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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutandopor dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."

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DIVA

JOSÉ DE ALENCAR

1864

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A

G.M.

Envio-lhe outro perfil de mulher, tirado ao vivo, como o primeiro. Deste, asenhora pode sem escrúpulo permitir a leitura à sua neta.

É natural que deseje conhecer a origem deste livro; previno pois sua pergunta.

Foi em março de 1856. Havia dois meses que eu tinha perdido a minha Lúcia;ela enchera tanto a vida para mim, que partindo-se deixou-me isolado nestemundo indiferente. Senti a necessidade de dar ao calor da família uma novatêmpera à minha alma usada pela dor.

Parti para o Recife. A bordo encontrei o Dr. Amaral, que vira algumas vezesnas melhores salas da corte. Formado em medicina, havia um ano apenas, comuma vocação decidida e um talento superior para essa nobre ciência, ele ia aParis fazer na capital da Europa, que é também o primeiro hospital do mundo, oestádio quase obrigatório dos jovens médicos brasileiros.

Amaral, moço de vinte e três anos, era uma natureza crioula de sangueeuropeu, plácida e serena, mas não fria; porque sentia-se em torno dela o doce ecalmo calor das paixões em repouso. Minha alma magoada devia pois achar,nesse contato brando e suave, a delícia do corpo alquebrado, recostando-se emleito macio e fresco.

Quanto a mim, Lúcia desenvolvera com tanto vigor em meu coração aspotências do amor, que cercava-me uma como atmosfera amante, umaevaporação do sentimento que exuberava. Havia em meu coração tal riqueza deafeto que chegava para distribuir a tudo quanto eu via, e sobejava-me ainda.

Essa virtude amante, que eu tinha em toda a minha pessoa, exerceu sobre meucompanheiro de viagem influência igual à que produzira em mim sua grandeserenidade. Ele fora um repouso para minha alma; eu fui um estímulo para asua.

Sucedeu o que era natural. Desde a primeira noite passada a bordo, fomosamigos. Essa amizade nascera na véspera, mas já era velha no dia seguinte. Asconfidências a impregnaram logo de um aroma de nossa mútua infância.

Separamo-nos em Pernambuco, apesar das instâncias de Amaral para que euo acompanhasse à Europa. Durante dois anos, nos carteamos com umapontualidade e abundância de coração dignas de namorados. Em sua volta estevecomigo no Recife; escrevi-lhe ainda para o Rio; mas pouco tempo depois minhas

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cartas ficaram sem resposta, e nossa correspondência foi interrompida.

Decorreram meses.

Um belo dia recebi pelo seguro uma carta de Amaral; envolvia um volumosomanuscrito, e dizia:

“Adivinho que estás muito queixoso de mim, e não tens razão.

Há tempos me escreveste, pedindo-me notícias de minha vida íntima: desdeentão comecei a resposta, que só agora concluí: é a minha história numa carta.Foste meu confidente, Paulo, sem o saberes, a só lembrança da tua amizadebastou muitas vezes para consolar-me, quando eu derramava neste papel, comose fora o invólucro de teu coração, todo o pranto de minha alma.”

O manuscrito é o que lhe envio agora, um retrato ao natural, a que a senhoradará, como ao outro, a graciosa moldura.

P.

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I

Emília tinha quatorze anos quando a vi pela primeira vez.

Era uma menina muito feia, mas da fealdade núbil que promete à donzelaesplendores de beleza.

Há meninas que se fazem mulheres como as rosas: passam de botão à flor:desabrocham. Outras saem das faixas como os colibris da gema: enquanto nãoemplumam são monstrinhos; depois tornam-se maravilhas ou primores.

Era Emília um colibri implume; por conseguinte um monstrinho.

Seu crescimento fora muito rápido; tinha já altura de mulher em talhe decriança. Daí uma excessiva magreza: quanta seiva acumulava aquele organismoera consumida no desenvolvimento precoce da estatura.

Ninguém caracterizava com mais propriedade esse defeito de Emília do que amenina Júlia, sua prima. Quando as duas se agastavam, o que era frequente, Júliaa chamava de esguicho de gente.

Não parava aí a fealdade da pobre Emília. A óssea estrutura do talhe tinha nasespáduas, no peito e nos cotovelos, agudas saliências, que davam ao corpo umaaspereza hirta. Era uma boneca, desconjuntada amiúdo pelo gesto ao mesmotempo brusco e tímido.

Como ela trazia a cabeça constantemente baixa, a parte inferior do rostoficava na sombra. A barba fugia-lhe pelo pescoço fino e longo; faces, não astinha; a testa era comprimida sob as pastas batidas do cabelo, que repuxavamduas tranças compridas e espessas.

Restava apenas uma nesga de fisionomia para os olhos, o nariz e a boca. Estarasgava a maxila de uma orelha à outra. O nariz romano seria bonito em outrosemblante mais regular. Os olhos negros e desmedidamente grandes afundavamna penumbra do sobrolho sempre carregado, como buracos, pelas órbitas.

A respeito do trajo, que é segunda epiderme da mulher e pétalas dessa floranimada, o da menina correspondia a seu físico.

Compunha-se ele de um vestido liso e escorrido, que fechava o corpo comouma bainha desde a garganta até os punhos e tornozelos; de um lenço enrolado nopescoço; e de umas calças largas, que arrastavam, escondendo quase toda abotina.

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Emília ainda assim não parecia satisfeita. Estava constantemente a encolher-se, fazendo trejeitos para mergulhar o resto do pescoço e o queixo no talho dovestido, e sumir as mãos no punho das mangas. Caminhando, dobrava as curvas afim de tornar comprida a saia curta; sentada, metia os pés por baixo da cadeira.

Tinha um cuidado extremo em puxar para a frente as longas tranças docabelo, que andavam sempre a dançar-lhe, como antolhos pelo rosto. Se lhefalava alguma pessoa de intimidade da família, não lhe voltava as costas comofazia com os estranhos; mas sentia logo uma necessidade invencível de coçar acabeça, acompanhada por um repuxamento dos ombros. Eram modos deatravessar o braço diante do rosto e furtar o queixo, escondendo assim o que lherestava de fisionomia.

Muitas vezes o Sr. Duarte zombava com terna ironia desses biocos da filha:

– Deixa estar, Mila!... dizia ele abraçando-a. – Vou mandar fazer para ti umsaco de lã com dois buracos no lugar dos olhos.

Tal era Emília aos quatorze anos.

Entretanto, quem soubera a anatomia viva da beleza, conhecera que havianessa menina feia e desengraçada o arcabouço de uma soberba mulher. Oesqueleto ali estava: só carecia da encarnação.

Ainda me lembro da cólera infantil de Emília, quando, a primeira vez queestive com ela, eu a perseguia de longe chamando-a:

– Minha noiva!

– Feio!... dizia-me então.

E pronunciava essa palavra como se ela simbolizasse a maior injúria possível.

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II

Começara o verão de 1855.

Uma manhã apareceu Geraldo em minha casa. Entrou, conforme o seucostume, estrepitosamente, e cantarolando não sei que ária do seu repertórioitaliano.

– Vai ver minha irmã! disse passando por mim e sumindo-se pelo interior dacasa.

Voltou logo com o charuto aceso:

– Tua irmã? perguntei sem compreendê-lo.

– Sim, Mila, que amanheceu com uma febre danada.

– Ah! É como médico que me pedes para ir ver tua irmã?

– Pois então!... Vamos; veste-te; o carro está na porta à espera.

– Mas, Geraldo... Foi tua família que mandou chamar-me?

– Foi meu pai.

– A mim, designadamente?

– E esta!... Mandou-me chamar um médico; tu és um... logo!

– Quem sabe! Talvez não lhe inspire confiança.

– Ora Deus!... Ele não entende disso!

Ao entrar no carro, Geraldo despediu-se:

– Não vens?

– Para quê? Não faço falta lá. Até logo!

Geraldo pertencia à classe dos homens a quem lateja a moleira toda a vida, evelhos já, são ainda meninos de cabelos brancos. Não te admire portanto aleviandade desse moço.

Cheguei à chácara do Sr. Duarte à uma hora da tarde.

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A família estava na maior aflição. A menina ardia em febre desde a véspera,queixando-se de fortes pontadas sobre o coração. Todos os sintomas pareciamindicar uma afecção pulmonar.

No aposento reinava uma frouxa claridade que mal deixava distinguir osobjetos. Emília prostrada no leito, sob as coberturas de lã, parecia inteiramentesopitada no letargo da febre. Sua tia, D. Leocádia, que fazia-lhe agora as vezes demãe, estava sentada à cabeceira.

– Minha senhora, disse eu, é necessário auscultar-lhe o peito.

– Então, Sr. doutor, aproveite enquanto ela dorme. Se acordar, nada a faráconsentir.

A senhora afastou a ponta da cobertura, deixando o seio da menina envoltocom as roupagens de linho.

Mal encostei o ouvido ao seu corpo, teve ela um forte sobressalto, e eu nãopude erguer a cabeça tão depressa, que não sentisse no meu rosto a doce pressãode seu colo ofegante.

O que passou depois foi rápido como o pensamento.

Ouvi um grito. Senti nos ombros choque tão brusco e violento, que me repeliuda borda do leito. Sobre este, sentada, de busto erguido, hirta e horrivelmentepálida, surgira Emília. Os olhos esbraseados cintilavam na sombra: conchegandoao seio com uma das mãos crispadas as longas coberturas, com a outra estendidasob as amplas dobras dessa espécie de túnica, ela apontava para a porta.

– Atrevido!... clamou o lábio eriçado de cólera e indignação.

Fiquei atônito. D. Leocádia pediu-me que saísse um momento. Ao retirar-me,o olhar da menina, repassado de um ódio profundo, acompanhou-me até quedesapareci na porta.

Com pouco o Sr. Duarte veio à sala.

– Peço-lhe mil desculpas, Sr. doutor, pelo que acaba de acontecer. Mila teveuma educação muito severa... Minha falecida mulher era nesse ponto de umrigor excessivo; muitas vezes fiz-lhe ver o inconveniente disso... Mas, Sr. doutor,V.S. bem sabe quanto as mães são zelosas de sua autoridade.

– Não se aflija, Sr. Duarte. Eu compreendi logo a razão do que se passou. Suafilha não estava prevenida... acordou sobressaltada...

– É verdade!

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– Demais, eu sou para ela quase um estranho. Havia, portanto, motivos desobra para o seu vexame. O recato é tão bela virtude em uma menina!

– Mas em minha filha é em tal excesso, que já parece vício.

– Mudará com a idade. Agora convém que V. S. a convença da necessidade deconsentir...

– Tanto que lhe pedi já e roguei! Não quer ouvir falar de semelhante coisa.

– É dos casos em que um pai deve interpor a sua autoridade.

– Oh! sinto que não teria ânimo! Nunca até hoje ralhei com minha filha. Comoo faria agora que a vejo tão doente?

– Não será talvez necessário recorrer a esse extremo. Por meios brandos!...

Duarte voltou ao quarto da filha.

Esse homem, que representa na família um papel importante pela suanulidade, é negociante; trabalhou toda a vida para enriquecer; depois de rico sóvive para ser milionário.

Essa febre nele não é ambição, mas destino. Quer a riqueza para seus filhos,parentes e amigos; para ele conserva a antiga mediocridade. Nunca até hoje o Sr.Duarte admitiu a menor alteração em seu sistema de vida, e nos hábitos dohomem pobre e laborioso, que fora.

A riqueza não o fez melhor nem pior; mudou de fortuna, não mudou decaráter, nem de sentimentos. O luxo, que desde muito tempo batia à porta de suavelha habitação, devia penetrá-la enfim, um belo dia, sem que ele tivesseconsciência disso. Quase se pode afirmar que o não percebeu. Para ele essagrande revolução doméstica não passava de uma questão de pagamento, eportanto da competência do seu caixa.

Em resumo, tem Duarte uma dessas naturezas essencialmente mercantis, quenascem predestinadas para o negócio, e só respiram livremente na atmosfera doarmazém. De resto, uma boa alma, metódica e fria, como deve ser uma almaaclimatada ao balcão desde a infância, e educada exclusivamente para o juro e aconta corrente.

Nessa alma, como nos canteiros regulares de um jardim, não brota a urze daspaixões, mas vem bem e com simetria a flor cultivada dos afetos calmos. Duarteama sua família e estima seus amigos com sinceridade, mas passivamente, seminiciativa. Capaz de qualquer sacrifício que exijam dele, nunca teve aespontaneidade do mais insignificante favor. Não oferece, mas também nãorecusa seu dinheiro, como sua amizade.

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O negociante voltou acabrunhado:

– Ela recusa! murmurou.

– Deste modo não sei o que faça. Entretanto a moléstia é grave.

– Por que não receita já?

– Não posso indicar um tratamento sem conhecer a moléstia.

– Pois, Sr. doutor, eu também não posso usar de rigor com Mila, porque sei queisso seria matá-la mais depressa.

Duarte deixou-se cair sobre uma cadeira, e sucumbiu à dor: as lágrimassaltaram-lhe dos olhos.

– O que me parece mais acertado, é chamar V. S. um médico de suaconfiança, habituado a tratar na família.

– Já não existe! exclamou com um soluço. Qualquer outro que venha meresponderá o mesmo que o senhor! Meu Deus! Condenado a ver morrer minhafilha, sem poder salvá-la.

– Bem, Sr. Duarte. Eu tratarei de sua filha.

A moléstia era realmente grave; nada menos do que uma pneumonia dupla.Tive de lutar contra a enfermidade rebelde e a tenacidade inflexível de umcaráter singular de menina, habituada a ver satisfeitas todas as suas vontades,como ordens imperiosas.

Emília tomara-me tal rancor, que não me deixou mais penetrar em seuaposento. Se adormecia, e eu advertido por Julinha ou por D. Leocádia mechegava ao leito, mal lhe tocava o pulso, ela acordava com sobressaltos,volvendo os olhos inquietos pelo aposento.

Ocultava-me então do lado da cabeceira, entre a parede e o cortinado, e daíesgueirava-me pela porta. Uma ocasião um olhar de Julinha traiu-nos; elasurpreendeu-me e gritou cobrindo o rosto:

– Deitem fora este homem!

D. Leocádia e o irmão se afligiam muito com os caprichos de Emília; mas nãotinham nem a força nem a vontade de contrariá-la, embora temessem a cadainstante que a minha susceptibilidade se ofendesse com aqueles modos ríspidos.

Mas o meu orgulho de médico principiante estava empenhado nessa cura. Eraela que devia me dar a consciência da minha força ou talvez o desengano de

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uma carreira. Foi ela que decidiu do meu futuro.

Nunca, até então, eu assumira a tremenda responsabilidade da conservação deuma vida, que um erro meu, um instante de hesitação, podiam sacrificar. E nãoera uma vida indiferente... Essa menina caprichosa, calma e impassível à dor,velando-se como as virgens mártires do cristianismo para morrer pudicamente...Essa menina inspirava-me não sei que estranho e vivo interesse.

Eu sentia, combatendo sua enfermidade, o que devem sentir os grandes artistastratando um assunto difícil; raiva e desespero, quando a consciência da minhafraqueza contra as leis da natureza me acabrunhava; júbilos imensos, quandomeu espírito, tirando forças da ciência e da vontade, arcava com a moléstia e asubjugava por instantes.

Uma vez perdi a esperança.

D. Leocádia dormitava extenuada à cabeceira do leito. Emília não dava maisacordo de si.

Aproximei-me; a máscara da morte cobria já aquele rosto diáfano. Sentei-meà borda do leito, e não pude reter as lágrimas que me saltaram em bagas dosolhos.

Santa virgindade das emoções, primeiros orvalhos do coração, que a aridez domundo tão depressa estanca! A quantos espetáculos pungentes não tenho euassistido depois com os olhos enxutos e o espírito sereno!

D. Leocádia abriu os olhos:

– Não há mais esperança, doutor?

Enxuguei as lágrimas envergonhado, e achei em mim uma energia nova.Lancei mão dos últimos recursos. Um mês arquei com a dissolução que invadiaesse corpo frágil, disputando às garras da morte os sobejos de vida, que lhefaltava devorar. Tinha, a pedido do Sr. Duarte, ficado em sua casa; e a isso, a essecuidado incessante de todas as horas e de todos os momentos, devo o resultadoque obtive.

Venci afinal. Mal sabia eu da influência que devia ter no meu destino essaexistência, cujos frouxos clarões, prestes a se apagarem, eu reanimara com oslumes de minha alma.

Emília entrou em convalescença. A gratidão do pai foi sincera; suarecompensa generosa. Aceitei a primeira e recusei a última.

– Por quê? me perguntarias talvez.

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Era como te disse o meu primeiro triunfo em medicina; trabalhei para elecomo o sacerdote de minha nova religião. Por um desses movimentosmisteriosos do coração que não se explicam, quis sagrá-lo unicamente à ciência,extreme e puro de todo o interesse pecuniário. Tal foi o motivo de minha recusa,e não mal-entendido pudor de receber a justa remuneração de tão nobre serviço.

Escrevi ao Sr. Duarte pouco mais ou menos o seguinte:

"Foi Deus quem salvou D. Emília; a ele devemos agradecer, o senhor a vida desua filha, eu minha felicidade.

Meu primeiro doente foi para mim como um primeiro filho. As emoções quesenti lutando com a moléstia, as angústias por que passei nas suasrecrudescências, o desespero de minha fraqueza nesses momentos, um pai odeve compreender.

Essas emoções só podiam ter uma recompensa. Já a recebi do meu coração.Foi a pura e santa alegria de restituir a vida querida, que me fora confiada.Substituí-la por outra, não seria generoso de sua parte, Sr. Duarte."

O negociante ainda me procurou, e insistiu, mas inutilmente. Afinal lhe disse :

– Eu conheço, Sr. Duarte, que faço uma violência à sua generosidade. Mas, emcompensação lhe prometo... Começo a minha vida; é possível que alguma vezme veja em embaraços. Nesse caso recorrerei ao senhor!

– Promete-me?

– Dou-lhe minha palavra.

Pouco tempo depois sabes que fui à Europa, onde me demorei perto de doisanos. Fizemos juntos até Pernambuco a viagem, de que nasceu a nossa boa esincera amizade. Se não me engano, em nossas conversas íntimas a bordo falei-te alguma vez dessa família, mas sem as particularidades que refiro agora.

Então ainda a luz intensa da paixão, que veio depois, não tinha debuxado, comoestereótipo nas lâminas do coração, a imagem viva dessa menina.

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III

Voltando da Europa, a primeira visita que recebi foi a do Sr. Duarte.

Tinha-me despedido dele e de sua família; nessa ocasião ainda, apesar dosesforços do pai, Emília não me quis aparecer. Também eu já não reparava navergonhosa esquivança da menina.

Visitando o negociante, vi ao entrar na sala uma linda moça, que nãoreconheci.

Estava só. De pé no vão da janela cheia de luz, meio reclinada ao peitoril, tinhana mão um livro aberto e lia com atenção.

Não é possível idear nada mais puro e harmonioso do que o perfil dessa estátuade moça.

Era alta e esbelta. Tinha um desses talhes flexíveis e lançados, que são hastesde lírio para o rosto gentil; porém na mesma delicadeza do porte esculpiam-se oscontornos mais graciosos com firme nitidez das linhas e uma deliciosa suavidadenos relevos.

Não era alva, também não era morena. Tinha sua tez a cor das pétalas damagnólia, quando vão desfalecendo ao beijo do sol. Mimosa cor de mulher, se aaveluda a pubescência juvenil, e a luz coa pelo fino tecido, e um sangue puro aescumilha de róseo matiz. A dela era assim.

Uma altivez de rainha cingia-lhe a fronte, como diadema cintilando na cabeçade um anjo. Havia em toda a sua pessoa um quer que fosse de sublime e excelsoque a abstraía da terra. Contemplando-a naquele instante de enlevo, dir-se-ia queela se preparava para sua celeste ascensão.

Às vezes, porém, a impressão da leitura turbava a serena elação da sua figura,e despertava nela a mulher. Então desferia alma por todos os poros. Os grandesolhos, velutados de negro, rasgavam-se para dardejar as centelhas elétricas donervoso organismo. Nesses momentos toda ela era somente coração, porque todaela palpitava e sentia.

Eu tinha parado na porta, e admirava: afinal adiantei-me para cumprimentá-la. Ouvindo o rumor dos meus passos, ela voltou-se.

– Minha senhora!... murmurei inclinando-me.

As cores fugiram-lhe. Ela vestiu-se como de uma túnica lívida e glacial: logo

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depois sua fisionomia anuviou-se, e eu vi lampejos fuzilarem naquela densidadede uma cólera súbita.

Fulminou-me com um olhar augusto e desapareceu.

Acreditas, Paulo, que essa moça que te descrevi fosse Emília, a menina feia edesgraciosa que eu deixara dois anos antes? Que sublime trabalho de florescênciaanimada não realizara a natureza nessa mulher!

Emília teria então dezessete anos. Sentia-se, olhando-a, a influência misteriosaque um espírito superior tinha exercido na revolução operada em sua pessoa. Otrajo, ainda nimiamente avaro dos encantos que ocultava, era de um moldesevero; mas havia, no gracioso da forma e na combinação do enfeite, uns toquesartísticos, que se revelavam também no basto trançado do luxuoso cabelo negro.

Voltei impressionado por essa visão de sala em pleno dia.

Se a transformação de Emília produzira em mim uma admiração grande,maior foi a humilhação que sofri com o seu desdém. Já não era uma menina;estava moça, e não me devia só a cortesia a que tem direito o homem delicado,devia-me gratidão.

– Talvez ignore! disse eu comigo.

Nos dias que se seguiram, surgiu alguma vez em meu espírito aquela imagemde moça; mas essa lembrança me incomodava.

Uma tarde encontrei-me com o irmão:

– Ia à tua casa! disse-me Geraldo.

– Pois vamos.

– Não. Já que te encontrei poupa-me essa maçada. Minha tia manda-te dizerque amanhã toma-se chá em sua casa. Julinha faz anos.

– Ah! D. Matilde?...

– Sim. Adeus.

–- Espera.

– Não posso. Ainda vou à chácara, e tenho de voltar para o teatro.

D. Matilde é casada com um irmão de Duarte. Seu marido viveconstantemente na fazenda, trabalhando para tirar dela os avultados rendimentosnecessários ao luxo que sua família ostenta na corte.

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Ainda moça, bonita e muito elegante, ela é perdida pelo cortejo e galanteio desala. Nunca a honra conjugal sucumbiu a essa fascinação, mas a casta dignidadeda esposa foi sacrificada sem reserva.

Sua casa nobre em Matacavalos é ponto de reunião diária para uma parte daboa sociedade do Rio de Janeiro. Todas as noites as salas ricamente adereçadasse abrem às visitas habituais. Nos domingos há jantar para um círculo maisescolhido. De mês em mês aparece um pretexto qualquer para um baile.

Não te falo desta casa somente por ter sido uma cena no drama de minha vida.Foi também, como soube depois, uma escola para Emília.

Essa moça tinha desde tenros anos o espírito mais cultivado do que faria suporo seu natural acanhamento. Lia muito, e já de longe penetrava o mundo comolhar perspicaz, embora através das ilusões douradas. Sua imaginação fora atempo educada: ela desenhava bem, sabia música e a executava com mestria;excedia-se em todos os mimosos lavores de agulha, que são prendas da mulher.

– Eu nasci artista!... me disse ela muitas vezes sorrindo.

E realmente, havia em sua alma a centelha divina que forma essas grandesartistas de sala, que nós chamamos senhoras elegantes: artistas que porcinzelarem imagens vivas e talharem em seda e veludo, não são menos sublimesque o escultor quando talha no mármore a beleza inanimada.

Mas faltava ainda à inteligente menina o tato fino e o suave colorido que opintor só adquire na tela e a mulher na sala, a qual também é tela para o painelde sua formosura. Foi nas reuniões de D. Matilde que Emília deu os últimostoques à sua especial elegância.

Não copiou, nem imitou. Começando a aparecer em casa da tia pouco tempoantes da minha volta, ela observava. Seu bom gosto se apurou; um belo dia surgiuoutra; a elegância teve nela um molde seu, próprio e original.

Quando aos dezoito anos ela pôs o remate a esse primor de escultura viva epoliu a estátua de sua beleza, havia atingido ao sublime da arte. Podia então, edevia, ter o nobre orgulho do gênio criador. Ela criara o ideal da Vênus moderna,a diva dos salões, como Fídias tinha criado o tipo da Vênus primitiva.

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IV

Poucas entradas tinha eu em casa de D. Matilde naquela época. O convite mesurpreendeu; e ainda mais quando no dia seguinte recebi um cartão de visita dasenhora com palavras afetuosas.

Tive mais tarde a explicação dessa e muitas outras finezas que recebi de todaaquela família. O pai e as tias de Emília queriam, com as repetidas provas de suabondade, apagar qualquer ressentimento que pudessem gerar no meu espírito osmodos ríspidos da menina, agora moça. Muitas vezes procuravam desculpá-lacom seu excessivo acanhamento.

O baile foi esplêndido. D. Matilde triunfava, no meio de suas rivais e aos olhosde seus adoradores.

Lá estava Emília.

Ainda a flor agreste de sua gentileza não se havia aclimatado à atmosfera dobaile. Ela perdia à noite e no meio do salão ornado pelas mais elegantesformosuras da corte. Não tinha ali nem a suave limpidez do desalinho, em que eua vira antes; nem o fulgor radiante, que tanto admirei depois. Era o crepúsculomatutino de uma rosa, que abotoara à noite e ainda não desatara ao sol.

Estive conversando com D. Leocádia algum tempo; quando me ergui, elaperguntou:

– Não dança, doutor?

– Pode ser, minha senhora.

– Dance!... Olhe! Vá tirar Mila.

E a boa senhora mostrou a sobrinha sentada a alguma distância.

Aproximei-me. Já o baile tinha perdido a simetria da entrada, no seio daconfusão que é o seu maior encanto: a música, as vozes, os risos, os ruge-rugesdas sedas, os burburinhos da festa, enchiam o salão.

