a revolucao francesa explicada à minha neta

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Michel Vovelle A Revolução Francesa explicada à minha neta Tradução Fernando Santos editora unesp

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Michel Vovelle

A R e v o l u ç ã o F r a n c e s a e x p l i c a d a

à m i n h a n e t a

Tradução Fernando Santos

editoraunesp

t o v (Cu,

© É d it io n s du Seuil, 2 0 0 6

Título original em francês La Révolution Française expliquée à ma petite-fille© 2005 da tradução brasileira:Fundação Editora da UNESP (FEU)Praça da Sé, 10801 0 01 -900 - São Paulo - SPTel.: (O xxll) 3242-7171Fax: (O xxll) [email protected]

CIP - Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

V 9 5 3 4

Vovelle, Michel, 1933-A Revolução Francesa explicada à minha neta/M ichel

Vovelle; tradução Fernando Santos. - São Paulo: Editora UNESP, 2 0 0 7 .

Tradução de: La Révolution Française expliquée à ma petite-fille

ISBN 9 7 8 -8 5 -7 1 3 9 -7 7 6 -7

1. França - História - Revolução, 1 7 8 9 -1 7 9 9 . 2. França - Civilização - 1 7 8 9 -1 7 9 9 . 3. França - Condições sociais - Século XVIII. I. Título.

0 7 -2 5 2 6 . CDD: 9 4 4 .0 4CDU: 9 4 (4 4 ) “ 1 7 8 9 /1 7 9 9

Editora afiliada:

IC'lItnrlak'H Uiifv<*rNll:irlu«4ÎC il l lo m s U n lv c r s m S r l i islit.» A m rrtcu IjiH m i y i*ï C<irlt>c

Gabrielle, que m ora em P isa , na Itália , concordou em ded icar a lgum as horas, durante suas fé r ia s na F rança, p a ra exam in ar com igo, seu avô, essa R evolu­ção Francesa que eu ensiiiei durante quarenta anos. Se fo rm o s bem -sucedidos, será um a fo rm a de nos conhecerm os m elhor...

A G abrielle, m inha prim eira neta, cúm plice destas conversas;

àqueles que a in da vão crescer,M arie , Cam ille, M atthieu , Guillaum e,

e a todos os outros...

Guardo carinhosamente a medalha deixada por meu pai, Gaétan Vovelle, professor

primário (1899-1969), a qual traz a seguinte inscrição: "Todas as crianças

do mundo são meus filhos

S u m á r i o

1. Revolução Francesa: uma revolução diferente das outras 9

2. Por que aconteceu a Revolução? 21

3. U m a monarquia constitucional 39

4. A queda da monarquia 57

5. A Primeira República 67

6. O Diretório: term inar a Revolução? 85

Conclusão: A som bra e a luz da Revolução 99

Capítulo 1 R e v o l u ç ã o F r a n c e s a :

u m a r e v o l u ç ã o d i f e r e n t e d a s o u t r a s

— Você ouviu falar da n o ssa “Grande R e­v o lu ção”? Isso s ign ifica algo para você?

— Pouca coisa; co m catorze anos, acabei de passar para o “C u rso C lá ss ic o ”, e ainda não estu d ei essa m atéria .

— N ão se preocupe. M esm o que já tenham ouvido falar do assunto, tenho certeza de que, para um grande n ú m ero de estu dan tes fran­ceses de sua idade, tra ta -se de u m a história com p licad a e d is ta n te , ch e ia de a co n tec i­m en to s e de p ersonagens. A lphon se Aulard, um h istoriad or que viveu há m ais de cem anos, escreveu: “Para com p reen d er a R ev o­

I[I AAichel Vovelle

lu çã o Fran cesa é p rec iso am á-la” . Prim eiro v a m o s te n ta r com p reen d ê-la ; d epois v ere­m o s se, n o final do jo g o , nós a a m am o s... Para isso , seria b o m se você m e fizesse p er­guntas...

— M as eu não sei d ireito o quê perguntar...— Hu b em que desconfiava; m as ten h o cer­

tez a de qu e as p erg u n tas surgirão: é só c o ­m e ça r b em .

— Vovô, o que é um a revolução?— Você co m eço u a estu d ar latim ; já ouviu

falar de E sp ártaco? B sp ártaco vivia na A n t i­guidade, n o tem p o da R ep ú b lica rom ana, an tes da n o ss a era. S en d o ele m e s m o um escravo, liderou a revolta dos escravos co n ­tra seus sen h o res . M as os escravos foram d errotad os e m ortos. A revolta de E spártaco deixou su a m arca na história , m as é u m a en ­tre as m ilh ares de revoltas dos oprim idos con tra os o p ressores .

— A R evolu ção Francesa é uma revolta de es­cravos com o a de E spártaco?

— N ão, a R evolução Fra n cesa ocorre em 1 7 8 9 em m e io a u m a série de revoluções — em G enebra, na Bélgica, nos Países Baixos...

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A R evo lução Francesa explicada à m inha neta

A m ais im p ortan te é a revolução n o rte -am e­ricana, is to é, a revolta das treze colônias inglesas da C osta Leste da A m érica do Norte contra sua m etrópole, entre 1 7 7 6 e 1783 . Ela deu origem aos E stados U nidos de hoje. D i­fe re n te m en te da revolta, a revolução m uda o curso da h istória em um país.

— A R evolução Francesa, en tão , é apenas uma revolução com o as outras?

- D e fato, é u m a revolução en tre outras, e nós, franceses, sem p re fom os criticados por q u erer tratá-la, org u lh osam en te , com o algo à parte, a tr ib u in d o -lh e u m a im p ortân ­cia esp ecia l. Para com p reen d er, porém , é p rec iso co m eça r ex am in an d o com o e por

' que tudo com eçou . E a resp osta não é s im ­ples. D esd e o co m eço , os revolucionários deram o n o m e de “A n tig o R e g im e ” ao m u n ­do que eles haviam destruído, co m o se qu i­se sse m virar a página e co m eçar um a nova aventura . E sse A n tig o R e g im e era o reino da Fran ça , u m a m o n a rq u ia sob o reinado de Luís X V I e de sua esposa, Maria Antonieta. Luís X V I não era u m a m á pessoa; em bora não tivesse grandes qualidades, era bem in ­ten cion ad o . Ele não consegu iu m anter seus m in istros com p eten tes - Turgot, Necker etc.

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AAichel Vovelle

- n e m defender as reform as propostas por eles. Isso porque havia u m a forte resistên cia por parte dos privilegiados, e a crise era grave,

— O que quer d izer priv ileg iados?— N a Fran ça do A n tig o R eg im e n ão havia

igualdade; a socied ade estava dividida em ord en s, q u e tin h a m m ais ou m en o s priv ilé­g ios: à fren te v inha o clero, a Igre ja C a tó li­ca, a ú n ica qu e t in h a o d ireito de en sin ar a religião, m as que ta m b é m era m u ito rica em terras e rendas. M ais ricos ainda eram os a r is to cra ta s , qu e co m p u n h am a o rd em da n obreza . E ram p rop rietários de pelo m e n o s u m q u arto das terras, favorecidos por privi­légios h o n o ríf ico s e ta m b é m fiscais. O rg u ­lh osos de seus títu los, serviam nos exércitos do rei, m as n a m aior parte do te m p o fica­vam sem fazer nada em seus caste los ou na cidade, sen d o que os m ais notáveis m o ra ­vam na corte do rei, em Versalhes. E n tre eles havia alguns m u ito ricos e ou tros m en os. A lguns h aviam co n q u is ta d o seu t ítu lo de nobre ad qu irind o u m cargo de m agistrado: era a nobreza togada. Q u er sua nobreza fosse antiga ou recen te , as reivindicações dos n o ­bres t in h a m origem na época m edieval do feudalism o, is to é, de u m período em que a

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A R evo lução Francesa explicada à m in ha neta

es tru tu ra p olítica do reino estava baseada em re lações de vassalagem : o proprietário do feudo, cham ad o vassalo, e todos que ali viviam e trabalhavam deviam fidelidade e respeito ao senhor, em geral um nobre. Esses senhores haviam dom inado um cam pesinato de servos, cam p o n eses ligados à terra que deviam torn á-la produtiva. N o final do sé ­culo X V III , p orém , qu ase não havia mais servos na França: os cam p oneses eram livres e gera lm en te donos de suas propriedades, que represen tavam , no total, qu ase m etade das terras da França. C on tin u av am ex ist in ­do, entretanto , as obrigações e as taxas: eram os d ireitos feudais e de senh orio , pagos em d inheiro ou em espécie , os quais às vezes eram m u ito pesados, com o a “jugada” - após a co lheita , os enviados do sen h o r recolhiam dos cam p os um fe ixe em cada dez, ou em cada doze ou catorze. O s sen h o res haviam conservado direitos h onoríficos, sua própria ju stiça , seu s lugares na igreja e o direito de caça.

— C om o os cam poneses suportavam isso?- C o m o agüentavam qu ase todo o peso

dos im p o sto s reais, e les sofriam m uito com as h u m ilh açõ es . E les se m obilizavam para

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M ich e l Vovelle

defender seus direitos, que os nobres tinham a te n d ên c ia de usurpar, chegand o às vezes a se revoltar: e m especia l nas épocas de e s ­cassez , para p ro testar co n tra o alto p reço do pão. E e les não eram os únicos, pois tan to para os op erários das cidades q u an to para e les o pão era o a lim en to principal, c o n s u ­m in d o m eta d e do salário diário de u m a fa­m ília . Você, qu e não pode co m er pão em ex­cesso , o qu e acha d isso?

— O que eu g ostar ia de saber m esm o é o que é escassez :/

— N o grande re ino da França, co m 2 8 m i­lh õ es de h a b ita n te s , havia p lan ícies férteis c o m o n o s arredores de Paris, e regiões m u i­to m ais pob res , nas m o n ta n h as , por e x e m ­plo. Por tod a parte, porém , o trigo para fa­zer pão era u m a n ecess id ad e básica: bastava o tem p o prov ocar u m a ou várias co lh e itas ru in s para qu e o p reço d isparasse, a m iséria se instalasse e a revolta explodisse; é o que se ch am a de “agitação p o p u lar”. E m b o ra e s ­sas crises e a m orta lid ad e causada p o r elas h o u v esse m d im in u íd o no sécu lo X V III , elas con tin u av am ex ist in d o , e foi isso que a co n ­teceu em 1 7 8 8 e 1 7 8 9 : às vésperas da R e ­

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A R evo lução Francesa explicada à m in ha neta

volução, exp lod em revoltas em várias p ro ­víncias e as cidades se agitam .

— E f o i isso que causou a R evolução?

— Sim e não. Falam os, com razão, dos cam ­p on eses ; e les rep resen tam três quartos da população, m as não o cup am o espaço todo ao lado das duas prim eiras oi-dens. Eles fa­zem parte da terce ira ordem , cham ada Ter­ceiro E stado: m orad ores das cidades e do cam po, ricos e pobres, que co n stitu em , no total, 9 5 % dos franceses. Todos - sobretudo os pobres, é claro - foram atingidos pela cri­se; porém , com o dizia um dos m eus profes­sores, a cada dois anos acon tece um a crise, m as não acon tece u m a revolução cada vez que há crise. É um a das causas, m as não é a única.

É p reciso voltar o o lhar para as cidades para perceber de onde vem a am eaça da cólera e as d em o n stra çõ e s de in satisfação . Com se iscen to s mil h ab itan tes , Paris é um a cida­de grande, certam en te a terce ira do m undo.

— Q uais são as outras duas?

— Londres e, provavelm ente, Pequim. Vol­tem os à França, onde há outras cidades gran­

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M iche! Vovelle

des (Lyon, M arselha , B ord eau x), a lém de m u itas cidades pequenas e v ilare jos. N elas en co n tram o s um a m ultidão de pessoas do povo, de m endigos a trabalhadores d iaris­tas, m as tam b ém artesãos e co m erc ia n tes — diz-se “a barraca e a lo jin h a ” —, m em b ro s de corp orações que reún em m estres e o p e­rários au tôn om os. Há tam b ém um a b u rg u e­sia afluente com p osta de n egocian tes por vezes m u ito ricos nos portos, de b an q u ei­ros, de em p resários do se to r têxtil ou da n ascen te m etalurgia. N o in terior dessa b u r­guesia, um grupo não deve ser esquecido: os advogados, os funcionários da ju stiça e os m édicos. H oje seriam conh ecid os com o in ­te lec tu a is e p rofission ais liberais. N ão os perca de vista, pois vam os cruzar com eles n ovam en te .

Pois, em b ora ainda não possua, de fato, o perfil que lhe dará a R evolução Industrial do sécu lo segu inte , a bu rgu esia aproveitou- se e n o rm e m e n te do d esenvolv im ento e c o ­n ôm ico do sécu lo X V III, com o desenvolvi­m e n to do c o m é r c io m a r í t im o . E la te m novas aspirações e novas am bições. U m dos futuros porta-vozes da Revolução, Barnave, escreverá que a u m a nova d istribu ição de riqueza deve corresponder um a nova distri-

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A Revolução Francesa explicada à m inha neca

buição de poder... Você sabe que m uito se escreveu e m u ito se leu durante o século X V III, o que lhe valeu o títu lo de Século das Luzes. Você ouviu falar d isso na Itália?

