da efetividade das normas (in)constitucionais*

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v.3, n. 5, jan /jun. 1999 39 DA EFETIVIDADE DAS NORMAS (IN)CONSTITUCIONAIS * FRANCISCO DAS NEVES BAPTISTA Sub Procurador Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro Introdução Apesar de reiteradamente debatido ou, quando menos, tangenciado, em variados estudos, inclusive em obras de fôlego - como as já clássicas Aplicabilidade das Normas Constitucionais, de José Afonso da SILVA e O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, de Luiz Roberto BARROSO -, persiste, em parte importante, intranqüilo o problema da efetividade das regras da Lei Maior. Avultam as questões respectivas quando se multiplicam as reformas parciais desta e se estabelecem, conseqüente- mente, confrontos sucessivos entre leis e atos administrativos, anteriores e posteriores às infindáveis emendas à Carta Política nacional (dezenove - e, brevemente, vinte -, em apenas dez anos de vigência desta). A cada uma dessas alterações reabrem-se as indagações em torno da identificação das normas infraconstitucionais recepcionadas ou revogadas e da conseqüente subsistência - a título de direito adquirido ou outra designação qualquer - ou desfazimento das situações jurídicas formadas sob o regime anterior, bem assim das relações ditas de trato sucessivo ou continuado, formalmente abrangidas pelas disposições supervenientes. No cumprimen- to da espinhosa tarefa de distinguirem-se tais regras, situações e relações, ressurge a questão de saber-se, na leitura dos novos e específicos textos, como harmonizá-los com o conjunto do sistema constitucional, tendente a converter-se em desarranjada colcha-de-retalhos. Uma das mais árduas questões que se põem, nesse quadro, é a da natureza da invalidade da legislação em face da Constituição: a lei incons- * Tese apresentada ao 2º CONGRESSO BRASILEIRO DE ADVOCACIA PÚBLICA São Lourenço/MG - 11 a 13 de dezembro de 1988

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v.3, n. 5, jan /jun. 1999 39

DA EFETIVIDADE DAS NORMAS (IN)CONSTITUCIONAIS*

FRANCISCO DAS NEVES BAPTISTA Sub Procurador Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Introdução Apesar de reiteradamente debatido ou, quando menos,

tangenciado, em variados estudos, inclusive em obras de fôlego - como as já clássicas Aplicabilidade das Normas Constitucionais, de José Afonso da SILVA e O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, de Luiz Roberto BARROSO -, persiste, em parte importante, intranqüilo o problema da efetividade das regras da Lei Maior. Avultam as questões respectivas quando se multiplicam as reformas parciais desta e se estabelecem, conseqüente-mente, confrontos sucessivos entre leis e atos administrativos, anteriores e posteriores às infindáveis emendas à Carta Política nacional (dezenove - e, brevemente, vinte -, em apenas dez anos de vigência desta).

A cada uma dessas alterações reabrem-se as indagações em torno da identificação das normas infraconstitucionais recepcionadas ou revogadas e da conseqüente subsistência - a título de direito adquirido ou outra designação qualquer - ou desfazimento das situações jurídicas formadas sob o regime anterior, bem assim das relações ditas de trato sucessivo ou continuado, formalmente abrangidas pelas disposições supervenientes. No cumprimen-to da espinhosa tarefa de distinguirem-se tais regras, situações e relações, ressurge a questão de saber-se, na leitura dos novos e específicos textos, como harmonizá-los com o conjunto do sistema constitucional, tendente a converter-se em desarranjada colcha-de-retalhos.

Uma das mais árduas questões que se põem, nesse quadro, é a da natureza da invalidade da legislação em face da Constituição: a lei incons-

* Tese apresentada ao 2º CONGRESSO BRASILEIRO DE ADVOCACIA PÚBLICA São Lourenço/MG - 11 a 13 de dezembro de 1988

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titucional é absolutamente nula, relativamente nula ou anulável? E ainda antes: o ato administrativo-normativo cabe nestas duas últimas categorias - nulidade relativa e anulabilidade? Quid, então, daquelas situações jurídicas formadas, ou mesmo em formação, sob norma ulteriormente considerada inconstitucional, ou revogada por emenda constitucional sobrevinda?

A resposta a tais indagações diz diretamente com a efetividade (“qualidade de efetivo, atividade real, resultado verdadeiro” 1) dos comandos constitucionais, para além da questão de sua pura e simples eficácia (“qua-lidade ou propriedade de eficaz, eficiência”, isto é, “ação, força, virtude de produzir efeito” 2). Noutras palavras, entronca em cogitações sobre a própria atuação da normatividade constitucional na vida da sociedade, ultrapassando a problemática estritamente técnica de sua presença e função no mundo jurídico. Transcende à discussão das relações hierárquicas entre normas, para estender o debate ao impacto dessas relações no mundo dos fatos.

Trata-se de matéria a reclamar extensa pesquisa e aprofundada meditação e para a qual já se têm aventado soluções diversas, inclusive legislativas. Afigura-se possível, porém, amealharem-se algumas achegas, porventura úteis, senão ao deslinde, pelo menos à correta colocação dos te-mas aí envolvidos. Este é o modesto propósito das linhas que se seguem.

I - Os mecanismos auto-efetivantes da Constituição

Por mais que severas - e pertinentes - censuras se possam fazer ao normativismo de KELSEN, a pelo menos duas criações do Mestre de Viena é impossível negar-se mérito: ao construto teórico da pirâmide normativa e à afirmação intrépida da natureza de conjunto de normas da Constituição, espancando definitivamente a idéia de nela vislumbrarem-se, tão-só, “decla-rações de princípios”. Parece hoje assentado, na doutrina, o cunho normativo, até mesmo, das manifestações preambulares dos textos constitucionais 3 e das normas ditas “programáticas” - que “não sendo operantes relativamente aos interesses que lhes constituem objeto específico e essencial, (...) produ-zem importantes efeitos jurídicos” 4, até por serem geradoras, no mínimo, de

1 FERREIRA. Novo dicionário da Língua Portuguesa, p. 620.

2 Ibid., loc. cit.3 Cf. REALE. O estado democrático de direito e o conflito das ideologias, p. 1-4.4 SILVA. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 151.

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“um direito subjetivo ‘negativo’ de exigir do Poder Público que se abstenha de praticar atos que contravenham os seus ditames” 5 - e “de eficácia contida”, dependentes de lei regulamentadora.

Sintomática dessa inteligência foi, na Carta de 1988, a introdução, já também fartamente discutida, de novos instrumentos de exigência dos direitos nela definidos, ao lado do mandado de segurança, do habeas corpus e da ação popular preexistentes - a saber, o mandado de injunção e o habeas data. Particularmente o primeiro, engendrado especialmente para exeqüibilidade das normas pendentes de regulamentação - e que, a despeito dos esforços dos Órgãos superiores do Judiciário no sentido de torná-lo inoperante 6, lá permanece, no art. 5º, nº LXXI, constitucional: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exer-cício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” - traduz com ênfase o esforço do legislador constituinte, no sentido de combater a inoperância dos comandos do Estatuto Político federal.

