato monarchico e la Santa Sede. Tale riforma è stata presentata utilizzando-se diverse periodizzazione e interpretata secondo differenti concetti come, ad esempio, la “romanizzazione” della Chiesa brasiliana. Tuttavia, la ricerca nell'Archivio Segreto Vaticano e nell'archivio dell’Affari Ecclesiastici Straordinari ha consentito uno nuovo sguardo sul questa tematica, dando la possibilità di valutare il ruolo della Santa Sede in questo processo storico. Relazionando questa documentazione con quella prodotta dal clero e dallo stato brasiliano, intendiamo condurre una breve analisi della riforma ultramontana, concentrandosi principalmente nel governo del secondo Re del Brasile, quando il movimento si è rafforzato con la sconfitta del “liberalismo ecclesiastico” guidato dal Pe. Diogo Antônio Feijó.

Parole Chiave: Ultramontanismo; Romanizzazione; Brasile Imperiale.

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Introdução

Com a disponibilização da documentação do Arquivo Secreto Vaticano e do Arquivo da

Sagrada Congregação dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários foi possível lançar um novo

olhar sobre o ultramontanismo no Brasil e analisar o papel da Santa Sé no processo de

reforma eclesiástica dele derivado1. Utilizando essa documentação, pretendemos refletir sobre

o ultramontanismo no Segundo Reinado (1840-1889), quando o movimento foi impulsionado

pela derrota do “liberalismo eclesiástico”, liderado pelo Pe. Diogo Antônio Feijó2.

A História da Igreja no Brasil Império começou a ser escrita durante o século XIX,

muitas vezes por personagens presentes nos eventos sobre os quais debatiam. Mas foi a partir

dos anos 70 e 80 que este campo historiográfico se consolidou no Brasil. Discutiremos,

portanto, de forma breve a historiografia produzida acerca da reforma ultramontana e

posteriormente apresentaremos alguns novos olhares sobre esse processo.

Ultramontanismo: aportes teóricos

Trataremos aqui das três principais tendências historiográficas sobre o ultramontanismo

no Brasil Império, desenvolvidas nos anos 70 e 80: 1ª. A produção realizada pelo CEHILA

(Comissão de Estudiosos de História da Igreja na América Latina), e o conceito de

romanização; 2) As pesquisas feitas por Augustin Wernet e o conceito de autocompreensão;

3) As teorias de Ferdinand Azevedo sobre a piedade barroca e a rápida recepção do

ultramontanismo pela população brasileira.

1 Neste trabalho serão utilizadas as seguintes abreviações em relação à documentação – ASV:

Arquivo Secreto Vaticano; NAB: Nunciatura Apostólica Brasil; AES: Affari Ecclesiastici Straordinari; Br.: Brasil; Fasc.: Fascículo; pos.: Posição; f.: Folhas; r.: Frente; v.: Verso. 2 Não posso deixar de agradecer as leituras e contribuições de Pryscylla Cordeiro Rodrigues Leite e

do Prof. Dimas dos Reis Ribeiro.

3

A romanização na historiografia do CEHILA: a Igreja a partir dos pobres.

As pesquisas sobre a reforma ultramontana no Brasil Império sofreram um forte

impacto de trabalhos de brasilianistas. O sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974)

utilizou o termo romanização, para fazer uma análise da Igreja Católica no Brasil. Este termo

não era novo, pois já havia sido usado por Rui Barbosa, em 1875, ao traduzir o livro O Papa e

o Concílio de Johann Joseph Ignaz von Döllinger (1799-1890). Seu objetivo era legitimar o

regalismo liberal vigente no Império.

Bastide expôs sua ideia de romanização no artigo Religion and the Church in Brasil

(1951), no qual utilizou as expressões romanized e romanization para descrever o processo

institucionalização e hierarquização da Igreja no Brasil. O catolicismo romanized seria apenas

uma modalidade de catolicismo existente no país durante o século XIX, que buscava se

estender sobre todas as outras variações de catolicismo implantando uma ortodoxia

doutrinária e disciplinar. Esse processo teria resultado em uma dependência crescente da

Igreja brasileira em relação aos padres estrangeiros, principalmente das congregações e

ordens missionárias. Segundo ele, ao se tornar romanizada, a Igreja brasileira teria se

desnacionalizado (BASTIDE, 1951, p. 343).

Esse processo teria intensificado a centralização da Igreja Católica em torno do

pontífice, o reaparelhamento da sua burocracia administrativa, a clara definição da sua

doutrina e disciplina. A intenção era eliminar interpretações heterodoxas que nasciam das

ingerências estatais e políticas, para definir sua identidade e universalidade perante o mundo

moderno. Na busca destes objetivos, o episcopado ultramontano brasileiro agiu de forma

independente em relação ao Estado, resistindo até mesmo aos interesses políticos locais, que

se baseavam no regalismo de tradição lusitana (BASTIDE, 1951, p. 334-355; DELLA CAVA,

1976, p. 43-44).

O livro Milagre em Joaseiro (1976) do historiador estadunidense Ralph Della Cava

divulgou as ideias de Bastide e o conceito de romanização no Brasil. Em sua obra, Della Cava

apresentou D. Luís Antônio dos Santos (1817-1891), primeiro bispo do Ceará, como a

personificação dos ideais da romanização e que tinha como propósito: “Restaurar o prestígio

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da Igreja e a ortodoxia de sua fé e remodelar o clero, tornando-o exemplar e virtuoso, de

modo que as práticas e crenças religiosas do Brasil pudessem ficar de acordo com a fé

católica, apostólica e romana de que a Europa se fazia então estandarte” (DELLA CAVA,

1976, p. 33, p. 43-44).

