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DADOS DE COPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando pordinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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SUMÁRIOPara pular o Sumário, clique aqui.

Prólogo

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

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Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Playlist das músicas citadas

Créditos

As Autoras

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“A única forma de chegar ao impossível é acreditar que é possível.”

– LEWIS CARROLL

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SPRÓLOGO

entia o corpo dormente, o que para ela era bom. Os dedos, sempre tensos, movimentavam-se devagar por conta dasonolência.Boiava em um lago violeta, os cabelos ruivos esparramados na superfície formavam uma imagem assustadora, e o

vestido escuro encharcado e colado quase a sufocava. Movia-se conforme o vento e ondas circundavam seu corpo suspenso.A vontade de se mexer era nula. A água invadia as narinas e a boca, engasgando-a. Mas ela não se arrependeu. Quandose deu conta de que engolira tudo aquilo, já sabia das consequências daquela aventura.

Entretanto, estava livre.Notava a calmaria invadindo sua alma quase congelada pelo lago de cor exótica que a envolvia. Era como um abraço

da humanidade, que nunca a compreendera. Seus membros continuavam relaxados e a respiração começava a falhar.O filósofo tinha razão: todas as coisas estão envenenadas. Não existe nada sem veneno, pensou enquanto o corpo era

sugado pelas águas.Antes de afundar por inteiro, ouviu o som da fênix e lembrou onde estava. Dessa vez, não sabia identificar ao certo o

local. Encontrava-se na fronteira entre as dimensões.O coração começava a parar e ela perdia a consciência. Conforme afundava de olhos abertos, via as criaturas daquele

santuário. Pessoas esverdeadas com guelras e caudas longas escamosas conversavam entre si por meio de sons que nuncaouvira. Até nos olhos deles percebia decepção. Julgamentos que a condenavam. Ninguém entenderia sua decisão. Os pais eamigos ignoraram seus diversos apelos. Os seres mágicos também fecharam os olhos e ouvidos para as vontades dela.

Queria viver no Reino. Estar em um lugar onde seria sempre querida. Por isso tomara a decisão drástica. Precisavadormir eternamente. Ansiava por sorrir para os sereianos e dizer que estava tudo bem, que tudo daria certo.

Nos contos de fadas era assim...Quando quase não enxergava mais a superfície, resolveu fechar os olhos e deixar-se engolir pela escuridão. Nada

melhor do que estar sozinha com seus pensamentos.Despediu-se da Terra com a certeza de que iria para um lugar melhor. Moraria com pássaros gigantes, seres

mitológicos e pessoas bondosas capazes de amá-la até o fim.Segundos depois, seu corpo desfalecido foi retirado da água pelos sereianos assustados e levado para a margem, onde

havia uma aglomeração. Sem vida, sua pele clara já começava a perder o brilho.– Precisamos reanimá-la – afirmou, desesperado, um jovem de baixa estatura, que usava uma cartola diferente das

outras.– Os médicos estão fazendo isso na outra dimensão – retrucou uma garota de cabelos platinados.A senhora ao seu lado se ajoelhou no gramado e acariciou o rosto magro e sem vida. Tentou, aflita, secar a água

gelada dos cabelos avermelhados. Era difícil ser separada da pessoa que mais amava.– Eles vão trazê-la de volta? – questionou.Outra senhora, de pele manchada, se aproximou, e os habitantes abriram espaço para ela passar. Mesmo pequena,

aparentando carregar o mundo nas costas fragilizadas pela idade, a mulher exalava sabedoria e confiança, duas qualidadesbem-vindas naquele momento.

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– Ela está passando pela etapa do Louco. Estava escrito. Precisamos ter fé em nossa princesa.Tudo dará certo.Naquele momento, o corpo sem vida da jovem saltava com a brusquidão das descargas elétricas de duzentos joules de

um desfibrilador. Os médicos tentavam trazê-la de volta.Mas o lugar dela não era mais aquele.Precisava retornar ao Reino das vozes que não se calam.Necessitava ser feliz.

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udo era sempre cinzento.Nunca havia cor nos lugares por onde passava, mesmo que existisse algum tipo de êxtase no

local. As pessoas comentavam sobre como se sentiam felizes, sobre o brilho presente em tudo e a magiaà sua volta. Mas não ela. Nunca ela. Sophie sempre via tudo em um único tom. Pálido, sem graça etriste. O tipo de pigmento ignorado pelas outras pessoas.

Como se já não bastasse a falta de luz, também havia a dificuldade de ouvir as vozes ao redor e deentender por que todos sorriam daquela maneira ao longo do corredor metalizado. No lugar de sereshumanos, via criaturas grotescas movendo bocas enormes tão depressa que mal conseguia acompanhar.Tinham olhos capazes de observar os mínimos detalhes de seu ser, e ela sabia o quanto a analisavam.Em alguns segundos, poderiam descrevê-la, entender todo o seu passado. Além disso, apontavam umaspara as outras as características que faziam delas uma espécie superior. Atitudes como essa reviravamseu estômago. Se reclamasse, comentariam mais uma vez que precisava engordar. Ou se produzir mais.Talvez parar de usar a cor do seu mundo: o cinza que a perseguia.

Mesmo não sendo a primeira vez, muito menos a última, tentava imaginar-se em uma vida maisdivertida. Mais compreensível. Menos sombria.

Por que não posso ser feliz?Será que adiantava implorar aos céus? Nem sabia se existia alguém para ouvi-la. Seria capaz de

acabar com as criaturas subterrâneas que a encaravam com olhar de repúdio? Haveria algo de divino seisso acontecesse? Mais uma vez, perdia-se em pensamentos minimalistas. Na caçada por respostas quenão encontraria. Na eterna busca do porquê de existirmos e do lugar de onde viemos. Enfim...

Ela só queria ser ela mesma.Nem precisava necessariamente ser aceita. Já tinha passado dessa fase. Todo ser excluído sonha em

um dia fazer parte de um grupo. Mas ela era a excluída mais incluída da humanidade. Tudo porque,no jardim de infância, emprestara seu giz de cera para uma menina de cabelos escuros sedosos, com asbochechas rosadas e sorriso cativante. Por ironia do destino, essa beldade tornou-se sua melhor amiga epodia ser considerada a rainha da escola – algo que Sophie nunca seria, pois desse cenário ela sóparticipava como fiel escudeira.

Sophie parou de bombardear sua mente e resolveu baixar o olhar daquela floresta sombria paraobservar seu tênis All Star remendado e pintado com caneta hidrográfica. Gostava das caveirasmexicanas em degradê que havia desenhado nas laterais. Então, um sorriso brotou nos lábios tensos e ocenário pôde, pelo menos, voltar às cores habituais.

Ela continuava enxergando tudo do mesmo jeito. Contudo, não via mais criaturas com cabeças e

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olhos gigantes, bocas escancaradas salivantes e dedos finos alongados capazes de estrangular facilmenteum pescoço. Via apenas os mesmos colegas de classe, o corredor que interligava as salas de aula e a vidachata de sempre.

O sinal tocou anunciando o fim do intervalo. Por que não posso ser feliz?

Mais uma tarde chegava. Quem no ensino médio não gosta de aproveitar o tempo livre para ignorar alição de casa e se jogar no sofá da sala após uma estressante manhã no colégio? Ela adorava. Pelo menospor duas horas aquele era o seu hobby favorito. Chegava do colégio, deixava o material jogado na cama,lavava as mãos e corria para a mesa da cozinha. Com a mesma empolgação com que assistia a uma aulade física, engolia qualquer grude que a mãe preparava e depois se atirava com a roupa suja noconvidativo amontoado de almofadas.

Todos os dias recebia lambidas da pequena língua cor-de-rosa de seu buldogue francês, Dior, e riaao lembrar que o cachorro realmente tinha o nome de uma grife. Aquilo refletia tão pouco dela.

– Que tipo de garota não sabe o que é um Dior? – perguntou Anna, sua melhor amiga, certa vez.– O tipo de garota que é acordada pela amiga no sábado às oito da manhã pra correr na esteira? –

Sophie devolveu a pergunta.– E que sempre fica de preguiça na cama...– Demonstrando ter bom senso.– Ou que bom senso é exatamente o que ela precisa aprender a ter.– Nisso você tem razão. Se ela tivesse bom senso, não andaria com alguém que a acorda às oito da

manhã de um sábado, ou que batiza seu cachorro de Dior!– Batizar um cachorro de Dior já mostra a falta de bom senso! Esse é um nome sagrado! Deveriam

batizar santos com esse nome!– Foi você quem batizou o nome do meu cachorro, sua maluca!– Porque você trata o Dior como um santo, não porque um cachorro mereça esse nome. Isso não é

óbvio?Às vezes, Sophie sentia vontade de quebrar um prato na cabeça da amiga. Mas depois se lembrava

de que a amava exatamente por isso.– Não, não é óbvio! Você ainda é maluca!– Eu sei, mas eu sou popular, não preciso ter bom senso! Você, ao contrário, deveria agradecer por

ter cruzado o meu caminho! No mínimo, um dia, vai aprender a se vestir melhor...Elas riram. Aquela era a parte boa da vida.Apesar da graça, a coisa do “se vestir melhor” tinha motivo: Sophie exibia uma magreza fora do

comum.Para ela sempre fora mais fácil falar do negativo, e essa era uma palavra que a descrevia. Barriga

negativa. O tipo de corpo perfeito para supermodelos de Milão e odiado por garotas de cidades

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pequenas. Como arranjar um namorado ou ganhar um mero olhar sendo magra daquele jeito? O curiosoera que ela não sabia de onde havia herdado o corpo esbelto e reto. De sua mãe não era. Morria deinveja da “comissão de frente” dela. Sério! Laura despertava o desejo dos pais das amigas da filha.Ruiva com peitões? Quase uma capa garantida de revista masculina. O fato de a família também exibiruma pele alvíssima e sem marcas causava ira nas outras, mas as mães invejavam mais do que as filhas.Além disso, com certeza não tinha puxado o físico do pai, George. Suas típicas pernas de graveto nãopoderiam sustentar aquela famosa barriga de chope. Ele sempre fora o rechonchudo do trio. Parecia atéuma escala de oito a oitenta. Sophie sem dúvida era o oito. Mas quem olha para um oito? Por issoadotou uma tática que achava infalível. Usava roupas largas. Adotava o estilo grunge. Shorts escuros esoltos, camisas de bandas ou com símbolos sinistros, às vezes, uma camisa de flanela na cintura ou umcolete descolado. Nos pés, tênis baixos ou botas de couro. Aquilo lhe adicionava alguns quilos,mostrava um pouco de seu gosto e diminuía os olhares de desaprovação. Ruiva grunge parecia umpouco descolado, então, mesmo não sendo fashionista como as colegas, ao menos não era condenada.De resto, a parte de que se orgulhava – e que também não sabia de onde havia surgido – era a sua voz.

Ela sabia cantar.Ainda que só para si.

De volta à realidade, retomava o ritual no sofá. Olhava as sombras negras da lamparina esquisita damãe dançarem no teto bege e se questionava por que alguém pintaria um teto. Paredes, ok. Todomundo pinta paredes. Agora, teto? Ela só conhecia o dela. Depois, deixava aquele movimentoenvolvente guiá-la para um estado zen, no qual finalmente se desprendia de sua vidinha mais ou menose era levada para bem longe, mesmo que por pouco tempo.

– Isso não pode estar acontecendo! – berrou a mãe ao telefone de repente, enquanto transitava pelasala com passos exaltados.

Sophie achou estranho. Aquele era o momento em que a matriarca ficava no quarto assistindo ànovela, retocando o esmalte das unhas do pé ou passando as camisas cafonas de seu pai. Algo realmentegrave devia ter acontecido.

– Você sabe que eu me esforço aqui em casa! – bufou ela. – Eu também colaboro! Em que século

você pensa que estamos? Você sabe quanto custaria se eu exigisse uma diarista como as outras mulheres?Além de cuidar de tudo por aqui, tenho o clube das mães, e desculpe-me se ele não acontece em umestádio de futebol, mas isso ainda é importante pra mim, sabia?

Sophie tinha certeza de que, do outro lado da linha, o pai espumava de raiva apenas por ouvir isso.Aquele era um hobby antigo levado muito a sério, típico de mãe com muito tempo livre. QuandoSophie tinha cinco anos, Laura se juntou a um grupo de mães do bairro que se ajudavam para melhoraras condições do local para as crianças. A mãe de Anna também participava dele, e a amiga oconsiderava a etapa que vinha logo antes do futuro bingo da terceira idade. Ao contrário do quecostumava acontecer com Sophie, Laura a cada ano conquistava mais espaço e poder na organização.Naquele momento, era presidente e sabia tanto sobre o bairro e como educar crianças que as novatas nem

cogitavam tirá-la dessa posição.

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Deviam vê-la agora, pensou a filha em tom sarcástico.

Amava a mãe. Era louca por ela. Gostava da forma como enrolava a ponta dos cabelos ruivos comos dedos de unhas impecáveis e como enrugava a testa quando franzia os olhos azuis para o pai,brincando. Entretanto, isso não impedia Sophie de recriminá-la quando tomava atitudes bestas. Oclube das mães era uma delas, mas a família já havia aprendido que o melhor era tentar ignorar – algoimpossível de fazer naquele dia, por causa do constante falatório ao telefone.

Sophie levantou a cabeça apenas um pouco a fim de ver se a mãe ao menos caminhava em direção àporta. Sem indícios. Só conseguiu identificar a mesma expressão franzida, mas dessa vez não parecia serbrincadeira.

– Seu pai quer uma reunião familiar hoje, então me faça o favor de não se trancar no quarto na horado jantar – advertiu a mãe após finalmente desligar o telefone.

– Tenho mesmo que participar? – resmungou Sophie com voz de sono.– Eu disse que é de família, não disse? Na última vez que chequei, você ainda fazia parte desta.Sophie atirou uma almofada na direção da mãe, que desviou no último segundo.– Você vai ter que pegar essa almofada! Agora, volte para Mármia, vou deixar você em paz.

– O nome é Nárnia, mãe! – retrucou ela, rindo.– Tanto faz! Tem sorte de eu não chamar o leão de Simba.Pior que a filha tinha sorte mesmo.– Você é tão “porforona”.– E você, senhorita, também é um amor de pessoa – complementou na intimidade que fazia delas

mãe e filha.– Então, eu tive a quem puxar!Sophie tinha aquela mania. Sempre criava seus próprios termos para as coisas. Assim vivia em seu

próprio mundo, ditando as próprias regras. “Porforona” era um deles. Depois a palavra seria esquecidae só Sophie entenderia. Um código secreto só dela.

Assim que a mãe saiu, pôde voltar para o ritual. Em poucos minutos, estaria no mundo dos sonhos.

Depois da soneca, estava guardando os cadernos na mochila quando ouviu a porta de entrada se abrir,produzindo o tradicional rangido. O pai chegara em casa.

– Hora de encarar a realidade, não é, molengo? – perguntou ela, olhando para o cachorroesparramado de barriga para cima no chão do quarto.

Enquanto George se livrava do terno e da gravata, Sophie tomou um banho e vestiu o pijamafavorito: uma camiseta preta antiga do pai e uma bermuda de algodão furada de alguns anos. O jantarera peixe ao molho de limão.

– Assaltou o mendigo? – perguntou a mãe ao vê-la entrar.Sophie mostrou a língua e se acomodou na mesa. Dior era proibido de chegar perto da comida.– Me compre algo com algumas caveiras, que eu até posso usar.– Eu comprei um pijama da Monster High – retrucou Laura.– Ela está mesmo de sacanagem comigo, não é? – perguntou Sophie para o pai.

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Entretanto, aquela reunião não era um encontro feliz. Algo havia acontecido.– Vamos dar nome ao defunto? – começou Sophie, quebrando o silêncio.A mãe lançou seu típico olhar franzido e a filha percebeu a gravidade da situação. Era realmente

com ela.– Filha...– Pai...– Não é fácil falar disso com você.– Nunca é fácil falar nada comigo.– É sério, Sophie! – exclamou a mãe esmurrando a mesa.Choque. Quando ela tomava aquele tipo de atitude era porque o crime daria passagem para a

prisão de segurança máxima.– Eu já vou dizendo que não fiz nada – resmungou a garota.– Ninguém aqui está dizendo que você fez alguma coisa...– É exatamente isso que vocês estão dizendo, pai.

O clima ficou tenso. O nervosismo de Sophie a fez fechar os punhos e perder o apetite.– Você ainda não tocou no seu peixe – comentou George de forma sutil.– Pai, desabafa logo, que eu quero dormir mais cedo.O casal trocou olhares e Sophie odiou aquilo. Era como um carimbo de exclusão, um atestado de

dúvida sobre a maturidade dela para entender problemas mais sérios. O silêncio impregnou o ambienteantes de o pai continuar:

– A diretora ligou. Ela disse que alguns pais andam preocupados com a sua aparência.Era só o que me faltava, pensou a menina.

– Eles não têm filhos com quem se preocupar?O pai encolheu os ombros.– Foi exatamente o que eu disse! – revoltou-se a mãe. – Nós sabemos que sua estrutura física é

assim, e ninguém mandou as filhas deles serem umas orcas!– Sem exageros, Laura! – recriminou George.O comentário pelo menos melhorou um pouco o ânimo de Sophie.– Estou encrencada?– Claro que não! – responderam os dois ao mesmo tempo.– Então por que ainda estamos falando disso?

O pai pegou a mão da filha. Parecia que iam lhe contar que um parente havia morrido. “Preciso lhedizer, minha filha, que a sua saúde faleceu hoje! Ela foi encontrada pelas mães dos alunos no terrenobaldio atrás da escola...”

– Como sua mãe disse, nós conhecemos você – falava o pai quando Sophie voltou a prestar atenção.– Sabemos que não há nada de errado...

– Tirando o fato de me chamarem de “graveto” quando uso uma calça mais apertada...– Expliquei seus hábitos alimentares para a diretora e disse que estava ofendido por ela entrar em

contato conosco para falar algo tão sem fundamento.

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– Eles chamam você de “graveto”? – perguntou a mãe aflita, de repente.– Tem coisas piores. – Sophie riu, o que era melhor do que chorar.– Por exemplo?– Ah, sei lá! Mumm-Rá, The Walking Dead, Olívia Palito, E o vento levou, professor Girafales,

louva-a-deus, desentupidor de pia, bandeira de pirata...– Mas que horror! – exclamou a mãe.– O que quer dizer “bandeira de pirata”? – perguntou George, surpreso.– Só pano e osso.Eles voltaram a murmurar. Para Sophie até que era engraçado ver a reação dos dois a algo que ela já

havia se acostumado a sentir doer.– Isso tem nome, sabia? É bullying! E isso agora é crime!– Ih, mãe, então o colégio inteiro vai pra cadeia desse jeito...– Algum deles é filho de alguém que eu conheço? Eu coloco logo a lambisgoia contra a parede lá no

clube!– Não, mãe, porque estou no ensino médio, não no maternal.Sophie sentiu outra vez a mão do pai sobre a sua. O toque agora era diferente. Não era um toque

que excluía, mas que conectava.– Sabe, eu também sofria na época do colégio...– É mesmo?– Sim, eu sempre fui gordinho. Naqueles tempos eu era bem mais, e as pessoas diziam que eu era tão

gordo, mas tão gordo, que quando viajava as empresas me faziam um desconto de grupo!Sophie riu.– É mesmo, pai? Já comigo eles dizem que eu sou tão magra, mas tão magra, que sou a única mulher

do mundo com duas costas!A mãe só abria a boca e balançava a cabeça em choque.– Isso não é nada! Eles diziam que eu era tão gordo, tão gordo, que quando caía da cama eu caía

pros dois lados!– Grande coisa! Eu já ouvi que sou tão magra que, se eu colocasse um casaco de pele, ficaria

parecendo um cachimbo!Os dois suspiraram juntos em um momento de cumplicidade.– Obrigada por me defender, pai.Foi a vez dele de sentir o toque dela de maneira diferente. Aquilo foi bom.– Só não entendo por que vocês trouxeram à tona uma conversa que claramente resolveram com a

diretora – comentou Sophie, soltando a mão dele.– Bem, apenas achei melhor compartilhar o que andam falando da nossa família... – continuou

George, voltando a ficar sério.– Não sabia que você ligava para o que as pessoas dizem – retrucou a filha.– Eu sou advogado. É meu trabalho ligar para o que as pessoas dizem.– Assim como inocentar as vítimas e tirá-las de situações constrangedoras.

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Aquilo bateu forte. A menina era inteligente. Única. E triste. Era uma parte dele. E fazia parte deleser daquela maneira também.

– Nem sempre um advogado ganha a causa, meu amor – sussurrou o pai.– Obrigada por tentar. – Ela suspirou. – Eu já vi fotos suas na época do colégio. Você nunca foi

gordo.Inteligente. Única.E triste.Sophie deu uma garfada no prato e levou o pedaço à boca. Mastigou por poucos segundos e engoliu

em silêncio. Em seguida, levantou-se pedindo licença e deu um beijo na cabeça dos pais.– Não deixe de ouvir seus verdadeiros instintos, advogado – finalizou a filha, antes de se retirar

para o quarto.Faria o que fazia de melhor.Dormir.

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odo dia ela batalhava.Sentia-se uma guerreira medieval e se imaginava em um campo sangrento, fedendo a suor,

onde não importava de onde vinha ou quem era, pois o objetivo maior era continuar viva – pensamentosombrio demais para uma garota tão jovem, mas natural de acordo com seus livros de histórias, fossemelas mágicas ou reais. No passado, os jovens costumavam lidar com temas sérios, como guerras e pragas.Os jovens de hoje se preocupavam mais com haters na internet e pais ausentes. Quando lia passagens

violentas e trágicas nos livros que pegava emprestado na biblioteca vazia, percebia o quanto se irritavapor pouca coisa. Seria besteira continuar agoniada com o fato de alguns pais reclamarem sobre seupeso. Não ficaria naquele colégio por muito mais tempo. Mas como esquecer que envergonhava seuspais com algo que simplesmente não podia controlar? O estranho era que ela não se incomodava comsua aparência nem tinha problemas com o próprio corpo.

Quer saber... dane-se o mundo, falou para si mesma. Adotava o lema do “dane-se” para poder

sobreviver.

– É sério! Blush não é um bicho de sete cabeças nem tomaria muito do seu tempo – comentou Anna aoencontrá-la no corredor da escola. – Você deveria usar pelo menos de vez em quando. Está com umacara péssima!

– Bom dia pra você também – respondeu Sophie, tentando aguentar o peso da mochila em umombro só.

– O pessoal está ali no pátio. Vamos lá falar com eles e vê se coloca um sorriso nesse rosto acabado!Falar com eles e colocar um sorriso no rosto, pensou ela.

– Claro! Por que não gravar um CD e ganhar um Grammy?Anna se esforçava para ignorar o fato de ter uma amiga antissocial, mas às vezes os comentários de

Sophie soavam tão engraçados que valia a pena o esforço.– Você sabe que devem ter sido os pais deles que foram fofocar com a diretora, não sabe? –

resmungou a ruiva no caminho.– Sua mãe não é cristã? Você deveria ouvir o que ela diz e praticar o perdão!– Minha mãe nunca foi cristã! E, se eu fosse seguir o que ela diz, o colégio inteiro ia preso!– Ela não coordena um grupo cristão com a minha mãe?– É um clube filantrópico a favor da boa educação das crianças!– Ah, então! E isso não é cristão?

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Sophie suspirou, desistindo. Ao se aproximarem do grupo, seu humor logo se esvaiu. Todos os diaspareciam iguais: uma repetição monótona de eventos obrigatórios nos quais nunca se sentiria à vontade.Ela cumprimentou de uma única vez as cinco pessoas.

Julia, Daniel, Rick, Sasha e Erik.Os melhores amigos da melhor amiga dela.Quando estava com eles, preferia ficar à margem do grupo, rabiscando letras de músicas nas páginas

em branco. Ela ficava abismada com o poder de persuasão de Anna no grupo. Nenhum dos cincogostava de Sophie, mas Anna a adorava. E eles queriam agradar Anna. Andavam juntos cinco dias porsemana, e isso quando não havia festas ou eventos no fim de semana, dos quais Anna a liberava. Quasenunca aparecia em ocasiões sociais ou reuniões dos grupos de estudos. O bom era que tentavam sereducados. Não a xingavam – ao menos pela frente – nem a ignoravam cem por cento. Havia umatentativa de camaradagem deste tipo: eu sei que você é esquisita, mas a gente perdoa, sabe-se lá até

quando.– Alguém fez o dever de matemática? – perguntou Daniel, também conhecido como o namorado gato

da Anna, popular pelo corpo atlético e cabelo de surfista.– Típico de você não fazer o trabalho, amor!– Alguém realmente conseguiu resolver as contas desse professor? – questionou Rick. Era um rapaz

forte, de cabelo raspado e expressão carrancuda.– Eu resolvi... – respondeu Sophie, sussurrando sem querer.O clima ficou constrangedor. O pior era que mal tinham chegado. Tentando salvar mais uma vez a

situação, Anna cruzou seus braços no de Julia, uma loira baixinha e delicada como uma boneca, e disse:– Como é bom ter uma pessoa inteligente nesse grupo, não? Do contrário, não sei quem iria nos

salvar hoje...– É verdade! Empresta a lição pra gente, Sophie! – complementou Erik, o namorado de Sasha. O

casal era muito parecido. Ambos tinham o cabelo escuro, perfil de modelo, eram magros, de aparênciasaudável, e sorridentes.

– É... – Sophie suspirou, olhando para Anna. – Como é bom ter alguém inteligente por perto, nãoé?

Anna piscou para ela. A ruiva emprestou sua lição para eles. Aquela era a primeira vez que se sentiaimportante no grupo.

Situação estranha. O dia estava bom.

As semanas transcorreram sem problemas. Escola, casa, almoço, soneca, tarefas, jantar, canto, internet ecama. Alimentação e descanso apareciam duas vezes em seu dia. Dessa maneira deixava a vida passarvagarosamente e sonhava em um dia se sentir diferente.

– Você precisa de um namorado – comentou Anna ao telefone, em uma das tardes de conversas

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quase monossilábicas da parte de Sophie.Sophie adorava seu telefone, principalmente os sistemas de mensagens instantâneas e aplicativos de

internet, mas detestava falar no aparelho. Anna adorava.

– Certo – debochou Sophie. – É exatamente do que eu superpreciso.Anna ignorou a resposta seca e começou a tratar daquilo como a missão da sua vida, a fim de

ajudar a amiga a sair do casulo em que se encontrava.– Sério! O Rick está sozinho. Seria lindo se tivéssemos três casais no grupo.Troglodita + Varapau. Ela deve estar bêbada para falar uma coisa dessas.– Claro! – respondeu Sophie. – Por que não?– Eu estou falando de um assunto sério, e você está sendo sonsa comigo, né?– De onde você tirou isso?– Você está fazendo voz de sonsa!– Eu não faço voz de sonsa!

– Claro que faz! E já falei pra parar de fazer isso comigo!– Como é uma voz de sonsa? – perguntou Sophie, dividida entre a graça e a ofensa.

– Como a sua! Só que sonsa!A ruiva começou a rir e suspirou. De novo.– Tá bom, sua perturbada mental! Rick me engoliria com um abraço. Já viu o tamanho daquele

moleque?– Ué! Vai que o tamanho dele confere... – soltou a amiga.Do outro lado do telefone, a ruiva ficou da cor do cabelo. Tinha dezessete anos e nunca havia se

relacionado seriamente com ninguém. Muitos na escola pensavam que fosse lésbica. Não tinhaproblemas com isso, porque, ainda que fosse verdade, continuaria tímida do mesmo jeito, mas sabia quegostava de meninos. Por anos sentira uma paixonite platônica por um cantor de rock com longoscabelos escuros e olhos tão verde-esmeralda que a faziam passar mal. Claro que não conseguia seenvolver com ninguém porque idealizava aquele vocalista. Contudo, os anos foram passando, e ela seenvergonhava de seu histórico.

– Nem pense em tocar nesse assunto – resmungou Sophie, abalada. – Te ligo daqui a pouco.Anna ficou chateada, mas havia tocado em um ponto delicado.

Sophie se envolvera sexualmente com apenas um rapaz durante toda a vida. Demorou meses até contarpara a melhor amiga. Acontecera em um acampamento de férias dois anos antes. Ela já considerava teridade suficiente, e foi quase da maneira como sempre imaginou: em um lugar um tanto isolado e com

uma pessoa parecida com ela.Tudo se passou em uma noite em que estava sentada à beira do cais. Para sua surpresa, um dos

rapazes da turma resolveu se juntar a ela. Era bonitinho e fazia o tipo nerd, vinha de um estado distantee aceitou participar do acampamento por não ter para onde ir e porque não queria se sentir só naqueleperíodo em que as pessoas supostamente deviam se divertir. Situação parecida com a dela. Anna viajara

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com a família para a Austrália, e Sophie não queria passar semanas dentro do quarto tendo apenas ospais como referência social de um período de férias. Renderia uma péssima redação na volta às aulas.

Devido à afinidade, eles conversaram um pouco sobre música, videogames de ação, e ela atécomentou sobre o seu vício antigo por Counter Strike. O garoto gostou daquilo e começou a seaproximar. Uma menina bonita, descolada e jogadora de CS. Parecia que ele estava sonhando. Paradeixar aquilo ainda mais marcante, exatamente quando o relógio dele despertou à meia-noite o garototomou coragem e a beijou.

Não foi nada do tipo “ah, meu Deus, que beijo”, mas ambos apreciaram o momento delicado.Sophie notou as mãos trêmulas dele segurando-lhe o rosto fino e, percebendo o clima, suspeitou ser

a primeira vez dele também. No início, foi algo quase infantil. Toques de lábios meio esquisitos,entortando as bocas. Ao relaxarem, as coisas mudaram, o beijo intensificou-se, e por alguns minutos elasentiu as mãos dele apalparem levemente o seu corpo. Era esquisito, mas, para quem nunca havia feitoaquilo, até que passava. Quando as mãos subiram pelas coxas dela, ele encarou o vestido preto folgadocomo um convite. Ela estava assustada, mas sabia que um dia teria que passar por aquela experiência.Ao menos seria com um cara que não contaria vantagem no dia seguinte. Era uma boa qualidade.

Ela o ajudou a abaixar um pouco as calças, viu a embalagem da proteção ser rasgada com os dentesem três tentativas e pensou que, em poucos segundos, seria considerada mulher. Quando ele a deitou namadeira úmida do cais, Sophie se lembrou de onde estavam. Qualquer um poderia passar por ali. Iriamvê-la e rir. Mas, ao olhar para o garoto, tão assustado quanto ela, não sentiu medo e lhe entregou maisum beijo intenso, em um consentimento final.

Assim que terminaram, disfarçaram a vergonha e se despediram com a desculpa de que poderiam serdescobertos. Ela ainda se lembrava do último selinho que ele lhe dera ao deixá-la perto da áreafeminina.

Ao desligar o telefone, Sophie continuava a relembrar aqueles dias.Recordou-se de que, justamente no dia seguinte à perda de sua virgindade, o garoto havia se inscrito

em uma caminhada pelas montanhas que duraria o dia inteiro. À noite, descobriu que um grupobrincaria de “verdade ou desafio” ao redor da fogueira. Aquele era o único jogo não envolvendo bebidaalcoólica em que poderiam fazer coisas mais provocativas. Quando ouviu algumas meninas de seualojamento comentarem a respeito, Sophie arriscou perguntar quem participaria e, para sua surpresa, foiconvidada. Um frio invadiu seu corpo e bambeou seus sentidos. Ele provavelmente estaria lá.Contrariando todos os seus instintos, vestiu uma calça jeans e uma regata preta dos Ramones e foi paraa famosa fogueira, ao redor da qual os instrutores geralmente contavam histórias de terror pelas quais sóela se interessava.

Chegando ao local, percebeu o rosto do rapaz corar, mas nada comparado ao dela. Não notounenhum movimento por parte dele. Quase não trocaram olhares, e ela tentou superar aquilo para sesentar na roda.

Algumas pessoas se surpreenderam com a presença de Sophie. Normalmente, ela passava o tempolivre jogada embaixo de uma árvore com seu violão. Naquela noite, sentou-se com todos os outros

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jovens.Diversas vezes a garrafa girou ao lado do fogo. Diversas vezes eles ouviram perguntas e respostas e

assistiram aos desafios. Muitas envolviam pegação, partes do corpo humano e histórias nojentas. Nahora em que a garrafa apontou para Sophie, ela pediu verdade.

– É verdade que você nunca foi beijada? – indagou uma garota sorridente demais. Ela exalava umcheiro que denunciava o uso de substâncias não autorizadas.

O garoto ficou vermelho. Em vez de olhá-la com afeto, simplesmente desviou o olhar e fingiubrincar com um graveto na terra. Qual o problema dele? Será que não havia notado o sangue? Será que não havianotado o significado daquilo? A vontade dela era de gritar que não, que na noite passada havia perdido a

virgindade com o nerd da turma, mas a coragem estava longe. Além disso, ainda não sabia se ele eraapenas tímido ou se estava se sentindo pressionado.

– Não! – respondeu, seca. – Eu já fui beijada.A roda soltou interjeições na cara dela.– Mas já perdeu a virgindade? – complementou a garota.Os burburinhos diminuíram, porque aquela seria uma resposta mais interessante.Sophie demorou um pouco a responder. Percebeu que o garoto parou de brincar com o graveto

quando ouviu a pergunta e que ele arriscou levantar os olhos para observá-la. Ao notar que ele não iamais reagir, ela resolveu responder:

– Você vai precisar girar a garrafa novamente e, quem sabe, ter um pouco mais de sorte paradescobrir.

O estardalhaço foi geral. A garota que havia perguntado teve seu momento de vergonha e o jogocontinuou.

Sophie lembrava-se de outras perguntas, momentos constrangedores, baderna e respostas. Até que agarrafa apontou para ela novamente e, dessa vez, para evitar a questão, pediu por desafio.

– Desafio você a beijar o garoto mais gato da roda.As interjeições aumentaram em proporções estratosféricas. Alguns riam, outros se gabavam, mas

havia quem se encolhesse por medo ou nojo de ser escolhido. E foi naquele momento que ela entendeu

que sua primeira vez não havia sido delicada como imaginara.– Coitado do cara! – exclamou o nerd, até então calado, saindo da roda e indo em direção à mesa

de comida.O clima ficou tenso.Sophie não acreditou no que ouviu. Tinha mesmo sido humilhada publicamente pelo garoto que

acabara de tirar sua virgindade? Aquilo lhe partiu o coração. Ela se guardara por anos, esperando porum cantor de rock lindo e famoso. Acabara se contentando com um nerd antissocial como ela, para seresnobada logo após a primeira vez. Mas, tratando-se de um grupo de adolescentes empolgados, logodeixaram o comentário esquisito do garoto de lado e começaram a gritar “beija”. Com ódio em mente,percebeu a oportunidade perfeita para dar o troco. O garoto voltou para a roda quando Sophieterminava de lascar um beijão no melhor amigo dele, um gordinho de boné e poças de suor na camiseta

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justa demais.Como saldo final, ela não apenas passou o resto do acampamento no quarto, envergonhada e com

medo de ter milagrosamente engravidado, como também nunca mais falou com o garoto. Claro que foiazucrinada por ter escolhido o mais feio da roda, mas isso, em parte, ela merecia.

Até aquele dia, ela não conseguia entender: por que não se vingara beijando o cara realmente maisgato da roda? Teria magoado o garoto vê-la beijando o melhor amigo após terem passado uma noitejuntos?

Relembrando todo o episódio, Sophie constatou que não estava preparada para repetir aexperiência. Ficava sem jeito só de pensar no assunto.

Contudo, sentiu que devia retornar a ligação da amiga.– O documento do Rick não me interessa – soltou quando a amiga atendeu, confusa. – Mas se for

para parar de me atazanar até aceito ir com você naquela festa de que estavam falando na escola.Anna chegou a tossir de surpresa.– Sério mesmo? Que maravilha! Todo mundo vai ficar superfeliz!– Ahã! Com certeza ficarão...– E já falei pra você parar com a voz de sonsa!Sophie riu.– Se você ficou feliz, é isso o que importa...E era mesmo.

Laura ficou impressionada quando viu a filha deixar o quarto. Primeiro porque ela estava saindo parauma festa em um fim de semana. Segundo por vê-la de saia. Isso mesmo: ela usava saia preta de pregasacima do joelho. Desde que voltara de um acampamento havia alguns anos, a filha abandonara saias evestidos. Por isso, vê-la usando algo assim novamente era motivo para comemorar.

Complementando o look, Sophie vestia a tradicional camisa de banda com alças largas, mas, aomenos, combinava com o visual. Ainda usava meias três-quartos pretas e botas de cano baixo vermelhaspara combinar com o símbolo da banda.

– Quem é o sortudo? – perguntou Laura.– Por que sempre precisa haver um sortudo?– É por essas que tenho orgulho de você, minha filha – intrometeu-se o pai. – Vamos, vou lhe dar

uma carona.Ao chegar ao local da festa, ela percebeu que o clube na verdade era quase uma mansão. Sendo

menores de idade, Sophie e Anna não podiam frequentar boates, e clubes como aquele eram perfeitospara comemorações. O evento fora organizado por Angélica, uma garota popular do colégio. Mesmosendo de anos escolares diferentes, ela e Anna eram comparadas constantemente pelos alunos, masfingiam não se importar. As duas mantinham certo respeito uma pela outra; não eram melhores amigasnem inimigas, o que já era algo bom.

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Sophie achava a situação estranha. Nem dois minutos na festa e já estava arrependida. Aquele tipode pessoa era quem ela normalmente condenava.

Ou quem a condenava.Entrou naquele lugar luxuoso com uma bota de três anos e apenas lápis preto no olho, o que ali era

o mesmo que berrar: sem maquiagem. Sentia-se a mais cafona da festa. Por algum motivo, naquela noitea situação a incomodava, e ela percebia que queria deixar o episódio da virgindade para trás. Quemsabe não podia conhecer um garoto descolado no local. Ela tinha certeza de que não seria Rick, masexistiam outros.

– Você veio! – celebrou Anna ao encontrá-la perdida na entrada.– Eu disse que vinha – respondeu, encolhendo os ombros.– Você diz muitas coisas, senhorita resolvi-ser-gostosa-hoje!Sophie se engasgou com a expressão da amiga. Ficava feliz de alegrar a noite de alguém.– Você sabe que, no dia em que eu for considerada gostosa, Sofia Vergara vai ser considerada gorda,

certo?Dessa vez, Sophie viu a amiga engasgar com a bebida.– Por Prada! – exclamou enquanto tentava respirar. – Nunca diga a palavra ‘gorda’ perto do nome

da Sofia.– É ‘nome santo’ também? – cutucou Sophie.– Há-há, muito engraçado! – zombou Anna, puxando-a para o centro da pista de dança.Anna e sua mania de dançar de forma provocante em festas comentadas. A ruiva já havia

testemunhado algumas performances, sempre se sentindo constrangida. Ela era mais ligada ao canto, edança não era tanto sua praia, ainda mais em público. Mas não havia uma festa em que a morena nãoroubasse a atenção, balançando o corpo para os lados de modo envolvente e elevando os braçosconforme o ritmo. Jogava as madeixas para os lados ao toque das batidas, enquanto tentava engajar aamiga na sintonia.

Ela vai mesmo me fazer dançar aqui?, se perguntava Sophie.

Conhecia a amiga: quando queria alguma coisa, ela conseguia. E foi no refrão de uma versãoremixada de “Royals” que a magrela também começou a jogar o corpo. Outra ironia do destino. Claroque precisaria dançar justo aquela música. Mas o efeito da dança e da melodia parecia encher o seuespírito. Ouvia a letra e a deixava entrar na alma, murmurando que nunca seria da realeza naquelemundo.

Quando abria os olhos entre um movimento e outro, via a amiga sorrir, feliz por vê-la se soltar.– Isso que dá colocar roupa de gostosa! – gritou Anna, na virada da música.A ruiva só pôde rir.– Agora vem, que o Rick está esperando...– Eu não quero nada com ele, Anna – retrucou, tentando desacelerar a amiga, que a arrastava pelo

local. – E não estou sendo sonsa!Enquanto andavam, Sophie via apenas vultos e flashes na paisagem escura com luzes coloridas.

Reconhecia poucos rostos. Quando cruzava o olhar com algum conhecido, tentava desviá-lo para não

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ter que lidar com o fato de que estava com as coxas à mostra e ainda dançava como uma maluca. Mas,no momento em que viu o olhar um pouco malicioso de um rapaz desconhecido, começou a acreditarno poder da noite. Talvez estivesse mesmo gostosa.

– É sério! Quando Rick vir você desse jeito nem vai se lembrar da antiga Sophie – insistiu a amiga.Antiga Sophie? Aquilo a intrigou. Havia mudado tanto assim só porque estava fora de casa em uma

festa? Grande coisa! Já tinha frequentado outras no passado. Havia ficado poucos minutos nelas, estácerto, mas ao menos ficaria mais tempo naquela.

Engano seu.Quando chegaram à parte externa do casarão do clube, encontraram uma cena não esperada. Ela viu

o rosto suado da amiga explodir de raiva e não entendia o porquê dessa reação. Algo tinha dado errado.– Poxa, Ricardo! Eu disse pra você colaborar no lance da Sophie hoje! – esbravejou Anna ao

encontrar Rick aos beijos com Angélica na beirada da piscina.Muitos pararam de dançar para acompanhar a cena. A ruiva não sabia onde enfiar a cara. Lance da

Sophie? Desde quando ela fazia parte de um lance?– Caramba, Anna! Sei lá. Acontece – ele tentou se explicar morrendo de medo da popular. – Você

sabe que nunca ia rolar com a Sophie, com todo o respeito.A última frase foi dita olhando para ela.Sentia-se humilhada. Toda a adrenalina trazida pela breve dança havia desaparecido.– Claro – respondeu Sophie secamente.Não sabia qual era a pior parte da história. Gastar seu tempo em uma festa em que não era bem-

vinda, aguentar o frio batendo nas pernas para agradar a amiga – e quem sabe algum menino – ou verseu suposto pretendente atracado com a loira mais escultural do colégio. Provavelmente, a descobertade que a amiga planejava forçar o rapaz a ficar com ela era pior. Sophie perguntava-se como Annatinha conseguido ser tão baixa.

– O que está acontecendo aqui? – questionou Angélica, colocando as mãos na cintura.A ruiva não entendia por que garotas como aquela tinham essa mania.– Baby, a Anna é uma das minhas melhores amigas. Ela me pediu pra dar atenção hoje pra amiga

dela e, quem sabe, ficar com ela, e eu tinha concordado.Pra amiga dela, pensou Sophie, relembrando quantos dias havia passado ao lado dele nos intervalos.

– Eu não acredito que você fez isso comigo! – vociferou Anna, chamando mais atenção indesejada.– Eu é que não acredito! – exclamou Sophie, envergonhada.Ao escutar aquilo, a melhor amiga sentiu as palavras perfurando seu espírito e encontrando o

coração, que sangrava. Conhecia a ruiva. Sabia como Sophie guardava mágoa e como já não confiavanas pessoas. Anna percebeu que, com aquele escândalo, acabava o último pingo de autoestima da garotaao seu lado. E também o que restava de uma longa amizade.

– Não era pra isso acontecer – sussurrou a morena com medo de cada palavra.– Talvez seja melhor que tenha acontecido.Preparando-se para sair da festa, Sophie foi impedida por Angélica, que a segurou pelo braço.

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– Espera aí! Você veio mesmo a uma festa minha e pensou que ficaria com meu namorado?

Sophie teve que suspirar. Como explicaria qualquer coisa para uma menina como aquela?– Eu não pensei nada, Angélica. Não sabia de 'namorado' algum.As reações foram diversas, e a festa parou. Anna segurava o choro entalado na garganta, percebendo

a humilhação que fazia a amiga passar, e Sophie olhava para todos vendo apenas a imensidão cinza e ascriaturas do pântano ao redor.

– A sonsa nem deveria estar aqui – completou, debochando de si própria.– Não se chame assim – retrucou Anna, não conseguindo mais segurar as lágrimas.Naquele momento, rompia-se uma amizade de anos. Anna sabia que, a partir dali, nada mais seria

igual.– Quem sabe agora ela não se mata de tanto vomitar – finalizou Angélica.Todos na festa riram. Anna apenas afundou o rosto no ombro do namorado recém-chegado, e

Sophie sentiu pena. Pena daquelas pessoas. Pena de si própria. Pena de não se sentir como eles.Também tristeza.E solidão.Com o estômago ardendo, os nós dos dedos latejando de tanto apertá-los, os olhos coçando e com

vontade de chorar, ela saiu da festa, de um mundo do qual não fazia parte.Por que não posso ser feliz?Por que não posso ser feliz em algum lugar?

Naquela noite, ao se jogar na cama com o rosto manchado e o corpo tenso, aconteceu a mudança. Emum instante, ela chorava de vergonha. No outro, não se encontrava mais em seu quarto.

Fora parar em outro lugar.

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S

3

entiu-se sugada. Algo difícil de imaginar. Como alguém poderia ter essa sensação? O sentimentoestranho dominava seu corpo e ela percebeu que estava em uma superfície macia e molhada. Não

parecia sua cama, então pensou que poderiam ter colocado alguma substância em seu copo. Improvável.Ela não havia bebido na festa. A explicação devia ser outra. Será que estava dormindo? Mesmo assim,seria um sono diferente, porque nunca se sentira sugada antes e não parecia estar no Sonhar. Quandofinalmente focalizou o ambiente, viu algumas copas de árvores cobrindo um céu azul pincelado pelosefeitos da luz do sol. Uma visão relativamente normal no seu mundo. Só que nele não havia árvores comfolhas douradas em caules negros como carvão, e era exatamente o que via: uma floresta dourada eescura.

Ok, podia não parecer, mas ela estava dormindo.– Fiquei louca de vez – comentou Sophie em voz alta, notando-se deitada em um gramado.Ouviu um murmúrio coletivo. Escutou o vocábulo “vez” repetido por diversas vozes em um único

tom, com o final prolongado, como em um coral.Deve ser só eco, pensou.

Entretanto, encontrava-se em uma floresta, não em uma caverna. Além disso, eco repete a palavra,sem cantá-la. Caramba! Alguém cantava ao seu lado algo dito por ela. Quem seria? Sonhava com algumconhecido? Aquilo tudo era estranho, e ela queria acordar. Só que, ainda assim, não parecia estardormindo.

Resolveu se sentar e sentiu-se zonza. Talvez por ter passado as últimas horas chorando em seuquarto pela humilhação e traição sofridas. Devia ter capotado de cansaço e dor, sem sequer tirar asbotas. No caminho de volta para casa, não quisera compartilhar com o pai o acontecido, e ele não apressionou. No quarto, a fim de abafar o choro, havia colocado System of a Down para tocar, enquantose acabava em lágrimas agarrada ao travesseiro. Provavelmente a música a conduzira ao estado desonolência sem perceber. Necessitava relaxar. Aquilo tinha que ser um sonho lúcido. Já lera sobre essetipo de coisa, parecia normal.

Tonta e com dor de cabeça, notou um chacoalhar ao redor. Outro som esquisito além do coromeloso repetindo suas palavras. Pareciam sereias em um canto sedutor e, ao mesmo tempo,aterrorizante. As flores multicoloridas ao redor das árvores douradas dançavam de um lado para o outro

em um embalar próprio. O balançar não era produzido pelo vento, mas pelo caule que as vibrava deacordo com o som vindo de dentro delas.

Aquilo era apavorante.

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Não conseguia ver bocas se mexendo nem nada do gênero, mas tinha cem por cento de certeza deque a flores cantavam, sussurravam ou sabe-se lá o nome daquilo. Se visse tulipas com lábios carnudos

cantando, diria estar revivendo algum filme da Disney ou ter entrado de vez no País das Maravilhas. Sóque não era o caso. Após longos minutos encarando o movimento e percebendo o som, ouviu cochichospropagando-se e o eco cessou. A dança parecia diferente. A impressão era que aqueles seresconversavam, e os pelos de Sophie se arrepiaram com a cena.

– Nossa Senhora, preciso realmente dormir – lamentou.E o coro recomeçou. Dessa vez, murmurando “ir, ir, ir” e fazendo uma onda que indicava um

caminho comprido, cruzando diversas árvores. Estariam as flores lhe apontando uma direção?Putz! Eu devo estar mesmo drogada, pensou a jovem. Contudo, nada tirava de sua cabeça que não era

um sonho ou efeito alucinógeno. Lembrava-se de se sentir sugada, como se tivesse sido levada para outradimensão por seu último pedido.

Por que não posso ser feliz em algum lugar?A garota gelou. Será que seus apelos foram atendidos? Alguém no Cosmos a ouvia? Não tinha

respostas. Em vez de relaxar, sua mente ficava ainda mais pesada com todo o mistério.Ficar sentada naquele local tão bonito quanto sinistro não adiantaria, por isso resolveu ouvir o

conselho das estranhas flores sussurrantes, seguindo o caminho indicado. Andou pelo que pareceramhoras e percebeu que estava faminta, algo novo pra variar.

Com a minha sorte, é bem capaz de eu cruzar com uma casa de doces de uma bruxa canibal...Começou a ficar cansada daquele local, das cores vivas demais para seu gosto e do calor excessivo.

Foi aí que percebeu. Não estava mais vestindo as meias longas, as botas vermelhas, a saia ou a blusa. Aoolhar para baixo, notou uma roupa que nunca usaria e voltou a achar tudo bizarro. Foi como se tudo

começasse a incomodá-la, pinicando ou machucando.Mesmo assim, não podia negar que estava linda.Usava um vestido assimétrico. O colo estava desnudo, algo raríssimo para ela, e vestia um espartilho

negro com decote de coração. Era bem justo, bordado com pequenas joias escuras, e ostentava umtrançado na frente e nas laterais. O cetim entrelaçado finalizava em um laço, dando um toque angelicalà peça. Uma longa saia de cetim e tule salmão com diversas camadas ligava-se ao espartilho. A caudaarredondada era longa e arrastava-se pelo gramado, e Sophie realmente não entendia como não haviapisado nela ao se levantar. Já na parte frontal, para seu total desespero, a saia era bem curta, cobriamenos da metade da coxa. Com toda aquela quantidade de tule o vestido parecia comportado, mesmosendo ainda algo bem escandaloso.

O tecido salmão drapeado era tão vivo e mágico que Sophie começava a se acostumar com o visual.Nos pés, usava uma pequena bota de couro da mesma tonalidade da saia e rezou para o salto fino nãoficar preso em nenhum pedaço de terra. Contudo, além do vestido fora de época, algo mais aincomodava. Levou as mãos à cabeça e tomou um susto.