Com efeito, o surgimento do instituto parece corresponder a uma exigência de funcionamento do sistema constitucional, pela força jurisdicio-nal, pondo limites ao tantas vezes hostilizado princípio da separação dos poderes. Em percuciente estudo, repetidamente citado em seus votos ven-cidos, no Plenário do Egrégio Supremo Tribunal Federal, o Ministro CARLOS VELLOSO, forte em ensinamentos de CELSO AGRÍCOLA BARBI, enfatizou ter o mandado de injunção “caráter substancial, ao contrário do mandado de segurança que é mais instrumento processual de realização, de direito líquido e certo, isto é, direito subjetivo, direito subjetivo que decorre de uma relação fático-jurídica, fato-direito objetivo, em que os fatos devem estar comprovados de plano. O mandado de injunção, por ter caráter substantivo, faz as vezes da norma infraconstitucional ausente e integra o direito ineficaz, em razão da ausência dessa norma infraconstitucional, à ordem jurídica (...).” 7. Simi-

5 BARROSO. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 117.6 Cf. CLÈVE. A teoria constitucional e o direito alternativo. ADV Advocacia Dinâmica : Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, n. 1, p. 48, 1994; cp. SILVA. Aplicabilidade, cit. p. 165-166.

7 Cf. STF - Pleno - MI nº 362-0-RJ - 01/08/96 - rel. (para o acórdão) Min. FRANCISCO REZEK, in Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 85, n. 732, p. 142, out. 1996. A orientação majoritária, capitaneada pelo Min. MOREIRA ALVES em questão de ordem levantada no MI no 107-DF (in RTJ, n. 133[1], p. 11-60), contraditada pelo Min. CARLOS VELLOSO e traduzida no deferimento “parcial” do mandado de injunção, “para comunicar ao Poder Legislativo sobre a mora em que se encontra, cabendo-lhe tomar as providências para suprir a omissão”, já se repetira em numerosos acórdãos, como, por exemplo, o proferido no MI nº 430-DF, relatado por designação, em 26/05/95, pelo Min. MAURÍCIO CORREA (cf. DJU de 18/08/95, p. 24893).

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larmente, assinalou o emérito BARBOSA MOREIRA, ainda nos albores da aplicação do remédio, que “[c]onceber o mandado de injunção como simples meio de apurar a inexistência da ‘norma regulamentadora’ e comunicá-la ao órgão competente para a edição (o qual, diga-se entre parênteses, presumi-velmente conhece mais do que ninguém suas próprias omissões...) é reduzir a inovação a um sino sem badalo. Afinal, para a ciência de algo a quem quer que seja servia - e bastava - a boa e velha notificação.” 8

É bom de ver que injunção, em vernáculo - do latim iniunctionem 9, a sua vez de iniungere, in + iungere (da mesma raiz grega de ζευγνυµι , “atre-lar, unir, atar, sujeitar” 10) -, significa “imposição, obrigação imposta” 11: traz o sentido geral de “ordem, comando”, mas somente a inserção constitucional lhe deferiu conotação jurídica específica. Por isso mesmo é que, à exceção do anoso elucidário de DE PLÁCIDO E SILVA 12, os glossários jurídicos, em geral, não se demoram no exame do verbete isolado, cuidando, tão-só, do writ constitucional, à luz da disposição da Lei Máxima 13. De resto, a origem inequivocamente anglo-saxônica dessa figura jurídica 14 - cujo nome, no direito europeu continental, surge com significação nitidamente diversa 15

- desautoriza por completo a inocuidade a que, data venia, a reduziu nossa Corte Maior.

8 MOREIRA. S.O.S. para o mandado de injunção. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11/09/909 Cf. MACHADO. Dicionário etimológico da língua portuguesa, v. 2, p. 1294.10 PEREIRA. Dicionário grego-português e português-grego, p. 252.11 AULETE. Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa, v. 3, p. 1055.12 SILVA. Vocabulário jurídico, p. 472.13 Assim NUNES. Dicionário de tecnologia jurídica, p. 572; ACQUAVIVA. Dicionário jurídico brasileiro Acquaviva, p. 926-928; BASTOS. Dicionário de direito constitucional, p. 115.14 A possibilidade de influência, talvez - data venia - equivocadamente enfatizada, da criação portuguesa da inconstitucionalidade por omissão (art. 283 da Constituição de Portugal; cf. ACQUAVIVA, op. et loc. cit.) contribuiu, decerto, para a desarticulação do instituto.

15 “A expressão mandado de injunção, extraída do direito francês e italiano, vem sendo em-pregada na doutrina como correspondente a mandado de pagamento ou mandado de entrega, utilizadas em nossa lei que regula esse procedimento [da ação monitória]. Oportuno assinalar o alcance dos termos mandado injuntivo e mandado de pagamento ou entrega, pois no nosso direito positivo não são sinônimos. Na sistemática jurídica brasileira o mandado de injunção é remédio constitucional destinado a suprir o direito de modo a tornar viável o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas (art. 5º, LXXI, da CF). Logo, não há similitude entre os institutos. Admitir o contrário significaria transigir com uso do mandado de segurança fora do que disciplina a norma jurídica, ou mesmo do habeas data como sucedâneo de exibição de documentos em demanda estranha a entidades governamentais ou de caráter público. Dessa forma, impõe-se expungir da doutrina tais figuras aberrantemente inadequadas ao sistema jurídico pátrio.” RODRIGUES FILHO. Ação monitória : procedimento monitório. Revista Jurídica, Porto Alegre,n. 217, p. 38, nov. 1995.

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Realmente, a despeito da identidade morfo-etimológica do vocábulo, injunction, na margem setentrional do Canal da Mancha e nos mais sistemas de common law, é provimento judicial cujo “objeto e propósito é preservar e manter as coisas no mesmo estado e condição, e restringir aqueles atos que, se praticados, seriam contrários à eqüidade e à boa consciência; e [que] é a proteção (relief) apropriada, quando o remédio legal for subseqüente ao ilícito (injury) e os efeitos não se possam adequadamente compensar. (...). É, contudo, regra bem estabelecida e a ser sempre considerada pelo juízo, que uma injunção não deve deferir-se quando possa operar iniquamente ou contrariamente à verdadeira justiça do caso, assim como jamais se concede quando for de encontro à boa consciência, ou produtiva de violência, opres-são, injustiça ou prejuízo público ou privado.” 16

A injunção anglo-saxônica, como se vê, ostenta, além de feição aproximadamente cautelar, a natureza de suprimento da insuficiência legal: “freqüentemente referida como ‘braço forte da eqüidade’, é uma base inde-pendente da jurisdição eqüitativa” 17. Como tal surgiu, historicamente, desde pelo menos os começos do século XVII 18, sob a forma de aplicação do que “pode considerar-se, nos negócios humanos, baseado na justiça natural, na honestidade e no correto, e propriamente emana ex æquo et bono” 19; mesmo porque “o fundamento mais comum da jurisdição eqüitativa, e induvidosa-mente o grande princípio subjacente à sua adoção original, é a carência de remédio legal adequado” 20.

