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DA PSICOSE PRECOCÍSSIMA AO ESPECTRO DO AUTISMO: História de uma mutação na apreensão da síndrome de Kanner Jean-Claude Maleval Por que alguns psicanalistas chegaram a conceber o autismo como “o degrau zero da subjetividade”? Por que os trabalhos psicanalíticos consagrados à Síndrome de Asperger são hoje quase inexistentes? Por que os autistas de alto rendimento [nível] prendem muito pouco a atenção dos psicanalistas? E, quando apesar de tudo alguns consideram sua existência, por que só os podem considerar sob o ângulo de personalidades “pós-autistas”, ou de “saídas do autismo”, maneiras de dizer que eles têm pouco a nos ensinar sob a natureza do funcionamento autístico? Uma breve história do autismo pode fornecer alguns elementos de reposta a estas questões sublinhando porque e como se produziu uma importante mutação no curso do anos 1970 desembocando, de uma parte, em apreender a clínica do autismo sobre um contínuo muito mais largo que antes, de outra parte, nisto que as ciências cognitivas impõem fortemente a idéia que o que aparecia como uma psicose seria uma distúrbio [problema] invasivo do desenvolvimento. Sabe-se que a clínica psiquiátrica da infância só se constitui com muito atraso em relação à do adulto. Foi preciso esperar os anos 1930 para que ela encontre sua autonomia e consiga formar seus próprios conceitos. Durante todo o século XIX, os problemas mentais da criança foram confundidos na noção de idiotismo saída da nosologia esquiroliana. O idiotismo não é a loucura mas uma doença congênita ou adquirida muito cedo na infância. O demente, segundo a fórmula de Esquirol, é um rico tornado pobre, enquanto que o idiota esteve sempre no infortúnio e na miséria. Griesinger resume bem a concepção geral quando ele afirma em seu Tratado de 1845: “o eu [moi] a esta idade não é ainda formado de uma maneira bem estável de forma a poder apresentar uma perversão durável e radical, também as diversas doenças produzem neles (as crianças) verdadeiras paradas de desenvolvimento que atingem a inteligência em todas as suas faculdades” (1). No ano seguinte o francês 1

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DA PSICOSE PRECOCÍSSIMA AO ESPECTRO DO AUTISMO:História de uma mutação na apreensão da síndrome de Kanner

Jean-Claude Maleval

Por que alguns psicanalistas chegaram a conceber o autismo como “o degrau zero da subjetividade”? Por que os trabalhos psicanalíticos consagrados à Síndrome de Asperger são hoje quase inexistentes? Por que os autistas de alto rendimento [nível] prendem muito pouco a atenção dos psicanalistas? E, quando apesar de tudo alguns consideram sua existência, por que só os podem considerar sob o ângulo de personalidades “pós-autistas”, ou de “saídas do autismo”, maneiras de dizer que eles têm pouco a nos ensinar sob a natureza do funcionamento autístico? Uma breve história do autismo pode fornecer alguns elementos de reposta a estas questões sublinhando porque e como se produziu uma importante mutação no curso do anos 1970 desembocando, de uma parte, em apreender a clínica do autismo sobre um contínuo muito mais largo que antes, de outra parte, nisto que as ciências cognitivas impõem fortemente a idéia que o que aparecia como uma psicose seria uma distúrbio [problema] invasivo do desenvolvimento.

Sabe-se que a clínica psiquiátrica da infância só se constitui com muito atraso em relação à do adulto. Foi preciso esperar os anos 1930 para que ela encontre sua autonomia e consiga formar seus próprios conceitos. Durante todo o século XIX, os problemas mentais da criança foram confundidos na noção de idiotismo saída da nosologia esquiroliana. O idiotismo não é a loucura mas uma doença congênita ou adquirida muito cedo na infância. O demente, segundo a fórmula de Esquirol, é um rico tornado pobre, enquanto que o idiota esteve sempre no infortúnio e na miséria. Griesinger resume bem a concepção geral quando ele afirma em seu Tratado de 1845: “o eu [moi] a esta idade não é ainda formado de uma maneira bem estável de forma a poder apresentar uma perversão durável e radical, também as diversas doenças produzem neles (as crianças) verdadeiras paradas de desenvolvimento que atingem a inteligência em todas as suas faculdades” (1). No ano seguinte o francês Edouard Séguin, em sua obra sobre o “tratamento moral dos idiotas” [Traitement moral des idiots] afirma que não existe nenhuma observação autêntica da alienação mental num sujeito de menos de 10 anos” (2). Mais tarde, em 1888, o psiquiatra francês Moreau de Tours, em sua obra “A Loucura na criança” [La Folie chez l’enfant], respondia sempre pela negativa à sua própria questão sobre a eventualidade da existência de uma psicose (“loucura”) na criança pequena. Por que um tal atraso na autonomização da clínica psiquiátrica da infância? Em razão da ausência de uma psicologia da criança, responde Bercherie, conduzindo o observador a praticar um adultomorfismo não permitindo discriminar nas patologias da criança reagrupadas num termo exprimindo a incompreensibilidade radical dela: o idiotismo. “O que”, precisa ele, “impediria a clínica psicopatológica da infância de se constituir antes que uma psicologia, digamos suficiente, da criança aparecesse, é a ausência de toda compreensão do observador adulto, de toda comum medida entre o adulto e a criança… como recortar e classificar o que é patológico quando se tem nenhuma idéia disto que se recorta e de como aí proceder? Deste ponto de vista, a clínica da infância se achava numa posição vizinha à psiquiatria animal, tanto mais que a linguagem, quando é presente, é aí geralmente inoperante para transmitir os conteúdos subjetivos, e que o observador tem de todo modo enormemente dificuldade de representar, sem formação prévia, os estados de consciência da criança: no melhor dos casos, este últimos permanecem construções mais do que apreensões diretas” (3).

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Notamos contudo que no curso do século XIX, consegue-se distinguir algumas formas específicas de idiotismo. Séguin descreve por exemplo a primeira em 1846 “a idiotia furfuracée”. Ela é isolada de novo alguns anos mais tarde em Londres por Longdon Down que propõe chamá-la “idiotia mongoliana”. Os anglo-saxãos a nomeiam hoje de síndrome de Down; enquanto que na França se fala mais de boa vontade de trisomia 21. Em 1887, o mesmo Down, em sua obra consagrada aos problemas mentais da criança e do adolescente (4), descreve uma outra forma de idiotia na criança, uma forma paradoxal, pois ele é compatível com extraordinárias capacidades intelectuais. Esta síndrome, do idiota sábio, se caracteriza pela combinação de capacidades excepcionais e de uma memória notável no sujeito que apresenta uma deficiência intelectual manifesta. São crianças, afirma Down, que, ainda que intelectualmente retardas, apresentam faculdades inabituais que podem alcançar um desenvolvimento extraordinário.

É preciso esperar os esboços de formação de uma psicologia da criança para que a noção de loucura da criança possa vir a ser concebível: é por isso que a demência precocíssima de Sante de Sanctis só se libera da idiotia em 1906. Precisará ainda cerca de vinte anos, tempo necessário à difusão das teses de Bleuler e Freud, para que se abra a via das pesquisas sobre as esquizofrenias da criança. A noção parece ter sido introduzida por Homburger em seu Tratado de 1926 (5). Brill (1926) (6), Soukarewa (1932), Potter (1933) (7) mostram que é pertinente se referir ao conceito bleuleriano para apreender algumas patologias infantis. Em 1937 apareciam os trabalhos conjunto de Bradley, Lutz, Despert e Bender que tentam dar a ela um quadro clínico-evolutivo (8).

Consequentemente, o conceito de esquizofrenia da criança ganha lugar, torna-se possível, no corrente dos anos 1930, conceber as patologias infantis que, ainda que aparentadas às esquizofrenias, se distinguem aí. Não é somente o gênio clínico de Kanner e de Asperger que os conduz, um em 1943, outro em 1944, um em Baltimore, outro em Viena, sem que conhecessem os seus respectivos trabalhos, não somente a isolar um quadro clínico muito semelhante, mas além disso utilizar um mesmo termo para o nomear, este de autismo. Vão buscar no vocabulário utilizado para descrever a clínica que não cessa de constituir a referência deles. Alegando a psicopatia mais que o autismo, Asperger se esforça em liberar nitidamente seu tipo clínico da esquizofrenia; enquanto que Kanner se revela mais hesitante. Ele sublinha que a desordem fundamental das crianças que ele observa “não é como na esquizofrenia adulta ou infantil, um início a partir de uma relação inicial presente, não é uma retirada da participaçào da existência de outrora”, porque “há desde um início uma extrema isolamento [solidão] autístico” (9). No entanto, ele escreve em 1955 que não há objeção em incluir o autismo “numa concepção geral da esquizofrenia” (10).

