da perfectibilidade negativa ao ato artístico em czelawa

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DOI: https://doi.org/10.22456/2179-8001.108691 v.26 n.45 Jan/Jun 2021 e-ISSN: 2179-8001 Resumo Este trabalho procura ampliar discussões anteriores sobre a construção da potência do retrato fotográfico e a apresentação do gesto da arte no trabalho de colorização da artista Marina Amaral, a partir de uma fotografia icônica realiza- da por Wilhem Brasse, fotógrafo prisioneiro em Auschwitz que realizou mais de 45.000 fotos em estilo de identificação, durante os anos de 1940-1944, e a re- verberação da foto em arte (pintura, desenhos, arte gráfica). A foto, da menina Czelawa Kwoka, produzida por Brasse em 1943, marca uma iconicidade da me- mória sobre o inominável e a carga imaginária e visual sobre a Shoah. O objeti- vo geral do trabalho é pensar fotografias históricas e formas artísticas, utilizando como principal metodologia a análise de transcrição visual, cotejando conceitos, entre outros, como ‘rosticidade’ (Lévinas), ‘narração do trauma’ (Seligman-Sil- va), representação, arte e catástrofe (Hartman). Como resultado final, é possível observar que a gestualidade artística promove uma singularização da imagem, e uma nova narratividade visual que clama pela sobrevivência da rememoração. Palavras-chave Fotografia. Memória. Arte e Trauma. Arte e Holocausto. Faces of Auschwitz. Abstract This work seekes to broaden previous discussions about the construction of the power of the photographic portrair and the presentation of the gesture of art in the work of colorization by the artist Marina Amaral, from na iconic photo- graphy by Wilhem Brasse, prisoner photographer in Auschwitz who took more tan 45.000 photos in identification style, during the years 1940-1944, and the reverberation oh the photo in art (painting, drawings, graphic art). The photo, of the girl Czelawa Kwoka, produced by Brasse in 1943, marks na iconicity of me- mory on the nameless and the imaginary and visual charge on Shoah. The ge- neral objective of the work is to think about historical photographs and artistic forms, using as main methodology the analysis of visual transcription, compa- ring concepts, among others, such as ‘rosticity’ (Lévinas), ‘trauma narration’ (Se- ligman-Silva), representation, art and catastrophe (Hartman). As final result, it is possible to observe that artistic gestures promote a singularization of the image, and a new visual narrativity that calls for the survival of recollection. Keywords Photography. Memory. Art and Trauma. Art and Holocaust. Faces of Auschwitz. Da Perfectibilidade Negativa ao Ato Artístico em Czelawa Kwoka From Negative Perfectibility to the Artistic Act in Czelawa Kwoka ORCID: 0000-0001-7137-0904 UNESPAR, Campus Curitiba II, Brasil Rafael Tassi Teixeira

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Page 1: Da Perfectibilidade Negativa ao Ato Artístico em Czelawa

DOI: https://doi.org/10.22456/2179-8001.108691

v.26 n.45Jan/Jun 2021

e-ISSN: 2179-8001

ResumoEste trabalho procura ampliar discussões anteriores sobre a construção da

potência do retrato fotográfico e a apresentação do gesto da arte no trabalho de colorização da artista Marina Amaral, a partir de uma fotografia icônica realiza-da por Wilhem Brasse, fotógrafo prisioneiro em Auschwitz que realizou mais de 45.000 fotos em estilo de identificação, durante os anos de 1940-1944, e a re-verberação da foto em arte (pintura, desenhos, arte gráfica). A foto, da menina Czelawa Kwoka, produzida por Brasse em 1943, marca uma iconicidade da me-mória sobre o inominável e a carga imaginária e visual sobre a Shoah. O objeti-vo geral do trabalho é pensar fotografias históricas e formas artísticas, utilizando como principal metodologia a análise de transcrição visual, cotejando conceitos, entre outros, como ‘rosticidade’ (Lévinas), ‘narração do trauma’ (Seligman-Sil-va), representação, arte e catástrofe (Hartman). Como resultado final, é possível observar que a gestualidade artística promove uma singularização da imagem, e uma nova narratividade visual que clama pela sobrevivência da rememoração.

Palavras-chaveFotografia. Memória. Arte e Trauma. Arte e Holocausto. Faces of Auschwitz.

AbstractThis work seekes to broaden previous discussions about the construction

of the power of the photographic portrair and the presentation of the gesture of art in the work of colorization by the artist Marina Amaral, from na iconic photo-graphy by Wilhem Brasse, prisoner photographer in Auschwitz who took more tan 45.000 photos in identification style, during the years 1940-1944, and the reverberation oh the photo in art (painting, drawings, graphic art). The photo, of the girl Czelawa Kwoka, produced by Brasse in 1943, marks na iconicity of me-mory on the nameless and the imaginary and visual charge on Shoah. The ge-neral objective of the work is to think about historical photographs and artistic forms, using as main methodology the analysis of visual transcription, compa-ring concepts, among others, such as ‘rosticity’ (Lévinas), ‘trauma narration’ (Se-ligman-Silva), representation, art and catastrophe (Hartman). As final result, it is possible to observe that artistic gestures promote a singularization of the image, and a new visual narrativity that calls for the survival of recollection.

