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2 RENATO BRAZ MEHANNA KHAMIS DA PROPORCIONALIDADE À RAZOABILIDADE: ENTRE A TÉCNICA E O PRINCÍPIO DOUTORADO EM DIREITO PUC-SP SÃO PAULO 2013

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RENATO BRAZ MEHANNA KHAMIS

DA PROPORCIONALIDADE À RAZOABILIDADE: ENTRE A TÉCNICA E O PRINCÍPIO

DOUTORADO EM DIREITO

PUC-SP

SÃO PAULO

2013

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RENATO BRAZ MEHANNA KHAMIS

DA PROPORCIONALIDADE À RAZOABILIDADE: ENTRE A TÉCNICA E O PRINCÍPIO

Tese apresentada à banca examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção do

título de Doutor em Direito do Estado – Direito

Constitucional sob a orientação do Prof. Dr.

Roberto Baptista Dias da Silva.

PUC-SP

SÃO PAULO

2013

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Banca Examinadora

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5

RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade verificar a natureza jurídica

da proporcionalidade e da razoabilidade, visando esclarecer se são normas

jurídicas ou não e, em caso afirmativo, de que espécies. Ademais, ao

verificarmos suas naturezas jurídicas, teremos a possibilidade de esclarecer se

trata de uma mesma coisa com nomes distintos, ou se de fato estamos diante

de institutos jurídicos distintos.

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ABSTRACT

The present study aims to verify the legal status of proportionality

and reasonableness, aiming to clarify whether they are legal rules or not and, if

so, what species. Moreover, when we check their legal natures, we will be able

to clarify if they are the same thing with different names, or if indeed we are

facing separate legal institutes.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 09 1. A PROPORCIONALIDADE NA DOUTRINA ............................................... 11

1.1. Luís Roberto Barroso ................................................................................ 11

1.2. Gilmar Ferreira Mendes ............................................................................ 16

1.3. Paulo Bonavides ....................................................................................... 18

1.4. Jorge Miranda ........................................................................................... 19

1.5. José Joaquim Gomes Canotilho ............................................................... 22

1.6. Willis Santiago Guerra Filho ..................................................................... 26

1.7. Robert Alexy ............................................................................................. 30

1.8. Virgílio Afonso da Silva ............................................................................. 34

1.9. Humberto Ávila ......................................................................................... 39

1.10. Eros Roberto Grau .................................................................................. 52

1.11. Marcelo Neves ........................................................................................ 58

2. CIÊNCIA E TÉCNICA JURÍDICA ................................................................ 65

2.1. O paradigma dominante da ciência .......................................................... 65

2.2. O paradigma emergente da ciência .......................................................... 69

2.3. A ciência e a técnica ................................................................................. 75

2.4. A ciência e a técnica jurídica .................................................................... 76

3. A TÉCNICA DA PROPORCIONALIDADE .................................................. 90

3.1. O problema da proporcionalidade como princípio .................................... 90

3.1.1. A aplicação dos princípios enquanto normas jurídicas ............... 90

3.1.2. A natureza não-normativa dos princípios .................................... 94

3.2. O problema da proporcionalidade como regra ....................................... 101

3.3. O problema da proporcionalidade como “norma diversa” ....................... 106

3.3.1. A proporcionalidade como postulado normativo aplicativo ....... 106

3.3.2. A proporcionalidade como híbrido ............................................. 116

3.4. A técnica da proporcionalidade ............................................................... 123

3.4.1. A proporcionalidade como técnica de aplicação do direito ....... 123

3.4.2. A proporcionalidade como técnica de argumentação racional .. 129

3.4.3. O uso equivocado da proporcionalidade como topos ............... 136

3.4.4. O problema da proporcionalidade como fundamento da

inconstitucionalidade ........................................................................... 138

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8

3.5. Adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito .......... 141 4. O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE ........................................................ 143

4.1. A razoabilidade como imperativo de razão prática ................................. 143

4.2. A natureza principiológica da razoabilidade ........................................... 148

4.3. Razoabilidade não é sinônimo de equidade ........................................... 151

4.4. A idéia de justiça transcende a noção de proporção .............................. 154

CONCLUSÃO ................................................................................................ 160

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 162

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INTRODUÇÃO

Um dos temas mais discutidos atualmente no direito constitucional

contemporâneo diz respeito ao chamado princípio da proporcionalidade. O

problema se inicia já na discussão sobre a relação eventualmente existente

entre ele e o princípio da razoabilidade. Isto porque para uns ambos são a

mesma coisa, apenas com nome e origem diferente, mas para outros se trata

de duas coisas distintas.

Ainda mais polêmica é a discussão a respeito da sua natureza

jurídica. Enquanto para a maioria a proporcionalidade é um princípio, existem

aqueles que entendem se tratar de uma regra, enquanto outros acreditam ser

um postulado normativo aplicativo, ou mesmo um híbrido. Em todos estes

casos é atribuído status normativo à proporcionalidade.

No que toca à forma de aplicação da proporcionalidade,

encontramos decisões judiciais que a utilizam como fundamento para a

declaração de inconstitucionalidade, bem como decisões que a utilizam como

topos, e ainda julgados aonde ela é aplicada em três etapas – adequação,

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Também a natureza

jurídicas destas etapas se mostra problemática.

O fato é que a natureza jurídica da proporcionalidade acarreta uma

série de decorrências de ordem metodológica, as quais precisam adequar-se e

desenvolver-se no âmbito de cada teoria do direito adotada. Portanto, a fim de

manter a coerência da atividade científica do direito, urge solucionar esta

questão.

Para atingir esta finalidade, começaremos nossa investigação pelo

estudo da proporcionalidade dentro das teorias dos autores mais influentes no

Brasil quando o assunto é este tema.

Após verificarmos as mencionadas teorias, no que dizem respeito à

proporcionalidade, passaremos à análise do paradigma científico, tendo como

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10

foco principal o enquadramento da ciência do direito. Neste ponto,

estudaremos a relação entre a ciência do direito e a técnica jurídica.

As etapas até aqui apresentadas têm o condão de estruturar as

bases, isto é, de estabelecer as premissas a partir das quais começaremos a

construir nossa análise sobre o tema proposto. Por isto, depois de feitas estas

considerações, passaremos à analise crítica da proporcionalidade e da

razoabilidade.

Primeiramente vamos adentrar as teorias dos autores apresentados

no primeiro capítulo para, com base nas premissas metodológicas deles

próprios, analisar o enquadramento da proporcionalidade. Neste ponto vamos

ver se se sustentam os argumentos para enquadrar a proporcionalidade como

princípio, regra, postulado normativo aplicativo e híbrido.

Em seguida, caso constatemos sua impossibilidade, vamos

investigar a natureza jurídica da proporcionalidade, de forma a estabelecer o

seu enquadramento, bem como seu âmbito de atuação. Neste ponto,

estudaremos as três etapas da proporcionalidade, quais sejam, adequação,

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito

Feito isso, passaremos à apreciação da razoabilidade, verificando

sua natureza jurídica para, então, definirmos se proporcionalidade e

razoabilidade são a mesma coisa.

Ao final de tudo isso, pretendemos identificar de forma clara as

naturezas jurídicas da proporcionalidade e da razoabilidade, a forma como elas

atuam dentro da ciência do direito, bem como o seu âmbito de atuação,

diferenciando-as, se for o caso.

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1. A PROPORCIONALIDADE NA DOUTRINA

Neste capítulo inicial iremos analisar o que dizem os principais

autores nacionais e os doutrinadores mais difundidos no Brasil a respeito da

proporcionalidade.1 Buscaremos identificar, segundo a opinião de cada um

deles, qual sua natureza jurídica, se possui força normativa, qual a sua forma

de aplicação, dentre outros pontos de extrema relevância para melhor

compreendermos o instituto.

Ressaltamos, contudo, que a proposta deste primeiro capítulo se

restringe à apresentação das posições de cada autor, sendo que a análise

crítica sobre os respectivos posicionamentos será realizada no terceiro

capítulo, a partir das bases estabelecidas nos capítulos 1 e 2.

1.1. Luís Roberto Barroso

No que toca à posição de Luís Roberto Barroso a respeito da

proporcionalidade, cumpre atentar que o autor parte de uma premissa teórica

específica, qual seja, o pós-positivismo, a partir da qual constrói o instituto

jurídico mencionado.

Sinteticamente,2 Luís Roberto Barroso afirma que o pós-positivismo

é o marco filosófico do novo direito constitucional.3 Segundo o autor, o pós-

positivismo seria o meio termo entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico.

Conforme afirma, o primeiro mostrou-se insuficiente por ser considerado

metafísico e anti-científico, em que pese se pautasse em princípios de justiça

universais. De outro lado, o último primou por atender o paradigma científico

1 É importante ressaltar que a escolha dos autores utilizou como critério a amplitude da difusão de suas idéias no meio jurídico brasileiro – daí o porquê da escolha destes autores, e não outros –, assim como a diferença entre as posições por eles adotadas – a fim de evitar posicionamentos repetidos. 2 Mais a frente, no capítulo III, teremos a oportunidade de analisar mais detidamente o pós-positivismo, nos bastando, por ora, esta abordagem mais sintética. 3 Acreditamos que o autor comete uma impropriedade técnica nesta afirmação. Não se trata de marco filosófico, mas sim de marco teórico, na medida em que ele propõe a superação do modelo teórico do positivismo jurídico.

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12

dominante, mas como consequência se ateve exclusivamente à forma legal e

absteve-se de discussões como legitimidade e justiça.4

De acordo com Luís Roberto Barroso, o pós-positivismo encontra

suas raízes no pós-guerra. Isto porque ao final da segunda guerra mundial

constatou-se que a separação entre ética e direito levou à institucionalização

da barbárie legalmente amparada pelo aparelhamento do Estado de Direito.

Contudo, nesse contexto de revaloração do direito, dois princípios

surgem como os pilares modernos do pós-positivismo. São eles a dignidade da

pessoa humana e a razoabilidade5:

O novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo é, em parte, produto desse reencontro entre a ciência jurídica e a filosofia do Direito. Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando do plano ético para o mundo jurídico, os valores morais compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução constante dos seus significados. Outros, conquanto clássicos, sofrearam releituras e revelaram novas sutilezas, como a democracia, a República e a separação de Poderes. Houve, ainda, princípios cujas potencialidades só foram desenvolvidas mais recentemente, como o da dignidade da pessoa humana e o da razoabilidade.6

Como se percebe, Luís Roberto Barroso atribui à razoabilidade a

natureza jurídica de princípio. Para ele a “distinção qualitativa entre regra e

princípio é um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável

para a superação do positivismo legalista (...)”.7

4 A afirmação de que o positivismo jurídico absteve-se da discussão da justiça nos parece equivocada. Hans Kelsen, maior expoente desta corrente teórica, discutiu a questão da justiça em suas obras (KELSEN, Hans. O problema da justiça. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003). Seria mais correto dizer que o positivismo priorizou a forma legal para atender ao paradigma científico dominante deixando, consequentemente, a questão da justiça em um plano secundário. 5 Como se verá logo abaixo, para o autor os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade são fungíveis, possuindo o mesmo conteúdo jurídico e forma de aplicação. 6 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 250. 7 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 328.

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Conforme pontua, “regras são proposições normativas aplicáveis

sob a forma de tudo ou nada (all or nothing). Se os fatos nela previstos

ocorrerem, a regra deve incidir, de modo direto e automático, produzindo seus

efeitos”.8

Já com relação aos princípios, afirma o seguinte:

Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada direção a seguir. (...) A colisão de princípios, portanto, não só é possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso, a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância.9

É dentro dessa concepção de que normas jurídicas se dividem em

duas espécies, regras e princípios10, que o autor atribui à proporcionalidade a

natureza jurídica de princípio, impingindo-lhe, por consequência, a mesma

forma de aplicação das normas desta espécie.

Todavia, há que se notar que em sua obra Luís Roberto Barroso se

refere à razoabilidade e à proporcionalidade como sinônimos. Isto se deve,

segundo o autor, ao fato de tratar-se do mesmo princípio, mas com origem e

nomenclatura diferentes.

8 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003., p. 328. 9 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003., p. 329. 10 Importante anotar que a classificação das normas jurídicas em regras e princípios adotada pelo autor, bem como seus critérios, se baseia nas lições de Ronald Dworkin. Sobre as regras este último afirma o seguinte: “A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39). Já no que toca aos princípios assim se manifesta: “Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm - a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 42).

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14

Conforme pontua, o princípio da razoabilidade tem sua matriz no

direito anglo-saxão, remontando à cláusula law of the land inscrita na Magna

Charta Libertatum. Contudo, é nos Estados Unidos da América que a

razoabilidade surge como um princípio constitucional que serve como

parâmetro para o controle de constitucionalidade.

Modernamente, segundo a tradição jurídica norte-americana, o

princípio da razoabilidade encontra seu fundamento jurídico no próprio texto

constitucional, mais especificamente no princípio do devido processo legal.

Entretanto, para chegar neste ponto, o referido princípio passou por duas fazes

distintas, como explica Luís Roberto Barroso:

Na primeira fase, a cláusula teve caráter puramente processual (procedural due process), abrigando garantias voltadas, de início, para o processo penal e que incluíam os direitos a citação, ampla defesa, contraditório e recursos. Na segunda fase, o devido processo legal passou a ter um alcance substantivo (substantive due process), por via do qual o Judiciário passou a desempenhar determinados controles de mérito sobre o exercício da discricionariedade pelo legislador, tornando-se importante instrumento de defesa dos direitos fundamentais – especialmente da liberdade e da propriedade – em face do poder político. O fundamento de tais controles assentava-se na verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como na aferição da legitimidade dos fins. Por intermédio da cláusula do devido processo legal passou-se a proceder ao exame de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality) das leis e dos atos normativos em geral no direito norte-americano.11

Já o princípio da proporcionalidade, conforme a lição de Luís

Roberto Barroso, surge na Europa continental, mais especificamente na

Alemanha, aonde encontra seu fundamento jurídico-constitucional no princípio

do Estado de direito. Inicialmente o referido princípio desenvolveu-se no âmbito

do direito administrativo como limitador da discricionariedade administrativa.

Apenas após o advento da Lei Fundamental de 1949 é que este quadro se

11 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 256.

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15

alterou e que, consequentemente, o princípio em tela passou a fundamentar o

controle judicial da atuação do parlamento.

Como se vê, segundo Luís Roberto Barroso os princípios da

razoabilidade e da proporcionalidade possuem o mesmo conteúdo jurídico. Daí

o porquê do autor afirmar o que segue:

(...) a doutrina e a jurisprudência, assim na Europa continental como no Brasil, costumam fazer referência, igualmente, ao princípio da proporcionalidade, conceito que em linhas gerais mantém uma relação de fungibilidade com o princípio da razoabilidade.12

Na esteira da fungibilidade entre razoabilidade e proporcionalidade

apontada por Luís Roberto Barroso, ele incorpora ao princípio da razoabilidade

os três subprincípios desenvolvidos pela doutrina alemã para dar mais

substância à proporcionalidade, quais sejam, adequação, necessidade e

proporcionalidade em sentido estrito.13

O primeiro subprincípio (adequação) visa aferir a adequação entre o

meio empregado e o fim perseguido, isto é, busca verificar a idoneidade da

medida para produzir o resultado almejado.

Já o segundo subprincípio (necessidade ou exigibilidade da medida)

tem como escopo a verificação da existência de meios menos gravosos para a

consecução dos fins visados. Neste caso, conforme leciona o autor, “a

razoabilidade se expressa através do princípio da proibição do excesso”.14

12 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 224. 13 Em obras mais antigas o autor afirmava que a aferição da razoabilidade deveria ocorrer em dois planos: razoabilidade interna e razoabilidade externa. A primeira seria a aferição realizada dentro da própria lei, isto é, a análise da existência de uma relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins. Já a segunda buscaria aferir se a lei é adequada aos meios e fins admitidos e preconizados pelo Texto Constitucional (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 226). 14 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 260.

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16

Finamente, o terceiro subprincípio (proporcionalidade em sentido

estrito) consiste na ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido pela

medida, com o intuito de constatar se a medida é legítima.

1.2. Gilmar Ferreira Mendes

Uma das vozes mais ativas no Supremo Tribunal Federal no tocante

ao princípio da proporcionalidade é a do Ministro Gilmar Ferreira Mendes. É

muito comum encontrarmos em seus votos menções ao referido princípio15,

tendo ele chegado, inclusive, a debater de forma mais profunda com outros

ministros a respeito do seu cabimento e da sua forma de aplicação.16

Antes de mais nada é preciso frisar que o autor em comento atribui à

proporcionalidade a natureza jurídica de princípio, sendo que em momento

nenhum cogita qualquer outro enquadramento. Isto porque adota a posição

segundo a qual as normas constitucionais se dividem em regras e princípios,

pois entende que ambas as espécies se valem de categorias deontológicas

comuns à norma, isto é, o mandamento (determina-se algo), a permissão

(faculta-se algo) e a proibição (veda-se algo).

Admite também o autor que as regras se aplicam de forma disjuntiva

através da sistemática tudo ou nada, enquanto os princípios possuem

dimensão de peso, podendo ser aplicados em maior ou menor grau.

Pois bem, no que tange ao fundamento legal do princípio da

proporcionalidade, Gilmar Ferreira Mendes faz uma extensa pesquisa

analisando os fundamentos que são os mais frequentemente utilizados pela

15 Vide nesse sentido: RE 414426, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2011, DJe-194 DIVULG 07-10-2011 PUBLIC 10-10-2011 EMENT VOL-02604-01 PP-00076; HC 76060, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 31/03/1998, DJ 15-05-1998 PP-00044 EMENT VOL-01910-01 PP-00130. 16 Vide: ADI 855-2, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2008, DJe-059 DIVULG 26-03-2009 PUBLIC 27-03-2009 EMENT VOL-02354-01 PP-00108.

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17

doutrina.17 Todavia, apresenta também o posicionamento da jurisprudência da

Corte Constitucional alemã sobre o fundamento da proporcionalidade:

A jurisprudência da Corte Constitucional alemã parece aceitar que o fundamento do princípio da proporcionalidade reside tanto no âmbito dos direitos fundamentais quanto no contexto do Estado de Direito. Todavia, afigura-se inegável que, não raras vezes, a aplicação do princípio da proporcionalidade decorre de uma compreensão ampla e geral da ordem jurídica como um todo.18

Após fazer referência ao Direito alemão, o autor faz uma análise de

diversos julgados realizados ao longo da história do Supremo Tribunal

Federal 19 e conclui que o princípio da proporcionalidade sempre esteve

presente no Direito brasileiro. Contudo, segundo pontua, entre nós ele se

situava – até a Constituição de 1988 – no âmbito dos direitos fundamentais.

Depois de 1988 o princípio da proporcionalidade passou a ser concebido como

postulado constitucional autônomo, tendo sua sede material no enunciado do

devido processo legal (artigo 5°, inciso LIV da Constituição da República).

Também Gilmar Ferreira Mendes decompõe o princípio da

proporcionalidade em três outros subprincípios. O primeiro, adequação, “exige

que as medidas internas adotadas se mostrem aptas a atingir os objetivos

pretendidos”.20 Já o segundo, necessidade, “significa que nenhum meio menos

gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos

objetivos pretendidos”. 21 O terceiro, proporcionalidade em sentido estrito,

apresenta-se como “um juízo definitivo sobre (se) a proporcionalidade da

medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o

17 Proporcionalidade enquanto fundada nos direitos fundamentais; proporcionalidade como expressão do Estado de Direito; e proporcionalidade como postulado geral de direito. 18 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 250 19 Rp. 930, Rel. Min. Rodrigues Alckmin, DJ de 2-9-1977; HC 45.232, Rel. Min. Themístocles Cavalcanti, RTJ, 44/322 (327-328); RE 18.331, Rel. Min. Orozimbo Nonato, RF, 145/164 e s., 1953. 20 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.. p. 259. 21 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 259.

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18

significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo

legislador”.22

No tocante à posição de Gilmar Ferreira Mendes sobre o tema, urge

ressaltar que o autor enxerga a proporcionalidade como um princípio

multifacetário, isto é, ora ela se manifesta como proibição de excesso, ora

como proibição da proteção insuficiente. Na primeira hipótese busca coibir o

excesso de poder legislativo revelado pela contrariedade, incongruência e

irrazoabilidade ou inadequação entre os meios escolhidos e os fins almejados.

Já na segunda busca afastar a conduta estatal insuficiente para atingir um

determinado objetivo, haja vista que este deveria prover uma proteção

adequada e eficaz. Como afirma o autor – recorrendo às palavras de Schlink –

a proibição da proteção insuficiente, assim como ocorre com a proibição, "nada

mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta

como desproporcional em sentido estrito".23

1.3. Paulo Bonavides

No que se refere à proporcionalidade, torna-se imperioso apresentar

a posição de Paulo Bonavides. Isto porque o autor em questão é um dos

maiores entusiastas da proporcionalidade, chegando a afirmar que se trata

“daquilo que há de mais novo, abrangente e relevante em toda a teoria do

constitucionalismo contemporâneo”.24

É importante notar que o autor também adota a posição segundo a

qual as normas jurídicas se dividem em regras e princípios, sendo que os

últimos possuem dimensões distintas das primeiras. Isto porque, apoiado em

Trabucchi e Norberto Bobbio, o autor defende que os princípios possuem as

seguintes dimensões: fundamentadora, interpretativa, supletiva, integrativa,

22 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 259. 23 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 260. 24 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 434.

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diretiva e supletiva, as quais atuam como critérios inderrogáveis para a

interpretação e aplicação das normas jurídicas.

Nessa perspectiva, o autor atribui à proporcionalidade a natureza

jurídica de princípio, o qual, amparando os direitos fundamentais, atua no

problema da limitação do poder legítimo, devendo fornecer o critério para as

limitações das liberdades individuais. Para tanto, ele afirma que a doutrina

constatou a existência de três elementos ou subprincípios que compõem o

princípio da proporcionalidade: o primeiro é o da pertinência ou aptidão, que

deve dizer se determinada medida representa o meio adequado para se atingir

determinada finalidade; o segundo é o da necessidade – também chamado de

escolha do meio mais suave –, o qual verifica se a medida adotada não há de

exceder os limites indispensáveis à conservação do fim almejado; o terceiro é o

da proporcionalidade mesma, stricto sensu, aonde será feita a escolha do meio

que, no caso específico, leve mais em conta o conjunto de interesses em jogo.

O princípio da proporcionalidade, como se vê, também para Paulo

Bonavides é composto por três subprincípios. Ademais, ao princípio da

proporcionalidade é por ele atribuído o status de princípio constitucional dotado

de força normativa cogente:

Poder-se-á enfim dizer, a esta altura, que o princípio da proporcionalidade é hoje axioma do Direito Constitucional, corolário da constitucionalidade e cânone do Estado de direito, bem como regra que tolhe toda a ação ilimitada do poder do Estado no quadro de juridicidade de cada sistema legítimo de autoridade. Sendo, como é, princípio que embarga o próprio alargamento dos limites do Estado ao legislar sobre matéria que abrange direta ou indiretamente o exercício da liberdade e dos direitos fundamentais, mister se faz proclamar a força cogente de sua normatividade.25

Nisso consiste, pois, a posição de Paulo Bonavides a respeito da

proporcionalidade.

1.4. Jorge Miranda

25 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 436.

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A doutrina portuguesa não passou ao largo da questão envolvendo a

proporcionalidade. Até porque a Constituição da República Portuguesa de 1976

alçou expressamente a proporcionalidade ao patamar de princípio

constitucional. Neste sentido, tome-se como exemplo o artigo 18, item 2, o qual

estabelece que as restrições dos direitos, liberdades e garantias devem limitar-

se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses protegidos

pela Constituição:

Art. 18. (...) 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Entretanto, segundo Jorge Miranda não haveria sequer necessidade

da Constituição trazer expresso em vários dispositivos o dever de respeito à

proporcionalidade. Segundo defende, a ideia de proporcionalidade é inerente

às relações humanas e, consequentemente, é inerente ao Direito, na medida

em que este regula as referidas relações:

A ideia de proporcionalidade é conatural às relações entre as pessoas: a reação deve ser proporcional à ação. E é, por conseguinte, conatural ao Direito: o Direito é proporção. Mas tem sido, no campo publicístico que se tem ancorado mais expansiva e proveitosamente.26

Trata-se, portanto, na opinião do autor, de um princípio jurídico

inerente ao próprio Estado de Direito. Sobre os princípios jurídicos assim se

manifesta o autor:

Os princípios não se colocam, pois, além ou acima do Direito (ou do próprio Direito positivo); também eles – numa visão ampla, superadora de concepções positivistas, literalistas e absolutizantes das fontes legais – fazem parte do complexo ordenamental. Não se contrapõem às normas, contrapõem-se

26 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - tomo IV. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 279.

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tão-somente às regras; as normas jurídicas é que se dividem em normas-princípios e em normas-regras.27

Com relação às características dos princípios jurídicos, as quais os

diferenciam das regras jurídicas, o autor sintetiza alguns aspectos que,

segundo entende, lhes são peculiares:

A doutrina tem assinalado, de diferentes ângulos e com diversos acentos tônicos, as seguintes características dos princípios: a) A maior aproximação da ideia de Direito ou dos valores do ordenamento; b) A amplitude ou a maior generalidade frente às normas-regras; c) A irradiação ou projeção para um número vasto de regras ou preceitos, correspondentes a hipóteses de sensível heterogeneidade; d) A adstrição a fins, e não a meios ou à regulação de comportamentos; e) A versatilidade, a suscetibilidade de conteúdos com densificações variáveis ao longo dos tempo e das circunstâncias; f) A abertura, sem pretensão de regulamentação exaustiva ou em plenitude, de todos os casos; g) A expansividade perante situações ou fatos novos, sem os absorver ou neles se esgotar; h) A virtualidade de harmonização, sem revogação ou invalidação recíproca; i) A virtualidade de oferecer critérios de solução a uma pluralidade de problemas”.28

Uma vez entendido que a proporcionalidade é um princípio e que,

portanto, ela possui as características acima mencionadas, o autor passa à

análise da sua forma de aplicação. Segundo seu entendimento o princípio da

proporcionalidade se decompõe em três subprincípios, por ele chamados de

27 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - tomo II. 6ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 263. 28 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - tomo II. 6ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 265.

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idoneidade (ou adequação), necessidade e racionalidade (ou proporcionalidade

stricto sensu). O primeiro pressupõe a legitimidade do fim consignado na

norma e, a partir desta presunção, analisa se o meio escolhido é adequado à

persecução do fim.29 Já o segundo busca verificar se o meio escolhido é o mais

adequado, dentre os que poderiam ser escolhidos in abstracto, para melhor

satisfazer in concreto a realização do fim. O terceiro equivale à justa medida,

isto é, implica que se proceda a uma avaliação da medida adotada em termos

quantitativos – e não só qualitativos –, de modo que ela não fique além nem

aquém do que importa para alcançar o resultado devido. A respeito do

descumprimento de cada subprincípio assim pontua o autor:

Se não se respeitar o primeiro dos subprincípios – outro tanto é dizer o primeiro dos requisitos de atuação do poder público – haverá arbítrio. Se não se verificarem os outros dois excesso. Em suma: o juízo de proporcionalidade não se reconduz a um juízo meramente cognoscitivo. Com ele cura-se de uma funcionalidade teleológica, e não de uma qualquer funcionalidade lógica ou semântica.30

Com base em tudo isso Jorge Miranda conclui que, nas hipóteses de

descumprimento do princípio da proporcionalidade por excesso pode-se falar

em desproporcionalidade positiva, enquanto que nos casos em que o

descumprimento do princípio em questão decorre do déficit de proteção pode-

se falar em desproporcionalidade negativa. Disto deflui que, para o autor, o

próprio princípio da proporcionalidade é causa de constitucionalidade ou de

inconstitucionalidade da medida adotada.

1.5. José Joaquim Gomes Canotilho

Outro jurista português que trata do assunto em questão é José

Joaquim Gomes Canotilho. Este autor também rompe com a metodologia

jurídica tradicional que distinguia normas e princípios, e passa a adotar a

29 "Pressuposta legitimidade do fim consignado na norma, a idoneidade traduz-se na existência de um meio adequado à sua prossecução" (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - tomo IV. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 284). 30 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - tomo II. 6ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 285.

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classificação segundo a qual normas são o gênero do qual regras e princípios

são espécies.

Segundo o autor a distinção entre regras e princípios é tarefa

particularmente complexa, mas, para atingir este objetivo, ele sugere os

critérios abaixo:

a) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida. b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador, do juiz), enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta. c) Caráter de fundamentaliddade no sistema das fontes do direito: os princípios são normas de natureza estruturante ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito). d) <<Proximidade>> da idéia de direito: os princípios são <<standards>> juridicamente vinculantes radicados nas exigências de <<justiça>> (Dworkin) ou na <<idéia de direito>> (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional. e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundante.31

Com vista aos critérios de diferenciação apresentados é possível

sintetizar, como fez o autor, que as regras “são normas que, verificados

determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos

definitivos, sem qualquer exceção (direito definitivo)”.32 Por outro, no que toca

aos princípios, afirma o que segue:

31 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p.1160-1161. 32 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1255.

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Os princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de <<tudo ou nada>>; impõem a otimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a <<reserva do possível>>, fática ou jurídica.33

No que diz respeito à proporcionalidade, insta salientar que o autor

faz uma diferenciação entre ela e a razoabilidade. Em se tratando da segunda,

esta é abordada sob a roupagem da figura do desvio de poder legislativo, pois,

segundo pontua, a referida figura não prima pela confrontação da lei com um

parâmetro externo para deduzir a sua (in)constitucionalidade, mas pelo

confronto com ela mesma, prestando especial atenção aos fins perseguidos.34

E prossegue o autor:

Contra uma concepção tão absoluta de lei como ato livre no fim, movem-se hoje poderosas críticas que tendem a assinalar dois momentos teleologicamente relevantes nos atos legislativos: (i) em primeiro lugar, a lei tem, por vezes, função de execução, desenvolvimento ou prossecução dos fins estabelecidos na constituição, pelo sempre se poderá dizer que, em última análise, a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado; (ii) por outro lado, a lei, embora tendencialmente livre no fim, não pode ser contraditória, irrazoável, incongruente consigo mesma. Nas duas hipóteses assinaladas, toparíamos com a vinculação do fim da lei: no primeiro caso, a vinculação do fim da lei decorre da constituição; no segundo caso, o fim imanente à legislação imporia os limites materiais da não contraditoriedade, razoabilidade e congruência.35

Conforme o entendimento do autor, o excesso ou o desvio do poder

legislativo constitui um vício de mérito que pode justificar a nulidade da lei. Para

tanto é preciso demonstrar a existência de profunda incongruência entre o uso

do poder legislativo e os fins estabelecidos pela Constituição. Este vício de

mérito, por sua vez, pode ser de duas categorias:

33 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1255. 34 Trata-se da transferência da figura do desvio de poder dos atos administrativos para o âmbito da atividade legislativa. (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1318) 35 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1318 (grifos nos original).

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(1) vícios de mérito porque o uso do poder legislativo no sentido de impor determinadas soluções é objetivamente inadmissível perante determinadas circunstâncias, violando-se regras e princípios constitucionais (princípio da igualdade, princípio da proibição do excesso, direitos, liberdades e garantias); (2) vícios de mérito por irrazoabilidade da lei captadas através de um conjunto de manifestações (inconsequência, incoerência, ilogicidade, arbitrariedade, contraditoriedade, completo afastamento do senso comum e da consciência ético-jurídica comunitária).36

É na segunda categoria, pois, que repousa a razoabilidade, a qual,

segundo José Joaquim Gomes Canotilho, é uma das facetas de um princípio

multifacetário, qual seja, o “princípio da insindicabilidade da não contrariedade,

razoabilidade e congruência do legislador”.37

Já a proporcionalidade, de acordo com os ensinamentos do autor, é

um princípio que reforça a metódica de controle do princípio da igualdade em

caso de colisão de direitos fundamentais. Entretanto, o autor atribui ao princípio

da proporcionalidade o mesmo esquema de fundamentação e controle que

conduzem, em termos gerais, aos resultados obtidos pelo princípio da proibição

do excesso.38 O esquema em apreço consiste nas seguintes averiguações:39

36 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1320. 37 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1317. 38 Note-se que, em outra obra, o autor trata os princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso como sinônimos: “Posteriormente, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição de excesso (Úbermassverbot), foi erigido à dignidade de princípio constitucional (cfr. arts. 18.72, 19.74, 265.° e 266.72)”. (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 382) 39 Em obra anterior autor se detém um pouco mais na explicação de cada um deles: “a) Princípio de conformidade ou adequação de meios (Geeignetheit): Com esta exigência pretende-se salientar que a medida adotada para a realização do interesse público deve ser apropriada para a prossecução do fim ou fins a ele subjacentes. Conseqüentemente, a exigência de conformidade pressupõe a investigação e a prova de que o ato do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da sua adoção (Zielkonformitàt, Zwecktauglichkeit). Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim. Este controlo, há muito debatido relativamente ao poder discricionário e ao poder vinculado da administração, oferece maiores dificuldades quando se trata de um controlo do fim das leis dada a liberdade de conformação do legislador; b) Princípio da exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit): Este requisito, também conhecido como «princípio da necessidade» ou da «menor ingerência possível» coloca a tônica na idéia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adotar outro meio menos oneroso para o cidadão. Dada a natural relatividade do princípio, a doutrina tenta acrescentar outros elementos conducentes a uma maior operacionalidade prática: a) a necessidade material, pois o meio deve ser o mais «poupado» possível quanto à limitação dos direitos fundamentais: b) a exigibilidade espacial aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção; c) a exigibilidade temporal pressupõe a

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(1) da legitimidade do fim do tratamento desigualitário; (2) a adequação e necessidade deste tratamento para a prossecução do fim; (3) a proporcionalidade do tratamento desigual relativamente aos fins obtidos (ou a obter).40

Com vistas ao exposto podemos concluir que José Joaquim Gomes

Canotilho diferencia razoabilidade e proporcionalidade, atribuindo a ambos a

natureza de norma jurídica da espécie princípio, sendo que, no caso da última,

esta se decompõe em três outros princípios.

1.6. Willis Santiago Guerra Filho

Em se tratando de proporcionalidade, uma das vozes brasileiras

mais significativas – e peculiares – é a de Willis Santiago Guerra Filho. Isto

porque este autor atribui a ela uma posição bastante importante dentro da sua

construção teórica acerca da ciência do direito.

Todavia, antes de chegarmos nesse ponto é preciso estabelecer que

o autor em questão adota a classificação segundo a qual as normas jurídicas

são um gênero do qual regras e princípios são espécies. Conforme leciona,

regras e princípios diferenciam-se:

a) quanto a sua estrutura lógica e deontológica, pela circunstância de as primeiras vincularem-se a fatos hipotéticos (Tatbestande) específicos, um determinado funtor ou operador normativo (‘proibido’, ‘obrigatório’, ‘permitido’), enquanto aqueles outros – os princípios – não se reportam a qualquer

rigorosa delimitação no tempo da medida coativa do poder público; d) a exigibilidade pessoal significa que a medida se deve limitar à pessoa ou pessoas, cujos interesses devem ser sacrificados.Em geral, não se discute a adoção da medida (necessidade absoluta), mas sim a necessidade relativa, ou seja, como é que o legislador poderia ter adotado outro meio igualmente eficaz e menos desvantajoso para os cidadãos; c) O princípio da proporcionalidade em sentido restrito (Verhãltnis-màssigkeit): Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação do meio para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à «carga coativa» da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de «medida» ou «desmedida» para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim”. (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 382-384) 40 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1298.

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fato particular, e transmitem uma prescrição programática genérica, para ser realizada na medida do jurídico e faticamente possível. (...) b) quanto à técnica de aplicação, já que princípios normalmente colidem entre si, diante de casos concretos, o que leva ao chamado ‘sopesamento’ (Abwägung), para aplicar o mais adequado, ao passo que regras, uma vez aceita a subsunção a elas de certos fatos, inevitavelmente decorrem as consequências jurídicas nelas previstas, a não ser que elas não sejam válidas por conflitarem com outras de um grau superior, quando, então, ao contrário do que se dá com os princípios, que apesar de contraditórios não deixam de integrar a ordem jurídica, a regra de grau inferior é derrogada.41

Verifica-se, pois, que no conflito de regras surge uma antinomia que

será resolvida no plano da validade, com a derrogação total ou parcial de uma

delas, enquanto as colisões de princípios são solucionadas no plano da

eficácia, com o acatamento de um deles, sem que isto implique a derrogação

do outro.

Não bastasse isso, o autor ainda enfrenta a questão da colisão entre

regras e princípios. De acordo com sua posição, não há que se falar na

existência de conflito direto entre regra e princípio, uma vez que “é intuitivo que

esse [princípio] deva prevalecer, embora aí, na verdade, ele prevaleça, em

determinada situação concreta, sobre o princípio em que a regra se baseia”.42

Assim, de fato será uma colisão de princípios, isto é, entre o princípio colidente

e o princípio no qual se baseia a regra em colisão.