O trabalho de Della Cava apoia-se no paradigma do materialismo histórico, ancorado

nas proposições de Eric Hobsbawm sobre os movimentos operários, principalmente na obra

Primitive Rebels (1965), ou seja, alinhado com a História Social Inglesa (NOBRE, 2013, p.

231). Em sua análise, Della Cava enfatizará “a restauração do prestígio da Igreja e a

adequação das práticas e crenças religiosas com a fé católica”, colocando o “movimento

reformista como algo que há de se opor ao “milagre em Joaseiro”, no qual privilegiará o

devocionismo, as crenças populares e, até mesmo, a indisciplina hierárquica” (DUTRA

NETO, 2006, p. 31).

Della Cava buscou perceber as estratégias utilizadas para adequar as práticas e crenças

religiosas “tradicionais” ao catolicismo ortodoxo. Para tanto, enfatizou os meios empregados

para disciplinar o clero e o povo, como por exemplo, em relação aos milagres populares e o

envolvimento de padres com a política, as lideranças locais, o comércio e o concubinato. Na

mesma linha de Bastide, Della Cava coloca o movimento de reforma ultramontana como a

europeização da cultura religiosa brasileira, que buscava eliminar os traços nacionais e

populares do catolicismo. Esta oposição entre o catolicismo romanizadoe o catolicismo

nacional, popular ou tradicional, marcará as futuras reflexões sobre o conceito de

romanização no Brasil.

A propagação deste conceito e das novas teorias sobre o ultramontanismo se deveu

principalmente aos membros do CEHILA e as suas publicações na REB (Revista Eclesiástica

Brasileira) a partir de 1973. Na década de 1970, a Teologia da Libertação e a Santa Sé

estavam tendo atritos e o Brasil encontrava-se no regime de exceção com a Ditadura Militar.

Segundo Maurício de Aquino,

O conceito de romanização como estabelecido nos anos 1970 nos artigos da REB é indicativo de algo que está para além da língua: aponta as tensões entre diferentes teologias e eclesiologias no interior do catolicismo brasileiro desde perspectiva da Teologia da Libertação, comungada por Boff, Hoornaert e Beozzo, em um ambiente historiográfico propício a novas abordagens, novos objetos e novos problemas (AQUINO, 2013, p. 1501).

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A ideia da Teologia da Libertação era fazer uma história da Igreja a partir do povo, uma

interpretação a partir dos pobres, conforme as deliberações da Conferência de Medelín

(AQUINO, 2013, p. 1486). Utilizando as análises de Roger Bastide e Ralph Della Cava,

autores como Eduardo Hoornaert, Riolando Azzi, José Oscar Beozzo, Pedro A. Ribeiro de

Oliveira e Oscar Figueiredo Lustosa, tornaram o conceito de romanização hegemônico nas

pesquisas posteriores. Os principais aspectos desse pensamento que devemos ressaltar em

Azzi, Beozzo e Pedro de Oliveira são o fortalecimento da oposição entre um catolicismo dito

popular e o catolicismo ultramontano, acentuando a ideia de uma luta dentro da Igreja, pois

enquanto um vinha da mestiçagem com a cultura negra e indígena, o outro era “europeizante”,

hierárquico e próximo a Roma. Tudo isso era influenciado por uma ação coordenada da Santa

Sé, que enviava “agentes” para o Brasil e dava o modelo religioso que deveria ser implantado.

(AZZI, 1974, 1977a, 1977b, 1992; BEOZZO, 1977; OLIVEIRA, 1985).

Augustin Wernet e a “nova história eclesiástica”

Nos anos sessenta, o Concílio Vaticano II proporcionou uma abertura da Igreja Católica

para com a modernidade, encerrando um ciclo que, segundo alguns autores, ainda era

marcada pelo ultramontanismo (MANOEL, 2004, p. 9). Na História Eclesiástica, logo em

seguida, iniciam-se reflexões sobre uma “nova história eclesiástica”, propondo um diálogo

com a História secular e uma relação interdisciplinar com as ciências sociais. Era necessária,

também, uma atenção especial para a historicidade da Igreja e a subjetividade do historiador.

Estas reflexões foram publicadas na Revista Concilium e continham questões teóricas e

metodológicas sobre a História Eclesiástica (CONCILIUM, n°. 57, 1970/7 e n°. 67, 1971/7).

Entre os precursores da “nova História eclesiástica” estavam Roger Aubert, Anton

Weiler, John B. Cobb Jr., Giuseppe Alberigo, Emile Poulat, C. W. Mönnich e Antoine

Saucerotte. Anton Weiler propunha compreender o homem em seu tempo e dentro de suas

instituições, com a intenção de contribuir para a “autocompreensão do homem hoje”. O

mesmo método deveria ser utilizado para a História da Igreja, que deveria “partir de si

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mesma, de seus valores, dogmas, preceitos para buscar a compreensão de seus atos e tomadas

de decisões” (SOFFIATTI, 2011, p. 3).

Giuseppe Alberigo também propõe uma questão fundamental, que era necessário

penetrar “na estrutura interna da Igreja dentro das diversas unidades etnológicas, geográficas

ou cronológicas e na penetração do auto entendimento da Igreja que lhes corresponde”. O

historiador, então, não pode deixar de considerar a multiplicidade da Igreja Católica, “que ao

ser uma, são várias” (SOFFIATTI, 2011, p. 4). Uma dessas auto compreensões seria a

ultramontana que se consolidou ao longo do século XIX, caracterizando-se inicialmente pela

“rejeição à ciência, filosofia e arte moderna; condenação do capitalismo e da ordem burguesa;

condenação dos princípios liberais-democráticos e anátema às doutrinas de esquerda”

(MANOEL, 1992, p. 229).