KeywordsPhotography. Memory. Art and Trauma. Art and Holocaust. Faces of Auschwitz.

Da Perfectibilidade Negativa ao Ato Artístico em Czelawa KwokaFrom Negative Perfectibility to the Artistic Act in Czelawa Kwoka

ORCID: 0000-0001-7137-0904UNESPAR, Campus Curitiba II, Brasil

Rafael Tassi Teixeira

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Introdução

Czeslawa Kwoka, criança barbaramente assassinada em Auschwitz em 1943, teve seu rosto capturado em três poses fotográficas realizadas pelo fotógrafo pri-sioneiro do campo de Auschwitz Wilhem Brasse, que, entre 1940 a 1944, realizou mais de 45.000 tomas de prisioneiros concentracionários (a maioria retratados logo ao entrar no campo).

O presente artigo, procurando aprofundar e redimensionar pesquisas anteriores sobre o assunto (SANTOS e TEIXEIRA, 2020a; SANTOS e TEIXEIRA, 2020b), toma como foco principal a fotografia em tríptico de Czeslawa Kwoka realizada por Wilhem Brasse, concentrando-se na reverberação icónica da imagem desde a perspectiva das artes visuais. Pretende-se aqui rediscutir o trabalho contemporâneo de colorização realiza-do pela artista Marina Amaral (para o projeto Faces of Auschwitz), e seu impacto no esgarçamento em pinturas, desenhos e arte gráfica de artistas atuais atingidos pela memória traumática aberta pela fotografia da menina assassinada.

Espécie de álbum da memória holótipa, Faces of Auschwitz reordena\reativa, no elemento de reconstituição colorizada de rostos dos prisioneiros do campo de concen-tração, a dimensão sensível e comunicativa das faces da tragédia, e a potencialização transmissiva na dinâmica das artes visuais, estabelecendo uma transmutação empá-tica da arte (convite ao conhecimento histórico, convite ao sentir) diante do trauma da experiência atroz relacionada aos campos concentracionários.

Um dos rostos mais inequívocos e dolorosos da história da visualidade dos campos de morte (por sua característica angelical, pela empatia e revolta que opera), o tríptico de Czeslawa Kwoka é visitado muitas vezes ao longo nas últimas décadas. Especialmente a partir do trabalho da artista Marina Amaral, no ato de colorização da imagem, seu tra-balho de religamento, sua função preconizante – ‘dar rosto’ (LEVINAS, 1998), criar uma rosticidade possível -, busca refazer e ressoar a indignação primeira diante da imagem difícil. James Earley, David Russo e Lori Schreiner, são alguns artistas que acompanham Marina Amaral no procedimento de transmutação e coroamento da nomenclatura do tríptico de Czeslawa, endereçando-o para além de uma imagem traumática: a partir de sua catástrofe, reenergizam a fotografia tripla com olhar pessoal e perspectiva artística.

Observa-se, nesse sentido, o papel da urgência do testemunho (SELIGMANN-SIL-VA, 2000) e sua chave ética, renovada pela escrita da arte e a afirmação rigorosa do compromisso com a transmissibilidade histórica: um rosto que, na presença reencar-nada, testemunha outra vez. Uma face (agredida, ultrajada), que, no convite ao conheci-mento de seu absurdo, reescrito e rememorado em artes visuais, olha novamente para nós, perpetuando a acúmulo de violência e indignação que não pode deixar de refundar a dimensão viva da tragédia que a acompanha.

Neste artigo, discutimos o papel do gesto de sensibilização pela arte sobre a ima-gem específica de Czeslawa, tendo como principal locução a responsabilidade ética e es-tética de seguir renovando a transmissibilidade histórica de um dos eventos traumáticos mais terríveis da humanidade – ao perfazer uma memória (dar testemunho, temporalizar sem descanso) que se contrapõe ao perigo sempre constante do esquecimento.

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Fotografia e Estigmatização

Diante dos rostos da tragédia, as fotos são realizadas basicamente em três se-quências - lateralidade, frontalidade, ângulo oblíquo. Trata-se de um momento crucial na intensificação dos extermínios em massa perpetuados pelos nazistas no campo de concentração de Auschwitz-birkenau. Um período especialmente doloroso e acelerado das mortes, realizadas em escala industrial, durante a Segunda Guerra.

As imagens promoviam uma espécie de pragmática da patologização. Compunham um ritual (vestir uma roupa imunda, posicionar a cabeça sobre a superfície fria do metal na parte detrás da base do crânio, assujeitar-se frente à lente fotográfica), demarcando uma insistência exponencial sobre a condição acusatória. A fotografia, nesse sentido, tinha que oferecer ao mundo, em uma espécie de álbum da estigmatização racial, um modelo de delimitação em que a produção visual impusesse sua força de humilhação.