No meio dessa multidão jovial, Emília tinha uma atitude de corça arisca,eriçando os velos macios e estremecendo aos rumores vagos da floresta. Amenor palavra, um vestido que roçava, uma sombra a projetar-se a assustavam.Contudo, às vezes à força de vontade, ela arrancava dessa mesma timidezaudácias ingênuas, que não teria uma senhora: erigia a fronte com altivosdesdéns, e fitava em face qualquer homem que a olhava.

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Cumprimentei-a. Inclinou a fronte, não para corresponder-me, mas paraesquivar-me o rosto. Quando lhe pedi a contradança, creio que ela fez um grandeesforço, porque o seu pescoço de cisne perdeu a doce flexibilidade: ergueu acabeça com certa aspereza.

Pôs os olhos em meu rosto, e correu-me um olhar frio e gelado, que metransiu.

– Não, senhor – disse com a voz seca e ríspida.

Ainda eu estava imóvel diante dela, quando chegou-se pressuroso oBarbosinha:

– Já tem par para esta contradança, D. Emília?

– Ainda não tenho, não senhor; respondeu ela com a pronúncia clara evibrante.

– Então, faz-me a honra de dançar comigo?

Levantou-se para tomar o braço do cavalheiro. Eu tive uma vertigem decólera; era a segunda vez que essa menina humilhava-me.

D. Leocádia passou nessa ocasião.

– Ah! Não quis dançar com Mila?

– Ao contrário, não lhe mereci essa fineza.

– Pois ela recusou? disse a senhora contrariada.

– Naturalmente já tinha par, D. Leocádia.

Emília, que se colocara para a quadrilha a pequena distância, voltou-se rápidaao ouvir as minhas palavras. Um fino sorriso de ironia passou-lhe fugace entre oslábios.

– Vou preveni-la para a seguinte – me havia respondido a tia.

– Perdão, D. Leocádia! Teria com isso o maior prazer, mas... eu me retiro já.

– Deveras, doutor? atalhou D. Matilde, que atravessava o salão. – Dê-me o seubraço. Então, como é isso? O senhor já se retira?

– Estava nessa intenção, D. Matilde; mas agora admira-me como a pude ter.

– Ah! É cata-vento assim?

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– Quem deixará de o ser, quando o sopro vem perfumado da mais linda boca?

– Eu devia puni-lo por ser tão lisonjeiro, obrigando-o a dançar comigo estacontradança...

– Isso seria a minha recompensa.

– Parece-lhe?... Pois vou dar-lhe outra mais doce.

D. Matilde fez com o leque um aceno à filha:

– Julinha?

– Mamãe!

– Dança com o Sr. Amaral, e vê se consegues fazê-lo esquecer as horas.

– Ao menos a punição é generosa: foge-me o original, mas deixa-me a cópiasua.

Isto foi dito enquanto a menina trocava algumas palavras com uma amiga. D.Matilde esperava o meu cumprimento, e o agradeceu com terno sorriso:

– Antes que me esqueça, doutor – disse-me ela –, nós estamos em casa todasas noites que não forem de baile ou teatro lírico; e nas quintas-feiras comespecialidade.

A prima e companheira de infância de Emília era uma moça muito galante.Parecia-se com a mãe somente no rosto: o talhe não o tinha, nem alto nemesbelto, mas admiravelmente torneado.

Julinha nunca foi loureira; faltava-lhe para isso o orgulho de sua formosura, e ainveja da formosura alheia. Mas educada na sala, aos raios da galanteriamaterna, perdera cedo o casto perfume. Desde menina habituou-se a seramimada ao colo e beijada por quantos frequentavam a casa.

Deus a tinha feito nimiamente boa e compassiva; por isso, quando chegou aidade do coração, ela não soube recusar ao amor as carícias, que foram brincosda infância. Suas afeições eram sempre sinceras e leais; nunca traiu nem porpensamento o seu escolhido; mas também se este a esquecia e mudava, elafacilmente se consolava, porque em naturezas como a sua o amor não cria raízesprofundas, e só vegeta à superfície d'alma.

Continuei a frequentar a casa de D. Matilde. Ali, durante um mês, Emília nãoperdeu ocasião de crivar-me o coração com os alfinetes de sua cólera feminina.

Uma noite de reunião, servia-se o chocolate. Ela ia tomar uma xícara da

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bandeja que passava, quando o criado, sem perceber o movimento, seguiu. Sevisses o meigo império do olhar que me lançou, compreenderias por que, apesarde meu ressentimento, apressei-me a servi-la.

Entretanto, quando lhe ofereci o chocolate, recebeu-o inteiramente distraída,sem me olhar.

– Muito agradecida! disse-me, atirando a palavra da ponta do beiço o maislindo, e também o mais desdenhoso.

Retirei a mão, julgando que ela sustinha entre os dedos delicados a xícara; masesta acabava de espedaçar-se no chão manchando a saia achamalotada de seurico vestido de seda azul.

Emília ficou impassível. Volvendo lentamente o rosto, atirou-me por cima doombro estas duas palavras que vieram afogadas no escárnio:

– Com efeito!... – e retirou-se da sala.

Ela tinha deixado cair a xícara de propósito; mas naquela ocasião estava bemlonge de suspeitá-lo. Lancei toda a culpa sobre mim; e tive-me em conta domaior desastrado.

Procurei-a: já tinha partido. Na próxima quinta-feira, logo que cheguei, dirigi-me a ela para lhe pedir perdão de minha inadvertência:

– Peço-lhe mil desculpas, minha senhora, pelo que sucedeu!

– Quando?

– Quinta-feira passada.

– Não me lembro.

– Aquela minha distração de deixar cair a xícara...

– Ah! foi o senhor?... Nem reparei! disse-me com a maior indiferença.

Esta palavra me ofendeu mais que tudo quanto me tinha feito essa moça. Nemsequer com seu ódio ela se dignava me distinguir!

De dia em dia a sua aversão tornou-se mais clara. Ela procurava sempreesquivar-se ao meu cumprimento, e quando de todo não podia evitá-lo, recebiacom fria altivez. Se estava ao piano e eu chegava, erguia-se, deixando suspensosos que a ouviam tocar ou cantar. Inventava então qualquer dos pretextos em queera fértil seu espírito vivaz; porém o verdadeiro motivo deixava-o bemtransparente. Se eu me aproximava do círculo onde ela conversava, chamado

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por alguma palavra amável de D. Leocádia, calava-se imediatamente, e noprimeiro momento favorável eclipsava-se.

Duas ou três vezes, chegando à casa de D. Matilde, achei-a entretida a brincarcom a prima e algumas amigas. Vendo-me entrar na sala, levantou-sebruscamente, e despediu-se das outras surpresas:

– Adeus! Adeus!... Vamos, Geraldo!

Tomava o chapéu; o irmão contrariado a seguia; entravam no carro, e partiampara a chácara, apesar de ter ela prometido passar o dia com Julinha, e serem jáhoras do jantar.

Tudo isso me convenceu, afinal, que o procedimento de Emília não era filhode uma simples antipatia, mas de um propósito firme de humilhar-me.

Parecia um sistema de perseguição acintosa. O instinto de defesa acordou emmim, e com ele o desejo da vingança. De longe e disfarçadamente comecei aestudar essa moça, resolvido a descobrir o seu ponto vulnerável.

Desde que a Duartezinha, como a chamavam nos salões, apareceu nasreuniões de D. Matilde, foi logo cercada por uma multidão de admiradores. Suanobre altivez os mantinha em respeitosa distância. Ela conservava sempre nasala, como na intimidade, um mimo de orgulhosa esquivança, que afastava semofender.

Quando porém algum mais apaixonado ou menos perspicaz de seusadmiradores, ousava transpor aquela régia altivez e casta auréola em que elaresplandecia, então sua cólera revestia certa majestade olímpia que fulminava.

Emília não valsava; nunca nos bailes ela consentiu que o braço de um homemlhe cingisse o talhe. Na contradança as pontas dos seus dedos afilados, semprecalçados nas luvas, apenas roçavam a palma do cavalheiro: o mesmo era quandoaceitava o braço de alguém. Bem diferente nisso de certas moças que passeiamnas salas reclinadas ao peito de seus pares, Emília não consentia que a manga deuma casaca roçasse nem de leve as rendas do seu decote.

Uma noite, dançando com o Amorim, sócio de seu pai, recolheu a mão derepente, e deixou cair sobre ele um dos seus olhares de Juno irritada:

– Ainda não sabe como se dá a mão a uma senhora? disse com desprezo.

Proferidas estas palavras sentou-se no meio da quadrilha, e nunca mais dançoucom ele. O Amorim em uma das marcas, tinha-lhe inadvertidamente tomado amão, em vez de apresentar-lhe a sua.

Frequentava as reuniões de D. Matilde um moço oficial de marinha, o tenente

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Veiga. Tinha uma nobre figura e o cunho da verdadeira beleza marcial. Era umdos mais ferventes adoradores de Emília. Tirando-a para dançar uma noite elaergueu se e ia dar-lhe o braço; mas retraiu-se logo e tornou a sentar.

– Desculpe-me. Não posso dançar!

– Por que motivo, D. Emília?

Ela calou-se; mas fitou-lhe as mãos com olhos tão expressivos que o moçocompreendeu e corou:

– Tem razão. Tirei as luvas para tomar chá e esqueci-me de calçá-las.

Estes e muitos outros pequenos fatos eram comentados no salão de D. Matildepelas outras moças, que não perdoavam a Emília tantas superioridades, como elatinha; pois cingia-lhe a fronte a tríplice coroa da beleza, do espírito e da riqueza

Muitas vezes eu assistia calado aos tiroteios dessa guerra feminina. Algumarival, observando a suprema delicadeza do gesto casto e gracioso de Emília,ralava-se de inveja e dizia para as amigas:

– Ai, gentes! Não me toquem!...

– É mesmo um alfenim! acudia outra.

– Pois há quem suporte aquilo?

– Ora! É rica! Tem bom dote!

– Já repararam? Nem ao mano ela se digna apertar a mão!

– Tem medo que não lha quebrem, coitadinha!..

– Não falem assim! dizia Júlia voltando-se com um gesto suplicante. Que mallhes fez Mila?... Pois olhem! Eu acho aqueles modos tão bonitos!...

E Julinha, a flor exale da sua fragrância, tomava a defesa da prima, e faziacom uma doce melancolia o elogio daquele suave matiz de pudicícia, que ela,mísera, tão cedo perdera. Ouvindo-a, eu me sentia atraído para essa boa alma,que Deus tinha feito para a família e a mãe desterrara para o mundo.

Apesar da esquivança constante de Emília, eu observei, depois de algumassemanas, que ela tinha um círculo especial de admiradores, onde escolhiahabitualmente seus pares.

Esses felizes preferidos obtinham, além do favor da costumada contradança,um largo intervalo de conversa íntima.

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Nessas ocasiões ela falava pouco; apenas de espaço a espaço dizia algumaspalavras; mas escutava com visível interesse, séria umas vezes, outras sorrindo.

Quando confirmei esta minha observação, senti n'alma o agridoce dosprazeres, que à semelhança do vinho se derrancam no coração.

– É uma namoradeira! murmurou minha alma vingada, porém triste.

A beleza sem mácula dessa menina humilhava-me; mas a profanação de suaalma, que eu lobrigava naquelas preferências de sala, me confrangeu o coração.

– Não é por ela que eu sinto – pensava eu – É por sua família, especialmentepor seu pai, a quem estimo.

Como procurava eu iludir-me!

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V

Por esse tempo Emília fez a sua entrada no Cassino.

– Já viu a rainha do baile? disseram-me logo que cheguei.

– Ainda não. Quem é?

– A Duartezinha.

– Ah!

Realmente, a soberania da formosura e elegância, ela a tinha conquistado.Parecia que essa menina se guardara até aquele instante, para de improviso e nomais fidalgo salão da corte fazer sua brilhante metamorfose. Nessa noite ela quisostentar-se deusa; e vestiu os fulgores da beleza, que desde então arrastaram apóssi a admiração geral.

Seu trajo era um primor do gênero, pelo mimoso e delicado. Trazia o vestidode alvas escumilhas, com a saia toda rofada de largos folhos. Pequenos ramos deurze, com um só botão cor-de-rosa, apanhavam os fofos transparentes, que omenor sopro fazia arfar. O forro de seda do corpinho, ligeiramente decotado,apenas debuxava entre a fina gaza os contornos nascentes do gárceo colo; edentre as nuvens de rendas das mangas só escapava a parte inferior do mais lindobraço.

Era o toque severo do pudor corrigindo a túnica da vestal imolada à admiraçãoardente das turbas.

Quando Emília sentava-se, abatendo com a mão afilada os rofos da escócia,parecia-me um cisne colhendo as asas à margem do lago, e arrufando as níveaspenas. Quando erguia-se e coleava o talhe flexível fazendo tremular as brancasroupagens, lembrava o gracioso mito da beleza, que surgiu mulher da espumadas ondas.

Estive contemplando-a de longe. A multidão de seus adoradores a cercavacomo de costume, e ela distribuía aos seus prediletos as quadrilhas que pretendiadançar. Pela expressão de júbilo ou de contrariedade dos que voltavam, euconhecia se tinham sido ou não felizes.

Que interesse tão vivo achava eu nessa observação?

Já compreendeste sem dúvida, Paulo, que essa menina me preocupava amalgrado meu. Pois sabe, que naquele momento tinha inveja dos preferidos;

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apesar do juramento que eu fizera de nunca dançar com ela depois da desfeitaque sofri, cometeria a indignidade de ir suplicar-lhe ainda a graça de umaquadrilha, se não temesse nova e humilhante repulsa.

Livre um instante de sua roda de admiradores, Emília correu a vista pelo salão,e fitou-a em mim com uma persistência incômoda. Ela tinha, quando queria,olhares de uma atração imperiosa e irresistível que cravavam um homem, oprendiam e levavam cativo e submisso a seus pés. Eu resistia contudo; mas elame sorriu. Então não tive mais consciência de mim; deixei-me embeber naquelesorriso, e fui, cego d'alma que ela me raptara e dos olhos que me deslumbrava.

– D. Emília... – balbuciei cortejando.

Mas que estranha mutação! Sua esplêndida beleza congelou-se. As longaspálpebras erguidas pareciam fixas sobre uns olhos lívidos e mortos. Resvalandopela tez baça, as luzes palejavam-lhe a fronte jaspeada. O talhe de suavesondulações crispava-se agora com uma rigidez granítica. Senti, aproximando-me, exalar-se dela a frialdade, que envolve como um sudário transparente asestátuas de mármore.

Passei, e tão alheio de mim, que não veria Julinha e D. Matilde ali sentadas, seesta não me advertisse da minha falta.

– Boa-noite, doutor! Que distraído que ele está hoje!

– Perdão, D. Matilde! Como passou?... Ia com efeito, não distraído, masofuscado por tanto luxo e formosura. A culpa por conseguinte também lhe cabe,e em grande parte!

– Quando é que o senhor há de perder o costume de ser lisonjeiro?

– Quando a senhora quiser acreditar-me!

D. Matilde começou então a sua revista do baile, que eu escutei, sem ouvir.Emília estava ali perto; eu não a olhava, mas sentia.

– Julinha!... disse ela rindo. Sabes quantas contradanças já me fizeram aceitar?Quinze!..

– Se dançar-se a metade, será muito!

– Não, enganei-me, não foram quinze. Para a terceira não aceitei.

– Por quê? perguntou a prima.

– Guardei esta... para mim... para ficar sentada.

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– Que lembrança!

– Depois... Quem sabe?... Talvez me resolva a dançar. Se me pedirem muito!...

Emília sorria dizendo essas palavras, e eu senti a luz de seus olhos ferir-me avista.

Meus espíritos alvoroçados serenaram como por encanto. Reconheci-me ohomem que fui e sou; frio e sempre calmo, durante o sono profundo e longo docoração, o qual até agora felizmente só teve uma, mas bem cruel vigília.

Compreendi tudo; compreendi o olhar, o sorriso e o diálogo. Emília meprovocava diretamente para lhe pedir aquela terceira contradança reservada;queria me ver suplicante a seus pés, e vil, apesar da primeira humilhação. Então,quando sua vaidade estivesse saciada, me insultaria de novo do alto de seuorgulho, flagelando-me as faces com um daqueles seus olhares de soberanodesprezo.

Minto: eu não tinha compreendido nada. Ainda hoje, depois de tudo quantosofri, sei eu compreender semelhante mulher?

Desde que entrevi a perfídia da provocação, cobrei a calma. Também tive omeu sorriso desdenhoso e o meu gesto de indiferença. Pedi a D. Matildejustamente a terceira contradança, e ela ma concedeu, apesar de já a terprometido:

– Farei uma troca! disse-me. Dançarei a quinta com o Dr. Chaves.

Minha intenção foi convencer logo a Emília que ela se iludia. Desejava quenão pairasse no seu espírito a mínima esperança de que eu me deixasse imolarao seu orgulho. Ela bem me entendeu. Seu dente mimoso, mordendo o lábio,anunciou-me a sua cólera e a minha punição.

Esta não tardou muito.

Tinha-me eu retirado do salão, e estivera conversando numa das salaspróximas. Dando a música sinal de que o baile ia começar, lembrei-me queJulinha me prometera na véspera a primeira quadrilha e fui-me aproximando.

Creio que viste o antigo Cassino, de feia arquitetura e pobre decoração, porémmais festejado que o moderno, apesar de sua riqueza. Hás de te lembrar dascolunas que ali havia. Eu me apoiara a uma delas, esperando que se formassemas quadrilhas.

A fímbria de um vestido roçou por mim. Emília passava pelo braço de uma desuas amigas; passava altiva, desdenhosa, meneando com gestos soberanos a lindacabeça coroada pelas tranças bastas do ondeado cabelo. Fiquei imóvel entre ela e

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a coluna, acompanhando com a vista, sem querer, o garboso desenvolvimentodaquele passo de sílfide.

De repente ela descaiu o corpo no movimento que fazem as senhoras quandosentem presa a cauda do vestido. Com essa inclinação as ondas da escumilha meenvolveram os pés. Ouvi o rechino de lençarias que se rasgassem com violência.Empalideci!... Os folhos do elegante vestido, composto com tanto esmero,rojavam espedaçados pelo chão.

Emília retraiu o passo, e abateu uns olhos frios para o estrago do trajo mimoso,que tantos elogios e maior inveja excitara. Depois esbeltou-se para dardejar-mesobranceira outro olhar, mais frio ainda, que me traspassou.

– Nem de propósito!...

Ah! Paulo, se tu ouviras a voz com que me foram ditas estas palavras! O ferroboto não penetra, serrando as carnes, com dor mais intensa, do que deixavamessas palavras rasgando-me os seios d'alma!

Ainda me adiantei exclamando:

– É uma injustiça, minha senhora!...

Por toda resposta, ela curvou-se para colher as orlas espedaçadas do vestido;arrancando uns fragmentos que arrastavam ainda, atirou-os de si; eles vieramcair a meus pés, e eu apanhei-os estupidamente.

Duvidei de mim um momento. Teria eu insensivelmente pisado a fímbria dasaia? Mas como, se ficara imóvel, e nem sequer me voltara? Junto de mim nãoestava outra pessoa; era pois ela própria quem, para não roçar-me passando,rasgara sem querer o seu vestido, e se aproveitara do incidente para mortificar-me.

Podia eu imaginar que ela tivesse por acinte a mim sacrificadodeliberadamente sua elegância e os triunfos que lhe prometia o baile, coisas quesó ao entusiasmo da primeira paixão sacrificam raras mulheres, as heroínas doamor?

Tocava a contradança: dei o braço a Julinha. Como já me aborrecia esse baileantes de começar!

Não via Emília; procurava-a nas quadrilhas já formadas, quando ela surgiudiante de nós, envolta em sua ampla mantilha cor de cinza, que lhe ocultava todoo corpo e cingia com uma das pontas o colo e parte da cabeça. Estendeu a mãoà prima:

– Adeus!

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– Que é isso, Mila?

– Vou-me embora. Não vê?

– Ainda o baile nem começou!

– Acha você que estou muito decente? disse abrindo a manta e mostrando aescumilha esgarçada sobre o forro de cetim.

– Que foi isto? Quem lhe pôs nesse estado?

– Quem?... Um pé!...

Já viste alguma vez, Paulo, amesquinhar assim um homem e esmagá-lo comuma palavra?

Emília atribuía a mim o que lhe acontecera; e não achava para designar-menem o meu nome, nem mesmo a minha qualidade de criatura humana. Era umacoisa, uma parte desprezível do corpo, um pé!

Não sei o que na minha indignação ia responder-lhe, se ela me desse tempo, enão se afastasse rápida.

– Mas isto conserta-se! disse Julinha seguindo-a. Venha cá!

– Não vale a pena. Adeus.

Retirou-se pelo braço do pai, risonha, sem a menor sombra de contrariedade.

Durante o resto da noite fui o alvo dos remoques dos apaixonados de Emília;olhavam-me com a escarninha comiseração que inspirava neles o meu desazo.Por outro lado, as moças pareciam agradecer-me o serviço que lhes prestaracom o eclipse da beleza-rainha da noite.

Uma chegou até a dizer-me:

– Ande lá! O senhor o fez de propósito, e agora quer negar!

Não lhe dei resposta.

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VI

Esperei com impaciência a próxima quinta-feira. Estava resolvido a explicar-me com Emília.

Durante o princípio da noite, conservei-me sentado na varanda; mas via, porum espelho fronteiro à porta, D. Leocádia e a sobrinha em seu lugar do costume,a um canto do salão. Depois do chá realizou-se o que eu esperava; ficou vagauma cadeira entre ambas; ocupei-a logo.

Emília estremeceu; voltou-se toda para falar a outra moça, que lhe ficava àesquerda; senti que sua cadeira se afastava da minha por um movimentoimperceptível.

– D. Emília! disse de modo que me atendesse.

Ela olhou-me.

– Desejo fazer-lhe um pedido.

Não me respondeu; mas uma ligeira inflexão do rosto parecia indicar-me quese dispunha a ouvir

– Diga-me, D. Emília, se alguma vez involuntariamente a ofendi, para que lhesuplique meu perdão?... Mas creio antes que tive a infelicidade, e não a culpa, dedesagradar-lhe... Se isso é verdade, farei que a minha presença não a importunemais!

Levantei os olhos para ela. Parecia não me ouvir, nem mesmo ter consciênciade que eu ali estivesse e lhe falasse. Sua alma passava no olhar, e ia ao outro ladoda sala. Havia em sua fisionomia e atitude a expressão pasma que deixa aalheação ou o recolho dos espíritos.

– Não me responde, D. Emília? insisti ainda.

Continuou impassível. Estive algum tempo observando-a: depois voltei-mepara D. Leocádia.

– A senhora tem notado alguma alteração na saúde de D. Emília?

– Não, doutor; por quê? perguntou-me assustada.

– As moléstias graves, como a que ela sofreu, costumam afetar alguns órgãosimportantes. Por exemplo, algumas vezes deixam uma surdez incômoda...

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– Pois ela, não! Ouve até muito bem!

– Ah! há pouco me pareceu o contrário!

Emília ergueu-se:

– Também a mim me parecia que o Sr. Dr. Amaral era míope; mas agoraconheço que enxerga muito e longe!

– A senhora ouviu?... Desculpe! Cuidei que estava distraída.

– Enganou-se ainda desta vez! disse-me e afastou-se.

Uma das alusões de Emília, eu tinha compreendido perfeitamente: ela mequalificava de míope por não ter percebido logo quanto eu a importunava. Quesentido porém tinham aquelas outras palavras – enxerga muito e longe?

Devia ter breve a explicação.

Julinha estava ao piano; conversávamos.

A voz dessa menina tinha não sei quê de bom e mavioso, que penetrava ocoração de suaves eflúvios. Era quase sempre ela quem me aplacava as cólerassuscitadas pelos motejos da Duartezinha.

Esta passeava na sala pelo braço de um moço de vinte anos, ridículo arremedode homem, que a moda transformara num elegante boneco. Emília, na sua fria eincisiva ironia, retratava-o com um monossílabo. Ela dizia por exemplo: – Nóssomos um perfeito cavalheiro de sala, Sr. Barbosinha. Nós trajamos no rigor damoda. Este nós era o pronome da fatuidade e efeminação do moço.

Passando por diante do piano, Emília soltou uma risada bem alta e dirigiu-se aJulinha:

– Não lhe parece, prima?

– O quê, Mila?

– Eu dizia aqui ao senhor que a gratidão é um sentimento mesquinho.

– Como mesquinho? Não entendo!

– D. Emília quer dizer que não passa de um fingimento – acudiu o Barbosinha.

– Nós nos enganamos, Sr. Barbosinha! replicou Emília sorrindo. – Eu digo,prima, que isso de gratidão não é um sentimento nobre e elevado; pelo menos eununca desejaria inspirá-lo a alguém!

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– Por que razão, prima?

– Pois não, Julinha! Pode haver nada menos generoso e mais ridículo do queum indivíduo, porque prestou um serviço, mesmo que salvasse a vida a alguém...arrogar-se uma certa superioridade sobre o outro e julgar-se com direito a tudo...à estima e à amizade de uma pessoa?... Não é uma espécie de humilhação que seimpõe àqueles que não pediram, nem desejavam seus favores, e talvez ospodiam pagar?

Emília falava com uma natural volubilidade, como se estivera conversando decoisas indiferentes. Seu lábio desfolhava, de envolta com as palavras, breves efinos sorrisos, que eram como os espíritos maus de suas palavras. Eu a escutavade parte, sentindo os dardos do escárnio que ela me atirava de revés. De repente,vi passar-lhe pelos olhos vivo e súbito lampejo.

– E alguns há desses generosos – continuou ela – que não perdem ocasião delembrar o beneficio feito, com receio de que o possam esquecer! Se não é umainfelicidade, parece uma...

