da escola pÚblica paranaense 2009 · procurando contribuir para a transformação das...
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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE
2009
Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4Cadernos PDE
VOLU
ME I
1
A INVISIBILIDADE DA CULTURA NEGRA EM CURITIBA
Paulo V. Carniel1
Ivo Pereira de Queiroz2
Resumo:
O presente artigo focalizou uma importante questão da vida curitibana: como recuperar o lugar do povo negro em nossa sociedade de modo que suas vivências e experiências passem a figurar no ambiente escolar. O processo de silenciamento da cultura negra na história do Paraná, bem como todos os esforços para o branqueamento de nossas tradições e memórias, ainda hoje (re)produz e legitima lógicas sociais etnocêntricas e preconceituosas que se perpetuam socialmente. No intento de compreender e explicar esses eventos, com a interação de alunos do ensino médio, investigou-se a participação destes sujeitos na nossa formação histórica; norteados pela indagação a respeito das razões que teriam promovido sua invisibilidade. Para tanto foram organizadas atividades pedagógicas que oportunizaram aos participantes do projeto de estudo a descoberta de personagens e lugares curitibanos negros com significativa presença na vida da cidade. Desse modo, concluiu-se que ao ativar a discussão e reflexão acerca da temática negra é possível contribuir para repensar o reconhecimento do outro e para superar as construções ideológicas presentes na escola e no imaginário social.
Palavras-chave: Relações Raciais; Branqueamento; Invisibilidade; Identidade.
1. Introdução
Nos últimos anos assistimos à emergência de alguns temas que se tornaram
obrigatórios nos currículos das escolas brasileiras; figura entre eles o ensino de
História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas (Lei Nº 10.639/03)3. Esta recente
obrigatoriedade reflete as demandas e pressões da sociedade civil e dos
movimentos sociais em torno do papel da escola e da educação na formação dos
1 Professor PDE da rede pública de ensino do estado do Paraná.
2 Mestre em educação e doutorando pela UTFPR.
3 A Lei N°10.639/03 tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos currículos
escolares dos estabelecimentos da educação básica nas redes públicas e privadas em todo o país, preferencialmente nas disciplinas de história.
2
cidadãos (ROCHA, 2007, p. 29-30). Tais demandas, entretanto, enfrentam o
desconhecimento e, em alguns casos, a resistência generalizada nos espaços
escolares, o que acaba silenciando sua presença no interior de discursos
hegemônicos sobre a história e a cultura – perpetuando as desigualdades sociais e
dificultando o aprendizado das diferenças culturais, sociais, políticas e históricas que
nos constituem. Diante desse contexto, nos parece cada vez mais legítimo (e
necessário) recuperar o conhecimento histórico sobre as relações étnico-raciais que
formaram nossas sociedades como um modo de superar as construções ideológicas
de dominação racial.
Procurando contribuir para a transformação das desigualdades sociais e
raciais ainda hoje presentes na educação básica, o presente artigo tem o objetivo de
apresentar e analisar um projeto de intervenção pedagógica que visou investigar as
razões da invisibilidade do povo negro na história e cultura da cidade de Curitiba4.
Desenvolvido com alunos do ensino médio, este projeto tentou, especificamente,
oportunizar a compreensão de alguns dos processos locais de construção do
conceito de negro e a discussão crítica dos principais efeitos sociais e culturais
gerados pelo ideário curitibano de cidade européia (branca); a partir dessa iniciativa
sinalizou-se a possibilidade de um trabalho pedagógico capaz de desbloquear vozes
historicamente silenciadas.
Trata-se, em última instância, de contribuir no esforço que visa desnaturalizar
as desigualdades raciais minimizadas pelo mito da democracia racial (SCHWARCZ,
1993, p.241 e 249) e recuperar a história desta população, até então invisível5.