É de crer-se estar aí a inspiração do constituinte brasileiro, na cria-ção do instituto definido no susotranscrito inciso LXXI do art. 5º da Carta de 1988. Cuida-se ali, evidentemente, do suprimento jurisdicional da insuficiência legislativa, não para atribuírem-se ao Judiciário funções legiferantes - como receiam os espíritos algemados ao fetiche da já referida separação de pode-res -, mas para, relativamente à situação individualizada, integrar o sistema jurídico, viabilizando concretamente o “exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Eis porque “afigura-se fora de dúvida que a melhor inteligência

16 14 RCL, MCKINNEY, RICH. Ruling case law, § 7, p. 309-310.17 Ibid. § 4, p. 307.18 Ibid. § 3-7, p. 256-262; cp. SMITH, KEENAN. English law, p. 4-8.19 10 RCL, § 2, p. 255-256 20 Ibid. § 16, p. 271.

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do dispositivo constitucional (art. 5º, LXXI) e de seu real alcance está em ver no mandado de injunção um instrumento de tutela efetiva de direitos que, por não terem sido suficiente ou adequadamente regulamentados, careçam de um tratamento excepcional, qual seja: que o Judiciário supra a falta de regulamentação, criando a norma para o caso concreto, com efeitos limitados às partes do processo.” 21

Patenteia-se, assim, estar no espírito da Constituição a realização efetiva, na sociedade, de um projeto de convivência organizada, assente sobre certos princípios dela inspiradores e/ou nela própria eleitos e que a atividade jurídico-jurisdicional promoverá heuristicamente. Essa atividade será, por isso mesmo, necessariamente criativa, em face da variação das condições sociais, a que estará atento o jurista e/ou julgador, privado da confortável postura da expectativa da atuação do legislador.

Se a esse espírito não se aliarem o teórico e o juiz, infrutíferas resul-tarão, invariavelmente, as modificações dos textos normativos, no propósito de conduzi-los à participação na elaboração do sistema e não só no seu entendimento e afirmação concretizada. Inútil determinar-se ao magistrado que formule a regra para o caso concreto 22, se ele está convicto de que não lhe cabe, em hipótese alguma, regrar: dirá que, em harmonia com a separa-ção de poderes, somente depois que se pronunciar o legislador e onde este deixar lacuna, caber-lhe-á supri-la. Fora daí, entenderá estar usurpando a função legislativa.

II - A principiologia e seu significado jurídico

Parece ter razão PEÑA DE MORAES, quando atribui a orientação da nossa Corte Maior à fidelidade “às lições de KELSEN, para quem o juiz pode vir a ser um legislador negativo, mas nunca um legislador positivo (...).” 23. Tal não parece ter sido, porém, o enfoque do legislador constituinte, aparente-mente bem menos empenhado na extremação mística do aludido princípio da separação dos poderes do que na realização do projeto político-social e

21 BARROSO, op. cit. p. 183.

22 Como sugere BARROSO. Mandado de injunção: o que foi sem nunca ter sido : uma proposta de reformulação. Revista de Direito [da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro], Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 59, jan./jun. 1998.23 MORAES. A Constituição e os dez anos de sua promulgação, Direito em Revista, Rio de Janeiro, v. 2, n. 7, p. 23, set./out.1998.

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econômico traduzido na Carta. Por isso é que, pelo menos enquanto vista isoladamente, resulta

controvertível a asserção de BARROSO, relativamente à rede de princípios constitucionais de “efeito benéfico e aperfeiçoador”, de que “... a definição, em cada tempo, de qual seja esse sistema ideal - isto é, os valores a serem protegidos e os fins a serem buscados (pela ordem normativa) - não é uma questão jurídica, e sim política.” 24. De logo por ser dificilmente possível a compreensão daquele sistema sem a percepção desses valores. Põe-se, inevitável, a questão de saber se, no trabalho do jurista, de identificar e aplicar a norma, deve ele - ou, sequer, pode - reputar, a priori, atendidos tais valo-res, naquela posição de pretensa neutralidade, iterativamente pregada pelo positivismo e pelo normativismo, inclusive kelseniano. Ou, não sendo assim, se há de, a cada momento, transitar entre o terreno político e o jurídico, para desvendar os valores que informam a norma.

Tais incertezas simplesmente desaparecem, do momento em que esses valores e fins, sendo, também, normativos, passam a integrar o campo de investigação do jurista - ainda quando se reputem supralegais, porque, como lecionava KARL SCHMID, no rescaldo da derrocada do Reich nacio-nal-socialista, “temos de aprender de novo que a justiça está antes do direito positivo e que são unicamente as suas categorias intocáveis pela vontade do homem que podem fazer das leis direito - seja o legislador quem for, um tirano ou um povo. Velar por isso é a nossa função, a função própria dos juristas. Se o esquecermos, degradamo-nos em auxiliares e servos do poder.”25.

A necessidade desse reaprendizado resulta de contingência histórica, a que não estamos infensos, visto o nosso longo passado de períodos auto-ritários entremeados de vacilantes momentos de legitimidade constitucional. “O culto da lei pelo liberalismo produziu conseqüências. É que o culto da lei como forma e conteúdo foi, lentamente, substituído pelo simples culto da lei enquanto forma. A identificação do direito com a lei acabou por dar lugar a toda uma concepção formalista da experiência jurídica, assim denominada de positivismo. ‘A lei contém todo o direito’ é a expressão máxima dessa concepção.” 26. Ou, na clássica expressão de AUBRY e RAU, “toute la loi dans son esprit aussi que dans sa lettre... mais rien que la loi” 27.

24 BARROSO, O direito constitucional, cit. p. 73.25Apud BACHOF. Normas constitucionais inconstitucionais?, p. 45, nota 58.

26 CLÈVE, op. cit. p. 45.27 Apud REALE. Filosofia do direito, p. 366.

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Sendo a lei manifestação do direito afirmado, senão “criado”, pelo Es-tado, daí defluirá ser por este produzido todo o direito. Ora, a premissa da estatalidade integral do direito exclui, aprioristicamente, do mundo jurídico “a luta de classes, de um lado, tendente a romper continuamente os limites da ordem estatal, e a formação espontânea (no sentido de não provocada nem imposta pelo Estado) de reagrupamentos sociais sempre novos, como os sindicatos, os partidos, e de relações sempre novas entre os homens, derivadas da transformação dos meios de produção, pondo em evidência uma vida subjacente ou contrastante ao Estado, que nem o sociólogo e, pois, tampouco o jurista, poderiam ignorar” 28.

