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DA MONTAGEM À REMONTAGEM: OS CAVALETES DE VIDRO DO MASP E A DISPUTA DE MEMÓRIA Luiza Batista Amaral Doutoranda em História Social da Cultura PUC-Rio [email protected] 1. Introdução O MASP (Museu de Artes de São Paulo Assis Chateaubriand) tem sua história intimamente ligada a duas figuras, a do curador Pietro Maria Bardi (1900-1999) e da arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), que chegaram ao Brasil em 1946 e se estabelecem em São Paulo. O casal Bardi, junto ao empresário Assis Chateaubriand (1892-1968) foram responsáveis por criar uma das instituições museológicas de destaque na América Latina. Ela se inicia em 1947 com sua primeira sede na rua Sete de Abril, ocupando um andar do edifício do Diário dos Associados. Tratou-se, como expõe Renato Anelli (2009), da criação de um museu moderno numa cidade ainda com moldes provincianos, que aos poucos tornava-se um polo econômico e industrial. Desde sua criação o MASP nasce como uma instituição crítica aos museus tradicionais, um edifício que abriga uma coleção, uma arquitetura que recebe fragmentos de um passado encerrado. O MASP além de ser uma instituição detentora de um acervo, se propõe desde o início a ser um museu escola, promovendo atividades como os cursos do IAC (Instituto de Arte Contemporânea) e a revista Habitat, que conferem uma dinâmica institucional, tornando-o um espaço em constante diálogo com o presente, sobretudo consolidando uma perspectiva do museu como espaço aberto e em constante construção, fato que posteriormente se efetiva com sua arquitetura, com o vão-livre do edifício da Av. Paulista, e com a transparência dos cavaletes de vidro que abrem o espaço da galeria, tornando-o fluído

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DA MONTAGEM À REMONTAGEM: OS CAVALETES DE VIDRO

DO MASP E A DISPUTA DE MEMÓRIA

Luiza Batista Amaral

Doutoranda em História Social da Cultura PUC-Rio

[email protected]

1. Introdução

O MASP (Museu de Artes de São Paulo Assis Chateaubriand) tem sua história

intimamente ligada a duas figuras, a do curador Pietro Maria Bardi (1900-1999) e da

arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), que chegaram ao Brasil em 1946 e se

estabelecem em São Paulo. O casal Bardi, junto ao empresário Assis Chateaubriand

(1892-1968) foram responsáveis por criar uma das instituições museológicas de

destaque na América Latina. Ela se inicia em 1947 com sua primeira sede na rua Sete

de Abril, ocupando um andar do edifício do Diário dos Associados. Tratou-se, como

expõe Renato Anelli (2009), da criação de um museu moderno numa cidade ainda

com moldes provincianos, que aos poucos tornava-se um polo econômico e

industrial. Desde sua criação o MASP nasce como uma instituição crítica aos museus

tradicionais, um edifício que abriga uma coleção, uma arquitetura que recebe

fragmentos de um passado encerrado. O MASP além de ser uma instituição detentora

de um acervo, se propõe desde o início a ser um museu escola, promovendo

atividades como os cursos do IAC (Instituto de Arte Contemporânea) e a revista

Habitat, que conferem uma dinâmica institucional, tornando-o um espaço em

constante diálogo com o presente, sobretudo consolidando uma perspectiva do museu

como espaço aberto e em constante construção, fato que posteriormente se efetiva

com sua arquitetura, com o vão-livre do edifício da Av. Paulista, e com a

transparência dos cavaletes de vidro que abrem o espaço da galeria, tornando-o fluído

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e receptivo aos constantes processos de montagem e remontagem dos percursos por

entre as obras.