Usava um chapéu.Pôde sentir o mesmo material do espartilho em formato de cartola. Era muito pequena, só a

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percebera porque o peso vinha de apenas um lado do couro cabeludo. Um pequeno acessório preso aoseu cabelo ruivo. Nunca havia usado um chapéu antes, ainda mais um minúsculo que nem sequer serviapara proteger do sol. Quando tateou a frente do objeto, sentiu um material metálico com três pontas.Tentou identificá-lo, mas foi impossível sem o uso de um espelho. Não estragaria o arranjo apenas porcuriosidade. Então, ainda com fome, resolveu andar mais rápido pela floresta obscura e mágica atrás dealguma explicação.

Já podia considerar aquele o sonho mais realista de sua vida.

Quando a floresta ficou para trás, Sophie se deu conta de que não havia visto outro ser vivo além dasplantas. Nenhuma criatura do reino animal. Nem mesmo borboletas, mosquitos ou coelhos. Nada.Naquele lugar, a princípio havia apenas árvores e diversos tipos de flores, de rosas a gardênias, comdiferentes formatos, cores e fragrâncias exóticas. Muitas folhas e o que pareciam bolhas voavam pelolocal, deixando-a confusa, mas fora isso continuava sem ver nada. Sentia-se só naquela imensidão. Se aomenos um pássaro atravessasse seu caminho, teria alguma companhia.

Ao chegar ao final daquela região dourada, percebeu: estava no topo de uma montanha.Isso mesmo: encontrava-se no alto de um monte elevado de cume bem largo e base extensa. Ao olhar

para baixo, uma névoa densa a impediu de ver a que altura estava. As nuvens pareciam pintadas poraquarela, dando um toque angelical à paisagem. Do céu brotava uma espécie de cachoeira que se perdianas brumas espessas. Diante da visão panorâmica, Sophie observou diversos outros cumes com váriasflorestas exibindo tons dourados e percebeu que devia estar no lugar mais bonito do mundo.

Os topos de ouro e os pequenos pontos coloridos nas bases se movimentavam em articulaçõesgraciosas. O brilho do sol refletia em algumas folhas e fachos de luz cintilante espalhavam-se pelo ar,revelando nuvens de poeira e bolhas. Até a névoa abaixo parecia de algodão. A base da cachoeiradespertou a curiosidade de Sophie. Como a jovem havia sido capaz de criar um lugar como aquele?Acostumada a sempre enxergar o mundo cinza, será que agora construíra outro, colorido?

Será que fui eu mesma quem criou isso?Sophie então percebeu. Tinha que ser. Até mesmo seu vestuário era um reflexo desse pensamento. Em

seu dia a dia, nunca mostraria o colo, por medo de ser julgada pelos outros. Ao olhar para baixo,sentia-se bem, e a pele branca parecia brilhar. Também não usaria microssaias e cores claras, muitomenos tops justos, e no entanto aquele agora parecia o visual perfeito. Não se importava. Se ninguémestivesse ali, poderia ser quem ela quisesse. Até mesmo uma maluca de minicartola passeando por umafloresta de ouro no cume de uma montanha.

Eu posso ser feliz aqui.Um sorriso se formou e cresceu a ponto de escancarar os dentes. Ela estava realmente feliz. E, pelo

gosto do batom na boca, também usava maquiagem. Tinha conseguido esse milagre? Não queria maisacordar. Mesmo com fome, a alegria a fez querer explorar mais. Se fosse de fato um sonho, poderia

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ignorar as próprias necessidades. Sabia que acordaria e correria para a cozinha. A mãe ficaria feliz emais tranquila porque encontraria a filha com um humor melhor.

No topo daquele mundo fantástico, quase não se lembrava de família, escola, amigos, inimigos etraições. Só pensava em beleza e liberdade.

Sentia-se dona do mundo.

Enquanto observava as plantas ao redor com sua melodia sussurrada, ouviu um barulho distinto porentre as árvores. Existia algo a mais naquela floresta. Sophie buscou o local de onde vinha o som,andando pela beirada da montanha até um ponto em que havia um ninho de palha gigantesco, dentrodo qual viu algo parecido com um pássaro de enormes proporções.

No entanto, não podia ser uma ave. Era quase um filhote de dinossauro de tão grande. Um condor-dos-andes estava pousado exatamente no centro do ninho monstruoso. Podia definir aquele tipo depássaro por um motivo bizarro: na única vez em que deixara a TV sintonizada no History Channelenquanto tentava dormir, eles exibiam um documentário sobre pássaros gigantes. Lembrava-se de teradormecido com a face enrugada do bicho povoando sua mente. Mais uma vez aquilo a assustou.

Ah, meu Deus! Eu realmente estou criando tudo isso, não é?Encarou a criatura e as palpitações aumentaram. Lembrava-se de que ele era carnívoro, preferindo

ratos, esquilos, coiotes e até veados mortos. Com todo aquele tule, ela devia parecer uma caça apetitosa,mesmo não tendo muita carne a oferecer. Seu alerta de perigo interno foi disparado. O animal devia teruns dois metros de altura por seis de envergadura e, em meio à plumagem preta, o colar e as partessuperiores das asas eram brancos. O bico curvado apresentava uma carúncula ao longo da face,lembrando um urubu. As longas patas eram acinzentadas e enrugadas, com três garras afiadas.

Apesar de o animal ser assustador, no fundo teve a esperança de que ele se tornasse uma companhia.Se, por um lado, ele exibia uma aparência intimidadora, por outro, Sophie sabia um pouco sobre seushábitos e, vendo-o de perto, não sentia agressividade alguma no comportamento do bicho. Havia certatranquilidade no olhar animalesco e em sua posição relaxada. Percebendo a possibilidade de ele não seruma ameaça, até cogitou que o bicho pudesse levá-la para debaixo da névoa. A curiosidade a haviatomado. Não ficaria em paz se não tentasse explorar mais aquele mundo. Entretanto, sabia que era umasituação complicada. Montar na ave não seria fácil, sem contar que o condor era considerado omensageiro de bons e maus presságios, e havia até o mito de que ele era o responsável pelo nascer do sol.

Aproximou-se da fera, ainda mantendo o olhar fixo. Se o desviasse, poderia mostrar fraqueza e virarcarcaça. Alguns passos à frente, Sophie resolveu fazer uma reverência ao gigante, abaixando a cabeça. Omundo animal era muito parecido com o humano, e ela queria mostrar respeito ao condor.

– Pode me levar daqui?O bicho não se moveu. Continuava a encará-la com os pequenos olhos calmos escondidos pelas

dobras do rosto, enquanto ela expunha o pescoço frágil.– Por favor, nobre criatura...Sophie teve medo naquele momento. Sentir-se analisada nunca havia sido seu forte. O pássaro era

como os colegas dela. Mas algo diferente do esperado aconteceu: o sol brilhou mais forte e reluziu nos

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cabelos cacheados da menina. O feixe de luz fez a ave inquietar-se. Ao contrário de Sophie, pareciaentender a situação.

Por fim, abriu as asas mostrando sua imensidão. O peitoral quase tocava o solo quando a ruivasubiu no animal, procurando não puxar com força as penas. Sentando-se atrás do colar de penugembranca, Sophie verificou se ele aguentaria seu peso e, pela envergadura, notou que sim. Era incrível!Estava prestes a voar.

Então, o condor deu um pulo...E ela parou de respirar.

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um primeiro momento, pensou que ia morrer. Tudo foi intenso. Nos segundos seguintes, não seimportava com mais nada – queria realmente ver o que havia debaixo da imensidão branca.

O pássaro, ao perceber que ela se encontrava segura, tomou impulso e saltou do alto da montanha.Subiram um pouco em um voo bambo e, quando o corpo do animal embicou para baixo, ela levou umsusto. A ave de súbito fechou as asas e deixou-se cair em uma velocidade absurda. Surpresa, Sophiequase não conseguiu se segurar à plumagem. Foram dois minutos sem pensar em inalar oxigênio,entretanto pareceram cinco pela câmera lenta mental. Viu borrões e sentiu o estômago parar na boca.Queria vomitar e até isso seria impossível.

Só então percebeu sua idiotice. Estava em um sonho. Não morreria na queda. O pássaro não erareal, nem o ambiente ao redor. Precisava acalmar-se e relaxar para, quem sabe, entrar em um estado zene parar de sentir tudo daquele sonho com tanta intensidade. Quando se acalmou, já afrouxando asmãos vermelhas de tanto apertar as penas do bicho, observou o cenário.

E voltou a respirar.Se havia achado a floresta mágica e assustadora, não tinha mais adjetivos para explicar o que via ali.

Alguns metros acima do chão, pôde ver o que a névoa escondia. O lugar revelava as mesmas árvoresdouradas espalhadas pela região, formando grandes letras do alfabeto. Procurou lógica em meio a suaexperiência sobrenatural e soube que se sentiria uma idiota quando acordasse. Mesmo que parecesseinfantil, ela ainda tentava identificar algumas dessas letras. Conseguiu reconhecer apenas as letras “T” e“U”. Havia outras, mas o pássaro inclinou o corpo na desaceleração e ela bambeou, preocupadanovamente em se manter viva.

Como se eu fosse morrer em um sonho.Do alto, notou também um espaço púrpura entre as árvores. Pelo formato parecia um lago. Seria

possível existir água violeta naquele lugar? Viu outras formas como aquela ao voar para áreas mais à

frente, contudo a primeira aparentava ser a maior.Também percebeu movimentação na terra.A falta de habitantes no alto da montanha não se repetia ali. Visualizou pequenos pontos em

movimento, mas, pela distância do solo, não os distinguia com nitidez. Sua vontade era descer econversar com aquelas pessoas. Quase perdera o medo de se comunicar com estranhos. Sentia-se maiscorajosa após andar sozinha por uma floresta apavorante com trilha sonora especial e viajarperigosamente nas costas daquela montaria alada. A ave sobrevoou outros lagos de águas púrpuras eletras estranhas formadas por copas douradas. Sophie jurava que se repetiam. Não pareciam ser todas

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iguais, e ainda não conseguia prestar atenção suficiente para desvendá-las.Os pontos lá em baixo continuavam a se movimentar na mesma direção que a ave percorria. Pensou

se estariam surpresos de ver uma pessoa desconhecida naquele reino mágico. Mal sabiam que ela era acriadora de tudo aquilo.

Ficariam felizes de saber que são fictícios?Sophie começava a censurar seus pensamentos. Ela, uma pessoa que conhecia o bullying, já

começava a praticá-lo com desconhecidos só por ter o poder de decidir as regras daquele lugar.Depois de alguns quilômetros, chegaram ao centro da civilização. Observou cerca de cinquenta

casinhas de dois andares pequenas e coloridas com telhados pontiagudos de madeira. Algumasmoradias mantinham um tom mais rosado, outras eram douradas, anis, verde-esmeralda, escarlates ealaranjadas. Pareciam um arco-íris ao redor da maior construção de todas: o castelo.

A arquitetura de contos de fadas impressionava. Sete andares se acoplavam a três torres no formatode foguetes. Sophie se concentrou nas estátuas de pedra cinzenta diante do monumento: dois dragõestalhados se encaravam, guardando a porta de entrada. Tinham uns quatro metros de altura e suas asasocupavam boa parte do espaço. No portão de ferro, com quase a mesma altura, diversas fadas haviamsido esculpidas no metal. Estava fechado, entretanto a ruiva jurava ter visto um reflexo de luz passarpela sacada acima da entrada. Após o choque inicial, observou o resto do castelo. Ao contrário dacidade, a construção não trazia cores fortes e chamativas. Em sua maior parte, era composta de paredesbrancas quase gélidas em tom aquarelado. Ela não entendia como eles conseguiam mantê-lasimpecavelmente limpas daquele jeito.

Sua idiota, é um sonho, é claro que conseguem!O contraste destacava as cores. A madeira amarronzada, as paredes brancas, o portão escuro e os

dragões de pedra davam certo glamour ao aglomerado de casas coloridas, que combinavam com asflores murmurantes. Era justamente o encontro daqueles mundos diferentes que a deixava maisintrigada. Para complementar, no topo da torre central, em vez de uma janela como nas outras duas,havia uma nota musical escura, do mesmo material do portão. Era um castelo perfeito para caixinhasde músicas. Caixinhas como a que Sophie ganhara dos pais quando a ouviram cantar pela primeira vez.

– É, meu amigo – comentou ela para o pássaro –, parece que também criei meu castelo ideal.O bicho soltou uma nota melódica alta, demonstrando concordar. A garota acariciou-o no topo da

cabeça.No instante seguinte, sentiu uma onda de calor invadi-la como se estivesse próxima de uma fogueira.

Ao olhar para o lado, assustada, percebeu labaredas de quase dois metros passarem a poucoscentímetros da sua pele. O susto e o incômodo da sensação de queimação fizeram o condor se inclinarrapidamente para a direita, jogando outra vez o corpo rumo ao chão. Sophie gritou desesperada.Quando voltaram à posição de voo, ela entendeu o que havia acontecido: uma fênix passara por eles.

Uma fênix! O pássaro da mitologia grega que renasce das próprias cinzas. Assim que a ave pousoualguns metros à frente do portão do castelo, as portas se abriram e o condor, procurando manterequilíbrio, começou a descer ao encontro da multidão que se reunia no local. O estômago da garotarevirou, e ela finalmente voltou a sentir seu medo habitual. Chegou a um ponto em que não sabia se

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conseguiria controlar seu sonho. Quando se aproximaram do solo, Sophie notou diversas pessoas comroupas parecidas com a dela e minicartolas combinando com o visual. Todos usavam trajes formais emum contraste de tons suaves e dramáticos, mas nenhum daqueles cidadãos se parecia com as pessoas queconhecia. Ela não sabia se era por causa das roupas bufantes ou das diversas cartolas escuras, mas haviaalgo diferente neles.

Além disso, ela se sentia querida.Aquilo definitivamente não era natural.Após pousarem na passarela principal do castelo, Sophie pôde enfim descer do pássaro e o

reverenciou mais uma vez. Ele devia ter reconhecido nela um bom presságio. Os habitantes ainda nãohaviam chegado perto o suficiente. Imaginou que não seria atacada, afinal aquele era o seu sonho. Eles

pareciam saber quem ela era, como se conhecessem seu interior. Se conheciam seus mais obscurossegredos, sabiam que não havia nada a temer. Ela era apenas uma garota como todas as outras.

Uma jovem com poucos amigos e uma grande criatividade.Quando a criatura flamejante à frente abriu as asas e apontou o longo bico para o céu, o som das

flores ao redor aumentou de volume. Sophie caminhou lentamente pelos tijolos claros, tentando ver sealguém apareceria no portão principal. Na verdade, não sabia o que poderia acontecer a partir daquelemomento.

De repente, algumas sombras surgiram, seguidas por uma luz. Um flash veio do alto, na sacadaprincipal. Uma jovem um pouco mais velha do que Sophie apareceu ao centro, brilhando como um serangelical. Os cabelos loiros eram longos e cacheados como os dela, mas um pouco mais soltos, e osolhos castanhos combinavam com os telhados da cidade. Havia poder naquele olhar repleto desegredos. Para sua surpresa, da cartola da garota saía um par de asas e a ruiva notou que em seu punhoesquerdo havia uma marca, talvez uma tatuagem, de uma caneta tinteiro de bico de pena. Achou aimagem interessante e teve vontade de perguntar o que significava.

Em seguida, Sophie reparou no homem que caminhava ao lado da moça, com um andar imponente,e a observava com orgulho. A cartola dele era tradicional, como a de todos os homens presentes, masapresentava um grande “M” estilizado na lateral. Usava um terno verde-escuro e gravata-borboletapreta, combinando com o acessório da cabeça. O sorriso era verdadeiro, e a confiança que ele lhepassava a fez respirar com mais calma.

Outra criatura vinha em sua direção. Como tudo naquele lugar, parecia mágica. Era um gato detom levemente amarronzado com a face escura e uma mancha parecendo uma máscara borrada de pretodas bochechas às orelhas. O mais incrível era que o animal andava apenas com as patas traseiras, agindocomo se fosse humano. Ele também usava uma cartola preta, gravata-borboleta e manejava um cetrocom a letra “M” na ponta, combinando com o figurino. Sophie pôde jurar que viu o gato estalar osdedos no ritmo da música das flores ao seu redor e ouviu um som grave sair de seu miado baixo.

Por fim, enxergou a senhora que vinha mais atrás. Ao vislumbrar os cabelos curtos da mulher,percebeu algo familiar nela. Uma lágrima escorreu involuntariamente. Observou as sobrancelhas claras,o nariz fino e os braços rechonchudos. Muito familiar. O sorriso relaxado e as unhas vermelhas. Asabedoria antiga que carregava em sua energia. Aquela mulher era especial. Sophie nunca a vira.

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Contudo, sentiu que era um reencontro. Um acontecimento mágico. Quando os quatro pararam à suafrente, escoltados pelos pássaros, notou a diferença na minicartola da senhora. Nela, havia uma coroade três pontas.

Lembrou-se de como era a sua e sorriu.Estava em casa.

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la acordou de supetão.Ouviu batidas secas na porta do quarto, o que atrapalhou seu sono. Sentia como se tivesse

dormido por um dia inteiro, mas eram apenas cinco horas da manhã. O horário de sempre.Por que foram me acordar logo agora?, perguntou-se enquanto tentava localizar o copo d’água na

cabeceira.Não entendia como tinham sido capazes de acordá-la mesmo sabendo que tivera uma noite terrível.

Encontrar os colegas da escola era o que menos queria naquele dia. Nem sabia como reagiria ao ver aex-melhor amiga. Ainda sentia raiva pelo modo como fora tratada e desejava nunca mais ter que ir aocolégio. Então, ela se lembrou da festa. Havia sido em um sábado. Ora, se ela tinha saído no sábado,então era domingo, e não precisava acordar às cinco da manhã. Notou, em seguida, o “pm” ao lado dohorário e pulou da cama.

Tinha dormido quase o dia todo.Ouviu outras batidas mais violentas, quase derrubando a porta frágil. Um toc toc irritante de

pesadelo do mundo real. Os pais deviam estar preocupados com seu sumiço. Ela não costumava dormirdireto por muitas horas. Gostava de dormir, mas curtia mais tirar a soneca da tarde do que estender osono da madrugada. Depois de voltar chateada da festa, é possível que sua permanência no quarto atéaquela hora tivesse angustiado o casal.

Só quando alguém tentou girar a maçaneta da porta resolveu responder aos apelos.– Pode entrar – tentou dizer com a voz travada, enquanto levava a água até a boca seca.Viu a mãe entrar cabisbaixa, com os olhos marejados e ombros encolhidos. Sophie conseguiu sentir

o clima de enterro. Realmente, pregara uma peça na família e sentiu-se culpada por isso.– Filha, você está há muito tempo neste quarto – começou ela, sentando-se na beirada da cama. –

Está quase no horário do jantar! Não pode ficar perdendo refeições assim.A filha tentou rir.– Não vou emagrecer por ter perdido um almoço, mãe.A mulher fechou ainda mais a expressão.– Esse não é o motivo desta conversa!– Eu sei – respondeu a garota, tentando se redimir. – Foi mal. Não escutei você chamar. Tive um

sonho estranho e, aparentemente, longo demais.– Pelo visto, sonhou muito rápido também, já que nem teve tempo de tirar a roupa e os sapatos.Sophie notou que ainda estava vestida como na noite anterior. Devia mesmo ter dormido exausta de

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tanto chorar e, pelo olhar da mãe, precisaria lavar as roupas de cama sozinha.– Fico feliz que tenha achado sua caixinha de música – comentou Laura, interrompendo os

pensamentos da filha. A mãe pegou o objeto com uma miniatura de castelo e deu corda.Uma música muito semelhante aos sussurros das flores do sonho invadiu o quarto.Como podia recordar tantos detalhes? Por que a caixinha estava em sua cabeceira? Não se lembrava

de tê-la tirado do armário. O presente a fazia lembrar da expectativa de seus pais em vê-la um diacantar em público. Nunca teria coragem, portanto preferia escondê-la a encará-la todos os dias. Achavamais fácil simplesmente ignorar o problema.

– É. Apareceu do nada.Pelo menos ela não estava mentindo.Tentou relembrar detalhes de quando ficara no quarto sozinha, mas nada veio à mente. Recordou

alguns trechos da música de rock que tocava e dos olhos coçando por causa da maquiagem pretaescorrida. Nada mais.

Life is a waterfall. We’re one in the river and one again after the fall.

A música parecia certa: A vida é uma cachoeira. Nós somos um no rio e um novamente após a queda. A vida

era de fato como uma cachoeira. Somos de um modo antes de uma tragédia e depois voltamos a ser osmesmos. Tinha motivos para ficar o dia todo na cama, contudo havia sonhado com um lugarmaravilhoso onde, por alguns segundos, percebera honestidade no olhar das pessoas. Sentira-se amadaapesar de ser uma estranha. Se, em suas loucas fantasias, era mais querida do que no mundo real, ansiavapor uma nova madrugada e um novo sono.

– Quer conversar? – perguntou Laura.– Estou bem.A mãe suspirou, sabendo que uma coisa ninguém tiraria da filha: ela era forte. Tinha orgulho da

personalidade dela, mas sabia da barreira necessária para ser tão imbatível.Antes de sair do quarto, a mãe lhe passou um recado:– Anna ligou. Parecia querer muito falar com você.– Não quero falar com ela...– Briga entre amigas?– Melhor dizer traição de uma falsa amiga.Era o máximo que Sophie diria.Se Anna estava envolvida no acontecimento da noite anterior, então havia sido mesmo sério. George

passara o dia inteiro bebendo café, nervoso por saber que a filha sofrera mais. Para ele nunca fora fácillidar com o fato de que sua pequena diariamente sentia dor, vergonha ou tristeza. Nenhum pai desejavaaquilo. Vê-la com os olhos tristes havia quebrado seu coração em milhares de pedaços. Ela era preciosademais para todos eles, e tinha vontade de sofrer em seu lugar.

Depois que se alimentou e acalmou um pouco o coração do pai, Sophie resolveu fazer o que sabiamelhor: cantar.

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Pegou o violão velho e deixou Dior segui-la até o jardim para aproveitar os últimos raios de sol.Sabia que o cachorro devia ter sentido sua falta. Costumava passar todas as tardes ao seu lado e,naquele dia, quebrara a tradição. O pequeno lambia seus dedos e latia, pulando de um lado para ooutro, empolgado. Todavia, Sophie não se queixava por ter tido o sonho psicodélico. Estivera em ummundo colorido com pássaros gigantes, pessoas extravagantes e realezas. Queria muito poder continuarnaquela noite do ponto em que parou, mas sonhos não funcionavam assim. Poderia sonhar comqualquer outra coisa. Não conseguiria controlar.

Por que os humanos não podem sonhar com o que querem?, perguntou-se.

Seria possível se conduzir a ter outro desses sonhos, mas de forma lúcida? Pensou em pesquisar maissobre o assunto na internet. Ainda queria acessar as redes sociais para conferir as fofocas da noiteanterior. Sua passagem pela festa renderia muitos posts dos colegas.

– Parece que agora você é meu único companheiro de verdade – disse a ruiva para o cachorro, queainda a perseguia enquanto andava descalça para um ponto afastado da casa.

Sentou-se na grama e encaixou o violão entre as pernas finas, dedilhando algumas notas e pensandono local mágico.

– As letras, as flores, as cores. O nosso muito pouco... – cantou suavemente e sorriu.

O mundo mágico ainda inspiraria diversas canções.

A escuridão tomava conta da janela aberta, trazendo os segredos antigos do céu e uma brisa arrepiante.Sentada na cama com o cabelo preso por um lápis e usando seu velho pijama, Sophie pegou o notebooke respirou fundo antes de encarar a realidade. Dior dormia profundamente em cima de um dos seus pés,alheio aos receios da dona.

Digitou a senha de seu perfil falso de rede social e esperou carregar a página. Com ele seguia todosos alunos de sua classe, inclusive seu perfil verdadeiro quase não utilizado. Não queria chamar atenção.Em sua rede oficial tinha pouquíssimos acessos, e ela mesma sentia certa vergonha de compartilhar seuspensamentos. Na falsa, colocava sátiras engraçadas, ácidas e acompanhava os comentários absurdos dosque a seguiam. Muitos que a ignoravam pessoalmente a acompanhavam naquele perfil e contavamcoisas que nunca diriam perto dela. Se alguém fosse falar sobre o episódio da festa, falaria com seu alterego. Para ela, ainda era uma incógnita a necessidade de manter uma válvula de escape como aquela,afinal odiava aqueles indivíduos. Por outro lado, sentia a necessidade de ser um pouco mais “humana”pelo menos na internet. As pessoas viviam cada vez mais por meio de caracteres em uma tela brilhante.Se naquele mundo virtual pudesse ser alguém, isso valeria algo.

Recordou-se de novo daquele mundo onde se sentia importante, mas a imagem desapareceu em umsegundo ao ver uma foto sua postada por um dos alunos da classe. A legenda dizia: Acabaram com essaesquisita no começo da festa. Existe alguém que ainda fala com ela? #epicfail.

Realmente, tinham acabado com ela. O mais irritante não era a multidão ao redor, o olhar metido

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de Angélica, o babaca do Rick e sua expressão assustada. O pior era ver a vergonha estampada no rostode Anna e notar o quanto aquela menina, considerada uma irmã, parecia se sentir incomodada por servista ao seu lado.

Apesar de normalmente gostar de saber da vida dos outros, agora era ela a envolvida; por issoresolveu desistir de olhar. Se lesse os comentários abaixo da foto e os outros posts, poderia nunca maisvoltar para a escola e, infelizmente, precisava se formar. Somente com um diploma do ensino médiopoderia iniciar a faculdade de música. Se não tivesse coragem para cantar, poderia ao menos trabalharcom produção musical e ser feliz. Conheceria pessoas diferentes como ela. Artistas de alma.

Ao se deslogar da rede social, aproveitou o navegador aberto para pesquisar em um site de busca aquestão do sonho lúcido. Nada lhe tirava o mundo mágico da cabeça. Nem as atitudes mesquinhas dopessoal de sua escola nem a ingratidão da amiga depois de anos de convivência.

Abriu diversos links e começou a ler as páginas a fim de ver se em alguma existia uma fórmulamágica para continuar seu sonho encantado. Era uma pena que aquele lugar não existisse. Preferia viverem uma dimensão como aquela.

Parou de ler por alguns segundos, analisando suas reflexões.E se tivesse ido mesmo parar em outra dimensão? Não se lembrava de ter dormido, e o sonho foi

real demais. Seria possível? Parecia ainda melhor do que ter um sonho lúcido. Contudo, ao continuarlendo, percebeu que talvez tudo fosse empolgação excessiva da sua mente fértil. Outra invenção. Afinal,ela era a garota que via a escola como uma floresta sombria, cheia de criaturas subterrâneas. Nadaanormal em sonhar com uma floresta dourada repleta de habitantes exóticos.

Aprendeu que um sonho lúcido era uma percepção consciente, mantida por uma pessoa durante osonho. Aquilo resultava em uma experiência da qual se teria uma recordação muito clara e nítida,normalmente aparentando controle e capacidade direta sobre as ações. Leu que algumas vezes é possívelcontrolar até o próprio desenrolar do sonho. Sophie sentira tudo isso.

Ela descobriu o termo “onironauta” e concluiu que queria ser uma exploradora de sonhos. Aqueledesejo não parecia ser somente dela, pois muitos psicólogos falavam do tema, assim como escritores eartistas. Tinha lido um livro sobre fadas que descrevia uma dessas experiências. Havia esquecido aquilo.Por meio de vários relatos, descobriu que esses sonhos costumam ser coloridos e animados. Tambémcomentava-se o quanto aquela experiência fantástica mudava a maneira como o indivíduo enxergava omundo real. Parecia uma hiper-realidade, pois detalhes como sua caixinha de música e o fato de tervisto um documentário sobre pássaros ligavam-na àquele sonho. Leu em um dos sites que a pessoa nãosofre danos psicológicos ou físicos por vivenciar algo forte assim, mas que aquilo significava que, dentrodela, algo devia estar machucado. No caso de Sophie, o fato de aquele mundo ser diferente do seu adeixava triste.

Em seguida, decidiu pesquisar sobre como podia realmente ter um sonho lúcido. Talvez fossepossível voltar ao ponto em que seu sonho parou.

Encontrou diversos passos para seguir. Primeiro: precisava perguntar-se várias vezes ao dia se estavasonhando. Várias vezes mesmo. Pela prática, afirmavam que ela se acostumaria a sempre se

autoquestionar e poderia explorar o sonho se fizesse a pergunta no curso de sua duração.

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Agora sim vou ficar esquisita, pensou ao passar para a próxima etapa.

Também precisava manter um diário de sonhos. Aquele parecia ser um dos passos mais importantesde todo o ritual. Sentia-se uma bruxa anotando aquelas instruções mágicas com muito carinho eatenção. O cabelo ficara jogado e bagunçado após ter retirado o lápis a fim de anotar os detalhes.Nada como o fiel papel em um mundo dependente do Word e do bloco de notas. Caso precisasse selembrar de algum dos tópicos, bastava retirar a anotação de dentro da bolsa.

Voltando ao diário, ela deveria mantê-lo ao lado da cama e relatar seu sonho sempre ao acordar.Percebeu que já falhara na primeira experiência. Então, precisaria acordar alguns minutos mais cedoantes de ir para a escola e começaria a usar a chave da gaveta da escrivaninha. Conhecendo a mãecuriosa que tinha, não teria privacidade se o deixasse largado. Caso Laura lesse o conteúdo, acharia quea filha finalmente enlouquecera de verdade. Exagerada como era, buscaria no clube das mães por respostas

para seus dilemas e pediria telefones de psicólogos chiques para tratar a filha. O objetivo de Sophie eraficar longe de qualquer médico capaz de entrar em sua mente.

Ela podia substituir o diário por um gravador, mas sempre evitava gravar a voz em qualquersituação. Lembrava-se da mãe tentando capturar seu canto, e aquilo lhe dava arrepios. Esses métodosajudariam Sophie a memorizar lugares e pessoas constantes. Podia até relatar sobre as três que já atinham marcado: a jovem com aura angelical, o homem de cartola e olhar confiante e a senhora que atocou de forma significativa.

Para sua tristeza, leu que aprenderia os horários de seus sonhos lúcidos. Já tinha uma grande vontadede dormir e tentar praticar, mas talvez existisse um horário certo para aquilo. Para penetrar naquelemundo.

Alguns especialistas acreditavam que um cochilo algumas horas depois de acordar podia setransformar em um sonho lúcido. Ela, porém, não poderia simplesmente cochilar na classe. Mesmo seconseguisse, seria estranho ver pessoas de roupas bufantes enquanto alunos idiotas jogavam bolinhas depapel no seu cabelo.

Outros diziam que esse tipo de sonho era mais fácil no estágio final do sono, o famoso REM.Notou algo preocupante em um dos parágrafos. Se o fenômeno REM fosse frequente no começo dosono, talvez fosse preciso procurar ajuda médica. Ela definitivamente não queria aquilo. Só de falardaquele tema lembrou-se de “Losing My Religion” e murmurou para a tela:

– That’s me in the corner. That’s me in the spotlight. Losing my religion.Um sorriso brotou involuntariamente em seu rosto. Sou eu ali no canto, dizia a música. Sou eu no centro

das atenções. Perdendo minha religião.Focou na leitura do texto detalhista demais e descobriu que os sonhos normalmente duravam

sessenta minutos e costumavam mudar sempre. Contudo, tinha certeza de que aquele havia durado umanoite inteira e parte do dia. Um caso a ser estudado. Então aprendeu uma tática boa, porém incômoda.

– Não sei se vou conseguir cumprir essa, Dior – desabafou para o cachorro jogado na cama, quefazia seu pé ficar cada vez mais dormente.

Precisaria se adaptar à técnica de indução mnemônica de sonhos lúcidos, conhecida pelos

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especialistas como MILD. Preferia chamá-la daquela maneira. Mais fácil de decorar. Não sabia,porém, se conseguiria praticá-la.

Teria que colocar o despertador do celular para tocar quatro minutos e meio depois de deitar, seisminutos após e, então, sete minutos e meio depois. Toda vez que despertasse precisaria se lembrar doque estava sonhando ou pensando. Até pegar no sono, repetiria para si própria que estava ciente de estarsonhando.

– Será que vou me lembrar de tudo isso? – perguntava-se em voz alta, olhando para a tela branca.Não sabia. Mesmo se tudo desse errado, havia ainda outra técnica: programar o relógio para

despertar seis horas depois que fosse para a cama. Quando ele tocasse, ela precisaria ficar uma horaacordada, lembrando-se do mundo real, voltando e fixando-se na lucidez para, em seguida, praticar oMILD. Se precisasse recorrer a essa técnica, teria sonecas mais longas durante a tarde e, assim, ficariaacabada.

– Tudo bem por aqui? – quis saber o pai do lado de fora do quarto, após dar leves batidas na portacom os nós dos dedos.

Sophie fechou o navegador com medo de revelar algum detalhe e o deixou entrar. Ver a filha depijama lembrou-o de que ela ainda era a sua menina. Crescia rápido, mas estava ali em seu quarto,fazendo dever de casa. Pelo menos, era o que ele achava.

Não recebeu resposta e resolveu tentar outra abordagem:– Alguma novidade na internet?A jovem riu. Era engraçado ver o esforço do pai em tentar se enturmar.– Nada demais.– Em um mundo grande como este, nada lhe chamou a atenção?Aquela era uma boa pergunta. Notícias corriam nas redes sociais e nas páginas de fofocas da web.– Estava pesquisando sobre sonhos. Você já teve algum muito real?O pai estranhou. Sabia da recente briga dela com a melhor amiga e da confusão no dia anterior e,

ainda assim, ela preferia focar em outros assuntos. Aquilo era bem a cara dela.– Todo mundo já teve um sonho vívido. Eu tive alguns no decorrer da vida. Acho que são intensos

demais. Prefiro o meu sonho calmo de todo dia.– Intensidade não é algo bom?– Tudo que é exagerado tende a não ser, pelo menos na minha opinião. Até as coisas boas demais

têm o defeito de serem boas demais. Precisamos de equilíbrio.

A menina voltou a dar uma leve risada.– Você é engraçado, pai.– É o meu charme.Terminando a conversa, Sophie resolveu sair do quarto e comer. Tinha passado tempo demais sem

se alimentar. Depois de engolir um misto-quente, pegou seu achocolatado tradicional e passou o tempoassistindo a um documentário na televisão com a família. Quase se esquecera de que existiam momentosgostosos como aquele. Por um instante, aquilo também foi como morar em um mundo colorido. Seumundo cinzento, naquela ocasião, tendia a um tom mais puxado para o claro, e, ao adormecer no

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ombro do pai, foi levada para a cama.Naquela noite, Sophie não passeou por nenhum lugar mágico.Porém, a noite foi mágica por si própria.

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O

6

s dias passaram em um flash. Sophie mal se lembrava de como outro domingo havia chegado.Sua semana se resumira a horas a mais na biblioteca da escola tentando fugir dos comentários e

risos inoportunos. E também das tentativas da antiga amiga de conversar. Decidira não dar uma novachance àquela amizade. Sempre soubera da diferença de personalidade das duas, e aquele era o melhormomento para elas encararem que pessoas muito diferentes não conseguem permanecer juntas por umlongo tempo. Elas já poderiam ganhar um troféu por ter convivido por quase toda a vida, mas a ruivapreferia viver sozinha em seu canto reservado entre os livros a viver em um mundo no qual outraspessoas eram forçadas a gostar dela por educação.

Dane-se a educação, pensou enquanto arrumava a seção de ficção científica do colégio.

Vivera pelas regras dos outros por tempo demais. Já havia sofrido uma grande humilhação e não erapossível ter um status social pior. Como consequência, permaneceu a semana inteira na biblioteca e, aovoltar para casa, afundava-se em mais leituras. As tentativas de indução ao sono lúcido não davamcerto. Acreditava que os livros de fantasia lidos na escola inspiravam sua imaginação além do limite.Por fim, tinha sonhos lindos, mas não aquele. Nunca aquele. O sentimento de ser sugada desapareceu, eela foi se acostumando.

Na noite de mais um fim de semana calmo, resolveu quebrar a rotina e voltou a logar em seu perfilfalso. Usara-o pela última vez havia exatamente uma semana. Seu receio era que, por ter se ausentado dapágina, as pessoas tivessem se esquecido de seu personagem. Era normal nascerem e morrerem perfishaters todos os dias.

Ao passar pelas mensagens deixadas em seu mural, percebeu que algumas pessoas ainda comentavamo que ocorrera na semana anterior, no entanto, para seu alívio, a história já estava antiga. Algunsreclamavam de seu desaparecimento do perfil, outros tentavam descobrir quem era o dono daquelaconta. Os palpites eram bem equivocados. Todos achavam que se tratava de alguma menina frustradaquerendo tomar o lugar de alguém mais popular, o que até fazia sentido, mas poderia ser qualquer umdos diversos ignorados daquela sala pantanosa, repleta de sapos e ervas daninhas. Ela achava que só opensamento de que estavam falando com alguém antissocial devia parecer nojento demais para serverdade.

Cogitava sair da rede social sem sequer escrever uma mensagem de despedida quando notou algodiferente: a foto de um garoto magro como ela, estiloso, com calça justa preta, camiseta de bandaamarela e cabelos escuros enrolados. Ele usava um cordão preto e comprido que ia quase até o umbigo edeixava um cinto à mostra. Também dava para ver alguns anéis legais nos dedos finos. O rapaz tinha

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um modo de se vestir totalmente diferente dos outros de seu colégio. Parecia meio perdido nafotografia. Devia ser um aluno transferido. Talvez não fosse nem da cidade. Pelo post de Angélica, eleera a mais nova sensação do lugar.

Sophie não sabia por que passara tanto tempo observando aquela imagem e lendo os elogios dadosao rapaz. Alguns até a deixavam incomodada. Sim! Era o primeiro rapaz um pouco diferente daquelelugar, e os gostos dele eram como os dela. Podia ver isso claramente naquela única fotografia tirada poruma maluca metida. Entretanto, o fato de existir alguém como ela a deixava confusa, ainda mais porele ser tão popular.

Resolveu dar outra folga para o alter ego e desligou o computador. Passara o dia inteiro brincandocom Dior em um parque perto de casa, e agora era mais importante pensar na prova de álgebra do diaseguinte do que analisar a foto de um desconhecido. Um desconhecido que a instigava, mas, aindaassim, um desconhecido. Sophie dormiu e a sensação voltou.

Quando menos esperava, ela foi sugada.

Abriu os olhos e encontrou-se na mesma passarela em frente ao castelo da semana anterior.Seus olhos demoraram para se acostumar com a claridade local. Quando pôde enxergar, percebeu

que os três humanos e os três animais continuavam a encará-la. A cena parecia a mesma. Curiosamente,entretanto, nenhum deles vestia as roupas do encontro passado, nem ela própria. Os estilos bufantes emelodramáticos continuavam os mesmos, mas os únicos detalhes iguais aos do outro sonho eram ossímbolos nas cartolas.

De resto, tudo se modificou no tempo em que estive fora, pensou. Em que estive fora. Como se eu estivesse agora emalgum lugar.

Não entendia como sua mente havia criado tudo aquilo, mas talvez as anotações no diárioestivessem produzindo efeito. Afinal, ela começara a escrever exatamente para tentar chegar àquelepedaço de paraíso.

Parou para se observar e viu que continuava usando uma espécie de espartilho, dessa vez de tomamarronzado com pontos dourados. A saia ainda era de tule, porém a cauda fora encurtada efacilitava-lhe os movimentos. A cor salmão dera lugar a um tom creme, mantendo o estilo angelical.

– Pensei que não conseguiríamos mais trazê-la aqui – comentou a jovem loira aproximando-se dela.O gesto repentino fez Sophie dar um passo para trás por reflexo. Após o movimento, notou que a

jovem com a minicartola de asas franziu a sobrancelha, curiosa. Talvez não entendesse as atitudeshumanas. Ela só poderia mesmo ser de outro mundo. Brilhava como se tivesse a pele coberta por pó dediamante, e a voz calma carregava uma tranquilidade incomum.

– Acharam que eu não sonharia mais com vocês? – indagou Sophie.A outra franziu ainda mais o cenho.– Não entendi. Do que está falando, alteza?

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– Do que você está falando, garota? – retrucou Sophie.

Aquele termo pairou em sua memória. Alteza. Por que ela a chamava assim?

– Demorou um pouco para localizarmos a sua energia. Esperamos muitos anos para conseguirmostrazê-la de volta.

– De volta para onde?

– Para casa.Como sempre, tudo parecia real. O perfume das flores murmurantes, o vento levando o aroma para

todos os lugares e os olhares bondosos encarando-a com esperança. Não entendia como caíranovamente em um sonho lúcido, mas queria aproveitá-lo. Tentar entender como fora parar ali seriainútil.

– E quem é você? – perguntou-lhe Sophie, sem deixar de notar os diversos outros seres ao redor.Todos a olhavam com muita atenção.– Meu nome verdadeiro é guardado pelas chaves reais. Um dia, jurei proteger todos os segredos

deste lugar sagrado, por isso tenho esta marca em meu pulso. Você reparou nela no primeiro dia –disse, mostrando o bonito desenho da caneta-tinteiro. – Sou a pena que escreve o segredo de nossahistória.

Sophie ficou abismada por ela ter notado seu olhar naquele dia.– Então a chamam de “nome verdadeiro guardado pelas chaves reais”?Antes séria, a mulher não segurou um pequeno sorriso.– Os habitantes me chamam de Sycreth – respondeu calmamente.– Como em “segredo”?– Pode-se dizer que sim.– Nossa! Como estou criativa neste sonho – afirmou Sophie colocando a mão na cabeça.Tentava não ser tão lógica, mas sempre se via nesse caminho.– Você não está no Sonhar, minha alteza – voltou a falar a suposta protetora dos segredos.Repetia pela segunda vez a sentença. Teimava em dizer que toda aquela maluquice não era um

sonho. Como poderia não ser? Sophie estava em um lugar esquisito com uma mulher falando sobrelocalização de energia.

– Você é a princesa daqui? – perguntou Sophie de repente, entrando na loucura.Então pôde notar a vermelhidão nas bochechas da outra.– O que é isso, alteza? Sou apenas a Guardiã Real. Até a sua chegada, éramos guiados pelo Primeiro

Ministro e por sua avó, rainha de todo o mundo, que estão aqui presentes.Após a deixa, os dois deram um passo à frente.– Espero que não tome como grosseria, mas eu tive duas avós, e elas não se pareciam com a

senhora... – disse Sophie.A mulher, que a observava com os olhos marejados, a abraçou sem dizer uma palavra. Aquilo foi

suficiente. Uma explosão de sentimentos bombardeou seu coração, e diversos flashbacks surgiram em sua

mente, sem controle. Várias informações e lembranças esquecidas havia muitas vidas. Ouviu vozes

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familiares demais, viu rostos amáveis que a admiravam e sentiu abraços como aquele tantas vezes queela parecia não ser a mesma pessoa. Como era capaz de relembrar uma vida que nunca teve?

O abraço daquela senhora mostrou-lhe que, de algum modo, tinha reencontrado sua antepassada.Juntas, precisavam nutrir os sentimentos de um lugar que, por tanto tempo, desejara a sua presença.

– Como é possível? – perguntou ela quando se separaram.– Desde muito tempo sou rainha deste Reino, minha menina. Essa é uma tarefa nobre, mas, ao

mesmo tempo, difícil. Fui designada para cuidar de seres puros e amáveis e venho tentando fazê-losfelizes desde então. Um dia, consultei-me com uma sábia de nossa comunidade e descobri que, emoutra vida, tive uma filha, e ela havia dado à luz uma menina. Descobri que a alma dessa meninareencarnara em uma humana e a procurei por muitos anos. Depois, soube que só conseguiria encontrá-laquando estivesse preparada – respondeu a senhora, antes de uma pausa. – Agora, você está aqui.

Sophie lembrou-se da humilhação sofrida na festa.– Sinto como se estivesse com saudade deste lugar – balbuciou a ruiva.– Você passou muitos anos sem saber sua verdadeira identidade e só agora pode relembrar um

pouco sua conexão com a linhagem real. A saudade do que foi perdido começará a chamar – explicouo suposto Primeiro Ministro. – Aos poucos, você se lembrará das pessoas e dos seres que ainda vaiconhecer. Entenderá que a magia realmente existe e que sua família agora está aqui.

A última frase mexeu com o coração dela.Apesar de toda a dor que a Terra lhe trazia, seus pais estavam lá.– Fique tranquila – consolou-a a Guardiã, segurando com firmeza seus ombros desnudos. – Você

logo vai se acostumar com as novidades.Dizendo isso, pegou-a por um braço, e a avó a segurou pelo outro. Escoltadas pelos pássaros e pelo

gato quase humano, elas iniciaram a caminhada em direção ao castelo.Sophie parou um instante e virou-se para trás a fim de encarar a multidão.Boa parte dos habitantes era jovem, sem ter chegado ainda à idade adulta, e todos olhavam para ela

muito emocionados. Ela sentia que, apesar das dúvidas, não podia sair daquele lugar sem antes falarcom aquelas pessoas que pareciam tê-la esperado por tanto tempo. Notou também que existiamcriaturas diferentes no meio dos tules, das cartolas e dos fraques: seres verdes com asas transparentes querefletiam a luz do sol, homens com dorsos que lembravam cascas de árvores e seres bege parecidos comalienígenas. Muito mais criaturas deveriam existir naquele mundo mágico.

Agora, Sophie tinha uma certeza: não estava sonhando.– Eu voltarei – pronunciou ela com firmeza.– Nós sabemos – responderam todos.As flores tornaram a murmurar. Para Sophie, a impressão final era a de que, naquele mundo, todos

tinham importância.Aquele era o Reino das vozes que não se calam.

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stava sentada em uma mesa peculiar, diferente de tudo que vira antes: de formato triangular, nelacabiam duas pessoas sentadas de cada lado, com espaço suficiente para aproveitarem o banquete

daquele dia. Havia tortas, bolos e diversos quitutes de coloração muito mais forte do que a habitual.Experimentou um bombom azul-marinho, cujo sabor equilibrava o doce com uma acidez acima docomum. Sentiu prazer na refeição, porém, mais do que isso, ficou feliz ao notar como as pessoasaproveitavam a festança e riam, enquanto os empregados serviam bandejas em formatos octogonais.Havia ali desde humanos com roupas cor-de-rosa e aventais até abelhas de quase cinquenta quiloscarregando travessas gigantes com as patas.

Sophie tentava ignorar os detalhes mais excêntricos. Depois de ter sentido o abraço da avó, aospoucos, tudo parecia se normalizar.

– Minha neta – chamou a idosa, limpando os lábios com um guardanapo verde-limão. – Você temalguma dúvida sobre tudo que está vivenciando?

A ruiva se surpreendeu com a pergunta. Estava entretida com as guloseimas, sozinha de um doslados da mesa larga. Do outro, encontravam-se sua avó e a Guardiã; na base, o Primeiro Ministrosentava-se ao lado de seu gato. Por incrível que pareça, até o bichano portava-se com classe.

– Tenho uma dúvida sobre o gato! Gostaria de perguntar sobre ele ao Primeiro Ministro!– Se tem uma dúvida sobre mim, deveria me perguntar diretamente – sugeriu o gato, para a surpresa

dela.A expressão felina parecia constantemente mal-humorada ou sonolenta. Sua voz não era fina como

se esperaria, mas grossa feito a de um cantor de jazz. Percebeu a alma de artista do felino já na maneirade se vestir. A cartola e o cetro não estavam ali à toa.

– Desculpe, senhor – disse ela. – Não sabia que podia falar.– Todo gato pode. Eles apenas optam por ficar calados.– É mesmo? – Ela estranhou. – E por que decidiu quebrar a regra?– Porque gosto de ouvir minha voz. Posso até mesmo cantar se eu quiser.Sophie sorriu. Aquilo era fantástico.– Qual é o seu cantor humano favorito?O felino aproximou-se da mesa, pousando nela uma das pequenas patas. Sophie notou que era

escura como a pelugem do rosto dele. O bichano apoiou-se levemente na pata e respondeu:– Louis Armstrong, filhote! – afirmou com a voz áspera. – I see trees of green, red roses too. I see them

bloom for me and you. And I think to myself...

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– What a wonderful world – cantou Sophie com ele.

Ela era perfeitamente adequada para aquele lugar. Tudo parecia belo. Como na música, ela via algoparecido com “árvores verdes e rosas vermelhas. Via-as florescerem. E pensava consigo mesma: quemundo maravilhoso”. Perfeição era possível, e vergonha era um sentimento do qual ela nem se lembrava.

– Vossa majestade tem uma alma maior do que o próprio tamanho – comentou o gato.– Eu poderia dizer o mesmo de você.Sophie voltou a pensar em viver ali para a eternidade. Esquecer os pais parecia cada vez mais fácil.A Guardiã dirigiu-se a ela:– Você vai se acostumar com este local, princesa.– Tenho certeza de que sim, Sycreth. Mas tenho outra pergunta: que lugar é este?Todas as faces traziam dúvida no olhar.– Vou reformular: qual o nome deste mundo?

Todos pareceram sentir alívio. A garota sabia que era complexa demais para eles. Demorariam parase acostumar.

– Aqui é o Reino – respondeu a avó.– Que é um reino eu já entendi, mas como vocês o chamam?– De Reino, alteza – insistiu a Guardiã.Sophie engasgou. Será que eles eram tão ingênuos a ponto de não dar nome ao próprio país?– Vocês não batizaram este lugar?– Precisamos? – perguntou o Ministro, tirando um pergaminho do bolso junto com uma pena e

começando a anotar vários tópicos.– Vocês têm um nome, certo?– Sim! Todos nós temos um. O meu para vocês é Sycreth, o Ministro é Phix, seu companheiro

felino é Jhonx e, claro, temos a Rainha Ny.Sophie tentava processar as informações e pensava em como podia ser mais clara.– Mas quem são vocês?– Nós somos os Tirus.– E por que Tirus?– Porque do alto é possível saber a verdade. Tudo que vem do céu é mais forte.A menina se lembrou das letras formadas pelos topos das árvores douradas. Um “T” e um “U”.

Com elas, dava para formar a palavra “Tiru”.– Como sabem que as copas das árvores formam essa palavra?– Não sabemos. Essa é a diferença desta dimensão, Sophie. Aqui não precisamos fazer sentido.

Somos livres para sermos felizes do jeito que quisermos.– Até para cantar – complementou o gato.Se eu estivesse na Terra, diriam que estou louca, pensou Sophie.

Ela notou que Sycreth dera uma pequena risada, parecendo entendê-la, mas preferiu não dar bola.– Então, se vocês são os Tirus, este Reino seria como uma Tirulândia?