O conceito de auto compreensão começou a ser pensado para o Brasil na década de

1980, encarando o ultramontanismo como uma auto compreensão romanizada da Igreja

brasileira3. Augustin Wernet foi o principal divulgador dessas ideias no Brasil, com seu livro

A Igreja Paulista no século XIX (1987). Para o autor a noção de auto compreensão seria o

princípio organizador das várias formas do catolicismo no país, desde o tradicional até o

romanizado.

A auto compreensão de Wernet foi influenciada pelos “tipos ideais” de Weber que

servia como um instrumento teórico para a análise da realidade concreta da Igreja. Segundo o

autor, as auto compreensões são “construções mentais ou imagens mentais cuja elaboração se

faz necessária, exagerando elementos específicos da realidade, selecionando características

dela mesma, ligando-as entre si num quadro mental relativamente homogêneo” (WERNET,

1987, p. 12).

Wernet orientou vários trabalhos sobre a implantação do catolicismo ultramontano em

diferentes estados brasileiros ao longo das décadas em que ensinou na Universidade de São

Paulo, contribuindo decisivamente para a consolidação acadêmica da História eclesiástica no

Brasil. 3

Os orientados de Augustin Wernet utilizam o conceito de romanização em suas teses e dissertações. O próprio Wernet também o adota, como no caso artigo Crise e definhamento das

tradicionais ordens monásticas brasileiras durante o século XIX, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiro em 1997.

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Ferdinand Azevedo e a piedade barroca.

Durante os anos oitenta o historiador Ferdinand Azevedo também realizou pesquisas

sobre a temática. O seu foco principal era ação jesuítica no Brasil oitocentista, todavia

desenvolveu uma teoria geral sobre o ultramontanismo, questionando os motivos da sua

rápida expansão:

O que surpreende é o fato de que, no início daquele século, o regalismo dominava o pensamento nas casas reais da Península Ibérica, e, um pouco depois, nos novos países independentes da América Latina. Como explicar, então, esta ascensão do ultramontanismo? (AZEVEDO, 1988, p. 201).

Sua teoria foi exposta em um artigo de 1988: A inesperada trajetória do

ultramontanismo no Brasil Império. Da mesma forma que Wernet, Azevedo indica o apoio de

D. Pedro II como um dos motivos principais para a ascensão do ultramontanismo no Império

(AZEVEDO, 1988, p. 201). Todavia, o que se quer ressaltar é outro fator que, segundo o

autor, determinou a ascensão ultramontana: a piedade barroca jesuítica e colonial. Nesse

ponto, ele diverge das teorias formuladas pelos pesquisadores ligados ao CEHILA. Para estes

a romanização “sufocou” traços do catolicismo popular, travando com ele uma relação

conflituosa e oposta. Na teoria de Azevedo, no entanto, ocorreu exatamente o contrário.

Segundo o autor, a piedade que se desenvolveu no Brasil colonial, nos séculos XVI,

XVII e metade do XVIII, foi a piedade barroca pós tridentina, estimulada pela evangelização

jesuítica, que atuou tanto em Portugal quanto no Brasil durante praticamente dois séculos

(1549-1759). A ação desses padres se concentrou, principalmente, nas missões (populares e

indígenas) e na educação. Segundo Azevedo, um dos aspectos fundamentais dessa piedade

jesuítica teria sido a “humanidade de Jesus Cristo”, os traços emotivos, a festividade,

misticismo, e até mesmo o início da devoção do Sagrado Coração de Jesus. É também no

século XVI que o autor situa o início do processo de centralização da Igreja na figura do

pontífice.

Para Azevedo, foram os princípios iluministas implantados a partir do governo do

marques de Pombal, e que levou a expulsão dos jesuítas, que foram contrários à piedade

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popular e começaram a ser impostas por meio dos direitos ligados ao padroado e a prática do

regalismo. Esta situação levou o catolicismo brasileiro a uma “situação lamentável” nos

inícios dos oitocentos, possibilitando o surgimento de dois projetos para “rejuvenescer a

Igreja: a primeira, liberal e regalista; a segunda, ultramontana” (AZEVEDO, 1988, p. 210). O

autor defende, em outro trabalho, que o catolicismo no Brasil não definhou graças à vitalidade

da religiosidade popular (AZEVEDO, 1984, p. 13). É exatamente nesse ponto que suas

pesquisas vão em direção contrária ao da romanização, pois, para ele foi exatamente a

religiosidade barroca de cunho jesuítico (que permaneceu num substrato que talvez

poderíamos chamar de “mentalidade”, numa longa duração), que permitiu a “inesperada

trajetória do ultramontanismo no Império”, ou seja, a rápida aceitação do projeto reformador

ultramontano pela maioria da população nacional e a conquista da hegemonia entre a

hierarquia católica nacional. Segundo Azevedo:

Os novos missionários, geralmente ultramontanos, encontraram uma religiosidade popular impregnada de piedade barroca. Algumas autoridades eclesiásticas desconfiavam da religiosidade popular, mas perceberam que, com uma catequese adequada, ela se tornava mais rica e sintonizada com o ultramontanismo (AZEVEDO, 1988, p. 217).

É muito interessante a conclusão do autor:

então podemos concluir que o período de romanização, principalmente na espiritualidade barroca, já estava radicado no Brasil, desde a segunda parte do século XVI. Os ultramontanos no século XIX somente fortaleceram a ligação com Roma, ou melhor, quiseram aproveitar a força do Papado num Brasil regalista (AZEVEDO, 1988, p. 217).

Pode-se concluir então, pela interpretação do autor, que o Brasil não foi romanizado,

pois sua evangelização já era romana mesmo se miscigenada e não totalmente ortodoxa.