Esse último traço distintivo entre regras e princípios, qual seja, o

modo de aplicação, nos mostra que não há princípio que seja absoluto, pois a

obediência unilateral da pauta valorativa de um determinado princípio implicaria

a infração à pauta valorativa de outro. A partir desta constatação o autor

conclui que “há uma necessidade lógica e, até, axiológica, de se postular um

‘princípio de proporcionalidade’, para que se possam respeitar normas, como

41 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência do direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 149-150. 42 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria constitucional dos princípios jurídicos e garantismo penal: por uma atualização teórica de conceitos fundamentais. In. BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÊ, Fayga Silveira. Constituição e democracia: estudos em homenagem ao professor J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 159.

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os princípios, tendentes a colidir”.43 É desta decorrência lógica e axiológica que

surge o princípio da proporcionalidade.

Há que ressaltar que Willis Santiago Guerra Filho não atribui um

status qualquer ao referido princípio. Isto porque o autor admite a existência de

normas com valor maior que outras, dentro do sistema jurídico. Afinal, como

preceitua, é necessário estabelecer qual o princípio de valor maior à luz do qual

se poderá equacionar de forma adequada a colisão entre os demais princípios.

Este é o princípio da proporcionalidade:

A conclusão a que se quer chegar, então, é que o princípio máximo procurado, que, por sua especialidade, tanto se diferencia dos demais, acha-se expresso na já mencionada ‘máxima de proporcionalidade’. A imposição nela contida é a de que se realiza através do Direito, concretamente e cada vez melhor, o que for jurídica e faticamente possível, para obter-se a otimização no adequamento da norma, com seu dever-ser de entidade ideal, à realidade existencial humana. É esse equilíbrio a própria ideia do Direito, manifestado inclusive na simbologia da balança, e é a ele que se pretende chegar com Estado de Direito e Democracia. A proporcionalidade na aplicação é o que permite a coexistência de princípios divergentes, podendo-se mesmo dizer que entre eles e a proporcionalidade há uma relação de mútua implicação, já que os princípios fornecem os valores para serem sopesados, e sem isso eles não podem ser aplicados.44

Daí porque o autor atribui ao princípio da proporcionalidade mais do

que a natureza jurídica de princípio, mas o alça ao patamar de princípio

ordenador do Direito, não importando, portanto, se está expresso ou não na

Constituição do país.

Ainda que se trate de princípio ordenador do Direito, o autor informa

que, na concepção desenvolvida pela doutrina alemã, este princípio se

43 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria constitucional dos princípios jurídicos e garantismo penal: por uma atualização teórica de conceitos fundamentais. In. BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÊ, Fayga Silveira. Constituição e democracia: estudos em homenagem ao professor J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 159. 44 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência do direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 159.

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desdobra em três aspectos 45 , quais sejam adequação, exigibilidade e

proporcionalidade em sentido estrito. O primeiro deve verificar se o meio

escolhido é adequado para atingir o fim pretendido. Já o segundo deve

comprovar que o meio escolhido é o mais suave dentre os meios disponíveis,

isto é, que o menos agressivo aos bens e valores constitucionais. Finalmente, o

terceiro analisa se o meio empregado é o mais vantajoso na promoção dos

bens e valores almejados pelo fim, com o mínimo desrespeito aos que a ele se

contraponham.

Temos que ressalvar, por fim, que para o autor o princípio da

proporcionalidade e o princípio da razoabilidade são coisas diferentes,

distinção esta tão importante que ele chega a fazer o seguinte alerta:

Que nossas palavras finais, então, se dirijam aos que, em nossa Dogmática Jurídica, especialmente no campo do direito público, vêm confundindo o princípio da proporcionalidade, de origem germânica, com um outro, de origem anglo-saxonia (sic), aqui denominado, ao que parece por influência argentina, ‘princípio da razoabilidade’, quando na própria tradição britânica se fala em ‘princípio da irrazoabilidade’. O emprego do princípio da proporcionalidade, como aqui se procurou evidenciar, não se destina a evitar que absurdos sejam perpetrados na elaboração do Direito, mas sim que este seja interpretado e aplicado atendendo a um princípio de racionalidade, apto a determinar qual a melhor dentre as diversas interpretações possíveis, do ponto de vista da promoção simultânea e equânime do Estado de Direito e da Democracia, com a gama de direitos fundamentais e valores que lhes são inerentes, sendo esse mesmo compromisso com a racionalidade o principal de toda a teoria, também no campo do Direito.46

Disso resulta que, para o autor, tanto razoabilidade quanto

proporcionalidade são princípios jurídicos, mas enquanto o primeiro possui um

45 Note-se que o autor fala em “aspectos” e não em “princípios” ou “subprincípios”, o que não nos permite concluir se para ele estamos diante de normas jurídicas – se sim, de qual espécie – ou se estamos diante de topos argumentativos, como ele chega a mencionar genericamente parágrafos antes, mas sem referência direta aos três “aspectos”: “Nesse ponto, tocamos o problema crucial de toda hermenêutica constitucional, que nos leva a introduzir o topos argumentativo da proporcionalidade”. (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência do direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 179) 46 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da proporcionalidade e teoria do direito. In. GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 283.

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grau menor de importância, e se destina somente a evitar absurdos, o segundo

tem o mais elevado grau de importância dentro do sistema, residindo nele toda

a racionalidade do ordenamento composto por regras e princípios.

1.7. Robert Alexy

Um dos principais idealizadores do princípio da proporcionalidade no

direito foi o alemão Robert Alexy. Trata-se de autor de suma importância para o

desenvolvimento da proporcionalidade no Brasil, pois foi justamente a partir da

leitura da sua obra que a grande maioria da doutrina pátria passou a adotar o

princípio da proporcionalidade nos moldes por ele desenvolvido.

Em sua Teoria dos Direitos Fundamentais o autor em questão parte

da premissa de que as normas jurídicas estão divididas em regras e princípios,

as quais diferem umas das outras essencialmente pelo seu caráter prima facie

distinto.47

Segundo Robert Alexy os princípios são normas jurídicas que

exigem que algo seja realizado na maior medida possível, de acordo com as

possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Isto posto, eles não contêm um

mandamento definitivo, mas apenas prima facie:

Da relevância de um princípio em um determinado caso não decorre que o resultado seja aquilo que o princípio exige para esse caso. Princípios representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. A forma pela qual deve ser determinada a relação entre razão e contra-razão não é algo determinado pelo próprio princípio. Os princípios, portanto, não

47 Note-se que Robert Alexy parte de características muito próximas das apresentadas por Ronald Dworkin. Contudo, o primeiro não afasta o caráter prima facie apresentado na obra deste último, mas reconhece que a formulação é bastante simplista e vai além: “Diante disso, alguém poderia imaginar que os princípios têm sempre um mesmo caráter prima facie, e as regras um mesmo caráter definitivo. Um tal modelo parece estar presente na obra de Dworkin, quando ele afirma que regras, se validas, devem ser aplicadas de forma tudo ou nada, enquanto os princípio apenas contém razões que indicam uma direção, mas não têm como consequência necessária uma determinada decisão. Esse modelo é, contudo, muito simples. Um modelo diferenciado é necessário. Mas também no âmbito desse modelo diferenciado o diferente caráter prima facie das regras e do princípio deve ser mantido”. (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 104)

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dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes e das possibilidades fáticas.48

Já as regras estão em situação diversa. No caso delas, há a

exigência de que seja feito exatamente aquilo que elas ordenam e, como diz o

autor:

(...) elas têm uma determinação da extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode falhar diante de impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não ocorrer, então, vale definitivamente aquilo que a regra prescreve.49

Tendo em vista que os princípios não dispõem da extensão de seu

conteúdo quando diante de princípios colidentes e das possibilidades fáticas,

Robert Alexy afirma existir uma diferença entre o conflito de princípios e o

conflito de regras.

Segundo pontua o autor, o conflito de regras leva necessariamente à

invalidade de uma delas, salvo se uma delas contiver uma cláusula de

exceção. É o que vemos no brocardo “lex posteriori derogat priori”, reproduzido

no artigo 2°, §§ 1° e 2° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.50

Afinal, duas regras colidentes não podem coexistir, salvo quando forem

excepcionadas, seja pelos limites de competência51 ou pela especialidade.

Já a colisão entre princípios deve ser solucionada de uma forma

totalmente distinta, pois como apontado acima, em caso de colisão os

princípios não dispõem da extensão de seu conteúdo. Isto se deve ao fato de

que diante do caso concreto, e sob determinadas condições, um dos princípios

tem precedência sobre o outro com ele colidente. Desta forma, um dos 48 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 104. 49 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 104. 50 Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. 51 Duas leis municipais incompatíveis, mas de municípios diferentes, não se excluem porque cada uma delas atua dentro dos limites de competência que lhe foram constitucionalmente atribuídas, e não pelo critério da especialidade.

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princípios terá que ceder, sem que esta cessão implique na sua invalidade,

haja vista que em outro caso concreto, e sob outras condições, é possível esse

mesmo princípio que hoje cede, amanhã prevaleça sobre o mesmo princípio

que hoje é prevalente.

Sobre a colisão de princípios é interessante a lição de Robert Alexy:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão de peso.52

Dessa forma, pode-se afirmar com base no autor supracitado que a

colisão entre regras se soluciona no plano da validade, enquanto a colisão de

princípios se resolve no plano do peso destas normas diante do caso concreto,

respeitadas as particularidades do caso para a sua aplicação. Esta análise de

peso diante do caso concreto chama-se sopesamento.

Tendo em vista a necessidade de sopesar os princípios diante do

caso concreto, Robert Alexy afirma que o mecanismo oferecido pelo sistema

jurídico para realizar o sopesamento dos princípios colidentes é justamente

outro princípio, qual seja, o princípio53 da proporcionalidade. Para o autor, o

52 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 93-94. 53 Atente-se a existência de divergência quanto a tradução da natureza jurídica da proporcionalidade na obra de Robert Alexy. Em sua tradução da obra do mencionado autor Virgílio Afonso da Silva, traduziu a proporcionalidade como sendo uma máxima (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.). Já Luís Afonso Heck, em tradução de outra obra (ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008), traduziu a proporcionalidade como sendo um princípio. Tendo em vista que o uso da expressão princípio da proporcionalidade como

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princípio da proporcionalidade é inerente à teoria dos princípios, já que a

própria natureza dos princípios implica a existência do princípio da

proporcionalidade, e vice versa:

Afirmar que a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade, com suas três máximas parciais da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento de sopesamento propriamente dito), decorre logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que a proporcionalidade é deduzível (sic) dessa natureza.54

O que o autor quer dizer é que, pelo fato de a colisão ser inerente

aos princípios – já que estes não dispõem de seu conteúdo quando diante de

princípios colidentes e das possibilidades fáticas – e, por consequência, por

eles possuírem uma dimensão de peso quando em conflito com outros – e não

de validade – o próprio sistema jurídico precisa oferecer um mecanismo para a

solução destas colisões que envolvem tanto elementos de natureza fática

quanto de natureza normativa. De acordo com Robert Alexy este mecanismo é

o princípio da proporcionalidade.

Todavia, o princípio da proporcionalidade se decompõe em três

subprincípios, quais sejam adequação, necessidade55 e proporcionalidade em

sentido estrito. O primeiro analisa se a medida adotada (M1) com base num

determinado princípio (P1) é adequada para atingir o seu objetivo (Z). Já o

segundo verifica, dentre as medidas adequadas (M1 e M2), qual delas afeta

menos o outro princípio (P2) que está em colisão com o princípio (P1), que

fundamenta as medidas necessárias (M1 e M2). Finalmente, o terceiro é o

mandato de sopesamento propriamente dito, isto é, a análise da possibilidade

jurídica para a realização do princípio colidente (P1) com o princípio antagônico

(P2).

decorrência da obra deste autor é o mais corrente, utilizaremos a referida expressão neste trabalho, respeitando, obviamente, a tradução quando diante de citações. 54 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 116-117. 55 O subprincípio (ou máxima parcial) da necessidade foi traduzida por Luís Afonso Heck como subprincípio da idoneidade (ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008 p. 110).

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Nesse sentido complementa Robert Alexy:

A máxima da proporcionalidade em sentido estrito decorre do fato de princípios serem mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas. Já as máximas da necessidade e da adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas.56

Disso decorre que, enquanto os dois primeiros subprincípios têm seu

plano de atuação direcionado para questões de ordem fática, o terceiro

subprincípio tem como pano de fundo o plano jurídico.

1.8. Virgílio Afonso da Silva

De acordo com Virgílio Afonso da Silva, para que os direitos

fundamentais possam ser teoricamente sistematizados, deve-se adotar como

premissa a distinção necessária entre regras e princípios como sendo as

espécies existentes de normas encontradas no ordenamento jurídico.

Para o autor, o principal traço distintivo entre elas é justamente a

estrutura dos direitos garantidos por estas normas. Conforme aponta, as regras

garantem direitos definitivos, enquanto os princípios garantem direitos prima

facie e, portanto, há uma grande diferença entre aquilo que eles garantem ou

impõe prima facie e o que será garantido ou imposto definitivamente:

O principal traço distintivo entre regras e princípios, segundo a teoria dos princípios, é a estrutura dos direitos que essas normas garantem. No caso das regras, garantem-se direitos (ou se impõe deveres) definitivos, ao passo que no caso dos princípios são garantidos direitos (ou são impostos deveres) prima facie.57

Note-se que a semelhança existente entre a posição de Virgílio

Afonso da Silva e de Robert Alexy não é mera coincidência. Isto se deve ao

56 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 118. 57 SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 45.

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fato do primeiro adotar a teoria do segundo.58 Portanto, também para Virgílio

Afonso da Silva as regras se aplicam por subsunção, sendo que em caso de

incompatibilidade entre regras ou uma exclui a outra (incompatibilidade total),

ou é instituída uma regra de exceção (incompatibilidade parcial).59

Um ponto interessante é o fato de o autor tratar da colisão entre

regras e princípios, hipótese pouco aventada e bastante polêmica, que deixou

de ser devidamente explorada por Robert Alexy em sua obra60. Numa análise

inicial, a primeira possibilidade de solução seria a confrontação entre a regra e

o princípio dentro do plano da validade, sendo que, ao final, um deles seria

excluído do ordenamento jurídico61. A segunda possibilidade, ainda dentro de

uma análise inicial, seria a ponderação da regra e do princípio em colisão,

possibilidade esta que derrubaria o critério de distinção segundo o qual as

regras são normas que garantem ou impõem deveres definitivos.

A solução sugerida por Robert Alexy aponta no sentido de que

deveria ser feita uma ponderação não entre a regra (R) e o princípio (P) que

estão em colisão, mas sim entre o princípio no qual se fundamenta a regra

(PR) e o princípio (P) colidente. Contudo, Virgílio Afonso da Silva refuta esta

solução, pois entende que referida posição confere ao aplicador uma situação

de extrema liberdade diante de qualquer caso e em qualquer situação, o que

acarretaria um alto grau de insegurança jurídica.

Segundo o autor a colisão entre regra e princípio não seria uma

colisão propriamente dita. Isto porque se estaria diante do produto oriundo da

58 Tanto é assim que Virgílio Afonso da Silva é o tradutor para o português da Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy. 59 O autor apresenta como exemplo a regra que proíbe a retroação da lei penal e a outra, de mesma natureza, que determina a retroação em benefício do réu: “Assim, a regra que proíbe a retroação da lei penal tem uma conhecida exceção: a lei deve retroagir quando beneficiar o réu (art. 5°, XL, da CF). A norma (regra) deve, nesse caso, ser compreendida como ‘é proibida a retroação de leis penais, a não ser que sejam mais benéficas para o réu que a lei anterior; nesses casos, deve haver retroação’”. (SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 45) 60 O autor se limita a mencionar a hipótese em nota de rodapé, sugerindo como solução, sem maiores fundamentações, a ponderação entre o princípio que fundamenta a regra e o princípio com ela colidente. (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90) 61 De acordo com as premissas da teoria adotada por Virgílio Afonso da Silva.

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ponderação entre dois princípios realizada pelo legislador, cujo produto é uma

regra de direito ordinário. Desta forma, “a relação entre a regra e um dos

princípios não é, portanto, uma relação de colisão, mas uma relação de

restrição. A regra é a expressão dessa restrição”.62 Assim, a regra deve ser

aplicada por subsunção, conforme as demais normas da mesma espécie.

A situação se complica diante de casos em que a colisão entre uma

regra e um princípio exige a inclusão de uma determinada conduta para a

proteção de um direito fundamental, mas a referida inclusão esbarra no

preceito contrário de uma regra. E o autor exemplifica:

Um caso muito frequente nesse sentido é o levantamento dos valores da conta do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço/FGTS para pagar o tratamento de saúde de um dependente do titular da conta. A Lei 7.670/1988, em seu art. 1°, II autorizava esse levantamento para os casos em que o titular da conta era portador do HIV. A partir de determinado momento os juízes passaram a se deparar com pedidos de levantamento dos valores para o pagamento do tratamento de seus dependentes. A regra prevista na lei não poderia ser aplicada ao caso, já que não previa o benefício para a regra que restringia o uso do dinheiro do FGTS. Com base nessa ideia, muitos juízes passaram a permitir o levantamento dos valores, mesmo contra a regra legal. Como se percebe, essa estratégia pode ser considerada como um sopesamento entre o princípio que sustenta a regra e o princípio com ela colidente, mas quando muito em uma primeira decisão, que, ao menos inicialmente, é uma decisão contra legem. Não é, contudo, um sopesamento que se repete a cada decisão. Isso porque, uma vez consolidado o entendimento em determinado sentido, cria-se uma regra que institui exceção à regra proibitiva.63

Como se percebe, para Virgílio Afonso da Silva estamos diante de

uma regra como qualquer outra da mesma natureza, aplicável como as demais

mediante subsunção. A única diferença é que ela não decorre de um

dispositivo legal, mas é produto de uma construção jurisprudencial decorrente

do sopesamento (em uma primeira análise) entre dois princípios. Atente-se

62 SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 52. 63 SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 54-55.

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que, para o autor, este sopesamento se restringe ao processo de surgimento

da regra, mas não diz respeito a sua forma de aplicação.

Além da colisão entre regras e entre regras e princípios, o autor

também aborda a colisão entre princípios, sendo que, neste caso, se aproxima

bastante – ao menos até este ponto – da posição de Robert Alexy, admitindo,

também, que os princípios são mandamentos de otimização, os quais exigem

que algo seja realizado na maior medida possível, diante das condições fáticas

e jurídicas. Por conta disto, as colisões devem ser solucionadas através de

sopesamento.

Para essa finalidade, Virgílio Afonso da Silva também se vale da

proporcionalidade. Contudo, segundo pontua, não se trata de um princípio, pois

sua forma de aplicação não exige que algo seja aplicado na maior ou na menor

medida. Pelo contrário, quando diante da colisão de princípios, deve-se

necessariamente utilizar a proporcionalidade para solucionar a colisão. Esta

forma de aplicação exprime um dever definitivo e, portanto, de acordo com a

teoria apresentada assume a forma de regra.64

Dessa forma, para Virgílio Afonso da Silva não há que se falar em

princípio da proporcionalidade, mas sim em regra da proporcionalidade, por

conta de sua estrutura normativa e forma de aplicação. Esta regra da

proporcionalidade é composta por três sub-regras, quais sejam adequação,

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

De acordo com o autor, a sub-regra da adequação é o primeiro

passo na escala ascendente de aplicação da regra da proporcionalidade.

Conforme o seu entendimento, a adequação consiste em uma primeira

indagação: “a medida é adequada para fomentar a realização do objetivo 64 Não obstante sua estrutura seja a de uma regra – de acordo com a teoria por ele adotada –, o autor ainda enfrenta a questão de utilizar a expressão “máxima da proporcionalidade”, conforme sua tradução do alemão da obra de Robert Alexy: “O problema dessa denominação reside no fato de que, na linguagem jurídica brasileira, ‘máxima’ não é um termo utilizado com freqüência e, mais que isso, pode às vezes dar a impressão de se tratar não de um dever, como é o caso da aplicação da proporcionalidade, mas de uma mera recomendação”. (SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 168)

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perseguido?” 65 Neste ponto ele critica aqueles que entendem que na

adequação deve-se analisar se a medida é adequada para realizar por

completo o objetivo perseguido, pois, segundo entende, isto é

contraproducente, uma vez que dificilmente será possível saber, com certeza,

antecipadamente, se uma medida realizará de fato aquilo a que se propõe.

Ultrapassada esta primeira etapa, isto é, o exame da adequação,

passa-se à sub-regra da necessidade que, de acordo com o autor, consiste

essencialmente em um exame comparativo. Isto porque na análise da

necessidade busca-se verificar qual das medias possíveis – a medida adotada

(M1) e a outra medida cabível (M2) – atinge o objetivo (O) restringindo menos o

direito fundamental (D). Existem, pois, duas variáveis na análise da sub-regra

da necessidade, quais sejam a eficiência da medida em atingir o objetivo (O) e

o grau de restrição ao direito fundamental (D):

Nessa comparação, como se percebe, duas são as variáveis a serem consideradas: (1) a eficiência das medidas na realização do objetivo proposto; e (2) o grau de restrição ao direito fundamental atingido. É claro que, tratando-se de duas variáveis, é necessário que se decida qual é a mais importante. Em geral fala-se na necessidade como a busca do ‘meio menos gravoso’, o que pode dar a entender que se deva dar sempre preferência à medida que restrinja menos direitos. Mas isso somente é assim caso ambas as medidas sejam igualmente eficazes na realização do objetivo. Nesse caso – e somente nesse caso – deve-se dar preferência à medida menos gravosa.

Como se percebe, para o autor no teste da necessidade não se deve

indagar se há medidas mais eficientes que a medida adotada (M1), mas

somente se há medidas tão eficientes quanto ela, mas que restrinjam menos o

direito afetado.

Vencidas as duas sub-regras anteriores, passa-se então à terceira

etapa da regra da proporcionalidade, isto é, o exame da sub-regra da

proporcionalidade em sentido estrito. Segundo o autor, esta fase consiste na

realização de sopesamento entre os direitos em colisão (D1 e D2), e tem como 65 SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 170.

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objetivo evitar que medidas, que embora sejam adequadas e necessárias,

restrinjam um direito fundamental (D2) além do limite que a realização do

objetivo (O) seja capaz de justificar.

Nessa etapa, como se percebe, a análise que deve ser feita não

está diante de qualquer espécie de arcabouço fático – estes embasavam as

análises das sub-regras anteriores –, mas apenas de elementos jurídicos, e se

opera através do sopesamento dos direitos envolvidos (D1 e D2).

Por fim, cumpre mencionar que Virgílio Afonso da Silva admite a

aplicação da regra da proporcionalidade com suas três sub-regras (adequação,

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) sempre que diante de

colisão entre direitos fundamentais na qual exista uma regra infraconstitucional.

Afinal, nestes casos a regra se apresenta como produto de um sopesamento

de princípios feito legislador, a qual se submeterá análise da adequação e da

necessidade.

Todavia, há hipóteses em que não existirá qualquer regra

infraconstitucional e que, portanto, estaremos diante de colisão direita de

princípios constitucionais diretamente aplicáveis ao caso concreto. Nestas

hipóteses, tendo em vista a falta de suporte fático essencial à aplicação das

sub-regras da adequação e da necessidade, deverá ocorrer apenas o

sopesamento dos princípios aplicáveis ao caso concreto.

1.9. Humberto Ávila

Em que pese grande parte das posições até aqui apresentadas

terem como pontos de aproximação os critérios de distinção entre regras e

princípios, e o enquadramento da proporcionalidade em uma dessas duas

categorias, Humberto Ávila parte de premissa essencialmente distinta para o

enquadramento normativo da proporcionalidade.

Segundo preceitua o autor, as normas jurídicas podem ser de graus

diferentes, isto é, existem normas de primeiro grau e normas de segundo grau.

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Dentre as primeiras figuram as regras e os princípios. Já aquelas da segunda

espécie são os postulados normativos, que por sua vez se dividem em

hermenêuticos e aplicativos.

No que tange às normas de primeiro grau, o autor rompe com o

critério de diferenciação entre regras e princípios adotado pela maioria da

doutrina – com base nas teorias de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Para ele,

princípios não são mandados de otimização que se diferenciam das regras na

medida em que os primeiros são aplicáveis mediante ponderação, enquanto as

segundas não a admitem, pois se aplicam mediante subsunção:

É preciso, ainda, lembrar que os princípios, eles próprios, não são mandados de otimização. Com efeito, como lembra Aarnio, o mandado consiste numa proposição normativa sobre os princípios, e, como tal, atua como uma regra (norma hipotético-condicional): será ou não cumprido. Um mandado de otimização não pode ser aplicado mais ou menos. Ou se otimiza, ou não se otimiza. O mandado de otimização diz respeito, portanto, ao uso de um princípio: o conteúdo de um princípio deve ser otimizado no procedimento de ponderação. O próprio Alexy passou a aceitar a distinção entre comandos para otimizar e comandos para serem otimizados. O ponto decisivo não é, portanto, a falta de ponderação na aplicação das regras, mas o tipo de ponderação que é feita e o modo como ela deverá ser validamente fundamentada – o que é algo diverso.66

Diante disso fica claro que, para Humberto Ávila, o fator de

diferenciação não repousa no fato de que as regras devem ser aplicadas no

critério tudo ou nada e os princípios apenas na máxima medida, mas que

ambas as espécies normativas devem ser aplicadas “de tal modo que seu

conteúdo de dever-ser seja realizado totalmente”.67

Portanto, tanto as regras quanto os princípios possuem o mesmo

conteúdo de dever-ser, sendo a única distinção entre eles a determinação da

prescrição de conduta que resulta da sua interpretação, haja vista que os

66 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 63. 67 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 63.

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princípios não determinam diretamente a conduta a ser seguida, dependendo

mais intensamente de um ato institucional de aplicação, enquanto as regras

dependem menos intensamente de um ato institucional de aplicação, uma vez

que o comportamento já está previsto diretamente pela norma.

Tendo em vista essa ruptura entre a posição de Humberto Ávila com

os posicionamentos decorrentes das obras de Ronald Dworkin e de Robert

Alexy, o primeiro passa, então, ao conceito de regras e de princípios, o que faz

nos seguintes termos:

A regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalisticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.68

A partir desse conceito podemos verificar que: as regras são normas

imediatamente descritivas porque estabelecem obrigações, permissões e

proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada, enquanto os

princípios são normas imediatamente finalísticas, pois estabelecem um estado

de coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados

comportamento; as regras são primariamente retrospectivas na medida em que

descrevem uma situação de fato descrita pelo legislador, enquanto os

princípios são primariamente prospectivos, já que determinam um estado de

coisas a ser construído; as regras têm pretensão de decidibilidade e

abrangência na medida em que, não obstante pretenderem abranger todos os

aspectos relevantes para a tomada de decisão, têm a aspiração de gerar uma

solução específica para o conflito entre razões, enquanto os princípios têm

68 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 78-79.

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pretensão de complementaridade e parcialidade, pois não têm pretensão de

gerar uma solução específica, mas de contribuir, ao lado de outras razões, para

a tomada de decisão.

Como se percebe, o autor rompe frontalmente com as conceituações

apresentadas nos itens anteriores, na medida em que, de acordo com sua

conceituação, os critérios previamente utilizados como fatores de distinção

entre regras e princípios na verdade não atendem a esta finalidade.

Não obstante o reconhecimento da existência das regras e dos

princípios, aos quais atribui o status jurídico de normas de primeiro de grau,

Humberto Ávila reconhece a existência de outra espécie de normas, que

seriam na verdade metanormas, isto é, normas que regulam a interpretação e a

aplicação das normas de primeiro grau, às quais atribui o status jurídico de

normas de segundo grau:

Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam no mesmo nível; os princípios e as regras são normas objeto da aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e aplicador do Direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer de modo preliminarmente complementar (princípios), quer de modo preliminarmente decisivo (regras); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas.69

Conforme antecipamos há pouco, o autor subdivide as normas de

segundo grau, isto é, os postulados, em duas espécies: postulados

hermenêuticos e postulados aplicativos. Os primeiros são abstraídos da

consciência de que, no âmbito do Direito, existem postulados cuja utilização se

faz necessária para a compreensão interna e abstrata do ordenamento jurídico,

69 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 122.

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os quais podem funcionar como suporte para essa ou aquela alternativa de

aplicação normativa. De outro lado, os segundos partem da ideia de que a

compreensão concreta do Direito pressupõe a implementação de algumas

condições, as quais se aplicam para solucionar questões que surgem quando

da aplicação do Direito. É justamente nesta última categoria, qual seja, de

postulado normativo aplicativo, que o autor enquadra a razoabilidade e a

proporcionalidade.

Antes de mais nada é necessário atentar para o fato de que, ao

contrário do que fazem outros autores, Humberto Ávila diferencia razoabilidade

e proporcionalidade, mas considera ambas em sua formulação teórica,

atribuindo-lhes, consequentemente, importância.70 Nestes termos, o autor trata

isolada e detidamente de cada um destes dois postulados normativos

aplicativos.

No que toca à razoabilidade, Humberto Ávila defende que ela tem

como escopo principal a estruturação da aplicação de outras normas, sejam

princípios ou regras, mas sua utilização notadamente se destaca no âmbito da

aplicação das regras. Afirma, ainda, que são três as acepções de razoabilidade

que mais se destacam71:

Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, a razoabilidade é utilizada como

70 Conforme visto nos itens anteriores Luís Roberto Barroso trata razoabilidade e proporcionalidade como princípios fungíveis, enquanto outros autores, em que pese reconheçam a diferença entre ambos, não dão maior atenção à razoabilidade (vide os posicionamentos de Willis Santiago Guerra Filho, Robert Alexy e Virgílio Afonso da Silva). 71 Atente-se para o fato de que, conforme afirma o próprio autor, a razoabilidade é utilizada com vários sentidos, e não apenas os três por ele elencados. Como dito por ele, estes três são os que mais se destacam (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 151).

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diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas.72

Diante dessa concepção tripartite de razoabilidade, o autor passa à

análise de cada uma delas.

A primeira acepção de razoabilidade é chamada de razoabilidade

como equidade. Ela exige a harmonização da norma geral com o caso

individual. Desta forma, em primeiro lugar o aplicador deve analisar as

circunstâncias de fato para verificar se elas estão dentro da normalidade e,

consequentemente, deve balizar a interpretação dos fatos descritos na norma

jurídica, como forma de preservar a eficácia de princípios axiologicamente

sobrejacentes. Em segundo lugar, caso as circunstâncias de fato transbordem

os limites da normalidade, deve analisar os aspectos particulares do caso

individual nas hipóteses em que ele é desconsiderado pela generalização legal,

pois em virtude de certas especificidades a norma geral não pode ser aplicada

a um caso anormal. Disto decorre que nem todo o fato enquadrável na previsão

legal será aplicável:

Nem toda norma incidente é aplicável. É preciso diferenciar a aplicabilidade de uma regra da satisfação das condições previstas em sua hipótese. Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável a um caso se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária. Nessas hipóteses as condições de aplicação da regra são satisfeitas, mas a regra, mesmo assim, não é aplicada.73

Diante disso, o autor conclui que esta atuação da razoabilidade na

interpretação das regras gerais, própria da razoabilidade como equidade, é

uma decorrência do princípio de justiça.

72 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 152. 73 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 154.

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De outro lado, a segunda acepção é chamada de razoabilidade

como congruência. Nesta hipótese exige-se a harmonização das normas com

suas condições externas de aplicação. Em primeiro lugar a razoabilidade exige

que a norma que se pretende aplicar recorra a um suporte empírico existente,

isto é, a interpretação das normas exige o confronto com parâmetros externos

a ela.74 Em segundo lugar a razoabilidade exige congruência entre o critério de

diferenciação escolhido e a medida adotada. Note-se que não se analisa aqui a

relação entre meio e fim, mas somente entre critério e medida.75

Finalmente, a terceira acepção é chamada de razoabilidade como

equivalência. Ela exige uma relação de equivalência entre a medida adotada

pelo aplicador e o critério que dimensiona. É justamente nesta análise que

surge a ideia de insignificância, pois em muitos casos a sanção aplicável não

seria equivalente ao delito:

Outro exemplo refere-se às penas que devem ser fixadas de acordo com a culpabilidade do agente. Nesse sentido, a culpa serve de critério para a fixação da pena a ser cumprida, devendo a pena corresponder à culpa. (...) Consubstancia ato insignificante a contratação isolada de mão-de-obra, visando a atividade de gari, por Município, considerando o período diminuto, vindo o pedido formulado em reclamação trabalhista a ser julgado improcedente, ante a nulidade da relação jurídica por ausência do concurso público. A punição não seria equivalente ao ato delituoso.76

74 Nesse sentido o autor traz como exemplo a MC da ADI 1.158-8 AM, de relatoria do Ministro Celso de Mello, assim sintetizada nas suas próprias palavras: “Uma lei estadual institui adicional de férias de um terço para os inativos. Levada a questão a julgamento, considerou-se indevido o referido adicional, por traduzir uma vantagem destituída de causa e do necessário coeficiente de razoabilidade, na medida em que só deve ter adicional de férias que tem férias. Como consequência disso, a instituição do adicional foi anulada, em razão de violar o devido processo legal, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável”. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 155) 75 Esta hipótese é exemplificada pelo autor com outro julgado do Supremo Tribunal Federal, MC na ADI 1.753 DF, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, assim narrado por ele próprio: “Uma lei estadual determinou que o período de trabalho de secretários de Estado deveria ser contado em dobro para efeitos de aposentadoria. Levada a questão a julgamento, afirmou-se que não há razoabilidade em se considerar que o tempo de serviço de um secretário de Estado deva valer o dobro que o dos demais servidores. Em virtude disso, a distinção foi considerada inválida, pois a instituição de distinção sem causa concreta viola o princípio da igualdade”. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 157) 76 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 158.

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Nisso consistem as três acepções de razoabilidade.

Por sua vez, no que tange à proporcionalidade,77 Humberto Ávila

pontua que se trata de postulado que estrutura a “aplicação de princípios que

concretamente se imbricam em torno de uma relação de causalidade entre um

meio e um fim”.78 Isto quer dizer que, para que seja aplicável, é necessária a

existência dos elementos que permitem sua aplicação, quais sejam um meio e

um fim concretos e uma relação de causalidade entre eles decorrente da

aplicação de princípios. Nesse sentido afirma o autor:

A proporcionalidade constitui-se em um postulado normativo aplicativo, decorrente do caráter principal das normas e da função distributiva do Direito, cuja aplicação, porém, depende do imbricamento entre bens jurídicos e da existência de uma relação meio/fim intersubjetivamente controlável. Se não houver uma relação meio/fim devidamente estruturada, então – nas palavras de Hartmut Maurer – cai o exame de proporcionalidade, pela falta de pontos de referência, no vazio.79

Como se percebe, a força estruturadora da proporcionalidade

repousa justamente na forma como podem ser precisados os efeitos do meio

utilizado e de como é definido o fim que justifica a adoção da medida.

77 Note-se que o autor diferencia o postulado da proporcionalidade dos postulados da justa proporção, da ponderação de bens, da concordância prática e da proibição do excesso, assim justificando: “enquanto esse exige uma realização proporcional de bens que se entrelaçam numa dada relação jurídica, independentemente da existência de uma restrição decorrente de medida adotada para atingir um fim externo, o postulado da proporcionalidade exige adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito de uma medida havida como meio para atingir um fim empiricamente controlável. O postulado da proporcionalidade não se identifica com o da ponderação de bens: esse último exige a atribuição de uma dimensão de importância a valores que se imbricam, sem que contenha qualquer determinação quanto ao modo como deve ser feita essa ponderação, ao passo que o postulado da proporcionalidade contém exigências precisas em relação à estrutura de raciocínio a ser empregada no ato de aplicação. O postulado da proporcionalidade não é igual ao da concordância prática: esse último exige a realização máxima de valores que se imbricam, também sem qualquer referência ao modo de implementação dessa otimização, enquanto a proporcionalidade relaciona o meio relativamente ao fim, em função de uma estrutura racional de aplicação. O postulado da proporcionalidade não se confunde com a proibição de excesso: esse último veda a restrição da eficácia mínima de princípios, mesmo na ausência de um fim externo a ser atingido, enquanto a proporcionalidade exige uma relação proporcional de um meio relativamente a um fim”. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 164-165) 78 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 162. 79 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.162.

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Todavia, no que tange à relação entre meio e fim, o autor faz uma

diferenciação entre os fins internos e os fins externos. Os primeiros

estabelecem um resultado a ser alcançado que reside na própria pessoa ou na

situação objeto de comparação e diferenciação, exigindo, pois, somente um

exame de correspondência, tendo em vista que, nestas hipóteses, o meio e o

fim se confundem. Neste sentido são muito elucidativas as palavras do autor a

respeito da capacidade contributiva como fim interno:

O decisivo é que os fins internos exigem determinadas medidas de apreciação que se relacionam com as pessoas ou situações, e devem realizar uma propriedade que seja relevante para determinado tratamento. Daí a razão pela qual se faz referência a medidas de justiça ou juízos de justiça: a capacidade contributiva é tanto medida, pois consiste em critério para a tributação justa, quanto fim, pois estabelece algo cuja existência fundamenta a própria realização da igualdade. A capacidade contributiva não causa a justiça da tributação; e o meio e o fim confundem-se, em razão de não poderem concretamente discernidos. Como consequência disso, o exame de igualdade do ponto de vista de um fim interno e uma medida de justiça exige tão somente um exame de correspondência.