O noema da fotografia, aqui, não era outro que assinalar a ausência de singulari-dade nominal e o testemunho que ia para o lado da repetição antropométrica. A expe-riência física do endereçamento, assim, posicionava o corpo (o rosto, a imagem-busto) em uma situação basilar que denotava culpa e suspeita. Demonstrava, na experiência de domesticação da imagem particular, a infatigável vontade de serialização tipológica.

Nesse sentido, os dados antropométricos compunham uma ciência morfológi-ca em que o enfoque designava não apenas o ódio racial, mas, também, a amostra-gem demográfica. O objetivo era tentar dissuadir, segundo Hirsh (2012) qualquer avaliação idealmente positiva dos corpos retratados. O destino da imagem, nesse sentido, intencionava destruir a pessoa biográfica. Restava sempre a certeza de que os padrões morfológicos pressupunham um tipo de estrutura em que a singu-laridade dos traços era escalonada em gradientes homogêneos, em busca de uma mesma pretensa antropometrização.

A obsessão da retórica racial e pela busca de ‘tipos’, nesses termos, preconi-zava uma instrumentalização do sujeito-na-imagem. Como escreve Sanchez-Biosca (2015: 323) a intenção das fotografias realizadas momentos depois da entrada nos campos concentracionários era construir uma violência visual em que a câmera “con-vertia em inseparável a violência física da psicológica”. Conforme o modelo mnemôni-co desse estilo fotográfico, as imagens eram ao mesmo tempo uma linguagem ocular da violência do registro e um código da tipificação do testemunho: a invisibilidade nominal, a submissão da pessoa ao sistema estratigráfico, a valência judicializante como objeto prévio ao óbito.

Nessas séries fotográficas, a funcionalidade latente do esquema nazista reserva-va para a descontextualização biográfica da foto uma redundância escopofílica. Quase sempre o retrato era feito com a mesma ordem para o sujeito visual: instrução para o posar dentro de um modelo de registro criminal, mínimas condições de luz, precarieda-de da imagem no vazio do fundo visual, expressão normalmente contida e sem expor admoestação. Ou seja, a fotografia era ao mesmo tempo reprodução de um projeto e duração de um preconceito. Alimentava-se das descrições fenotípicas como se quisesse fazer onipresente a forma fotográfica e a indubitável relação entre ciência e espetáculo.

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O rosto fotografado se transformava, de modo imediato, em um índex da invisi-bilidade racial. Precisava despertar a consciência do observador: a evidência da cul-pabilidade que a imagem, individualmente, não conseguia exibir. Essa lógica ocular, encontrada nas construções gráficas e na propaganda nazi (HILBERG, 1996) desde muito antes da Segunda Guerra, pressupunha uma interpretação racial ligada a um postulado pseudocientífico: as raças ‘se desligavam’ da visualidade e estavam ‘disfar-çadas’ em características morfológicas que podiam passar despercebidas, e que, por-tanto, precisavam ser ‘clarificadas’ no trabalho fotográfico.

O papel ativo da fotografia about-to-die, nesse aspecto, era o de dar claridade, nitidez, abertura a possibilidade de ver, na relação composicional, o que a imagem não necessariamente apontava. Na falta de um arquétipo fenotípico ideal, as teorias raciais pressupunham uma necessidade de encontrar no interior do jogo performático (vesti-menta, situação do retrato, controle dos gestos) o modelo da semelhança dogmática que estava por trás da imagem; ou seja, em um estado latente, na condição de emer-gência. Diferente do ato posterior, de apagamento, quando os corpos nus e empilhados eram retirados das câmaras de gás e precisavam rapidamente desaparecerem - não havia o mesmo sentido fotográfico nos (poucos) registros dos corpos, tidos como ‘figu-ras’\figuren (AGAMBEN, 2008).

A estética fotográfica, aqui, busca visualizar a dialogia retrato-esquema tipológico com uma estrutura oculta. Uma ‘aparência-essencial’ que pressupõe uma relação sui generis com a figura de uma idealidade negativa, não obstante, desaparecida e difícil de ser vista. Uma idealidade fictícia, materializada na forma encenada, que expõe a fotografia dos rostos feitos em série sempre superlativos de um estado racial que per-manece oculto.

Czeslawa Kwoka

A imagem de Czeslawa Kwoka, realizada por Wilhem Brasse ainda em um mo-mento em que os campos de morte passariam pela maximização do extermínio, revela a imbricação dos registros visuais com a negativa – na duração – em fazer da foto-grafia um documento relativo ao processo de despersonalização do corpo retratado.

Figura 1. Fotografias de prisioneira (original – retrato

de identificação em Auschwitz) Fonte: Faces of Auschwitz, de

Mariana Amaral

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Brota da lente do fotógrafo uma vernacularidade que é dizível, em centenas de fotos, para uma visibilidade posterior, aquela que está aberta ao entendimento de uma in-dignidade (negar o testemunho), e aquela que é sensível ao olhar preparado (que não esquece o efeito de morte que há ao redor da imagem). Na câmera de Brasse, de modo sutil, nega-se o estado promíscuo com que o programa fotográfico estava estabelecido. Construídas com o mesmo pacto, com o mesmo constrangimento, com a mesma espera para que sejam denúncia e testemunho irrestrito, são fotos em que é impossível não conter o envolvimento emocional, coisa que os nazistas dificilmente poderiam perceber, obcecados com a essencialidade do racismo.