Padroado e Regalismo: os pilares da união entre Igreja e Estado.

As relações entre a Igreja e o Estado em Portugal e seu império ultramarino apoiaram-se

sobre dois pilares: o padroado e o regalismo. Estas práticas remontam ao Império Romano

Cristão, mas se transformaram, sendo reorganizadas nos últimos séculos do Período Medieval

e inícios do Período Moderno. Na Península Ibérica se desenvolveu entre os quatrocentos e os

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quinhentos uma nova forma de padroado, conhecido como ultramarino, unindo-se ao

chamado padroado real.

O padroado real dava ao monarca o direito de apresentar os benefícios maiores (bispos e

arcebispos) e menores (párocos, canonicatos, etc.), além de usufruir de parte dos dízimos

pagos pelos fiéis. Já o padroado ultramarino em Portugal se consolidou por meio da união do

Grão Mestrado da Ordem de Cristo à Coroa (Bula Praeclara charissimi, 30/12/1550), a qual

tinha recebido em concessão o poder espiritual sobre as ilhas e futuras conquistas

portuguesas. A referida Ordem possuía o direito de apresentar os benefícios menores e

administrar os dízimos de todo território ultramarino que fosse anexado ao império lusitano.

Posteriormente o rei ampliou seu controle sobre esse padroado por meio da criação da

Diocese de Funchal em 1514 (bula Pro Excellenti de 12/06/1514), que ficaria responsável

pela administração espiritual das conquistas portuguesas. A partir desse momento, pelo direito

do Padroado Real, o monarca poderia apresentar ao Papa seus indicados aos benefícios

maiores, enquanto ao Grão Mestre da Ordem de Cristo permanecia os direitos de administrar

os dízimos e apresentar aos bispos seus indicados aos benefícios menores (SANTIROCCHI,

2010, p. 24-28; KUHNEN, 2005, p. 25-101).

A definição das bases do padroado entre a Coroa e o Papado não significou o fim dos

conflitos entre o Estado e Igreja, pois as querelas que envolviam os dois poderes na

administração espiritual do reino lusitano iam além dos dízimos e das nomeações de

benefícios. Envolviam também questões matrimoniais, testamentais, funerárias, de registros

(nascimento, casamento, óbito, etc.) e até mesmo a organização e administração de

irmandades, confrarias e ordens terceiras. Tais questões, ou parte delas, eram chamadas de

mistas, e ao longo dos séculos elas causaram diversos conflitos, pois a Cúria tentou concentrar

o maior poder de decisão em sua hierarquia, enquanto a Coroa buscou o oposto, utilizando

para isso os pressupostos do regalismo. Para administrar as questões relativas ao padroado, a

Coroa portuguesa criou a mesa de Consciência e Ordens em 1532, por ordem de D. João III

(NEVES, 1997).

Ao contrário do padroado, que parte do pressuposto de um acordo (mesmo se por vezes

contencioso) entre dois poderes, Coroa e Papado, as práticas e legislações do regalismo foram

medidas tomadas unilateralmente pela Coroa e podem ser entendida a partir do processo de

formação dos Estados modernos. As monarquias avançaram sobre os espaços de decisões

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administrativas que antes eram ocupados totalmente pela Igreja (CASTRO, 2002;

SANTIROCCHI, 2010, p. 28-33).

Com relação ao reino lusitano, as duas principais medidas que o Estado adotou para se

fortalecer perante a Igreja foram o Beneplácito Imperial, ou simplesmente o placet, e o

Recurso à Coroa. O Beneplácito Imperialera o direito de aceitar ou não, no próprio território,

as bulas, breves, encíclicas e as leis canônicas e disciplinares promulgadas pelos Papas e até

mesmo pelos Concílios Ecumênicos. O Recurso à Coroa era usado quando os beneficiados se

sentiam usurpados nos seus direitos ou devido ao cancelamento dos seus cargos pelas

autoridades religiosas, pois a Coroa julgava que estas só deviam ser confirmadas pelas

apresentações régias. Porém, o possível vetoàs nomeações era um direito de que a Igreja

nunca abriu mão (CAMARGO, 1955, p. 268-269). Este foi outro ponto de discórdias e de

equívocos interpretativos das concessões papais. O Concílio de Trento defendeu o tribunal

eclesiástico e não extinguiu o padroado, porém elaborou normas que o regulavam. Não

aceitou, portanto a tutela integral do Estado, como desejavam os regalistas (SANTIROCCHI,

2010, p. 28-43).

O auge do regalismo em Portugal foi o reinado de D. José I, que teve como Ministro e

governante o Marquês de Pombal. Esse período foi marcado por grandes reformas em amplos

setores da sociedade e do governo do Império lusitano. A fim de fortalecer o poder estatal,

Pombal combateu as corporações que poderiam disputar com o poder real. Entre elas estava a

Igreja e, em especial, o poder pontifício. Um corpo doutrinário foi organizado para defender o

poder real sobre o eclesiástico. Para isso buscou-se garantir aos bispos maior autonomia em

relação a Roma, enquanto procurava ampliar a dependência e a submissão deles em relação

ao Estado. Os jesuítas foram combatidos ferrenhamente por dificultarem as intenções de

Pombal em vários âmbitos, desde aqueles eclesiásticos, até questões de ordem educacional,

“civilizatória” (missões indígenas) e econômica. Tudo isso resultou na expulsão dos jesuítas

de Portugal e na posterior extinção da Companhia de Jesus (SANTIROCCHI, 2010, p. 28-43).