— Claro que ouvi... Ilumi, llum inism o... Mas o que isso quer dizer exatam ente?

- E um a am pla corren te de idéias que t o ­m a conta da Europa. De N ápoles a Milão, t iv em os rep re sen ta n tes b rilh an tes : todos eles leram o tratado Dos delitos e das penas, no qual seu ju r is ta Beccaria denunciava a tortu ra e os castigos in ú te is ou in justos. Vozes im portantes tam bém se fizeram ouvir da Inglaterra à A lem anha. Na França, M on- tesquieu , Voltaire, Rousseau, Diderot, cada um com seu estilo , fizeram ressoar a voz da filosofia. C ontra a in to lerância religiosa e em defesa das liberdades, contra o arbítrio do abso lu tism o e em defesa de um regime político em que os cidadãos, protegidos por um a C onstitu ição , participam da adm inis­tração do Estado. O s jo rn a is - ainda cham a­dos geralm ente de gazetas —, m as tam bém as asso c ia çõ es d ivulgam e ssa s idéias: as classes populares tom am conh ecim en to de­las de forma simplificada; nessa época, mais da m etade da população adulta francesa sabe

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M ich e i Vovelle

ler e escrever (o que é possível perceber pela a ss in a tu ra ) ...

— N ão é m uita gen te... ou é?— Para nós pode parecer pouco. A inda

m ais se levarm os em con ta a desigualdade entre h o m en s e m u lh eres , b astan te p re ju ­dicadas, ou entre as regiões - o N orte é m ais instru ído que o Sul... Em term os de Europa, porém , a França não está em u m a p osição ruim. E assiste-se, nas cidades, ao su rgim en­to de um a opinião pública cu jos ecos c h e ­gam ao campo.

— Então os ricos e os pobres estão todos de acor­do... contra o quê?

— N ão vam os nos apressar. As coisas não são tão sim ples co m o parecem . A revolu­ção que está sendo preparada será, com o se disse, filha da m iséria ou da prosperidade?

SvjVAÍ^Michelet, um de n ossos grandes h is to riad o ­res do século X IX , evocando a escassez e lem bran d o-se da Bíblia, voltava-se para o cam ponês: “Vejam -no deitado na im undície, pobre J ó . . . ”. Isso diz algum a coisa para você?

— Sim , J ó é um in feliz a quem Deus f a z passar por provações antes de recom pensá-lo . Será que M ichelet não está exagerando um pouco?

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A Revolução Francesa explicada à m inha neca

— Trata-se de um a im agem , é seu je i to de escrever. M ais tarde, porém , no início do século X X , Jean Jau rès , outro grande h is to ­riador, de m aneira resumida, disse o seguin­te: não, nao foi a m iséria que fez a revolução, foi a vontade daqueles cu jo papel e riqueza os im peliam a assu m ir seu verdadeiro lugar na sociedade, os burgueses. M ichelet e Jaurès: qu em está errado, quem está com a razão?

~ Vovô, você é que tem de responder!

- O s dois têm razão. A prosperidade do sécu lo não foi co m p artilh ad a por todos. A m is é r ia c o n t r ib u ir á para m o b iliz a r não apenas as cidades, m as tam b ém os cam pos. E les exp lod em em 1 7 8 9 e, em 1 795 , um a nova crise irá causar destruição. Mas o “m aes­tro da orqu estra , a m isé r ia ” não representa a totalidade das re iv in dicações populares. Pobres ou ricos, os cam p o n eses têm um a co n ta a acertar co m o s is te m a feudal - ou com aquilo que sobrou dele - , e a revolução cam p o n esa irá convergir, ao m en o s d uran ­te certo tem po, com a dos burgueses das cidades.

A elite rica e ilustrada tem seus próprios ob jetivos e m etas de luta. Porta-vozes indi­cam -lhe o cam inho: o abade Sieyès expõe o

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M iche l Vovelle

p ro b lem a em um te x to intitu lado O que é o Terceiro Estado?. E sse Terceiro Estado, sobre qu em recaem os im p ostos e as taxas, “h o je não é nada... e o qu e ele d ese ja se tornar? Tudo”.

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C apítulo 2

Por q u e a c o n t e c e u a R ev o l u ç ã o ?

— Você explica bem as causas da Revolução, m as fa l t a saber com o explodiu ... O que provocou, de fa to , a Revolução?

— C om as causas profundas, provenien­tes de um velho m undo carcom ido, eu s i­tuei, de todo m odo, a penúria de 1789 . E* verdade que acrescentei que ela não explica tudo. Pois há outras razões, as m esm as que foram dadas na época e eram as mais visí­veis. Nem tudo corria bem no reino da França.

O rei Luís X V I era um m onarca absoluto: consagrado na catedral de R eim s, era o e s ­colhido de D eus. E m m eio aos cortesãos do Palácio de Versalhes, ele era a encarnação

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AAichel Vovelle

da lei, e os m in istro s só obedeciam sua von ­tade. A Igre ja C ató lica estava associad a a seu poder e as outras religiões eram p ro ib i­das (os p ro testan tes eram “to lerad o s” d es­de 1 7 8 8 ) , e in ten d en tes adm inistravam as províncias em seu nom e.

Mas esse edifício, erguido ao longo de dois séculos por cam adas sucessivas, ja m a is fora organizado: os lim ites ad m inistrativos e n ­cobriam um em aranhad o de privilégios, a ju s t iç a era exerc id a por m ag istrad os qu e eram proprietários de seus cargos - em Pa­ris ou n o restante do país - e os quais p re­ten d iam ter o d ireito de supervisionar as d ecisões reais. E m b o ra tivessem sido c o n ­tidos, sua resis tên cia voltou a se m a n ife s ­tar às vésperas da Revolução, e eles, que te o ­r icam en te estavam a serviço do rei, iriam co n trib u ir para a crise do regim e e para o d esen cad eam en to da Revolução. Pois havia um grave problem a financeiro. O s tr ibutos recaíam b asicam en te sobre o Terceiro E s ta ­do: a talha era o único tributo direto, enquan­to a capitação, estabelecida em 1 6 9 5 , recaía sobre tod os os indivíduos de todas as o r ­dens. E sses tributos eram mal repartidos e cobrad os de m aneira in justa ; e, ao lado d es­

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A Revo lução Francesa explicada à m inha neta

ses tributos diretos, havia os im p ostos que o rei arrecadava sobre diversos produtos: o mais impopular, a gabela, era aplicada ao sal, um gênero de prim eira necessidade...

— Por que especialm ente o sal?

- Você sabe m u ito bem que não havia ge­ladeira no tem po de nossos antepassados. Eles só dispunham do sal para conservar a carne e outros alim entos. E preciso tam bém m encionar o dízimo, um im posto específico aplicado às colheitas que o clero usava para as despesas do culto; mas ele era desviado com tanta freqüência que os padres às ve­zes nem se beneficiavam dele. C om o você pode ver, as pessoas não eram cobradas de m aneira conveniente; só que isso tam bém acontecia na hora das despesas. A monarquia não tinha previsões rigorosas de gasto ~ o que conh ecem os com o orçam ento : dessa forma, o próprio rei podia lançar m ão diretam ente dos im p ostos para aten d er às necessidades de seu padrão dé vida e do da corte de Ver­salhes. D izia-se que a rainha M aria A ntonie- ta era um a perdulária. O luxo dos privile­giados era uma ofensa à miséria dos pobres. A isso vem se somar, nos anos 1 7 7 0 -1 7 8 0 , a

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AAichel Vovelle

guerra de independência das co lôn ias ingle­sas da Am érica, que contou com apoio do rei da França...

~ M as isso é uma coisa muito sim pática... Qual o problem a, então?

— É que esse apoio saiu m u ito caro. E as­sim a dívida au m en tou e o rei tinha de c o ­brar novos im postos; m as o pre ju ízo era tão grande que todo o s is tem a tinha de ser in ­te iram en te m odificado.

Eu já havia dado u m a pista lá no com eço: Luís X V I, que em 1 7 8 9 com pletava 2 5 anos de reinado, não teve força para im plantar as reform as. N ão vou retom ar essa h istória toda, pois, talvez co m o você, ten h o pressa em en trar na Revolução. D igam os que o rei não apoiou os m inistros que lhe propunham uma reform a profunda das instituições, com o Turgot, o m ais reform ista , que ele d estitu iu em 1 7 7 4 , seguido de Necker, C alonne, Lo- m én ie de B rienne e N ecker novam ente , em 1 7 8 9 : você certa m en te não precisa guardar esses n om es por ora, todos eles fracassaram. Isso p o rqu e seus esforços esbarraram na op osição dos privilegiados: da corte e dos príncipes — irm ãos e parentes do rei —, das in s t i tu iç õ e s im p o r ta n te s do E sta d o , que

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A Revo lução Francesa explicada à m inha neta

Luís X V Ico n v o ca ra para apoiar as reformas: duas assem bléias de notáveis e tam b ém as im portantes cortes de ju stiça que eram os Parlam entos, em prim eiro lugar o de Paris. A proveitando m o m en ta n e a m en te o apoio da população, tan to de Paris qu an to do res­tante do país, que os considerava defensores das liberdades con tra o ab so lu tism o do rei, e les b lo q u e a r a m to d as as te n ta t iv a s de reforma, enquanto a crise piorava. Dessa for­ma, foram os privilegiados que, de certa forma, precip itaram os acon tecim en tos.

—Quer dizer, então, que o povo estava engana­do a respeito deles?

- A ilusão não durou m uito tempo. Q uan­do se trata do ano de 1 7 88 e ainda do início de 1 7 8 9 , os h istoriad ores falam de "pré- Revolução” e alguns até de “revolução aris­tocrática", m as percebe-se, de fato, que e s ­tavam enganados. E, enqu anto avançava, a opinião pública se educava. Q uando, ao pe­dir ao rei a convocação dos Estados Gerais para resolver o problem a das reformas, o par­lamento de Paris caiu naquilo que se tornaria sua própria arm adilha, surgiu um a grande esperança: o país iria ser ouvido...

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M ich e i Vovelle

— O que é a reunião dos E stados Gerais?— R eu n ir os E stados G erais era um m od o

antigo de o rei co n su ltar seus súditos, ou, ao m enos, os representantes das três ordens: fazia m ais de dois sécu los que ocorrera a últim a reunião. Ao m esm o tem po, um a gran­de novidade: os franceses tiveram o direito de se m anifestar. E fizeram uso d esse direito , já que foram estim u lad os a redigir cadernos de d olências por todo o país.

— O que isso quer dizer? É com o se fo sse um a súplica?

— Você quase acertou . U m a d olên cia é u m a qu eixa - não se o u sa dizer um a recla­m ação — subm etid a à boa-vontade do rei. O s franceses levaram m u ito a sério essa ta ­refa; cada ordem tin h a seu caderno, e os m e m b ro s do Terceiro Estado, nas aldeias ou nas corporações, relatavam suas m isérias de m an eira freqü en tem en te em ocion an te , se n ­do às vezes “te leg u iad os” por pessoas in s ­tru íd as qu e faziam p a ssa r re iv in d icações m ais gerais. N essa altura dos a co n tec im e n ­tos, os súd itos ainda am am o rei, que é v is­to co m o um a espécie de pai, m as eles d e­n u n ciam os abusos da ad m in istração e os d ireitos senhoriais; não se im p ortam de p a­

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A Revo lução Francesa explicada à m inha neta

gar im posto , m as exigem o direito de co n ­trolá-lo por m eio de seus rep resen tan tes , e reivindicam o respeito pelas liberdades e o fim do arbítrio ... Você p ressen te que ex is ­tem vozes discordantes na nobreza... mas isso representa um tes tem u n h o claro da si­tuação da França em 1789 . É essa m en sa ­gem que os deputados das diferentes ordens foram apresentar em Versalhes, no m ês de m aio de 17 89 , após um a cam panha e le ito ­ral bastante in ten sa e disputada.

— Como hoje em dia?

— N ão exatam ente. Em bora teoricam ente todos os súditos pudessem participar, essa participação em geral se dava de m aneira m uito complicada. Vamos dizer que, m esm o assim, era um com eço. E um acontecim ento, com o a abertura das sessõ es no dia 5 de m aio de 178 9 , com o desfile de deputados, nobres e bispos vestindo roupas enfeitadas, enquanto os deputados do Terceiro Estado usavam um u niform e negro m ais m elancó­lico. Im ediatam ente com eçou a disputa: os m em bros do Terceiro Estado tinham conse­guido, com o rei e o ministro Necker, o direi­to de ter o m esm o núm ero de deputados que as duas ordens privilegiadas ju ntas (com a

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1. 5 de maio de 1 7 8 9 . A bertura dos Estados Gerais em Versalhes. (Desenho de Monnec, impresso por Helman.)