Contudo, para avaliar os efeitos escolares dessa iniciativa foi preciso ultrapassar
seus discursos de fundamentação teórica e observar nas participações dos alunos,
suas produções, opiniões e perspectivas, os resultados práticos da intervenção
pedagógica realizada. O critério utilizado nesse caso foi a percepção dos alunos
frente à pertinência de se repensar o estudo da história, assim como suas próprias
4 Tal projeto foi desenvolvido na disciplina de história com três turmas do ensino médio do Colégio
Estadual Pedro Macedo. Ele é fruto dos trabalhos realizados pelos autores no Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), oferecido pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED) entre os anos de 2009 e 2010. 5 Como observam os autores Ivo Pereira de Queiroz e Gilson Leandro Queluz (2011, p. 186): “Fingir
que não existe racismo no Brasil ou acreditar que somos diferentes dos racistas dos Estados Unidos e da África do Sul, que vivemos num paraíso racial e que a presença africana é irrelevante, neste país, é um fato: muita gente no Brasil pensa deste modo. Mas as educadoras e os educadores que verdadeiramente se comprometem em construir um país de cidadãs e cidadãos, uma democracia, não têm o direito de reproduzir estes mitos”.
3
histórias, a partir da constatação da presença dos negros africanos e seus
descendentes em nosso cotidiano. Afinal, como foi possível observar ao longo desse
estudo, uma real incorporação de novas atitudes no espaço da escola exige, antes
de tudo o mais, reencontrar na comunidade escolar local, em suas histórias,
vivências e memórias, os motivos que tornaram indispensável descobrir essa “outra”
história, esses “outros” sujeitos, reencontrando o próprio lugar de suas produções
culturais.
Abordaremos na seção seguinte algumas das possibilidades e limites trazidos
pela legislação e pela ação pedagógica considerando o contexto de hierarquização
racial em que se constituiu a sociedade brasileira atual.
2. Os desafios nossos de cada dia...
O modelo de vida calcado na matriz européia dificultou sobremaneira nossa
convivência com a diferença. Aliás, o pensamento ocidental, é, historicamente,
excludente – recordemos que na antiguidade Platão queria destituir o diferente de
qualquer legitimidade: era cópia do modelo verdadeiro! (FIGURELI, 2009, p. 546).
Do mesmo modo esse projeto de modernidade eurocêntrica racionalizou e
padronizou as relações sociais, conforme nos ensinou Weber (2000, p. 147), ao criar
modelos universais de dominação burocrática da vida cotidiana. Pautados na
formalidade e na mercantilização, estes padrões, na vida real, ao invés de promover
relações igualitárias, reforçaram a hierarquização e a exclusão social.
Desse modo, a sociedade brasileira que se constituiu a partir da introjeção de
valores europeus, foi construindo perspectivas e identidades na contramão de sua
realidade de um país pluricultural e multiétnico6. Cabe a escola, agora com o
respaldo legal (Lei N°10.639/03 e outras determinações oficiais afins), pensar o
resgate de experiências culturais do povo negro, a partir de uma pedagogia crítica
6 Os estudos pós-coloniais na América Latina tem insistido nessa questão ao denunciar o modo como
a herança do período colonial impregna na vida social dos países (des)colonizados muito além das possíveis dependências econômicas, políticas e sócio-culturais; conforme Porto-Gonçalves “a colonialidade do saber nos revela, ainda, que, para além do legado de desigualdade e injustiça sociais profundos do colonialismo e do imperialismo, já assinaladas pela teoria da dependência e outras, há um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias” (PORTO-GONÇALVES, 2005, p. 10).
4
da diversidade que promova a visibilidade e a valorização do “outro”, e produza uma
mudança cultural, operando no sentido de superar o racismo e a discriminação
presentes nas entrelinhas.
A aprovação da Lei N° 10.639/03, que inclui o estudo de temáticas africanas e
afro-brasileiras nos currículos, foi celebrada pelos movimentos e intelectuais da área
como uma possibilidade de abrir essa discussão nas salas de aula7. Embora a tarefa
seja desafiadora, pensamos a sala de aula como um espaço privilegiado para
discutir preconceitos e imagens que continuam atuando no plano simbólico e que
dificultam a valorização do passado e das produções negras.
