da aldeia ao laboratório

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e www.revistapesquisa.fapesp.br A RELAÇÃO ENTRE CRESCIMENTO ECONÔMICO E DEMOCRACIA Da aldeia ao laboratório À procura de novos fármacos, projeto mapeia mais de 150 plantas usadas pelos Krahô em rituais de cura 1

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Page 1: Da aldeia ao laboratório

ewww.revistapesquisa.fapesp.br

A RELAÇÃOENTRECRESCIMENTOECONÔMICOE DEMOCRACIA Da aldeiaao

laboratórioÀ procura de novosfármacos, projetomapeia mais de 150plantas usadaspelos Krahôem rituais de cura

1

Page 2: Da aldeia ao laboratório
Page 3: Da aldeia ao laboratório

14

----------------w

Pesquisadores paulistasestudam as práticas

medicinais utilizadaspor xamãs da etnia

indígena Krahô paradescobrir novas drogas

EDITORIAL 5MEMÓRIA 6OPINIÃO 9

POLfTlCA CIENTíFICAETECNOLÓGICA 10ESTRATÉGIAS ..................•....... 10EMPRESAS SÃO PARCEIRASNO GENOMA DO EUCALlPTO ...•....... 20IBGE AVALlf., ESFORÇqDE INOVAÇAO NO PAIS ........•....... 22PROGRAMA SIHESP ESTUDARECURSOS HíDRICOS 23ENTREVISTA COM ESPER CAVALHEIRO,NOVO PRESIDENTE DO CNPQ 24

CIÊNCIA 28LABORATÓRIO 28HEMODIÁLlSE MAIS PRECISA 34CÉLULAS A SALVO DOS RADICAIS 36HORTALIÇAS POR ORDEMDE NUTRIENTES 39MEDICAMENTO PARA BEBÊSPREMATUROS PASSA EM TESTE 40A GENÉTICA DO CABEÇA-SECA 50ASTERÓIDES CONTAM AHISTÓRIA DO SISTEMA SOLAR 54FíSICOS APRISIONAM ÁTOMOS 58

TECNOLOGIA 62LINHA DE PRODUÇÃO 62PÓLO TECNOLÓGICO DE CAMPINASGRADUA 19 EMPRESAS 69CONCRETOS MAIS RESISTENTESPARA A CONSTRUÇÃO CIVIL 73UNITECH VENDE A PRIMEIRACÉLULA COMBUSTíVEL 76NOVAS VARIEDADESDE MARACUJÁ E CITROS OBTIDASPOR HIBRIDAÇÃO CELULAR 78

HUMANIDADES 82ASTROJILDO PEREIRAE A POLíTICA CULTURAL BRASILEIRA 86ENTREVISTA: LEOPOLDO DE MEIS 88COMO AS FESTAS INFLUíRAMNA NOSSA HISTÓRIA 92AS VELHAS E BOAS REVISTASDO INíCIO DO SÉCULO 20 _ 94LlVROS 96LANÇAMENTOS 97ARTE FINAL 98

Capa:Hélio de Almeidasobre foto de Eduardo Rodrigues

30o chá de quebra-pedrafunciona: não quebra as pedrasdo rim, mas evita que elasse formem e cresçam

44No sul da Bahia, hábitats modificadospreservam quase a mesmadiversidade de animais e plantasda floresta ainda intacta

64Em todo o mundoincentiva-se a formaçãode incubadoras paraabrigar empresasde alta tecnologia

82Estudo mostra quea sobrevivência dademocracia estádiretamente relacionadaà renda per capita anual

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • 3

Page 4: Da aldeia ao laboratório

Algodão

Como leitor, parabenizo a FA-PESP pela excelente revista que pu-blica. Gostaria, no entanto, de fazeralguns comentários sobre nota pu-blicada no número 67, de agosto de2001, na seção Linha de Produção,sob o título "Variedades de algodãonão resistem a doenças". Falo comodiretor de Pesquisa e Desenvolvi-mento da Aventis Seeds Brasil Ltda.,com sede em Uberlândia, MG, eprograma de melhoramento de al-godão em Santa Helena de Goiás eCampo Verde, MT. A Aventis estátrazendo para o Brasil a genética daCotton Seed International e em seuprograma de seleção no Brasil estádando muita ênfase em resistência adoenças, aliada à maior produtivi-dade e qualidade de fibra, o quecontrasta com o que foi afirmadono referido artigo.

RICARDO MAGNAVACA

Uberlãndia, MG

SinBiota

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Na reportagem sobre o Sistemade Informação Ambiental do progra-ma Biota-FAPESP (SinBiota), edi-ção do mês de julho de 2001, não deios devidos créditos a alguns pesqui-sadores que tiveram uma participa-ção muito importante no desenvol-vimento do sistema. É o caso doGrupo Avançado de Pesquisas emBancos de Dados, coordenado peladra. Claudia Bauzer Medeiros, doInstituto de Computação da Uni-campo Esse grupo projetou e acom-panhou a implementação do banco

4 • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

CARTAS

de dados textual, espacial e de meta-dados do sistema, que são os com-ponentes principais para o arma-zenamento e gerenciamento dasinformações coletadas, além de par-ticipar ativamente do levantamentode requisitos do sistema como umtodo. O mapeamento detalhado douso do solo da Bacia do Mogi Gua-çu, utilizada como área piloto nodesenvolvimento do SinBiota, foicoordenado pelo dr. Iansle VieiraRocha, do Grupo de Estudos emGeoprocessamento da Faculdade deEngenharia Agrícola da Unicamp.