Eu vi clara e distinta a palavra especulação na boca de Emília; e estava de pé,alheio de mim, antes que ela a pronunciasse. Que ia eu fazer? Que podia eu,contra o insulto de uma mulher, e ali no meio de uma sala? Nada. Erguera-mepor esse movimento involuntário e misterioso que nos momentos solenes erige aestatura do homem, como a expansão natural de sua força e dignidade. Sentadosparece que nos curvamos à injúria, e a deixamos pesar sobre nossa cabeça;erguidos, como que lhe ficamos sobranceiros, e a olhamos do alto, e a calcamosaos pés!

Emília vendo-me levantar arrebatado, mediu-me com um olhar provocador,soltando com estudada lentidão a palavra suspensa:

– Uma especulação!

Já eu tivera tempo, não de reprimir, mas disfarçar a emoção. Disse-lhefolheando ao acaso um álbum de músicas:

– Tem razão, D. Emília; atualmente com tudo se especula, de tudo se zomba.Ganhar muito dinheiro para ter o direito de rir dos outros, eis a grande questão!...

Havia decerto em meu rosto alguma coisa, sintomas do refrangimento de umaalma angustiada, que assustou Emília. Ela desviou de mim os olhos e esquivou-setímida e sobressaltada. Parti imediatamente da casa de D. Matilde; tinha gelo nocoração e fogo nas faces.

A minha resposta ao insulto de Emília me parecia ridícula e parva; outrasréplicas mais frisantes me acudiam, que eu desejava ter podido lançar ao rostodaquela moça. Envergonhei-me do ridículo papel que fizera.

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– Se ela amasse alguém!... pensava então. Eu a insultaria na pessoa dele.

Decorreram dias; em todos eles meu primeiro pensamento, abrindo os olhos,era dessa mulher. Foram maus dias esses, que tiveram suas manhãs de ódio.Enfim, voltou a calma; o rancor se ocultara no coração, como a fera no covil,para espreitar sua vingança.

Pouco tempo depois, Geraldo, jantando em minha casa, disse-me de repenteno meio de uma conversa:

– Agora me lembro!... Hás de fazer-me um favor, Amaral?

– Farei, podendo.

– Mas olha que é segredo. Se disseres uma palavra, está tudo perdido! Mila écapaz de ficar mal comigo; e eu antes quero estar mal com meu pai, do que comela.

– Pelo que vejo tua irmã tem parte nisto?

– O negócio é dela. Eu te conto. A senhora minha irmã tem a mania de daresmolas.

– Ah! Não sabia!

– Pois fica sabendo; mas cuidado!... Não dês o menor sinal de que eu te dissesemelhante coisa!

– Que interesse tenho eu em te comprometer? Podes estar descansado. Masentão, D. Emília é tão caritativa assim? Em uma moça, admira!

– Oh! nem tu fazes ideia! Ela tem uma porção de velhas, suas protegidas, quenão se saem da porta. E não contentes já de pedirem para si, pedem tambémpara os outros. Desde criança que Mila se acostumou, quando meu pai volta dacidade, a tirar-lhe todo o dinheiro que ele traz solto na algibeira; e meu pai deixade propósito uma porção de moedinhas de prata, além do que lhe dá sempre queela pede. Pois quase todo esse dinheiro é filado pelas tais velhas.

Geraldo suspirou:

– Que dinheiro tão mal gasto. Podia-me servir ao menos para charutos!

– Mas que relação tem isso com o teu pedido?

– É verdade! Uma das tais velhas descobriu, ou inventou, o que é mais certo, ahistória de uma menina que perdeu pai e mãe, e está na miséria, sem parentesque olhem para ela. E de que havia de lembrar-se? De metê-la no recolhimento

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das órfãs!

– Foi uma boa lembrança.

– Achas que sim? Melhor, porque és tu quem hás de arranjar isto.

– Como? Tua irmã?...

– Ela aprovou muito a ideia, e incumbiu-me de obter a admissão da menina,com um dote, que deve receber quando se casar. Vê que extravagância! Eutenho lá tempo para cuidar dessas coisas? Mas não há remédio senão fazer-lhe avontade. Há muitos dias que estou para te falar nisso, e felizmente agoralembrou-me... Tu andas lá pela Misericórdia, conheces aquela gente...

Tive uma inspiração.

– Pois bem, Geraldo. Fica ao meu cuidado.

– Prometes então arranjar o negócio?

– Dou-te a minha palavra; e quase te posso assegurar que é coisa feita.

– Muito bem; mas que seja logo! Mila não me deixa, e eu não sei já quedesculpas invente!

– Amanhã mesmo tratarei disso. Como se chama a menina?

– Homem! Se queres que te diga, não sei. Mila deu-me um papel, que eu nemabri. Deve estar no bolso do meu redingote.

– Pois isso é indispensável, assim como a idade, filiação...

– Eu vou para casa, e te mando o papel hoje mesmo.

Esperei até a noite com febril impaciência. Geraldo não cumpriu a promessa;mas no dia seguinte por volta de uma hora ele apareceu.

– Aqui tens! disse-me tirando da carteira a nota. – E adeus.

– Aonde vais já? Não queres jantar?

– Hoje não. Vou jantar ao Jardim; temos lá esta noite um pagodezinho sofrível.

Ao descer a escada, voltou-se:

– Sim! Eu prometi a Mila que o negócio não passaria desta semana. Vê se medeixas ficar mal!

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– Vai descansado – respondi-lhe sorrindo.

Reli a nota que Geraldo me havia dado. Era uma meia folha de pequenovelino, onde a mão de Emília traçara algumas linhas com elegante e finaescritura. Conservei este papel por muito tempo; creio que o queimei sem quererde envolta com outros. Nem já me lembra o nome da menina, que teve, sem osaber, uma influência rápida, mas decisiva na minha vida.

Uma carta da mulher que eu amasse talvez não produzisse em mim a emoçãoque senti lendo aquelas palavras. Sorria de contentamento, e uma vez machuqueio papel aos lábios. Cuidei então que afagava a minha vingança; mas quanto meenganei! Sorvia o filtro dos ódios fugaces de um amor espezinhado!

– Ah! Ela é boa e compassiva! murmurava eu. – Estou vingado!...

Até então, Paulo, cuidava que um egoísmo frio forrasse a alma dessa menina;e tinha medo, porque todo o desprezo que eu pudesse amassar em meu coraçãopara afrontá-la iria bater e pulverizar-se nessa crosta impenetrável.

Recolhi um instante em mim para refletir. Concertado meu plano, a execuçãofoi imediata. Tudo me favorecia: era um sábado, dia em que o Sr. Duarte serecolhia mais cedo; por outro lado o passeio de Geraldo me assegurava da suaausência.

Cheguei à casa do negociante com as primeiras sombras da noite.

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VII

A casa do Sr. Duarte acabava de sofrer uma transformação completa.

Quando eu a conheci, e mesmo ainda depois de minha volta, era um velhoprédio, feio e irregular, construído numa das abas da montanha que cinge osamenos vales de Catumbi e Rio Comprido. A chácara coberta de arvoredoestendia-se pelas encostas até as pitorescas eminências de Santa Teresa.

Gozava-se aí de uma vista magnífica, de bons ares e sombras deliciosas. Oarrabalde era naquele tempo mais campo do que é hoje. Ainda a fouceexterminadora da civilização não esmoutara os bosques que revestiam os flancosda montanha. A rua, esse braço mil do centauro cidade, só anos depoisespreguiçando pelas encostas fisgou as garras nos cimos frondosos das colinas.Elas foram outrora, essas lindas colinas, a verde coroa da jovem Guanabara,hoje velha regateira, calva de suas matas, nua de seus prados.

Caminhos íngremes e sinuosas veredas serpejavam então pelas faldassombrias da montanha, e prendiam como num abraço as raras habitações quealvejavam de longe em longe entre o arvoredo. Límpidas correntes, que a sedefebril do gigante urbano ainda não estancara, rolavam trépidas pela escarpa,saltavam de cascata em cascata, e iam fugindo e garrulando conchegar-se nasalvas bacias debruadas de relva.

As paineiras em flor meneavam à doce brisa da tarde os brilhantes penachos,como numa festa da roça as mais belas raparigas, soberbas de seus enfeites,balançam airosas ao som da música as frontes toucadas de nastros (sic) de fitas.

Cresciam ali bosques espessos de bambus que ciciavam brandamente,enquanto os leques das palmeiras vibrados pelo vento arpejavam como frautarústica.

Naqueles lugares nascera Emília e se criara. Eles foram o molde de sua alma,formada ao contato dessa alpestre natureza cheia de fragosidades e umbrosasespessuras.

A primeira vez que a tímida menina ousou penetrar esse mato esquecido àsabas da cidade, tinha ela onze anos. Até então vivera à sombra materna, comoflor que se planta em vaso de porcelana e vegeta nos terraços. Do colo passaraao regaço; quando principiou a andar, coseu-se à falda do vestido de sua mãe.

Com os hábitos sedentários que tinha a senhora, a órbita do seu giro não seestendia além da beira da casa e do estreito jardim, que uma cerca de tábuasseparava da chácara inculta e abandonada; porém mesmo de longe Emília

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enfiava os olhos por entre os grupos de árvores.

Vinham dali rumores vagos e estranhos mistérios que a estremeciam. Logopresa de grande pavor, fugia a abrigar-se no colo materno.

Um dia venceu a tentação. A menina avançou afouta, cuidando encontrarperto a professora. Não a viu; quis retroceder e não teve ânimo; tornou aavançar; o menor ruído a assustava, a mais leve sombra lhe incutia terrores evertigens. Até que sucumbiu num ataque de nervos.

Emília esteve dois dias de cama. A mãe declarou-a doente por uma semana.Houve larga discussão a respeito do grave acontecimento; um mês durante nãose falou de outra coisa. Julinha foi estar algum tempo com a prima para distraí-la; e a medrosa menina se viu cercada dos maiores desvelos.

Tudo isto produziu efeito oposto ao que esperava a mãe. Cuidava ela conservarassim aquela natureza frágil, tímida e melindrosa, que só podia viver elada aoseio materno, como hera ao tronco. Que bem sabia do gérmen funesto quelançara na alma tenra da filha!

Foi a semente da primeira rebelião. Emília teve grande vergonha de seupânico. Um sentir novo e estranho, que não era desejo, nem raiva, pesar oucontentamento, porém um misto de tudo isso, a intumescer-lhe a alma; um sentirnunca sentido turbou a inocência da menina.

Muita vez a sós as faces lhe ardiam, o sangue fervia dentro, as lágrimassaltavam dos olhos; súbito erguia-se, com o talhe ereto, a cabeça desafrontada, oolhar aceso, e um sorriso – que sorriso! – mordido no lábio túrgido. Erguia-separa bater com o pé no chão e desafiar do gesto uma visão de sua fantasia.

A teima infantil, que devia ser orgulho na mulher, estava-se gerando naquelecoração de menina.

Uma noite, ao deitar, Emília jurou que arrostaria tudo para atravessar ela só aalameda da chácara. Seu dito, seu feito, e logo feito. Os primeiros albores do diaa acharam já pronta. À exceção de alguns escravos, todos dormiam na casa.

Esgueirou-se furtivamente pelas escadas e ganhou a cerca. Da cancela até ofim da alameda foi uma corrida só e de olhos fechados. Lá parou, tomou fôlegoe correu a vista espavorida pelas densas e escuras ramadas. Disparou novacorrida, mas já senhora de si. Assim percorreu duas ou três vezes a alameda.Quando o sol nasceu, entrava ela sem ter sido pressentida, e metia-se na cama,onde sua mãe com pouco a foi despertar.

Nesse dia Emília esteve de uma alegria que não mostrara recebendo a maisenfeitada de suas bonecas. Saltava de contente; a ponta de seu pé calcava maisfirme o chão como se o quisera repelir, tanto o passo era firme e altivo. A luz

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filtrava mais viva na pupila negra; a mão tinha tais ímpetos nervosos que partia aspenas escrevendo, e amarrotava a costura.

– Foi essa minha primeira travessura – me dizia ela contando as suasrecordações de infância. Daí em diante a minha afouteza foi em progresso. Umano depois o mato já não tinha segredos para mim; eu conhecia todos os trilhos everedas, sabia onde estava a melhor goiabeira, o cajueiro mais doce, e o coco deindaiá, de que eu era muito gulosa! Eu mesma... O senhor acredita?... trepava nasárvores, pendurava-me aos ramos, e saltava pelas ladeiras as mais íngremes.

– E sua mãe consentia nisso? perguntava-lhe eu.

– Não consentia, não! Pobre mãe! Nunca ela o soube. Eu aproveitava as horasde estudo em que me deixavam só. A sala dava para o jardim; numa volta ounoutra eu ganhava a chácara, sem que me vissem. Demais, sonsa como eraentão, ninguém em casa podia desconfiar das minhas travessuras. Diante degente tinha tal acanhamento que até já aborrecia. Minha mestra chamava a issocom muita graça a minha ferocidade caseira!

Fora assim, Paulo, que se formara essa natureza tímida ao mesmo tempo queaudaz. Havia nela a transfusão de duas almas, uma alma de criança e outra almade heroína. Só em face da natureza, a agreste poesia daqueles ermoscomunicava com seu espírito e o enchia de arrojos admiráveis. Em presença dealguém a vida soldava-se no íntimo como num invólucro impenetrável; restavaapenas na superfície uma sensibilidade irritável.

Com a idade essa menina assumira a pouco e pouco o governo despótico dacasa e da família. Desde o pai até o último dos escravos todos lhe obedeciamcegamente. Ela recebia com gentileza de moça e dignidade de senhora ahomenagem devida à superioridade do seu espírito.

Um dia, Emília, que já começara a frequentar a sociedade, surpreendeu suaalma triste e desconsolada no meio daquela velha habitação; pareceu-lhe isso umdegredo dos ricos salões onde algumas noites se expandia a sua beleza.

Disse então uma palavra. De repente o feio edifício surgiu das ruínas maior esuntuoso, entre jardins, mármores e repuxos; foi coberto de vasos, pinturas etapeçarias; encheu-se de ricas mobílias; teve grande trem, numerosa criadageme serviço magnífico à europeia.

Um dos novos criados, que não me conhecia, levara meu cartão de visita.Esperando, eu observava pelas janelas, à luz frouxa das estrelas, os tabuleiros derelva e os alvos passeios que se recortavam na areia da chácara. Nada sabendoainda, sentia em tudo quanto me cercava o tato delicado das mãos de Emília.

Ouvi perto de mim a voz do Sr. Duarte.

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– Bem aparecido, doutor, nesta sua casa! Cuidei que estava mal com ela!

O negociante conduziu-me, através de grandes salas, que estavam acabandode decorar, a uma saleta do lado oposto do edifício.

D. Leocádia cosia junto à mesa; Emília estava ao piano; mas vendo-me entrar,levantou-se, correspondeu com a costumada frieza ao meu cumprimento, e foirecostar-se à sacada.

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VIII

Passei alguns instantes a conversar com D. Leocádia junto à mesa. Onegociante sentara-se numa cadeira de palha à porta do terraço, onderegularmente todas as noites fumava seu charuto.

– Sr. Duarte! disse eu alteando a voz.

– Doutor!

– O senhor está lembrado do que se passou entre nós há três anos, logo depoisdo restabelecimento de D. Emília?

– A que respeito?...

– A respeito da maneira generosa por que o senhor quis recompensar ospequenos serviços que eu...

– Ah! lembro-me!...

– Pequenos serviços, doutor! acudiu D. Leocádia. Um irmão não faria por suairmã o que o senhor fez por Mila.

– Fiz o meu dever, minha senhora, e nada mais; um simples dever de médico!

– Não! O senhor pode pensar como quiser; mas eu sei que lhe devo a vida deminha filha, doutor. Se não fosse o senhor...

– Que passou vinte e tantos dias, quase sem dormir, não pensando em outracoisa... Cuida que eu não vi o seu desespero quando Mila piorou? E até uma vez...

– Perdão, D. Leocádia! disse eu muito contrariado. A senhora compreende quenão vim lembrar o que se passou há tanto tempo para provocar elogios, que nãomereço, e que, desculpe, me desagradam sempre.

– É tal e qual: sobre isto não é capaz de ceder. Não o contrarie, mana.

– Está bem, doutor, não se zangue; já me calo – respondeu a senhora combondade.

– Repito – continuei –, não fiz mais do que a minha obrigação; e, quandorecusei a recompensa generosa que o Sr. Duarte me ofereceu, tive para isso umarazão. Não sei se lhe disse?

– Creio que sim; mas não me recordo bem.

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– Recusei por interesse...

– Ora, doutor!... murmurou timidamente a tia de Emília.

– É verdade, D. Leocádia, por interesse e ambição! Também tenho as minhassuperstições! Acreditava, e ainda acredito, que a minha primeira cura me deviadar felicidade, se eu a votasse como pia oferenda à ciência e à humanidade. Enão me enganei!... Foi sua amizade, Sr. Duarte, e a maneira por que recomendouo meu nome aos seus amigos que me fizeram conhecido e chamado.

– Diga o seu talento; isto sim é que o fez conhecido e há de torná-lo um dosprimeiros médicos do Rio de Janeiro.

– Não tenho tais pretensões. Já vê pois, D. Leocádia, que meu desinteresse nãopassou de uma pequena especulação feita sobre a amizade e gratidão de suafamília!

Durante esta conversa eu não deixara de observar Emília. Ela estava ainda najanela; a princípio fez um movimento para voltar-se, que logo reprimiu depoispendera a fronte na mão e conservara-se imóvel.

As minhas últimas palavras a arrancaram bruscamente a essa atitudepensativa; atravessou a sala e veio sentar-se no sofá, defronte de mim. Toda elaera desdém e altivez. Nós cruzamos um olhar, como dois adversários cruzam oferro, começando o combate.

– O doutor está gracejando! disse-me D. Leocádia.

– Demais, eu não fui tão desinteressado como parecia, porque... Deverecordar-se, Sr. Duarte... Recusando naquela ocasião prometi-lhe contudo que, sealguma vez me achasse em embaraços, não recorreria a nenhuma outrapessoa...

– É exato! O senhor deu-me a sua palavra... Mas infelizmente ainda nãochegou essa ocasião, e receio que nunca chegue.

– Pois chegou! disse eu corando, malgrado meu.

Não obstante a punição que eu ia infligir a essa moça, e a zombaria de minhasimulada cupidez, não me pude eximir ao vexame de parecer um instantedominado por mesquinho interesse pecuniário em face de pessoas que meestimavam. Mas o prazer da vingança me arrastava.

– Seriamente, doutor? exclamou Duarte. – Não sabe quanto isso me alegra.Disponha francamente de mim. Quanto precisa?

– Fale – acudiu D. Leocádia. – Não se acanhe. Mano José deseja sinceramente

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mostrar-lhe sua amizade.

Emília me fizera justiça; depois do que havia passado entre nós, ela sentia queeu era homem a morrer na miséria antes de estender a mão ao dinheiro do pai.Seu olhar fito em mim parecia querer arrancar-me do fundo da consciência aminha intenção oculta.

– Interesso-me – dizia eu – por uma criança desvalida que perdeu os pais...Espero obter a sua entrada no recolhimento das órfãs, e desejava nessa mesmaocasião fazer-lhe um pequeno dote...

– Muito bem, doutor! exclamou D. Leocádia. – Não pode haver dinheiro maisbem empregado!

– E eu tenho o maior prazer em concorrer para tão bela ação! De quanto seráo dote que nós lhe devemos fazer?

– Com licença, Sr. Duarte! Eu protesto contra esse nós: o dote há de ser dadopor mim só; quero ter o egoísmo dessa boa ação, a primeira e talvez a única deminha vida.

– Que teimoso que ele é! observou D. Leocádia rindo-se.

– Meu egoísmo porém não deve prejudicar a minha protegida, privando-a dacaridade de uma família que tantos benefícios lhe pode fazer. Por isso desejo quetambém a conheçam...

Tirei da carteira a lembrança dada a Geraldo pela irmã.

Emília, que mudara de cores desde que eu falei na menina, fez um gesto,como se ao primeiro impulso se quisesse precipitar para me arrebatar das mãoso papel que eu lia. Mas em vez desse movimento o talhe descaiu, como um corpoa que desmaia a vida: a sua altivez sucumbia vencida.

– Deste modo, Sr. Duarte, eu persisto ainda na minha primeira ideia ... naminha superstição. Especulo ainda! A minha primeira cura será sempre o melhormomento da minha vida; com o preço dela poderei remir da desgraça a umapobre criatura! Ao mesmo tempo livro-o da violência que fiz à sua generosidade,recusando outrora o pagamento dos meus serviços.

Destas palavras, aquelas que tinham uma significação pecuniária, minha vozas pronunciava com tal aspereza que parecia querer dar-lhes o tinido metálico demoedas.

– Aqui tem a minha conta – concluí.

Emília estremeceu.

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– Que é isso, doutor? exclamou o negociante ressentido. – Cem mil-réis?...

– Pelo tratamento de Emília? acudiu D. Leocádia.

– Acha que é muito?

– Ora, o senhor está zombando conosco! Pois havemos de lhe dar somenteessa ridícula quantia pelo trabalho imenso que teve...

– Que trabalho! Umas vinte visitas, que para um médico principiante sãogenerosamente pagas a cinco mil-réis!

– O que é que você chama visitas, doutor? Passar as noites em claro...

– Olhe lá, D. Leocádia. Eu me agasto com a senhora!

– Decididamente, Dr. Amaral, não lhe pago esta conta. Se quiser acrescentaruma cifra, bem!

– Neste caso ficaremos como dantes.

– Mas escute, doutor...

– O melhor é não falarmos mais disso! atalhei eu.

Emília ergueu-se arrebatadamente.

– Papai, dê-me essa conta! disse ela. Sua mão tremia segurando o papel, queela devorou com a vista, de pé, junto à mesa.

Tu adivinhas, Paulo, o sentimento e a intenção com que escrevera eu essaconta: seu nome, sua pessoa, sua vida, posso dizê-lo, sua vida de moça bela, ricae adorada, ali estava cotada no mesquinho algarismo! Eu lhe dava plena quitaçãodo seu reconhecimento!

Ela esteve muito tempo a ler; depois as róseas pálpebras, franjadas de longoscílios, desvendaram os olhos, que ela pôs em mim, úmidos da tênue marugem deuma lágrima estalada.

– Sou eu quem devo pagar-lhe! disse-me, vibrando a voz.

E ao mesmo tempo o papel voou em pedaços sobre a mesa.

– Mila!... murmurou D. Leocádia.

Emília atravessou o salão e desapareceu.

– Ela tem razão! disse o pai erguendo-se. – Entre nós, doutor, não há

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necessidade de contas, nem de recibos. Vou dar-lhe...

– O quê, Sr. Duarte?

– O menos que é possível... as seis cifras.

– É escusado! Já disse... falemos de outra coisa.

Esta cena, que eu acabava de representar, me fatigara horrivelmente. Mudeide conversa. Veio o chá, e Mila não voltou à sala. Retirei-me triste.

No dia seguinte mandei um procurador receber do Sr. Duarte com uma ordemminha os cem mil-réis. Esse sujeito ia prevenido; disse ao negociante que paraevitar demoras adiantara aquele dinheiro no recolhimento, de modo que tratava-se de um reembolso. O pai de Emília foi obrigado a ceder.

Tive nesse dia alegrias pueris. Como uma criança... E eu o era então; homempara a razão sim, mas criança ainda para a paixão que não me tinha encanecidoa alma!... Ria-me só, enchia a imaginação das ideias mais extravagantes... Nãote revoltes, Paulo! Já te confessei: essa mulher, que devia envelhecer-me ocoração, começava fazendo-me menino.

Desde então percebi em mim um desejo novo, um desejo vivo e ardente dever Emília. Não podia voltar à casa de seu pai, que eu visitava de longe em longe,sem mostrar afã que não devia. Esperava encontrá-la em Matacavalos; masnessa quinta-feira deixou de ir à partida de D. Matilde.

A menina entrara para o recolhimento; eu cumprira a promessa feita aGeraldo como se nada houvera passado. Disse-me ele que a irmã não lhe fizeraa menor observação; mas ela soube pela velha que eu tinha acrescentado,sempre em seu nome, o dote da sua protegida.

Fazia justamente uma semana que eu tinha ido ao Rio Comprido; muito cedoainda, às sete horas da manhã, recebi um bilhete de D. Leocádia.

Dizia-me ela:

"Nós o esperamos hoje para jantar. Não lhe digo o motivo deste convite depropósito, para que a curiosidade de saber o obrigue a vir sem falta e mais cedo."

A letra era de Emília.

Eu tremi! É verdade, Paulo! Não conhecia ainda o caráter dessa menina; massabia já que ousadias tinha seu orgulho de mulher formosa, habituada a ver omundo aplaudir-lhe todos os caprichos.

Que nova humilhação me reservava ela!

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IX

Admirei-me, chegando, da ausência de convidados, e especialmente dafamília de D. Matilde.

– Parece que não esperam ninguém mais – respondeu-me o criado. – Osenhor mesmo janta na cidade.

Entretanto a casa, cujos reparos haviam completamente terminado, estavapreparada como para grande recepção: notava-se em toda ela o ar de festa queexpande a fisionomia dos edifícios como a das pessoas, porque os edifíciosinspiram a alma daqueles que os habitam.

D. Leocádia veio receber-me.

– Já sei que está muito curioso de saber o motivo deste jantar?

– Creio que, apesar de não ser dos mais atilados, já o adivinhei!

– Deveras! Vamos a ver!

– É mais uma prova da sua bondade para comigo, e de seus repetidosobséquios...

– Pois não acertou! Pretendíamos, logo que se acabassem as obras da casa,reunir aqui todas as pessoas da nossa amizade; porém mano José não entendedestas coisas, Geraldo é uma criança... E nós queríamos saber a opinião de umapessoa de gosto... Talvez note alguma coisa que não pareça bem!

Era um pretexto. D. Leocádia repetia a lição que recebera da sobrinha. Oimpério dessa menina era tal que não impunha unicamente obediência às pessoasque a cercavam; obrigava-as a se identificarem com a sua vontade, anulando-se.