Sabidamente, o ideário do branqueamento8 marcou profundamente a nossa
história. O brasilianista Thomas Skidmore relata que João Batista de Lacerda, diretor
do Museu Nacional, “foi o único latino-americano a apresentar um relatório (Os métis
ou Mestiços do Brasil) no I Congresso Universal de Raças, em Londres em 1911.”
(SKIDMORE, 1976, p. 81). Na oportunidade Lacerda defendeu a tese de que o
negro desapareceria por meio da miscigenação com pessoas brancas. “Chegou
João Batista de Lacerda a afirmar que no Brasil „já se viram filhos de métis
apresentarem, na terceira geração, todos os caracteres físicos da raça branca.‟”
(SKIDMORE, 1976, p.82). No entanto, sua projeção de que o Brasil ficaria branco no
prazo de cem anos irritou a intelectuais e políticos anti-negros que o criticaram: “a
tese de João Batista de Lacerda foi criticada, todavia, por brasileiros, furiosos com a
sua estimativa de tempo – achavam muito longo um século.” (SKIDMORE, 1976,
p.83).
A imagem de uma sociedade paranaense que se constrói a partir da
imigração européia, por exemplo, negligenciou a participação dos negros africanos e
seus descendentes como sujeitos históricos relevantes. Assim, considerando o
respaldo legal e a conjuntura histórica favorável para as discussões a respeito da
pluralidade e da diversidade cultural; discutiu-se a respeito das razões que teriam
promovido tal invisibilização, pois, a naturalização dessa invisibilidade ainda opera
7 Segundo, Paulo Vinícius Baptista da Silva, a entrada em vigor da Lei N°10.639/03 “possibilitará aos
alunos de modo geral o reconhecimento do processo civilizatório dos povos africanos e aos alunos negros em particular a construção de identidade pautada em aspectos de positividade sobre seu grupo de pertença e sobre si mesmos” (SILVA, 2001, p. 15). 8 A partir de fins do século XIX, no contexto da ideologia racial, construiu-se a idéia de que o
branqueamento seria a única solução para os problemas brasileiros dada a “incapacidade” do negro. Dessa forma, o branqueamento da população brasileira em determinado momento tornou-se política de Estado, materializada em forma de incentivo à imigração.
5
como um “tumor” em nosso corpo social9; revelando um descompasso entre os
discursos e a dura realidade dos que não tiveram suas experiências contempladas
pela história.
A próxima seção deste estudo focalizará o conceito de reconhecimento e sua
importância no tocante à realidade da pessoa negra, tendo em vista uma sociedade
brasileira emancipada.
3. Reconhecer é preciso...
A passagem clássica de Hegel, na Fenomenologia do Espírito, indica que “a
autoconsciência alcança a sua satisfação somente em outra consciência”; desse
modo, pode-se entender que consciência de si “só é enquanto ser reconhecido”
pelos outros (HEGEL, 1992, p. 144-145). Admitindo-se esses pressupostos, pode-se
inferir que o processo de colonização moderna caracteriza-se como particularmente
perverso para com o africano escravizado e desenraizado, em um aspecto crucial:
na perda de sua identidade - pensada como autoconhecimento e sentimento de
pertença ao grupo de origem. Com efeito, na modernidade, e no bojo do universo
racial colonialista, a universalização da dúvida sobre a existência ou não de alma no
corpo negro, se estabelece e repercute de modo trágico. O “ser negro” bem como o
sentimento de inferioridade vão sendo histórica e socialmente construídos,
legitimados e incorporados de sorte que as diferenças e a hierarquização racial
passam a ser tomadas com absoluta naturalidade (SANTOS, 2005, p. 45).