Nesse período o clero passou a ser considerado pelo Estado como funcionário público a

ele submetido, encarando a Igreja portuguesa praticamente como um departamento de

governo, que apesar de ainda estar ligada a Roma, seria autônoma o suficiente para defender e

apoiar as decisões da Coroa. Para legitimar a autoridade do Estado sobre a Santa Sé, os

teóricos pombalinos afirmaram que as regalias provinham dos imperadores romanos e antigas

11

concessões papais. Após a Independência do Brasil, o regalismo herdado do pombalismo se

mesclou a ideias liberais e constitucionalistas do século XIX, pautadas no discurso da

soberania nacional. Foi nesse momento que se elaborou o padroado civil e o regalismo

imperial brasileiro, expressos na Constituição de 1824. Os direitos antes decorrentes do

padroado real e ultramarino agora eram encarados como inerentes à soberania nacional e

instituídos pela Constituição, não mais como concessões pontifícias. O mesmo ocorria com as

leis que derivaram da prática regalista, agora não se justificavam mais se apoiando nas

tradições do Império Romano, nem na Igreja primitiva, ou mesmo em antigos privilégios

reais, mas sim na independência e soberania nacional (SANTIROCCHI, 2010, p. 64-76;

SCAMPINI, 1974, p. 76-126).

A Santa Sé concedeu ao Imperador D. Pedro I, a pedido deste, o padroado da Ordem de

Cristo, por meio da bula Praeclara Portugalliae (1827), no entanto, ela recebeu um parecer

contrário à concessão do beneplácito imperial, dado pelas comissões reunidas de Constituição

e Eclesiástica da Câmara dos Deputados. Esse fato, juntamente com a abolição da Mesa de

Consciência e Ordem em 1828 (NEVES, 1997), só confirmou a institucionalização de um

padroado civil.

A Igreja e o Império do Brasil

A Igreja no Brasil e sua relação com o Estado se desenvolvem em um ambiente

regalista, liberal e constitucionalista. A Igreja era vista como um departamento

governamental. Entretanto, ela gozava de grandes vantagens: ser a Igreja Oficial, garantindo-

lhe o financiamento do Estado e, aos seus fiéis, a plena cidadania política quando

conseguissem cumprir com os requisitos censitários. Nas mãos do clero estava o controle

sobre os registros de batismo, casamento, óbito, testamentos; além disso, tinham intensa

participação na educação e no processo eleitoral. Desde antes do processo de Independência,

o clero nacional se envolvia ativamente na política. Esse estreito laço entre os quadros

eclesiásticos e o Estado possibilitaram a elaboração de diferentes projetos de Igreja para a

nova nação que se formava. As propostas concordavam com a necessidade de reformar a

Igreja Nacional e o seu clero, chamado de “tradicional”, além de algumas práticas dos fiéis,

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consideradas supersticiosas e atrasadas. Para contornar essa situação, dois projetos principais

foram defendidos: o Liberalismo Eclesiástico, liderado pelo Pe Diogo Antônio Feijó e o

ultramontanismo, que conseguiu se impor no decorrer do Segundo Reinado (SANTIROCCHI,

2011, p. 187-207).

O Liberalismo Eclesiástico pretendia realizar uma série de reformas na Igreja nacional,

aumentando a autonomia perante Roma e a dependência em relação ao Estado, chegando

mesmo, em alguns momentos de acirrado conflito com a Cúria, a propor na Câmara dos

Deputados a separação da Igreja Brasileira. Entre suas propostas mais polêmicas estavam a

supressão das ordens religiosas, o matrimônio sacerdotal e um maior controle das taxações e

rendas eclesiásticas pelo Tesouro Público (SANTIOCCHI, 2010, p. 81-94).

Entre os principais opositores aos liberais eclesiásticos estavam: D. Romualdo Antônio

de Seixas (1787-1860), deputado e arcebispo da Bahia, D. Marcos Antônio de Souza (1771-

1842), deputado e bispo do Maranhão, Pe. Luís Gonçalves dos Santos (Padre Perereca), o Pe.

William Paul Tilbury e o Visconde de Cairu (José Joaquim da Silva Lisboa). Eles impediram

tanto o cisma, quanto a aprovação das propostas de Feijó e do seu grupo (BEAL e

CARDOSO, 1969: 162-163). Todavia, não eram ultramontanos; poderíamos dizer que

defendiam a implantação da reforma tridentina e a ortodoxia romana, como também era o

caso do bispo de Mariana, José da Santíssima Trindade (1819-1835), do bispo do Pará, D.

Romualdo de Souza Coelho (1820-1841) e do bispo de Pernambuco, D. João da Purificação

Marques Perdigão (1831-1864). Todos eles eram ciosos da sua autoridade episcopal, mas

também eram fiéis às autoridades civis constituídas4, não tendo como projeto o combate ao

regalismo, como aconteceria posteriormente com o ultramonanismo.

Foi esse grupo, juntamente com as ordens religiosas dos lazaristas e dos capuchinhos,

que deu o impulso inicial ao movimento ultramontano no Brasil oitocentista. Entre os

primeiros ultramontanos desse período estavam os religiosos da Congregação das Missões, ou

lazaristas, de carisma vicentino, que se estabeleceram na província de Minas Gerais. O

ultramontanismo, todavia, não encontrou, no começo do século XIX, um clima muito

4 A única exceção foi D. Fr. José da Santíssima Trindade, que chegou a tramar contra os poderes

constituídos.

13

favorável entre as elites imperiais, já que um forte regalismo político dominava o cenário

nacional (VIEIRA, 1974, p. 32-33).