O traço dominante da síndrome, o desejo de isolamento [solidão], para Kanner, a restrição das relações com o entorno familiar, para Asperger, orienta os dois médicos para o termo utilizado mais correntemente na clínica psiquiátrica do tempo deles para descrever um tal fenômeno. Seguem pois a escolha de Bleuler. Este havia experimentado “ipsime” mas um eco de sua correspondência com Freud parece ter feito decidir passar do latim para o grego para escolher autismo, derivado do grego autos que significa si-mesmo. Segundo Jung, o termo bleuleriano seria uma contração de auto-erotismo, permitindo considerar sem dúvida uma referência discreta à descoberta freudiana ao mesmo tempo apagando a evocação à sexualidade perturbadora.

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A síndrome do autismo infantil precoce O autismo de Kanner é uma síndrome composta de dois sintomas: o isolamento e a imutabilidade (sameness behavior). “O isolamento e a insistência obsessiva de imutabilidade, afirma ele, são os dois principais critérios diagnósticos do autismo infantil precoce”.

“O excepcional, o patognômico, escreve Kanner, a desordem fundamental, é a inaptidão das crianças em estabelecer relações normais com as pessoas e a reagir normalmente às situações desde o início da vida. Os pais deles se referem a eles como tendo sido sempre ‘auto-suficientes’, ‘como numa concha’, ‘agindo como se ninguém estivesse lá’, “perfeitamente negligente de tudo à parte deles’, dando a impressão de uma silenciosa sabedoria’, ‘faltando desenvolver a quantidade habitual de consciência social’, ‘agindo como se eles estivessem hipnotizados’ (…) Há desde o início um extremo isolamento autístico que, todas as vezes que isto é possível, desdenha, ignora, exclui tudo isto que vem na direção da criança do exterior. O contato físico direto, tal movimento ou tal barulho, são vividos como ameaçadores de romper seu isolamento e são tratados ou ‘como se eles não estivessem lá’ ou, se eles não têm uma duração suficiente, sentidos dolorosamente como uma interferência desoladora (…) Há uma necessidade muito poderosa de ser deixado sossegado [tranqüilo]. Cada coisa que é trazida do exterior, cada coisa que muda seu ambiente externo ou mesmo interno, representa uma intrusão pavorosa.

A relação da criança autista aos outros é muito particular. Ele não dirige para eles nenhum olhar interessado, ele passa ao lado sem ensaiar estabelecer uma comunicação, as relações que ele pode às vezes estabelecer são fragmentárias, ele escolhe o outro mas ele não espera nem partilha nem troca. Ele não mostra nenhuma reação ao desaparecimento dos pais e parece os ignorar. Ele não participa de nenhum jogo coletivo com as outras crianças.

De outra parte, o comportamento da criança é governada por um obsessivo e ansioso desejo de imutabilidade, que ninguém salvo a criança mesma pode, em raras ocasiões, romper. As mudanças de rotina, da disposição das provisões, da conduta, da ordem nas quais cada dia os atos são executados podem-no levar ao desespero. O mundo exterior é assim fixado pela criança numa permanência imóvel, onde tudo deve estar no mesmo lugar e onde as mesmas ações devem se desenrolar na mesma ordem que esta aonde a criança as descobriu pela primeira vez.

“A totalidade da experiência que vem à criança do exterior, escreve Kanner, deve ser reiterada, com todos seus constituintes em detalhe, numa completa identidade fotográfica e fonográfica. Nenhuma parte desta totalidade pode ser alterada em termos de forma, seqüência ou espaço, a menor troca de disposição, de alguns minutos que seja, dificilmente perceptível por outras pessoas, o faz reentrar numa violenta crise de cólera [dor]” (11).

A síndrome descrita por Asperger é muito próxima desta de Kanner. Ela se manifesta muito cedo e se carateriza por uma contato perturbado mas superficialmente possível nas crianças inteligentes que não aceitam nada do outro, e que se consagram de boa vontade às atividades estereotipadas. Asperger considera que a perturbação fundamental reside numa limitação das relações sociais que persiste durante toda existência. “eles seguem suas próprias preocupações, eles estão longe das coisas ordinárias, eles não se deixam perturbar; eles não se deixam penetrar pelos outros” (12). Enfim, a criança se comporta “como se ela estivesse só no mundo”; entretanto, sublinha Asperger, e isto o espanta, “se constata quanto ele sacou e integrou o que se passa em torno dele”. O isolamento destas crianças é para os dois clínicos o que domina o quadro clínico.

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Certamente, Asperger não faz da imutabilidade um sintoma maior da psicopatia autística, mas ele descreve este comportamento em várias crianças. Ernst, escreve ele, “e muito exigente: algumas coisas devem sempre estar no mesmo lugar, se passar da mesma maneira, senão ele faz todo um caso”. Sendo pequeno, Helmut “fazia grandes cenas se alguma coisa não estava em seu lugar habitual”. Além disso, Asperger como Kanner, notam a importância que tomam geralmente alguns objetos para estas crianças. Alguns dentre eles, observa o vienense, “tem uma relação anormal muito forte com certos objetos. Eles não podem viver por exemplo sem uma chibata, um cabo de madeira, uma boneca de trapo, não podem nem comer nem dormir se eles estão com eles e se defendem com vigor se o quer separá-los”. Kanner constata que a criança autista “tem boas relações com os objetos; ela se interessa neles e pode brincar com eles, alegremente, durante horas”.

Asperger observou durante dez anos mais de duzentas crianças, ele dispõe de um recuo mais importante que Kanner cujas observações só atingem onze crianças estudadas num período de cinco anos. Além disso, os sujeitos de Asperger são em média mais velhos, Fritz V. tem onze anos em 1944, Helmut L. tem aí dezessete anos, os de Kanner tem todos menos de onze anos. A diferença maior entre as duas síndromes apoia-se sobre as perturbações da linguagem. Eles são seguramente mais acentuadas nas crianças de Kanner: três dentre elas são mudas, os outros oito não utilizam a linguagem para “conversar com os outros”. Todos os de Asperger falam, certamente sem se endereçar ao interlocutor, mas “eles são capazes de exprimir o que eles viveram e observaram num língua muito original”. A diferença tende um pouco a se atenuar com a evolução da patologia pois Kanner mesmo observa que as crianças descritas em seu artigo tendem a se abrir ao mundo e que “a linguagem deles torna-se mais comunicativa”. No entanto, Asperger se revela seguramente muito mais positivo que Kanner quanto à evolução. Ele observa ter sido ele mesmo surpreendido de constatar que se as crianças “estavam intactas intelectualmente”, eles tinham êxito sempre em ter uma profissão. “A maior parte, precisa ele, em trabalhos intelectuais especializados, muitos em situações muito elevadas. Eles preferiam as ciências abstratas. Há muitos cujo o talento matemático ditou a profissão. Há matemáticos puros, técnicos, químicos e também funcionários”. Quando Kanner se volta em 1971 sobre o devir das onze crianças de seu artigo de 1943, os resultados serão menos probatórios: somente dois dentre eles alcançaram exercer uma profissão na idade adulta.

A descoberta de Asperger permaneceu por muito tempo pouco conhecida. Os raros psiquiatras que se interessaram, como Van Krevelen (13), em 1971, ou Wolf e Chick (14), em 1980, foram antes levados a considerar que se tratava de uma patologia nitidamente diferente desta isolada por Kanner. Eles sublinhavam que a síndrome de Asperger se manifestava mais tardiamente, concernia crianças menos fechadas em seu isolamento, e se revelava de melhor prognóstico.

A apreensão psicanalítica do autismoMargaret Mahler é uma psicanalista formada em Viena, que se interessa de longa

data pela esquizofrenia infantil, e que trabalha desde os anos 1940 no serviço de crianças do Instituto psiquiátrico de Nova Iorque e da Universidade Columbia. No início dos anos 1950, ela se apoderava da descoberta de Kanner para integrá-la numa teoria geral do desenvolvimento da criança. Ela distingue três momentos, a fase autística normal ou pré-simbiótica, a fase simbiótica e a fase de separação-individuação. Este processo se estende sobre os três primeiros anos da vida e se finaliza na eclosão de um indivíduo que fala, munido de um objeto permanente. M. Mahler se situa na corrente genética anna-freudiana.

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Ela apreende o bebê a partir da ficção de um narcisismo primário, no momento no qual o organismo estaria fechado sobre ele mesmo, auto-suficiente, satisfazendo suas necessidades de um modo alucinatório. O objeto materno só seria descoberto por volta de três meses, início da fase simbiótica, momento em que aquela criança e sua mãe formariam uma unidade dual numa muralha comum. Um desfalecimento [falha] do processo de individuação seria o princípio de uma psicose infantil. Disto, sua teoria sugere duas formas maiores, relacionadas aos dois níveis de desenvolvimento do self. Ela se acha então compelida a completar sua descoberta da psicose de Kanner, psicose autística, descrevendo uma psicose testemunhadora de um nível superior de desenvolvimento, a psicose simbiótica, da qual introduz o conceito em 1952.