Semelhante premissa, nessa linha de pensamento, ainda que sim-plifique a reflexão sobre a norma constitucional, enquanto ápice do sistema jurídico, peca pelo desacordo com a realidade perceptível. Por outro lado, gera terríveis perplexidades: se é possível uma “insubmissão numericamente expressiva, quando não generalizada, aos preceitos normativos, inclusive os de hierarquia constitucional”, tal que possa levar a norma ao “desuso”; e se é possível que “interesses particularmente poderosos, influentes sobre os próprios organismos estatais”, impeçam a efetividade da norma 29, então, realmente, essa efetividade é matéria de cunho político, estranha ao conhe-cimento jurídico e à prática do direito.

Aliás, “a restrição da legitimidade de uma Constituição à sua positi-vidade redundaria ao fim e ao cabo, como E. V. HIPPEL convincentemente mostrou, na igualdade poder = direito, e corresponderia assim, transposta para o terreno teológico, a uma argumentação ‘que extraísse do poder do Diabo a obrigatoriedade religiosa das leis infernais’” 30. Na verdade, como notava o inolvidável BALEEIRO, “nenhum governo, no após guerra [isto é, depois da chamada Segunda Guerra Mundial], apregoa a bandeira do arbítrio ou de privilégios contra o povo. Todos pretendem ser a melhor forma de servi-lo e de realizar os interesses e aspirações da alma popular. A controvérsia reside em identificar quais são essas aspirações e que técnicas políticas as

28 BOBBIO. Teoria dell’ordinamento giuridico, p. 137-138. “Uma Constituição”, acrescente-se com HÄBERLE, “que estrutura não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública (Öffentlichkeit), dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos." In Hermenêutica consti-tucional, p. 33.29 Cf. BARROSO. op. cit. p. 84.

30 BACHOF, op. cit. p. 45.

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alcançam mais efetivamente.” 31. E essa identificação se vem produzindo, na medida em que se abandona o preconceito da neutralidade jurídico-legal e se confessam os conteúdos ideológicos do sistema jurídico: é assim que “MALLMANN deduz da essência da ‘ordem constitucional material hodierna’ a proibição do arbítrio, vinculante também para o legislador” 32.

A isso não se opõe a clássica definição de constituição, em sentido material, de JELLINEK - “conjunto de normas jurídicas sobre a estrutura, atribuições e competências dos órgãos supremos do Estado, sobre as institui-ções fundamentais do Estado e sobre a posição do cidadão no Estado.”33 -, adotada, com escassas variações, por teóricos de todos os matizes, inclusive alguns absolutamente insuspeitos de “jusnaturalismo” 34. Desse conceito não faz parte uma unidade documental ou formal, de sorte que “pode haver direito constitucional material fora do documento constitucional; inversamente, nem todas as normas constitucionais formais são direito constitucional material com função integradora: antes numerosas normas constitucionais formais devem a sua recepção na ‘Constituição’ a simples considerações tácticas, nomeadamente à intenção dos grupos políticos que foram determinantes do documento constitucional de subtraírem essas normas à possibilidade de sua alteração por uma futura maioria parlamentar.” 35.

Por isso é que os “devaneios irrealizáveis” do constituinte, as “normas manifestamente inexeqüíveis” por ele editadas, cuja “impossibilidade mate-rial de cumprimento” alegadamente “gera sua inexigibilidade” 36, devem ser, para o jurista, aspirações políticas, a perseguirem-se, se compatíveis com os valores informativos do sistema, através de normas eficazes e efetivas. Nesta ordem de idéias, até o famoso e prima facie risível decreto do jovem monarca da anedota - que proibia tempestades e inundações em seu reino - há de ler-se, pelo jurista, como um compromisso assumido pelo Estado de proteger os cidadãos contra as intempéries e, conseqüentemente, como nor-ma instituidora de responsabilidade do Estado pela ausência ou insuficiência dessa proteção.

31 BALEEIRO. Democracia. In: Repertório enciclopédico de direito brasileiro, v. 15, p. 184.32 BACHOF. op. cit. p. 34.

33 Ibid. p. 39; cp. PINTO FERREIRA. Curso de direito constitucional, p. 10.34 V.g. FERREIRA FILHO. Curso de direito constitucional, p. 10; BASTOS. Curso de direito constitucional, p. 40; SILVA, Curso de direito constitucional positivo, p. 37-38.

35 Ibid., p. 40; em sentido análogo BARROSO, op. cit. p. 72, nota 8; cp. FERREIRA FILHO, op. cit. p. 10-11.36 BARROSO, op. cit. p. 77-78.

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É, pois, mister que se reputem constitucionais todas as normas inscritas na Constituição, não somente “em sentido formal”, como quer José Afonso da SILVA 37 mas também e sobretudo em sentido material, como determinações indispensáveis à forma social, política, econômica e jurídica do Estado e da sociedade a que visa a mesma Constituição. Ainda quando tenha sido infeliz o legislador constituinte, ajoujando a Carta Política com disposições sobre o regime dos servidores públicos, legitimidade para ações penais e outras impropriedades, tais regras devem ler-se como integrantes do modelo político-social e econômico adotado e necessárias à realização deste.

III - A integração normativo-ideológica

Isso importa a inserção no conjunto normativo constitucional, não só de uma percepção imperativa dos direitos e garantias individuais e econômi-cos, tornando-os mais que “um bom conselho apenas”, como reclamava José Reinaldo de Lima LOPES 38, mas também e sobretudo das normas suprale-gais, do gênero daquela vedação do arbítrio, a que alude MALLMANN; não somente as normas que resultam dos objetivos de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, ou dos demais elencados no art. 3º da Constituição da República de 1988, senão também as que estão por trás desses objetivos. Numa palavra, assim as normas constitucionais positivadas, expressa ou implicitamente, como as não positivadas, mas integrantes da consciência ética do ser humano contemporâneo.

De fato, “o direito constitucional supralegal positivado precede, em virtude do seu caráter incondicional, o direito constitucional que é apenas direito positivo, razão por que aqui - mas também só aqui - a ponderação da importância das normas constitucionais diferentes, em confronto umas com as outras, preconizada por KRÜGER e GIESE, se mostra justificada. Falta a autonomia da criação do direito, que permite ao poder constituinte abrir brechas, através de exceções à regra, nas normas autonomamente estabele-cidas, onde a positivação significa, não a criação de normas jurídicas novas, mas apenas um reconhecimento de direito pré-constitucional.” 39.