De outro lado, no caso dos fins externos o resultado não reside na

própria pessoa ou na situação objeto de comparação. Pelo contrário, os fins

externos – como o próprio nome já diz – estabelecem resultados que se

encontram fora do sujeito ou da situação objeto de comparação, não havendo,

assim, confusão entre o meio e o fim, de tal sorte que os fins se encontram

numa dimensão extrajurídica. Neste caso, o fim a ser atingido estará

determinado em certo princípio, enquanto o meio decorrerá da aplicação de

outro princípio. Daí o porquê da proporcionalidade ser o “postulado estruturador

da aplicação de princípios que concretamente se imbricam em torno de uma

relação de causalidade entre um meio e um fim”.80

Sobre os fins externos são interessantes as palavras do autor:

80 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 162

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Os fins externos estabelecem resultados que não são propriedades ou características dos sujeitos atingidos, mas que se constituem em finalidades atribuídas ao Estado, e que possuem uma dimensão extrajurídica. Por isso, podem-se separar duas realidades que se diferenciam no plano concreto: a relação entre meio e fim é uma relação entre causa e efeito. Os fins externos são aqueles que podem ser empiricamente dimensionados, de tal sorte que se possa dizer que determinada medida seja meio para atingir determinado fim (relação causal).81

Diante do exposto, o autor conclui que, ao contrário dos fins internos

– aonde meio e fim se confundem e, por isso, basta um exame de

correspondência –, os fins externos admitem o controle de adequação,

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

No que toca à adequação, Humberto Ávila afirma que ela exige a

existência de uma relação empírica entre o meio escolhido e o fim almejado,

isto é, o meio deve levar a realização do fim. Entretanto, para identificar seu

conteúdo e sua amplitude o autor elabora três perguntas: O que significa um

meio ser adequado à realização de um fim? Como deve ser analisada a

relação de adequação? Qual deve ser a intensidade de controle das decisões

adotadas pelo Poder Público?

Em resposta à primeira pergunta, o autor estabelece a necessidade

de se analisar as espécies de relação existentes entre os vários meios

disponíveis e o fim que se deve prover, as quais são analisáveis sob três

aspectos: quantitativo, qualitativo e probabilístico:

Em termos quantitativos, um meio pode promover menos, igualmente ou mais o fim do que outro meio. Em termos qualitativos, um meio pode promover pior, igualmente ou melhor o fim do que outro meio. E, em termos probabilísticos, um meio pode promover com menos, igual ou mais certeza o fim do que outro meio.82

81 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 164. 82 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 166.

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Conforme pontua o autor, desta diferenciação surge uma questão: a

Administração Pública e o legislador têm o dever de escolher o mais intenso, o

melhor e o mais seguro meio para atingir o fim ou deve escolher um meio que

simplesmente promova o fim? Segundo o autor, o Poder Executivo e o Poder

Legislativo têm o dever de escolher um meio que simplesmente promova o fim,

ainda que não seja o mais intenso, o melhor, nem o mais seguro.

De outro lado, para responder à segunda pergunta, o autor pontua

ser preciso verificar em quais dimensões pode ser analisada a adequação.

Estas são de três espécies: abstração/concretude, generalidade/particularidade

e antecedência/posteridade. Na primeira dimensão, pode-se exigir a adoção de

uma medida abstratamente adequada para promover o fim, isto é, se o fim for

possivelmente realizável com sua adoção, ou pode-se exigir a adoção de uma

medida concretamente adequada para promover o fim, quer dizer, somente

será adequada se o fim for efetivamente realizado no caso concreto. Já na

segunda dimensão pode-se exigir a adoção de uma medida geralmente

adequada para promover o fim, isto é, se o fim for realizado na maioria dos

casos, ou pode-se exigir a adoção de uma medida de uma medida que seja

individualmente adequada para promover o fim, quer dizer, se todos os casos

individuais demonstrarem a realização do fim. Finalmente, na terceira

dimensão pode-se exigir a adoção de uma medida que seja adequada no

momento em que foi adotada – se a medida adotada revelou-se equivocada

em momento posterior, com informações disponíveis somente mais tarde, é

impertinente – ou exigir a adoção de uma medida que seja adequada no

momento em que vai ser julgada – se a medida adotada se mostrou

equivocada em momento posterior, com informações disponíveis mais tarde,

ainda assim será anulada.

Com vistas às três dimensões mencionadas, o autor esclarece que

“a adequação deverá ser avaliada no momento da escolha do meio pelo Poder

Público, e não em momento posterior, quando a escolha é avaliada pelo

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julgador”.83 Isto porque, segundo afirma, este exame exige do aplicador uma

análise na qual preponderam juízos de cunho probabilístico e indutivo.84

Finalmente, no que se refere à terceira pergunta, o autor afirma ser

imprescindível analisar os dois níveis de controle, quais sejam o controle forte e

o controle fraco. No primeiro tipo, qualquer demonstração de que o meio não

promove a realização do fim é suficiente para declarar a invalidade da medida

adotada. Já no segundo, apenas uma demonstração objetiva, evidente e

fundamentada, isto é, uma comprovação cabal da inadequação, pode levar à

invalidade da medida adotada. Para o autor, o segundo modelo é o único que

se coaduna com o princípio da separação de poderes:

O exame do entrecruzamento entre o dever de preservar a liberdade do legislador e o dever de proteger os direitos fundamentais do administrado revela abstratamente uma encruzilhada em que se resguarda um âmbito mínimo de liberdade para o legislador e para o administrador. Somente uma comprovação cabal da inadequação permite a invalidação da escolha do legislador ou administrador. Essas considerações levam ao entendimento de que o exame da adequação só redunda na declaração de invalidade da medida adotada pelo Poder Público nos casos em que a incompatibilidade entre o meio e o fim for claramente manifesta. Caso contrário deve prevalecer a opção encontrada pela autoridade competente.85

Nesse diapasão, com as respostas apresentadas às três perguntas

formuladas pelo autor respondidas ele encerra o exame da adequação. Dito

isso, passamos à análise do próximo exame inerente ao postulado da

proporcionalidade, isto é, o exame da necessidade.

83 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 168. 84 Nesse ponto parece que o autor responde, de forma expressa, apenas à indagação proveniente da analise da terceira dimensão que responde à segunda pergunta, no sentido de que, neste caso, prevalece a antecedência. A posição adotada por ele deixa implícito que a prevalência da abstração/concretude (primeira dimensão) e da generalidade/particularidade (segunda dimensão) irá depender do fim que se pretende atingir. São, portanto, questões empíricas inerentes a analise da adequação. 85 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 169-170.

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Conforme preceitua Humberto Ávila, o exame da necessidade exige

a verificação da existência de meios alternativos àquele escolhido e que

possam promover igualmente o fim almejado, restringindo em menor

intensidade os direitos fundamentais afetados. Constata-se, pois, que o exame

da necessidade se divide em duas etapas de investigação: a primeira é a do

exame da igualdade de adequação dos meios; a segunda é a do exame do

meio menos restritivo. Na primeira etapa busca-se verificar se os meios

alternativos atingem igualmente o fim – análise que já foi feita previamente com

relação à medida adotada. Na segunda, o intuito é examinar se os meios

alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais

colateralmente afetados.

Uma análise com base na necessidade seria simples quando diante

de meios cuja intensidade de promoção do fim é a mesma, variando, apenas, o

grau de restrição. Entretanto, nem sempre isto acontece, e a análise fica mais

problemática, como pondera o próprio autor:

Os problemas começam, porém, quando os meios são diferentes não só no grau de restrição dos direitos fundamentais, mas também no grau de promoção da finalidade. Como escolher entre um meio que restringe pouco um direito fundamental mas, em contrapartida, promove pouco o fim, e um meio que promove bastante o fim mas, em compensação, causa muita restrição a um direito fundamental? A ponderação entre o grau de restrição e o grau de promoção é inafastável.86

É justamente essa problemática que nos leva à análise do terceiro

exame inerente à proporcionalidade, qual seja o exame da proporcionalidade

em sentido estrito. Isto porque o referido exame tem como objetivo justamente

a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da

restrição aos direitos fundamentais. Ou seja, é neste ponto que ocorre a

ponderação. Sobre esta ponderação inerente ao exame da proporcionalidade

em sentido estrito assim se manifesta o autor:

86 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 172-173.

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A pergunta que deve ser formulada é a seguinte: o grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos fundamentais? Ou, de outro modo: as vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde à desvalia da restrição causada? Trata-se, como se pode perceber, de um exame complexo, pois o julgamento daquilo que será considerado como vantagem e daquilo que será contado como desvantagem depende de uma avaliação fortemente subjetiva.87

Diante de todo o exposto, resta claro que para Humberto Ávila

razoabilidade e proporcionalidade são coisas diferentes, em que pese ambas

possuam a natureza jurídica de postulado normativo aplicativo, sendo que os

exames de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito são

inerentes apenas à última.

1.10. Eros Roberto Grau

Ao contrário dos autores até aqui apresentados, Eros Roberto Grau

apresenta uma posição que, em parte, se assemelha as anteriores, mas que,

ao final, se mostra um tanto peculiar.

De acordo com o autor mencionado, o Direito possui dois planos de

normatividade, um deles é o direito posto, enquanto o outro é o direito

pressuposto. O primeiro é o direito positivo, isto é, o direito formal. O segundo é

a relação jurídica interior à sociedade civil e que “preexistia, como direito

pressuposto, [mas que] quando o Estado põe a lei torna-se direito posto (direito

positivo)”. E o autor explica um pouco melhor o que quis dizer:88

Em outros termos: o legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direito positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própria base. O direito pressuposto condiciona a elaboração do direito posto, mas este modifica o direito pressuposto.89

87 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 173. 88 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 63. 89 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 64.

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E complementa mais a frente:

É que afirmar que o modo de produção da vida social determina o direito é afirmar que o direito pressuposto é um produto cultural. Cada modo de produção produz sua cultura e o direito pressuposto nasce como elemento dessa cultura.90

Pode-se dizer, portanto, que o direito posto e o direito pressuposto

possuem uma relação condicional, na qual o primeiro encontra legitimidade no

segundo, mas ao mesmo tempo o primeiro – em que pese seja legitimado por

ele – modifica o segundo, na medida em que o direito pressuposto é um

produto cultural, e que o direito posto enquanto regulação social posta pelo

Estado também é um modo de produção de cultura (vide, por exemplo, a

função educativa do direito e a função contramajoritária do direito).91

Todavia, cumpre atentar ao fato de que, para o autor, o direito

pressuposto não é extrajurídico. Pelo contrário, conforme afirma, este direito

repousa em normas jurídicas:

O direito pressuposto é fundamentalmente princípios, nada obstando, de toda sorte, a que nele vicejem regras, entendidas estas como normas jurídicas cujo grau de generalidade é mais estreito do que o grau de generalidade dos princípios. Assim, posso dizer que o direito pressuposto compreende normas, regras e especialmente princípios.92

A partir dessa afirmação podemos perceber que Eros Roberto Grau

partilha a ideia de que as normas jurídicas são um gênero, do qual regras e

princípios são espécies. Contudo, após analisar os critérios de diferenciação

90 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 64. 91 Isso porque, conforme ressalta o autor, em que pese o direito não seja uma ideologia é uma expressão ideológica: “O que pretendo afirmar, neste passo, é que, embora o direito não possa ser visualizado exclusivamente como ideologia, é também, sempre, em qualquer sociedade historicamente existente – logo, em qualquer modo de produção com existência histórica –, uma expressão ideológica”. (GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 68) 92 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 77.

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entre eles apresentados por diversos autores93, o autor elegeu três como os

critérios de diferenciação aptos a realizar este objetivo:

Primeiro: a generalidade da regra jurídica é diversa da generalidade de um princípio jurídico [Boulanger]. A regra é geral porque estabelecida para um número indeterminado de atos ou fatos; não obstante, ela é especial na medida em que não regula senão tais atos ou tais fatos; é editada para ser aplicada a uma situação jurídica determinada; já o princípio, ao contrário, é geral porque comporta uma série indefinida de aplicações. Segundo: a síntese de Canotilho, reproduzida linhas acima, no item 62, à qual me reporto.94 Terceiro: a diferença entre regra e princípio surge exclusivamente no momento da interpretação/aplicação [Prieto Sanchis e Gianformaggio], de modo que apenas no curso do processo de interpretação (no perpassar do círculo hermenêutico) o interprete poderá decidir se há ou não há conflito entre regras ou colisão entre princípios; ora, se efetivamente é o tipo de oposição (conflito ou colisão) que define regra e princípio, então apenas durante o processo de interpretação poder-se-á operar-se a distinçã.95

São estes, portanto, os critérios de diferenciação entre regras e

princípios eleitos pelo autor.

93 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 169-187. 94 “(1) Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma otimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fáticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem, proíbem) que é ou não cumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-or-nothing fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebelsky); a convivência das regras é antinômica. Os princípios coexistem; as regras antinômicas excluem-se. “(2) Conseqüentemente, os princípios, ao constituírem exigências de otimização, permitem balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como regras, à ‘lógica do tudo ou nada’), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflituantes; as regras não deixam espaço aberto para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exata medida das suas prescrições, nem mais, nem menos. “(3) Em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas ‘exigências’ ou Standards que, em ‘primeira linha’ (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm ‘fixações normativas’ definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. “(4) Os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são corretas devem ser alteradas)” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 5ª ed., p. 173-174. Apud, GRAU, Eros Roberto, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 20009. p. 185-186) 95 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 188.

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Todavia, no que toca à proporcionalidade, o autor parte da premissa

de que o chamado princípio da proporcionalidade é, na verdade, um postulado

normativo aplicativo, adotando assim, expressamente, a posição defendida por

Humberto Ávila.96 Conforme afirma, a proporcionalidade não é um princípio,

pois como salientado por Robert Alexy os chamados subprincípios da

adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito não são

passíveis de ponderação, na medida em que o que se pergunta é se as suas

exigências foram satisfeitas ou não, sendo que a sua não satisfação acarreta a

nulidade da medida.

Não obstante isso, Eros Roberto Grau afirma que vem ocorrendo a

banalização da proporcionalidade, quem vem sendo considerada um princípio

superior, atribuindo-lhe a pretensão de aplicabilidade não exclusivamente no

momento da definição da norma de decisão, mas também no momento da

produção das normas jurídicas gerais, o que, além de ser contrário a sua

natureza normativa, culmina na afronta à separação de poderes:

Nossa doutrina o tem [princípio da proporcionalidade], porém, banalizado, de modo a, tomando-o como um princípio superior, pretender aplicá-lo não exclusivamente no momento da definição de cada norma de decisão, mas no primeiro momento de interpretação/aplicação do direito, o da produção das normas jurídicas gerais, o que conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de ‘corrigir’ o legislador, invadindo a competência deste.97

No tocante à razoabilidade, o autor entende se tratar também de

postulado normativo aplicativo, e adota o mesmo critério de diferenciação

proposto por Humberto Ávila. 98 Nestes termos, tanto a proporcionalidade

96 Isso num primeiro momento, pois, mais a frente, na mesma obra, após adotar a posição de que proporcionalidade e razoabilidade são postulados normativos, conforme proposto por Humberto Ávila, o autor afirma que a proporcionalidade nada mais do que um novo nome dado à eqüidade: "O que pretendo singelamente afirmar, inspirado em Neumann, é que a proporcionalidade não passa de um novo nome dado à eqüidade". (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 193) 97 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 189. 98 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 190-191.

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quanto a razoabilidade são postulados normativos de interpretação/aplicação99

do direito e, como tais, se prestam unicamente a informar a formulação da

norma de decisão no momento da aplicação do direito. E mais, segundo seu

entendimento, não há qualquer espécie de novidade na proporcionalidade e na

razoabilidade – no que acompanha Humberto Ávila –, haja vista que ambas

vêm sendo utilizadas na interpretação/aplicação do direito há longa data:

Nada há de novo na proporcionalidade e na razoabilidade, postulados que desde há muito – e independentemente da formulação dessas duas noções – vem o Poder Judiciário exercitando na interpretação/aplicação do direito, como se ambas estivessem contidas nas suas dobras.100

No entanto, Eros Roberto Grau parte para uma vertente bastante

peculiar, que o afasta da teoria elaborada por Humberto Ávila. Isto porque ele

afirma – apoiado em Franz Neumann – que “a proporcionalidade não passa de

um novo nome dado à equidade”.101 Para tanto o autor explica a relação da

equidade com o direito enquanto direito do Estado, bem como com o modo de

produção da economia, expondo, assim, as razões de seu declínio:

A equidade, como anotou Franz Neumann (1975:171) ao tratar da teoria jurídica liberal [liberal legal theory], era sempre denunciada como incompatível com a calculabilidade, o primeiro requisito do direito liberal [= direito moderno]. Era necessário transformar-se a equidade em um sistema rígido de normas, a fim de que fosse assegurada a calculabilidade exigida pelas transações econômicas. Como o mercado reclamava a produção de normas jurídicas, pelo Estado, que garantissem a calculabilidade e confiança nas relações econômicas, essa necessidade justificou, ainda segundo Neumann (1975:167-168), a limitação de poder da monarquia patrimonial e do feudalismo. Essa limitação culminou na instituição do poder legislativo dos parlamentos; a tarefa primordial do Estado é a criação de uma ordem jurídica que torne possível o cumprimento das

99 Conforme textualmente transcrito, a partir deste ponto o autor para de denominá-los postulados normativos aplicativos e passa chamá-los de postulados normativos da interpretação/aplicação. (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 191) 100 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 191. 101 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. 193.

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obrigações contratuais e calculável a expectativa de que essas obrigações serão cumpridas. A equidade comprometia essa calculabilidade e a segurança jurídica. Daí o direito posto pelo Estado, que a rejeita e substitui.102

Entretanto, o autor pontua que a equidade – que remonta a

Aristóteles – funciona como um balizador da lei, norma geral e abstrata,

visando garantir a justiça no caso concreto, respeitadas suas individualidades.

Desta forma, por mais que o direito moderno e o modo de produção da

economia pretendam afastar a equidade da atividade jurídica, ela muitas vezes

se faz necessária por conta de seu caráter individualizante e, então, nestas

hipóteses, a ela têm sido atribuídos outros nomes:

Lembre-se que a equidade opõe-se ao caráter geral da lei [= do direito moderno]. Como observei anteriormente (item 33), Aristóteles (1990:V 14, 14, 1.137b, 10-20] sustentava a necessidade de correção da justiça legal, porque a matéria das coisas da ordem prática reveste-se do caráter de irregularidade. Por isso, quando a lei expressa uma regra geral, e surge algo que se coloca fora dessa formulação geral, devemos, onde o legislador omitiu a previsão do caso e pecou por excesso de simplificação, corrigir a omissão e fazer-nos interpretes do que o legislador teria dito, ele mesmo, se estivesse presente neste momento, e teria feito constar da lei se conhece o caso em questão. O fato, porém, é que a lição de Aristóteles foi esquecida, a equidade foi tragada pelo direito moderno, avesso a qualquer possibilidade de subjetivismo na aplicação da lei pelo juiz. E de modo tal que, em face da realidade, quando a sua concepção é retomada – e isso desejo sustentar – em borá assumindo a mesma forma e conteúdo, ela toma outros nomes. Inicialmente, o de razoabilidade; mais recentemente, o de proporcionalidade. O que pretendo singelamente afirmar, inspirado em Neumann, é que a proporcionalidade não passa de um novo nome dado à equidade. Sua rejeição pelo direito moderno, porque incompatível com a calculabilidade e a segurança jurídica, era plenamente adequada a teoria da subsunção, hoje superada.103

102 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 192. 103 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 193.

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Como se percebe, o autor remonta à teoria da justiça aristotélica

para buscar a noção de equidade como forma de garantia de justiça aos casos

concretos, premissas teóricas estas que vêm sendo retomadas cada vez mais

com maior amplitude pela Ética e pela Filosofia do Direito atual.104 Para tanto, o

autor fundamenta sua retomada no caminho percorrido pelo direito (posto) para

atender às exigências das relações econômicas (superestrutura; direito

pressuposto), nos moldes apresentados por Franz Neumann.

Em suma, para Eros Roberto Grau, as normas jurídicas são um

gênero do qual as espécies são as regras e os princípios. Independentemente

do critério de diferenciação adotado por ele, salta aos olhos o fato de que, para

o autor, as regras estão no plano do direito posto, enquanto os princípios estão

no plano do direito pressuposto – salvo raras exceções, conforme por ele

mencionado, mas não explicado. Entretanto, razoabilidade e proporcionalidade

não são princípios, mas postulados normativos de interpretação/aplicação105,

os quais, na verdade, sempre estiverem presentes na atividade jurídica de

interpretação/aplicação do direito, mas sob a alcunha de equidade. 106 E

encerra esclarecendo que sua atuação ocorre apenas no momento de criação

da norma de decisão – interpretação in concreto –, e não no de produção da

norma jurídica – interpretação in abstrato.

1.11. Marcelo Neves

104 Nesse sentido vide: SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Braisleira, 2012; AMARTYA, Sen. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Bauru: EDUSC, 2001. 105 Aqui o autor não deixa claro se admite que estes postulados sejam normas jurídicas (de primeiro ou de segundo grau). Contudo, como se refere à posição de Humberto Ávila sem que faça oposição expressa neste sentido, nos parece que o autor acompanha este último no entendimento de se trata de normas de segundo grau. 106 Quando o autor afirma que a equidade assumiu inicialmente o nome de razoabilidade e, mais recentemente, o de proporcionalidade, dá a entender que ambas seriam a mesma coisa (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 193). No entanto, o autor adota na mesma obra, em momento anterior, o critério de diferenciação entre proporcionalidade e razoabilidade (como equivalência) apresentado por Humberto Ávila (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 190-191). Acreditamos, pois, que este ponto em especial merece um esclarecimento por parte do autor.

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Assim como ocorre na obra de Humberto Ávila, Marcelo Neves

também rompe com a tradicional conceituação de regras e princípios. Isto não

quer dizer que ele afaste o reconhecimento destas duas espécies do gênero

norma jurídica, mas apenas que adota outro critério de diferenciação.

Inicialmente, o autor estabelece como premissa que somente

quando existir uma controvérsia sobre a norma a aplicar, no plano concreto,

diante do dever de proferir decisão para um conflito interpessoal, ou quando

diante do controle abstrato de normas, é que terá relevância prática e teórica a

diferenciação entre regras e princípios. Quer dizer que esta diferenciação

somente admite problematização no plano da argumentação jurídica.107 Desta

forma, “a distinção entre regras e princípios só pode ser tematizada no plano

discursivo”.108

Entretanto, o autor não para simplesmente na teoria do agir

comunicativo de Jürgen Habermas, mas analisa os dois planos (da ação e do

discurso) sob uma noção sistêmica – especialmente o segundo, que para a

finalidade de sua obra é o que mais lhe interessa –, pois é justamente esta

abordagem sistêmica que permite a discussão sobre a validade, o sentido, as

condições de cumprimento, etc. das normas a serem aplicadas. Disto decorre

que os princípios e regras são normas constantemente reconstruídas pelo

processo de argumentação jurídica.

107 Ao relegar ao plano da argumentação jurídica a discussão a respeito da diferenciação entre regras e princípios o autor se pauta na teoria de Jürgen Habermas do agir comunicativo. De acordo com esta teoria existe uma diferença entre ação e discurso, a qual é explicada pelo próprio autor: “Segundo essa concepção, no plano da ação, que faz parte de nossa prática cotidiana, as pretensões de validade são aceitas ingenuamente, não sendo problematizadas. A ação, nesse sentido, desenvolve-se na prática cotidiana, tendo como pano de fundo o ‘mundo da vida’, que constitui o ‘horizonte em que os agentes comunicativos movimentam-se’, partilhando recíproca e tacitamente as pretensões de validade envolvidas em suas manifestações e afirmações, sem questioná-las. (...) Quando, porém, as pretensões de validade sustentadas implicitamente em ações ou atos de fala são problematizadas na interação concreta e exige-se justificação do respectivo agente ou falante, entra-se no plano do discurso, no qual, diversamente do plano da ação, não se ganham novas informações, mas há intercâmbio de argumentos. Então, as próprias pretensões de validade que foram problematizadas tornam-se o objeto ou tema da discussão e precisam ser fundamentadas. O que era ingenuamente suposto como verdadeiro ou justo no plano da ação passa a ser suscetível de questionamento e crítica”. (NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 96-97) 108 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013., p. 99.

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No que toca ao momento da argumentação jurídica, assim dispõe o

autor:

A argumentação jurídica ocorre na intersecção entre a justificação e a aplicação das normas. Com ela, ao contrário do que pretende Günther, saímos do plano da mera aplicação ou observância (que também ocorre em modos e condições diversas conforme a situação) e procuramos dar uma nova luz à aplicação mediante a discussão sobre a justificação sistêmico-interna das normas a aplicar. 109

Todavia, poder-se-ia – com base na teoria sistêmica – terminar por

levar a distinção entre regras e princípios a uma síntese dicotômica, o que o

autor chama de forma de dois lados, isto é, assim como temos no âmbito do

sistema as dicotomias validade/invalidade, lícito/ilícito, igualdade/desigualdade,

teríamos também a dicotomia regra/princípio. Contudo, o autor afirma que a

diferença entre regra e princípio se constrói e operacionaliza a partir de dois

conceitos de conteúdo e, por isto, não seria passível de enquadramento como

forma de dois lados, isto é, não constituiria uma dicotomia no âmbito do

sistema. Pelo contrário, para explicar sistematicamente a diferença entre regra

e princípio o autor se aproxima do conceito de tipo-ideal, conforme utilizado por

Max Weber.110 A diferença é que, enquanto Max Weber constrói o conceito de

tipo-ideal a partir da noção de sujeito transcendental, o autor concebe o tipo-

ideal “como estrutura cognitiva de seleção das ciências sociais em relação à

realidade ambiente, que, diante delas, apresenta-se mais complexa e

desestruturada”.111

No entanto, no âmbito normativo, os tipos ideais não orientam

expectativas cognitivas mas, pelo contrário, estabilizam expectativas 109 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 100-101. 110 “Os tipos ideais, definidos por Weber como ‘utopias’ gnosiológicas, nunca são encontrados em forma pura na realidade social, servindo antes como esquemas de sua interpretação com ênfase unilateral em determinados elementos mais relevantes ao conhecimento que se pretende obter. Na concepção weberiana de tipo ideal, ‘os elementos considerados não essenciais ou casuais para a constituição da hipótese’ não são tomados em conta”. (NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 101-102) 111 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 102.

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normativas, destinando-se, assim, à ordenação seletiva das disposições e

enunciados normativos oferecidos pelo direito positivo.112 E, conforme conclui,

“princípios e regras desempenham este papel no plano da argumentação

jurídica”.113

Diante do exposto, Marcelo Neves estabelece que os princípios são

normas no plano reflexivo, as quais possibilitam o balizamento, a construção ou

a reconstrução de regras. Já as regras são condições de aplicação dos

princípios à solução do caso, pois figuram como razões imediatas para normas

de decisão. A afirmação de que uma norma figura como princípio ou como

regra ocorrerá exclusivamente na cadeia argumentativa, e dependerá do modo

mediante o qual a norma será incorporada do ponto de vista funcional-

estrutural no processo argumentativo, isto é, durante o processo de

argumentação, que ocorre no plano do discurso, a estrutura e a função da

norma in aplicando no sistema é que definirá se ela é uma regra ou um

princípio, sendo impossível realizar esta aferição fora do plano do discurso, ou

seja, fora da argumentação jurídica.

O problema é que, por se tratar de conceitos normativos análogos

aos tipos-ideais, cuja aferição ocorre no âmbito argumentativo em meio à

dinâmica jurídica 114 , não há como imunizá-los de qualquer contaminação

recíproca. Daí a razão de o autor admitir a existência de uma terceira categoria,

à qual ele nega o status de tipo-ideal de norma jurídica, mas da qual ele não

pode retirar a normatividade (força normativa). Estes são os híbridos:

O enquadramento conceitual proposto no presente trabalho não comporta um terceiro ‘tipo-ideal’ de normas (sem que se negue aqui a existência de outros padrões no sistema jurídico além das normas). Ou as normas estão no nível reflexivo da ordem jurídica, servindo tanto para o balizamento ou a construção hermenêutica de outras normas, mas não sendo

112 Note-se que o autor inclui aqui não apenas o repertório de legislação, mas também a jurisprudência, o que é rechaçado por alguns autores. 113 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 103. 114 O próprio autor se vale da noção de dinâmica jurídica apresentada na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, ressalvando, contudo, não adotar a teoria positivista kelseniana. (NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 117, nota 80)

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razão definitiva para uma norma de decisão de questões jurídicas, e, portanto, devem ser classificadas primariamente como princípios; ou elas são normas suscetíveis de atuar como razão definitiva de questões jurídicas, não atuando como mecanismo reflexivo, e, portanto, devem ser classificadas primariamente como regras. Se não for possível enquadrá-la primariamente em nenhuma das categorias, cabe falar de híbridos.115

Temos, portanto, de acordo com Marcelo Neves, dois tipos-ideais de

normas que servem para estabilizar as expectativas normativas: regras e

princípios. Contudo, sempre que a análise sistêmica, ocorrida no processo

argumentativo, do ponto de vista funcional-estrutural, não permitir que se

classifique primariamente uma norma jurídica como regra ou como princípio,

estaremos diante de um híbrido que, em que pese não corresponda a um tipo-

ideal, por uma questão de lógica sistemática, deve ser encarado como uma

categoria de norma jurídica. Desta forma, existem dois tipos ideais de normas

jurídicas que são as regras e os princípios, mas, de outro lado, há três espécies

normativas, que são as regras, os princípios e os híbridos.

Pois bem, a partir da classificação de regras, princípios e híbridos,

Marcelo Neves passa à questão da proporcionalidade. Segundo afirma, a

proporcionalidade se apresenta como “uma condição de funcionamento efetivo

e consistente de uma ordem de regras e princípios”.116 Por se tratar de uma

condição de funcionamento poderia parecer inadequado, num primeiro

momento, enquadrá-la com norma jurídica. Mas, uma vez que dentro do

sistema jurídico a utilização desta condição de funcionamento passe a ser

concebida como um dever para os encarregados da interpretação/aplicação,

então, diante da imposição deste dever, ela passa a ser enquadrada como uma

norma do sistema. Neste caso a condição de funcionamento do ordenamento

passa a ser norma do ordenamento através do instituto do reentry, que é

justamente aquele que permite acolhida pelo ordenamento jurídico, na

condição de norma, de uma condição de funcionamento – ou condição de

possibilidade de funcionamento, como também chamada pelo autor – da ordem

115 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 109. 116 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 109-110.

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normativa sistematizada, seja no tocante a organização coerente do sistema ou

no que diz respeito à aplicação de normas.117

No que toca ao uso dos critérios de adequação e necessidade, estas

são “normas que exigem a racionalidade pragmática de meios e fins em

relação à aplicação dos direitos fundamentais”118 e, portanto, são claramente

enquadradas como regras. Afinal, servem imediatamente à solução da

controvérsia, e se apresentam como razões definitivas para a decisão da

medida adotada na restrição de direitos fundamentais – se é adequada e

necessária ao fim que busca realizar.

Já no que diz respeito à proporcionalidade em sentido estrito, a qual

traz consigo o mandamento da ponderação – embora com ele não se confunda

– a situação muda de figura. Isto porque, sob o ponto de vista estrutural, é uma

regra, na medida em que se apresenta como um critério ou uma razão

definitiva para a solução do caso, mas no aspecto funcional é um princípio, pois

atua no nível reflexivo do sistema jurídico, articulado com os princípios em via

de sopesamento. Desta forma, conclui que a proporcionalidade em sentido

estrito é um híbrido.

Com vistas ao exposto é possível concluir que, para Marcelo Neves,

proporcionalidade é um critério que funciona como condição de funcionamento

do sistema, na medida em que viabiliza a aplicação de normas – notadamente

dos direitos fundamentais –, e que foi incorporado ao ordenamento com o

status de norma jurídica através do instituto do reentry.

117 “Por fim, cabe observar que nem todas as condições de possibilidade do funcionamento de uma ordem normativa ou da aplicação de uma norma passam a ser normas mediante reentry. Assim como os conceitos de matéria e energia enquanto condições de possibilidade da própria física não constituem uma lei física, o princípio lógico da não contradição enquanto condição de possibilidade da aplicação consistente de normas (pois eu não posso fazer e não fazer algo ao mesmo tempo), não é, em sim mesmo, norma, atuando antes como critério para que se definam normas para a solução de conflitos normativos”. (NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 111-112) 118 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 110.

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Entretanto, não fica claro se, uma vez incorporada ao ordenamento,

a proporcionalidade assume o caráter de norma do tipo híbrido, na medida em

que as normas dela decorrentes são enquadradas em categorias diversas,

quais sejam, a adequação e a necessidade são regras, enquanto a

proporcionalidade em sentido estrito é um híbrido; ou se, não obstante a

natureza específica da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em

sentido estrito, o critério da proporcionalidade em si, analisado isoladamente,

seria por seu enquadramento funcional uma regra, na medida em que serve

imediatamente à solução da controvérsia, apresentando-se como razão

definitiva para decisão da medida a ser adotada.

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2. CIÊNCIA E TÉCNICA JURÍDICA

Após verificar o que diz a doutrina a respeito da proporcionalidade –

no que tange à sua natureza jurídica, forma de aplicação e sua fonte no direito

positivo –, no presente capítulo nossa proposta é analisar a relação entre

técnica e ciência na perspectiva jurídica.

Acreditamos que é de suma importância averiguar qual a relação

entre técnica e ciência dentro da ótica do direito. Afinal, o resultado desta

análise irá influenciar de forma significativa as conclusões que serão

apresentadas no terceiro capítulo, isto é, o estudo e o consequente

enquadramento da proporcionalidade no âmbito do direito.

2.1. O paradigma dominante da ciência

Em se tratando de filosofia da ciência, sabe-se que, inclusive nos

dias atuais, vigora um conceito de cientificidade pautado essencialmente nas

premissas analítico-científicas das ciências naturais, as quais se pautam na

linguagem matemática. Isto, como afirma Ernst Cassirer, se deve à descoberta

pelos gregos da linguagem dos números:

Em seus primeiros estágios, a ciência tinha ainda de aceitar os nomes das coisas no sentido em que eram usados na fala cotidiana. Podia usá-los para descrever os elementos fundamentais ou as qualidades das coisas. Nos primeiros sistemas gregos de filosofia natural, em Aristóteles, vemos que esses nomes comuns ainda exercem grande influência sobre o pensamento científico. Mas no pensamento grego esse poder já não é o único, nem o predominante. Na época de Pitágoras e dos primeiros pitagóricos, a filosofia grega havia descoberto uma nova linguagem, a dos números. Essa descoberta marcou o momento do nascimento da nossa moderna concepção de ciência.119

A partir dos gregos, a linguagem matemática começou a aforar-se

no posto de linguagem oficial da ciência, não admitindo a atribuição dos

contornos de cientificidade para outra espécie de linguagem que não ela 119 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 342.

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própria. Daí o porquê de Ernst Cassirer afirmar que “a ciência não fala mais a

língua da experiência sensorial comum, mas o idioma pitagórico”.120 Ou seja, a

partir da apropriação da linguagem científica pela matemática, os dados

analisados e interpretados precisam ser sistematizados dentro dos parâmetros

da linguagem matemática, sob pena de receberem a alcunha de anticientíficos.

Neste sentido, a afirmação de Boaventura de Souza Santos é emblemática:

Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida me que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.121

Foi justamente essa lógica científico-matemática que levou Platão a

conceber um mundo das ideias concebido por conceitos absolutos (seres em

si) e formas ideais perfeitas, tendo destacado entre estas os números da

aritmética122 e as formas geométricas123, na medida em que somente eles são

concebíveis no plano da pura intelecção racional – ideia esta que, tempos

depois, influenciou a criação do método cartesiano.

Entretanto, a partir do século XVI, esse modelo de racionalidade

científica de cunho lógico-matemático encontra maior difusão com a superação

do período medieval e o advento do renascimento, no qual ocorre a

redescoberta da filosofia grega antiga, assim como a mudança de foco da

atividade intelectual, que passa do teocentrismo para o heliocentrismo. É

justamente neste cenário que a racionalidade científico-matemática atinge seu

clímax, e passa a deter, então, o monopólio da lógica e da linguagem da

ciência.

Por sua vez, ao restringir-se à lógica e à linguagem da matemática,

esse modelo de racionalidade dá à luz a dicotomia entre ciências naturais e 120 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 349. 121 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 21. 122 PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 237-238. (Coleção os pensadores). 123 PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 239-240. (Coleção os pensadores).

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humanidades124, na medida em que estas últimas seriam incompatíveis com o

paradigma científico dominante. Isto, aliás, é frisado por Boaventura de Souza

Santos:

Esta nova visão do mundo e da vida reconduz-se a duas distinções fundamentais, entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro. Ao contrário da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata.125

E prossegue mais a frente o autor:

As ideias que presidem à observação e à experimentação são as ideias claras e simples a partir das quais se pode ascender de um conhecimento mais profundo e rigoroso da natureza. Essas ideias são as ideias matemáticas. A matemática fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria.126

Essa abordagem segmentária, própria da lógica matemática do

paradigma científico dominante, chegou às humanidades. Se até então a

aplicação das premissas lógicas na atividade científica se restringia às ciências

naturais, a partir de um dado momento ela passou a ser aplicada às

humanidades, fazendo surgir, assim, as chamadas ciências sociais. Afinal, se

era possível através desta abordagem metodológica descobrir as leis da

natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade. Esta

vertente filosófico-científica é assim sintetizada por Boaventura de Souza

Santos:

A primeira variante – cujo compromisso epistemológico está bem simbolizado no nome de ‘física social’ com que inicialmente se designaram os estudos científicos da sociedade – parte do pressuposto que as ciências naturais são uma

124 Aqui usamos a expressão “humanidades” e não ciências humanas de forma proposital. Isto porque a discussão sobre a cientificidade dos problemas do homem seria ainda combatida por muito tempo, à luz do modelo científico oferecido pelo paradigma dominante. 125 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 24. 126 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 26.