A corrente ultramontana se afirmou vagarosamente no país, porém, em menos de meio

século conseguiu se tornar hegemônica no âmbito eclesial brasileiro. Durante o Segundo

Reinado os ultramontanos atuaram principalmente por meio do episcopado e algumas ordens

religiosas, que logo formaram um grupo de padres reformados e conseguiram o apoio de

laicos que os coadjuvaram. Eles, no entanto, não lutaram sozinhos, pois tiveram grande ajuda

dos representantes pontifícios, mesmo se por várias vezes divergiram sobre aspectos da

reforma em ato.

Dois bispos foram fundamentais nesse processo e traçaram as linhas mestras da reforma

ultramontana no Segundo Reinado: D. Antônio Ferreira Viçoso e D. Antônio Joaquim de

Mello. Todos os bispos ultramontanos posteriores seguiram de forma geral o modelo que eles

implantaram, ainda que com as devidas adaptações às respectivas dioceses e personalidades.

Esse modelo pode ser resumido em alguns pontos principais: 1.º Resgate da autoridade

pontifícia e episcopal; 2.º Defesa da autonomia da Igreja em relação ao Estado e combate ao

regalismo; 3.º Reforma do clero por meio: a) do combate ao concubinato clerical; b) da

educação em seminários sob a direção de ordens religiosas reformadas; b) da maior rigidez

nas ordenações sacerdotais; c) do envio de sacerdotes e seminaristas para se formarem na

Europa; d) da uniformização do ministério episcopal e clerical; e) da correção e moralização

do clero; f) do combate ou desincentivo à participação dos párocos na política partidária,

cargos eletivos ou administrativos civis; 4.º Grande escrúpulo e rigidez na escolha dos

beneficiários a serem indicados para nomeação imperial; 5.º Instituição de ordens religiosas

reformadas, masculinas e femininas; 5.º Reformar e educar os fiéis por meio: a) da reforma do

clero; b) do fortalecimento hierárquico; c) da limitação da participação dos laicos na

administração da Igreja; d) da popularização da catequese tridentina; e) do incentivo à

participação nos sacramentos; f) da intervenção administrativa nos centros de romaria e

irmandades tradicionais; g) da importação de devoções e movimentos religiosos da Europa5.

5 Estes pontos foram identificados nas descrições do episcopado de D. Viçoso e D. Antônio por meio

das biografias e estudos sobre suas administrações episcopais. (SANTIROCCHI, 2010).

14

É importante frisar a novidade dessa proposta de reforma eclesiástica, que rompia com

as práticas do “clero tradicional” ou de tendência liberal. Além do mais, passava a desafiar

abertamente o regalismo, defendendo uma maior autonomia da Igreja em relação ao Estado e

buscando uma maior proximidade com Roma. No entanto, um ponto deve ser ressaltado: o

apoio inicial aos bispos ultramontanos foi dado pelo próprio governo imperial.

Após os conturbados anos do Primeiro Reinado e do Período Regencial, em que o país

esteve na eminência de uma fragmentação territorial, com significativa perda de legitimidade

por parte do poder central, as elites políticas, que assumiram o governo no chamado Regresso

Conservador e durante os anos de 1840 a 1860, passaram a apoiar o clero ultramontano com o

intuito de fortalecer o poder central, estabilizar o Estado e reinstaurar a ordem. Eles

acreditavam que esse grupo seria o único capaz de apoiar o projeto centralizador, já que vinha

combatendo as revoltas regenciais por meio dos púlpitos desde o Período Regencial. Se por

um lado essa elite política acertou na sua previsão sobre a capacidade desses bispos afastarem

o seu clero de revoltas e revoluções, influenciando diretamente os fiéis, ao mesmo tempo não

avaliou bem as potencialidades do acirramento dos conflitos entre os ultramontanos e o

Estado, em torno da autonomia da Igreja e do regalismo imperial. Ou seja, ao mesmo tempo

em que o ultramontanismo foi apoiado pelo governo tendo em vista o fortalecimento do

Estado nos anos quarenta e cinquenta, ele começou a minar o poder estatal combatendo os

tradicionais pilares da união entre os dois poderes e levando à radicalização dos conflitos nas

décadas de sessenta, setenta e oitenta (SANTIROCCHI, 2013).

Dai a César o que é de César e ao Papa o que é do Papa

Uma das grandes acusações que o ultramontanismo sofreu por parte dos regalistas, no

século XIX, foi o de ser um movimento a serviço de uma “corte estrangeira”, situada em

Roma. Essa ideia foi fortalecida com a tradução e publicação no Brasil do livro Der Papst

und das Konzil (O Papa e o Concílio), de Johann Joseph Ignaz von Döllinger (1799-1890).

Apesar de os regalistas brasileiros e Döllinger buscarem denunciar a ligação do

ultramontanismo com uma fonte de poder exterior aos seus territórios nacionais, essas duas

interpretações divergiam. “Servir uma corte estrangeira”, segundo a tradicional crítica

15

regalista luso-brasileira, colocava o papel de ator do movimento no Brasil, que buscava a

autoridade de Roma. Já romanizar, invertia as posições, colocando a Igreja nacional na

posição de passividade, perante um movimento estrangeiro que se impunha a partir de Roma.

O conceito de romanização acabou dando ênfase ao que seria uma ação coordenada pela

Santa Sé para reformar a Igreja no Brasil, desviando a atenção do fato dessa essa demanda ter

vindo do próprio clero nacional.

Ao se analisar as biografias e os episcopados dos primeiros bispos ultramontanos, nota-

se que o movimento parte de dentro e cria as bases da reforma antes mesmo que Roma

percebesse as mudanças em andamento. A Santa Sé só procurou se inserir no processo de

reforma ultramontana quando esta já estava ocorrendo. É interessante notar que os dois

principais iniciadores da reforma ultramontana eram bispos de dois estados tradicionalmente

ligados ao liberalismo político: São Paulo e Minas Gerais.