Desse modo, se no processo de construção das identidades é indispensável o
reconhecimento por parte do outro (naquele sentido hegeliano de relação recíproca),
o sistema escravista moderno, conforme Frantz Fanon, nega qualquer possibilidade
de emancipação. Com efeito, sendo a motivação central do escravismo meramente
econômica, o senhor não esperava reconhecimento por parte do negro, mas tão
somente seu trabalho. O negro por seu turno busca como saída o branqueamento,
único espaço que lhe permite pensar e agir como senhor (FANON, 2008, p. 183).
Por isso, o mundo do branco passa a ser sua referência e lugar de possível
9Metáfora usada pelo professor Ivo Pereira de Queiroz na introdução de “Consciência negra e
educação tecnológica” (QUEIROZ, QUELUZ, 2011, p. 171).
6
reconhecimento, esperando que este passing10, promova seu sonho - quando na
prática é mais uma armadilha, pois além de investir em um branqueamento que abre
espaços para poucos “dificulta a formação do sentimento de solidariedade
necessário em qualquer processo de identificação e de identidades coletivas”
(MUNANGA,1999, p. 96). O sociólogo Oracy Nogueira acompanhou de perto
situações de passing nos EUA e, a respeito desta experiência informa que
Nos Estados Unidos, a fuga do passing somente é possível a negros de tal modo brancos que sua filiação racial apenas pode ser conhecida através de documentos de identidade e provas circunstanciais. Indivíduos em tais condições podem deslocar-se para um meio estranho, mudar de nome e passar a viver como brancos, expediente que ora é usado em caráter temporário, ora como mudança definitiva de destino, não obstante conflitos mentais que isto acarreta, e as sanções a que estão sujeitos os que decidirem por tal orientação no caso de se lhes descobrir a origem. (NOGUEIRA, 1985, p. 80-81).
Portanto, pensar as relações raciais no Brasil remete necessariamente à
colonialidade e todo o processo “civilizatório” que foram negando os valores
africanos e afro-descendentes. Remete igualmente à estética eurocêntrica de
modernidade que silenciou a participação negra na nossa formação histórica e
mascarou a legitimação de um racismo que promoveu sentimentos de inferioridade e
naturalização das desigualdades11. Desse modo, em tempos de consensos sobre
diversidade étnica e cultural, parece igualmente consensual a consideração de que o
preconceito racial é parte estruturante da realidade brasileira. Deveras, o
preconceito opera, muitas vezes, inclusive nas esferas institucionais que
cotidianamente “colonizam” a vida por meio de uma “racionalidade instrumental”,
para utilizar uma expressão de Habermas (2002), que simula desconhecer as
desigualdades raciais que as produziram.
As chamadas pela valorização das identidades se confundem no imaginário
nacional popular com a estética do consumismo generalizado e do sucesso
individual a qualquer preço. Isso ocorre ao ponto de naturalizar, por exemplo, a
10
Refere-se à incorporação e aceitação do negro no mundo branco. 11
Conforme Hilton Costa, organizado no século XIX, “o racismo científico era uma doutrina que defendia a existência de raças humanas distintas entre si, apesar de poderem se combinar, o resultado dessa ação generalizante era considerado ruim, e que tais diferenças eram cientificamente passíveis de comprovação, definindo de modo definitivo a superioridade de uns e a inferioridade de outros” (COSTA, 2007, p. 132-133).
7
tendência de atletas futebolistas negros, quase invariavelmente, na primeira
oportunidade (no momento de um bom contrato com o clube) ostentarem correntes
de ouro, carros importados e namoradas loiras – geralmente nessa ordem mesmo.
Na contramão do resgate de identidades autênticas, vamos “mimosamente” sendo
usados para negar nossa própria originalidade (ANDRADE, 1984, p. 87).