Do mesmo modo, “a favor da incorporação [do direito supralegal não

37 SILVA. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 43.38 LOPES.. Direito, justiça e utopia, p. 10-11.

39 BACHOF, op. cit. p. 63.

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positivado] na ‘Constituição’ milita (...) a circunstância de o direito supralegal ser imanente a toda a ordem jurídica que se reivindique legitimamente esse nome e, portanto, também, e até mesmo em primeira linha, a toda ordem constitucional que queira ser vinculativa.” 40.

Uma das conseqüências desse enfoque do contexto constitucional é reduzir-se a consagrada classificação das normas jurídicas 41 e

cogentes(imperativas,coativas,absolutas) : preceptivasNormas jurídicas proibitivas

dispositivas (supletivas, permissivas, relativas)

a uma significação meramente didática. Pois, na verdade, as normas ditas “dispositivas” são cogentes, quando não se exerce a faculdade aberta à autonomia da vontade: v.g., se as partes não dispuserem diversamente, nem o exigir a natureza da obrigação ou as circunstâncias do caso, o lugar do pagamento será o domicílio do devedor (art. 950 do Código Civil). A dis-positividade, portanto, é somente uma alternativa para uma conduta-padrão estabelecida na lei. Reconhece-se, de resto, que “não há caso, (...), de au-sência de imperatividade, senão que uma graduação do seu teor.” 42.

Ora, tal imperatividade, aliada à estrutura hierárquica da ordem jurídi-ca, implica a inviabilidade de aplicação de quaisquer determinações contrárias às regras constitucionais, expressas ou implícitas, “programáticas” ou não, incorporadas de uma ordem supralegal ou criadas pelo próprio legislador constituinte. Essa inaplicabilidade de um comando significa inaptidão desse comando ao fim para que se exarou e, portanto, nulidade.

damento compatível com a atividade pública e visante a finalidade prevista em norma) e se essa forma é adequada, isto é, adotada em conso-nância com o que está regrado positiva (prescrita) ou negativamente (não vedada).

A desconformidade com a Constituição pode dizer respeito à ca-pacidade (competência legislativa), à forma ou ao objeto do ato normativo, segundo o ato se tenha praticado em desacordo com as regras constitucio-nais de sua elaboração ou se choque com determinação material da norma hierarquicamente maior. Não parece possível haver hipótese, aí, de inca-pacidade relativa ou de vício de vontade, paragonável às situações de que

40 Ibid. p. 68.41 BARROSO, op. cit. p. 75 e nota 6.42 Ibid., loc. cit.; cp. DEL VECCHIO. Lições de filosofia do direito, p. 388-389.

50 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v.3, n. 5, jan./jun. 1999

43 BARROSO, op. cit. p. 79.

IV - Existência, validade, eficácia e efetividade

A compreensão disso exige breve excurso em torno da noção de nulidade, particularmente em relação aos atos jurídicos emanados do poder, que são, em última análise, atos administrativos.

É mister que se afastem, liminarmente, tautologias como a afirmação de que “as regras de direito... consistem na atribuição de efeitos jurídicos aos fatos da vida, dando-lhes um peculiar modo de ser”, a traduzir-se, simplesmente, no asserto de que “as regras de direito consistem na atribuição de efeitos de direito”. Na verdade, as regras de direito consistem no comando para que os fatos ocorram de uma certa forma, ou, por outras palavras, na determinação de certos efeitos para certos fatos da vida humana de relação. Imprecisa, por seu lado, a assertiva de que “os fatos jurídicos resultantes de uma mani-festação de vontade denominam-se atos jurídicos”; há fatos que também se denominam atos jurídicos - v.g., muitos dos ilícitos culposos, penais ou civis - e que, contudo, sequer implicam, e menos ainda resultam de “manifesta-ção de vontade” 43: ao revés, ocorrem, no mais das vezes, contra a vontade das partes envolvidas. Dir-se-á, decerto, melhor que “os fatos jurídicos que envolvem uma conduta humana dizem-se atos jurídicos”.

O sistema de validade dos atos jurídicos e, especialmente, dos atos administrativos lato sensu (inclusive normativos, como a lei) talvez se possa sintetizar no seguinte quadro:

Ato jurídico Ato administrativo Condições de existência Condições de validade Condições de validade

Agente Capacidade Competência

Objeto Licitude e possibilidade Licitude (abrangendo

motivo e finalidade)

Forma Adequação normativa Adequação normativa

Vale dizer, o ato jurídico, inclusive administrativo, existe se o pratica u agente (ser humano, ainda que na condição de órgão de outra entidade), relativamente a um objeto juridicamente relevante e de uma certa forma exteriorizada; e vale se esse agente é capaz (competente, no caso de ato administrativo), se esse objeto é lícito e possível (inclusive motivado por

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v.3, n. 5, jan /jun. 1999 51

trata o art. 147 do Código Civil, que comporte consideração de anulabilidade; nem de limites temporais preclusivos, nem ainda de apreciação do prejuízo (presumível iuris et de iure do só desacerto da ordem jurídica) causado pela ilicitude constitucional, que leve o ato a convalescer 44.

Nessa linha de raciocínio, a hipótese de norma “inválida e eficaz”, qual seja a de “uma lei inconstitucional, anteriormente à declaração de nuli-dade pelo Judiciário” 45, parece de difícil configuração. Se, como se viu e é geralmente reconhecido, a norma inconstitucional “é nula de pleno direito”, carece ela de efeito vinculativo no mundo jurídico e, pois, não opera como norma. Pode gerar situações de fato, ou seja, aquelas “que terão de ser recompostas” e que se hão de resolver à luz de outras normas; jamais terá os efeitos jurídicos para os quais se editou.

Merece, contudo - e mais uma vez com todas as vênias -, crítica, raramente ensaiada, a definição de eficácia como “aptidão para a produção de efeitos, para a irradiação das conseqüências que lhe são próprias”, como a de ato eficaz por “idôneo para atingir a finalidade para a qual foi gerado” 46. A tese tem confessada inspiração no magistério de BANDEIRA DE MELLO, que distingue efeitos “típicos” e “atípicos” do ato jurídico-administrativo, sendo aqueles os “próprios do ato” e estes últimos os preliminares ou prodrômicos (v.g., a provocação da função controladora de outro órgão, que não o que expediu o ato) e os reflexos (v.g., a rescisão da locação em decorrência da desapropriação do imóvel locado), de modo que concebe a possibilidade de ser o ato “perfeito, inválido e eficaz - quando, concluído seu ciclo de formação e apesar de não se achar conformado às exigências normativas, encontra-se produzindo os efeitos que lhe seriam inerentes” 47.