D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana, era membro da Congregação dos Padres

da Missão (lazaristas) de origem francesa. Ele foi enviado pela província lazarista portuguesa

para Minas Gerais em 1818. Desde sua chegada ao Brasil eles sentiram na pele os efeitos do

regalismo, passando por momentos de apoio dos reis e de perseguições dos governos nacional

ou provincial. O trabalho dessa Congregação se centrou na educação do clero e as missões

junto à população, os lazaristas investiram toda sua energia na formação de um novo clero,

por meio de seminários, e na evangelização da população, por meio das missões.

O bispo de São Paulo, D. Antônio de Mello, foi educado dentro do chamado

“catolicismo tradicional” e foi ativo participante do grupo dos padres paulistas, que pensavam

nas possibilidades de reforma da Igreja brasileira. Esse grupo foi o berço do liberalismo

eclesiástico nacional e contava com a participação ativa do Pe. Diogo Feijó. Apesar disso, D.

Antônio afastou-se das ideias regalistas, descartando o Estado como fonte de apoio para a

reforma. Para ele era necessário mudanças para moralizar a Igreja no Brasil e isso só seria

possível com o apoio da Santa Sé, com a execução das definições de Trento e por meio da

educação do clero e do povo. Como o seu colega Antônio de Minas Gerais, o bispo paulista

acreditava que a reforma deveria partir da formação de um novo clero. Para isso era

fundamental um seminário, que deveria ser entregue a uma ordem religiosa reformada. Foi ao

Papa Pio IX que esse bispo rogou apoio e por meio dele conseguiu que os capuchinhos

16

italianos assumissem a direção do seminário paulista, pelo qual lutou desde o começo do seu

episcopado em 1851 (WERNET, 1987).

Outros bispos nomeados nas duas primeiras décadas do Segundo Reinado também

buscaram ligar-se à Santa Sé, apoiando-se nela para a implantação de uma reforma

ultramontana. Entre eles, podemos citar: D. José Afonso de Morais Torres (Pará - 1844-1857)

e D. Feliciano José Rodrigues de Araújo Prates, primeiro bispo do Rio Grande do Sul (1853-

1858). A eles aderiram alguns bispos já nomeados nos períodos precedentes, como foi o caso

do arcebispo de Salvador, D. Romualdo Antônio de Seixas (1827-1860), que abandonou

definitivamente a carreira política e passou a dedicar-se exclusivamente à administração de

sua diocese, chamando os padres lazaristas para dirigirem o seu seminário em 1849. Outro

caso é o bispo de Pernambuco, D. Fr. João da Purificação Marques Perdigão (1831-1864), que

passou a escolher jovens clérigos e incentivá-los a continuar sua formação na Europa, como

foi o caso de D. Vital de Oliveira, que entrou para a ordem dos capuchinhos e se tornou bispo

de Pernambuco.

Nos inícios dos anos de 1850, mais da metade das dez dioceses brasileiras (Diamantina

e Fortaleza foram criadas em 1854 pelas bulas Gravissimum Sollicitudinis e Pro Animarum

Salute, sendo as últimas instituídas no Período Imperial) já estavam sendo ocupadas por

bispos ultramontanos. Nessa mesma década, vários padres se formaram dentro desse novo

espírito, iniciando um conflito, não só eclesiástico, mas também cultural, com o clero de

outras tendências que não se alinhavam ao novo contexto. Todos esses bispos ultramontanos

passaram a privilegiar a autoridade romana, a buscar os seus conselhos e apoio para o

planejamento e execução das reformas que queriam realizar em suas dioceses. Todavia, a

Santa Sé não estava preparada para isso. Seu conhecimento sobre o Brasil ainda era muito

limitado no início dos anos 1840, e isso se devia à sua fraca representação e autoridade em

solo nacional.

A Santa Sé não teve representante oficial no Brasil desde a sua independência até 1830.

Em 1829, foi criada a Nunciatura Apostólica no Rio de Janeiro, sendo o primeiro Núncio o

Monsenhor Pietro Ostini. Durante a sua estadia no Brasil gastou muita energia reclamando

das suas condições de saúde e dos males causados pelo ambiente local, além de aconselhar a

Santa Sé sobre a inutilidade de uma nunciatura no país, opinando que no futuro fossem

enviados somente Encarregados de Negócios ou, no máximo, Internúncios. Ele voltou para a

17

Europa em 1832, e conseguiu o que queria: no seu lugar ficou um Encarregado de Negócios,

o abade Domenico Scipione Fabbrini, que era inferior hierarquicamente aos bispos nacionais,

o que muito prejudicou a autoridade da Santa Sé no Brasil (ACCIOLY, 1949).

Somente em 1842 foi enviado um Internúncio, substituindo Fabbrini, o Monsenhor

Ambrogio Campodonico, que permaneceu no Brasil até 1845, sendo substituído

posteriormente pelo Monsenhor Gaetano Bedini (1846-1847). Após essa data voltaram os

Encarregados de Negócios, de 1847 a 1856. Em 1851, foi feita uma tentativa de se enviar

novamente um Núncio Apostólico, na pessoa de Gaetano Bedini, mas ele foi refutado pelo

governo brasileiro, pelo fato de a Santa Sé não ter apresentado uma lista tríplice para a

escolha governamental, como era o costume. Nessa ocasião, pela primeira vez, foi elaborado

um plano de reforma para a Igreja brasileira por parte da Cúria romana, que buscou, a partir

de então, aumentar a sua autoridade e influência. Todavia, muitas foram as dificuldades

enfrentadas por Roma na implementação do seu projeto reformador, principalmente causadas

por parte do governo imperial, o que a levou a optar por inserir-se no projeto de reforma dos

bispos ultramontanos nacionais (SANTIROCCHI, 2010, p. 337-345).