Nesta última, a criança regride ou permanece fixada no estado de relação fusional mãe-bebê [nourrisson= criança de peito], o que lhe dá uma ilusão de todo-poder [toda-potência], de maneira que suas defesas são respostas à angústia de separação. O autismo testemunharia um modo de funcionamento anterior a este da fase simbiótica. É apreendido como uma fixação, ou uma regressão à primeira fase da vida extra-uterina, a mais primitiva, a fase autística normal. O isolamento da criança autista se insere muito bem no genetismo malheriano. O sintoma mais evidente, afirma a psicanalista, reside no “fato que a mãe, como representante do mundo exterior, não parece absolutamente ser percebida pela criança. Ela não parece ter nenhuma existência enquanto pólo vivente de orientação no universo da realidade” (14). Nesta perspectiva, o autismo é apreendido como uma tentativa de desdiferenciação [dedifférenciation] e de perda da dimensão animada. Pode-se ver aí, acrescenta M. Mahler, o mecanismo pelo qual tais tentam se isolar, se afastar alucinatoriamente das fontes possíveis de percepção sensorial e particularmente estas, muito variadas, do universo vivente que convoca respostas emocionais sociais”. A lógica de sua teoria a conduz a discretas acentuações do fechamento do autista em seu mundo em relação à descrição de Kanner. Ela postula “uma recusa alucinatória da percepção” que a incita a propor a experiência seguinte a fim de estabelecer o diagnóstico: deixar cair um objeto metálico qualquer perto da criança a fim de produzir um som percutidor. Segundo ela, “a criança autista se comporta neste momento como se ela não escutasse nada”. Kanner não teria sem dúvida confirmado o valor deste teste. Uma intrusão, escreve ele, “provém de barulhos fortes e de objetos em movimento, os quais provocam pois reações de horror. Os triciclos, elevadores, aspiradores, a água corrente, os brinquedos mecânicos e mesmo o vento podem, em algumas ocasiões, levar a um pânico maior na criança” (15). Além disso, Mahler considera que a maior parte das crianças autistas apresentam “uma muito fraca sensibilidade à dor”, indicação que se acha certamente em Bettelheim, mas sobre a qual Kanner não chama atenção. Notamos ainda que a observação mais precisa e a mais comentada relatada por M. Mahler em sua obra sobre A psicose infantil é a de Stanley; segundo ela ele ilustra a forma simbiótica, ora todo mundo está de acordo em considerar hoje que se trata de uma notável descrição do funcionamento de um sujeito autista. Enfim, a hipótese do narcisismo primário incita a acentuar o fechamento do autista num mundo fechado e auto-suficiente.

Desde então, e por muito tempo, o autismo vai ser considerado pelos psicanalistas como a patologia mais primitiva, esta que testemunhava a regressão mais profunda. Mesmo para estes que tomarão distância com o genetismo, persistirá a idéia que se trataria da psicose precocíssima, a qual se associa de boa vontade a noção de extrema gravidade.

O autista se comporta como se ele estivesse só no mundo, observava Asperger, mas ele se espanta de constatar quanto ele sacou e integrou o que se passa em torno dele. O

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autista de Asperger não está fixado no narcisismo primário. Não tem lugar na teoria de Mahler. Ela não o cita.

Em 1967 aparecia nos EUA uma obra que conhece rápido uma grande ressonância: A Fortaleza Vazia, sub titulado: o autismo infantil e o nascimento do self. O autor é diretor da Escola Ortogenética de Chicago na qual são acolhidas crianças “com problemas”. Bettelheim enaltece aí uma terapia pelo meio que se baseia no acionamento dos conceitos freudianos apreendidos numa perspectiva original, influenciado pelos trabalhos de Kohut e da psicologia do eu [moi]. Sua análise começada em Viena em 1937 foi interrompida em razão dos acontecimentos políticos. Ele foi preso em 1938 pela única razão que ele era judeu e co-proprietário de um negócio próspero. Ele passou um pouco mais de dez meses em Dachau e em Buchenwald. Sua abordagem do autismo permaneceu profundamente tributária de sua experiência dos campos de concentração. Ele considera desde 1956 que toda criança psicótica sofre por ter sido submetida a condições extremas de vida. Estas aí das quais ele mesmo experienciou. O que caracterizaria a situação extrema, precisa ele, era o fato que não se podia se subtrair daí; era sua duração, incerta, mas potencialmente igual à da vida; era o fato que nada a concernindo não podia ser predito; que a vida mesma estava a cada instante em perigo e que nada se podia fazer” (16). Uma criança confrontada muito cedo a tais condições tornam-se autista se sua reação espontânea se transforma em doença crônica pelo fato da resposta do ambiente. Bettelheim está de acordo com Rodrigué quanto a considerar que a “angústia intensa da criança autística é semelhante a esta engendrada pela morte iminente”.

O autista de M. Mahler, fechado num mundo auto-suficiente, não é este de Bettelheim, demasiado aberto a angústias intensas. A hipótese da confrontação a uma situação extrema é radicalmente incompatível com esta da fixação ao narcisismo primário. Bettelheim sublinha a divergência: “ele é triste, escreve ele, de constatar que Mahler, um dos primeiros autores a estudar o autismo infantil de um ponto de vista psicanalítico, não tinha visto que o autismo era uma reação autônoma da criança, e isto, porque ela pensava que a pequena criança “só é um semi-indivíduo”. Ela considera portanto que seu modo de viver, sua experiência de vida, é condicionado pela mãe, em vez de ver aí uma reação autônoma à experiência total da vida da qual a mãe só é uma parte”. Mahler, convencida da importância primordial da relação simbólica da criança com sua mãe, considera que a ferramenta essencial do tratamento é “a reconstituição da simbiose mãe-criança tal como ela existia no início” (17). Bettelheim afirma totalmente pelo contrário que são as insuficiências na relação à mãe e ao ambiente que se acham na origem do autismo, de maneira que o tratamento está fundado sobre a vontade de procurar permanentemente à criança um ambiente favorável.

O autismo de Bettelheim não é uma mônada narcísica, é um sujeito empenhado num trabalho para amenizar sua angústia. A notável observação da evolução de Joey, a criança-máquina, revela pelo detalhe quais são os recursos que pode às vezes mobilizar a criança autista para tornar a realidade habitável. A fortaleza vazia é um trabalho que, afirma Bettelheim, “repousa sobre a convicção de que a criança autística tem boas relações com as pessoas” (18). Ele não parece ter tido conhecimento dos trabalhos de Asperger, mas ele não está longe de partilhar a opinião deste segundo a qual “uma hipertrofia compensatória” seria inerente ao modo de funcionamento do sujeito autista.

Os diagnósticos e os resultados terapêuticos de Bettelheim foram contestados. Suas teses permaneceram marginais no campo da psicanálise freudiana. É paradoxal que este

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franco-atirador seja hoje sempre citado pelos detratores da psicanálise como o mais representativo.

Na mesma época, em Londres, os kleinianos percebem também o enigma do autismo infantil. Os pressupostos de Mahler e de Bettlehiem não são os deles. De uma parte, o kleinismo situa de imediato a criança numa relação de objeto, e não num narcisismo primário, de outra parte, Meltzer, não considera de modo algum que o autista seja confrontado a uma situação de angústia extrema. Contudo, a precocidade da aparição da perturbação lhe sugere a hipótese que se trataria de uma patologia gravíssima, acontece que como conceber um modo de funcionamento mais arcaico ainda que este dos primeiros meses da fase esquizo-paranóide? É preciso para tanto proceder a uma forçagem da teoria kleiniana, inventando um estado que não autorizaria mesmo o recurso aos mecanismos de defesas psicóticos. O autista de Meltzer não opera nem clivagem de objeto nem identificação projetiva. Seria o desmantelamento que dominaria seu modo de funcionamento. Uma operação passiva consistindo em deixar vaguear os diferentes sentidos, internos e externos, de maneira que eles se ligariam aos objetos mais estimulantes do momento. A suspensão da atenção levaria a uma dissociação dos componentes do self induzindo uma queda em pedaços da organização mental. O autista desmantelado estaria num “estado primitivo essencialmente sem atividade mental” (19); logo, “parece inteiramente certo, escreve Meltzer, que nenhuma angústia persecutória, nenhum desespero resulta deste modo de retirada do mundo”, enquanto que a “suspensão das trocas na transferência” constituiria a chave da compreensão do fenômeno. A relação de objeto do autista, bidimensional, se estabeleceria num mundo sem profundidade: seria uma relação de superfície a superfície, de colagem com um objeto não sentido como tendo um interior: enquanto que suas identificações adesivas resultariam da bidimensionalidade: o self se identificaria ao objeto todo em superfície e, não mais que objeto, ele não possuiria espaço interno, o que impediria a comunicação psíquica necessária ao desenvolvimento do pensamento.

Enfim, o autista de Meltzer não está angustiado, ele não se defende, ele não tem atividade mental, ele funciona na bidimensionalidade, e ele se situa no degrau zero da transferência. O ser arcaico por excelência.

