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………………. - 1 - FLÁVIO MARCUS DA SILVA D D e e s s g g a a r r r r a a d d o o s s VirtualBooks Editora ………………. - 2 - © Copyright 2015, Flávio Marcus da Silva. 1ª edição 1ª impressão Todos os direitos reservados, protegidos pela Lei 9.610/98. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, em qualquer meio ou forma, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização do autor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SILVA, Flávio Marcus da Desgarrados. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, Publicação 2015.14x20 cm. xxp. ISBN 978-85-434-0587-2 Literatura brasileira.Contos. Poemas. Brasil. Título. CDD- B869 _______________ Livro editado pela VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Porciúncula,118 - São Francisco Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 - Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br

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FFLLÁÁVVIIOO MMAARRCCUUSS DDAA SSIILLVVAA

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VirtualBooks Editora

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© Copyright 2015, Flávio Marcus da Silva. 1ª edição 1ª impressão

Todos os direitos reservados, protegidos pela Lei 9.610/98. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, em qualquer meio ou forma, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização do autor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SILVA, Flávio Marcus da Desgarrados. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, Publicação 2015.14x20 cm. xxp. ISBN 978-85-434-0587-2 Literatura brasileira.Contos. Poemas. Brasil. Título. CDD- B869

_______________ Livro editado pela VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Porciúncula,118 - São Francisco Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 - Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br

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SUMÁRIO

O gato da vizinha / 5

Luz na floresta / 8

Alertas / 10

O desaparecimento de Ramon / 12

Tempo livre / 16

No meio do caminho tinha uma pedra / 18

Vida interior / 20

Minha busca / 23

Sem tempo a perder / 25

A morte de D. Jaciara / 27

Se fosse um menino / 30

Rico de mim / 32

O pintassilgo / 34

Homenagem / 37

Sonhando com o céu / 39

Cápsula do tempo / 42

Que vergonha, Ramon / 44

Ser pobre custa caro / 46

Amigo oculto / 48

Formigas / 50

Eu, leitor / 52

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O sonho de Ramon / 55

Um trabalho de História da Arte / 57

No Jardim das Beguines / 60

Lendo Graça infinita / 62

Nada pra fazer / 64

Estado de graça / 66

Nas asas do tempo / 68

As crianças de Terezin / 70

Ovelha desgarrada / 72

Gatunos sessentões / 74

No jardim do perdão / 76

Ramon contra a corrente / 78

A inquietação do besouro rola-bosta / 81

Quanto mais gordo melhor / 83

Sexta-feira livre / 86

Na colmeia / 88

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O gato da vizinha Ramon tinha uma vizinha que era simplesmente apaixonada por gatos. Era viúva, não tinha filhos e passava a maior parte do tempo em casa. Com ela viviam seis bichanos, todos de raça, com pedigree e tudo. O problema era que um deles – um angorá branco de olhos verdes – visitava o quintal de Ramon toda noite para defecar. A vizinha morava três casas acima, mas o gato gostava era da grama de Ramon. Ramon chegou a procurar a velha senhora, para conversar sobre a situação. Indignada, ela negou que seu bichano fosse culpado de tal porcaria. “Gabo é educado, meu senhor, não faz essas coisas fora de casa não”, disse a mulher, fechando a porta na cara de Ramon. Ele sabia que era Gabo, pois numa dessas noites seguira-o até a casa da viúva. Conclusão: com diplomacia, nada. Ramon então comprou uma espingarda profissional, registrou-a na Polícia, fez curso de tiro e se preparou para dar um jeito naquele gato. Na noite escolhida para a missão, ajustou um silenciador no cano da arma e se posicionou na cozinha, próximo à janela que dava para o quintal. Já estava com jornais velhos e um saco de lixo em mãos para embrulhar o cadáver do gato. De manhã o jogaria no ribeirão. Ninguém ia desconfiar. Duas da madrugada. Gabo pulou o muro e lentamente se dirigiu à grama, onde procurou seu lugarzinho preferido para defecar. Quando o bichano levantou o rabo, arqueou o corpo e começou a fazer força, Ramon disparou um tiro

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que o acertou bem no pescoço. Gabo pulou para trás, assustado, e o sangue começou a esguichar. “Deve ter pegado de raspão”, pensou Ramon, “senão ele já teria morrido”. De raspão ou não, o fato é que Gabo enlouqueceu. Corria para todo lado, esguichando sangue no muro, no chão da área de serviço, nas paredes, na porta da cozinha e no corredor que dava para a saída. Pelo muro chegou à garagem e subiu no Uno branco de Ramon, sujando-o todo de sangue, e também as paredes, o chão, as plantas do jardim, o portão, tudo. Saiu para a rua e cambaleou até a casa da viúva, deixando um rasto enorme de sangue pelo caminho. “Que diabo de gato é esse para ter tanto sangue?”, pensou Ramon, olhando a sujeira que Gabo tinha feito em sua casa. Sua mulher acordou assustada com a confusão e foi correndo à garagem. “Você matou alguém?”, ela perguntou. “Não”, respondeu Ramon, “Foi o gato da vizinha, mas ele não morreu”. “NÃO MORREU?”, espantou-se a mulher, sem acreditar que um gato pudesse esguichar tanto sangue daquele jeito e não morrer. Ramon coçou a cabeça e ficou olhando a garagem, que mais parecia um matadouro. Foi quando ouviu os gritos desesperados da viúva – de início, pouco audíveis, por causa da distância, mas se aproximando, cada vez mais altos, descendo a rua. A velha seguiu o rasto de sangue e chegou aonde tinha que chegar. Quando ela viu o carro ensanguentado e a garagem naquele estado, gritou enlouquecida, com os olhos fixos em Ramon: “Assassino!

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Assassino!”. Em seus braços jazia o cadáver de Gabo, que ela colocou no chão lentamente, em prantos. A vizinhança toda apareceu e testemunhou a cena: Ramon parado com a espingarda na mão, a velha senhora chorando ajoelhada ao lado do gato morto, a mulher de Ramon descabelada, enrolada num cobertor, e sangue, muito sangue. Entre os vizinhos presentes havia uma veterinária e dois membros da Sociedade Protetora dos Animais, que acharam aquilo um absurdo. Todos os olhares eram de reprovação, alguns indignados, e aos poucos foram se concentrando numa única pessoa: Ramon: o monstro, o pérfido, o terrível. Pobre Ramon. Se ele já não era muito querido na vizinhança, depois dessa, então...

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Luz na floresta

Não digo que terminei hoje de ler O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse, porque esse livro não se termina – pelo menos não para aqueles que se entregam de corpo e alma à sua leitura, que é ao mesmo tempo uma viagem de autoconhecimento, um encontro consigo mesmo, com a natureza e com Deus. Não se termina porque sua voz suave e reconfortante não cessa dentro de nós com a palavra fim, lida com tristeza na última página, após a frase: “Nunca mais ele abandonou a floresta”; uma voz que continua soando como leve brisa benfazeja, lembrando-nos do que realmente importa nessa vida: amor, compaixão, serenidade, humildade e simplicidade. Lançado em 1943, O jogo das contas de vidro é um livro atemporal, universal, escrito por um homem que, além de grande escritor, era um sábio, um profundo conhecedor da alma humana. Seu texto é simples, fácil de ler, mas nem todos que o leem conseguem entendê-lo, porque estão presos demais à superfície, às batalhas efêmeras da ambição. O próprio Hesse afirmou certa vez que os leitores que menos o entendiam eram os norte-americanos. Ora, por quê? Certamente por se tratar de um povo apegado demais a uma ideia de sucesso que valorizava, acima de tudo, as conquistas individuais no mundo do trabalho (capitalista), ligadas a dinheiro, reconhecimento e poder, e não o ser, a harmonia com o todo, a paz de espírito, a alegria simples de existir...

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Nunca um livro me fez tão bem quanto esse – e continua fazendo. Com ele na alma sinto-me mais próximo do bem viver, embora o conflito entre o que eu entendo como minha essência (ou minha verdade) e as demandas da superfície continue existindo... Mas certamente com menos força, com menos dor... Obrigado, Hermann Hesse!

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Alertas meus óculos estão embaçados. fico esfregando as lentes na camisa o tempo todo mas não adianta, parece que a sujeira grudou. nem com sabão sai. o pisca-alerta do meu carro estragou, está disparando, e não sei aonde levar para arrumar. fiz uma gambiarra com um pedaço de papelão, que serve de calço no botão, mas às vezes a coisa afrouxa, solta e o alerta dispara de novo. estou descamando nas orelhas e na sobrancelha. todo dia fico um tempão arrancando casquinhas brancas na frente do espelho até sangrar. não procuro uma ótica para ver o problema dos óculos. não procuro uma oficina para ver o problema do carro. não procuro um médico para ver o problema da pele. este sou eu: o acumulador de problemas. o que deixa tudo para depois e que, ao se deparar com a montanha enorme de lixo acumulado forçando passagem por tudo quanto é canto da sua vida, desespera-se, entra em parafuso e adoece. gosto de rotina, de tudo programado. não lido bem com o inesperado. sou analista de sistemas e faço tudo impecavelmente na empresa onde trabalho. críticas ao meu serviço ou à forma como me relaciono com meus colegas não cabem no meu programa. não as tolero. minha infalibilidade é certa e não pode ser contestada. quando me criticam, não

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há espaço em mim para terem razão, só eu tenho razão, porque é o que está no meu programa, que funciona tão bem quanto o que eu criei para a empresa, ou seja: perfeitamente. tenho recebido algumas críticas ultimamente e meu programa tem respondido de forma adequada, desenhando em meu rosto expressões de desprezo, às vezes de ironia, quase sempre com um sorriso de canto de boca e um brilho no olhar dando um toque especial à imagem de homem superior e imbatível que eu quero passar, certo de estar certo, sem a menor sombra de dúvida. mas assim como óculos embaçados + piscas estragados + peles descamando + isso e aquilo, críticas também se acumulam, viram lixo, fedem, e podem me derrubar, como já aconteceu duas vezes, quando fui internado num hospício, aos gritos de sou competente, sou infalível, minha vida é perfeita, vão se danar, completamente desestruturado, coitado de mim. meu programa entrou em colapso. demorou seis meses para se restabelecer na primeira vez e quase um ano na segunda. é o que eu temo que aconteça de novo, pois as críticas já começaram, junto com óculos, piscas, peles e companhia, que se multiplicam numa rapidez assustadora. meu programa responde como deve, ignorando, desprezando e ironizando, mas pode quebrar, que eu sei. ai minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, me ajude.

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O desaparecimento de Ramon

Depois de passar um final de semana inteiro com a família no sítio de uns parentes, onde conversou bastante, tomou cerveja, comeu churrasco, ouviu Ivete Sangalo e assistiu a duas partidas de futebol, Ramon recebeu de sua esposa um passe livre para não ir ao casamento do primo dela na última sexta-feira e ainda ficar em casa sozinho os três dias seguintes, enquanto ela curtia com os filhos a roça do sogro, emendando o final de semana com o feriado na segunda-feira. Maridos normais, que têm esposas boazinhas, ganham delas de vez em quando um ‘vale noite’, para irem sozinhos a barzinhos com amigos. Já Ramon, que foge um pouco do padrão normal de marido, ganha às vezes um ‘vale ficar sozinho em casa’, que ele adora. Foi o que aconteceu no último final de semana. Só que, na segunda-feira à noite, ao voltar para casa, a família de Ramon não o encontrou na frente do computador, como de costume, nem na cama ou no banheiro lendo, nem assistindo a filmes cult na sala. Onde estaria Ramon? O computador estava desligado, mas ao seu redor havia vários vestígios da presença de seu dono: uma garrafa de vinho tinto vazia, uma taça suja, um prato com restos de lasanha, uma lata de azeite, um pratinho de sobremesa com restos de torta de limão, caroços de azeitona preta, pedaços de pele de calcanhar trincado, fragmentos de unha, caspa, fio dental usado e um par de chinelos.