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– Este pode ser o reino que você quiser, princesa – disse o Ministro.– Futura Rainha – complementou a avó.No fim da refeição, decidiram ir para a sala dos tronos.Entrando pelo grande salão, a jovem pôde reparar nos afrescos das paredes e do teto. Imagens de

criaturas divinas estavam desenhadas em traços leves, narrando as diferenças entre as espécies mágicas.Ao contrário do resto do Reino, aquele recinto tinha uma coloração mais suave, combinando com oexterior do castelo. No fundo, encontravam-se dois tronos metálicos no formato de uma flordesabrochada. As pétalas laterais eram mais altas para servirem de apoio aos braços durante as longashoras passadas ali em meio a decisões sobre o futuro dos habitantes do Reino.

Um extenso tapete felpudo azul-claro se estendia dos tronos até o portal de entrada. Nas laterais,havia poltronas baixas e outras duas mais altas, logo abaixo dos assentos reais. Imaginou-se sentandopela primeira vez em um trono real, mas, antes que pudesse seguir seu caminho, foi barrada.

Do lado de fora, a fênix bradava.– Sophie, nossa maior vontade era que você não precisasse mais sair daqui – comentou o Ministro.– Então me deixem ficar.– Ainda existem coisas que você precisa resolver em sua dimensão – a Guardiã tomou a palavra.– Eu não entendo... – balbuciou, confusa, duvidando se aquilo não era mesmo um sonho lúcido.

Depois se lembrou do abraço da avó e sanou a dúvida. – Eu serei capaz de voltar?Todos ficaram em silêncio.– O Reino sempre a receberá – respondeu a Rainha.

A consciência retornou de supetão quando o alarme despertou às cinco horas. Sentia o corpodescansado e a mente tranquila, mas tinha certeza de que não havia sonhado. Acreditava que realmentevisitara outra dimensão. A sua verdadeira casa. Um Reino que poderia chamar de seu.

Enquanto tomava banho e se vestia, tentou não pensar na experiência. Demorava para processar osdetalhes e na escola teria tempo para relembrar cada passo. Antes disso, havia a maldita prova dematemática no primeiro período.

Quando o pai a deixou na frente do prédio marrom de três andares, muitos alunos já haviamentrado. Era normal encontrar grupos esperando o último toque do sinal, mas não em dias de prova.Tentou apressar o passo, porém os cadarços de seus tênis eram compridos demais, o que tornava difícilcaminhar. De repente, tombou para a frente e uma mão forte segurou seu braço, restaurando seuequilíbrio.

– Acho que você precisa dar uma olhada nesse cadarço – disse o rapaz novato da rede social. –Você poderia fazer como eu. É só dar dois laços.

O garoto apontou para o próprio tênis largo com bordas vermelhas. Sophie notou os laços etambém a semelhança constrangedora entre o tênis dela e o dele.

– Obrigada – respondeu, tímida e ainda surpresa.

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– Pela dica? – perguntou ele, esbanjando um sorriso franco. Ele emitia um charme natural. Até ocabelo bagunçado demais o tornava atraente.

– Por me mostrar que uso um tênis muito masculino – sussurrou.– Nada que você não pudesse descobrir sozinha na internet hoje em dia.– Você não faz ideia do que tenho encontrado na internet hoje em dia.Para variar, seu rosto estava tingido de vermelho. Conseguia sentir as bochechas pegando fogo e

pensou em correr.– Eu achei legal termos o mesmo gosto. Sempre é bom encontrar uma menina de atitude.Menina de atitude! O que ele quer dizer com isso? Um elogio de verdade ou um prêmio de consolação?Sophie soltou um sorriso de canto de boca e, agachando, enfiou os laços para dentro do sapato. A

vergonha de seguir a dica do rapaz tomava forma na mesma intensidade em que a vontade de se matarpor justamente naquele dia ter escolhido aquele par para usar.

Tentando se recompor, Sophie deu um pequeno tchau para o garoto e evitou cruzar o olhar.– Foi um prazer conhecê-la, AC/DC! – gritou ele, ficando para trás.Quando entrou no colégio, ficou ainda mais envergonhada.Claro! Um rapaz bonito ia superolhar para uma menina com blusa de banda e tênis masculino. Sou cheia de atitude

mesmo.Entrou na sala e o último sinal tocou. Era hora de estudar.

Já tinha terminado todas as equações quando ouviu novamente o som ecoar pelos corredores daquelafloresta sombria. Os lamentos ao redor mostravam a insatisfação dos colegas com o término do tempode prova. Para seu alívio, não sentira tanta dificuldade. Os pais ficariam felizes no jantar.

Deixou a tensão passar e se concentrou na aula de português, que vinha em seguida. Para seupesadelo, logo seria o intervalo, e, a fim de se ocupar, pensou em usar esse tempo para escrever no diárioo sonho/realidade da noite passada.

Quando todos os alunos levantaram, ela pôde recolher o material e tirar o diário da mochila.Encontraria um lugar tranquilo para relembrar a noite. Talvez não precisasse voltar à biblioteca. Abibliotecária já estava se acostumando com os serviços de organização dela e começava a jogar algumasindiretas bem diretas: Viu que os meninos bagunçaram a seção policial hoje? Está um horror.

Andando pelo pátio, viu um dos arcos mais afastados vazio e achou aquele um bom lugar para seacomodar. Existia ali uma mureta com o encosto perfeito de uma pilastra. Enquanto caminhava para olugar foi interceptada por um toque em seu braço. Virou sorrindo, pensando ser novamente o rapaz.

Engano seu.– Não dá mais pra você me evitar – disse Anna.De longe, viu o grupo de sempre assistindo.– O que você quer, Anna?A antiga amiga mordeu o lábio inferior. Aquela separação parecia de alguma forma afetá-la, mas

Sophie não entendia por quê. Ela precisava agradecer aos santos da popularidade por terem-naajudado.

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– Rick quer pedir desculpas por aquela noite. A Angélica é uma idiota! Foi tudo um mal-entendido.

– Sua traição também tem justificativa?Conseguia sentir a tensão no ar e todos os olhares curiosos acompanhando seus lábios se mexendo.

Percebeu que não conseguiria ficar sentada escrevendo no pátio.– Anna, posso seguir meu caminho?Outra vez, o lábio tremeu, e dava para ver a raiva queimando no olhar da morena. Ela era a popular

do colégio. Sem ela, Sophie não era nada e, mesmo assim, continuava a se distanciar.– Tem um garoto novo aqui no colégio. Ele parece muito com você. Acho que formariam um belo

casal – comentou Anna, tentando localizar o rapaz na multidão de alunos.Sophie riu da situação. Aquele ciclo repetitivo a estressava profundamente.– Sério que você continua sendo fútil assim? – irritou-se.As pessoas em volta colocaram as mãos na boca. A menina excluída tinha mesmo se revelado?

Haveria outra briga pública de melhores amigas?Sophie não ligava. Depois de compreender que realmente existia um lugar onde poderia ser ela

mesma, sentiu que não precisaria mais passar seus dias reclamando da falta de oportunidade para seexpressar. Resolveu enfrentar seus medos.

– Como é que é? – perguntou Anna, colocando a mão na cintura, visivelmente insultada.Algumas meninas riram por perto, mas ela ignorou.– A pessoa que esteve ao seu lado por mais de dez anos perde a vontade de olhar na sua cara e

depois de tudo o que passamos você vem me falar de garotos? Não estou nem aí se existe um meninonovo neste colégio! Deve ser um idiota como seus amigos. Você deveria rever suas prioridades em vez dedestruir as chances de retomar nossa amizade.

Pessoas soltaram interjeições. Uma inspetora se aproximou do grupo para ver o que acontecia.– Você vai se arrepender de falar assim comigo. Eu salvei todos esses seus anos patéticos – retrucou

Anna, espumando de raiva. – Será que não percebeu? Sem mim você não passa de uma esquisitasolitária!

– Com você eu me sinto assim.Uma exclamação coletiva ecoou no pátio, e alguns até torceram pela excluída. A língua dela parecia

afiada naquele dia.– Meninas, isto aqui é uma instituição de ensino! É melhor pararem agora – advertiu a inspetora,

interpondo-se no meio delas.Anna a fuzilou com o olhar e saiu da roda dizendo:– Não tem problema, dona Jeniffer. Já fiz minha boa ação do dia.O resto do grupo dispersou-se com o fim da briga. Sophie não havia desejado aquilo. Mesmo

sentindo certo orgulho por ter se defendido pela primeira vez, ainda preferia ter aproveitado o tempopara descrever seu Reino no diário. Gastara quase todo o intervalo e resolveu voltar para a classe. Se aporta estivesse aberta, ficaria por lá.

Saindo do meio dos últimos espectadores, viu o garoto do tênis encarando-a ao fundo. Seu olhar era

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sério.Droga, ele deve ter se sentido insultado, pensou.

No calor dos sentimentos, chamara-o de idiota mesmo sem conhecê-lo. Na verdade, só sabia que sua

roupa era legal e que ele tinha bom gosto para sapatos. Também sabia que seu sorriso era bonito e quetinha senso de humor.

Sentiu-se mal ao ver que ele havia tomado a discussão como pessoal. Ela explodira com a maioriamasculina daquele colégio, não com ele. Contudo, precisava esquecer aquilo tudo. Ele seria apenas maisum a odiá-la. Grande coisa! Superaria aquilo. Por tanto tempo havia seguido um grupo e agora preferiaos momentos de solidão. As idas para a escola sempre lhe traziam dor de estômago. Ao passar pelogaroto, percebeu que os nós de seus dedos doíam pelo exagero no aperto.

Antes só do que mal acompanhada.

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or que ela não conseguia sonhar com o Reino?Aquilo a incomodou por semanas. Pensava que havia algo de errado. Estaria sendo punida por

ter brigado com Anna? Desde que descobrira fazer parte daquele mundo, nunca mais haviam permitidosua entrada, apesar de terem dito que ela sempre seria recebida. Então, todas as noites ela chorava coma cabeça enfiada no travesseiro para que os pais não a ouvissem. Como se a vida não estivesse difícil obastante.

– Filha, o jantar está na mesa – chamou a mãe do outro lado da porta. – Você não comeu nada noalmoço. Venha.

Sempre controlando o que eu como, pensou. Eram atitudes como aquela que a cansavam. Sentia

necessidade de voltar para o Reino o quanto antes, pois não queria mais ser julgada. Sua vontade erafazer as malas e nunca mais voltar. Tinha chegado a um ponto de estresse que até os pais estavamdifíceis de engolir.

Mais uma noite, saía do quarto com o cabelo armado, roupa amarrotada e rosto vermelho de tantochorar. Tentava tacar uma base para disfarçar, mas todos percebiam o clima. Então, sentava-se peranteos pais para outra refeição. Eles teimavam em perguntar como havia sido seu dia, e ela sempre selimitava a um murmúrio. Nunca aprendiam a deixá-la quieta.

– E as provas, Sophie? Tem ido bem? – quis saber George.A garota concordou com a cabeça.– Ele lhe fez uma pergunta. Custa muito responder com palavras?Sophie lançou um olhar irritado para a mãe e respondeu:– Sou aplicada e inteligente, pai. Ir bem nas provas não é novidade.Todos suspiraram.– Atitudes como essa estão virando hábito por aqui também, pelo visto – reclamou ele, olhando

para o prato, tentando entender em que havia errado com a filha.A ruiva percebeu a mancada. Descontava na família os desgostos com a escola e a frustração com o

Reino. Eles eram os poucos que ainda se interessavam por ela.– Foi mal, pai. Tenho ido bem sim. Os professores estão me elogiando.Ela notou que o pai ficou feliz pela resposta e sentiu a mãe respirar com mais calma do outro lado.Mastigaram por um tempo a refeição, enquanto o noticiário ligado na sala descrevia os

acontecimentos de um assassinato. Sophie nunca entendera a necessidade de comer com o aparelholigado. Pelo menos era algo que quebrava o silêncio constrangedor da noite.

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– Comprei uma caneta nova para você – disse Laura amenizando o clima mórbido. – O vendedorme disse que é bem macia e que a letra fica bonita. Deixei ao lado da sua cama. Acho que será melhorpara você escrever.

Do que ela está falando?, indagou-se.

Notando sua expressão, Laura continuou:– Reparei que tem escrito em um diário. Não sei se começou a escrever um livro. Mas eu queria que

tivesse o melhor instrumento.O pai pareceu interessado na novidade. Sabia que Sophie tinha alma de poeta, era capaz de criar

letras lindas, mas, para ele, era uma surpresa ela estar escrevendo um livro. A jovem achou aquilo umainvasão de privacidade. Procurava deixá-lo sempre guardado na gaveta trancada e raramente o deixavaà vista. Como a mãe sabia todos os detalhes?

Preferindo não brigar, soltou um “obrigada” tímido e terminou a refeição. Aproveitaria o fim denoite para finalizar algumas questões de história e tentaria aplicar a técnica MILD. Precisava sentir-sequerida novamente.

Necessitava do amor dos Tirus.

Abriu os olhos e percebeu que estava em outro quarto. Um sorriso enorme invadiu seu rosto. Tinhaconseguido.

– Não fique tão feliz assim, mocinha.Na beirada de uma gigantesca cama, a avó encontrava-se sentada, olhando-a serenamente. Logo

acima da cabeça da jovem deitada havia um véu preto estrelado parecendo uma tenda sobre ela. Sophieachou bonito. Combinava com o clima zen do que seria seu quarto naquele castelo.

– São lindas – comentou Sophie olhando para a constelação.– É sempre necessária alguma escuridão para se ver estrelas.A frase dela também era mágica.– Sua vida na Terra é muito parecida com esse véu – complementou a senhora.– Por isso disse para eu não ficar alegre por estar de volta? – perguntou Sophie, sentando-se no que

parecia uma nuvem flutuante.– Quando nos encontramos da última vez, falamos que você ainda tinha algumas coisas para

aprender no mundo dos humanos.– Eu não quero aprender mais nada lá.– Mas, se quiser liderar as coisas por aqui, é o que precisa fazer – respondeu com firmeza. – Sua

vida está escura como esse tecido, embora você sempre brilhe no mar de lamentações de seus dias. Senão existisse luz em você, seria impossível localizá-la.

– Eu não entendo – resmungou Sophie.A avó aproximou-se da garota para segurar suas delicadas mãos. Mesmo tocando violão a vida

toda, Sophie sempre tivera dedos finos e macios.

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– Você ficou desesperada para voltar, porém, quanto mais tenta, mais se afasta.– Tenho que deixar rolar? – perguntou.A Rainha riu com a expressão.– O melhor é sempre deixar rolar.As duas se encararam por um tempo e alisaram os braços uma da outra. Sophie gostava de como a

avó a olhava e admirava o esmalte vermelho vivo sempre usado pela carismática senhora, pois deixava-acom um espírito aventureiro. Ela parecia uma grande mulher, alguém de atitude.

Lembrou-se do comentário do menino de seu colégio e foi sua vez de rir. Talvez aquele tivesse sidomesmo um elogio.

– As criadas separaram uma roupa para você. Arrume-se, pois hoje explorará o Reino junto com aGuardiã.

Ela sentiu uma pontada no peito e, por reflexo, comprimiu os dedos dos pés.– Ainda vou conseguir ver a senhora?A mulher compreendia o receio contido nas palavras. Sophie tinha medo de passar muito tempo

sem encontrar a avó.– Você sempre será capaz de me ver em seu coração. Moro dentro dele.A ruiva apenas sorriu. A mente dela, porém, não se acalmou.Levantou-se para cuidar um pouco de sua aparência em um gigantesco banheiro e vestir os trajes:

uma saia rodada quase na altura do joelho, com cinco camadas de tule cinza, e um espartilho de bustoquadrado em tom de chumbo coberto de pedrinhas luminosas. Quando se olhou no espelho, percebeuos detalhes da roupa. Seu rosto parecia estar sempre maquiado, mesmo sem produto algum. Havia umrosado especial nos lábios, a pele parecia impecável e seu olhar estava mais marcado. Os cabelos tinhamficado mais pesados, fazendo os cachos caírem pelas costas num comprimento um pouco mais longo, eela gostou do resultado. Por fim, ficou faltando apenas um item para que pudesse sair do quarto, masnão sabia bem como colocá-lo.

Salva pelo gongo: ouviu uma batida na porta e autorizou a Guardiã a entrar. Gostava dela. Pareciauma garota esforçada em manter a harmonia do Reino.

– Pelo visto, está tendo problemas com a cartola – comentou a jovem, aproximando-se da princesa.Sophie percebeu o quanto a outra estava bonita. Usava um longo vestido rodado azul-claro, sua cor

favorita, com tules enfeitando apenas o babado. O bustiê subia até o pescoço, deixando apenas osombros, braços e um rasgo no colo à mostra. O longo cabelo loiro estava jogado para o lado esquerdo,sobre o qual a cartola com asas pairava. A ruiva pôde notar então uma orelha alongada, em que sedestacavam dois brincos brilhantes.

– Acho fofo como todos aqui usam essas cartolinhas, mas não tenho a mínima noção de comoprender isso.

Sycreth mais uma vez riu com o comentário dela. Sophie começava a achar que tinha se tornadomais engraçada no Reino, porque a Guardiã ria sempre que a encontrava.

– Eu disse alguma coisa errada? – perguntou a menina.A outra parou ao seu lado encarando o largo espelho de moldura escura da cor do véu. Elas ficaram

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um bom tempo se observando no reflexo, e Sophie jurava ter sido o período mais longo na vida quetinha passado se olhando. Não era muito de se analisar dessa maneira. Por que pararia para perceber asdiversas coisas erradas com ela?

– Você é linda, princesa.O elogio a surpreendeu, sobretudo porque foi espontâneo. As duas estavam conversando sobre

chapéus pequenos e como encaixá-los em seu cabelo milagrosamente arrumado. A ruiva nunca tinhaescutado algo assim. Claro que sua mãe e Anna a achavam bonita. No entanto, Sophie nunca aceitavaseus elogios. Havia escolhido o caminho mais difícil: o da autopunição.

– É sério que você me elogiou? – perguntou sem tirar a atenção de seus próprios olhos refletidos.– No Reino, fazemos questão de mostrar a importância de uma pessoa e de dizer-lhe o quanto é

bela – respondeu a Guardiã, também olhando para sua figura. – E você, princesa, sabe ser uma joiaainda mais brilhante.

Quem diria que um dia ela seria considerada bonita ou uma joia por uma criatura mágica comoaquela? A garota falava de brilho quando sua própria pele reluzia em pequenos pontos cósmicos.

Se os meninos babacas de sua escola ouvissem aquilo, pensariam besteira ou a chamariam de louca.As meninas, por sua vez, nunca seriam francas como a Guardiã estava sendo naquele momento. Omundo andava meio perdido.

– Quando você se olha no espelho, o que vê? – indagou a colecionadora de segredos.O estômago da ruiva revirou-se com a pergunta. Não se sentia preparada para responder, mas, já

que estavam tendo um momento sincero, resolveu arriscar.– Uma garota magra demais com uma genética bem esquisita, cabelos muito chamativos para uma

personalidade introvertida e ideias estranhas para o resto do mundo.A Guardiã riu.Será que ela está rindo da minha cara?, questionou-se. Partia sempre para a defensiva.

– Eu não perguntei como você acha que as pessoas a veem. Quero que se olhe de verdade e diga oque você vê.

Mais uma vez, sentiu o estômago revirar. Sycreth ensinava-lhe uma lição que talvez ainda nãoestivesse preparada para aprender. Contudo, quando realmente olhou dentro de seus olhos azuis, sentiuuma rara paz. Percebeu ter no coração o mesmo sentimento de preenchimento contido no incrívelabraço da Rainha.

Começou a prestar atenção nos detalhes e, sem se importar com a presença da loira, foi dizendo aspeculiaridades de sua imagem:

– Eu vejo uma jovem um pouco perdida, talvez revoltada demais com o mundo. Não sei por querazão. Redescubro uma garota com uma voz linda e uma facilidade incrível de transportar sentimentospara melodias no papel. Uma pessoa que fala o que pensa e pensa o que sente, talvez madura demaispara a idade. Vejo uma pele difícil de ser esquecida e um sorriso que pode ser mágico quando quer.Gosto dos meus lábios, porque lembram os da minha mãe. E das minhas sobrancelhas, parecidas com asdo meu pai. Mesmo achando que meu cabelo ruivo tem mais personalidade do que eu, ainda é legal omodo como ele mostra o quanto minha alma é única. Acho que sinto isso. Que sou diferente, mas isso é

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bom. Que quanto eu peso ou como me visto não importa se eu estiver bem comigo mesma.– E você se sente bem consigo mesma, Sophie?A garota apertou o olhar e teve certeza da resposta. Dessa vez, a Guardiã não riu, mas seu leve

sorriso mostrou orgulho.– Agora você sabe por que está aqui?– Porque não tenho mais medo de demonstrar quem eu realmente sou.Mais um sorriso.– As cartolas são fofas, mas também têm um significado aqui no Reino. Usamos porque

acreditamos que elas protegem nossa criatividade. Podemos sonhar e falar o que achamos da vida nestemundo. Isso não quer dizer que não precisamos guardar com carinho nossos pensamentos.

Dizendo isso, Sycreth posicionou o acessório perto dos cachos avermelhados. Os fios se fixarammagicamente ao chapéu.

– Agora, futura Rainha, chegou a hora de conhecer o seu destino.

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ndava pelos corredores como se estivesse sozinha em um labirinto de flores, não importando comqual parede fosse trombar. Não tinha um destino bem programado. Desde que acordara

novamente, sem poder dar continuidade à sua vida no Reino, agia como se estivesse no automático. Naverdade, cumpria as tarefas do dia a dia normalmente, mas com uma sensação de liberdade. Um prazerdiferente em ver a vida sem perceber se as coisas que fazia a irritavam ou não.

Resolveu não se dirigir à biblioteca, calabouço onde se escondia dos agressores, pois queria algodiferente. Precisava continuar naquele caminho de autodescoberta que começara a percorrer. Por isso,andou sem rumo pelos andares da escola com o fone de ouvido no volume máximo. Ela se deixavaembalar pela banda Oasis enquanto tocava as paredes daquele local de sabedoria e estupidez. Eradifícil para ela se relacionar com os outros alunos, porém não negava o quanto amava aprender. Tinhagosto pelo que os professores ensinavam e, um dia, gostaria de ter tanto conhecimento. Não sabia porque havia escolhido aquela música de fundo, mas, com o fone e o celular, conectava-se a outro mundo.Mesmo não sendo o encantado.

Enquanto passeava desgovernada, acompanhando baixinho a melodia, fechou os olhos e esqueceu-seda possível presença de colegas.

– Because maybe. You’re gonna be the one that saves me.Porque talvez... você vá ser aquele que vai me salvar, dizia a música. Mas, antes que o refrão terminasse,

sentiu um cutucão forte e retirou o fone.– And after all. You’re my wonderwall…Choque. Aquilo não podia ter acontecido. Alguém a escutara. Pior, completara sua música: Afinal,

você é minha proteção. Um verso com um significado e tanto.

A voz dela era seu templo imaculado. A beleza mais sagrada de seu ser, algo que pertencia somentea Sophie. Saber que alguém daquela escola a havia escutado cantar quebrava todos os pedaços de seucoração já machucado. Ver que tinha sido ele quem havia completado a música doía ainda mais. Não o

conhecia. Não sabia o que ele faria agora. Para quem contaria? Será que ele a zoaria por isso? Ouvircríticas sobre seu canto seria quase como uma morte em vida, pois era a atividade que mais lhe davaprazer. Ninguém podia tirar aquele ato de felicidade dela.

Por um momento, quase não raciocinou. A primeira coisa que fez foi descer as escadas correndo eprocurar o banheiro mais próximo. Tirando o casaco da cintura, abafou a boca com o tecido, enquantogrossas lágrimas invadiram seu rosto, tingindo-o de um vermelho diferente da vergonha. Aquelapigmentação devia-se à raiva e à tristeza por ter se esquecido do mundo real. Porque sim, toda vez que

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acordava, não estava mais no Reino e precisava separar aquelas duas dimensões.Toda a energia positiva ia embora enquanto tentava não chamar atenção indesejada. Sentada sobre

a privada fechada, apoiou as costas em uma parede e as botas de franjas pretas na outra.Mas não podia negar que o tom dele era bonito.Que era bacana ver um rapaz sabendo aquela letra.E que, mesmo nos poucos segundos da troca de olhares, ela pôde notar a camiseta dos Beatles que

ele usava. Se não estivesse enganada, lera na blusa “While My Guitar Gently Weeps”, uma de suasmúsicas favoritas da banda.

Ela era como aquela guitarra que suavemente chorava.

Saiu da cabine quando percebeu o banheiro vazio e encarou o próprio rosto. Apelou para a maquiagem,enchendo a pele de base para disfarçar um pouco a vermelhidão. Enquanto se refazia, lembrou-se dealgumas horas antes e de como se sentira bonita. Orgulhosa de encontrar suas qualidades. Será que todajovem de sua idade sofria com essa constante mudança de humor?

Já devia ter perdido o horário da aula, então, preferiu ligar para a mãe e pedir que ela fosse buscá-lana escola. Seria melhor tirar o resto da manhã para repensar sua vida.

Virando o corredor, encontrou uma garota que reconhecia ser um ano mais velha, pois estudava naclasse à frente da dela. Ela era um pouco baixinha, acima do peso, tinha um lindo rosto e belíssimosolhos verdes escondidos atrás de uma armação pesada. Uma vez, escutara que o nome dela era Mônicae vira uma garota imitar a dança que a Monica do seriado Friends havia feito quando estava acima dopeso. Lembrou como tinha achado aquilo uma idiotice. Mesmo não se encaixando nos padrões debeleza da sociedade, a garota continuava sendo linda e era uma das poucas que pareciam ter bom gostonaquele local, por sempre estar lendo livros como As brumas de Avalon.

– Você é Sophie, certo? – perguntou a garota.Sophie aquiesceu, temendo o rumo da conversa.– O Léo da minha classe me pediu para entregar esse papel se te encontrasse no banheiro.Ela pegou o pequeno pedaço de papel dobrado sem saber se devia ler na frente da garota ou deixar

para mais tarde. Mônica pareceu notar, pois começou a virar para voltar para a sala. Antes de partir, amenina resolveu complementar:

– Sabe, existem outras pessoas nesta escola. Nem todo mundo é o tipo de perdedor que você acha.Talvez, se desse mais oportunidades às pessoas, conseguisse enxergar isso. Eu sei que você é legal.

As pessoas a surpreendiam cada vez mais.– E como sabe disso?Não podia deixar aquela pergunta passar. Convivia há um ano e meio com a menina, elas

frequentavam as aulas no mesmo corredor e nunca tinham trocado uma palavra.– Porque um cara gente boa como o Léo não daria bola para uma fresca. A escola está achando que

ele é o novo mauricinho popular, mas já conversei com o garoto, e ele é mais pé no chão do que muita

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gente que eu conheço.– Mas ele não me conhece – disse Sophie quase gaguejando.– Ele deve ter notado que você é uma garota descolada. Até eu reparei.Dizendo aquilo, ela deu um meio sorriso e se afastou da ruiva, deixando-a confusa. Teria mesmo

acabado de fazer uma amizade?Abriu o bilhete e leu:

Talvez, quem sabe, um dia aprendo a não mexer com quem não devo.Tenta ficar em paz, AC/DC.

Quando entrou no sedan, Sophie reparou nos lábios finos de preocupação da mãe. Ela provavelmentenão entendia por que a filha, até então sorridente naquela manhã, tinha ligado dizendo estar doente.Laura estava certa de que era apenas uma desculpa para a garota sair da escola mais cedo, mas, quandoas duas se encararam, viu a tristeza no olhar da jovem.

– Quer me dizer o que está acontecendo? – perguntou a mãe em um tom um pouco autoritário.Sophie bufou ao seu lado. Precisava ficar sozinha com seus pensamentos. Falar sobre seus

sentimentos somente a deixaria mais confusa.– Só me leva pra casa – pediu a garota. – Por favor.Ela colocou o cinto de segurança e apoiou a cabeça no vidro da janela do carro. A sensação gélida

da superfície lhe dava certo aconchego. Fechou os olhos e relembrou o que acontecera poucos minutosantes. Sua felicidade, a canção, a voz dele fazendo cosquinhas no seu ouvido e o próprio desespero.Também repetiu diversas vezes na mente o pequeno bilhete ainda amassado na mão. Não conhecia ogaroto, porém sentia que ele queria conhecê-la. Usar Mônica para entregar um bilhete parecia exageradodemais. O que será que ele realmente queria com ela?

– Você sabe que eu sempre estarei aqui para conversar, não é? – assegurou Laura.A filha soltou um sorriso tímido e aquiesceu.No fundo, ela sabia. Implicava com a mãe, mas sabia de suas boas intenções.

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ndava pelos caminhos entre as casas coloridas, ainda com o vestido de antes e tendo a Guardiã aolado. Parecia que para Sycreth nada havia mudado. Era como se elas tivessem caminhado até ali

sem aquela longa pausa entre uma ação e outra. Para a garota, havia sido uma manhã inteira. Comoconseguia voltar àquele Reino e, ainda assim, não questionar o que acontecia com sua vida?

– Será que sempre que a trouxermos aqui você ficará analisando seus próprios pensamentos? –perguntou Sycreth, entrelaçando o braço no de Sophie.

A jovem sentiu um pouco de vergonha. Pelo visto, a Guardiã realmente ouvia suas reflexões.– Pensei que usássemos cartolas para proteger nossos pensamentos.– Eu já expliquei que sei todos os segredos deste Reino. Nesse caso, acho que a proteção não conta.As duas sorriram. Parecia sempre fácil conversar com ela, apesar de quase não ficarem juntas.

Sophie gostaria de ter encontrado uma amiga assim em seu mundo real.– Devo ter dormido ao chegar em casa – comentou espontaneamente a ruiva, tentando outra vez

buscar a lógica para seu retorno ao lugar mágico.– Você precisa esquecer a Terra toda vez que visitar o Reino, assim como não deveria pensar em nós

enquanto estiver por lá.– Por que não? – indagou Sophie, curiosa.A Guardiã deu um suspiro pesado, apertando ainda mais seu braço, como se não a quisesse soltar.– Tenho medo de que se confunda e não saiba mais onde está vivendo. Preciso cuidar de seu bem-

estar. Acha que será fácil ter duas vidas paralelas? – questionou.Elas continuavam a andar pelas ruas, enquanto habitantes espalhafatosos acenavam para a princesa

ao passarem. Todos pareciam animados. Às vezes, Sophie retribuía o gesto, mas ainda sentia-se estranhapor receber toda aquela atenção. Não estava acostumada a esse tipo de carinho.

– Se sou querida e importante aqui...– Você vai querer descobrir por que ainda precisa aprender algo na Terra, certo?A ruiva riu e completou:– Você sabe de tudo mesmo, não é?– Sei que você é persistente e não deixará o destino seguir sem controle.– E vai ser o meu modo peculiar que vai me ajudar a entender por que sou a princesa dessa

dimensão?Elas pararam de caminhar quando atingiram a margem de uma das florestas douradas. Pelo seu

formato parecia a letra “T”: dez árvores com copas largas encontravam-se enfileiradas e essa quantidadealastrava-se por quilômetros até a fila abrir para mais dez árvores de cada lado.

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– Persistência não é sempre uma qualidade. Entretanto, Mama Lala vai gostar dessa sua vontade desaber mais.

– Mama Lala? – Sophie estranhou, mas acompanhou a Guardiã pela floresta, ouvindo os cochichosdas flores ao redor.

– Todo reino fantástico precisa ter uma bruxa morando em uma floresta mágica.– Mas bruxas não são más?– Não menos que os humanos, alteza.Continuaram o caminho encantado observando o balançar das folhas e a dança exótica das tulipas.

Sophie estava prestes a conhecer uma bruxa e, com ela, aprenderia mais sobre aquele lugar. Até seesquecera do encontro com Léo e do fato de ele tê-la visto cantar. Se quisesse soltar a voz naqueleReino, não sentiria os mesmos medos. Preferia ter aquela sensação de autoconfiança.

– Ela sabe que estamos indo visitá-la? – perguntou Sophie para a jovem, vendo seu rosto ficar sérioconforme adentravam as partes mais fechadas da vegetação.

– Mama Lala sabe tudo. Sabe o que aconteceu ontem, as palavras que digo agora, e consegue ver atéa reação que virá depois. Para ela, não existe novidade.

– Seria um tipo de vidente?A expressão da Guardiã continuava alterada. A suavidade de sempre ficara para trás.– Ela é um tipo de enviada do Divino. Poucos têm tanto poder.Por um momento, Sophie ficou preocupada com o encontro. Saberia o que falar para uma mulher

tão sábia? Nunca havia encontrado um enviado do Divino. Não sabia nem de que Divino ela poderiaestar falando. Tudo era uma incógnita naquele Reino, mas ainda assim sentia muito mais paz ali.Talvez, quando recebesse mais respostas, pudesse relaxar.

Ao chegarem ao centro do topo da letra formada pelas árvores, encontraram uma casinha circularcom diversas runas desenhadas ao redor. Flores quase da cor do petróleo decoravam o entorno daresidência, e um barulho de tambores indígenas escapava pelas frestas. Também havia fumaça nachaminé. Uma fumaça diferente, como tudo naquele lugar, mas mesmo a coloração avermelhada não adeixava em pânico. Se, por um lado, estava preocupada, por outro, sentia-se grata por estar indo aoencontro de alguém especial na companhia de outro ser mágico.

– Preparada? – perguntou a Guardiã.Sophie parou e olhou para a porta ainda fechada. Suspirou e respondeu:– Parece que nasci para isso.Sua resposta fez a porta magicamente se abrir e os tambores cessarem. Até as flores pareceram se

calar. O clima da floresta ficou muito mais denso. Sycreth indicou que ela seguisse em frente e,conforme o espaço permitia, a garota foi adentrando a casa.

Para sua surpresa, o interior era muito mais simples do que Sophie imaginava. De fora, pensarahaver amuletos e desenhos por todos os lados. Não era capaz de imaginar como uma pessoa conseguiriaviver em um lugar pequeno como aquele. Ali dentro era confortável e básico.

Havia uma cama de solteiro rústica no lado esquerdo com uma colcha estrelada. No outro lado, viuum espaço fechado que provavelmente era o banheiro, além de uma grande pia cheia de fruteiras

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carregadas. Ao centro, uma lareira, onde borbulhava um caldeirão e, à sua frente, uma mesa de madeiracom lascas visíveis e três cadeiras ao redor. A mulher que sentava no lugar central realmente pareciaestar à espera das duas.

– Bem-vinda, princesa dos Tirus!Sophie deve ter dado a impressão de ser tímida ou mal-educada, pois não respondeu até parar de

analisar a senhora à sua frente. Mesmo sentada, era possível perceber sua estatura baixa e os ombroscurvados. Tinha a pele negra e algumas manchas claras nos braços. O jeito dela intrigava a garota. Oscabelos crespos encontravam-se presos em um coque firme e o rosto arredondado exibia o que mais lhechamava a atenção: o sorriso mais meigo que Sophie já vira. Havia tanto poder naquele sorriso. Osdentes não estavam à mostra e os olhos quase se escondiam atrás das bochechas. Ela passava umaenergia tão sábia que a menina não se arrependia um minuto de ter entrado naquele local. Sentou-se emuma das cadeiras e foi acompanhada por Sycreth. A Guardiã permanecia muda e com o rostoendurecido. Sophie notou a túnica arroxeada da anciã com pontos claros combinando com o colar deconchas. Tentou responder que era uma honra estar na presença da vidente do Reino, mas sua vozparecia ter sumido.

– As pessoas tendem a ficar estáticas perante mim. É normal – continuou a senhora ao perceber queninguém falava. – Hoje vocês vieram saber qual é o destino da princesa em nosso local sagrado. Querementender quando ela finalmente deixará a humanidade para se sentar eternamente no trono das pétalas.

Ambas aquiesceram.– E realmente acharam que eu daria as respostas?A pergunta levantada pela vidente foi jogada como um balde de água fria. Até a Guardiã não

pareceu preparada para aquilo. Elas trocaram olhares e sentiram-se quase bobas por terem cogitado quea bruxa iria ajudá-las. Se antes Sophie não sabia o que dizer, naquele momento menos ainda.

– Com todo o perdão, Senhora da Sabedoria – iniciou Sycreth dirigindo-lhe a palavra. – A videntetem o poder de guiar os cidadãos do Reino em momentos de dificuldade. É a única com podersuficiente para quebrar a barreira humana dos pensamentos de Sophie.

– E você é a responsável por guardar todos os segredos de nossa terra – retrucou Mama Lala. –Agora me diga, protetora, segredos não precisam ser conquistados?

Silêncio.Elas continuavam mudas e apenas o estalar da madeira embaixo do caldeirão embalava o ambiente.– Como a princesa pode conquistar o direito de saber seu futuro em nosso Reino? – questionou a

Guardiã.A mulher apoiou os braços manchados na mesa, fazendo com que percebessem um baralho de tarô

ao centro.– A alteza não tem língua? – perguntou a anciã.Sophie entendeu que permanecer quieta naquela situação não a ajudaria em nada. Precisava criar

coragem e merecer saber mais sobre eles.– Como eu conquisto esse direito, minha senhora?Novamente, o sorriso meigo capaz de iluminar o mundo. O clima até ficava mais suave com aquela

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expressão.– Corte o baralho – pediu a vidente.Insegura, Sophie olhou para a amiga ao lado. Nunca tinha jogado tarô. Mas Sycreth apenas a

incentivou com um gesto e ela então dividiu o monte em dois.Vendo as pilhas de cartas antigas e coloridas, a senhora continuou a dividi-las em mais dois grupos.– Pegue uma carta de um dos caminhos.Sophie entendeu que cada uma das seis pilhas indicavam caminhos que talvez ela precisasse

percorrer. Resolveu seguir sua intuição e pegou a primeira carta do monte à esquerda.– Os Amantes – pronunciou a mulher. – Pode retirar mais duas de pilhas diferentes.Amantes. Não tinha a mínima ideia do que aquilo significava.Olhou para as outras pilhas e resolveu deixar-se mais uma vez ser guiada por seus instintos. Fechou

os olhos e concentrou-se: pegou uma da pilha da direita e outra do centro.– O Louco e a Morte – anunciou a bruxa.Aquilo não parecia bom na visão da garota. Os Amantes, o Louco e a Morte. Sua combinação de

cartas a deixava com medo, e ela começava a se arrepender de ter entrado na casa da vidente.– Não fique com medo, alteza – consolou a Guardiã, provavelmente notando sua expressão e sua

mente assustadas.A anciã voltou a sorrir olhando para as cartas selecionadas. Sabia a jornada que a jovem iniciaria e

sentia-se abençoada por guiá-la.– Pode ser que tudo pareça estranho neste momento, mas essas cartas serão suas melhores amigas –

explicou a vidente. – Elas lhe indicaram três caminhos necessários para se tornar a pessoa completa queprecisa ser.

– Mas como posso seguir um caminho que não conheço? – perguntou Sophie chorosa.Dessa vez, a bruxa escancarou os dentes ao sorrir.– Acabei de lhe desenhar as direções. Estude as cartas e saberá como se encontrar. Após completar

essas três etapas, permanecerá como nossa princesa e, um dia, ocupará o trono quando enfim sua avócompletar o ciclo.

O som de uma fênix invadiu o ar, e Sophie reconheceu o sinal.– Mas ainda tenho tantas dúvidas – reclamou.– Minha menina – disse Mama Lala pegando-a de surpresa pelo carinho das palavras. – Você um

dia solucionará todas elas.

E ela despertou.Por incrível que pareça, estava em sua cama, coberta até o pescoço e com uma toalha gelada na

testa. Sentiu-se estranha e um pouco dolorida. Talvez tivesse dormido de mau jeito. Não se lembrava deter chegado em casa.

Levantou-se e resolveu ir até o banheiro para checar seu estado e tentar descobrir as horas. Sua vida

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andava esquisita, por isso muitas vezes se perdia no tempo. Naquele momento, entendeu o comentáriode Sycreth em relação à confusão de viver em dois mundos. Sentia-se meio John Carter naquelatrajetória.

Os Amantes, o Louco e a Morte, relembrou enquanto escovava os dentes observando o rosto um pouco

mais pálido do que de costume. Encarou os olhos azuis cinzentos e viu como precisava de uma noitenormal de sono. Já não se sentia descansada como nas primeiras vezes.

Depois de jogar água gelada na face para acordar, saiu do recinto e foi para a sala encontrar a mãe.No trajeto, olhou pela janela e viu o céu escuro, entendendo ter anoitecido. Estranhou aquilo. Tinhamesmo dormido o dia todo? Havia apagado em casa ou antes? O bom era que aquela confusão atestavaque ela não mentira ao falar que estava doente. Agora precisava entender os acontecimentos.

Na sala, encontrou Laura com o rosto cheio de rugas de preocupação, zapeando entre os diversoscanais da televisão sem prestar atenção em nada. O pai, sentado à mesa de jantar, estava rodeado deprocessos e carregava um semblante igual.

Quando ela entrou, os dois pularam de seus lugares e levantaram-se na hora.– Como está se sentindo? – quis saber o pai com uma expressão que a filha não sabia dizer se era de

preocupação ou irritação.– Quer algum remédio? – complementou a mãe. – Eu disse que essa menina está precisando é ser

levada para um hospital, George.O homem lançou-lhe um olhar de repreensão.Sophie quase foi sufocada pelo misto de emoções que eles demonstravam enquanto tentava

raciocinar. Tinha mesmo apagado após a escola?– Gente, eu estou viva! – exclamou, tentando sair do clima fúnebre. – Alguém pode me dizer o que

aconteceu comigo?Os pais ficaram em silêncio por alguns segundos e lhe indicaram o sofá. A mãe aproveitou para

agarrar uma maçã da fruteira na mesa e entregá-la para a filha.– Coma para recuperar um pouco as energias – pediu enquanto os três se sentavam. – O jantar está

pronto e quero ver você se alimentando.A ruiva se irritou. O jantar estava longe de seus pensamentos, nem sentia fome. Dúvidas pairavam

em sua mente. Acreditava que eles precisavam simplesmente desabafar.– Olha, dona Laura! – disse, dando uma mordida grande na fruta. – Estou comendo, beleza? Agora

podem me explicar por que acordei no meu quarto com um pano na cabeça?A família suspirou e até Dior apareceu por lá batendo as patinhas no carpete de madeira como se

quisesse participar da reunião.– Sua mãe foi buscá-la na escola, pois você não estava passando bem...– Você entrou no carro, nós conversamos e não notei nada de errado com sua saúde. Pensei que só

tivesse passado uma manhã ruim.– Entendi. Até me lembro disso. O que aconteceu depois?Os dois se entreolharam.– Você dormiu e pareceu sorrir durante o sono. Fiquei até surpresa com isso – contou Laura

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enquanto olhava para o companheiro. – Mas, quando chegamos em casa, tentei acordá-la e foiimpossível. Você dormia feito uma pedra.

Estranho, pensou. Não sabia se, ao entrar no Reino, ela se isolava da Terra.

– Tentou buzinar? – perguntou Sophie.Laura mostrou-se indignada com a pergunta.– Acha que eu sairia buzinando para acordar minha filha cansada? Que tipo de mãe você acha que

eu sou?A mesma que explode no telefone vendo que existem pessoas tentando dormir no recinto, lembrou com vontade de

rir.– Ela preferiu me chamar – acrescentou o pai, tentando evitar uma briga quando claramente a

família estava nervosa. – Por sorte, esqueci alguns processos aqui e estava trabalhando em casa quandosua mãe atendeu o telefonema da escola. Ela me chamou e fui buscar você no carro.

– Há alguma coisa que queira compartilhar conosco? – insistiu a mãe, ainda tentando saber sobre avida da filha.

Sophie sentia-se culpada. Entendia a preocupação dos pais, contudo não estava preparada parafalar que era a princesa de outra dimensão. Como explicaria que estava lá quando tentaram acordá-la?Provavelmente a achariam uma maluca e tentariam encontrar um problema psicológico.

Percebendo o silêncio, o pai tentou ser mais rígido para ajudar a esposa. Ela não poderia ficar coma fama de durona sempre.

– Filha, entendemos que está passando por uma fase difícil. Não querer compartilhar com os paisos sentimentos é normal. Mas chegamos à conclusão de que vai ser melhor você conversar com umprofissional sobre o que está acontecendo.

Como eu imaginava.– Vocês só podem estar de brincadeira, né?– Gostaríamos de estar – completou Laura, não conseguindo mais ficar calada. – A senhorita quase

não come, vive dormindo, parece sempre cansada, fechada, tem mudanças de humor a cada segundo ebrigou com a sua melhor amiga.

Aquilo enfureceu a jovem.– Claro! Só podia ser isso. Você está mais preocupada com sua amizade com a mãe dela do que

com o meu bem-estar! – explodiu Sophie.George, normalmente defensor da filha, não gostou daquela reação.– Não ouviu a lista de pontos importantes que citamos, meu amor? Sua briga com a Anna é só uma

das complicações. Óbvio que nós estamos preocupados com todo o resto. Estamos preocupados comvocê.

Precisava correr para o banheiro, mas tinha medo de piorar a situação. A ânsia era tanta que oembrulho no estômago a deixava tonta. Será que eles tinham razão?

– Credo! Devo ser uma péssima filha.Não adiantava. Ela ouvia tudo deles ao contrário e vice-versa. Em um momento de briga ou tensão,

o melhor era sempre respirar e afastar-se. A vontade de aproveitar o momento para falar coisas

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desnecessárias sempre piorava tudo.– Você é uma bênção! – exclamou a mãe, segurando com força as mãos fechadas da filha. – É uma

menina linda, estudiosa, de opinião, independente, carinhosa e com uma belíssima voz. Somos sortudosde tê-la em nossas vidas, por isso precisamos resgatá-la dessa solidão.

O discurso de Laura tocara o coração da filha, acostumada a considerá-los sempre os vilões dahistória. Entretanto, toda aquela conversa a deixava confusa.

– Primeiro foi o papo dos pais dos alunos e agora isso. Eu só dormi demais um dia, cruzes! Não foicomo se me pegassem usando drogas.

BUM!Estressado, George bateu o punho fechado na mesa de canto feita de madeira, fazendo ressoar um

barulho ensurdecedor.– Nunca mais repita isso – ordenou, com a expressão fechada como nunca antes. – Repito: nunca

mais! Sua mãe procurará um psicólogo, e você vai às consultas sim. Não vou perder minha menina paraessa garota mimada que tomou conta dela.

Sophie tremia, tentando segurar as lágrimas. A vontade era de gritar a ponto de estourar qualquerobjeto delicado da casa.

Mimada?Aquela era uma palavra que ela abominava.Achava as outras pessoas mimadas. Ser definida assim pelo pai foi a pior sensação de todas. Era

ruim ao ponto de fazê-la se retirar da sala pelo insulto. Tentaria não cruzar o caminho deles pelospróximos dias. Seria difícil, afinal vivia e dependia dos dois para tudo. Mas George, sempre querido,quebrara seu espírito.

Anna, o pai, a mãe e provavelmente o garoto novo. Sophie afastava todo mundo de sua vida.No fundo, mesmo triste e com vontade de ligar para a ex-amiga destrambelhada, percebeu que essa

seria a pior coisa a fazer. Precisaria cortar os laços se fosse um dia realmente abandonar toda aquelarealidade. Melhor começar o processo o quanto antes.

Odiar tudo ao redor devia ser o caminho mais seguro.Esperava estar certa.

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ogara-se nas almofadas velhas do canto da biblioteca. Tinha um período livre e queria colocar aleitura em dia. Mesmo tentando, sentia dificuldade de manter o diário do sono e falhara

miseravelmente ao tentar a técnica MILD. Queria voltar para o Reino. Não sabia como.– Pelo visto, meu bilhete não fez efeito – comentou o garoto novo, interrompendo sua leitura e

jogando a mochila no chão.Em vez de responder, Sophie travou com a situação e a cara de pau do garoto. Ele simplesmente se

deitou ao lado dela e encostou a cabeça em uma almofada para ver o que ela estava lendo. Achou-omuito abusado, mas, mesmo assim, quis descobrir o perfume que ele estava usando. Era uma fragrânciabem masculina, sem tons cítricos ou coisas do gênero. O típico cheiro de “cheguei e sou o dono dolugar”.

A fragrância a invadia, mas, naquele momento, as almofadas pertenciam a ela. Ele era o intruso e elanão cederia.

– Frequentador de bibliotecas? – perguntou, notando em sua voz o tom sonso de que a antiga amigacostumava acusá-la.

Ela teve vontade de rir, mas depois se recriminou.– Explorador de conversas interessantes...Dessa vez, ela riu sem medo.– Sim, porque essa está uma beleza.Ele também riu com o cinismo dela.– Sabia que fica linda sorrindo desse jeito? Devia fazer isso mais vezes.A ruiva voltou à expressão normal, mesmo começando a corar.– Eu estou sempre sorrindo. Meu sorriso é diferente do das outras pessoas.– E gosta disso? Sorrir mostrando os dentes é tão mais bonito.– Gosto, ué. Porque ele é único. E eu gosto de coisas únicas.O rapaz ficou pensativo, refletindo sobre a resposta dela. Encaixara os braços atrás da cabeça e

parecia ainda mais másculo daquele jeito. Mesmo estando vestido como um moleque com sua calçajeans desbotada.

– Gosto de coisas únicas também, mas isso não significa que seu sorriso escancarado não sejaencantador.

Outra vez, Sophie sentiu as bochechas arderem.Tentou imaginar por que ele gastava seu tempo com ela em uma biblioteca antiga. Entendia o

recado de Mônica, porém não tinha interesse em ser amiga ou algo mais de ninguém.

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– Acho seriamente que está perdendo a oportunidade de explorar diversas outras conversas. O pátiodeve estar cheio de pessoas a fim de conversar. Ainda mais com você.

Ele fechou os olhos enquanto a garota falava. Fazendo isso, parecia desprender-se do mundo.Quando Sophie terminou, antes de ouvir a possível resposta, imaginou se o menino seria capaz deconhecer o Reino ao dormir.

– Então a alteza não está a fim de conversar comigo? – o termo a fez tensionar os dedos. – Ótimo!Vou aproveitar para tirar uma soneca aqui. Me acorda quando for a hora de ir para a próxima aula.Foi bom saber que tínhamos o mesmo tempo livre.

Ótimo, pensou com sarcasmo. Percebeu então o interesse do jovem em manter contato com ela por

lá. Aquele devia ser o único espaço confortável na escola para descansar, por isso ele fora parar em seulugar de relaxamento. Não queria conversar com ela ou saber se responderia ao bilhete estúpido.

Por cerca de vinte minutos, ficou lendo enquanto ouvia os barulhos quase imperceptíveis do sonodele. Na verdade, tentou ler, porque se pegou diversas vezes analisando o rosto do garoto com umaatenção curiosa. As páginas amareladas perdiam a graça comparadas ao nariz fino e ao rosto com barbapor fazer.

Notou que, durante aquele tempo, ninguém mais entrara e a bibliotecária não ligou para o fato deum menino e uma menina estarem deitados juntos. Talvez não se importasse por notar que era ela ali. Amenina estava tão em baixa no colégio que só um novato mesmo para não entender aquilo. Ficar aolado dela era quase um suicídio social.