CARLOS ALFREDO JOLY

Coordenador do SinBiotae do Programa Biota

Campinas, SP

Hemeroteca

Vimos manifestar nossa estranhe-za quando lemos no suplemento es-pecial da edição n- 68 desta revistareportagem na qual consta que aHemeroteca desenvolvida pela Bi-blioteca Municipal Prof. ErnestoZink, de Campinas, é a única nessacidade. A Biblioteca Prof. José Ro-berto do Amaral Lapa, do Centrode Memória Unicamp, criada em1986, tem seu acervo voltado para aárea de humanas, com especializa-ção em história regional, dandodestaque especial para a história dacidade de Campinas. Seu acervo nas-ceu graças à colaboração de váriasinstituições e principalmente dedoações vindas de famílias campi-neiras. Entre esses doadores pode-mos destacar João Falchi Trinca, omaior bibliófilo da história deCampinas e que desde 1927 foi co-lecionando obras e documentos so-bre a cidade. Entre os acervos rece-bidos desse colecionador podemosdestacar a hemeroteca, composta de18 mil artigos de jornais e revistasde Campinas e região, retratando ocotidiano da cidade durante maisde 70 anos. Com o passar dos anosfomos recebendo mais coleções, que

foram compondo essa hemeroteca.Também passamos, desde 1986, acolecionar os jornais diários da ci-dade, recortando as matérias de in-teresse e anexando a esse acervo.Hoje, na hemeroteca possuímoscerca de 45 mil recortes de jornais erevistas de âmbito geral e de inte-resse especial para a história da ci-dade, divididas em suas grandes co-leções, a corrente e a pertencente aobibliófilo João Falchi Trinca. Com oapoio da Faep e da FAPESP a cole-ção João Falchi Trinca foi traba-lhada física e tecnicamente e, comoresultado deste trabalho inicial, pu-blicamos em 1997 o indice/teasau-rus História de Campinas através daHemeroteca João Falchi Trinca: des-critores e afins, na série Instrumen-tos de Pesquisas do CMU.

ROSAELE A SCARPELINE

Supervisora da BibliotecaOLGA RODRIGUES DE M. VON SIMSON

Diretora associada doCentro de Memória

Campinas, SP

Ciência e tecnologia

Sou estagiário do Instituto Tecno-lógico da Aeronáutica (ITA/CTA) egostei muito da reportagem sobre aConferência Nacional que definiuestratégias para alavancar a ciência,tecnologia e inovação no Brasil. Naminha opinião, o Brasil vem cres-cendo nessa área e, se continuar as-sim, nos próximos anos estará àfrente de alguns países considera-dos avançados em C&T. A revistaPesquisa FAPESP está de parabéns.

THIAGO SILVA RODRIGUES

São José dos Campos, SP

Revista

Chegou-me às mãos a ediçãonúmero 69 da revista Pesquisa FA-PESP, junto com seu suplementoespecial. Fiquei encantado!

REMOLO CIOLA

São Paulo, SP

Page 5: Da aldeia ao laboratório

Pesquisa PESQUISA FAPESP

É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA

DO ESTADO DE SÃO PAULO

PROF. DR. CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

PRESIDENTE

PROF. DR. PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO

VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU ALAIN FLORENT STEMPFER

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ CARLOS VOGT

FERNANDO VASCO LEÇA DO NASCIMENTO HERMANNWEVER

JOSÉ JOBSON DE ANDRADE ARRUDA MAURÍCIO PRATES DE CAMPOS FILHO

NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO

RICARDO RENZO BRENTANI VAHAN AGOPYAN

CONSELHO TÉCNICO ADMINISTRATIVO

PROF. DR FRANCISCO ROMEU LANDI

DIRETOR PRESIDENTE

PROF. DR. JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER

DIRETOR ADMINISTRATIVO

PROF. DR. JOSÉ FERNANDO PEREZ

DIRETOR CIENTIFICO

EQUIPE RESPONSÁVEL

CONSELHO EDITORIAL PROF. DR. FRANCISCO ROMEU LANDI

PROF. DR. JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER PROF. DRJOSÉ FERNANDO PEREZ

EDITORA CHEFE MARILUCE MOURA

EDITORES ADJUNTOS MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

NELDSON MARCOLIN

EDITOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA) CLAUDIA IZIQUE (POÜTICA C&T)

MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITOR-ASSISTENTE ADILSON AUGUSTO

REPÓRTER ESPECIAL MARCOS PIVETTA

ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA (OIAGRAMAÇÃO)

LUCIANA ÉACCHINI (DIAORAMAÇÃO) TÂNIA MARIA DOS SANTOS

(DIAGRAMAÇÃO E PRODUÇÃO GRÁFICA)

FOTÓGRAFOS

EDUARDO CÉSAR

MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORES CLAUDIA BARCELLOS

CRISTINA DURÁN JOSÉTADEUARANTES

LUCAS ECHIMENCO MARIA APARECIDA MEDEIROS

MARILI RIBEIRO RENATA SARAIVA

RICARDO ZORZETTO ROBINSON BORGES

WAGNER DE OLIVEIRA

PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN E GRAFICA AQUARELA

IMPRESSÃO PADILLA INDÚSTRIAS GRÁFICAS S.A.