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No chão da sala encontraram um vestígio perturbador: sangue. Havia uma grande poça seca em frente à televisão e uma trilha de gotas vermelho-escuras indo em direção à cozinha, mas desaparecendo de repente, antes de chegar ao armário da pia. Na sala, próximo à trilha de sangue, havia um pedaço de casca de laranja; na mesa da cozinha, uma caixa de fósforos com um palito usado; e na bancada da pia, um rolo de papel toalha jogado de qualquer jeito. Da escada viram que o porão estava completamente escuro. Chamaram duas vezes. Nada. Procuraram por todos os cômodos, sem sucesso. Então ligaram para mim. Fui imediatamente. Reviramos de novo a casa, olhamos nos guarda-roupas, embaixo das camas, mas nem sinal de Ramon. “Sozinho em casa com seus livros e filmes ele não sairia para a rua de jeito nenhum”, disse a mulher, preocupada. Os livros que ele andava lendo estavam nos dois banheiros. No social, Os demônios, de Dostoievski. No da suíte, uma biografia de Dostoievski, ao lado de uma programação recente da TV a cabo. Abri a programação e descobri algo que me pareceu uma pista importante: o título de um documentário sobre Dostoievski, que tinha passado naquele dia, das 16 às 17 horas, estava marcado de vermelho. Li o resumo. Era sobre o livro Notas do subsolo. Eu sabia que Ramon tinha esse livro e que estava reunindo coragem para lê-lo. Fui à estante procurá-lo, mas não o encontrei. Analisei as pistas e rapidamente cheguei à solução do mistério. Minha explicação foi a seguinte:

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“Hoje à tarde Ramon foi ao banheiro, onde leu um pouco da biografia de Dostoievski e folheou a programação da TV a cabo, para ver se encontrava algo interessante. Levou a caneta vermelha para marcar palavras desconhecidas no livro, que era em francês. Ao ver que às 16 horas começaria um documentário sobre um livro de Dostoievski que ele tinha muita vontade de ler, marcou-o na programação e continuou lendo a biografia. Em seguida caminhou pela casa, pensativo, desligou o computador, folheou um ou outro livro, e às 16 horas ligou a televisão. Pegou uma laranja, uma faca e se pôs diante do aparelho. De pé, descascava a fruta enquanto assistia ao documentário. Deve ter visto ou ouvido alguma coisa no filme que o perturbou – talvez tenha levado um choque, não sei. O fato é que cortou a mão. O assunto devia ser tão intrigante que ele não se importou com o corte e continuou assistindo, o que explica a poça de sangue no chão, em frente à televisão. Ao acordar do transe, foi à cozinha, deixando cair um pedaço de casca de laranja no caminho, jogou a fruta e a casca na lixeira (sem mudar de rota), pegou duas ou três folhas de papel toalha na bancada da pia, enrolou-as na mão e começou a limpar o chão, próximo ao armário, mas logo desistiu, porque estava com Notas do subsolo na cabeça, obcecado por alguma coisa vista ou ouvida no documentário. Foi à estante, pegou o livro, acendeu uma vela utilizando o fósforo que agora se encontra na mesa da cozinha e foi para o ‘subsolo’, ou seja: o porão, onde se sentiu o próprio narrador do livro, cercado de escuridão. Como o livro é pequeno, deve tê-lo terminado em menos de quatro horas, e agora está lá, com a vela apagada, deitado no chão, paralisado, talvez ainda com a mão esquerda enrolada em papel toalha, pensando no livro, no seu

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autor, na Rússia Czarista, completamente fora da realidade”. Dito e feito. Fomos ao porão e o encontramos lá, deitado, saindo do transe, com Notas do subsolo aberto na última página sobre o peito nu e a vela apagada no chão, quase no final. Sua família correu para abraçá-lo, aliviada. Ele se mostrou feliz em vê-los, acolheu-os carinhosamente e, como se nada tivesse acontecido, propôs: “Vamos sair para tomar um sorvete?”.

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Tempo livre

acordo para mais um dia a cumprir – mais uma página da triste agenda de compromissos e obrigações: o tempo em grades, apertado, cortado – e eu no meio, com meu grito entalado no peito, sedento de ar quero pausa: noites longas e frias com chuva, cheiro de terra molhada, leite quente com toddy, cobertor, sem hora para dormir, sem hora para acordar tempo livre para ler o senhor dos anéis sem cronometrar

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ver filmes: hitchcock, buñuel, godard caminhar sem rumo pela cidade, pelos campos, sem ambição, sem prévias ocupações da mente com o que pode ser ou não ser amanhã, depois ou nunca tempo livre para ser livre.

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No meio do caminho tinha uma pedra

Uma pedra branca em forma de couve-flor desce lentamente pelo meu ureter esquerdo, em direção à bexiga. Agora ela está parada por causa de um estreitamento no canal, que eu não sei se vai ceder. Em meu delírio de dor, vejo-a estacionada, impedindo a passagem da urina, que começa a chegar, vinda do rim. Para o outro lado não passa nada. O líquido se acumula. A dor aumenta. Uma faca enfiada no estômago levada com força até a virilha, rasgando tudo, não deve doer tanto. Estou delirando. Vejo meu corpo na cama em posição fetal. Estou sobrevoando meu próprio corpo. É muito estranho. Ele se contorce todo em agonia, aflito, o rosto crispado, as mãos fechadas, tremendo de dor. Dor atroz, lancinante. Não tem ninguém em casa. Não consigo voar até a rua para chamar um vizinho. Tento gritar, mas minha voz não sai. Há uma energia que me liga ao corpo, por isso não consigo sair do lugar, e sinto dor. Vejo a pedra. Não sei como isso é possível, mas vejo-a claramente, é só forçar a vista no lugar certo do corpo que ela aparece, branca, cheia de reentrâncias e buracos, como um coral. Parece que está viva, mas não sai do lugar, a urina não passa, e o rim já sente a pressão, incha, pulsa. Meu Deus, meu Deus! Acordo do meu delírio. Estou num hospital, quarto particular. Olho para o lado e vejo minha mulher sentada

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numa poltrona, cochilando. Não tenho plano de saúde nem dinheiro para quarto particular. O que estou fazendo ali? E a pedra? “Você a expeliu”, uma voz me diz ao pé do ouvido, mas não vejo ninguém. Não há ninguém no quarto além de mim e da minha mulher. Levanto o pescoço e vejo uma enorme mancha de sangue no lençol, bem em cima do meu pinto. “Você a expeliu, você a expeliu”, repete a voz, e a mancha aumenta de tamanho. Quero levantar o lençol para ver o que aconteceu com o meu pinto, mas não consigo me mexer. Tento gritar, mas não tenho voz. Acordo de novo. Agora é tudo real. Estou em casa, no meu quarto, com a janela aberta. Minha mulher dorme ao meu lado, roncando suavemente. É madrugada. Pernilongos me atacam. O calor é insuportável. Vou ao banheiro lavar o rosto, mas não tem água. A cidade fede. No entanto, não sinto dor. Não há pedras dentro de mim. Deve ter sido ar preso. Que alívio!

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Vida interior

Meu lugar preferido de retiro (para onde vou, de vez em quando, para fugir do mundo) é dentro de mim, no mais profundo do meu ser. O lugar é escuro, silencioso, com poltronas confortáveis e um abajur. Lá não há pressões, cobranças, modelos a seguir, metas a alcançar – nada disso. Para lá me dirijo sempre que o mundo me cansa, para me fortalecer, me livrar do excesso de peso, das máscaras, e limpar o sangue das feridas. Não vou sozinho:

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Saramago me acompanhou três vezes. Dele ganhei um novo olhar sobre o mundo. Clarice já é de casa, vai entrando sem cerimônia, tranquila, mas sempre atenta – sabe até distinguir nuances na escuridão. Dostoiévski é convidado de honra quando me perco na multidão e não sei quem sou nem para onde vou. Com ele me desprendo do mundo, alço voo, dou piruetas no ar e finalmente me encontro. Hermann Hesse é luz. Com ele vejo pássaros, borboletas, riachos e flores. Meu retiro é também lugar para cuspir marimbondos, descarregar mágoas, vingar dores infligidas – desabafar.

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É onde, muitas vezes, escrevo e me liberto do que não quero para mim.

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Minha busca

Da janela do avião vejo várias queimadas, umas grandes, outras pequenas, e engulo seco, pensando na falta de água que nos assola, no segundo turno das eleições, no que não vai mudar no país, ganhe quem ganhar, e na morte, que me aguarda no final, soberana, imbatível. Mas não quero pensar na morte. Minha vida é agora, neste avião, sobrevoando as Minas secas, lendo A festa da insignificância, de Milan Kundera, feliz – no momento, feliz –, e é isso que importa. Ao meu lado minha filha lê Diário de uma garota nada popular, o que me leva a pensar no garoto nada popular que eu fui nos anos 80, na estranha sensação de ser invisível, na angústia de fazer o que eu não queria, de fingir ser o que eu não era, só para conversarem comigo, me incluírem no grupo. Mas isso já passou. Hoje busco o que sou, pagando o preço dessa busca (e do que vou encontrando), feliz, sem medo, porque o tempo passa e não quero desperdiçá-lo violentando minha alma, obrigando-a a se ocultar enquanto represento minha parte nos palcos da vida. Sei que representar é matéria de sobrevivência. Mas nela não quero tirar 100, só o necessário para passar. Estou aprendendo a viver. Volto à minha leitura: “A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre”. Fecho os olhos e me vejo em Paris, passeando sozinho pelas ruas de Montmartre...

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Pouso autorizado. Segunda-feira começa tudo de novo. Obrigado, Deus, por me dar força e coragem para prosseguir nessa busca.

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Sem tempo a perder

Meia-noite. Sem conseguir dormir por causa do calor e dos pernilongos, Ramon resolveu mexer na sua coleção de santinhos de falecimento, que ele guardava numa caixa de papelão, no alto de uma estante da biblioteca. Eram ao todo 52 santinhos, só de gente da família, alguns com mais de quarenta anos (como o do seu bisavô Juliano, falecido em 1972, de infarto, e o da sua tia-avó Corina, que morreu um ano depois, aos trinta anos, de câncer de pulmão, embora nunca tivesse fumado). Impressionado com o caso de sua tia-avó, Ramon calculou as idades dos outros parentes e descobriu que a maioria não tinha chegado nem aos sessenta anos. Como no verso de cada santinho ele tinha anotado a causa da morte (pensando em escrever mais tarde uma história fúnebre da família), resolveu marcar as que ele acreditava terem origem genética. Ficou assustadíssimo com o resultado: 95% das mortes na sua família, de ambos os lados, desde 1972, tinham sido causadas por doenças fortemente ligadas a fatores genéticos. Aos 39 anos, Ramon então concluiu que já tinha vivido mais de dois terços da sua vida! Para ser mais preciso em seu cálculo, Ramon resolveu somar as idades que seus parentes tinham quando faleceram e dividir pelo número de santinhos, tirando assim uma média. Na estranha lógica de Ramon, essa média seria a idade que ele teria quando morresse. Resultado: 56 anos. “Não vou conseguir nem me aposentar”, pensou Ramon. “Assim não vale! Vivo para

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trabalhar, pelejando num mar de inveja, ódio e humilhação, para depois morrer na praia? Não é justo!”, concluiu indignado. Ramon então começou a pensar em tudo que tinha planejado fazer quando se aposentasse: conhecer Lisboa, Paris, Amsterdã e Praga, escrever um romance policial, viajar com a mulher e os filhos para o Nordeste, ler a lista de livros que ele vinha fazendo desde os anos noventa, curtir mais a família e a natureza, etc. “Vou perder o lado bom da vida”, disse para si, desolado. “Queimarei a parte ruim, trabalhando como um condenado naquele maldito banco, estressado, angustiado, para na hora de começar a parte boa, Dona Morte sair de sua emboscada e transformar em nada todos os meus planos? Não, isso não!”, exclamou Ramon. Olhou o relógio. Duas e meia da madrugada. Foi ao banheiro, lavou o rosto, olhou-se no espelho e disse: “Ramon, você está louco, precisa de um tratamento, isso é fato; mas na sua loucura, hoje, você viu uma luz. Não há tempo a perder”. E sorriu.

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A morte de D. Jaciara

“Consegui!”, postou D. Jaciara em sua página no Facebook, assim que seu jatinho decolou do Aeroporto Internacional Juca de Sá rumo a Los Angeles. Com ela estavam seu marido e três de seus quatro filhos (o mais velho já se encontrava a salvo em Paris). A maioria dos imóveis da família foi vendida e todo o dinheiro transferido para bancos norte-americanos e suíços. Obras de arte e antiguidades seguiram de navio para L.A. Depois de meses de tensão, acompanhando os debates entre os candidatos à presidência e se preparando para o pior, D. Jaciara estava agora tranquila. Conseguira escapar do comunismo (ou do que ela acreditava ser comunismo), vitorioso nas eleições, e de suas consequências nefastas para o grupo do qual ela e sua família faziam parte, com orgulho: o dos “melhores”. Representando 1% da população do país, os “melhores” detinham quase 50% da riqueza nacional, o que, na opinião de D. Jaciara, era justíssimo. “São ricos porque merecem”, argumentava. Todos os dias, em sua página no Facebook, D. Jaciara criticava as políticas sociais do governo, que, segundo ela, comprometiam seriamente a economia do país, pois davam corda aos vagabundos, “essa multidão de gente que fica em casa coçando saco, quando deveria estar nas linhas de montagem, varrendo rua, carregando lixo, etc.”, escrevia. Dona de uma mansão com mais de sessenta cômodos, sua preocupação maior era com a dificuldade de se encontrar empregadas domésticas. “Por um salário mínimo já não se acha mais! Daqui a pouco vão exigir

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três!”, escreveu uma vez, indignada, e completou: “Se for reeleito, esse governo instaurará no país uma ditadura comunista das mais ferozes, e nela certamente haverá um ministério comandado só por domésticas”. Ao pressentir a vitória do comunismo nas eleições, D. Jaciara não perdeu tempo: organizou sua fuga para os Estados Unidos, país de vencedores, “onde os melhores são valorizados e os vagabundos devidamente punidos”, dizia. Pelo menos era o que ela acreditava, e desde a primeira vitória do governo vermelho, ela sonhava em se mudar para lá, para ver seus netos serem educados nas melhores escolas do mundo e ganharem muito dinheiro. Finalmente estava realizando seu sonho, deixando para trás um país de perdedores, entregue aos “demônios vermelhos”, que em breve confiscariam todo o patrimônio dos ricos – “uma injustiça!”, dizia. Essa era a opinião de D. Jaciara, e não adiantava ninguém contestar, porque era o que ela acreditava e pronto, só enxergava isso. “São vagabundos sim!”, escrevia no Facebook, respondendo a qualquer um que a chamasse de preconceituosa, elitista ou ignorante. “Se é pobre é porque merece, porque não tem talento para ser rico, então tem que trabalhar naquilo que sua incompetência permitir. Se os comunistas ganharem, escrevam isto: não teremos mais empregadas domésticas, varredores de rua, frentistas, balconistas de loja, lixeiros, carregadores de bagagem, etc., sabem por quê? Porque no fundo nenhum deles gosta de trabalhar, e quando receberem as tetas que o governo lhes dará sem exigir nada em troca, largarão seus empregos e viverão às nossas custas...”, e por aí vai.