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aplicação ou concretização de um modelo de conhecimento universalmente válido e, de resto, o único valido.127

Dessa forma, surge no âmbito da filosofia o positivismo, que outra

coisa não faz senão apropriar-se de todos os princípios epistemológicos e

metodológicos do paradigma científico dominante – que foram desenvolvidos

no âmbito das ciências naturais – e aplicá-los às ciências sociais.128

Todavia, tempos depois uma parte da filosofia da ciência começa a

romper com a aplicação indistinta do estatuto científico das ciências naturais às

humanidades. Isto porque seus defensores entendem que a análise científica

estruturada nos padrões lógico-matemáticos, que se pauta por premissas

estáticas no que toca aos quesitos espacial e temporal, é ineficaz para a

análise e explicação dos fenômenos inerentes ao homem como indivíduo e em

sociedade. Nesse sentido é a crítica de Jürgen Habermas ao positivismo:

A autocompreensão positiva amplamente dominante entre os pesquisadores adotou a tese da unidade das ciências positivas: o dualismo científico que deveria estar fundamentado na lógica da pesquisa é atrofiado segundo os critérios do positivismo e transformado em uma diferença relativa ao estado de desenvolvimento.129

Isso posto, passa-se a buscar o estabelecimento de um estatuto

epistemológico e metodológico próprio das ciências sociais, o qual deve se

pautar na especificidade do ser humano e na distinção essencial que existe

entre ele e a natureza. Sobre esta segunda vertente, assim preceitua

Boaventura da Souza Santos:

A ciência social será sempre uma ciência subjetiva e não objetiva como as ciências naturais; tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas ações, para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes dos correntes nas ciências naturais,

127 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 34. 128 Foi justamente essa concepção científico-filosófica que inspirou Hans Kelsen na criação de sua Teoria Pura do Direito. Afinal, toda sua construção teórica se pauta exclusivamente na lógica formal da matemática. 129 HABERMAS, Jürgen. A lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 9.

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métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em vez de um conhecimento objetivo, explicativo e nomotécnico.130

No entanto, para que se desenvolva este conhecimento

intersubjetivo, descritivo e compreensivo das ciências sociais proposto por

Boaventura de Souza Santos, é imprescindível a utilização de procedimentos

analíticos e hermenêuticos, os quais se relacionam durante o processo de

pesquisa próprio das ciências sociais. Esta relação, contudo, existe em

constante tensão, e deve, como aponta Jürgen Habermas, ser equilibrada:

Enquanto as ciências naturais e as ciências humanas, que em outras circunstâncias se mostram como mutuamente indiferentes, podem viver em uma coexistência mais hostil do que pacífica, as ciências sociais precisam equilibrar internamente a tensão entre as abordagens divergentes; aqui, a própria práxis de pesquisa impõe a reflexão sobre a relação entre modos de procedimento analíticos e hermenêuticos.131

Não obstante a diferença entre essas duas vertentes científicas,

quais sejam, aquela que impõe a lógica matemática a toda a atividade científica

e a que propõe o estabelecimento de um estatuto científico próprio para as

ciências sociais, é preciso ter em mente o fato de que ambas integram o

paradigma científico dominante.

2.2. O paradigma emergente da ciência

O paradigma dominante da ciência, pautado pela lógica matemática

e pelo objetisvismo, tem como sua principal característica o determinismo. Isto

porque a ciência que conhecemos se alicerçou sobre os conceitos de ordem e

estabilidade, considerando os fatores tempo e espaço como absolutos, o que

resultaria na obtenção de resultados absolutos e previsíveis. A atividade

científica, portanto, é uma atividade orientada à certeza.

130 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 38. 131 HABERMAS, Jürgen. A lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 12. Nota-se que o autor diferencia ciências humanas de ciências sociais, concebendo que as primeiras dizem respeito ao homem isoladamente (v.g. psicologia), e que as segundas têm como objeto o homem em sociedade (v. g. sociologia).

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Ocorre que as premissas científicas clássicas, que estruturam o

paradigma científico dominante, hoje passam por um momento de crise. Esta

crise decorre da evolução da própria atividade científica. Afinal, a lógica

matemática das ciências, pautada na ordem e na estabilidade começa a perder

espaço ante a constatação da flutuação e da instabilidade, todas elas

condicionadas às variações de tempo e espaço, as quais não são absolutas e

sujeitam o resultado da atividade científica a certo grau de previsibilidade.

Para Boaventura de Souza Santos, a crise do paradigma científico

dominante é o resultado de uma pluralidade de condições sociais e teóricas.

No tocante às últimas, o autor tece quatro observações que fundamentam esta

mudança de eixo que vem ocorrendo no paradigma científico dominante. A

primeira delas é que a identificação dos limites e das insuficiências estruturais

do paradigma científico dominante é resultado do seu próprio sucesso, pois

resulta do grande avanço no conhecimento que ele propiciou. Em segundo

lugar, o princípio da incerteza aponta para o fato de que, durante a

investigação científica, ocorre uma interferência estrutural do sujeito no objeto

observado e que, por isto, só se pode esperar resultados aproximados, sendo

que as leis da física são apenas probabilísticas. A terceira é que o teorema da

incompletude e os teoremas sobre impossibilidade, em certas circunstâncias,

mostram que nem sempre é possível encontrar dentro de um dado sistema

formal a sua consistência, mesmo seguindo a lógica da matemática. Assim, se

o rigor das leis da natureza se fundamenta justamente no rigor da linguagem

matemática, isto constituiria um silogismo, na medida em que o próprio rigor da

matemática carece de fundamento. Finalmente, que a teoria das estruturas

dissipativas e o princípio da ordem através de flutuações, todos eles

provenientes da física, demonstram que os sistemas abertos são produtos de

sua própria história. Destas observações o autor abstrai duas conclusões:

Em primeiro lugar, a reflexão é levada a cabo predominantemente pelos próprios cientistas, por cientistas que adquiriram uma competência e um interesse filosóficos para problematizar a sua prática científica. (...) A segunda faceta desta reflexão é que ela abrange questões que antes eram deixadas aos sociólogos. A análise das condições sociais, dos

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contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigação científica, antes acantonada no campo separado e estanque da sociologia da ciência, passou a ocupar papel de relevo na reflexão epistemológica.132

Essa posição apresentada por Boaventura de Souza Santos é uma

constatação realizada por ele, a partir dos estudos por ele realizados, acerca

do desenvolvimento da filosofia da ciência, a qual tem como base os resultados

dos experimentos científicos realizados pelos físicos.

Entretanto, Boaventura de Souza Santos é um sociólogo. Mais

interessante será ver esse mesmo raciocínio nas palavras de um físico.

De acordo com o físico Ilya Prigogine, a ciência clássica é a ciência

da estabilidade, dos resultados objetivos, previsíveis e também reversíveis. Ela

encontra seus fundamentos na dinâmica de Newton, a qual estrutura toda sua

construção teórica em leis – as famosas leis de Newton – que possuem caráter

absoluto e atemporal.

Ocorre que a física, especificamente no que toca à dinâmica, vem

realizando estudos que apresentaram como resultado a existência de sistemas

dinâmicos instáveis, isto é, objetos de estudo no campo da dinâmica que não

são apreensíveis cientificamente através da aplicação das leis de Newton

(dinâmica clássica), mas que só podem ser analisados através da

sistematização, e cujos resultados não apresentam uma resposta certa e

determinada, mas apenas possibilidades. Neste sentido são as palavras de Ilya

Prigogine:

A ciência clássica privilegiava a ordem, a estabilidade, ao passo que em todos os níveis de observação reconhecemos agora o papel primordial das flutuações e da instabilidade. Associadas a essas noções, aparecem também as escolhas múltiplas e os horizontes de previsibilidade limitada. Noções como a de caos tornaram-se populares e invadem todos os campos da ciência, da cosmologia à economia. Mas, como mostraremos neste livro, os sistemas dinâmicos instáveis levam também a uma extensão da dinâmica clássica e da física

132 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 50-51.

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quântica e, a partir daí, a uma formulação nova das leis fundamentais da física. Esta formulação quebra a simetria entre passado e futuro que a física tradicional afirmava, inclusive a mecânica quântica e a relatividade. Essa física tradicional unia conhecimento completo e certeza: desde que fossem dadas condições iniciais apropriadas, elas garantiam a previsibilidade do futuro e a possibilidade de retrodizer o passado. Desde que a instabilidade é incorporada, a significação das leis da natureza ganha um novo sentido. Doravante, elas exprimem possibilidades.133

Dessa forma, afirma o autor que tanto na dinâmica clássica quanto

na física quântica a lei não é mais sinônimo de certeza, mas apenas de

possibilidade. De outro lado, isto não descarta as leis. Apenas passa-se a

conceber que temos não só as leis, mas também eventos não dedutíveis delas,

os quais atualizam as suas possibilidades. Daí, portanto, a natureza apresentar

tanto processos irrevisíveis, quanto revisíveis. A diferença é que, de acordo

com Ilya Prigogine, os primeiros são a regra, e os segundos a exceção:

Enquanto os processos reversíveis são descritos por equações de evolução invariantes em relação à inversão dos tempos, como a equação de Newton na dinâmica clássica e a de Schrödinger na mecânica quântica, os processos irreversíveis implicam um quebra da simetria temporal. A natureza apresenta-nos ao mesmo tempo processos irreversíveis e processos reversíveis, mas os primeiros são a regras, e os segundos, a exceção. Os processos macroscópicos, como reações químicas e fenômenos de transporte, são irreversíveis. A radiação solar é resultado de processos nucleares irreversíveis. Nenhuma descrição da ecosfera seria possível sem os inúmeros processos irreversíveis que nela de desenrolam. Os processos reversíveis, em compensação, correspondem sempre a idealizações: devemos negligenciar a fricção para atribuir ao pêndulo um comportamento reversível, e isto só vale como uma aproximação.134

Nesse diapasão, fica claro que, conforme a física evoluiu, constatou-

se que as leis da física eram insuficientes para esclarecer uma enorme gama

de fenômenos por ela estudados. Como decorrência disso, percebeu-se que a

utilização da lógica matemática enquanto fator de cientificidade era relativa, 133 PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. 2ª ed. São Paulo: UNESP, 2011. p. 12. 134 PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. 2ª ed. São Paulo: UNESP, 2011. p. 25.

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pois insuficiente para explicar uma série de fenômenos estudados pela ciência

e que, consequentemente, seus atributos de objetividade, previsibilidade e

reversibilidade não encontram aplicação na concepção contemporânea de

ciência, salvo nos casos de exceção. Afinal, como explica Ilya Prigogine, “as

leis da física, em sua formulação tradicional, descrevem um mundo idealizado,

um mundo estável e não o mundo instável, evolutivo, em que vivemos”.135

Daí o porquê de Boaventura de Souza Santos afirmar o que “a

noção de lei tem vindo a ser parcial e sucessivamente substituída pela noção

de sistema, de estrutura e de processo”.136

Na mesma linha, mas com uma ótica filosófica culturalista, Ernst

Cassirer também entende que a ciência contemporânea está sofrendo uma

mudança. Contudo, seu foco não está puramente nos resultados apresentados

pela ciência experimental, mas sim no simbolismo da utilização da linguagem

matemática pela ciência – que, por óbvio, acompanha os resultados da

atividade científica, tendo por base o mundo natural.

Segundo pontua, a ciência clássica se pautava na lógica matemática

tendo em vista o que o número representava, isto é, uma entidade separada

das demais, puramente intelectual, cuja linguagem objetiva, absoluta e

atemporal permitia o conhecimento de uma realidade universal independente

do tempo e do espaço.

No entanto, esta visão científica da lógica matemática se mostrou

insuficiente para analisar e descrever os objetos da ciência. Isto porque o

mundo natural não cabe dentro dos parâmetros deterministas de objetividade,

absolutismo e atemporalidade da lógica matemática.

Todavia, isso não significa para o autor o abandono da linguagem

matemática pela ciência. Pelo contrário, o que se deve alterar é o simbolismo 135 PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. 2ª ed. São Paulo: UNESP, 2011. p. 29. 136 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 52.

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da linguagem matemática para ciência moderna, especificamente no que toca

ao seu determinismo. Para Ernst Cassirer “o que a ciência precisa não é de um

determinismo metafísico, mas de um determinismo metodológico”. 137 E

prossegue a respeito do novo simbolismo da linguagem matemática:

O cientista age com base no princípio de que até nos casos mais complicados acabará conseguindo encontrar um simbolismo adequado que lhe permita descrever suas observações em uma linguagem universal e de compreensão geral. É certo que o cientista não nos dá uma prova lógica ou empírica de sua pressuposição fundamental. A única prova que nos apresenta é seu trabalho. Ele aceita o princípio do determinismo numérico como uma máxima condutora, uma idéia normativa que confere ao seu trabalho a sua coerência lógica e sua unidade sistêmica.138

Como se percebe, Boaventura de Souza Santos e Ilya Prigogine

postulam a ruptura do paradigma científico dominante com base na

demonstração da impossibilidade de utilização da lógica matemática – com

suas premissas deterministas, absolutas e atemporais – na atividade científica,

mostrando através de resultados científicos que grande parte dos fenômenos

estudados pela ciência apresentam resultados indeterminados e estão sujeitos

às variações de tempo e espaço, em suma, que atividade científica conduz à

probabilidade, e não à certeza.

Já Ernst Cassirer postula a ruptura do paradigma científico

dominante a partir de uma mudança de cunho simbólico na utilização da

linguagem matemática, isto é, reconhece que a linguagem matemática segue

uma lógica composta por premissas deterministas, absolutas e atemporais,

admitindo, porém, que as referidas premissas não atendem às especificidades

do objeto analisado. A diferença é que, a partir dessa constatação, o autor

reformula a interpretação do simbolismo atribuído à linguagem matemática,

postulando que, para a atividade científica, o seu determinismo, objetividade e

137 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 356. 138 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 357.

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atemporalidade não devem ser atribuídos ao objeto nem ao resultado da

investigação, mas sim à metodologia utilizada.

2.3. A ciência e a técnica

Como tivemos a oportunidade de verificar acima, ciência é a busca

pelo conhecimento realizada através da análise e interpretação de determinado

objeto, a qual tem por finalidade a descrição do objeto e o estabelecimento de

uma metodologia para a posterior utilização do conhecimento adquirido. Note-

se que a atividade científica se encerra com a obtenção do resultado almejado

por aquela investigação.

Contudo, se um dos seus objetivos é o estabelecimento de uma

metodologia para posterior utilização do conhecimento adquirido, percebe-se

que falta um elo entre a atividade investigativa do cientista e a forma de

utilização deste conhecimento anteriormente adquirido. Esta ligação é realizada

justamente pela técnica.

Nesse sentido afirma Jürgen Habermas que entende por “técnica a

disposição cientificamente racionalizada sobre processos objetivados”.139 O

mesmo autor afirma o que segue:

Mas, se ela brota da ciência, e refiro-me aqui à técnica da influenciação do comportamento humano não menos do que ao domínio da natureza, então a introdução desta técnica no mundo prático da vida, a retroação da disposição técnica de âmbitos particulares na comunicação entre os sujeitos agentes, exige antes de mais [nada] uma reflexão científica.140

Na mesma linha se encontra o posicionamento de Tércio Sampaio

Ferraz, para quem “uma ciência se vale de diferentes técnicas. Mas não são as

técnicas que decidem sobre o caráter científico da investigação, e sim o

139 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 2006. p. 101. 140 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 2006. p. 100.

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método”.141 Este pensamento é complementado pelo mesmo autor em outra

obra, que assim afirma:

Nestes termos, um pensamento tecnológico é, sobretudo, um pensamento fechado à problematização dos seus pressupostos – suas premissas e conceitos básicos têm de ser tomados de modo não-problemático – afim de cumprir sua função: criar condições para a ação.142

Dessa forma, podemos concluir que a ciência analisa o objeto, o

descreve e estabelece a metodologia para a utilização do conhecimento

adquirido, sendo que a técnica, por sua vez, decorre da metodologia

cientificamente construída, e tem como finalidade possibilitar a aplicação (na

prática) do conhecimento adquirido pela investigação científica.

2.4. A ciência e a técnica jurídica

Em se tratando especificamente de ciência jurídica é necessário ter

em mente que os modelos teóricos tradicionais de estruturação deste ramo

científico encontram-se parametrizados dentro dos preceitos do paradigma

científico dominante. Seja com base na primeira variável, que atribui à lógica

matemática os contornos de cientificidade atribuíveis a qualquer investigação,

ou ainda com base na segunda variável, a qual estabelece parâmetros

específicos para as ciências naturais e para as ciências sociais.

No que tange à primeira variável do paradigma científico dominante,

a principal vertente da filosofia da ciência foi a corrente positivista143, que no

direito teve como seu principal expoente Hans Kelsen. Este autor busca uma

concepção científica do direito estruturada sobre os parâmetros lógicos

141 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 151. 142 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 87. 143 Sobre esta visão científica baseada na primeira vertente do paradigma científico dominante, Norberto Bobbio, em estudo sobre positivismo jurídico, assim pontua: “A ciência exclui do próprio âmbito os juízos de valor, porque ela deseja ser um conhecimento puramente objetivo da realidade, enquanto os juízos em questão são sempre subjetivos (ou pessoais) e conseqüentemente contrários a exigência de objetividade”. (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 135)

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próprios da matemática, aproximando-se, em sua formulação, da linguagem

que lhe é inerente. Afinal, somente assim ele consegue atingir a pureza por ele

tanto almejada144.

Para atingir esse objetivo, o autor pretendeu abstrair do direito todo

e qualquer aspecto subjetivo, variável e indeterminado, na medida em que a

lógica matemática – então travestida de lógica científica – se pauta no objetivo,

no absoluto e no determinado. Assim, ele abstraiu de sua formulação os

aspectos humano, social e axiológico, estruturando sua teoria exclusivamente

na norma jurídica:

Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a firmação – menos evidente – de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas.145

Tanto é assim que, sob o enfoque exclusivo da norma, Hans Kelsen

apresenta uma distinção entre a teoria estática e a teoria dinâmica do direito. A

primeira tem como objeto de estudo o conjunto de normas em vigor em um

determinado ordenamento, estaticamente consideradas. Já a segunda tem por

objeto de estudo o processo em que o direito é produzido e aplicado, isto é, o

direito em movimento. Este último, contudo, não retira em absoluto o enfoque

normativo da abordagem metodológica proposta pelo autor:

Por isso, os atos de produção e de aplicação (que, como veremos, também é ela própria produção) do Direito, que representam o processo jurídico, somente interessam ao conhecimento jurídico enquanto formam o conteúdo de normas

144 “Quando a si própria designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende liberar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 1). Daí o porquê do autor estruturar sua teoria sobre concepção de norma jurídica lógica e formalmente considerada. Esta é a única forma de afastar o direito de qualquer conteúdo material, admitindo, assim, a aplicação da lógica matemática, até então incompatível com as teorias elaboradas sobre este ramo científico. 145 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 79.

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jurídicas, enquanto são determinados por normas jurídicas. Desta forma, também a teoria dinâmica do Direito é dirigida a normas jurídicas, a saber, àquelas normas que regulam a produção e a aplicação do Direito.146

Como se percebe, é com base nessa perspectiva estritamente

formalista, abdicando de qualquer conteúdo volitivo ou valorativo, que Hans

Kelsen garante ao direito o status de ciência, pois compatibiliza a linguagem

jurídica à linguagem matemática. Ademais, ao focar o objeto de estudo do

direito na norma jurídica encontra, também, um fator de diferenciação com

relação às demais ciências:

Determinando o Direito como norma (ou, mais exatamente, como um sistema de normas, como uma ordem normativa) e limitando a ciência jurídica ao conhecimento e descrição de normas jurídicas e às relações, por estas constituídas, entre fatos que as mesmas normas determinam, delimita-se o Direito em face da natureza e a ciência jurídica, como ciência normativa, em face de todas as outras ciências que visam o conhecimento, informado pela lei da causalidade, de processos reais. Somente por esta via se alcança um critério seguro que nos permitirá distinguir univocamente a sociedade da natureza e a ciência social da ciência natural.147

Por sua vez, o autor ignora o aspecto técnico do direito, relegando,

por exemplo, a interpretação ao aspecto político, na medida em que, segundo

ele, a escolha da norma que se pretende aplicar “não é um problema de teoria

do Direito, mas um problema de política do Direito”.148

Em que pese a importância da obra de Hans Kelsen para a

sedimentação do direito enquanto ciência, sua visão lógico-matemática,

estruturada sobre parâmetros exclusivamente formais, se mostrou insuficiente,

na medida em que o direito não se resume à formulação lógica e à

sistematização de normas coercitivas que visam a regulação social. A realidade

do direito é significativamente mais ampla, e exige a formulação científica de

aspectos não contemplados na teoria deste autor.

146 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 80. 147 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 84-85. 148 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 393.

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Nesse diapasão, surgiram diversas outras teorias visando explicar o

fenômeno jurídico, dentre as quais destacamos aquela elaborada por Tércio

Sampaio Ferraz Jr. Segundo este autor, a ciência do direito (dogmática)149 atua

no âmbito da sistematização e da interpretação do ordenamento jurídico e,

portanto, suas teorias são, antes de tudo, complexos argumentativos – e não

teorias no sentido zetético150 – com pretensão de decidibilidade de possíveis

conflitos. Desta forma, as proposições teórico-jurídicas ou tomam a forma de

orientações, ou a forma de recomendações ou ainda a forma de exortações. As

primeiras são proposições que pretendem orientar aquele que deve tomar uma

decisão oferecendo-lhe elementos cognitivos suficientes. As do meio são

proposições persuasivas que pretendem acautelar quem vai decidir,

oferecendo-lhe fatos e experiências comprovadas, as quais estarão

transformadas em regras técnicas. Já as últimas persuadem através de

sentimentos sociais e valores, em termos de princípios.151

À luz das explicações expostas torna-se possível constatar que a

ciência jurídica enquanto dogmática cumpre funções típicas de uma tecnologia,

na medida em que parte de um pensamento conceitual, vinculado ao direito

149 A dogmática é assim exposta pelo autor: “Ela explica que os juristas, em termos de um estudo estrito do direito, procurem sempre compreendê-lo e tonrá-lo aplicável dentro dos marcos da ordem vigente. Esta ordem que lhes aparece como um dado, que eles aceitam e não negam, é o ponto de partida inelutável de qualquer investigação. Ela constitui uma espécie de limitação, dentro da qual eles podem explorar as diferentes combinações para a determinação operacional de comportamentos juridicamente possíveis”. (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 48) 150 Sobre a zetética assim pontua o autor: “A zetética jurídica, nas mais diferentes discriminações, corresponde, como vimos às disciplinas que, tendo por objeto não apenas o direito, podem, entretanto, tomá-lo como um dos seus objetivos precípuos. Daí a nomenclatura das disciplinas Filosofia do Direito, Lógica Jurídica, Sociologia do Direito, História do Direito etc. O jurista, em geral, se ocupa complementarmente delas. Elas são tidas como auxiliares da ciência jurídica strictu sensu”. (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 47) 151 E o autor exemplifica: “Veja-se por exemplo, a teoria dogmática que atribui aos sindicatos o caráter de pessoa jurídica de direito privado. O jurista parte de uma classificação dos atores sociais, vistos como pessoas físicas e jurídicas. Pressupõe a distinção entre direito público (o Direito Administrativo, o Penal, o Processual) e privado (o Comercial, o Civil) e argumenta: ‘se o sindicato se caracterizasse como público, estariam irremediavelmente comprometidas tanto a liberdade sindical como a autonomia privada coletiva, valores que cada vez em intensidade maior são reconhecidos como princípios fundamentais da organização sindical, condição mesma da existência do sindicalismo’ (Nascimento, 1982:159). Note-se aí o recurso às classificações (orientações), o apelo a valores – como liberdade, autonomia – (exortações) e a menção ao fenômeno histórico e social do sindicalismo (recomendações)”. (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 87)

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posto, que busca instrumentalizar a aplicação do direito em concreto. Isto,

aliás, é ressaltado pelo próprio autor:

Nestes termos, um pensamento tecnológico é, sobretudo, um pensamento fechado à problematização dos seus pressupostos – suas premissas e conceitos básicos têm de ser tomados de modo não-problemático – a fim de cumprir sua função: criar condições para a ação. No caso da ciência dogmática, criar condições para a decidibilidade de conflitos juridicamente definidos.152

Com vistas a este fato, Tércio Sampaio Ferraz Jr. apresenta os três

modelos através dos quais se pode encarar a questão da decidibilidade. O

primeiro modelo é chamado de analítico, pois “encara a decidibilidade como

uma relação hipotética entre conflito decisões”153, quer dizer que a questão é

determinar as possibilidades de decisão para um possível conflito. Por outro

lado o segundo modelo é chamado de hermenêutico, pois “vê a decidibilidade

do ângulo de sua relevância significativa”154, isto é, cuida da relação entre a

hipótese de conflito e a hipótese de decisão tendo em vista o seu sentido.

Finalmente, o terceiro modelo pode ser chamado de empírico, na medida em

que “encara a decidibilidade como busca das condições de possibilidade de

uma decisão hipotética para um conflito hipotético”155, ou seja, estabelece uma

relação entre hipótese de decisão e hipótese de conflito, procurando

estabelecer as condições desta relação para além da mera adequação formal

entre conflito e decisão.156

152 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 87. 153 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 93. 154 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 93. 155 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 93. 156 Os três modelos da dogmática apresentados por Tércio Sampaio Ferraz Jr. são apresentados e explicados por Maria Helena Diniz da seguinte forma: “a) O analítico, que vê a decidibilidade como uma relação hipotética entre conflito hipotético e uma decisão hipotética, procurando determinar as possibilidades de decisões para um possível conflito. A ciência do direito passa ater como escopo a sistematização de normas para obter decisões possíveis. Daí sua função organizatória, pro criar condições para classificação, tipificação e sistematização dos fatos relevantes. “b) O hermenêutico, que encara a decidibilidade do ângulo de sua relevância significativa. Trata-se de uma relação entre a hipótese de conflito e a hipótese de decisão, tendo em vista o seu sentido. Caso em que a ciência jurídica assume uma atividade interpretativa, tendo uma

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Os modelos acima apontados estão inter-relacionados, pois a prática

jurídica apresenta uma combinação desses três modelos – ora destacando-se

mais um ou outro, ora destacando-se igualmente –, na medida em que todos

eles objetivam a solução de determinado conflito e, para tanto, utilizarão

elementos de convencimento para persuadir o destinatário do discurso. Daí o

seu caráter heurístico. A este respeito assim se posiciona Maria Helena Diniz:

Esses modelos, que estão inter-relacionados, demonstram os modos pelos quais a ciência jurídica se exerce enquanto pensamento tecnológico, pois ao objetivarem a solução de certo conflito, utilizam elementos de convencimento para persuadir o destinatário do discurso, tendo sempre uma função heurística, apesar de privilegiarem uma das funções teóricas, por possibilitarem a descoberta de algo relevante (novos fatos ou situações), criando condições para que certos conflitos sejam decididos com o mínimo de perturbação social. Ao dar preponderância a uma das funções teóricas, cada modelo engloba as demais.157

Disso decorre que o direito, dentro da dinâmica que lhe é própria, se

manifesta no plano concreto através da linguagem. Esta linguagem é utilizada

pelo cientista tanto para analisar e descrever as repercussões decorrentes das

normas jurídicas em diversos planos – filosófico, sociológico, psicológico etc. –

(zetética), quanto para analisar e sistematizar as normas do direito positivo,

atribuindo-lhes metodologicamente coerência e validade – esta última

significando aqui aceitabilidade social –, assim como oferecendo um arcabouço

técnico para viabilizar as decisões jurídicas – isto é, para possibilitar a

aplicação do direito – (dogmática).

função, primordialmente, avaliativa, por propiciar o encontro de indicadores para uma compreensão parcial ou total das relações. “c) O empírico, que vislumbra na decidibilidade uma busca de condições de possibilidade de uma decisão hipotética para um conflito hipotético. A ciência do direito procura investigar as normas de convivência, que, por serem encaradas como um procedimento decisório, fazem do pensamento jurídico um sistema explicativo do comportamento humano, enquanto controlado por normas. Eis por que (sic) sobreleva a função de previsão, que cria condições para que se possa passar do registro de certos fatos relevantes para outros fatos, eventualmente relevantes, para os quais não há registro” (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 196-197). 157 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 197.

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Em suma, para o que interessa ao nosso trabalho, podemos abstrair

da teoria de Tércio Sampaio Ferraz Jr. que a dogmática oferece técnicas para

aplicação do direito (modelo analítico), as quais serão sopesadas juntamente

com questões fáticas de acordo com seu significado linguístico (modelo

hermenêutico) e com seu dimensionamento social (modelo empírico). Pode-se

dizer, pois, que a tecnologia jurídica é um imperativo de ordem prática.158

Por outro lado, é preciso levar em conta que a diferenciação clássica

– de origem grega – entre ciência (epistéme) e técnica (téchne) pode levar ao

reconhecimento de um terceiro elemento – também de origem grega –, qual

seja, o saber prático (phrónesis).

De acordo com Eros Roberto Grau o direito (positivo) não é uma

ciência (epistéme), haja vista que não analisa e descreve qualquer objeto. Por

outro lado, o direito é objeto de estudo de uma ciência, a assim chamada

ciência jurídica. Daí porque o autor afirma que “impõe-se distinguirmos, assim,

a ciência do direito e seu objeto, o direito. A primeira descreve – indicando

como, por quê e quando – este último”.159 Afinal, o direito não descreve, o

direito prescreve. Mesmo quando um texto normativo160 descreve uma coisa,

estado ou situação ele é prescritivo, pois “descreve para prescrever que aquela

é a descrição do que cogita”.161

Diante dessa afirmação, o autor prossegue e conclui que não há

uma única ciência do direito, mas sim um conjunto de ciências do direito – por

exemplo teoria geral do direito, história do direito, filosofia do direito, dogmática

158 A respeito da praticidade da tecnologia jurídica assim se posiciona Tércio Sampaio Ferraz jr.: “Assim, a tecnologia dogmática ao contrário da jurisprudentia romana, torna-se uma provocação, uma interpelação da vida social, para extrair dela o máximo que ela possa dar. A tecnologia jurídica atual força a vida social, ocultando-a, ao manipulá-la, ao contrário da ciência prática da Antiguidade, que se prostrava, com humildade, diante na (sic) natureza das coisas”. (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 88) 159 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 37. 160 Para o autor norma é o resultado da interpretação do texto normativo. 161 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 37.

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jurídica (ou jurisprudência teórica), sociologia jurídica etc. – cujas linguagens

são metalinguagens, pois uma vez que tratam do direito como objeto, sua

linguagem não se confunde com a linguagem do objeto em estudo - o direito.

No tocante à dogmática jurídica (ou jurisprudência teórica) o autor

ressalta sua diferença da jurisprudência prática. A primeira tem por objeto o

estudo de problemas jurídicos visando o oferecimento de critérios a serem

adotados para a solução dos litígios. Por sua vez, a segunda se confunde com

o objeto da primeira, ou seja, “jurisprudência prática e direito (= cada direito)

são uma coisa só”.162

Com base nisso o autor diferencia hermenêutica de interpretação,

afirmando que a primeira é a ciência que trata de como interpretar, mas que

não indica esta ou aquela interpretação, isto é, indica como se decide, sem

indicar como se deve decidir. Já a interpretação se realiza no plano da

jurisprudência prática, na medida em que todo o direito reclama interpretação,

sendo ele próprio (o direito) jurisprudência prática. Portanto, não estamos no

âmbito da ciência (epistéme), mas sim na esfera da prudência, esta última

compreendida no sentido do saber prático (phrónesis). Sobre este ponto assim

expõe o autor:

O interprete autêntico163, ao produzir normas jurídicas, pratica a juris prudentia e não uma júris scientia. O interprete autêntico, então, atua segundo a lógica da preferência, e não conforme a lógica da conseqüência (Comparato 1979/127): a lógica jurídica é a da escolha entre várias possibilidades corretas. Interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias interpretações possíveis, de modo que a escolha seja apresentada como adequada (Larenz 1983/86). A norma não é objeto de demonstração, mas de justificação.164

Dessa forma, podemos verificar que, para Eros Roberto Grau, existe

diferença entre jurisciência e jurisprudência, sendo que a primeira é descritiva e

se opera no plano do verdadeiro/falso de acordo com uma lógica de 162 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 37. 163 Para o autor interprete autêntico é o juiz, isto é, aquele que profere o ato decisório. 164 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 41.

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consequência, enquanto a segunda é prescritiva e se opera no plano do

certo/errado de acordo com uma lógica de preferência. Esta preferência, no

entanto, não é absoluta ou despadronizada, pois a prudência é implementada

de acordo com determinadas regras.

Ditas regras, que permitem ao autor afirmar que a prudência é

cientificamente estruturada 165 , nos parecem ser, na verdade, técnicas

oferecidas pela ciência ao interprete/aplicador166 do direito.

Não obstante a posição adotada por Eros Roberto Grau, é preciso

atentar à obra de um autor bastante mencionado por ele, que é Friedrich

Müller. Em que pese o primeiro não ter adotado integramente a teoria do

segundo, vale a pena ressaltá-la, devido às suas particularidades. Sobre sua

particularidade assim preceitua Vinícius de Mattos Magalhães:

Uma das maiores preocupações de Friedrich Müller, com a Teoria Estruturante do Direito (ou da norma jurídica) e com a metódica concretista, é, certamente, possibilitar uma união harmônica e o quanto mais racional possível entre o “direito” e a “realidade”, buscando superar o dogma positivista, de inspiração neokantista, da separação inconciliável entre ser e dever ser, reificando-se “prescrições legais e conceitos jurídicos em mera preexistência, que facilmente abandona o chão da positividade historicamente fixada e se converte em metafísica de má qualidade.” As primeiras páginas de seu Strukturierende Rechtslehre (Teoria Estruturante do Direito) são dedicadas a uma investigação, no plano da teoria das ciências, acerca dos pressupostos subjacentes às ciências humanas e naturais.167

165 “Como a prudência é sempre implementada segundo certas regras, que asseguram um mínimo de previsibilidade à decisão nela fundada, poderia ser referida como cientificamente estruturada”. (GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 41) 166 Utilizamos interpretação/aplicação lado a lado porque o próprio autor as utiliza assim. Ele assim justifica sua opção: “(...) a interpretação do direito consiste em concretar a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação [Gadamer 1991:401]. Assim, existe uma equação entre interpretação e aplicação: não estamos, aqui, diante de dois momentos distintos, porém frente a uma só operação [Marí 1991:236]. Interpretação e aplicação consubstanciam um processo unitário [Gadamer 1991:381], se superpõe”. (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 90) 167 MAGALHÃES, Vinícius de Mattos. O construtivismo de François Geny e a metódica estruturante de Friedrich Müller: há uma paralelismo possível entre a escola da livre investigação e a teoria estruturante do direito? Themis: Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do ceará. Fortaleza: v. 8, n. 2, ago/dez 2010. p. 20.

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Isso se deve ao fato de Friedrich Müller basear a construção de sua

teoria nos pilares da metodologia da norma jurídica. Com isto o autor pretende

trazer para o plano da norma jurídica as categorias direito e realidade,

estabelecendo, assim, uma ruptura com a tradicional divisão entre dever-ser e

ser tão fortemente arraigada no pensamento jurídico pelo positivismo:

Falando de modo tradicional, os problemas nunca se apresentam sem referência prévia a um ‘dever-ser’ e, com isso, ao mesmo tempo, a um âmbito material co-formador desse dever ser. ‘Dever-ser’ e ‘dado real’ constituem, sob o ponto de vista da teoria da norma, os dois aspectos principais da normatividade concreta em si, bem como do programa normativo e do âmbito normativo. Somente dentro dessas possibilidades estruturantes, determinadas questões apresentam-se como questões jurídicas; (...).168

Para o autor, direito e realidade – em que pese sejam coisas

distintas – se intercambiam no momento da criação da norma jurídica. Como

primeira premissa, estabelece que texto normativo e norma são coisas

essencialmente diferentes. Isto porque a norma é construída a partir do

programa normativo e do âmbito normativo (segunda premissa). Desta forma, o

texto normativo irá reproduzir o programa normativo e o âmbito normativo em

maior ou menor medida, conforme o tipo normativo169:

Ao contrário disso, o que ocorre é a dita distinção de norma e texto normativo e diferenciação teórico-normativa da estrutura normativa no programa normativo e âmbito normativo. Ambos os fatores da normatividade concreta são, de acordo com o tipo normativo, reproduzidos no texto normativo, em escala diferente.170

De uma forma sintetizada podemos dizer que, dentro do processo de

concretização da norma, o texto normativo será interpretado e, desta 168 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 207. 169 “A relação entre norma e texto normativo, ou seja, na análise teórico-normativa, a relação entre âmbito normativo, idéia normativa fundamental e sua expressão lingüística no texto literal da disposição é geralmente mais complexa. Quanto mais precisamente e mais completamente programa normativo e âmbito normativo são apreendidos pela língua no texto normativo, tanto mais fortemente a concretização pode ater-se à análise conceitual do texto literal (tradicionalmente muitas vezes mal-interpretado como ‘a norma’)”. (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 214) 170 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. 194.