Czeslawa é fotografada nas três posições subliminares. Seu rosto se destaca da fenomenologia do registro, e a identidade visual oblitera o desejo da ‘perfectibilidade negativa’ aspirado pelos nazistas. A organicidade da imagem, em uma narrativa se-quencial, evoca a tipologia do olhar substantivo, que acaba valorizando o componente estético-perfomativo no interior do programa fotográfico. Nesse sentido, seu rosto de traços suaves, visivelmente machucado pelas privações da guerra, combina, no mate-rial fotográfico, elementos da essencialidade da composição contra o ato de enquadra-mento (posar apenas com o rosto como testemunho).

O paradoxo do fotográfico se instaura, nessa dimensão, diante da violência da for-ma tipológica em uma abordagem que persegue a relacionalidade e o ponto de vista, desenvolvidos por Brasse. A câmera faz o trabalho de buscar o enquadramento que reduz a autopercepção crítica do observador (AZOULAY, 2008), mas age, sabidamen-te, em um rumo oposto: gera uma impressão de vida, de essencialidade emocional, de biografia sub-reptícia que se torna intransitiva na foto. Com efeito, o trabalho de Brasse permite uma indefectível evidência da busca dos sinais humanos na imagem, desfazendo sua objetividade pretensa do programa redutor. Os detalhes do rosto, as impressões sobre a roupa e a narrativa dilatam a impressão daquilo que foi desen-volvido pelo fotógrafo e pela pessoa retratada. A imagem de Czeslawa nunca é, nesse aspecto, uma forma de cânone imposta pela inexpressividade, pelo vazio que haveria de ter no controle da câmera fotográfica. Mesmo diante de um objetividade buscada, os detalhes do rosto em um fundo de cor neutra, no enquadramento insistentemente

Figura 2 – Fotografias de Czesława Kwoka (original).

Fonte: Faces of Auschwitz, de Mariana Amaral

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similar, sublinham tanto a gravidade do assujeitamento contra a impossibilidade da despersonalização.

No trabalho de Marina Amaral uma artista gráfica que colore (ou devolve as cores) à imagem a partir do restauro computacional, a imagem da menina mostra bem os pômulos levemente avermelhados, os três cortes característicos nos lábios com ranhu-ras e arroxeado, as pequenas marcas de sangue na roupa imunda, o cabelo renhido e desbastado com tesoura, o nariz vermelho e o frio que se poderia supor. Destaca-se, ainda, as linhas pesadas debaixo dos olhos, as sobrancelhas ralas e os olhos escuros, o cabelo cortado com violência, o tom da pele, de um rosáceo vivo e carnalizado, próximo a uma perspectiva hiperrealista das fotografias pintadas à mão no começo do século XX, ou, ainda, da perspectiva (des)figurativa adotada em alguns retratos realizados por Francis Bacon e Lucien Freud.

No trabalho de digitalização de Amaral, as marcas na face surgem, nesse aspec-to, em uma fotografia alimentada pela característica lúmica: o rosto de Czeslawa está sujo, há visíveis sinais de machucaduras, os lábios vermelho-arroxeados exibem a fe-rida central, e três pontos vermelhos ao longo do maxilar direito mostram o que é da face sofrida, machucada, e o que pertencia ao fotograma. É possível enxergar a textura da pele da adolescente, a cor esverdeada dos olhos, o contraste das sobrancelhas. A intensidade alegórica, nesse caso, é diminuída pela ruptura do rosto com o arquétipo. No efeito digital, a cor torna ainda mais evidente os folículos capilares, os poros da epi-derme, as áreas com frio, a roupa de enorme tamanho, etc.

A imagem de Czeslawa, distante na fotografia em preto-e-branco, surge como um retrato que está marcado pela agressão, pela dor sofrida. Seja na tipologia ca-racterística (fotografia de identificação), seja na intencionalidade enunciatária (fo-tografia de testemunho), seu rosto é indefectivelmente uma imagem que se abre para a sensação de presencialidade. Nesse sentido, a pictorialidade é enfatizada em um drama singular: a tópica visual se translata para o efeito de ‘carnalização’ da pessoa. Seu busto sobressai com mais ênfase do fundo neutro, agora em um tono esverdeado, visualmente mais profundo.

Figura 3 – Fotografias de Czesława Kwoka (tríptico

colorizado). Fonte: Faces of Auschwitz, de Mariana Amaral

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Nessa tensão compositiva, o que se observa é uma maior incontrolabilidade do testemunho. Czeslawa pode ser vista em uma situação do posado que inscreve a fi-xação da imagem na pessoalidade, substituindo a persona visual por uma identidade menos tipificada. O gesto de colorir, nutrir a foto com a intensidade plástica, possibilita que a humanidade seja reiterada, e, ao mesmo tempo, que o poder da imagem tenha seu núcleo ativo na exigência de uma contemplação mais demorada - resquício de um pacto que está no olhar, e que se mostra claudicante, ativo, aprofundado. Na segunda visualidade, por exemplo, os olhos são mais intensamente destacados. Dirigem-se em um testemunho candente, que irrompe no quadro. No enquadramento frontal, a cor torna possível observar com maior atenção dos detalhes submersos do preto-e-bran-co, sobretudo em relação ao tecido e a geometria das listras cinzas e azuis, o triângulo vermelho e a imposição da letra J (judeu), a improvisação dos alfinetes, o estado de sujeira na roupa.