M ich e l Vovelle

in ten ção de garim par votos en tre os padres ou os n obres liberais, que os havia), o que lhes dava a m aioria ... se todos votassem ju n ­tos. O rei, a corte e os privilegiados não in ­terpretavam a co isa da m e sm a m aneira, e qu eriam que cada. ordem ficasse separada; nessas condições, o Terceiro Estado só tinha um te rço dos votos.

A co n te ce ra m tantas co isas que não sou capaz de co n tar tudo: o rei repreende os deputados e seu m estre-d e-cerim ôn ias quer retirá-los do salão; um dos oradores do Ter­ceiro Estado, o já fam oso M irabeau, lhe re s ­ponde: “E stam os aqui pela vontade do povo, e só sa irem os com a força das b a io n etas”. M ais im p ortan te ainda: no dia seguinte os d epu tados en con tram a porta fechada. E les “in v ad em ” u m a sala vazia ao lado, um lugar de jo g a r péla (isto é, u m a espécie de tên is jo g a d o em um salão), onde, esp rem id os, ouvem um de seus, o erudito Bailly; ele os faz p restar o ju ra m en to de não se d ispersar antes de obter um a C onstitu ição, isto é, um te x to escr ito que estab elece a organização do poder. O Ju ra m e n to do Jo g o de Péla de 2 0 de ju n h o de 1 7 8 9 é um ato verdadeira­m en te revolucionário , pod e-se dizer funda­dor, qu e m uda tudo. O s deputados do Ter­

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A Revo lução Francesa explicada à m inha neta

ceiro E stad o p ro c lam aram -se A ssem b lé ia Nacional, depois A ssem bléia Nacional C on s­titu inte . M em b ros do clero ju n taram -se a eles - os padres "'patriotas”, com o com eçam a ser cham ados. E m seguida o rei co n co r­dou que as ordens partic ipassem ju n tas da A ssem bléia . Podia-se esperar que, com essa atitude, ele estivesse aceitando um com eço de transform ação pacífica: n esse m eio te m ­po, contudo, ele reuniu tropas em torno da capital, onde o povo se m obilizava para de­fender os deputados em V ersalhes (que fica bem próxim o de Paris). Na verdade, o rei pre­parava um golpe arriscado: ao d em itir o m in istro N ecker no dia 11 de ju lh o , a revol­ta estourou. E m busca de arm as, no dia 14 de ju lho os parisienses invadiram a Bastilha, an tiga fortaleza m edieval qu e se torn ara um a prisão do Estado.

- A B astilha eu conheço. M as o que é uma p r i­são do Estado?

- É lá que o rei prendia, sem ju lgam ento , aqueles que o contrariavam . Escritores, jo r ­nalistas (cham ados de panfletários), a u to ­res de textos proibidos, indivíduos de mau com portam ento , tam bém , a pedido da famí­lia. Bastava um a carta régia com a ordem

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de prisão, sem acusação precisa nem p ro ­cesso . Ela se tornara o s ím bolo da arbitrarie­dade do rei. A b em da verdade, é preciso di­zer qu e em ju lh o de 1 7 8 9 a prisão estava qu ase vazia, só havia m eia dúzia de presos. N ão eram eles qu e as pessoas queriam , e sim as arm as. U m a m ultidão arm ada, c o m ­p osta sob retu d o por artesãos e populares, a lém de soldados — os guardas do rei - , diri­giu-se à Bastilha: o diretor recusou-se a abrir os portões, houve u m a batalha que provo­cou n u m ero sas m o rtes entre os atacantes, m as éles acabaram se im pondo e assa ss i­nando o diretor. A Q ueda da B astilh a no dia 14 de ju lh o de 1 7 8 9 é tão im portante quanto o Ju ram en to do Jo g o de Péla, talvez até mais: qu an do os deputados estão sob a am eaça do golpe de força real, a entrada em cena do povo paris ien se constitu i o aco n tec im en to m ais im p o rtan te , e vai caracterizar a R ev o ­lução que se in icia - é preciso que se diga — com a m arca da violência, ainda que esta já e s tiv esse p resen te antes.

~ A s coisas não poderiam ter sido fe ita s de m aneira diferente? É muito triste, e talvez injus­to, todas essas m ortes quando se queria construir um mundo m ais ju sto .

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A Revolução Francesa explicada à m inha neta

- Você toca bem no cern e do problem a. Era possível evitar a violência ou ela era ne­cessária? A tom ad a da B astilh a nos dá al­guns e lem en to s de resposta: sem essa m o ­bilização, a situação ficaria bloqueada. Fica claro que é a recusa do rei, apoiado pelo parti­do da corte e pela oposição daqueles que se ­rão conhecid os com o os aristocratas, que tornou o cam in h o das reform as impossível. O rei sen te-se solidário aos privilegiados; ele diz: “Não quero me separar do 'meu clero’ e da "m inha n obreza ’”. Por causa disso, du­rante quatro anos ele vai usar de artimanhas, fingindo aceitar a nova situação, enquanto a força do m ovim ento revolucionário afirma- se de m aneira destem ida, endurece, e a e s ­calada com eça.

N ão gostam os de sangue, e tem os razão de não gostar. N ossos antepassados ta m ­bém não gostavam : m uitos ficaram h o rro ­rizados com o derram am ento de sangue; por exem plo, quando foram assassinados, n a­queles dias, o in tend en te da região de Paris (para simplificar, um a espécie de prefeito), Bertier de Sauvigny, e seu sogro. Babeuf, um jovem pobre que se tornaria m ais tarde um a pessoa conhecida, escreve n essa ocasião a

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2. 14 de julho de 1789, a Q ueda da Bastilha. (Gravura de Prieur.)

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3. imagens populares representando as três ordens (Terceiro Estado, clero e nobreza), antes e depois da Revolução.

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su a m ulher: “C o m o essa alegria toda m e in ­com odava... O s senh ores to rn aram -n os tão cru éis q u an to eles../ '.

O país en co n tra -se dividido, n esse m o ­m en to , entre dois se n tim en to s m u ito for­tes : a esp erança e o m edo. M edo dos pode­rosos e dos príncipes, qu e com eçam a fugir para o ex terior - serão cham ad os de e m i­grantes. M as tam bém , logo após o 14 de ju ­lho, u m grande pânico, co m o nunca se vira n em n u n ca se veria, varre todo o país: foi o cham ad o Grande Medo. U m boato espalha- se pelas aldeias: os bandidos estão ch eg an ­do, e les vão roubar e qu eim ar tudo. Q ue bandidos? Pouco im porta, o povo arm a-se e passa adiante o rumor... N ão passou de um so n h o ruim . Podem os dizer que a esperança venceu: no dia seguinte ao 14 de ju lh o o rei d irige-se a Paris, onde é recebido pelo novo p refe ito (Bailly, aquele do Jo g o de Péla), que lhe dá u m a nova insígnia. M ais que um e n ­feite, tra ta -se de um sím bolo: branco (com o a bandeira da m onarquia), m as claram ente rodeado de azul e verm elho, as cores da ci­dade de Paris. A nação fica toda colorida, tricolor... (Na Itália, vocês seguiram o e x em ­plo c o m o verd e-bran co-verm elho .) Pode­ria se ver ali o prenúncio de um a m onarquia constitucional.

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C apítulo 3U m a m o n a r q u i a c o n s t i t u c i o n a l

— "Uma m onarquia constitucional", que p a la ­vras com plicadas ... O que quer d izer “C onsti­tu ição”?

- Não, não é tão com plicado assim ... Luís X V I co n tin u a sen d o rei à frente de um a m onarquia. N o en tan to , ele não é m ais s o ­berano abso luto “pela graça de D eus", e sim “rei dos fra n ceses”, qu e lhe confiam esse cargo em n o m e da soberan ia nacional, isto é, do povo; os súditos se tornaram cidadãos. Ele terá de respeitar a C onstitu ição, um te x ­to que regu lam enta o fu n cion am en to das in stitu ições levando em con ta a vontade ge­ral delegada a rep resen tan tes do povo. O s

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E stad os Gerais, que se transform aram em A s s e m b lé ia N a c io n a l C o n s t i tu in t e , e n ­carregam -se de redigir o texto, cujos prin­cípios são an u n ciad os, em ago sto de 1 7 8 9 , na D eclaração dos D ire itos do H om em e do Cidadão.

E les não perderam tem po: com a p res­são popular, tiveram de tomar, urgentemente, m edidas radicais. O que se viu foi a volta do G rande Medo, com castelos sendo in cen ­diados em toda a França, en qu an to os cam ­p o n eses tocam fogo em todos os d o cu m en ­tos senh oria is que fixavam o pagam ento de im p ostos. A terrorizados, os deputados pen ­saram , no prim eiro m o m en to , em reprim i- los: porém , na n oite de 4 de agosto de 1 7 8 9 aco n teceu o que freq ü en tem en te foi d escri­to c o m o um “m ilagre”.

— N a história acontecem milagres?— N a verdade, não. D igam os que as c las­

ses favorecidas, tendo à frente os nobres “li­berais” favoráveis à Revolução, conscientiza- ram-se de que era preciso tom ar uma medida radical. A ssim , apresentaram -se à tribuna da A ssem bléia para abrir m ão de todos os seus privilégios (e às vezes dos privilégios do vi­zinho). É preciso reconhecer: quando a noite

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chegou ao fim, o feudalism o havia sido a b o ­lido do reino. O u seja, era o fim da socieda­de hierarquizada: acabavam -se as ordens da nobreza e do clero, as corporações e as aca­dem ias; o que havia agora eram cidadãos livres e iguais perante a lei. O s direitos e os im postos feudais e senhoriais estavam abo­lidos - mas é possível perceber aqui até onde vão os lim ites da generosidade. Só desapa­reciam os direitos que recaíam sobre a pró­pria pessoa; os que diziam respeito à terra podiam ser recuperados.

A destru ição do A ntigo Regim e in stitu ­cional e social era o prenúncio do importante texto da Declaração dos D ireitos do H om em que apareceria algum as sem anas mais tarde.

Foi a prim eira etapa de um gigantesco trabalho de tran sform ação e de renovação da França que essa A ssem b léia irá realizar.

A ntes de relem brá-lo , vam os pôr as co i­sas em seu devido lugar. Trazida de Versa­lhes no dia 6 de o u tu b ro de 1 7 8 9 por um cortejo de m ulheres, a família real encontra- se agora em Paris, no Palácio das Tulherias. A A ssem bléia N acional reúne-se próxim o dali e com eça a ter suas prim eiras experiên­cias políticas; ainda não se fala em partidos, m as os grupos já entram em confronto: à

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d ire ita ficam os co n tra -re v o lu c io n á r io s e aristocratas, ou "n eg ro s" ; no centro ficam os patrio tas constitu cion alistas , onde o ra ­dores com o M irabeau e Barnave se valori­zam; e, à esquerda, alguns democratas, com o R o b esp ierre , se d estacam . A vida política in tensifica -se , com os jorn ais , os c lubes e as reu n iões políticas iguais aos da Inglaterra: in sta lad o em um antigo convento, o clube m ais célebre e in flu ente é o dos Ja co b in o s . A província agita-se bastante : as antigas au­torid ad es são derrubadas, é a “revolução m u n ic ip a l”.

— E ntão a Revolução acabou?

— Ela m al estava com eçando. É bem ver­dade que, n essa data, surge uma nova Fran ­ça baseada em princípios novos. Em 1 7 9 0 foi celebrado o 14 de Ju lh o , uma das m ais belas festas da Revolução, para com em orar o an iversário da Q ueda da Bastilha: é a fes­ta da Federação, que reuniu em Paris cen te ­nas de delegações que vieram prestar ju ra ­m e n to “à nação, à lei e ao rei"; um gesto de c o n fian ça na unidade nacional.

V ocê se recorda de que a D eclaração dos D ire ito s do H om em e do cidadão havia sido

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aprovada em 2 8 de agosto de 1789 , pouco depois da Q ueda da Bastilha: trata-se de uma data im portan te , não so m en te na história da Revolução Francesa, m as tam bém na h is­tória da hum anidade...

— Isso nunca tinha sido fe ito antes?

- J á , m as não com a am plitude da decla­ração francesa. D esde as revoluções do sécu­lo X V II, os ingleses t in h am um a declaração de direitos, m as não um a C o n stitu ição e s­crita; durante a guerra de independência, os n orte-am erican os haviam redigido declara­ções nos diversos estados. M as a am bição do p ro je to francês já fica patente no títu lo “D eclaração dos D ireitos do H om em e do Cidadão": não apenas as garantias indivi­duais, m as as garantias do cidadão, agente da vida política da cidade. D epois, no início, as palavras admiráveis: “O s hom ens nascem e perm anecem livres e iguais em direitos../'. Você percebe? N ão só os franceses de 178 9 , m as os h o m en s de todos os países e em to ­das as épocas. Para um tex to escrito bem no m eio dos acontecim entos revolucionários na França, a originalidade está exatam ente n es­sa p reten são à universalidade. A proclam a­

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ção dos novos valores qu estion a a organiza­ção social do A n tig o R egim e. Você saberia defin ir o term o “valores” n esse sentido?