Construiu-se assim um racismo invisível, a ponto de em muitos casos e
localidades silenciar totalmente a contribuição da cultura negra na formação de
identidades (SANTOS, 2005, p. 111). A sociedade paranaense, em particular a
curitibana, revelou-se um cenário apropriado para análise da problemática, uma vez
que por essas bandas, o descompasso entre discurso e práticas na consideração
das trocas culturais é exemplar. Os clichês recorrentes, tais como “cidade européia”,
“paraíso das etnias”, dentre tantos outros que ostenta a capital paranaense,
ajudaram a mascarar uma realidade desigual e contribuíram para ocultar por
completo a presença de grupos e populações que não representam o modelo de
cidade (“ideal”) que por aqui se pretende produzir – comprometendo a construção de
identidades, uma vez que no plano simbólico opera no sentido de reforçar a estética
eurocêntrica que historicamente tem o branco como valor e como modelo de
modernidade.
Desse modo, as promessas de reconhecimento sinalizadas pelos referenciais
modernos contribuíram de modo geral para reproduzir a marginalização do povo
negro. Vale lembrar aqui todo o esforço dos teóricos frankfurtianos para demonstrar
o malogro que se tornou o projeto de emancipação capitaneado pela razão
iluminada. Essa racionalidade, aliás, atuou no sentido anti-humano, uma vez que é
acrítico, retórico e complacente, nas palavras de Paul Gilroy. O autor de O Atlântico
Negro defende que a mera textualidade “esvazia a ação humana e decreta a
fragmentação e a morte do sujeito” (GILROY, 2001, p.166). Além disso, exclui outras
formas de comunicação e expressão típicas da negritude, afirma ainda o historiador
inglês.
A seguir estaremos apresentando o projeto “Cultura Negra” na interação com
alunos(as) e professores(as) de diferentes escolas da rede púbica; procurando,
desse modo, narrar alguns momentos dessa experiência pedagógica que julgamos
significativos para a presente análise.
8
4. Enfrentando os desafios...
“Nossa, eu nem tinha percebido que era negro!”. Essa revelação, nas
palavras de um aluno durante um dos momentos de discussão em sala de aula
sobre as produções de negros musicistas em Curitiba, revela como a ideologia do
branqueamento marcou a nossa formação histórica e, ao mesmo tempo, o quanto o
resgate de referenciais positivos pode representar para melhorar a auto-estima dos
negros – bem como para a própria revisão de suas identidades. Igualmente
construtivo revelou-se o trabalho em rede (GTR)12 com um grupo de professores de
escolas estaduais13; seja nas contribuições e sugestões que deram à temática da
“Cultura Negra”, na socialização de experiências e expectativas, além das
acaloradas discussões que proporcionaram em inúmeros momentos.
Não faltaram sugestões para aperfeiçoar esse projeto e efetivá-lo nas salas
de aula – foi particularmente animador observar que no decorrer do trabalho, uma
professora já se referia à “Cultura Negra” como “nosso projeto”. Ao bem da verdade
foi um grupo pré-disposto ao debate (considerando que participavam
espontaneamente), facilitando sobremaneira o bom andamento do trabalho. Uma
das cursistas, inclusive já militava na causa negra e se encontrava no momento
engajada em outros grupos e projetos de estudo – suas intervenções mereceram
destaque, contribuindo significativamente para todo o conjunto das discussões. Esta
experiência bem sucedida, entretanto, ainda esperava o grande desafio que tinha
pela frente.
De fato, não foi tarefa fácil desenvolvê-la durante as aulas. Colegas de
trabalho, pais e familiares estranharam com muita freqüência os temas propostos.
Mesmo entre os alunos pode-se observar enorme resistência (e até hostilidade) em
algumas atividades a respeito de manifestações culturais negras. O esforço em
apresentar e justificar com clareza as questões trabalhadas, articulando-as ao
próprio exercício da compreensão histórica, vez por outra encontrou reações
12
Como atividade integrante do PDE, com o título de Cultura Negra, um grupo de trabalho em rede (GTR) foi desenvolvido no período de 2010, com professores da rede estadual de ensino. 13
Um total cinco professores e professoras participaram ativamente desta etapa do estudo contribuindo com estudos, pesquisas e experiências profissionais oriundas de diferentes localidades do Paraná.