Não parece, uma vez ainda com todas as vênias, muito clara tal concepção. Supõe-se, aí, a existência de uma sorte de eficácia pro tempore,

44 Não se argumente com a possibilidade de sanação de defeitos, que, em tema de elaboração de lei, só é possível pela via da revogação - ou seja, mediante edição de nova lei, que revogue a defeituosa. Não há, em nenhuma das esferas de poder, órgão “superior” que ratifique ato inválido do Legislativo; a sanção (inclusive a supridora de iniciativa, nos termos da “Súmula” no 5 do Eg. Supremo Tribunal, hoje notoriamente enfraquecida - haja vista, p. ex., a decisão do seu Plenário no Recurso Extraordinário no 119.103-MA, relatado em 07/12/89 pelo Min. OCTAVIO GALLOTTI, in RTJ, n. 131[1], p. 424) é parte do ato legislativo, sem a qual (ou sem o seu sucedâneo, a saber, a promulgação, quando constitucionalmente admissível, pela Chefia do Parlamento) este não se perfaz.45 BARROSO, op.cit. p. 82.

46 Ibid. p. 81.47 BANDEIRA DE MELLO. Elementos de direito administrativo, p. 120-121.

52 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v.3, n. 5, jan./jun. 1999

ou provisória, do ato nulo: eis que a nulidade opera ex tunc, os efeitos por-ventura produzidos serão, igualmente, nulificados, com a eventual declaração (enfatize-se, declaração, inconfundível com desconstituição) de invalidade do ato. Ora, a subsistência de efeitos transatos é própria da anulabilidade, cuja ocorrência, como se viu, não exclui a convalescença tractu tempore. Não se dá, nem mesmo, como também foi visto, nulidade relativa, que atinge e invalida todos os atos conseqüentes ou dependentes do ato nulo e somente eles. De notar, aliás, que os chamados efeitos preliminares não são efeitos do ato; no exemplo sugerido, a função de controle decorre de atos anterio-res, instituidores desse controle e do órgão competente para exercê-lo; e os efeitos ditos reflexos não sobrevivem à nulidade declarada.

Eficácia, de rigor, é, pura e simplesmente, a possibilidade de produzir quaisquer efeitos jurídicos - a saber, aqueles para os quais se praticou o ato ou outros, a tais fins estranhos, como, por exemplo, a responsabilidade do Estado e/ou do agente que ilicitamente o praticou. Importa insistir na distin-ção: existência jurídica é ingresso no mundo jurídico, isto é, incidência de norma jurídica sobre o fato; validade é adequação desse ingresso, ou seja, conformação do ato com as condições normativas de produção dos efeitos a que visa; e eficácia é a produção de algum efeito jurídico, pretendido ou não pelo agente e visado ou não pelo ato. Assim, por exemplo, o casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo, segundo a lei brasileira, não existe; o celebrado entre irmão e irmã, existe, mas é nulo (Código Civil, arts. 183, no IV e 207); o casamento entre menores, “para evitar a imposição de pena criminal” e sob ordem judicial de separação de corpos até que cheguem à idade legal (Código Civil, art. 214 e parágrafo único), existe e é válido, mas é ineficaz, quanto à obrigação de convivência dos cônjuges, até atingirem aquela idade; o casamento de pessoas que faleceram no estado de casadas existe e, embora nulo, é eficaz no que respeita à prole comum, salvo no caso de bigamia (art. 203 do Código Civil).

Essas distinções são relevantes, inclusive para perfeito entendimento da diferença entre eficácia jurídica e eficácia social ou efetividade 48. Se a norma não produz, no mundo dos fatos, o efeito que dela se esperava, ter-se-á que a norma é politicamente defeituosa, não que seja juridicamente “inefi-caz”. Exemplificando: a legislação federal instituidora dos extintos cruzado e cruzeiro real, como do hoje circulante real, não lograram, até agora, criar a estabilidade econômico-monetária a que visavam (o último, o real, como se

48 BARROSO, op. cit. p. 82-83.

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tem visto, criou apenas uma ilusão); a isso se opôs, entre outros fatores, a inveterada convivência da população do País com unidades monetárias de valor ínfimo, a dificultar o próprio reconhecimento do poder de compra da moeda recém-criada. Vai longe daí supor-se que aludida legislação não tenha sido juridicamente eficaz: haja vista que, por exemplo, os contratos firmados em cruzados, cruzeiros, ou cruzeiros reais, estão, hoje, sendo normalmente executados em reais. Pode discutir-se se a norma respectiva teve efetivas conseqüências no quadro econômico-financeiro do País, ou que tenha atin-gido os propósitos a que visava; mas não se pode dizer que lhe tenha faltado eficácia jurídica e, muito menos, existência ou validade.

A confusão a respeito é fortemente propiciada pela tresleitura de au-tores tedescos. Há sutil diferença entre os significados das palavras Geltung e Gültigkeit, aquela freqüentemente traduzível por validade e esta às vezes indicativa, tão-só, de reconhecimento (Annerkennung) 49. Na extensa seção de sua Reine Rechstlehre, dedicada à teoria da norma jurídica, KELSEN em-prega a primeira no sentido de validade e a segunda no sentido de eficácia, esta última entendendo-se por observância 50.

Em suma: a ordem jurídica é estruturada hierarquicamente e dela fazem parte, inclusive no nível constitucional, normas não escritas, não ex-pressas, mas integrantes da consciência jurídica de hoje e do que o Prof. CLÁUDIO SOUTO genialmente designou por sentido básico permanente e humano do dever ser, como conceituação de justiça 51; a violação dessas normas, inclusive pelo legislador e até pelo próprio legislador constituinte (como, v.g., na edição de emenda constitucional vedada pelo art. 60, § 4º da Constituição Federal ou atentatória à soberania nacional - art. 1º, nº I) gera ato absolutamente nulo e, por isso, destituído de qualquer eficácia vinculativa. A menos, pois, que se engendre, para o problema da inconstitucionalidade, uma teoria especial do ato jurídico e da nulidade, extra-muros da teoria geral do direito, dita inconstitucionalidade só se pode conceber como espécie do

49 V. WAHRIG. Deutsches worterbuch, p. 1447 e 1604; TOCHTROP. Dicionário alemão-português, p. 203-233.

50 KELSEN. Teoria pura do direito, p. 28ss. Tenha-se presente, porém, que, no presente estudo, está sendo explicitamente repelida a tese do Mestre vienense de que “[a]s chamadas leis ‘in-constitucionais’ são leis conformes à Constituição que, todavia, são anuláveis por um processo especial” - ibid. p. 371 -, bem assim, por conseqüência, o seu entendimento sobre a natureza “constitutiva” das decisões afirmativas de inconstitucionalidade - ibid. p. 374-376.51 SOUTO. Introdução ao direito como ciência social, p. 84ss.