— E aquilo a que a g en te se sente ligado, em que con fia ...

— Nada mal. São as idéias básicas sobre as quais se apóiam os .homens que vivem em sociedade. E m p rim eiro lugar, a liberdade em suas d iferentes form as. A m ais sim ples é a liberdade individual, a liberdade de ir e vir e de agir, sem ser preso arb itrariam en te qu an d o não se faz nada de errado. O s in gle­ses foram os prim eiros a proclam á-la ... O s franceses a re to m aram assegurando a seg u ­rança do indivíduo. D epois vem a liberdade de p en sam en to , de crença e de religião. Você se recorda de que na França do A ntigo R e ­g im e a religião cató lica era a única a u to ri­zada, sendo, p od e-se dizer, obrigatória. No L este e no Sul, as com unidades judaicas t i­n h am um e s ta tu to hum ilh ante ; os p ro tes ­ta n tes , que se te n to u converter à força no final do século X V II im ped ind o-os de p rati­car sua religião, haviam resistido em segredo, so b re tu d o nas regiões onde eram n u m e ro ­sos, co m o no Sul; porém , o recon h ecim en to de seu d ireito de culto, isto é, o reconheci-

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m e n to de sua ex istên c ia e de seu estado ci­vil, acontecera recen tem en te , em 1788 . A D eclaração dos D ire itos afirm a que "n in ­guém pode ser im portunado por causa de suas opiniões, m esm o as re lig iosas".

— Que regra esquisita! Todo mundo tem direito de seguir a religião que quiser! M as não era as­sim?

s

- E que os revolucionários estavam co n s­c ien tes do peso do passado, e, de fato, os cató licos e os p ro testan tes continuavam se enfrentand o no Sul. E m bora esses ú ltim os ten h am -se tornado cidadãos plenos im edia­tam en te , passaram -se vários anos até que os ju d eu s fossem to ta lm en te em ancipados. M as a liberdade relig iosa é apenas um dos aspectos da liberdade de opinião e da liber­dade de expressão, sendo seu prolongam en­to natural... para nós. O A ntigo Regim e proi- bia-a com p letam en te . A Igreja denunciava os textos “im orais", anti-relig iosos ou liber­tinos, a realeza censurava tudo que pudesse atacar a figura do rei ou a ordem estab ele ­cida, a im prensa era vigiada e os livros clan­d estin os caçados. O s jo rn a is e os tablóides eram proibidos ou severam ente vigiados; e, no entanto, os anos que precederam a R evo­

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lução assis tiram à m ultip licação de tex to s qu e abordavam tem as políticos. A D eclara­ção dos D ire itos proclam a a liberdade de exp ressão - isto é, a liberdade de im prensa — to m a n d o algum as precauções, m as os jo r ­nais se m ultip licam , sejam eles pró ou con- tra-revolucionários. Entre as liberdades p ro ­clam adas há um a que aprendem os a olhar co m u m pouco de reserva: é a liberdade de em preender, de produzir e de fabricar...

— Você desconfia disso?

— É que aprendemos, desde o século XVÏII, que a liberdade ab so lu ta n essa área pode se tornar u m e lem e n to de desigualdade e de op ressão dos m ais pobres, por causa da in ­fluência do dinheiro. Já naquela época havia duas v isões opostas. M uitos teóricos, e s ta ­distas e eco n o m istas (um term o inventado então) elogiam a liberdade: “Nada de inter­ferência, nada de obstáculos”. Liberdade de circulação de produtos, em especial de cereais, em um país to ta lm en te com p artim en tad o por barreiras alfandegárias in ternas. L iber­dade, para os grandes produtores agrícolas, de organizar o cultivo a seu modo/sem se su­bord in ar às regras da aldeia; liberdade, para os artesãos e com erciantes, de se estabelecer,

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eles que viviam sufocados pelos regulam en­tos das antigas corporações em crise... U m a liberd ad e ra tif icad a pela R ev o lu ção , que tom ará medidas para torná-la efetiva. Mas ou tra voz se faz ouvir: a dos grupos popula­res, tanto do cam po com o da cidade, que denu nciam a livre circulação de m ercad o­rias — considerada favorável à especulação

re je itam a liberdade de preços e exigem o “ta b e lam en to " , em prim eiro lugar dos ce­reais e do pão; verem os, nos anos seguin­tes, qual será o d esfecho disso. N o campo, as aldeias defendem seus d ireitos com u n i­tários; nas cidades, a crise au m en ta a h o sti­lidade dos m enos favorecidos contra os bur­gu eses : aqui, o p ro b le m a das liberdades associa-se , mas em term os contraditórios, ao da igualdade. C o m o vim os, ela foi procla­mada em segundo lugar, depois da liberdade.

— Elas não andam jun tas?

- N ão com pletam ente. Tem os a liberdade de ser ricos... ou de ser pobres. Por terem lido os filósofos, com o Jean-Jacqu es Rousseau e seu Discurso sobre as origens e os fundam entos da desigualdade entre os homens, os revolucio­nários sabem m u ito bem disso. E les defen­dem a igualdade de direitos en tre os cida­

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dãos: e essa liberdade é o resu ltad o da a b o ­lição das ordens na n oite de 4 de agosto . A m aio ria deles considera, porém , que não se deve m ex er com a desigualdade de riqueza, inevitável. É por isso que eles puseram a propriedade com o o terceiro d ireito funda­m en ta l, um direito sagrado.

— Eu pen sava que fo s se a fratern idade.

- Isso foi o que nos d isseram , m as é no século X IX que a expressão clássica “Liber­dade, igualdade, fraternidade” é consagrada, com o terceiro term o sendo acrescentado em 1 8 4 8 , por ocasião da Segunda República. A R evolução não ignora a fraternidade e a as- s is tên c ia aos m en os favorecidos, m as o di­reito de propriedade não é contestado, m es­m o nas oficinas m odestas das cidades: o ideal é ser um p rod utor independ ente segundo suas p osses .

E s s a s p r o c la m a ç õ e s são a lin h ad a s na Declaração dos D ireitos sob o rótulo da sobe­rania popular, exercida pela lei: “Um povo que não tem Constituição não é um povo li­vre”. Mas os deputados não esperaram a Cons­tituição ficar pronta para se dedicar à tarefa de reform ar toda a estrutura da França...

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Eles recon stru íram o país de cim a a bai­xo: não apenas por m eio de um esforço de m odernização, co m o diríam os nós, mas s o ­bre novas bases. Su bstitu íram a m iscelânea de esferas adm inistrativas, jud iciais e finan­ceiras sobrepostas por um a divisão única em d epartam entos de área equivalente, subdi­vididos em distritos, estes em cantões e, fi­n alm ente , em com u n as. U m a trabalheira! C hegou -se a pensar em dividir a França de m aneira geom étrica, com o os Estados U ni­dos da América do Norte, mas finalmente aca­bou se respeitando a geografia, e os departa­mentos conheceram um belo futuro. As novas unidades adm inistrativas foram instaladas nesse contexto, e é ali, na pirâmide dos p o ­deres, que se m an ifesta o espírito da R evo­lução: tendo por base as câm aras m unici­pais, elegiam-se as assembléias e os diretórios distritais , em b ora o governador tivesse um procurador síndico para representá-lo . Se quiserm os comparar, poderíam os dizer que o sistem a era bastante descentralizado e de­legava o poder aos cidadãos...

— É isso a dem ocracia?

- Devagar, senão você corre o risco de fi­car desapontada quando completarmos o qua­

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dro. E m cada departam ento, as assem bléias locais deviam eleger deputados que p arti­c ip ariam da A ssem b lé ia Legislativa, a qual substituiria a A ssem bléia Constituinte quan­do e s ta tivesse com pletado sua m issão. M as q u em eram esses cidadãos?

- Você j á d isse: todos os franceses...

- B em , não... de início fica de fora m e ta ­de dos adultos, as m ulheres, que não têm d ire ito de voto; não pod em os esqu ecer de re to m a r esse assunto . Por outro, os deputa­dos — por in term éd io do abade Sieyès - e x ­p licaram que, em b o ra todos fossem cida­dãos, alguns deles, os cidadãos ativos, eram m ais cidadãos que os outros, os cidadãos pas­sivos. As ordens não ex istiam m ais, porém assistia -se ao surgim ento de classes de acor­do co m a riqueza, já que era preciso pagar um im p o sto equivalente a três dias de tra ­balho para ser ao m enos considerado cida­dão ativo e, d essa forma, poder votar nas e le içõ es locais e nacionais. E era preciso ser ainda m ais rico para ser elegível, quer di­zer, para poder ser eleito. Estou sim plifican­do, m as o princípio é claro: trata-se do sufrá­gio (m odo de eleição) censitário (de acordo com a r iqu eza). A barreira entre ativos e pas­

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so

A Revo lução Francesa explicada à m inha neta

sivos não era m u ito elevada, m as ela excluía pelo m en os m etade dos franceses, evidente­m en te das classes populares.

— É injusto ... E todo mundo concordava?

— Não, já havia alguns deputados que de­fendiam a dem ocracia , com o Grégoire e Ro- bespierre, dos quais falarem os mais adian­te. N o início, n inguém dava ouvidos a eles; com o passar do tem po, as idéias d em ocrá­ticas se d issem inaram . E xam in em os rapida­m en te as outras reform as - de maneira meio arbitrária, m as o tem p o é curto - , pois não pod em os perder o fio da Revolução!

A ju stiça foi com p letam ente reformulada, sob novos parâm etros: os ju izes passaram a ser e leitos. N a base, os ju izes de paz reso l­viam os casos mais simples. A novidade mais im portan te foi a reform a dos castigos e das penas; a tortu ra foi abolida e os suplícios, geralm en te horríveis, do A n tig o Regim e fo ­ram proibidos: foi com um propósito hum a­nitário que um deputado altru ísta cham a­do G uillotin fez que fosse adotada uma nova m áquina para elim inar os crim inosos; ao de­cepar a cabeça em um piscar de olhos, a gui­lh o tin a p re ten d ia evitar tod o so frim en to inútil.

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— Q ue horror!

— C om certeza, ainda m ais se form os ver a m an eira d escon tro lad a com o foi em prega­da nos anos segu intes e m esm o (m u ito m ais d iscre tam en te ) até n ossos dias, há apenas 25 an os. A pena de m orte é repugnante, e já n aq u ela ép oca havia um deputado que e x i­gia sua abolição , R ob esp ierre , m as ele era um a voz isolada.

— E os im postos?

— A s finanças, que haviam rep resen tad o a prin cip al causa de abalo da m onarqu ia, tam b ém passaram por um a reform ulação. B asead o n isso , foi proclam ada a igualdade tr ib u tária e estab elecid as novas co n trib u i­ções sob re a propriedade da terra, os bens m o b iliá rio s e o com ércio , e lim in an d o -se a gabela e os outros im postos im populares. Os fran ceses não tiveram p ressa em pagar, m as os d ep u tad os im ed iatam en te en con traram um a form a de obter recursos, apelando à em is­são de pap el-m oed a, ao qual deram o nom e de assignat (um a espécie de bônus do T esou ­ro ). E le su b stitu iu a m oeda m etálica - de ou ro , prata ou ou tro m etal - por notas que acab aram se d esv alorizan d o com incrível rapidez, criando um en orm e problem a.

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— M as esse papel não valia n ada!— N ão fique indignada: n o ssas cédulas

tam bém não valem nada, m as nós estam os aco stu m ad o s com elas. Falando sério : no com eço os assignats tin h am a caução (quer dizer que seu valor era garantido) de uma riqueza considerável, ou seja, os bens do cle­ro, que, com o d issem os, representavam mais de 2 0 % das terras do país. Um verdadeiro tesou ro qu e os co n stitu in tes decidiram “na­c io n a lizar", v en d en d o-o por p artes em p ro­veito da nação: um a operação gigantesca.

— E isso estava certo?~ N ão há dúvida de que os m em bros do

clero p rotestaram , assim com o protestaram todos aqu eles que eram con tra a Revolução, v isto que a riqueza do clero tam bém se d es­tinava à m an u ten ção de h osp ita is e escolas. Para resp on d er à p erg u n ta cen tra l: “do que os padres vão viver dali em d ia n te?”, a A s­sem bléia decidiu tran sform á-los em funcio­nários p ú blicos assalariad os, criando assim um clero n acional; com isso os prelados im ­p ortan tes saíam perd end o e m u ito s padres ganhavam, m as esse não era o problem a mais grave. A o se tornar fu ncionários, os párocos eram obrigados, pelo m en os, a p restar um ju ra m en to de fidelidade “À nação, à lei e ao

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re i” . E sse ju ra m en to cívico criava-lhes um p rob lem a de con sciên cia , tan to m ais difícil que a autoridade suprem a da Igreja - refiro- m e ao papa Pio VI, que ficava em R om a —, após ter dem orado a se m anifestar, havia con­d enad o de m an eira categórica os ataqu es à sua prerrogativa en carn ad os não apenas no ju ra m e n to m as tam bém nos princíp ios fun­d am en tais da R evolução (as liberdades, s o ­bretu d o a liberdade relig iosa e a laicização do E stad o). D iante do ju ram en to o b rig ató ­rio , o clero d ividiu-se: 5 1 % prestaram o ju ­ram en to e 4 9 % se recu saram a prestá-lo ; de um lado, os padres co n stitu cio n a listas ou a ju ram en tad o s (que aprovam a C o n stitu i­ção civil, isto é, a nova organização do c le ­ro ), de ou tro , os padres refratários. É o que ch am am o s de cism a, um a ruptura profunda qu e divide não apenas o clero m as tam bém a pop ulação . Pois o m apa dos “favoráveis” e dos “c o n trá rio s” nos m o stra um a França dividida, com regiões obed ecend o ao E sta ­do e o u tras v io len tam en te h ostis a ele, s o ­b retu d o no O este do país.