Quando o relógio do celular despertou ao seu lado, acabou vibrando nas costelas do rapaz. Sophieficou extremamente encabulada. Podia tê-lo acordado de maneira mais branda. Antes que pudessedesligá-lo, Léo foi mais rápido e agarrou o aparelho, parecendo um ninja daqueles capazes de capturaruma mosca pelas asas.

– Bom dia, AC/DC! Obrigado por me fazer companhia.Ela ainda estava chocada pela rapidez e pelo abuso.– Nossa conversa foi realmente muito boa – completou ele.Léo era engraçado. Claro que a suposta conversa tinha sido terrível, assim como as últimas que ela

tivera com qualquer pessoa, mas sentia-se um pouco mais confortável com a forma com que o garotolevava tudo na brincadeira.

Seus pensamentos foram novamente interrompidos por ele.– Aqui está meu telefone – comunicou enquanto já digitava na tela do aparelho, sem permissão. –

Não estou dando em cima de você nem nada disso, mas vou participar de um teste mais tarde para serguitarrista de uma banda. Gostaria que você me fizesse companhia. Acho que seria a melhor pessoapara me acompanhar.

Ele está de sacanagem, não é?, indagou-se.

– Pensei que você só cantasse – comentou ela ao ajudá-lo a levantar para correrem até a classe.Ele sorriu, mostrando todos os dentes alinhados.– Notou meu timbre, safadinha?

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O novato era engraçadinho demais para o gosto dela. Seu tom a fez novamente corar. Qual é o meuproblema?

– Prefiro o vocal, mas sei tocar guitarra também – completou ele, percebendo que Sophie corara. –Mas não se pode ter tudo na vida e sinto falta de estar em uma banda.

Sophie percebeu pela última frase que talvez ele sentisse vontade de compartilhar algo do passado.No entanto, quando ela conferiu as horas no aparelho que ele acabara de devolver, o clima foi cortado.

– Precisamos ir, AC/DC! Você curte perder uma aula, mas aluno novo não tem essas regalias.Atravessaram a biblioteca, e a ruiva acenou para a mulher solitária atrás do balcão corroído.

Andando pelos corredores, por alguns segundos o típico tom cinzento da floresta sombria sob os olhosde Sophie desapareceu. Era gostoso caminhar ao lado dele. Percebeu alguns olhares e tentou focar nomocassim com estampa malhada que ela estava usando. Adorava aquele par, pois era diferente comoela. Havia sido um presente da sua avó e, ao pensar nisso, recordou-se da Rainha.

Sua terceira avó.Quando chegaram ao corredor que levava até as classes, a ruiva o interrompeu antes de entrar.– É Sophie – sussurrou, tentando criar mais coragem. – Meu nome é Sophie.Ele entendeu o gesto da garota. Finalmente sentia-se segura perto dele.– Mandei uma mensagem de texto do seu telefone para o meu. Te mando o endereço quando chegar

em casa. Se não nos virmos na saída, até mais tarde, AC/DC!

Poucos minutos depois de chegar ao seu quarto, o celular vibrou e uma mensagem se abriu na tela. Erao endereço. No final, havia uma carinha feliz. O emoticon a fez sorrir também.

Ao descer do carro do pai, percebeu as borboletas no estômago. Não era por pressão, mas poransiedade. Custava a acreditar que estava realmente em um endereço aleatório, indo ao encontro de umgaroto que mal conhecia, só para vê-lo tocar.

George assustou-se quando chegaram ao destino. Era uma casa normal de vizinhança de classemédia, mas um som alto de rock escapava abafado da garagem e alguns meninos de cabelos compridose roupas pretas andavam pelo jardim bem aparado. Ele se perguntou se deveria mesmo deixar suapequena naquele lugar, mas acreditava que ela continuava sendo a menina responsável de sempre.

Quando Sophie tocou a campainha da casa, para a sua surpresa, quem abriu a porta foi uma mulherbonita e sorridente. Devia ser a dona da residência. Num lugar com fundo musical de guitarra, ela maisparecia uma apreciadora de ópera com aquele coque preso, o colar de pérolas e o batom rosa-claro. Osuéter também entregava bastante seu refinamento.

– Que alívio! Uma garota! Sabe quantos meninos passaram por essa porta hoje? – desabafou amulher. – Aceita alguma coisa para beber, querida?

– O que tiver está bom – respondeu, tímida, ao olhar para os lados tentando localizar o novato.Entendeu pela conversa que o nome da anfitriã era Isabella. O filho dela era cantor e realmente

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precisava de um guitarrista. A senhora só repetia o quanto o filho andava chateado e como aquilo adeixava de cabelos em pé.

A ruiva conseguia entender a angústia dela. Isabella queria ajudar o filho a se encontrar, mas, paraapoiá-lo, primeiro precisava se reinventar, aceitar o filho como ele era. Não se tratava de uma tarefafácil. Sophie achou bonita essa atitude. Perguntava-se se era assim que sua mãe se sentia.

A mulher serviu um copo grande de limonada para Sophie, que acabou aceitando também obiscoito oferecido por ela. Já que estava ali, podia pelo menos encher o estômago. Quem sabe assim elenão parasse de revirar.

– A senhora saberia me dizer se um rapaz chamado Léo chegou para a audição?A anfitriã pareceu pensativa ao retirar uma forma de bolo do fogão. O cheiro de chocolate invadiu

a cozinha, e a garota até se esqueceu de que normalmente não comia muito.– O do chapéu? – perguntou ela.Chapéu?Aquilo a perturbava. Toda vez que se lembrava de coisas parecidas com as do Reino, sentia uma

inquietação que levava horas para cessar. Provavelmente ele não estava usando uma cartola, mas só ofato de usar um acessório diferente como aquele lhe provocava comichão.

– Não sei se está usando um chapéu. Nunca o vi com um.Isabella continuava entretida com seu bolo, que decorava com uma pasta de chocolate e granulados

coloridos. Sophie se perguntava se estaria tão bom quanto o do banquete do Reino.– Entrou um menino charmoso uns dez minutos antes de você. Ele tinha o cabelo meio

encaracolado, jogado para todos os lados embaixo de um chapéu preto de abas largas. Também tinha abarba por fazer. Bem diferente, o garoto – comentou. – Claro que se fosse mãe dele já o teria obrigado acortar aquela juba.

A ruiva teve vontade de rir e compartilhar o comentário com alguém. Pelo que já ouvira, as meninasdo colégio achavam outra coisa daquele cabelo.

– Deve ser ele mesmo, ficamos de nos encontrar aqui.A mulher percebeu então que estava prendendo Sophie.– Me desculpe, querida! Eu e minhas tolices. Vou levá-la até a garagem.Sophie sentiu-se aliviada. A mãe do líder da banda finalmente a acompanhou. No caminho, ela

explicou que os vizinhos brigavam e chamavam a polícia quando o filho tocava com o portão aberto.Depois da segunda grande reclamação, decidiram deixar os meninos passarem por dentro da casa. Elatambém não se sentia à vontade, pois muitos deles eram estranhos que provavelmente nunca mais veria.

Sophie apenas respondia com educação, entediada.Bateram à porta, mas o som lá dentro estava alto demais e não foram ouvidas.– Mandamos revestir as paredes com espuma para abafar o barulho... – contou a dona da casa.Parecia que seria difícil entrar. Não ficaria a noite toda batendo à porta.A mulher tentou abrir, mas nada adiantou. Estava trancada. Ela não entendia por quê, já que havia

outras pessoas no jardim.– Ele deve ter achado que eu tentaria bisbilhotar – comentou a mulher quase que para si mesma. A

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garota sentiu a tristeza mascarada nas palavras.– Com certeza foi para se concentrarem. – Sophie tentou melhorar a situação. – Não deve ter sido

por mal.Isabella sorriu e um peso parecia ter sido tirado de seus ombros.Colocando a cabeça para pensar, Sophie se lembrou de que Léo poderia estar com o celular. Ouvia

a banda ensaiando, mas não sabia se a audição havia começado. Se sentiria péssima se perdesse aapresentação.

Digitou depressa que estava na porta e, poucos minutos depois, a maçaneta girou, revelando ochapéu que a senhora descrevera.

– Você veio!Encabulada, ela respondeu:– Ué, você me chamou.– Pois fez muito bem – disse sorrindo e indicando para que entrasse. – Sou o próximo.Sophie se despediu da mulher e desceu os degraus que levavam ao grande espaço da garagem

coberta. No local, um palco com equipamentos de boa qualidade fora montado, e cinco garotosvestidos com roupas inspiradas em bandas arrumavam os cabos e testavam instrumentos. Tambémhavia mais três garotos sentados em um sofá de canto velho e uma geladeira vermelha encostada naoutra parede. Os pais do garoto pareciam ter limpado mesmo o espaço para ele se dedicar à música.Sophie achou bacana.

– Está nervoso? – perguntou ela, tentando puxar algum assunto.Era a única menina em um ambiente cheio de rapazes sombrios.– Eu fico animado – comentou ele com um brilho nos olhos. – Estava com saudade de levar essa

magrela para passear.O rapaz se referia à guitarra vermelha em sua mão. Ela achou graça na maneira como ele falava,

principalmente porque também tinha a mania de apelidar as coisas.– Vamos ver se é bom com ela...A provocação pareceu animá-lo ainda mais, porque quando chamaram seu nome ele deu um pulo e

o chapéu quase caiu da cabeça.Sophie achou algumas almofadas jogadas no chão e, para evitar sentar com os outros guitarristas,

resolveu aproveitá-las. Mesmo não entendendo por que estava naquela casa, ela se divertia com aexperiência fora de sua zona de conforto. Léo era simpático e diferente como ela. O clima rock’ n’ rollsempre foi a sua praia. Podia relaxar.

Para sua surpresa, “Wish You Were Here” começou a ser tocada por Léo, e um sorriso brotou emseu rosto.

A habilidade dele no dedilhar dava um toque de ternura à atmosfera – sentimento que ela raramentetestemunhava, ainda mais quando esperava algo mais pesado. Toda a angústia dos últimos temposdesaparecia conforme o vocalista acompanhava os acordes da guitarra e da surpreendente segunda vozde Léo. O rapaz, emocionado, acabava cantando junto com o garoto, mas mesmo assim o respeitavacomo vocalista. A harmonia entre as vozes era surpreendente. Os outros concorrentes pareciam

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desconfortáveis no sofá; muitos se remexiam durante a canção.Sua alma parecia cantar junto com a letra do Pink Floyd. Estar lá para assistir havia sido um dos

melhores acontecimentos dos últimos meses, tirando as idas ao mundo mágico. Aquele momentoresgatava sua alma de artista. Tinha vontade de abraçar o mundo. De ir para o Reino e mostrar aquelalinda canção para os Tirus ouvirem. Seria possível? Um dia poderia cantar para eles?

What have we found? The same old fears. Wish you were here.A dor contida naquela melodia era muito bonita. O que encontramos? Os mesmos velhos medos. Queria que

você estivesse aqui. Cada pergunta, cada entonação do vocalista lhe parecia universal. Naquele momento,

ficou óbvio que Léo havia ganhado a vaga na banda. Ao terminar o último acorde, o dono da casalargou o microfone e foi dar os parabéns para o menino.

Deviam até estar constrangidos com a situação, pois ainda havia outros para testar. Provavelmente,nenhum conseguiria tocar e cantar do modo como ele havia feito.

Saindo do palco e encontrando Sophie de pé, Léo a ouviu dizer:– Somos apenas duas almas perdidas...– Nadando num aquário – completou ele.

Ambos sorriram.O sorriso dela foi tão escancarado quanto o dele.Léo não se arrependia de ter chamado a garota triste para vê-lo tocar. Desde a primeira vez que a

vira, sabia que ela era como um passarinho com asas quebradas.Não queria consertá-las.Mas gostaria de tentar encorajá-la a se curar e voar.

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esmo tendo a oportunidade de passar a noite como uma garota normal, capaz de aproveitaruma bela canção e boa companhia, ela não tirava o Reino da cabeça. Ainda mais depois da

visita a Mama Lala.As palavras da sábia senhora haviam penetrado em seu cérebro quase como se aqueles dizeres

estivessem gravados nos miolos cansados de tanto pensar. Sabia que deveria estudar as cartasapresentadas a ela. Somente ao completar as três etapas seria a princesa daquele local mágico e ficariapara sempre nele. Queria aquilo mais do que tudo. Precisava parar de enrolar e agir.

Sentia mais paz agora. Entretanto, a noite ao lado de Léo não a fizera mudar de ideia. Precisaria demuito mais do que aquilo para sentir-se parte do mundo humano. Na verdade, vê-lo cantar despertounela o desejo de mostrar o próprio talento.

Sophie sabia cantar e tinha uma voz memorável, daquelas que, ao escutarmos pela primeira vez, nosfazem levar um choque e procurar pela música em algum rádio ligado. Em momentos de solidão, elapegava o antigo violão e dedilhava acompanhando as notas saídas da garganta. Ficava horas e horasconversando com o eterno amigo de madeira e compunha canções com tanta facilidade que umprofissional ficaria abismado. Definitivamente, tinha um dom, contudo não o compartilhava.

Aquele era um assunto controverso na casa. Um tópico maior do que as contas, o clube das mães oua magreza dela. Os pais achavam um absurdo a ruiva não mostrar seu dom para o mundo. George eLaura a pressionavam sempre comentando que um talento como o dela deveria ser compartilhado comoutras pessoas, não só Dior, para quem normalmente cantava. Sophie acreditava que eles queriamapenas exibi-la, talvez para mostrar que ela não era tão esquisita como os outros pensavam.

Aquele era o problema...A pressão e a expectativa das outras pessoas.Gostava de cantar, pois, cada vez que abria os lábios singelos, um espírito maior tomava conta de si.

Cada palavra no ar parecia ser escrita pela sua alma, e ela sentia a atmosfera se tornando mais mágica.Quase feérica. Cantar sempre seria seu refúgio, e não perderia isso para simplesmente satisfazer os pais.Não tinha pretensão de se tornar uma cantora profissional e gravar seu próprio CD. Imaginava que, semostrasse seu dom para os outros, sempre seria questionada sobre aquilo, então preferia ficar na dela.Gostava mais de ver pessoas como Léo realizarem seus sonhos musicais. E não sentia tanta necessidadede mostrar que sua voz era bonita.

– Se divertiu? – quis saber a mãe, entrando pela porta antes entreaberta.A jovem apenas balançou a cabeça, mas o gesto pareceu suficiente. Era até uma evolução perante os

últimos acontecimentos. A filha parecia um pouco mais tranquila.

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– Quer comer alguma coisa? – ofereceu Laura.No computador ligado ao seu lado, Sophie olhou as anotações no lembrete digital aberto por cima

do papel de parede da sua tela, que exibia um “Okay?” em tom de azul vibrante.– Temos banana, aveia e mel?Laura estranhou a resposta dela. Havia perguntado por força do hábito, mas não imaginava que a

filha fosse realmente querer comer. Ainda mais banana. A garota costumava brincar que banana era afruta do demo. Era amarela, molenga e cheirava mal. Por conta disso, a mãe ficou surpresa.

– Temos, sim. Quer que eu traga amassadinha? – perguntou como se ela fosse um bebê.Sophie confirmou, achando graça, e completou:– Se tiver chá de camomila, também aceito.Mesmo sendo uma combinação esquisita, a mulher resolveu não contrariar. Era melhor vê-la

comendo, ainda mais alimentos naturais, do que reclamando de ter que se alimentar.Sophie checava o lembrete digital na tela, todo marcado com dicas para ter um sono melhor. Se

técnicas complicadas não funcionavam com ela, tentaria métodos mais simples. Talvez assimconseguisse um resultado melhor. Sentia saudades da Rainha e até do gato cantor de jazz. A urgênciade ir para a outra dimensão era cada vez maior.

Voltou a ler na tela do computador que a camomila era conhecida como um calmante naturalcapaz de ajudar até em casos graves de insônia. A outra receita tinha sido mais interessante aprender:com aveia e mel, a banana ajudaria a liberar triptofano, um precursor da serotonina e da melatonina,substâncias ligadas ao sono. Se aquilo tudo funcionaria era uma incógnita, contudo torcia para que sim.

A mãe voltou com a refeição saudável em uma bandeja, e a garota aproveitou para comer de luzapagada, assistindo a um filme em preto e branco. Achava que as cenas monótonas a induziriam aosono. Apesar de a Guardiã ter dito que não devia pensar no Reino enquanto estivesse na Terra, Sophieacreditava que só teria acesso a ele se pensasse no lugar.

Quando desligou o aparelho e deixou a bandeja no chão, pôde sentir a brisa do ventilador bater nospés fora do cobertor, e o zumbido que ele fazia a embalou. Poucos minutos depois, veio a sensação deser sugada.

Toda vez que era chamada para o Reino, assustava-se com o processo. Estava muito feliz de voltar paraas terras coloridas, mas nunca sabia aonde exatamente chegaria. Sua roupa tendia a mudar e tambémquem a acompanhava. Ficava um pouco confusa. Um dia, precisaria se acostumar.

Quando abriu os olhos, não se encontrava mais na casa de Mama Lala, e Sycreth também nãoestava ao seu lado. Pelo que podia reparar, havia fileiras e mais fileiras de livros com lombadascoloridas ao redor, todos parecendo muito novos.

Deve ser uma biblioteca recém-inaugurada, pensou.

Como tudo no mundo mágico era limpo e organizado, talvez os livros também fossem. A aparência

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mofada e antiga da maioria das bibliotecas não se aplicaria ao lugar. Ao manejar alguns, Sophie notouque até preferia dessa forma. Amava ler, porém odiava a poeira áspera que ressecava os dedos apósmanusear um exemplar antigo. Gostava mais das páginas lisas com cheirinho de livro novo compradascom dinheiro contado.

– Uma coleção impressionante, não é? – perguntou o Ministro, girando numa poltrona vermelhaque, pouco antes, estava virada na direção da janela.

O susto foi grande. A ruiva nem tinha sentido a presença dele no local. Até aquele momento,conversara pouco com Phix, e a ausência de seu fiel escudeiro parecia fazer diferença.

– É um lugar único mesmo – respondeu ela, abrindo mais um exemplar e notando os temasestranhos abordados naquelas obras.

Como viver com os humanos?, leu em silêncio enquanto folheava um manual de sobrevivência. Nunca

pensou que veria algo parecido.Também havia guias ensinando a limpar as asas de uma fada, contos sobre sereias e outros seres

aquáticos, guias de viagens por dimensões mágicas e livros com receitas de comidas mais do queexóticas. O tipo de leitura nunca encontrada na biblioteca de seu colégio, a não ser que levasse emconsideração o único exemplar de Animais fantásticos e onde habitam.

– Quem escreveu todos esses livros? – quis saber, curiosa.– Alguns já estavam aqui antes do meu nascimento. Outros foram escritos por moradores do Reino

conforme estudavam certos assuntos. Eu mesmo já escrevi alguns.– Você é escritor?O Ministro gargalhou, ajeitando a cartola.– Todo ser humano tem a habilidade de escrever. Alguns sabem transformar isso em algo bom o

suficiente para se tornar uma profissão, e outros usam como passatempo.– E qual seria o seu caso?– As duas coisas – respondeu ele sorridente.Sophie continuou lendo os títulos desenhados em caligrafia caprichada nas lombadas dos inúmeros

exemplares organizados. Sentia-se dentro de um arco-íris, devido à quantidade de cores ao redor, ouentão em uma loja de jujubas. O homem continuava sentado na poltrona, apenas observando a garotapassear de um lado para o outro movendo os olhos rapidamente por todos os cantos.

– E o que um Ministro faz?– No seu mundo ou no meu?– Que eu saiba sou princesa deste mundo, então acho que seria melhor dizer no nosso.Ele foi pego de surpresa. A jovem tinha toda a razão. Por muitos anos, Phix exercera o cargo de

Ministro do Reino e lidara com isso. As tarefas quase o fizeram perder as forças para encontrar aprincesa desaparecida. Sem ela, sua vida seria muito mais complicada, e sentia-se aliviado de a Rainhater encontrado finalmente uma sucessora.

– Estou ao lado da Rainha há muito tempo. Até a gestão dela, nós nunca tivemos um Ministro,porém ela achou necessário. Sua única sucessora fora enviada para os humanos, e não haveria alguémpara substituí-la caso algo acontecesse.

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– Então você cuida do Reino? – perguntou ela.– Ajudo a organizá-lo. Os Tirus são seres incríveis, mas, como pode ver, possuem uma voz muito

forte. Sozinha, a Rainha não conseguiria governá-los. Comigo, ela pode respirar com mais calma.– E essa vai ser a minha função agora?Ele ficou pensativo.– Sua presença já mudou muito a dinâmica de nossas vidas...– Isso foi meio vago. Em que sentido? – Sophie não conseguia calar as diversas perguntas que

invadiam sua mente. Queria saber tudo e fazer tudo. Se Phix era o Ministro daquele lugar, poderiaajudá-la.

– Sempre fomos felizes. A Rainha Ny, assim como Sycreth e eu, nos preocupamos com os Tirus e asnecessidades do Reino. Contudo, faltava uma grande peça do quebra-cabeça. Apesar dos nossosesforços, sempre havia um clima de luto escondido atrás dos sorrisos, e é por isso que você mudou anossa dinâmica...

– Porque agora eu preencho esse espaço – sussurrou ela, compreendendo.Phix levantou-se da poltrona e foi até ela.– Sempre soube que meu destino não era cuidar dessas almas afetivas – começou a falar, segurando

a mão de Sophie com uma força consoladora. – Eu sabia que havia algo mais nisso. Hoje, sei por queestou aqui: para guiar a joia mais rara deste Reino e transformá-la na estrela que é.

Uma lágrima escorreu até o canto da boca rosada da menina. Sentia o carinho nas palavras dele.Entendeu o quanto modificaria a vida dele e de todos ao redor. Ninguém mais ali tinha esperança noretorno da sucessora do trono. Mas agora Sophie estava lá. Muita coisa mudava.

– Quero me encontrar com os Tirus – suplicou ela. – Preciso mostrar para eles o quanto essalealdade significa para mim. Mostrar como sou grata por todo esse amor que eu pensava não serpossível.

O Ministro afrouxou o abraço ainda olhando-a fixamente nos olhos.– Tudo tem seu tempo. Você pôde conversar com sua majestade, com Sycreth, Mama Lala e

comigo. Sabe que tem um caminho a percorrer.Aquela enrolação a deixava ansiosa demais. Não conseguia compreender a necessidade de ficar

longe das pessoas que a amavam.– Só poderei falar com eles quando completar as três etapas?Phix conseguia sentir a angústia em seu tom. Para a felicidade dela, ele não seria tão cruel:– Ao final da terceira etapa, você entenderá seu papel neste mundo. Mas, passando pelos Amantes,

conseguirá a permissão de conversar com os habitantes.Aquilo já a aliviava. Não sabia por que havia tantas regras para ser princesa.– Você pode me fazer um favor? – perguntou pela última vez.Phix aquiesceu.– Na próxima vez em que estiverem reunidos, poderia dizer que também me importo com eles?Ele pareceu gostar do pedido, pois baixou a cabeça sorrindo e posicionou o punho direito fechado

sobre o coração. Ela entendeu o gesto como um sim.

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Precisava finalmente conhecer o significado da carta dos Amantes.

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m homem parado entre duas mulheres estava na mira de uma flecha, que parecia pronta para serdisparada por um anjo.

Era aquilo que Sophie via.Ela decidira passear pelo shopping depois da aula, buscando esfriar a cabeça de tantos

pensamentos. Precisava encontrar uma loja esotérica para comprar um tarô sem que a vissem. Andoupelos corredores movimentados e encontrou um estabelecimento escondido. Havia miniaturas de bruxase fadas penduradas no teto, velas coloridas enfileiradas nas prateleiras e um aroma forte de incenso.Para a sua felicidade, ela logo encontrou o que procurava. Sentada no banco diante da loja mística,Sophie segurava a mesma carta mostrada por Mama Lala. Adquirira um manual de tarô. Com algumadedicação, entenderia um pouco mais daquele universo. Correu os olhos azuis pelo texto, tentandocaptar o máximo de informação possível, até perceber que precisaria de mais tempo. Ninguém aprendiaa decodificar aquelas cartas de um dia para o outro, simplesmente passando os olhos pelas páginascoloridas.

E como gostou do livro que vinha junto com o baralho! Parecia muito com os exemplares dabiblioteca do Reino. Cada página virada revelava uma gravura diferente e espalhafatosa, retratada emcores primárias. Observava os detalhes como se estivesse vendo uma pintura de Leonardo da Vinci pelaprimeira vez. Sabia o quanto aquelas cartas iriam ajudá-la.

Um dia vou conseguir passar por esses obstáculos e partirei deste mundo para ficar ao lado deles, pensou,

empolgada por aprender coisas novas.Mas, em seguida, levou um susto.– E não é que você anda me seguindo? – perguntou uma voz masculina conhecida.Sophie deu um pulo do banco. Justificável.Ela estava parada na frente de uma loja de bruxas com um baralho esotérico na mão.Tentou colocar o livro e as cartas o mais discretamente possível dentro da mochila e virou-se

delicadamente para encarar seu perseguidor.– Posso dizer o mesmo – respondeu com a voz seca.– TPM? – Léo achou graça. Ela reparou que ele usava uma roupa diferente da que tinha visto pela

manhã no colégio.– Sempre – brincou, mais relaxada.A grosseria não era proposital, apenas força do hábito.– E aí, AC/DC? Veio direto da escola para cá?

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Ela achava graça por ele ainda chamá-la daquele jeito.– Precisava comprar umas coisas...– Eles vendem... Coisas para TPM em lojas como essa?

Em uma risada involuntária, a ruiva aos poucos conseguiu dizer, totalmente sem graça:– Endoidou, garoto? Se eu quisesse coisas pra minha TPM procuraria uma farmácia.

– Ei, sem preconceitos com bruxas, ok? A minha carta também nunca chegou...Os dois continuaram no clima descontraído.– Você é mesmo maluca – completou Léo ainda sorrindo, mas a frase acabou não surtindo o efeito

certo e quebrou a magia do momento.A expressão de Sophie endureceu em poucos segundos. Os olhos tornaram-se mais cinzentos e

comprimidos. A boca não passava de um risco que tremia levemente, e ela sentia as unhas roídasmachucarem a palma da mão.

– Muito engraçado – comentou ela, voltando à posição normal.O novato percebeu o clima de enterro e resolveu se sentar ao lado dela, mesmo sabendo que não era

bem-vindo ali.– Você é invocada, né? Sorte que é bonita. Ou nem mesmo eu falaria com você e a sua vida seria

ainda mais triste por isso.Ela teve vontade de sorrir, mas não pretendia ceder.– Lembre-se da noite passada – continuou ele olhando de lado, enquanto balançava as longas

pernas em um tique. – Nadando num aquário. Estamos nadando no mesmo aquário.Era estranho, mas aquilo fazia sentido para ela. Eles estavam presos em um pequeno espaço

chamado vida.– Gostou de ontem? – perguntou o garoto, insistindo no assunto.Sophie ainda tentava se comunicar com ele, mas se sentia incomodada pelas cartas de baralho em

sua bolsa e pelo termo maluca, que lhe cutucava a mente. Acabou murmurando um “sim”, embora ele

esperasse mais.– Sabe, você poderia conversar com a Mônica da minha turma – sugeriu ele, de supetão, pegando-a

desprevenida.– Já se cansou de tentar ser meu amigo?Foi a vez dele de ficar sério. O novato parecia realmente empenhado em ter um relacionamento com

ela, seja lá qual fosse. Ou por que motivo fosse.– Você sabe que suas palavras machucam, não sabe?– Ser chamada de maluca também dói.– Eu compreendo. E você tem todo o direito de se sentir magoada. Mas isso não lhe dá o direito de

ser cruel.Os dois pareciam alheios às pessoas andando pelo corredor movimentado do único shopping da

região. Quando conversavam, o mundo parecia limitado àquele espaço, apesar de ela não quereradmitir.

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– Hoje completa um mês que meu pai foi transferido de cidade – desabafou o jovem. – Ele é muitobom no que faz, sempre é requisitado por outras sedes e temos que segui-lo. Estávamos há dois anos nacidade anterior. Você consegue imaginar como deve ser tudo isso para mim?

Sophie se lembrou do comentário de Mônica sobre o garoto não ser como os outros.– Você tinha criado raízes...– É, eu tinha criado raízes – repetiu ele, balançando lentamente a cabeça. – Estava com uma banda

ótima em que eu era o vocalista, frequentava uma boa escola com pessoas desencanadas, ajudava oabrigo de cães da cidade sempre que podia... Eu tinha uma vida boa, Sophie.

– Ela não devia ser tão boa assim.– Por quê?– Nenhuma banda que se preze teria um vocalista com o seu visual.O garoto riu e mostrou a língua para ela. Depois, suspirou.– Sabe, eu descobri que amo meu pai mais do que a mim mesmo – continuou ele. – Vi que eu

poderia reclamar da minha situação e fazê-lo se sentir culpado pela minha infelicidade. Mas poderiatentar me redescobrir nesta cidade e, quem sabe, transformar esta vida em uma boa também.

A cada conversa, Sophie percebia como ele era maduro para sua idade. Os meninos no colégio nãocostumavam pensar daquela forma, pelo menos não os que ela conhecia. Eles normalmente reclamavamda vida, assim como ela.

– Por que sugeriu que eu fizesse amizade com a Mônica? Acha que a minha vida não é boa?Ele voltou a sorrir.– Esse é um motivo – disse, erguendo a sobrancelha. – Mas também porque ela se amarra nesse tipo

de carta que você tentou esconder.A ruiva não conseguiu disfarçar a vergonha de sempre ser desmascarada.

– Eu não sei do que você está falando... – retrucou, fingindo olhar para a vitrine da loja.Ele imitou o modo dela de falar:– Espero que eu não encontre o tal amante, mocinha! Este aquário não é grande o bastante para

mais um.Antes que ela pudesse reagir, ele lhe lascou um beijo no rosto e saiu caminhando lentamente pelo

corredor, deixando-a parada e imaginando se aquilo era amizade ou algo a mais.Uma parte dela desejou algo a mais.

Por dias, sentou-se sozinha pelos cantos estudando o livro de tarô devidamente encapado para escondero título. Quem visse de longe acharia que ela lia algo em um caderno escolar qualquer. Contudo,mesmo estudando bastante, pouco compreendia daquelas cartas coloridas.

Apesar de todo o cuidado, ainda chamava uma atenção indesejada. Certo dia, enquanto estudava olivro, uma garota de outra classe passou, viu as cartas e a chamou de bruxa. Por mais de uma semana,Sophie ouviu burburinhos, e as pessoas começaram a chamá-la de macumbeira anoréxica. Ela não

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entendia como conseguiam juntar uma coisa com a outra e até confundir as religiões. Durante algumtempo, não ligou, mas os punhos cerrados sentiam a dor de seu coração conforme os apertava de raiva.

Tentava motivar-se pensando no Reino; por isso, observara diversas vezes a carta dos Amantes. Ohomem no centro do grupo olhava para a mulher da esquerda. Sophie achava muita presunção definir ohomem como o culpado por uma traição, mas também acreditava que o artista da gravura não poderiafazer duas versões diferentes. O galã da imagem tinha os cabelos loiros, as pernas estranhamentedescobertas e sua vestimenta era uma túnica de listras verticais de cores comuns, com mangas e cintoamarelo. Parecia mais afeminado do que as mulheres, e ela achou graça dos detalhes. A mulher dadireita tinha os cabelos loiros soltos sobre os ombros. Seu rosto era jovem e delicado. A mão esquerdapousava sobre o peito do homem, enquanto a direita apontava para baixo de um modo que seus braçosse cruzavam.

A outra mulher fora representada de costas, mas Sophie pôde notar que o rosto aparecia de perfil.Tinha cabelos de tonalidade azul, os quais escapavam livremente de um chapéu esquisito, e a mãodireita estava apontada na direção da terra, enquanto pousava a esquerda sobre o ombro do jovem. Erapossível sentir a tensão nas feições dela.

O que a ruiva achava mais bonito na imagem, no entanto, era o anjo de cabelos loiros e asas azuissegurando uma flecha branca com uma das mãos, enquanto a outra trazia um arco da mesma cor. Dodisco solar atrás dele, saíam vinte e quatro raios pontiagudos, um dos quais aparecia pouco, quaseescondido pela asa da figura angelical. Sophie repassara cada detalhe diversas vezes. Mas era difícilidentificar sua tarefa.

Revendo a página sobre a carta pela milésima vez, percebeu uma movimentação esquisita por perto.Angélica, que agora preenchia seu lugar no antigo grupo de que fazia parte, apontava em sua direção.Sophie não compreendia o motivo de tanta obsessão por ela. Notava nos pequenos relances o modocomo todos a olhavam. Rick parecia rir de alguma coisa que a namorada dissera, e aquilo lhe revirava oestômago. Era por causa deles que não tinha mais a melhor amiga. Não que Anna não tivesse suaparcela de culpa, mas, sem dúvidas, o casal havia ajudado na situação.

Prestando mais atenção ao grupo, percebeu a falta de dissimulação e a ausência de Anna e Daniel.Onde eles se meteram?, perguntou-se.

Não entendia por que se incomodava com aquilo. Também não via Léo todos os dias da semana,mesmo estudando a passos de distância dele. Além disso, desde que conversara com Phix, também nãohavia sido chamada para o Reino. Naquela noite, tentaria ler madrugada adentro para ver se a leitura acansaria o suficiente. Em pouco tempo, precisaria fazer exercícios físicos antes de dormir para se cansar.Seu sono habitual não fazia mais efeito. As sonecas vespertinas também não.

Angélica novamente a encarava, e Sophie percebeu que havia algo errado ali. Ao ver o casal popularda escola discutindo em um dos cantos atrás dela, compreendeu. Houvera um desentendimento entre orei e a rainha daquele local, Anna e Daniel.

Em meu Reino, não preciso me preocupar com essas coisas, pensou, aliviada.

A mágoa ainda a corroía e, por muitas vezes, proibira-se de pensar na companheira de tantashistórias. Contudo, agora ficava difícil ignorar a face borrada e visivelmente alterada da morena,

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brigando com o namorado. Poucas vezes vira Anna chorar. Não sabia se só assistia ou se a consolava.A dor deveria ser dividida, pensou. E, quando foi comigo, Anna não esteve ao meu lado.Apesar de lamentar vê-la daquela forma, decidiu ignorar. Não era mais seu dever moral. No tempo

que se passara, as duas tinham tocado suas vidas normalmente. Havia dias em que Sophie chorava nosbanheiros, do jeito como Anna chorava naquele momento, mas nenhuma precisava de fato da outra.

Pelo menos queriam acreditar que não.Percebeu que olhava demais para trás, procurando assistir à situação, e temeu que outros pudessem

também prestar atenção nela. Resolveu fazer o mais correto e saiu de onde estava. Deixaria os colegas sedivertirem com o show à vontade, mesmo porque talvez Anna gostasse da atenção. Desde que Angélicae Rick tinham se transformado em um casal, sua relação deixara de ser o centro das atenções. Léotambém roubava bastante do brilho de Daniel. Os dias dela de pura popularidade estavam contados.Sophie se lembrou de sua conta falsa na rede social e pensou que provavelmente comentariam sobreaquilo com sua personagem.

Enquanto atravessava o pátio de cabeça baixa para evitar olhares, a mão de alguém pousou em seuombro. Por reflexo, Sophie segurou-a com força. Podia ser magra, porém sabia ser ágil quandoprecisava.

– Ei, fica tranquila! – exclamou Mônica, sentindo o membro esmagado e perguntando-se como aruiva magricela tinha conseguido machucá-la.

– Perdão – respondeu Sophie, soltando a mão e evitando encará-la. – Não esperava ser abordadapor ninguém.

Mônica encaixou o braço no da ruiva do mesmo modo como Sycreth costumava fazer. O gesto fezSophie respirar com mais calma. As duas continuaram seguindo em direção às salas de aula.

– Foi cruel o que fez lá atrás – disse a menina dos olhos verdes.– Eu não fiz nada! Estava lendo e resolvi voltar para a sala.Sophie pôde identificar a própria voz de sonsa. Sentiu mais raiva de Anna por tê-la feito perceber

aquele detalhe. Não quero saber tanto assim sobre mim mesma.– Ela deve estar precisando de você...Sophie suspirou.– Nem tudo que queremos este mundo nos dá.Durante meses, Mônica tentara entender a amizade das duas a distância. Eram almas muito

diferentes, em estágios completamente opostos, e, mesmo assim, riam juntas. Notara também que nãoera fácil fazer a ruiva rir, então a relação devia ser verdadeira. Achava aquilo bonito. Comentara comLéo o quanto a falta de Anna devia afetar a jovem. Por mais que Sophie gostasse da companhia de Léo,ele continuava sendo um garoto. Há horas em que uma mulher precisa de outra para desabafar. Sophiehavia perdido seu ponto de apoio.

– Vamos falar de coisas mais interessantes então – sugeriu Mônica.– Isso quer dizer que não vamos mais falar da minha vida? – perguntou Sophie com ironia.Mônica gostava de como ela sabia ser ríspida de uma maneira cômica.– Ouvi dizer que está estudando o tarô de Marselha.

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– Ouvi dizer que existe um garoto muito fofoqueiro neste colégio.– Ouvi dizer que ele é muito bonito.– Ouvi dizer que você enxerga muito mal.A amiga riu.– Você sabe que ele não faz por mal, né?– Eu sei – respondeu Sophie, chegando à porta de sua sala. – A língua dele só é maior do que a

boca.– Eu tinha me referido à beleza. Mas interessante você ter reparado na língua dele.Sophie riu.As duas pararam e finalmente desenlaçaram os braços. O sinal tocou, fazendo os alunos encherem o

corredor de gritos e bagunça. Elas acabaram sorrindo ao ver aquela insanidade percorrer o local. Nãopoderiam mais falar sobre o assunto, mas Sophie entendia que Mônica estava lhe oferecendo ajuda comas cartas. Talvez fosse a hora de aceitar.

– Você entende mesmo dessas coisas? – perguntou antes de entrar.– Toda mulher tem um lado bruxa – respondeu Mônica passando um papel com seu telefone

anotado. – É só me ligar quando quiser exercer o seu.Aquilo parecia interessante.Mama Lala tinha lhe contado sobre o baralho. Se pudesse aprender com alguém o significado das

cartas, estaria mais próxima de voltar aos Tirus. Não sabia até que ponto era possível estudar magia nomundo humano. Ouvira falar de religiões que cultuavam aquilo, porém via-as como excêntricas, sempensar que, a outros olhos, ela também era excêntrica. Mais até do que muitos outros, por saber ser aprincesa de outra dimensão.

Quando se despediram, viu o rapaz magro aparecer no corredor ao lado de um grupo de meninos emeninas. Pelo modo como mexia as mãos, parecia empolgado com o que dizia. Sophie notou como eleficava ainda mais atraente se expressando daquela forma. Percebeu também o jeito como as outrasmeninas o olhavam, admiradas. Havia um brilho diferente nele. Antes de virar as costas, ouviu uma dasgarotas perto dele chamá-la de esquisita. Léo localizou-a e abriu seu sorriso típico, lançando-lhe umapiscadela.

Ela até esqueceu que o grupo a olhava com repúdio.Seu coração deu um pulo.Sorrindo de volta, ela tentou deixar os outros pra lá.

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D

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esde que brigara com Anna, Sophie havia criado uma rotina na escola. A ausência da garotatinha modificado vários elementos do seu dia a dia, mas o ponto principal era a saída do

colégio.Antes, as mães se intercalavam nas caronas ou elas voltavam juntas de ônibus. Depois da briga,

Laura resolveu ir buscá-la sempre, e, com o tempo, notou uma mudança na filha. Era comum Sophiedemorar para guardar seu material e esperar todos saírem da sala e esvaziar o corredor. Sentava-se naúltima carteira da fileira afastada da porta, assim evitava qualquer encontro indesejado. Desde oprimeiro ano naquela escola, já havia recolhido muitas vezes o estojo do chão por brincadeiras infantis.Também já encontrara muitos bonecos de vareta desenhados em seu caderno. Estudar na mesma sala depessoas que chegava a odiar era um fardo, mas tentava carregá-lo da melhor maneira possível.

O fato de ser uma das últimas a sair também lhe dava a possibilidade de não cruzar tantas vezescom o rapaz e sua amiga cartomante. Achava melhor evitar qualquer ligação com o mundo humano.Sofreria ao deixá-los para trás. No fundo, não sabia nem mesmo como viveria sem os pais e Dior.

Após mais um fim de período, estava empolgada para chegar em casa e se preparar para aprender ossegredos das cartas. Se telefonasse para Mônica, talvez a conversa fosse menos pessoal.

Demorou-se na carteira, evitando os olhares e tentando não ficar no caminho de ninguém. Quandoum engraçadinho trombava com sua carteira ou mochila, ela apenas respirava fundo e continuava aolhar para o material. Tinha a mania de deixar todos os itens do estojo alinhados na mesa e guardavaum por um antes de botá-los na bolsa.

Viu os colegas saírem e o professor de geografia deixar a aula carregando trabalhos para corrigir.Outra pessoa parecia procrastinar a saída, para seu nervosismo. Era Anna.

O que ela quer comigo agora?Aproveitou um grupo de meninas saindo e colocou a mochila nas costas para tomar seu rumo.

Nada lhe tiraria o gosto de passar no primeiro teste para conversar com os Tirus, mas, ao chegar àporta, ouviu:

– Sophie...Seu corpo gelou. Um arrepio percorreu-lhe a espinha, e ela ficou estática por alguns segundos. O

que aconteceria se ela se virasse? A amiga lhe pediria desculpas? Desabaria em lágrimas pedindo aamizade de volta? Ou a atacaria novamente?

Para sua surpresa, o assunto era outro.– Daniel terminou comigo por sua causa.A ruiva esperava ouvir qualquer coisa, menos aquilo.

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– Se vocês terminaram, eu não tenho nada com isso – respondeu, tentando sair da sala.– Não ouse sair enquanto estou falando com você! – gritou Anna. – Não você também.Pela atitude dela, Sophie soube que algo mais sério que o término tinha acontecido.– O que você quer de mim? – perguntou finalmente, virando-se.Ao encará-la, Sophie percebeu os olhos ainda inchados de Anna. Mesmo o cabelo sempre brilhante

estava opaco.– Quero que me dê minha vida de volta – continuou Anna. – Sempre fui popular neste colégio.

Ajudei você durante todos esses anos, mesmo com todos contra mim, e agora perdi meu lugar. Nóséramos um time, e você acabou com ele.

O estômago de Sophie ardeu.– Eu acabei com ele? Fui eu que tentei comprar um menino com favores para fingir gostar de uma

amiga? Sou eu que jogo na sua cara sempre que posso o quanto minha presença era um favor para você?

Sim, eu saí finalmente da sua vida. Agora você pode reinar o quanto quiser. Eu não preciso reinar aqui.– Como se você conseguisse reinar em algum lugar.A ruiva sentiu vontade de rir. Não precisava mais se preocupar com sua aceitação ali, pois agora só

precisava descobrir os significados das cartas e sumir.– O que você quer que eu faça? – perguntou Sophie, segurando a raiva.– Quero que vá até ele e diga que eu não me importo mais com você e que nossa briga não vai mais

afetar meu relacionamento com ele.– MAS É MUITA CARA DE PAU! – gritou Sophie.Em certas horas, é melhor sair do ambiente para não fazer algo impensado.– Ele disse que não sou mais a mesma desde que você se foi... – revelou Anna chorando, enquanto

Sophie andava em direção à porta.Aquilo doeu ainda mais. Em seu íntimo, sentia que Anna queria apenas mostrar que sentia sua falta.

Mesmo assim, saiu da sala e bateu a porta com força.Só não contava com a presença da diretora no corredor.– Posso saber o que está acontecendo aqui? – indagou a mulher.Seu nome era Margareth e ela usava uma camisa social branca por dentro da calça escura e o cabelo

amarrado em um rabo de cavalo. Beirava os cinquenta anos, mas os óculos grossos a deixavam com umaaparência mais velha. Tinha a reputação de exigente e implicante. Sophie não tinha boas recordaçõesenvolvendo a mulher. Naquele ano, já incomodara o pai para reclamar de seu peso. Poderia agora acharmais um motivo para azucriná-la.

– O vento acabou empurrando a porta.– Eu ouvi gritos antes disso. Ouvi vozes saindo da sala. Há mais alguém aí?Em uma questão de segundos, sem saber por que fazia aquilo, Sophie respondeu que não.– Estava falando ao telefone – mentiu. – Fiquei estressada com algumas coisas e resolvi extravasar.Imaginava que a desculpa não fosse colar com a mulher. Todavia, se ela e Anna levassem detenção,

acabariam ficando mais tempo juntas.Os segundos se arrastaram e Sophie continuava calculando quanto seria penoso se a megera abrisse a

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porta.– Conversei com seu pai por telefone – murmurou a mulher, pegando-a pelo braço de uma forma

que não sabia se era legal. – Sua família precisa dar um jeito em você. Esta instituição carrega umnome, e não gosto de vê-lo manchado.

Eu causo o término de namoros e mancho a reputação de escolas renomadas. Uau! Eu sou uma bad girl.A nova situação só lhe dava mais vontade de fugir daquele lugar.– Para onde a senhora está me levando? – perguntou Sophie, sentindo dor onde a mulher apertava.– Reparei que sua mãe vem sempre buscá-la. Está na hora de trocar uma palavrinha com ela.Andando em direção ao portão principal, pôde ver de relance que Anna havia saído da sala e as

acompanhava de longe.Ao atravessarem o estacionamento, encontraram Laura já nervosa, com o celular na mão.– Estou te ligando como uma louca há séculos – disse a mãe esbaforida, indo ao encontro da filha.Laura parecia tão perturbada que nem reparou na mão endurecida segurando o braço fino da

garota. Sophie percebeu que Margareth a soltou rapidamente quando chegaram.– Meu celular fica no silencioso enquanto estou na aula – argumentou a jovem, querendo entrar

logo no carro.– Mas ela não estava mais em aula, disse até que estava ao telefone – declarou a diretora.Laura parecia confusa. A presença de Margareth indicava encrenca, e sua paciência para situações

como aquela começava a se esgotar.– Aconteceu alguma coisa, diretora?A mulher pareceu apreciar o momento.– Aconteceu, sim – respondeu a senhora. – Esta aluna estava aos berros pelo corredor da escola,

batendo portas por onde passava.Como é que é? Sophie surpreendeu-se.

– Sei que sua filha está passando por uma situação delicada de saúde e cheguei a conversar com seumarido sobre o assunto. Indiquei ótimos médicos que poderiam auxiliá-la na questão da anorexia.

– Você está maluca? – perguntou Sophie por impulso.Parecia que estava em um sonho. A diretora estava mesmo inventando um bando de coisas a seu

respeito e ainda a julgava anoréxica? Nunca havia deixado de comer de propósito, não tinha problemascom aparência e odiava vomitar até quando estava doente. As alegações eram abusivas e não entendiapor que a mãe não se pronunciava.

– Ela estava gritando? – murmurou Laura, tentando entender.Enquanto Sophie tremia de raiva, Margareth continuava a falar sobre a necessidade de procurar

ajuda para ela. O olhar de Laura ficava cada vez mais distante. A filha sempre foi diferente, mas nãolhe causava grandes problemas. Passava apenas por uma fase de autodescoberta, e a mãe entendia isso.Ela queria ter uma vida mais normal como a das outras mães de seu clube, contudo compreendia que oque fazia dela uma grande mulher era aceitar as diferenças da filha. Ouvir sobre o comportamentorebelde da menina a assustava.

Laura viu um rosto familiar ao fundo e entendeu.

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Sophie havia gritado com Anna.– A senhora precisa de mais alguma coisa? – perguntou a mãe para a diretora, que não parava de

falar.– Preciso que você e seu marido venham para uma reunião formal sobre as condições de sua filha

neste colégio.– Falarei com meu marido e marcaremos uma data.Ao dizer aquilo, Laura acenou com a cabeça e lançou um olhar discreto para Anna, escondida atrás

de uma árvore. Andou com passos pesados e entrou no carro. A filha a acompanhou ao veículo abafadopela exposição ao sol. Antes de ouvi-la dar a partida, Sophie teve que perguntar:

– Você realmente acredita que eu saio gritando sozinha pelos corredores batendo as portas e vomitopara ficar magra?

A dor presente na expressão de Laura era tanta que o ar parecia não existir.– Eu não sei de mais nada.Aquela foi a resposta da mãe. E o início do desespero da filha.

Ao chegarem em casa, Sophie resolveu honrar as palavras da diretora e saiu batendo a porta do carro nadireção do quarto. Decidira que, se seria tratada como revoltada, agiria como tal. Nunca tinha sidouma pessoa fácil de lidar, mas pensava que pelo menos os pais estivessem do seu lado. Ver o desgostoestampado no rosto da mãe havia quebrado qualquer sentimento bom existente nela.

Muitas vezes, pais, professores, psicólogos e parentes não conseguem entender as dificuldadesenfrentadas por um jovem. Esquecem-se dos sofrimentos por que passaram e das dúvidas que já tiverampor acreditarem que hoje sentem mais dor e dúvida. Costumam tratar as fases obscuras de um filhocomo um momento de “querer chamar a atenção”, o que não deixa de ser verdade. Sophie, porém,acreditava que, se uma pessoa necessitava chamar atenção, provavelmente estava no fundo do poço.

Será que Anna precisava realmente de mim?, surpreendeu-se pensando do nada, enquanto se afogava em

lágrimas raivosas diante do estúpido teto bege da casa.Humilhada. Era como ela se sentia. Pensara que, depois de ser a atração principal da última festa,

nunca mais se sentiria assim. Engano seu. Enquanto tirava a roupa com ódio, jogando as peças peloscantos do quarto, imaginava o que as pessoas diziam de sua aparência e como a condenavam.

Os Tirus nunca fariam isso comigo.Era preciso passar pela etapa dos Amantes para se livrar de tudo. Tentou engolir o choro e resolveu

ligar para Mônica. Evitaria falar sobre o que acontecera na escola, até porque não imaginava o assuntopercorrendo os corredores. Anna não mancharia ainda mais sua reputação por causa dela. Apenasperguntaria sobre a carta e desligaria com alguma desculpa.

Procurou pelo número da garota em seu celular e, ao encontrá-lo, resolveu ligar, ainda enxugando aslágrimas.

– Pensei que fosse me ignorar – disse Mônica ao atender o telefone.