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interpretação serão extraídas as suas diferentes possibilidades ou, como

chamadas pelo autor, ideias normativas. Essas ideias em conjunto integram o

programa normativo, que nada mais é do que o conjunto de interpretações

possíveis extraídas do texto normativo. O programa normativo deverá ser

interpretado conjuntamente com o âmbito normativo 171 num contexto

simultaneamente de retroalimentação e de retrolimitação172. Por sua vez o

âmbito normativo consiste nos aspectos materiais inerentes ao caso particular

ao qual será aplicada a norma173 – extraída do texto normativo. Este processo

interpretativo pressupõe a pré-compreensão174 do interprete, e é chamado de

círculo hermenêutico. O resultado deste processo será a norma jurídica:

Visto dessa maneira e expresso de modo convencional, não apenas a norma é aplicada ao caso, mas também este é aplicado à norma. Com o desenvolvimento tipológico de âmbito e programa normativos, a eficácia jurídica da disposição não é estabelecida de modo definitivo, visto que a distribuição de ambos os aspectos, juntamente com outros dados, é diferente em função do grau de precisão de sua aplicação no caso particular.175

171 “Por causa da formação jurídica existente, o âmbito normativo não se limita ao puro empirismo de um recorte da realidade. Ele não engloba a totalidade absoluta dos fatos a serem concretamente inseridos nesse recorte, porque, como parte integrante da norma estruturante vista, ele só aparece quando o programa normativo assinala, no processo da interpretação prática e na aplicação das normas jurídicas, as estruturas básicas relevantes desse âmbito normativo, considerando o caso particular. “É também no sentido dessa abordagem metódica (senão na apreensão de sentido perfeita e passível de ser isolada) que o programa normativo indica se em que medida essas estruturas básicas devem ser deixadas como estão e protegidas ou alteradas em seu resultado”. (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 249) 172 “A idéia estruturante mais precisa do âmbito normativo é, ao contrário, restrita pelo programa normativo. Ambos em conjunto se mostram ao intérprete em diferentes relações de mistura, bem como em graus de precisão muito diversos no texto normativo. Aliás, esse texto já mostra de forma bem geral que ‘realidade’ aqui não pode ser entendida como o acúmulo de fatores heterogêneos, mas apenas como o recorte da realidade dos fatos, para o qual a norma é determinante, sendo tal recorte também determinante para a norma”. (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 215) 173 “Estruturas materiais reais, geralmente já na situação co-formada pelo direito, constituem os âmbitos normativos em uma parte essencial, e de antemão fazem da normatividade jurídico-positiva normatividade materialmente determinada, não permitindo uma separação das fases puramente lógicas da concretização”. (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 204) 174 “A pré-compreensão como um conjunto de atitudes, opiniões e antecipações de conteúdos que não passaram por uma reflexão e que em grande parte são intermediadas pela língua, assim como a pré-compreensão teórico-constitucional a ser desenvolvida pelo interprete dizem respeito à concretização da norma jurídica e, ao mesmo tempo, à concretização do caso jurídico a ser solucionado e que está em inseparável conexão com ela”. (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 267) 175 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 255.

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No tocante ao círculo hermenêutico, é preciso ressaltar que, não

obstante Friedrich Müller utilize a referida expressão, para ele a figura que

melhor representa a relação das interpretações que culminam na criação da

norma é a elipse.176 Isto porque, conforme explica, o processo de criação da

norma segue premissas metodológicas, as quais buscam racionalizá-lo através

de critérios pré-estabelecidos (programa normativo e âmbito normativo), os

quais estão abertos aos aspectos que concretamente influenciam a criação da

norma (interpretações do texto normativo e aspectos materiais do caso

concreto). Neste sentido são as palavras do autor:

A intermediação elíptica de dados admissíveis e as tônicas do programa normativo e do âmbito normativo devem aumentar, sem um esforço fictício pela apreensão de sentido perfeita e determinante, os pontos de vista que metodicamente precisam de fundamentação, auxiliando, assim, a esfera de ordenamento da disposição a ser concretizada a se tornar racionalmente mais transparente do que seria possível com argumentos no âmbito apenas linguístico ou apenas subjetivamente valorativo e ponderativo. A elipse aponta na direção de critérios que se ‘inserem entre’ a norma textual abstrata da norma jurídica e a norma concretizada de decisão. No sentido de um meio-termo teórico, a norma jurídica aparece como modelo de um ordenamento parcial materialmente determinado, modelo esse que se divide entre os motivos condutores do programa normativo e âmbito normativo e que constitui para as normas de decisão a serem concretamente desenvolvidas uma esfera formulada de modo mais ou menos sólido sob o ponto de vista material e mais ou menos completa em termos linguísticos.177

Conforme demonstrado, é a relação metodologicamente estruturada

entre programa normativo e âmbito normativo que permite estruturalmente a

criação da norma jurídica. Esta norma, por sua vez, devido à estruturação do

176 “O circulo hermenêutico corresponde melhor ao problema das ciências humanas em geral, sobretudo ao problema filológico do entendimento, ao processo da ‘interpretação’ do que ao desdobramento do texto ligado à configuração lingüística. A elipse é, para nos mantermos no plano figurativo, reduzida ao círculo, ou seja, a uma figura geométrica com apenas um foco (o ponto central do círculo),somente porque o entendimento da interpretação serve de base ao círculo hermenêutico como uma questão textual. A ciência normativa da ciência jurídica não pode se contentar com um tal estreitamento de seu campo de problemas, em nome da normatividade materialmente determinada de disposições legais a serem efetivadas” (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 261). 177 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 261-262.

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seu processo de criação, está aberta à influência dos fatores provenientes da

inter-relação entre programa normativo e âmbito normativo, bem como está

sujeita às limitações dos mesmos. Portanto, trata-se uma teoria que estrutura

metodologicamente a norma e, ao fazê-lo, estrutura consequentemente o

sistema178 no qual está inserida esta norma sem, contudo, fechar o sistema às

influências linguísticas, sensoriais e materiais inerentes à norma. Daí resulta,

pois, o caráter científico da teoria estruturante do direito de Friedrich Müller.

Não obstante a formulação metodológica apresentada pelo autor,

poderia parecer, num primeiro momento, que esta metodologia retiraria o

caráter técnico do direito. Contudo, a estruturação científica do autor demanda

técnica para a aplicação dos fatores provenientes do programa normativo e do

âmbito normativo. Isto posto, a técnica indicada por ele é a tópica:179

Os topoi que servem de base ao espaço normativo, na esfera da tradição jurídica, são fatores da normatividade que não reproduzem plenamente a norma do texto literal da disposição concretizada no caso particular, mas apenas a indicam.180

178 “O caráter da ligação elíptica do programa normativo e âmbito normativo, caráter esse que é sistemático e formador de sistema no sentido amplo, significa, de acordo com esses pressupostos, não um sistema no sentido dedutivo da axiomática prática ou da hierarquia que enfatiza valores, mas sim a conexão, necessária e fundamentada na visão estruturante da norma jurídica, entre normatividade materialmente determinada e realidade fundamentada pela norma”. (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 264) 179 No que diz respeito à tópica Theodor Viehweg expõe o que segue: “O aspecto mais importante na análise da tópica constitui a constatação de que se trata de uma técnica do pensamento que está orientada para o problema” (VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. 5ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2008. p. 33). Todavia, sobre o seu aspecto funcional o autor assim pontua: “A função dos topoi, e é indiferente que esses topoi se apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais, consiste, pois, no fato de servir à discussão dos problemas. Disso, decorre que eles devem ter uma especial importância enquanto se trata da esfera de problemas determinados, cuja natureza vem sendo o fato de não perder de todo o próprio caráter problemático. No alterar de situações e de casos particulares se deve encontrar, pois, cada vez mais, novas informações para se fazer tentativas de resolver o problema. Os topoi, intervindo em auxílio, recebem em tonro de si o próprio sentido do problema. Eles remanescem sempre essenciais pelo fato de que eles recebem uma ordem com relação ao problema. Em realidade, com relação ao problema que eles acompanham, uma compreensão não é imodificável, e na mesma medida nem adequada e conveniente ou inadequada. Eles devem ser entendidos funcionalmente, como possibilidade de orientação e como fios condutores do pensamento” (VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. 5ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2008. p. 40). 180 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 200.

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Como visto, também na teoria estruturante do direito de Friedrich

Müller a técnica encontra seu plano de atuação, sendo que se manifesta

através da tópica, sem que isto lhe retire credibilidade, pois de fato a

interpretação do programa normativo e do âmbito normativo consiste num

pensar problemático orientado à criação da norma que irá solucionar um

determinado caso concreto.

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3. A TÉCNICA DA PROPORCIONALIDADE

Uma vez estabelecidas as premissas para a análise do objeto do

presente trabalho nos dois capítulos anteriores, podemos finalmente passar à

análise da proporcionalidade, o que faremos de forma crítica, tomando como

base os posicionamentos dos autores apresentados (Capítulo 1), assim como a

relação da ciência e da técnica jurídicas de acordo com o paradigma científico

dominante (Capítulo 2).

Ao fim desta análise, esperamos identificar com precisão qual a

natureza jurídica da proporcionalidade, se ela possui força normativa ou não,

qual a sua forma de aplicação, qual o seu fundamento teórico e qual a sua

abrangência. Tudo isto baseado em premissas teóricas coerentes.

3.1. O problema da proporcionalidade como princípio

Conforme demonstramos no capítulo 1, a grande maioria dos

autores mencionados neste trabalho atribui à proporcionalidade o status

normativo de princípio jurídico – a exceção de Virgílio Afonso da Silva,

Humberto Ávila, Eros Roberto Grau e Marcelo Neves.

Entretanto, parece-nos que alguns problemas se colocam quanto à

atribuição da natureza jurídica de princípio à proporcionalidade. Passamos a

analisá-los.

3.1.1. A aplicação dos princípios enquanto normas jurídicas

Conforme verificamos no capítulo 1 a maioria dos autores

mencionados concebem a proporcionalidade como princípio, sendo que, para

eles, os princípios possuem a natureza de norma jurídica.181

181 Neste item deixamos de fora os posicionamentos dos autores que não concebem a proporcionalidade como princípio, por mais peculiares que possam ser suas classificações. Isto porque, se o enquadramento dado por eles à proporcionalidade não é o de princípio, de nada adianta analisar a proporcionalidade à luz do conceito de princípio por eles adotado, pois eles próprios reconhecem não se tratar de princípio jurídico.

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Um dos maiores entusiastas da normatividade dos princípios é Luís

Roberto Barroso, que fundamenta o pós-positivismo182 na reaproximação entre

direito e ética, a qual ocorre através dos princípios jurídicos183, os quais nessa

nova visão passam a desfrutar do status de norma jurídica.184

De acordo com o autor, dentro do espectro normativo é possível

encontrar princípios e regras, todos eles dotados de normatividade. Contudo,

existem diferenças entre eles, sendo que, no momento, a que nos interessa é

aquela que diz respeito ao modo de aplicação:

c) quando ao modo de aplicação: regras operam por via do enquadramento do fato no relato normativo, com enunciação da conseqüência jurídica daí resultante, isto é, aplicam-se mediante subsunção; princípios podem entrar em rota de colisão com outros princípios ou encontrar resistência por parte da realidade fática, hipóteses em que serão aplicados mediante ponderação.185

Como relembrado aqui, pois já apresentado no item 1.1, Luís

Roberto Barroso adota a posição segundo a qual as regras se aplicam

mediante subsunção no modelo tudo ou nada, enquanto os princípios são

objeto de ponderação e se aplicam na maior ou menos medida.186

Em sentido semelhante temos também a posição de José Joaquim

Gomes Canotilho que, como demonstrado no item 1.5, afirma romper com a

concepção tradicional que separa normas e princípios, passando, então, a 182 O pós-positivismo, conforme apresentado pelo autor, se apresenta muito mais como um discurso ideológico do que como uma teoria metodológica jurídica. Mesmo como uma corrente de filosofia do direito fica difícil concebê-lo, pois, em que pese seu caráter eminentemente ideológico, falta-lhe estruturação filosófica. Parece-nos que a posição do autor é muito mais um manifesto a favor da re-valoração no direito do que qualquer outra coisa. 183 Note-se que o autor não explica metodologicamente como isso ocorre. 184 O autor, inclusive, chega a afirmar o que segue: “Há consenso na dogmática jurídica contemporânea de que princípios e regras desfrutam igualmente do status de norma jurídica” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 318). Todavia, como se verá no item 3.1.2, em que pese esta posição venha sendo amplamente aceita, não existe o referido consenso. 185 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 328. 186 Como já referido anteriormente, a posição adotada pelo autor se encontra fortemente influenciada pelo posicionamento de Ronald Dworkin a respeito deste assunto.

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adotar o entendimento segundo o qual normas jurídicas são o gênero do qual

princípios e regras são espécies.187 A partir desta concepção o autor passa a

diferenciação de princípios e regras 188 para, em seguida, estabelecer a

tipologia dos princípios.189

Dessa diferenciação entre princípios e regras apresentada pelo

autor, que mostra vários critérios 190 , nos interessa destacar o critério de

diferenciação que diz respeito à aplicação das referidas normas. Isto porque,

para ele, os princípios impõe otimização e, por isto, admitem diversos graus de

concretização, enquanto as regras são imperativas, devendo ser totalmente

cumpridas ou então absolutamente não cumpridas:

(1) — os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de DWORKIN: applicable in all-or--nothing fashion); a convivência dos princípios é conflitual (ZAGREBELSKY); a convivência de regras é antinômica. Os princípios coexistem; as regras antinômicas excluem-se; (2) — consequentemente, os princípios, ao constituírem exigências de otimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à «lógica do tudo ou nada»), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exata medida das suas prescrições, nem mais nem menos.191

187 “A teoria da metodologia jurídica tradicional distinguia entre normas e princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz). Abandonar-se-á aqui essa distinção para, em sua substituição, se sugerir: “(1) — as regras e princípios são duas espécies de normas; “(2) — a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 166). 188 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 166-168. 189 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 170-174. 190 Os demais critérios são: 3) a conflituosidade entre princípios e entre regras e; 4) a problemática de peso e validade (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 168). 191 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 167-168.

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Essa menção aos princípios como exigências de otimização remonta

à teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy. Conforme pontuamos no

item 1.7, para este autor o critério fundamental de diferenciação entre

princípios e regras – ambos considerados normas jurídicas – é a conceituação

dos primeiros como mandamentos de otimização, enquanto as regras contêm

determinações que se realizam dentro das possibilidades fáticas e jurídicas:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.192

Todavia, pode parecer que o critério de diferenciação proposto por

Robert Alexy é o mesmo adotado por Ronald Dworkin. Visando evitar confusão

o próprio autor faz a seguinte ressalva:

A distinção apresentada assemelha-se à proposta por Dworkin (cf. Ronald Dworking, Taking Rights Seriusly, 2ª ed., London: Duckworth, 1978, PP. 22 e ss. e 71 e ss.). Mas ela difere em um ponto decisivo: a caracterização dos princípios como mandamentos de otimização.193

Como se percebe, para Robert Alexy a caracterização dos princípios

como mandamentos de otimização é o grande diferencial do modelo teórico por

ele adotado, quando comparado com aquele proposto por Ronald Dworkin. No

entanto, o primeiro autor admite que o critério apresentado pelo segundo deve

ser mantido, e não o exclui, mas o incorpora.

Com vista ao exposto, resta claro que os critérios de classificação

utilizados pelos autores mencionados194 para definir os princípios é bastante

192 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90. 193 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 91, nota 27. 194Todos os autores mencionados no capítulo 1 que atribuem à proporcionalidade a natureza jurídica de princípios utilizam mais ou menos esse mesmo critério da classificação de princípios. Portanto, a fim de evitar repetições, escolhemos para mencionar neste capítulo

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semelhante, chegando até mesmo a ser complementar. Além disto, ficou claro

que, no que tange à forma de aplicação dos princípios enquanto normas

jurídicas, estes serão aplicados ao caso concreto na maior ou na menor

medida, sendo que, em acaso de colisão, não serão excluídos do ordenamento

jurídico, mas sim ponderados e terão maior ou menor incidência na decisão do

caso concreto.

Ora, se os princípios se aplicam mediante ponderação, na maior ou

na menor medida, fica afastada, portanto, a subsunção do fato à norma, e a

consequente aplicação total ou não aplicação, que é própria das regras.

Contudo, se a proporcionalidade é um princípio, sua forma de aplicação – por

uma questão de coerência lógica – deve ser aquela própria dos princípios, isto

é, a proporcionalidade deve ser objeto de ponderação, e deverá ser aplicada

ao caso concreto na maior ou na menor medida.

Todavia, vimos que a forma de aplicação da proporcionalidade não

condiz com aquela que é própria aos princípios jurídicos. Afinal, ela deverá ser

aplicada sempre que diante da colisão de princípios, e sua forma de aplicação

é imperativa, isto é, ou é aplicada ou não é aplicada, não admitindo qualquer

espécie de ponderação. Desta forma, a proporcionalidade não se enquadra no

conceito de princípio concebido como norma jurídica.

3.1.2. A natureza não-normativa dos princípios

Não obstante os autores mencionados no capítulo 1 atribuam aos

princípios a natureza de norma jurídica, é preciso atentar para a existência de

autores que defendem posição diametralmente oposta, isto é, que os princípios

não são normas jurídicas, ainda que por sua natureza, decorram logicamente

do sistema ou do direito positivo, e/ou que influenciem diretamente a criação de

normas de decisão.

aqueles que entendemos serem os mais pertinentes para, em poucas linhas, trazer o ponto principal que será aqui analisado, qual seja, o critério de diferenciação baseado no modo de aplicação dos princípios e das regras.

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Um dos autores que diverge da linha adotada no capítulo 1 é Maria

Helena Diniz. Segundo esta autora os princípios decorrem das normas do

ordenamento jurídico, sendo que, mesmo se tratando de coisas diferentes,

princípios e normas possuem caráter prescritivo, sendo que a relação entre

eles é de cunho lógico-valorativo. 195 Ela sintetiza sua posição sobre os

princípios da seguinte forma:

a) São decorrentes das normas do ordenamento jurídico, ou seja, dos subsistemas normativos. Princípios e normas não funcionam separadamente; ambos têm, na nossa opinião, caráter prescritivo. Atuam os princípios como fundamento de integração do sistema normativo e como limite da atividade jurisdicional. b) São derivados das ideias políticas e sociais vigentes, ou seja, devem corresponder ao subconjunto axiológico e ao fático, que norteiam o sistema jurídico, sendo, assim, um ponto de união entre o consenso social, valores predominantes, aspirações de uma sociedade com o sistema de direito, apresentando, portanto, uma certa conexão com a filosofia política ou a ideologia imperante, de forma que a relação entre norma e princípio é lógico-valorativa, apoiando-se estas valorações em critérios da valor ‘objetivo’.196

Também defendendo a posição de que princípios não são normas

jurídicas encontramos a lição de Sérgio Sérvulo da Cunha. Partindo de um

ponto de vista histórico-evolutivo o autor afirma que a regra197 vem depois da

determinação, mas antes da norma. Tanto é assim que comumente se fala em

regras costumeiras, e não em normas consuetudinárias.

195 A autora apresenta esta posição quando trata dos princípios gerais de direito. Contudo, seu entendimento é extensível à todos os princípios, na medida em que, durante sua fundamentação, utiliza somente as expressões princípios e normas, deixando claro que o princípios gerais de direito são espécies de princípios e que, portanto, o critério de diferenciação entre princípios e normas é o mesmo. A única diferença, a nosso ver, que seria exclusiva dos princípios gerais de direito, é aquela que consta no item “c”, que não foi transcrito no corpo do texto, mas cuja transcrição fazemos agora: “c) São reconhecidos pelas nações civilizadas os que tiverem substractum comum a todos os povos ou a alguns deles em dadas épocas históricas” (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 475). 196 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 475. 197 Aqui a expressão regra é utilizada em sentido amplo, não fazendo qualquer menção – ainda mesmo que indireta – à classificação segundo a qual regra é uma espécie do gênero norma jurídica.

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Nesse sentido as regras são mais próximas dos princípios do que

das normas. Isto porque os primeiros estão inscritos na natureza das coisas, a

partir de onde são revelados. Quer dizer, o princípio existe antes do respectivo

enunciado, “e só passamos a buscar seu enunciado a partir da revelação,

identificação e nominação do princípio”.198 Já as normas “não existem sem os

respectivos enunciados”. 199 Afinal, somente a partir de um determinado

enunciado é que se pode afirmar que algo é uma norma. Sobre a relação entre

princípios e normas assim afirma o autor:

Toda norma implica, na sua elaboração, várias opções valorativas. Essas opções, que são fundamentos da norma, correspondem a princípios. Os princípios, portanto, sob esse aspecto, são opções valorativas implicadas, como fundamento, no enunciado das normas.200

Dessa relação pode-se abstrair que é impossível a construção de

um ordenamento jurídico composto exclusivamente por princípios. Isto porque,

como se percebe, a exigibilidade dos princípios pressupõe a existência das

normas. A partir disto é possível concluir que a mediatidade é característica do

princípio jurídico, enquanto a imediatidade é característica da norma jurídica.

Mas a diferença entre eles não para por aí:

Um ponto delicado quanto à diferença entre princípio e norma é o concernente à sua incidência. Princípios não descrevem suportes fáticos para sua incidência (não têm prótase), nem discriminam os respectivos efeitos (não têm apódose), tudo ao contrário do que acontece com as normas. Estas pretendem ser instruções sobre o modo como se aplicam os princípios em situações determinadas, por elas previstas. Entretanto, o princípio tem um âmbito de eficácia e uma combinação implícita de nulidade, o que explica seja visto, por alguns, como uma norma ‘de grande generalidade’. Por isso convém sublinhar a irredutibiliade dos princípios.201

198 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 54. 199 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 54. 200 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 55. 201 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 56.

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Com vistas a essa diferenciação o autor conclui que, “sob o ponto de

vista deontológico, princípio é a prescrição consistente numa opção valorativa

fundamental”.202 Portanto, para ele, obviamente, não se trata de norma jurídica.

Outro que partilha da posição de que princípios não são normas

jurídicas é Tércio Sampaio Ferraz Jr. Este autor parte da premissa de que o

ordenamento jurídico não contém apenas elementos normativos, mas é

composto também por elementos não-normativos. Estes últimos são

decorrência do processo de sistematização, que fica a cargo da zetética – e

não da dogmática –, o qual, em sua estrutura concreta, manifesta os mais

variados tipos de regras 203 e relações – por exemplo: definições, critérios

classificatórios, preâmbulos etc. Entre estas regras não jurídicas encontram-se

os princípios. Tanto é assim que o autor se manifesta da seguinte maneira a

respeito da formação das hierarquias (critério classificatório) e da atuação dos

princípios, ambos considerados por ele elementos não normativos:

Ora, nem a formação de hierarquias nem a atuação de princípios obedecem a critérios lógicos. Afinal, uma relação hierárquica é uma relação de superioridade e inferioridade, que a lógica não explica: as inferências lógicas se dão entre antecedentes e conseqüentes, mas antecedência não significa superioridade, nem conseqüência, inferioridade. Do mesmo modo, a atuação de um princípio não significa tomá-lo como antecedente para daí ditar conseqüências, mas projetá-lo como fim e direcionar-se para ele. Isto, obviamente, não exclui a possibilidade de uma lógica formal das normas. Significa, apenas, que a metodologia jurídica não é estritamente lógico-formal.204

Com base nessa posição o autor, mais a frente em sua obra, quando

trata dos princípios gerais de direito, assim sintetiza a posição dos princípios

(em geral) dentro do sistema jurídico, bem como sua forma de atuação:

De qualquer modo, ainda que se entenda que possam ser aplicados diretamente na solução de conflitos, trata-se não de normas, mas de princípios. Ou seja, não são elementos do repertório do sistema, mas fazem parte de suas regras

202 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 56. 203 Também aqui a expressão regra não é utilizada como espécie do gênero norma jurídica. 204 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 186.

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estruturais (ver supra 4.3.1.1), dizem respeito à relação entre as normas no sistema, ao qual conferem coesão. Talvez por isso, como fórmula tópica, eles sejam aplicados sem especificações maiores. Como premissa do raciocínio, eles são mencionados na forma indefinida que depois se determina numa regra geral com caráter normativo jurisprudencial.205

Ou seja, mesmo não sendo normas jurídicas, por serem elementos

estruturais do sistema, estas regras de natureza metodológica denominadas

princípios podem, inclusive, influenciar direta ou indiretamente a criação e/ou a

aplicação de uma norma jurídica. Afinal, os princípios são regras de coesão

(zetética) que orientam a relação entre as normas do direito positivo

(dogmática), formando, pois, o ordenamento jurídico.

Também numa perspectiva sistemática, vale lembrar a posição de

Claus-Wilhelm Canaris. Isto porque o referido autor estrutura o sistema jurídico

como sendo uma ordem de princípios gerais do direito. Afinal, vislumbra como

característica principal da idéia de unidade sistemática “a recondução da

multiplicidade do singular a alguns poucos princípios constitutivos”. 206 Em

outras palavras, isto significa a necessidade de apuração da ratio iuris

determinante, que se esconde por detrás da lei e da ratio legis.

Para o autor, somente dessa forma torna-se possível encontrar a

conexão orgânica dos valores – que até então sofrem um isolamento aparente

– como forma de obter o grau necessário de generalização dos mesmos sobre

a ordem a e unidade do ordenamento jurídico. Portanto, o autor passa a definir

o sistema como uma ordem teleológica, nos seguintes termos:

O sistema deixa-se, assim, definir como uma ordem axiológica ou teleológica de princípios gerais de Direito, na qual o elemento de adequação valorativa se dirige mais à característica de ordem teleológica e o da unidade interna à característica dos princípios gerais.207

205 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 247. 206 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema da ciência do direito. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p. 76. 207 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema da ciência do direito. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p. 77-78.

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Ocorre que, ao formular o sistema jurídico como uma ordem de

princípios, Claus-Wilhelm Canaris enumera as vantagens decorrentes da

formação deste tipo de sistema em comparação com outros tipos de sistemas,

dentre eles os sistemas de normas:

No que toca, em primeiro lugar, a um sistema de normas, surge este como pouco significativo, porquanto se deve procurar justamente, a conexão aglutinadora das normas – e esta não pode, por seu turno, consistir também uma norma; de fato, os princípios jurídicos unificadores e significantes só numa parte demasiado pequena se deixam formular na forma de normas que devam ser firmemente delimitadas segundo as previsões e estatuições normativas e, assim, recuam perante a articulação mais flexível do princípio.208

Ora, ao opor o sistema de princípios gerais do direito ao sistema de

normas o autor deixa clara a distinção de natureza existente entre eles. Afinal,

para ele os princípios não são normas jurídicas. Tanto é assim que as normas

jurídicas são insuficientes para a formação de um sistema dotado de unidade e

coerência, no qual os valores socialmente partilhados são admitidos, enquanto

os princípios, por possuírem natureza não-normativa, conseguem atingir este

objetivo.

Além das posições acima mencionadas, vale lembrar que também

Friedrich Müller não enquadra os princípios como normas jurídicas. De acordo

com sua teoria estruturante do direito os princípios serão considerados pelo

programa normativo o qual, por sua vez, é extraído do texto normativo e,

posteriormente, será interpretado conjuntamente com o âmbito normativo para,

ao final deste processo de interpretação, culminar na criação da norma jurídica.

Afinal, como diz o próprio autor, “para uma tópica que trabalha com princípio e

norma, interpretação significa adequação mútua de princípio e texto, visto que

ambos são por si fragmentários”. 209 Desta forma, por uma questão de

coerência lógica e metodológica, não pode o autor conceber os princípios como

normas jurídicas.

208 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema da ciência do direito. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p. 81. 209 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 195.

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Como se percebe o número de autores que não atribuem aos

princípios o status de norma jurídica é bastante significativo. Isto sem falar que

seus argumentos são bastante coerentes, na medida em que respeitam a

metodologia por eles adotada. Portanto, uma questão se coloca: como a

proporcionalidade se ajusta enquanto princípio dentro de um modelo

metodológico que não enquadra os princípios como normas jurídicas?

Essa é uma problemática que deve ser considerada. Afinal, se a

proporcionalidade é apresentada como um princípio que busca solucionar o

conflito entre princípios – enquanto concebidos como normas jurídicas –, a

partir do momento que aos princípios não é atribuído o status normativo ela

deixa de ser necessária.

Em outros termos, o princípio da proporcionalidade seria um

princípio de ocasião, existente, apenas, nos ordenamentos jurídicos quando

sistematizados de forma a admitir a colisão entre princípios, e desde que estes

tenham sido concebidos como normas jurídicas. Exemplificamos a questão:

independentemente da metodologia adotada, todos os autores reconhecem o

princípio da legalidade. Seja a ele atribuído o status de norma jurídica ou não, o

referido princípio será identificado e nominado após sua revelação. 210 O

mesmo se passa com o princípio da segurança jurídica. Independentemente de

ser-lhe atribuído status normativo, uma vez revelado, será ele identificado e

nominado. Note-se que tanto o princípio da legalidade quanto o princípio da

segurança jurídica se revelarão ao operador do direito independentemente da

metodologia adotada, isto é, não importando se a eles foi atribuída natureza

normativa ou não. Contudo, o mesmo não ocorre com o princípio da

proporcionalidade. Afinal, ele não se apresenta ao operador do direito

independentemente da metodologia adotada. Pelo contrário, o referido princípio 210 Eros Roberto Grau, que atribui natureza normativa aos princípios, assim se manifesta a respeito: “Os princípios jurídicos, princípios de direito, não são resgatados fora do ordenamento jurídico, porém descobertos no seu interior” (GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 70). No mesmo sentido, mas negando aos princípios natureza normativa, é o posicionamento de Sérgio Sérvulo da Cunha: “O princípio, porém, existe antes do respectivo enunciado; e só passamos a buscar seu enunciado a partir da revelação, identificação e nominação do princípio” (CUNHA, Sérgio Sérvulo. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 54).

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somente é cogitado quando diante da colisão de princípios, enquanto

considerados como normas jurídicas. Se não considerados normas jurídicas,

sua forma de aplicação não permite a invocação – e conseqüente utilização –

do referido princípio. Daí o porquê do princípio da proporcionalidade estar

limitado a certas metodologias e, portanto, ser um princípio de ocasião.

Data venia, independentemente da natureza jurídica dos princípios,

a ciência jurídica não pode admitir a existência de princípios de ocasião. Ou um

princípio se revela ao operador do direito diante de toda e qualquer

metodologia – e, portanto, será de fato um princípio –, ou então estamos diante

de outra coisa, que não um princípio. Desta forma, também sob esta

perspectiva a proporcionalidade não pode ser concebida como um princípio.

3.2. O problema da proporcionalidade como regra

Dentre os autores citados no capítulo 1 vimos que Virgílio Afonso da

Silva, ao contrário dos demais, atribui à proporcionalidade o status de norma

jurídica do tipo regra. Afinal, assim como os autores mencionados no item

3.1.1, ele parte da premissa de que as normas jurídicas são o gênero do qual

as regras e os princípios são as espécies. Entretanto, ao atribuir o status de

regra à proporcionalidade este autor se distancia da posição defendida por

aqueles autores, haja vista que eles atribuem à proporcionalidade a natureza

jurídica de princípio.

Mas por que a proporcionalidade não seria um princípio segundo

Virgílio Afonso da Silva, assim como é para aqueles que partilham das mesmas

premissas metodológicas?

Em que pese o autor adote os mesmos critérios de diferenciação de

regras e princípios, e reconheça, também, que a proporcionalidade deve ser

utilizada quando diante da colisão de princípios, ele acredita que, com base

nos critérios de diferenciação adotados – por ele e pelos autores do capítulo

3.1.2 – não é possível enquadrar a proporcionalidade como um princípio. Isto

porque a proporcionalidade deve ser aplicada sempre que diante da colisão de

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princípios, não admitindo qualquer espécie de gradação – aplicação na maior

ou na menor medida –, nem muito menos ponderação. Ou aplica-se a

proporcionalidade integralmente, com seus três subitens, ou não se aplica em

absoluto. Diante desta constatação o autor conclui que a forma de aplicação da

proporcionalidade é aquela própria de uma regra e que, portanto, ela só pode

ser uma regra.

Todavia, de acordo com os critérios utilizados pelo autor as regras

garantem direitos definitivos,211 se aplicam mediante subsunção212 e, em caso

de incompatibilidade total entre regras, a solução é a declaração de invalidade

de uma delas.213 Desta forma, em sendo a proporcionalidade uma regra, a ela

se aplicam todos os preceitos acima listados.

No entanto, as regras têm a estruturação normativa clássica de uma

prescrição que estabelece direitos ou deveres através de comandos que

consistem em ações ou em abstenções. Afinal, ao contrário dos princípios, as

regras são razões definitivas, que se manifestam como juízos concretos de

dever-ser.214 Assim, podem ser logicamente estruturadas como prescrições da

seguinte ordem: “Se A é, então B deve ser”; ou “Se A é, então B não deve ser”.

O problema é que, ao contrário dos princípios, que podem estar

expressos ou implícitos no texto normativo, o referido tipo de prescrição deve

necessariamente se encontrar expressamente afirmada no direito positivo. Aí

vem a questão: a regra da proporcionalidade preenche estes requisitos?

211 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 45. 212 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 46. 213 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 48. Em havendo incompatibilidade parcial a solução ocorre através da utilização de uma cláusula de exceção. 214 Nesse sentido aponta a lição Robert Alexy, cuja teoria é adotada por Virgílio Afonso da Silva: “Se uma regra é uma razão para um determinado juízo concreto – o que ocorre quando ela é válida, aplicável e infensa a exceções –, então, ela é uma razão definitiva. Se o juízo concreto de dever-ser tem como conteúdo a definição de que alguém tem determinado direito, então, esse direito é um direito definitivo. Princípios são, ao contrário, sempre razões prima facie. Isoladamente considerados, eles estabelecem apenas direitos prima facie” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 107-108).

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Após uma pesquisa tomando como base o direito positivo brasileiro

pudemos encontrar algumas menções expressas à proporcionalidade na

Constituição da República e em algumas leis. A Constituição aduz em seu

artigo 58, § 4° à proporcionalidade da representação partidária na comissão

representativa do Congresso Nacional durante o recesso,215 e em seu artigo

155, § 4°, inciso II se refere à proporcionalidade na arrecadação de tributos

decorrentes de operações interestaduais.216

Já a lei de processo administrativo federal (Lei n° 9.784/1999)

estabelece em seu artigo 2° que a administração pública obedecerá, dentre

outros, aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (veja que ela

trata os dois distintamente).217

Por sua vez, o Código de Processo Penal faz referência à

proporcionalidade em dois momentos. No seu artigo 438, § 2° determina a

fixação de pena alternativa ao serviço do júri por escusa de consciência

atendendo aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.218 Já no seu

artigo 156, inciso I admite que o juiz ordene a produção antecipada de provas

urgentes e relevantes observando a necessidade, a adequação e a

proporcionalidade da medida.219

Dos casos encontrados no direito positivo brasileiro apenas o último

poderia ser considerado como uma prescrição que formula a proporcionalidade

como regra. Contudo, em que pese seja possível identificar uma prescrição

215 Art. 58 (...) § 4º - Durante o recesso, haverá uma Comissão representativa do Congresso Nacional, eleita por suas Casas na última sessão ordinária do período legislativo, com atribuições definidas no regimento comum, cuja composição reproduzirá, quanto possível, a proporcionalidade da representação partidária. 216 Art. 155 (...) §4° (...) II - nas operações interestaduais, entre contribuintes, com gás natural e seus derivados, e lubrificantes e combustíveis não incluídos no inciso I deste parágrafo, o imposto será repartido entre os Estados de origem e de destino, mantendo-se a mesma proporcionalidade que ocorre nas operações com as demais mercadorias; 217 Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. 218 Art. 438 (...)§ 2o O juiz fixará o serviço alternativo atendendo aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 219 Art. 156 (...)I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

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normativa própria das regras na adequação – se existe inquérito policial para

investigar a prática de ilícito penal, então deverão ser produzidas provas – e na

necessidade – se há a necessidade de produção imediata de prova sob pena

de gerar prejuízo para a apuração do fato, então a prova deve ser produzida –,

o mesmo não parece ser possível no caso da proporcionalidade em sentido

estrito. Isto porque esta última funciona como outro tipo de juízo, não sendo

enquadrável, pois, como regra.220

Não obstante isso, ainda que o texto do artigo 156, inciso I do

Código de Processo Penal fosse perfeitamente enquadrável na forma de

prescrição própria das regras, ainda assim a proporcionalidade careceria de

texto normativo.221 Isto porque não existe texto normativo afirmando que a

colisão de princípios deve ser solucionada pela proporcionalidade, através da

análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade –

preferencialmente explicando em que consiste cada uma delas.222

Visto isso, fica claro que a proporcionalidade não pode ser uma

regra porque lhe falta o texto de onde decorre a prescrição que lhe confere a

forma lógica de uma regra. Ademais, não dá para ignorar a ausência de

uniformidade estrutural da proporcionalidade – isto de acordo com os critérios

estabelecidos pelo próprio autor –, pois em que pese que duas de suas

etapas 223 possuam a estruturação de regras, a terceira possui uma forma

estrutural que não difere essencialmente daquela das etapas anteriores.