Emília apareceu. Na simplicidade extrema de seu trajo ela parecia apenasvestida, tal era o realce de sua beleza nativa, e a sobriedade dos enfeites;entretanto nunca roupas de virgem foram assim avaras de encantos. A beleza nãose mostrava, transparecia.

Ela vinha, como sempre, coroada pela régia altivez, que era o gesto de suaformosura; porém nesse dia perpassava-lhe na fronte de ordinário tão límpidauma tênue sombra, de uma mágoa talvez.

Cortejou-me, não fria, mas séria; foi até a janela, e veio depois sentar-se aopiano. Enquanto eu continuava a conversar com D. Leocádia, suas mãos corriamlentamente pelo teclado, que exalava uns arpejos frouxos e dolentes.

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D. Leocádia saíra um instante.

O piano calou-se, enfim. Eu vi Emília de pé no meio da sala, hesitando nopasso que a devia aproximar de mim:

– Perdoe-me! disse-me ela.

E a voz com que o disse tinha modulações sublimes.

– Sei agora quanto o ofendi! Não sabia então quanto lhe devo! Minha tiacontou-me...

– A senhora nada me deve, D. Emília. Estou pago! Já recebi o meu salário. Foio preço de uma gratidão que tanto a incomodava!

– Não me diga isso! Seja sempre generoso!

– Quem deve sou eu. Um doente rico tem à sua disposição todos os médicos eos melhores; mas, para um médico principiante e desconhecido, um doente quepaga bem é uma fortuna!

– Eu mereci estas palavras, porque fui má e injusta... Fui até sem delicadeza!...Mas se lhe confessasse... teria pena de mim!

– Confessar-me o quê, D. Emília? perguntei comovido.

A tia voltava.

– Logo!...

Ela articulou essa palavra, já calma e sem o menor vexame, com a voz tãoclara, que D. Leocádia devia ter ouvido.

Eu ia de mistério em mistério. Que significava a estranha confidência deEmília? Que exprimia aquele misto de franqueza e reserva, de placidez eemoção?

Depois de jantar fomos correr a chácara.

A amabilidade, ainda cerimoniosa, mas doce, com que Emília me tratava, foitão sensível que D. Leocádia a notou, apesar da sua constante bonomia.

– Ah! Já fizeram as pazes? disse-nos a senhora. – Muito bem!

– Nunca estivemos mal, minha tia. Não nos conhecíamos; não é verdade?replicou Emília voltando-se para mim.

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A maliciosa e gentil menina, que dirigia o passeio, andava de propósito comextrema rapidez para fatigar a tia: afinal o conseguiu.

– Não posso mais! Estou muito cansada! murmurou D. Leocádia, deixando-secair num banco de pedra.

Estávamos junto de uma cascatinha, onde tinham arranjado uma gruta, umpequeno lago e outros embelezamentos.

– Venha ver a cascata! me disse Emília.

Acompanhei-a até a margem do tanque; ficávamos a alguns passos apenas deD. Leocádia, porém o rumor das águas que latiam entre as rochas abafavasnossas palavras. Emília esteve a brincar, com umas flores aquáticas quevegetavam nas fendas, saltando de pedra em pedra. Eu vi-a oscilar sobre umaponta de rochedo coberto de musgos e batido pelas águas.

De repente voltou-se:

– O senhor me julga muito ingrata?

– Eu, D. Emília?

– Oh! Não negue! Eu sinto!... Pois enganou-se! O que eu sou... Talvez não lhesaiba dizer...

Ela abaixou os olhos para os borbotões de espuma que se esfrolavam a seuspés.

– Sou... um espírito que duvida, um coração que vacila!

Eu não compreendia; estava surpreso.

– Esta gratidão que eu lhe consagro há três anos – continuou ela – tem sido aminha única alegria!

– Como é possível, D. Emília? Não acredito!...

– Pois creia! Tenho uma testemunha...

– Qual?

– Conhece?...

– A minha carta!...

Ela passara rápida pelos meus olhos a carta que eu tinha escrito ao pai logodepois do seu restabelecimento.

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– Está assim amarrotada... Não sabe por quê? É ela que envolve os cabelos deminha mãe!

Emudecemos ambos. O papel desapareceu outra vez; tinha-o escondido noseio. Passado um instante Emília falou de novo, mas absorta, como se falaraconsigo mesma num recolho íntimo:

– Não acredito no amor!... Alguma coisa me diz que não amarei nunca!...Entretanto o coração sente... tem necessidade de uma afeição criada por ele só, eque não venha do sangue. Há uma porção d'alma que pertence à família e vivenela, como as raízes desta planta, no seio da terra que a produz... Mas a outraporção, essa é nossa unicamente e também precisa de sentir e viver! Não éassim?

– Deus quis que fosse assim, para que a humanidade existisse.

– Deus quis... Mas por que me pôs ele n'alma esta dúvida cruel?... Tenhodezessete anos, e já me sinto órfã das minhas esperanças!

– A senhora, D. Emília? Que lhe falta? Espírito, formosura e riqueza, tudo que omundo admira...

– Eu quisera não ser admirada, mas...

Ela hesitou e reprimiu a palavra que ia pronunciar.

– Não falemos nisso. Já lhe disse que não acredito em paixões. Durante o anoque passou, esperdicei por aí, por essas reuniões, meus sonhos, minhas alegrias,minha alma! Sabe o que eu trazia? A desilusão!... Quando entrava em mim nãoachava senão uma lembrança doce e pura... Era a minha boa gratidão, oreconhecimento que eu lhe votava... E não sabia tudo ainda... Não tinha aindaaqui como agora suas lágrimas!...

– Obrigado, D. Emília!

– Oh! Não me agradeça!... Escute-me! Essa gratidão, esse sentimento bom epuro, era uma coisa minha, oculta e desconhecida, que eu dedicava no silênciode minha alma à sua memória... porém não ao senhor!

– Ah!

– Do senhor, eu tinha medo, quando o via. Tinha medo que me arrancassetambém do espírito mais essa doce ilusão. Desculpe-me: eu não o conheciaentão. Duvidava...

– Mas por que motivo? Percebeu alguma vez em mim a menor intenção deabusar?...

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– Nunca!... Era uma coisa que não estava em mim! Um temor vago eindefinível... Parecia-me que o hálito de sua primeira palavra vinha murchar emminha alma a única flor de sentimento que brotara nela... E eu defendia-meafastando-o... Naquela noite... não o entendi... Disse aquelas más palavras...Perdoe-me! Eu também sofri... Sofri mais porque elas não eram vingança, não.Gemidos, sim, de quem tanto perdia!...

Fui eu então, eu insultado e escarnecido, que pedi a essa mulher o perdão deminha vingança.

A tarde caía. A solidão começava a encher-se de sombras, de perfumes, deeloquentes silêncios. Emília sorveu com delícias esse respiro dos campos na horado crepúsculo.

– Que linda tarde!... murmurou. – Aqui... parece-me que eu poderia crer...Mas lá!...

Seu lábio desfolhou um triste sorriso.

– Vamos, Mila! disse D. Leocádia.

– Sim, minha tia.

Ela estendeu-me entre as rendas de seu lenço a ponta dos dedos que eu aperteide leve.

– Seja meu amigo!

E desceu como um silfo, voando sobre as pedras da cascata.

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X

Toda a noite tive deslumbramentos n'alma.

Que esfinge era essa moça de dezoito anos?

Virgem, que o severo pudor velava, e falando de amor com a franqueza e acalma de quem já dele se saciara! Coração puro de paixões e ermo já deesperanças!

Seria a congelação precoce do sentimento?

Não! pensava eu. Deve de ser a ingenuidade da inocência. As rosas de suaalma não podem ter assim murchado na primavera da vida; estão apenas embotão; o que as desmaia é sombra da infância ainda, e não o verme do coração –a dúvida.

Amava Emília, sem o saber; comecei a adorá-la.

Que horas encantadas vivi repassando na memória os seus desdéns! Agora euos compreendia: eles me revelavam a tormenta de uma paixão nascente, quetolda a manhã da vida, como as tempestades dos primeiros dias do ano. Ela tinhamedo de amar-me...Talvez amava-me já, resistindo ainda!...

– Meu Deus! exclamei. – Que fiz eu para tanta felicidade!...

Uma circunstância unicamente me parecia obscura, depois da confidência deEmília. Era a maneira por que me tinha recebido a primeira vez depois da minhavolta. Era sobretudo aquele olhar fulgurante de cólera, de tão soberba cólera!Não houvera nos seus olhos despeito só ou repulsão; houvera mais que ódio,profundo rancor.

Uma vez pedi-lhe a explicação desse olhar; ela enrubesceu:

– Não me pergunte isso!... Não lho direi nunca!

Dois dias depois da nossa conversa junto à cascata, fui a Matacavalos, ondeesperava encontrá-la. Ia cheio dos enlevos de tão sonhadas esperanças, inundadoda felicidade que borbotava em meu seio... Ia assim, transbordando dilúvios deimenso amor, que ansiava por se rojar a seus pés.

E bastou a sua presença para confranger de súbito as enérgicas expansões deminha alma.

Ela respondeu ao meu cumprimento com afabilidade; mas... Era a mesma

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afabilidade que dispensava à turba dos seus adoradores! Quanto achei doce opassado desdém, que ao menos me distinguia!

Emília mostrava ter completamente esquecido quanto entre nós houvera trêsdias antes. Uma vez no correr da noite quis falar-lhe. Vendo-me aproximar, todasua pessoa envolveu-se de repente na frieza glacial, que de longe ainda já metinha congelado a palavra nos lábios. Essa mulher, cheia de graça e vida, tinha omágico poder de fazer-se mármore, quando queria.

Nessa noite ela retirou-se mais tarde do que tinha costume. Ao sair passoujunto de mim sorrindo:

– Não quis hoje conversar comigo? disse-me com um doce enfado.

Faze ideia do pasmo em que fiquei.

Emília continuou a ser para mim uma esfinge. Animado por aquela palavraafetuosa tornei-me assíduo junto dela; porém encontrava sempre o mesmoacolhimento; gelo na fronte, e sarcasmo no lábio. Era quando eu menosesperava, nalgum momento em que nos achávamos sós, que ela vertia sobremim, num olhar ou numa palavra, a ternura de sua alma. Mas depois, quantosamargores, quantos azedumes não me custavam aquelas gotas de mel?

A reunião de que me falara D. Leocádia realizou-se afinal. Era o aniversáriodo Sr. Duarte. A casa do negociante encheu-se pela primeira vez de umamultidão de convidados. A festa começou de manhã e acabou em um baileesplêndido ao alvorecer do dia seguinte.

À noite uma cascata de luz, borbotando dos salões, despenhou-se pelos jardinse alamedas da chácara. Os repuxos de mármore esguichavam rubis e diamanteslíquidos. As folhas, que a brisa balouçava, eram nesse adereço do baile asesmeraldas, tremulando entre áscuas de ouro.

Que magnificências de luxo, que pompas, a natureza e a arte não derramavamsobre aquela festa noturna! Um céu abriu-se ali; e a deusa dele atravessava comgesto olímpio a via-láctea dos salões resplandecentes. Seu passo tinha o serenodeslize, que foi o atributo da divindade; ela movia-se como o cisne sobre aságuas, por uma ligeira ondulação das formas.

A multidão afastava-se para deixá-la passar sem eclipse, na plenitude de suabeleza. Assim, por entre o esplêndido turbilhão, ela assomava como um sorriso; eera realmente o sorriso mimoso daquela noite esplêndida.

Eu contemplava-a de longe e arredado. Sentia-me triste. O dia inteiro, Emília,absorvida pela festa, nem sequer notara a minha presença. Esquecia-se de siprópria, das homenagens ardentes rendidas à sua beleza, para ocupar-seexclusivamente dessa exibição de luxo e riqueza, que ela preparara como uma

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inspiração de artista ou poeta, como um painel ou um poema.

Foi só quando o edifício iluminou-se e a orquestra derramou torrentes deharmonia que Emília recolheu em si. Sem dúvida nesse momento ela deixou deser artista para ser mulher. Vi-a algum tempo absorta e isolada em sua alma, nomeio da turba de adoradores.

De repente sobressaltou-se; como uma estrela, que se desnubla em noitelímpida, começou a cintilar. A quadrilha a chamava. Ela atravessou a sala,semeando sorrisos e enlevos n'alma daquela multidão extática, e desapareceu.

Fiquei onde estava, e sem ânimo de segui-la.

Eram onze horas já. Duas vezes tinha-me dirigido à porta para me retirar, eduas vezes achara um pretexto para demorar-me. Emília passou pelo braço doDr. Chaves.

– Qual é a contradança que eu lhe dei? disse-me ela com a maior naturalidade.

Essa palavra magoou-me ainda mais. Eu pensava que Emília reparasse naminha esquivança, e iludira-me. Ia desfazer o seu engano, quando ela atalhou-me:

– Ah!... Foi a sexta... É esta!

Depois voltou-se para seu cavalheiro:

– O senhor permite?...

Deixando o braço do deputado, tomou o meu.

– Creio que a senhora enganou-se, D. Emília.

– Parece-lhe?... acudiu sorrindo.

– Decerto! Só um engano me podia dar este prazer. Eu não me animava apedir-lhe uma contradança.

– Pois eu creio que foi o senhor quem se enganou. Não lhe perguntei qual foi aquadrilha que me pediu, mas sim a que eu lhe dei... embora não me pedisse!

– Ah! Perdão!

– Eu devia – respondeu-me séria. – Lembre-se! Era uma reparação.

– Embora! Como me podia eu supor tão feliz!

– Porquê! Por dançar uma contradança comigo? disse ela rindo. – Meu Deus!

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O que é essa felicidade que os outros acham em coisas tão pequenas e eu...

– E a senhora?...

– E eu ainda não encontrei na minha vida.

– Não diga isso, D. Emília! A senhora não é feliz?

Tínhamos chegado ao terraço, onde as luzes, brilhando entre as grandes folhasdas palmeiras imperiais agitadas pela brisa, faziam sobre o pavimento umaondulação constante de claros e sombras. Algumas flores de magnólia exalavampara nós o seu fresco perfume.

– Não, não sou feliz – disse Emília descaindo-lhe a fronte. – Nada daquilo emque o mundo pensa que está a felicidade, nada me falta; e eu não a tenho; não seiachá-la onde todos a encontram a cada momento. Às vezes, quantas!... sinto umquer que seja, uma ligeira emoção, como um sorriso que vem despontando emminha alma. É talvez a felicidade, digo baixinho; e fico muda e extática para nãoperturbar dentro em mim esse débil raio que vai nascendo. Mas de repentesome-se tudo, como se um abismo se abrisse: procuro minha alma nesse vácuoimenso, e não a sinto!

Emília falara maviosa e triste; nesse momento ela pôs os olhos em mim esorriu.

– Se isto fosse uma enfermidade, o senhor curava-me; mas não é. E quemsabe? Talvez seja!

– Não é uma enfermidade, não; é outra coisa.

– O quê? Diga!

– Não será um sonho ainda não realizado?... Uma aspiração vaga e indefinida?

– Pode ser! Não sei! respondeu-me com encantadora ingenuidade.

Meu coração abriu-se de novo à doce esperança, que dele se partira.

Depois desse baile, a casa de Duarte recebeu todos os domingos a sociedadeque D. Matilde reunia habitualmente nas quintas-feiras. Encontrava-me pois comEmília dois dias na semana, além das visitas que algumas tardes fazia ao RioComprido.

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XI

As vicissitudes de frieza e indiferença, com que Emília me tratava, não tinhamnada que se parecesse com o jogo bem conhecido das moças loureiras, quedesdenham quem as persegue e procuram quem as foge. Não havia regra nosseus caprichos. Quando ela queria vir a mim, vinha, sem afetação, francamente,estivesse eu perto ou longe, embebido a contemplá-la ou distraído ao braço deoutra moça.

Emília não tinha rivais, não me disputava a ninguém; dominava-me nasoberania de sua beleza, e atraía-me ou arredava-me a seu bel-prazer, com umcenho apenas da sua graciosa majestade.

Eu era para essa moça como um vaso onde ela guardava as essências de suaalma para mais tarde aspirar-lhes o perfume. Quando chegavam as horas dessaafluência do coração, ela procurava-me para vazá-la em mim: a sua palavraardente abundava então do lábio vívido. Outros dias chegava-se muda e absorta;parecia haver dentro dela uma grande solidão, onde seu espírito se perdia.

– Diga-me alguma coisa! murmurava ela. – Fale-me... Fale do céu, dasnuvens, do mar, do que Deus criou de melhor neste mundo!...

E eu falava; e ela bebia as minhas palavras, que lhe matavam a sede d'alma.

Fora desses momentos, em que sua alma sentia uma necessidade irresistível deexpansão ou de absorção, ela parecia esquecer-me.

Foi por este tempo que eu tomei uma grande resolução. Afagara sempre aideia de ter uma pequena chácara onde me refugiasse às tardes, escapando aoburburinho da cidade.

Aproveitei esse pretexto para aproximar-me de Emília. Indo visitá-la um dia,vi com escritos uma casinha pendurada na aba da montanha, perto de suachácara. Dali descortinava-se o seu jardim, o terraço e as janelas dos aposentosque ela ocupava na face esquerda do edifício. Com um óculo de alcance eupoderia vê-la a cada momento.

Alugada a casa, assaltou-me o receio de desagradar-lhe. Sabia eu se eraamado? E quando o fosse já, a imprudência que ia cometer não assustaria umaafeição nascente?

– Não importa! pensei eu. – É um meio decisivo de saber se ela me ama.

Fui vê-la. Estava no jardim com D. Leocádia; brincava com um grande cão da

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Terra Nova, e parecia sentir um indefinível prazer em irritar a cólera do tranquiloanimal. Uma vez corri, pensando que ela ia ser vítima da sua imprudência; o cãoirado rosnava, encolhendo o dorso, e rolando a pupila injetada.

Emília sorriu; a um gesto de sua mão, o animal foi deitar-se a seus pés,acariciando a fímbria do vestido. Ela atirou-lhe um olhar desdenhoso, e tocando-o com a ponta da botina obrigou-o a afastar-se. Depois voltou-se para mim comuma expressão indefinível de orgulho repassado de tédio:

– Não tenha receio... Tudo aqui me obedece, até este bruto!... Por mais que oirrite... Não passa disso!

Anunciei-lhe a resolução que tomara de aproximar-me dela; e o fiz trêmulo ereceoso. Respondeu-me com simplicidade:

– Melhor! Estaremos mais perto! Estimo bem.

– Pois eu receava que isso lhe desagradasse!

– Por que motivo?

– Já não tem medo?... perguntei-lhe sorrindo.

– Do senhor?... Não!... De mim... talvez.

Emília tinha dessas frases incompletas, proferidas com uma singeleza volúbil,das quais era impossível compreender o verdadeiro sentido.

Imagina que delícia foram para mim os dois breves meses que passei naquelepitoresco retiro do Rio Comprido, onde eu me abrigava todas as tardes como noregaço da felicidade. Trabalhava então com entusiasmo. Os júbilos que vertiamde minha alma sobrariam à vida mais pródiga; eu tinha ventura em profusão, quechegaria bem para encher duas existências. E entretanto não ousara aindaconfessar a Emília o meu amor!

Como as plantas mimosas, a minha ventura só floria na sombra. Era naintimidade e no isolamento que Emília vertia para mim os perfumes de sua alma.Na sala, apesar de marcar-me com a distinção sutil e delicada que é um tato docoração, contudo eu sentia que o seu olhar soberano me confundia entre amultidão, sobre que ela reinava pela formosura. As noites em que do seu lábioaltivo fluíam ondas de fino sarcasmo, nem a minha submissa admiração achavagraça perante ela.

Chegou a véspera de Corpo de Deus. Emília estava sentada ao meu lado:

– Amanhã não vou à cidade – disse-me ela. – Se o dia estiver bonito como o dehoje, pretendo fazer um passeio, que há muito tempo não faço. Quer

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acompanhar-me?

– Ia suplicar-lhe esse favor, mas não me animava.

– Iremos até o alto da montanha. Quando eu percorria só essas veredasescarpadas, os rumores da mata, as grandes sombras que oscilam pelas encostas,o ermo da profunda solidão, me faziam cismar, e sentir coisas que eu nãocompreendia. Desejava ter ali, perto de mim, alguém a quem falar; um coraçãoamigo que recolhesse o que transbordava do meu, para mo restituir depois.Iremos juntos amanhã. Quero ver como sentirei agora ao seu lado, o que sentiaoutrora no isolamento de minha alma.

Às onze horas da manhã eu esperava por Emília, no lugar que ela medesignara na véspera. Era um bosque espesso de bambus, que ficava distante dacasa, mas dentro ainda de sua chácara. Para chegar ali, atravessei o mato, que seestendia desde a minha habitação pela encosta da montanha. Tomara o disfarcede caçador, a fim de que o nosso encontro parecesse imprevisto.

Instantes depois de chegado, ouvi rugir o palhiço dos bambus que tapetava ochão; Emília apareceu.

Vinha só.

Confesso-te, Paulo, que eu senti nesse momento tiritar-me o coração de frio.Apesar do que Emília me dissera na véspera, o fato de querer ela achar-se a sóscomigo num ermo me parecia tão impossível, estava isso tão fora dos nossoscostumes brasileiros, que eu repelira semelhante ideia. Acreditava que ela sefaria acompanhar de sua criada ao menos, dando-me assim unicamente aliberdade da confidência, por que eu tanto suspirava.

Entretanto Emília conservava a mesma serenidade que tinha no salão; ao vê-laparecia que ela praticava o ato o mais natural. Sorria graciosa. Nem um longerubor no cetim da face; nem uma névoa nos olhos límpidos e calmos.

E ela tinha razão, Paulo, de conservar essa plácida confiança.

Havia na sua beleza um matiz de castidade, que a resguardava melhor do queum severo recato. Eu sentia muitas vezes, estando só com ela, a influência dessaforça misteriosa, que residia em sua tez mimosa; mas só te poderei explicar oque eu sentia por uma imagem.

Tens reparado na doce pubescência de que a natureza vestiu certos frutos? Se anossa mão a alisa, experimenta uma sensação aveludada; se ao contrário aerriça, o tato é áspero.

Assim era o pudor de Emília.

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Olhos puros e castos podiam espreguiçar-se docemente por sua beleza, porqueuma serena candidez a aveludava então. Ao mais leve rubor, porém, a alma dequem a contemplasse magoava-se na aspereza daquela formosura, tão suave hápouco.

Não era preciso que Emília dissesse uma palavra ou fizesse um gesto pararecalcar no íntimo o pensamento ousado que mal despontara. Uma dor íntimaacusava-me de a ter ofendido, antes que eu tivesse a consciência disso.

Nunca se adorou de longe, na pureza do coração, com respeito profundo e umsevero recato, como eu adorava Emília nas horas que tantas vezes passamos asós, perdidos naquela solidão, onde não encontrávamos criatura humana.

Avalia do excessivo melindre de Emília por dois fatos que te vou contar.

Um dia, repetindo esse passeio da montanha, ela quis atravessar o leitoempedrado de um córrego que se precipitava pela frágoa (sic) escarpada. Seu péresvalou; ela ia espedaçar-se. Estendi os braços para ampará-la. Repeliu-mecom violência, exclamando irada:

– Deixe-me morrer, mas não me toque!

Outra vez, uma noite de partida, eu dava-lhe o braço. Numa volta, a minhamanga, inadvertidamente, mal roçou-lhe o marmóreo contorno do seio. Ouvicomo um débil queixume, que exalaram seus lábios. Voltei-me. Estava hirta elívida, presa de uma rápida vertigem. Aniquilou-me com um olhar de Diana;retirou o braço; deixou-me imóvel e pasmo no meio da sala.

Uma semana não me quis falar. Quando afinal obtive o meu perdão, ainda melembro do modo estranho por que me recebeu:

– É a segunda vez que lhe tenho ódio!

Soltando essa palavra, seu lábio túmido parecia sugar dela um gozo ignoto. Asróseas narinas titilaram, enquanto os olhos, velando-se, afogavam num fluidoluminoso.

Nessa mesma noite, como uma compensação do que a sua severidade mefizera sofrer, concedeu-me uma graça que eu nunca ousara esperar.

Dançava-se. Emília sofria como sempre a vertigem do baile, que era poderosaem sua organização.

Apesar da sutileza de beija-flor com que ela esvoaçava, não deixando as purasasas roçarem pelo mundo torpe, eu tinha ciúmes da graça que esparzia assimpara todos. E sofria cruelmente, assistindo aos triunfos da sua beleza.

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Ela percebeu, e veio a mim:

– Por que está triste?

– Porque sou egoísta, e não tenho o direito.

Emília sorriu:

– A nossa amizade é uma flor muito suave para este clima da sala. Não lheparece?... Por força há de sentir aqui.

Fazia uma linda noite, sem luar. As copas escuras das árvores nadavam no azuldiáfano, borrifado pela doce luz das estrelas.

Emília recostou-se à janela e, enquanto falava, seus olhos se banhavam nasuave limpidez do céu.

– Como está estrelada a noite!... Ali naquele silêncio a alma pode abrir-se; nãoé verdade? Não há rumor que a assuste, nem esse vapor que abrasa!... Eu gostoda noite!... É mais doce que o dia. É quando eu sinto, quando sei melhor sentir, éà noite; sobretudo nas noites escuras, como esta, em que só há estrelas! O sol mealegra, como a grande claridade das salas, e me anima. Eu creio que as horas,em que sou mais bonita, é ao meio-dia no campo e à meia-noite no baile! Nãosabe por quê? Tenho bebido muita luz; a luz é um alimento para mim. Mas a horaem que sou mais bonita, não é a hora em que me sinto melhor, acredite! Nasombra sim, conheço que meu coração é bom. Pareço-me com as flores. De diaas cores mais vivas; de noite o perfume mais suave!

Eu escutava Emília, enlevado como sempre que, em nossas conversas íntimas,ela fazia cintilar a graça de seu espírito volúbil. E se vinham de envolta algunsraios dessa fragrância, que ela chamava perfumes de sua alma, eu os recolhiasantamente no coração.