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Sophie estranhou, mas imaginou que provavelmente Léo dera seu telefone para ela.– É difícil ignorar uma bruxa – respondeu Sophie, tentando esconder o tom choroso da voz.– Sei que falei que posso ajudar, mas queria dizer que não sou nenhuma expert. Brinquei na questão

da bruxa. Sei um pouco de tarô porque li e gostaria de dar uma força.Será que ela está brincando comigo também?– Você então não sabe se pode me ajudar?Houve um minuto de silêncio.– Não. Mas eu sei que gostaria de tentar.Sophie ficou satisfeita.– Eu sonhei com a carta dos Amantes algumas noites atrás e, desde então, estou meio encanada –

tentou explicar, mentindo descaradamente. – Você sabe o que essa carta faz ou se existe algumsignificado para ela?

Mônica pediu um minuto do outro lado da linha para consultar seu livro e relembrar as coisasaprendidas em um curso.

– Essa é uma carta interessante... – começou a colega.– Por quê?– É a carta do livre-arbítrio, que mexe com sentimentos e escolhas.– Eu não entendo essas coisas – resmungou Sophie.– É difícil explicar, mas vou tentar. Sabe quando temos um monte de coisas acumulando que vão se

desencadeando na vida?Do outro lado da linha, a ruiva apenas concordava.– Essa carta mostra o encadeamento das coisas. A luta do ser humano em buscar um equilíbrio ou

uma união.– Mas isso que você está dizendo não me ajuda muito se eu precisar fazer algo com essa carta.– Você sabe que esse seu comentário só faz sentido na sua cabeça, né? – perguntou Mônica.Sophie esquecera que ela não sabia do Reino e de suas etapas para permanecer por lá.– Acho que, se quiser fazer algo com base nessa carta, você precisará tomar uma decisão voluntária.

Será necessário mudar a sua vida, e não só achar que está mudando. Só assim vai conseguir realizar suasaspirações e seus desejos. Mas você sabe que com isso vêm responsabilidades?

– Como assim?– Se decidir mudar a sua vida, será por meio de dedicação e sacrifícios. Você vai deparar com um

momento de ruptura, separação, e precisará ser capaz de provar que pode suportar tudo.– Acho que entendi. Essa carta parece não ser tão complicada quanto eu imaginava.– Romper com o passado nunca é fácil, Sophie.– Talvez você pense assim porque não conhece o meu.Um clima pesado se instaurou entre elas, fazendo as duas perceberem que estava na hora de desligar.

Para não ser mal-educada, a ruiva agradeceu pela ajuda.– A gente se fala amanhã na escola – concluiu.– Nos falamos, sim – concordou Mônica. – Aliás, Léo está aqui te mandando um abraço.

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Léo? O que o Léo estava fazendo na casa dela? E por que lhe mandava um abraço e não um beijo?A garota chegou a esquecer que ainda estava ao telefone. Várias questões passaram por sua cabeça

apenas por causa daquela frase.– Oi? Você ainda está aí?A pergunta fez Sophie acordar do transe. Sentiu um embrulho no estômago ao perceber que o

menino estava mesmo na casa de outra garota.– Boa tarde pra vocês – respondeu secamente.O aquário tinha se quebrado.A carta dos Amantes se completava.

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la estava pronta. Decidira afinal deixar tudo para trás.Atravessou o salão principal do castelo musical com passos decididos até o portal, onde

finalmente encontraria seus súditos e seus amigos, os verdadeiros. Andava com tanta paixão que seesqueceu do dia terrível que tinha passado. Os resmungos de fome do estômago a incomodavam, porémsentiu a certeza e o cansaço com tanta força que preferiu dormir a almoçar.

Naquele dia, precisava daquilo.– Dia de muitas batalhas – comentou Sycreth, aparecendo ao seu lado quase como mágica. – Deve

estar sendo difícil para você, alteza.– Mais do que eu imaginava – respondeu Sophie. Ainda sentia dor, mas saber que o Reino existia

lhe dava conforto.Reparou que ambas usavam vestidos tomara que caia de saias rodadas em tons pastéis com cintos

escuros combinando com as minicartolas. A diferença principal era o comprimento. Enquanto aprincesa ainda trazia caudas assimétricas exibindo as longas pernas, a Guardiã parecia mais recatadacom um modelo até o chão.

– Eles estão preparados? – quis saber a menina.A loira sorriu, indicando o portal e passando o encorajamento certo para aquele momento na vida

de Sophie: o instante em que finalmente conversaria com as pessoas que mais a amavam. Aqueles quehaviam esperado anos pela sua volta. No dia em que sua mãe a havia decepcionado, uma diretora ahumilhara, a antiga amiga a acusara e sua paquera estava com outra garota, ela precisava sentar-se com

pessoas que a fariam sorrir.Precisava cruzar a barreira dos Amantes.Um clarão deixou-a cega por alguns instantes e, ao recuperar a visão, pôde identificar pontos

brilhantes pelo ar. Normalmente, ela se assustaria por vê-los em tamanha quantidade, mas estava noReino e nada ali a assustava mais. O cenário tornava-se ainda mais intenso conforme as partículasdançavam pela brisa, seguindo a música sussurrada pelas rosas que decoravam as laterais do castelo.

Após passar pelas estátuas dos dragões, pôde ver ao final do caminho um grupo deaproximadamente trezentas pessoas aglomeradas. Entre elas, havia também criaturas exóticas, muitascom tonalidades coloridas. Todas carregavam a mesma expressão no rosto: um misto de curiosidade efelicidade.

Sophie observou a Rainha, que estava mais próxima, sentada em uma espécie de trono móvel, comJhonx sentado ao seu lado no chão, cruzando as patas enquanto rodopiava o cetro com apenas uma das

Page 90: DADOS DE COPYRIGHT PRÓLOGO entia o corpo dormente, o que para ela era bom. Os dedos, sempre tensos, movimentavam-se devagar por conta da sonolência. Boiava em um lago violeta, os

patas dianteiras. Também viu os funcionários do castelo entre os presentes naquela multidão e entendeuque aquele grupo devia ser o seu Reino. A energia deles parecia a de milhões de pessoas.

O Ministro devia tê-los instruído antes da chegada dela. Provavelmente exercia seu papel tentandocontrolar os ânimos dos habitantes para que nada de errado acontecesse naquela transição.

Sophie apenas ficou chateada de não ver Mama Lala, mas entendia a solidão da senhora em suacabana na floresta. Uma mulher com tamanha espiritualidade e tanto conhecimento devia sofrer pornão poder compartilhar tudo o que sabia.

– Ela lhe mandou isto – comentou Sycreth, estendendo a carta dos Amantes do baralho envelhecidoda vidente.

O gesto fez toda a mágoa daquele dia desaparecer. Mama Lala lembrara-se dela e, de algum modo,aquele era um reconhecimento por estar rompendo barreiras e provando merecer o carinho daquelesseres.

– Vamos?Sophie respondeu à Guardiã com um de seus sorrisos singelos, que sabiam dizer muito para quem

quisesse desvendá-los.E o tempo parou.O som das flores também. Tudo ao redor estava em silêncio. O Ministro saiu do centro da escada

que dava acesso ao espaço amplo onde todos esperavam de pé. Um trono apareceu às suas costas. Deonde vinha, Sophie não sabia; no entanto, não necessitava daquele tipo de certeza. Na opinião dela, aapresentação devia ser feita em chats de redes sociais, não em praça pública. Ela queria ser apenas umagarota conversando com pessoas que não a condenavam. Pessoas que a queriam por perto. Segurou acauda do vestido, colocando-a de lado, e sentou-se no degrau mais alto, de onde pudesse ver todos.

– Vamos – foi sua primeira palavra. – Não fiquem tímidos.Em um movimento uniforme, todos se sentaram, como em uma dança coreografada. Ela conseguia

ver uma imensidão de chapéus parados, esperando pela próxima ação.– Ainda preciso aprender muito sobre nosso Reino.O silêncio continuava.– Não sei bem como vim parar aqui nem exatamente por que continuo sendo chamada.Dúvidas pairavam no ar.– Só sei que esta é a minha verdadeira casa e eu estava ansiosa para falar com a minha verdadeira

família. Por muitos anos, não fui compreendida pelas pessoas ao meu redor e sinto que, por vocês, euserei.

O silêncio permaneceu.– Não sei se conseguirei responder a todas as perguntas de vocês – continuou ela, com a permissão

da Rainha. – Mas estou aqui para o que quiserem saber...Os habitantes continuaram quietos perante a princesa, sem saber o que dizer, perguntar ou como

agir. Para eles, ela era intocável. Um ser perfeito que finalmente vinha para dar-lhes carinho e atenção.Os questionamentos dela pareciam assustadores.

A fênix do primeiro dia singrou pelo céu em um risco mesclado de laranja e vermelho. Aquilo a fez

Page 91: DADOS DE COPYRIGHT PRÓLOGO entia o corpo dormente, o que para ela era bom. Os dedos, sempre tensos, movimentavam-se devagar por conta da sonolência. Boiava em um lago violeta, os

se lembrar do condor que a levara até o castelo. Perguntava-se onde ele estaria e se por acaso estava emmais um topo inabitado de montanha. Devia se sentir solitário por lá. Não era sempre que princesasdesaparecidas iam parar em lugares como aquele.

Uma jovem resolveu levantar a mão e perguntar:– Por onde andava, alteza?Aquela era uma pergunta interessante. Nem Sophie sabia explicar direito onde esteve por todo

aquele tempo. Ficava confusa de saber que sua vida na Terra era o que a mantinha longe daquele lugar.Resolveu ser honesta e compartilhar com eles o que sabia.

– Por muitos anos, morei em um lugar muito semelhante ao Reino. Mas, naquela dimensão, nãoexistem flores que cantam, pássaros mágicos, seres coloridos ou gatos falantes.

– E o que existe por lá para fazê-la ficar por tanto tempo longe daqui? – quis saber um garotocurioso.

– Existe uma família que me criou por muito tempo, meu cachorro, que não canta, mas é muitoespecial, e achocolatado, principalmente achocolatado!

Ela chegou a sorrir.– Você se refere àquela água escura e adocicada? – indagou uma senhora.– Isso mesmo! – ela se viu respondendo e achou graça por falar sobre achocolatado com seres de

outro mundo.– Se construirmos uma fonte de achocolatado na praça principal, a alteza passaria mais tempo no

Reino? – perguntou um pai de família.Aquilo lhe cortou o coração. Eles realmente sentiam sua falta. Conseguia entender o peso nos ombros

do Ministro e a situação difícil que a Rainha enfrentava. A ausência dela no mundo mágico pareciaafetar a todos.

– Eu quero ficar o máximo de tempo com vocês. Se possível, para sempre. Mas essas coisas nãodependem de mim.

– Para quem precisamos rezar para tê-la ao nosso lado? – indagou outra jovem, e Sophie pôde veras lágrimas dela.

A princesa apenas suspirou e, sentindo o olhar carinhoso de Sycreth ao seu lado, pronunciou:– Vocês só precisam acreditar que sempre vou querer estar ao seu lado. Que a minha vida agora é

moldada na felicidade de vocês, que são minha felicidade. Não os abandonarei. Os Tirus já são especiais

demais para mim.Houve gritos e expressões de um mundo que fazia a felicidade parecer comum.– E agora deem três vivas para sua princesa – comandou Sycreth.– VIVA! VIVA! VIVA!Ela e Sycreth se abraçaram sob o eco enquanto o Ministro repousava a mão nos ombros cansados da

Rainha. Havia ainda um longo caminho a percorrer, porém Sophie tinha a força necessária para lutarpelos seus objetivos.

Era a hora de partir para a carta do Louco.

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Reuniões de família tinham virado um hábito desagradável para todos naquela casa. Ainda assim, elestentavam promover esses encontros, estimulados pela eterna batalha para determinar quem estava certoe quem estava errado.

Sophie acordou outra vez sem ter se alimentado e sofrendo de dor de cabeça pelo estresse que omundo natural lhe causava. As experiências com os Tirus eram muito tocantes, mas, quando atravessouo corredor e viu os pais preocupados na sala, relembrou como a realidade era menos prazerosa.

– Precisamos conversar – disse o pai ao vê-la passar com os cabelos despenteados, talvez por ter serevirado na cama.

Sophie tinha feito o ritual. Tomou banho, escovou os dentes e deixou a água gelada refrescar o rostoinchado latejante. Depois de finalmente ter colocado um pijama, pôde encará-los.

– Outra? – sussurrou a garota. – É sério que vamos precisar de outra conversa dessas? Não dá parasermos uma família normal?

Laura lançou-lhe um olhar atravessado, antes marca de brincadeira com o pai e agora constante nosmomentos tensos aparentemente causados por ela.

– Acha que para nós é divertido? – perguntou a mãe.Sophie viu George segurar a mão da mulher para acalmá-la, provavelmente por não querer mais

brigas.– Pelo que eu soube, houve um incidente na escola hoje.– Houve sim, pai! Uma diretora maluca e ditadora saiu me apertando o braço e me acusando de

coisas sérias. Sabe, eu já tinha ouvido sobre abuso de poder em escolas, mas passar por isso e não serdefendida pela minha própria mãe está sendo demais!

Laura abaixou o olhar.– Filha, temos ficado do seu lado, mas não podemos negar que você está precisando de ajuda. Anda

muito triste e sozinha. Isso não faz bem.– Vocês querem que eu faça o quê? Que finja que tenho amigos? Que sorria quando não quero? Eu

fico quieta todos os dias e não tenho ganhado nada em troca.Sophie sentiu vontade de socar a parede.– Você estava gritando, minha filha. Isso não é normal – afirmou a mãe, receosa.– Eu não estava gritando!– Eu vi a Anna...O coração de Sophie foi parar no estômago.– Eu sei que vocês foram amigas por muitos anos e que agora estão sem se falar. Eu quase morri do

coração hoje te esperando e tive que ouvir barbaridades. Acha que estou feliz? – indagou a mãe com osnervos à flor da pele.

O pai se ausentou da conversa. Todos pareciam confusos demais. Ela era muito jovem para passarpor tudo aquilo.

– Sabe por que não estou mais falando com a Anna, mãe? Porque fui a uma festa por causa dela e

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acabei humilhada na frente de todo o colégio.Os pais trocaram olhares, sem saber o que dizer.– E agora estou aqui ouvindo sermão de vocês, enquanto ela deve estar fazendo as unhas.A casa ficou em silêncio. Era possível ouvir as patinhas de Dior ressoando no pavimento. Quando

Sophie já estava cansada de olhar para o nada, esperando uma reação dos pais, George levantou-se efinalizou o assunto:

– Marcamos para você uma consulta com um psicólogo amanhã às duas horas da tarde. Não queroouvir resmungos a esse respeito. Na próxima semana, sentaremos todos com a diretora e mostraremosnosso plano de ação para mudar sua postura na escola. Eu te entendo e sempre entendi, mas essasituação precisa acabar.

Ele saiu da sala, deixando-a desesperada diante da mãe. Sentia raiva de tudo aquilo. Não precisavade um psicólogo. Entretanto, relembrou sua conversa com os Tirus e a próxima carta a ser desvendada.Percebeu que estava no caminho certo.

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F

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oi preciso aceitar ir ao psicólogo. Em troca, não foi à aula. Laura devia estar se sentindo culpada,pois, quando Sophie não se levantou na manhã seguinte, decidiu deixá-la dormindo. Para a

infelicidade da menina, ela não visitara o Reino durante a noite e tivera apenas um sonho normal,daqueles que são completamente esquecidos ao acordar.

O celular tocou ao meio-dia. O número registrado era o de sua própria casa. Aquela era a formacomo sua mãe evitava entrar no quarto para encará-la. Desligando o aparelho, levantou-se comdificuldade e escolheu uma roupa qualquer para usar. Não tinha forças nem para se arrumar. Aomover-se, sentiu-se zonza outra vez e percebeu que não comera no dia anterior e que já era hora doalmoço.

Ótimo! Vão achar mesmo que sou anoréxica.Vestiu uma calça jeans com casaco de moletom do homem-aranha e calçou o primeiro tênis velho

que viu pela frente. Prendeu o cabelo em um coque desleixado e enfiou os óculos escuros no rosto paraevitar a claridade. Enfrentar aquele dia seria mais difícil do que imaginava.

Quando chegou à sala, viu algo que normalmente a faria sorrir: um barquinho com diversos tipos desushis e sashimis. Era sua comida predileta. A mãe empenhara-se mesmo em tentar compensá-la pelodia anterior, mas Sophie não esquecia que em algumas horas seria analisada por um estranho.

Quando chegaram em frente ao consultório, a garota se arrastou do carro parecendo um zumbi até asala de espera. Lá, encontrou uma senhora que parecia apavorada e perguntou-se se estava com o mesmojeito assustado. Ela não sentia medo do profissional que iria recebê-la, mas, pela forma como imaginavaas pessoas que frequentavam aquele local, não se julgava como elas. Ela precisava passar pela etapa doLouco, mas não queria ser taxada assim.

– Pode entrar na sala um, senhorita – disse a jovem recepcionista, dirigindo-se a Sophie enquantoela fingia ler uma revista de fofoca.

Laura teria de ficar fora da sala. No caminho, a mãe explicara que aquela seria a primeira de váriassessões e que, ao final de algumas delas, ela ou o pai entraria para conversar com o psicólogo. Sophiesomente ouvia, tendo vontade de matar a megera da diretora por ter armado tudo aquilo.

Mesmo a contragosto, entrou no consultório, encontrando uma sala diferente da dos outros médicosque já visitara. O lugar parecia uma biblioteca: as paredes tinham prateleiras de madeira repletas delivros e estatuetas de corpos sem membros. Entretanto, era diferente da biblioteca do Reino – seu estiloera mais familiar ao mundo humano. Em um canto, havia uma mesa aparentemente pesada de madeiraescura, também repleta de livros, com um computador ao centro. Do outro lado, ficava um divã

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visivelmente confortável. Ela deveria mesmo se deitar no divã? Não poderia somente se sentar eresponder às perguntas do tal psicólogo? Tinha tantas dúvidas sobre aquele momento que achou melhorficar calada e parada na porta. O receio que tomava conta dela se revelava em sua linguagem corporal.

– Sei que parece assustador – comentou o homem grisalho de cerca de cinquenta anos. – Vai sermuito mais relaxante se você se deitar no divã.

Aquilo a fez apertar os dedos com força e sentiu, em uma fração de segundos, o psicólogo percebere anotar algo em uma prancheta.

Ótimo! Já estou sendo considerada lelé da cuca.– Sou o dr. David, e vamos conversar durante algumas semanas para vermos como podemos alinhar

mais sua vida.– Minha vida já é alinhada – soltou Sophie ao deitar-se no divã.– Tenho certeza de que sim – respondeu o homem sem rir, deixando a garota confusa. – Só

queremos ver se existe algo que podemos trabalhar.– Vamos partir então para o camelote?O psicólogo pareceu não entender.– É uma forma nova do termo “camelar”? – quis saber o dr. David.– Sei lá...– É um termo que você inventou?A menina encolheu os ombros, indicando não saber o que dizer. Com isso, ele anotou mais uma

observação.– Você gosta de criar palavras?Sophie teve vontade de rir.– Não sei. O senhor gosta de inventar perguntas?Curiosamente, ele sorriu.– Você julga que esta consulta será algo árduo ou desgastante? – indagou mais uma vez.– Julgo que estou sendo indevidamente julgada. Pode anotar isso aí?O psicólogo percebeu logo o padrão de Sophie. Um caso típico de alguém que recusava o

tratamento por não reconhecer o próprio quadro.– Eu não quero julgar você. Gostaria de tentar entendê-la.– Boa sorte então, companheiro.Mais uma vez, ele sorriu.Por que esse moço sorri tanto com minhas respostas?Aquilo a irritava.– Pelo visto, seus pais estão preocupados com você.– Acho que todos os pais devem se preocupar com seus filhos...– Mas nem todos os pais os levam para um psicólogo – respondeu ele, pegando-a de surpresa.– Pelo visto, boa sorte pra mim.Outro sorriso.– Eu sou tão engraçada assim? – perguntou Sophie, confusa.

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– Não é isso. Só percebo que você tem uma personalidade forte, e muitos pais se assustam com essetipo de poder.

– Deve ser isso mesmo. Devo assustar as pessoas daqui.Dessa vez, foi ela que sorriu, mas ele pareceu não gostar, escrevendo mais um item em sua prancheta.– Ei, foi brincadeira! – ela o recriminou ao perceber a anotação.– Sei que foi – respondeu o dr. David.Por alguns segundos, o clima ficou pesado. Até então, Sophie não achava o psicólogo ruim.– Existem pessoas que você não assusta? – interrogou ele depois da breve pausa.– Como assim?– Você disse que as pessoas daqui deviam se assustar com você. Minha pergunta é: existem pessoas

que você não assusta?Ele havia percebido muito depressa o seu ponto fraco. O seu segredo. Sophie ficou nervosa e, mais

uma vez, pressionou os dedos.– Não existe outro lugar.– Eu não disse que existia...Ela não sabia se era porque estava deitada, se era porque a luz estava mais baixa que o normal ou

porque ele parecia um senhor bacana, mas, por um instante, teve vontade de compartilhar sobre oReino. Talvez desabafando não ficasse amargurada toda vez que voltava para a Terra. Contudo, sabiaque ele a acharia uma completa maluca e poderia tentar interná-la. Pensaria primeiro se valia mesmo apena antes de sair falando sobre castelos e fênix. Não suportaria viver em um hospício. Seria branco demaispara o meu gosto.

– Há alguma coisa que gostaria de falar comigo? Quem sabe desabafar sobre algum sentimento ouquestão que a esteja incomodando?

Tentação. No momento em que pensava em desabafar, ele lhe perguntava aquilo. Será que opsicólogo era como Sycreth e conseguia ler sua mente?

– Eu estou bem.Aquela era uma resposta mais tranquila.– Pelo que sua mãe me informou, você foi pega gritando na escola com uma antiga amiga. Gostaria

de falar sobre isso?Sophie levantou a sobrancelha, encarando-o. Sua expressão não era a de uma pessoa que gostaria de

falar sobre aquilo.– Sem problemas – comentou o dr. David, levantando-se da cadeira. – Já nos conhecemos um

pouco e acho que está bom para uma primeira sessão.– É sério? – duvidou a garota, confusa.– Decepcionada?– Surpresa.– Muitos fantasiam que um psicólogo é um bicho de sete cabeças.– Seria mais divertido se você fosse um.Os dois acabaram rindo. Sophie não esperava se dar bem com seu suposto avaliador, mas se sentia

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leve ao sair do consultório e, pela sua expressão, a mãe pôde perceber que estava tudo bem.Na volta para casa, as duas evitaram conversar. Era mais fácil. Laura não queria estragar o

surpreendente bom humor da menina, e Sophie não queria voltar a pensar na sua vida. Afinal, opsicólogo era mesmo um bicho de sete cabeças, pois não parecia daquele mundo.

Duas semanas se passaram e nada de ela conseguir voltar para o Reino mágico. Nesse meio-tempo,tornou-se cada vez mais um fantasma na escola, evitando ficar mais de cinco segundos parada ouexposta para que não a abordassem. Na última vez em que ficou de bobeira dentro da sala de aula,acabou ouvindo de uma menina que ela deveria “ir procurar um banheiro para vomitar e sair da frente”.Por causa de ataques como esse, passava intervalos inteiros escondida no banheiro abandonado doúltimo andar e andava somente com fones de ouvido tocando músicas em alto volume.

Em vários momentos, precisou desviar-se de Léo ou fingir não ver Mônica pelos corredores. Dentroda classe, não tirava os olhos da carteira e desenvolveu uma dor na coluna por ter dificuldade de olharo quadro-negro daquela forma. Toda vez que sentia o olhar de Anna queimar seu pescoço, começava acantar em sua mente para fugir daquela situação. Pelo que via nas redes sociais, ainda mais em seuperfil falso, o relacionamento de Anna e Daniel tinha realmente chegado ao fim. Havia rumores de queele estava ficando com uma menina de outro colégio, alguém do seu bairro. Por conta disso, o antigogrupo se dividira e a morena parecia profundamente perturbada com aquilo. Fazia nove dias que elanão postava em suas páginas, um verdadeiro recorde para uma pessoa completamente viciada eminternet.

Em casa, Sophie passava o dia inteiro dentro do quarto com Dior. Ele se tornara ainda maiscompanheiro, ouvindo-a reclamar da vida e tentando consolá-la quando chorava baixinho ao som dosBeatles. Ela até colocara as vasilhas do cachorro em seu quarto para que ele vivesse ali com ela o tempotodo. Era o único carinho que sentia. O único sangue quente perto dela demonstrando preocupação aoabanar o rabo e cutucá-la com o focinho.

Deixara de frequentar o jardim para cantar e havia aposentado por um tempo o violão. As músicasde sua alma eram tristes, e não queria contaminar as melodias com aquela emoção. Ao mesmo tempo,precisava se alimentar e a mãe a obrigava a comer, então brincava com os alimentos no prato por meiahora em cada refeição sob a vista grossa de Laura. Era o único momento em família de que elesdesfrutavam.

Durante aquele tempo, fora duas outras vezes ao psicólogo. O dr. David continuava simpático einteligente, sempre procurando uma forma de conhecê-la melhor, mas Sophie também era esperta. Eteimosa. Não transformava a vida do homem em um inferno como esperavam, mas deixava de ladoqualquer informação valiosa.

Os pais haviam visitado a diretora na semana anterior para contar sobre as sessões de terapia, e amulher pareceu engolir por ora, jurando que, se Sophie aprontasse mais alguma, teria de agir. Naqueledia, Laura e George voltaram brancos da reunião. Em quinze dias, foi o único momento em que Sophie

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sentiu pena deles.Apesar de estudar diariamente o livro de tarô, não conseguia entender a próxima etapa. Estava se

tratando com um “médico de loucos”, isso devia ser o suficiente. Entretanto, não parecia que era. Anova dificuldade havia piorado seu humor e causava os choros escondidos. Entupia-se de chá,alimentos saudáveis e técnicas de relaxamento, mas nada a fazia atravessar a linha entre as dimensões.

Até que um dia, para sua surpresa, recebeu uma ligação inesperada de um telefone diferente.– Que lindo! Seu telefone funciona. Meu número pessoal deve estar com problema, afinal fiz dez

ligações e enviei vinte mensagens de texto.Sophie travou na hora. Não sabia se desligava, fingindo que a ligação caíra, ou se respondia ao

garoto na outra linha. Léo tinha razão: seu telefone funcionava e o dele não estava com problema.Durante aquelas semanas, além de evitá-lo a qualquer custo no colégio, não atendia a suas ligações nemrespondia aos SMS. Preferia ficar sozinha. Não entendia por que ele ainda a procurava se estava comMônica. Várias vezes, havia fuxicado a página do perfil dele e vira fotos dela nos ensaios do garoto outomando milk-shake em lanchonetes descoladas.

O que ela tem que eu não tenho?, acabou se perguntando antes de responder à frase do garoto.

Depois se odiou por se preocupar com aquilo.Fizera aquela pergunta a si mesma muitas outras vezes. Porém, ao longo dos dias, sempre chegava à

mesma conclusão: peitos. Mônica, até por ser mais cheinha, possuía o maior par de peitos de todo ocolégio. Via alguns meninos comentarem nas redes sociais e algumas meninas dizerem que eram sacos debanha por cima do saco maior. Sophie só via algo que não tinha e nunca teria. Ao menos nãonaturalmente.

Como eu queria ter peitos, pensou.

– Sério que nem vai fingir que a ligação caiu? – falou o garoto do outro lado da linha. – Dá praouvir sua respiração.

Ela prendeu o fôlego no mesmo segundo. Contando até dez, criou coragem para falar:– Ah, oi!Ah, oi! Como eu sou retardada. A vontade era de se bater, mas precisava terminar a ligação.

– Oi pra você também, senhorita virei-bruxa-e-não-falo-mais-com-trouxas.Ela teve vontade de rir e se condenou por isso. Léo sempre lhe dava motivos para rir e sentir

borboletas no estômago normalmente dolorido.– Estou passando na sua casa pra te levar ao cinema, quer você queira ou não. Se não quiser, ficarei

plantado na sua porta até você sair. Sinceramente, acho que ficarei plantado na sua sala, pois soubonito e, com certeza, sua mãe vai me deixar entrar.

Ele está de sacanagem.– Não posso ir. Tenho um trabalho pra fazer.Ele riu do outro lado.– Eu sei que não passaram trabalho algum pra sua turma. Não adianta fugir porque, mesmo você

sendo insuportável, vai ter que ir ao cinema comigo e pronto. Sabia que eles queimavam na fogueira asbruxas mentirosas na Idade Média?

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– Eles queimavam todas as bruxas na Idade Média.– Então que bom pra você que nos tempos modernos eles só levam ao cinema.Ela nunca sabia se o xingava ou simplesmente cedia para acabar com o constrangimento.– Que saco! – exclamou a garota. – Vê se não demora porque eu tenho dormido cedo.Ela conseguia visualizar o sorriso dele do outro lado da linha.

A vergonha ao ver a felicidade da mãe por receber um menino em casa era grande. Laura havia feito ogaroto se sentar e já o empanturrava com os biscoitos ignorados por Sophie naquela tarde. A meninaexplicara que iriam perder a sessão do cinema, mas a mãe continuava sua animada conversa com Léo.Os dois pareciam amigos de longa data e aquilo incomodou muito Sophie.

– Beleza! – resmungou quando viu que não adiantava tentar chamar a atenção deles. – Eu já nãoqueria ir a esse cinema mesmo. Tenho muita coisa pra fazer e vou voltar para o quarto.

A expressão constrangida da mãe fez Sophie comemorar por dentro. Era impressionante o quantosentia que precisava mendigar apenas para ser ouvida.

– Peço que desculpe o temperamento da minha filha. Nós tentamos dar-lhe educação, mas ela deveter caído de cabeça em algum momento da vida.

Léo riu do comentário.– A AC/DC é assim mesmo, por isso gosto dela – respondeu ele.Laura achava graça por aquele rapaz de tanta personalidade ter se interessado pela sua filha linda,

mas bem esquentadinha.Os opostos realmente se atraem, pensou a mãe.

Sophie normalmente teria resmungado alguma coisa diante dos comentários de Léo. Entretanto,naquele momento, sua mente só conseguia pensar: Ele disse mesmo que gosta de mim?

– Vamos, então? – perguntou ele empolgado, cortando seu pensamento.Ela aquiesceu e pegou a jaqueta de couro jogada no sofá. Usava uma camiseta da personagem

Malévola da Disney e um short jeans comprido e desfiado.– Você não vai precisar do casaco. O dia está quente.– A sala de cinema é fria.– Depende da companhia.

Eles caminharam um bom tempo em silêncio. Sophie tinha insistido em pegar um ônibus, mas Léoargumentou que havia tempo para eles andarem. Ela achou aquilo nada romântico, mas deixou para lá.

Durante a caminhada, Léo respondeu a diversas mensagens em seu telefone. Aquilo a estressava. Nãoentendia por que precisava caminhar e ficar no silêncio ouvindo o tec tec das teclas digitadas às pressas.

Enquanto ele a ignorava completamente, a ruiva só pensava em uma coisa: Mônica tem peitos.– Nossa! Que legal esse nosso passeio – ironizou.

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Ele continuou concentrado no aparelho.– Sério! Eu vou tacar esse negócio na rua se você não parar de digitar.Léo parou de caminhar e encarou-a, sério.– Você é muito revoltada, sabia?– Foi isso que disseram para o meu psicólogo... – respondeu ela.– Você está visitando um psicólogo?Sophie não soube o que dizer. Esquecera totalmente que não havia compartilhado com ninguém

sobre sua nova experiência obrigatória. Reconhecer que frequentava um consultório era um passoestranho.

– E se eu estivesse, qual o problema?O garoto parecia sem jeito.– Não teria problema algum...– Se eu dissesse que sou a princesa de um reino mágico e que uma bruxa em uma floresta me disse

que poderei viver lá para sempre, você pararia de falar comigo?Ele ainda parecia surpreso com as revelações bizarras.– Eu pediria pra você me levar até lá.Sophie bufou por nunca saber como vencer uma disputa com ele.– Você é esquisito, sabia?– Estamos no mesmo aquário, maluca.Os dois deixaram a tensão de lado e continuaram andando sem tocar nos celulares.Alguns quarteirões à frente, ela notou que estavam bem longe do shopping e, provavelmente, o

garoto tinha outra ideia na cabeça. Não entendia por quê, mas eles não estavam indo ao cinema.Quando pararam diante de uma casa amarela com um jardim cheio de estatuetas de gnomos, percebeuo verdadeiro destino.

– Estamos indo pra sua casa? – indagou ela.Ele apenas abriu o portão de madeira clara e ambos entraram na propriedade. Sophie nunca

imaginaria que aquele garoto descolado moraria em uma casa tão hippie. O clima do lugar até a fazialembrar dos Tirus, e uma saudade lhe invadiu o peito.

– Venha, seu chilique acabou atrasando a nossa sessão – disse ele em tom grave.Será que foi ele quem bateu com a cabeça?Atravessaram um corredor lateral da casa. Aos poucos anoitecia, o alaranjado do céu os iluminando

de uma forma angelical.Ao chegarem aos fundos da casa, Sophie percebeu o que era a tal sessão de cinema para a qual fora

convidada. Mônica terminava de ajeitar algumas almofadas no chão em cima de uma canga coloridacomprida. Entre duas árvores, havia um lençol branco bem esticado e, por trás da suposta plateia, umprojetor apoiado em uma mesa de mosaico. Também havia uma bandeja com dois baldes de pipoca,Coca-Cola e morangos com chocolate ao lado do espaço zen. Definitivamente, era a sessão de cinemamais peculiar que ela já vira.

– O que é isso?

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– É a forma que encontrei pra fazer você parar de ser grossa comigo – respondeu ele. – Ou pelomenos tentar por duas horas.

Mônica parecia feliz por vê-los juntos. Ela carregava o celular na mão, e Sophie percebeu queprovavelmente os dois estavam se comunicando para ajustar os detalhes.

– Vou indo nessa – disse a menina, para espanto da ruiva.– Você não vai ficar com a gente? – perguntou Sophie.– E eu tenho cara de vela?Tanto ela quanto o garoto riram do comentário. Apenas Sophie não compartilhava a mesma

descontração.– Onde estão seus pais? – perguntou.Só conseguia pensar em perguntas. Ficava difícil entender por que um garoto como Léo preparava

uma sessão romântica como aquela para ela. Não tinham nada um com o outro, e ela passara as últimassemanas apenas fugindo dele. Parecia surreal demais. Tinha medo de ser uma pegadinha e acabar semachucando.

Mônica foi embora e Sophie continuou esperando uma resposta. Léo tirou o chapéu que usava,revelando o cabelo bagunçado. Em seguida, deitou-se nas almofadas e trouxe a bandeja para o meio dacanga.

– Meus pais viajaram para uma conferência de trabalho – explicou ele. – Mas fique tranquila,AC/DC. Há uma bandeja enorme entre nós.

– Há muito mais do que uma bandeja, Léo.A seriedade dela incomodou o rapaz.– Eu sei que você não curte deixar as pessoas entrarem na sua vida. Você tem até razão pra fazer

isso, pelo que já ouvi falar. Só que eu não quero te machucar.– Todo mundo diz isso da boca pra fora...– Eu não sou como todo mundo, Sophie.Ele disse meu nome.Aquela era uma novidade. Não pensava em ouvir seu nome na voz dele. Ainda mais que seu objetivo

era nunca mais conversar com o garoto. Depois disso, desistiu de relutar e acabou sentando-se no chão.Mônica havia mesmo feito um bom trabalho. As almofadas eram confortáveis. A posição acabavasendo melhor do que muitas poltronas de cinema que conhecia.

– Você tinha razão – comentou ela.– Sobre o quê? – perguntou ele, ligando o aparelho para projetar o filme.– Eu não precisava trazer a jaqueta.Foi assim que os dois ficaram deitados comendo as guloseimas e assistindo ao filme francês O

fabuloso destino de Amélie Poulain, algo novo para ela e, ao mesmo tempo, mágico para os dois. Sophie não

sabia onde aquilo terminaria, mas, no caos de sua vida, sentia um pouco mais de sangue quente ao seulado, e a sensação era boa.

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quela seria uma visita diferente ao Reino.Apesar de ele estar presente em todas as reuniões, durante todo aquele tempo, Sophie havia

dialogado apenas uma vez com o gato cantor de jazz, numa refeição ao lado de várias pessoas. Ela nãoentendia ainda como ele era capaz de falar, ainda mais cantar, daquela maneira. Naquele dia, andavamlado a lado por uma área nova. Um lugar que eles chamavam de Lago da Vida.

– Pensei que estivessem adiando um novo encontro nosso para que eu não enlouquecesse com essevaivém – comentou Sophie com Jhonx.

– A alteza tem razão em pensar assim – concordou com sua voz grossa habitual.– Eles acham que eu não sou capaz de entender tudo que existe neste Reino?– Nós achamos que outra pessoa já teria surtado por viver assim.– Eu não sou como as outras pessoas...– Aprendemos a reconhecer isso também.Ao final da frase, o gato miou e balançou o cetro em que se apoiava.– Existem outros animais que falam como você? – indagou ela, curiosa.– Existem mais criaturas mágicas.– Por que o condor e a fênix não falam?Jhonx sentou-se com as patas esticadas à beira do lago, e Sophie se ajeitou para imitá-lo.– Uma fênix é mágica por si só. Acho que não precisam falar para nos mostrar o quanto são

especiais. Mas o Condx sabe falar sim, apenas é preguiçoso.– Condx é o condor-dos-andes que me trouxe aqui? – perguntou ela, achando graça do nome.– Esse fanfarrão mesmo – disse ele, deixando-a ainda mais intrigada.A vontade da princesa era de enchê-lo de perguntas sobre tudo o que via e sentia. Ele parecia ser o

mais indicado para respondê-las, afinal era uma criatura única. Uma coisa era conversar com Sycreth,que parecia mágica, ou com o Ministro, que tinha um visual peculiar. Ter uma conversa com umanimal capaz de raciocinar e falar como um humano era inigualável.

– Que outras criaturas existem?O gato coçou a cabeça com uma das patas e com a outra segurou a cartola.– Neste momento, você deve estar com os pés na cabeça de um sereiano – disse ele, como se fosse

normal.Sophie, que até então mantinha os pés dentro da água púrpura, retirou-os depressa, com medo.– Como é que é? – perguntou desesperada.– Sereianos – respondeu Jhonx com calma. – Vai dizer que em seu mundo não existem lendas de

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sereias?Como ela ainda não tinha visto tais criaturas, aquilo lhe parecia mais bizarro do que um gato de

cartola e gravata.– Sim, mas, como você mesmo disse, são apenas lendas.– Aqui muitas lendas são reais.O medo se transformou em curiosidade. Sabia que o gato havia brincado com a história de que

estava com os pés na cabeça de um sereiano. Era óbvio que aquilo não era verdade. Se existissemcriaturas dentro daquele lago esquisito, deviam estar a metros de profundidade. Passado o susto, elacomeçou a gostar ainda mais da conversa.

– Eu posso ver um sereiano?– Pode, mas para isso precisaria morrer – revelou ele.Esse gato não sabe ser muito sutil.– Por que eu precisaria morrer?– Porque eles são seres da escuridão profunda e a princesa não é capaz de mergulhar fundo o

bastante para conhecê-los.– Então como sabe que eles existem?Aquela era uma boa pergunta. O gato ficou por um tempo parado, pensando em como responder.– Temos livros sobre eles na biblioteca do Reino. Se existem páginas escritas sobre eles, é porque são

reais.– Existem páginas sobre sereias no meu mundo também – retrucou ela, tentando achar algum

sentido naquilo.– Mas no seu reino não existem fênix nem gatos falantes.Esse é um bom argumento.Os dois voltaram a se concentrar no lago extenso, onde de vez em quando um peixe dourado

pulava, mergulhando novamente na imensidão. Toda vez Sophie olhava para Jhonx para ver se eletentaria caçar o animal.

– Eu não como peixes vivos – observou ele, parecendo achar graça. – Os felinos de seu mundo sãomuito primitivos.

Foi a vez dela de rir.– Será que um dia isso tudo será normal para mim? – perguntou a ruiva.– Esperamos que sim, alteza – respondeu ele. – Muitos sonham com isso.

Agora Sophie tinha uma nova missão, mas o tempo passava sem que conseguisse resolvê-la. Mesmovisitando o Reino com mais frequência e tendo dias normais, ela não conseguia se concentrar nosdizeres da carta do Louco e se recusava a pedir novamente a ajuda de Mônica.

Desde o encontro com Léo, começou a passar alguns intervalos com eles. Por dois dias, até assistiu

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ao ensaio da banda dele, junto com Mônica, que era a namorada do vocalista. Sophie agora entendia omotivo de Léo estar com ela no dia em que havia ligado e de encontrar tantas fotos deles juntos. Peloque a menina contara, ele a apresentara para Hugo, e os dois se apaixonaram no mesmo dia. Desdeentão, ficaram inseparáveis, por isso ela resolveu ajudá-lo a preparar o encontro no quintal.

A ruiva só não entendia qual era sua relação com Léo. Os dois nunca passavam da conversa, e nãoera apenas porque ela sentia receio. Durante todos aqueles meses, ele nunca havia tentado algo a mais.Sempre era respeitador até demais. Ouvir as histórias de Mônica a fazia pensar que ele gostava mesmo

dela, mas a incomodava ele ainda não ter tentado beijá-la.Ainda que tivesse se soltado um pouco mais na escola e nas conversas com o dr. David, a ruiva

ainda não relaxara em casa. Na verdade, a família ficava cada vez mais distante. Os pais não se falavamcom frequência. George chegava em casa sempre mais tarde, Laura passava horas ao telefone jogandotoda a energia no clube das mães, e até Dior parecia infeliz. Sophie percebia o quanto impactava aatmosfera da casa, mas ainda não engolia o que considerava ser a falta de lealdade dos pais com ela.Todas as semanas, a visão da diretora e a lembrança do vexame que ela a fizera passar traziam aindamais à tona o sentimento de revolta.

Talvez, se eles se separarem, passem a entender o que é solidão, chegou a pensar um dia, arrependendo-se no

mesmo instante. Aquele pensamento era cruel demais para conter verdade.Sentada na cama do quarto sempre fechado, com Dior mais uma vez dormindo a seus pés, Sophie

observou novamente a carta do Louco.Ela viu que, ao contrário do que acontecia nos demais arcanos, a margem superior da carta não

tinha uma numeração, razão pela qual se atribuía a ela o valor de arcano zero, conforme descobriu emsuas pesquisas na internet.

A ilustração da carta era a de um homem que andava com um bastão em sua mão direita. Ele estavade costas, contudo seu rosto fino era bem visível, aparecendo de perfil. Sobre o ombro direito, levavauma vara em cuja extremidade havia uma pequena trouxa, como se estivesse fugindo para algum lugar.

O personagem se vestia ao estilo dos antigos bobos da corte medievais. A calça azul e rasgadamostrava uma parte de seu corpo. Um animal que podia ser um felino parecia arranhar aquela parteexposta; talvez fosse o responsável pelo rasgo. A garota não entendia por que Mama Lala havia lhemostrado uma carta em que era possível ver o traseiro de um bobo da corte. Não precisava daquelacena.

Na imagem, brotavam de um chão árido, acidentado, cinco plantas verdinhas com várias folhas. Ohomem tinha a cabeça coberta por um gorro que descia até a nuca e lhe cobria as orelhas. A estranhatouca transformava seu rosto barbudo em uma espécie de máscara. Ele vestia uma jaqueta vermelhapresa por um cinto amarelo, combinando com as mangas do traje, e usava calçados tambémavermelhados. Aquela carta conseguia ser ainda mais bizarra do que a dos Amantes.

Sem conseguir desvendá-la, acabou não aguentando e ligou para a amiga. Mônica ainda era maisestudada, e Sophie só estava perdendo tempo por conta de seu orgulho bobo.

– Fala, menina maluquinha! – disse a amiga ao atender a ligação.– Você e o Léo com a mania de apelidar as pessoas – bufou Sophie do outro lado, ainda com a

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carta na mão.– Há! – Ela riu. – Bem que o Léo disse. Você é muito sensível!Então é isso que ele diz para as pessoas.– O que você sabe sobre a carta do Louco?A colega pareceu confusa do outro lado.– Você diz a do tarô de Marselha?– E estaria falando sobre o quê?– Melhor mudar esse tom, madame – comentou a amiga bem-humorada. – Senão vou começar a

cobrar por essas nossas sessões telefônicas de tarô. Sabia que esse troço dá dinheiro?Sophie achava graça nos comentários dela. Nunca pensou em chamar de “troço” algo mágico como

um tarô, mas percebia que, alguns meses antes, nunca teria nem mesmo pensado em um tarô.– E mais essa agora. A louca quer saber sobre o Louco... – provocou Mônica.Sophie apenas bufou, fazendo a menina gargalhar.Mônica começou a explicar que aquela era uma carta forte, de busca ao filho pródigo. A ruiva até

se ajeitou do outro lado do telefone ao ouvir aquilo, fazendo o cachorro acordar assustado pelomovimento. A amiga continuou dizendo que a carta significava uma experiência capaz de ultrapassarlimites. Envolveria algo feito no impulso e na inconsciência. Talvez por alienação ao mundo externo.

Sophie não tinha a mínima ideia do que aquilo poderia significar.– Você pode se sentir abandonada e, não resistindo ao sentimento, procurar uma forma de repousar

com uma inocência irresponsável.– Caramba! Que difícil!– Nem me diga. É superdifícil chegar a essa conclusão – comentou Mônica.– Há mais alguma coisa que eu precise saber?Mônica começou a murmurar, parecendo ler rapidamente o conteúdo de seu material de estudo.

Sophie sabia o quanto a amiga se esforçava para ajudá-la.– Vejamos: diz aqui que, por conta de sua capacidade mediúnica, você seguirá seus instintos,

achando agir certo.– Mas eu não sou médium – desabafou a ruiva.– E eu não sou adivinha, filha pródiga! Estou só relatando os dizeres.Sophie quis saber mais.– Estou preocupada – comentou a suposta cartomante. – Preciso entender por que está me

perguntando novamente sobre uma carta. Da vez passada, foi por conta de um sonho, mas agora asituação parece mais pesada. Essa não é uma carta qualquer. Ela sai para pessoas que passam por umperíodo de desordem, insegurança e desprazer, podendo sofrer transtornos nervosos. Aqui diz que, pelaincapacidade de raciocinar, você pode se castigar com uma ação insensata.

Sophie percebeu por que não deveria ter ligado para ela. A amiga tinha toda a experiência paraajudar, contudo também a curiosidade para tentar entender o que acontecia à sua volta. Realmente, asegunda carta indicada por Mama Lala era muito mais pesada, mas não poderia compartilhar comMônica suas razões.

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– Não é nada. Gostei desse baralho, só que sou péssima em conseguir interpretá-lo. Você parecelidar naturalmente com isso.

– Veja lá como está recebendo essas minhas interpretações, hein? Eu não sou nenhuma sabe-tudo enão quero atrapalhar o seu quadro.

A palavra fez Sophie voltar a prestar atenção.– Quadro? Que quadro?

Foi possível sentir pela respiração de Mônica que ela julgava ter falado demais. A garota mudaparecia perdida em relação ao que responder.

Óbvio que o matraqueiro foi espalhar para todo mundo que estou frequentando um psicólogo!– Pode deixar, Nica! – Ela tentou ser simpática. – Você não tem culpa se ele não sabe preservar

minha imagem.Desligando o telefone, Sophie percebeu que o cachorro voltara a dormir e sentiu inveja. Queria ter

todo o tempo do mundo como ele para poder apenas dormir e ir para o Reino todos os dias.Gostava de Léo e sabia que os desabafos dele com outras pessoas não eram por maldade.

Entretanto, Sophie achava que sua atitude era muito parecida com a de Anna no passado. Afastara-seda morena por conta daquilo. Deveria afastar-se dele também?

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eitada no divã como fez em todas as últimas tardes de quarta-feira, Sophie não sabia mais comoagir. A necessidade de encontrar os Tirus continuava, mas tinha apenas sonhos normais. Nada

do que fazia dava certo e não achava uma solução para a carta do Louco.– Tenho dificuldade de dormir – comentou com o psicólogo no começo da sessão.O dr. David chegou a se assustar por conta da confissão, pois em geral ele tentava tirar informações

dela e quase nunca conseguia. Quando por um instante ela abria uma brecha, automaticamente sefechava logo depois. Para Sophie desabafar sua dificuldade de dormir, devia realmente precisar deajuda.

– Você sente que é insônia? Tem passado a noite inteira em claro ou demorado muito para pegar nosono?

Ela fez uma pausa antes de responder, porque sabia que a atenção dele estaria redobrada.– Eu sempre dormi bem. Tiro minhas sonecas de tarde e durmo oito horas no período da noite.– Isso parece perfeito – disse ele.– Seria, se agora eu não acordasse tão facilmente e sempre preocupada. Depois me sinto cansada o

dia inteiro. Já tentei alguns métodos para dormir e relaxar, mas nada funciona.O psicólogo ajeitou a prancheta, animado por finalmente poder ajudá-la de alguma forma.– Quais métodos já tentou?Sophie descreveu todos os hábitos alimentares de indução ao sono, todos os tipos de bebidas

quentes, compartilhou sobre tentar sempre ler durante a noite ou assistir a filmes chatos para ficarcansada ou entediada.

Empolgada em também compartilhar um pouco de sua vida, acrescentou que tentou manter umdiário do sono sem sucesso e que até se exercitou antes de ir para a cama em busca de resultados.

– Exercício não é uma boa opção – comentou ele após os relatos. – Vai acabar apenas tedespertando. Funciona quase como café.

A ruiva percebeu que ele ficava feliz em ajudar, mas depois notou sua expressão se fechar.– Como anda sua relação com seus pais?Ela não tinha vontade de falar sobre o assunto e preferia continuar no tema do sono, mas percebeu

que de algum modo as duas coisas tinham conexão.– Não tenho conversado muito com eles. Eles também não estão falando muito entre si.– Você gosta da casa desse jeito?Sophie pareceu ofendida com a pergunta. Nunca fora a única culpada por todo aquele drama. Os

pais tinham forçado a barra para chegar àquele estágio.

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– Desde quando alguém gosta de ignorar a família? – perguntou ela para o psicólogo.Ele acabou rindo.– Muito mais do que você imagina. Muita gente considera essa situação satisfatória.– As pessoas gostam mesmo de não se dar bem com as outras?

– Me diga você: pelo que me falou, você não conversa mais com os seus pais e nunca escuto sobre osseus amigos. Também não me conta sobre namorados. Você gosta de não se dar bem com as outraspessoas?

Ela continuava se sentindo ofendida. Nunca pensara daquele jeito. Somente percebia que, por serdiferente, as pessoas tendiam a não gostar dela. Por isso, afastava-se para não se decepcionar depois.

– O senhor acredita que isso esteja afetando meu sono? – indagou ainda irritada, olhando para oteto do escritório e agradecendo por não ser bege.