220 A falta de técnica legislativa do dispositivo em questão é latente. Uma simples norma no sentido de que “se há a necessidade de produção imediata de prova sob pena de gerar prejuízo para a apuração do fato, então a prova deve ser produzida” (se A é, então B deve ser) seria suficiente para solucionar a questão de forma coerente. Contudo, a falta de metodologia dos legisladores e operadores do direito, aliada ao modismo indiscriminado que assola a doutrina brasileira no que toca à proporcionalidade, levou à distorção apresentada. 221 Conforme aponta a tradição jurídica, os princípios podem ser explícitos ou implícitos, enquanto as regras devem ser sempre explícitas. 222 O oposto ocorre com o critério para solução de conflito entre regras. Isto porque a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro estabelece em seu no artigo 2°, §1° que “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”, e sem §2° que “a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”. 223 Nomenclatura utilizada pelo próprio autor (SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 175)

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Todavia, alguém poderia afirmar ainda que a proporcionalidade foi

introduzida no ordenamento jurídico brasileiro através de decisão judicial

(norma de decisão) a qual, por sua vez, possui a estrutura de regra. Daí porque

a proporcionalidade assumiria também a forma de uma regra, e dispensaria a

existência de texto normativo.

Data venia, esse raciocínio não resolve o problema. Primeiramente

porque a terceira etapa, a proporcionalidade em sentido estrito, continua tendo

uma forma de aplicação incompatível com a estrutura de uma regra. Em

segundo lugar, porque a incorporação da proporcionalidade ao direito positivo

pressupõe a sua adoção reiterada pelos tribunais pátrios, a ponto de formar

jurisprudência.224 Para tanto, a proporcionalidade deveria ser uniformemente

utilizada pelos tribunais sempre que diante da colisão de princípios, o que nem

sempre acontece, seja por opção argumentativa 225 ou mesmo por razões

metodológicas. 226 Em terceiro lugar, ainda que a proporcionalidade fosse

uniformemente adota pelos tribunais, não bastaria sua utilização como critério

para a formação de uma regra de decisão, mas seria necessário que ela

própria oferecesse o conteúdo decisório. O que se quer dizer é que, para ser

considerada uma regra, a proporcionalidade deveria ela própria determinar um

fazer ou não fazer, ou seja, o fundamento da regra de decisão precisaria ser a

própria proporcionalidade, e não o princípio prevalente naquele caso concreto

de colisão.227

Dessa forma, pelos motivos acima mencionados fica clara a

impossibilidade de se enquadrar a proporcionalidade como regra, enquanto

espécie do gênero norma jurídica. 224 A jurisprudência é assim conceituada por Maria Helena Diniz: “O termo jurisprudência está aqui sendo empregado como o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, resultantes da aplicação de normas a casos semelhantes, constituindo uma norma geral aplicável a todas as hipóteses similares ou idênticas. É o conjunto de normas emanadas dos juízes em sua atividade jurisdicional” (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 296). 225 Nos casos em que, na hora de fundamentar sua decisão, o interprete/aplicador opte por fundamentar sua decisão utilizando outro parâmetro que não a proporcionalidade. 226 Nos casos em que a metodologia utilizada pelo interprete/aplicador for incompatível com o uso da proporcionalidade. 227 A esse respeito vide o debate entre os ministros Gilmar Ferreira Mendes e Eros Roberto Grau nos autos da ADI 855-2.

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3.3. O problema da proporcionalidade como “norma diversa”

Em que pese que a maioria dos autores mencionados no capítulo 1

parta da premissa de que norma jurídica é o gênero do qual princípios e regras

são as únicas espécies, existem autores que reconhecem que princípios e

regras são normas jurídica e admitem a existência de outras espécies de

norma jurídica. Para estes autores a proporcionalidade é norma jurídica, não é

princípio nem regra, mas sim uma “norma diversa”.

Obviamente “norma diversa” não é uma categoria normativa.

Utilizamos esta nomenclatura neste item porque, como se verá, cada autor

atribui à proporcionalidade uma categoria normativa específica, categorias

estas que serão analisadas nos subitens abaixo.

3.3.1. A proporcionalidade como postulado normativo aplicativo

Conforme foi mostrado no item 1.9 do capítulo 1, Humberto Ávila

parte da premissa de que as normas jurídicas podem ser categorizadas em

dois graus: no primeiro temos os princípios e as regras; no segundo temos os

postulados normativos. Para o autor, as normas de primeiro grau atuam no

nível do objeto da ciência jurídica, qual seja, o nível do direito positivo,

enquanto as normas de segundo grau atuam num metanível, isto é, atuam

sobre as normas que estão no plano do direito positivo. Estas últimas, por sua

vez, podem ser de duas espécies: postulados normativos hermenêuticos e

postulados normativos aplicativos.

É importante ressaltar que o autor não apenas apresenta duas

novas espécies de norma jurídica – postulados normativos hermenêuticos e

postulados normativos aplicativos –, mas também rompe com o conceito de

princípios e regras tradicionalmente difundido com base nos modelos de

Ronald Dworkin e Roberty Alexy. Isto porque, segundo Humberto Ávila, os

princípios se caracterizam por serem imediatamente finalísticos, primariamente

prospectivos e por terem pretensão de complementariedade e de parcialidade.

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Já as regras se caracterizam por serem imediatamente descritivas,

primariamente retrospectivas e por possuírem pretensão de decidibilidade e de

abrangência.228

No que toca aos postulados normativos – os quais não se

confundem nem com regras nem com princípios –, o autor esclarece que “a

interpretação de qualquer objeto cultural submete-se a algumas condições

essenciais, sem as quais o objeto não pode ser sequer apreendido”,229 e que

estas condições especiais são justamente os postulados. Em se tratando de

ciência jurídica, existem os postulados cuja função é a compreensão geral do

direito (postulados hermenêuticos), bem como aqueles destinados à

estruturação da sua aplicação concreta (postulados aplicativos). Portanto,

estes postulados são normas metódicas que instituem critérios para a

interpretação e para a aplicação das normas situadas no nível do direito

positivo. Daí porque o autor as classifica como metanormas, incluindo-as num

plano diferente de atuação. Por isto é que são chamadas por ele de normas de

segundo grau.

Todavia, o autor ressalva o fato de que os postulados, normas de

segundo grau, não se confundem com normas de primeiro grau que

influenciam outras normas, tais como os sobreprincípios. Isto porque estes

últimos situam-se no mesmo nível das normas objeto de interpretação e de

aplicação, isto é, no plano do direito positivo. Desta forma, eles atuam sobre

outras normas situadas no mesmo plano em que se encontram, mas agem no

âmbito semântico e axiológico, e não no âmbito metódico – como fazem os

postulados.

Após apresentar essa diferenciação metodológica entre normas de

primeiro grau e de segundo grau – com a consequente conceituação das

espécies de cada uma delas –, o autor conclui que a proporcionalidade é um

postulado normativo aplicativo.

228 Cada característica se encontra detalhadamente explicada no item 1.9 do capítulo 1. 229 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 121-122.

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Em que pese acharmos a posição de Humberto Ávila uma das mais

bem estruturadas dentre aquelas aqui apresentadas, nos parece que a sua

posição merece algumas considerações.

Primeiramente é preciso atentar ao fato de que a tradição jurídica

afirma que as normas jurídicas são produzidas a partir das fontes do direito, as

quais se dividem em duas espécies: materiais e formais. As primeiras são o

conjunto de fatos sociais que determinam o conteúdo do direito, exprimindo,

assim, os valores que foram inseridos nas normas jurídicas durante seu

processo de criação. Já as últimas são aquelas que dão forma ao direito, e se

referem aos modos de manifestação das normas jurídicas.

As fontes formais, ainda de acordo com a clássica divisão, se

dividem em fontes formais estatais e não estatais. Dentre as primeiras temos a

lei em sentido amplo, compreendendo a constituição, as leis complementares,

as leis ordinárias, as leis delegadas, os decretos executivos, os decretos

legislativos, as portarias, as resoluções etc., e a jurisprudência, considerada

como o conjunto de decisões uniformes e reiteradas, proferidas pelos tribunais,

aplicáveis a casos idênticos ou semelhantes.230 Já a fonte formal não estatal é

o costume, entendido como a prática reiterada de certo ato, atribuindo a ele o

caráter de obrigatoriedade. Há, contudo, autores que acrescentam às fontes

não estatais outras três: o poder negocial, compreendido como força geradora

de normas jurídicas particulares e individuais;231 o poder normativo dos grupos

sociais, compreendido como o conjunto de normas criadas pelos agrupamentos

sociais, tais como o direito canônico no âmbito da igreja católica e as normas

230 No que se refere às súmulas vinculantes, somos da opinião de que, em que pese sejam criadas pelo Poder Judiciário, estas, pela sua generalidade e abstração, devem ser incluídas no grupo das leis em sentido amplo. 231 No que toca ao poder negocial se pode entender que a autonomia contratual, enquanto contida na lei e por ela limitada, está implícita naquela fonte formal estatal e, portanto, não merece classificação específica. Ou ainda que, por gerar obrigações no caso concreto, não atende ao requisito das fontes do direito que é reger as relações jurídicas em abstrato.

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da justiça desportiva;232 e a doutrina, concebida como a atividade científico-

jurídica realizada pelo jurista visando a sistematização das normas jurídicas.233

Pois bem, quando nos debruçamos sobre a classificação proposta

por Humberto Ávila e a analisamos sob o prisma das fontes do direito

percebemos que as normas de primeiro grau – sejam elas regras, princípios

implícitos ou explícitos, ou ainda sobreprincípios – encontram sua fonte

material nos valores sociais normatizados, e sua fonte formal na lei em sentido

amplo, ou eventualmente na jurisprudência. Afinal, como afirma o autor, as

normas de primeiro grau estão no plano do direito positivo e têm sua atuação

no âmbito semântico e axiológico.

Todavia, quando o autor propõe a existência dos postulados, isto é,

das normas de segundo grau, ele esclarece se tratar de normas cuja atuação

ocorre no âmbito metódico. Contudo, o autor não esclarece quais as fontes

destas normas enquanto direito.

Diante disso, nos parece que a atribuição do status normativo às

normas de primeiro grau segue rigorosamente os padrões exigíveis de uma

norma jurídica, na medida em que fica clara, na exposição do autor, quais são

as suas fontes. Por outro lado, a proposta metodológica da existência dos

postulados hermenêuticos e aplicativos vai bem até o momento em que o autor

lhes atribui o status normativo. Afinal, enquanto normas jurídicas, torna-se

necessário esclarecer quais são as suas fontes.

Tendo em vista que o autor não realizou a tarefa de analisar a

normatividade dos postulados, isto é, das normas de segundo grau à luz das

fontes do direito, tentaremos realizá-la nós mesmos, para melhor visualizar o

seu enquadramento enquanto norma jurídica.

232 A inclusão do poder normativo dos grupos sociais pressupõe a premissa de que o Estado não detém o monopólio do direito. 233 Mais à frente apresentaremos a discussão sobre a doutrina como fonte do direito.

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De acordo com o Humberto Ávila os postulados se encontram acima

do plano do direito positivo e atuam no âmbito metodológico. Portanto, pode-se

dizer que são ferramentas apresentadas pelo cientista do direito após o

processo de sistematização do direito positivo, visando facilitar a interpretação

e a aplicação do direito.

Note-se que estas ferramentas estão desprovidas de qualquer

aspecto axiológico. Diante desta constatação, fica claro que os postulados

estão desprovidos de fonte material, na medida em que os fatores sociais –

sejam eles históricos, econômicos, éticos, políticos, etc. – em nada interferem

em sua criação, já que os postulados não possuem conteúdo material.

Entretanto, sob o aspecto formal, salta aos olhos o fato de que os

postulados não são provenientes da lei em sentido amplo, assim como não

decorrem da jurisprudência, não possuindo, pois, uma fonte formal estatal. De

outro lado não são oriundos da prática reiterada de certos atos e, portanto, não

decorrem do costume. Não são também manifestação de poder negocial nem

do poder normativo de grupos sociais. Mas, enquanto ferramentas criadas pelo

cientista para facilitar a interpretação e a aplicação do direito, os postulados

podem ser enquadrados na doutrina enquanto fonte do direito e, desta forma,

decorreriam de uma fonte formal não estatal. O problema é que a questão não

é simples assim.

No que diz respeito à doutrina enquanto fonte do direito cumpre

frisar a existência de dissenso doutrinário no que tange a sua aceitação

enquanto tal. Dentre os que a admitem ressaltamos a posição de Maria Helena

Diniz. Para a autora a doutrina, enquanto decorrente da atividade científica,

deve ser tida como fonte de direito costumeiro. Assim afirma a autora:

Todavia, será preciso não olvidar que a doutrina é decorrente de atividade científica, e esta é tida por muitos, inclusive por nós, como fonte de direito costumeiro. Poderíamos até considerar a doutrina como forma de expressão do direito consuetudinário, resultante da prática reiterada de juristas sobre certo assunto. É nos tratados que se procuram as normas, neles os juristas apresentam sua interpretação de

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normas e soluções prováveis para casos não contemplados; se seus pensamentos forem aceitos pelos contemporâneos, fixam-se em doutrina, que, por sua vez, irá inspirar os tribunais.234

Em que pese o posicionamento exarado pela autora, nos parece

haver uma confusão entre a doutrina enquanto fonte do direito e a incorporação

de determinado preceito doutrinário pelo direito positivo através de uma

determinada fonte do direito. Isto porque, a doutrina em si, enquanto

sistematização do direito positivo, não se confunde com ele, nem mesmo cria

normas jurídicas que serão por ele incorporadas. O que ela faz é apresentar

ferramentas, as quais sistematizam o direito positivo e auxiliam na sua

interpretação e aplicação. Nada impede, contudo, que uma determinada

ferramenta doutrinária possa integrar o direito positivo. Para tanto, será

necessária a sua conversão em prescrição normativa através de uma

determinada fonte do direito. Tanto é assim que a própria Maria Helena Diniz

reconhece que “a atividade científica sem o beneplácito dos tribunais e sem a

sedimentação do costume não cria o direito”.235

Veja-se, por exemplo, que o artigo 2° da Lei de Introdução ao Direito

Brasileiro incorporou ao direito positivo um preceito doutrinário expresso pelo

brocardo jurídico lex posteriori derogat priori (lei como fonte formal). Este

brocardo, por sua vez, vinha sendo reconhecido indistintamente como critério

de solução de conflito normativo desde o direito romano (costume como fonte

formal). No entanto, a adoção deste brocardo como solução dos conflitos

normativos ocorreu antes de tudo no âmbito dos tribunais (jurisprudência como

fonte formal).

O fato é que, quando um preceito doutrinário é incorporado ao direito

positivo e, portanto, vira norma jurídica, por mais que se trate de uma

metanorma, esta norma permanecerá no mesmo nível das demais, existindo,

234 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 326. 235 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 327.

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assim, apenas um grau único de normatividade. E, como visto, sua

incorporação ao direito positivo é feita pelas fontes do direito.

Já dentre aqueles que refutam a doutrina como fonte de direito

destacamos a posição de Paulo de Barros Carvalho. Segundo este autor a

doutrina se utiliza de um discurso descritivo, na medida em que – enquanto

atividade científica – descreve o seu objeto de estudo, qual seja, o direito

positivo. Por sua vez, o direito positivo não tem sua natureza afetada pela

atividade da ciência, mantendo, assim, sua estrutura prescritiva. A recíproca é

verdadeira. O enunciado científico também não tem sua natureza afetada pelo

seu objeto de estudo, não tendo, pois, sua estrutura descritiva alterada. Isto

posto, por criar enunciados descritivos, e não prescritivos, a doutrina não é

fonte do direito:

A doutrina não é fonte do direito positivo. Seu discurso descritivo não altera a natureza prescritiva do direito. Ajuda à compreende-lo, entretanto não o modifica. Coloca-se como urna sobrelinguagem que fala da linguagem deôntica da ordenação jurídica vigente. Nem será admissível concebe-Ia como fonte da Ciência do Direito, pois ela própria pretende ser científica. Quem faz doutrina quer construir um discurso científico, reescrevendo as estruturas prescritivas do sistema normativo.236

Percebe-se que a característica de sobrelinguagem – também

chamada de metalinguagem – atribuída por Paulo de Barros Carvalho aos

enunciados científicos lembra bastante a ideia de metanormas, as quais são

normas de segundo grau no critério proposto por Humberto Ávila. Todavia,

para que sejam normas jurídicas, os postulados propostos pelo último devem

ser emanados por uma fonte normativa, quando, então, adotarão a linguagem

de enunciados prescritivos. Do contrário, manterão a linguagem descritiva, e

deverão ser considerados simplesmente enunciados científicos.

De outra parte, também Miguel Reale rejeita o enquadramento da

doutrina como fonte do direito. Este, por sua vez, ressalta primeiramente ser

236 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 56.

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preciso ter em mente o fato de que a doutrina não tem força suficiente para

revelar a norma jurídica que deverá ser cumprida pelo aplicador do direito ou

pelas partes – caso contrário os preceitos doutrinários de Pontes de Miranda,

por exemplo, estariam influenciando as decisões judiciais até hoje. No entanto,

o argumento principal apresentado por ele, diz de que a doutrina não se

desenvolve em uma estrutura de poder, o que é requisito essencial para o

conceito de fonte. Por isto, diferencia os modelos jurídicos dos modelos

científico ou dogmáticos. Sobre a diferença entre eles expõe o que segue:

As fontes de direito produzem modelos jurídicos prescritivos, ou, mais simplesmente, modelos jurídicos, isto é, estruturas normativas que, com caráter obrigatório, disciplinam as distintas modalidades de relações sociais. Como pensamos ter demonstrado em nosso livro O Direito como Experiência, enquanto que as fontes revelam modelos jurídicos que vinculam os comportamentos, a doutrina produz modelos dogmáticos, isto é, esquemas teóricos, cuja finalidade é determinar: a) como as fontes podem produzir modelos jurídicos válidos; b) que é que estes modelos significam; e c) como eles se correlacionam entre si para compor figuras, institutos e sistemas, ou seja, modelos de mais amplo repertório.237

Como se percebe, os postulados são criações científicas que têm

por finalidade auxiliar na interpretação e na aplicação do direito e, portanto, são

modelos científicos ou dogmáticos, e não normas jurídicas. Mas isto não

significa a exclusão da doutrina da atividade jurídica, nem mesmo o seu

rebaixamento a algo sem importância. Afinal, o próprio autor faz questão de

frisar que “a doutrina, por conseguinte, não é fonte do Direito, mas nem por

isso deixa de ser uma das molas propulsoras, e a mais racional das forças

diretoras, do ordenamento jurídico”. 238

Nesse ponto vale relembrar o entendimento de Celso Ribeiro Bastos

que, quando trata da interpretação constitucional, admite a existência de

postulados. 239 No entanto, este autor não lhes atribui o status de norma

237 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 167. 238 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 169. 239 Os postulados a que se refere Celso Ribeiro Bastos, por serem considerados com vista à interpretação da Constituição, correspondem àqueles considerados por Humberto Ávila como postulados hermenêuticos, ressalvadas as particularidades da teoria de cada autor.

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jurídica, mas os concebe como enunciados dirigidos àquele que exerce

atividade interpretativa240:

Postulado é um comando, uma ordem mesma, dirigida à todo aquele que pretende exercer a atividade interpretativa. Os postulados precedem a própria interpretação, e se se quiser, a própria Constituição. São, pois, parte de uma etapa anterior à de natureza interpretativa, que tem que ser considerada enquanto fornecedora de elementos que se aplicam à Constituição, e que significam, sinteticamente, o seguinte: não poderás interpretar a Constituição devidamente sem antes atentares para estes elementos.241

Vale ressaltar que uma posição que nos chama a atenção no que diz

respeito aos postulados é a de Eros Roberto Grau. Como visto no item 1.10 do

capítulo 1, o autor atribui à proporcionalidade o status de postulado normativo

de interpretação/aplicação do direito. 242 Para tanto o autor se remete

constantemente e de forma expressa à teoria de Humberto Ávila, de onde

abstrai que a proporcionalidade é um postulado normativo aplicativo243 – sendo

que, mais a frente, o renomeia para adequá-lo à premissa estabelecida por ele

de que a interpretação e a aplicação do direito “se confundem”. 244

O problema é que Eros Roberto Grau estabelece sua teoria sobre os

conceitos de direito posto e de direito pressuposto. Segundo preceitua o

primeiro é o direito das regras, o direito positivo, enquanto o segundo é o direito

240 Há que ressaltar que Celso Ribeiro Bastos diferencia os postulados dos instrumentais hermenêuticos, o que faz nos seguintes termos: “Os postulados, já se frisou, são pressupostos para uma válida interpretação. Os instrumentais hermenêuticos é que são propriamente recursos da interpretação” (BASTOS, Celso. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002. p. 169). A nenhum deles é atribuído o status de norma jurídica. 241 BASTOS, Celso. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002. p. 165. 242 Nesse sentido o autor afirma o que segue: “Proporcionalidade e razoabilidade são, destarte, postulados normativos da interpretação/aplicação do direito e não princípios” (GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 191). 243 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 188 ss. 244 Conforme visto no item 1.10 do capítulo 1, o autor entende que a interpretação e a aplicação ocorrem de forma simultânea, seja no momento de criação da norma de decisão (interpretação in concreto), ou no da produção norma jurídica (interpretação in abstrato).

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dos princípios.245 Entretanto, o direito posto e o direito pressuposto possuem

uma relação de mútua influência, como explica o próprio autor:

Em outros termos: o legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direito positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própria base. O direito pressuposto condiciona a elaboração do direito posto, mas este modifica o direito pressuposto.246

Ora, se o direito pressuposto condiciona a elaboração do direito

posto, assim como a modificação do direito posto altera o direito pressuposto,

isto significa que ambos estabelecem uma relação de retroalimentação entre si.

Dito isto, uma vez que a criação/modificação de um altera o outro, não há

dúvida de que o direito posto e o direito pressuposto atuam no mesmo nível e

que, portanto, a existência de normas de segundo grau é incompatível com a

teoria de Eros Roberto Grau. Ademais, há que se lembrar que em sua teoria o

autor concebe apenas as regras e os princípios como espécies de normas

jurídicas, silenciando quanto aos postulados.

Não obstante tudo isso, o ponto central é que nada impede que os

postulados sejam metodologicamente estruturados. Todavia, sua estruturação

ocorre no plano da atividade científica, e não no plano do direito positivo,

motivo este que lhe afasta o caráter normativo. Admite-se, no entanto, que o

postulado venha a ser convertido em norma jurídica, desde que por meio de

uma das fontes do direito, quando, então, estará no mesmo plano das demais

normas do ordenamento jurídico.

Dessa forma, fica claro que, enquanto postulado aplicativo, a

proporcionalidade não é uma norma jurídica, mas sim um modelo científico –

produto da atividade científica –, o qual utiliza a linguagem descritiva, e tem

como objetivo auxiliar o aplicador do direito no momento da criação de uma

norma jurídica de decisão. 245 “O direito pressuposto é fundamentalmente princípios, nada obstando, de toda sorte, a que nele vicejem regras, entendidas estas como normas jurídicas cujo grau de generalidade é mais estreito do que o grau de generalidade dos princípios” (GRAU, Eros Roberto, O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 77). 246 GRAU, Eros Roberto, O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 64.

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3.3.2. A proporcionalidade como híbrido

No item 1.11 do capítulo 1 tivemos a oportunidade de analisar a

teoria de Marcelo Neves. Naquela ocasião verificamos que o autor parte da

teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas, a qual trabalha com os

conceitos de plano da ação, sendo aquelas afirmações ocorridas no âmbito da

prática cotidiana, e de plano do discurso, que surge quando as pretensões

sustentadas pelas ações são problematizadas nas interações concretas,

passando, então, a exigir justificação.

Com base nesse modelo habermasiano o autor afirma que a

distinção entre regras e princípios só pode ocorrer no plano discursivo, pois o

comando normativo, que era aceito no plano da ação, passa a ser suscetível

de questionamento no plano da argumentação.

Entretanto, o autor insere os preceitos da teoria do agir comunicativo

dentro da concepção de sistema, de onde abstrai a existência de duas ordens

de observação: as de primeira e as de segunda ordem. As observações de

primeira ordem são aquelas referentes à aplicação rotineira do direito pela

burocracia estatal, onde não há questionamento de sentido ou de validade, por

exemplo. Já as observações de segunda ordem alcançam outro plano, pois

discutem as normas a serem aplicadas, seja no tocante ao seu sentido, à sua

validade, às condições de cumprimento etc. É justamente no plano do discurso

jurídico, dentro das observações de segunda ordem, que ganha relevância a

distinção entre regras e princípios.

Com base nessa relação discursiva de segunda ordem Marcelo

Neves afirma que “os princípios e as regras são normas jurídicas reconstruídas

à luz da observação de segunda ordem dos processos de argumentação

jurídica”.247 E complementa esta afirmação mais a frente, pontuando que “a

247 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 100.

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argumentação jurídica ocorre na intersecção entre a justificação e a aplicação

das normas”.248

Todavia, sob a influência de Max Weber o autor enquadra estas

espécies normativas como conceitos típico-ideais, não nos termos da teoria

weberiana, mas enquanto “estruturas cognitiva de seleção das ciências sociais

em relação à realidade-ambiente que, diante delas, apresenta-se mais

complexa e desestruturada”,249 fugindo, assim, da dicotomia que resultaria da

simples aplicação da teoria sistêmica. Isto porque, dentro do âmbito

normativo,250 os tipos ideais se prestam à ordenação seletiva das disposições e

enunciados normativos, justamente o papel desempenhado pelos princípios e

pelas regras no plano da argumentação jurídica.

A partir daí o autor classifica os princípios como sendo normas no

plano reflexivo, as quais possibilitam o balizamento e a construção ou a

reconstrução de regras. Já as regras são classificadas como razões imediatas

para normas de decisão, funcionando como condição de aplicação do princípio

ao caso concreto. É o processo argumentativo que definirá, sob o ponto de

vista funcional-estrutural, se uma norma se encaixa no padrão de princípios ou

de regra.

No entanto, o autor ressalva que, por se tratarem de conceitos

típico-ideais, que são categorias gnosiológicas, poderá ocorrer contaminação

recíproca entre eles. Por isto, ele reconhece a possibilidade da existência de

híbridos, que nada mais são do que normas jurídicas que se encontram em

situação intermediária entre princípios e regras. Para ele a proporcionalidade é

justamente uma norma desta espécie.

Após apresentar a teoria proposta por Marcelo Neves passamos às

nossas considerações. 248 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 100. 249 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 102. 250 O autor utiliza a expressão âmbito normativo em sentido diverso daquele adotado por Friedrich Müller, na medida em que não adota a teoria deste último.

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Segundo Max Weber a construção de uma teoria científica apta a

promover o conhecimento no âmbito das ciências sociais precisa adotar, em

sua metodologia, conceitos típico-ideais. Conforme preceitua, os elementos

conceituais destas ciências não são apreensíveis senão através da utilização

desta espécie de conceito. “Portanto, a construção de tipos ideais abstratos

não interessa como fim, mas única e exclusivamente como meio de

conhecimento”.251 Nesta perspectiva, o tipo ideal é uma tentativa de apreender

os indivíduos históricos e/ou os seus processos de conhecimento em conceitos

genéticos.252 Tanto é assim que alguns dos conceitos típico-ideais trazidos pelo

autor como exemplo são os seguintes: valor253 , individualismo, feudalismo,

mercantilismo e convencional.254

Note-se que referidos conceitos não são encontrados de forma pura

na realidade social e que, portanto, não servem como um esquema no qual se

possa incluir a realidade de maneira exemplar – como ocorre com os conceitos

das ciências naturais. Pelo contrário, os conceitos típico-ideais são antes

conceitos limites, desenvolvidos no plano da razão, que permitem esclarecer o

conteúdo empírico de alguns elementos da realidade:

Tem, antes, o significado de um conceito limite puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos importantes, e com o qual esta é comprada. Tais conceitos são configurações nas quais construímos relações, por meio da utilização da categoria de possibilidade objetiva, que a nossa imaginação, formada e orientada segundo a realidade, julga adequadas.255

Com vistas ao exposto é possível compreender que a criação dos

conceitos típico-ideais proposta por Max Weber parte de uma premissa 251 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 139. 252 A expressão “conceitos genéticos” é utilizada pelo próprio autor (WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 140). 253 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 141. 254 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 139. 255 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 140.

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filosófica racionalista, e tem por finalidade estabelecer uma metodologia

racional para produção do conhecimento científico no âmbito das ciências

sociais, uma vez que o modelo das ciências naturais lhe é incompatível.

Todavia, a incorporação de conceitos típico-ideais à ciência jurídica

nos parece possível, mas desde que incluída em uma metodologia estruturada

sobre parâmetros filosóficos racionalistas. Referida inclusão seria bem aceita

especialmente quando a teoria em questão buscasse conceituar termos como

soberania, cidadania, dignidade humana e pluralismo político (artigo 1°, incisos

I, II, III e V da Constituição da República). Por outro lado, categorias como

princípios e regras não são compatíveis com a gênese dos conceitos típico-

ideais, pois não possuem um substrato empírico de referencia, bem como não

permitem conhecer o conteúdo empírico da realidade.

Não obstante a incompatibilidade do conceito de tipo ideal de Max

Weber com o enquadramento jurídico dos princípios e das regras, durante a

exposição de sua teoria, Marcelo Neves se propõe a conceber os tipos-ideais

de uma forma um pouco diferente da proposta weberiana, isto é, para ele o tipo

ideal é a estrutura de conhecimento típica das ciências sociais, a qual permite

ordenar seletivamente a realidade-ambiente. Se de um lado Max Weber se vale

dos tipos ideais como estruturas racionais aptas à produção do conhecimento,

de outro Marcelo Neves os concebe como estruturas voltadas para a

organização de um modelo racional de apreensão do conhecimento. Desta

forma, enquanto para o primeiro o tipo ideal permite encontrar o significado de

determinado objeto cultural, para o segundo o tipo ideal permite organizar o

sistema de produção do conhecimento que irá analisar aquele objeto cultural.

Daí porque este último afirma que no âmbito normativo os tipos ideais não se

prestam a orientar expectativas cognitivas.256

O problema é que, do ponto de vista da estruturação científica do

direito positivo sob a lógica de um sistema normativo – o que é admitido pelo

autor –, os tipos-ideais seriam aplicáveis a conceitos como unidade, coerência,

256 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 103.

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poder constituinte, eficácia, nulidade, norma jurídica etc. Contudo, as espécies

em que são decompostas cada categoria científica são meras classificações, e

não outras categorias autônomas (tipos ideais) nem subcategorias (subtipos

ideais). Tanto é assim que dentro da categoria científica (tipo ideal) nulidade é

possível encontrar diversas classificações, tais como nulidade absoluta e

relativa, inconstitucionalidade formal e material; na categoria científica (tipo

ideal) eficácia, as classificações de absoluta, plena, contida e limitada; na

categoria científica (tipo ideal) poder constituinte, as classificações histórico e

revolucionário.257

O mesmo ocorre no que toca ao tipo ideal norma jurídica. Isto

porque, conforme vimos, o conceito de norma jurídica pode receber a

classificação regra, princípio, postulado ou híbrido, e pode até mesmo não ser

decomposto em nenhuma classificação. Afinal, as classificações têm como

intuito facilitar o trabalho do cientista e/ou do técnico através da diferenciação

dos elementos integrantes de uma mesma categoria. Elas podem ser de vários

tipos, desde que mantenham coerência com as premissas metodológicas

adotadas. Portanto, as classificações, quando metodologicamente coerentes,

podem ser mais úteis, menos úteis ou inúteis, mas não certas ou erradas.

Em face disso é possível concluir que, mesmo dentro do conceito de

tipo ideal proposto pelo autor, princípios, regras e híbridos são simplesmente

classificações atribuídas à norma jurídica, esta sim, um tipo ideal. Como tais,

elas podem receber outra nomenclatura e assumir outra estruturação. Nestes

termos, a categoria científica (tipo ideal) norma jurídica pode ser encarada

como um imperativo-autorizante,258 sendo que, por sua vez, pode vir a ser

decomposta de acordo com os elementos por ela apresentados. Assim sendo,

257 Entendemos que o chamado poder constituinte derivado, por não possuir a mesma natureza, não deve ser considerado como uma classificação da categoria científica poder constituinte. Ademais, cremos também que o poder constituinte enquanto no plano científico do direito pode ser caracterizado como tipo ideal nos moldes propostos por Marcelo Neves, enquanto estruturação do poder jurídico. Contudo, sua análise no plano da ciência política deve ser feita sob a forma de tipo ideal proposta por Max Weber, pois aqui se buscará seu conteúdo, na medida em que este é analisado puramente como manifestação de um poder, sendo inútil, pois, a utilização do conceito de tipo ideal proposto por Marcelo Neves. 258 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 387.

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não nos parece ser útil uma classificação que não particularize os elementos

de uma categoria científica, mas que, pelo contrário, os confunda, como ocorre

na classificação das espécies de norma jurídica como princípios, regras e

híbridos.

Ademais, no que toca à aplicabilidade do conceito de tipo ideal

proposto por Marcelo Neves como estrutura cognitiva de organização das

ciências sociais, a análise do tipo ideal poder constituinte é bastante

elucidativa. Isto porque, no âmbito da ciência jurídica, este tipo ideal é

analisado sob o enfoque da estruturação do poder jurídico e, portanto,

estabiliza expectativas normativas. Todavia, no âmbito das ciências sociais, o

tipo ideal poder constituinte almeja orientar a expectativa cognitiva do cientista,

de forma a encontrar o conteúdo daquela determinada manifestação de poder

a partir da realidade. Ao contrário do que ocorre no âmbito do direito, não há

organização do sistema científico das ciências sociais a partir deste tipo ideal.

Isto posto, o conceito de tipo ideal proposto pelo autor se encontra limitado à

ciência do direito, enquanto ciência normativa, não sendo aplicável às ciências

sociais como um todo. Para estas últimas é mais indicado o conceito de tipo

ideal proposto por Max Weber.

Diante dessas observações, não nos parece justificável a utilização

da classificação das normas jurídicas como princípios, regras e híbridos, tendo

em vista a confusão trazida por ela, já que ao invés de auxiliar o cientista e/ou

o técnico do direito, os confunde ainda mais.

Por fim, quando o autor atribui à proporcionalidade o status de

norma jurídica da espécie híbrido, ele analisa seus três subitens. Após sua

análise afirma que a adequação e a necessidade seriam regras, haja vista que

se enquadram na classificação atribuída a esta espécie tanto estruturalmente

quanto funcionalmente.259 De outro lado, a proporcionalidade em sentido estrito

seria um híbrido, uma vez que estruturalmente teria a forma de uma regra, mas

259 NEVES, Marcelo. Entre hydra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 110.

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que funcionalmente operaria como um princípio.260 Contudo, tendo em vista a

clareza com que o autor classifica tanto a adequação quanto a necessidade

como regras, não nos parece científico que, ao final, lhes seja atribuído o status

de híbridos porque consideradas “dentro do pacote”, assim como o mesmo não

seria admissível com a proporcionalidade em sentido estrito, isto é, atribuir-lhe

o status de regra quando em conjunto com as demais.

Segundo nos parece, restariam duas opções: ou a proporcionalidade

por si mesma é deixada de lado, considerando-se isoladamente cada um dos

critérios que determinam as análises da adequação, da necessidade e da

proporcionalidade em sentido estrito como normas jurídicas; ou então se

reconhece que a proporcionalidade, enquanto estruturada sobre estes três

critérios, não é uma norma jurídica, assim como também não são os seus três

subitens. Tendo em vista que o critério de classificação utilizado carece de

utilidade ficamos com a segunda opção.

Mas a segunda opção é a única viável também por outro motivo.

Para que sejam considerados isoladamente como normas jurídicas, tanto a

proporcionalidade quanto os seus três subitens carecem de uma fonte do

direito que lhes atribua este status. Do contrário, a proporcionalidade,

juntamente como seus três subitens, nasce como enunciado científico e, como

tal, não ingressa no plano do direito positivo.

Vale ressaltar, assim, que o instituto do reentry, segundo o qual “o

que é condição de possibilidade da ordem passa a ser norma da própria

ordem”,261 e que foi proposto pelo autor como solução para a inclusão da

proporcionalidade e de seus subitens no direito positivo, não pode ser

concebido como uma operação natural do sistema que ocorre no plano

puramente lógico. Isto porque o reentry na verdade nada mais é do que a

inclusão no direito positivo de determinado enunciado científico por intermédio

de uma determinada fonte do direito, o qual, para que se opere, precisa 260 NEVES, Marcelo. Entre hydra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 111. 261 NEVES, Marcelo. Entre hydra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 110,

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satisfazer os requisitos da fonte do direito correspondente. Afinal, do contrário,

todo e qualquer enunciado científico seria automaticamente incluído no plano

do direito positivo através do reentry, ainda que oriundos de teorias científicas

metodologicamente incompatíveis, 262 o que, por sua vez, inviabilizaria a

atuação do cientista e/ou do técnico do direito dentro dos parâmetros de

coerência exigidos pela teoria sistêmica. Diante disto não é possível conceber

a proporcionalidade nem seus subitens como normas jurídicas.