A sede da Av. Paulista, idealizada por Bo Bardi no final dos anos 1950, foi

construída na atmosfera da arquitetura moderna, no ímpeto de uma moral

arquitetônica que se consolida no pós-guerra baseada na simplicidade e no

transparecer do que é estrutural nas construções. O volume suspenso por concreto

protendido, revestido por vidro apresenta uma proximidade com o espaço urbano, é

cidade e arquitetura, tem a clássica divisão entre dentro e fora, interior e exterior

esfumaçados pela transparência que também se repete na museografia dos cavaletes

de vidro, remontados em 2015 para abrigar o acervo permanente. Nesse ponto, as

fronteiras entre espaço e obra também são borradas na medida em que ao apresenta-

las suspensas na galeria as constitui como colunas que estruturam esse espaço. O

vidro é um material que compõe esse museu, e, por sua vez, seu caráter aberto e

transparente, aspectos que tem sido cada vez mais revisitados, rearticulados e

estirados, para além de sua arquitetura, pela atual gestão do MASP que retoma a

transparência em sua essência moderna no contexto contemporâneo marcado por

incertezas e névoas que se constituem na arquitetura atual de superfícies leitosas e

vaporosas (WISNIK,2018).

2. A leveza e o bruto: contradições do cavalete de cristal

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Lew Parrella, Lina Bo Bardi no Canteiro de Obras do MASP ao lado do cavalete de vidro, Fotografia (1967).

Fonte: http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/3435/masp-na-perspectiva-do-patrimonio Acesso em:

30/09/2019

Essa imagem do canteiro de obras do MASP apresenta múltiplas contradições e

tensões que permeiam o projeto da transparência construído pela arquiteta ítalo-brasileira

Lina Bo Bardi e retomado pelo MASP em 2015. Essa foto feita pelo fotógrafo americano

Lew Parrella (1927-2014) no canteiro de obras do MASP – projeto elaborado em 1957 e

finalizado em 1968 – conecta a estética do inacabado própria do canteiro de obras com a

do cavalete de vidro. Assim como aquele local, o cavalete está em processo de finalização

através da interação com o outro. Nota-se que ao mesmo tempo que essa estrutura se

aproxima da arquitetura em virtude do diálogo dos materiais tal como o concreto e o

vidro, ela também gera um estranhamento nessa cena. O cavalete apesar de próximo a

essa materialidade ocupa uma posição de destaque, é apresentado em cima de vigas que

o destacam, em contraposição das linhas horizontais e verticais que o suportam, observa-

se que essa base de concreto em forma de cubo é exposta em ruptura a esse desenho

quadrangular das vigas. Outro fato a ser notado é sua presença em primeiro plano

acompanhada da arquiteta e da pintura presente nesse suporte, O Escolar (1888) do pintor

Vincent Van Gogh, composta por uma imagem de um menino sentado sobre uma cadeira

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de madeira, tal como a arquiteta sobre um banco da mesma materialidade, com um lápis

e um caderno na mão marcando uma hierarquia nessa cena em que os operários são

apresentados atrás, não é possível ver suas faces, sua atividade está caracterizada pela

vestimenta – capacete – e pelo manual, por operários com as mãos nos pesados objetos

de trabalho. Nesse caso trata-se de uma diferenciação tal como a realizada por Carlos

Guinzburg sobre sua leitura cultural do alto e o baixo nas representações imagéticas

indicadas em Mitos, Emblemas e Sinais (1989), consiste em uma análise sobre o que está

à frente e o que está atrás, o exercício intelectual e o ofício manual. Há uma relação entre

a leveza e o bruto dada pelos materiais da pintura, pelo próprio exercício de pintar, pela

presença do vidro, que reflete a imagem das nuvens, e indica também uma relação com o

externo. O vidro é um material delicado, colocado por último nesse contexto da obra em

virtude de sua fragilidade, portanto nesse cenário também destoa, apesar de sua

transparência permitir sua integração na cena. Além disso, a figura da arquiteta que porta

o caderno e a caneta contrasta com o bruto do segundo plano, as vigas, os objetos de

trabalho dos operários, a madeira em estado “bruto” (taipas), os operários em pé, mais

integrados ao ambiente do canteiro de obras.