– Ao dormir, relaxamos e recarregamos nossas energias, produzindo nutrientes que fazem parte denosso crescimento e bem-estar. Se sua vida estiver um caos, com certeza isso refletirá no descanso.

– E se eu não quisesse dormir, mas apenas ter um sonho lúcido? Isso me afetaria? – Ela extrapolouos limites, dando acesso ao doutor a questões não discutidas com ele.

– Isso tem a ver com as pessoas que não se assustam com você? – quis saber ele, desenterrando oassunto da primeira consulta.

Ele não deixa passar uma, pensou.

Sabia que o próximo passo dele seria encaminhá-la para um psiquiatra. As constantes mudanças dehumor, as brigas em casa e na escola, as dúvidas e a falta de comprometimento com as pessoas aclassificavam como depressiva. Sabia disso desde que começara a ir para o Reino, mas, com a obsessãoem sempre voltar para lá, não conseguia mais relaxar. Lembrava-se, deitada no confortável divã, danoite em que assistira ao filme com Léo e não conseguia focar a atenção nem em um momento comoaquele. Se mudaria mesmo de profissional, era melhor pelo menos desabafar um pouco mais.

– E se tivesse ligação? E se existissem pessoas que eu não assustasse e com quem me desse bem?O homem ficou por um tempo analisando a prancheta, provavelmente pensando na próxima

pergunta.– Se existem, gostaria de saber mais sobre elas – comentou.Sophie tentava imaginar qual seria a reação do dr. David se ela começasse a realmente contar tudo

sobre sua vida. Ele agora abria o espaço necessário e, de alguma forma, estavam ligados ao sigiloprofissional, por isso seu segredo morreria ali. Buscando não assustá-lo de vez, resolveu procurar umamaneira sutil de falar sobre o tema.

– Eu conheço um grupo de pessoas que me amam e que querem o meu bem. Tenho conversado comelas de vez em quando. Principalmente com as mais ativas.

– Ativas nessa comunidade? – perguntou ele, em um tom de voz estável.Ela sentiu vontade de rir por sua maluquice, mas tentou manter a seriedade.– Isso! Elas têm papéis de liderança nesse grupo, mas na verdade quem está à frente de todas essas

pessoas sou eu.O psicólogo resolveu fazer mais uma anotação na prancheta, mas Sophie o interrompeu:

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– Será que podemos ter uma conversa normal? Você poderia deixar de anotar tudo isso ou talvezanotar depois?

Ela sabia que nada daquela história era normal e provavelmente os dedos dele coçavam com umavontade louca de escrever tudo, para depois encaixá-la em algum padrão de doença mental. Não seimportava tanto com o fato de ser diagnosticada, mas ter tudo anotado enquanto desabafava eraconstrangedor.

– E por que não se encontra sempre com essas pessoas? – indagou ele, deixando a prancheta de lado.– Se elas lhe dão conforto, por que não estar sempre ao lado delas?

– Nem tudo o que queremos esse mundo nos dá...– Você consegue sonhar com essas pessoas? – o psicólogo tentou perguntar de um modo brando.

Um ser humano podia sonhar com qualquer coisa. Aquilo não significava que era insano.– Sempre que possível sonho com elas – respondeu ela, receosa.A cabeça da ruiva tombou para a esquerda a fim de encarar o homem grisalho de jaleco e óculos de

grau. Enquanto se olhavam, ele tentava buscar a dor contida no azul-acinzentado dos olhos dela.– Nesses sonhos, você se sente importante? Querida?Mesmo triste, ela esboçou um sorriso antes de voltar a olhar para o teto.– Eu sou... – sussurrou. – E é tão bom.– Deve mesmo ser...O tempo da consulta estava quase no fim, e ele desejou ter mais tempo com aquela paciente. Era a

primeira vez que faziam uma espécie de progresso. Ele finalmente conversaria com a mãe dela para quebuscasse um psiquiatra. Ao mesmo tempo, acreditava que ela precisava de mais consultas com ele.

– Antes de chamarmos sua mãe, eu gostaria de lhe perguntar mais uma coisa.Sophie voltou a tombar a cabeça.– Quando dorme e encontra essas pessoas que te amam, você acaba encontrando seres de outro

mundo?A ruiva percebeu que ele tentava medir o tamanho de sua loucura. Sendo mais esperta, respondeu

entre risos irônicos:– Seres de outro mundo, doutor? Aí eu precisaria mesmo falar com o senhor.Em seguida, a secretária liberou a entrada de Laura no consultório, e o doutor explicou que, no caso

da filha dela, precisariam também passar por um profissional de outra área, mais especificamente apsiquiatria. A mãe teve vontade de chorar com a informação, mas Sophie não se sentiu mal. Preferiatomar um comprimido do que compartilhar coisas que não estava preparada para falar.

Quando afinal relaxou, abriu os olhos e soube que estava voando. A sensação do vento atravessando ocorpo como se levasse com ele toda a sua energia negativa era refrescante. Sentia-se livre na atmosferagélida ao redor, mesmo naquele dia ensolarado. O cheiro das diversas árvores e flores conseguia atingiros céus e, de cima, tudo parecia ainda mais delicado.

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– É muito bom vê-lo novamente – comentou Sophie para o pássaro gigante, enquanto alisava asplumas brancas de seu pescoço.

Para sua surpresa, o animal perdeu a timidez ou preguiça e resolveu responder:– É muito bom recebê-la outra vez, alteza.Ainda alisando suas penas, os dois planaram pelos campos esverdeados repletos de florestas em

formatos de letras. Por um bom tempo, ela ficou apenas deitada sobre o dorso de Condx, conforme aave voava sem rumo.

– É muito tranquilo aqui em cima – murmurou ela tentando olhar para o sol, mas tendodificuldade pela luminosidade excessiva.

– Também muito solitário... – respondeu ele.Sophie entendeu. Até um pássaro mágico era capaz de se sentir sozinho.O mundo está mesmo perdido, pensou.

– Por que hoje cheguei pelo céu? – quis saber.– Jhonx comentou com Sycreth que você estava curiosa sobre as criaturas mágicas. Ela pediu que eu

a levasse até a região das fadas. Algumas delas moram no Reino. A Rainha deve estar lá hoje pararecebê-la.

O pássaro que antes não falava agora fornecia detalhes necessários. Sophie sentia-se feliz por poderencontrar com a avó e provavelmente ver fadas de verdade.

– Existem fadas que não moram aqui?Condx fez uma curva à esquerda e acelerou o ritmo antes de responder.– Elas têm uma dimensão própria e são de tantos tipos que eu mesmo não conheço todas.– Nossa, existem espécies delas?– Existem espécies de tudo, princesa. Acho que seria bom depois dar uma espiada na biblioteca real.

Por lá, há diversos livros sobre as criaturas mágicas do universo.– E como você sabe disso?– Quem disse que pássaros não sabem ler? Jhonx sempre me empresta alguns exemplares para que eu

possa dar uma olhada em meu ninho. Aquele onde você me encontrou no primeiro dia.Sophie não acreditava que recebia sermão e indicações de uma ave. Tudo era diferente no Reino e,

às vezes, esquecia-se disso. Se, sendo um pássaro, Condx conhecia a biblioteca, ela, como governante,precisava urgentemente visitá-la e saber mais sobre os seres fantásticos.

– Que tipo de fada vou encontrar? – quis saber.– Está prestes a descobrir...Fazendo uma manobra de cento e oitenta graus, ele os guiou para dentro de uma das florestas

douradas ao sul do Reino. A princesa nem imaginava que o lugar pudesse ser grande daquela forma,afinal havia conhecido os Tirus, e eles não eram tantos assim. Talvez, com os seres mágicos espalhadospelo lugar, a população fosse maior.

– Nunca vou me acostumar com as suas descidas, Condx.A ave emitiu um grunhido que mais parecia uma risada.Quando finalmente pousaram, Sophie foi orientada a andar até encontrar um círculo de pedra na

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floresta. O pássaro explicou que era o local onde a Rainha teria uma audiência com Pys, arepresentante das pixies locais. Sophie entendeu então serem as fadas do Reino.

Caminhou por poucos minutos, tomando cuidado para não tropeçar e receando prender a barra dovestido em alguma raiz.

Chegou a uma espécie de círculo de pedras alaranjadas, mas não encontrou a avó e muito menos asfadas. Achou estranho.

– Vovó... – gritou ela, tentando chamar a atenção da senhora.Nenhuma resposta.Foi até uma das pedras estranhas e, por curiosidade, alisou sua superfície para tentar identificá-la.

Não parecia uma pedra comum. Quando os dedos finos encostaram-se à superfície lisa, percebeu apresença de uns cinquenta pares de asas ao seu redor, além de cinquenta pares de olhos a encarando.

Pequenos bichinhos um pouco maiores do que um beija-flor a olhavam com curiosidade, talvez pornunca terem visto uma humana esfregando aquela pedra. Parada, tentando descobrir se era seguro semexer, Sophie tentou analisar possíveis rotas de fuga caso as criaturas resolvessem atacá-la.

As pixies tinham o corpo pequenino, porém todos os membros eram muito parecidos com os doshumanos. Os cabelos delas eram de diversas tonalidades, mas todas usavam o mesmo corte curto.Vestiam trajes simples de tecido verde quase da tonalidade do gramado, combinando com o materialdos ainda menores chapéus. A ruiva não acreditava que até as fadas daquele Reino usavam cartolas.Estranhava o fato de os pássaros não precisarem cumprir com a exigência.

– Fique tranquila, elas são inofensivas – comentou a avó, saindo de trás de uma das árvores aliperto.

Ao ouvirem a voz da Rainha, todas as fadas ao redor se afastaram, voando para as outras pedras ecomeçando a poli-las de alguma forma.

– O que elas estão fazendo? – perguntou Sophie.A avó indicou para que elas se sentassem no centro do círculo misterioso.– Estão polindo a nossa maior fonte de magia – explicou a Rainha. – Tirando a energia negativa ao

redor. Sempre soube que nossa dimensão era mágica porque essas pixies resolveram cuidar de nossamagia.

– Eu não entendo...– Um mundo precisa surgir de algum lugar ou alguma crença. Nós acreditamos que uma força

muito forte colocou este círculo de pedras aqui para atrair as pixies e outras criaturas. O equilíbriocósmico do Reino depende da vibração destas pedras, por isso precisam estar limpas.

– Você se lembra de quando os Tirus vieram para cá?Sophie pôde perceber a confusão da avó com a sua pergunta. Talvez para ela fosse difícil responder

sobre o passado. A menina tinha dificuldade em assimilar que todo o Reino dependia de um círculo depedras poderosas, as quais fadas precisavam polir para que continuassem exalando poder.

Encarando novamente as fadas, teve a estranha sensação de já ter visto criaturas como aquelas etambém pedras muito parecidas. Tentou relembrar tudo que pudesse ser parecido com aquilo, porém,nada vinha à mente.

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– Minha neta, acho melhor deixarmos essa história para trás – recomendou.Ela continuava a ver confusão no olhar da avó e perguntava-se até que ponto da história deles os

Tirus realmente sabiam. No começo, acreditava ter criado aquela dimensão. Naquele momento,percebia que tudo existia antes dela, mas o que seria certo ou errado?

– Condx comentou que a senhora tem uma audiência com Pys.Após a menina ter proferido o nome, uma das pixies parou de polir a pedra mais extrema e foi ao

encontro delas.– Sophie, esta é a líder das pixies. Seu nome é Pys e, sem ela, não teríamos a energia necessária para

sobrevivermos.A pequena criatura estendeu a mão para a princesa, que conseguiu cumprimentá-la ao estender o

dedinho. Agarrando-o com força, a líder pareceu feliz de conhecer a famosa herdeira do trono.– Ela fala? – perguntou Sophie.Uma voz agudíssima, lembrando sons desregulados por computadores, acabou se manifestando:– É claro que eu falo! Aliás, eu também ouço!A garota não sabia identificar se o tom bravo na fina voz era porque a julgara muda ou se algo

incomodava a pixie.– O que está acontecendo, Pys? Você nunca me chamou antes – comentou a Rainha, o que deixou

Sophie ainda mais intrigada.– Está acontecendo, senhora.– Acontecendo o quê? – cortou a princesa.A pequenina colocou as mãos na cintura e mostrou ainda mais raiva.– Minhas companheiras e eu estamos trabalhando vinte e quatro horas nestas pedras, e elas parecem

nunca melhorar. Todos os dias, sentimos camadas e mais camadas de energia negativa soterrando-as eprecisamos esfregá-las constantemente. Não entendemos por que isso está acontecendo apesar doretorno da princesa. Com a chegada dela, deveríamos ter menos trabalho. Ela nos traria equilíbrio, nãoé?

Sophie não sabia o que dizer. De algum modo, sentia-se culpada. Não sabia como trazer maisequilíbrio para uma dimensão inteira, mas julgava que o fato de os Tirus saberem de sua volta fossesignificativo o bastante.

– Vocês tentaram captar de onde estão vindo as energias negativas? – questionou Ny.– É difícil localizar a fonte. Só sabemos que é externa, pois os dias têm sido lindos aqui no Reino,

totalmente ao contrário do que mostra a superfície das pedras.– Será que estou afetando o Reino de alguma forma? – perguntou receosa a ruiva.A Rainha ficou pensativa enquanto olhava as pobres fadas alisarem rapidamente as camadas.– Sua presença no Reino será fundamental para nós, mas apenas quando completar as três etapas

dadas por Mama Lala – explicou a senhora.A fada ficou ainda mais irritada com o comentário e falou gesticulando, esquecendo que se dirigia à

Rainha:– Aquela velha bruxa está envolvida nisso? – gritou em um agudo constante – Só podia ter o dedo

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podre daquela vidente de araque.Sophie se assustou com a atitude da pixie. Ela continuava a condenar a senhora, dizendo palavras

horríveis.– Controle-se, Pys! Não esqueça que está falando sobre a nossa guia espiritual e na presença da

realeza deste Reino.– Mas... Ela fica interferindo no destino das pessoas, e sou eu que tenho que limpar a sujeira depois

– gaguejou a criatura.Apesar de chateada com a situação, a Rainha pareceu compreender o desabafo da pequena.

Trabalhar sem parar devia ser desgastante.– Sophie, você tem conseguido respostas para sua segunda etapa? – indagou a avó.Sophie tinha medo de responder. Ela estava se esforçando para aprender e compreender tudo, mas

imaginava não ser o suficiente, afinal não tinha uma resposta.– Eu sei que para os humanos eu já sou considerada louca.Tanto a avó quanto a fada endureceram as expressões.– Nós não gostamos dessa palavra por estas terras... – repreendeu-a a Rainha.Pys balançou a cabeça, indignada. A fadinha, aparentemente, não tinha a melhor das impressões da

princesa.– Mas foi essa a carta mostrada por Mama Lala. Estou na segunda etapa que ela propôs. Meu

dever é desvendar a carta do Louco.A cada palavra dita, as fadinhas ao seu redor pareciam esfregar a superfície com mais força.

Minúsculas partículas brilhosas escorriam por suas pequenas faces, e Sophie teve pena.– Nem sempre uma carta diz o que você é. Ela mostra o seu caminho. Nunca mais repita que é

louca...– Eu disse que para os humanos eu já sou considerada louca – interrompeu Sophie, também

esquecendo que estava perante a soberana do Reino.– Mas seu coração parece concordar com eles.Sophie ficou desconcertada pela primeira vez naquela dimensão. Não podia negar que se sentia

perturbada, pois era difícil acreditar em sua sanidade em situações como aquela. Estava parada perantedezenas de criaturas que diziam ser fadas e conversava com uma pessoa que sentia ser sua avó, apesar dea mente lhe dizer que não era. Como tudo aquilo era possível? Deveria mesmo se considerar sã?

Teve vergonha de olhar para a avó e desejou voltar para o mundo humano.Aquilo também nunca tinha acontecido.

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eitara-se com as pernas para o alto, deixando o torso no sofá e a cabeça dependurada com oscabelos arrastando ao chão. Posição estranha como tudo nela, mas Sophie sentia-se confortável

no canto da garagem ao lado de Mônica, ouvindo os meninos tocarem.A colega parecia uma groupie, soltando gritinhos abafados a cada falsete do namorado, que tinha

metade de seu tamanho. A ruiva conseguia ver Léo segurar o riso toda vez que escutava ou via a amigase contorcer, empolgada. Ele e Sophie às vezes se perguntavam se ela deveria agir como a outra, contudoambos se repreendiam ao lembrar que eram apenas amigos e pelo menos estavam juntos, sob o mesmoteto. A cada dia que passava, era mais raro Léo ver Sophie na escola, e dessa vez não era porque elaestava fugindo, mas porque sua saúde na verdade não ia bem.

O estresse, a solidão e a falta de refeições regulares começavam a afetar Sophie, sempre a deixandofraca demais para ir ao colégio. A visita ao psiquiatra também resultara em comprimidos paradepressão, os quais deveriam ajudá-la a sair daquele quadro. Pelo menos fora o que o doutor dissera,mas seu corpo dizia o contrário. Apesar de continuar visitando o psicólogo, dia após dia Sophiedeixava de ser ela mesma. No começo, Laura e George acharam que era charme e só acreditaram nagravidade de seu quadro quando certa manhã ela desmaiou.

O caso foi a fofoca da semana no colégio. Muitos comentavam que ela se desgastara no esforçopara vomitar tudo o que engolia e juravam tê-la escutado no banheiro em um dos intervalos. Outrossupunham que ela era viciada em cocaína, o que a deixara naquele estado de magreza. Mônica e Léoperguntavam-se durante as aulas sobre como os outros alunos conseguiam ser cruéis a ponto deacreditar em quaisquer daquelas mentiras. Ninguém percebia que em parte Sophie estava naquelasituação por culpa deles, do ambiente que a cercava.

Pelos posts na internet, a ruiva viu que até a antiga amiga a havia defendido em algumas discussões,alegando que ela nunca induziria aquilo. Mas a lembrança de Anna só a fazia sentir-se mal. Recordavao momento em que dançaram juntas pela última vez e como havia sido gostoso sentir o orgulho daamiga.

– Eles são o máximo, não são? – perguntou Mônica de supetão, tirando-a de seus pensamentos. Osolhos da amiga estavam brilhando e ela quase não prestava atenção à resposta. O importante paraMônica era decorar cada letra cantada pelo namorado.

– São legais, sim... – respondeu Sophie, com a mente longe do ensaio.Achava bacana que os novos amigos se empenhassem em tentar distraí-la. Sabia que a súbita

expressão cadavérica obtida nas últimas semanas assustava e que ela nunca havia sido a sensação de uma

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festa, mas sempre pediam a opinião dela quanto ao repertório ou à maneira como conduziam asmúsicas. Ela acabava se sentindo útil. Sentir-se envolta de música lhe fazia bem.

Desde que descobrira que sua energia atrapalhava a sinergia do Reino, não sabia controlar a formacomo aquilo a afetava. Não conseguia se fazer feliz e sentia-se ainda mais miserável por estarprejudicando seus queridos Tirus.

Por muitas noites, desejou o colo da avó, os conselhos de Sycreth, o conforto de Phix e as melodiasde Jhonx, mas parecia cada vez mais complicado aparecer no mundo mágico. Eles esperavam que elaconseguisse passar pela etapa do Louco, mesmo já estando na pior situação de sua vida. Não tinhacomo surtar mais e não sabia como superar aquilo.

– Ei, Sophie! – gritou Léo do outro lado da garagem – Sabe essa música? Um, dois, três e já.O garoto começou a assobiar ao ritmo de batidas em uma espécie de caixa de madeira. Os amigos

da banda, normalmente acostumados com rock, acabaram entrando no clima, pegando um antigochocalho jogado de lado para dar o ritmo.

– Garota, eu nunca amei ninguém como você – cantou ele, surpreendendo-a.

O ritmo continuou invadindo todos ao redor. Até o baterista, que fazia o tipo caladão, batia abotina no chão no compasso da música.

– Vamos lá, Sophie! Cante com a gente – incentivou o garoto.Ela ficou contente e confusa com a surpresa. Gostava da letra, e o som parecia contaminá-la na voz

de Léo e Hugo.– Alabama, Arkansas. I do love my ma and pa. Not the way that I do love you – reiniciou o rapaz, tentando

encorajá-la a cantar.Eu amo minha mãe e meu pai. Não do jeito como amo você, pensou Sophie, traduzindo a música. Será?,

perguntou-se, tomando coragem para cantar também.Reunindo as únicas forças que lhe restavam, ela saiu daquela posição engraçada e, do outro lado,

completou a canção:– Holy, Moley, me, oh my. You’re the apple of my eye. Boy, I’ve never loved one like you.Sophie sorriu pensando no significado daqueles versos. Você é o menino dos meus olhos. Garoto, eu nunca

amei ninguém como amo você.Ao seu lado, Mônica parecia perdida. Ouvira dizer que Sophie tinha uma voz bonita, mas, até

aquele momento, não a havia escutado.Todos perceberam que ela trocou a letra para “garoto”. Entretanto, a sintonia era fantástica e eles

apenas se importavam com a magia que faziam juntos. Até Mônica entrou na harmonia e, se alguém defora tivesse filmado, a cena teria sido daquelas que as pessoas ficam encantadas ao assistir na internet.

Quando terminaram a canção, Hugo sinalizou que, por aquele dia, já estava bom e indicou para osamigos o acompanharem, deixando Léo e Sophie sozinhos.

– Sua voz é incrível – comentou ele feliz, jogando-se ao lado dela no sofá. – Você é incrível.A exaltação fez as pernas da garota bambearem. Não era todo dia que uma menina como ela ouvia

um elogio daqueles de um rapaz como ele.

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– Não sei como consegue dizer isso... – respondeu ela, sem graça.– Sendo sincero.A reposta a fez sorrir.Léo parecia cansado do ensaio, mesmo que visivelmente satisfeito com a noite. Remetendo-se a um

dos primeiros encontros deles, o garoto encostou a cabeça ao lado dela e fechou os olhos, aparentandoestar muito longe dali.

Sophie se viu desejando levá-lo para o Reino.– Você tem se cuidado? – perguntou ele com receio.– Sempre...– Estou falando sério.– Eu também. E não estou fazendo voz de sonsa – insistiu ela.Ele não pareceu compreender totalmente, porém entendeu que ela estava sendo sincera. O garoto

não acreditava nos rumores que já ouvira sobre Sophie desde o primeiro dia em que pisara no novocolégio.

Algo nela o encantava.Talvez fosse a maneira como a menina olhava o mundo, parecendo duvidar de tudo. O modo como

apertava os dedos e mordia os lábios quando se sentia ameaçada. Ou como gostava de cantar sozinha eler deitada, algo diferente de noventa por cento da escola. Também admirava a força dela paracontinuar aparecendo em um lugar que a condenava sem motivo algum. Podia ser também porqueamava os cachos avermelhados que caíam no rosto delicado e as roupas despojadas.

Mulheres como Sophie eram difíceis de encontrar. Desde que Léo a vira, tinha decidido que seafastaria somente se ela lhe pedisse. Mesmo assim, teria dificuldades. Vê-la sofrer daquele jeito cortavaseu coração. Tentava animá-la ou quem sabe chegar a conquistar seu amor, mas a cada dia que passavavia o brilho da doce garota evaporar, e ela se transformava em um fantasma. Ainda que fosse umfantasma, ele estaria ao lado dela.

– Pedi a uma garota da sua sala as anotações dos dias que você faltou. Tirei cópias pra você poderestudar.

Como ele consegue ser tão perfeito?– Não sei como agradecer...– Se empenhando e tomando cuidado com sua saúde. Isso que importa.A jovem tentou sorrir, mas não conseguiu.– Você acha que estou fazendo isso comigo mesma? – perguntou ela, colocando-o em uma situação

difícil.– Acho que existem doenças que tomam nosso corpo e, às vezes, não sabemos o que fazer com elas.

O importante é descobrir como lutar – respondeu.Léo era mesmo perfeito.Sophie encostou a cabeça no ombro dele e ficaram em silêncio. Talvez as coisas estivessem

melhorando.

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A cabeça pesava a ponto de ter vontade de tirá-la do pescoço para nunca mais sentir tal incômodo. Osolhos ardiam como se não existissem mais lágrimas capazes de suavizar o contato das pálpebras e daíris. Ela sentia o estômago arder mais do que o habitual, e o remédio indicado pelo médico a deixavagrogue de uma forma não divertida. Não estava com sono, mas parar em pé era uma tarefaincrivelmente difícil.

– Deve haver algum outro problema com você... – resmungou a mãe, e Sophie não soube se ela deviater ouvido o comentário ou não.

Tinham voltado da segunda visita ao psiquiatra, e ele continuava a prescrever-lhe os mesmosremédios calmantes e antidepressivos. Apesar de o doutor indicar que o caso dela era claro e não havianada físico envolvido no quadro, Laura convenceu George a marcar uma consulta para a filha com umclínico geral. A vontade dela era levá-la a um gastroenterologista, mas sabia que só mencionar o assuntodeixaria Sophie ainda mais estressada.

Os exames feitos nas consultas não apontaram nada mais grave. O estômago da garota andavamachucado, contudo nada que não pudesse ser curado com um simples remédio. O clínico reforçouque o problema estava no emocional dela e que o corpo apenas refletia a confusão da garota.

– Eu queria conseguir te ajudar... – disse Laura mais uma vez no carro, enquanto se dirigiam para oconsultório do dr. David. – Se eu pudesse carregar a sua dor.

Sophie nunca havia escutado palavras como aquelas dos lábios da mãe. Ficou tocada pelamanifestação de carinho. Ao mesmo tempo, sentiu o desespero na voz da mulher que a educara. Eraoutro ser que dependia dela, e a ruiva não sabia mais como fazer todas aquelas pessoas felizes.

Quando entrou no consultório do psicólogo, estava esgotada física e mentalmente. Sua vontade eraa de desentalar todas as coisas engasgadas durante todos aqueles meses. Ela já o visitava havia um bomtempo e, mesmo gostando do doutor, não sentia resultados. Acreditava que boa parte daquilo devia-seao fato de ela não ser honesta.

– Eu sou a princesa de um Reino – soltou Sophie, caminhando até o divã. – E minha doença estáprejudicando meus súditos.

O psicólogo podia ter duas reações ao comunicado: rir, achando que era uma brincadeira, ouinterná-la por considerá-la transtornada.

Para a surpresa da jovem, ele apenas perguntou:– Do Reino onde as pessoas te amam?Seu desabafo estava repleto de receio, porém ela chegara a um limite impossível de ser prolongado.– Visito outra dimensão há meses e lá converso com essas pessoas que me conhecem. Elas me

consideram sua princesa, e minha avó, atual Rainha, está me treinando para assumir o trono.Ele poderia facilmente me levar para um hospício em três... dois... um...O homem continuava a olhá-la. Por respeito a ela, sem a prancheta.– Essas pessoas sabem que você não é do mundo deles? – continuou o dr. David, curioso.– Eles sabem que estou na Terra, mas na verdade eu também não sou deste mundo. Tenho a mesma

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origem que eles...– E que origem é essa?Ela não sabia responder.Tinha consciência de que o lugar começara com o círculo de pedras alaranjadas e as pixies, e que

aqueles seres tinham dado início à construção da dimensão. Ainda não entendia o seu papel na história,somente compreendia seu valor para todas aquelas criaturas.

– Uma vez, fiz uma pergunta e não acreditei na sua resposta. Posso fazê-la novamente? – pediu àgarota.

Sophie não fez objeção.– Existem seres mágicos nessa outra dimensão?A dor de cabeça e os olhos ardentes pareceram piorar em questão de segundos. Ela sabia o quanto

estava se arriscando em compartilhar tudo aquilo, mas o momento tinha que ser aquele.– Sim... – respondeu. – Existem diversos deles.Ele a olhou pensativo. Ela não sabia se gostava disso. Na verdade, teve vontade de começar a rir e

dizer que era mentira, mas não mentiria mais para si própria.– E quando não está nesse Reino? Consegue ver criaturas mágicas?Aquela era uma boa pergunta.– Quando ando pelos corredores do colégio, consigo ver as pessoas pelas verdadeiras criaturas que

elas são. Muitas me lembram seres do pântano.– Você já pensou no que vai acontecer com a sua vida se decidir ficar para sempre nesse Reino? –

indagou ele.Sophie sempre pensava naquela questão. Certos dias, achava que sua partida não afetaria em nada a

sua vida nem a dos outros. Vinha machucando tanto os pais que poderia acabar sendo um alívio. Poroutro lado, em momentos como os que passava ao lado de Léo, sentia que seria difícil lidar com apartida final.

– As pessoas vão precisar entender. Os Tirus precisam de mim.– Os Tirus são o povo desse Reino?Ela aquiesceu.– E seus pais e amigos não precisam de você?A garota sentiu um pouco de dor na indagação.– Em geral, eu preciso mais deles do que eles de mim.O terapeuta tinha muita vontade de anotar ou gravar aquela conversa. Em seus muitos anos de

profissão, já vira de tudo. Sophie falava com tanta convicção sobre o lugar mágico que ele ficava aindamais encantado com a mente humana. Ela era um caso especial.

– Quando foi a sua primeira visita a esse local?Ela sentiu vergonha de revelar.– Na noite em que fui humilhada pela minha ex-melhor amiga em uma festa. Foi quando fui levada

para o Reino.– A mesma amiga que causou o incidente que fez você gritar e motivou sua mãe a trazê-la aqui?

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Bingo. A mesma desgraçada que havia acabado com qualquer rastro de humanidade existente nela.

Sophie apenas concordou com a cabeça, deixando o psicólogo refletir.– Essas criaturas que te amam não estariam agora suprindo a falta que você sente dessa menina?Sophie franziu a sobrancelha com desdém.– Eles me amam muito mais do que ela jamais amou...Ela começou a perceber que ele usava a psicologia para tentar explicar o suposto surto dela. A ruiva

sabia que parecia ser um delírio. Mas seu Reino não era. Não podia ser.– Eu preciso passar pela etapa do Louco e não consigo – comentou, deixando o dr. David ainda

mais confuso.– Por isso não tem dormido direito?– Eles querem que eu desvende uma carta que não consigo entender.– E se você não fizer o que eles pedem?Sophie suspirou e encarou o psicólogo:– Continuarei sendo infeliz... dentro deste consultório e neste mundo.

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pesar de ser boa aluna e manter notas exemplares, Sophie sentia que começava a ficar para trás naturma, e até os professores já suspeitavam que a causa da mudança em seu desempenho eram

problemas mais profundos.Praticamente alternava os dias em que ia à escola. Quando não ia, Léo levava as anotações do dia

para que ela pelo menos se mantivesse informada. Contudo, ela era o tipo de aluna que gostava de ouviros professores e sentia dificuldades naquele aprendizado quase autodidata. Também se questionavasobre quem devia ser a alma boa que ajudava o garoto naquela empreitada.

Ao contrário dos seus colegas, os mestres ainda viam futuro na aluna e ofereciam ajuda quandopodiam. Não abonavam todas as faltas, mas tentavam corrigir suas lições das aulas não frequentadas,que Léo lhes entregava. Para eles, era um desperdício não aproveitar uma das mentes mais ativas docolégio.

Os antidepressivos não pareciam fazer efeito e só a deixavam ainda mais mal-humorada oudistraída. Em algumas das tardes em que Léo a visitava, perdia-se nas histórias que ele contava por nãoconseguir se concentrar. Nem a internet nem os livros de literatura fantástica conseguiam prender suaatenção. Temia passar os últimos dias na Terra como um ser vegetativo. Não ouvira mais sobre o Reinonem recebera uma ligação de urgência do psicólogo. Achava estranho o homem não ter surtado comtudo o que ouvira. A reação dele ainda a deixava intrigada.

Sophie estava deitada no escuro às três horas da tarde. Ela passara a noite, a manhã e quase a tardetoda acesa, sem descansar. A escuridão pelo menos diminuía a dor de cabeça.

Ouviu uma batida na porta e estranhou. Já havia aceitado tomar uma sopa de legumes no almoço.– Léo está aqui – disse a mãe do outro lado da porta.Laura sempre mostrava a empolgação na voz quando o garoto os visitava. De início, George não

havia concordado muito de Léo passar as tardes trancado no quarto de Sophie, mas, no final, acaboucedendo ao ver que ao menos uma pessoa da idade dela parecia entendê-la.

O menino entrou com o celular na mão para iluminar o caminho.– Virou criatura da noite? – indagou ele, tentando ser divertido.– Combina mais comigo.– Então posso fazer um topete e passar pó de arroz na cara.Ele sempre tinha uma resposta pronta, mas nem sempre isso surtia efeito nela.– Trouxe mais tarefas, mas ouvi dizer que você e seus pais precisarão ir até a escola para falar com a

megera...Sophie tinha ouvido aquela conversa na noite anterior. Seu número de faltas não podia mais ser

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ignorado, apesar das boas notas. A diretora alegava que não era possível fingir que a educação delaestava acontecendo a distância e queria uma reunião.

– Vou adorar reencontrá-la – disse ela, sarcástica.– Ah, agora eu conheço a voz de sonsa – completou Léo, bem-humorado.A expressão fez seu coração apertar mais um pouco. Desde que conversara com o psicólogo sobre

Anna, começou a sentir um pouco de falta dela e, ao ouvir aquilo, a sensação piorava.O garoto pediu por espaço e deitou-se ao lado dela, um tanto confortável demais. Sophie nunca

imaginou que um dia teria Léo ali, deitado em sua cama. O pior era que ela estava com o cabelo todoembaraçado e ainda com a roupa do dia anterior. Ele pareceu não ligar, mantendo o mesmo sorrisoiluminado pela luz incandescente do celular.

– Posso te contar um segredo? – perguntou ele de repente.O normal para ela costumava ser falar de si própria durante as conversas ou então de colegas da

escola. O fato de ele querer contar algo a animava um pouco.

– Meu pai aceitou a proposta de uma empresa concorrente aqui da cidade – começou a contar. –Além de oferecerem um salário irrecusável, por contrato ele não terá mais obrigação de se mudar.

Sophie conseguia entender a felicidade do garoto.– Agora a banda vai deslanchar... – comentou ela. – Mesmo com um guitarrista com o seu visual.O sorriso dele se abriu um pouco mais. A música fazia dele uma pessoa melhor.– Logo vamos ser ricos e famosos! Podemos até começar uma turnê – brincou Léo.– Pensei que o objetivo fosse criar raízes.O comentário desmanchou o sorriso. Ele tinha consciência de que ela não fizera por mal, mas não

entendia por que ela nunca podia simplesmente ficar feliz por ele.– Estraguei tudo pra variar, né?Ele conseguia ver que ela apertava o cobertor que a escondia quase até a cabeça.– Tudo não. Só um pouco.Tenho tanta sorte, pensou.

– Acho melhor eu ir – disse ele, levantando-se.Sophie tinha vontade de pedir desculpas e falar para ele ficar mais um pouco. Talvez eles

conseguissem assistir a algum filme juntos. Contudo, ela nada disse ou sugeriu, apenas observou omenino lhe dar um beijo na testa e sair pela porta do quarto, deixando-a novamente na escuridão.

Quando ouviu a melodia das flores ao seu redor, levantou do gramado e saiu correndo pela planície,rindo e rodopiando por estar novamente em casa.

Alguns habitantes passaram ali perto e a cumprimentaram, pedindo abraços e beijos na testa. Ela osretribuía de bom grado, em nada lembrando a pessoa que estava havia quase vinte e quatro horasescondida sob um cobertor velho. A troca de energia a recarregava como se estivesse ligada a uma

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tomada de amor puro.Na correria desenfreada, ela ria à toa. O importante era que veria sua avó. Jhonx andava alguns

metros à frente, e Sophie fez sinal para o gato falante esperar. Iriam juntos ao castelo.– Sentimos sua falta, alteza! – comentou o gato ao reverenciá-la.– Posso dizer o mesmo.Quis se olhar no espelho para saber se as bochechas afundadas e o pulso fino haviam sidos

preenchidos ao cruzar as barreiras das dimensões. Sentia-se saudável e atraente. Aquilo era cada vezmais raro no mundo humano.

– Pronta para encontrá-los? – perguntou Jhonx.Sophie pegou a pata do gato que não segurava o cetro, e juntos caminharam pela passarela até o

portão do castelo de cores pálidas.Foram recebidos por Sycreth. A jovem pareceu surpresa ao vê-la, e Sophie a princípio não entendeu

o motivo do espanto.– Sua alteza está bem! – comemorou a Guardiã.– Claro que estou! Pensei que a senhorita soubesse todos os segredos do Reino. Não sabia de minha

vinda?A felicidade da jovem sumiu de seu semblante.– A Rainha conversará com você, princesa. – Sycreth tentou contornar a situação. – Mas sua figura

será para sempre um grande ponto de interrogação até mesmo para mim.Aquilo foi um alívio, mas também a deixou preocupada.– Este dia merece uma comemoração – anunciou o gato, chamando o Ministro para organizar uma

festa a céu aberto.O homem se aproximou caminhando com sua velocidade própria, típica dos hiperativos.– Este mundo não é o mesmo sem você.Sophie sentiu vontade de revelar que sua ausência vinha do fato de não ouvir mais o chamado daquele

lugar. Eram eles que não a chamavam mais para atravessar o véu. Mal sabia como tinha aparecido alidaquela vez. Provavelmente dormira depois que Léo havia saído de seu quarto.

– E onde está minha avó?Todos lhe indicaram a sala dos tronos, e a comitiva se encaminhou para lá. Quando chegou, pôde

sentir a energia de longe. O poder da Rainha dos Tirus era tamanho, que as pessoas se sentiamcontaminadas pela presença da figura divina sentada no trono de pétalas.

– Minha neta – disse a voz experiente do outro lado do salão. – Minha herdeira.A princesa correu, arrastando a cauda de tules esverdeados pelo caminho e deixando faíscas de

energia pelo ar.– Você parece bem – suspirou a mulher.– Por que todos estão dizendo isso?A Rainha fez sinal para que Sophie se sentasse no outro trono de pétalas. Os presentes se

acomodaram nos devidos lugares. Um espantalho com touca e avental de cozinheiro aproveitou aocasião para trazer uma bandeja com aperitivos. O apetite de Sophie se abriu e ela abocanhou diversos

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biscoitos.– Peço que parem qualquer comemoração pela chegada de Sophie – ordenou a senhora para o

Ministro de repente. – Mesmo sabendo o quanto é difícil emitir uma ordem desse tipo, ainda não é omomento de celebrarmos a vinda de minha neta.

– O que está acontecendo, vó?Sycreth a observava com um olhar de consolo.– Minha querida, você não desvendou a carta do Louco e está longe da carta da Morte. Não

podemos nos iludir sobre você estar pronta para governar se não cumprir o destino mostrado porMama Lala.

Aquilo a pegou de surpresa.– Eu não estou iludindo ninguém – disse Sophie com rispidez, lembrando sua versão mortal. – E

estou começando a concordar com Pys que Mama Lala só tem me prejudicado.Os presentes cobriram as bocas escancaradas, em murmúrios teatrais. Com exceção da líder das

pixies, nenhuma outra criatura em todo o Reino desafiava a palavra da vidente.– Sei que a respeitam, mas parece que eu não estou recebendo mais o respeito necessário. Estou

sendo impedida de vir para cá todas as noites. E, quando consigo, fazem parecer que é minha culpa.– Porque é – cortou a avó. – Você precisa desvendar as cartas. Tudo só fará sentido se cumprir seu

destino já traçado.– MAS EU NÃO SEI FAZER ISSO! – exclamou a princesa.Silêncio.Foi quase como se aquele tivesse sido o primeiro grito de raiva presenciado pelos Tirus em toda a

sua existência. Sophie observou as expressões sensibilizadas das pessoas ao redor e sentiu-seenvergonhada, mesmo acreditando ter razão.

– Você nos deve uma desculpa – pronunciou-se a Rainha com um semblante diferente do habitual.Assunto delicado para Sophie. Ela nunca fora muito de se desculpar. Estava brigada com a melhor

amiga e com os pais, magoara Léo, enfurecera a diretora, enlouquecera o psicólogo e, mesmo assim, nãotinha coragem de falar com nenhum deles sobre como sentia culpa pela dor coletiva.

Sentada naquele trono e olhando para as pessoas que confiavam nela, ela teve que admitir queprecisava fazer aquele gesto.

– Sei que exagerei e peço desculpas. Mas nenhum de vocês sabe como estão sendo meus dias foradaqui. Rezo todas as noites para finalmente ser trazida de vez para cá. Mas essas malditas cartas nãome deixam.

– As cartas existem para uma lição de vida. Parece difícil, eu sei, mas logo verá que tudo é para oseu bem e para o bem de todos nós.

A princesa sentiu que aquela seria outra visita rápida ao mundo tão desejado por ela. Não conseguiaacreditar que precisaria acordar na cama de sempre. Sozinha como sempre. Arriscou olhar para amonarca mais uma vez antes de se sentir sugada e, quando abriu os olhos no quarto do mundo humano,lágrimas involuntárias escorreram. Ouviu barulho do outro lado da porta e imaginou que a mãe tentavaouvir seu sofrimento. Machucava todos ao seu redor, não apenas no mundo dos humanos.

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Também não parava de machucar os Tirus.– E se eu falhar, Rainha? – perguntou ela antes de voltar à realidade, utilizando o tratamento oficial

no lugar do familiar. – E se, em vez de vencer, eu cair?– Então todos nós cairemos com você.

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S

21

ophie chegou ao colégio em horário de aula e agradeceu a todo o panteão de deuses porque seuscolegas já estavam dentro das salas. Não queria ser vista com os pais naquele ambiente que

desprezava e se recriminava novamente pela falta de cuidado com a própria aparência quando estavaem casa. No reflexo de uma porta, visualizou a juba ruiva descontrolada e o moletom completamenteamassado com a inscrição: “Merlin é nosso rei”.

Eu nem sabia que era possível amassar esse tipo de roupa.Ao caminhar pelos corredores, sentiu os pais nervosos ao seu lado. Eles tentavam disfarçar com

breves comentários sobre o recinto, mas nada adiantava. Suas roupas destoavam de maneira gritante dasde Sophie: pareciam mais estar indo a uma entrevista de emprego do que à sala de uma diretoracarrasca. Laura agia como se fosse, afinal, naquele dia descobririam se a filha continuaria na instituiçãoou se seria afastada por seus problemas pessoais. Talvez até expulsa por ser um mau exemplo.

Sou ou não sou uma bad girl?, pensou.

Laura tinha dificuldade para lidar com o assunto. A família não conseguia compreender como tudohavia chegado àquele estágio. Sophie era uma menina como outra qualquer. Passava por dificuldadescomo qualquer um, mas sua necessidade de endireitar a vida acabara colocando tudo de cabeça parabaixo.

– Responda apenas o necessário – orientou a mãe, ainda caminhando a passos duros. – Esta seráuma conversa amigável, então não temos o que temer.

A falsa esperança da mãe acabou fazendo as duas suspirarem. A diretora queria usá-la comoexemplo, provavelmente para mostrar aos outros pais a necessidade de controlar os filhos e seguir todaa “cartilha moral” de um programa para menores de dezoito anos que queria implementar. Para Sophie,o engraçado era ser usada para uma campanha da qual não fazia parte. Os comprimidos tomadosdiariamente tinham sido prescritos pelo psiquiatra, que os julgara necessário em seu caso. Ela não haviapedido por nada daquilo. Apenas tinha consciência de que existia um Reino onde era aceita e pretendiaviver.

– Se precisar fazer uma pausa durante a conversa, é só nos avisar – completou o pai, aparentementereceoso. – Estamos aqui para ajudá-la no que for preciso.

Sua explosão de antes, motivada por não ter contado com o apoio e a ajuda da mãe perante adiretora, parecia tê-lo assustado. Sophie evitou dizer qualquer palavra. Pretendia ficar quieta durantetodo o processo.

No trajeto até a sala principal, evitou olhar para qualquer pessoa. Talvez uma delas pudesse

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reconhecê-la e um falatório sobre sua presença começasse durante o intervalo, e muitos se questionariamse ela seria expulsa do colégio. Precisava saber da resposta antes de enfrentar os burburinhos.

– Vamos lá – comentou George quando entraram no gabinete da diretora.O escritório era simples e sóbrio. Havia uma grande mesa de madeira cheia de pilhas de papel e

pastas amarronzadas, com duas cadeiras pretas bem desgastadas para os convidados e uma poltronaexecutiva acolchoada do outro lado para a diretora. A secretária tratou de acrescentar uma cadeiramais simples para Sophie se sentar, ainda mais desgastada do que as outras.

Margareth mantinha o ar de soberba de sempre. Vestia uma saia escura até o joelho, sapatos baixose blusa social branca por dentro da saia. Usava o cabelo em um coque apertado, o que dava um arainda mais sério à sua aparência. Ela se forçou a sorrir para os pais de Sophie, mas não conseguiuestender tal gentileza para a ruiva.

O que será que eu tanto fiz para essa megera?, pensou.

– Podemos nos sentar – indicou a mulher, enquanto todos se acomodavam nas cadeiras.Sophie mantinha a cabeça baixa e encobria as mãos com a manga do moletom para evitar machucar

os dedos pela tensão. A sensação de apertar o tecido fofo era boa.– Estamos aqui hoje para conversar sobre a situação escolar de Sophie. Fico feliz que tenham

aceitado meu convite.– Nós agradecemos sua atenção – disse o pai, segurando a mão da esposa. – Estamos nos

esforçando para tudo dar certo.As palavras reviravam o estômago da garota. Aquela conversa fazia parecer que ela era uma

delinquente, e isso a magoava. Aquele estava sendo o ano mais louco de toda a sua vida.– Compreendo que estejam se esforçando, e o colégio tem dado importância a esse assunto, mas há

um momento em que nós educadores precisamos interferir.Ela está de sacanagem comigo?, resmungou para si mesma.

Sophie sabia que ninguém tinha cuidado ou carinho com nada e a diretora a atazanava havia muitotempo. Tudo desandara a partir de uma ligação dela para os pais, na qual afirmava que a consideravaanoréxica. Após começar a tomar os remédios, ficara realmente abaixo do peso de uma formaassustadora, mas antes era uma pessoa normal conforme sua estrutura física.

– O que podem me dizer do quadro médico de Sophie? – continuou a mulher.Os pais se entreolharam, sem saber quem começaria o discurso.– Nossa filha vem passando por um período difícil e acabou sendo diagnosticada com um quadro

de depressão. Ela já está consultando um psicólogo há alguns meses e começou um tratamentopsiquiátrico há algumas semanas. Estamos nos acostumando com as mudanças provocadas pelosremédios, por isso as faltas dela, mas temos acompanhado seus estudos. Pelo que observamos, elacontinua sendo uma das melhores alunas, apesar de uma queda nas médias – respondeu a mãe.

– Mas ela não tem frequentado as aulas para receber os exercícios, correto? – perguntou a diretora.– Pelo que fui informada, o aluno Leonardo Gomez é o responsável por levar e trazer esse material.

Percebendo o ponto delicado envolvendo o garoto, o pai de Sophie achou melhor tomar a dianteiranaquela questão.

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– Leonardo tem sido um grande amigo para Sophie e nossa família. Os professores aceitaram falarcom ele no término de cada aula, e assim conseguimos que, mesmo indisposta, ela não perca o material.

Sophie levantou por alguns segundos o olhar antes fixo no tênis laranja. Viu a senhora esboçar umsorriso duvidoso.

– Os senhores compreendem que não podemos enviar lições de casa para todos os alunos que sesentirem indispostos, não é? Nós temos um limite de tolerância para o número de faltas de um aluno,no caso de Sophie já mais do que extrapolado.

A garota viu a mãe ao seu lado apertar os dedos da forma como ela mesma costumava fazer e, poralguns segundos, se sentiu amada.

– A indisposição dela é grave – argumentou Laura.– O nosso regulamento também. Daqui a uma semana, completa-se um mês que Sophie não vem ao

colégio.Os pais novamente se entreolharam, constrangidos. A situação era absurda, contudo precisavam

enfrentar a má vontade da diretora.– Nós trouxemos atestados e uma carta de cada profissional que está trabalhando com ela.– Nenhum nutricionista?Mais uma vez.– Os médicos ainda não a encaminharam para um nutricionista.– Então talvez eu devesse lhes indicar outros médicos.Ao ouvir aquilo, Laura trincou os dentes. Era difícil engolir tudo, porém o destino acadêmico da

filha estava em risco e seria melhor para todos se ela mudasse de escola apenas no ano seguinte.– A senhora saberia nos orientar sobre como devemos agir a partir de agora? – questionou George

com um tom mais alterado.A mulher levantou-se da poltrona e começou a vasculhar alguns papéis na mesa. Quando encontrou

o desejado, estendeu-o para os pais. De soslaio, a jovem conseguiu acompanhar a leitura e entendeu:estavam trancando seu ano escolar para ela retornar apenas quando estivesse melhor, podendo tambémrepetir o ano. Não acreditava que aquilo estava acontecendo, mas, no fundo, preferia ficar em casa. Eramais um ciclo de sua vida terrestre que chegava ao fim.

A família e a diretora discutiram ainda por mais dez minutos tentando encontrar outra solução. Nofinal, saíram com o mesmo resultado e com George ameaçando processar o colégio. Como advogado,sabia que a escola estava agindo ilegalmente ao alegar que a anorexia, a depressão e os acessos de raiva,somados à falta de frequência, não podiam mais afetar os outros alunos.

Queria sumir, pensou Sophie tentando segurar as lágrimas ao ver a tristeza dos pais.

Desejava com todas as forças poder fugir para o Reino. A caminhada da sala da diretora até o carropareceu-lhe interminável e podia contar os segundos para o intervalo. Seria horrível encontrar Léo ouMônica no corredor.

Mas o que encontrou foi pior.– Anna... – sussurrou Laura ao ver a morena sair do banheiro feminino na hora em que o sinal tocou

e o lugar começou a encher.

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Por um instante, as jovens se encararam. Nos olhos de Sophie, havia mágoa e raiva. Nos de Anna,tristeza e pena. Muito foi dito naquela troca de olhares e, apesar de a cena ter feito a ruiva parar, Laurasentiu que precisava impulsionar a filha a continuar andando. O ar pareceu congelar quando a famíliacruzou seu caminho e todos passaram reto sem cumprimentá-la.

Do carro, George achou que era seu dever ligar para o celular de Léo e avisá-lo da decisão docolégio, antes que o rapaz pudesse ouvir a notícia de outras pessoas. Sophie ficou deitada no bancotraseiro com os pés no vidro, apenas escutando. A mãe tomou o volante, e ela achou melhor não esperarpela vinda do garoto. Na conversa, ouviu o pai convidá-lo para jantar e depois perguntar a ela se queriafalar com Léo, mas Sophie já tinha fechado os olhos, fingindo não estar mais naquele mundo.

Laura e George a observaram comer pedaços de carne e legumes. Tinham decidido no caminho queperguntariam ao dr. David se ele conhecia algum nutricionista competente que ele pudesse indicar. Nãoconseguiam mais ignorar a possibilidade de ela ter desenvolvido algum tipo de distúrbio alimentar.