TIRAGEM: 24.000 EXEMPLARES

FAPESP RUA PIO XI, N° 1500, CEP 05468-901

ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL (0-11) 3838-4000 - FAX: (0 - 11) 3838-4181

SITE DA REVISTA PESQUISA FAPESP: http://www.revistapesquisa.fapesp.br

[email protected]

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

SECRETARIA DA CIÊNCIA TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

GOVERNO DO ESTADO DE SAO PAULO

EDITORIAL

Boas notícias para encerrar o ano

As culturas pré-históricas do país, anteriores à própria existência do Brasil, e sua rica biodiversi-

dade têm ambas recursos ainda mal suspeitados para oferecer à pesquisa científica mais contemporânea. Com- binadas, então, elas eventualmente se revelam um manancial impressionan- te para a identificação de novas drogas que, a par de contar sobre determina- das estratégias, caminhos e produções simbólicas dos habitantes primitivos do país na busca por sua sobrevivência, bem-estar físico e espiritual, trazem pro- messas de desenvolvimento de uma in- dústria farmacêutica fortemente enrai- zada - finalmente - em solo nacional. É precisamente isso que se pode consta- tar na reportagem de capa desta alenta- da edição de Pesquisa FAPESP.

Elaborada pelo repórter especial Marcos Pivetta, a reportagem, que co- meça na página 14, conta em detalhes o trabalho de um grupo de pesquisa- dores paulistas que permitiu a identi- ficação de 164 plantas nativas da flora brasileira, usadas pelos Krahô, tribo do Tocantins, em intrigantes rituais de cu- ra. Dessas, 138 mostraram algum tipo de influência sobre o sistema nervoso central, área de interesse da pesquisa do grupo. Pode-se prever um longo ca- minho pela frente, como é de praxe na pesquisa de fármacos, até que princí- pios ativos dessas plantas se transmu- dem em remédios nas farmácias, em alguma forma de bem-estar para pes- soas com problemas sobre os quais eles tenham potencial para agir e mesmo em faturamento e lucros, com percen- tuais, muito justificadamente, destina- dos aos Krahô. Mas, desde já, há que se comemorar os belos resultados do trabalho.

No/rorcída pesquisa científica, são várias as boas notícias contidas nesta edição da revista. Uma delas: pesquisa- dores de São Paulo demonstraram que o popular chá de quebra-pedra, o Phy- llantus niruri, se de fato não quebra

nada, por outro lado impede que os cristais de oxalato de cálcio - o com- ponente químico mais comum das tais pedras - se agreguem. Portanto, sua ação é preventiva.

A reportagem que abre a seção de Tecnologia da revista, na página 64, mostra que as incubadoras de empre- sas, geralmente ligadas a pólos ou par- ques tecnológicos, tornaram-se, no intervalo de 15 anos, um fenômeno mundial poderoso para acionar a ino- vação nos mais variados campos pro- dutivos. Em 1985, elas eram 200 em todo o mundo e hoje chegam a 3 mil, das quais 800 estão nos Estados Uni- dos. No Brasil, existem 159, número que se revela extraordinário quando se sabe que em 1986 havia somente duas. O maior desafio que se apresenta para cada pequena empresa que se fez sob a sombra protetora de uma incuba- dora certamente é prosseguir seu ca- minho com as próprias pernas, a par- tir do momento em que é lançada para o mundo real, nada suave, do mercado. As expectativas de quem chegou a esse ponto é o que se apre- senta na reportagem sobre as empre- sas recentemente graduadas pela Cia- tec de Campinas, na página 69.

Vale, para terminar, um destaque especial para a reportagem que abre a seção de Humanidades, na página 82, referente a um estudo internacional muito amplo - cobrindo 135 países, entre 1950 e 1990 - e da maior impor- tância sobre a relação entre desenvol- vimento econômico e sustentabilida- de das democracias. Pelo que traz de subsídios para as reflexões contempo- râneas sobre a articulação entre eco- nomia e política, entre renda per capi- ta da população e regime democrático (ele estaria completamente assegurado a partir de uma renda de US$ 6 mil), esse estudo, que teve a participação de um brasileiro, apoiado pela FAPESP, disputou fortemente a capa desta edi- ção de Pesquisa FAPESP.

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE2

Page 6: Da aldeia ao laboratório

MEMÓRIA

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Corveta Trajano, 1.4141, de 1873: maior estabilidade, rapidez e volume de carga

Inovação esquecida Invenção de 133 anos, que modificava o formato da parte

imersa dos navios, foi uma das primeiras pesquisas tecnológicas brasileiras a ter repercussão no exterior

Um formato inovador para a parte imersa dos navios, conhecida como carena,

obteve excelentes resultados em 1868, quando foi inventado pelo engenheiro naval catarinense Trajano Augusto de Carvalho. Não era para menos: sua criação permitia que o barco vencesse mais facilmente a resistência da água e aumentava a velocidade ao mesmo tempo em que reduzia o consumo de combustível. Também melhorava a estabilidade e o governo do navio, proporcionava maior capacidade de carga e diminuía o custo de construção.