Essa é uma cena de tensões que revela esse caráter do cavalete que ao mesmo

tempo que é construído como um projeto inacabado, que pede ao outro, ao público que o

atravesse, e é trazido para dentro do museu, institucionalizado como parte de seu corpo,

sua arquitetura e de sua história ao ser remontado em 2015. Outras tensões também

atravessam esse mobiliário expográfico, a disputa de tombamento envolvendo o mesmo.

O pedido feito pelo Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi em 1999 solicitava o

tombamento do edifício assim como do sistema expositivo dos cavaletes, em contraponto,

o MASP, no mesmo ano, solicitou o tombamento do edifício criticando o pedido do

instituto, temendo o engessamento das práticas curatoriais na medida em que esse

procedimento esbarraria na autonomia do museu. Apesar desse pedido, o parecer

favorável à inconveniência do tombamento é assinado em 2003, argumentando que

diferente da arquitetura, a museologia, a forma de exposição, deve ser dinâmica, logo

deve estar em constante mudança tal como nas diversas instituições museológicas (2015.

pp.140-45). Logo, o parecer favorável ao tombamento dos cavaletes restringiria a

instituição no empreendimento de processos de transformação. O que também orientou

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essa decisão foi a natureza aberta e mutável do próprio cavalete, seu caráter fluido e de

liberdade tal como o atual curador do museu Adriano Pedrosa constantemente reafirma

em seu texto Concreto e Cristal: aprendendo com Lina (2015) que integra o conjunto de

textos presente no catálogo Concreto e Cristal: O acervo do MASP nos cavaletes de Lina

Bo Bardi(2015), onde também é publicado imagens do acervo do museu, assim como o

parecer de inconveniência do tombamento.

De fato, esse caráter aberto e livre atua na mesma frequência em que Bo Bardi

propôs em seu projeto arquitetônico como indica seu texto O novo Trianon 1957-67,

publicado na revista Mirante das Artes(1967), em que narra a concepção do projeto,

reitera o caráter comunicativo da arquitetura, ou seja, a necessidade da edificação

comunicar, ter uma eficiência sociológica e histórica, além da defesa de sua simplicidade

e de seu caráter aberto: “E gostaria que lá fosse o povo, ver exposições ao ar livre e

discutir, escutar música, ver fitas. Gostaria que crianças fossem brincar no sol da manhã

e da tarde” (BO BARDI,2009 p.127[1967]). Essa concepção de abertura, presente no vão-

livre, vibra para o interior do museu através dos cavaletes, que também estão na mesma

frequência que a arquiteta concebe do conceito de experiência e de pobreza

(AMARAL,2016). A leitura que a arquiteta faz dos materiais ressaltando seu caráter bruto

e simples dialoga com as próprias concepções da arquitetura Brutalista, movimento

nascido na Inglaterra no pós segunda guerra e incorporado no Brasil na Escola Paulista

através da figura do arquiteto Vilanova Artigas (1915-1985), do qual Bo Bardi também

era próxima. Bo Bardi toma a pobreza num contexto de simplicidade, da apresentação de

um material cru, sem revestimento, nesse caso, o concreto em estado bruto indica um não

falseamento do mesmo, essa matéria-prima exposta visa mostrar uma verdade, assim

como o uso do vidro que expõe o que a parede mascara, o chassi do quadro. Essa

concepção de uma verdade arquitetônica que exibe o estrutural se apresenta em outras

expografias da arquiteta desde o início do MASP, e em outras feitas por Bo Bardi fora do

museu tal como na exposição Bahia no Ibirapuera (1959).