Sophie ainda não voltara ao psicólogo desde que revelara sobre o Reino. Por conta dos novosacontecimentos, a mãe achou melhor pelo menos colocar os dois ao telefone antes da próxima consulta.Ao menos com ela, Sophie não podia reclamar de falta de atenção. Laura havia abandonado até mesmoo clube das mães para se dedicar à filha. Todos queriam que seu quadro melhorasse. Todos menosnoventa por cento de sua escola.

E ela.Em seu íntimo, temia que, se melhorasse, não teria mais coragem de ir de vez para o mundo mágico.

Para ela, era melhor culpar os humanos por toda a sua miséria.Se eu morresse, ninguém se importaria tanto. Até meus pais se acostumariam a viver sem mim, pensou enquanto

aguardava o psicólogo na linha.– Olá, Sophie! Sua mãe adiantou para a minha secretária o assunto. Estou vendo aqui se consigo

adiantar sua consulta esta semana.– Ótimo... – disse ela com sua voz de sonsa.– Então, pelo que eu entendi, teremos mais tempo para trabalhar seus sentimentos e nossos desafios?– Gostei do otimismo, doutor. Vou anotar isso – ironizou a garota.O psicólogo suspirou do outro lado. Tinha criado uma ligação especial com a garota.– Eu acho que esse tempo vai ser bom para você. Sempre achei positivo para um jovem poder se

afastar um pouco do mundo para, quem sabe, conseguir se encontrar. Qual o problema de ficar seismeses atrasada nos estudos, se puder melhorar toda a sua vida?

Havia lógica no argumento dele.– Eu queria me afastar para sempre.– Não é possível dormir para sempre, Sophie – acrescentou o psicólogo, para sobressalto dela. –

Nem tudo o que queremos este mundo nos dá.– Ei, você está roubando as minhas frases! – protestou ela, mais animada.

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– É a vantagem de se anotar as coisas.Era difícil admitir, mas ela também gostava dele. Só não gostava da profissão dele e de ser o objeto

de suas anotações.– Mas eu tenho um mundo em que as pessoas me dão o que eu quiser, doutor.– Então peça a eles um espaço na sua agenda para nos encontrarmos em breve.Sophie desligou. Algo ficava muito claro para ela. A carta do Louco se revelara por meio das

palavras dele, como em um passe de mágica.Não é possível dormir para sempre, Sophie.Era possível, sim. Ela precisava dormir para sempre, e havia uma coisa que pessoas consideradas

loucas faziam para atingir esse objetivo.

No quarto, sozinha, e com apenas a luminosidade do dia claro filtrada pelo vidro fechado da janela,ela caminhou até o armário e pegou o pequeno retângulo de plástico azul que guardara ali.

Olhou para os quatro compartimentos contendo diferentes pílulas de tons claros. Aqueles eram osseus comprimidos mensais. A mãe tinha acabado de abastecer o porta-remédios. Permaneceu por longosminutos segurando o punhado de pontos arredondados na palma rosada, pensando se com aquilo teriapaz. Esqueceu os pais, Léo, os médicos e os colegas. Esqueceu que em algumas horas receberia visita eque iriam querer vê-la acordada.

Ela não queria ficar acordada. Desejava apenas romper as linhas que a amarravam.Você pode se sentir abandonada e, não resistindo ao sentimento, procurar uma forma de repousar com uma inocência

irresponsável, dissera Mônica sobre a carta do Louco.

Chegava o momento de repousar. Olhou para o rosto do bobo da corte e sorriu.Entregava-se à loucura.

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L

22

embrava-se da água violeta tocando seu corpo, da sensação reconfortante que aquilo passava, desentir o vestido colado e da dormência convidativa. Conseguia ainda observar os rostos bizarros

dos seres aquáticos jamais vistos até então e absorver a escuridão tão desejada. Cruzara a barreira.Passara pela segunda etapa. No entanto, algo acontecia.

Quando acordou, sentiu pânico ao ver uma luz branca excessiva. Pensou ter sido encaminhada paraoutro tipo de dimensão, talvez espiritual. Sua vontade era pular de onde estava deitada e procurar porrespostas, mas seu corpo e sua mente não responderam. Sentia-se lenta de um modo que ainda nãoexperimentara. Desde que começara a tomar seus remédios, não tinha mais total controle do corpo, masaquilo era diferente. Praticamente não estava mais no comando. Pensava, contudo não reagia.

Então viu os cabos, as máquinas, as pessoas ao redor e sentiu a mão que segurava a sua. Apesar dequerer tombar a cabeça para ver quem era, não conseguiu. Foi só pelo toque da pele que soube que erasua mãe ao seu lado.

– Graças a Deus! – ouviu Laura falar, apertando ainda mais sua mão e se movimentando agitadacom o fato de a filha ter aberto os olhos.

Sophie entrou em pânico.Acabara de atentar contra a própria vida com apenas dezessete anos e não tinha obtido sucesso. O

mais chocante era que a dor não vinha da consciência da tentativa, mas da falha. Por que fora mandadade volta para a Terra? O que mais precisava aprender?

A Morte.Havia ainda mais uma carta. Acreditara que a Morte estava conectada com o Louco. Tentara se

matar. Como poderia estar mais perto da morte do que isso?A vontade de chorar a sufocava, mesmo não conseguindo expressar nenhum sentimento devido ao

efeito sedativo. Era como se os comprimidos ainda agissem em seu corpo. Tentava entender por quenão a haviam induzido ao coma. Por que não partira para o Reino. Onde estavam a Rainha, a Guardiãe o Ministro quando precisava tanto?

Dúvidas. Pânico. Lentidão. Também havia o gosto ruim na boca e o incômodo no nariz. Acreditavaque tinha sofrido uma lavagem estomacal. Sentia-se grata por não estar consciente durante oprocedimento de irrigação e aspiração dos comprimidos. Só imaginar que uma mangueira havia sidoinserida em sua narina para chegar ao interior do estômago lhe dava arrepios.

Havia calculado mal o tempo. Acreditava ter mais de quatro horas para a visita de Léo, mas ogaroto devia ter chegado antes do horário do jantar. Só nesse caso teriam aberto a porta e a encontradotendo uma overdose.

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Ela sentia dificuldade de abrir a boca para falar ou se movimentar. Cada gesto era muito difícil.Perguntava-se se tinha sofrido uma sequela permanente, mas não acreditava que isso poderia acontecercom ela. Sophie era a princesa do Reino mais puro de todas as dimensões e não podia trocar aquelaexperiência por outra vegetativa junto aos humanos.

Ouviu barulhos mais fortes, e logo luzes eram jogadas em sua pupila e pessoas seguravam seu braçopara aferir a pressão. Não era divertido voltar de uma tentativa de suicídio. Sabia que ainda ouviriahorrores dos pais e dos médicos. Léo possivelmente não a olharia outra vez. Ao menos, não da mesmamaneira.

Ela não havia completado a etapa do Louco. Tinha escolhido receber tal título perante todos ao seuredor.

Pensando nisso, adormeceu.

Estava novamente na cama sob o teto estrelado. Sentiu o conforto da colcha de seu aposento real.Ainda que não estivesse rodeada de médicos e se sentisse menos dopada, não tinha forças para semovimentar como queria. Pela primeira vez, não desejava usar a minicartola no Reino. Proteger ospensamentos parecia pequeno demais para quem tomara uma atitude como a sua.

Virou-se para a esquerda e pôde ver Ny de costas, observando o Reino por uma janela de ondesoprava uma corrente de ar constante. Sophie não sabia, mas havia uma vigília sendo feita para ela portoda a extensão daquelas terras. Todos os Tirus e as criaturas mágicas rezavam por sua alma, e apresença da Rainha na janela mostrava aos súditos que a princesa ainda não havia acordado.

– Há algumas horas, as flores deste Reino pararam de cantar – comentou a senhora, ainda de costaspara a neta.

Ela nem sequer precisou mover o corpo para saber que Sophie acordara. A corrente de arproveniente da janela continuava forte.

– Elas pararam. E tudo está quieto demais – continuou a Rainha, com um grande peso no timbrede voz.

A situação machucava. Cumprira mais um passo indicado por Mama Lala, a quem haviam lhe ditopara seguir.

– Mama Lala virá visitá-la com Sycreth quando eu sair deste quarto para acalmar nosso povo.Como não estava usando a bendita cartola, sua avó devia conseguir ouvir seus pensamentos. Sophie

mal acreditava que a vidente iria mesmo deixar sua cabana na floresta para vê-la.– Não queria que você fosse embora... – foram suas únicas palavras, pronunciadas com dificuldade.– Eu não queria que as flores se calassem – disse a Rainha.– Eu preciso de você.– Nem tudo o que queremos este mundo nos dá.Sophie sentiu-se traída.Ver a avó deixar o quarto sem ao menos olhá-la nos olhos era a abertura que faltava para as portas

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do próprio inferno.Se não me querem na Terra e não me querem aqui, que eu desapareça de uma vez do universo.A porta foi novamente aberta alguns segundos depois. Antes que Sophie pudesse se virar para ver

quem entrava, já esbravejava:– Eu fiz a minha parte! – gritava. – Me pediram para passar por desafios, para provar que sou boa

o suficiente para estar aqui. Eu fiz isso! Eu passei nos desafios. Tentei romper com o passado. Agora elanão olha na minha cara e eu supostamente fiz a droga das flores pararem de cantar!

Tentava descobrir de onde tirara tanta energia para se esgoelar daquela forma. Por sorte, suaintuição estava certa. Era Sycreth quem entrara.

– Você está com raiva, é compreensível...– É claro que estou! Está tudo errado!A Guardiã aproximou-se da cama, sentando na beirada. Conseguia ver no rosto magro da princesa a

verdadeira face dela. Sophie estava ligada demais ao mundo humano. Não via mais a menina saudável ebonita. Enxergava fragilidade e solidão. Sycreth não conseguia explicar os próprios sentimentos emrelação àquela situação.

– Não sentimos raiva aqui.Talvez eles ainda não me odeiem.Entretanto, aquilo podia mudar. Se trazia tanta raiva para aquela dimensão e se seus atos eram

capazes de silenciar vozes mágicas, era porque seu poder podia ser cada vez mais destrutivo.– Você poderia fechar essa janela pra mim? – pediu Sophie, esfregando os braços.– Hoje é melhor não.Sophie não entendeu, mas decidiu não confrontar.– Onde está o Ministro?– Ele está controlando a crise enquanto a Rainha avisa sobre seu retorno e bem-estar. Convocamos

feiticeiros e seres mágicos para ajudar na questão das flores, mas parece que a situação é bem ruim. Aspixies desistiram de limpar o círculo alaranjado.

Pânico.Desestruturara o Reino de uma maneira que não acreditava ser possível. Se as fadas não polissem as

pedras, a magia seria bloqueada, e um Reino mágico sem magia era o mesmo que um corpo sem vida.– Você precisa voltar a cantar, princesa. Precisa reaprender a amar a vida.– Eu amo vocês! – sussurrou ela, como se bastasse.

– Não é o suficiente.Nada do que ela fazia parecia ser o suficiente.– Onde está Mama Lala? Não era para eu estar enfrentando a morte agora? Por que até vocês me

condenam?– A pessoa que mais a condena é você mesma, alteza.Agora sinto raiva até dessa bruxa, pensou, enquanto a Guardiã ainda a olhava com pena.

Depois de alguns momentos em silêncio, o ar ficou mais efêmero, apesar de agora não poderem maissentir aquele tipo de vibração. Sophie sabia quem havia chegado. Precisava encarar a vidente e

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perguntar por que sofria tanto para ser feliz.– A felicidade só vale a pena quando a buscamos com fervor.Mais uma pessoa parecia ouvir seus pensamentos. Cogitou voltar a usar a minicartola, mas sabia que

todas as coisas ditas a ela tinham fundamento.– Parece decepcionada comigo... – começou a vidente.– Não deveria estar? – indagou Sophie.– Tanto quanto eu deveria estar com você, então.Sycreth sentiu que era uma boa hora para sair do quarto. Ao contrário da avó, ela fez questão de se

aproximar da jovem e beijá-la na testa em sinal de carinho. Sophie tinha raiva de tudo, mas, ao mesmotempo, era grata pelo afeto.

– Nenhuma vitória é fácil. Já conheceu algum herói que não tenha sofrido? – perguntou MamaLala.

– Já conheceu uma princesa capaz de se matar pelo seu povo?– Várias. E nenhuma delas teve um final feliz.A resposta a assustou.– Durante toda a eternidade, homens e mulheres se sacrificaram por um bem maior. Guerreiros e

amazonas lutaram por honra e liberdade. Seus atos estão muito distantes de feitos heroicos lendárioscomo os deles, mas suas verdadeiras intenções mostram o quanto se preocupa com o Reino.

– Eu amo esta dimensão.– E todos aqui a amam também. Assim como na Terra, onde, neste momento, há um casal

morrendo de medo de você não retornar e um menino em desespero por talvez tê-la visto pela últimavez.

Sophie suspirou.– Como você sabe disso?Mama Lala esticou a mão como se estivesse manipulando a brisa que soprava da janela, deixando-a

com frio.– Escute...E então aconteceu. Ali aconteceu. Porque a brisa que entrava daquela janela era mais do que um

sopro comum. Sophie escutou. E, conforme continuava a escutar e permitir que aquela corrente aabraçasse, o frio se tornou ardente.

– Isso é... São... – ela tentou concluir sem acreditar.– As orações. As orações deles. As orações das pessoas que te amam na Terra.

A corrente de ar trazia sentimentos. Pedidos, desejos, desculpas, promessas. Tudo o que corria pelaenergia de pessoas que nem sequer existiam naquela dimensão.

– A questão aqui, princesa, ainda é: você os ama?

Ela os amava. Por várias vezes, tentara esquecer aquele sentimento, contudo os amava tanto quantoaos Tirus.

– Quando entender o significado da carta da Morte, as flores voltarão a cantar, as pixies polirão aspedras mágicas, e o Reino viverá feliz graças à princesa. Graças à futura Rainha.

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Sophie ficou em silêncio por alguns minutos.– E eu vou conseguir viver feliz algum dia?A bruxa acariciou o rosto dela. Também havia sentimentos naquele gesto. Por trás da tristeza, havia

uma pessoa capaz de realizar milagres. Capaz de encantar pessoas.– Você merece ser feliz, alteza.A brisa que entrava pela janela continuou a soprar.

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utra vez o clarão.– Até que você fica sexy com roupa de hospital, AC/DC.

Ela engasgou com o comentário. Não acreditava no que acabara de escutar. Só podia ter vindo dele.Do humor sempre excessivo.

– Essa é a frase mais bizarra que este hospital já deve ter escutado.Ele não fez esforço para se levantar nem para tocá-la, mas, por causa da leve inclinação do leito,

conseguiu ver o sorriso dele em sua direção.– É bom ver todo esse seu bom humor de volta – disse Léo, jogado na poltrona do quarto.Os dois riram, ela com mais dificuldade. Ainda estava fraca e sentia-se zonza. Os dedos estavam

dormentes, e a boca, seca. Deviam ser os efeitos dos remédios, mas estava grata por ele estar começandouma conversa descontraída.

– Onde estão meus pais?Ele acabou se endireitando e chegou a poltrona mais para perto para alisar a lateral do braço dela.

Percebendo que ela tentava molhar os lábios com a língua, levou um copo d’água até sua boca rachada.– Os dois pareciam zumbis nesta enfermaria – explicou ele, ainda tentando forçar o bom humor. –

Como o médico disse que você já estava fora de perigo, falei para os seus pais irem pra casa descansar.Meus pais me ligaram e vou precisar ir em breve.

Sophie sentiu vergonha por ser um peso para todos e se viu desejando que ele não tivesse que voltarpara casa.

– Mas então quer dizer que estou sexy?A quebra de gelo o fez voltar a acariciá-la, tombando o corpo para mais perto. Involuntariamente,

os pelos dela se arrepiaram, e ele percebeu. A garota pôde ver pelo sorriso que Léo esboçou.– Para uma lógica de filme pornô, sim – brincou ele, não percebendo que ela analisava a

proximidade deles. – Apesar de você estar tentando fazer cosplay de primo Itt.Sophie teve um movimento involuntário e tentou passar a mão nos antigos cachos. O soro injetado

à sua veia não permitiu, e ela parou no meio do caminho, percebendo ainda estar sendo medicada.– Meu cabelo está tão horroroso assim? – quis saber ela, entendendo a comparação com o

personagem da Família Addams, que mais parecia uma vassoura.– O dele pelo menos é liso, então imagina o seu como está.– Estilo socialite da Capital de Jogos vorazes?– Quem dera! Está mais para Samara de O Chamado!

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Voltaram a rir e ele inclinou ainda mais o corpo, segurando a mão dela e quase tocando os lábiosnos dedos frágeis. No fundo, Léo estava feliz por não ter acontecido o pior. Felizmente ainda não era ahora dela.

– Eu já não devia ter sido liberada?Sentia falta da presença de médicos no local. Não entendia ainda por que continuava ligada a

equipamentos se tinham feito a lavagem estomacal.– Você não tem ideia do que aconteceu com você, não é?De repente ele ficou sério, e a pergunta a fez sentir ainda mais vergonha. Ele se afastou da cama,

soltando o braço dela. Sophie lamentou. O pior momento de um suicida era voltar para a realidade eter que encarar seus entes queridos.

– Você teve uma overdose e sofreu uma parada cardíaca. Pela sua fragilidade, entrou em coma poralgumas horas. Eles aspiraram os comprimidos de seu estômago, mas precisaram ser cuidadosos porvocê estar desacordada. Seu aparelho respiratório acabou sofrendo com esse processo, e o médico disseque ainda sofrerá reflexos dessa atitude idiota pelas próximas semanas. Como você além de tudo estavasubnutrida, a deixaram em observação.

Atitude idiota.Perguntava-se se um dia conseguiria deixar de magoar as pessoas que a amavam. Como ele ainda

consegue ficar ao meu lado?– Quem me encontrou? – quis saber Sophie.Léo pareceu sem jeito, como em poucas vezes.– Foi você? – perguntou ela, em tom receoso.Ele parecia querer dizer que não. Mas o silêncio e a expressão dele só lhe diziam “não se preocupe

com isso”.– Ah, meu Deus...Sophie sentiu ainda mais vontade de morrer. Nada podia ser pior do que imaginar o garoto

encontrando-a branca e dopada. Não pensara naquela parte. Em quem iria encontrá-la. A ideia de se

matar nunca tinha passado pela sua cabeça do mesmo modo. Havia sido a junção das explicações sobrea carta e as palavras do psicólogo distorcidas por ela que a fizeram tomar a decisão precipitada,baseada na vontade de viver em um lugar onde era amada incondicionalmente.

– Sua mãe me deixou entrar sem bater. Para minha surpresa, você estava dura e não respondia aqualquer estímulo.

– Por quê?– Como eu disse, era um reflexo dos remédios que você...– Por que a minha mãe deixou você entrar sem bater?Ele voltou a ficar sem jeito. Coçou a cabeça, como se aquela hesitação fosse fazê-la desistir do

assunto.Mas só a fez querer saber mais.– Eu resolvi fazer uma surpresa e cheguei com um buquê de rosas pra você. – Ele suspirou, sabendo

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que aquilo pioraria o sentimento de culpa dela, que já devia ser grande.Ele estava quase chorando. Ela notou. De repente, as lágrimas que ele não derramou escorreram do

rosto dela.– Achei que teria que colocar o buquê em seu túmulo, Sophie – comentou ele, focando o olhar nela.

– Eu pensei que você tivesse morrido...A última frase foi dita com tanta dor que ela não tinha coragem de encará-lo. Temia vê-lo prender

as lágrimas.– Você me odeia, né? – indagou ela.A pergunta fez o garoto fechar os olhos e chacoalhar os cabelos ondulados. Ele parecia muito

cansado. Sofrera muita pressão e, para um jovem, era admirável que tivesse enfrentado a situação emvez de fugir dela.

– Não, não odeio! E quer saber? As flores nem eram tão bonitas! Eu sou péssimo para escolher essascoisas...

Flores. Flores que não cantavam.– Pare! – gritou ela. – Pare, Léo! Simplesmente pare com isso! Grite comigo de volta! Aponte o

dedo na minha cara! Faça um sermão! Deboche de mim como todos os outros! Mas pare de ser bomcomigo... – Sophie foi abaixando o tom de voz, como se na verdade dissesse “por favor, não parejamais”. – Eu não mereço. Eu não mereço você...

– Nós estamos nadando juntos neste aquário, Sophie – foi o que ele teve a dizer. – Não pare denadar. Por favor, não me deixe sozinho.

Então ela fechou os olhos, e as lágrimas que Léo estava segurando e ela já havia soltado de repenteescorreram pelo rosto dele. Por um momento, nenhum dos dois precisou parecer forte, e aquelafragilidade os conectou. Ninguém nunca era forte o suficiente deitado na cama de um hospital. Aquelelugar era capaz de quebrar a autoconfiança de qualquer pessoa.

Pela frase de Léo, Sophie conseguiu entender a vidente e seu questionamento sobre os amores dela naTerra. Se tivesse conseguido tirar a própria vida, jamais olharia para o rosto daquele garoto novamente.Ela sabia o quanto a presença dele a ajudava a respirar com mais calma. Não era como a mansidão doReino, mas se sentia mais segura ali.

– Somos apenas duas almas perdidas – completou ela. – Mas ao menos estamos perdidos juntos.

Sua coordenação motora não era mais a mesma desde que saíra do hospital. Tinha dificuldade deandar, tremia incontrolavelmente por alguns minutos todos os dias, a voz teimava em falhar no meiodas frases e, toda vez que se olhava no espelho, notava que os olhos estavam diferentes. Seu olhar agoraera um pouco insano. Daquele tipo que assusta crianças. Parecia que a pupila tinha se dilatado duranteo processo e, de acordo com o médico do hospital, aquilo era normal. Passaria com o tempo. Mas aintensidade daquele olhar estava gravada eternamente na sua memória. Sentia medo de si própria eprecisava ter.

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Estava havia alguns dias em casa e, nas duas vezes em que tinha consultado as redes sociais,percebera que sua tentativa de suicídio chegara aos ouvidos dos colegas. Encontrou durante as pesquisasalguns comentários maldosos alternados com outros de preocupação, mas, quando Léo percebeu que elaacessava aquele tipo de coisa, a fez prometer não entrar mais na internet para aquilo. Ela sentia quedevia alguma coisa a ele e cumpriu a promessa.

George trabalhava cada vez mais em casa. Às vezes, ao cruzar o corredor, conseguia ouvi-lo falar aotelefone, em muitas das ocasiões explicando para o chefe por que não poderia ir para o foro ou a umareunião. Sempre que aquilo acontecia, ela se odiava mais um pouco por estar fazendo o pai arriscar seuemprego.

Laura tentava fingir que tudo estava bem. Tinha a filha e o marido em casa, ambos fora de perigo, eadministrava os momentos em família com cuidado. Desde que Sophie fora liberada do hospital,tomavam café da manhã, almoçavam e jantavam juntos na sala de estar. A televisão agora ficava sempredesligada e eles conversavam durante as refeições. No início havia sido estranho, depois começaram aaproveitar o momento, contudo não podiam negar que ficavam sem assunto. Dentro de casa vinte equatro horas, os três tinham poucas experiências novas.

Dior era o único realmente satisfeito. Nos últimos dias, criara o hábito de ficar deitado na barrigade Sophie enquanto ela assistia a seriados na televisão do quarto, agora com a porta sempre aberta.George ria quando via o buldogue francês esparramado, mais parecendo um poodle.

Léo sempre os visitava, mas a época de provas estava chegando e ele se sentia mal de ter que estudarna frente da garota. Porém, ela insistia que preferia vê-lo estudar a não ter sua presença. Só ficavatranquila de não vê-lo quando o garoto precisava ensaiar com a banda. Toda vez que se lembrava delescantando juntos, uma sensação de paz tomava conta do seu corpo e começava a desejar aquilonovamente.

Certa tarde, recebeu uma visita diferente.– Pensei que o chato do seu namorado nunca fosse me deixar visitá-la – reclamou Mônica, entrando

e colocando a bolsa em um dos pufes do quarto.Sophie usava um pijama comportado e os cabelos estavam presos em um rabo de cavalo. Mesmo

não sendo a melhor maneira de receber uma pessoa, sentia-se feliz por ver Mônica em seu quarto.– Não quis assistir ao ensaio da banda hoje?– Consegue acreditar que estão me proibindo de ver o Hugo? Disseram que eu o distraio e que assim

nunca conseguirão ser famosos. Era só o que me faltava!A experiência de fofocar com uma amiga como qualquer garota da idade dela fazia bem para seu

espírito.– Que bom que isso aconteceu hoje, assim pudemos nos ver.– Eu queria muito ter vindo antes, mas você conhece o senhor “minha namorada está debilitada e

precisa de descanso”. Ele não deixava. Quem escuta isso acha que eu vou levá-la para correr umamaratona. Esses meninos não entendem que nós necessitamos de momentos femininos para relaxar!

Sophie riu e percebeu que nos últimos tempos só havia rido daquela maneira com Léo. Sentiu-se

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bem com aquilo.– Ele não é meu namorado – sussurrou a ruiva, entrando em um assunto que a incomodava.

Mônica mordeu a isca.– Claro, porque é supernormal um cara gato, com todo o respeito, passar os dias enfurnado na casa

de uma garota porque só quer ser amigo dela!– Mas nós somos amigos. Desde o começo.A garota colocou as mãos na cintura e parecia prestes a lhe dar uma bronca.– Tá, tá bom! Vocês são amigos. Mas há mais nessa história.

– Você acha?Sophie achava graça da conversa porque a cada pergunta a amiga parecia querer socá-la.– O garoto não saiu da sua cola desde que chegou na cidade, ora! Ele se preocupa com você a cada

segundo. Convida você para momentos especiais e canta em sua homenagem. Ele visita sua casa econversa com seus pais. Isso é raro, sabia? Ele a idolatra e lhe traz flores. O garoto passa horas ao ladode um leito de hospital. Acha mesmo que um menino é capaz de fazer tudo isso porque quer serescoteiro na friend zone?

Sophie percebia o carinho especial do rapaz. Ela sabia que Léo gostava dela e já admitia para siprópria que também gostava dele. Contudo, precisava pensar muito nos próximos passos. Ainda erauma garota que tentara se suicidar em duas dimensões.

– Mudando de assunto... – disse Sophie, tentando parar de pensar naquilo.Mônica puxou um dos pufes e ajeitou os óculos. Usava o cabelo claro repartido em uma maria-

chiquinha. Parecia bem mais nova.– Sim, eu sei! Eu trouxe meu baralho.– Você tem talento, sabia? – comentou Sophie, animada.– Por que será que eu imaginei que você iria querer saber mais, hein?Mônica encarava a jovem debilitada, mas, ao ver o sorriso animado dela, tirou o livro da mochila.– Sobre qual carta quer aprender agora?Sophie hesitou antes de responder.– Quero saber sobre a Morte.A amiga já tinha suspeitado. Óbvio que aquela carta chamaria sua atenção.Observaram o desenho da carta da Morte. Na realidade, no tarô de Marselha não havia nome

algum inscrito. No entanto, Mônica explicou que, em jogos similares franceses do século dezessete,aquela imagem costumava vir na carta intitulada “La Mort”.

Um esqueleto revestido por uma espécie de pele com pedaços azuis e vermelhos trazia uma foice delâmina grande nas mãos. Do chão negro, brotavam plantas azuis e amarelas, além de restos humanos. Ofundo não era colorido, e a carta dava a impressão de ser bem mais séria do que as outras.

No primeiro plano, à esquerda, havia uma cabeça de mulher; à direita, uma cabeça de homem comuma coroa dourada e simples. Um pé e uma mão também surgiam do chão, enquanto outras duas mãosbrotavam atrás, ultrapassando a linha do horizonte. O esqueleto estava de perfil e parecia se dirigir à

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direita. Segurava a foice com as duas mãos. Analisando tudo, as duas sentiam que aquela imagem eradiferente.

– Vamos lá, garota esquisita! – chamou Mônica. – Só você pra me falar de morte mesmo.Havia bom humor na voz dela, e Sophie sentiu-se mais uma vez grata por não estar sendo

condenada pelas pessoas. Elas pareciam querer ajudar. Só isso. Sabia o quanto momentos como aqueleeram raros. Um alívio comparado à dura lição de não receber o carinho da avó.

– Grandes transmutações e novos espaços de realização – continuou ela. – Já estou gostando.Mônica explicou que aquele era um período de dominação e demonstração de força. A ruiva sabia

que, desta vez, a amiga lia a carta pensando no momento que ela passava. Não se tratava mais só decuriosidade. Comentou que a morte podia ser vista de várias formas, mas também como umrenascimento, a criação de um novo eu e a destruição dos males passados.

– A fatalidade irredutível, porque um fim sempre é necessário. Entretanto, ele pode ser o fim deuma fase, provavelmente o abandono de velhos hábitos – ainda explicava. – Sempre curti essapossibilidade de abandonar o passado negro.

Sophie entendeu. Era reconfortante saber que, se o ser humano quisesse, poderia tentar se libertar demágoas passadas para seguir em frente em um novo eu.

Mônica continuou a análise da carta sombria. Ela dizia que seria um período de aprofundamentointelectual e de reflexão metafísica, mas que a carta mostrava que ela tinha dom para enfrentar situaçõesdifíceis. Sophie até riu com a interpretação. Completou dizendo que a renovação de ideias, total ouparcial, interviria em seus planos e poderia transformar tudo.

Essa carta tem razão, pensou.

Ela precisava escolher com cuidado o caminho a percorrer, sobretudo diante do fato de que forçasmaiores não a tiraram da Terra. Sophie poderia manter sua vida dupla, embora não soubesse porquanto tempo aguentaria. Podia tentar novas maneiras de conseguir viver para sempre ao lado da avóou desistir do Reino para ficar com os pais e os amigos – um deles sendo o garoto de quem realmentegostava.

– Pode ser que ocorra a destruição de um sentimento ou de uma esperança. É o momento de umxeque-mate inevitável.

Ironia.E ela pensava que tirar a própria vida fosse aquele tipo de jogada.– Você está bem? – quis saber a colega preocupada.A ruiva ficou pensativa por um momento.– Na medida do possível, estou.Mônica começou a estalar os dedos, provavelmente por nervosismo.– Não vai nos pregar outra peça como essa, não é?Sophie sentiu pena.– E se eu dissesse que, no fundo, não queria ter pregado nem a primeira?As duas ficaram em silêncio.– Eu acreditaria. A dor nos impele a fazer coisas horrorosas. Se você percebeu que essa foi sua taxa

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de monstruosidade, aprenda com ela e nunca mais a repita.Sophie entendeu o recado. Não existem terceiras chances nem segundas amizades.– Eu estou aprendendo – sussurrou, olhando a amiga nos olhos.Nunca esqueceria aquele momento. Desde que voltara das águas violetas, percebia pontos de luz no

mundo humano que antes custava a enxergar. Não que a Terra tivesse se tornado um lugar mágico ecompreensível. Na verdade, sentia que não merecia compreensão. As pessoas não eram apenas monstrosdo pântano. Havia fadas e anjos naquele lugar.

Estava rodeada por eles.Aquilo seria o suficiente para ela querer viver por lá?

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as conversas posteriores com o psicólogo, não mencionaram o assunto do Reino mágico. O dr.David queria focar mais nos sentimentos que a levaram a tomar todos os comprimidos de uma

vez do que em possíveis ilusões criadas pela mente dela.Sophie sentia que seria muito mais fácil se eles conversassem abertamente. Só assim ele perceberia a

conexão clara entre a realidade encantada e a tentativa de tirar sua vida. Para ela, a expressão era atéequivocada, pois sua intenção era conseguir dormir eternamente para viver com os Tirus.

Durante a análise, costumava colaborar com as questões abordadas pelo psicólogo, mas o doutorestava cada vez mais distante. Talvez porque ela havia tentado se suicidar logo após conversarem pelotelefone. No entanto, eles nunca tocaram diretamente no assunto.

Laura de início ficou com medo de mantê-la no mesmo profissional. Chegou a acusá-lo de váriascoisas, tentando passar um pouco da culpa que sentia para outras pessoas. A pedido da filha, acaboumarcando para ela outras consultas. Contudo, Sophie não sabia mais se tinha sido uma boa jogada eduvidava de que valia a pena continuar a consultá-lo. Era como se não estivesse mais falando com omesmo psicólogo: ele se parecia cada vez mais com seus pais.

– Olá, Sophie! Bom vê-la novamente – cumprimentou o dr. David quando ela entrou noconsultório, semanas após o acontecido.

– Pois é! Ainda viva! – brincou ela. Entretanto, ele pareceu não gostar do comentário e limitou-se atossir, apanhando a prancheta.

– Como está se sentindo hoje? – perguntou.– Ótima! – respondeu com voz de sonsa.– Esse é o tom que uma vez você comentou que sua amiga a fez perceber?Sophie ficou surpresa de o psicólogo ter notado.– Eu preciso que fale comigo sobre o que realmente importa – explodiu a menina. – Eu tentei me

matar porque acreditei que cartas haviam me dito isso. Acreditei que, se eu tomasse os comprimidos,dormiria profundamente e não precisaria voltar para a Terra. Você vai ignorar isso e simplesmente meperguntar como estou?

Nenhum músculo do rosto dele se mexeu. Em seguida, Sophie o viu inspirar e expirar três vezes atétomar coragem de falar:

– Você poderia me contar um pouco mais sobre o Reino que anda visitando?Nos lábios dela brotou um sorriso, a alegria de ser ouvida transparecendo na maneira como se

endireitou na cadeira.– Eu sei que meu caso é estranho e, infelizmente, não começa com um “era uma vez”, mas preciso

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saber a sua opinião. Se precisar tomar uma atitude mais drástica após o meu relato, não hesite. Eu sónão quero magoar mais ninguém.

A jovem passou quase toda a sessão resumindo os acontecimentos dos últimos meses com o máximode detalhes de que se lembrava. Desde as primeiras visitas ao Reino até a sessão com Mama Lala, aconversa com os membros da corte e a última carta necessária para finalmente ficar ao lado de seussúditos.

Em nenhum momento o doutor a interrompeu. Durante todo o tempo, manteve o semblante sério,mas interessado no conteúdo.

– Na sua opinião, a carta da Morte ainda indica que você não pode viver entre os humanos?Dizer a palavra “humanos” o deixava receoso. Ele era um homem da ciência, mas passava tanto

tempo tentando entender as mentes das outras pessoas que às vezes era como se a ilusão delas pudessecontaminá-lo.

Ela demorou para responder.– Não.A resposta, ainda que seca, aliviou um pouco o coração dele. Continuou em silêncio, esperando

para ver se ela completava o raciocínio.– Pelo que eu entendi, essa é a carta responsável pelo fim de uma etapa e pela descoberta de um

novo caminho. Acredito que estou entrando no estágio final da minha amargura e que, a partir deagora, não vou mais ficar só reclamando da vida e me sentindo mal. Quero acreditar que existe umnovo caminho que não vai me afastar das pessoas que amo aqui na Terra.

Aquilo era música para os ouvidos dele.– Preciso de internação, doutor? – quis saber ela.Aquela era uma pergunta pesada demais.– O que precisamos fazer agora é achar sentido em tudo isso. Sentido em por que você está

visitando esse lugar. Acredito que precise conversar abertamente com as pessoas que ama e ganhar aconfiança delas para conseguir aproveitar sua nova vida.

Sophie entendia os argumentos e concordava com eles. Procuraria no Reino e na Terra pelas pessoasque amava e buscaria neles o que lhe faltava.

– Acredito que em breve não vamos mais precisar nos falar – afirmou a garota.Ele continuou sério, mesmo querendo sorrir por vê-la mais consciente.– Espero que suas boas ações resultem nisso.Ela também esperava.

Sentiu-se sugada e ouviu o típico barulho da fênix explodir em seus tímpanos. Estava no Reino. Para asua alegria, agora estava de pé, não mais confinada em uma cama. Seus pés estavam submersos nas águasvioletas do lago, e Phix e Jhonx a acompanhavam no que parecia ser uma bela tarde.

– É muito bom vê-la mais saudável, princesa – cumprimentou Jhonx, com a típica voz grossa capaz

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de assustá-la e animá-la ao mesmo tempo.– Sempre é bom estar aqui – respondeu ela, olhando contente para os lados por estar novamente em

casa.O lugar mágico era seu lar, porém não sabia o suficiente sobre ele. Viu além do lago uma criatura

verde-musgo de asas transparentes, refletindo por todos os lados a coloração dourada das folhas aoredor. Aquela era a segunda vez que notava a criatura peculiar. Não pensara até então em como ela nãoconhecia todos os membros do Reino e em como ainda havia muito a aprender sobre sua dimensão.

– O que é aquela criatura do outro lado? – quis saber.Os dois seres de cartola encararam a outra margem, observando a criatura sair voando.– Ele é um ser da água e do ar, responsável pela manutenção das flores do Reino. Temos alguns

espalhados por aqui. São chamados de tirulipos e são capazes de limpar por dentro as partes sagradas do

Reino que foram obscurecidas. As flores cantam porque são alimentadas em suas raízes por amor puro.Como os Tirus são seres sinceros e bons, elas sugam essa energia mágica para sempre se manterem livresda escuridão. Os tirulipos ajudam na limpeza de uma flor infectada pelas sombras – explicou oMinistro.

– Eles vêm sempre aqui? Eu já os vi uma vez no Reino.O gato soltou um miado, o que para ele não era muito comum.– Eles também vieram no dia de sua chegada porque gostam de frequentar os grandes

acontecimentos do Reino – esclareceu o felino. – Mas só costumam se expor em caso de necessidade.Sophie percebeu o silêncio ao redor e entendeu que a situação devia ser grave. Ainda que ela já

estivesse melhor, as flores não haviam se recuperado.– Isso ainda tem a ver comigo?Os dois não sabiam como responder.– Ok! – resmungou a garota. – Já percebi que vocês não vão contar. Mas fiquei curiosa com uma

coisa...– Diga, alteza – pediu o Ministro.– Lembro que, no dia da minha chegada, além do tirulipo vi outras duas criaturas mágicas. Até hoje

não as reencontrei.– E talvez nem reencontre – completou o gato. – Existem diversas criaturas mágicas no Reino. Hoje

mesmo tive um ótimo desjejum enquanto conversava com um fauno. Nosso mundo é assim. Cheio desurpresas. Mas você ainda não teve tempo de desfrutá-las.

– As fadas continuam sem trabalhar? – perguntou aos dois.– Estive no círculo de pedras e entendi que é realmente difícil trabalhar nas condições delas. É

impossível limpar a energia negativa da superfície da pedra. Elas precisaram parar – disse o felino.– Então estamos em um Reino onde nossas flores não se sentem amadas o suficiente para cantar e

onde não existe força braçal para polir pontos de energia necessários.Tiveram que concordar.– Vocês ainda me amam? – indagou a garota de supetão.

O homem olhou para o gato e ambos fizeram que sim com a cabeça.

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– Até o infinito, alteza – confirmaram em coro.– Preciso ir até as pixies – informou ela com urgência. – Como faço para localizar Condx?A dupla achou graça na pergunta.– É fácil – revelou Phix. – É só pensar no formato do bico dele que o encontrará.– Que coisa inusitada!– E não é? – concluiu o Ministro. – Uma pena você não poder passar mais tempo no Reino. Você

ainda não sabe um por cento do tamanho do poder que possui.– Agradeça por ter que pensar no bico – acrescentou o gato.

Sophie riu. A magia ainda era estranha para ela. Após poucos minutos, a ave gigantesca pousou,estendendo as asas pretas pelo gramado lateral do lago. Agitada pela corrente de vento trazida pelopássaro, a água se movimentou para todos os lados.

Antes de subir em seu dorso e partir até uma das florestas, ela olhou novamente para as águas e umflashback de sua tentativa de suicídio lhe veio à mente. Conseguia se lembrar do céu daquele dia e eracapaz de sentir a temperatura do lago. Recordou-se dos sereianos e resolveu perguntar para o Ministro:

– Se eu pensasse no rosto dos sereianos que me salvaram, eles apareceriam?O homem pareceu pensar na questão.– Eu nunca tinha visto um ser das águas até aquele dia – comentou ele. – Todos nós ficamos

assustados com a presença deles. Até mesmo sua avó. Acredito que eles apareceram e arriscaram suasexistências com o único intuito de salvá-la. Não acho que arriscariam sair das profundezas novamente.

Ela ficou visivelmente desanimada com a resposta.– Queria poder agradecer. Mesmo sabendo que eles foram os responsáveis por eu não ter podido

dormir profundamente para ficar com vocês, sei que foi o certo a fazer.Jhonx gostou daquela conclusão.– Princesa – disse o Ministro. – Se pensar em sua gratidão e na imagem de quem a ajudou, sem

dúvida seus pensamentos se unirão aos dos sereianos, e eles ficarão cientes do seu respeito.Aquele poderia ser um bom passo para ela.– Vocês são sempre maravilhosos, sabia? – elogiou ela, subindo na garupa.– Você é nossa inspiração.– Diva – corrigiu o gato, mostrando os dentes em um sorriso, apontando para ela os dois

indicadores em uma posição hilária. – O termo moderno hoje é diva!Ainda sentada em Condx, Sophie acariciou as plumas da ave e deu impulso.Onde quer que vocês estejam, dedico meus próximos passos a vocês por me manterem viva. Sophie pensou em uma

energia capaz de atravessar oceanos.No fundo do coração ela se sentiu mais próxima deles, como se tivessem recebido a mensagem.Era o que acontecia quando pensamentos se uniam.

Sobrevoaram alguns minutos antes de chegarem à localização exata do círculo. Do alto, Sophie apenasobservava o Reino e sua beleza mais do que divina. Não sabia muito bem por quê, mas tinha a sensaçãode que não veria aquela maravilha por muito tempo. Ao menos pensar nisso não a deixava desesperada.

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Havia certo conforto em perceber aquilo, mesmo sem compreender.Quando chegaram à floresta, Sophie entendeu melhor a aflição do Reino. Depois de sua atitude

drástica, aquele se tornara outro lugar. Não havia mais vida no local antes mágico. As cantorias de fatotinham cessado, as cores pareciam menos intensas, o ar era muito mais pesado e a garota ficou aindamais tensa ao ver as pixies.

Elas pareciam mortas.Cansadas pelo esforço, todas traziam um semblante exausto e uma pele quase sem brilho. A garota

não conseguia acreditar no que via. Como fadas podiam ficar daquele jeito? Ela de fato acabara com aenergia positiva daquele local? Tudo era muito confuso, e a tristeza voltou a dominá-la.

– Não se sinta assim – a voz de Sycreth quebrou o silêncio quando ela saiu de trás de uma dasárvores.

Sophie se assustou, mas o rosto familiar da Guardiã trouxe um pouco de sossego ao seu coração.– Fico feliz que esteja aqui.– Eu também fico feliz em vê-la, mas gostaria que isso fosse suficiente...Ouvir o desamparo na voz de Sycreth foi para Sophie um susto ainda maior. A Guardiã sempre se

mostrara a pessoa mais otimista e dedicada em todos os dias que passara no Reino: ela nuncareclamava. A ruiva não imaginara que algum dia ouviria a voz da amiga abalada por um tom tão triste.

– Não sei como consertar tudo isso – desabafou Sophie. – Tenho pensado em meus pais, no Léo eem todos vocês. Lamento que meus atos tenham ocasionado tanta tristeza. Mas agora não sei como agirnem como fazer tudo voltar a funcionar.

A Guardiã pareceu entender.– Ninguém previa algo assim, alteza. Nem mesmo Mama Lala ou a Rainha. Tudo está estranho

demais.Sophie apenas aquiesceu.– Posso ajudar em alguma coisa?– Você sempre pode.

As duas olharam ao redor. Era impossível identificar as pedras alaranjadas. Onde antes elas estavamhavia agora apenas minerais cinzentos. E a princesa sabia que aquilo estava longe de ser normal. Aqueleera o cinza que tanto a perseguia. Conseguira levá-lo até mesmo para seu local mágico.

– Quando eu vim para este Reino, meu objetivo era voltar para as pessoas que me amam e ser feliz,certo?

– Perfeitamente.– Então, por que só estou prejudicando quem tanto me ama e por que não me sinto mais tão feliz

quando penso que terei de abandonar minha vida na Terra?Aquelas eram boas perguntas. Nunca fora feliz no mundo dos humanos e continuava não sendo.

Porém, desde que sentira o carinho das pessoas por lá, percebera que talvez ficar para sempre no Reinonão fosse a melhor escolha.

– O que aconteceria se eu decidisse ficar também com meus pais?

Sophie notou o semblante sério de Sycreth.

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– Não posso ajudá-la nessa questão. Isso nunca aconteceu conosco. Temos instruções claras.– Que instruções?– Um dia, receberíamos nossa princesa de volta e ela nos faria completamente felizes. Entretanto,

antes do final feliz, seria preciso que três etapas fossem cumpridas para que ela se tornasse nossa novaRainha.

– E as minhas dúvidas contrariam essas instruções...– Na verdade, nada mais faz sentido. As flores e as pedras deixaram de ser mágicas. Nossa princesa

tentou tirar a própria vida. Os habitantes do Reino não estão sendo mais os mesmos. Onde está afelicidade prometida?

Apesar da tranquilidade na voz da Guardiã, Sophie pressentiu que a outra estava prestes a chorar.– Vamos encontrá-la – prometeu a princesa. – Passarei pela terceira etapa.A jovem aproximou-se de Sycreth enquanto as pixies exaustas zanzavam de um lado para o outro.

No meio de um abraço solidário, sentiu-se novamente sugada e ouviu a fênix gritar pelos céus.Era hora de encarar a mãe e o rapaz que começava a amar.

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pai a compreendia melhor. Durante toda a vida, ele parecera ter mais paciência com ela – talvezporque eles fossem parecidos ou se preocupassem menos com a opinião dos outros. Entretanto,

ela não era mais a menina que não se importava por ser diferente. Passara os últimos meses julgando a simesma e percebeu o quanto também era parecida com a mãe. No final, reconheceu ser uma mistura dasduas pessoas que a trouxeram ao mundo e que, nos últimos tempos, estavam lhe dando ainda maiscarinho e atenção que de costume.

Sophie sentia que sua fase negra precisava passar antes que pudesse salvar a outra dimensão. Decidiuseguir o conselho do psicólogo criando coragem para uma conversa franca com a mãe. Não conseguiase lembrar da última vez que realmente sentira vontade de estar e falar com ela. Sabia como Laura tinhase esforçado e tinha noção de seu amor incondicional, mas para ela era difícil conversar com a mãe.

Contudo, naquele dia elas tinham muito a dizer uma para a outra.Sophie andou pela casa e a encontrou em um lugar inusitado: o porão. Aquele era um local um

tanto claustrofóbico e cheio de caixas antigas que acumulavam poeira e ácaros. A garota não entendiapor que guardavam tantas coisas do passado naquele local abandonado. Mas, naquele dia, Lauraparecia ter encontrado um bom motivo para se enfurnar lá.

– Às vezes esqueço que este lugar existe – comentou ela, encontrando a mãe debruçada em uma dascaixas de papelão aberta à sua frente.

– E eu me esqueço de quantas coisas mágicas existem por aqui – suspirou a mãe, mostrando umvestido cor-de-rosa do tamanho de seu antebraço.

A palavra “mágica” fez os pelos de Sophie se arrepiarem. Saber que a mãe remexia em suas roupasde infância fez sua garganta fechar um pouco. Tentou ignorar, convencendo a si mesma de que era porconta da poeira.

– Está há muito tempo aqui embaixo? – perguntou.– O suficiente para lembrar como você já foi pequena.– E obediente – brincou.– Faz tempo mesmo, não é?As duas riram.Sophie buscou uma caixa firme na qual pudesse se sentar. A mãe não parecia ligar para a sujeira e

acomodara-se no chão. O ambiente contrastava muito com as pequenas roupas de lã e algodão claro.Muitas ainda eram brancas e nem pareciam estar guardadas há tantos anos.

– Você está bem? – perguntou Sophie na tentativa de se aproximar da mãe.Laura moveu a boca de modo hesitante, mas a fechou com receio.

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– Não tenha medo. Sou mais forte do que pode imaginar, mãe.– Mas é esse o meu medo... – cortou Laura.Sophie não entendeu.– Minha filha outro dia tentou se matar e hoje está na minha frente conversando comigo com

tranquilidade. Eu sei que você é forte, apesar do que as pessoas dizem dos suicidas. Minha pequenatentou se afastar de mim, e eu não sei se tenho forças para superar isso.

Visivelmente abatida, Sophie tentou argumentar:– Você sabe que o que eu fiz foi por livre e espontânea vontade. Não foi culpa sua. Não é culpa de

ninguém.– Claro que foi, Sophie! – esbravejou ela enfim, segurando um sapatinho lilás entre os dedos.

Lágrimas ameaçavam cair. – Eu sou a sua mãe! Sua mãe! Como pude deixar algo assim acontecer?Como durante todos esses anos não consegui fazer você feliz?

– Não existe uma fórmula para isso! – gritou Sophie.Ambas se olharam por conta da intensidade da conversa.– Eu queria fazer você feliz...– Ninguém pode fazer outra pessoa feliz. Nós precisamos encontrar a nossa própria felicidade. Eu

nunca achei que fosse digna de ser feliz. Esse sempre foi o grande problema.A mãe ficou angustiada ao escutar aquilo. Acreditava ser responsável pelos atos da filha.– E agora você se sente digna?– Estou trabalhando nisso.Sophie contou que, para acabar com a fase negra de sua vida, precisava dedicar-se a conversar mais

com as pessoas que amava. Era difícil para ela, mas finalmente podia admitir para a mãe que precisavade seu carinho durante a recuperação.

– Sei que às vezes pareço superficial e que não compartilhamos dos mesmos gostos. Só que eu teamo e tenho muito orgulho de você ter se tornado essa menina inteligente e forte – desabafou a mãe. –Você tomou uma atitude que corta profundamente meu coração, porém sei que superará isso e prometoestar ao seu lado em cada passo.

Laura sentia estar aliviando a alma.Sophie também.

Ela percorreu o cômodo com um olhar perdido enquanto Laura voltava a bisbilhotar as caixas,emocionada com cada item que pegava e trazia ao peito.

Quando um som melódico de sinos tomou conta do lugar, Sophie, curiosa, voltou a atenção para amãe. Em suas mãos, havia um antigo móbile. Aquele objeto lhe dava uma sensação estranha. Como se oreconhecesse de quando era criança.

– Não me lembrava de ter guardado isso... Ficava enfeitando seu berço – comentou Laura.O enfeite tinha diversos fios resistentes espalhados pela estrutura de cinco pontas. Cada um dos fios

trazia graciosas pedras alaranjadas e imagens de pequenas fadas. Era confuso ver aquele objeto. Até amúsica era parecida com os cochichos das flores que haviam se calado.