6 • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

Page 7: Da aldeia ao laboratório

Cruzador Guanabara, 1.911 t, de 1878 {acima): navio ganhou mais espaço para volumes com os costados planos

late Silva Jardim, 781, de 1879 (abaixo): seções transversais em "U" evitavam as forças que tendiam a suspender a proa

Esse desempenho espetacular foi comprovado em experiências reais aplicadas a navios construídos com essas características no Brasil e na Inglaterra, especialmente. O professor aposentado da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, estudioso do tema, Pedro Carlos da Silva Telles, afirma

que a invenção foi, muito provavelmente, a primeira pesquisa tecnológica a ter repercussão no exterior, onde também foi patenteada. A inovação da Carena Trajano, como foi chamado o invento na época, basicamente modificava o corpo da proa (frente) dos navios. Ele trocou as balizas

abertas em "V", como era usual, pelo formato em "U", com os costados praticamente verticais. Dessa forma, as linhas d'água ganharam o formato de cunha, que diminuía a resistência ao avanço do navio. Mas todo o reconhecimento pela inovação caiu no completo esquecimento. As únicas imagens do sistema Trajano conhecidas {todas nesta página) estão no Museu Naval do Rio de Janeiro. São aquarelas pintadas por seu filho - que tinha o mesmo nome, o almirante Augusto Trajano de Carvalho - e três meio-modelos que representam os quatro barcos construídos pelo Arsenal de Marinha da Corte com o novo formato. O primeiro deles, uma corveta, recebeu o nome de Trajano por sugestão do próprio imperador d. Pedro II, em homenagem ao inventor.

Corveta Parnaíba, 4271, de 1874: corpo de proa dos modernos petroleiros têm formato semelhante

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001

Page 8: Da aldeia ao laboratório

owww.scielo.br

As publicações científicas brasileirasestão ao alcance de suas mãos. Não importa

em que parte do mundo você estejaSciELO - Scientific Electronic Library Online é uma biblioteca de revistas científicas disponí-vel na Internet. Uma biblioteca virtual que reúne 64 publicações científicas brasileiras. Suainterface permite o acesso fácil aos textos completos de artigos científicos, por meio das ta-belas de conteúdos dos números individuais das revistas ou da recuperação de textos pornome de autor, palavras-chaves, palavras do título ou do resumo.

A SciELO publica também relatórios atualizados do uso e do impacto da coleção e dos tí-tulos individuais das revistas. Os artigos são enriquecidos com enlaces dinâmicos a bases dedados bibliográf s nacionais e internacionais e à Plataforma l.attes no CNPq.

SciELO é aduto do projeto cooperativo entre a FAPESp, a BIREME/OPAS/OMS e editorescientíficos brasileiros, iniciado em 1997, com o objetivo de tornar mais visível, mais aces-sível e incentivar a consulta das mais conceituadas revistas científicas brasileiras. Em 1998,a coleção SciELO Brasil passa a operar normalmente na Internet e projeta-se rapidamentecomo modelo de publicação eletrônica de revistas científicas para países em desenvolvimen-to, em particular da América Latina e Caribe. Ainda em 1998, o modelo é adotado pelo Chi-le e ef"!l 1999 começa a operar a coleção SciELO Saúde Pública, com as melhores revistascientíficas de saúde pública ibero-americanas. Outros países estão em processo de incorpo-rar-se à rede de coleções SciELO.

O modelo SciELO destaca e valoriza a comunicação científica brasileira. Ao mesmo tempo,proporciona mecanismos inéditos de avaliação de uso e de impacto das nossas revistas cien-tíficas, em consonância com os principais índices internacionais de produção científica.

Adote a SciELO como sua biblioteca científica.

~.••.. ~GOVERNO DO ESTADO DE

SÃO PAULO

Secretaria daCiência, Tecnoloçtee DesenvolvimentoEconômico BIREME / OPAS / OMS www.fapesp.br

Page 9: Da aldeia ao laboratório

OPINIÃO

MANOEL BARRAL-NETTO

Por um plano nacional de vacinação 0 Brasil deve contribuir de forma mais ativa para desenvolver imunizantes

As vacinas são reconhecidas há longo tempo como uma das medidas de maior custo-be- nefício em saúde. A vantagem de seu desen-

volvimento não necessita, assim, de maior justifi- cativa. Após a descoberta fundamental de Pasteur, surgiram vários imunizantes contra numerosos patógenos, principalmente bacterianos e virais. Após um longo período com aparecimento espar- so de novas vacinas, recentemente ocorreu um novo período de crescimento na área. Esse ressurgimento se deve, entre ou- tros fatores, ao desenvolvimento tec- nológico e ao aumento do conheci- mento da patogênese.

A maior parte do conhecimento básico que permitiu esse avanço ocor- reu no setor público, universidades e institutos. Mas o processo de desen- volvimento de vacinas que chegam até o público foi realizado pela indús- tria farmacêutica. Esse aspecto res- tringe o espectro de novas vacinas disponíveis, pois é limitado pelas ca- racterísticas de mercado e possibilida- de de retorno financeiro do investi- mento feito. Recentemente, o Institute of Medicine, nos Estados Unidos, rea- lizou um estudo sobre a prioridade de vacinas para os norte-americanos no século 21. A escolha levou em conta que as doenças fossem de importância primariamente doméstica. Em 1985, os países ricos utilizavam, de forma roti- neira, sete vacinas nos seus esquemas de imuniza- ção, enquanto os países pobres usavam seis. No ano 2000, os pobres passaram a usar sete vacinas e os ricos 12. Esses aspectos refletem a necessidade de planos nacionais que contemplem a realidade de cada país ou região.