A maior parte dos clínicos estão de acordo hoje em reconhecer que o caso Dick relatado em 1930 por M. Klein deve ser considerado como um autista e não como um esquizofrênico (20). Ele mesma observava que se tratava de um esquizofrênico atípico caracterizado por uma inibição do desenvolvimento e não por uma regressão sobrevinda após que um certo estado do desenvolvimento fosse atingido. Ora o tratamento mobiliza rápido uma angústia latente (21), desenvolveu defesas fantasmáticas e relações de objeto, de maneira que Dick manifestou uma ligação transferencial persistente em relação à Klein, pois o tratamento prossegue de 1929 até 1946 (22). Para Meltzer, com para os outros kleinianos, se trataria de uma saída do autismo. Quando Beryl Stanford reencontrou Dick em 1946, enviado para ela para prosseguir seu tratamento, ela considerou que ele não era autista “mas um terrível tagarela”. “Seu Q.I. tinha sido cifrado por Ruth Thomas em torno de 100 e ele estava visivelmente clivado mas, ao mesmo tempo, ele tinha uma memória extraordinária, ele lia Dickens e ele tinha uma quantidade de conhecimentos técnicos bastante considerável sobre a música, que ele tinha aprendido de um professor de piano. Ele levou um dia Beryl a um concerto e lhe explicou todos os detalhes técnicos no tema de transposição de tons, etc.…”. Quando Phyllis Grosskurth encontrou Dick, ele tinha por volta de 50 anos, ela o encontrou “extremamente amical num registro infantil, bem

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informado e capaz de conservar um emprego que não implicasse uma tensão excessiva” (23). Estas descrições pareciam inteiramente corresponder ao devir de um sujeito apresentando em sua infância a síndrome de Kanner e alcançando um funcionamento autístico dito “de alto rendimento [nível]” na idade adulta, mas para os kleinianos seria preciso considerar que seu tratamento o fez muito rápido emergir do autismo, enquanto que suas capacidades verbais e intelectuais ulteriores não são seguramente compatíveis com o mito forjado por Meltzer do autista sem angústia, sem violência, sem mentalização e sem relação de objeto.

Formado em Londres, por um discípulo original de M. Klein, W. R. Bion, Frances Tustin descreve o autismo de uma maneira numa abordagem inicial aparentada a esta de Meltzer. Ela considera que a criança autista está fechada numa capsula protetora no interior da qual a atenção está concentrada sobre as sensações autogeradas. Este emprego idiossincrático e perverso, escreve ela, de suas sensações corporais produz uma ilusão de proteção (24). No se mundo de autosensualidade, “a vida psíquica do sujeito para praticamente” (25). O autista de Tustin é pois como este de Meltzer sem mentalização, enquanto se diferencia daí profundamente, porque ele utiliza mecanismos de proteção contra uma experiência dolorosa. Tustin a designa como depressão primitiva, ou traumatismo oral precoce, ela a corrèle a um sentimento impensável de separação, suscitando uma angustia arcaica, não de castração, mas de nadificação (26). Esta experiência traumática, que seria recoberta pela capsula protetora do autismo, seria esta do “buraco negro”, gerada por um sentimento que o sujeito perdeu uma parte vital de seu corpo. Ele fizera muito precocemente a experiência da separação em relação ao objeto de sua satisfação pulsional, de maneira que ele experimentava uma catastrófica sensação de extração [separação brutal] de substância. Isto se traduziria pelo fantasma de um seio com o mamilo arrancado abrindo na boca um buraco negro povoado de objetos persecutórios. “Se a criança toma consciência da perda do mamilo antes de ser capaz de um representação interior dos objetos ausentes, escreve Tustin, ele teria a impressão que este ponto está rompido. É o que parece se produzir na criança autística que quer evitar a repetição desta experiência dolorosa”. Consequentemente, ela os apreende como “prematuros psicológicos”, porque eles fizeram a experiência da separação maternal antes de estar prontos para suportar (27). Ela sublinha a riqueza do trabalho de proteção desenvolvido pelos autistas, em particular ela chama a atenção sobre a função do objeto autístico utilizado, segundo ela, para fechar o buraco negro. Falta deste objeto, a criança autista teria a impressão de estar exposto, escancarado.

As quatro grande abordagens psicanalíticas clássicas do autismo infantil possuem um ponto comum: a intuição que se trata da patologia mais arcaica. Para Mahler, a regressão a regressão libidinal mais profunda, para Meltzer, o funcionamento do self o mais falho, para Bettelheim, a angústia a mais extrema, e para Tustin o fantasma o mais catastrófico. Tais abordagens sugerem implicitamente que o autismo é a patologia a mais grave e que seu prognóstico é sombrio. Durante muito tempo, no imaginário de muitos clínicos, o autismo vai bordejar a demência. Em 1956, Léon Eisenberg publica um artigo no American Journal of psychiatry que tem por objeto “A criança autística na adolescência”, seus estudos estatísticos o conduzem a conclusões muito pessimistas, bem reveladoras das opiniões da época, que levam a considerar que todas as abordagens terapêuticas são quase vãs: ele encontra apenas 5% de bons resultados (28).

A reviravolta dos anos 1970.

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Uma reviravolta se produziu na abordagem do autismo nos EUA nos anos 1970. Parece ter descoberto neste sujeitos capacidades pouco compatíveis com a imagem deficitária das patologias deles sugerida pelas primeiras descrições de Kanner e pelas teorias psicanalíticas. Por que esta nova abordagem intervém neste período? Os anos 1970 constituem o apogeu da audiência das teses psicanalíticas, mas é também a época onde os conceitualizadores do DSM-III se colocam a tarefa de remedicalizar a psiquiatria, exaltando uma abordagem a-teórica quanto à etiologia, da qual uma das conseqüências maiores consiste em considerar como inexistente [nula] toda hipótese psicodinâmica (29). Numerosos são os clínicos decepcionados com a psicanálise norte-americana que se voltam então na direção de outras conceitualizações. Ora é também a época onde começam a se afirmar as ciências cognitivas. Elas buscam levar em consideração o que o behaviorismo tinha metodologicamente rejeitado na “caixa negra” do psiquismo, para isto eles se interessam pelos métodos de tratamento da informação do cérebro.

De outra parte, os autistas de Kanner envelheceram. Começa-se a dispor de elementos quanto a seu devir. Em 1971, Kanner se interessa sobre o que se tornaram as onze crianças descritas em seu artigo de 1943. Sem surpresa, nove dentre eles não alcançaram uma vida social autônoma. Enquanto, um obteve um diploma universitário e trabalha como caixa num banco, um outro se adaptou a um trabalho rotineiro e é considerado por seu diretor como um empregado que dá completa satisfação (30). A proporção destes que alcançaram uma boa adaptação social não se revela pois desprezível.

Desde 1964, Rimland levam em consideração algumas curas espontâneas do autismo nas crianças de uma grande inteligência: um tornou-se matemáticos “após Ter terminado sua formação em três anos, numa das melhores universidades do país”; um outro tornou-se meteorologista, um outro compositor (31).

No fim dos anos 60, Bettelheim publica A Fortaleza Vazia, obra que conhece uma grande repercussão, ele afirma aí que um tratamento intensivo, tal como este dispensado na Escola Ortogenética de Chicago, permite obter com os autistas 42% de bons resultados (32). Ele relata além disso a notável terapia de Joey, a criança-máquina, que consegue obter um diploma e a exercer uma profissão. Em 1964, nos Estados Unidos, aparece uma outra obra que alcança uma difusão internacional, na qual se encontra relatado o êxito do tratamento de uma criança “bizarra”, graças a uma terapia pelo jogo de inspiração rogeriana. Ë psicótica esta criança solitária, nomeada Dibbs, descrita como “fechada em sua concha”, não respondendo quando falam a ela? Axline hesita sobre o diagnóstico. Ela considera que “faça autismo” (33), mas, neste anos, é difícil de afirmar, na presença de uma criança tão inteligente: o Q.I., ao fim do tratamento, se revela ser de 168.

Em 1978, Rimland lança uma pesquisa apoiando-se em 5400 autistas. O estudo dos questionários endereçados aos pais o levou a sublinhar que 9, 8% das crianças autistas demonstram capacidades espantosas, a maior parte do tempo ligadas a excepcionais aptidões mnemônicas (34), alguns são calculadores pródigos, outros de notáveis desenhistas, o que domina na amostra são de talentos musicais. Nos anos 70, começam a se multiplicar nos EUA as publicações sobre os autistas-sábios. O filme “Rain Man, em 1971, os faz conhecer ao grande público. Em 1972, Tustin observa que “muitos pesquisadores em psicologia pensam que os casos de idiotas sábios constituem crianças autísticas curadas” (35).

Em 1976, na Suíça, ocorre um colóquio internacional, que dá lugar à publicação por Michel Rutter e Eric Schopler, dois anos mais tarde, em Nova Iorque, de um importante volume buscando a reavaliar os conceitos e os tratamentos do autismo. Entre as impressões

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de conjunto que se destacam da obra, esta que o autismo pode se apresentar “em diferentes graus de gravidade” (36). O isolamento não pareceu tão radical quanto Kanner pode sugerir. “A análise detalhada de suas reações, constata P. Howlin, revela que numa proporção de 30% do tempo eles adotam comportamentos de abordagem do outro e durante 50% ele se entregam a atividades”. De uma outra parte, apesar deles terem “raramente a iniciativa de encontros com o outro, uma vez este contato estabelecido, eles toleram um mais forte grau de proximidade com o adulto e de contatos físicos mais estreitos que as outras crianças” (37). Rutter considera que a síndrome de Asperger não seja distinta de um “autismo infantil moderado” (38).