3.4. A técnica da proporcionalidade

Conforme tivemos a oportunidade de verificar nos itens anteriores

deste mesmo capítulo 3, a proporcionalidade não deve ser enquadrada como

norma jurídica, não importando o tipo de classificação adotada. Como veremos

a seguir, isto se deve ao fato de que, de acordo com os parâmetros da ciência

jurídica, a proporcionalidade possui a natureza de uma técnica.

É justamente por esse motivo que os autores previamente citados

tiveram tanta dificuldade de atribuir-lhe metodologicamente status normativo.

Afinal, como ressaltamos oportunamente, é possível que uma técnica venha a

ser normatizada, mas isto não ocorre no plano da estruturação metodológica,

mas sim através dos parâmetros estabelecidos pela metodologia depois de

estruturada, isto é, por meio de uma das fontes do direito.

3.4.1. A proporcionalidade como técnica de aplicação do direito

No item 2.4 do capítulo 2 tivemos a oportunidade de analisar quatro

metodologias distintas utilizadas de forma coerente na estruturação científica

do objeto direito positivo.

Na análise da obra de Hans Kelsen verificamos que o autor concebe

sua teoria sobre o estudo da norma jurídica sob uma ótica eminentemente

262 Veja-se, por exemplo, que o positivismo jurídico de Hans Kelsen é incompatível com o tridimensionalismo de Miguel Reale, assim como a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy é incompatível com a teoria estruturante do direito de Friedrich Müller.

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formal, buscando evitar qualquer espécie de contaminação de ordem volitiva ou

valorativa – daí porque o atributo de pureza de sua teoria. Partindo desta

premissa o autor analisa as normas jurídicas tanto sob a perspectiva do

conjunto formado por aquelas que vigoram em um determinado ordenamento

(teoria estática), quanto com vistas ao processo de produção e aplicação do

direito (teoria dinâmica).263

Note-se que o autor afasta da atividade do cientista, a interpretação

do direito, na medida em que esta não fica adstrita ao juízo puro e simples de

validade ou invalidade da norma jurídica, mas deve considerar também os seus

aspectos materiais. Por este motivo ele relega a interpretação à política

jurídica, silenciando, contudo, sobre o seu caráter técnico.264

Já quando analisamos a teoria de Tércio Sampaio Ferraz Jr.

pudemos constatar que este autor atribui à ciência do direito dois planos de

atuação, quais sejam o da zetética e o da dogmática. No primeiro a análise

recai sobre as repercussões sociais decorrentes da aplicação das normas do

direito positivo (função especulativa), enquanto no segundo se busca

sistematizar o direito positivo, estruturando-o de forma metodologicamente

coerente, a fim de oferecer ao técnico do direito os instrumentos necessários

para a aplicação das normas jurídicas (função diretiva).265

A dogmática, por sua vez, possui três modelos de decisão, isto é, o

analítico, o hermenêutico e o empírico. O primeiro encara a decidibilidade como

uma relação hipotética entre conflito e decisão. O segundo vê a decidibilidade

sob a ótica do seu sentido, analisando a relação entre a hipótese de conflito e a

hipótese de decisão. O terceiro vislumbra a decidibilidade dentro do prisma da

busca das condições de uma decisão hipotética para um conflito hipotético.

Para o autor os três aspectos estão inter-relacionados.266

263 KELSEN. Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 70-80. 264 KELSEN. Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 393. 265 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 41. 266 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 93.

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Como se vê os modelos de decisão da dogmática operam com

premissas hipotéticas, pois não almejam apresentar uma decisão concreta a

um conflito real – se o fizessem não se trataria atividade científica, mas sim de

técnica. Pelo contrário, por atuarem numa perspectiva abstrata buscam

estabelecer instrumentos (técnicas) que serão oferecidos ao aplicador do

direito para sua utilização quando diante de conflitos reais que exijam uma

decisão concreta.

De outro lado, verificamos que Eros Roberto Grau, remontando aos

conceitos gregos clássicos de ciência (epistéme) e saber prático (phrónesis),

afirma que a distinção entre a ciência do direito e o seu objeto, isto é, o direito

positivo, leva a conclusão de que não há apenas uma ciência do direito, mas

sim um conjunto de ciências do direito – tais como filosofia do direito, história

do direito, dogmática jurídica.267

No entanto o autor faz questão de ressaltar a diferença existente

entre a dogmática jurídica – também chamada de jurisprudência teórica – e a

jurisprudência prática, sendo que esta última se confunde com o próprio direito.

Para ele a jurisprudência teórica (dogmática) tem por objeto o estudo dos

problemas jurídicos que serão solucionados pela aplicação das normas deste

direito e, portanto, está voltada para a indicação de critérios para a solução de

litígios, sendo, por esta razão, uma ciência (epistéme).268 Já a jurisprudência

prática opera no momento de interpretação/aplicação da norma jurídica,

escolhendo dentre as possibilidades de decisão, aquela que melhor resolve o

conflito instaurado e, desta forma, é considerada uma prudência (phrónesis).269

Diante disso percebe-se que a dogmática jurídica (epistéme)

estabelece e oferece à jurisprudência prática (phrónesis) critérios concebidos

em abstrato visando viabilizar a solução dos casos concretos. Este instrumental

267 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 37. 268 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 38. 269 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 39.

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oferecido pela dogmática jurídica à jurisprudência prática, por sua vez, possui

natureza técnica (téchne).

O último autor apresentado no item 2.4 do capítulo 2 foi Friedrich

Müller, cuja teoria estruturante do direito se pauta na análise estrutural da

norma jurídica, mas rompendo com a cisão tradicional entre dever ser e ser,

traz para o plano da norma jurídica o direito e a realidade.270

Para atingir essa finalidade o autor trabalha com a separação entre

texto normativo e norma jurídica. Segundo pontua, o texto normativo quando

interpretado não apresenta uma única possibilidade de resultado, mas

diversas, e a cada uma delas é chamada de ideia normativa. O conjunto de

idéias normativas recebe o nome de programa normativo.271 De outro lado o

autor concebe também o âmbito normativo, que é o conjunto de aspectos

materiais inerentes ao caso concreto.272 Por seu turno, a norma jurídica será o

produto da interpretação do programa normativo juntamente com o âmbito

normativo. Todo este processo de interpretação, também chamado de círculo

hermenêutico, 273 pressupõe a pré-compreensão do interprete, 274 isto é, a

existência de um conjunto de atitudes, opiniões e valores próprios do sujeito

que irá realizar a interpretação.

Mesmo com sua estruturação metodológica voltada da norma para a

realidade e vice versa, o autor ainda agrega o método tópico à interpretação

operada pelo intérprete durante o círculo hermenêutico. Segundo afirma os

topoi servem de base ao espaço normativo, influenciando a interpretação tanto

do programa normativo como do âmbito normativo.275

270 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 207. 271 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 214. 272 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 249. 273 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 261-262. 274 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 267. 275 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 200.

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127

Não obstante o fato de termos apresentado até aqui quatro teorias

completamente diferentes umas das outras, é possível perceber que o ponto

comum em todas elas é que a dogmática jurídica tem como objeto o direito

positivo, e o analisa em abstrato com o intuído de sistematizá-lo de forma

coerente (ciência jurídica) e, consequentemente, de oferecer ao aplicador o

instrumental necessário para solução do caso concreto de forma ordenada

(tecnologia jurídica). A metodologia adotada para a sistematização do direito

positivo pode variar de um cientista para outro, mas em todos os casos a teoria

escolhida deve necessariamente primar pela coerência.

Disso decorre que o cientista sistematiza o objeto de estudo de uma

forma coerente e, com isto, apreende hipoteticamente os enunciados que serão

utilizados na aplicação ordenada e racional do mesmo. Já ao técnico de nada

importa a estruturação científica ou a metodologia adotada, pois lhe interessam

apenas os enunciados resultantes da análise científica, os quais serão por ele

concretamente utilizados.

O ponto central é que, se trouxermos essa conclusão para a análise

da proporcionalidade, enxergaremos facilmente porque é tão difícil atribuir-lhe,

metodologicamente, o status de norma jurídica.

Pois bem, aquele que adota uma teoria do direito que estabelece

que no plano do direito positivo as normas jurídicas se subdividem em regras e

princípios, além de estar sujeito ao conceito de regra e de princípio por ela

definido – e não outro, ainda que de teoria que se valha da mesma

classificação –, estará sujeito, também, à possibilidade de ocorrência de

colisão entre princípios. Nesta hipótese, para que possa solucionar a colisão,

deverá utilizar a técnica de solução oferecida por aquela teoria. É justamente

aqui que entra a proporcionalidade.

De acordo com a análise das obras dos autores apresentados no

capítulo 1, pudemos verificar que todos eles adotam teorias do direito que

concebem as normas jurídicas como regras e princípios. Por este motivo todos

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eles apresentam como critério para a solução da colisão entre princípios

justamente a proporcionalidade. Isto significa dizer que a técnica oferecida

pelas teorias daqueles autores – que neste ponto se aproximam –, para os

casos de colisão entre princípios é exatamente a proporcionalidade, conforme

estruturada analiticamente sobre três pilares: adequação, necessidade e

proporcionalidade em sentido estrito. A proporcionalidade é, pois, mais uma

técnica oferecida ao aplicador do direito que se utiliza de uma daquelas teorias

apresentadas.

Sobre o papel da técnica na atividade jurídica e o problema da

coerência metodológica assim se manifesta Tércio Sampaio Ferraz Jr.:

Sendo vista como uma atividade interpretativa-normativa, o jurista se obriga ao uso de variadas técnicas. Fala-se em interpretação gramatical, lógica, sistemática, teleológica, sociológica, histórico-evolutiva etc. A multiplicidade terminológica das diferentes técnicas provoca muitas dificuldades, mesmo porque os seus termos ora coincidem, ora se entrecruzam. Mesmo aqueles que procuram expor ordenadamente essas diferenças técnicas reconhecem a ausência entre elas, de uma relação hierarquicamente unitária. Mais grave que essa pluralidade das técnicas é, porém, o problema da unidade do método que ela implica. Uma ciência se vale de diferentes técnicas. Mas não são as técnicas que decidem sobre o caráter científico da investigação, e sim o método.276

É pelo motivo exposto por Tércio Sampaio Ferraz Jr. que fazemos

questão de ressaltar o papel da proporcionalidade enquanto técnica de

aplicação do direito nos casos de colisão de princípios, mas desde que no

âmbito das teorias que classificam as normas do direito positivo como regras e

princípios. Afinal, uma teoria que concebe princípios e normas jurídicas como

coisas distintas – conforme visto no item 3.1.2 –, não admite a possibilidade de

colisão de princípios no plano normativo e, portanto, prescinde da técnica da

proporcionalidade.

276 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 151.

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Em vista do exposto, não resta dúvida de que a proporcionalidade

possui a natureza de uma técnica de aplicação do direito direcionada aos

casos de colisão entre princípios, desde que no âmbito de uma teoria do direito

que classifique as normas jurídicas em regras e princípios. Desta forma, ela

não se situa no âmbito da ciência jurídica, mas da tecnologia jurídica.

3.4.2. A proporcionalidade como técnica de argumentação racional

Diante das conclusões apresentadas no item anterior cremos não

haver mais dúvida de que a proporcionalidade possui a natureza de uma

técnica de aplicação do direito. Isto porque a aplicação do direito se manifesta

no plano do discurso jurídico, como afirmam Marcelo Neves 277 e Tércio

Sampaio Ferraz Jr.278

Daí porque a necessidade do aparato tecnológico oferecido pela

ciência jurídica ao aplicador do direito, cujo intuito é permitir que seja proferida

uma decisão racional. Afinal, no momento da decidibilidade o aplicador não faz

ciência jurídica em abstrato, mas deve proferir uma decisão solucionando o

caso concreto, a qual deverá levar em consideração os valores envolvidos nas

normas aplicáveis bem como as circunstâncias de fato daquela relação jurídica

conflituosa. Neste sentido, pois, são as palavras de Tércio Sampaio Ferraz Jr.,

que pontua: “sob o ponto de vista do discurso, a positivação expressa, assim,

de um lado, o domínio dos valores e finalidades valorados ideologicamente,

onde se permite apenas a discussão técnico-instrumental”.279

A questão é que os diversos elementos considerados pelo aplicador

na hora de solucionar o caso concreto não devem ser aleatoriamente pinçados

e inseridos na decisão daquele conflito. Isto porque, ao contrário do que ocorre

na esfera científica do direito (dogmática jurídica), não será possível abstrair 277 NEVES, Marcelo. Entre hidra e hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 96. 278 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 57 ss. 279 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997. 159.

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metodologicamente um resultado específico puramente objetivo que

solucionará do caso concreto. Afinal, diversos elementos subjetivos estão

diretamente envolvidos na aplicação do direito. É justamente para solucionar

este impasse que o papel da técnica jurídica consiste no oferecimento de

critérios racionais de solução de conflito para o aplicador do direito, os quais

serão utilizados para que se possa proferir uma decisão socialmente aceitável

e inspirada pela justiça.

Nesses termos, podemos concluir que a racionalidade oferecida pela

técnica jurídica contrapõe-se a arbitrariedade, servindo como parâmetro de

segurança para as relações reguladas pelo direito. Sobre a relação entre a

racionalidade do direito e a arbitrariedade são pontuais as palavras de Eros

Roberto Grau:

O direito moderno, posto pelo Estado, é racional porque cada decisão jurídica é a aplicação de uma proposição abstrata munida de generalidade a uma situação de fato concreta, em coerência com determinadas regras legais. Eis o que define a racionalidade do direito: as decisões deixam de ser arbitrárias e aleatórias, tornam-se previsíveis.280

Note-se que a racionalidade enquanto imperativo de segurança

jurídica é admitida como parâmetro de aplicação dos princípios de justiça e da

busca do bem na teoria da justiça de John Rawls. Para tanto o autor adota o

conceito de racionalidade deliberativa, sendo concebida como o processo pelo

qual uma pessoa escolheria um determinado plano de ação, após uma

criteriosa ponderação, dentre todos aqueles compatíveis com os princípios de

justiça.281 O próprio autor assim resume a questão:

Em resumo, nosso bem é definido pelo plano de vida que adotaríamos com plena racionalidade deliberativa se o futuro fosse previsto com precisão e adequadamente percebido pela imaginação. As questões que acabamos de discutir estão ligadas a ser racional nesse sentido. Aqui vale salientar que um plano racional é aquele que seria escolhido se fossem satisfeitas certas condições. O critério do bem é hipotético de

280 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 288. 281 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 515.

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maneira semelhante ao critério de justiça Quando surge a questão de saber se fazer algo está de acordo com o nosso bem, a resposta depende de como isso se encaixa no projeto que seria escolhido com racionalidade deliberativa.282

A ideia de racionalidade tão fortemente arraigada como imperativo

de segurança jurídica, que impacta tanto teorias do direito quanto teorias da

justiça, encontra seu expoente na economia política e na filosofia das ciências

sociais de Max Weber. Segundo este autor o conhecimento interpretativo

somente é obtido através da interpretação racional, a qual é elaborada a partir

das categorias meio e fim. Disto resultaria a objetivação da ação humana

enquanto considerada nesta relação causal:

Em todos os casos em que ‘compreendemos’ uma ação humana sendo condicionada por ‘fins’ que foram conscientemente objetivados, concomitantemente a um conhecimento claro dos ‘meios’, a ‘compreensão’ atinge um grau especificamente elevado de ‘evidência’. Indagado acerca das razões deste fato, percebemos que estas consistem na circunstância que a relação entre ‘meios’ e ‘fim’ é acessível a uma evidência racional bem semelhante a uma relação causal, que inclui a generalização e as ‘leis’. Não há ação racional sem uma racionalização causal daquela parte da realidade que foi considerada como objeto e meio de influência. Isto quer dizer que esta parte da realidade deve ser enquadrada num sistema de regras empíricas, que nos indicam que grau de êxito se pode esperar em decorrência do nosso comportamento.283

De acordo com o autor essa relação causal entre meio e fim confere

racionalidade e objetividade ao conhecimento obtido através da interpretação.

Isto porque permite que condutas humanas realizadas em pleno exercício do

livre arbítrio, assim como valores socialmente experimentados, sejam objeto de

ponderação racional, possibilitando a obtenção de um conhecimento

cientificamente estruturado, convertendo-se, pois, em ação teleológica

racional.284

282 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 521. 283 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 94. 284 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 96.

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Há que se ressaltar que Jürgen Habermas critica a proposta de Max

Weber, pois o primeiro afirma que na construção weberiana “as hipóteses

fundamentais ligam-se a um agir idealizado sob máximas puras; não se pode

derivar delas nenhuma hipótese legal empiricamente dotada de conteúdo”.285

Ou seja, por possuir a pretensão de ser um conhecimento empírico-analítico

esta teoria acaba confundindo os pressupostos lógicos e as condições

empíricas, uma vez que a premissa racionalista fundada em máximas puras da

qual parte é incompatível com a derivação de hipóteses empiricamente dotadas

de conteúdo.

Entretanto, a leitura da obra de Max Weber nos faz perceber o

quanto a concepção de proporcionalidade de Robert Alexy foi por ele

fortemente influenciada. Afinal, este último concebe a proporcionalidade como

uma norma jurídica que busca através da ponderação racional encontrar a

solução da colisão de princípios, tomando como premissa a relação existente

entre o meio empregado e o fim perseguido. Ele acredita, assim, realizar uma

analise cientifica dos elementos subjetivos envolvidos, mas com resultados

objetivos.286

O problema é que, conforme anteriormente demonstrado, a

proporcionalidade não pode ser metodologicamente estruturada como norma

jurídica sem o auxílio das fontes do direito. Além do que sua atuação não

produz conhecimento jurídico, mas sim pacificação social através do auxilio na

criação de uma norma jurídica de decisão, pois atua no plano técnico da

argumentação, buscando estruturar a decidibilidade do caso concreto, e não no

plano científico. 285 HABERMAS, Jürgen. A lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 79. 286 Nesse sentido vide as palavras de Robert Alexy: “Princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, exigência de sopesamento, decorre da relativização em face das possibilidades jurídicas. (...) Isso significa, por sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é deduzível do caráter principiológico das normas de direitos fundamentais”. (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 117-118). E prossegue: “Já as máximas da necessidade e da adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 118). Note-se que o autor tenta atribuir racionalidade científica – isto é, obter a objetividade dos resultados através de fórmulas lógicas – à análise de elementos subjetivos, quais sejam, possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto.

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Sobre a pretensão de objetividade é preciso ressaltar que haverá

sempre a necessidade de interpretação e que, como aponta Friedrich Müller,

os elementos subjetivos inerentes ao próprio intérprete não podem ser

afastados deste processo (pré-compreensão).287 Neste sentido Virgílio Afonso

da Silva reconhece a existência de uma margem de liberdade ao interprete

quando se utiliza da proporcionalidade:

O que se pode exigir, portanto, de tentativas de elevação da racionalidade de um procedimento de interpretação e aplicação do direito, como o sopesamento, é a fixação de alguns parâmetros intersubjetivos, ou seja, de parâmetros que permitam algum controle da argumentação.288

Tanto é assim que, quando da aplicação da proporcionalidade ao

caso da ADI 855-2289 o autor chegou a um resultado diferente daquele atingido

pelo Supremo Tribunal Federal também com base na proporcionalidade. Para a

Corte a lei é inconstitucional, pois falhou no exame da necessidade. Já Virgílio

Afonso da Silva entende se tratar de lei constitucional, pois aprovada nas três

etapas da proporcionalidade.290

Todavia, é preciso ter em mente que as críticas realizadas ao

modelo concebido por Max Weber, bem como à tentativa de enquadramento da

proporcionalidade no âmbito puramente científico de Robert Alexy, não têm o

condão de afastar a racionalidade da atividade científica, muito menos do

âmbito da ciência do direito e/ou da técnica jurídica.291

287 MÚLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 267. 288 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 148. 289 No caso em apreço o Governo do Estado do Paraná criou a Lei Estadual n° 10.248/93, a qual determinava que os botijões de gás fossem pesados na frente do consumidor, afim de verificar se o valor cobrado era condizente com o peso do botijão vendido. Desta forma eventuais variações no peso do botijão acarretariam uma cobrança mais justa, podendo alterar o preço para mais ou para menos, de acordo com o peso constatado no botijão. 290 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50. pp. 37-41. 291 Nesse sentido Carlos Bernal Pulido defende a racionalidade da ponderação afirmando que racionalidade possui dois níveis, quais sejam, o teórico e o prático. O primeiro estabelece as condições que uma teoria ou um conceito deve cumprir para que seja considerado racional, enquanto o segundo determina as condições que um ato humano deve reunir para que seja considerado racional (PULIDO, Carlos Bernal. La racionalidad de la ponderacion. In.

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A questão central aqui é que, conforme pontua Amartya Sen, a

racionalidade não se limita a simples análise da adequação entre meio e fim,

na medida em que este tipo de análise pode levar a resultados utilitaristas e/ou

egoísticos. Pelo contrário, a escolha racional pressupõe uma análise muito

mais ampla e dialógica, como sugere o próprio autor:

O método da escolha racional, nessa visão, está fundamentalmente ligado a conformar nossas escolhas à investigação crítica das razões para fazê-las. As exigências essenciais da escolha racional referem-se a submetermos nossas escolhas – de ações, bem como de objetivos, valores e prioridades – à análise arrazoada.292

Isso posto, a análise da racionalidade é composta por muito mais

elementos do que a mera relação de causalidade entre meio e fim.293 Ela

contempla a investigação crítica de todos os fatores envolvidos naquela

escolha, assim como, consequentemente, a exposição criteriosa dos seus

motivos. Por conta disto o autor afirma que a escolha racional é ao mesmo

tempo exigente e permissiva. É exigente porque nenhuma fórmula simples é

automaticamente vista como racional, sem que antes seja submetida a uma

análise penetrante, que inclua tanto o exame dos objetivos almejados quanto

as restrições de comportamento que podemos ter razão para seguir. 294 É

permissiva, pois não descarta a possibilidade de que mais de uma opção possa

ser escolhida como razão de decisão, desde que sobreviva à análise crítica.

Diante disto o autor conclui o seguinte:

A possibilidade da pluralidade de razões suscetíveis não é apenas importante para fazer justiça à racionalidade; também distancia a idéia de escolha racional de seu papel putativo de simples instrumento de previsão da escolha real, como ela tem

CARBONEL, Miguel. El princípio de proporcionalidad en el Estado constitucional. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2007. pp. 59-60). Após estabelecer esta premissa o autor apresenta um modelo de ponderação estruturado sobre uma fórmula de peso, e ao final conclui que a ponderação é uma atividade racional (PULIDO, Carlos Bernal. La racionalidad de la ponderacion. In. CARBONEL, Miguel. El princípio de proporcionalidad en el Estado constitucional. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2007. pp. 80). 292 SEN, Amartya. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 213. 293 Note-se que não se nega a análise da adequação entre meio e fim como um dos elementos da análise racional. Apenas ressalta-se que a racionalidade não se resume a isto. 294 SEN, Amartya. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 214-215.

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sido amplamente utilizada na economia dominante. Mesmo que cada escolha real resulte ser sempre racional, no sentido de ser sustentável passando pela crítica, a pluralidade da escolha racional torna difícil obter uma previsão única da escolha real de uma pessoa a partir da idéia de racionalidade apenas.295

Com vistas ao exposto, podemos concluir que a argumentação

jurídica, enquanto destinada à decidibilidade, tem como requisito intrínseco a

racionalidade, a qual exige do aplicador uma análise crítica dialógica de todos

os fatores envolvidos na escolha, assim como, consequentemente, a exposição

criteriosa dos seus motivos. É por esta razão que se pode afirmar que a

racionalidade acarreta segurança e aceitação social à decisão, na medida em

que afasta a arbitrariedade.

Para facilitar a argumentação empregada na análise e motivação da

decisão do caso concreto, o aplicador encontra inúmeras técnicas disponíveis,

as quais decorrem da estruturação metodológica do direito positivo realizada

pela ciência do direito, e que o auxiliam a deduzir racionalmente uma solução

para o conflito jurídico através do oferecimento de parâmetros racionalizados296

para a estruturação da decisão297. Contudo, assim como a racionalidade não

apresenta um único resultado objetivo, também não existe uma única técnica

aplicável em detrimento das demais quando diante de determinada hipótese

concreta.

Diante disso, podemos abstrair duas conclusões: a primeira reside

no fato de que a racionalidade é uma condição estrutural da argumentação

jurídica; a segunda consiste na constatação de que toda a técnica de aplicação

do direito funciona também como instrumento de motivação de decisões e,

portanto, é simultaneamente técnica de argumentação racional.

Dessa forma, a proporcionalidade enquanto técnica de aplicação do

direito é também uma técnica de argumentação racional, pois atua também na 295 SEN, Amartya. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 216-217. 296 Parâmetros racionalizados porque decorrentes da atividade racional realizada pelo cientista do direito. Poderíamos normalmente utilizar a expressão racionais, pois eles de fato são, mas preferimos ressaltar o primeiro aspecto por entendermos ser neste momento mais pertinente. 297 Por estruturação da decisão entenda-se o enfrentamento do problema e a fundamentação da decisão racionalmente escolhida.

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motivação das decisões, através do oferecimento de parâmetros racionalizados

para a estruturação da decisão. No entanto, em que pese tenha sido concebida

especificamente para solucionar as hipóteses de colisão entre princípios no

caso concreto, por se tratar de uma técnica, a proporcionalidade não é dotada

de força cogente e, portanto, sua utilização pelo aplicador do direito não é

obrigatória.

3.4.3. O uso equivocado da proporcionalidade como topos

Em que pese o fato da natureza da proporcionalidade ser de técnica

de aplicação e argumentação racional do direito, é preciso ter cuidado para não

se cair no erro de confundi-la com outra técnica, qual seja, a tópica, ou de

incluí-la como um dos topos do catálogo tópico.

Essa ressalva foi feita por Virgílio Afonso da Silva, que após analisar

a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal constatou o que segue:

O recurso à regra da proporcionalidade na jurisprudência do STF pouco ou nada acrescenta à discussão e apenas solidifica a idéia de que o chamado princípio da razoabilidade e a regra da proporcionalidade seriam sinônimos. A invocação da proporcionalidade é, não raramente, um mero recurso a um topos, com caráter meramente retórico, e não sistemático. Em inúmeras decisões, sempre que se queira afastar alguma conduta considerada abusiva, recorre-se à formula ‘à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, o ato deve ser considerado inconstitucional’.298

Realmente assiste razão à crítica do autor. A prática do Supremo

Tribunal Federal em inúmeros casos é utilizar a proporcionalidade como um

topos igualmente aceito pelos interlocutores e destinatários da decisão, a partir

do qual se fundamenta uma determinada opção decisória.

É isto que se vê no HC 76060, aonde a corte, analisando a

inconstitucionalidade da coercibilidade da realização de exame de DNA por

pretenso pai que se nega a fazê-lo, vislumbrou a existência de colisão entre de 298 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50. p. 31.

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direitos fundamentais, o que culminou na aplicação do princípio da

proporcionalidade da seguinte forma:

O que, entretanto, não parece resistir, que não seja, ao confronto do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade – de fundamental importância para o deslinde constitucional da colisão de direitos fundamentais – é que se pretenda constranger fisicamente o pai presumido ao fornecimento de uma prova de reforço contra uma presunção de que é titular.299

Situação semelhante ocorreu no RE 414.426, quando julgando a

inconstitucionalidade da exigência de inscrição dos músicos em órgão de

classe, bem como da regulação estatal desta atividade, o tribunal mencionou

expressamente que casos como este devem ser solucionados à luz da

proporcionalidade sem, contudo, aplicar a técnica na forma em que foi

medologicamente concebida:

Este expediente se impõe em qualquer Estado de Direito Democrático, servindo a razoabilidade e a proporcionalidade como critérios para a análise da viabilidade de eventuais restrições aos direitos fundamentais.300

Não obstante o uso tópico atribuído à proporcionalidade muitas

vezes pelo Supremo Tribunal Federal, esta não se confunde com a tópica nem

com nenhum dos seus topoi. Isto porque, a tópica, como salienta Theodor

Viehweg, é “uma técnica do pensamento que está orientada ao problema”301 e,

enquanto tal, parte de pontos comumente aceitos pelos interlocutores (topoi)

para construir uma argumentação que levará a solução do problema. Afinal, a

tópica tem caráter pré-lógico302, pois estabelece a premissa que será aceita

299 HC 76060, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 31/03/1998, DJ 15-05-1998 PP-00044 EMENT VOL-01910-01 PP-00130, p. 138. 300 RE 414426, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2011, DJe-194 DIVULG 07-10-2011 PUBLIC 10-10-2011 EMENT VOL-02604-01 PP-00076, p. 90. 301 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídicos-científicos. 5ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2008. p. 33. 302 Nesse sentido as palavras de Maria Helena Diniz: ”Sendo modalidade pré-logica, a tópica assinala como se buscam as premissas para atingir uma possível solução para a questão dúbia; a lógica as recebe e com elas trabalha adaptando-as ao pensamento conclusivo, considerado necessário” (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 498). A autora chega a esta conclusão escorada por Theodor Viehweg, que afirma: “Considerada deste modo, a tópica é uma meditação pré-lógica, já que concebida como tarefa, a inventio tem caráter

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pelo aplicador e que, uma vez aceita, será utilizada pela lógica na construção

da argumentação e elaboração da decisão.

A proporcionalidade, por outro lado, não se apresenta como uma

premissa comumente aceita pelos interlocutores e destinatários da decisão,

mas sim como uma estrutura analítica, metodologicamente concebida, que

busca oferecer uma solução racional ao aplicador do direito, que parte da

premissa de que existe uma colisão entre princípios – enquanto considerados

normas jurídicas. Portanto, é o conteúdo jurídico dos princípios em colisão que

funcionará no plano pré-lógico, como premissa para a construção da

argumentação, e não a proporcionalidade.

Dessa forma, a técnica da proporcionalidade não de confunde com a

técnica tópica porque ambas possuem modi operandi essencialmente distintos.

Do mesmo modo a proporcionalidade não é um topos, pois não serve como

ponto de partida comumente aceito pelos interlocutores sobre o qual será

construída a argumentação. Isto não quer dizer, contudo, que a tópica é

inaplicável ao direito. Significa, apenas, que se trata de técnicas distintas, cujas

especificidades e os momentos de utilização devem ser respeitados.303

3.4.4. O problema da proporcionalidade como fundamento da inconstitucionalidade

Não obstante a proporcionalidade ser uma técnica de aplicação do

direito, e simultaneamente uma técnica de argumentação racional, há que se

ressaltar o fato de que em diversos julgados do Supremo Tribunal Federal

primário; a conclusio, ao invés, tem caráter secundário. A lógica deve indicar, propriamente, de que modo se encontra a premissa. A lógica aceita a premissa mesma e, elabora-a” (VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídicos-científicos. 5ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2008. p. 41). 303 Sobre as diferentes formas de aplicação da tópica ao direito: DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. pp. 493-498; MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A tópica e o supremo tribunal federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. pp. 243-271; FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. pp. 326-330.

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encontramos a proporcionalidade sendo utilizada como o fundamento da

declaração de inconstitucionalidade.

Nesse diapasão, analisando o HC 104410 é possível encontrar na

ementa a seguinte afirmação: "Apenas a atividade legislativa que, nessa

hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada

de inconstitucional".304 Como se pode abstrair do trecho citado, no caso em

comento o fundamento invocado para fundamentar a constitucionalidade da lei,

foi a não ocorrência de afronta à proporcionalidade.

Situação semelhante se encontra no RE 511961, da onde se pode

verificar a proporcionalidade sendo utilizada da seguinte maneira:

A Constituição de 1988, ao assegurar a liberdade profissional (art. 5º, XIII), segue um modelo de reserva legal qualificada presente nas Constituições anteriores, as quais prescreviam à lei a definição das "condições de capacidade" como condicionantes para o exercício profissional. No âmbito do modelo de reserva legal qualificada presente na formulação do art. 5º, XIII, da Constituição de 1988, paira uma imanente questão constitucional quanto à razoabilidade e proporcionalidade das leis restritivas, especificamente, das leis que disciplinam as qualificações profissionais como condicionantes do livre exercício das profissões. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.305

O que se vê aqui, à semelhança do exemplo anterior, é a discussão

a respeito da proporcionalidade da restrição legal como fundamento da

inconstitucionalidade.

Assim como os dois casos aqui apresentados, existem outros em

que o fundamento da inconstitucionalidade repousa na proporcionalidade.306

Em outras palavras, a desproporcionalidade é utilizada como sendo o porquê

da inconstitucionalidade.

304 HC 104410, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012, p. 03. 305 RE 511961, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2009, DJe-213 DIVULG 12-11-2009 PUBLIC 13-11-2009 EMENT VOL-02382-04 PP-00692 RTJ VOL-00213- PP-00605, p. 693. 306 Nesse sentido vide RE 414426 e HC 76060.

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No entanto, uma vez que a proporcionalidade é uma técnica de

aplicação do direito e de argumentação racional, não pode ela própria servir

como fundamento da decisão de inconstitucionalidade. Primeiramente porque

este não é o papel que lhe foi metodologicamente atribuído. Em segundo lugar,

porque o vício de inconstitucionalidade decorre diretamente da violação de uma

norma jurídica constitucional e, como demonstrado, a proporcionalidade não

possui a natureza de norma jurídica. Portanto, utilizá-la como fundamento da

inconstitucionalidade é um subterfúgio meramente retórico, o qual esvazia o

caráter científico da metodologia jurídica.

Nesse sentido vale ilustrar o debate instaurado entre os Ministros

Gilmar Ferreira Mendes e Eros Roberto Grau durante o julgamento da ADI 855-

2. Neste julgamento o primeiro afirmou o seguinte:

(...) não há cogitar de reserva legal, senão de reserva legal proporcional. Temos, sim, de verificar se a lei não esvazia o conteúdo dos direitos fundamentais, e, nesse sentido, temos de examinar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.307

Em seguida contestou o segundo:

Nós não estamos julgando segundo a proporcionalidade, mas eventualmente dizendo que, por não ser proporcional em relação a liberdade, à afirmação da igualdade, por exemplo, julgamos inconstitucional. Mas a inconstitucionalidade está referida não à proporcionalidade ou a razoabilidade, porém a direito fundamental que tenha sido violado pelo texto.308

Isso posto, cremos ser acertada a ressalva feita pelo Ministro Eros

Roberto Grau no julgamento em comento, na medida em que a

proporcionalidade possui natureza de tecnologia jurídica, não sendo possível,

pois, fundamentar o vício de inconstitucionalidade na técnica utilizada para

solucionar a colisão de princípios diante do caso concreto. Ou determinada

307 ADI 855, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2008, DJe-059 DIVULG 26-03-2009 PUBLIC 27-03-2009 EMENT VOL-02354-01 PP-00108, p. 151. 308 ADI 855, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2008, DJe-059 DIVULG 26-03-2009 PUBLIC 27-03-2009 EMENT VOL-02354-01 PP-00108, 152.

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medida é inconstitucional por violação do princípio x, ou é constitucional com

base no princípio y, mas nunca com fundamento na técnica utilizada para

solucionar a colisão.

3.5. Adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito

Depois de demonstrarmos que a proporcionalidade é uma técnica de

solução de colisão entre princípios, a qual é utilizada pelas teorias do direito

que atribuem aos princípios o status de norma jurídica, analisaremos

brevemente as três etapas que compõe a técnica da proporcionalidade.

A primeira etapa da técnica da proporcionalidade é a adequação,

que segundo Robert Alexy consiste em analisar se a medida adotada (M1) com

base num determinado princípio (P1) é adequada para atingir o seu objetivo

(Z). Em que pese as possíveis divergências, isto nada mais é do que a

operação mais elementar da aplicação do direito, qual seja, a subsunção.

Através dela se verifica se o fato – no caso a medida adotada (M1) – se adapta

à norma – ao princípio no qual a medida se baseou (P1) e, consequentemente,

ao objetivo por ele traçado (Z). Ora, se para aqueles que se utilizam da técnica

da proporcionalidade o princípio é uma norma jurídica, então, enquanto norma,

ele se submete a esta operação. Trata-se, portanto, de subsunção, mas

realizada de uma forma que respeita as particularidades dos princípios

enquanto normas jurídicas.309

Já a segunda etapa da técnica da proporcionalidade é a

necessidade. Ainda de acordo com Robert Alexy, nela se verifica, dentre as

medidas adequadas (M1 e M2), qual delas afeta menos o outro princípio (P2)

que está em colisão com o princípio (P1), que fundamenta as medidas

necessárias (M1 e M2). Como se percebe, o que se faz aqui é a racionalização

309 Conforme frisamos no item 3.4.1, não há que se falar em técnica da proporcionalidade em se tratando de teoria do direito que não enquadre os princípios na categoria de norma jurídica. Até porque, no âmbito destas não teria como se operar a análise da adequação, que não passa de subsunção do fato a norma. Afinal, para aqueles que utilizam a técnica da proporcionalidade os princípios são normas jurídicas e, portanto, estão sujeitos a esta operação.