Nas bordas da imagem, na lateral esquerda, quase na altura dos ombros da me-nina, é possível ver o sombreamento da cadeira que se sentara, e, da mesma forma, o tamanho da roupa de vários números acima. O desdobramento possível é instituído pelo excedente tonal, e a digitalização organiza a memória a partir de sua humanidade visível (as marcas nos lábios, os olhos anteriormente úmidos, a pele maltratada).

A cor livra a imagem de seu apelo a ser imóvel, e a invisibilidade têm que lidar como uma dor que se conhece também como vestígio (DIDI-HUBERMAN, 2012). Com efeito, se instala no documento uma percepção da intensidade do testemunho: conhe-cemos a imagem a partir daquilo que está perdido, que não pode ser recuperado. Mas que, entre a fala do fotógrafo e a presentificação fenomenológica (a cor da pele), é pos-sível ver com mais conhecimento: a humilhação sofrida antes da foto. O corpo, o rosto com manchas, nesse sentido desloca a enunciação para a produção da presença, ves-tígio de uma destruição que estava no ensaio da imagem.

Nesse aspecto, o que era lido como efeito alegórico, no tríptico em preto-e-branco, se torna mais evidente no gesto de colorir. Se a origem da foto, em relação ao antes e

Figura 4 – Fotografias de Czesława Kwoka (preto e branco

e colorização). Fonte: Faces of Auschwitz, de Mariana Amaral

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depois, está para sempre perdida na imagem, o efeito de colorização se faz perceber no sentido que destaca aquilo que precisou ser interrompido (as marcas de sangue, as lágrimas no rosto). A fotografia em cor de Czeslawa, portanto, condensa o testemunho em uma mistura do real com um trânsito de indecidibilidade. A foto precisa mostrar, quer esconder a partir do que quer fazer ver; mas, no gesto de restituição pictórico, se torna intocada em sua rendição, vibrando o que está mais imanifesto.

Nesses termos, a imagem se instala sobre um momento em que a menina preci-sou limpar o sangue, em conter as lágrimas, em sentar-se para a fotografia de identi-ficação. É pelo rearranjo da coloração que as marcas, os vestígios diluídos, os tempos perfurados, são refeitos em uma abertura ao que nunca se poderá ver: o crime anterior, o retrato como um desenlace de sua inibição e silenciamento. Chega a ser observável, pela ação redinamizadora do pigmento, um efeito actante que enseja um testemunho ainda mais premente, ainda mais necessário.

Em uma última análise, a imagem que fecha o tríptico, na colorização, reascende o estado-limite da fotografia como um movimento de esconderijo. Atua como um ato de silenciamento da presença expositiva: menos mensageira do ícone, mais notada na morte. Essa ambiguidade é ativada na cor, como se iluminasse as zonas sombreadas de um rosto que se tornara sua própria máscara. A menina olha o infinito, contém sua dor. As marcas estão ali, visíveis, urdidas ao ponto de ‘queimarem’ (DIDI-HUBERMAN, 1998) junto ao deterioro.

No efeito pictórico, a gramática visual é interposta pela ambiguidade aberta do re-gime da arte (o ato de colorir). Essa materialização rompe com o simulacro. E, no decor-rer do tempo, possibilita uma outra duração, uma outra consciência. A imagem se faz envolver por uma relação essencialmente física com a cena aberta. Os olhos procuram a alegoria, mas a foto a devolve em manchas.

Figura 5 – Fotografias de Czesława Kwoka (processo de

colorização). Fonte: Faces of Auschwitz, de Mariana Amaral

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Aqui, o que podemos ver é que a imagem se torna fonte. Torna-se menos neutra, a espera de seu desenlace, entre o abjeto do destino que aponta e a declaração de resis-tência que o corpo concentra. Figurativizado na imagem, o rosto com marcas de Czes-lawa pode eludir ao gesto que precisa ser apagado (limpar o sangue, aliviar o temor, concentrar-se na pose). Enquanto isso, a imagem se torna mais pronunciada em sua sensação de efeito de presença, de proximidade proporcional. A fotografia colorizada torna mais necessário o resquício, a sensação psicológica, o correlato gravitacional da memória e sua ativação reparadora. Cromaticamente rica, as três sequências seguem individualizando o retrato, mas corporificam a representação, que está mais aberta aos signos da história que existiu antes do ato fotográfico. Mesmo mantendo a consuma-ção sequencial, o anterior extracampo da fotografia pode ser intuído em um corpo que foi imediatamente atacado, silenciado pela agressão, obrigado a se calar.