Em 1978, Schopler sucede Kanner como diretor do Journal of Autism and Childhood Schizophrenia. Suas pesquisas o levam a se interessar nos tratamentos comportamentais do autismo e a recusar a abordagem psicodinâmica. O título da revista torna-se Journal of Autism and Developmental Disorders. Indica-se nitidamente que a reaproximação do autismo com a psicose não é mais pertinente, e que as pesquisas devem agora se orientar na direção das perturbações cognitivas. Critica-se aí logo os psicanalistas de não fazer o diagnóstico preciso do autismo (testes), de congelar as pesquisas empíricas, e de maltratar os pais os acusando de maus tratamentos com as crianças autistas. Em 1980, o DSM-III, homologa a troca de orientação, inserindo o autismo nos “distúrbios globais do desenvolvimento”, entre os quais constituiria um sub-tipo, considerado como a forma mais típica e a mais severa destes. Em 1987, segundo o DSM-III-R, a característica principal disto que vem a ser os “distúrbios [transtornos] invasivos do desenvolvimento”, se revela ser que “o distúrbio dominante” se situa na dificuldade de aquisição de aptidões cognitivas, lingüísticas, motoras e sociais. O conceito “invasivo” significa que a pessoa é acometida até o mais profundo dela mesma. A implicação maior destas trocas de denominação se encontra nas conseqüências quanto ao tratamento: elas sugerem fortemente que o autismo é da competência menos da psiquiatria do que da educação especializada. No mais, desde 1972, uma estratégia pedagógica estruturada foi elaborada de maneira completa em Carolina do Norte direcionada às crianças autistas. Ela inclui a participação dos pais a fim de transferir os métodos utilizados em classe para a casa. Ela é depois então largamente difundida sob o nome de método TEACCH (Treatment and Education of Autistic Children and Related Communication Handicapped Children) (39).

Neste contexto onde se interessa nas capacidades dos autistas e ao devir deles, a imagem do distúrbio vem a ser menos negativa, tornando possível uma leitura diferente da descoberta de Asperger. Esta não era ignorada, mas a opinião dominante tinha sido até então que se tratava de uma síndrome original, independente do autismo. Nada predisporia a se interessar aí: a intuição deles da psicose precocíssima, sem mentalização, é pouco compatível com “a riqueza da vida interior” das crianças de Asperger. Nem Mahler, Nem Meltzer, nem Bettelheim fazem referência aos “psicopatas autísticos”. Somente Tustin faz menção em suas últimas pesquisas, sem deixar de considerar uma síndrome independente (40). Ora os estudos dos psicólogos experimentais e cognitivos sobre o devir dos autistas impõe uma apreensão menos deficitária da síndrome de Kanner, da qual testemunha a conclusão de Rutter na obra de 1978. “Com o tempo, escreve ele, eles atingem a idade adulta e a maioria dentre eles tem boas capacidades verbais. Ele possuem um nível normal de inteligência, não tem distúrbios do pensamento nem perturbações psicóticas, eles querem relações sociais e no entanto manifestam dificuldades sociais persistentes” (41). Logo, os tempos amadureceram para a ligação do autismo de Asperger a este de Kanner. É Lorna Wing, psicóloga inglesa, que reatualiza o trabalho de 1944 publicando em 1981 no

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Psychological Medecine um relatório dos trabalhos anteriores e uma proposta para definir a síndrome de Asperger (42). Ela ilustra com 34 casos, dos quais alguns mostram uma passagem progressiva do autismo infantil à patologia descrita por Asperger. Entretanto, é a importante obra editada em 1991, Autism and Asperger Syndrome, que impõe a reaproximação, e permite sua difusão graças à tradução inglesa, realizada por Uta Frith, do artigo de dificilmente acessível de Asperger. “O argumento mais probatório em favor da existência de um continuum se desdobrando sem cortes do autismo de Kanner até à síndrome de Asperger provém, afirma L. Wing, de um material clínico segundo o qual um mesmo indivíduo, indubitavelmente autista em seus primeiros anos, fez progressos que o conduziram no momento da adolescência a desenvolver todas as características da síndrome de Asperger”. Os termos autismo de alto rendimento e síndrome de Asperger, acrescenta ela, são quase equivalentes (43).

Teoria da mente [ de l’esprit]As numerosas pesquisas iniciadas pelos cognitivistas sobre o modo de tratamento da

informação dos autistas resultam em 1985 na retirada de um problema fundamental: a falha maior residiria numa incapacidade de se formular uma teoria da mente. A tese aparecia num artigo da revista “Cognition”: “Does the autistic child have a ‘theory of mind’?” redigido por S. Baron-Cohen, A. M. Leslie e U. Frith (44). Estes autores partem da constatação segundo a qual nos dispomos todos de uma capacidade de interpretar o que fazem os outros, e às vezes de predizer o que farão em seguida. Cada um é capaz de se colocar no lugar do outro para compreender como ele age. É uma tal faculdade de empatia que seria defeituosa nas crianças autistas.

O fenômeno foi inicialmente evidenciado a partir disto que Frith nomeia “a experiência de Sally-Anne”. “Nós testamos crianças autísticas, normais e mongolóides, relata, todas de idade mental superior a três anos”. A experiência consistia em colocar em cena duas bonecas, da seguinte maneira: “Sally tem uma cesta e Anne uma caixa; Sally tem uma bila, que ela coloca em sua cesta, em seguida Sally sai, em sua ausência, Anne pega a bila de Sally e a coloca em sua caixa, no momento Sally retorna e quer brincar com sua bila. É neste momento que nós colocamos a questão crucial: ‘onde é que Sally vai procurar a bila?’. A resposta natural é, ‘na cesta’. É a resposta correta porque Sally colocou a bila na cesta e ela não viu Anne mudá-la de lugar. Ela crê portanto que a bila se encontra sempre lá onde ela a deixou. Por conseguinte, ela irá procurar na cesta, mesmo se a bila não se encontra mais aí. A maioria das crianças não autísticas fornecem a resposta certa, dito de outro modo, eles indicarão a cesta. Por outro lado, à exceção de alguns, as crianças autísticas se enganaram: elas indicaram a caixa. É aí que a bila se encontrava realmente, mas, é evidente, Sally não sabia. Estas crianças não tinham levado em conta isto que Sally acreditava” (45). Conclui-se que as crianças autistas tem uma teoria da mente defeituosa ou subdesenvolvida. Frith que elas funcionam como os behavioristas: eles se orientam essencialmente pelo comportamento, sobre isto que ele vêem, e não sobre um sentido que poderia esclarecer um comportamento. Na verdade, na experiência Sally-Anne, o sujeito autista não manifesta senão um funcionamento transitivista: ele atribui a Sally o mesmo saber que este que ele possui, ora este fenômeno constitui uma constante na clínica da psicose. Que ele aparecesse de maneira mais manifesta no funcionamento autístico, no qual a dimensão do duplo é onipresente, é o que funda a relativa pertinência desta tese, e participa de seu sucesso. Contudo, na psicose, como no autismo, o transitivismo não é um

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fenômeno permanente, e se fez observar com razão que a maioria dos autistas de alto rendimento são capazes de conceber que o pensamento do outro é diferente do deles (46).

Em cerca de vinte anos, uma mudança radical de perspectiva, não somente se operou, mas se estruturou, alcançando propor uma teoria cognitivista do autismo, seguida depois então de algumas outras, as quais, nas publicações de audiência internacional, suplantam hoje as abordagens psicanalíticas. Em relação a isto, Rutter observava desde 1974, a mutação a mais surpreendente reside na “passagem de uma concepção de autismo compreendido como a manifestação de uma retirada [saída] do social e do afetivo a uma outra onde é considerado como um distúrbio do desenvolvimento comportando déficits cognitivos severos provavelmente devidos a diversas formas de disfuncionamento cerebral” (47). Ele sublinha particularmente as duas palavras “retirada” e “cognitivo” para indicar a passagem de uma a outra na abordagem dominante. O abandono da predominância da “retirada” teve como conseqüência uma ampliação [alargamento] da clínica do autismo, da qual testemunham a reaproximação da síndrome de Asperger e o uso doravante vulgarizado da noção de “espectro [spectre] do autismo”.

A nova clínica espectral do autismoO avanço em idade dos autistas de Kanner e o abandono da “retirada” criam as

condições de receptibilidade de um novo gênero literário: alguns decênios após as biografias dos transexuais emergem, num estilo diferente, as dos autistas. A audiência dos primeiros publicados nos anos 70 permanecem discretas. The Siege (1972) (48) e For the Love of Ann (1973) (49) chamam a atenção sobretudo de especialistas. Por outro lado, a biografia de Temple Grandin, publicada nos EUA em 1986, centrada sobre o relato de uma autoterapia, realizada graças a construção de uma máquina de serrer, conhece rápido uma audiência internacional justificada. Desde a introdução, ela se refere à nova clínica do autismo: “dizer que uma criança autista não reage absolutamente às outras pessoas, escreve ela, é uma idéia falsa. Lorna Wing no Instituto de Psiquiatria de Londres afirma que uma criança autista pode responder de maneira socialmente correta numa situação e não em outra” (50). Confrontados à novidade do testemunho, muitos clínicos são imediatamente levados a pôr em dúvida o diagnóstico, ora Grandin incorpora a sua obra o formulário E2 do teste de Rimland preenchido por seus pais quando ele tinha menos de três anos. O escore obtido a situava nitidamente no campo do autismo, mas um autismo concebido de maneira ampla, como um espectro, pois este teste levou a conceber que os autistas de Kanner só constituiriam de 5 a 10% do conjunto dos autistas. Os trabalhos que indicam que a síndrome de Asperger é mais freqüente que a de Kanner confirma que a clínica do autismo não para de tomar uma extensão crescente.