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Não, o avião de D. Jaciara não caiu. Ela só vai morrer daqui a três anos. Sei disso porque já morri e tenho acesso a várias informações aqui no além. D. Jaciara vai morrer e voltará à terra como Mary Jones Robert, uma americana afrodescendente culta, inteligente e dedicada, mas muito pobre, que passará a vida inteira trabalhando 10 horas por dia como garçonete, faxineira e varredora de rua em Los Angeles, não por preguiça ou incompetência, mas por falta de oportunidades. Tentará de tudo, correrá atrás, mas não conseguirá realizar seu sonho de ter uma casa, um carro e dinheiro para a educação dos filhos. Morrerá aos 58 anos, de infarto, sozinha e com fome, numa rua escura e úmida de Beverly Hills.

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Se fosse um menino O menino brincava de fazer aviões de papel. Esmerava-se em cada dobra, em cada ângulo, atento à simetria, à aerodinâmica, à beleza de cada uma de suas criações. Mas nem sempre acertava. Nenhum avião era igual ao outro. Tinham voos diferentes. Um deles era o campeão. Voava alto, longe, veloz, certeiro, sem desviar-se da rota, como uma flecha. Era uma potência. Seu nome era Relâmpago. O menino tinha um caderno onde avaliava seus aviões. Relâmpago tirava dez em tudo: velocidade, altura, alcance, previsibilidade, etc. O pior de todos era Teco. Teco era feio e desengonçado, voava baixo, torto, às vezes girava no mesmo lugar duas, três vezes, para depois continuar, devagar, até pousar. Seus pousos eram lastimáveis, pareciam mais desastres do que pousos. De repente, após assistir a um voo de Relâmpago, o menino teve uma estranha sensação de vazio, quase uma angústia. Relâmpago voou como sempre: alto, longe, veloz e certeiro, como uma flecha. Era o que o menino esperava. O menino, no entanto, estava pensativo. Pela primeira vez bateu-lhe uma dúvida sobre o sucesso de Relâmpago. Aí

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lançou Teco, que fez seu voo: baixo, torto, devagar, sem objetivo... Feio, como sempre. Se fosse um menino, porém, Teco teria mais tempo para curtir a viagem, ver e sentir as coisas pelo caminho, conhecer melhor as pessoas, explorar, descobrir... Uma hora ia para um lado, outra hora para o outro, nunca repetia uma rota, e sempre devagar, voando baixo... Se fosse um menino, Teco veria melhor as pequenas coisas... Levaria mais sustos... O menino estava pensativo...

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Rico de mim

Aos dezessete anos eu queria ser professor, mas tinha medo. “Escolher ser pobre quando pode ser rico é burrice”, me disseram. Eu pensava em dinheiro, claro, mas em segundo plano; daí vinha o medo, pois queria me casar, ter filhos, uma casa, um carro... Nunca fui apegado a coisas materiais, a não ser a livros – que, para mim, são mais coisas espirituais do que materiais –, e mesmo assim, quando termino de lê-los, com exceção de algumas pérolas, doo-os à Biblioteca Pública. Não, não sou apegado. Mas precisamos de dinheiro para viver, isso é fato, e meu medo era não ter o suficiente para garantir à minha família uma vida digna. Por isso o frio na barriga, a angústia diante da escolha: ser rico de dinheiro ou de mim mesmo? Minha primeira opção era História – eu queria ser professor de História –, e nem pensava em mestrado e doutorado, queria ser professor de nível médio, de preferência numa escola particular – mas se fosse numa pública, sem problema. Eu sabia o que me esperava, pois fui alertado por várias pessoas, algumas bem experientes, que diziam só querer o meu bem. Lembro-me que uma vez tentaram me convencer a fazer Direito ou Comunicação com tanta insistência que explodi: “Pelo jeito vou ter que fazer dois cursos: um para mim e um para os outros”. Fui ficando mais forte, mais corajoso, mas às vezes me batia o pensamento: “Mim mesmo não pagará minhas contas”.

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Com o medo encravado no peito, marquei “História” na minha ficha de inscrição para o Vestibular da UFMG, no final de 1993. Saí da agência dos Correios leve, muito leve, com a sensação de ter feito a coisa certa. “Agora não tem mais jeito”, pensei, e voltei para casa, feliz, disposto a enfrentar todas as dificuldades, a superar o medo e viver a minha escolha com muito amor e dedicação. Não me arrependo do que fiz. Nunca me arrependi. Eu não escolhi ser pobre, escolhi ser rico – rico de mim, do que eu sentia, do que eu amava, do que eu era. Minha paixão pela História veio ao encontro da minha paixão pelos livros, e o resultado foi muito estudo, com professores fantásticos, que me ajudaram a ver o mundo com outros olhos, a refletir sobre o passado, o presente e o futuro. Foi muito prazeroso. Cada aula, cada debate, cada livro era um prazer a mais na minha vida. Depois, quase naturalmente, vieram o mestrado, o doutorado, Lisboa... Hoje não me considero rico de dinheiro, mas também não sou pobre, minha família vive com dignidade, como eu queria. Minha riqueza maior está no meu ser e não tem preço: eu, com meus conflitos, meus medos, mas também com a alegria de me sentir rico de mim, por ter tido a coragem de marcar “História” numa ficha de inscrição de vestibular.

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O pintassilgo

Há muito tempo eu não me sentia tão empolgado com um livro como estou agora com O pintassilgo, de Donna Tartt. É um calhamaço de mais de 700 páginas, que assusta à primeira vista, mas que quando você começa a ler e a história vai te puxando, não dá mais para largar – e aquele tijolo, que antes te amedrontava, de repente parece pequeno e leve como uma pluma –; cada página é um deleite para a alma, um prazer sem explicação: você não quer que o livro acabe. Não é nada profundo. É uma história envolvente, divertida, muito bem contada por uma escritora talentosa que, certamente, ama muito o que faz. O livro começa em Amsterdã, com o personagem principal, Theo Decker, escondido num hotel; depois volta no tempo para contar sua história desde o início, quando, aos 13 anos, perde a mãe num atentado terrorista dentro de um museu de arte em Nova York. Theo está com a mãe no momento da explosão. Sobrevive milagrosamente. O pintassilgo é um pequeno quadro pintado pelo holandês Carel Fabritius em 1654, que Theo tira dos escombros do museu e leva para casa... Não vou contar mais nada. Quem não leu o livro e quiser saber mais, é só ir ao Google e digitar O pintassilgo, que vários resumos e críticas aparecerão. Não é sobre o livro que eu quero escrever hoje, mas sobre algo ligado a ele: o talento.

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Donna Tartt é talentosa e ama muito o que faz. Essa frase me veio ontem durante a leitura de O pintassilgo, e hoje, refletindo sobre Educação Infantil, pensei: Quantos talentos incríveis para música, literatura, poesia, teatro, cinema, pintura e outras artes são desestimulados ou até reprimidos na infância por pais, professores e coordenadores pedagógicos, quando deveriam desabrochar, ganhar vida? Muitos, eu acredito. Quantos profissionais frustrados... Quantas vidas medíocres... “O que seu pai fazia?”, perguntou o jornalista Júlio Lerner à escritora Clarice Lispector em uma entrevista, em 1977. Ela respondeu: “Representação de firma, coisas assim... quando na verdade ele dava era para coisas de espírito...”. Que tristeza. Um talento perdido? Talvez. Mas ele tinha que sustentar a família... Já o poeta Manoel de Barros conseguiu viver muitos anos da sua longa vida exclusivamente para a poesia – seu talento nato, seu dom, sua arte –, graças a uma fazenda que herdou do pai. Que felicidade! No mundo capitalista, certamente há mais Pinkhas Lispectors do que Manoéis de Barros... Mas não devia ser assim. Mesmo sem suportes financeiros providenciais – como a herança de Manoel de Barros –, as pessoas deveriam poder fazer o que gostam a maior parte do tempo, sem medo, sem vergonha de ser feliz. E as escolas deveriam ajudar. É triste ver crianças sendo obrigadas a decorar informações sem sentido para tirar nota em prova, a sofrer para aprender o que não gostam, porque precisam

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se destacar, vencer os colegas, vencer na vida... “Sua escola forma para a USP?”, perguntou certa vez uma mãe à diretora de um colégio de elite em São Paulo. Li isso numa matéria. Que coisa mais triste... Formar para a USP, UFRJ, UFMG... É para isso que serve uma escola? E para desenvolver originalidades, desabrochar talentos, ser feliz? Tem escola para isso? Sei que estou sonhando alto demais, talvez sendo até ridículo para alguns leitores, mas... Carel Fabritius pintou O pintassilgo no ano em que faleceu, em 1654, aos 32 anos, vítima de um incêndio que destruiu seu ateliê e a maioria de suas obras. Talvez O pintassilgo tenha sido seu último trabalho... Estou com uma foto do quadro aqui no meu computador, minimizada, que eu olho enquanto escrevo... O que esse pequeno pássaro diz para mim do alto do seu poleiro, preso por uma corrente, 360 anos após ter sido pintado por um jovem que, ao que tudo indica, também amava muito o que fazia, é: “Se puder, voe. Não tenha medo. Voe”.

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Homenagem Aos 86 anos, D. Sílvia acaba de se formar em Direito. Se quiser, já pode advogar, pois passou no exame da Ordem, com louvor. “Ainda tenho muito a oferecer à sociedade”, diz ao repórter que a entrevista para o Jornal da Manhã. Dá gosto vê-la tão feliz. Uma vez, no segundo ano de faculdade, D. Sílvia foi internada às pressas com falta de ar, dor no peito, tontura – ficou quinze dias entre a vida e a morte –, seus colegas acharam que ela não voltaria mais. Enganaram-se. D. Sílvia era a melhor aluna da turma. Dominava os conteúdos, interpretava bem, escrevia bem, falava bem, respeitava os colegas e os professores, era simpática e muito responsável. Todos na turma gostavam de D. Sílvia, menos Johannes, que odiava ficar em segundo lugar, perder para ela em tudo, até nas atividades orais, para as quais ele se preparava como um louco, ensaiando horas e horas na frente do espelho. D. Sílvia, experiente, vivida, percebia o fogo nos olhos de Johannes,

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e muitas vezes tirou notas ruins de propósito só para apaziguá-lo: saía-se mal para deixá-lo feliz – porque, para ela, vencer os colegas não era importante. Mas Johannes sabia que era de propósito, e odiava, odiava, odiava. Um dia, D. Sílvia sentiu que Johannes estava em paz consigo mesmo. Olhou para ele e sorriu. É que o jovem tinha se dado conta de que em breve D. Sílvia morreria, e estava muito feliz por isso. “Quantos anos mais ela vai viver? Dois? Três?”, perguntava-se Johannes, sorrindo na frente do espelho. Como é que ele não tinha pensado nisso antes? D. Sílvia estirada num caixão. Coroas de flores. Gente rezando. Velas acesas. Que imagem reconfortante! “Ela é melhor do que eu, mas logo vai morrer”, pensava. Uma semana antes da formatura, Johannes morreu. Tinha 23 anos. Foi esmagado no muro da faculdade por um carro descontrolado. Motorista bêbado. D. Sílvia ficou muito triste com a morte do colega – “um jovem tão bonito e inteligente” – e organizou para ele uma bela homenagem na colação de grau: Um poema de Gerrit Komrij, que ela leu emocionada, e um minuto de silêncio. No telão, paisagens de Van Gogh.