É necessário considerar os objetivos da Global Alliance for Vaccines and Immunization (Gavi). A iniciativa visa a garantir o uso amplo das vacinas existentes e estimular o seu desenvolvimento con- tra as doenças responsáveis por maior mortalida- de nos países mais pobres. A Gavi dirige suas prio-

"Mais importante

do que iniciativas isoladas,

é a integração de todas

as medidas*»

ridades a países mais pobres que o Brasil, o que não garante que o nosso panorama de necessida- des seja contemplado. Ademais, o Brasil possui condições para contribuir de forma mais ativa para melhorar a situação atual. O expressivo cres- cimento do país na produção de conhecimento e na formação de pesquisadores é uma garantia de que pode ter um desempenho proeminente no se- tor. Hoje, o Brasil não assume o papel que lhe cabe,

por diversas razões. A ausência de um programa de incentivo ao co-

nhecimento básico nas doenças de interesse, e o desenvolvimento de tecnologia em vacinologia são al- gumas delas. Os grupos de pesqui- sa clínica, em grande parte, aten- dem a uma agenda ditada pela grande indústria internacional, seja pela escassa demanda inter- na, seja pela falta de estímulo e coordenação por agências gover- namentais.

Um plano de desenvolvimento de vacinas pelo Brasil é possível e necessário. Mas será essencial cui- dar da proteção da propriedade in-

telectual e industrial, e os mecanis- mos orientadores dessas ações precisam ser difundidos e facilita-

dos. A formação de equipes multidisciplinares, além do aparelhamento adequado de unidades de teste - em modelos experimentais ou por meio de ensaios clínicos -, precisa ser estimulada. Porém, mais im- portante do que iniciativas isoladas para a correção das falhas, é necessária a integração de todas as me- didas. Sem um plano global que contemple todos os aspectos, estaremos embarcando em um mais esforço inútil.

MANOEL BARRAL-NETTO é professor titular de Patologia, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Fe- deral da Bahia e membro titular da Academia Brasileira de Ciências.

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001

Page 10: Da aldeia ao laboratório

POLíTICA CIENTIFICA e TECNOLÓGICA

ESTRATÉGIAS

Governo dos EUA quer criar sua própria Internet

Os atentados de 11 de se- tembro nos Estados Unidos levaram o governo a analisar a possibilidade de criar uma rede de comunicação espe- cial, separada da Internet. Tudo para tornar o sistema de informações essenciais menos vulnerável a ataques que possam interromper atividades federais funda- mentais. A idéia partiu de Richard Clarke, ex-especialis- ta do governo norte-ameri- cano em contraterrorismo, nomeado pelo presidente George W. Bush como con- selheiro especial para segu- rança do ciberespaço. Para Clarke, é importante fazer um esforço para imaginar

Escombros em Nova York: cuidados contra ciberatentados

como terroristas rompe- riam redes que controlam energia, telecomunicações, abastecimento de água e tráfego aéreo. "Antes de 11 de setembro, as pessoas

imaginavam que a única coisa que os terroristas po- deriam fazer era o que já faziam", disse ele ao jornal The New York Times. "Ago- ra, sabemos que eles podem

realmente provocar algo catastrófico." O grande pro- blema do projeto é quanto custaria uma Internet go- vernamental - especula-se que chegaria a algumas centenas de milhões de dó- lares. E há uma outra ques- tão, lembrada pelo senador democrata Ron Wyden: "A mesma quantia de dinheiro não permitiria um acesso seguro à Internet por par- te dessas mesmas agências- chave que queremos prote- ger?". O setor de telecomu- nicações foi incumbido pelo governo de dizer, nos próximos meses, como esse projeto funcionaria e quan- to custaria. •

■ Medo diminui viagem de pesquisadores

O pavor do terror parece ter afetado todas os setores dos Estados Unidos, incluindo o meio científico. Depois dos atentados de 11 de setembro, os pesquisadores reduziram as viagens de avião com medo de novos ataques. Como resultado, dois dos en- contros médicos mais impor- tantes do ano realizados na Califórnia em novembro - um da Associação Americana do Coração e outro da Aca- demia Americana de Reuma- tologia - tiveram freqüência abaixo do esperado. O encon- tro sobre doenças cardíacas, por exemplo, deveria receber 30 mil profissionais, mas ape- nas 23,5 mil se dispuseram a pegar um avião para compa- recer aos quatro dias do even-

to. Os estrangeiros, especial- mente, demonstram maior cautela em ir aos Estados Unidos. •

■ Resultados concretos na compra de genes

A compra dos direitos de ex- clusividade sobre os estudos do gene dos 300 mil habitan- tes da Islândia pela empresa deCODE Genetics deu o pri- meiro resultado em outubro. Os pesquisadores da compa- nhia identificaram o gene as- sociado à forma mais comum do mal de Parkinson e que- rem usar a informação para criar um teste de diagnóstico e novas formas de tratar a doença. A deCODE comprou o acesso exclusivo sobre os registros de saúde da Islândia em meio a grande polêmica com a população, que contes-

tou a decisão do governo de comercializar informações genéticas dos moradores. O país foi escolhido pela em- presa devido à composição genética de seu povo, que permanece estável há cerca de mil anos, segundo estimam os pesquisadores. O objetivo é procurar mais rapidamente genes ligados às doenças. O gene associado à doença de Parkinson, localizado no cro-

mossomo 1, foi achado por meio de um estudo com 51 famílias islandesas. •

■ A ignorância científica dos chineses

A maior parte do 1,2 bilhão de chineses (22% da popula- ção mundial) não conhece conceitos científicos elemen- tares, de acordo com estudo da Associação de Ciência e

10 • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

Page 11: Da aldeia ao laboratório

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para

[email protected]

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www.ozonio.crn.inpe.br

Serviço do Inpe indica onde o Sol está forte ou fraco em quase 200 cidades brasileiras por meio dos índices de radiação ultravioleta (UV-B).