9
contrárias – “Me recuso continuar assistindo isso!”, disse um aluno que
acompanhava ao filme Besouro14 na TV Multimídia, disponível na sala de aula.
Esses recorrentes incômodos e incompreensões exigiram momentos de intervalos e
até recuos estratégicos para retomadas do assunto, conversas, esclarecimentos... E
assim mesmo ouviu-se: “Apague isso do quadro professor!” (o pedido fazia
referência ao termo “Exu”, ali escrito com a intenção de contextualizar os duros
ataques e a desqualificação provocada pelo cristianismo a este mensageiro dos
Orixás, tão caro e significativo para o povo Iorubá, de raiz africana). Em outra sala a
reação foi semelhante: “Você tem parte com esse „demo‟, professor?”. E antes que
houvesse tempo para retomar qualquer conversa explicativa, o representante da
turma completou a participação da colega com mais uma pergunta: “Isso faz parte
dos conteúdos de história?”.
Desnecessário tecer aqui maiores comentários a respeito do grau de
intolerância para com o diferente com que ainda nos deparamos mesmo entre os
jovens. Entretanto, se o quadro descrito acima é preocupante, por outro lado reforça
o argumento a respeito da legitimidade e urgência da proposta, bem como das
discussões acerca dos diversos aspectos afins à temática negra. Nesse sentido
relativizamos os insucessos, uma vez que a participação de muitos alunos
correspondeu às expectativas. Inúmeros momentos de interação, discussão e troca
de experiências do grupo de estudantes que aceitaram o projeto foram proveitosos e
instigantes.
A abordagem dos aspectos referentes ao continente africano foi facilitada
pelas inúmeras notícias e imagens no pós Copa do Mundo de Futebol realizada na
África do Sul que ainda repercutiam na mídia. Discutiu-se exploração do continente
(inclusive por parte da Federação Internacional de Futebol, a poderosa FIFA);
indústria cultural e a apropriação das produções culturais locais pelo capital – como
o caso da música tema da abertura da copa usada e abusada pela Coca-Cola
através da expressão: “dê-me liberdade”. Da mesma forma, observou-se que as
belas imagens televisivas sobre a África do Sul revelaram o descompasso entre o
imaginário de miséria e as possibilidades reais de um continente historicamente
espoliado.
14
O filme “Besouro”, lançado em 2009 sob a direção de João Daniel Tikhomiroff, aborda as hierarquizações raciais no contexto baiano pós-abolição (1920) a partir dos significados sociais, políticos e culturais da capoeira na manutenção das identidades afro-brasileiras.
10
Nas discussões a respeito das questões raciais domésticas, o uso dos
laboratórios do Paraná Digital favoreceu o trabalho, através da constituição de
páginas na plataforma wikispaces15. Nesse ambiente virtual, os filmes, textos e
músicas que tratavam da temática negra, renderam também bons debates a respeito
do preconceito e da desqualificação em geral da cultura e da estética africana e afro-
descendente. Com o uso de recursos áudio visuais, na página inicial editou-se uma
atividade com o objetivo de discutir a presença do racismo nas relações do
cotidiano.
Nos dois fóruns abertos: “Permanências”, a propósito do filme Quanto vale ou
é por quilo16 e “A carne”, a música com interpretação da Elza Soares acompanhada
da banda Farofa Carioca; 49 alunos contribuíram com postagens e 586 visitas foram
realizadas nesta página.
Figura 1: Página inicial Fonte: <HTTP://www.curitibaparatodos.wikispaces.com>.
15
As plataformas wikis são, tipicamente, websites colaborativos. Conforme a Professora Gílian Barros da UFPR, enquanto ferramenta desenvolvida para as plataformas WINDOWS e LINUX, as wikis geralmente apresentam interfaces e navegabilidades agradáveis, leves e de fácil manuseio. A wiki em análise foi desenvolvida na plataforma wikispaces durante a implementação do projeto pedagógico que realizamos junto ao Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) oferecido pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná – ela está disponível no endereço eletrônico: <www.curitibaparatodos.wikispaces.com>. 16
Do diretor paranaense Sérgio Bianchi, lançado em 2005, o filme “Quanto vale ou é por quilo?” discute, entre outras coisas, os privilégios e mecanismos de dominação racial e social existentes na sociedade brasileira.