— H ostis a quê?

~ H o stis à R evolução, em últim a an álise: o co n flito re lig ioso é tam b ém um co n flito

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político , e isso vai chegar até a revolta aberta nas províncias, n otad am ente na Vendéia (no litoral A tlân tico , ao sul da Bretanha)., onde m ais tarde, em 1 7 9 3 , exp lod irá a guerra ci­vil. E x istem diversas ou tras causas tam bém , m as a d efesa da relig ião e da contra-revolu - ção vão se som ar em um con flito feroz, m ar­cado p or m assacres, sobre o qual v oltare­m os a falar.

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C apítulo 4A q u e d a d a m o n a r q u i a

— É a religião que f a z a R evolução se desenca­m inhar?

- N ão é só ela, e é in ju s to acu sar os rev o­lu cio n ário s de haver co m etid o m ais do que um excesso lam entável (com o diríam os h o ­je ) , um enorm e erro. Na verdade, nesse m o­m ento a cham ada contra-revolu ção já está ativa e organizada: os príncipes e nobres que partiram para o exterior conspiravam contra o novo regim e organizando com p lôs no in ­terior do país, apoiados pelos reis da Europa m onárquica, m uitos deles, aliás, prim os dos B ourbon . É o caso, por exem plo, da Prússia,

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AAichel Vovelle

do im perador (da Á u stria e do S an to Im ­pério R om ano-G erm ânico , atual A lem anha), cunhado de Luís X V I por parte da irm ã, M a­ria A ntonieta, rainha da França, que era od ia­da e cham ada de “a u stríaca", e sobre q u em recaía a su sp eita de in flu en ciar o m arido.

— N ão é um pouco injusto?- H avia um a porção de m otivos, b o n s e

m aus, para não se gostar dela, e a su sp eita não estava errada. D esd e o in ício co n trário s à R evolução , sem d eixar de m an ter as apa­rências, o rei e a rainha d ecid iram fugir, a ju ­dados p or um a rede de aristocratas: ten d o partid o no dia 2 0 de ju n h o de 1 7 9 1 , d eve­riam alcan çar a fro n te ira n ord este do país para, com o au xílio dos o u tros so b eran o s europeus, organizar a recon qu ista da França. M as e les foram recon h ecid os d urante a v ia­gem , d etid os quando passavam pela cida- d ezinha de V arennes e cond uzid os a Paris. Trata-se de um a crise im portante que, de cer­to p o n to de vista, m arca u m a virada na h is ­tória da revolução.

— Quer dizer que Luís XVI era tão burro a ponto de se d eixar prender desse je ito?

- E le era, an tes de tudo, um guloso. Im a ­gine tod a a fam ília real escapand o à n o ite

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A Revo lução Francesa explicada à m inha neta

do palácio pelos su b terrân eo s, tod os d isfar­çados, em um a carruagem b em lenta . D e­pois o rei se a trasa com en d o na h osp edaria- diziam que ele gostava de com er e beber bem . E aí são recon h ecid os e d etidos pelo p atrio ta D ro u et... era n o ite de lua ch eia ... M u itos se puseram a especu lar: e se o rei não fosse tão guloso? E o que teria a co n te ­cid o se a fuga tiv esse dado certo? E x iste na R evolução um m ovim en to geral qu e reduz a im p ortân cia dos aco n tec im en to s propria­m en te d itos. Pode-se consid erar que, de um m odo ou de ou tro , a crise teria explodido. Será que os d etalhes h istó rico s são tão im ­p o rtan tes?

~ M as com o as pessoas reagiram ?

- O s “p o líticos” da A ssem b léia ficam per­plexos: bem no m om ento em que eles e s ­tavam acabando de redigir a C on stitu ição , o rei falta seu com p rom isso ! E les restab e­lecem a relação com o fugitivo e o recolocam no tron o, pois ele deverá dar sua aprovação (ratificação) ao te x to deles. Porém , a cólera da população au m enta; para m u itos, a im a­gem do rei está d efin itivam en te co m p rom e­tida, e do lado dos p atrio tas ganha corpo o pro jeto de destroná-lo para estab elecer um a

M ich e i Voveile

repú blica. O s c lu b es de Paris lançam um a p etição : quando ela é ap resen tad a no d ia 17 de ju lh o de 1 7 9 1 , as au toridad es - o p refe i­to Bailly e Lafayette, com and ante da Guarda N acional - atiram nos m an ifestan tes. O b ­je to de d isputa de m oderad os e d em ocratas que se reúnem no C lu b e dos Ja co b in o s e o con tro lam , o m ovim en to revolu cion ário se divide en tre os que d ese jam p rosseg u ir a m arch a da R evolu ção e os que d ese jam te r ­m in á-la .

Q uand o a nova A ssem b lé ia — que su b sti­tui a C onstitu inte com o nom e de A ssem bléia Legislativa, encarregada de fazer as leis - se reúne no dia I o de o u tu b ro de 1 7 9 1 , tod os se vêem diante de um a d ecisão cru cial: que opção esco lh erá a A ssem b léia? A paz ou a gu erra? Isso p orqu e o im perador, o rei da P rú ssia e a czarina da R ú ssia haviam p erce ­bido o qu an to era p erigoso o exem p lo re­volucionário da França. D epois de Varennes, eles m u ltip licam as am eaças; a França está dividida: o rei e os contra-revolucionários de­fendem a guerra, pois esperam que o país se ja facilm en te con q u istad o ; os m oderados (ch am ad os de b ern ard in o s, por cau sa do nom e do antigo con v en to onde in sta laram

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I

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seu clube) h esitam , pois sen tem que se trata de um a arm adilha. É no C lube dos Jacob in os que se en fren tam duas personalid ad es do m ovim en to revolu cionário : B risso t, jo rn a ­lista e deputado, que assu m e na A ssem b léia a liderança dos "b r is s o tis ta s ” (m ais tarde "g iron d in os”) contra R obesp ierre, dem ocra­ta respeitado, o “In corru p tív el”. O prim eiro prega a guerra, para d esm ascarar a traição do rei e assegu rar a exp an são francesa na Europa; o segundo adverte co n tra os riscos da aventura. Q uem leva a m elhor na tribu n a é B risso t: no dia 2 0 de abril de 1 7 9 2 , Luís X V I encam inha, por in term éd io de seus m i­n istros, a d eclaração de guerra ao im pera­dor, que receberá o apoio do rei da Prússia (e da R ú s s ia ) .

C om o era de se esperar, o in ício da guer­ra foi d esastro so ...

— Por quê? A França não era um país poderoso?- E la estava p rofu nd am en te dividida. Por

causa da em igração, o exército real havia per­dido a m aioria de seus oficiais, estava d esor­ganizado, e os b ata lh ões de v o lu n tários que haviam sido recru tad os ainda eram in ex ­p erien tes. A s fronteiras foram am eaçadas e em pouco tem po invadidas.

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M ich e l Vovelle

A situação era dram ática: os tum ultos m ul­tiplicavam -se pelo país; acusavam-se os aristo­cratas, os em igrantes e os padres. O rei usava de artim an h as: em um dia se cercava de m i­n istro s jaco b in o s, para desp edi-los no dia seguinte; os am igos de B risso t não sabiam para qu e lado se voltar, en qu an to o povo en d u recia suas p osições - em Paris, é claro, m as tam b ém no restan te do país. B ata lh õ es de “fed erad os" p artiram de M arselh a e de ou tros lugares em d ireção a Paris para m o n ­tar um acam p am en to e defender a capital; v ieram a pé, é verdade, m as vieram can tan ­do! A canção que os provençais entoavam e tern izo u -se : é a M arselhesa, que exalta a li­berdade e a pátria: “A vante, filhos da pátria, o dia g lorioso ch e g o u ...”. Em ju lh o de 1 7 9 2 , houve u m a p roclam ação nas praças p ú b li­cas: “a pátria corre p erigo”. Q uando os e x é r­c ito s in im ig os p en etraram p rofu nd am en te no N orte e no L este da França, a raiva v ol­tou -se con tra o rei. A população de Paris ten ­tara, em vão, in tim id á-lo no dia 2 0 de ju n h o de 1 7 9 2 , invadindo seu palácio. A segunda ten ta tiv a deu certo : no dia 10 de agosto de 1 7 9 2 , os federados, os soldados da G uarda N acion al e os revolu cion ários sitiaram o pa­

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A R evo lução Francesa explicada à m in ha neta

lácio real das Tulherias, que era defendido pelos guardas su íços...

- Por que suíços?

- H á m u itos sécu los a realeza recrutava sua guarda na Suíça (com o o papa faz até h o­je ! ) . E m bora ten h am p erm an ecid o fiéis ao rei, esses soldados p ro fission ais foram m as­sacrados...

~ M ais violência! E o que aconteceu ao rei e a sua fam ília?

- M as o ataque tam bém fez m uitas víti­m as entre os patriotas. A m onarqu ia co n sti­tucional foi derrubada pela força porque nun­ca aceitou, de verdade, a Revolução. Luís XVI e a fam ília - a rainha M aria A n ton ieta e seus filhos — ficaram presos à espera do julgam ento do rei. M ais um a reviravolta, dirá você...

- De fa to . M as o que aconteceu? Foi o f im da realeza?

- Sim . U m a m on arqu ia de m ais de mil anos chegava ao fim . A lgum as im agen s for­tes se so b ressaem de im ediato .

Em p rim eiro lugar, o povo é que sai v ito ­rioso. E le estava presente desde a Q ueda da Bastilha, e até antes. M as agora ele está m ais

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/VAichel Vovelte

preparado e organizado, co n scie n te de sua força. O sans-culotte p arisien se (tam b ém p re­sen te n o restan te do país) se vê co m o re ­p resen tan te do povo m obilizad o em d efesa da R evolução.

4. U m sans-culotte.

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A R evo lução Francesa explicada à m in ha neta

- P or qu e e les sã o c h a m a d o s d e " s a n s - c u lo t te s ”?

— Porque a roupa deles é d iferente: em vez do calção até o jo e lh o e das m eias usadas p elos bu rgu eses e aristo cra tas, eles vestem um a calça (geralm en te listrad a) — é daí o apelido, in ic ia lm en te d epreciativo, mas que depois será m otivo de orgulho para eles. Ves­tem tam bém um p eq u en o co le te , a carm a- n hola, e trazem na cabeça o b arrete frígio (um a boina verm elha) da liberd ade com a insígnia...

— C arm an hola , isso não me é estranho ...- L em bra a Itália , de onde se originou, a

cidade de C arm agnola, m as era um a roupa usada pela gen te do povo. Ia m e esq u ecen ­do: falta, na descrição, o sabre e o pique, uma lança com p on ta de m etal.

— Pensei que o p ique fo sse uma coisa da Idade M édia ... eles não tinham fuzil?

- N ão havia fuzil em quantidade suficien­te. O sans-culotte confiava n essa arm a para d efen d er sua liberdade e a dos ou tros. Ele é um m ilitan te que à n o ite p articip a das as­sem bléias de bairro (as sessõ es), lê os carta­zes e os jo rn a is , o que não o im pede de ser um bom pai de fam ília e trabalhador...

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M ich e l Vovelle

H á um bom n ú m ero de bu rgu eses n essas assem bléias — ou executivos, com o diríam os h o je —, e tam b ém assa lariad o s, m as p elo m enos m etade dos participantes, o núcleo duro, é com p osta por artesãos e pequenos com erciantes in depend entes. O sans-culotte está com p rom etid o com a liberdade, a igual­dade (não gosta dos r ico s), a solidariedade e a virtude. E le am a a p átria e lu ta pela d e­m ocracia, que ele qu er exercer d iretam en te.

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Capítulo 5A P r i m e i r a R e p ú b l i c a

— O povo venceu. É o fim da m onarquia?

— N ão exatam en te . D erru bad a a realeza, o que fazer? A segunda im agem que se im ­põe é a da R ep ública. Em 1 7 9 1 , a idéia de R ep ú b lica havia sido in ten sam en te d ebati­da, e m u itos p atrio tas não acreditavam que ela fosse possível. Porém ela irá se im por a e les: em setem b ro de 1 7 9 2 a A ssem b léia Legislativa se divide para preparar sua su ­cessão. Isso receberá o n om e de C onvenção, um a assem b léia e le ita d esta vez pelo sufrá­gio universal, isto é> por tod os os hom ens adultos.