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Sonhando com o céu Pablo abre o computador e se prepara para mais um dia em sua vida. Começa ligando em seu pescoço o cabo do café da manhã, que introduz em seu corpo 50 kilobytes de dados, convertidos em vitaminas, proteínas e carboidratos por um chip instalado embaixo da sua língua (que também produz água quando necessário). Em seguida abre o curso de Marketing Digital que segue no portal Sucesso, faz três atividades e ouve o texto de uma apostila. Abre a janela “Família” e vê como está o filho de quatro anos. Tudo bem com o moleque, está saindo da cama agora, mas daqui a pouco Pablo terá que ler para ele. Para isso utilizará o portal Ler para os filhos, que exibe no computador da criança uma imagem do pai movimentando os lábios enquanto uma voz (muito parecida com a original) lê para ela. Um sucesso na rede! Mas antes tem outros afazeres: discutir com o patrão em videoconferência sobre um projeto de curso de capacitação on-line para funcionários da empresa internados em clínicas psiquiátricas, um programa de enquadramento vocacional para filhos de executivos da empresa que insistem em seguir carreiras fadadas ao fracasso (como de professor, ator, escritor etc.) e uma ideia que ele teve de um chip que apaga do cérebro dos funcionários das linhas de montagem qualquer vestígio de desejos contrários ao trabalho mecânico, repetitivo e maçante que realizam todos os dias. Terminada a conversa com o patrão, Pablo sente uma leve pressão no baixo-ventre, uma cólica suave, e decide eliminar os dejetos acumulados ali durante as últimas

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semanas. (Como o chip em sua língua produz todos os nutrientes de que seu corpo necessita, com pouquíssimas impurezas, a formação de fezes é muito lenta, levando três, às vezes quatro semanas para se acumular o equivalente a 200 kilobytes, quantidade mínima recomendada para eliminação). Pablo então liga o cabo da defecação em seu ânus e dá Enter, convertendo suas fezes em 220 kB de dados, que vão direto para a lixeira do seu computador. (Uma vez, quando seu chip de controle de desejos estava com defeito, ele pediu pela internet um sanduíche de lombo com vinagrete e uma coca-cola, tudo de verdade, que lhe foram entregues por um moto-boy, e no dia seguinte, na defecação, o sistema produziu mais de 1 megabyte de dados, o que imediatamente acionou o alarme da empresa e lhe custou dois dias de salário). Enquanto termina a defecação, Pablo abre de novo o portal Sucesso e faz duas atividades orais do curso de “Finanças para vencer na vida”, fechando assim sua manhã. Em seguida abre o portal Ler para os filhos e digita sua senha. Quando o sistema avisa que o menino está pronto, Pablo dá Enter e a leitura começa. Enquanto isso, ele almoça, repassando um relatório de gráficos e tabelas que enviará ao seu patrão no meio da tarde; em seguida assiste a uma vídeo-aula de Direito Tributário no portal Direito é vida. Assim, de portal em portal, de relatório em relatório, Pablo chega ao fim do dia. Abre a janela “Família” e vê que o filho está na frente do computador e que sua mulher escreve mensagens no Whatsapp. Tudo normal. Como todos os seus chips estão funcionando bem, Pablo não tem vontade de fazer sexo. Uma vez, devido a um

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chip mal ajustado, ele arrancou todos os cabos do seu corpo e pulou em cima da esposa que, assustadíssima, deu-lhe um choque violento com seu bastão elétrico de segurança. (Antes das empresas perceberem que o sexo reduzia significativamente a produtividade dos funcionários, os chips de controle de desejos permitiam intercursos sexuais, mas só um por semana; depois a restrição aumentou, permitindo sexo apenas em períodos férteis, para reprodução, e, mesmo assim, só quando atendia às necessidades do sistema). É noite. Pablo está esgotado. Liga o cabo do jantar no pescoço e imagina-se num bosque, sozinho, flutuando sobre folhas secas, indo para o céu. Seu sonho é que chegue logo o dia em que terá permissão para usar a função “Delete-se”. Começa a apertar a tecla, só de brincadeira, e a dizer em voz baixa: delete-me, delete-me, delete-me, delete-me...

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Cápsula do tempo Furando uma cisterna no fundo da nossa casa, há muitos anos, meu pai encontrou algo que me deixou curioso: uma caixa de lata enferrujada, embrulhada em papel jornal dos anos 40 e amarrada com tiras grossas de pano apodrecido. Meu pai disse que podia ser uma bomba, césio, urânio, sei lá, algo perigoso, mas eu queria tanto abrir aquilo que o interrompi, dizendo: bobagem, pai, isso aí deve ser uma cápsula do tempo. Cápsula do tempo?, ele perguntou; é, respondi, tipo, brinquedos, fotos, cartas, que pessoas do passado deixaram para a posteridade. Poste o quê?, perguntou meu pai com cara de espanto, mas não expliquei para ele o que é posteridade, peguei a caixa e fui para o meu quarto abri-la. Brinquedos velhos – soldadinhos de chumbo, aviõezinhos, coisas assim. Recortes de jornal dos anos 20, 30, 40. Cartas. Notas de falecimento. Fotos em preto e branco. De quem tinha sido aquilo? A caixa era grande, cabia muita coisa. Uma foto do meu pai pequeno. Meu pai? Olhei de novo. Era ele. Depois uma foto dele mais velho, muito mais velho do que agora. Não pode ser. “Francisco T. M., aos 75 anos”, estava escrito no verso da foto. Mas meu pai tinha 45 no dia em que abri a caixa, estava lá fora, furando a cisterna, feliz. Aquilo me intrigou. Foi quando vi a nota de falecimento... meu pai... morto aos 86 anos... Depois minha mãe, tios... Meu Deus! Fotos do futuro, cartas minhas, enviadas de Paris, Amsterdã, Lisboa, lugares que eu não conhecia... e era minha a letra, com certeza!

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Num susto, fechei a caixa. Meu corpo todo tremia. É que eu tinha visto, de relance, um recorte de jornal com a nota do meu falecimento. Meu nome em negrito. Uma cruz em cima. Bordas barrocas. Não vi a data. Não vou olhar, disse para mim, e não olhei. Até hoje. Passado, presente e futuro, tudo ali... Vidas. Uma vez eu pensei: e se eu nunca for à Europa? Mas acabei indo. Na verdade, morei lá. Enviei cartas. E minha tia Heloísa morreu ontem, conforme previsto na caixa... As coisas estão acontecendo. Não, não vou olhar. Não quero saber. Abro a caixa. O tempo foge. É tudo tão rápido, penso comigo, e procuro, procuro, até achar. Estou preparado. Vou olhar. Não importa quando, onde, como... Só importa viver. Viver...

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Que vergonha, Ramon

Sábado Ramon levou a família para almoçar fora, num restaurante de comida a quilo que ele já conhecia, muito bom. Terminada a refeição, deixou a mulher e os filhos na mesa e foi ao caixa pagar a conta. “Mesa 14, por favor”, disse Ramon para a dona do restaurante (uma senhora de cara amarrada que, segundo as más línguas, era uma muquirana das mais terríveis, não confiava em ninguém, por isso só ela cuidava do caixa). “52 reais”, respondeu a mulher rispidamente, sem nem olhar para Ramon, que tirou o dinheiro da carteira e pagou. Ramon sabia que a velha tinha deixado de anotar alguma coisa na comanda, ou somado errado, porque, pelos seus cálculos, a conta teria que dar mais de 80 reais. “Bem feito”, pensou Ramon, “não vou dizer nada, para ela aprender”, e guardou a notinha no bolso, enquanto chamava a família para ir embora. “Deixe-me ver a notinha”, pediu a esposa na calçada, a caminho do carro. Ela costumava fazer isso, a danada, sempre conferindo notas, fazendo contas, reclamando, pedindo desconto. Ramon devia saber que ela ia querer ver a notinha. Não teve jeito. “Está errado isso aqui”, ela disse. Ramon parou, fez cara de espanto, coçou a cabeça e perguntou: “Uai, está?”. “Sim”, respondeu a mulher, “Não anotaram dois refrigerantes, um suco e o seu segundo prato, lembra?: o salmão”. “É mesmo!”, respondeu Ramon, fingindo surpresa, “Depois eu volto lá e pago”, completou, abrindo a porta do carro. “De jeito nenhum!”, disse a mulher, “Temos que voltar lá agora! É o certo. E ainda vamos dar exemplo para os meninos”. A

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mulher do Ramon tinha essas coisas. “O que é meu é meu, o que é dos outros é dos outros”, costumava dizer. (Ah, se todos os nossos políticos e empresários pensassem assim... Enfim). Voltaram, pagaram a diferença, a bruxa agradeceu, e ainda deram uma aula de honestidade para os meninos. Em casa, Ramon se trancou no banheiro, olhou-se no espelho e disse para si: “Que vergonha, Ramon, QUE VERGONHA! Você estava passando aquela senhora para trás, roubando-a, e ainda teve a cara de pau de fingir que não sabia de nada. Que horror! Ainda mais você, que sempre criticou o ‘jeitinho brasileiro’, a corrupção, a sem-vergonhice dos políticos, citando até historiadores e antropólogos para embasar seu discurso. Justo você! Sua mulher nunca leu Sérgio Buarque de Holanda nem Roberto DaMatta, nem fica no Facebook dando lição de moral em ninguém, como você, mas age corretamente, ensina o que é certo para os meninos, com exemplos simples de cidadania, de honestidade. Que vergonha... Agradeça a Deus a mulher que você tem, Ramon, AGRADEÇA!”. Ramon agradeceu. E, com lágrimas nos olhos, jurou que nunca mais passaria ninguém para trás. Estamos de olho.

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Ser pobre custa caro ROUPAS: Jair ganha pouco, mas é controlado, sabe economizar, por isso resolveu comprar um paletó melhorzinho para ele, nada muito caro, só um pouco mais confortável, mais bem acabado. É a sua primeira vez na loja, não tem cartão fidelidade, por isso não tem desconto. Paga R$120,00 pelo paletó. Se não fosse pobre, certamente seria um cliente assíduo da loja, teria cartão VIP, acumularia pontos e pagaria menos. Hoje de manhã, por exemplo, Seu Mário (que tem um salário dez vezes maior que o do Jair) comprou um paletó igualzinho, na mesma loja, e pagou por ele R$75,00. SUPERMERCADO: Raramente Jair consegue aproveitar as promoções e comprar alimentos não perecíveis, produtos de limpeza e outras mercadorias em maior quantidade para estocar, porque sua renda não permite. Já Seu Mário consegue, porque, além do seu salário dar e sobrar, ele tem uma despensa enorme em casa para estocar produtos em promoção, e, muitas vezes, como compra em grande quantidade, consegue descontos ainda maiores que os das promoções. CARRO: E o carro do Jair? Uma cangalha. Todo mês tá na oficina. Ele quer comprar um novo, mas não consegue, porque os juros do financiamento são muito altos. Quando conseguir, já vai ter gastado uma fortuna em oficina e seu carro velho não vai valer nada. Seu Mário não tem esse problema, porque antes do seu carro começar a dar defeito, ele o troca por outro (pagando à vista, com desconto), e sempre por um zero quilômetro.

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BANCO: Para manter sua conta bancária de pobre, Jair paga todas as taxas possíveis e mais alguma coisa; diferente do Seu Mário, que é isento de taxas, porque tem muitas aplicações, aposentadoria privada, títulos de capitalização e uma poupança gigantesca. E como se não bastasse, para conversar com o gerente, Jair é obrigado a enfrentar filas quilométricas, porque não tem cartão VIP, como o do Seu Mário, que dá direito a um atendimento rápido, café, suco, licor de amarula e massagem nos pés. VIAGENS: Quando viaja para Porto Seguro ou outra praia do país que cabe no seu bolso, Jair não consegue nenhum desconto nas passagens aéreas, porque não tem milhas suficientes (viaja muito pouco); ao contrário do Seu Mário, que viaja até para o estrangeiro de graça, por causa das milhas que tem, e muitas vezes de primeira classe. (Já pensou? Primeira classe, de graça!). E Seu Mário, quando tem que esperar no aeroporto, fica na área VIP da companhia, onde come salmão e bebe vinho francês sem pagar um tostão. Já o Jair, se tiver que esperar, fica no corredor mesmo, encostado nas malas, e se quiser comer um pão de queijo com café, tem que pagar, no mínimo, R$25,00. Pagamos mais quando ganhamos menos. Estranho? Não. Dificultar a ascensão social dos pobres faz parte da própria lógica do capitalismo, pois, do contrário, quem realizará os trabalhos extenuantes das linhas de montagem, da limpeza urbana, das faxinas, da construção civil, dos serviços gerais, etc., etc.?