Essa ação de não mascarar está presente na arquitetura Brutalista em seu trabalho

com o concreto sem revestimento e a exposição estrutural da edificação. Nesse ponto o

vidro também é um argumento dessa proposta na medida em que a transparência revela

tudo e impede o esconder, ele faz parte do ethos da arquitetura moderna, sobretudo da

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modernidade como indica o ensaio Experiência e Pobreza (1933) de Walter Benjamin em

que o autor descreve uma nova forma de habitar, pobre, instaurada pela cultura do vidro,

inimigo da propriedade e do mistério: “ Será que homens como Scheerbart sonham com

construções de vidro porque professam uma nova pobreza?”(BENJAMIN,2012.p.126).

O vidro é uma espécie de instância moral que desvela o que se quer mascarar como a

arquiteta descreve no ensaio sobre as casas de Artigas:

Nas casas de Artigas, que se veem por dentro, tudo é aberto, por toda a parte

do vidro e os tetos baixos, muitas vezes a cozinha não é separada, e o burguês

que se deixasse levar pela novidade e pedisse uma casa a Artigas, chocado com “ tão pouca intimidade”, cego por tanta claridade, se apressaria em fechar com

pesadas cortinas as vidraças (...).(Ibidem, p.69[1950])

O aspecto do material é uma importante questão nesse trabalho da arquiteta na

medida em que sua leitura arquitetônica e museográfica se encontram pela via da

materialidade. É interessante observar que esse discurso sobre o material se estende a

análises como a feita por Adriano Pedrosa (2015) que em seu texto constrói uma narrativa

sobre os cavaletes compondo sua dicotomia entre concreto, madeira e vidro. Outro fato

que chama atenção sobre a materialidade é a construção do nome Cavalete de Cristal dado

na tentativa de marcar ainda mais esse antagonismo entre esses dois materiais, o vidro e

o concreto:

Concreto: matéria áspera, rude, dura, bruta opaca, pesada. Cristal: matéria

delicada, frágil, fina, leve, transparente, preciosa. Enquanto o concreto no chão

vai se fragmentando e perdendo acabamento e polimento a cada deslocamento

que ocorre com o passar dos anos, o cristal permanece ereto, suspenso, claro,

límpido. A fricção dos materiais pode ser compreendida como uma essência simbólica expressa nos radicais cavaletes de cristal, dispositivos de display

criados pela arquiteta Lina Bo Bardi para o MASP na avenida Paulista em

1968. A própria denominação cavaletes de cristal apontaria para um interesse

nessa fricção. Afinal, os cavaletes de vidro, e o uso do cristal enquanto

denominação sugere uma licença poética. (PEDROSA, 2015, p.16)

Pontua-se que no discurso da arquitetura o vidro e o concreto são materiais

complementares nessa construção de uma edificação baseada na simplicidade, na moral

arquitetônica, na composição de uma verdade em que o vidro dissolve a fronteira entre

dentro e fora, e ao mesmo tempo revela a verdade dos interiores. Da mesma forma, o

concreto vibra nessa constituição de simplicidade ao ser apresentado bruto, sem

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revestimento, sem falseamento. Nesse caso, ambos os materiais se complementam, não

se friccionam ou se divergem como apresenta a leitura de Adriano Pedrosa.

Outro fato que chama atenção no texto de Pedrosa é a reafirmação constante dessa

ideia de leveza, da composição de uma expografia que faz com que as telas pairem sobre

o espaço e a ação da mesma na dessacralização da aura da obra de arte. A desauratização,

a exibição da “verdade” da obra através do desnudar de seu estrutural é um fato vigente,

no entanto, para além dessa leitura amparada em Walter Benjamin, é necessário observar

que exibir o verso da pintura nessa estrutura de vidro também permite uma outra interação

com obra, podendo ser rodeada como uma instalação ou escultura permitindo um outro

olhar para além da contemplação visual que a pintura bidimensional historicamente

demanda, uma visão engessada e atenta para a imagem(WISNIK,2018). Rodear,

caminhar por entre essas obras suspensas sugere uma posição relacional (BOURRIAUD,