Enquanto ela falava, eu reprimia a respiração para não perturbar a melodia desuas palavras. Se me perguntava alguma coisa, tinha medo de responder-lhe;parecia que minha voz ia dissipar o meu êxtase.

– As melhores horas da minha vida, vivo-as de noite. É quando Deus me visita.Ele desce nos raios das estrelas, e entra em minha alma, aberta para recebê-lo.Tenho-o sentido aqui dentro tantas vezes!... Veio-me agora um capricho!...Olhe!... Quando essas luzes se apagarem, e todos recolherem, quero gozar destabela noite... Mas há de ser lá, à sombra daquelas jaqueiras, à beira do lago.

As jaqueiras de que falava Emília ficavam muito distantes da casa.Insensivelmente movi a cabeça com um gesto de dúvida.

– O senhor não acredita?... Pois vá até lá.

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– Consente!...

Seu olhar casto pousou em mim, como uma linda criança conchegando-se noregaço materno.

– À uma hora. Eu o espero.

Que estranha e bizarra criatura, Paulo! Com que desdém, ela frágil menina dedezessete anos, pura como um anjo, calcava aos pés todas as consideraçõessociais, todos os prejuízos do mundo! Ela dava-me a maior prova de confiança, eo fazia singela e natural, apenas com uma dignidade meiga de rainhacompassiva. Arriscava por mim sua reputação, e nem o mais leve receio-lheperpassava na fronte serena.

Enfim, Emília dava-me esta entrevista, alta noite, em um ermo, como meconvidara para o passeio a Santa Teresa, como me dera a primeira contradançaque dançamos, como me daria uma flor, um sorriso, um olhar.

E tinha razão.

Não estava ela em qualquer lugar mais protegida pelo seu pudor celeste do quetantas mulheres desvalidas dele no meio de um salão?

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XII

Era uma hora da noite.

Eu esperava Emília com os olhos fitos na janela de seu quarto, as únicas emtoda a casa que ainda apareciam frouxamente esclarecidas.

Já te disse que os aposentos de Emília, uma alcova, um gabinete de vestir euma sala de trabalho, ocupavam a face esquerda do edifício. Desse lado osobrado apoiava-se a uma escarpa da colina, que lhe servira como de alicerce, eque para elegância da construção o arquiteto disfarçara com um terraço.

O gabinete de Emília abria uma porta para esse terraço. Ali no quadroiluminado pela claridade interior, via eu de longe desenhar-se seu vulto esbelto.Avançou até a borda do rochedo escarpado.

– Que vai ela fazer, meu Deus! balbuciei trêmulo e frio de susto.

Esquecendo tudo, para só lembrar-me do risco imenso que sua vida corria, fuipara soltar um grito de pavor que a suspendesse; mas ela, resvalando pelas pontaseriçadas do rochedo abrupto, já tocava a planície. Pouco depois estava junto demim, calma, risonha, sem a menor fadiga.

– Aqui estou! disse afoutamente, abaixando o capuz da longa mantilha.

– Para que arrisca assim a sua vida, D. Emília? Se eu soubesse... não tinhaaceitado!

Ela ergueu os ombros desdenhosamente.

– Ainda estou frio!... Parecia-me a cada momento que o pé lhe faltava e...

– E eu morria!... Se não fosse isso teria eu vindo? Podíamos ficar ondeestávamos, tranquilamente sentados no sofá... Para que serviria a vida, se elafosse uma cadeia? Viver é gastar, esperdiçar a sua existência, como uma riquezaque Deus dá para ser prodigalizada. Os que só cuidam de preservá-la dos perigos,esses são os piores avarentos!

– E quem se priva a si do mais belo sentimento, quem se esquiva de amar, nãoé avaro também da vida, avaro do seu coração e das riquezas de sua alma? Asenhora o é, D. Emília! Oh! Não negue!

– Como ele se engana, meu Deus! exclamou Emília erguendo ao céu os belosolhos.

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– Que diz?... Então posso acreditar enfim?

E murmurei arquejante:

– É verdade que me ama?

Nunca até aquele momento, durante dois meses vividos em doce intimidade eno conchego estreito de nossas almas, nunca a palavra amor fora proferida emreferência a nós. Emília dava-me, como já sabes, todas as preferências a quepodia aspirar o escolhido do seu coração, e assumira para comigo o despotismoda mulher amada com paixão. Ela imperava em mim como soberana absoluta.Seu olhar tiranizava-me, e fazia em minha alma a luz e a treva.

A fonte de minhas alegrias, como de minhas tristezas, manava de seus lábios.Se eles abriam-se, meu coração abria-se também, em flor ou chaga, conforme osorriso era orvalho ou espinho.

Ela tinha consciência disso, mas persistia em chamar, ao sentimento que nosligava, uma boa e santa amizade. Às vezes, que eu ousava começar o nome docee verdadeiro do meu afeto, seu olhar incisivo cortava-me a palavra nascente; aminha culpa era rigorosamente punida com alguns dias de uma indiferençacompleta.

Naquela noite, porém, cuidei que era chegada a hora da minha ventura. Tudome anunciava. Essa entrevista alta noite, a solidão que nos cercava, os perigosque Emília afrontara para ir ter comigo, o sereno contentamento derramado portoda sua pessoa, e até a última palavra que proferira invocando a Deus; tudo istonão me dizia bem claro, e com a eloquência sublime das paixões irresistíveis, queela me amava?

Pois bem, Paulo; ouvindo a minha trêmula interrogação, Emília demorou seuolhar sobre mim, e disse-me com uma placidez esmagadora:

– Não; não o amo!

Depois, como se quisesse abrandar a dureza dessa declaração, adoçou a vozpara acrescentar:

– Não o amo... ainda!

– E nunca me há de amar!

– Por quê?... Escute! Não se agaste comigo. Sou franca; disse-lhe que não oamo ainda, é a verdade. Virei a amá-lo algum dia? Só Deus o sabe. Sente-se aquiperto de mim; vou lhe fazer uma confissão.

Ajoelhei-me junto ao banco.

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– De joelhos? Mas eu é que devia estar, pois sou eu quem se confessa! disseela rindo. – O senhor me supõe um coração frio e egoísta... avaro de amor, comodizia. É o contrário inteiramente. Devia dizer um coração pobre, miserável deamor, mas ambicioso, mas devorado pela sede imensa... Amor! Amor! Nãopeço eu a Deus todos os dias que me encha dele esta alma? Tivesse-o eu, que lhedera sem hesitar toda a minha vida, sem guardar para mim nem um instantedela! Tivesse eu essa opulência do meu coração, que então o senhor não mechamaria avara, mas pródiga e louca, porque eu sinto que o seria... Sim, louca,de minha louca paixão!

– Eu julgava que tinha medo de amar? Creio que me disse.

– De amar, não; mas dessas ilusões efêmeras, que murcham o coração.Quero o meu bem vivo, para dá-lo todo a quem for dele senhor. Talvez aquele aquem o der o dilacere. Embora! Devem de haver delícias inefáveis neste mesmosuplício! Depois que supremo consolo!... Sentir o orgulho de só ter amado umavez na vida!.. Sentir que não restam do primeiro e único amor senão cinzas docoração extinto!

Esquecido já do desengano que recebera há pouco, eu palpitava sob a palavraapaixonada de Emília, como se fora o feliz que devesse merecer tão sublimepaixão!

– Medo de amar? exclamou ela. – Pois saiba que mãe nenhuma espiando oprimeiro sorriso nos lábios do seu filhinho teve os estremecimentos de venturacom que eu espreito o primeiro palpite de meu coração. Meu Deus, que júbiloimenso não deve ser o amor, quando a esperança dele nos enche assim decontentamento! Foi há cinco meses... quando o senhor voltou... Cuidei que iaamar.

– A mim?

– Sim, ao senhor. E desde então interrogo minha alma; escuto-me viverinteriormente... Lembrei-me até de escrever o que eu sentia. Seria a história domeu coração. No dia em que ele me dissesse que eu o amava, sem que o senhorme perguntasse, sem o menor acanhamento, lhe confessaria. Acredite!...

– E seu coração até agora nada lhe disse ainda, D. Emília?...

– Meu coração diz-me que eu o estimo tanto como a meu pai; que o senhorocupa uma grande parte da minha vida; que sua lembrança gravou-se e não seapagará mais nunca em meu pensamento; que as horas que passo a seu lado sãoas mais doces para mim; que nenhuma voz toca mais suavemente as cordas deminha alma. Eis o que me diz o meu coração; mas ele não diz que pelo senhor eusacrificaria tudo, as considerações do mundo, minha família, as minhas afeiçõese os meus sentimentos; ele não diz que o senhor bastaria à minha vida, e aencheria tanto, que não houvesse mais lugar nela para outro pensamento e outro

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desejo. Não diz isto; logo eu não o amo!..

– Mas, D. Emília, atenda! A senhora ilude-se talvez...

– Sei o que pensa. Na sua opinião o amor assim é impossível! Pois juro-lhe!...eu só amarei assim.

Emília ergueu-se.

– Ao menos diga-me. Posso ainda ter uma esperança?

– Eu a tenho!... respondeu-me.

Se o mundo soubesse um dia a história que eu te conto, Paulo, ele exclamariasem dúvida:

“É impossível! Essa mulher não existiu!” E o mundo teria razão.

A Emília, de que eu te falo, não existiu para ninguém mais senão para mim,em quem ela viveu e morreu. A Emília, que o mundo conhecera e já esqueceutalvez, foi a moça formosa, que atravessou os salões, como a borboleta, atirandoàs turbas o pó dourado de suas asas. A flor, de que ela buscava o mel, nãoviçava ali, nem talvez na terra.

Seria flor do céu?

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XIII

Havia no tratamento de Emília uma variação incompreensível.

Às vezes era uma ternura suave e compassiva, como se ela quisesse consolar-me por não ser amado; outras vezes parecia que a minha paixão a irritava. Tinhaentão o coração áspero e a palavra acre; mas era justamente nessas ocasiões detormenta que eu via cintilar em seus olhos um raio de amor, e sentia vibrarem ascordas frementes de sua alma.

Uma noite pedi-lhe que não dançasse mais com o Barbosinha; não que eutivesse ciúmes de semelhante fátuo; mas era ele desses homens ridículos cujocontato mancha uma senhora. Emília recusou, e eu voltei despeitado.

No dia seguinte encontrei-a agastada comigo:

– Não consinto mais que me ame!... disse-me ela voltando as costas.

Poucos instantes depois, passou pelo braço do Barbosinha e lançou-me estedesafio:

– Tire-me do braço dele, se quiser!...

Emília tinha sobretudo um zelo excessivo de sua espontaneidade. Receava elaque a menor graça feita às minhas súplicas valesse como uma prova de amor?Quando lhe pedia alguma coisa, mesmo pequena e insignificante, dessas que amoça a mais austera pode conceder a um indiferente, ela recusava sempre, ecom tal firmeza, que me tirava a coragem de insistir.

Se eu me agastava, escarnecia de mim; se me resignava e esquecia suarecusa, vinha espontaneamente com uma singela mas altiva dignidade conceder-me alguma prova de afeição, tal que eu nunca me animara a esperar.

Lembra-me de uma vez que, insistindo eu por um botão de rosa, que ela tinhanos cabelos, Emília conservou-o no seu penteado por muitos dias até secar; comose achasse um prazer infinito em prolongar assim tacitamente a sua recusa. Diasdepois, sem que eu lhe pedisse, de improviso, deu-me o seu retrato.

– Guarde-o para lembrar-se de mim!

Depois da noite em que estivemos juntos à borda do lago, Emília pareciaevitar-me. Tinha decorrido uma semana. Eram oito horas da manhã; manhã deinverno, coberta de espessa cerração, que peneirava no ar uma garoa finíssima.

Resolvido a não ir à cidade senão mais tarde, estava eu sentado à janela, donde

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avistava a casa de Duarte. Esperando ver Emília passar na varanda e cortejar-me de longe, como às vezes costumava, eu refletia sem querer sobre essecaráter original de moça.

De repente sou arrancado às minhas reflexões por uma chuva de bogarins; eouço perto o gorjeio de um riso melodioso, que os ecos de minha alma tantoconheciam. Emília estava defronte, além da cerca de espinheiros que dividia omeu jardim da sua chácara. Uma capa de casemira escura cobria-lhe quasetodo o vestido, e o capuz meio erguido moldurava graciosamente seu rosto divino.

O exercício lhe avivara o saboroso encarnado das faces, onde tremulavamalgumas gotas da chuva. Seus olhos negros saltitavam de prazer, como doiscolibris voando ao meu encontro. Curvava-se para colher os botões de bogarimque me atirava; e tão suaves eram as flexões desse talhe, que apesar das largasroupagens percebia-se a doce vibração do movimento revelado exteriormentepor um harmonioso ondulado.

Eu devera já estar habituado aos caprichos dessa moça; mas tudo quanto elafazia era tão desusado, que me levava de surpresa em surpresa. Assim, correndoao seu encontro, não achei palavras, mas unicamente sorrisos para acolhê-la.

– Está admirado de me ver aqui? disse ela. – Não gosto de ser contrariada,nem mesmo pelo céu. Acordei hoje com uma alegria de passarinho! Tinhasaudade das árvores!... Abri a minha janela; estava chovendo. Ora! Para que seinventaram as capas e os guarda-chuvas? Vi-o de lá pensativo... Em que estavapensando?

– É preciso perguntar-me? Em que penso eu sempre e a todas as horas?

– Em mim?... Pois aqui estou!

– Que imprudência!...

– Deveras!

– Oh! não me chame de ingrato para a felicidade! Mas se ela deve custar-lheo menor dissabor!... não a quero! Podia alguém vê-la!...

– Eu não me escondo!... respondeu Emília com altivez.

Depois, velando-se de súbita melancolia, acrescentou com um sorriso:

– Não tenha cuidado. Eu sou rica; não me comprometo.

– Que significam estas palavras, D. Emília?

– Vamos nós agora discutir aqui, de um e outro lado da cerca?... atalhou ela

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rindo francamente. – Já não me lembra o que disse! Mas, com efeito, o senhor ébem pouco amável! Nem sequer ainda me convidou para entrar!

– Eu não me animava!

– Foi bom então que me animasse eu, do contrário ficaríamos aqui, à chuva!Está bem! Faça-me o favor de abaixar a cabeça.

Tirou o seu lenço, e vendou-me com ele. Depois calcando a mão sobre o meuombro, percebi que ela saltava a cerca. Creio que sua botina resvalando pelosgalhos úmidos do espinheiro lhe traiu o elance, porque senti no meu peito a docepressão de seu talhe.

Repeliu-me logo. Ouvindo o ai que soltaram seus lábios, arranquei o lençoarrebatadamente, e surpreendi seu olhar... Que olhar, meu Deus!... A voragem deuma alma revolta pela paixão, e abrindo-se para tragar a vítima!

Mas foi tão instantâneo, que eu não posso afirmar que vi. Já ela se tinhaafastado bruscamente dilacerando entre os dedos os renovos das plantas, que suamão trêmula encontrava na passagem. O capuz lhe descera, deixando a cabeçaexposta à chuva e à brisa cortante.

Depois de algumas voltas pelo jardim voltou calma, serena e risonha; dirigiu-se à porta, indicando-me com um aceno gracioso que a seguisse. Na sala dejantar onde entramos, estava uma cafeteira; ela encheu uma xícara e bebeu doisou três goles frios e sem açúcar.

– Ah! Aqui é o gabinete, onde se estuda! disse parando no lumiar. – Pode-seentrar?

Eu tinha vergonha da minha modesta habitação, que não era digna daquelahonra. Confuso, acompanhava quase como um autômato a ela, que vagava deum para outro lado, naturalmente, sem o menor vexame. Meu gabinete detrabalho era nesse tempo muito pobre; o que havia de melhor estava na cidade.Emília correu a estante com os olhos, lendo o título das poucas obras literárias,com esse tom afetuoso com que saudamos antigos amigos.

– O senhor nunca fez versos?

– Quem é que não os fez aos dezoito anos?

– Eu!... Tenho dezoito anos e nunca fiz um só.

– Inspira-os, que é melhor.

– Obrigada! Já lhe inspirei alguns?

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– A senhora... D. Emília?...

– A senhora... Por que não me chama Mila? É como me tratam os que mequerem bem.

– E Mila chamará Augusto?

– Está entendido! Não é como lhe chamam seus amigos?

– Meus amigos me tratam por tu – disse eu sorrindo.

– Isso não! Quando eu disser tu, é porque não existe mais eu em mim. Porémresponda! Já lhe inspirei algum verso?...

– Quantos, meu Deus!

– Mostre-me! Quero ver!

– Mas eu não escrevi! Para quê? Eles não diriam tudo que eu sinto.

– Pois agora há de escrevê-los para mim: sim, Augusto?

– Não, Mila. Eu já não sei, ou antes nunca soube fazer versos. Quando secomeça a vida, sente-se essa veleidade; é natural. É o tempo das flores, dossorrisos e dos cantos. Isso passa.

– Mas por que não há de escrever ainda? Se não quer ser poeta, seja escritor.Não tem ambições? Não ama a glória?

– Amo; a glória da minha profissão, a única a que devo e posso hoje aspirar. Éuma glória obscura e desconhecida, bem sei. Nossos triunfos, não os obtemos napraça ou no teatro, diante da multidão que aplaude; mas lá, no recôndito de umacasa, no aposento silencioso, onde geme a criatura. Só Deus os contempla, só eleos recompensa. O mundo e aqueles mesmos a quem salvamos, nos pagam, masnem nos agradecem às vezes. Foi a natureza, dizem eles. Mas os reveses, essespesam sobre nós. É uma glória amarga, Emília, a que me coube em partilha.

– Quem lhe impede de aspirar a outras?

– A minha consciência. Quando me dediquei à medicina não busquei só ummeio de vida; votei-me a um sacerdócio. Sinto que a minha aptidão é essa; fugira ela fora mentir à minha missão neste mundo.

– Tem razão! A verdadeira glória deve de ser essa; fazer o bem. Eu é que souuma louca! Mas já gostava da medicina; agora vou gostar ainda mais.

E para confirmar seu dito, Emília começou a examinar os instrumentos e

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livros com uma travessura infantil, roçando por eles de leve a ponta dos dedos,como se os acariciasse. O acaso deparou-lhe um atlas de anatomia; pousandoentão a ponta da unha rosada sobre o título, voltou-se para mim sorrindo:

– Quero ver o coração! Onde está?

E afastou-se enquanto eu folheava o atlas para mostrar-lhe a estampa que elapedira. Esteve a olhar muito tempo; afinal murmurou:

– Quando eu morrer, Augusto, há de examinar o meu... Para ver se édiferente!

– Que ideia!... Deixe isso, Mila! retorqui fechando os livros e instrumentos nosarmários. – Sinto não ter em minha casa objetos mais alegres para distraí-la. Aminha profissão é triste, já lhe disse, bem triste! Vive das misérias do próximo.Suas alegrias são sempre travadas de dores!... Afinal nos habituamos. Masenquanto não chega essa indiferença, que dúvidas! E quando chega, que aridez!Por isso, Emília, eu sinto a necessidade de um santo amor, que me proteja contraa descrença, e me preserve a alma desse terrível contágio do materialismo.

Emília me ouvira comovida. Ergueu-me a fronte, para que eu recebesse omeigo sorriso, cheio de ternura, que ela me queria embeber n'alma.

– O que lhe disse eu naquela noite?... Espere! Talvez não espere muito tempo!Envolvendo-se na sua capa, fugiu por entre as árvores.

Depois dessas mútuas expansões e das nossas entrevistas solitárias, depoissobretudo da promessa que ela me fizera partindo, parecia natural que eu fossecrescendo na afeição de Emília; porém esta moça era cada vez maisincompreensível. Os dias que seguiram tratou-me com bastante frieza: e umatarde com desdém até.

Achei-a lendo uma folha de pequeno papel bordado que me pareceu carta:pensei que fosse da prima. Ela nem ergueu os olhos para cumprimentar-me; erespondeu com uma simples inclinação da fronte. Sentei-me; dirigi-lhe por vezesa palavra sem obter mais resposta que um sim ou não; afinal conhecendo que elaestava preocupada, esperei calado pelo seu bel-prazer.

Emília leu e releu, talvez já esquecida da minha presença; dobrando o papel,que meteu no bolso, começou a passear pela sala, visivelmente distraída. Pormomentos soltava débeis modulações de alguma ária; depois fugia-lhe peloslábios um sorriso misterioso, desses que se sorriem sem consciência, verdadeirasesfinges d'alma.

Não me pude mais conter:

– Adeus, D. Emília. Vejo que minha presença começa a incomodá-la: é tempo

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de torná-la mais rara e menos importuna.

– Ah! Já cansou de esperar? respondeu com um ligeiro riso de mofa.

– Já perdi a esperança, confesso-lhe. Já; porque enfim compreendo o que sepassa em seu espírito.

– Queria que me dissesse isso! Ficaria sabendo.

– Dir-lhe-ei; por que não? A senhora é de uma bondade extrema e cuida queeu tenho direito à sua gratidão. Conheceu que eu a amava, que esse amor eraminha felicidade e minha vida. Pareceu-lhe que recusar-me em troca suaafeição era o mesmo que recusá-la a um pai, a um irmão. Quis amar-me,porque é boa; fez todo o possível para isso, mas debalde... O amor nasce de simesmo, de repente, sem que o suspeitem. Se ele viesse quando o chamamos edesaparecesse à vontade, não era o que é, uma fatalidade. Iludiu-se, D. Emília. Ohomem a quem há de amar, a senhora não o conhece, nem o viu talvez. Quandoaparecer, não lhe dará tempo de interrogar-se. Seu coração palpitará por simesmo, e a senhora sentirá que ama, sem saber como, nem quando, começou aamar!

– Talvez isso seja verdade para outras; para mim asseguro-lhe que não. Oamor, como eu sonho e espero, há de ser a minha vida inteira; portanto parece-me que tenho o direito e até o dever de conhecê-lo antes de entregar-me a elesem reserva e para todo o sempre.

– É outra ilusão sua! O amor tem a crença ingênua da eternidade; quem osente acredita sinceramente que ele não se extinguirá nunca. Eu não tive afelicidade de lhe inspirar essa fé sublime; portanto que esperança posso ter? Omelhor talvez fosse retirar-me, porque à força de querer violentar seu coração,Emília, talvez acabe odiando-me!...

– Odiando-o?... exclamou Emília assustada. – Como lhe veio semelhantepensamento?

– Não me disse já uma vez?

– Cale-se! atalhou ela com inexplicável pavor.

Emília ficou algum tempo muda e pálida, absorta na estranha emoção.

– Augusto!... disse-me ela afinal, e com terna melancolia. – Não tem razão.Quem me fez acreditar no amor? Quem me deu a fé e a esperança nele?...Lembre-se! Antes de conhecê-lo, eu duvidava.

Essa palavra e um sorriso bastaram para serenar minha alma.

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XIV

Havia grande reunião em Matacavalos.

Tinha visto Emília de relance. Ela sofria já a ebriedade das luzes, da música edos perfumes, que a dominava sempre em pleno salão. Nesses momentos haviaem toda a sua pessoa, na atitude e nos movimentos, anelos impetuosos. Pareciaprovocar as emoções. Seus lábios aspiravam então com avidez o ambiente dobaile.

Mas seu pudor suscetível não a abandonava nunca. Ela atravessava a multidãoagitada, como a borboleta que enreda o voo por entre as ramagens do rosal, semferir nos espinhos a ponta das asas sutis. O que a protegia na confusão, não eratanto o rápido olhar, como um sétimo sentido, que só ela possuía: uma espécie deprevisão dos objetos que se aproximavam.

Contudo, eu sofria muito vendo Emília assim esquecida de mim e engolfadanos prazeres que outros partilhavam. Essas horas do baile eram meu lentosuplício. Algumas vezes, bem como nessa noite, eu evocava debalde asrecordações dos dias passados, debalde me acusava de egoísta; o ciúme afinalme vencia.

Foi já quando o coração me desfalecia que ela pela primeira vez veio onde euestava.

Notei sua grande palidez. O seio arfava precipitadamente. A fadiga ou aemoção lhe havia umedecido a fronte. Seus olhos tinham um brilho vítreo queincomodava.

– O baile já a fatigou?... Muito depressa!... disse-lhe com o riso amargo.

– Quase não dancei!... Mas não sei o que sinto!... Não me acha muito pálida?

– Há de ser o calor!... Esta sala é muito abafada!

– O calor?... Se eu tenho frio... frio n'alma!... É a febre que vem!... murmuroucom um riso singular.

Nessa ocasião o Dr. Chaves aproximou-se para oferecer-lhe o braço.

Hás de te lembrar dele, Paulo. É um brilhante talento de orador, que se reveloude repente na Câmara por alguns triunfos bem notáveis. Moço ainda, elegante,com uma fisionomia expressiva e o reflexo de suas glórias políticas, ele triunfavano salão, como na tribuna.

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Antes de aceitar-lhe o braço, Emília me disse a meia voz, com um tomsuplicante:

– Não fique tão longe de mim!... Eu lhe peço!

Segui-a por algum tempo; mas quando a vi suspensa à palavra sedutora de seupar, embalando-se docemente à música das frases talvez apaixonadas que ele lhedirigia, tive a coragem de arrancar-me a esse martírio. Refugiei-me no jardim.

Havia ali encostados à varanda, e nos intervalos das sacadas, uns bancos depedra cobertos por dosséis de uma trepadeira qualquer. Nos dias de baile, D.Matilde fazia iluminar essa arcaria de verdura, que dava à casa um aspectocampestre.

Fumava sentado num desses bancos. De repente ouço a voz de Emília. Ela serecostara à janela próxima, e continuava com seu par uma conversa animada. Afolhagem espessa me escondia aos olhos de ambos; porém eu os viaperfeitamente no quadro iluminado da janela.

– Tudo isto, doutor, não é mais do que um desses bonitos discursos, de que osenhor tem o talento admirável...

– Então não me acredita? disse o Dr. Chaves.

– Não posso!... Em uma vida como a sua, tão cheia de glórias e ambições, oque resta para o amor?... As horas perdidas do baile!... Confesse!...