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— E as mulheres?- S in to m u ito , ainda não foi d essa vez.

A liás, não foi nada fácil organizar o voto , m as o princíp io estava co rreto . R eu n id a em setem b ro de 1 7 9 2 ,.a nova A ssem bléia teve de tom ar im ed iatam ente um a decisão: que nom e dar ao novo regim e? U m m o m en to de hesitação... e logo ele se impõe: no dia 21 de setem bro, a R ep ública é proclam ada. O pa­trio ta sim p les do in terio r se alegra: “É o re­gim e m ais natural para o gênero h u m an o ”.

Faltava co n stru í-la e, an tes de m ais nada, d efend ê-la : a terce ira im agem é a de Valmy, um a p equen a aldeia da C ham panha, no L es­te da França. A pós terem conquistad o as for­tifica çõ es da fro n te ira , os in im ig os - são

/p ru ssian os - p en etraram até Valmy. E um ex ército resp eitad o que, em m em ória do rei Fred erico II que o tran sform ou em um ex ér­c ito m od elo , faz evolu ções no terren o com o se estiv esse em um a parada. D ian te dele, ao pé de um m oinho, o ex ército francês: alguns reg im en tos antigos, ou tros form ados por jo ­vens v o lu n tários co m p letam en te “v erd es”, co m o se diz. Será que, com o acred ita o o u ­tro lado, e les irão debandar? U m tiro de ca­nhão. Im passíveis, eles gritam : “Viva a n a­ç ã o !” . O rei da P rú ssia e seus generais não

M ich e l Vovelle

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A Revo lução Francesa exp licada à m inha neta

in sis tem e in iciam a retirada. U m a pequena batalh a, é verdade, m as um a grande vitória. G oeth e, o grande p oeta alem ão, que te s te ­m u nhou a cena, escreveu qu e um a nova pá­gina se abria na h istó ria da hum anidade. A festa da Fed eração de 1 7 9 0 havia celebrado a N ação; Valm y faz surgir a Pátria, que não é ex a tam en te a m esm a coisa.

— Q ual é a diferença?

- A P átria é aqu ilo que trazem os no co ­ração.

O povo, a R ep ú blica , a p átria ... Já estava m e em polgando! N a verdade, as coisas não vão nada bem , e logo vão ficar ainda piores.

A nova A ssem b léia , a C onvenção, divi­d iu -se rap id am en te em dois grupos rivais, em bora, en tre e les, m u ito s deputados do cen tro (cham ad o de “P lan íc ie”) relu tassem em tom ar um a posição. A iniciativa coube inicialm ente aos girondinos, os antigos bris- so tistas. Para sim p lificar: an tes à esquerda, eles agora estavam à d ireita. G eralm ente jo ­vens e brilhantes, Brissot, Vergniaud, Guadet- acho m elh o r parar, você não vai conseguir guardar todos esses n om es —, são burgueses m uitas vezes provenientes de im portantes cidades portuárias m ercantis, com o Bordeaux,

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M rchel VoveUe

na G iron d a, de onde veio o n om e. Ligados à R ev olu ção e a suas co n q u istas, e les agora qu eriam en cerrá-la , com m edo de serem u l­trap assad os pelo m o v im en to pop u lar dos sans-culottes, que d om ín a Paris e as ou tras grandes cidades do país. E les estão a te rro ­rizados com os e x cesso s d esse m ovim en to , que às vezes term in am em m assacre (com o o de Paris, em setem b ro de 1 7 9 2 ), e, acim a de tudo, com suas reivindicações sociais e políticas. Seu s adversários, os partidários da M ontanha, tam bém são de origem burguesa, m as estavam convencidos de que a R evolu ­ção só daria certo caso se apoiasse no m ovi­m en to popular e levasse em conta suas aspi­raçõ es. A p esar do n om e, e les não vêm de n en h u m a reg ião de m o n tan h a ; o qu e aco n ­te ce é qu e e les se in sta la ram n os b an cos qu e ficavam na parte m ais alta da sala onde tran sco rriam as sessõ es. E les tam b ém co n ­tam com personalidades de d estaqu es com o R o b esp ierre , S a in t-Ju st e M arat. M as volta­rem os a falar deles.

A d iferen ça en tre e les surgiu na terrível provação rep resen tad a pelo p rocesso e co n ­d en ação à m orte de Luís X V I, execu tad o no dia 21 de ja n e iro de 1 7 9 3 . Q ue d estin o d e­veria te r sid o dado ao rei?

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A Revo lução Francesa explicada à m in ha neca

- Ele não poderia ter sido sim plesm ente preso ou ex ilado , sem que se precisasse executá-lo?

- Foram essas so luções que os girondinosten taram d efen d er por o casião do grandedebate que teve lugar na Convenção. Mas LuísXV I tinha traido o pais e se correspondido como in im ig o ... O s p orta-v ozes da M on tan had isseram que se o rei p erm an ecesse vivo a

/França estaria am eaçada: “E preciso que Luís m orra para que a República viva", e seu ponto de v ista saiu vencedor. A m o rte de Luís X V I na guilhotina, em 21 de jan eiro de 1793 , aca­baria ten d o sérias co n seq ü ên cias .

A pós a v itória in esp erad a em Valmy, os exércitos franceses tinham conquistad o im ­portantes vitórias no exterior. N o Sul, haviam ocupado e anexado à Fran ça a Sabóia e o condado de N ice, to m an d o -o s do rei do P ie­m on te; no N orte, a B élg ica e parte da m ar­gem esquerda do R eno. Veio en tão a fase das d errotas, e no dia seg u in te à m o rte do rei a Inglaterra, a H olanda e a E sp an h a se ju n ta ­ram aos in im igos, form and o o qu e ficou c o ­nhecid o com o a p rim eira coalizão : no verão de 1 7 93 , as fron teiras en con trav am -se m ais um a vez am eaçadas. É n esse m o m en to que, na Vendéia, a O este do país, estou ra a guerra civil a que já m e referi de passagem . R eb e­

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M ich e l Vovelle

lados em m arço de 1 793 co n tra a R ep ú b li­ca, os cam p on eses in ic ia lm en te o b têm v itó ­rias im p ortan tes. E ssas atribulações au m en ­tavam a ten são nas cidades, sob retu d o em Paris, onde o con flito en tre girondínos e par­tid ários da M on tan h a se agravava. E m p ou ­cas palavras, digam os que os girondinos não estiveram à a ltu ra dos perigos que tin h am enfrentado quando d esejaram a guerra. A ali­ança en tre o Partido da M on tan h a e o povo das seçõ es de Paris conduziu à jo rn ad a re ­v o lu c io n á r ia d e 2 de ju n h o d e 1 7 9 3 , qu ando a C onvenção, sitiada pelos in su r- retos, decid iu d eter e ap rision ar os p rin ci­pais deputados da G ironda: é o que se cham a de golpe de E stad o - e esse tam b ém rep re­sen ta um m o m en to im p ortan te na m arch a da R evolução.

— Isso mudou o quê?

- Em prim eiro lugar, a guerra civil piorou, pois os partid ários dos g irond inos su blev a­ram , por sua vez, cidades e regiões co n tra o que e les denunciavam com o a d itadura de Paris so b re o restan te do país. É o que ficou co n h ecid o com o in su rre ição " fe d e ra lis ta ” (em op osição ao cen tra lism o da cap ita l). A N orm andia, B ord eau x, Lyon e M arselh a se

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insurgiram , e Toulon, um p orto do M ed iter­râneo, ren d eu -se aos in gleses*.. D epois foi p reciso su b ju gar e até reco n q u istar Lyon e Toulon por m eio de um cerco rigoroso; isso provocou represálias severas, por vezes ex e­cu ções em m assa e em igração . O sangue corre na R ep ú b lica : para e n fren ta r todos esses perigos, as liberd ades são suspensas, e é in stalad o um governo ~ o governo de salvação nacional - cu ja arm a será o Terror.

— Confesso que estou desorien tada . A Revolu­ção significava a liberdade e o f im das injustiças. Será que era preciso acontecer tudo isso?

— C on tin u am os com essa dúvida. A lguns acreditam que era um a d ecorrência natural - e, por assim dizer, fatal - do que acontecera desde 1 7 8 9 , e deveria levar à ditadura. O u ­tros, en tre os quais m e in clu o , avaliam que aqu eles que assu m iram suas resp on sab ili­dades e se apoiaram no m o v im en to popu­lar, com o os partid ários da M ontanha, tive­ram a coragem de en fren tar circu n stân cias terríveis, e, a esse preço, salvaram a R evolu­ção. A n tes, porém , de lhes dar razão ou de desaprová-los, v e jam os o que se passa.

A nova A ssem b léia , a C onvenção, orga­niza um com itê de Salvação P ú blica do qual

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AAichel Vovelle

fazem parte os dirigentes da M ontanha, D an- ton e, em ju lh o de 1 7 9 3 , R o b esp ierre , em um to ta l de doze - co m o não é possível c i­tar o nom e de todos, m encionarei Sain t-Just,b astan te jov em , C o u th on e C arnot, que tor-

/n a-se resp onsável pelos exército s. E um g o ­verno de salvação pública; assim , eles d is­põem de p lenos poderes. O governo retom a o co n tro le do país, envia deputados a todas as reg iões com o “rep resen tan tes em m is­sã o ”, ap oian d o-se nos C lu bes Ja co b in o s lo ­cais e nos C om itês de V igilância. E les ge­ralm en te agiam com severidade, m as alguns en tre e les abu saram do poder e im p lan ta­vam um a p o lítica de Terror sanguinária.

— O que é o Terror?— O Terror, que se torn ou oficial d urante

certo tem po, é o in stru m en to usado para re­p rim ir a con tra-rev olu ção . P ren d em -se os cidadãos consid erad os su sp eitos e in stitu i- se um Tribunal Revolucionário em Paris, que ju lg a de m an eira su m ária e envia m ilhares de p essoas à g u ilh otin a : depois do rei, a ra i­nha M aria A ntonieta, aristocratas, sobretudo, m as tam b ém n eg o c ia n te s r ico s, pad res e p esso as sim p les das reg iões em con flito . Na Vendéia, quando chegou a hora da reconquis-

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ta, “colu n as d iab ó licas” de soldados repu­b lican os in cen d iaram as aldeias e co m ete ­ram assassin ato s. Q u an to s m o rto s? N a gui­lh otina, sem dúvida por volta de d ezesseis m il, m as as ex ecu çõ es coletivas devem au­m entar b astan te esse núm ero. A proxim ad a­m ente 130 m il só na Vendéia, em bora se diga que foi m u ito m ais.

✓E a parte som b ria e m esm o terrível desse

período da R evolução, m as é p reciso levar em co n ta o o u tro lado d essa política .

O governo revolu cion ário foi obrigado a atend er às n ecessid ad es m ais u rgentes da população: a escassez de víveres, a alta dos preços, a m iséria . E le aplicou a so lu ção au­toritária exig id a pelos p orta-vozes do povo, o tab elam en to , ou se ja , um preço m áxim o para o pão, depois para todos os gêneros a lim entícios e m ais tarde tam bém para os salários, o que não agradou tan to aos operá­rios. Confiscou, enviou contingentes do exér­cito revolucionário para vasculhar as fazen­das... E ssa p o lítica alcan çou certa eficácia.

— E a guerra? Será que ela continua?— Sim , e para apoiar o esforço de guerra

nas fron teiras, que era sua preocupação, o governo revolu cion ário abriu fábricas de sa­

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M ichel Vovelle

patos e roupas, m anufaturas de arm as e fun­d ições de can h ões.

E le tam b ém pôs em p rática um a p olítica social para cuidar dos m en os favorecidos, dos in d ig en tes e das viúvas dos soldados, aos quais procurou assistir. N a prim avera de 1 7 9 1 , S a in t-Ju st su b m ete à votação a d is­tribuição dos bens dos suspeitos para as pes­soas m ais m iseráv eis das com u n as. D everia ser ab erto um grande livro de reg istro ... m as não houve tem po para aplicar a m edida: após a venda dos bens do clero (e dos em igrados), essa teria sido a m ais au d aciosa das tran s­form ações socia is .

A co n tece que R o b esp ierre e seus am igos não são tiran os sangu in ários; além do fato de terem reagido às c ircu n stân cias, eles têm um grande ideal: fundar a R ep ública regen e­rando seu s cidadãos. E les ten tam im p lan ­tar um a pedagogia rep u blicana por m eio de tex to s e do d iscu rso . N ão perdem de v ista a co n stru ção do ideal d em ocrático : e é duran­te esse períod o que a C onvenção d ecreta o fim da escravidão nas colônias francesas, dan­do continu idad e à m ensagem de em ancipa­ção da D eclaração dos D ireitos do H om em . E sse é um assu n to qu e eu não tin h a ab or­dado, p ois há tan ta co isa para dizer...

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Esboço de Robespierre feito ao vivo. (Desenho de Gros.)

M ich e l VoveIJe

Im agin e tam b ém que a C on ven ção teve a ou sad ia de ten tar m odificar in te iram en te o tem p o e o esp aço ...