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das possibilidades existentes (M1, M2, M3, M’) com vistas tanto aos objetivos

do princípio que embasa a medida (P1) quanto à menor restrição do princípio

em colisão (P2). Trata-se, pois, da verificação das possibilidades racionalmente

viáveis, as quais irão servir de base para a escolha final do interprete e/ou do

aplicador do direito.310

Finalmente, a terceira etapa da técnica da proporcionalidade é a

proporcionalidade em sentido estrito, que de acordo com Robert Alexy consiste

no mandato de sopesamento propriamente dito, isto é, na análise da

possibilidade jurídica para a realização do princípio colidente (P1) com o

princípio antagônico (P2). Ou seja, aqui ocorre a escolha pelo aplicador do

direito de uma das opções racionais oferecidas pela análise realizada na etapa

anterior. Trata-se, assim, da aplicação do princípio da razoabilidade, que

permitirá ao aplicador do direito escolher dentre as hipóteses racionais, uma

que seja socialmente aceita e que preencha o sentimento de justiça.

Como visto, as etapas da técnica da proporcionalidade não

apresentam nada diferente daquilo que verificamos no item 3.4.2, e do que

veremos no capítulo 4, pois se trata de pontos pertinentes a toda aplicação do

direito. Isto posto, a técnica da proporcionalidade nada mais faz do que

operacionalizar sistematicamente a forma própria de aplicação do direito com

vistas à solução da colisão de princípios, visando propiciar uma linha de

argumentação racional, como meio de evitar arbitrariedades e escolhas

aleatórias – as quais muitas vezes ocorreram, e tiveram como desculpa o

caráter fluido dos princípios.

310 Vale lembrar que a racionalidade é inerente a toda atividade de aplicação do direito.

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4. O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

Depois de verificarmos todos os aspectos inerentes à técnica da

proporcionalidade, urge atentar ao fato de que, ao contrário do que defende

Luís Roberto Barroso, proporcionalidade e razoabilidade não são dois nomes

atribuídos à mesma coisa por culturas jurídicas distintas. 311 Também não

assiste razão a Willis Santiago Guerra Filho quando afirma que a razoabilidade

nada mais é do que uma importação equivocada do princípio de origem inglesa

da irrazoabilidade, o qual tem como escopo rejeitar os atos excepcionalmente

irrazoáveis.312 Os autores em questão se equivocam por dois motivos: em

primeiro lugar, porque realizam a análise comparativa entre proporcionalidade

e razoabiliadde no plano dos princípios, sendo que a primeira, como se viu, é

uma técnica; em segundo lugar, porque em suas comparações adotam um

conceito errôneo de razoabilidade, conforme demonstraremos nos subitens a

seguir.

4.1. A razoabilidade como imperativo de razão prática

Tivemos a oportunidade de verificar no item 2.4 que, segundo Eros

Roberto Grau, a atividade jurídica pode ser dividida em duas espécies: a

jusrisciência e a jurisprudência. A primeira é a dogmática jurídica, atividade

científica que tem por finalidade sistematizar e organizar o direito positivo

(epistéme). A segunda é a jurisprudência prática, atividade prudencial que tem

como intuito oferecer uma decisão socialmente aceitável para a solução de um

conflito concreto (phrónesis).

Como bem apontado pelo autor, a atividade científica do direito se

opera no âmbito da organização sistemática do direito positivo, adotando, para

tanto, uma determinada metodologia. Esta atuação segue o parâmetro lógico

de causa e conseqüência. Como resultado produz uma tecnologia que será

311 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 224. 312 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da proporcionalidade e teoria do direito. In. GRAU, Eros Roberto. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 283.

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utilizada pelo aplicador do direito. Todavia, o momento da decisão, da escolha

de uma determinada técnica e/ou de certa linha de argumentação, o aplicador

do direito atua no plano da prudência, pois leva em consideração diversos

fatores, das mais diversas ordens – fáticos, normativos, axiológicos, políticos

etc. –, buscando criar uma norma de decisão, agindo, pois, segundo uma

lógica de preferência. É o que decorre das suas palavras:

O interprete autêntico, ao produzir normas jurídicas, pratica júris prudentia e não júris scientia. O interprete autêntico, então, atua segundo a lógica da preferência, e não conforme a lógica da conseqüência (Comparato 1979/127): a lógica jurídica é a da escolha entre várias possibilidades corretas. Interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias interpretações possíveis, de modo que a escolha seja apresentada como adequada (Larenz 1983/86). A norma não é objeto de demonstração, mas de justificação.313

Isso se deve ao fato de que o direito, por sua natureza especifica,

não oferece uma estrutura lógica calcada sobre uma relação causal, composta

por um número limitado de variáveis, que lhe permita apresentar um único

resultado objetivo ao problema apresentado, ao contrário do que ocorre com as

ciências naturais, ao menos até o advento do novo paradigma científico. Desta

forma, a interpretação e a aplicação do direito pressupõem a existência de um

agente catalisador, que agrega às variáveis do problema, os seus próprios pré-

conceitos, os quais serão utilizados na interpretação destas variáveis, trazendo,

assim, uma inevitável carga de subjetividade à operação. Isto posto, assiste

razão a Eros Roberto Grau quando afirma que a lógica formal da ciência não

incide sobre a interpretação e a aplicação do direito. Neste ponto, ele segue a

mesma linha de Lourival Vilanova, que assim pontua:

Por isso, quando os juristas da escola dogmática da exegese pensavam que somente com a Lógica o juiz podia decidir os casos controvertidos da vida cotidiana, não precediam como Mr. Jourdan, que fazia prosa sem o saber: acreditavam fazer Lógica, mas faziam outra coisa sem o saber. Faziam interpretação e aplicação do Direito positivo, que se não

313 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. pp. 40-41.

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consomem no formal do silogismo, sem valorações e sem referências à realidade social subjacente.314

Por óbvio a atuação do aplicador não é atividade científica. Trata-se,

pois, de atividade técnico-prudencial. Afinal, se por um lado o aplicador tem a

liberdade de escolha, de outro esta escolha é limitada pelo arcabouço técnico

disponibilizado – o qual exige coerência na sua utilização –, assim como pela

racionalidade exigida no processo de interpretação e aplicação do direito.315

Contudo, somente o aparato técnico e a racionalidade não são suficientes para

se atingir a aceitabilidade social e para preencher o sentimento de justiça. É

justamente aí que entra a prudência, manifestada pela razoabilidade. Nesse

sentido Goffredo Telles Jr., quando trata da lógica do jurista, afirma o que

segue:

O que, sobre este assunto, devemos dizer é que o verdadeiro jurista, ao relacionar a lei ao caso concreto, é levado a conscienciosamente acrisolar a lógica do racional, aprimorando-a com a lógica do razoável.316

E prossegue mais a frente em sua obra:

A verdadeira compreensão das leis, a sábia interpretação delas, a sua aplicação prudente ao caso concreto, não depende de erudição apenas, mas da sabedoria, ‘not knowledg, but Wisdom’, daquela ‘sabedoria profunda e silenciosa’, de que falam os pensadores. Valendo-se da lógica do razoável, o juiz fará uma justiça que ‘excede a justiça dos escribas e dos fariseus’, a que se referiu Jesus, no Sermão da Montanha.317

Percebe-se, pois, que a lógica do razoável pertence à esfera da

phrónesis e, enquanto atividade prudencial, não se confunde com a

314 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005. pp. 299-300. 315 Ao contrário de Eros Roberto Grau, que entende que interpretação e aplicação ocorrem sempre simultaneamente, somos da opinião de que toda a aplicação pressupõe interpretação, mas a última pode ocorrer sem a primeira. 316 TELLES JR., Goffredo. Iniciação na ciência do direito. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 366. 317 TELLES JR., Goffredo. Iniciação na ciência do direito. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 367.

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racionalidade. Desta forma, assiste razão a John Rawls quando afirma que

racionalidade e razoabilidade são coisas distintas:

Ao longo deste trabalho farei uma distinção entre o razoável e o racional, como vou me referir a eles. Estas são as idéias básicas e complementares que entram na idéia fundamental da sociedade como um sistema justo de cooperação social. Quando aplicada ao caso mais simples, ou seja, pessoas envolvidas em cooperação e situadas como iguais em aspectos relevantes (ou simetricamente, para abreviar), pessoas razoáveis estão prontas para propor, ou reconhecer quando propostos por outras, os princípios necessários para especificar o que pode ser visto por todos como os termos justos de cooperação. Pessoas razoáveis também entendem que eles devem honrar esses princípios, mesmo à custa de seus próprios interesses, conforme as circunstâncias podem exigir, haja vista que os outros também deverão honrá-los.318

Reconhecemos que a diferenciação apontada pelo autor está

fundada sobre as premissas de sua própria teoria, na medida em que se refere

à aplicação dos dois princípios de justiça por ele propostos. Contudo, mesmo

fora da teoria do autor a diferença entre racionalidade e razoabilidade deve ser

reconhecida. Afinal, a conexão entre a racionalidade de determinada escolha e

a sustentabilidade de suas razões depende da justamente da razoabilidade. A

respeito da relação entre racionalidade e razoabilidade assim se manifesta

Amartya Sen:

A racionalidade é, de fato, uma disciplina bastante permissiva, que exige a prova do raciocínio, mas permite que o autoescrutínio arrazoado assuma formas bastante diferentes, sem necessariamente impor qualquer grande uniformidade de critérios. Se a racionalidade fosse uma igreja, seria uma igreja bastante ampla. De fato, as exigências da razoabilidade, assim como caracterizada por Rawls, tendem a ser mais rigorosas do que as exigências da mera racionalidade.319

Disso decorre que a racionalidade, conforme demonstrado no item

3.4.5, apresenta a exigência de que a argumentação jurídica seja estruturada

dentro dos parâmetros da razão. No entanto, em que pese o fato da

racionalidade agregar transparência e afastar arbitrariedade na fundamentação

318 RAWLS, John. Justice as fairness: a restatement. Massachusetts: Harvard Univerty Press, 2001. pp. 6-7 (tradução livre). 319 SEN, Amartya. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 229-230.

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das decisões, ela sozinha não garante a aceitabilidade social da escolha

racionalmente realizada pelo aplicador do direito. Isto porque, a aplicação do

direito se opera no âmbito da prudência e, desta forma, exige que a escolha do

aplicador seja aquela que melhor atenda aos anseios de justiça e pacificação

social. Daí porque o autor afirmar que “isto pode muito bem ser a moralidade

social, mas é em última análise uma moralidade social prudencial”.320 Nesse

ponto nos parecem apropriadas as palavras de Chaïm Perelman, que afirma:

Enquanto as noções de ‘razão’ e de ‘racionalidade’ se reportam a critérios bem conhecidos da tradição filosófica, tais como as idéias de verdade, de coerência e de eficácia, o razoável e o desarrazoado são ligados a uma margem de apreciação admissível e ao que, indo além dos limites permitidos, parece socialmente aceitável.321

Como se percebe, existe uma relação bastante íntima entre

prudência e razoabilidade. Afinal, se a aplicação do direito é uma atividade

técnico-prudencial que exige a racionalidade como forma de transparência para

afastar a arbitrariedade, e sabendo que a racionalidade sozinha não atende

aos anseios de justiça e aceitabilidade social, torna-se necessário o recurso à

razoabilidade. Esta necessidade decorre do caráter eminentemente prático da

aplicação do direito enquanto atividade técnico-prudencial de caráter racional.

Portanto, é possível concluir que a razoabilidade é um imperativo de razão

prática. Não é outra a conclusão apresentada por John Finnis, em sua releitura

da teoria do direito natural de Tomás de Aquino:

O discernimento, a inferência e a elaboração dos princípios morais é uma tarefa para a razoabilidade prática. Os julgamentos que alguém faz quando age assim, todos juntos, são chamados de sua consciência, num sentido anterior ao sentido em que a consciência é o julgamento que passa ou poderia passar nos seus próprios atos considerados retrospectivamente. Alguém, cuja consciência é sadia, tem no lugar os elementos básicos do julgamento correto e da razoabilidade prática, que é da virtude intelectual e moral que Tomás de Aquino chama de prudentia. A prudentia plena requer que alguém coloque seu julgamento adequado em ação em todos os sentidos, isto é, nos detalhes da escolha e da

320 SEN, Amartya. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 236. 321 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 436.

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ação em face das tentações alternativas irrazoáveis, mas talvez não ininteligíveis.322

Também Amartya Sen – fora da ótima do direito natural – reconhece

que a razoabilidade possui um papel fundamental no âmbito da razão prática.

Tanto é assim que o autor diz o que segue:

Como foi discutido no capítulo 5, a idéia de objetividade na razão prática e no comportamento pode ser sistematicamente vinculada às exigências de imparcialidade. Partindo disso, podemos assumir que o padrão relevante de objetividade dos princípios éticos está ligado a sua defensibilidade em uma estrutura aberta e livre de argumentação pública. As perspectivas e avaliações de outras pessoas, bem como seus interesses, teriam um papel aqui de forma que a racionalidade por si não necessita exigir.323

Como se abstrai do trecho citado, ao atribuir à razoabilidade o papel

de concretizadora da racionalidade no âmbito da prudência, o autor enxerga

que a aceitabilidade social da racionalidade só se opera no plano prático, pois

em tese qualquer argumento racional seria suficiente, mas na realidade a

aceitabilidade deve ser analisada com vistas ao resultado prático.

Isso posto, é fácil concluir que a razoabilidade é um imperativo de

razão prática, na medida em que sem ela faltará à racionalidade o parâmetro

concreto que acarreta a aceitabilidade social e o sentimento de justiça, os quais

só podem ser concebidos com vistas a determinado resultado prático.

4.2. A natureza principiológica da razoabilidade

Uma vez demonstrado que a racionalidade sem a razoabilidade não

alcança a aceitabilidade social e não acarreta o sentimento de justiça, e

sabendo que a ciência do direito tem por finalidade a ordenação sistematizada

do direito positivo com vistas à pacificação social, o que deve ser feito de forma

racional para atribuir transparência e evitar arbitrariedade, fica claro que a

322 FINNIS, John. Direito natural em Tomás de Aquino: sua reinserção no contexto do juspositivismo analítico. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2007. p. 41. 323 SEN, Amartya. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 230.

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razoabilidade está inserida implicitamente no ordenamento jurídico como

condição sine qua non para a aplicação eficaz do direito.

Dessa forma, pode-se concluir que se trata de um princípio jurídico

implícito, pois, como afirma Eros Roberto Grau, já se encontra integrado ao

sistema jurídico, e deve ser descoberto e revelado pelo interprete:

Os princípios explícitos, estes se manifestam de modo expresso. Os demais, implícitos, não são ‘positivados’, mas descobertos no interior do ordenamento; pois eles já eram, nele, princípios de direito positivo, embora latentes. EM outros termos: o interprete autêntico nada ‘positiva’. O princípio já estava positivado. Se não fosse assim, não poderia ser induzido.324

O ponto é que, conforme vimos no capítulo 1, inúmeros são os

conceitos de princípio jurídico encontrados na doutrina. Analisaremos, aqui, a

razoabilidade à luz dos três mais divergentes, quais sejam, Robert Alexy,

Humberto Ávila e Marcelo Neves.

No item 1.7 mostramos que Robert Alexy conceitua os princípios

jurídicos como mandamentos de otimização, os quais têm como características

poderem ser satisfeitos em graus variados, assim como o fato da medida para

sua satisfação não depender apenas das possibilidades fáticas, mas também

das jurídicas.325

Quando comparamos a razoabilidade com o referido conceito,

verificamos que ela se encaixa perfeitamente. Afinal, a razoabilidade se aplica

em graus diferentes, dependendo das circunstâncias envolvidas, as quais são

de ordem fática e também jurídica. Aliás, esta é justamente a sua essência.

Assim, dentro do conceito proposto por Robert Alexy a razoabilidade é um

princípio jurídico.

324 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 171. 325 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90.

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Por outro lado, vimos no item 1.9 que Humberto Ávila classifica os

princípios como normas jurídicas que estabelecem um fim a ser atingido

(finalísticas), propondo para tanto um objetivo determinado (propositivas), os

quais visam contribuir, ao lado de outras razões, para a tomada de decisão

(pretensão de complementariedade e parcialidade).326

A partir dos elementos supramencionados se percebe que a

razoabilidade estabelece como fim a criação de uma norma de decisão aceita

socialmente, cujo objetivo é a pacificação social, e o faz conjuntamente com

outras razões jurídicas e não jurídicas. Portanto, ela também se enquadra

dentro do conceito de princípio proposto por Humberto Ávila.327

Já Marcelo Neves defende no item 1.11 a ideia de que os princípios

são normas jurídicas que, do ponto de vista funcional-estrutural, serão

incorporadas no processo argumentativo, mas no plano reflexivo, na medida

em que possibilitam o balizamento e a construção ou reconstrução das

regras.328

Ao incluirmos a proporcionalidade nos parâmetros desse conceito,

verificamos que ela atua sim no plano reflexivo, uma vez que é incorporada no

processo argumentativo – e racional – como balizamento para a construção ou

reconstrução de uma regra de decisão socialmente aceitável e que atinja o

sentimento de justiça. Isto posto, a razoabilidade também se enquadra no

conceito de princípio da teoria de Marcelo Neves.

Não obstante a razoabilidade ser enquadrável nos conceitos de

princípio dos três autores citados há que se atentar ao fato de que todos eles

326 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. pp. 78-79. 327 Sabe-se que Humberto Ávila classifica a razoabilidade como postulado normativo aplicativo. Entretanto, nossa proposta, aqui, é verificar o enquadramento da proporcionalidade em diferentes conceitos de princípio. Isto sem falar no problema das fontes do direito das quais emanam os postulados hermenêuticos e aplicativos (normas de segundo grau) levantado por nós no item 3.3.1. 328 NEVES, Marcelo. Entre hydra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 103.

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atribuem status normativos aos princípios. Contudo, vimos no item 3.1.2 que

existem autores que não oferecem aos princípios o status de norma jurídica.

Dentre os autores que não atribuem status normativo aos princípios

destacamos a posição de Sérgio Sérvulo da Cunha. Segundo o autor os

princípios são opções valorativas implicadas como fundamento no enunciado

de normas jurídicas,329 os quais não descrevem suportes fáticos de incidência,

nem mesmo discriminam efeitos.330

Ao fazermos a comparação da razoabilidade com o conceito de

princípio do referido autor, constatamos que de fato a razoabilidade é uma

opção valorativa levada a cabo pelo aplicador do direito quando diante de

várias possibilidades racionais para a criação de norma jurídica. Além disto, a

razoabilidade não descreve um suporte fático de incidência, assim como não

discrimina os seus efeitos. Dessa forma, a razoabilidade também se enquadra

como princípio dentro daquelas teorias que não concebem os princípios como

normas jurídicas.

O que se pode constatar dessa análise é que, não obstante a

premissa teórico-científica adotada, a razoabilidade se enquadra como um

princípio jurídico. Isto é a demonstração mais clara de que realmente se trata

de um ente desta espécie. Afinal, como salientamos nos itens 3.1.1 e 3.1.2, um

princípio deve ser sempre um princípio, independentemente da metodologia

empregada, pois a ciência do direito não comporta a idéia da existência de

princípio de ocasião.

Diante disso podemos concluir com segurança que a razoabilidade é

realmente um princípio jurídico.

4.3. Razoabilidade não é sinônimo de equidade

329 CUNHA, Sérgio Sérvulo. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 54. 330 CUNHA, Sérgio Sérvulo. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 56.

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152

Uma vez esclarecido que a razoabilidade é um princípio, é preciso

retomar o ponto do item 1.10 no qual Eros Roberto Grau afirma que a

razoabilidade – e também a proporcionalidade – não passa de um mesmo

nome dado à equidade.331

Em que pese a afirmação proferida pelo autor, com vistas a tudo o

que foi exposto até aqui, não podemos concordar com suas conclusões.

Primeiramente, é preciso frisar que a proporcionalidade é uma

técnica metodologicamente estruturada para solucionar as colisões entre

princípios no âmbito daquelas teorias do direito que classificam os princípios

como normas jurídicas, enquanto a razoabilidade é um princípio jurídico,

independentemente da teoria adotada.

Em segundo lugar, tivemos a oportunidade de demonstrar que a

razoabilidade é um princípio que atua no âmbito da aplicação do direito e que,

enquanto imperativo de razão prática, busca escolher dentre as opções

racionais disponíveis uma que seja aceita socialmente e que preencha o

sentimento de justiça. Para atingir sua finalidade, o referido princípio se vale de

um instrumental de razões bastante amplo, que não se limita a questão da

adequação entre meio e fim, mas leva em consideração também os aspectos

social e individual da decisão, bem como as questões fáticas e jurídicas

envolvidas no caso em análise.

Talvez por isso Humberto Ávila tenha decomposto a tipologia da

equidade em três espécies: razoabilidade como equidade, razoabilidade como

congruência e razoabilidade como equivalência. Na primeira espécie ela exige

a harmonização da norma geral com o caso individual. Na segunda exige a

harmonização da norma com as condições externas de aplicação. Na terceira

exige uma relação de equivalência entre medida e critério. Já a análise da

331 Nesse sentido o autor assim se posiciona sobre a equidade: “E de modo tal que, em face da realidade, quando a sua concepção é retomada – e isso desejo sustentar – embora assumindo a mesma forma e conteúdo, ela toma outros nomes. Inicialmente, o de razoabilidade; mais recentemente, o de proporcionalidade” (GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre o discurso e interpretação/aplicação do direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 193).

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relação de causalidade entre meio e fim o autor passa para os domínios da

proporcionalidade.

Mesmo com a limitação da razoabilidade levada a cabo pelo autor –

com a qual não podemos concordar –, o ponto positivo é que Humberto Ávila

enxerga que a razoabilidade não tem um único enfoque de atuação, mas sim

vários. Afinal, todos os três focos de atuação da razoabilidade, por ele

apresentados, de fato a ela pertencem. No entanto, não são só estes três, mas

muitos mais. Serão tantos quantos necessários para se encontrar dentre as

opções racionais aquela que atenda às exigências de aceitabilidade social e

preenchimento do sentimento de justiça – inclusive a relação de causalidade

entre meio e fim.332

Dessa forma, a equidade é uma das formas de manifestação do

princípio da razoabilidade, a qual aparece nos momentos de vazio normativo,

visando colmatar uma lacuna jurídica. Neste sentido são as palavras de Maria

Helena Diniz, que afirma o que segue:

A equidade confere, pode-se assim dizer, um poder discricionário ao magistrado, mas não uma arbitrariedade. É uma autorização de apreciar, segundo a lógica do razoável, interesses e fatos não determinados a priori pelo legislador, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto ou singular, sempre considerando as pautas axiológicas contidas no sistema jurídico, ou seja, relacionando sempre os subsistemas normativos, valorativos e fáticos.333

Com vistas à diferenciação entre o princípio da razoabilidade e a

equidade, assim se manifesta Chaïm Perelman:

O limite assim traçado parece-me especificar melhor o funcionamento das instituições jurídicas do que a idéia de justiça ou de equidade ligada a certa igualdade ou a certa

332 Por esse motivo a classificação das formas de atuação do princípio da razoabilidade nos parece tarefa inútil. Só o caso concreto poderá mostrar qual(is) o(s) enfoque(s) necessário(s) para solucionar aquela demanda à luz dos requisitos da aceitabilidade social e do sentimento de justiça. 333 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 483.

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proporcionalidade, pois, vimo-lo por vários exemplos, o desarrazoado pode resultar do ridículo ou do inadequado, e não somente do iníquo ou do inequitativo.334

Diante do exposto, podemos constatar que, ainda que a equidade se

apresente como uma das formas de manifestação do princípio da

razoabilidade, com ele não se confunde, haja vista que este tem atuação muito

mais ampla, atuando também nos casos em que existe suporte normativo para

a decisão do caso concreto.

4.4. A idéia de justiça transcende a noção de proporção

Diante do exposto no item 3.5.1 podemos verificar que o princípio da

razoabilidade, enquanto imperativo de razão prática, é fundamental para a

realização da justiça no caso concreto. Isto porque o referido princípio orienta o

aplicador do direito na escolha de uma das opções racionais disponíveis, que

resulte em uma decisão aceita socialmente e que transmita a idéia de justiça.

Entretanto, existem muito autores que advogam a tese de que a

noção de proporção é um imperativo de justiça. Afinal, segundo apontam, a

ideia de justiça reside na premissa de dar a cada um o que é seu por direito.

Neste sentido Miguel Reale defende o que segue:

Se a justiça é uma proporção de homem para homem que garante a cada um o que é seu (jus suum cuique tribuere) a idéia de Justiça implica a idéia de ordem. A Justiça, em sentido objetivo (como hoje é geralmente empregado o termo) equivale à própria ordem social que a virtude justiça visa a realizar.335

O problema é que a noção de proporção dentro do direito está muito

mais ligada a ideia de adequação entre peso e medida do que a de dar a cada

um o que é seu de direito. Basta verificar a questão da aplicação das penas no

direito criminal para enxergar o que estamos falando. Quando se fala que a

pena deve ser proporcional à conduta praticada, a lei estabelece uma série de

334 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 335 REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. pp. 308-309.

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parâmetros para orientar a análise do aplicador. Partindo de uma pena base, e

tendo como limite uma pena máxima, o juiz analisa as circunstâncias

atenuantes e agravantes e as causas de aumento e diminuição de pena para

determinar a extensão da condenação do réu. Em outras palavras, as

circunstâncias legais aplicáveis ao fato são o peso, enquanto a condenação é a

medida. Se a condenação do réu (medida) não estiver adequada às

circunstâncias atenuantes e agravantes e às causas de aumento e diminuição

de pena (peso), estaremos diante de uma sentença desproporcional, a qual

deverá ser reformada pela instância superior.

Em que pese alguns possam dizer que isso seria a mesma coisa do

que dar a cada um o que é seu de direito, na medida em que a punição estatal

seria aplicada dentro dos parâmetros estabelecidos em lei, esta lhe é na

verdade uma questão inerente. Isto porque a idéia de dar a cada um o que é

seu de direito se opera no âmbito da justiça comutativa, sob a fórmula “se A é

então B deve ser”, isto é, aquele que pratica ato ilícito deve ser punido. Já os

limites de aplicação da punição constituem uma analise de adequação entre

peso e medida, a qual visa manter a proporção da punição inerente à fórmula

apresentada. Desta forma, a idéia de dar a cada um o que é seu de direito está

contida na fórmula de justiça comutativa “matar alguém: pena – reclusão de

seis a vinte anos”, 336 e não no critério de mensuração da condenação

legalmente estabelecido.

O mesmo ocorre no plano do direito civil. Quando uma empresa

inscreve indevidamente o nome de um cliente no serviço de proteção ao crédito

ela lhe acarreta um dano de ordem moral, o qual deve ser punido. Aqui

também está presente a fórmula de justiça comutativa “se A é então B deve

ser”, pois quem gera dano moral a outrem (ato ilícito) tem o dever de indenizá-

lo (punição). 337 No direito civil, ao contrário do direito penal, a lei não

estabelece um rol de causas atenuantes e agravantes, ou causas de aumento

e diminuição de pena, mas apenas estabelece que na punição deve haver 336 Código Penal: Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. 337 Código Civil: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

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proporção entre o ato ilícito praticado e a extensão do dano.338 Mais uma vez, o

critério utilizado para dar a cada um o que é seu, é a proporção, só que, neste

caso, os parâmetros para sua aferição são menos amarrados. Contudo, outros

critérios poderão ser utilizados conjuntamente quando da criação da norma de

decisão.339 É o que ocorre, por exemplo, quando a inscrição no cadastro de

inadimplentes era inicialmente devida e, depois de quitada a dívida, a inscrição

foi mantida. Neste caso, além do critério de proporção, o aplicador irá

considerar o fato de que a inscrição era originalmente devida e que, portanto,

existia uma adequação originária entre o meio empregado e fim almejado,

critério este que também será utilizado, juntamente com a noção de proporção,

na definição da condenação, podendo, inclusive, reduzir o seu valor.

Isso posto, a idéia de dar a cada um o que é seu de direito é uma

decorrência do princípio da igualdade, enquanto a noção de proporção é

simplesmente um critério adotado para concretizá-lo. Trata-se, pois, do critério

legalmente definido para a aplicação do direito nas hipóteses contempladas

pela justiça comutativa, o qual não exclui a adoção de outros tantos critérios

quantos necessários.

No entanto, a idéia de dar a cada um o que é seu de direito também

está contemplada pela justiça distributiva. Isto porque, sua essência consiste

em garantir a todos os cidadãos o acesso a determinados bens compreendidos

como fundamentais dentro da ordem política, mesmo que nem todos os

utilizem, ou ainda que uns sejam onerados e outros não. Este caso também é

uma decorrência do princípio da igualdade, mas aqui encarado sob o enfoque

da desigualdade. Daí porque podemos afirmar que a justiça comutativa se

pauta pela igualdade formal, enquanto a justiça distributiva é orientada pela

igualdade material.

O ponto importante aqui é que, no tocante à noção de proporção,

esta nem sempre será aplicável à justiça distributiva. Isto porque esta última, 338 Código Civil: Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização. 339 Mesmo no direito criminal, como se verá logo abaixo.

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em regra, não busca a aplicação do princípio da igualdade com vistas a

adequação entre peso e medida para determinado caso. Os critérios que a

dimensionam normalmente são outros. Ela adota aqueles critérios que lhe

permitem produzir uma decisão racional e proporcional, mas cujo resultado

garanta a todos os cidadãos o acesso àqueles bens compreendidos pela

ordem política como fundamentais. Certamente se trata de aplicação do

princípio da igualdade, porque visa garantir para todos os cidadãos o acesso

aos bens fundamentais daquela ordem política. Todavia, os critérios essenciais

serão outros, pois a adequação entre peso e medida não se presta a

fundamentar a desequiparação, em que pese possa ser adotada a partir de

certo ponto para mitigá-la.

Quando o poder público institui um tributo cuja receita será

destinada exclusivamente ao ensino público, ele está buscando garantir para

todos os cidadãos o acesso a educação, bem compreendido pela ordem

política como fundamental. Caso um determinado contribuinte não utilize o

serviço público de educação, seja por não ter idade escolar ou mesmo por

optar pelo ensino privado, não poderá por este motivo eximir-se do pagamento

do tributo. Como se vê ele não usa o serviço, mas paga igualmente por ele. Em

que pese isto seja essencialmente desproporcional, garante a igualdade

material, e o faz com base no critério que busca compatibilizar o aspecto

individual ao coletivo. Se, contudo, este tributo for cobrado de forma

progressiva, ou se tiver alíquotas diferenciadas de acordo com a possibilidade

financeira de cada contribuinte, a noção de proporção estará sendo utilizada

juntamente com o critério anterior, mas com o intuito de mitigar a

desequiparação realizada.

Por esse motivo podemos afirmar que a noção de proporção

também pode ser utilizada como critério pela justiça distributiva, mas ao

contrário do que ocorre com a justiça comutativa, não será o critério principal

legalmente atribuído. Na verdade, em muitos casos, ela não será sequer

utilizada, mas quando for utilizada, o será de forma subsidiária, com vistas à

mitigação da desequiparação realizada.

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Dito isso, não há dúvida de que o princípio da igualdade é

fundamental para o preenchimento do sentimento de justiça. Todavia, a idéia

de dar a cada um o que seu de direito – por ser proveniente de um princípio –

pode ser afastada em determinadas hipóteses para que se atinja o sentimento

de justiça. É o que vemos, por exemplo, nos casos em que se aplica o

chamado princípio da insignificância no direito criminal. Certas vezes a conduta

criminosa é de tão pequena monta que o agente envolvido – o juiz ou o

promotor de justiça – opta pela não movimentação do aparato estatal para

puni-lo. Nestes casos, tendo em vistas as opções racionais disponíveis, deixa-

se de aplicar a justiça comutativa, e sua consequente punição, com base em

razões de economicidade e de lesividade socialmente aceitas, as quais não

ofendem o sentimento de justiça. Não estamos diante de um princípio de

insignificância – pois se fosse insignificante não seria ato ilícito –, mas sim da

aplicação do princípio razoabilidade com seus variados critérios.

Se a própria idéia de dar a cada um o que é seu de direito pode ser

relativizada, por óbvio o critério da noção de proporção também o será, e com

muito mais razão. Afinal, existem hipóteses em que se aplica o princípio da

igualdade, mas utilizando outro critério para a solução do caso concreto. É o

que ocorre, por exemplo, quando diante de uma hipótese integração analógica

do direito. No caso da Lei Federal n° 7.670/1988, o seu artigo 1°, inciso II

autoriza o levantamento do FGTS para o custeio de tratamento médico nos

casos em que o titular da conta é portador do HIV. Contudo, inúmeros pedidos

foram realizados judicialmente requerendo o levantamento do FGTS para

custear o tratamento não do titular, mas de dependente seu. O poder judiciário,

valendo-se da integração analógica, criou a norma jurídica que autoriza o

levantamento do FGTS também para o custeio do tratamento médico de

dependente do titular da conta. Note-se que estamos diante de aplicação do

princípio da igualdade, mas o critério utilizado não foi a noção de proporção, e

sim a comparação entre o critério legal e o caso individual.

Com vistas ao exposto, uma vez que a noção de proporção é um

dos critérios legalmente adotados para a concretização do princípio da

igualdade – dar a cada um o que é seu de direito –, o qual tem como enfoque a

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relação de adequação entre peso e medida, está claro que se trata de um dos

juízos inerentes ao princípio da proporcionalidade.340 Sendo assim, poderá ser

utilizado isoladamente ou em conjunto com os demais critérios a ela inerentes.

Desta forma, não é a noção de proporção que é inerente à idéia de justiça, mas

sim os princípios da igualdade e da razoabilidade.

340 Algo semelhante àquilo que Humberto Ávila chama de razoabilidade por equivalência.

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CONCLUSÃO

Conforme tivemos a oportunidade de demonstrar nesse trabalho,

inúmeros são os autores relevantes para o direito brasileiro que adotam a

classificação de que norma jurídica é gênero, do qual regras e princípios são as

espécies – sendo que alguns admitem a existência de normas de segundo grau

(postulados), ou ainda há aqueles que incluem ao lado das regras e princípios

um terceiro tipo (híbridos). Não obstante as peculiaridades de suas teorias,

todos eles atribuem à proporcionalidade o status de norma jurídica – seja como

princípio, postulado ou híbrido.

Verificamos, também, que a atividade científica, no direito, busca

sistematizar e ordenar de forma coerente o direito positivo. Ao fazê-lo, através

de uma metodologia determinada, desenvolve um aparato técnico que será

disponibilizado para o aplicador do direito, o qual irá utilizá-las para criar uma

norma de decisão. Esta norma de decisão, construída com base no aparato

técnico-jurídico, deverá ser criada com prudências, de forma a acarretar

aceitabilidade social e preencher o sentimento de justiça. Daí porque a

aplicação do direito é uma atividade de caráter técnico-prudencial.

Com base nisso, pudemos verificar que a proporcionalidade é uma

técnica de aplicação e de argumentação racional oferecida metodologicamente

ao aplicador do direito para solucionar as hipóteses de colisão de princípios –

isto, obviamente, para aqueles que adotam uma teoria do direito que atribui

status normativo aos princípios.

Para tanto, demonstramos porque metodologicamente – dentro das

premissas de cada teoria – a proporcionalidade não é norma jurídica, seja sob

a forma de regra, de princípio, de postulado ou de híbrido.

Em seguida, verificamos cada uma das três etapas inerentes à

técnica da proporcionalidade. Na primeira delas, a adequação, constatamos se

tratar de subsunção do fato à norma, mas adaptada às particularidades dos

princípios enquanto normas jurídicas. Na segunda, percebemos se tratar da

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verificação das possibilidades racionais existentes, tendo como parâmetro as

medidas possíveis e os princípios em colisão. Na terceira, vimos que se trata

da aplicação do princípio da razoabilidade, uma vez que nela o aplicador do

direito irá escolher, dentre as possibilidades racionais, a mais prudente, cuja

adoção acarrete aceitabilidade social e o preenchimento do sentimento de

justiça.

A partir desse ponto passamos à análise da razoabilidade, a qual

demonstrou ser algo distinto da proporcionalidade. Conforme verificado, a

razoabilidade decorre da racionalidade e do caráter técnico-prudencial da

aplicação do direito. Isto porque, a decisão racional não necessariamente é a

mais prudente, bem como pode não ser aceita socialmente ou então acarretar

um sentimento de injustiça. Portanto, a razoabilidade tem como finalidade

escolher, dentre as opções racionais disponíveis, a mais prudente, e que

acarrete aceitabilidade social, bem como preencha o sentimento de justiça.

Diante disso, analisamos a natureza jurídica da razoabilidade, e

constatamos que se trata de autêntico princípio, haja vista que se encaixa

nesta categoria, em todas as teorias do direito aqui apresentadas – mesmo

naqueles que não lhe atribuem normativo.

Diante de tudo isso, concluímos que a proporcionalidade é uma

técnica que sistematiza metodologicamente a forma de aplicação das normas

jurídicas inerente ao direito, com vistas à solução da colisão de princípios

sendo, portanto, aplicável por aqueles que adotem um teoria do direito que

classifique os princípios como normas jurídicas. Já a razoabilidade, por sua

vez, é um princípio de aplicação do direito, sendo assim enquadrado em

qualquer das teorias do direito apresentadas.

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