54 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v.3, n. 5, jan./jun. 1999

gênero nulidade absoluta.V - Os efeitos sociais da norma

O conceito, acima adotado, de regra jurídica como “determinação (ou, quiçá melhor, atribuição) de certos efeitos para certos fatos da vida humana de relação”, importa a referência direta de todas as disposições de direito - constitucionais e infraconstitucionais - à realidade social regulada. Se, portanto, a totalidade das normas constitucionais, positivadas ou não e principiológicas ou propriamente reguladoras, têm eficácia normativa, segue-se que também todas elas existem para repercutir na realidade social e aí produzir o efeito modelador para que se editaram.

No quadro dos princípios a realizarem-se na vida da sociedade, inclui-se, incontornavelmente, o da estabilidade das relações jurídicas, que são, antes e além da incidência normativa (legal ou não) da qual lhe advém a natureza de direito, relações humanas e sociais. Por dinâmico que se pre-tenda o modelo constitucional e legalmente preconizado, sequer verdadeiro modelo será se não tender à reiteração de certos modos de ser, reputados corretos ou adequados (ou bons, ou justos, etc.) pelo sistema jurídico.

No âmbito administrativo e em vista da rigidez do princípio da legali-dade, expressamente constitucionalizado no art. 37, initio, da nossa vigente Carta Política, o tema fica particularmente problematizado. Escreveu a pro-pósito, com marcante lucidez, a jovem jurista Cláudia Rivolli Thomas de SÁ: “Da presunção de legitimidade, atributo dos atos administrativos, que confere à Administração o poder de executá-los direta e imediatamente, tornando desnecessária a comprovação de sua adequação ao figurino legal, decorre, como natural contraponto, a boa-fé e confiança - também presumidas - dos administrados quanto à correção e conformidade com as leis, que devem ser protegidas e resguardadas. Junto com a legalidade da Administração Públi-ca, integra o moderno conceito de Estado de Direito a proteção da boa-fé e confiança que os administrados têm na atuação estatal, presumidamente legítima. Se é verdade que a primeira - legalidade - compele o administrador a desconstituir as situações estabelecidas contra legem, não menos correta é a afirmação de que a invalidação tem nas últimas - boa-fé e confiança - o seu limite. A prevalecer a legalidade - orientada pelo valor justiça - em fla-grante desrespeito àqueles princípios - nos quais sobreleva o valor segurança

52 SÁ. Parecer nº 002/98-CRTS. Revista de Direito [da Procuradoria-Geral da Câmara Mu-nicipal do Rio de Janeiro], Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p.182-183, jan./jun. 1998.

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- instaurar-se-ia, sob o desejo de realizar-se a justiça, situação de extrema injustiça.” 52

Por isso é que, como se teve oportunidade de escrever alhures, “(...) tende a pacificar-se, na teoria constitucional, a apli-cabilidade do chamado princípio da estabilidade ou da segurança das relações jurídicas, (...)” 53. É ler-se, a propósito, o ensinamento de Regina Maria Macedo Nery FERRARI, no sentido de “(...) que os atos praticados sob o império de uma lei que possa em de-terminado momento ser considerada inconstitucional, devem ser considerados válidos e com capacidade de produção de efeitos até e enquanto não houver tal decisão, ou seja, até e enquanto não haja decisão que fulmine a norma de ilegalidade ou inconstitucio-nalidade. - Se outro fosse o entendimento, teríamos de maneira vertiginosa instalado o caos na vida social e em suas respectivas relações. Como anteriormente ressaltado, a inconstitucionalidade pode ser argüida a qualquer tempo e, assim, não se teria nunca a certeza do Direito, pois nunca estaríamos em condição de saber se um ato praticado validamente sob o império de uma lei seria assim considerado para todo sempre. Sempre haveria o perigo de que, uma vez argüida a inconstitucionalidade do preceito normativo que disciplinou sua realização, viesse a ser assim considerado pelo órgão competente e a inconstitucionalidade declarada, operando ex tunc, alteraria toda uma vida social, retrotraindo indefinidamente no tempo. Outro não pode ser o entendimento, senão o que nos leva à aceitação de que a lei inconstitucional, enquanto não tenha sido como tal considerada, opera eficaz e normalmente, como qualquer disposição normativa válida, já que assim o é, até a decretação de sua inconstitucionalidade. (...). Reconhecer, portanto, que a norma inconstitucional é nula, e que os efeitos desse reconhecimento devem operar ex tunc, estendendo-os ao passado de modo ab-soluto, anulando tudo o que se verificou sob o império da norma assim considerada, é impedir a segurança jurídica, a estabilidade do Direito e sua própria finalidade.” 54

Note-se que mesmo quem, como CANOTILHO, afirma categori-camente a eficácia ex tunc da decisão declarativa de inconstitucio-nalidade, põe-lhe temperamentos: “Não é líquido que a Constituição

.53 BAPTISTA. Parecer nº 017/97 (Eficácia de suspensão liminar de disposição legal). Revista de Direito [da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro], Rio de Janeiro, v.1, n.2, p. 236, dez. 1997.

54 FERRARI. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade, p. 89-90.

56 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v.3, n. 5, jan./jun. 1999

tenha considerado como limite à retroactividade da declaração de inconstitucionalidade apenas o caso julgado, entendido no sentido restrito acabado de mencionar. - Pode também entender-se que os limites à retroactividade se encontram na definitiva consolidação de situações, actos, relações, negócios a que se refere a norma declarada inconstitucional. Se as questões de facto ou de direito regulados pela norma julgada inconstitucional se encontram de-finitivamente encerradas porque sobre elas incidiu caso julgado judicial, porque se perdeu um direito por prescrição ou caducidade, porque o acto se tornou inimpugnável, porque a relação se extinguiu com o cumprimento da obrigação, então a dedução de inconstitu-cionalidade, com a conseqüente nulidade ipso jure não perturba, através de sua eficácia retroativa, esta vasta gama de situações ou relações consolidadas. Pode dizer-se que a norma viciada de inconstitucionalidade não era já materialmente reguladora de tais situações, sendo irrelevante a sua subsequente declaração de inconstitucionalidade. - O mesmo já não se verifica relativamente a relações ou situações ainda abertas (por ex.: ainda a discutir em tribunal, ainda não consolidados por qualquer decurso de prazo) e às quais se pode ainda aplicar, com efeitos úteis, a norma declarada inconstitucional. Nestas hipóteses é claro o efeito da declaração de inconstitucionalidade: ela impede a sua aplicação e neutraliza os efeitos jurídicos que dela poderiam resultar. Perante este en-tendimento, os autores tendem a salientar os efeitos relativos da retroactividade e a questionar se, em rigor, se deverá falar aqui de retroactividade. Esta existiria se, com a declaração de inconstitu-cionalidade da norma, fosse possível recolocar em discussão as relações já consolidadas e não apenas as relações ou situações pendentes ou em aberto.” 55.