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Era curioso descobrir que suas noites infantis tinham sido embaladas por pedras alaranjadas epequenas fadas.

Seria mesmo coincidência?– Você passava a noite toda tentando tocar nessas fadas, sabia?Sophie achou graça.– Por muito tempo, pensei que você falasse com elas em sua linguagem infantil. Você as olhava com

tanta intensidade que pareciam suas amigas.– Acho que minha esquisitice já começou nessa época – a jovem voltou a brincar. – Tendo fadas

como amigas seria mesmo difícil ter uma amizade normal.A mãe tentou sorrir, mas tudo ainda era muito vivo em sua mente para isso.– Queria que ao menos você tivesse tido fadas como amigas...– Eu estou tendo agora.Lembrou-se de Sycreth. Era bom ter uma Guardiã caminhando ao seu lado durante aquela jornada.

Aos poucos, começava a não saber mais distinguir as pessoas mágicas das comuns.– Então, quando aprender a ser feliz, avise. Estaremos de braços abertos – completou Laura

fechando a caixa.Sophie sabia.

Após muito repouso, cuidado e esforço, as sequelas de Sophie desapareceram. Os olhos deixaram de tera intensidade assustadora, as palavras não demoravam a sair e tinha uma aparência mais saudável, combochechas rosadas.

Apesar do tempo livre e de se sentir mais disposta, quase nunca deixava o quarto e permanecia horasapenas encarando as páginas dos livros de fantasia que relia. Aquele era o seu mundo mágico fora doReino. Os personagens que conhecia nas sagas literárias lhe faziam companhia quando os pais nãoestavam a seu lado e Léo e Mônica não vinham em uma de suas visitas constantes.

Desde que conversara com o psicólogo e a mãe, sentia-se pronta para desabafar com o garoto eentender o que realmente se passava entre eles. Considerava-o seu namorado, ainda que não tivesseouvido dos lábios dele que o sentimento era recíproco.

Ainda que nem sequer o tivesse beijado.De repente, aquilo lhe pareceu absurdo. Pensando no assunto, lembrava-se de que a carta da Morte

a desprenderia de tudo, e uma nova jornada começaria. Se essa nova jornada seria ao lado do garoto,precisava ser completamente franca com ele, mas tinha certo receio. Não sabia como ele responderia aosaber de sua vida paralela. Ainda estava surpresa pela reação do psicólogo. Acreditava que não teria amesma sorte com Léo.

Era sábado quando chegou no seu celular uma mensagem de Léo marcando um encontro. Só essapalavra fez o estômago dela revirar de alegria. O garoto sabia preparar aquele tipo de ocasião e ela

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esperava ter uma noite inesquecível. Quando fechou a mensagem e olhou para a tela do televisor, viu seureflexo. Estava bem, contudo ainda não se sentia bonita. Preferia sua aparência no Reino. Com essepensamento, resolveu se aventurar.

Andou na ponta dos pés até o quarto dos pais, que estavam na sala. Não queria ser percebida antesda hora. Seu encontro seria à noite, por isso poderia escolher peças mais extravagantes do guarda-roupade sua mãe. Laura sempre fora mais antenada com moda do que ela.

Procurando algo semelhante ao que costumava usar no mundo mágico, encontrou uma saia pretaassimétrica que terminava no joelho e um top tomara que caia da mesma cor. Buscou um sapato cinzacom salto pump que a mãe sempre usava e, após encontrá-lo, conseguiu também achar um par de brincos

longos prateados. O visual continuava sombrio, mas sentia-se mais bonita para o garoto. Alisaria ocabelo pela primeira vez e talvez usasse um pouco de maquiagem. Teve vontade de dar risada aoimaginar a mãe e Léo vendo-a daquele jeito.

Quando Laura anunciou que Léo chegara, Sophie saiu do quarto respirando com dificuldade, ansiosapelo susto que iria pregar neles. Quando dobrou o corredor, pôde ver os olhos arregalados do pai, osorriso da mãe e o rosto corado de Leonardo.

Eles tinham gostado. Que bom.– Esses encontros de vocês precisam ser mais frequentes – comentou a mãe. – Você está linda,

minha filha.O melhor era que ela também se sentia assim.George ainda estava chocado e apenas lançou um olhar carrancudo para o garoto, deixando claro

que não era para aproveitar o momento. No fundo, gostava de ver a filha redescobrindo sua beleza.Sempre acreditara que tinha uma joia rara em casa. Duas, na verdade.

Léo havia chamado um táxi por meio de um aplicativo de celular, e o motorista já os esperava. Nocarro, Sophie ficou cada vez mais nervosa com o silêncio do garoto. Esperava algum comentário. Atéque ela sentiu a mão dele apertar a sua e ouviu-o dizer num sussurro:

– Você é maravilhosa.Aquilo encheu o espírito dela de alegria, a ponto de quase transbordar. Ele não dizia que ela estava

daquele jeito e sim que ela era. Como tinha encontrado um rapaz tão carinhoso?

Ela deitou a cabeça no ombro dele.– Você é a minha melhor música, AC/DC.O carro parou diante de um restaurante italiano e eles desceram. Léo não largava a mão dela. Ela

tentava controlar o nervosismo que fazia seu corpo tremer, feliz com a sensação de ser amada.– Acho melhor ficarmos num lugar mais reservado. Lá fora está vazio – sugeriu ele.Sentaram-se na parte externa da cantina, iluminada por postes de luz e velas acesas em todas as

mesas. A decoração a fazia se lembrar de Roma e teve saudade do dia em que passeara com os paispelas ruas próximas à Fontana di Trevi. Sentia falta de viajar e pensou que talvez o próximo passo fossefazer algo assim ao lado dele.

Os dois se acomodaram. Mesmo atencioso, o garoto estava com a mente em outro lugar. Parecia

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preocupado e ela não entendia por quê. Estavam juntos, ela se sentia bem e aproveitariam uma lindanoite estrelada. O que poderia acontecer de ruim?

– Promete que não vai ficar brava comigo? – pediu ele, deixando-a mais preocupada.– Eu tenho motivos para ficar assim com você?O clima da mesa mudou, e ela começou a perder a coragem de falar com ele sobre o Reino.– Lembra que, quando estava doente, eu pegava as matérias da sua turma e levava pra você?Claro que ela lembrava.– Por que está falando disso hoje?Tinha um mau pressentimento sobre aquilo.– Sei que está mudando e, pelo que ouvi da Mônica e da sua mãe, a mudança é para melhor. Fico

feliz que esteja encontrando um pouco de luz e gostaria de ajudar de alguma maneira...– Mas você já está mais do que ajudando. Você está do meu lado. Não saiu do meu lado esse

tempo todo.Ela torcia para não borrar a maquiagem. Não queria mostrar mais fraqueza.– Existe uma ponta solta na sua história e hoje eu gostaria de tentar colocá-la no lugar certo. Há

uma pessoa que quer conversar com você e acho que deveria ouvi-la pelo menos por uns minutos. Elamerece isso por ter nos ajudado a conseguir as matérias.

Sophie entendeu e desejou sair do restaurante. Já se sentia estúpida por ter se arrumado daquelaforma, achando que aquele era o dia em que ele diria que a amava.

– Eu não acredito que você a trouxe aqui.Léo conseguia sentir a raiva em cada palavra.– Confie em mim – pediu ele, enquanto a outra jovem caminhava até a mesa. – Vou deixá-las

conversando por alguns minutos e volto em seguida. Ela não vai ficar por muito tempo, mas acreditoque seria bom escutá-la.

Sophie sentiu vontade de gritar, dizer que não queria mais olhar para ela. Mas ele estava certo. Ela

precisava ao menos escutar o que a garota tinha a dizer.– Olá, Anna – falou a ruiva num tom desanimado, vendo a antiga amiga se sentar à mesa.Sophie notou que ela não era mais a jovem vívida de que se lembrava. Porém, quem era ela para

julgar alguém?– Oi...Ambas estavam confusas com a situação. A última vez que tinham conversado fora caótica, e a

jovem morena parecia um mau agouro na vida da ruiva. Ao mesmo tempo, desde que haviam seseparado, as duas apenas avançaram para caminhos piores.

– Como você está? – arriscou Anna.– Neste momento, constrangida.Para a surpresa de Sophie, a morena não escondeu que estava prestes a chorar.– Você não entende...– Não entendo o quê, Anna?

Anna não tinha mais forças para segurar as lágrimas.

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– Que desde que você saiu da minha vida eu não sou mais a mesma.Sophie por um instante também teve vontade de chorar. A maquiagem, lembre-se da maquiagem.– Sabe como é descobrir por um desconhecido que uma das pessoas que mais amou na vida tentou

se matar?Foi só então que ela compreendeu por que Anna estava no restaurante.– Eu tenho visto sua dor de longe, e isso tem me matado um pouco também – continuou a ex-

amiga. – Sei que pisei na bola, mas nunca imaginei que passaríamos tanto tempo longe uma da outra.Você sempre foi a minha outra metade.

– Eu continuo solitária. E duvido que mais alguém além do Léo me ache interessante.– Não diga isso. – Anna encarou Sophie em um momento de franqueza. – Durante todo esse tempo

em que andamos juntas, sempre achei você a pessoa mais fascinante que conheci. Aprendi muito sobre avida e o valor da amizade ao seu lado. Sei que se considera solitária, mas, se pensar bem, nunca estevesozinha. Antes, você tinha a mim e o pessoal que andava comigo.

– Eles eram péssimos!– Eram, né? Mas ao menos eles estavam lá.Sophie deu o braço a torcer.– E hoje tem o Léo e a Mônica – continuou Anna. – Você pode não se achar interessante, mas

todos que a conhecem querem ver o mundo pelos seus olhos.Sophie não esperava ouvir tudo aquilo naquela noite. Era estranho estar com Anna e mais ainda vê-

la se abrir daquele jeito, admitindo que sentia sua falta. No fundo, sentia a dela também. E matava umpouco dessa saudade ao lado de Dior, um presente da amiga.

– Sei que deve estar brava com Léo por ter me deixado vir até aqui. Queria te pedir para não brigarcom ele como eu briguei com o Daniel. Fui eu que insisti. Fiquei dias no pé da Mônica pedindo paraajudar no plano deles de auxiliá-la nos estudos. Agora tive que implorar pra ele arriscar orelacionamento de vocês pra eu poder falar contigo.

Sophie conseguia perceber que Anna falava sério.– Eu não tenho bem um relacionamento com ele...Anna riu do que ela disse. Pelo tom de voz quase sonso, sentiu a amiga de volta.– Você já está casada com o menino e ainda nem percebeu – brincou ela, fazendo Sophie corar.– Claro que não, sua “porforona”!– Falou a menina que ainda não sabe o que é um Dior!

Elas dividiram um sorriso. Por um momento, aquilo as fez parecerem jovens preocupadas comquestões normais. Adolescentes que não pensavam em Reinos mágicos, cartas de tarô ou suicídio.

– Você está com roupa de “quero ser gostosa”. Qual foi a última vez em que se vestiu assim?– Na festa da Angélica.Elas suspiraram.– Há muita mágoa em nossa relação – continuou Anna. – Várias coisas que precisam ser ditas e

pensadas. Não quero mais atrapalhar seu encontro, mas gostaria de pedir uma coisa. Podemos nos vernovamente?

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Sophie pôde ver naquela mesa a mesma garota carismática com quem um dia compartilhou seu gizde cera quando criança.

– Por favor. Prometo que a gente pode passar uma tarde inteira falando mal da Angélica!Sophie riu.– Sem corridas na esteira às oito horas da manhã de sábado?Anna beijou os indicadores cruzados duas vezes.– Então tudo bem.Anna pulou no pescoço dela, atraindo a atenção das pessoas no restaurante. Enquanto se abraçavam

feito irmãs, Sophie sentia um calor desejado há meses. Enfim enxergava com cada vez mais nitidez osignificado da carta da Morte. Antes de a amiga ir embora, notou o colar que ela usava. Nuncareparara nele antes. O cordão fino carregava uma espécie de amuleto redondo com uma árvoredesenhada preenchendo todo o espaço. Seu formato lembrava a letra “T”. Ao vê-lo, teve vontade depresentear Sycreth com um daqueles. A joia parecia ter sido feita pelos Tirus.

– Fiz muito mal? – perguntou Léo ao vê-la novamente sozinha na mesa.– Você sempre me faz bem.Aquilo era verdade.

As coisas estavam ficando claras, mas ainda não completamente.Tudo parecia devidamente orquestrado por alguma força superior que ela não entendia. Desde que

conhecera o Reino pela primeira vez, sentira-se eternamente uma de seus habitantes. Agora nãoconseguia mais viver sem as pessoas da Terra. Como poderia ficar sem ver os pais, conversar comMônica, acariciar Dior, falar ao telefone com Anna e sentir o calor de Léo?

– Sabe... Eu já não queria mais saber deste mundo. Estava cansada de ver tudo tão cinza. Mas foi sóeu te conhecer que o meu mundo virou, e tudo mudou, e eu descobri que é você a pessoa que eu querodo meu lado.

Léo entendia o que Sophie queria dizer.– Sei que foi tudo meio sem querer e que eu não sabia o que fazer no começo – acrescentou ele –,

mas o meu mundo também virou e tudo também mudou. E, bem, o que eu posso dizer? E é você.Ela ficou louca e perdeu o ar sem querer. Sentiu que enfim podia gritar que ele a faria romper a

barreira de seu coração.Então se beijaram. E se tocaram. Aproveitando aquele cenário mágico. Os dois sabiam que queriam

mais e desejavam poder mais.

Sophie completara a terceira etapa de Mama Lala e já sabia o que fazer.O mundo girava.

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N

26

ão acreditava que tinham se beijado.Léo ainda caminhava ao seu lado pelas ruas desertas, as mãos entrelaçadas nas suas, e ela

sentia os lábios pulsarem ao recordar o momento mágico de algumas horas atrás. Tinha vontade desorrir cada vez que se lembrava da maciez da boca dele, do hálito de menta e de como ele a fitava compaixão toda vez que seus olhos se encontravam. Era difícil acreditar que na mesma noite havia reatadocom sua amiga e finalmente baixara a guarda para se entregar ao sentimento do amor.

– Acho melhor chamarmos um táxi. Vou te deixar em casa...Ela concordou, mas não esperava se afastar de Léo tão cedo. A conversa com Anna havia

demorado, e eles mal tinham se falado. Era cedo demais para terminarem a noite, sem contar que aindaprecisavam conversar sobre um assunto muito sério.

Ele só não sabia disso ainda.Quando o táxi parou diante da casa dela, Sophie viu a luz do quarto dos pais acesa e perguntou:– Você precisa voltar agora pra casa?Léo ficou confuso. Também queria ficar com ela, mas, apesar de já ter estado diversas vezes lá,

agora era diferente. Eles tinham finalmente se entregado ao amor.

– Você não quer que eu volte?Sophie notou um pouco de receio na voz dele. Parecia, na verdade, que Léo ficara nervoso ao pensar

em ficar a sós com ela. Talvez tivesse medo de ser impulsivo. Porém ele a conhecia, respeitava-a erespeitava seus pais. Só queria que tudo fosse perfeito entre eles, e ela percebia isso.

– Preciso conversar com você. Acho que seria bom entrarmos.As palavras dela acalmaram seus nervos, seus ombros tensos relaxaram, e ele parou de transpirar

loucamente.Eles pagaram o táxi e entraram na casa.– Vou falar com meus pais primeiro. Pode me esperar no meu quarto?Léo concordou e ambos entraram em corredores diferentes.

Sophie assustou os pais ao entrar pela porta do quarto, abrindo de supetão. Não a esperavam tão cedo,e por um instante temeram que algo que pudesse desequilibrá-la outra vez tivesse acontecido.

– Filha, já em casa? Está tudo bem?Ei, bad girl, tudo bem? Não vá se matar de novo, hein?, pensou ao constatar que a mãe ainda se

preocupava com os últimos acontecimentos.

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– Não. Está tranquilo – respondeu ela. – Eu só queria ver se está tudo bem se o Léo ficar lá noquarto comigo. Não queria conversar sério com ele no restaurante.

A expressão de George se modificou na hora. Ele gostava do garoto, mas ainda tinha dificuldadescom aquele tipo de aproximação. Nem Laura pareceu preparada para aquilo, deixando transparecer suasurpresa. Entretanto, queria pensar no que era melhor para a filha. Já tinha sido jovem e entendia osdilemas que deviam passar na cabeça da garota.

– Você tem certeza de que é melhor conversarem no quarto?Sophie não os condenava.– Vocês conhecem o Léo e sabem que ele não faria nada que eu não quisesse, e eu só quero

conversar. É importante que seja aqui em casa. Preciso de um momento de privacidade.Laura e George entenderam. Se a filha deles estava pedindo permissão, era porque agia de forma

responsável. Além do mais, se tivesse chegado a hora de ela dar um passo em direção à vida adulta, queao menos acontecesse em um ambiente seguro.

– Avise aos pais dele que ele está aqui, minha filha. Não é a situação mais confortável para a gente,mas, se quiser que ele fique esta noite, tudo bem ele dormir aqui em casa.

– Eu só perguntei se podíamos conversar no quarto, mãe – respondeu a garota, envergonhada etentando não encará-los.

– E eu estou dando permissão para que ele passe a noite aqui se precisar. Léo foi um grande amigodesta família. Sei que ele não vai nos magoar.

O pai continuava carrancudo e calado. Cortando a tensão, a mãe comentou:– Pode ir, minha filha! Vai entrar em Mármia!Sophie riu ao sair do quarto e gritou:– É Nárnia, mãe!Laura sabia que era.

Encontrou-o visivelmente abalado. Ele, que sempre exalava confiança, não parecia mais tão seguro. Naverdade, até começara a apertar os dedos como ela fazia, ainda que inconscientemente.

– Falou com seus pais? – A voz dele estava trêmula.– Eles pediram pra você avisar sua família que talvez durma aqui em casa se ficar tarde.Sophie viu, para sua surpresa, que o rosto dele ficou branco como a moldura do quadro do Robert

De Niro na parede. Teve vontade de rir, mas sabia que seria pior. Aquela experiência estava sendomuito diferente. Ela queria contar ao garoto sobre como visitava um Reino encantado nos últimosmeses. Ele e os pais agiam como se ela estivesse implorando por sexo. Sophie achava estranho pensarnaquilo. Seu objetivo não era se entregar fisicamente para ele, ao menos não naquele momento. Queriase entregar mentalmente. Se ele resolvesse dormir ao seu lado, não veria problema. A presença deLeonardo era sempre bem-vinda. Só não sabia se ele ficaria após sua confissão.

Será que ele aceitará uma namorada diferente como eu?, questionava-se.

– Vai ligar? – perguntou ela, tentando fazê-lo reagir.Balbuciando, ele concordou e saiu do quarto. Provavelmente a conversa dele também não seria fácil.

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– É a primeira vez que dorme na casa de uma menina? – quis saber ela, ainda achando graça ao vê-lo retornar.

– É essa mesmo a pergunta que quer me fazer?Seu tom não era de raiva ou desafio. Sophie entendia aonde ele queria chegar.– Eu sei que você não é virgem – disse ela, lendo os pensamentos dele. – Já se olhou no espelho?Os dois riram da situação.– Mas você parece um, do jeito como está agindo.Eles riram ainda mais e deixaram a tensão se dissipar. Sentaram-se na cama, tirando o sapato para

ficarem mais confortáveis.– Seus pais deixaram?– Mandaram um beijo – respondeu ele.Sophie ficou feliz. Não tinha intimidade com os pais dele, apesar de Leonardo ser praticamente da

família. Seus pais já o tratavam como um filho. Ou um genro. Ver que a família dele lhe queria bem fezcom que se sentisse ainda melhor.

– E sim. Esta é a primeira vez que durmo na casa de uma menina.Ela se sentiu especial.Nenhum dos dois era mais virgem, mas ambos sabiam que no fundo o que importava era o fato de

estarem juntos. Compartilharem no final da noite um abraço apertado.– Acho melhor ficarmos mais confortáveis – sugeriu ela, quase não acreditando que realmente

dissera aquilo.O objetivo daquela noite era outro, mas se via pensando em cama, no corpo dele e em roupas

folgadas. Ou nenhuma roupa. Contudo, o que queria mesmo ao dizer aquilo era trocar a roupa da ruapor um moletom ou camisola, porque odiava qualquer roupa que a apertasse um pouco, ainda maisdentro de casa.

Dessa vez não dá pra usar nada rasgado, pensou, vasculhando a gaveta de pijamas, ansiosa.

Para a sorte dele, o guarda-roupa de Sophie tinha muitas peças antigas do pai dela. Léo era muitomais magro que George, mas uma bermuda azul-escura antiga serviu bem nele. Sophie estava lheestendendo uma camiseta cinza quando ele falou:

– Não consigo dormir de camiseta.Ela ficou envergonhada pela primeira vez naquela noite.Ele achou graça e sorriu de lado. Sua confiança típica estava de volta.Sophie pediu que ele virasse de costas enquanto ela se vestia.Os dois estavam no mesmo quarto e tudo indicava que de fato dormiriam juntos, porém a

intimidade ainda não fora conquistada. Léo virou-se e ficou encarando a televisão desligada enquantoela tirava uma camisola de algodão preta da gaveta. Pela tela escura, podia notar a silhueta dela.

Ele acompanhou seus movimentos enquanto a ruiva deslizava a saia para o chão e percebeu apequena curva abaixo do quadril. Achou fofa a calcinha de caveiras no estilo shortinho e teve vontadede rir porque aquilo era bem a cara dela.

Sophie tirou o top em seguida, revelando o sutiã preto sem alças. Ele acompanhou o movimento das

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mãos dela ao desabotoá-lo. Depois, ela vestiu a camisola e virou-se para a frente. Quando estavacompletamente vestida, pediu que ele olhasse para ela. Léo ficou um pouco constrangido por não terdesviado o olhar do reflexo.

– Eu trouxe você aqui porque queria conversar...Não era bem o que ele imaginava. Tinha sido pego desprevenido. Ela já dissera aquilo antes, mas ele

não compreendia bem o que estava fazendo naquele quarto e com as roupas do pai dela. Tinha acabadode ver de relance as curvas do corpo da garota. Não sabia muito bem se conseguiria se concentrar.

– É importante – afirmou ela, ao ver os olhos dele vagarem.Léo percebeu que precisava parar de pensar na atração que sentia por ela. Tinha vontade de tê-la

nos braços e de beijá-la a noite toda, repetir diversas vezes que era com ela que ele queria ficar. Mas aconhecia muito bem e entendeu que aquele não era o objetivo da noite.

– Estou sempre aqui pra te ouvir, AC/DC.Isso a fez recordar a primeira vez que se viram.Ela fez uma longa pausa antes de começar a falar.

– Eu nunca me aceitei – começou a dizer Sophie, voltando a se sentar na cama e dessa vez sendoacompanhada por ele. – Sempre me achei menor do que os outros. É difícil ter autoestima quando aspessoas dizem pra você todos os dias com palavras ou olhares que é magra demais, ruiva demais, darkdemais ou alguma outra coisa demais.

– Acho que sei um pouco como é se sentir assim...Ela duvidava, mas gostava de ver que ele prestava atenção.– Eu sempre me preocupei em tentar olhar o interior das pessoas. O humor delas, seus interesses e

como elas enxergam quem está ao seu redor. Mas me vi em um mundo em que o padrão estético falamais alto e fui me sentindo cobrada a seguir esse padrão. Cheguei por muito tempo a ter ciúmes daminha própria mãe.

– Como assim? – perguntou Léo, abismado.– Cresci tendo a minha mãe como um exemplo de mulher bonita e carismática. Uma combinação

com a qual é difícil competir. Ao longo dos anos, precisei escutar de familiares e conhecidos o quantoeu não sou parecida com ela, e isso me deixava mal. Fui me sentindo inferior e não conseguia mais meolhar no espelho. E antes eu nunca tinha feito questão de ser necessariamente uma pessoa bonita.

– Vocês duas são lindas... – Ele tentou consolá-la.– Hoje eu sei, mas crescer com isso não foi fácil. Ainda sinto o olhar das pessoas sobre mim. Elas

acham que vou correr para o banheiro assim que eu terminar a sobremesa. Isso não é legal. Acho queesquecem que sou humana, que tenho sentimentos.

– É triste ouvir isso. E ao longo da vida você não teve muitas pessoas ao seu lado, né?– Quase ninguém. E por ironia fui ser amiga justamente da Anna, uma menina que podia ter sido

filha da minha mãe.O garoto parecia entender aonde ela queria chegar com a conversa.– Anna é muito mais comunicativa do que eu. Sei que sou inteligente e que até tenho conteúdo pra

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falar, mas durante todo esse período escolar me escondi no brilho dela e deixei que ela falasse por mim.– Nisso eu tenho que concordar. Sem dúvidas a Anna fala muito mais do que você – disse ele rindo

e jogando um travesseiro nela para tentar descontraí-la um pouco.– Viu só? Até meu namorado acha isso – brincou ela, também rindo.A palavra fez o clima mudar outra vez. Eles ficaram sem graça por alguns segundos, e seus olhares

brilhavam como se estivessem dominados por magia.– Que sorte a sua de que ao menos o seu namorado quer ouvir o que você tem a dizer. Ele acha que

seu brilho é maior do que você imagina.Ela se sentiu feliz e compreendida.Eu teria sido mais feliz se o tivesse encontrado antes na minha vida.Sophie então compartilhou mais de seu passado e falou de todos os anos ao lado da amiga.

Relembrou as festas de aniversário cansativas, os colegas que quase não a olhavam, as paqueras da amigae todas as fases passadas na juventude. Sophie descreveu como todas elas a haviam marcado de umaforma negativa, deixando uma cicatriz que a atormentava.

Ela era diferente e sempre se recriminou por isso. Não só fisicamente, mas seu modo de ver o mundoera mais triste do que o dos outros.

– Mas aí fomos a uma festa há alguns meses e nós brigamos. Você ficou sabendo?Léo explicou que, no começo, quando ninguém o conhecia, tentaram colocá-lo entre os populares.

Os meninos mais bonitos e queridos da escola o chamaram para sair, para jogar bola. Em uma dasocasiões, por conta do interesse nela, o garoto arriscou perguntar sobre ela. Nisso surgiu a história sobreAnna, Rick e Angélica. Ele ainda revelou que tinham recomendado que ficasse longe dela.

– Claro que eu não poderia fazer isso! – completou, antes de Sophie se chatear. – Mas fiquei felizde saber que ao menos eles ficariam longe de você.

A ruiva outra vez sorriu. Ele sempre sabia escolher as palavras certas.Voltando ao tom sério da conversa, ela continuou:– Quando me vi humilhada por todos da escola, inclusive pela minha melhor amiga, percebi que

precisava ficar sozinha. Nada do que eu fazia adiantava, entende?– Essa experiência deve ter sido difícil mesmo, mas ainda não entendo por que se fechou tanto.– Porque você não tem ideia do que é ser rejeitada todo santo dia. Sabe, uma hora a gente passa a

acreditar que não merece companhia.Léo ficou abalado e percebeu a angústia nas palavras dela. Segurou uma de suas mãos e a olhou nos

olhos.– Só que algo maravilhoso aconteceu em minha vida e é sobre isso que eu gostaria de falar com você

– continuou ela, retribuindo o olhar.O clima permaneceu misterioso por alguns segundos. Sophie precisava reunir coragem para

confessar. Sentia estar correndo muitos riscos. Caso Léo decidisse deixá-la, perderia o rumo.– Você vai me dizer ou eu preciso chamar os universitários? – brincou ele, mas parecia sentir a

importância do que viria em seguida.– Promete me escutar até o fim antes de formar qualquer opinião?

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Ele achou aquela pergunta estranha. Será que os rumores de que ela se drogava eram verdadeiros?Teria dificuldade de ouvir aquilo. Os calmantes já haviam sido pesados demais para sua filosofia devida.

– Você está me deixando preocupado agora.– Eu que vou ficar se você não prometer – advertiu ela. – Tenho coisas sérias pra contar, mas

preciso que mantenha a mente aberta.Por causa do estresse, a palma da mão do jovem voltou a suar. Ela notou quando ele a secou na

bermuda.– Eu prometo, Sophie. Nunca dei motivo pra você duvidar do meu carinho. Ouvirei tudo que tem

pra me dizer.Aquilo a fez respirar com mais calma. Confiava nele. Podia ser sincera.– Na noite em que briguei com Anna na festa, eu fui sugada por uma força maior e levada pra outra

dimensão.Quando ouviu as palavras ditas em voz alta, percebeu o quanto de insanidade havia nelas. Ela

acreditava em tudo que tinha acontecido, porém compreenderia se ele a achasse uma descontrolada.– Como assim?Pelo menos ele ainda não saiu correndo.– Eu acordei em outro lugar, onde descobri ser uma princesa. Encontrei pessoas que me esperavam

há muito tempo e percebi que elas me amavam. Elas me admiravam. Por dentro e por fora.Léo tentava absorver cada palavra dita, mesmo já estando confuso.– Como percebeu que era uma princesa e estava em outra dimensão?As perguntas dele a tranquilizaram.Vai dar tudo certo. Precisa dar.– Tudo lá é mais colorido e vivo do que aqui. Você precisa ver, Léo! Lá existem flores de todos os

formatos que cantam, árvores de ouro puro, criaturas como fênix e fadas. Há tanta magia e tanta alegrianaquele local que ele nunca poderia ser parte da Terra. Aqui não é como lá. Conforme fui conhecendoesse lugar, aprendi que sou a herdeira do trono deles. Minha avó é a Rainha e ela me aguardava hámuito tempo.

– Você viu uma de suas falecidas avós por lá?Mesmo sendo uma situação estranha, as perguntas dele demonstravam interesse.– Na verdade, não. Ny, minha avó no Reino, não tem qualquer relação com meus pais. Mas,

quando a abracei pela primeira vez, tive certeza de que ela era da minha família.Ele deu um longo suspiro.– Dá pra ver que isso é bem confuso, né?– Claro que dá – disse Sophie, compreensiva. – Tenho vivido essa situação caótica há meses. De

início, achei que tinha enlouquecido, mas hoje sei que é real. Sei que é difícil acreditar em tudo, Léo. Sóque também sei que não estou louca.

Por favor, acredite que não estou louca, pensou, temendo o pior.

– E quando você sabe que está nesse lugar?

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Sophie ficou aliviada de ver que a conversa não terminara.– Acontece quando eu durmo. Eu me sinto sugada e tenho certeza de que não estou sonhando, mas

visitando o Reino.– Esse lugar não tem um nome? Você fica repetindo que estava no Reino – brincou ele.– Não, não tem, acredita? Essa é a parte mais estranha.– Claro – respondeu Léo, rindo. – O Reino não ter um nome é a parte mais doida de tudo isso que

você está me contando. Mais do que flores cantarolando e fênix, até mais do que a minha namorada serprincesa de algum lugar.

Ela riu também, mas logo se lembrou da seriedade do que estavam falando.– Durante meses, desejei voltar para aquele lugar e estar com aquelas pessoas. Pela primeira vez na

vida, me senti rodeada de carinho e amor puro. Isso foi incrível! Era como se eu começasse a serenxergada, por isso precisava ficar mais tempo por lá. Desejei muitas vezes não voltar pra casa. Queriadormir eternamente...

O clima voltou a se modificar.– Por isso tomou todos aqueles comprimidos...Ela suspirou.– Por isso tomei todos aqueles comprimidos.

Ela sabia o quanto Léo devia estar chateado. Sua tentativa de suicídio havia marcado muitas pessoas,inclusive o rapaz.

– Conversou sobre isso com mais alguém? – perguntou ele, receoso.Sophie não sabia se compartilhava aquela informação. O psicólogo conhecia seu estado e devia

classificá-la como uma variação da síndrome de Alice no País das Maravilhas. Era uma doença quealterava a realidade e trazia similaridades com o livro famoso. Os casos relatados pela psicologiaenvolviam alucinações, causando distorções da percepção visual da vítima. As pessoas viam objetospróximos parecerem desproporcionalmente pequenos, as horas pareciam passar muito devagar, e odoente percebia distorções no próprio corpo, acreditando que mudava de forma ou tamanho. Asíndrome era frequentemente associada a enxaquecas e ao uso de drogas psicoativas, como LSD. No seuReino, ela convivia com pessoas, formas e estilos diferentes. Se tivesse usado alguma droga,provavelmente teria uma visão parecida com a que tivera ao voar com Condx.

Quando parava para pensar, percebia que havia pontos semelhantes entre seu caso e a síndrome, masnão conseguia deixar de acreditar na existência do Reino e dos Tirus.

Eles não podiam ser frutos de sua imaginação.Além do mais, se os sintomas dela fossem tão característicos da síndrome, já teria sido

diagnosticada e poderia estar passando por outro tipo de tratamento.Como havia prometido a si própria dizer a verdade, resolveu arriscar:– Falei para o meu psicólogo há umas boas semanas. Não o julgue por não compartilhar com vocês.

Ele só está fazendo o seu trabalho e mantendo a minha privacidade.Pela primeira vez naquela conversa, ela viu Léo se alterar.

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– É sério que esse cara sabia que você andava vendo coisas e não nos contou? O mesmo psicólogoque falou com você antes de tentar se matar?

As veias saltavam no rosto magro dele, e Léo passava incessantemente as mãos no cabelo.– Eu não estava apenas vendo coisas, Léo. Estava realmente vivendo-as. Passei momentos lindos

com os seres e as pessoas desse lugar mágico, e também refleti bastante. Os aprendizados que tive nosúltimos meses foram muito intensos. O dr. David acabou me ajudando a enxergar isso de algumaforma. Até minha tentativa de suicídio me ajudou.

– Como você pode me dizer com essa calma que tomar um pote inteiro de comprimidos te ajudou?

Lágrimas escorriam dos olhos dele. Ela tentava ignorá-las, porque precisava vencer aquela noite. Sóassim completaria todos os ensinamentos de Mama Lala.

Sabia para que as cartas serviam. Começava a entender seu papel no Reino e na Terra. Só quandoterminasse aquela conversa compreenderia seu caminho.

– Até algumas semanas atrás, eu estava completamente decidida a não viver mais na Terra. Seminha tentativa não tivesse falhado, eu não teria percebido que na verdade quero continuar aqui.

– Você está me deixando confuso...– Eu entendo, mas em algum momento você vai precisar tentar me compreender. Eu não queria

mais viver, Léo. Mesmo sabendo que ia perder vocês. Eu estava disposta a isso. Consegue ver o estadoem que me encontrava?

As palavras pareciam perfurá-lo como lâminas de espadas. Após aquelas revelações, começara amostrar indignação.

Ele tinha medo de abrir a boca, então apenas aquiesceu.Ficaram mudos por um bom tempo.Sophie o encarou com olhos serenos, buscando perdão. Ele apoiava a cabeça nos joelhos e parecia

estar de olhos fechados.– Só porque você estava inconsciente, não quer dizer que era invisível. Nós sofremos junto com

você. Eu quase morri também naquela noite.– Eu estava doente, Léo.O garoto levantou a cabeça, e ela notou o rosto molhado.– Estava?Ela sorriu com ternura.– Somos apenas duas almas perdidas nadando num aquário. Você se lembra?– Todas as noites.

O momento em que os olhos se encontraram falou mais do que toda a conversa. Ela havia se perdidoem algum momento da vida. Ele a trouxera de volta para casa.

– Hoje eu preciso me despedir deles... – explicou ela.– Das pessoas desse Reino mágico onde até as flores cantam?Eles riram e perceberam que nunca seriam um casal normal. Ainda mais depois daquela noite.– Sim. Desse Reino onde as vozes não se calam.

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Ambos sorriram. Aquele parecia um conto de fadas diferente daqueles dos livros de capa duraempoeirados.

– Então, se tudo isso fez você perceber que precisa viver, eu gostaria de acompanhá-la no fim da suajornada.

O coração de Sophie parou por alguns segundos.Mas não havia mais dúvidas em sua mente.– Porque somos duas almas perdidas...– Porque é você.

Sophie apagou a luz do quarto, os dois se deitaram na cama e encararam o teto. A escuridão osenvolveu conforme suas mãos se entrelaçaram.

O sono magicamente tomou conta do corpo de ambos.E o grito da fênix foi ouvido.

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aminhou a passos lentos pelo longo corredor de pedras que levava ao portão do castelo musical.O mesmo trajeto que percorrera em sua primeira visita ao Reino.

Sophie usava pela primeira vez um vestido rodado de baile com tecido escuro, lembrando aquelesusados por atrizes de cinema em festas de premiação. O tule preto lhe cobria apenas um ombro,terminando em um laço, e a saia rodada cobria as pernas de modelo. O cabelo estava solto em cachosbem mais suaves do que o normal, mas ela ainda sentia o peso da minicartola na lateral esquerda dacabeça. Para não perder o costume, tocou-a, notando as três pontas de sua coroa.

Era uma princesa.Nunca se esqueceria daquilo.Mesmo conhecendo o lugar, sabendo o que e quem a encontraria do outro lado daquela porta, agora

caminhava de uma forma diferente. Um jovem com smoking marrom, gravata-borboleta e cartolavermelha seguia ao seu lado. Seus dedos continuavam entrelaçados, e ela tentava entender como erapossível que ele estivesse no Reino junto com ela.

Quando atravessou o portão guardado por dragões de pedra, aqueles que tanto amava apareceram.Sycreth vinha caminhando pela esquerda, usando um bonito vestido de gala e as tradicionais asas na

cartola. Sorria abertamente e, quando trocaram olhares, ficou claro que todos sabiam que ela tinhacompletado sua verdadeira missão.

Phix e Jhonx vinham ao lado usando trajes roxos com acessórios de tonalidade azul-clara. OMinistro a aplaudia conforme andava a passos largos. Já o gato estalava os dedos do mesmo jeito quehavia feito quando se conheceram. E então ela notou.

As flores cantavam!A melodia sussurrada voltava a invadir todos os cantos possíveis e, quando arriscou olhar para o

companheiro, pôde notar o deslumbre dele.Aquela que a menina tanto esperava vinha acompanhada de uma pessoa também muito especial.

Sua avó e Mama Lala caminhavam como duas senhoras dignas de receberem o título de realeza.Surpreendeu-se ao ver a vidente produzida ao lado da majestade. Seu último encontro com Ny resultaraem mágoa. Sentia saudades da Rainha.

– Minha família...Seu sussurro ecoou para todos os lados e foi repetido pelas flores próximas. A realeza, seus amigos

dos céus e todos os Tirus reuniram-se ao redor do casal.– Estamos orgulhosos! – exclamou Mama Lala, quebrando a expectativa ampliada pelo silêncio da

comunidade.

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– Estamos muito orgulhosos – complementou a avó, tomando a dianteira para segurar as mãos da

neta.As duas estavam frente a frente. Sophie sentiu o carinho da senhora encantadora.– Você se tornou uma linda mulher nesta jornada.– Não foi fácil – confessou a princesa.– Não era para ser.As duas sorriram.– O senhor deve ser o anjo da guarda dela na Terra – disse a Rainha, voltando a atenção para o

rapaz.Léo ainda não dissera uma palavra desde que tinha sido sugado para o Reino junto com Sophie.– É uma honra estar aqui – balbuciou ele, tentando entender se tudo aquilo era real.Tinha vontade de sair tocando tudo e todos para confirmar se aquilo não era mesmo um sonho.

Sophie seria mesmo a princesa do Reino mágico? Uma dimensão em que havia flores cantantes?– A honra é nossa. Não podemos trazer qualquer um para esta dimensão, apenas quem tem boa

alma. E a sua é boa demais para ser ignorada.O garoto sorriu e aquiesceu humildemente. A jovem sentia-se completa com a experiência. Se as

flores haviam se fortalecido e as pessoas estavam felizes era porque o círculo de pedras das pixies forafinalmente limpo. No final, o que Sophie mais queria era não prejudicar aquele povo.

– Lamento por não ter sido a melhor sucessora para seu trono – admitiu Sophie.– Você sempre será a melhor sucessora para ele.Os corações de ambas sossegavam.– Está preparada, alteza? – perguntou o gato com a voz grave.Léo soltou um palavrão ao ouvir o felino se pronunciar, gerando uma risada coletiva.Sophie percebeu que precisaria se apresentar perante os Tirus. Os habitantes daquele santuário

precisavam entender seus próximos passos.– Nunca será fácil – consolou-a o Ministro, percebendo a insegurança no olhar dela. – Mas você

sempre poderá contar conosco para tomar conta deles.Ela sabia.Precisava pensar no seu bem, mas tinha total consciência de que a Guardiã, o Ministro, a Rainha, a

vidente e todos os outros continuariam a fazer um excelente trabalho.Sophie brilhava, e Léo notou. Da sua pele jorrava uma luz pouco natural, porém reconfortante,

como se a presença dela fosse sagrada. E, para aquelas almas, era mesmo.– As cartas não mentem – disse a bruxa, segurando um cetro parecido com o de Jhonx.– E você fez por merecer sua presença aqui – finalizou a Guardiã abraçando-a. – Nunca se esqueça

de nós.A jovem loira caminhou até ela e pendurou um medalhão muito familiar em seu pescoço. A árvore

desenhada no formato da letra “T” brilhava em seu colo, reluzindo ainda mais o brilho do ambiente.Sophie pôde notar que a protetora dos segredos usava uma joia igual e sentiu-se grata pelo mimo. Pelamemória. Aquele medalhão era o símbolo de uma eterna parceria.

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– Minha Guardiã dos segredos, eu gostaria de agradecer e fazer um último pedido – começouSophie, com lágrimas nos olhos.

– O que estiver ao meu alcance.– Gostaria de pedir que os segredos deste Reino não sejam mais guardados.Sycreth sorriu ao entender.– Você gostaria então que...– Gostaria que você os narrasse. Gostaria que registrasse para sempre essa história e, por meio desse

registro, deixasse as portas abertas para todos que quiserem visitar esta dimensão. Pessoas que precisamdeste mundo, independentemente de nós.

– O prazer será meu.

Chegara o momento.Sentia-se preenchida pela presença de todos de uma forma divina. Queria estar com aqueles que

tanto a amavam.Sophie caminhou até as escadas e todos a acompanharam. Sentou-se sutilmente nos degraus,

deixando o vestido esparramar. Acompanhou os passos de Léo e o viu sentar-se ao lado do Ministro.Notou os olhares curiosos dos Tirus em direção ao garoto e imaginou o choque que deviam sentir. Erapreciso esclarecer tudo.

– Devo ser a princesa menos convencional das histórias dos bardos.Todos riram.– Mas sei que sou a mais feliz deste e de outros mundos.Eles sabiam.– Só porque construímos uma fonte de achocolatado – acrescentou o gato Jhonx.Mais risadas foram ouvidas.– E quem não seria feliz com algo assim? – perguntou Sophie.Eles gargalharam.– Quase um ano atrás apareci na vida de vocês. Ressurgi de meu isolamento terrestre e vim com a

promessa de reinar e suceder minha querida avó.As centenas de cartolas continuaram imóveis, ouvindo-a.– Conheci Mama Lala e descobri que precisava me conhecer para ser digna de salvar este Reino.

Mas algo aconteceu durante os últimos meses de descoberta. Percebi que vocês nunca precisaram sersalvos. Eu era a única que estava perdida e, com a ajuda de vocês e de outras pessoas que não estãoaqui, consegui me redescobrir. Aprendi a me amar e a entender a essência de ser um Tiru.

As flores sussurravam uma melodia suave.– Um Tiru é capaz de amar mais do que tudo. Capaz de ver além da superfície. Hoje sei que sou

capaz disso. De amar e de enxergar. Graças a vocês, sou outra pessoa. Seria capaz de ser uma Rainha.Eles entendiam.A redescoberta de Sophie a levava para mais perto da Terra. Havia toda uma vida que não seria

capaz de deixar para trás.

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– Eu nunca vou abandoná-los e sei que vocês sempre pensarão em mim. Talvez anos se passem.Pode ser que nunca se lembrem de que um dia era para eu ser a Rainha deste mundo. Mas para sempreme recordarei deste momento e do carinho e respeito que dividimos, apesar de sermos de mundosdiferentes. Viemos da mesma força maior. E ela nos mantém unidos.

Ouviu por três vezes um “viva” coletivo. O som explodia como fogos de artifício.– Viva! Viva! Viva!Sophie queria viver.Aquela havia sido uma jornada para ela. E também para todos os envolvidos em sua história. Antes

de realmente se despedir, sentiu que precisava recitar mais algumas palavras, dizer o que haviaaprendido. E faria isso cantando.

– Gostaria que as flores acompanhassem meus últimos dizeres – pediu a princesa.– Os últimos por enquanto – completou a avó.A voz melodiosa de Sophie encantou todo o Reino:– Se você sonhar, deixe acontecer. Respire. Seja mais. Seja você. Onde estiver, deixe acontecer. Que é melhor voar.

Sendo mais sendo você.Condx e a Fênix abriram as asas ao seu lado.– Não procure esse jeito ou aquele jeito de ser, se o que importa é o que mora dentro de você. Quando falar o

sentimento, ouça o seu coração. Aceite suas falhas, seus medos e veja beleza na imperfeição.Léo a encarou extasiado.– Não se ocupe com o passado ou com o que está por vir. Esteja no momento, que é melhor viver do que existir.

Esqueça o que te disseram. Julgamentos são banais diante de tudo o que é maior, e você é capaz.Quando lançou um último olhar para seus companheiros, sentiu os dedos do rapaz novamente se

entrelaçarem nos seus e ouviu um coro cantar:– Onde estiver... Deixe acontecer... Que é melhor voar... Sendo mais... Você.A fênix singrou, deixando para trás seu som enérgico.Sophie voltava para seu verdadeiro mundo. Ele poderia não ser tão mágico e lindo, mas ela podia

admirar suas belezas imperfeitas. Sempre fora uma linda boneca quebrada.Que acabara de se consertar.

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ophie abriu os olhos e viu de novo o velho e querido teto.Tudo continuava no mesmo lugar. A televisão, a escrivaninha, os livros, o ventilador, o pôster

do Robert De Niro e até o rapaz deitado ao seu lado.Quando o pensamento voltou à realidade, temeu ter vivido a experiência tocante apenas com os

seres mágicos. No entanto, lembrava-se da presença do rapaz e da expressão maravilhada dele. Nãoacreditava ter sido uma brincadeira de sua mente. Era real.

Recordava-se de Léo no Reino, então ele estivera lá. Teve certo receio de se virar e encará-lo. Era aprimeira vez que compartilhava aquela experiência com alguém.

Sentiam a respiração um do outro. Sabiam que estavam acordados. Tinham passado a noite juntos.Amaram-se intensamente.

Léo virou o corpo de lado e a abraçou dizendo:– Esta noite foi maravilhosa...Alívio. Felicidade.Sim, aquela noite havia sido.

A ruiva, antes solitária e cinzenta, tornara-se uma mulher capaz de refletir todas as cores.Virando-se de lado e encaixando-se no abraço dele, ela pôde sentir algo pesado cair no travesseiro

por conta da movimentação de seu pescoço. Sentindo o objeto gelado na mão, percebeu que era omedalhão presenteado por Sycreth e fechou os olhos, grata por ter descoberto uma razão para lutarcontra sua escuridão.

Ao abrir os olhos, viu sua enciclopédia alinhada na prateleira mais alta do quarto.Algo chamou a sua atenção.– Porque do alto é possível saber a verdade. Tudo que vem do céu é mais forte.Os exemplares estavam embaralhados e havia cinco deles em posições diferentes. Os fascículos com

as letras “T”, “I”, “R” e “U” estavam fora de ordem.Uma palavra se formara.Sua vida se modificara por causa dela.Por causa de um povo mágico.Por causa do Reino das vozes que não se calam.

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PLAYLIST DAS MÚSICAS:

Royals – Lorde

Aerials – System of a Down

Flores – Sophia Abrahão

Losing My Religion – REM

What a Wonderful World – Louis Armstrong

Wonderwall – Oasis

While My Guitar Gently Weeps – The Beatles

Wish You Were Here – Pink Floyd

Home – Edward Sharpe and The Magnetic Zeros

É você – Sophia Abrahão

Se você sonhar – Sophia Abrahão

BANDAS CITADAS:

NirvanaRamonesAC/DC

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Copyright © 2014 by Carolina Munhóz e Sophia Abrahão

Direitos desta edição reservados àEDITORA ROCCO LTDA.Av. Presidente Wilson, 231 – 8º andar20030-021 – Rio de Janeiro – RJTel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) [email protected]

Esta é uma obra de ficção. Personagens, incidentes e diálogos foram criados pela imaginação dasautoras e sem a intenção de aludi-los como reais.Qualquer semelhança com acontecimentos reais ou pessoas, vivas ou não, é mera coincidência.

Gerente editorialANA MARTINS BERGIN

Editores assistentesELISA MENEZESLARISSA HELENAMANON BOURGEADE (ARTE)MILENA VARGASVIVIANE MAUREY

AssistentesGILVAN BRITOSILVÂNIA RANGEL (PRODUÇÃO GRÁFICA)

RevisãoSOPHIA LANGWENDELL SETUBAL

Coordenação Digital

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LÚCIA REIS

Assistente de Produção DigitalJOANA DE CONTI

Revisão de arquivo ePubCECILIA B. CAVALCANTI

Edição Digital: agosto 2014

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CIP-Brasil. Catalogação na Publicação.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M938rMunhóz, Carolina

O reino das vozes que não se calam [recurso eletrônico] / Carolina Munhóz, Sophia Abrahão. - 1. ed. - Rio dejaneiro : Fantástica Rocco, 2014.

recurso digitalISBN 978-85-68263-02-0 (recurso eletrônico)

1. Ficção infantojuvenil brasileira. 2. Fantasia - Ficção. 3. Livros eletrônicos. I. Abrahão, Sophia. II. Título.

14-14334 CDD: 028.5 CDU: 087.5

O texto deste livro obedece às normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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AS AUTORAS

CAROLINA MUNHÓZ é jornalista e autora de três outros livros de fantasia, além de integrante domaior site da série Harry Potter no Brasil, o Potterish, e do podcast RapaduraCast. Eleita a melhorescritora pelo Prêmio Jovem Brasileiro de 2011, destacou-se em diversos veículos de imprensa e mídiassociais, conquistando o público juvenil com sua escrita instigante e sensível.

CONHEÇA MAIS SOBRE A AUTORA EM:www.carolinamunhoz.com | @carolinamunhoz

SOPHIA ABRAHÃO é atriz, modelo e cantora. Atuou em diversas novelas de grandes redes de TVnacionais e também no filme Confissões de adolescente. Em 2012 e 2013 recebeu várias premiações, entre

elas o prêmio Capricho Awards como melhor atriz nacional e melhor blog. Personalidade de grandedestaque na mídia, agora Sophia ingressa no mundo da literatura.

CONHEÇA MAIS SOBRE A AUTORA EM:www.sophiaabrahao.com.br | @sophiaabrahao