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w-íHWMrfWM.' l»KÉ«#r)*iM)

www.cspinet.org/integrity

Bom fórum de discussão sobre conflitos de interesse e relações malformadas entre ciência, cientistas e indústria.

www.bn.br

O projeto Biblioteca Nacional sem Fronteiras, da Biblioteca Nacional, inaugura homepage com catálogo de obras raras e manuscritos.

Tecnologia da China divulga- do pela agência oficial chine- sa Xinhua. Os pesquisadores trabalharam com 8,5 mil pes- soas entre 18 e 69 anos e ape- nas 14 em cada mil entrevis- tados responderam correta- mente a mais de 20 perguntas básicas sobre ciência (1,4%). Boa parte dos chineses não tem noção, por exemplo, de que a Terra gira em torno do Sol. Segundo a pesquisa, 52% dos chineses têm como única fonte de informação científica jornais e revistas. Os autores do trabalho se dizem alarma- dos porque os números colo- cam a educação da China a grande distância de países mais desenvolvidos. •

■ Italianos pedem mais verba para pesquisa

Pesquisadores italianos estão enfurecidos com a possibili- dade de o governo voltar atrás na promessa de aumentar o fundo para a ciência em 2002. Mais de 5 mil pesquisadores assinaram uma carta se opon- do à decisão governamental, que pode eliminar US$ 200 milhões dos US$ 900 milhões a mais previstos para o ano que vem. O novo orçamento "levará à ruína os trabalhos dos cientistas italianos", criti- cou a pesquisadora Rita Levi- Montalcini, prêmio Nobel de Medicina de 1986 e ex-dire- tora do Instituto de Biologia Celular, em Roma. A área de ciência deveria receber US$ 8,2 bilhões em 2002, 12% a mais do que em 2001. Mas a promessa foi feita pelo pri- meiro-ministro Giuliano Ama- to, posteriormente substituí- do por Silvio Berlusconi, que determinou os cortes. A Itá- lia gasta 1% do Produto In- terno Bruto (PIB) no setor por ano, pouco se comparado com a média dos países euro- peus, de 2,2%. •

■ Tentativa de revigorar a ciência russa

O presidente russo Vladimir Putin prepara a criação de um conselho para reativar com vigor os setores científi- cos e de alta tecnologia do país. Os pesquisadores russos esperam que o organismo

Kremlin: força para trazer de

volta o brilho do passado

torne prioritária uma política de ciência e tecnologia, em- bora sejam integrantes do conselho alguns funcionários que contribuíram para a que- da livre de recursos e prestí- gio no setor e tornaram os cientistas alguns dos mais mal pagos profissionais do país, informa a revista Nature (15 de novembro). Em parte, o conselho representa a rea- ção à acusação de que a ad- ministração de Vladimir Pu- tin tem falhado ao lidar com a ciência. O conselho é enca- beçado por Sergei Abramov, oficial do Kremlin, e inclui Yuri Osipov, presidente da Academia Russa de Ciência, e Victor Sadovnichii, reitor da Universidade Estadual de Moscou, entre outros. •

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • 11

Page 12: Da aldeia ao laboratório

ESTRATÉGIAS

Mamíferos predadores terão banco genético

Sempre ameaçados de ex- tinção, os mamíferos pre- dadores típicos da fauna brasileira terão sêmen e embriões preservados. No próximo ano fica pronto um centro de referência genética no qual será ar- mazenado material colhi- do de 26 tipos de animais, como onças, lobos, jaguati- ricas e cachorros-do-mato. Criado pelo Instituto Bra- sileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Re- nováveis (Ibama), o labo- ratório funcionará na cida- de de Votorantim, região de Sorocaba (SP), nas de- pendências do Centro Na- cional de Pesquisa para a Conservação de Predado- res Naturais (Cenap). "Ain- da não existe um banco ge- nético como este no Brasil, dedicado a esses mamífe- ros", diz Ronaldo Gonçal- ves Morato, coordenador do projeto, ligado também

a organização não-gover- namental Associação Pró- Carnívoros. "Esse banco será importante para recu- perar animais que forem realmente extintos, no fu- turo." O objetivo é criar outros bancos semelhantes em pólos regionais. Um dado que comprova a ne- cessidade de montar um banco genético vem de es- tudo que Morato publicou

com outros pesquisadores na revista Reprodution, da Sociedade para Reprodução e Fertilidade da Inglaterra (edição de novembro). O artigo sugere que a popula- ção de animais em cativeiro pode estar sofrendo de con- sangüinidade e, conseqüen- temente, dificuldade na re- produção em comparação com os animais que vivem em liberdade. •