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Amigo oculto Dez e meia da noite. Céu nublado, rua deserta. Joel sobe na árvore e se acomoda em meio à folhagem. Observa a rua, a calçada, a casa: uma bela casa com jardim bem cuidado, verdinho, sem nenhum mato. Joel gosta de casa com jardim. Queria ter uma, mas nunca pôde; só morou em barracão de fundo. Hoje ele está feliz. Não brigou com a mulher, saiu sem bater porta, sem gritar palavrão, dizendo: “Vou dar uma volta, amor, não demoro”. Joel sabe que tem pouco tempo de vida. “Você está com um tumor no pâncreas em estágio avançado”, disse-lhe o médico hoje de manhã, mas não falou em sobrevida, dores, essas coisas, só receitou radioterapia. Muita radioterapia. Joel sabe que não tem jeito, foi assim com sua tia Judith; por isso saiu hoje decidido a abreviar seu sofrimento. Quer que seja na árvore, seu lugar preferido de estar só, protegido pela escuridão, pelo silêncio alegre da noite. “O que eu fiz da minha vida?”, pergunta-se, apalpando a arma na cintura. Acende um cigarro, traga fundo, e enquanto solta a fumaça, deixa-se levar pelos pensamentos. 38 anos de existência... Nenhum sonho realizado... Odiou todos os seus empregos; tentava mudar, fazer algo que o agradasse, mas não dava certo... Gostava de ler, mas não tinha tempo; gostava de filmes, mas não tinha dinheiro. Não podia deixar os filhos passarem fome, por isso aceitava o que aparecia. Sempre a mesma rotina, o mesmo batido... para enriquecer os patrões. “Vida? Que vida?”, pergunta sorrindo.

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Está cansado. Finalmente vai descansar... Um carro vira a esquina. É o engenheiro da casa com jardim do outro lado da rua. Joel conhece-o de vista. Carro bom, casa boa, família bem vestida, bem alimentada. Da árvore, à noite, Joel o viu várias vezes abrir o portão da garagem, entrar, descer do carro e ficar parado um tempão olhando para a noite, fumando, com uma cara triste de dar dó. Duas vezes o viu chorar. Chega sempre entre dez e onze da noite, porque faz hora extra, a empresa exige. Não gosta do emprego, está cansado, falta-lhe paixão na vida – é o que Joel pensa. Joel então decide ajudar o engenheiro. “Ele parece saudável, é jovem, precisa acordar para a vida enquanto dá tempo”, pensa. O engenheiro abre o portão, entra com o carro, desliga o motor e encosta a cabeça no volante. Parece angustiado. Fica mais ou menos cinco minutos assim, parado, pensando. Finalmente decide sair do carro. Ao se virar, depara-se com Joel na garagem apontando-lhe um revólver. “Quietinho aí, otário”, diz Joel. “Vamos entrar... Psssssssss... Não tente nada... É melhor para você”.

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Formigas Um pombo morto na calçada. Cheiro de esgoto no ar. Sol rachando. Nenhuma nuvem no céu. Paro e sinto o suor escorrendo pelo pescoço, ensopando a gola da camisa. O peso do meu corpo na calçada. Meus pés doem. Fim de ano. Roupas brancas e amarelas nas vitrines. Frutas secas nos mercados. Uvas e lichias a preços exorbitantes. O de sempre. No dia seguinte, milhares de fotos nas redes sociais: fogos, brindes, sorrisos, beijos e abraços. Na casa onde bandidos fizeram de refém uma família inteira o sol descasca a pintura nas laterais. Pombos defecam e copulam no telhado. Uma fila de formigas diligentes vai de encontro ao pombo morto. Agacho-me para ver. Comem seus olhos, mordem a pele, chegam à carne, as formigas. Moscas rondam o local, observam a carcaça que cozinha ao sol. Na praça onde à noite prostitutas oferecem seus corpos o vento balança os galhos das árvores e espalha lixo e folhas secas pelo chão. Chamo meu avô. Peço-lhe ajuda. Uma médium me disse que ele está comigo, que ele segue meus passos e intercede por mim. Eu acredito. Por isso fecho os olhos e imagino-o na praça, sentado no banco, o olhar sereno, observando-me. Converso com ele em pensamento, peço-lhe ajuda para continuar, para

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esquecer os fracassos e frustrações e ter coragem, muita coragem. Abro os olhos e o brilho do sol me cega. O calor é insuportável, minha pele queima. Ando um pouco. Observo as cicatrizes e falhas no cimento, a sujeira nos buracos e rachaduras, o mato brotando nas fendas. Tiro os chinelos e esfrego os pés no chão quente, a dor sobe pelas pernas e irradia-se pelo resto do corpo, lentamente. Sinto uma fisgada na parte de trás da cabeça, o início de uma enxaqueca. Ando mais um pouco. Um cachorro começa a latir na casa onde há três dias um jovem se matou. Depressão em último grau. Quase ninguém comentou. O cachorro é um vira-lata. Na garagem há ração e água para ele. Não vem ao portão, talvez por causa do sol. Fica no fundo, latindo, latindo, insuportável. Parece velho, doente. Há fezes no piso. Mais formigas. Lá em casa elas gostam é da cozinha. Uma vez entraram no meu computador, fizeram dele sua morada, botaram ovos e tudo. Se deixar, elas tomam conta da casa, comem a gente de noite, abrem rachaduras nas paredes, destroem tudo. A natureza é muito poderosa. Só conseguimos enganá-la um pouco. Um pouco.

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Eu, leitor Graça Infinita, de David Foster Wallace, já está a caminho. Comprei pela internet, parcelado em três vezes. Aproveitei e comprei também 2666, de Roberto Bolaño. Não gosto de comprar livros pela internet, é frio demais. Nunca fiz cadastro em sites de compras; não gosto de comprar – a não ser livros. E livro, para mim, tem que ser em livraria, onde eu entro e me esqueço da vida, tomo café, leio, imagino histórias, viajo no tempo e converso comigo mesmo, sozinho – tem que ser sozinho. Na verdade, quem comprou esses dois livros para mim foi minha mulher. Ela disse que vai me dar de presente. Bom demais! David Foster Wallace e Roberto Bolaño. Dois grandes escritores. O primeiro, norte-americano, o segundo, chileno. Ambos falecidos. Deixaram muitos escritos, e neles, suas visões de mundo – janelas onde nós, leitores, nos debruçamos para experimentar novas perspectivas, novas sensações, que muitas vezes nos libertam do senso comum e nos mostram outros caminhos, outras possibilidades de ser. É isso que a grande literatura faz comigo. Há livros que só me tocam na superfície. Eu leio, muitas vezes até me divirto, fico interessado pela história, mas não passa disso, é tudo muito raso. No entanto, há outros que mexem comigo de verdade, que vão fundo, me iluminam, me libertam, me abrem o mundo de um jeito diferente, novo. Através deles vejo coisas que antes eu não via, ou se via, passo a vê-las com outros olhos. Isso

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me faz muito bem, até quando sofro com a leitura – quando ela dói e sangra –, como quando li Crime e Castigo e O Idiota, de Dostoievski, e A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Dor que liberta... Estou lendo agora James Joyce, Retrato do artista quando jovem. É a primeira vez que leio esse cara. Grandioso! Experiência fantástica! A sensação é parecida com a que eu tive quando li pela primeira vez On the road, de Jack Kerouac. Uma prosa que te hipnotiza, que te puxa para dentro, e você vai, deixa-se levar, sem saber o que te espera, e não quer sair. Foi assim também com Louis-Ferdinand Céline, escritor genial, mordaz, inteligente e irônico até não poder mais. Sei que ele apoiou os nazistas e escreveu panfletos antissemitas – o que muito me entristece –, mas isso não aparece em seu livro Viagem ao fim da noite, de 1932, que é sensacional! – mexeu demais comigo. Grandes escritores me ajudam a ler o mundo, e a me ler nesse mundo. Não é leitura fácil, porque a gente se analisa muito, se descobre, e descobre as coisas, as pessoas, se engana, escava, vai fundo, se machuca, e por isso não aceita facilmente o que para muita gente é óbvio e natural. Muitas visões e crenças que existem por aí me parecem limitadas, superficiais demais, porque são fechadas, falta-lhes reflexão, abertura para outras possibilidades, outras experiências. É sofrido... Ultimamente, em minhas leituras, tenho me descoberto acomodado demais ao que é “óbvio e natural”. Eu sei que assim eu não me realizo, não exploro o que há de melhor em mim, o que eu mais sei e gosto de fazer. Mas tem que

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ser assim? Não. Posso mudar minha vida, e talvez nem precise ser radicalmente – alguns ajustes de percurso, um desvio aqui, outro ali, quem sabe? Já tenho algumas ideias...

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O sonho de Ramon

Ramon está em Belo Horizonte, sozinho, sentado num café, esperando sua livraria preferida abrir. O tempo está perfeito: frio, céu nublado, sem chuva. Um aroma doce de café e canela enche o ambiente de aconchego e alegria. Uma mulher entra esfregando as mãos; na mesa ao lado, um rapaz sorri para a namorada; noutra, um senhor de óculos lê um livro de Morris West; homens e mulheres de várias idades conversam, riem. Ramon espera, quase sem pensar, feliz por ter o dia inteiro só para si, uma sexta-feira ainda por cima. Está calmo, em paz. Enquanto toma seu capuccino, Ramon observa as pessoas no café, seus gestos e expressões, seus olhares, imaginando seus pensamentos, suas vidas. Do outro lado da rua, a funcionária da livraria começa a levantar as portas de ferro do que, para ele, é o paraíso, seu lugar preferido de se largar, de não existir para o mundo, de estar só consigo mesmo, de sonhar. A livraria. Sua livraria. O sonho de Ramon é ter uma livraria-editora, formar leitores, incentivar escritores a escrever, ajudá-los a realizar seus sonhos – como Sylvia Beach, da Shakespeare and Company, em Paris, nos anos 20, que acolhia escritores e poetas e os ajudava: a primeira edição de Ulisses, de James Joyce, foi publicada por ela. Ramon não pensa tão grande assim, só quer ter uma boa livraria, editar livros de autores desconhecidos, mas talentosos, e continuar escrevendo seus contos e crônicas, participando de eventos literários, lendo. Ramon sonha com isso toda vez que entra numa boa livraria. Pensa em

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investir suas economias num negócio que dê dinheiro suficiente para manter sua família com dignidade – um bar, uma loja de som para carros, uma boutique – e colocar sua esposa para gerenciá-lo; ele pediria demissão do seu cargo burocrático – ficaria só como professor – e montaria sua livraria. Impossível? Não. Ramon percorre calmamente as fileiras de livros de sua livraria preferida, abre um aqui, outro acolá, lê fragmentos de histórias, poesias, e se emociona com a beleza das frases, com a magia das palavras. (Uma vez ele leu um livro inteiro da Clarice Lispector, em pé, nessa mesma livraria, um livrinho infantil, pequeno, que ele adorou e resolveu comprar para um casal de amigos escritores). Ramon caminha a passos lentos, desobrigado de tudo. Na estante de livros em francês, pensa seriamente em retomar seus estudos na Aliança Francesa. Seria uma boa. Transformaria seu escritório numa pequena sala de aula e daria aulas de francês para pequenas turmas. Quem sabe? Na estante de livros de Teoria e História da Literatura, pensa em tentar um pós-doutorado em Letras... Ramon recoloca na estante um livro de contos do Charles Bukowski e sai para tomar mais um café. Lembra-se que à noite sua mulher fará filé de peixe grelhado e que ele abrirá um vinho português do vale do Douro... Ramon está feliz.