Assim, são nos restos visuais de uma profanação antecedente que o trabalho de colorização feito por Marina Amaral torna a imagem nutrida de seu próprio movimen-to de desequilíbrio. A sensorialidade fotográfica está mais destacada quando a figura central é vista sob a potencial narrativo de uma plasticidade que lhe devolve a ligação com o momento anterior, sacrificial, duro.

O Rosto Indelével: Czeslawa Kwoka na arte

No trabalho de Lori Schreiner, artista que reescreve à imagem de Czeslawa a partir da pintura, a materialização se faz inspirada na perspectiva da terceira foto da menina (ângulo oblíquo do rosto, cabeça encoberta). A sensibilidade do trabalho de Schreiner aprofunda a possibilidade de dilatação do contracampo, chamando atenção para a gra-

Figura 6 – Czesława Kwoka por Lori Schreiner (2007).

Fonte: Czeslawa Kwoka, 2007. Lori Schreiner

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vidade do testemunho, e convidando para o impacto do conhecimento do contexto da imagem (uma imagem com dor, que se tornou icônica). Sensibilizada na pintura da artis-ta, e acompanhada pela sequência de poemas do livro em companhia da poeta Teresa Edwards, Czeslawa surge como uma criança que foi brutalizada na história, não apenas dos campos de extermínio, mas da história da violência mundial contra inocentes.

Restituída pelas formas visuais, em seu aprofundamento e reescrita na pintura, a menina tem seu rosto parcialmente liberto da profanação primeira da imagem fo-tográfica - a intenção de registro e de aniquilamento da fotografia de identificação. A memória da morte atroz, e a urgência perene do testemunho, através do rosto, é apre-sentada em uma inspiração fabular no sentido do religamento do centro\índice\as-pecto da imagem com a retomada da presença que ele testemunha: a face que pontua a morte, mas que oferece resistência pela inspiração artística. Pelo gesto da arte, tal como escreve Felman (2014), a extrema dor que há no conhecimento traumático da fotografia é, portanto, redimensionada na linguagem da materialização da pintura, ou do ‘encantamento materializado’ em uma forma (reverberativa) artística, em sua ordem de imaginação e infinitude.

Recuperada desde a intensidade emotiva e o choque primeiro da fotografia (quan-do endereçada ao olhar humanístico), a imagem da menina tem seu valor crítico man-tido pelo gesto artístico. Ela já não está mais no oposto do documento (evidenciação). Serve ao compromisso da necessidade de olhar mais, de reivindicar o horror diante do contexto bárbaro, que, no processo de dilatação tempório sempre corre o risco de esquecimento. E, também, de perfazer uma realidade que se mistura com seu próprio limite: o limite, superado várias vezes, da representação. Como escreve Sontag (2003), na redimensão imaginativa da arte, a força e a profundidade da imagem atroz - uma imagem about-to-die-, consegue misturar a realidade chocante com a simbolização recordativa e redentora. Pelo poder expressivo, o efeito artístico, enfatizando a presen-cialidade imemorial, permite uma conexão sensível do extremo da imagem com seu

Figura 7 – Czesława Kwoka por James Earley (óleo).

Fonte: Czeslawa Kwoka, 2019. James Earley

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comprometimento primeiro: não deixar esquecer uma brutalidade sofrida. A arte que trabalha com a experiência traumática (tanto de entender como de ver), nesse sentido, reforça a sua duplicação em sensibilidade, não atuando apenas como uma declaração, mas também como uma intervenção (Sontag, 2003).

Esse engajamento também pode ser visto no trabalho de James Earley, inspirado na fotografia tríptica de Czeslawa, aqui concentrado nas duas primeiras capturas (foto em perfil, foto frontal). No trabalho do artista, conhecido por pinturas de crianças em referência a contextos atrozes (inspiradas em imagens de órfãs de guerras, crianças com ferimentos de bombas, etc.) a imagem de Czeslawa surge como gesto reescritivo de convocação de uma “memória profunda” (HARTMAN, 2000) associado ao trauma da aniquilação dos mais inocentes. Em relação ao Holocausto, e concretamente Aus-chwitz, tem sua corporificação e ‘sobrevivência’ (DIDI-HUBERMAN, 2015) orientada para a história e o sentimento diante do impacto renovado no esgarçamento artístico. O rosto da menina, machucado e ferido, aponta para o ultraje e o acúmulo da violên-cia, e atesta e resiste convocando ao sentir e ao declarar: a intervenção em forma de reescrita, o comprometimento no valor crítico novamente restituído pelo desenho. Na pintura de Earley, as duas fotografias originais são acionadas expondo o corpo violado, e sua rubrica potente na simbolização redentora (BENJAMIN, 1985). A pintura parte da base fotografia, mostrando a roupa assignada aos prisioneiros, a placa identificatória, o número e o triângulo amarelo que designava as vítimas judaicas. A tela de Earley, repercutindo o estilo do pintor, apresenta, ainda, componentes gráficos: a frase “my name is Czeslawa Kwoka” aparece na parte superior do quadro, em uma referência ao sórdido portão da entrada do campo de Auschwitz, onde se encontrava o dizer nazista “Arbeit Macht Frei”.