– Mas a senhora não sabe então, D. Emília, que estes curtos instantes em que avejo são os únicos que vivo? O resto, o tempo que sobra à minha tão rápidafelicidade, trabalho com entusiasmo, é verdade! Mas por quê? Porque trabalhar,para mim, é amar ainda, e elevar-me do pó, a fim de poder erguer os olhos parao céu sem ofendê-lo! Eu não era ambicioso, não! Foi o amor que me deu estasede de poder. Os meus mais belos triunfos, acredite-me, senhora, não os sintoquando os alcanço, mas quando venho depô-los submisso a seus pés. A minhaglória é essa unicamente, fazer de quanto o mundo respeita e acata a humildadede meu amor!...

Emília escutava enlevada. Às vezes o orgulho vibrava sua fronte nobre comum gesto divino. Oh! que tirânica beleza é a dessa mulher, que até mesmoquando eu a desprezo, me força a admirá-la!

Quando a voz que a raptava emudeceu, ela ficou suspensa um instante. Depoisfitou os olhos no Chaves.

– E se eu exigisse, o senhor teria a coragem de sacrificar tudo a um caprichomeu?

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– Ordene!

– Não tenho esse direito – respondeu sorrindo. – Se o tivesse... não seria assimegoísta. Quisera ao contrário partilhar com o mundo inteiro os seus triunfos!

– Mas esse direito... lhe pertence! Tome-o. Eu lhe suplico!

– Não me sinto com forças.

– Sempre essa cruel palavra!

Como eu sofria, Paulo... Mas não! Sofri depois, ainda agora sofro! Naqueleinstante, nada, nada absolutamente! O que a revelação cruel produziu então emmim não foi nem dor nem indignação, mas um estupor d'alma! Eu ali fiquei, noidiotismo das minhas emoções.

O diálogo do Dr. Chaves fora interrompido pela aproximação do Álvares, quevinha buscar Emília para a prometida quadrilha. O deputado teve de ceder olugar.

Depois de um curto silêncio, durante o qual o jovem poeta esteve sob ainfluência do olhar soberano de Emília, ele animou-se a falar-lhe em vozsubmissa:

– D. Emília... A senhora leu os meus versos?

– Li – disse ela. – São muito bonitos, mas não são verdadeiros.

– Tem razão! Não dizem nem a sombra do que sinto! Mas sou eu o culpado? Overbo divino do meu amor, não há na linguagem dos homens palavra que oexprima!

– Não por certo! Não é possível exprimir o que não se compreende.

– Oh! D. Emília!

– Oh! Os poetas! Eu os conheço! O que eles amam neste mundo é unicamentesua própria imaginação, o ideal sonhado: todos têm sua Galateia, e nós não somospara eles senão estátuas, que os seus versos devem animar, como centelhas dofogo sagrado!

– Se a senhora tivesse lido a poesia que eu ontem escrevi, não pensaria assim,D. Emília!

– Dê-me! Quero vê-la!

– Não a trouxe!

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– Procure bem! disse Emília sorrindo.

O Álvares tirou com efeito do bolso um pequeno papel dobrado; mas com afaceirice dos escritores, recusou entregá-lo, quando Emília estendia a mão pararecebê-lo.

O movimento vivo que ele fez soltou-lhe dentre os dedos o papel, que veio cairno jardim.

Ela riu e afastou-se exclamando:

– Bem feito!

O Álvares correu à porta da varanda, mas chegou tarde. Não sei que instintoda minha então embrutecida natureza me fez precipitar ligeiro sobre o papel,como fera sobre a presa.

Fui esconder-me no fim do jardim, e ali passei uma hora palpando aquelepapel aveludado, com o sentimento do suicida tateando o punhal que o deveimolar. Nem mais me lembrava do que se passara com o Chaves. A primeira dorenvelhecera já.

Quando me supus calmo e senhor de mim, voltei à sala.

Do primeiro olhar, vi Emília sentada na outra extremidade, sempre bela eresplandecente; mais por certo que nunca, pois nesse instante eu a admirava comolhos de maldição. Recostado ao umbral da porta, estava um homem, que adevorava com a vista, esperando impaciente a oportunidade para falar-lhe. Era otenente Veiga, de quem já te falei.

– Ainda outro, meu Deus! soluçou minha alma agonizante.

Julga do meu sofrimento, Paulo, pela vileza a que me arrastava o desespero.Acabava de roubar um papel que me não pertencia; não era bastante; fiz-meespião. Dei volta pela varanda de modo a aproximar-me da porta sem que osdois me pressentissem. Não cheguei já a tempo de ouvir, mas vi...

Emília desprendera uma violeta de seu ramo e deixara-a cair aos pésintencionalmente: o oficial curvou-se, apanhou rápido a flor, que beijou eprendeu com orgulho ao peito da farda ornada de condecorações.

Tudo isto fora feito com tão delicado disfarce, que ninguém mais na sala o viu,nem suspeitou.

Vaguei pelo salão conversando com um e outro, cumprimentando algumassenhoras de meu conhecimento, procurando assim gastar ao atrito dosindiferentes as emoções dolorosas que me pungiam.

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Depois sentei-me à mesa do jogo.

Chegou finalmente a quadrilha que eu devia dançar com Emília, a sexta, senão me engano. Uma das finezas que ela me fazia nesse tempo, era não dançarmais em um baile, depois de ter dançado comigo; por isso me reservava semprea última de suas quadrilhas.

– Como o senhor está pálido, meu Deus! exclamou ela tomando-me o braço.

– Não; há de ser o efeito das luzes sobre este papel escarlate – respondisorrindo. – E o seu acesso? Já passou?

– Que acesso? perguntou surpresa.

– Não disse há pouco... que tinha febre n'alma?

– Ah!... Sim! Já passou! replicou sorrindo. – O senhor é tão bom médico deminha alma, que bastou sua lembrança para curar-me.

– Então lembrou-se de mim?

– Que remédio, se não lembrar-me? Procurei-o tantas vezes com os olhos, enão o vi!... Onde esteve o senhor todo este tempo?

– Pois deveras reparou em minha ausência, D. Emília? Juraria o contrário!

– Jurava falso! Se não fosse verdade, por que lho diria?

– Quem sabe?

– Quem melhor do que o senhor!

A voz de Emília nessa conversa era doce e meiga. Seu olhar macio acariciava-me com delícias. Em toda a sua pessoa derramava-se um celeste eflúvio deternura, que manava de sua alma, e rorejava a flor nativa de sua ingênua altivez.Nunca eu a vira assim maviosa, nem mesmo nas horas em que estávamos sós.

– E não me quer dizer onde esteve? perguntou de novo com branda queixa.

– Estive jogando.

– O senhor?... o senhor que aborrece o jogo? Que lembrança foi esta?

– Aborreço o jogo, é verdade! É de todos os vícios o que mais revolve osinstintos maus. Porém às vezes é necessário. Os venenos também são remédios...perigosos, sim... Quando não curam, matam.

– Queria esquecer-me! disse Emília com terna exprobração. – Ingrato!...

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Quando minha alma o chamava!...

Esta palavra exacerbou-me o coração:

– Para que, D. Emília? Para que me chamava a senhora? Não tenho nemposição brilhante, nem glória, nem talento, para depor a seus pés. O meu amor?...Esse fora um mesquinho triunfo para quem alcança os mais brilhantes. Um amorbanal... Mas perdão! Não devo mais profanar o meu sentimento com esse nome.Chamarei amizade, como a senhora. Não me disse uma noite, por outraspalavras, que a minha afeição era uma flor muito modesta para se fazer delaramalhetes e grinaldas de baile?... Tinha razão!... No campo, por desfastio, emalgum dia monótono, pode excitar a curiosidade. Não lhe parece?... Assim foimelhor que eu me conservasse longe; devia mesmo não voltar. Tenho receio deenvergonhá-la com uma paixão ridícula!

Emília cravara em mim seu olhar inteligente e soberano, que me trespassou aalma todo o tempo que eu levei a proferir estas palavras. Havia nesse olhar, deuma fixidade importuna, arrogância e curiosidade ao mesmo tempo. Ela pareciaquerer recalcar-me no coração minha palavra sarcástica, e ao mesmo tempoarrancar dali o segredo da súbita mudança operada em mim.

Depois de uma pausa começou com a palavra triste e lenta:

– Não me fale assim! Eu tenho, o senhor bem sabe, um espinho em minhaalma; é o orgulho. Quando tocam nele o fel se derrama, e eu me sinto má!... Nãoquero responder-lhe. Posso dizer-lhe alguma palavra dura e magoá-lo... Depoissofreremos ambos. Não é melhor a franqueza, do que estarmos aqui como duascrianças a ferir-nos com pontas de alfinetes, que podem entrar no coração? Osenhor tem alguma coisa que o aflige e que eu ignoro. Fale!

Emília deu à sua voz uma terna inflexão para pronunciar estas últimaspalavras:

– Se eu o ofendi, Augusto, acuse-me! Não será a primeira vez que lhe peçaperdão!

Eu sentia, aos sons maviosos dessa voz celeste, meu coração hirtoembrandecer-se como uma cera; mas de repente o toque do papel que eu tinhano bolso o enregelou.

– Não posso falar aqui – respondi trêmulo. – Não estamos sós.

– Pois amanhã – me disse Emília. – Às sete horas, junto aos bambus.

Estimei essa demora; naquele momento, tão próximo ainda da amargadecepção, sentia que não poderia ter a dignidade da minha dor.

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XV

Ao nascer do sol, já eu esperava Emília.

Que longa noite!

Sofria horrivelmente, mas como um enfermo desacordado. O estupor doespírito, que me fulminou ouvindo a cruel revelação, continuava. Não podiacompreender Emília, o anjo do celeste pudor, a altiva rainha das minhasadorações, transformada de súbito numa desprezível namoradeira de sala.

Havia momentos em que eu achava dentro em mim a imagem de duasEmílias, uma para o meu desprezo, outra para o meu amor. E minha alma, oraexaltava-se em seu orgulho para cuspir a baba da indignação às faces daquela,ora ajoelhava humilde e dolente para chorar seu infortúnio aos pés desta.

Passara uma parte da noite a reler os versos do Álvares; ainda os tenho de corapesar dos esforços que faço para esquecê-los. Eles por aí correm num volumede poesias, recentemente publicado por esse moço. Tem por epígrafe – A ela.

Quando o sol espancou as trevas, não sei que serenidade derramou-se em meuseio. Era talvez a saciedade do sofrimento.

Emília veio meiga e serena, como a tinha deixado na véspera. O baile longe defatigar, repousava sempre essa incompreensível criatura. Havia no sorriso doslábios, no cetim das faces e na irradiação do olhar, o primor de virgindade quetêm as flores recentemente desabrochadas. Quem visse essas límpidas aurorasde sua beleza, julgaria que ela acabava de nascer moça, ao despontar do sol,como as rosas e as borboletas. Tal era o frescor e o viço da sua formosura.

Quando a percebi de longe, senti que o meu coração exauria-se; a indignaçãoque o enchera até aquele momento fugiu dele. Temia que o primeiro olhar deEmília dissipasse a minha cólera, e que sua primeira palavra me curvasse a seuspés humilhado ainda por um amor já indigno.

– D. Emília – disse-lhe eu – receio ofendê-la... Talvez o melhor fosse calar-me.

– O que mais me pode ofender de sua parte é o silêncio, quando o senhor temum ressentimento de mim. Fale, não tenha receio. Bem vê que eu estou tranquila.

– Pois então ouça-me e desculpe. Sem dúvida a senhora julgará pouco nobremeu procedimento, surpreendendo um segredo alheio; mas lembre-se de que eua amava!... E a amava tanto, que tive a coragem de aviltar-me ao meu amor.

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Sinto este orgulho!

Pela primeira vez Emília pareceu surpresa:

– Não compreendo! Que fez o senhor?

Mostrei-lhe os versos e contei-lhe tudo quanto soubera na véspera, durante obaile; tímido e balbuciante em princípio, ia-me reanimando à medida que aevocação daquelas cruéis recordações magoava minha alma ulcerada; odesespero prorrompeu afinal.

Emília me ouvira impassível.

– Bem vê que eu sei tudo, D. Emília!

Ela não me respondeu.

– Ouviria eu mal? Não compreenderia as suas palavras?

– Ora! O senhor é tão perspicaz!

– Assim não me iludi? Esses homens a amam, e a senhora lhes corresponde?

– O senhor o diz!

– Meu Deus! Mas a senhora não sabe que nome tem isso?...

Emília ergueu-se de um ímpeto. Seus olhos tinham raios lívidos, e sua fronteum luzimento de mármore.

– O nome?... exclamou ela. – O nome que isso tem? Eu lhe digo! É aindiferença... Não! É o desprezo, que me inspiram todas estas paixões ridículasque tenho encontrado em meu caminho! Ah! Pensa que amo a algum deles?Tanto como ao senhor!... O amor, eu bem o procuro, mas não o acho. Ninguémainda mo soube inspirar. Meu coração está virgem! Tenho eu a culpa?... Oh! Queente injusto e egoísta que é o homem! Quando nos ama, dá-nos apenas ossobejos de suas paixões e as ruínas de sua alma; e entretanto julga-se com direitoa exigir de nós um coração não só puro, mas também ignorante! Devemos amá-los sem saber ainda o que é o amor; a eles compete ensinar-nos... educar amulher... como dizem em seu orgulho! E ai da mísera escrava que mais tardeconheceu que não amava!... Seu senhor é inexorável e não perdoa!... Basta-lheum aceno, e a multidão apedreja!

Eu assistia, deslumbrado, às erupções que produzia o orgulho ofendido naquelaalma inteligente. Emília parou um instante para respirar; e a palavra sarcásticafrisou outra vez seu lábio mimoso:

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– Os homens... Felizmente aprendi cedo a conhecê-los; e os desprezo a todos;os desprezo, sim, com a indignação do amor imenso que eu sinto em mim, e quenem um deles merece!... Cuida o senhor que é a minha vaidade que me arrastapelas salas, como tantas mulheres, pelo prazer de se verem admiradas e ouviremelogios à sua beleza?... Oh! não, meu Deus!... Vós sabeis quanta humilhaçãotenho tragado, eu que tenho orgulho de merecer um nobre amor, vendo-meobjeto de paixões mentidas e interesseiras!...

– Refere-se a mim, D. Emília?...

– Ao senhor?... Se eu tivesse um tal pensamento a seu respeito, julga queesperaria tanto tempo para lho declarar? Os outros têm o direito de mentir-meporque me são indiferentes... O senhor, a quem eu dei minha amizade econfiança, não!... Seria uma indignidade!... Os outros podem me fazer a vidaamarga e triste sem que eu me queixe. Mas o senhor...

– D. Emília!... balbuciei comovido.

– Não me queixo, não; nem preciso que me consolem! exclamou arrebatada.– Para quê? O que eu sofro agora, Deus mo levará em conta para o meu amor,quando eu amar um dia, na terra ou no céu.

Emília afastou-se; e eu a segui involuntariamente. Esperei debalde que voltasseo rosto; por fim a chamei; ela parou.

– Ao menos, D. Emília, não consinta mais que esses homens lhe falem de suapaixão. Promete-me?

– Não, senhor!

– Bem!

– Se me quer amar como eu sou, com os meus caprichos...

– Não posso!

– Tem razão! É melhor assim! respondeu sorrindo.

– Então adeus, D. Emília!

Ela derramou sobre mim num só olhar todo o seu desdém, dizendo com vozpausada:

– E me tinha amor!... Pois eu, se o amasse, me desprezasse o senhor embora,eu o acompanharia até aos pés da minha rival para suplicar-lhe as migalhas deseu amor! Eu sim! Mas felizmente para nós ambos, não o amo, e creio agora quenão o amarei nunca!

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Desatando o passo augusto, deixou-me sepultado naquele desengano cruel.

Não me retirei completamente da casa de Duarte; porém as minhas visitas apouco e pouco foram sendo mais raras. Era outra vez em casa de D. Matilde queeu me encontrava agora mais frequentemente com Emília.

Ela, ou de propósito ou porque não tivesse mais reservas a guardar comigo,atirou-se com sofreguidão aos cortejos de sala. Todas as noites a cercava agrande roda dos seus apaixonados, aos quais ela de repente despedia com umgesto ou uma palavra, para atrair novos, que eram logo substituídos.

Eu sofria, assistindo a essa profanação de meu belo ideal, um suplício cruel.Era meu amor que a pouco e pouco se despegava do coração, arrancando-lhe asfibras e escalpelando-o. Quando esse amor fugir de todo, o que me restará decoração? Uma úlcera apenas!..

Julinha me compreendera e me consolava. A boa menina, vendo-me infeliz,começou ingenuamente a amar-me, mas sem consciência e sem egoísmo,unicamente por uma força invencível de sua extrema sensibilidade. Cheguei ailudir-me; pensei que também amava essa menina, mas o que eu amei em Júliafoi só o que vinha de Emília, o que ela conversava comigo a respeito de suaprima.

– Não se aflija! Mila gosta do senhor, eu sei! dizia-me Julinha.

– Ela confessou-lhe alguma vez?

– Não; ela nunca me fez confidências; mas eu a conheço muito!

– Gosta de mim, como daqueles que a cercam neste momento. Olhe!...

– Não acredite! Zomba de todos eles.

Emília viu a minha assiduidade junto à prima. Mas percebeu ela o que sepassava em mim, apesar dos meus esforços para simular indiferença?

Não sei.

Uma noite aproximou-se para dizer-me com um sorriso ameno:

– Os seus novos amores não toleram nem mesmo as antigas amizades?

Confesso-te a minha vergonha, Paulo. Nunca o império dessa mulher sobremim foi tão tirânico como nesse tempo em que me violentava para arrancarminha alma à sua funesta influência.

Emília tinha seduções tão poderosas, que era impossível resistir. Eu chegava;

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vinha com uma resolução firme de mostrar-lhe minha completa indiferença, efazê-la acreditar que realmente amava Julinha.

Pois quando estava mais entregue a esse jogo do coração, e à força de falar deamor, eu me atordoava a ponto de supor que o sentia pela filha de D. Matilde;pois justamente nessa ocasião, Emília, não sei como, arrancava-me de perto daprima e arrastava-me a seus pés.

Bastava-lhe para isso um nada, um sorriso, uma doce inflexão do seu colo, umgesto gracioso da mão afilada brincando com um anel dos cabelos ou com umafita do vestido.

Oh! Essa mão gentil, quando ela a despia da luva, tinha uma alma; movia-seem torno de sua beleza, como um anjo que descera do céu para acariciá-la. Aostoques suaves dos dedos mágicos parecia que sua lindeza debuxava-se maisbrilhante.

E eu ficava sem palavra e sem movimento, todo olhar, a contemplá-la delonge.

Afinal, quando ela me via assim alheio de mim e cativo de sua graça,chamava-me com uma imperceptível vibração de fronte.

De ordinário, vendo-me chegar obediente, se demudava por tal forma queestupidava-me; era então fria e glacial, como uma estátua de gelo. Já não mevia, nem me ouvia: eu voltava tragando em silêncio a minha vergonha.

Outras vezes, não: recebia-me risonha e amável.

– Julinha está zangada! Vá dançar com ela! dizia-me então.

Enfim, Paulo, essa mulher escarnecia de mim, a fazer pena. Tratava-mecomo ao cão da Terra Nova que havia em sua chácara, e com o qual a viratantas vezes brincar. Enxotava-me com a ponta do pé, para ter o prazer de mefazer voltar, lambendo o chão por onde ela passava.

E eu vivia espremendo em minha alma o fel dessas humilhações, a ver seirritava aí a dignidade abatida.

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XVI

Tinha caído numa tal prostração de ânimo, que Emília se comiserou de mim.

Uma noite veio sentar-se a meu lado, e seu olhar envolveu-me daquela ternuracompassiva e protetora, que dava à sua virgem beleza um perfume de idealmaternidade.

– Como eu o tenho feito sofrer, não é verdade? me disse ela compungida. –Também eu sofro! Que natureza é a minha? Parece que tenho prazer em mecontrariar e afligir a mim mesma. Mas não me queira mal, Augusto. Eu lheprometo ser outra daqui em diante; o que perturbou nossa amizade não sucederánunca mais.

– Deveras!... Promete repelir os seus adoradores!

– Eu os afastarei tanto de mim, que nem a sombra deles se possa interpor entrenós.

– Obrigado, D. Emília! Obrigado pela senhora, unicamente; não por mim.

– Então isso lhe é indiferente.

– Vem tarde! O mal está feito.

Emília teve um dos seus gestos de rainha.

– Ah! se eu houvesse profanado a minha alma nesses arremedos de amor comque as moças se divertem antes de casar; se eu estivesse em meu quarto ouquinto namoro, quando o senhor me conheceu, talvez me julgasse digna de suaafeição. Mas eu, que procuro preservar minha alma dessa profanação,mostrando-lhe ao vivo o egoísmo, a cupidez e a baixeza que escondem as paixõesimprovisadas numa noite de baile e calculadas friamente no dia seguinte. Eu, queme guardo para aquele a quem amar, virgem de amor e imaculada... Sim!imaculada até dos olhares que resvalam sem penetrar-me!... Eu, não sou dignade sua estima, Augusto! Para mim, é tarde!

– Perdão, Mila!... Eu sou um insensato! Mas meu amor é uma tão puraadoração, eu a coloquei tão alto na minha veneração, que as palavrasapaixonadas desses homens me pareciam denegri-la como o fumo de um torpeincenso... Loucura!... Eu devia saber que elas não chegavam ao seu coração,como não chegam a Deus as blasfêmias do ímpio!...

Emília respondeu-me com um sorriso delicioso, pousando a mão sobre a

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minha:

– Não me eleve tanto, para que outra vez não me deixe cair de tão alto!...Esses homens eram apenas livros para mim; às vezes tinha lido na véspera suacópia impressa. Terá ciúmes, Augusto, dos romances que eu leio? Sofreu vendo-me no teatro assistir à representação de uma comédia?

– Já lhe supliquei meu perdão. Eu estava louco!

Ela foi nessa noite e nos dias seguintes de uma bondade inexaurível para mim.Voltamos aos nossos antigos passeios e às conversas íntimas. Eu estava outra vezterno e amante a seus pés, mas orguIhoso e contente do meu triunfo.

Emília cumprira sua palavra de um modo que eu não ousaria esperar.Apareceu ainda algumas noites em casa de D. Matilde, como para mostrar-me omodo significativo por que despedia os seus adoradores; realmente soube arredá-los a tal distância que nem um deles se animou a voltar. As horas que ali passouesteve completamente isolada, ou perto de mim e ao meu braço.

Por fim deixou de sair, e fez que cessassem as reuniões em sua própria casa,até nos domingos. Desde então parecia que ela se poupava ao mundo, e guardavatoda, para entregar-se sem reserva às expansões de meu amor.

Assim voaram dois meses de felicidade.

Durante todo esse tempo, Emília foi de uma submissão e docilidade que mepunha sempre atônito, e muitas vezes afligia.

Tomava para comigo uma atitude de vítima resignada e contrita; parecia queminha vontade a tiranizava, quando era eu mísero quem suportava a tirania deseus caprichos. Mas ela sentia não sei que íntimo prazer em humilhar-se aosmeus olhos; e tinha o talento de, cativando-me o coração e o pensamento,insinuar que obedecia ao mínimo aceno meu.

Sucederam muitos acidentes, como o que te vou referir.

Encomendava ela à sua modista algum elegante vestido, ou compravaqualquer novidade parisiense recentemente chegada. A primeira vez que nosvíamos logo me fazia alguma pergunta neste gênero:

– Qual é a cor mais de seu gosto?

Ou então:

– Acha bonita a nova moda de vestidos?

Respondia-lhe com volubilidade, sem dar grande importância à questão.

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Acontecia às vezes que o vestido era da cor ou da moda não preferida por mim;ela o imolava sem piedade; em folha, como estava, fazia dele presente a algumamoça, ou sepultava-o nos recantos de uma cômoda.

Entretanto o vestido era lindo; e fosse feio, que eu o achara divino, trajado porela.

Se eu incomodava-me com estes novos caprichos de humildade, tão aversosdos anteriores suspirados no orgulho, e como eles tão imperativos, ela insistiaimpaciente, e não tolerava da minha parte a mínima observação. Muitas vezespor essa causa nos separamos tristes e magoados.

Em nossos mútuos devaneios, quando me cabia a vez de falar, vazando asexpansões de meu coração cheio, ajoelhava todo meu ser ante o ídolo de suagraça.

Ela, antes meiga e dócil à minha palavra, já a não escutava; e abstraía-se àsferventes adorações para se refugiar em não sei que penosa e amarga cisma. Oque encantara outra mulher, parecia enfastiá-la; derramava-se por seu rosto umanuvem de tédio e desgosto.

Quase sempre esquivava-se logo, e, deixando-me só alguns instantes, rompia aconversa.

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XVII

Foi ontem.

Deixara Emília na véspera descontente por causa de um dos nossos conflitosde submissão recíproca.

Achei-a porém já esquecida dessa pequena contrariedade, e satisfeita.Contudo, tinha certa gravidade no olhar e na fronte que anunciava o peso demuitos pensamentos ali concentrados.

Falou com sua graça costumada; falou do passado, recordando de leve as fasespor que passara nosso amor. Era sua história íntima, o romance de sua alma, queela esboçava a traços finos e delicados.

Depois de comparar sua existência anterior tão agitada com o atual isolamentoe tranquilidade, fixou-me nos olhos, enquanto me dirigia com a voz lenta estaspalavras:

– Está satisfeito? Não foi cegamente obedecido?

– Oh! Mila! Obedecido, não! Não me atrevia a pedir tanto... É uma graça queme concedeu... e eu a recebi de joelhos!...

– Ah! fez ela com uma expressão indefinível de tédio.

Geraldo entrava nesse momento. Depois de apertar-me a mão:

– Diz-me uma coisa, Amaral? Por que razão proibiste a Mila de sair de casa?

– Ora, Geraldo! respondi eu enfadado. Nunca hás de ter juízo.