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Um trabalho de História da Arte Há vinte anos, quando eu cursava o terceiro período de História em Belo Horizonte, fiz um trabalho para a disciplina História da Arte que até hoje me enche de orgulho. Foi um pequeno estudo sobre o cineasta inglês Alfred Hitchcock. Seu título: Cinema: a arte de Alfred Hitchcock. Na época eu não tinha computador, escrevi tudo à mão e paguei uma pessoa para digitar. Tenho as duas versões aqui comigo, como recordação. Ficou muito bom. Naquela ocasião, eu já era fã do Hitchcock, tinha assistido a quase todos os seus filmes, alguns mais de uma vez – como Janela Indiscreta, de 1954, para mim, um dos melhores. Eu adorava o trabalho dele, achava-o genial, incrível, um verdadeiro artista, e ainda acho. Hitchcock morreu em 1980, aos 80 anos, mas continua vivo em sua obra – filmes que, como peças de um grande quebra-cabeça, compõem o quadro de uma vida quase inteira dedicada ao cinema: a obra de um grande artista. Nela o autor se revela – sua visão de mundo, seu estilo, seus medos –; sua assinatura está em cada produção, evidente, como a de um pintor em seus quadros; vemos sua marca inconfundível nos movimentos de câmera, na construção das cenas, no trabalho com os atores, na forma como ele criava o suspense e aterrorizava o espectador. A ideia que eu defendi no trabalho era a de que Alfred Hitchcock tinha um estilo próprio, original, e que seus filmes levavam a sua assinatura, a sua marca registrada,

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não sendo, pois, simplesmente, filmes comerciais. A ideia não era original, mas o texto que eu escrevi para defendê-la, sim; a pesquisa bibliográfica, a análise de imagens e filmes, a contextualização histórica, a redação, tudo isso tinha o meu toque, o meu estilo, embora o resultado fosse um texto despretensioso, simples, sem nenhuma repercussão além da boa avaliação feita pela Prof.ª Adalgisa. Para construí-lo, li muito, revi filmes, pensei, argumentei, escrevi, reescrevi, tudo sem computador, sem internet! Li um livro inteiro em dois dias, uma tese do Heitor Capuzzo, que no trabalho eu misturei com Edgar Allan Poe, Agatha Christie e textos sobre violência e criminalidade na Inglaterra do final do século XIX. Deu muito trabalho, mas foi um prazer escrevê-lo; e o melhor de tudo: fiz sozinho, do meu jeito. Hoje percebo que esse tipo de experiência não é muito comum na Educação Superior, mesmo em cursos da área de Humanas, porque, no geral, os alunos chegam do Ensino Básico sem base, principalmente de leitura e escrita. Cobra-se muito mais memorização e reprodução de informações do que criatividade, análise e argumentação, tanto no Ensino Básico quanto no Superior. Os alunos leem pouco, escrevem mal; há pouca discussão, pouco interesse por leituras longas, com aprofundamento, reflexão. É triste. Estou agora pensando na famosa cena do chuveiro, do filme Psicose, de 1960, grande sucesso de Hitchcock. Nela uma mulher é brutalmente assassinada enquanto toma banho num motel de beira de estrada. A cena foi escolhida por críticos franceses como a mais memorável da história do cinema. Filmada em setenta ângulos

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diferentes durante sete dias, a sequência dura apenas 45 segundos, mas é antológica, perfeita: uma estrutura complexa, mas harmônica, bela. Não é verossímil, mas e daí? É arte... Preciso rever esse filme.

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No Jardim das Beguines

Para terras estrangeiras eu viajo sozinho, sem guia. Ninguém me conhece. Ninguém me sonda. Sinto-me livre. É inexplicável a sensação. Para mim é terapia, uma brisa que me acalma o espírito e aguça minha percepção das coisas, das pessoas, de tudo que me cerca. É aprendizado, um mergulho no ser do mundo e no meu, de onde volto mais humilde, mais sábio, mais eu. Caminhar, observar, sentir. O tempo é meu, preencho-o do meu jeito. Planejo tudo, mas não cumpro à risca o que planejei. Ainda bem. O acaso me abre portas o tempo todo, convidando-me a descobertas inesperadas. Uma praça, um monumento, a entrada de um convento, de uma igreja... Paisagens inusitadas surgem de repente, no virar de esquinas. Vistas impressionantes. Prédios antigos. Portas que me atraem como ímã. Às vezes entro e descubro um museu, uma galeria de arte, um brechó, uma livraria, um café... Foi assim que descobri o Jardim das Beguines (Begijnhof), em Amsterdã. Caminhando por uma região movimentada da cidade, cheia de livrarias, cafés e restaurantes, de repente me deparei com uma grande porta de madeira, num prédio de tijolos vermelhos que, pela minha curta experiência na cidade, me pareceu ser do século XVII. No alto da porta, talhada em pedra, a inscrição “Begijnhof”. Enquanto eu olhava, de lá saiu um casal com mochilas nas costas. Turistas, pensei. Criei coragem e entrei.

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Atravessei um pequeno túnel, abri uma outra porta de madeira, menor que a primeira, e lá estava: um belo e silencioso jardim, cercado por casas em estilo holandês antigo e uma capela. As Beguines (ou Beguinas) eram mulheres viúvas ou solteiras pertencentes a uma comunidade religiosa católica surgida na Idade Média, a única que sobreviveu à tomada de Amsterdã pelos protestantes em 1578. Elas não faziam votos, mas levavam uma vida casta, dedicada a ajudar os mais necessitados. Viveram ali durante séculos, até a morte da última Beguine, em 1971. Ali eu fiquei por cerca de duas horas, caminhando, observando árvores e flores, rezando na capela, pensando na vida e escrevendo em meu diário de viagem. Ao sair do jardim e cair de novo no burburinho de uma das regiões mais badaladas de Amsterdã (o Het Spui), senti como se tivesse passado por uma espécie de purificação. Eu estava mais leve, mais feliz, mais vivo. Considero-me uma pessoa simples. Não ligo para aparência. Sem ser pão-duro, economizo muito comigo: não gosto de festas e badalação, carros e motos do ano, roupas e restaurantes caros, objetos de decoração, notebooks, celulares e outras engenhocas tecnológicas. Isso não me faz falta. Economizo para poder viajar uma vez por ano, primeiro com a minha família, para onde ela gosta de ir (praias, parques), e depois sozinho, por terras estrangeiras, para me purificar, me conhecer melhor e aguçar minha visão do mundo. Enquanto eu puder, farei isso.

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Lendo Graça infinita Começar a ler Graça infinita, de David Foster Wallace, não foi fácil. O que mais assusta os leitores, a meu ver, é o tamanho do livro: um tijolo de 1.136 páginas grandes, com letras pequenas. Mas não foi isso que me intimidou. Nem a caveira cor de abóbora da capa, enorme, sorrindo, olhando sem olhos para dentro de mim. Nem o fato do seu autor ter se matado aos 46 anos (por que motivo, eu não sei, mas, para mim, se tiver uma explicação, pelo menos parte dela está em Graça infinita). Eu não quero me matar, e não vai ser a leitura de um livro que me fará chegar a esse extremo, por mais desesperadora que seja a trama, por mais angustiados e loucos e maníaco-depressivos que sejam os personagens. Mas o livro não é só desespero não, tem muita coisa boa nele: amor, ternura, amizade, esperança. O que me assustou mesmo foi a sua linguagem, a escrita de Foster Wallace. Eu nunca tinha experimentado nada parecido, nem com Jack Kerouac. É que antes de me aventurar em livros como esse (cultuados, misteriosos), eu os folheio, leio uma coisa aqui, outra ali, namoro-os por um tempo, e o que eu li de Graça infinita, confesso, me deixou um pouco apreensivo. Texto difícil. Radicalmente inovador, pelo menos para mim. “Vou ter que entrar a marretadas, quebrando pedra”, pensei (e lembrei-me da primeira vez que li Clarice Lispector...). Navegando pela internet, descobri que existem guias de leitura de Graça infinita em inglês, para ajudar leitores despreparados a avançar, a romper a selva densa e

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traiçoeira da narrativa, seus milhares de personagens (cada um mais doido que o outro), suas inúmeras tramas e subtramas. Há inclusive artigos acadêmicos analisando a obra, cheios de teorias (um dos autores até desenhou um esquema de conexões entre as partes do livro e seus personagens que mais parece uma estação espacial futurista: uma loucura). Mas comecei a ler o livro e estou adorando. Não é tão difícil depois que você se acostuma com o estilo do autor. Em três dias (e uma madrugada) li 106 páginas e 40 notas (porque mais de cem páginas do livro são de notas, reunidas no final, muito instrutivas, principalmente para quem quer se informar sobre sensações e efeitos colaterais provocados por remédios controlados e outras drogas). Por enquanto estou conhecendo os personagens, sobretudo os membros da estranhíssima família Incandenza, cujo patriarca, antes de se matar, produziu um filme que, de tão divertido, levava seus espectadores à morte. Sei disso porque as primeiras mortes já aconteceram, e, ao que parece, esse filme (Graça infinita) é o núcleo da trama. Daniel Galera, numa bela resenha do livro, diz que Graça infinita questiona a obsessão humana pelo entretenimento. Interessante... Estou aqui pensando em shoppings, parques de diversão, cassinos, resorts, joguinhos de computador, redes sociais, baladas, esportes, drogas... Será que livros também? Meu Deus... E que livro pesado! Quase dois quilos. Está difícil lê-lo enquanto pedalo na academia. Mas vou me ajeitando.

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Nada pra fazer Passei o feriado na roça. Tarde cinza, amena, com pancadas de chuva espaçadas, muito bem-vindas quando vinham. Os adultos (menos eu) jogavam baralho e papeavam na varanda, enquanto as crianças brincavam lá em cima, no fogão à lenha que o avô tinha feito para elas. Eu bebia um chazinho de alfavaca com hortelã e canela, sem açúcar, e folheava Graça infinita (livro-monstro de David Foster Wallace) na mesa comprida usada pras refeições. Bem relaxado, eu lia trechos do livro, relembrando cenas marcantes (como a da crise de abstinência do Coitado do Tony – viciado em álcool, heroína e xarope pra tosse –, que realmente me impressionou) e pensando em alguns personagens, tão malucos quanto interessantes. Liguei o rádio baixinho na Guarani. Terminei meu chá lentamente, peguei o livro, atravessei a cortina de fumaça que saía da casinha das crianças e fui me sentar numa mesa de mármore atrás do fogão à lenha, perto do canteiro de ervas do meu pai. Ali eu podia ler à vontade, em voz alta, sem amolar ninguém. Graça infinita não é fácil de ler, dá trabalho, e lê-lo em voz alta me ajuda a entrar na história, a sentir melhor as cenas, os personagens. Li seis páginas e parei. Fui ao canteiro de ervas e peguei um raminho de manjericão. Devo ter ficado uns quinze minutos cheirando folhinhas amassadas de manjericão e observando o céu mudar de cor para acolher o sol que se punha.

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Tempo livre. Que benção! Os filhos brincando sem brigar, a esposa jogando buraco sem me chamar, meu livro na mesa, esperando, sem pressa, e eu sozinho, sem nada pra fazer. Muita gente confunde não ter nada pra fazer com tédio. Eu não. Valorizo muito não ter nada pra fazer. Tempo à disposição, sem obrigação. O que não significa vegetar ou simplesmente dormir. Faço coisas quando não tenho nada pra fazer, se quero. Cheirar manjericão assistindo ao pôr do sol sem me preocupar com o minuto seguinte, por exemplo. Folhear um livro sem lê-lo, ou ler uma pequena passagem, ou uma página inteira, duas, três, ou um capítulo inteiro. Respirar profundamente, lentamente, depois fechar os olhos e sentir a brisa da tarde passar por mim como uma carícia, uma benção de Deus. Tomar chá ou café, degustando cada gole. Comer goiaba, pitanga ou jabuticaba. Andar descalço no terreiro e sentir a terra úmida nos pés, sem pensar em nada, ou pensando em como são bonitas as flores do pé de maracujá da entrada, ou as folhagens multicoloridas que circundam a casa, enchendo-a de vida, de paz. Viajar sem sair do lugar, flutuando nas nuvens, na direção do poente... Enfim, sentir-me parte da natureza: passageiro, pequeno, entregue ao tempo, sem grandes ambições, sem pressa... Eu... Simplesmente eu.

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Estado de graça

Praga, capital da República Tcheca, tem cerca de um milhão e trezentos mil habitantes e 133 livrarias. Para os padrões brasileiros, é livraria pra cacete! Belo Horizonte, por exemplo, que tem quase o dobro de habitantes, possui, pelas minhas contas, não mais que dez boas livrarias, e olhe lá. Adoro visitar cidades de muitos leitores. Nelas eu abro meu livro no trem, no metrô, num banco de praça, numa fila, e não me sinto um anormal, um excêntrico exibido, como muitas vezes já me senti aqui, na minha própria cidade, lendo em público. Eu leio porque adoro ler, e se eu leio em público (em ônibus, na academia, em consultórios médicos e odontológicos, etc.) é porque tenho pouco tempo e preciso aproveitar essas oportunidades. Atualmente estou lendo Graça infinita, de David Foster Wallace, um calhamaço de mais de mil páginas. Até agora li 503, praticamente só na academia pedalando, na porta da escola dos meus filhos, esperando-os sair, e em casa, nas primeiras horas da madrugada. Livro viciante. Estou até emagrecendo, de tanto ler! (é que aumentei em vinte minutos o tempo de bicicleta na academia para poder ler mais, e ainda faço musculação enquanto pedalo, segurando o livro, que pesa quase dois quilos). Graça infinita é um romance. Leio-o, acima de tudo, para me divertir, mas também para ampliar minha visão de mundo, tornar meu olhar sobre o homem e a sociedade

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menos quadrado, menos é-isso-pronto-e-acabou. Trata-se de um livro subversivo, extremamente crítico em relação à sociedade de consumo, na qual estamos tão profundamente mergulhados, que se não formos sacudidos por um David Foster Wallace, um Roberto Bolaño, um José Saramago, etc., na literatura, no cinema, na música, no teatro e outras artes, vamos acabar achando (e muitos continuarão achando) que tudo que essa sociedade nos enfia goela abaixo é a mais pura verdade, e que o caminho baseado no sucesso pessoal = $$$$$ e no prazer egoísta é o caminho da felicidade. Como é bom acreditar que esse NÃO É o caminho da felicidade! Como é bom não ter a preocupação doentia que muitas pessoas têm com dinheiro e status, alimentando ódios, angústias e invejas! Devo essa sensação, em parte, à grande literatura. Por isso adoro livrarias e cidades com muitos leitores, onde me sinto mais livre, mais forte, por estar perto de gente mais esclarecida, mais aberta a novas ideias, e, por isso, menos manipulável, menos orgulhosa. Aqui, às vezes, sinto-me como uma aberração da natureza, um desajustado. Mas há pessoas que me entendem, que respeitam minhas opiniões, mesmo discordando delas, e que gostam de mim do jeito que eu sou. A elas, com muito carinho, dedico esta crônica.