11
Figura 2: Fórum de discussão Fonte: <HTTP://www.curitibaparatodos.wikispaces.com>.
Mas foi a pesquisa sobre personagens e produções de negros paranaenses
que mais envolveu e entusiasmou os alunos participantes; principalmente pela
surpresa da descoberta da invisibilidade dos sujeitos negros e de suas produções
materiais e culturais – como foi o caso do músico Waltel Blanco, que sofreu inclusive
tentativas de branqueamento por parte da Rede Globo, onde por longo tempo
prestou valiosas contribuições17. Abaixo segue o fórum onde os alunos publicaram
suas pesquisas e considerações.
Figura 3: Curitiba para todos Fonte: <HTTP://www.curitibaparatodos.wikispaces.com>.
17
Walter Branco é um músico, instrumentista e arranjador paranaense cuja identidade afro-brasileira foi frequentemente invisibilizada pelos veículos de comunicação. Segundo Menandro, “seu nome é omitido, deliberadamente ou não, em muitas faixas cujas músicas ele emprestou seu talento (...) até seu nome é alterado quando o produto aparece como „internacional‟. Waltel aceitou ter vários pseudônimos na carreira: W. Blanc, Magalhães Pato, Bianco, Airto Fogo, William Hammer, Tito Velasquez” (MENANDRO, 2008, p. 13).
12
Oportunizou-se também um intercâmbio entre os alunos participantes em uma
construção colaborativa, na medida em que possibilitou a produção compartilhada
nas postagens de pesquisas, inserção de imagens vídeos e áudios, mas
principalmente nas participações dos fóruns de discussão (este que figura abaixo
com as seguintes questões: “Antes da pesquisa você já conhecia esses
personagens e essas instituições? Considera o que descobriu parte importante da
nossa história? Em sua opinião, por que esses personagens não foram
valorizados?).
Figura 4: Curitiba para todos? Fonte: <HTTP://www.curitibaparatodos.wikispaces.com>.
A criação da página que segue foi iniciativa dos alunos do 3º ano Integrado
para postagens de arquivos com produções de áudio sobre a questão da
diversidade.
Figura 5: Web Rádio da diversidade Fonte: <HTTP://www.curitibaparatodos.wikispaces.com>.
13
Desse modo, se discutiu racismo, branqueamento, construção de identidades
positivas, lugares da memória, Curitiba de “todas” as etnias, etc. Foi igualmente mais
uma oportunidade de perceber o nosso desconhecimento a respeito do povo negro
que ajudou a construir nossa cidade e não foi devidamente valorizado por essa
participação. Essa descoberta do encobrimento (intencional, na maioria das vezes)
da diferença, da construção de identidades de modo alienante, revelou-se como
parte do próprio processo do reconhecimento da diferença.
Em outro momento, e de posse da cópia de atividade que tratava do resgate
da memória e da história em pesquisa junto aos familiares, um aluno do terceiro ano,
falava com empolgação da bisavó negra (residente na cidade de Ponta Grossa),
casada com branco, e o quanto de histórias ela poderia contar – “Tem até árvore
genealógica completa da família!”, dizia ele. Sua intenção era trazer as informações
que obteria no próximo feriado em que fosse visitá-la. Não trouxe. Foi à praia no
feriado. Assim passou novembro. O final do ano chegou rápido e com ele os
inúmeros compromissos de sempre que deixaram a prática pedagógica com uma
sensação de “inacabada”. Mas essa é uma ilusão passageira, pois quem se ocupa
do ensino não pode carregar a fantasia positivista18 de um ponto final para o ensino;
o mais adequado parece ser a compreensão de que ele simplesmente se propaga
para além do controle do professor, além do espaço da escola.