Onça-pintada: centro

preservará sêmen e embrião

■ Rede de olho nas bactérias

A área de saúde receberá um reforço importante para evi- tar o agravamento de doen- ças provocadas por bactérias. Em janeiro começa a funcio- nar um programa nacional para monitorar alguns gêne- ros de bactérias resistentes a antibióticos. A rede de labo- ratórios de saúde pública de todo o país, que de certo modo já realiza esse monito- ramento, será interligada sob a coordenação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pa-

trocinada pela Fundação Na- cional de Saúde (Funasa), organismo do Ministério da Saúde. O programa é impor- tante porque a multirresis- tência das bactérias vem crescendo de ano para ano, provocando o aumento do tempo de hospitalização, no custo do tratamento e maior

risco de mortalidade. "Se não tivermos o controle da situa- ção a médio prazo, vai ser cada vez mais difícil vencer as bactérias que se tornam resis- tentes", diz Dália Rodrigues, pesquisadora da Fiocruz e coordenadora do programa. Bactérias comuns, como a Salmonella e a Shigella, que agem no intestino, já apre- sentam resistência a diversos tipos de antibiótico. "Com a criação da rede, vamos ter mais informações e saber quais decisões tomar para evitar que a situação se agra- ve", afirma a pesquisadora. •

■ ProBE tem duas novas editoras

O Programa Biblioteca Ele- trônica (ProBE) está oferecen- do aos consorciados o acesso a títulos de duas novas edito- ras: a Gale Group e a Ebsco on line - que publicaram as revistas do Massachusetts Institute of Technologies (MIT), Blackwell Science e a Blackpublisher. As duas edito- ras reforçam o acervo do pro- grama com publicações nas áreas de humanidades, saúde e biologia. Com essas aquisi- ções, o número de títulos dis- ponibilizados pelo ProBE sal- ta dos atuais 1.400 para 2.260. A partir do dia 15 de dezembro, entra em operação o novo portal do programa (www.probe.br), que permi- tirá a pesquisa por título e as- sunto, independentemente da editora, facilitando a con- sulta dos interessados. •

■ Ganhadores do Governador do Estado

Pesquisadores da Universi- dade Estadual de Campinas (Unicamp) se destacaram, este ano, no Prêmio Gover- nador do Estado - Invento Brasileiro, promovido pelo Serviço Estadual de Assistên- cia aos Inventores (Sedai). Um dos requisitos para con- correr é que o trabalho tenha sido patenteado. A pesquisa- dora Edi Lúcia Sartorato, au- tora de um método de teste de surdez de origem genética (reportagem sobre o tema foi publicada na Pesquisa FA- PESP 50), levou o primeiro lugar, ao lado de uma equipe do Centro Nacional de Pes- quisa e Desenvolvimento de Instrumentação Agropecuá- ria da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Em- brapa), de São Carlos, que desenvolveu um sensor à base

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de plásticos condutores e li- pídios para avaliação de pa- ladar de bebidas. Os coorde- nadores de cada pesquisa receberão um prêmio de R$ 11 mil. Equipes da Unicamp receberam também sete das 12 menções honrosas. •

■ Água do mar do Nordeste para beber

As quentes águas do Nordes- te são o novo alvo para com- bater a seca nos Estados da região. O Comitê Gestor Fundo de Recursos Hídricos (CTHidro), ligado ao Minis- tério da Ciência e Tecnologia, pretende ampliar a oferta de água potável utilizando técni- cas de dessalinização - uma espécie de superfiltragem da água salgada. O assunto é es- tudado há algum tempo e já foi debatido, em outubro des- te ano, por técnicos e direto- res do Instituto Nacional de Tecnologia (INT), da Em- presa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do próprio CTHidro. A prin- cipal conclusão dos debates é que o Brasil precisa desenvol- ver tecnologia própria para dessalinização, a exemplo do que ocorre em lugares que enfrentam escassez de água. Espanha e Japão são exem- plos de países que investem pesado na tecnologia de des- salinização. O INT vai traba- lhar em um projeto de plata- forma tecnológica sobre o tema para avançar nos estu- dos de viabilidade. •

■ Fruticultura terá apoio de biofábrica

Começou a ser construída em novembro, na cidade de Campos, Rio de Janeiro, a mais moderna biofábrica de mudas do país. Parceria entre a Secretaria de Ciência e Tec- nologia do Estado do Rio e

Mar do Nordeste: água dessalinizada combaterá a seca

Cuba, o projeto terá papel importante no Programa de Fruticultura do Norte Flumi- nense. "Para que o programa tenha boa chance de sucesso, vamos criar uma infra-estru- tura para produzir 4 milhões de mudas por ano de cinco ti- pos: banana, goiaba, abacaxi, mamão e cana", explica Sílvio Lopes Teixeira, do Laborató- rio de Fitotecnia do Centro de Ciências e Tecnologia Agropecuária da Universida- de Estadual do Norte Flumi- nense (Uenf). A Uenf está re- cebendo e implantando a tecnologia cubana. A biofá-

brica de Campos será a mais moderna do país. "Usaremos luz natural em vez da artifi- cial e teremos com isso uma economia de 20% no consu- mo de energia", diz Teixeira. Além disso, a esterilização será feita em meio químico (em vez de usar autoclave). A construção ocupará 600 me- tros, e a superfície telada - na qual as plantas serão cultiva- das -, outros 8 mil metros. A Uenf está trabalhando com o Instituto de Biotecnologia de Plantas da Universidade de Las Villas, de Cuba. •

■ Embrapa cria instituto na Nigéria

Cinco integrantes da Empre- sa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) es- tão empenhados em um tra- balho especial em Jigawa, o Estado mais novo da Nigéria, África. Eles ajudarão os nige- rianos a montar um Instituto de Pesquisa Agropecuária, dentro do projeto de coope- ração técnica entre a empresa brasileira e o governo de Jiga- wa. Os cinco técnicos - na verdade, três da Embrapa e dois da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola - farão o levantamento de in- formações relativas à estrutu- ra física, de recursos huma- nos e institucional. Também

serão realizados os primeiros estudos para manejo de pas- tagem em zona semi-árida, característica da região. Os nigerianos estão interessados em fruticultura tropical, grãos (milho, sorgo, feijão e arroz), pastagens, fertilidade de solos, irrigação e sistema de informação geográfica. Hoje, a atividade agrícola da Nigéria se limita à produção de grãos e hortaliças, além da exploração da madeira. •