Figura 8 – Czesława Kwoka por David Russo (óleo).

Fonte: Czeslawa Kwoka, 2012. David Russo

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A dinâmica das artes, sua materialização e reverberação em testemunhos, também surge em outras obras\peças visuais, apontando a iconicidade da imagem fotográfica feita em Auschwitz. Na pintura do artista David Russo, Czeslawa pode ser vista em estilização mais acentuada, que se inspira na foto frontal do tríptico, emergindo a lembrança da identidade e do rosto. A face ferida e em dor (o cabelo cortado com violência, os lábios feridos, a pele manchada, etc.) que declara contra o projeto nazi de apagamento.

Russo explora a dimensão testemunhal e evidenciativa do registro, transcreven-do na pintura o semblante visto de frente, enfatizando a humanidade e o sentimento de denúncia que existe na imagem de Czeslawa. Aqui, a menina pode ser observada desde o sentimento de sagrado que há no ponto de vista do testemunho, ordenado no efeito de materialização sensível e comunicativa da pintura em óleo. A ética do rosto, que comunica uma verdade e uma agressão sofrida para o encaminhamento futuro (o olhar melhor, a visão intérprete, humana – e não dos perpetradores), é reenergiza-da na pintura, e seu compromisso com a dilatação do “temporalizar sem descanso” já apontado de Didi-Huberman (2018). Diante do trauma e do conhecimento mortífero da tragédia (a intencionalidade ofensiva e absurda da imagem), a singularidade da face da menina é, antes que uma espécie de vestígio, uma potência empática que convoca a indignação que a precede. Czeslawa subsiste como um sopro de vida, e uma retomada contra a demonstração do horrível.

No endereçamento artístico, na inspiração da iconicidade evidenciativa, sua face restitui o elemento de morte e extermínio, mas, também, rememora a dig-nidade que os nazistas não conseguiram derrubar. Mais do que a apresentação indignante de uma criança que foi agredida de muitas formas, seu reequilíbro na ru-brica da arte chancela um atravessamento entre testemunho (impedido, silencioso) e a privação primeira sofrida pela vítima (silenciada na linguagem documental). Seu futuro pode ser tensionado na realização viva da figuração sensível, desprendida parcialmente do contexto histórico, e aberto ao reviver durável da indignação: um rosto que pode reproduzir a memória traumática, como diz Seligmann-Silva (2010), a partir da ‘necessidade absoluta do testemunho’.

Como forma final, em múltiplas reverberações estésicas, Czeslawa é, ainda, cons-tantemente lembrada em trabalhos de artistas contemporâneos e pessoas que reagem tanto a fotografia original quando ao trabalho seminal de Marina Amaral. Seu rosto angelical e sofrido, é ativamente emulado na forma\força da arte. Com textos reverbe-rativos e literalizantes, muitos deles endereçados em formato de carta ou ode a menina assassinada, a fotografia icônica de Wilhem Brasse ressurge na gramática coral da sensibilidade artística: na figura do testemunho, do corpo\busto perseguido e violado, na transmutação tocável pela exigência do ver e sentir (renovada, renovadamente). De certa maneira como um desejo de renascimento, em uma ‘queimadura’ difícil que não cessa de convidar a uma operacionalização sem fim do dizer testemunhal, a imagem de Czeslawa por artistas contemporâneos, atingidos pela crueldade e a morte infame da criança, perfaz um “religamento ao mundo, de reconstrução da sua casa” (SELIGMAN-N-SILVA, 2010). Nos olhos dos artistas e estudantes de arte, em cadernos de desenhos

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e em pinturas e rabiscos impactados pela imagem (muitos deles publicados no insta-gram), Czeslawa é trazida em sua eloquência física testemunhal, partilhada como me-mória e reencantada como presença. Num convite e numa vontade perene em religar, ressentir, reinstaurar seu desejo de vida, brutalmente ceifado, com sua transmissibili-dade icónica, aberta ao circuito comunicativo e empático da arte. E, assim, fazendo ver, uma e outra vez, a cena testemunhal e a catástrofe humana - “no indivíduo despojado de sua identidade, submerso sob a rubrica de uma tipologia que ordena, em uma sim-plicidade desconcertante, o mundo visto pelos nazistas” (LE BRETON, 2018: 330).

O gesto da arte, ‘diante do mal radical’ (DE DUVE, 2009), concentra-se no ato de reatribuir e reinstaurar uma duração contínua do dizer testemunho (do grito não feito), e do novo destino do acolhimento da imagem. Nesse sentido, o que se enxerga mais (ou diante de tudo) não é a iminência da morte, mas a pureza oferecida do gesto. Um rosto que vence a anonimidade ultrajante do projeto de extermínio (apagamento), e redobra, muitas vezes, durante um instante que será difícil de afastar dos olhos, a intensa e in-sistente duplicação de uma imagem constelacional, expressiva, enfática.