2009) do público como participante dessa museografia. Além disso, observa-se uma

mudança nessa estrutura no que toca a composição da obra Tempo Suspenso (2011) do

artista Marcelo Cidade, exibida nesse espaço da pinacoteca. Trata-se de um cavalete

(estrutura expositiva) que se torna obra, institucionalizando-se e integrando o acervo do

museu. Nesse ponto, o cavalete recebe um status de escultura, um índice que demonstra

tanto um estiramento desse mobiliário proposto pela instituição, tal como a reafirmação

do mesmo como constituição da identidade e da memória institucional. Poder ser visto

como parte do processo de remontagem da identidade do MASP que busca apagar e

“remediar” as ações da gestão do arquiteto Julio Neves que apagou a presença de Lina

Bo Bardi no interior do museu através da retirada dos cavaletes em 1996:

(...)arquiteto Julio Neves, extinguiu sumariamente qualquer rastro da

expografia idealizada por Lina. Ao selar os vidros do grande salão do acervo

com paredes, o novo projeto impediu, assim, qualquer contato visual com o

exterior do prédio. Eliminaram-se também todos os cavaletes de vidro,

prontamente substituídos por paredes divisórias que organizavam as obras “à

moda internacional”, por períodos, estilos ou temas. (AGUIAR,2015.p.93)

O trecho anterior permite observar disputas que ocorrem dentro do MASP no que

toca a constituição da identidade institucional. Enquanto a gestão de Neves buscou

internacionalizar o museu retomando o cubo branco, retirando sua expografia “original”,

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e adequando o museu as demais instituições, usando também como anteparo dessa prática

o discurso da Conservação de Bens Culturais que adentram as instituições museológicas

nos anos 1980-90 (AGUIAR, 2015, p.96), a gestão que assume em 2014 atua em vias de

uma reparação histórica à memória de Lina Bo Bardi. Opta pela remontagem dos

cavaletes em 2015 que foram refeitos enquanto alguns originais permanecem na reserva

técnica do museu. Além da remontagem e a derrubada das paredes que imobilizavam o

espaço da pinacoteca a instituição promove exposições como MASP em Processo (2015),

a remontagem da exposição A mão do povo brasileiro (2016) – curadoria de Lina Bo

Bardi – , Lina Bo Bardi: Habitat (2019), entre outras que demonstram o mergulho da

instituição em si, tornando-se um museu de si mesmo, posição criticada pela historiadora

da arte Aracy Amaral no texto “MASP não pode ficar refém de sua história” publicado

no jornal Estadão em 2015:

Poderia mesmo ser, como escreveu com acerto o arquiteto Francesco Perrota-Bosch (“O risco de sacralizar o museu dessacralizado”) que seja uma

exposição comemorativa, que depois se retira e volta o museu às suas salas

usualmente projetadas. Mas é incompreensível que o MASP deseje ficar com

esse espaço como cogitado por Lina Bo / Pietro Bardi nos anos 1960 e assim

permanecer para sempre. (AMARAL, 2015.n/p)

O MASP é um museu de arte moderna, que se abre a receber exposições

itinerantes com obras contemporâneas, de múltiplas linguagens e suportes que já não

cabem em certos formatos expositivos. A remontagem dos cavaletes soa como uma

tentativa de recompor um tempo histórico como ele realmente foi, não de modo como ele

relampeja no presente como expõe Benjamin (2012, p.243). Trata-se de articular uma

expografia dos anos 1960 buscando certificar sua atualidade sem discutir as tensões e

contradições de sua remontagem.