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Nas asas do tempo

Às vezes, para dormir, utilizo-me de um artifício que tem se mostrado infalível. Imagino que estou passeando por casas que conheci na infância e que hoje não existem mais, ou que, se existem, pertencem a outras pessoas e há muitos anos não entro nelas. Uma dessas casas é a do meu bisavô Antônio, em São José da Varginha, que eu visitei pela última vez em 1983, aos sete anos. Casa rústica, em frente à praça principal da cidade. Assoalho de madeira esburacado. Janelas de tábua sem pintura. Paredes escalavradas. Camas velhas e rangentes com colchões de palha. O cheiro das camas. Telhado sem forro. Morcegos à noite. Luz de lamparina. Sombras nas paredes. Fogão à lenha na cozinha, lá embaixo, no fundo, com uma escada que dá para o quintal com canteiros de horta e pés de goiaba, abacate e laranja, e uma fossa escondida num quartinho de madeira para as necessidades. O cheiro da fossa. Andando pelo quintal, subindo de novo a escada até a cozinha. Café na mesa. O cheiro do café. Risos. Outra casa da minha infância é a dos meus avós Vicente e Lourdes. O porão da casa. Eu com três ou quatro anos subindo a rampa dos fundos até a cozinha. Minha tia Lêda lendo para mim, me mostrando imagens e lendo: répteis, anfíbios, peixes e mamíferos (uma coleção que ela tinha); João e Maria, Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar (outra coleção). Na cozinha, sobre a mesa com gaveta dos anos 40, arroz, feijão, carne moída e farinha de mandioca, tudo misturado e amassado na mão (capitão). Pão de sal

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com manteiga molhado no café. Minha avó moendo amendoim para fazer doce. O cheiro do amendoim. Assistindo à novela Braço de ferro na sala de televisão. A grande janela da sala. A enorme cômoda de gavetas cheias de toalhas e forros de mesa. O cheiro das toalhas limpas. A cristaleira impecável. O quarto dos fundos. Histórias de fantasmas... Que saudade! Ah, casas da minha infância... ...cheiros, vozes, sabores, sentimentos... E assim eu durmo, nas asas do tempo...

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As crianças de Terezin

Doris terminou seu desenho e o entregou à professora. Eram 5 horas da tarde no campo-gueto de Terezin, aldeia militar localizada a 60 quilômetros de Praga, na antiga Tchecoslováquia. Doris tinha 11 anos e era judia, por isso estava ali, longe de casa, aguardando não sabia o quê. A professora se chamava Frida, era uma artista, ex-aluna de Paul Klee e Wassily Kandinsky, e também judia. Os nazistas permitiam que as crianças de Terezin tivessem aulas de desenho, pintura, canto, história e línguas, porque Terezin era uma espécie de campo-vitrine do Reich, onde os judeus eram mostrados, em propagandas, como se estivessem numa estação turística. Mas era só fachada. Em Terezin, cerca de 60.000 judeus foram concentrados em alojamentos que, antes da guerra, abrigavam apenas 3.500 soldados. Má nutrição, péssimas condições de higiene, doenças, falta de remédios e violência física e psicológica marcaram o cotidiano dessas pessoas. Doris só queria voltar para casa, rever sua família, seus amigos, ir para a escola. Estava triste e cansada. Mas, pelo menos, tinha Frida e suas aulas, que ela adorava. Luzes apagadas. Fazia frio onde Doris dormia. Seu corpo magro tremia sob um fino cobertor. Tinha saudades de Praga, de seus passeios no morro do castelo, na praça da Sinagoga, nas ruas e becos do velho bairro judeu, onde morava. Despedia-se com alegria de amigos que eram levados embora de Terezin, acreditando que voltavam

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para Praga, Viena ou Berlim, e, esperançosa, pensava: “Em breve me levarão também”. Dois dias depois levaram Frida, a professora. Era 2 de outubro de 1944. Ela mal teve tempo de se despedir das crianças, pois o trem para Auschwitz já estava de partida. Mas uma coisa ela conseguiu fazer: pegou todos os desenhos e pinturas que estavam com ela e os escondeu num dos dormitórios, em duas malas. No dia seguinte, Doris também partiu. Morreu no campo de extermínio de Auschwitz, em 16 de outubro de 1944. Das 15.000 crianças judias que passaram por Terezin, a maioria foi deportada para Auschwitz e assassinada nas câmaras de gás. Os cerca de 4.000 desenhos e pinturas feitos pelas crianças de Terezin, que Frida escondeu, foram encontrados durante a liberação da Tchecoslováquia pelas tropas aliadas, e hoje se encontram no Museu Zidovské, em Praga. Crônica inspirada num desenho de Doris Zdekauerová, uma das crianças de Terezin, nascida em 15 de dezembro de 1932 e assassinada em 16 de outubro de 1944, no campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Frida também existiu. Foi Friedl-Dicker Brandeis, uma artista e educadora austríaca, nascida em 30 de julho de 1898, em Viena, e assassinada em 09 de outubro de 1944, em Auschwitz.

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Ovelha desgarrada

Há muito tempo, num pequeno condado da Baviera, uma ovelha se desgarrou do seu rebanho e se embrenhou numa enorme floresta de abetos e pinheiros, lugar assustador, cercado de lendas e mistérios. Havia regras no rebanho, e ‘É proibido acercar-se a coisas de mistério’ era uma delas. Para as outras ovelhas, o que importava era pastar calmamente, passeando o olhar pelas encostas e campinas, produzir boa lã, sempre indo e voltando aos mesmos lugares, seguras, satisfeitas, livres de lobos, linces e ursos. A desgarrada não era assim. Era de espírito afoito, curiosa, não se importava com lãs nem segurança, queria explorar, arrancar dos mistérios suas entranhas e sentir-lhes o gosto, fosse bom ou ruim. Não tinha medo. Por isso se desgarrou. Mas logo voltou, e ao voltar, seus olhos brilhavam de alegria e susto, o que incomodou as outras ovelhas, arrebatadas do torpor de uma normalidade estável pelo que consideravam uma ameaça à harmonia do grupo. Nenhum monstro saiu da floresta para atacá-las. Nenhuma bruxa. Nenhum lobo. Nada. Simplesmente uma ovelha tinha se desgarrado do rebanho e depois voltado. E ao voltar, não baliu cheia de si, anunciando-se melhor que as outras. Só seus olhos se expressavam,

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denunciando a inquietação alegre do espírito, a chama da curiosidade a instigá-la rumo a novas descobertas. Um dia ela se desgarrou de novo, passou uma noite inteira na floresta, e voltou com o dorso ardendo em chamas, saltando veloz sobre os arbustos secos, até a encosta onde as outras ovelhas pastavam. Rolou no chão úmido, próximo às companheiras, até apagar o fogo. Quase todo o rebanho sorriu de satisfação. A desgarrada finalmente tinha tido o seu castigo. Mas não. O rebanho não sabia que as chamas e a dor por elas provocada eram do aprendizado, resultado de uma aventura, de um contato inesperado com um mistério difícil, mas instigante, que foi enfrentado e vencido com prazer. Foi arriscado. Foi doloroso. Mas foi bonito. Da experiência uma luz nova surgiu. Um novo horizonte se abriu. De repente, a ovelha desgarrada não era mais do rebanho. Entrou na floresta e nunca mais voltou.

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Gatunos sessentões Acabo de fazer quarenta anos. Mais vinte, sessenta. Passa tão rápido... Lembro-me bem dos meus vinte: segundo ano do curso de História, início de namoro, perspectivas otimistas para um futuro que já é presente... Parece que foi ontem. Se eu chegar aos sessenta, também me lembrarei dos meus quarenta como se fosse ontem... Ah o tempo... “Os que vamos morrer iremos aos mercados”, escreveu Adélia num poema. Que coisa mais bonita. A morte tão nossa, tão natural. E logo ali, na esquina. É tudo muito rápido. Isso me faz pensar numa determinada laia de corruptos deste país. Vejo-os às vezes na televisão, sorrindo, despreocupados, cercados por policiais; depois saindo da delegacia para responder em liberdade; outros nem passando perto da polícia, graças às imunidades que têm. Muitos deles grisalhos, barrigudos, castigados pelo tempo. São os gatunos sessentões! O que pensa uma pessoa dessas? O que faz um corrupto rico com mais de sessenta anos querer ter mais dinheiro do que já tem? Para nos próximos vinte ou trinta anos adquirir mais patrimônio? Para quê? Para deixar para a

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família? MAIS? Ela já não tem o suficiente para viver folgadamente até morrerem netos e bisnetos, sem ninguém precisar trabalhar? E o pior: dinheiro sujo, que para estar ali, financiando carros importados, apartamentos de luxo, lotes, festas e viagens, milhares de trabalhadores foram lesados em seu direito à saúde, educação e moradia dignas. Muitos até morreram, por falta de médicos, infraestrutura e segurança. Dinheiro sujo, fedido. Pagos com ele, os carros mais luxuosos fedem, as festas mais chiques fedem. Motos, lotes, apartamentos, casas, prédios, empresas, se pagos com dinheiro sujo, fedem. O corrupto não sente. Sua família também não. Acham que é normal. Mas não é. Dinheiro sujo fede. E pesa. Não faz bem. Não pode fazer bem. Eu acredito muito nisso.

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No jardim do perdão Oito da noite. Um doente morre sozinho num quarto da Santa Casa. Pablo entra para visitá-lo, temeroso, vacilante. Esforça-se para se lembrar de alguma coisa boa desse homem, um detalhe que seja, mas não consegue. Desde a sua primeira lembrança da infância até hoje, dele só tem más recordações. Tio ranzinza, intolerante, que por qualquer motivo lhe repreendia, aos gritos, ou lhe dirigia olhares de escárnio; porque Pablo era diferente das crianças que ele admirava: bem comportadas, educadinhas, certinhas. Pablo não era assim. Era uma criança saudável, feliz, amorosa, mas não se enquadrava em determinados padrões, por mais que os pais tentassem cercá-lo, direcioná-lo. Hoje sabemos que Pablo só era ele mesmo; não virou nenhum monstro, muito pelo contrário; é um bom rapaz. Agora, ao visitar o tio que agoniza, Pablo tenta não deixar vir à tona os gritos de repreensão, as ameaças, o menosprezo – mas é só isso que vem. “Sai daí, menino!”; “Se você não parar com isso agora, vou dar na sua cara!”; “Esse menino não tem jeito”; “Olha lá, que absurdo!”. Esforça-se verdadeiramente para tirar alguma coisa boa da memória, um sorriso de afeto, um olhar de compreensão (verdadeiros!), mas não consegue, e sofre com isso, porque quer perdoar o tio, quer se despedir dele com um pouco de amor no coração, um pouco de saudade, de gratidão.

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Pablo está agora bem próximo da cama. Não vai dizer o que não sente, mas segura a mão do tio, que abre os olhos e o reconhece. Não são olhos opacos e sonolentos, como Pablo esperava, mas expressivos, cheios de vida. De repente, como num filme, Pablo vê passar em sua mente fragmentos da história do tio, da sua vida – luzes e sombras, brisas e tempestades –, e sem muito esforço, humildemente, coloca-se no lugar dele, procurando sentir o que ele sentiu, viver, pelo menos um pouco, em pensamento, o que ele viveu. E o perdoa. Com o coração pleno de uma paz indescritível, Pablo se vê num jardim todo florido, cor de céu, apertando a mão do tio, que sorri. Nenhuma palavra é dita, mas tudo é entendido.