Considerações Finais

A fotografia de Czeslawa Kwoka analisada no trabalho do fotógrafo Wilhem Brasse, feita em Auschwitz durante os anos concentracionários, perspectiva uma construção narratológica que, dentro do estatuto da fotografia de identificação, mar-ca a relação entre a imagem como uma forma de determinação da ‘culpa’ – via uma tipologização racial pretendida pelos nazistas – e a imagem como um efeito de figu-rização do testemunho – expresso no ato composicional pactado entre o fotógrafo prisioneiro e o retratado.

Nesse sentido, é fundamental o conhecimento sobre as distâncias produzidas pe-los contextos de produção da imagem, sobre a intenção pretendida, sobre os detalhes figurados. Segundo o fotógrafo, que era obrigado a registrar as vítimas, a eliminação das séries fotográficas na fase final da guerra se torna uma exigência dos oficiais na-zistas, obcecados com toda a sorte de eliminação física - nesse caso, dos documentos que serviriam como prova dos crimes perpetuados.

Figura 9 – Czesława Kwoka por múltiplos artistas.

Fonte: Czeslawa Kwoka on Instagram posts

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No trabalho da artista visual Marina Amaral, a colorização é um gesto de restituir a organização dessa dor – que não pode silenciar no passado arquivístico e no endereça-mento icónico posterior da foto. O aumento da sensação de singularização da imagem é uma característica que compõe sobre a narratividade visual um acréscimo da percep-ção da presença. Com a cor, os olhos prestam maior atenção aos detalhes furtivos da imagem. Ela aponta, agora com mais intensidade, para a agressão anterior, restituindo uma memória a partir da reorganização do sacrifício da dor na imagem: são mais visí-veis os lábios machucados, as manchas de sujeira nos pômulos salientes, a secura da pele, o frio na extremidade do nariz, o sangue na roupa imunda, etc.

Tratada pictoriamente, a imagem acede a uma sensação psicológica que rompe com os limites já anteriormente explorados da visualidade fotográfica, no registro em preto-e-branco. Quando a colorização é realizada, o rosto de Czeslawa emerge da fixi-dez do enquadre. E a memória urge em uma nova perspectiva que a direciona para um movimento incômodo, entre o silêncio histórico homoestático da imagem e o testemu-nho que não pode ser interrompido.

Na reverberação em forma de arte (procedimento de dilatar a imagem em sua intensa repercussão sensível e figuratizável), o rosto da menina é replicado em uma potência reescritiva e reenergizante: a perspectiva fria e distanciada do documento é reordenada em um convite para a possibilidade de supressão parcial da tragédia da imagem (continuando seu choque, mas superando sua contextualização). Em obras de artistas como James Earley, David Russo e Lori Schreiner, e, também, em uma série de artistas anônimos replicados na internet, a dimensão sensível da face de Czeslawa pode ser ressentida pela potencialização expressiva da possibilidade de seguir sua denúncia. Nesse caso, não apenas histórica (concentracionária), mas disruptiva (espelhável).

Figura 10 – Czesława Kwoka. Fonte: Czeslawa Kwoka –

instagram (pencil drawing)

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Diante dos crimes contra a humanidade, diante dos objetivos redutores e perpe-tradores do extermínio, a face da menina, em diversas e renovadas remontagens, vi-brantes e comunicativas, instam o conhecimento histórico e a alteridade (não deixar morrer) identificável e premissa da fotografia. Precisamente, aquela que, em ausência grave de defesa, aprofunda a dor. Tornando-se um acúmulo de violência, por objetivar o apagamento, mas sendo redimido ao menos em sua sobrevivência transcritiva, de seu julgamento na história humana.

Uma história intermitentemente em ruínas (BENJAMIN, 1985), que não pode aca-bar, no limite, no vocabulário – incognoscível, mudo, incompreensível – do documento. Uma história que precisa ser ato de memória, ênfase primária, criação narrativa, gesto de reencarnação materializável – a perseguir os limites da repetição e a distância sem limites do vínculo propiciado pelo esgarçamento em arte.

Referências

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Rafael Tassi Teixeira

Pós-Doutor em Cinema e Audiovisual (Universitat Autònoma de Barcelona - UAB). Doutor em Sociologia pela Universidad Complutense de Madrid (UCM). Professor do Mestrado em Cinema e Artes do Vídeo (PPG-CINEAV \UNESPAR ). Professor Adjunto da UNESPAR, Campus Curitiba II (Sociologia da Arte, Estudos Culturais, Antropologia Audiovisual). Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq) Eikos – Imagem e Experiência Estética. Seus estudos abrangem a área das mediações culturais, estudos diaspóricos, cinema ibero-americano, antropologia audiovisual, fotografia e memória.

Doi:https://doi.org/10.22456/2179-8001.108691.

Texto recebido em: 26/10/2020Texto aceito em: 23/03/2021

Texto publicado em: 05/06/2021

Como citar: TEIXEIRA, Rafael Tassi. Da Perfectibili-

dade Negativa ao Ato Artístico em Czelawa Kwoka.

PORTO ARTE: Revista de Artes Visuais, Porto Alegre,

RS, v. 26, nº45, jan-jun. 2021. ISSN 2179-8001.