– Foi ela quem me disse!...

– D. Emília?...

– E tu acreditaste! disse Mila ao irmão com um riso irônico.

Isto passava-se ontem.

Hoje à tarde, chegando à sua casa, achei o carro à porta e ela na sala prontapara sair; só esperava por D. Leocádia.

– Vai sair? perguntei-lhe triste.

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– Não vê? respondeu correndo os olhos pelo seu trajo.

– Volta cedo?

– Não! Vamos ao teatro.

– Ah!... Tinha-me... prometido não, mas habituado já a vê-la longe do mundo,bonita e risonha só para mim!...

– É verdade; mas os hábitos sempre continuados ao final trazem a monotonia.

Tive um terror pânico. Ouvindo as palavras desdenhosas de Emília e vendo-acalçar as luvas, não sei que alucinação foi a minha; se me afigurou que essamoça ia outra vez ser-me arrebatada pela vertigem do mundo; que eu a iaperder, e agora para sempre.

– Mila, não sei que tristeza profunda me causa esta sua ida ao teatro... É umaesquisitice minha!... Que coisa mais simples do que ir ao teatro?... Mas... Nãocompreendo este temor... Eu lhe suplico!... Antes de partir dê-me coragem!Diga-me essa palavra que eu espero há tanto tempo!

Ela esquivou a mão, que eu procurava, vestindo-se da dignidade fria que aenvolvia às vezes como túnica de gelo.

– Tem muita pressa de ouvir essa palavra!... Há de querer também umjuramento solene... que firme seus direitos... Poderá então impor-me suavontade, e que remédio terei eu se não sujeitar-me!... Mas ainda é cedo. Espere,meu senhor!

Súbita e profunda revolução se operou em mim; subjugado por ela eu apenaspude pronunciar uma frase; mas que profusão de sentimentos, que riqueza depaixão, a alma não verte numa só palavra, mesmo vulgar!...

– Basta, senhora!

Não sei se minha voz ecoou n alma de Emília, como ressoava na minha; era ogrito de uma paixão na agonia.

Emília caminhou para mim, absorta em dolorosa emoção: senti sua mãopousar no meu ombro, os seus olhos nos meus, o seu hálito nas minhas faces, asua palavra caindo a uma e uma no meu cérebro. Mas eu estava tãoprofundamente mergulhado em mim mesmo que não compreendia naqueleinstante nem o que olhava, nem o que ouvia.

– Augusto! Seu amor é um nobre e santo amor, como eu pedia a Deus que medesse a fortuna de inspirar!... Responder-lhe com uma dessas afeições banais aque o coração reserva apenas as horas vagas que deixam o cálculo e a vaidade,

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seria uma profanação indigna!... Espero e lhe peço que espere, para não causarpor um engano a sua e minha desgraça; para não ser obrigada a dizer-lhe um dia:“Eu me iludi! Esta vida que lhe dei, não a podia dar, não me pertencia, masàquele de quem a roubei e agora a reclama! Traí a um, menti ao outro; falheimeu destino; só me resta morrer!” Eis por que eu lhe digo que espere.

Calou-se um instante.

– Talvez me iluda!... Há horas em que duvido ainda como outrora. Queroesperar um ano ainda... Acha muito? Para decidir de duas existências?... Se daquia um ano eu conhecer que não amo, a esta mesma hora, no lugar onde o senhorestiver, eu irei dizer-lhe: “Deus negou-me a ventura de amar; mas o senhor meama; se a minha vida é necessária à sua felicidade, tome-a; eu lhe dou comprazer; eu lhe pertenço, sem amor, mas cheia de dedicação!” Ouviu, Augusto?...Quer um juramento?

– É inútil! Eu já a não amo!

Fui sincero nesse momento. Aquele sarcasmo com que Emília respondera àminha súplica, o egoísmo frio que ela revelara, tinham traspassado minha alma,e escoado o amor até a última gota. Eu acabava de ver, a nu, o aleijão repulsivodaquele coração de moça.

– Acredite – repeti com desprezo. – Acabou, e já nem me lembro que amei!Está agora tão longe de mim esse passado!...

Ela mostrou uma ligeira perturbação; mas imediatamente sua altivez aserenou. Então, Paulo, passou-se o que só pode compreender quem viu essamulher sublime. Fez-se nela como um jubileu de graça e luz. Aquela radianteformosura expandiu-se vertendo de si nova e mais esplêndida formosura.Imagina uma apoteose da beleza.

Emília assim transfigurada teve um sublime gesto de dúvida.

– É impossível!...

D. Leocádia entrava. Despedi-me e parti.

São duas horas da noite. Tive a coragem de não aparecer no teatro.Lembrando-me que Emília lá estava e desenhando em meu espírito a imagemde sua fulgurante beleza, achei-me calmo; perscrutei meu coração, e encontrei-oforte.

Realmente já não amo essa mulher, ou se a amo ainda, semelhante afeiçãoestá sepultada debaixo de outras paixões que acabarão por aniquilá-lacompletamente.

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O que eu sinto agora é só um desejo frio de vingar-me e pagar a Emíliadesprezo por desprezo.

Eis a história do meu primeiro e talvez único amor, Paulo; precisava derramarno teu seio as lágrimas que ainda neste momento afogam meu coração.

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XVIII

Pensava ter concluído esta carta, mas não, Paulo! Tornei a vê-la!

É passado um mês.

Durante ele evitei encontrar-me com Emília. Minha alma precisava dessemomento de repouso entre o amor extinto e o ódio nascente.

Foi há três dias que a vi pela primeira vez depois do nosso rompimento.

Jantava eu em casa de D. Matilde. Estava encostado ao piano ouvindo Julinhatocar; a mãe chamou-a. Nessa ocasião Emília aproximou-se de mim e disse-mecom o seu habitual sarcasmo:

– Já não me ama... Por que foge de mim? Tem medo?

Estávamos sós na sala.

Travei-lhe do braço e apertei-o com ímpeto brutal.

– A senhora acredita que a consciência de uma grande infâmia pode matar umhomem de brio?... Pois se fosse possível que eu viesse a amá-la ainda, sinto queteria tão grande asco de mim e uma vergonha tal que me fulminaria como oraio!

Soltei-lhe o braço. Ela deixou-se cair sobre uma cadeira, e, sustendo com aoutra mão o pulso magoado, esteve a olhar a nódoa roxa que deixara a pressãode meus dedos. Adejava em seus lábios um sorriso de mártir.

Eu me afastara indignado de minha própria brutalidade. Não te posso explicaro que foi isso. O sarcasmo de Emília irritou-me de uma maneira que ainda agoranão compreendo. Seria porque eu ainda a amo, malgrado meu, e sua palavra medenunciara minha própria vileza?

No jantar incomodava-me muito aquela nódoa roxa. Emília estava sentadaquase defronte de mim, e a cada momento seu braço volteava em torno dela,talvez que de propósito, e para mostrar a contusão.

– Mila! disse-lhe D. Matilde de longe. – O que tens no braço esquerdo?

– É verdade! acudiu Julinha. – Está roxo. Que foi isso?

– É o sinal da minha cadeia! respondeu Emília sorrindo.

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– Que cadeia, Mila? perguntou D. Leocádia.

– Pois não tenho uma pulseira com a forma de um grilhão?...

– Tens, sim.

– Hoje brincando, ela cerrou-me tanto, que pensei me quebrava o pulso!...

– Não deves mais usar dela.

– Por quê? Ela é inocente; a culpa foi minha. Não foi? disse espreguiçandosobre mim o lânguido olhar.

Voltei o rosto sem responder-lhe. Eu começava a sentir uma espécie de pavordessa menina. Havia nela a inspiração heróica e a tentação satânica que o gêniodo bem ou do mal derrama sobre a humanidade pela transfusão da mulher. Emoutra cena mais larga eu a julgaria capaz de vibrar o punhal de Judite ou deMacbeth.

Desde esse dia quando ela se aproxima de mim, ou mesmo de longe meenvolve com seu olhar maléfico, a minha coragem vacila. A raiva que sinto demim mesmo reflui sobre ela. Cubro-me então com o motejo ofensivo egrosseiro. Que queres, Paulo? É a coragem do desespero.

Mas ela, a incompreensível criatura, longe de ofender-se, parece deleitar-secom as explosões do meu desprezo e ressentimento.

Ainda ontem.

Conversávamos indiferentemente, quando veio a falar-se de uma moça, queamava seu primo a quem estava prometida, e de repente se casara com o filhode um rico capitalista. Já sabes; a noiva era acremente censurada; eu tomei suadefesa contra Julinha.

– Pois eu desculpo essa moça, D. Julinha: seu amor tinha talvez a coragem damorte, mas não tinha a coragem da pobreza. Há naturezas assim: os grandessacrifícios as exaltam, os pequenos as humilham. Eu não a desculparia se elafosse rica, e em vez de sentir o orgulho de inspirar um amor capaz de resistir aessa sedução do dinheiro, se contentasse em comprá-lo... E nem só comprá-lo;mas acenar, como os avarentos, com o seu dinheiro, para ter o prazerincompreensível de aviltar a turba de adoradores, entre os quais ela afinalescolherá um marido!... Um marido regateado!...

Emília soltou uma risada argentina; do alto de sua beleza mais que nunca altivae radiosa atirou-me um olhar augusto. Ergueu-se, e não sei que elação deu elacom esse movimento ao seu talhe, que parecia subida a um trono.

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Conservava-me de pé no mesmo lugar, com as costas apoiadas a uma árvoredo jardim. Ela atravessou o espaço que nos dividia, e veio a mim feita em risos,com o passo tão doce e lento que resvalava sobre a areia, onde a orla de seuvestido mal roçava. Vendo-a aproximar-se tanto, retraí-me contra a árvore paranão tocá-la.

Parou enfim: estendendo o lábio altivo, disse-me com uma voz indefinível,uma voz onde havia tudo, ódio e amor, desprezo e ternura, meiguice e sarcasmo;uma voz que parecia canto, grito e soluço ao mesmo tempo:

– Que é isso, senão amor?... Ama-me ainda e mais do que nunca!

Voltou; e agora a fímbria de seu vestido roçagando rojava pela areia, e elaolhava-a sorrindo por cima do ombro, e de propósito inclinava-se mais paraenegrecê-la no pó, como se fora a minha alma abjeta que ela arrastasse assimpelo chão.

Firmei-me ao tronco da árvore com todas as minhas forças, porque o meuprimeiro assomo fora terrível. Eu não sei o que seria de mim, se eu dessenaquela circunstância um primeiro passo para essa moça. Fiquei ali imóvel,vendo-a de longe a voltear entre os arbustos.

De repente senti uma calma assustadora derramar-se em minha alma: eraalguma coisa como uma algidez moral, reação da grande cólera.

Tive necessidade de insultar essa moça.

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XIX

Volto de sua casa.

Que noite, Paulo! Que noite de ira foi esta para mim!

Cheguei ao Rio Comprido quase ao escurecer. Estavam todos no jardim.Depois de alguns instantes, Emília ergueu-se e se afastou lentamente do grupo. Aalguma distância, parou para colher uma flor, voltou-se, e olhou-me.

Aproximei-me; ela continuou seu passeio solitário pela chácara. Chegando àcerca onde as murtas formavam um bosque espesso em torno de assentos depedra, voltou-se de novo para mim e sorriu. Como eu hesitasse se devia segui-la,fez-me um aceno gracioso.

Sentamo-nos: eram seis horas da tarde; uma sombra luminosa ainda e de umadoçura imensa derramava-se por aqueles lugares.

As vozes de Julinha e das outras moças que passeavam do lado opostochegavam-nos através das folhas e da sombra com uma suavidade extrema.

Mas essa doçura da tarde, a beleza de Emília, os perfumes das flores, tudo quehavia de suave ali, irritava-me; eu tinha a alma ulcerada, e não havia bálsamos,senão cautérios, para cicatrizá-la.

Falei-lhe com volubilidade, travada do fel que borbotava do coração.

– D. Emília, nós estamos representando o papel de duas crianças,atormentando-nos um ao outro, e talvez servindo de tema à malignidade alheia.Ontem, a senhora cuida que não ouviram suas palavras?

– Que as ouvissem!... Foi o senhor mesmo quem se denunciou!...

– Já lhe disse e repito, D. Emília, eu não amo a senhora... Nunca a amei!...

– Mentiu-me, então?...

– Menti, confesso!...

– Creio antes que mente agora. A mentira é irmã do insulto.

– Desculpemo-nos mutuamente, D. Emília; ambos erramos; e para que estascenas não se repitam, eu quero ser franco. A senhora me fez uma vez, há tempo,sua confissão: quer ouvir a minha?

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– Fale! replicou Emília com um tom de ameaça.

– Eu não sou inteiramente pobre, mas também não sou rico, e tenho acima detudo a ambição do dinheiro.

– Ah! fez ela cerrando as pálpebras e encostando a cabeça no recosto dobanco para ouvir-me impassível.

Seu olhar, coando entre os cílios e partindo-se em mil raios, cintilava sobre omeu rosto, como o trêmulo rutilo de uma estrela.

– O que lhe vou dizer é talvez humilhante para mim; mas eu me sacrifico!

– Muito agradecida! Isso me penhora. – respondeu-me, inclinando-se com umsério imperturbável.

– À exceção do comércio, a senhora sabe que não há no Brasil carreiraalguma pela qual se possa chegar depressa... e honestamente, à riqueza. A minhamal dá para viver com decência. Portanto sendo eu honesto... porque tenho medoda polícia, e não gosto que me incomodem... sendo eu honesto, repito, só haviaum recurso à minha ambição... Adivinha qual?

– Suspeito; mas diga sempre.

– O do casamento.

– É um recurso lícito e fácil.

– Não tanto como lhe parece.

– Ora! Para o senhor?...

– Para mim, sim senhora; porque embora ambicioso, eu não estou disposto asacrificar à riqueza minha felicidade; seria um absurdo, pois se eu quero ser ricoé para ser feliz.

– E como pretende conciliar isto? Deve ser curioso.

– É agora que eu preciso de toda a sua indulgência; vendo-a quando voltei daEuropa, senti-me atraído para a senhora por uma inclinação que eu considereiamor; e essa inclinação... Não devo ocultar coisa alguma para minha maiorvergonha... essa inclinação aumentou involuntariamente quando soube que osnegócios do Sr. Duarte tinham prosperado por tal forma que ele era, se não omaior, um dos maiores e mais sólidos capitalistas da praça do Rio de Janeiro...Não sei se deva continuar!...

– Por que não, doutor? Eu estou ouvindo-o com um prazer imenso!

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– Mas eu me acanho...

– É modéstia própria dos homens de talento, que sabem viver. Mas nós nosconhecemos!...

– Bem; eu continuo. Disse-lhe que a amava já muito, mas isso não era nadaem comparação do que senti depois... Um dia, alguém, creio que um corretor,assegurou-me que o Sr. Duarte era nada menos que milionário... duas vezesmilionário...

– Ah! Eu ignorava!

– Pois saiba que é. Viúvo, só com dois filhos... pensei eu... Então D. Emília teráum milhão de dote! Um milhão! Desde esse momento meu amor não teve maislimites; tornou-se uma paixão digna de Romeu, de Otelo, dos mais celebradosheróis de dramas e romances. Como sua formosura então revelou-seresplandecente aos meus olhos!... Eu compreendi nessa ocasião os poetas que eunão compreendera nunca, e as suas comparações minerais... Vi que seus dentesmimosos eram realmente pérolas de Ceilão, seus lábios rubis de Ofir, e seusolhos diamantes da melhor água! Sua voz argentina tinha aos meus ouvidos essamelodia inefável, que nem Rossini nem Verdi puderam ainda imitar, a melodiado ouro... do ouro, a senhora bem sabe, a lira de Orfeu deste século!... Oh! Quepaixão, D. Emília! Era um delírio... uma loucura... Foi então que eu não pudemais resistir e confessei-lhe que a amava!

Emília ergueu-se rápida:

– Ah! compreendo agora!...

Como não fiquei ao ver aquela mulher, exultando de júbilo e orgulho ali, emface de mim, que pensava tê-la afinal humilhado com meu frio sarcasmo.

– O que é que a senhora compreende, D. Emília?

– Que eu vivo em sua alma! E como o senhor não pode arrancar-me dela,procura rebaixar-me a seus próprios olhos e humilhar-me para ter a força, quenão tem, de me desprezar! O senhor ama-me, e há de amar-me enquanto euquiser... e há de esperar aqui, a meu lado, até que chegue a hora em que meperca para sempre... Porque eu é que posso jurar-lhe: não o amo, não o amei,não o amarei nunca...

A paixão, recalcada por algum tempo, ergueu-se indomável em minha alma, eprecipitou como uma fera sedenta para essa mulher. Toda a lia que o pecadooriginal depositou no fundo do coração humano, revolveu-se e extravasou.

Eu avancei para Emília; e meu passo hirto, e meu olhar abrasado deviamincutir-lhe terror.

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– Pois bem! – exclamei eu com a voz surda e trêmula. – A senhora quer! Éverdade! Eu a amo! Mas aquela adoração de outrora, aquele culto sagrado cheiode respeito e admiração... Tudo isso morreu! O que resta agora neste coraçãoque a senhora esmagou por um bárbaro divertimento, o que resta, é o amorbrutal, faminto, repassado de ódio... é o desespero de se ver escarnecido, e araiva de querê-la e obrigá-la a pertencer-me para sempre e contra sua própriavontade!...

– Eu o desprezo!... respondeu-me Emília.

Era quase noite. A voz de Julinha soou no jardim, chamando a prima. Eu ia darum último passo para Emília; hesitei.

– Fuja, senhora!

Ela não se moveu; ficou muda enquanto os ecos da voz de Julinha continuandoa chamá-la ressoavam ao longe. Quando o silêncio restabeleceu-se, e pareciaque a prima se tinha afastado, ela veio colocar-se em face de mim, e erigindo otalhe e cruzando os braços afrontou-me com o olhar.

– O senhor é um infame! disse com arrogância.

Fiz um esforço supremo; inclinei-me para beijar-lhe a fronte. Seu hálitoabrasado passou em meu rosto como um sopro de tormenta.

Ela atirara rapidamente para trás a altiva cabeça, arqueando o talhe; e suamão fina e nervosa flagelou-me a face sem piedade.

Quando dei acordo de mim, Emília estava a meus pés. Sem sentir eu lhetravara dos pulsos e a prostrara de joelhos diante de mim, como se a quiseraesmagar. Apesar da minha raiva e da violência com que a molestava, essaorgulhosa menina não exalava um queixume; soltei-lhe os braços magoados e elacaiu com a fronte sobre a areia.

– Criança!... E louca!... murmurei afastando-me.

Emília arrastou-se de joelhos pelo chão. Apertou-me convulsa as mãos,erguendo para mim seu divino semblante que o pranto orvalhava.

– Perdão!... soluçou a voz maviosa. – Perdão, Augusto! Eu te amo!...

Seus lábios úmidos das lágrimas pousaram rápidos na minha face, onde a suamão tinha tocado. E ela ali estava diante de mim, e sorria submissa e amante.

Fechei os olhos. Corri espavorido, fugindo como um fantasma a essa visãosinistra.

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XX

“Sim, Augusto, eu te amo!... Já não tenho outra consciência de minha vida. Seique existo, porque te amo.

Naquele momento, de joelhos, a teus pés, essa grande luz encheu meucoração. Acabava de ultrajar-te cruelmente; detestava-te com todas as forças deminha alma; e de repente todo aquele ódio violento e profundo fez-se amor! Masque amor!

Desde então me sinto como inundada por este imenso júbilo de amar. Minhaalma é grande e forte; guardei-a até agora virgem e pura; nem uma emoçãofatigou-a ainda. Entretanto receio que ela não baste para tanta paixão. É precisoque eu derrame em torno de mim a felicidade que me esmaga.

Por que me fugiste, Augusto?... Segui-te repetindo mil vezes que te amava;confessei-o a cada flor que me cercava, a cada estrela que luzia no céu. Minhaalma vinha aos meus lábios para voar a ti nestas abençoadas palavras: eu te amo!Tudo em mim, meus olhos cheios de lágrimas, minhas mãos súplices, meuscabelos soltos, se tivessem uma voz, falariam para dizer-te: Ela te ama!

Beijei na areia os sinais de teus passos, beijei os meus braços que tu haviasapertado, beijei a mão que te ultrajara num momento de loucura, e os meuspróprios lábios que roçaram tua face num beijo de perdão.

Que suprema delícia, meu Deus, foi para mim a dor que me causavam osmeus pulsos magoados pelas tuas mãos! Como abençoei este sofrimento!... Eraalguma coisa de ti, um ímpeto de tua alma, a tua cólera e indignação, que tinhamficado em minha pessoa e entravam em mim para tomar posse do que tepertencia. Pedi a Deus que tornasse indelével esse vestígio de tua ira, que mesantificara como uma coisa tua!

Vieram encontrar-me submergida assim na minha felicidade. Interrogaram-me; porém eu só ouvia os cânticos de minha alma cheia das melodias do meuamor. Não lhes falei, com receio de profanar a minha voz, que eu respeito depoisque ela te confessou que eu te amo. Não deixei que me tocassem para não teofenderem no que é teu.

Quero guardar-me toda só para ti. Vem, Augusto: eu te espero. A minha vidaterminou; começo agora a viver em ti.

Tua Emília.”

São onze horas.

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Recebo agora esta carta, aqui na cidade.

Quando fugi ontem de Emília, tinha tão grande terror de mim mesmo, que nãome animei a ficar no Rio Comprido.

Acabando de ler o que ela me escrevera, pedi a Deus que me desse coragempara resistir:

– Senhor! Vós sabeis que eu não devo amar essa mulher! Seria umainfâmia!...

Achei Emília sentada em uma cadeira, absorta em seu enlevo. Vendo-me,toda essa bela criatura assumiu-se num só e inefável sorriso para cair aos meuspés, difundindo sua alma nestas palavras impetuosas:

– Eu te amo, Augusto!

Depois continuou repetindo uma e muitas vezes a mesma frase, como seestudasse uma modulação de voz que pudesse exprimir quanto havia de sublimenaquele grito d'alma.

– Sim! Eu te amo!... Eu te amo!...

Eram as notas da celeste harmonia que seu coração vibrava, como o rouxinolcanta na primavera e as harpas eólias ressoam ao sopro de Deus.

Quando ela desafogou sua alma desta exuberância da paixão, falei-lhe :

– Mas reflita, Emília. A que nos levará esse amor?

– Não sei!... respondeu-me com indefinível candura. – O que sei é que teamo!... Tu não és só o árbitro supremo de minha alma, és o motor de minha vida,meu pensamento e minha vontade. És tu que deves pensar e querer por mim...Eu?... Eu te pertenço; sou uma coisa tua. Podes conservá-la ou destruí-la; podesfazer dela tua mulher ou tua escrava!... É o teu direito e o meu destino. Só o quetu não podes em mim, é fazer que eu não te ame!...

Enfim, Paulo, eu ainda a amava!...

Ela é minha mulher.

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PÓS-ESCRITO

O autor deste volume e do que o precedeu com o título de Lucíola sente anecessidade de confessar um pecado seu: gosta do progresso em tudo, atémesmo na língua que fala.

Entende que sendo a língua instrumento do espírito não pode ficar estacionáriaquando este se desenvolve. Fora realmente extravagante que um povo adotandonovas ideias e costumes, mudando os hábitos e tendências, persistisse emconservar rigorosamente aquele modo de dizer que tinham seus maiores.

Assim, não obstante os clamores da gente retrógrada, que a pretexto declassicismo aparece em todos os tempos e entre todos os povos, defendendo opassado contra o presente; não obstante a força incontestável dos velhos hábitos, alíngua rompe as cadeias que lhe querem impor, e vai se enriquecendo já denovas palavras, já de outros modos diversos de locução.

É sem dúvida deplorável que a exageração dessa regra chegue ao ponto deeliminar as balizas tão claras das diversas línguas. Entre nós sobretudo naturaliza-se quanta palavra inútil e feia ocorre ao pensamento tacanho dos que ignoram oidioma vernáculo, ou tem por mais elegante exprimirem-se no jargãoestrangeirado, em voga entre os peralvilhos.

Esse ridículo abuso porém não deverá levar ao excesso os doutos e versados nalíngua. Entre os dois extremos de uma enxertia sem escolha e de uma absolutaisenção está o meio-termo, que é a lei do bom escritor e o verdadeiro classicismodo estilo.

A língua é a nacionalidade do pensamento, como a pátria é a nacionalidade dopovo. Da mesma forma que as instituições justas e racionais revelam um povogrande e livre, uma língua pura, nobre e rica anuncia a raça inteligente eilustrada.

Não é obrigando-a a estacionar que hão de manter e polir as qualidades quepor ventura ornem uma língua qualquer; mas sim fazendo que acompanhe oprogresso das ideias e se molde às novas tendências do espírito, sem contudoperverter a sua índole e abastardar-se.

Criar termos necessários para exprimir os inventos recentes, assimilar-seaqueles que, embora oriundos de línguas diversas, sejam indispensáveis; esobretudo explorar as próprias fontes, veios preciosos onde talvez ficaramesquecidas muitas pedras finas; essa é a missão das línguas cultas e seuverdadeiro classicismo.

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Quanto à frase ou estilo, também se não pode imobilizar quando o espírito, deque é ela a expressão, varia com os séculos de aspirações e de hábitos. Sem oarremedo vil da locução alheia e a imitação torpe dos idiotismos estrangeiros,devem as línguas aceitar algumas novas maneiras de dizer, graciosas e elegantes,que não repugnem ao seu gênio e organismo.

Deste modo não somente se vão substituindo aquelas dicções que por antigas edesusadas caducam, como se estimula o gosto literário, variando a expressão queafinal de tanto repetida se tornaria monótona. De resto, essa é a lei indeclinávelde toda a concepção do espírito humano, seja simples ideia, arte ou ciência,progredir sob pena de aniquilar-se.

Falemos particularmente da língua portuguesa.