Grandin torna os editores atentos à publicação de outros autistas. Barron publica em 1992 a Nova Iorque “There’s a boy in here” (51). No mesmo ano, em Londres, aparece sob a pena de uma jovem australiana, Donna Williams, um documento tão excepcional por sua penetração clínica que esta de Grandin, “Nobody nowhere”.

Estes textos vem apoiar o novo conceito de autismo, saído da abordagem cognitivista, do qual não é devido ao acaso que Grandin seja uma ardente propagadora. Para os psicanalistas saídos do movimento keliniano, eles põem poucas dificuldades, certamente a retirada, o isolamento, a ausência de mentalização não é dominante, mas é porque não se trata mais de autismo, os testemunhos de Grandin, Williams ou Barron ilustram isto que eles nomeiam as personalidades pós-autísticas.

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Contudo, uma australiana, Rosemary Crossley, inventa nos anos 80, uma técnica de comunicação facilitada, que se apoia sobre o computador para ajudar as crianças deficiente mentais. Alguns autistas prontamente se aproveitam. Um jovem alemão, que desde a idade de dois anos não fala mais e apresenta a partir de então um quadro de autismo profundo, descobre em 1990, ao dezessete anos, a escrita assistida pelo computador. Ao espanto dos próximos, ele se põe a exprimir por escrito a riqueza de seu mundo exterior. Os textos de Birger Sellin são publicados em Colônia em 1993. “À idade de quase cinco anos, escreve ele, eu já sabia escrever e mesmo calcular mas ninguém percebia porque eu estava a tal ponto caótico mas eu estava por medo dos seres humanos precisamente porque eu era incapaz de falar eu não tinha nenhuma dificuldade em ler é por esta razão que eu buscava nos livros digamos importante tudo isto que eu podia encontrar…” (52). A fortaleza autística se revela de repente não estar vazia. Ao levar à sério, o testemunho de Sellin incita a rejeitar todas as teorias anteriores do autismo. Refuta as abordagens psicanalíticas, porque se trata aqui de um autêntico autista de Kanner, e não de uma personalidade pós-autista, ora revela que nem a retirada nem a ausência de mentalização caracterizam seu mundo interior. O título mesmo de seu primeiro livro: “Eu não quero mais estar fechado em mim. Missiva vindo de uma prisão autística” testemunha de um endereçamento ao outro, totalmente apagado na tradução francesa: “Uma alma prisioneira”. Sellin exprime certamente que seu fechamento constitui um sofrimento importante, mas “eu mentiria, escreve ele, se eu descrevesse o isolamento como se tratasse de meu desejo intenso de solidão é meu inimigo e eu quero combatê-lo como um excelente guerreiro” (53). Por outro lado, ao oposto de Grandin, Sellin não é um militante das ciências cognitivas, “é uma babaquice, afirma ela, transformar problemas importantes em simples problemas de raciocínio tais quais Gisela o faz ela trabalha exclusivamente sobre a base desta teoria segundo a qual a angústia é uma falta de raciocínio mas a angústia é algo que não se pode compreender tão facilmente é uma disfunção de um tal peso extraordinário que eu não o posso descrever tão facilmente meus comportamentos autistas dão um resumo [percebido] como por exemplo o faz urrar morder e todas as outras insanidades” (54). Seu testemunho não dá razão à psicanálise e ao cognitivismo. A onipresença do afeto de angústia, da qual alega, incita fortemente a situar seus distúrbios no campo da psicopatologia e não neste dos problemas cognitivos. Ele explica que as estereotipias o aliviam menos do quando era pequeno, “este mecanismos infelizmente não funcionam mais, constata ele, é por isto que eu urro tanto nestes últimos tempos eu não posso viver calma e tranqüilamente com esta angústia eu devo urrar as mortificações pela angústia restabelecem e me sufocam a mim sem-mim sou o escravo da potência-milagre da angústia” (55).

Os autistas que, à maneira de Sellin, se puseram a se exprimir pela comunicação assistida, perturbam. No somente eles colocam em causa os saberes estabelecidos sobre a patologia deles, mas alguns, em particular nos EUA, acusam os próximos de sevícias sexuais no encontro com eles (56). Sellin não hesita em contestar abertamente os especialistas do autismo “é absurdo afirmar que eu não sinto nada (…) eu quero dizer a um especialista desta espécie que nós somos completamente diferente que isto que ele escreve” (57). Logo os especialistas reagiram pondo em causa a autenticidade destes textos de Sellin e a pertinência da comunicação assistida: tudo isto seria apenas uma fraude dos pais e o método seria pernicioso, desestabilizante. Os estabelecimentos que tinham começado a praticar o interditam formalmente. Certamente, o apoio sobre um duplo imaginário no sujeito autista para acionar a escrita lança a suspeição sobre a origem dos textos. Sellin guarda contudo o mesmo estilo e os mesmos pensamentos com mais de uma dezena de

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pessoas que ele aceita como assistentes, ele consegue mesmo depois de 1993 escrever algumas frases só. Além do mais numerosos autistas pelo mundo se revelam capazes nas mesmas condições de produções que confirmam a riqueza do mundo interior deles e os seus esforços para comunicar. Muitos especialistas contestam a comunicação assistida, mas todos os autistas de alto rendimento, que tenham ou não praticado, todos convergem em afirmar que o recurso ao computador pode ser de uma grande ajuda, todos afirmam que a aprendizagem dos autistas se faz mais facilmente por intermédio de objetos. Antes mesmo do impulso da comunicação assistida, em 1986, Grandin já observava: “as máquinas de escrever ou de tratamento de textos deveriam ser acessíveis a eles desde a mais jovem idade” (58); em 1996, Williams escreve: “os programas de computador deveriam ser benéficos, logo que as crianças aprendessem a utilizar” (59). Por que contra a opinião dos principais interessados deveria impedir os educadores de ajudaras crianças autistas a utilizar-se para aprender a comunicar?

Um pedopsiquiatra alemão, professor e diretor de uma policlínica para crianças e adolescentes, em Munique, perturbado pelo testemunho de Sellin, começa desde 1993 a experimentar a comunicação assistida em seu serviço. Ele relata cinco observações, que fazem certamente aparecer Sellin como um autista excepcionalmente dotado, mas que parecem bem confirmar, segundo ele, que as crianças autistas dispõem: “1o) capacidades cognitivas e de simbolização; 2o) de uma gama de sentimentos inteiramente nuançadas das quais não se tinha idéia até esta época (60).

No que concerne à influência do facilitador, ele afirma: “quando se considera a análise do conteúdo que demonstra violentos sentimentos na crianças e de suas angústias de ser submetido a uma influência, sabendo que exatamente a mesma coisa se produz na situação psicanalítica, surge inconcebível que o que se produz na reciprocidade da troca possa ser um cenário imaginado pelo acompanhante de modo inconsciente” (61). Ele conclui que o método de escrita assistida não deve ser idealizado enquanto terapêutico, ele não constatou de melhora significativa dos sujeitos concernidos, por outro lado ela lhe parece proporcionar uma preciosa abertura sobre a psicodinâmica do autismo precoce. Ele considera que isto revela “componentes conflituais arcaicos e primários – bastante semelhante aliás a estes de outras patologias psicóticas – e reforça assim as idéias que a psicanálise elaborou sobre as psicoses” (62).

É exato que estes documentos clínicos vem solidificar a clínica psicanalítica das psicoses mas afirmando isto Stork passa subrepticiamente sob silêncio que elas vêm desmentir [infirmar] as abordagens psicanalíticas anteriores do autismo. Isto não escapa a B. Golse e S. Lebovici que, em 1996, comentando o trabalho de Stork e o livro de Sellin, contatam com razão que se tudo isto de ser levado à sério “todas as nossas modelizações do autismo infantil precoce devem ser recolocadas em questão”. Acrescentam que “as posições cognitivistas devem igualmente ser revisitadas, porque o sofrimento que emana do texto [de Sellin] impede então reduzir o autismo a um simples déficit (ou a um simples handicap) e sustenta fortemente em favor de sua função defensiva” (63).

A riqueza da vida interior dos autistas, afirmadas desde 1944 por Asperger, se revela não concernir só aos autistas de alto rendimento. A mutação radical começada na apreensão do autismo desde os anos 70 se amplifica nos anos 90 em seguimento à publicação de numerosos testemunhos novos. Após a leitura de Sellin, observam Glose e Lebovici, “as discussões sobre o autismo infantil precoce não serão sem duvida jamais o que eram”; constatação totalmente pertinente relatada nos livros de Grandin e Williams concernente ao estudo do “espectro” do autismo.