Em 1842 a Santa Sé já tinha ventilado uma possível estratégia para reformar a Igreja

brasileira, porém ia em direção oposta aos projetos do episcopado nacional. Naquele ano a

Cúria enviou um documento ao Internúncio Mons. Campodonico, respondendo às suas

reclamações sobre a participação dos bispos em política, o que, segundo ele, prejudicava a

administração eclesiástica das dioceses, pois resultava em uma longa ausência dos prelados. O

Cardeal Lanbruschini, Secretário de Estado, discordou do Internúncio, defendendo que seria

grande o bem que se poderia conseguir com a participação dos prelados no legislativo em

defesa dos interesses da Igreja, citando como exemplo o arcebispo D. Romualdo de Seixas e

sua atuação política (ASV, NAB, Cx. 18, fasc. 76, doc. 78, f. 178r-178v). Na resposta dada

pelo Cardeal Lanbruschini, é possível perceber que o desejo da Santa Sé era que os bispos

continuassem a aproveitar o direito de ocupar cargos eletivos no legislativo, sem, no entanto,

deixar de prover adequadamente ao governo das suas dioceses. Esse documento é de 1842, e

os bispos que foram nomeados, a partir de 1844, renunciaram à participação política,

contrariando as instruções da Santa Sé. A reforma que estava por se iniciar iria em direção

contrária: o combate incisivo da participação do clero na política partidária.

18

As Instruções que seriam dadas a Mons. Gaetano Bedini, em 1852, também

demonstravam o desconhecimento da Santa Sé sobre o cenário político eclesiástico nacional,

pois acreditava que conseguiria o apoio governamental para reformar a Igreja no Brasil e

ampliar a sua autoridade. Essas Instruções foram divididas em parágrafos numerados e títulos

temáticos, denominados por sua vez de Parágrafos no original. Os Parágrafos eram dez,

sendo cinco deles referentes ao Brasil e os demais às Repúblicas hispano-americanas. No que

concernia ao Brasil tratavam dos seguintes temas: 1 – Da reunião dos Bispos; 2 – Das

matérias a tratar nas conferências dos bispos brasileiros; 3 – Da Concordata; 4 – Da redução

das Festas e do pedido de diminuição dos canonicatos da Capela Imperial; 5 – Da ereção do

bispado de São Pedro do Rio Grande do Sul. As Instruções enviadas a Vincenzo Massoni em

1856, além dos cinco temas precedentes, continham outras: 6 – Faculdades Teológicas; 7 –

Seminário e Cabidos; 8 – Do abuso dos Católicos enviarem seus filhos a escolas Protestantes;

9 – Da reforma do clero; 10 – Dos matrimônios mistos (ASV, NAB, Cx. 30, fasc. 133 único).

Sem entrar em detalhes, podemos notar pelos títulos das Instruções de 1852, que elas

buscavam uma regeneração da Igreja no Brasil por meio do apoio estatal, o que demonstrava

os limites do conhecimento das condições brasileiras por parte da Santa Sé. O Estado nunca

permitiu uma reunião dos bispos durante o Período Imperial, e as negociações para uma

Concordata, em 1858, foram um fracasso (SANTIROCCHI, 2011). Somente em 1856, mais

consciente das condições da Igreja no Brasil, a Santa Sé começou a integrar-se ao movimento

ultramontano brasileiro, apoiando-se mais nos seus bispos do que buscando o auxílio do

Estado.

Nas décadas posteriores, a Santa Sé e os bispos trabalharam cada vez mais em sintonia,

no entanto, a ampliação da autoridade da Santa Sé também criou resistência por parte dos

bispos ultramontanos, principalmente em relação ao projeto de reforma das irmandades

religiosas, iniciada em finais de 1870, após o conflito entre o episcopado, a maçonaria e o

governo, conhecido como Questão Religiosa. Formaram-se, então, dois grupos, um mais

radical no seu desafio à autoridade do Estado sobre a Igreja, tendo como bispo proeminente

D. Macedo Costa (Pará - 1860-1890). Enquanto o outro preferia agir com mais cautela e tinha

como principais nomes D. Luís Antônio dos Santos (Fortaleza - 1860-1879\Salvador - 1879-

1890), e D. Pedro Maria de Lacerda (Rio de Janeiro - 1868-1890). A Santa Sé inicialmente

19

apoiava o primeiro grupo, mas terminou por se impor a estratégia do segundo

(SANTIROCCHI, 2010, p. 531-553).

O movimento ultramontano, que passou a dirigir a Igreja nacional a partir dos anos de

1850, buscava em Roma um centro; apesar disso não deixava de ter opiniões próprias, de

querer conservar e preservar uma salutar autonomia. Segundo uma opinião comum na época,

certa independência era necessária devido à falta de conhecimento da Cúria romana em

relação à realidade nacional. Buscava-se um centro para que trabalhassem juntos, não para

uma simples submissão a um poder central.

Os bispos ultramontanos no Império do Brasil combateram o que acreditavam ser

ingerências estatais na ambiência eclesiástica, no entanto, defenderam a ordem e as

autoridades instituídas. Para eles a Igreja era governada pela Santa Sé, sendo o pontífice a

autoridade máxima, no entanto, isso não significava abdicar de sua autonomia enquanto uma

Igreja com suas próprias especificidades e percurso histórico próprio. Ao dar a César o que

acreditavam ser de César e ao Papa o que acreditavam ser do Papa, defendiam certa

independência de ação, justificada pelo contato direto com a realidade onde atuavam, ou seja,

derivado do exercício episcopal nas suas dioceses.

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