— Isso quer d izer o quê?— E m relação ao espaço? A n tes de 1 7 8 9 ,

havia m il e um a m aneiras de medir, pois cada região m edia as superfícies e os volum es de acordo com suas tradições. A C onvenção en ­carregou os cientistas de criar um instrum ento de m edida único, universal, válido para todos: surgiu en tão o m etro, a décim a m ilion ésim a parte de um quarto do m erid iano terrestre ...

— Tenha dó, j á não estou entendendo m ais nada... Q ual a im portância disso?

— Sem en trar em d etalhes, d igam os que se trata de um a m edida qu e se refere, teo ri­cam en te , ao espaço terrestre . C om o m etro , as su p erfícies e os volu m es foram u n iform i­zados em term os de com p rim en to : é o que co n h ecem o s com o sistem a m étrico (e d eci­m al qu e, apesar da resis tên cia dos anglo- saxões, im p ôs-se em tod o o m undo. É claro que na França tam b ém houve resistên cia . N esse terren o , porém , a R evolução saiu v ito ­riosa; m as isso não aconteceu com a reform a do tem p o. O s con v en cion ais q u iseram “la i­c iz a r” su a m edida e lim in an d o a re ferên cia

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A R evo lução Francesa explicada à m in ha neca

ao calen d ário cristão , com suas festas, san­tos e duração da sem an a. O calend ário re­publicano dividia o ano em m eses de trinta dias, cada um com três décadas (e um pequeno acrésc im o de c in co d ias no f in a l...) . E les deram n om es b a sta n te p o ético s aos m eses, re la c io n a n d o -o s à n a tu rez a e às estaçõ es: v in d em iário (se tem b ro , qu e no h em isfério N o rte é o m ês das c o lh e ita s ou v in d im as); b ru m á rio (o u to n o no h e m is fé r io N orte , ép oca das b ru m a s); frim ário (n o v em b ro - d ezem bro , períod o em que, no h em isfério N orte, ocorrem as geadas e o tem po esfria )... Você pode se e x e rc ita r ten ta n d o d escobrir o sign ificad o de cada um d eles, assim com o o s ig n ificad o dos n o m es dos dias, tam bém inspirados nos trabalhos do h om em e da na­tu reza. O s anos eram con tad os a partir dos p rim órd ios da R ep ú b lica , em setem b ro de 1 7 9 2 : ano I, ano II, a té o ano XIV, quando o im perador N apoleão suprim iu o sistem a e retom ou o calen d ário cristão .

— Você parece que tem saudade desse calendário.— S in to carin h o por ele. Em vez de so ­

nhar, p orém , é p reciso recon h ecer: esse fra­casso representa tam bém o fracasso de outra aventura, a da d escristian ização tentad a no

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M ichel Vovelle

ano II. Ela assum e um lugar à parte no período do Terror, pois não era, propriam ente falando, um a in iciativa do governo de salvação públi­ca. N ão que a religião existen te gozasse de grande sim p atia : desde a divisão da Igreja — o cism a - em 1 7 9 1 , os padres refratários h a ­viam sido con sid erad os su sp eitos e depor­tados, cúm plices da aristocracia. Em Paris e em certas reg iões havia um profundo an- tic lerica lism o . N o ou to n o de 1 7 9 3 , cidades in te iras reso lveram se “livrar dos pad res” e criar suas próprias “igre jas”. Em Paris, o b is ­po G obel ap resen to u -se peran te a C onven­ção para renu nciar à sua condição de sacer­dote, e a catedral, transform ada em tem plo da Razão, acolheu a cerim ôn ia onde a deusa R azão era representad a por um a atriz... N o interior, o m ov im en to esp alh ou -se por todo o país: o m ais esp etacu lar eram as “abdi­cações” dos padres - talvez vinte mil - e os d esfiles de carnaval com os o b je to s sagra­dos. C om um êx ito desigual, o p rocesso de d escristian ização era levado a cabo por m ili­ta n te s re v o lu c io n á r io s p ro g re s s is ta s , os m esm o s que, p or o u tro lado, d efendiam as m edidas p o líticas e socia is radicais. M as, na Convenção, Robespierre e seu grupo não eram da m esm a opinião: eles recusavam o ateísm o

so

A Revo lução Francesa explicada à m inha neta

(isto é, a re je ição de tod as as re lig iões) que estava por trás do culto da Razão. Assim como a maioria de seus contem porâneos, Robespierre continuava "d e ísta ”, p ois, para ele, era fun­d am ental a ex istê n cia de um Ser suprem o capaz de recom p en sar os bons e punir os m aus para que a V irtud e triu n fasse. Essa v irtude era a ú nica ju stifica tiv a para aplicar o Terror: pois, o que é o Terror sem a virtu­de? Você en ten d e seu raciocín io , ou m elhor, sua crença?

— Estou tentando, m as não percebo com o isso pode acabar... O que ele vai fazer?

— R obesp ierre conseguiu aprovar na C on ­venção o reco n h ecim en to da im ortalidade da alm a, o que desagradou a m u ita gente. N o dia 8 de ju n h o de 1 7 9 4 , ele celeb ra em Paris e em toda a França a festa do Ser su ­p rem o, sem dúvida um a das m ais belas de toda a R evolução, e sua ap o teo se ... m as seu d estin o já estava traçado.

— Com o assim?/

— E p reciso voltar um pou co no tem po: o vigor do C o m itê de Salvação Pública preser­vou as fron teiras, os ex érc ito s repu blicanos retom aram a ofensiva e a ordem foi restabe­lecida na França. Para isso, porém , foi preciso

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M iche l Vovelle

co n tro la r o m o v im en to popular dos sans- culottes, su p rim ir suas assem b léias e afastar seus líderes m ais d estacad os, os h eb ertistas (receb eram esse nom e por causa de H ébert, um jo rn a lis ta p op u lar): foram acusad os de conspiração e execu tad os em m arço de 1 794 (Ventoso, ano I I ) . Para conseguir isso, Robes- p ierre teve de co n tar com o apoio dos “In ­d u lgentes”, um grupo que, ao contrário, con­siderava que a R evolu ção tin h a ido longe dem ais e era preciso pôr fim ao Terror. O m ais fam oso deles, D anton , acabará, por sua vez, sendo ju lgad o pelo Tribunal R evolu cion ário e depois executado. É o que se cham a a queda das “facçõ es”. O m ecan ism o do Terror ace­lera-se; a gu ilhotina faz um núm ero cada vez m aior de v ítim as, en qu an to m u itos d esejam o fim da R evolução. S a in t-Ju st escreve: “A R ev olu ção está p aralisad a”.

— M as você não disse que ele era am igo de Ro- bespierre?

- E um am igo fiel: em torno do “Incorrup­tív e l”, p orém , os lu gares vão ficando vazios. O s m od erad os da C on ven ção estão d esan i­m ados; os deputados corruptos ou por vezes com p rom etid os com os excessos do Terror tem em pela própria vida. Eles preparam um a

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A Revo lução Francesa explicada à m in ha neta

con sp iração co n tra R o b esp ierre e seus alia­dos: no dia 9 de Term idor, na A ssem bléia, im pedido de falar, o "In co rru p tív el” tem sua prisão decretada. Poucos perm aneceram fiéis a ele. C om seus partid ários, ele é gu ilhoti­nado no dia 10 de Term idor. D esaparece um im p ortan te p erson ag em e todo um período da R ev olu ção chega ao fim .

— A pesar do Terror e de todo o sangu e derra­m ado , você tem pena dele?

— Sim , porque ele não foi um ditador co ­m o d isseram . C om a convicção e a retidão de "In co rru p tív e l”, ele foi a alm a da R evo­lução em sua fase m ais terrível. A Revolu­ção com os sans-culottes, isto é, com o povo, en q u an to foi p ossível: quando a ligação se rom peu, ele não tin h a m ais razão de viver.

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C apítulo 6O D i r e t ó r i o : t e r m i n a r

a R e v o l u ç ã o ?

— E então, a R evolução acabou?

~ N ão, vam os en trar na segunda fase da R ev olu ção ; tão longa q u an to a prim eira, ela vai de 1 7 9 5 a 1 7 9 9 . C om o já está ficando tarde, vam os an alisá -la rapid am ente. N ão vá pensar que é porque ela m e agrade m enos, o que seria in ju sto com ela (e talvez com i­go) . D o fim da C onvenção, após o Termidor, ao reg im e segu in te , o do D ire tó rio , o o b je ­tivo foi sair do Terror, en cerrar a Revolução: para alguns, por um retorno à ordem que pre­serve as co n q u istas, ao m en os parcialm en ­te; para ou tros, realistas e contra-rev olu cio -

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/Wiche! Vovetle

n ários, por um a v olta ao passado. O u tros ainda, ao con trário , sonham com um a revo­lução nova e d iferen te.

N em todos os deputados que derrubaram R o b e sp ie rre eram rea c io n á rio s , m as e les liquidaram o sistem a de governo revolu cio­nário e trabalharam em prol da estab iliza­ção do regim e. T iveram de en fren tar s itu a­ções de em ergên cia; à esquerda, podem os dizer, os sans-culottes parisienses, im pacientes com a m iséria e a escassez que haviam re ­tornado no ano III (1 7 9 5 ) , rebelaram -se pela ú ltim a vez, ex ig in d o tam b ém um a C o n sti­tu içã o d e m o c rá tic a : esm ag ad o s e d e sa r­m ados, foi o fim do m ovim en to popular de m assa.

— E ninguém reagiu?- D ian te d isso, tan to em Paris com o no

re sta n te do país, d esen cad eou -se um m ovi­m en to v io len to de reação co n tra-rev o lu cio - nária: foi o cham ad o Terror branco, tend o à fren te band os de jov en s, os "a lm ofad in h as”, que realizaram expedições assassinas contra os p atrio tas , cham ad os de terro ristas. Para vingar os excesso s do passado, foram co m e­tidos m assacres no Sul, de Lyon a M arselha, e na Provença. A poiand o essa reação, os p a­

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A R evo lução Francesa explicada à m inha neta

d res em igrad os voltavam e retom avam o cu lto . O s realistas ten taram um a sublevação em P aris, m as foram esm agad os (V inde- m iário, ano IV — outubro de 1 7 9 5 ). Enquanto isso , a C onvenção , atacada em duas frentes, conclu iu d iversas reform as na área da edu­cação e da cu ltu ra e, sobretu d o, elaborou a C o n stitu ição , conh ecid a com o C on stitu ição do ano III (1 7 9 5 ) . N a D eclaração dos D irei­tos e dos D everes, a igualdade não está m ais na ord em do dia; as novas in stitu içõ es pro­curam afastar qu alqu er perigo de um a nova d itadu ra e asseg u rar a dom inação dos n otá­veis. E x is te m ag ora duas a sse m b lé ia s ,. o C o n se lh o dos Quinh^j^tos e o C o n s e lh o d o s A n ciãos, que dividem a tarefa de produzir as le is; e o Poder E xecu tivo (de governo) está dividido en tre cin co d iretores, trocados p eriod icam en te . Sabe com que objetivo?

— A cho que é p a ra que nenhum dom ine os ou­tros ... M as não é um exagero d eixar as decisões nas m ãos de cinco pessoas?

— Sem dúvida: por causa das precauções, criou-se um sistem a em que não havia árbitro em caso de co n flito — en tre as duas assem ­bléias e os diretores, por exem plo. A solução

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M iche l Vovelie

foi a p rática de golpes de Estado, isto é, pro- vas de força em que os d iretores anulavam a e le ição de um a nova câm ara, ou, in versa­m en te , em que esta d estitu ía os d iretores. V iu -se n isso um d efeito de origem que cria­va u m a esp écie de fatalidade; na verdade, porém , o que essa instabilidade revelava era a profu nd a in qu ietação de um m undo que não havia reencontrado sua estabilidade.

A reg u lam en tação eco n ôm ica do ano II foi suprim id a: a socied ade da época do D i­retó rio d eixou a im agem do co n traste en tre a m iséria de m uitos, quando os preços explo­dem com a inflação do papel-m oeda, e a ri­queza arrogante de uns poucos, que se apro­veitam da liberdade reencon trad a: foi a d ita "festa do D ire tó rio ". O s jo v en s ricos, os “al­m o fad in h as”, com suas acom p an h an tes, as “m arav ilh osas", levam um a vida de diversão e se v estem de m an eira extravagante. U m a esp écie de dolce v ita , com n ov os-ricos e p o ­lítico s co rru p to s.