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Convém na minha opinião levar à sério a clínica de Asperger quando ele constata que existe uma unidade do tipo clínico que ele extrai em razão da constância de traços “muito reconhecíveis” a partir da idade de dois anos, e que “perduram toda a vida”. Os sintomas, sublinha ele, “não mostram nada de evolutivo, permanecem estáveis toda a vida” mesmo quando os sujeitos alcançam uma melhor adaptação ao ambiente e uma melhor inserção social. “O essencial, afirma ele, permanece invariável” (64).

Resta saber em que consiste este essencial que persiste além da diversidade clínica. Buscar compreendê-lo faz apelo a uma clínica estrutural. No meu conhecimento, a partir do fim dos anos 90, algumas raras pesquisas psicanalíticas são produzidas nesta via.

As elaborações de R. R Lefort sobre o autismo infantil precoce são antigas. Elas se fundam sobre o tratamento da cura de Marie-Françoise, criança autista com a idade de 30 meses quando Rosine Lefort a encontra no início dos anos 1950 (65). As bofetadas que Marie-Françoise lhe desfere no momento da primeira sessão testemunham que para esta criança “o mundo está a destruir ou destruído” (66), o que leva os Lefort a apreender a estrutura do autismo como dominado por uma relação destrutiva diante do Outro. O Outro do autista seria um Outro real, sem buraco, tornando toda relação transferencial impossível. “Há, afirmam, uma vontade de gozo que se endereça ao corpo real do Outro sobre o modo da via sadiana: visa à divisão do Outro e não sua completude como na psicose” (67). Além disso não teria nem S1, nem objeto a: nada de balbucio, observam em 1997, e portanto nada de gozo do balbucio. Mas o autista é sensível ao S2. Contudo na ausência deste S1, o S2 não pode fazer representação do sujeito”. Logo, falta a alienação significante e o objeto pulsional separável, a questão do duplo evidencia-se fundamental na estrutura autística”. “A divisão do sujeito se faz no real do duplo, no real do mesmo” (68). Duas noções maiores por conseguinte se destacam: a pulsão de destruição e o primado do duplo.

A partir de 1996, R. e R. Lefort levam em contam a nova clínica do autismo. Eles constatam que existe “graus no autismo” e se orientam na direção do reconhecimento de um autismo adulto “com a noção de personalidades autísticas, onde as suplências não faltam e a conservação, senão a exacerbação da inteligência:. Para apreender o que há de constante no autismo, eles extrapolam um modelo saído do autismo infantil precoce, extraído do tratamento de uma criança mútica [mutique] com idade de pouco mais dois anos. Logo dois traços lhe se evidenciaram exigíveis para cernir a estrutura autística: “o sujeito é submetido à alternância real entre pulsão de vida e pulsão de morte, o que o liga intimamente à questão de seu duplo, onde o real o disputa ao imaginário” (69).

Predominância do duplo e a pulsão de destruição constituem na minha opinião noções demasiadamente amplas para compreender a estrutura do autismo que induzem logicamente a incluir um paranóico verdadeiro, tal como Hitler, no campo do autismo, isto diante o que R. e R. Lefort não recuam. Além do mais, esta estrutura, de ampla dispersão, torna-se uma noção agarra-tudo [attrape-tout]: em 2001, num trabalho intitulado “O autismo e o gênio: Blaise Pascal”, onde se encontram pela primeira vez mencionados Grandin, Wlliams e Sellin, R. e R. Lefort consideram que a abordagem deles permitiu “ampliar consideravelmente o problema do autismo”, de maneira que a abordagem deles os levou “na singularidade excepcional de Gênio universalmente reconhecidos”: Edgar Allan Poe, Lautréamont e Blaise Pascal. Anunciam um trabalho sobre a estrutura autística no qual serão estudados Proust, Hitler e o Presidente Wilson (70).

A nova clínica espectral pode atribuir a uma extensão semelhante da noção no campo das abordagens cognitivas se apoiando sobre alguns critérios comportamentais, o que leva Grandin a reaproximar também o autismo e gênio, de maneira que ela discerne

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traços autísticos em Albert Einstein, Ludwig Wittgenstein e Vincent Van Gogh, que todos os três foram crianças bastante solitárias. Da mesma maneira, no que concerne Bill Gates, que, tinha aptidões notáveis, capaz de recitar longas passagens da Bíblia sem se enganar, e que, adulto, se balança durante as negociações e nos aviões, apresentando além disto problemas do contato ocular e de medíocres competências sociais (71).

Estendendo assim o campo do autismo, Grandin e os Lefort, a partir de pressupostos diferentes chegaram a concepções que os isolam [misturam] das descobertas de Kanner e de Asperger. Estes convergem para cernir uma síndrome caracterizada por atitudes de retirada em relação aos outros por uma dificuldade em negociar as mudanças do ambiente, por um encanto excepcional pelos objetos, por distúrbios de linguagem persistentes e por uma aparição precoce destes fenômenos (antes da idade de 24 a 36 meses). Certamente Asperger evoca níveis de personalidade muito diferentes entre os psicopatas autísticos, no primeiro lugar dos quais ele coloca “o gênio”, mas ele modera a expressão “ou isto que é quase genial em sua originalidade” (72). Sem dúvida pensa em um matemático extremamente dotado ou num outro sujeito que se tornou professor de astronomia, é duvidoso que o salto do autista gênio ao homem gênio tenha sido conforme seu pensamento. Ainda que seja, no meu conhecimento, nenhum dos personagens célebres citados acima, tanto por Grandin quanto pelos Lefort, não apresentaram precocemente o conjunto de características maiores da síndrome autística.

De onde a proposta de uma outra abordagem psicanalítica da estrutura do autismo, buscando permanecer o mais perto da nova clínica espectral. “Do autismo de Kanner à síndrome de Asperger” aparece em 1998 na Evolução Psiquiátrica [L’Evolution Psychiatrique] (73). Dois elementos maiores são destacados para cernir a especificidade da psicose autística: de um parte, a carência do S1, carência de identificação primordial, no princípio de um distúrbio persistente da enunciação; de outra parte, uma defesa original, tomando apoio sobre um objeto, permitindo localizar o gozo sobre uma borda protetora. Se precisa-se que o objeto que está no princípio da defesa autista pode tomar diversas formas, do objeto autístico de Tustin até à máquina de serrer de Grandin, passando pelos companheiros imaginários, dos próximos ou animais, mas que o ponto comum deles reside na sua dimensão do duplo; se constata que minha abordagem converge com as dos Lefort sobre pontos essenciais. Ela diverge sobre a importância que convém conceder a estes e sobretudo sobre a natureza da transferência autística. Sua impossibilidade em razão de um primado da pulsão de destruição não saberia na minha opinião pretender constituir uma característica da estrutura autística. Donna Williams cita um tratamento com uma psiquiatra, na qual ela busca lhe agradar, que funciona para ela “como um espelho”, e que se finaliza por uma amizade durável e persistente além da terapia (74). Por outro lado, numerosos tratamentos de crianças autistas mostraram que a transferência pode se estabelecer duravelmente sem cair na destrutividade, é suficiente evocar aí dois dos mais conhecidos, este de Dick e Dibs. Se a clínica do autismo leva em conta o que os anglo-saxãos nomeiam de espectro, se não permanece confinada aos estudos sobre o autismo infantil precoce, parece possível avançar que o duplo do autista lhe permite às vezes construir um Outro de suplência, constituído de signos e não de significantes, por intermédio do qual, no extremo do contínuo autístico, este que atingem Williams e Grandin, alcançam a uma difícil compensação da carência de identificação primordial e dos distúrbios de enunciação (75). O autista aparece nesta perspectiva como um sujeito para quem a alienação estruturante de estar na linguagem constitui a dificuldade maior; mas que

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dispõe de capacidades para remediar tomando apoio sobre um duplo do qual ele sabe às vezes tirar múltiplas possibilidades.

O autismo não é a psicose precocíssima nem a mais grave das psicoses, mas uma forma original sempre associada às dificuldades cognitivas e às dificuldades de expressão dos afetos, cuja a especificidade e os modos os mais apropriados de tratamento estão ainda a precisar. Estabelecer que a teoria psicanalítica se revela heurística neste domínio passa agora pela liberação das constantes que determinam uma clínica ampliada do autismo, da qual os marcos não se estendem sem dúvida até o autêntico gênio, mas que se revelarão talvez levar a discernir as formas discretas da síndrome de Asperger hoje desconhecidas.