A escola ferrenha, que já vai em debandada, mas há cerca de vinte anos tãogrande cruzada fez em prol do classicismo, pretende que atualmente, meado doséculo XIX, discorramos naquela mesma frase singela da adolescência dalíngua, quando a educavam os bons escritores dos séculos XV e XVI.

Não é isso possível; se o fosse, tornara-se ridículo.

A linguagem literária, escolhida, limada e grave, não é por certo a linguagemsediça e comum, que se fala diariamente e basta para a rápida permuta dasideias: a primeira é uma arte, a segunda é simples mister. Mas essa diferença sedá unicamente na forma e expressão; na substância a linguagem há de ser amesma, para que o escritor possa exprimir as ideias do seu tempo, e o públicopossa compreender o livro que se lhe oferece.

Gil Vicente não seria aplaudido se em seus autos falasse a linguagem do tempode D. Diniz; também o autor dramático que tivesse a ousada pretensão de fazerrepresentar atualmente uma comédia no estilo de Antônio José acharia talvez osespectadores que enchem as nossas plateias, convidados pelos pompososanúncios; mas auditório, não.

O erro grave da escola clássica está em exagerar a influência dos escritoressobre seu público. Entende ela que os bons livros são capazes de conter o espíritopúblico e sujeitá-lo pelo exemplo às sãs lições dos clássicos. É um engano; osbons livros corrigem os defeitos da língua, realçam suas belezas, e dão curso amuitos vocábulos e frases, ou esquecidos ou ainda não usados.

Mas escritor algum, fosse ele Homero, Virgílio, Dante, ou Milton, seria capazde fazer parar ou retroceder uma língua.

O gênio, por isso mesmo que paira em uma esfera superior, pode atravessaruma época sem que ela o compreenda, nem mesmo o conheça; mas adiante estáa posteridade que o vinga. Ora , se em vez de avançar para o futuro, ele retroa-seao passado, quem o há de ler e apreciar? Os túmulos das gerações transidas? Eis

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porque o gênio pode criar uma língua, uma arte, mas não fazê-la retroceder.

Suscitasse a Providência nesta era outro Shakespeare, e ele não havia de saberaquela expressão cheia de vigor e energia que falam Hamlet, Otelo, Romeu eoutros personagens do grande trágico; e isso pela razão muito simples, de que aspaixões daqueles heróis seriam anacronismos literários nesta época. Quisesse-asele não obstante arremedar, e não seria Shakespeare, mas algum desconhecido eextravagante versejador.

Mas para que outro argumento além daquele que nos oferece a nossa mesmalíngua?

A literatura portuguesa não teve de mil e quinhentos a mil e seiscentos umalonga série de elegantes autores, entre os quais se nomeiam de preferênciaBarros, Couto, Lucena, Garcia de Rezende, Heitor Pinto, Luís de Souza, Camões,Jacinto Freire, Bernardes, Azurara? Entretanto, sob a influência atual dessesmodelos do estilo quinhentista, não se foi modificando a línguaconsideravelmente?

Exauriu-se depois daqueles escritores o bom gosto literário, que se tornaramtão raros os imitadores deles? De forma alguma; homens de incontestávelsuperioridade escreveram depois, como Vieira, Garção, Bocage, FranciscoManuel, Diniz e outros; mas amoldaram-se às tendências de sua época, na qual alíngua, como todos os laços do exclusivismo nacional, já declinavam (sic) para atransfusão universal das ideias que devia operar a civilização moderna.

Em conclusão: público e escritor exercem uma influência recíproca; e essa leimoral tem um exemplo muito frisante em um fenômeno físico. A atmosferaatrai os átomos que sobem da águas estagnadas pela evaporação, e depois osesparze sobre a terra em puro e cristalino rocio. São da mesma forma as belezasliterárias dos bons livros; o escritor as inspira do público, e as depura de suavulgaridade.

Coisa singular é que ninguém conteste estas verdades triviais a respeito da artee da literatura, e muitos as repilam em relação à língua. Aqueles mesmosescritores que romperam com a escola mitológica tão em voga na poesiaportuguesa, para aceitarem a escola moderna, que foi iniciada sob o título deromantismo, por uma singular contradição se julgaram adstritos à linguagemclássica usada pelos antigos modelos.

O estilo quinhentista tem valor histórico; é um estudo de costumes, que noromance do gênero adquire súbito valor como o provaram Alexandre Herculanoe Rebelo da Silva. Fora disso é apenas uma fonte, mas não exclusiva, onde oescritor de gosto procura as belezas de seu estilo, como um artista adiantadobusca nas diversas escolas antigas os melhoramentos por ela introduzidos.

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Feita esta confissão plena de meus pecados em matéria de estilo, direi por queescolhi antes esta ocasião do que outra qualquer para pôr-me bem com a minhaconsciência.

Quando saiu à estampa a Lucíola, no meio do silêncio profundo com que aacolheu a imprensa da corte, apareceram em uma publicação semanal algumaspoucas linhas que davam a notícia do aparecimento do livro, e ao mesmo tempoa de estar ele eivado de galicismos. O crítico não apontava porém uma palavraou frase das que tinham incorrido em sua censura clássica.

Passou.

Veio anos depois a Diva. Essa, creio que por vir pudicamente vestida, e nãofraldada à antiga em simples túnica, foi acolhida em geral com certa deferênciae cortesia. Da parte de um escritor distinto e amigo, o Dr. Múzio, chegou areceber finezas próprias de um cavalheiro a uma dama; entretanto não se pôdeele esquivar de lhe dizer com delicadeza que tinha ressabios das modasparisiense.

Segunda vez a censura de galicismo, e dessa vez de um crítico excessivamentegeneroso, que se alguma preocupação nutria era toda em favor do autor do livro.

Desejei tirar a limpo a questão, que por certo havia de interessar a todos que seocupam das letras pátrias. O distinto escritor, solicitado em amizade, capitulariaos pontos da censura. Se em minha consciência os achasse verdadeiros, seriapronto em corrigir meus erros; senão, produziria a defesa, e não fora condenadosem audiência.

Muitas e várias razões me arredaram então daquele propósito; a atualidade daquestão passou; eu correria o risco de não ser lido saindo a público para discutir acrítica antiga de uma obra talvez já submergida pela constante aluvião de fatosque ocupam o espírito público.

Ao dar à estampa esta segunda edição da Diva, pareceu-me azado o momentopara escrever as observações que aí ficam, pelas quais deseja o autor ser julgadoem matéria de estilo quando publique algum outro volume. Não bastaacoimarem sua frase de galicismo; será conveniente que a designem eexpendam as razões e fundamentos da censura.

Compromete-se o autor, em retribuição desse favor da crítica, a rejeitar desua obra como erro toda aquela palavra ou frase que se não recomende pela suautilidade ou beleza, a par da sua afinidade com a língua portuguesa e de suacorrespondência com os usos e costumes da atualidade; porque são estascondições que constituem o verdadeiro classicismo, e não o simples fato deachar-se a locução escrita em algum dos velhos autores portugueses.

Quem quer que percorra ligeiramente o dicionário português mais castiço, o

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de Morais, achará nele cópia de palavras de origem francesa, que seaclimataram bem em nossa língua e passaram à categoria de clássicas, somentepela razão de as reconhecerem necessárias e bonitas os autores quinhentistas.Pois nós os modernos escritores, como eles artistas da palavra e do discurso, nãoteremos o mesmo direito?

Não há contestar; é o direito da inspiração e do gosto, exerça-se ele sobre aideias ou sobre a palavra. Ao público cabe a sanção; ele desprezará o autor queabuse da língua e a trucide, como despreza aquele que é arrastado àsmonstruosidades e aleijões do pensamento. Da mesma forma aplaudirá asousadias felizes da linguagem, como aplaude as harmonias originais e os arranjosdo pincel inspirado.

Na língua portuguesa o escritor de mais fino quilate, o superior Garrett, deu oexemplo dessa independência e espontaneidade da pena. Muitos de seuscometimentos ficaram na língua sancionados pela força e prestígio de seu talentopopular. Garrett aplaudido pela sua época é um clássico de tão boa têmperacomo os melhores do século XV, e de maior voga por ter florescido em nossosdias.

Cinjo-me a estas poucas páginas para não dar ao pós-escrito as proporções deuma memória ou dissertação, coisas de sua natureza fastidiosas, sobretudo depoisda leitura de um romance. Grande prova de paciência já terá dado aquele queaté aqui me acompanhou para que por mais tempo não abuse de sua nímiacomplacência.

Concluindo, chamo sua atenção para a nota junta, em que eu justifico algumasinovações de que me tornei réu, nos dois volumes referidos. Não quero que mesejam elas relevadas a pretexto de erros tipográficos; cometi-as muitointencionalmente.

Rio de Janeiro, 1º de agosto de 1865.

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NOTA

1- NÚBIL – É o adjetivo latino nubilis, tão eufônico e elegante como o seuequivalente pubere. Nenhum dicionário do meu conhecimento faz dele menção;mas talvez já fosse alguma vez usado por escritores portugueses.

2 - ESCUMILHAR – Diminutivo do verbo escumar, como o substantivo usadoe conhecido escumilha é diminutivo de escuma. Da mesma procedência éfervilhar, de que falaremos adiante.

3 - PUBESCÊNCIA – Do latim pubesco laniginem, emito. Não há outrovocábulo na língua portuguesa para exprimir com tanta elegância e propriedadeesse estado da cútis ou da maçã de certos frutos quando se cobrem de uma finae macia felpa.

4 - EXALE – Hesitei quando a pena escreveu este adjetivo desconhecido nalíngua portuguesa. Lembrava-me sim das mui judiciosas observações do bomFilinto Elísio a respeito do uso dos adjetivos passivos, que ele tanto preconizoucomo uma das belezas da língua. Mas os adjetivos passivos de que ele falavavinham do latim em linha reta; e o meu não tinha por si o cunho da mestriaromana. Refletindo mudei de pensar e arrisquei-me.

Assim como os bons clássicos latinos fizeram de infestatus, proecipitatus,exanimatus, occultatus, etc., os passivos irregulares infestus, proeceps, exanimis,occultus, podiam muito bem ter feito de exhalatus, exhalis. Esqueceram-se; nemera possível que de tudo se lembrassem. Convinha suprir a lacuna, tanto maisquanto exale é irmão de extreme, entregue, e outros que não descendem dolatim. Em conclusão, o vocabulário aí fica registrado. Os que, como eu, têm ovício de esperdiçarem seu tempo e saúde a rabiscar papel, muitas vez terãosentido a monotonia das desinências uniformes dos particípios passados dosverbos, especialmente da primeira conjugação. Esses, espero, serão indulgentespara o meu objetivo.

5 - PALEJAR – Escrevi este verbo persuadido que andava ele inserido nosdicionários, e fiquei surpreso de não o encontrar aí, porque nenhum é mais doque ele necessário e genuíno na língua.

Talvez se lembre alguém de opor-me o verbo empalidecer, de igual origem, ejá sancionado pelo costume; mas esse verbo está bem longe de exprimir a ideiado outro que eu introduzi, se é que antes de mim alguém já não fez estebenefício.

Muitas são as desinências verbais da língua portuguesa, por meio das quaisvariamos o sentido do vocábulo primitivo, e exprimimos as diversas

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modificações de uma ação. A desinência escer, de esco, que a língua latinaadotou do grego, forma os verbos chamados incoativos. Esco em grego tem asignificação de crescer; junto a um nome ou verbo, indica uma ação contínua,mas lenta e gradual da ideia anterior. Assim alvorecer é o progresso que faz oalvor no oriente; embevecer o ato de ir bebendo aos poucos.

Ora, no período a que me refiro, página 45, não era minha intenção dizer queas luzes da sala iam a pouco e pouco tornando pálida a fronte da donzela; massim que lançavam-lhe reflexos ou ondulações que a faziam pálida. A ideia émuito diversa; em vez de ação contínua, lenta e progressiva, eu quis exprimiruma ação intermitente, rápida e igual. A desinência escer não servia para o caso;era mister recorrer a outra.

Essa devia ser a desinência ejar, derivada do latim ago, e muito usual emportuguês. Ago, fazer, obrar, dá logo a ideia de iniciativa e poder criador;comunica ao nome ou verbo a força de produzir de si mesmo a ideia exprimida.Assim almejar é a alma que sai de si mesma excitada por um desejo; arquejar, aarca do peito que sai da sua posição natural; forcejar, a força emitida dosmúsculos; vicejar, o viço que se expande.

A desinência ago por isso mesmo que comunica o poder criador, a força ativaà palavra a que se junta, indica a persistência da ideia ou da ação; e por isso osgramáticos chamam os verbos dessa terminação frequentativos. Assim arejarsignifica uma produção repetida do ar, murmurejar um murmurar amiudado, etc.

Palejar portanto é o verbo que servia ao meu pensamento; a palidez que asluzes lançavam de si obre a fronte da donzela, palidez que devia ser rápida,trêmula e intermitente como a oscilação da chama; todas estas circunstâncias aíestão no vocábulo.

Quanto à sua genealogia, talvez haja quem o preferisse derivado do adjetivopálido, como empalidecer; entendi eu que o extraía bem do verbo palleo, dondesaiu o adjetivo pallidus, e o verbo pallesco. E por que havia eu de fazer o meuverbo neto do verbo radical quando o podia fazer filho?

6 - ROFADO – Não sei por que não mencionam os dicionários o verbo rofar,do latim rufo, quando dão os nomes respectivos, rofo, prega, e rofo, rugado. Esseverbo foi admitido no composto arrufar com uma ortografia mais semelhante àetimologia. Prefiro rofar, para distinguir de rufar, tocar ruflas no tambor.

7 - GÁRCEO – Não é o adjetivo garço ou zarco, que significa azulesbranquiçado; mas o derivado de garça, como róseo foi derivado de rosa.

8 - GARRULAR – Da propriedade que tem nossa língua de criar novos verbosjá falou com muito critério o autor do Gênio da língua portuguesa. Facilmente seadapta uma desinência verbal a qualquer nome, verbo. É o que se fez ao adjetivogárrulo, criando-se assim o verbo para suprir a falta que nos faz o radical latino

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garrio, que bem se podia traduzir garrir.

De resto garrular tem procedência igual à de escapulir, que provém deescapulo em primeiro grau e de escapar em segundo.

9 - OLÍMPIO, do latim olympius, a, um.

Para que esta novidade? Não temos já olímpico?... que?...

Temos, sim; mas agora mesmo acabo eu de sentir quanto são incômodas evexatórias para o escritor consciencioso essas palavras terminadas em sílabasásperas, especialmente com o emprego frequente do relativo que. A harmonia éuma das primeiras belezas da língua. Para mim ela vale mais do que todos osescrúpulos clássicos; desde que na língua mãe se deriva um adjetivo irmão queexprime a mesma ideia com mais eufonia, havia eu de rejeitá-lo por cortesia auma só letra, e uma letra rude e áspera, especialmente nas palavras esdrúxulas?

10 - ELANCE – É bem possível que algum leitor enxergasse nessa palavrauma tradução ridícula e extravagante do vocábulo francês élan, e se horrorizassedo galicismo.

Mas espero que repare tal injustiça cometida contra o inocente autor.

A língua latina tem a palavra lancea, lança, da qual derivaram as seguintes:lanceo, meter a lança; lancisco, ferir com a lança.

Passaram essas palavras com pequena modificação para a língua portuguesa,a qual, pela propriedade que tem de criar substantivos verbais, de lançar tiroulogo lançamento, como de defender, mover, conceber, aparecer, derivoudefendimento, movimento,, concebimento, aparecimento, e muitos outrosdesconhecidos no latim.

Outra propriedade preciosa da nossa língua é comunicar ao nome a ideia deatividade ou passividade da ação verbal por meio de certas desinências em queela é muito rica. Assim essa desinência em ento, talvez corrupção do gerúndiolatino agendus, exprime um movimento sucessivo, ainda não acabado. Exemplo:revolvimento. A desinência em ão, de actio, indica o movimento rápido econsumado. Exemplo: revolução. A essas duas desinências ativas correspondemoutras duas passivas, em ado ou ada, ido ou ida, de actus, que significa o objetoque já sofreu o movimento do verbo. Exemplo: mandado. A outra é umadesinência irregular, ou antes não é desinência, mas ausência dela, e contraçãodos nomes em ento para designar o movimento passivo, ou o efeito do anteriormovimento, como mando, que é o efeito de mandar.

Sobre estas desinências pode-se ver a obra já citada, Gênio da línguaportuguesa, a qual contudo não é completa.

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Nada mais natural, em vista do expendido, que a língua portuguesa tendocriado o nome verbal lançamento o apassivasse por contração e fizesse lancepara exprimir o efeito do movimento do verbo, como o outro exprimia essemesmo movimento continuado. Igual operação ideológica houve na palavrarealce, engaste, encaixe, disfarce, transe, contração de realçamento,engastamento, encaixamento, disfarçamento e transimento. Nenhum dessesnomes contraídos e passivos tem equivalentes no latim.

Tal é a verdadeira etimologia da palavra portuguesa lance; e não a que dáMorais, derivando-a do francês élan, ou a que procurou Constâncioarbitrariamente e conforme seu costume na palavra grega laxis. Quenecessidade tinha a língua de socorrer-se de elemento estranho, quando em siprópria tinha o necessário para dar raiz lancea tirar por gradações o vocábulolance?

Ao passo que em português a radical era assim desenvolvida, no francêsproduzia o verbo lancer, o nome lancement, e segundo pretende Bescherelle e osmelhores dicionários esse outro nome composto élan e seus derivados élancer,etc. Quanto a mim, élan parece antes uma corrupção por transposição de an-helus; a sua significação de ímpeto ou salto arrebatado é figurada e não primitiva.

Como quer que for, tenham os franceses feito o seu vocábulo élan ou lanceaou de anhelus, como nós fizemos o nosso de lance, não podemos nós osportugueses explorar mais essa fonte para dela haurir as riquezas que existamsem incorrer em crime de galicismo? Porque os franceses compuseram a raiz, ecriaram élan, élancer, élancement, não é permitido ao escritor português usar deigual direito e prerrogativa?

Quando de lance fizeram os bons autores relance, relancear, juntando oprefixo que indica repetição, concederam autoridade para todos aquelescompostos que forem necessários e harmoniosos. Elance está nesse caso; ele éparente próximo e eflúvio, efeito, efúgio, efusão, elisão, emanação, e tantos outrosformados da preposição e ou ex que exprime a emissão ou produção externa daação.

11- RUTILO – De restilar, brilhar, trilar, fizeram restilo, brilho e trilo; decintilar, cintila ou centelha. Por que razão o verbo rutilar, um dos mais belos dalíngua portuguesa, não havia de ter um só nome substantivo, quando outros têm-os os três e quatro? Nada de privilégios, nem mesmo para os vocábulos;igualdade perante a língua, como perante a lei.

12- ROÇAGAR – Este verbo, se não me engano, já foi usado; eu mesmo oescrevi frequentes vezes sem investigar dos seus títulos e diplomas. De feito,sendo o particípio presente roçagante consagrado, parece que não pode ele existirsem o verbo, cujo é. Constâncio diz, é verdade, que deriva roçagante de roçar;mas creio que não obstante seus devaneios em matéria de etimologia, não

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pretendeu ele que fosse o particípio daquele verbo.

Aqui aparece a desinência ejar de que falamos em outra nota, maisaproximada da radical ago. Essa desinência, como foi dito, comunica ao verbo aideia de iniciativa e atividade; e por dedução a ideia de frequência e repetição.Roçagar é pois uma variante de rocegar ou rossejar; variante de grandeestimação pela beleza e harmonia. Sua verdadeira significação deve ser aseguinte: produzir roçamento frequente e repetido.

Daí veio chamar-se roçagante a roupa talar e ampla, não somente porquearrasta no chão, como dizem Morais e Constâncio, mas porque suas muitasdobras tocando-se de leve umas às outras produzem um roçamento repetido,rossejam. Na significação usual foi usada a palavra neste volume da Diva, página171; porém afastei-me dela em Lucíola, página 195: “Avistando-me, roçagou ovéu, e disse com um triste sorriso, etc.”

Como se vê da frase, não se tratava de objeto que arrastasse no chão, e quepor conseguinte tirasse daí a significação atribuída ao vocábulo; mas era algumacoisa flutuante, cheia de rugas e pregas, como são os véus; o movimento dapessoa que o quisesse colher, para descobrir o rosto, havia por força produzir ocontínuo e repetido roçamento.

O verbo arregaçar não exprime tanto nem tão bem; é mais do que colher eseus compostos, pois é colher fazendo seio ou regaço; mas não dá a ideia deondulação contínua, e nem a da rejeição do véu por sobre a cabeça. Arregaçar ovéu é levantá-lo apenas; roçagar é atirá-lo para as espáduas. Em idênticasignificação o empreguei à página 22, “...enquanto a mão ligeira roçagava osamplos folhos da seda que rugia arrastando.” Traduza-se: enquanto a mão ligeirarejeitava fazendo roçar uns nos outros repetidas vezes os amplos folhos, etc.”

13 - FRONDES – A palavra latina frons, ondis, que significa propriamente afolha superior e recente, o renovo-gérmen, arborum, hervarum et florum.Introduzida na linguagem científica por Lineu, foi logo adotada, como merecia,pela linguagem literária e artística, onde ela vem aumentar a família devocábulos que receberam do latim os nossos clássicos frondear, frondejar,frondente, frondoso, frondífero, etc.

Para exprimir os renovos das palmeiras ela é sobretudo de grande beleza,porque acrescenta a ideia de elevação.

14 - AFLAR – A virtude ou vício desse vocábulo me deve ser imputado, porquefui eu o primeiro que o transportei para a nossa língua ex auctoritate qua scribo.

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Afflo vel adflo, ad aliquid spiro, vel flatu contingo, composto de ad, para, eflo, soprar. Se acharem na língua portuguesa um verbo que exprima ao mesmotempo, com tanta propriedade, elegância e beleza imitativa, o movimentoproduzido pelo bafejo da aragem sobre as folhas, ou a ondulação de certosobjetos que agitam o ar, como o leque, os folhos de um vestido, etc., euconfessarei que cometi uma superfluidade emprestando do latim essa palavranova.

Mas duvido que achem termo nessas condições. Eu conheço soprar, arejar,bafejar, arar, espirar e seus compostos, ventilar, e talvez outros que me nãorecordem agora. Nenhum deles satisfaz: soprar, arejar, ventar e ventilar têm asignificação genérica de emitir sopro, ar ou vento; bafejar é o ar ligeiro queexpelimos pela boca, ou figuradamente o que se lhe assemelha pela brandura etepidez; espirar, respirar, suspirar significam várias modificações no movimentodo ar vital; arfar exprime a ondulação produzida pelo ar interior.

Aflar porém reúne a significação de muito desses verbos. Ele indica a emissãodo ar, acrescentando a ideia de um lugar para, ad. Afla a brisa, sopra para,dirige-se a outro lugar. Indica também, como arfar, uma ondulação produzidapelo ar, mas não é de expansão, e sim de deslocação. O seio arfa porque seintumesce de ar; a palma afla porque o sopro intermitente a embalança.

A grande beleza porém do vocábulo está na onomatopeia; afla é o somharmonioso de certos movimentos que o verbo seja chamado a exprimir: afla ummimoso leque meneado lentamente, um vestido de chamalote com a ondulaçãodo andar gracioso, uma bandeira agitada pela brisa, etc.

15- RUBESCÊNCIA – Já se tratou da desinência verbal escer, que designacontinuação gradual, progressiva e lenta. A essa desinência verbal corresponde ados substantivos derivados encia, que exprimem a mesma ideia.

A língua portuguesa foi parca em seu empréstimo da latina quanto à famíliadeste vocábulo; apenas tomou o substantivo rubor, o adjetivo rúbido, e o verbocomposto enrubescer; desprezou o verbo rubir, de rubeo, ser vermelho, osubstantivo rubidino, is, rubidez, que outros adotaram quando sentiram anecessidade, e com tão bom direito como foram adotados languir e languidez.

Eu limitei-me a adotar o verbo simples rubescer e seu substantivo rubescência, porque careci dele para exprimir a minha ideia. Rubor exprime oefeito da ação verbal rubeo. O outro derivado, rubidez, se fosse admitido,exprimiria um estado ou qualidade, conforme a ação. Rubescência porém indicaa gradação da cor que se vai acendendo nas faces até chegar a ser rubor.

16- FERVILHAR – É palavra conhecida e usada; é o diminutivo de ferver. Essapropriedade de diminuir a significação dos verbos, como de a aumentar peladesinência, é outro privilégio da língua portuguesa.

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- FIM -

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SOBRE O AUTOR

José de Alencar (José Martiniano de Alencar) nasceu em Messejana, CE, em

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1º de maio de 1829, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12 de dezembro de 1877.

Era filho do padre, depois senador, José Martiniano de Alencar e de sua primaAna Josefina de Alencar, com quem formara uma união socialmente bemaceita, desligando-se bem cedo de qualquer atividade sacerdotal.

O advogado, jornalista, político, orador, romancista e teatrólogo é o patrono daCadeira 23 da Academia Brasileira de Letras.

Entre suas obras estão: Cartas sobre a confederação dos Tamoios (1856); OGuarani (1857); Cinco minutos (1857); Verso e reverso (1857); A noite de SãoJoão (1857); O demônio familiar (1858); A viuvinha (1860); As asas de um anjo(1860); Mãe (1862); Lucíola (1862); Os filhos de Tupã (1863); Escabiosa(sensitiva) (1863); Diva (1864); Iracema (1865); Cartas de Erasmo (1865); Asminas de prata (1865); A expiação (1867); O gaúcho (1870); A pata da gazela(1870); O tronco do ipê (1871); Sonhos d’ouro (1872); Til (1872); O garatuja(1873); A alma de Lázaro (1873); Alfarrábios (1873); A guerra dos mascates(1873); Voto de graças (1873); O ermitão da Glória (1873); Como e porque souromancista (1873); Ao correr da pena (1874); O nosso cancioneiro (1874);Ubirajara (1874); Senhora (1875); Encarnação (1893, póstumo). Obra completa,Rio de Janeiro: Ed. Aguilar, 1959.