Daí dever-se concluir pela prevalência do entendimento de que a declaração de inconstitucionalidade não atinge as situações jurídicas já estabilizadas, na conformidade da norma reputada inconstitucional, que se aplicou na presunção de sua validade plena 56. Mas a inatingibilidade dessas situações não decorre de ser anulável, ou relativamente nula, a lei incons-titucional, mas do fato de que a conexão entre o ato e a Constituição não se dá, exclusivamente, através da lei, senão também pelo sistema e pelos princípios que o informam: a linha reta pode ser, euclidianamente, a trajetória

55CANOTILHO. Direito Constitucional, p. 1073.

56 BAPTISTA, cit. p. 238.

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mais curta entre a base e o vértice da pirâmide, mas não é, decerto, a única trajetória possível. Por via de princípios não positivados, ou só implicitamente positivados - como o aludido princípio da estabilidade das relações - o ato jurídico ou jurídico-administrativo, em vista de suas imediatas repercussões no universo político-social, pode ligar-se ao conteúdo normativo da Constituição e ali encontrar validade, a despeito de importar aplicação de lei declarada inconstitucional.

Não parece, pois, também aqui - e uma última vez dadas todas as vê-nias possíveis - necessária, ou sequer útil, provisão constitucional ou legal específica, como a de que se cogita no Projeto de Lei nº 2.960, de 1997, em tramitação no Congresso Nacional, para evitar-se a retroação indiscriminada da declaração de inconstitucionalidade, ou para aduzir-se a esta, numa contra-dição em termos, uma “impronúncia de nulidade” - vale dizer, uma declaração de nulidade com exclusão da nulidade. A mui douta Comissão elaboradora do respectivo anteprojeto, admitindo embora, à vista de notáveis precedentes do Egrégio Supremo Tribunal Federal, “que a criação de nova técnica de de-cisão decorre do próprio sistema constitucional, especialmente do complexo processo de controle de constitucionalidade das leis adotado entre nós” 57, propõe a inserção, no seu art. 17, de disposição a cujo teor “[a]o declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” 58.

A solução, na contracorrente da criatividade judicial defendida linhas acima, restringe o exame casuístico dos efeitos da inconstitucionalidade, impondo a necessidade de uma definição genérica, pela Corte Maior, da irretroatividade da respectiva declaração. Levanta implícito obstáculo ao exame da subsistência ou não de situações pré-consolidadas, para além da declaração de invalidade da lei, se tal definição genérica não foi feita. Tende a consagrar uma centralização, não só da interpretação constitucional, mas também de suas conseqüências, ao arrepio dos rumos mais recentes do pensamento jurídico-constitucional 59.

A solução legislativa, dessarte, tal como se viu relativamente ao mandado 57 Apud JOBIM. Exposição de motivos. In: BRASIL. Câmara dos deputados. Projeto de Lei nº 2.960, de 1997, p. 18.58 Ibid. p. 4.

59 V. HÄBERLE, op. cit., passim.

58 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v.3, n. 5, jan./jun. 1999

de injunção, ao revés de deslindar o problema, multiplica-lhe as derivações, gerando perplexidade diante dos casos concretos, quando a Suprema Corte silenciar acerca dos efeitos da inconstitucionalidade declarada. O propósito de efetividade da Constituição pode ficar, e certamente ficará, inatingido.

O de que se carece, por conseguinte, não é de alterações legislativas a respeito, mas de revisão das posições teóricas preconcebidas, em face dos conceitos de inconstitucionalidade e nulidade. Desde que se admita, como fenômeno jurídico generalizado, a possibilidade de eficácia do ato nulo - isto é, de produção de efeitos deste no mundo jurídico, conquanto não aqueles a que visava - facilmente se compreenderá como a lei inconstitucional, e por isso nula, pode ter produzido efeitos específicos na realidade social, por força do próprio sistema da Constituição e das garantias nela assentadas - garan-tias que não se cifram às definidas naqueles dispositivos onde se usam os verbos “assegurar”, “garantir” ou similares, mas às que resultam, inclusive, das normas de aplicabilidade diferida.

Conclusões

Em resumo, o que se quis neste breve estudo demonstrar foi:a) a natureza essencialmente normativa de todo o complexo cons-

titucional, abrangente mesmo das dicções, explícitas ou implícitas, onde, aparentemente, não há comando imediatamente reconhecível, ou há de-legação ao legislador infraconstitucional da especificação desse comando, caso em que a própria Constituição muniu os interessados de mecanismos de efetivação da norma pela via jurisdicional, como sucede com o mandado de injunção (art. 5º, nº LXXI da Carta Federal);

b) todas as disposições contidas no Texto Fundamental são cons-titucionais, formal e materialmente, ainda quando pareçam heterotópicas: todas devem reputar-se necessárias à realização do modelo político-social delineado na Carta, de tal sorte que a própria definição dos fins da ordem nela preconizada integra o campo de investigação do jurista e do julgador;

c) dada a imperatividade intrínseca a qualquer norma jurídica, especial-mente à norma constitucional, seja esta positivada (explícita ou implicitamente) ou não (mas, de todo modo, resultante do substrato ético-jurídico da própria existência da sociedade humana), a inobservância da norma hierarquicamente superior pela inferior decorrerá, sempre, de incapacidade do agente (incom-petência) ou de violação objetiva ou formal daquela por esta, a configurar

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absoluta nulidade;d) não se confundindo nulidade com eficácia, nem se estabelecendo

relação de dependência entre uma e outra, será lícito atribuírem-se efeitos jurídicos ao ato nulo, conquanto estranhos aos propósitos com que este foi praticado, com vistas à eficácia social ou efetividade das normas cons-titucionais como um todo, de tal arte que a violação de uma dada regra ou princípio constitucional não importa a impossibilidade de incidência de outras, assecuratórias daqueles efeitos;

e) não se faz necessário - e será porventura danoso - alterarem-se as regras constitucionais ou legais, para reconhecerem-se efeitos decorrentes da aplicação de lei inconstitucional - e portanto nula -, em nome do princípio da estabilidade das relações jurídicas (que são, antes de tudo, relações so-ciais), também implícito na Constituição.

A constante preocupação com editar ou alterar leis, inclusive com emendar a Constituição, é reflexo visível do formalismo, que entronca no dogmatismo normativista. A idolatria do texto legal - que, entre nós, levou o legislador ao extremo de submeter a registro (ou seja, reduzir a escrito) o mais informal dos mecanismos de normativação, a saber, o costume - obstaculiza constantemente a potencialidade criativa da doutrina e da jurisprudência. E, conseqüentemente, estiola-se a ciência jurídica, afastada do que, historica-mente, alicerçou o crescimento de todas as ciências, a saber, a rejeição dos dogmas e das verdades imutáveis.

Sem essa rejeição, é de recear-se, estaremos indefinidamente a fazer e refazer constituições e leis, cujas normas ora “colam”, ora “não colam” - e jamais as teremos realmente efetivas.

Rio de Janeiro, novembro de 1998

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