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Ramon contra a corrente

Nadar contra a corrente não é fácil. Às vezes a correnteza fica muito forte e os nadadores que a seguem trombam em você. Muitos tentam te levar junto, te puxam pelo pescoço, pelos braços, pelas pernas. Alguns chegam a te ferir, te arranham e te mordem ao passarem. Ramon sabe disso e não se importa. Está disposto a arcar com todas as consequências. Com algumas ele já convive há um bom tempo: desprezo de colegas e parentes, comentários venenosos, fofocas, generalizações arbitrárias sobre a sua pessoa, etc. Mas vale a pena, ele diz. Ser fiel a si mesmo e seguir seu caminho de cabeça erguida deve ser realmente muito bom, apesar dos pesares. Mas Ramon não é cabeça dura, sabe ser maleável quando necessário, e, de vez em quando, até se deixa levar pela corrente a lugares onde seu sofrimento é quase insuportável. Por exemplo, quando teve que ir à cerimônia de formatura da sua sobrinha Camila, num ginásio esportivo lotado, onde outros 859 alunos também se formaram. Ramon ouviu tanto discurso enfadonho, tanta puxação de saco e algazarra (gritos, apitos, cornetas e tambores), que sua cabeça ficou latejando de dor a semana inteira. Mas lá estava ele, sorridente, fingindo alegria, aplaudindo tudo que tinha que ser aplaudido, e com tanta força, que suas mãos ficaram dormentes e

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tremendo a noite toda; nem conseguiu escovar os dentes para dormir. Outra concessão que Ramon faz ao sofrimento, embora raramente, é ir a festas chiques. Ele simplesmente não suporta aquela gente de nariz empinado enfiada em ternos e vestidos de gala circulando com taças de vinho e champanhe por salões ostensivamente decorados com toneladas de flores e quilômetros de sedas e rendas. Numa escala de sofrimento de 1 a 10, elaborada por Ramon, esse tipo de festa é 10, mas como são raríssimos os convites que ele recebe, quase não tem que sofrê-las, o que é um alívio. Ramon não puxa saco. Não faz questão de aparecer, muito pelo contrário, esconde-se o máximo que pode (zero em networking e marketing pessoal para ele). Não é uma pessoa agradável, porque é ele mesmo (quase sempre), e ‘ele mesmo’ geralmente não agrada: gosta de coisas que a maioria das pessoas não gosta, desaprova o que a maioria aprova, despreza várias convenções sociais, não sabe fazer praça pra ninguém nem fingir simpatia; enfim: Ramon é um peixe que nada contra a corrente – pelo menos a maior parte do tempo. E assim ele segue seu caminho, humilhado e desprezado por muitos, mas também amado e compreendido por outros que, generosos, abrem-se a ele, procuram conhecê-lo melhor, e mesmo quando discordam de suas opiniões, mantêm-se de braços e corações abertos, acolhedores, amigos. Esses anjos são poucos, mas fazem toda a diferença. São eles que ajudam Ramon a ser o que ele realmente é, e ao mesmo tempo o estimulam a ceder

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mais, a se abrir mais, sem sofrimento, sem se apagar. Ah, os anjos de Ramon...

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A inquietação do besouro rola-bosta

Cerca de cem besouros de carapaça preta vivem no pasto de uma enorme fazenda de gado no norte de Minas, aparentemente felizes. Desde que entraram na fase adulta, há mais ou menos três meses, só fazem uma coisa: pelotas de esterco, que eles rolam até suas casas, utilizando as patas traseiras, enterram e depois põem nelas seus ovos (suas larvas são coprófagas, ou seja: alimentam-se de fezes). São extremamente úteis, pois contribuem para a aeração do solo e diminuem a incidência de parasitas, que, presentes nas fezes, morrem quando estas são enterradas. Um desses besouros, porém, está angustiado, porque por mais que ele saiba que rolar bosta é a única coisa que ele tem que fazer na vida, algo dentro dele lhe diz que há outros horizontes a considerar. Quais, ele não sabe, porque é tão rigoroso com o cumprimento de suas tarefas, que a única coisa que ele vê o dia inteiro é bosta. E à noite, nas poucas horas de descontração do grupo, o único assunto que surge também é bosta: quem fez a maior bola de bosta, quem cavou o melhor buraco para guardar bosta, quem acumulou mais bosta, quem fez a bola de bosta mais bonita, etc. Ele participa das conversas, mas incomodado, como se alguma coisa lhe apertasse o peito sob a carapaça, desviando sua atenção, perturbando sua mente. Um dia, indo para o trabalho, ele sente sua carapaça se abrir. “Quebrei minha carapaça!”, ele grita desesperado. Cerca de dez besouros se aproximam e levam o maior

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susto com o que veem: sua carapaça aberta, dividida em duas partes, uma para cada lado, e sobre seu abdômen pulsante, horrivelmente exposta, uma espécie de folha seca enrugada, dobrada, cheia de nervuras e filamentos. “Que horror!”, gritam todos, espantados. O besouro da carapaça partida percebe que é alvo de todas as atenções e se envergonha, pois se sente diferente do grupo, não consegue mais fingir seu incômodo, já que é o próprio incômodo escancarado, o horror de todos. “O que é isso?”, ele pergunta, mas ninguém responde; estão todos muito assustados. De repente, a folha seca dobrada começa a tremer e os espectadores se afastam, com medo. Um deles grita: “Vamos matá-lo!”. Ao sentir-se ameaçado, o besouro inquieto concentra suas forças na parte superior do abdômen, quase junto ao tórax, e sente a misteriosa folha seca se abrir – na verdade, duas folhas, uma de cada lado, enormes, cheias de nervuras, transparentes, cor de mel. Agora ele sabe. “Então é isto”, diz para si. E voa.

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Quanto mais gordo melhor Foram vários anos de pesquisa até a confirmação do que muitos já sabiam: ser gordo fazia bem à saúde. Antes não era assim. No passado, as estatísticas mostravam que obesos viviam menos, sofriam mais de diabetes, doenças do coração, câncer, artrose, etc. O fato é que isso mudou, e um número cada vez maior de gordos começou a chegar aos cem, cento e dez anos sem nenhum problema. Enquanto isso as pesquisas avançavam, vários congressos eram realizados, artigos publicados; até que, finalmente, veio a confirmação: mutações genéticas impossíveis de acontecer (segundo os cientistas) tinham acontecido e, em decorrência disso, gordos passaram a viver muito mais do que magros. E ficou provado: quanto mais gordo, melhor. Pior do que ser magro era ser sarado. Sarados começaram a morrer ainda mais cedo, antes dos quarenta anos, o que levou à falência milhares de academias e fábricas de equipamentos fitness no mundo todo. Nutricionistas mudaram todas as suas dietas de emagrecimento para de engorda. Fábricas de roupas passaram a utilizar de cinco a dez vezes mais tecido e elástico em sua produção (modelos plus size começaram a brilhar nas passarelas de Paris e Milão). Produtos light foram abolidos das prateleiras dos supermercados, dando

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lugar a novidades milagrosas, como a barrinha Potency, que oferecia mil e duzentas calorias em vinte gramas de produto. Magros que não conseguiam engordar de jeito nenhum encheram os consultórios de psicólogos e psiquiatras com suas lamúrias sem fim, muitos chegando à beira do suicídio. Cirurgias para aumento de estômago e remédios revolucionários para aumentar o apetite atraíam cada vez mais gente no mundo todo. Elevadores, carros, ônibus, aviões, salas de aula, calçadas, clubes, parques de diversão, tudo teve que ser adaptado aos quilos a mais da população. Países como Estados Unidos, México, Brasil e Argentina chegaram a ter taxas de ‘obesidade desejável’ (a antiga ‘obesidade mórbida’) de cerca de 80%. E o mais grave disso tudo é que o meio ambiente começou a ser agredido como nunca tinha sido antes, pois a necessidade de se produzir mais e mais comida levou a mudanças radicais na legislação ambiental, para ampliar as áreas cultivadas, principalmente de cana-de-açúcar, trigo e batatas. No Brasil, o Congresso Nacional, que mesmo antes das mutações genéticas era constituído em sua maior parte por obesos, aprovou uma lei que transformou metade das matas ciliares do país em plantações de mandioca, e um terço das florestas nativas dos estados mais pobres em currais para engorda de porcos. Outra consequência: o aumento assustador na produção de fezes, que no Brasil transformou vários rios (que já eram esgotos a céu aberto) em imensos e fétidos lamaçais de merda, que escorriam lentamente até o mar como rios

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de lava. Nas fotos de satélite, no lugar do antigo verde-água luminoso, o que se observava nas águas da costa brasileira era uma enorme mancha marrom, chegando, no Nordeste, até o arquipélago de Fernando de Noronha, e em regiões tradicionalmente mais cagonas, como Rio de Janeiro e São Paulo, até três mil quilômetros mar adentro. Magros foram banidos da política. Opositores ao ‘novo regime’, preocupados com o futuro do planeta, foram perseguidos, presos, torturados. O terror se instaurou. “É o fim!”, gritavam os últimos ambientalistas vivos. Mas ninguém os ouvia. BUM! Ramon caiu da cama. Levantou a cabeça, ofegante, assustado, e olhou ao redor. Sentiu um forte cheiro de fezes no ar, mas logo percebeu que era sua imaginação, resquícios do pesadelo. Apalpou a barriga e sentiu aliviado o excesso de gordura esticando a camisa do pijama. Ainda com um pé no sonho, disse para si: “Ufa”.

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Sexta-feira livre

Deitado no sofá sozinho às duas da madrugada assistindo Sexta-feira 13 - Parte 6. Tiro uma selfie e posto no Facebook. Em menos de um minuto, duas curtidas. Daniel Ferreira e Juliana Souza. Não conheço. Três, quatro, cinco curtidas. A foto não ficou legal. Pareço um zumbi. Magro demais. Já me perguntaram se estou doente. Não, respondo, não estou doente, estou ótimo. Só não consigo dormir. Duas e meia. Jason já matou três pessoas, e pelo que eu conheço de outros filmes da série, vai dar cabo agora desse casalzinho aí transando no meio do mato, talvez com um golpe só de facão. VUPT! Quero um café. Às vezes quando tomo café o sono vem. Vinte curtidas até agora. Juliana Souza pergunta: não trabalha amanhã? Ela quis dizer hoje, mas tudo bem. Não, Juliana, estamos de recesso na firma. O casalzinho do filme acaba de morrer. Não foi com facão, mas com espeto de churrasco, que atravessou os dois de uma vez. VAPT! Quem vai ser agora? O velho fazendeiro de olhar vidrado? O líder do acampamento metido a Rambo? O cachorrinho insuportável? Vou à cozinha e faço um café. Escolho uma caneca bem bonita (a que eu trouxe de Portugal, com a bandeirinha do país e uma imagem do Galo de Barcelos), para ficar legal no Face. Tiro uma foto e posto. Dez curtidas.

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Juliana de novo (ô saco!): o filme tá bom? Tá, Juliana, muito bom, muita gente indo descansar. VUPT! VAPT! Gosto disso. Estou cansado. Segunda-feira já acordo cansado. Preciso de um tempo para me animar. Lavo o rosto. Olho-me no espelho. Rezo. Peço: “Ô meu Deus, me ajude”. Aí melhoro. Ganho força. Vou trabalhar. À noite não durmo, mas tudo bem. Hoje é sexta. Já são três e meia da madrugada. O filme está acabando. Morreu quase todo mundo, inclusive o cachorrinho, com uma flecha atravessada no pescoço, pregado numa árvore. Acabou. Jason está livre. Acho que vou ler um pouco. Esperar o dia nascer. Sexta-feira é bom. Ainda mais livre. Tempo para estar comigo e com a minha família, sem amolação, sem obrigação. Preciso muito.

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Na colmeia Em seu pequeno alvéolo de cera, cercada por suas irmãs, ela ainda não sabe que seu voo será diferente, que seu gosto por flores escuras e sem cheiro será mal compreendido, que o seu silêncio será mal visto e perturbado. Ela não sabe que sua dificuldade em se localizar nos bosques e voltar para casa sem se desviar será devido a uma desorientação nata, a um pendor por lugares escuros, frios e silenciosos, onde ela encontrará uma beleza que suas irmãs não aceitarão. Tudo ainda está se formando ali dentro, lentamente, mas logo ela estará pronta para o primeiro voo, a primeira flor, o primeiro mel. Seguir o programa da colmeia será sua obrigação: realizar bem suas tarefas, como tem que ser. Não haverá espaço para o desvio, para a poesia das flores tristes, dos silêncios, da escuridão e dos ventos gelados. Não haverá espaço para a diferença, para o não ser o que todos são, o não fazer o que todos fazem. Ela não sabe que será acusada de traidora só por discordar de uma coisa e outra; que a caluniarão pelas costas, sem lhe darem o direito de se defender; que será punida com base em verdades, mas também em mentiras. Não sabe que será forçada a entender que na colmeia só há um único tom de marrom, um único tom de amarelo, um único programa a ser seguido e defendido, e que brilhos próprios não serão permitidos. Criatividade, nem pensar!

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Ela ainda não sabe do seu pendor por criar... Na colmeia tudo é fechado, tudo está predeterminado, é só seguir. Mas ela irá por outros caminhos. Em seus desvios pelos bosques e matas verá coisas novas, belezas diferentes... Poesia... sobretudo poesia... E sofrerá. Ela ainda não sabe... Acorde jovem abelha! Já é hora. E ouça-me: aconteça o que acontecer, seja fiel a você mesma. Não se entregue. Viva! Mas não bata de frente sem precisão, não brigue muito, resista o máximo que puder sem gritos, passivamente, para não te prenderem, não te expulsarem, não te matarem. Seja você! Vá por desvios SIM! Seja como os bugres selvagens, caminhando livres pelas matas, mas com cuidado, em silêncio, calmamente, suavemente... Mesmo assim vai doer. Ô se vai...