A au torid ad e do E stad o está com p rom e­tida: os im p ostos não são pagos, assim com o os sa lários. U m a onda de assaltos tom a co n ­ta da zo n a rural, tan to nas estrad as im p or­ta n tes q u an to nas fazendas. O s d irigentes do D ire tó rio ficaram com um a rep u tação

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A R evo lução Francesa explicada à m inha neca

m ed íocre , talvez com a im agem de Barras, um dos d ireto res m ais corru p tos, m as esses bu rgu eses m oderados continuavam republi­canos: lu taram em duas fren tes. A esquerda estavam reunidos, os jaco b in o s dem ocratas, co m o G racch u s B abeu f, que organizou a “con sp iração dos ig u ais” . Seu program a era tom ar o poder para im plantar um a so cie ­dade onde a terra perten ceria a todos e a re­p artição da prod ução seria feita de m aneira igualitária. B ab eu f e seus am igos foram ex e­cutad os ou se su icidaram . U m deles so b re­viveu, vindo a escrever m ais tarde a h istória da con sp iração : é o seu com p atrio ta Filipo B u p n aro tti.

— N ão o conheço. O que ele f e z depois disso?— E tern o conspirador, na Itália, na E u ro­

pa e na França, m arcou p resença até 1830 , um verdadeiro m estre -esco la da Revolução.

N ão se esqu eceu o sonh o de um a outra revolu ção, qu e seria a ú ltim a: a da Igualda­de. Sem p artilh ar das idéias de Babeuf, os ja co b in o s reco n stitu íram os clu bes e os c ír­cu los co n stitu c io n a lis ta s , concorren d o nas e le içõ es co n tra o poder, sobretud o contra os rea listas. E stes ergu iam novam en te a cabe­ça, aproveitand o o reto rn o dos padres refra- tários e dos bandos de assassin o s...

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A/Vichel Vovelle

— Que horrorl- ...em toda um a região da França, eles tru­

cidavam os p atrio tas, m as tam b ém se apro­veitavam das eleições anuais para crescer: em Fru tid or do ano V (setem bro de 1 7 9 7 ), e les acharam que tin h am vencido, m as os m em ­bros do D iretório , apoiados pelos gen erais, an u laram as e le içõ es com o golpe de E s ta ­do de 18 Frutidor, re in ician d o a p ersegu i­ção aos rea listas ... Livres para, no ano se ­gu in te, se voltar co n tra os jaco b in o s , que, por su a vez, haviam saído venced ores. N es­se jo g o , qu em acabou ganhando foram os d ep u tad os, que, no ano V II, d estitu íram os m em b ro s do D iretó rio : n essa data, porém , já era qu ase tarde d em ais...

— Por quê?

- E sta m o s chegando ao fim . A ntes, p o ­rém , vam os dar um giro p ela E uropa na e s ­te ira dos exérc ito s rep u blicanos. G raças às v itórias dos soldados no ano II, o D ire tó rio herd ou um a situ ação m elh or d iante dos vi­z in h o s: fro n te iras d esob stru íd as, B élg ica e H olanda ocupadas, paz com a Prússia (1 7 9 5 ). Sobrava o im perador da Á u stria , que d ese­jav a a tacar p ela A lem an h a e acabou sendo

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A R evo lução Francesa explicada à m inha neca

atacado pela Itália, onde ele possuía o M ila- nês. Você co n h ece essa h istória?

— Um pou co ... N ão é a í que aparece o general B on aparte? 'J ^ S

- D e fato, após o esforço do ano II, os exér­c ito s fran ceses en co n tram -se desgastados, m al pagos, d esestim u lad os. O exército da Itália foi confiado a um jovem general, B ona­p arte - in ic ia lm e n te era um a fren te sem im p ortân cia , pois, em Paris, os m em bros do D ire tó rio estavam m ais preocupados com a fro n te ira n orte , que e les queriam esten d er até o R eno para dar à França suas fronteiras naturais. E não é que no Vale do Pó Bonaparte revela seu gên io m ilitar com uma série de brilhantes vitórias sobre os austríacos? Q uan­do tinha a sua idade, eu recitava de cor: "M on- ten o tte , D ego, MillesimO) M ondovi, Lodi...", até M antova e m u ito m ais. Era assim que a gen te aprendia, e era gostoso . N aquela ép o ­ca a Itá lia era um m osaico de Estados; é cla­ro que isso você con h ece m elh or que seus colegas franceses. Fortalecido pelas vitórias, Bonap arte desprezou as ordens do D iretório e criou no Vale do Pó a R epública C isalpina, n egociand o um acordo diretam ente com os

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M iche l Vovelle

austríacos, em Leoben e C am p oform io (o u ­tubro de 1 7 9 7 ) , que reco n h ecia essa “repú ­blica irm ã ”. N a verdade, a prim eira tin h a sido a R ep ú b lica Batava, isto é, a H olanda, em 1 795 ; m as é na Itália (e na Suíça) que, por in iciativa de Bonaparte - e depois de ou tros gen erais, quando ele partiu para a aventura treslou cad a da co n q u ista do E gito vem os se m u ltip licar as " irm ã s” da G rande N ação, com o se gosta de dizer: R epública de Gênova (ou L igu rian a), R ep ú blica R om an a (1 7 9 8 ) e R ep ú b lica N ap olitana (1 7 9 9 ) . A crescen ­tem o s tam bém a R epública H elvética, que com preende os cantões suíços. Essa aventura tem aspectos gloriosos e outros nem tanto. Pa­ra o D iretório , in ic ia lm en te pouco en tu sias­m ado, a expansão é um m eio de aum entar a arrecad ação com os p aíses ocupados e sa ­q u ear seu s tesou ros: a guerra deve su sten ­tar a guerra, e estam os m uito longe do ideal de lib ertação dos povos, su je ito s à a rb itra ­riedade dos generais e dos com issários do D ire tó rio .

V istas de perto , quero dizer, nos países eu ro p eu s atingid os pelo im p acto da R ev o­lu ção , as reaçõ es variaram de acord o com o m o m e n to , a p roxim id ad e ou a d istân cia , a con d ição social e cu ltu ral e, claro, as p ró ­

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A R evo lução Francesa explicada à m inha neta

prias co n d içõ es em que se deu o co n tato : a n e x a ç ã o , o cu p ação ou rep ercu ssã o d is ­tan te ...

m eio com plicado , não? Você poderia me dar alguns exem plos?

— Tem razão. N o in ício , se voltarm os aos p rim eiros anos da R evolução, ela teve uma acolh id a favorável nas e lites da Inglaterra, A lem an h a e Itá lia - en tre a burguesia, por vezes a p eq u en a n obreza e, sobretud o, e n ­tre os in te lectu a is , com o d iríam os ho je. A Q ueda da B astilh a foi com em orada e a Fran­ça revolu cion ária surgia com o um a grande esp erança, “o raiar do so l”, com o escreveu o filóso fo alem ão F ich te . P osteriorm en te , o recru d escim en to da situação, o Terror e a m orte do rei provocaram m edo, que foi e x ­plorado pelos reis e pelos m eios reacionários. Sem pre fiéis ao ideal revolucionário , os “ja ­cob in os" europeus constituíram um a m in o­ria em m uitos lugares, por vezes um punhado de consp irad ores que eram perseguidos an ­tes de ser execu tad os (em V iena, na Á u s­tria, na H ungria... na Itália an tes da chega­da d os fr a n c e s e s ) . N os lu g ares em qu e im plantou repúblicas irm ãs, a França m an te­ve o co n tro le dos governos, exportando sua

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Michel Vovelle

Constituição e suas instituições... com tudo que isso podia representar de avanço em termos de direitos; mas essa liberdade con­trolada, misturada às violências da guerra, da ocupação e dos saques, podia ter um sa­bor amargo. Os jacobinos locais, colocados na posição de "colaboradores" dos france­ses, geralmente tiveram uma tarefa "herói­ca”. Mas é nessas condições que as novas idéias germinaram nesses países: na Itália, por exemplo, onde a aspiração à unidade nacional irá desabrochar no século seguin­te com o Risorgimento (renascimento).

- E como reagiu o povo?

- Entre a população humilde das cidades e do campo, em geral bastante dependente de seus senhores, mas também do ambiente religioso, o que predominou na maioria dos casos foi uma reação de resistência. Essa história tem de ser analisada caso a caso: vou limitar-me a pegar um exemplo de seu país, o reino de Nápoles, no sul da Itália. O rei Fer- dinando, um déspota reacionário, foi per­seguido no final de 1798 por aquela que foi a última das repúblicas irmãs, a República Napolitana. Mas os patriotas locais eram em pequeno número e as tropas francesas os

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A Revolução Francesa explicada à minha neca

haviam abandonado antes mesmo que eles tivessem tempo de se impor. Em Nápoles, o povo humilde dos “lazzaroni” (pobres, mendigos e marginalizados) nunca fora real­mente submetido; assim, quando um car­deal fez que a zona rural do interior se revol­tasse, a onda "sanfedista” (defensores da fé) invadiu a capital e um grande número de ja­cobinos foi assassinado. Isso porque nessa ocasião, 1799, a Inglaterra, a Áustria, a Rússia e até os turcos haviam formado uma nova coalizão contra a França. Na ausência de Bonaparte (então no Egito), todo o cas­telo de cartas das repúblicas veio abaixo, e a França se viu de novo ameaçada...

~ Mas o que estava acontecendo com a Revolu­ção na França?

- Podia se ter a sensação de que as “re­sistências” também estavam ganhando, so­bretudo na zona rural, onde a autoridade do Estado era cada vez mais fraca e contesta­da. Diante da ameaça, o sentimento revolu­cionário parece que despertou e, em 1799, as eleições às assembléias deram a vitória à esquerda, que expulsou os membros do Di­retório que estavam no poder. Mas a bur­guesia, que fizera a Revolução e se aprovei­

Michel Voveîle

tara imensamente dela, sentia-se ameaçada, e um de seus representantes fez a seguinte afirmação: “Como sou proprietário, preciso de um rei". Isto é, para garantir meus bens e meus benefícios, especialmente os que a Revolução me proporcionou. Mas se fazia cinco anos que o rei estava morto e era im­possível a volta do Antigo Regime, onde achar um rei?

- Acho que eu tive uma idéia... Não seria por

acaso aquele jovem general?

- Vejo que você está bem familiarizada com a nossa aventura! De fato, de volta à França, Bonaparte é visto como o salvador por toda uma facção (onde reencontramos Sieyès, tanto no começo quanto no fim da Revolução), mas também por um grande número de capitalistas. Ele, por sua vez, pre­para o golpe de Estado, um golpe de Estado militar que acontece no dia 18 Brumário do ano VIII (9 de novembro de 1799), após o que os deputados são afastados e ele assu­me o cargo de primeiro cônsul. Um poder que ele vai consolidar entre 1800 e 1804, até se tornar imperador.

- Então é o fim da Revolução?

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A Revolução Francesa explicada à minha neta

- Sim e não. Lá na Itália, vocês associam os anos revolucionários aos da dominação napoleônica, até 1815, o que chamam de "età napoleonica” - a época napoleônica e não é por falta de conhecimento histórico. O que significa que, de certo modo, Bonaparte deu continuidade ao momento revolucioná­rio. Ele consolidou conquistas fundamentais em detrimento daquilo que era a principal conquista, a liberdade. Mas a idéia não es­tava morta, ela avançou, e isso, sem dúvida, é a herança da Grande Revolução.

Q7

lywyp.nv*.

Conclusão

A sombra e a luz da Revolução

- Vovô, por que você ama a Revolução, se você mesmo fa la dos massacres e da violência e se, afi­nal, diz que ela morreu?

~ A Revolução é feita de sombra, mas, acima de tudo, de luz. Ela foi de uma enor­me violência, por vezes descontrolada e sel­vagem, por vezes necessária para enfrentar um mundo antigo que se defendia feroz­mente. Também nisso ela permanece como um importante alerta para que fiquemos atentos, pois essa violência continua à solta. Mas foi, e continua sendo, a base para uma enorme esperança, a esperança de mudar o mundo, eliminando as injustiças, em nome

oo

Miche! Vovefle

das luzes da razão e não de um fanatismo cego. Como se inscreveu na história em um mo­mento determinado da evolução das forças econômicas, sociais e culturais, sabemos que seu êxito teve origem na união das aspira­ções da burguesia e das classes populares. E, por causa disso, percebe-se bem tudo o que fica faltando: a conquista da igualdade pela mulher, a ratificação do fim da escravi­dão, mas, sobretudo, a eliminação das desi­gualdades sociais, no momento mesmo em que, ao desferir o golpe derradeiro no feu­dalismo, ela estabelece as bases sobre as quais irá progredir a sociedade liberal, do século XIX até os dias de hoje.

- Você acredita que para nós, jovens, que a vemos de tão longe, ela ainda tem sentido?

- Essa Revolução na história continua sendo, também, a nossa Revolução, e é por isso que eu a amo. Meu mestre Labrousse referia-se a ela como “a revolução das ante­visões”. É ela que chamou de desejos seus o Manifesto dos iguais de Babeuf, ao anunciar outra revolução que seria a última, a da Igual­dade. Conhecemos, daí em diante, outras revoluções que se diziam igualitárias, na Rús­sia e em outros lugares, e delas nos restou o

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A R evolução Francesa explicada á m inha neta

gosto amargo de um terrível fracasso. Mas o sonho e a necessidade de mudar o mundo continuam intactos. Pela história da Revolu­ção Francesa, é essa mensagem que transmi­timos a vocês, e a qual deverá ser transmiti­da às futuras gerações.

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