3. Sobre outras camadas da transparência

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Fotografias da arquiteta Lina Bo Bardi no canteiro de obras do MASP são imagens

que têm emergido desde a comemoração de seu centenário 2015, junto à retomada dos

cavaletes de vidro. Cada vez mais reproduzidas, elas adentram outros circuitos, os da

cultura de massa, extravasam o espaço físico do museu, comercializadas na loja da

instituição como souvenir e exibida temporariamente como cartaz de grande proporção

na estação do Metro Trianon-MASP em São Paulo, local com elevada circulação de

passageiros. Retomar essas imagens e ampliar sua circulação para além do arquivo do

museu indicam o impulso da instituição em remontar sua memória para o público, em

estreitar os laços com a figura da arquiteta, condensando prédio, museografia, coleção e

arquitetura numa personalidade. Ao exibir imagens do canteiro, marca-se a presença de

Lina Bo Bardi junto às estruturas, reforçando sua atuação como arquiteta e autora do

edifício.

O canteiro de obras é um momento da arquitetura que foi historicamente

silenciado, não há uma circulação de imagens desse local tal como as de uma arquitetura

finalizada, amplamente divulgada em diferentes mídias. Jogar luz sobre esse local na

sombra da arquitetura demonstra uma postura de escavar a memória do museu, retornando

às suas entranhas a fim de compor uma estratigrafia em que o canteiro é sua camada mais

profunda. Ao mesmo tempo, se observa uma espetacularização desse local na medida em

que se explora a imagem do fotógrafo Lew Parrella como souvenir, vendido como postal

na loja da instituição. Assim, o canteiro do MASP se torna mercadoria. Essa fotografia

posada distante tanto de um cotidiano da obra, quanto de um ambiente de guarda e

exibição das obras de artes tradicionais tal como o quadro de Van Gogh ao lado da

arquiteta, evoca a ideia de valor de assinatura e certificação, de autoria da museografia

(cavaletes de vidro) e da arquitetura do museu. O ato de trazer à tona as imagens dos

canteiros aponta para uma política institucional do museu que articula novas

sensibilidades da transparência baseada num desejo de tornar as estruturas tanto

arquitetônicas quanto institucionais translúcidas ao público. A vontade de translucidez

não está apenas no uso do vidro na arquitetura e nos cavaletes, se encontra em outros

meios, também não físicos, no ato de transparecer e exibir as experiências do próprio

museu, seja explorando seu acervo e sua documentação de arquivo, exibindo-as em

mostras como Arte da França: de Delacroix a Cèzanne (2015), Acervo em Transformação

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(2018) e Lina Bo Bardi: Habitat (2019), na exibição de imagens dos processos de

montagem de exposições no catálogo Concreto e Cristal (2015), ou/e através da exibição

de fotografias do público feitas no MASP, compartilhadas em redes sociais com a hashtag

do museu, e exibidas na parede da galeria do primeiro andar com o aviso imperativo:

“MASP, FOTOGRAFE, MARQUE, COMPARTILHE.” Imagens que gravitam em torno

dessa arquitetura como uma névoa (WISNIK,2018) que a rodeia.

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2.Referências bibliográficas

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https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.112/22 >. Acesso em:

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Publicado em 23 de dezembro de 2015. Disponível em :

https://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,masp-nao-pode-ficar-refem-de-sua-

historia,10000005545 Acesso em: 25/09/2019.

AMARAL, Luiza B. Experiência e pobreza em Lina Bo Bardi. Dissertação (Mestrado) –

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2016.

AGUIAR, Amanda Ruth Dafoe de. Lina Bo Bardi e a Atualidade do Cavalete de Cristal

/Dissertação (Mestrado). FAUUSP. São Paulo, 2015.

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sobre literatura e história da cultura. 8ª Ed. Revista – São Paulo: Brasiliense, 2012.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

GUINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. – São Paulo: Cia.

das letras, 1989.

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MASP;2015.

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escolhidos de Lina Bo Bardi/ introdução Silvana Rubino. São Paulo : Cosac Naify,

2009 .

______________________. Casas de Vilanova Artigas. In: Lina por escrito. Textos

escolhidos de Lina Bo Bardi/ introdução Silvana Rubino. São Paulo : Cosac Naify,

2009 .

WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas.

São Paulo: Ubu Editora, 2018.