1 Cité par Bercherie P. La clinique psychiatrique de l’enfant. Etude historique. Ornicar ? Bulletin périodique du champ freudien, 1983, 26-27, p. 102.2 Seguin E. Traitement moral des idiots. Paris. J. Baillière. 1846, p. 93.3 Bercherie P. , o.c., p. 113.4 Down J.L. On Some Mental affections of Childhood and Youth. London. Churchill. 1887.5 Bercherie, o.c., p. 106.6 Brill A. A. Psychotic children : treatment and prophylaxis. American Journal of Psychiatry, 1926, 82, pp. 357-364.7 Potter H. W. Schizophrenia in children, American Journal of Psychiatry, 1933, 12, part 2, pp. 1253-1269.8 Bender L., Bradley C., Bruch H., Cottington F., Despert J-L, Rapoport J., Schizophrenia in Childhood a symposium, Nervous Child, 1942, 1, 2-3.9 Kanner L. Autistic disturbances of affective contact. Nervous child, 1942-1943, 3, 2, pp. 217-230. Traduction française, in Berquez G. L’autisme infantile. Introduction à une clinique relationnelle selon Kanner. PUF. Paris. 1983, p. 253.10 Kanner L. Eisenberg L. Notes on the follow-up studies of autistic children, Psychopathology of Childhood, 1955, pp. 227-239.11 Kanner L. The conception of wholes and parts in early infantile autism, American Journal of Psychiatry, 1951, 108, pp. 23-26, in Berquez G., o. c., p. 71.13 Asperger H. "Die autistischen Psychopathen im Kindesalter" Archiv für Psychiatrie und Nervenkrankheiten, 1944, 117, pp. 76-136. Traduction française : Les psychopathes autistiques pendant l’enfance. Synthélabo. Le Plessis-Robinson. 1998, p. 119.14 Van Krevelen D.A. Early infantile autism and autistic psychopathy. Journal of autism and childhood schizophrenia. 1971, 1, pp. 82-86.15 Wolff S. Chick J. Schizoid personality in childhood : a controlled follow-up study. Psychological Medecine, 1980, 10, pp. 85-100.16 Malher M. Psychose infantile.[1968]. Payot. Paris. 1973, p. 70. 17 Kanner L. Autistic disturbances of affective contact, in Berquez G. L’autisme infantile, o.c., p. 257.18 Bettelheim B. La forteresse vide. L’autisme infantile et la naissance du Soi. [1967]. Gallimard. Paris. 1969, p. 94.19 Ibid., p. 500.20 Ibid., p. 125.21 Meltzer D. et coll. Explorations dans le monde de l’autisme [1975] Payot. Paris. 1980., p. 33.

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22 Tustin écrit en 1990 que Dick était « de toute évidence un enfant que nous reconnaîtrions aujourd’hui comme autiste » [Tustin F. Autisme et protection. [1990]. Seuil. Paris. 1992, p. 28]23 Klein M. L’importance de la formation du symbole dans le développement du moi [1930], in Essais de psychanalyse. Payot. Paris. 1976, p. 272.24 La cure fut interrompue par la guerre entre 1941 et 1944. En 1946, Dick fut envoyé à une autre analyste, Beryl Stanford, chez laquelle il resta trois ans. 25 Grosskurth P. Mélanie Klein son monde et son œuvre. PUF. Paris. 1989, p. 247.26 Tustin F. Autisme et protection.[1990]. Seuil. Paris. 1992, p. 13.27 Ibid., p. 258.28 Tustin F. Les états autistiques chez l’enfant.[1981]. Seuil. Paris. 1986, pp. 14-15. 29 Tustin F. Autisme et protection, o. c., p. 82.30 Eisenberg L. The autistic child in adolescence. American Journal of Psychiatry, 1956, 112, 607.31 Maleval J-C. DSM, un manuel pour quelle science ?, in Raison présente. Nouvelles éditions rationalistes. 2003, 144, pp. 37-55.32 Kanner L. Etude de l'évolution de onze enfants autistes initialement rapportée en 1943 [1971], in Psychiatrie de l'enfant, 1995, XXXVIII, 2, pp. 421-461.33 Rimland B. Infantil Autism. Londres. Methuen. 1964, p. 134 Bettelheim B. La forteresse vide, o.c., p. 507.35 Axline V. Dibs. Développement de la personnalité grâce à la thérapie par le jeu [1964]. Flammarion. Paris.1967, p. 17.36 Treffert D. A. Extraordinary people. London. Black Swan books. 1990, p. 32.37 Tustin F. Autisme et psychose de l’enfant.[1972]. Paris. Seuil. 1977, p. 132.38 Wing L. Approche épidémiologique des caractéristiques sociales comportementales et cognitives, in Rutter M. Schopler E. L’autisme. Une réévaluation du concept et du traitement. [1978] PUF. Paris. 1991, p. 41.39 Howlin P. L’évaluation du comportement social, in Rutter M. Schopler E. L’autisme, o.c., p. 75.40 Rutter M. Diagnostic et définition, in Rutter M. Schopler E. L’autisme, o.c., p. 9.41 Lansing M.D. Schopler E. L’éducation individualisée : une école publique pilote, in Rutter M. Schopler E. L’autisme, o.c., pp. 542-559.42 Tustin F. Autisme et protection, o.c., p. 39.43 Rutter M. Résultats thérapeutiques et pronostics, in Rutter M. Schopler E. L’autisme, o.c., p. 623. 44 Wing L. Asperger’s syndrome : a clinical account. Psychological Medecine, 1981, 11, 115-129.45 Wing L. The relationship between Asperger’s syndrome and Kanner’s autism, in Frith U. Autism and Asperger syndrome. Cambrridge University Press. 1991., pp. 102-103.46 Baron-Cohen S. , Leslie A.M. et Frith U. Does the autistic child have a « theory of mind » ? Cognition, 1985, 21, pp. 103-128.47 Frith U. L’énigme de l’autisme. [1989]. O. Jacob. Paris. 1996, pp. 262-263.48 Vidal J-M. « Theory of mind » ou « theory of love » ? Un éclairage à partir des symptômes autistiques, in Deleau M. Approches comparatives en psychologie du développement. Paris. PUF, 1994, pp. 143-151.49 Rutter M. The development of infantile autism. Psychological Medicine, 1974, 4, pp. 147-163, cité in Rutter M. Schopler E. L’autisme, o.c., p. 102.

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50 Park C. R. The Siege. Harmondsworth. Penguin. 1972.51 Copeland J. For the Love of Ann. London. Arrow. 1973.52 Grandin T. (avec la collaboration de M. Scariano). Ma vie d’autiste. [1986] O. Jacob. Paris, p. 30.53 Barron J. and S. Moi, l’enfant autiste. [1992] Plon. Paris. 1993.54 Sellin B. Une âme prisonnière. Robert Laffont. Paris. 1994.55 Ibid., p. 202.56 Ibid., p. 125.57 Ibid., p. 64.58 Bicklen D. Questions and answers about facilitated communications, in Facilitated commnuication Digest, 1993, 2 (1).59 Sellin B. La solitude du déserteur. [1995]. R. Laffont. Paris. 1998, p. 41.60 Grandin T. Ma vie d’autiste, o.c., p. 188.61 Williams D. Si on me touche, je n’existe plus. Robert Laffont. Paris. 1992, p. 299.62 Stork J. Remarques d’ordre psychanalytique sur les résultats de l’expérience « d’écriture assistée », in Psychiatrie de l’enfant, 1996, XXXIX, 2, p. 471.63 Ibid., p. 483.64 Ibid., p. 492.65 Golse B. Lebovici S. Quelques réflexions à propos de l’article de Jochen Stork et aussi, à propos d’un livre et d’un reportage télévisé sur la communication facilitée, in Psychiatrie de l’enfant, 1996, XXXIX, 494-495.66 Asperger H. Les psychopathes autistiques pendant l'enfance [1944]. Synthélabo. Le Plessis-Robinson. 1998, p. 106 et p. 138.67 Lefort R. et R. Naissance de l’Autre. Seuil. Paris. 1980.68 Lefort R. et R. L’accès de l’enfant à la parole condition du lien social, in Bulletin du Groupe petite enfance, 1997, 10, p. 21.69 Entretien : François Ansermet et Rosine et Robert Lefort sur l’autisme. Xxème journée du CEREDA – 11 janvier 1997, in Bulletin du Groupe petite enfance, 1997, p. 177.70 Lefort R. et R. L’autisme, spécificité, in Le symptôme-charlatan. Seuil. Paris. 1998, p. 316.71 Lefort R. et R. L’accès de l’enfant à la parole condition du lien social, in Bulletin du Groupe petite enfance, 1997, 10, p. 21.73 Lefort R. et R. L’autisme et le génie : Blaise Pascal, in Liminaire des XXXémes journées de l’Ecole de la Cause Freudienne. EURL Huysmans, 2001, pp. 55-79.74 Grandin T. Penser en images. O. Jacob. Paris. 1997, p. 215.75 Asperger H. Les psychopathes autistiques pendant l’enfance, o.c., p. 116.76 Maleval J-C. De l’autisme de Kanner au syndrome d’Asperger. L’Evolution psychiatrique, 1998, 3, 63, pp. 293-309. 77 Williams D. Si on me touche, je n’existe plus, o. c., p. 192.78 Maleval J-C. Une sorte d’hypertrophie compensatoire ou la construction autistique d’un Autre de suppléance, in Du changement dans l’autisme ? Actes de la journée du 27 mars 1999 organisée par l’ACF/VLB Rennes.

ORNICAR?digital Revue électronique multilingue de psychanalyse N°240 - 16 mai - 2003

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