De qualquer modo, para nossa reflexão esses resultados parciais revelam a
necessidade de sempre retomar a questão racial (que não pode e nem deve se
esgotar em um projeto, em um ano ou em apenas um grupo de estudos) como parte
integrante dos currículos escolares – como sugere a nova legislação. Nesse sentido,
o resultado deste projeto não pode (ainda) ser mensurado; o que se observou são
apenas alguns efeitos positivos que ele acaba de produzir sobre a própria
visibilização das temáticas africanas e afro-descendentes no contexto escolar em
que foi desenvolvido. A propósito, nesse momento vem sendo discutido e construído
para os três anos do ensino médio, entre os professores do turno noturno do Colégio
Pedro Macedo, um novo projeto, agora sobre diversidade e cidadania.
18
A partir do pensamento de Augusto Comte (1798-1857), o positivismo acreditava na evolução linear e natural da humanidade, respaldado no progresso científico do século XIX.
14
5. Conclusão
Ao longo do desenvolvimento do projeto de intervenção pedagógica escrito na
seção anterior, foi possível perceber que a questão do reconhecimento das histórias
e culturas locais da população negra tem o potencial (político e educacional) de
despertar as pessoas para combater a indiferença e enfrentar os discursos
ideológicos que perpetuam as desigualdades sociais e raciais. Isso porque, a
despeito dos conflitos e resistências ainda existentes na comunidade escolar, um
espaço de diálogo pode ser aberto; a partir dele, como se espera, poderão surgir
novas e criativas formas de conviver com as diferenças e com o diferente. Portanto,
observou-se que o reconhecimento do outro, a redefinição de identidades e a
mudança nas relações raciais, passam necessariamente pelo resgate dos contextos
locais de vida e interação. O que pressupõe um ensino de história plural e aberto às
diferenças; melhor dizendo, uma ressignificação de nossa história e de nossas
tradições de modo a abrir espaços para as vozes e memórias dos sujeitos negros
presentes na realidade social, cultural e histórica dos próprios alunos.
Desse modo, o desafio trazido por tal projeto parece ser o de manter sempre
presente a idéia de reforçar o sentimento de respeito e solidariedade entre os
diferentes segmentos étnico-raciais e auxiliar na construção de identificações
positivas com nossas matrizes históricas e culturais; pois estas têm relação com as
imagens e representações que configuram o imaginário social em que vivemos –
“com os adultos que educam, com o lugar social em que nascemos e vivemos, com
o chão em que pisamos, com os recursos de que dispomos para viver”, como aponta
Maria Clivati Capelo, “somos produtos das relações sociais que edificamos ao longo
de nossas trajetórias de vida” (CAPELO, 2008, p. 5).
Portanto, negros e brancos, a partir de uma “autêntica comunicação”, podem
se permitir pensar um “futuro sustentável”, conforme imaginou Frantz Fanon (2008,
p. 29), superando as experiências passadas que os dividiam. Nesse sentido,
independente dos contextos e contradições sociais, o estudo da história pode
prestar valiosa contribuição (a partir da temática da diversidade como parte
integrante do currículo) porque permite discutir as construções ideológicas de
15
dominação racial que operam no sentido de reproduzir práticas discriminatórias no
cotidiano escolar.
16
Referências:
ANDRADE, C. D. O corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.
CAPELO, M. R. C. Quando a desigualdade cultural se transforma em
desigualdade social: primeiras aproximações. Londrina: Mimeo, 2008.
COSTA, H. “A vida do senso comum: do racismo científico do pós-abolição ao dia-a-
dia contemporâneo” in COSTA, H.; SILVA, P. V. B. (Orgs.). Notas de história e
cultura afro-brasileiras. Ponta Grossa: UEPG, 2007.
FANON, F. Pele negra, mascaras brancas.Trad. de Renato da Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.
FIGURELI, R. “Platão e os primórdios da estética” in MARÇAL, J. (Org.). Antologia
de textos filosóficos. Curitiba: SEED, 2009.
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