■ Prêmio Jovem Cientista

O Prêmio Jovem Cientista, o mais importante no gênero da América Latina, agraciou estudos bem distintos na edição 2001. O primeiro, de Gilberto Lacerda, da Univer- sidade de Brasília (UnB), ga- nhou na categoria Gradua- dos pela criação de dois softwares de educação infan- til na área de ciências batiza- dos de Hércules e o jiló e O dado de contos. Jean Piton Gonçalves, estudante de ma- temática da Universidade Es- tadual de Campinas (Uni- camp), também criou um software para alunos do ensi- no fundamental, o Formei, que ensina a disciplina para crianças que nunca tiveram contato com Internet ou com- putador. Na categoria ensino médio, Vanderly da Concei- ção Veloso Júnior, de 17 anos, de Belo Horizonte, montou uma estrutura para a prática de rappel - técnica de descida de pontos altos por meio de cordas - e a usou para expli- car conceitos físicos como atrito, energia cinética, movi- mento retilíneo e uniforme, força e peso. Os ganhadores dividirão mais de R$ 70 mil em prêmios. O tema de 2002 será "Energia elétrica: gera- ção, transmissão, distribuição e uso racional". •

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FITOTERÁPICOS

As lições dos Krahô Em busca de novas drogas, pesquisadores

identificam 164 plantas usadas por

índios do Tocantins em rituais de cura

MARCOS PIVETTA

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A cultura dos índios brasileiros é freqüentemente Í^L objeto de estudo de antropólogos. Mas suas

J^m práticas medicinais, baseadas no emprego te- i % rapêutico de plantas, são pouco pesquisadas

JÈL* JL. e raramente servem de base para o desen- volvimento de novos remédios. Um projeto do médico Elisaldo Carlini, diretor do Centro Brasileiro de Informa- ções sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), deu o primeiro passo para reverter esse quadro. Pelo menos no que diz respeito à pou- co conhecida fitofarmacopéia empregada por um grupo indígena nacional, a etnia Krahô.

Uma doutoranda orientada por Carlini, a bióloga Eliana Rodrigues, passou dois anos ma- peando as plantas e receitas prescri- tas por sete xamãs - sacerdotes-cu- randeiros encarregados de cuidar dos doentes e promover rituais de cura - de três aldeias que fazem parte da Kraolândia, a reserva in- dígena da etnia situada numa área de cerrado no norte do Estado de Tocantins. Ao fim do levantamen- to, patrocinado pela FAPESP, Elia- na conseguiu identificar, com o auxílio de taxonomistas do Insti- tuto de Botânica do Estado de São Paulo, um arsenal de 164 espécies vegetais usadas com fins medici- nais - todas plantas nativas da flo- ra brasileira. Desse total, 138 pare- cem ser espécies com algum tipo de influência sobre o sistema ner- voso central, a área de interesse das pesquisas do grupo. Aparente- mente, essas plantas podem curar patologias ou promover alterações comportamentais, de humor ou cognição. Na visão dos Krahô, al- gumas são para namorar, casar ou até mesmo separar marido e mu- lher. Outras carregam a fama de aumentar a resistência física e são usadas pelos índios em competições, nas quais carregar to- ras de árvores ou disputar corridas figuram entre as ativi- dades preferidas. Outras ainda são alucinógenas.

Com essas 138 espécies, os xamãs preparam 298 recei- tas curativas, destinadas a 51 tipos de indicações terapêu- ticas. "A mesma planta pode ser empregada para mais de uma finalidade", conta Eliana, que fez dez visitas às aldeias,

As práticas de sete sacerdotes-curandeiros da etnia, os chamados xamãs (acima), foram estudadas por equipe da Unifesp

tendo convivido cerca de 200 dias com os Krahô. Depen- dendo de como é preparada, a espécie chamada de ahtu na língua timbira dos Krahô, por exemplo, pode ser usada para resolver problemas amorosos com o parceiro ou como for- tificante. Para lidar com um determinado problema de saú- de, é comum existirem várias alternativas de tratamento. No caso dos fitoterápicos com propriedades analgésicas, a bió- loga contabilizou 48 receitas, que se utilizam de 40 plantas.

As perspectivas de encontrar alguma nova droga nesse conjunto de quase 140 espécies com potencial de ação sobre o sistema nervoso central parecem boas. Afinal, trata-se, em sua imensa maioria, de plantas nunca analisadas pelos crité- rios científicos do homem ocidental. Apenas 11 das 138 es-

pécies haviam sido alvo de estudos farmacológicos e fito- químicos e, em somente um caso, houve coincidência entre o uso preconizado pelos índios e a prescrição apontada pela medicina convencional. "Temos material de pesquisa para mais de 20 anos", comenta Carlini, entusiasmado com os re- sultados do trabalho de campo. "Não conheço nenhum le- vantamento desse porte a partir da cultura indígena." O no- me científico das plantas e seu possível uso terapêutico é mantido em sigilo. A precaução se justifica: a informação é valiosa e poderia ser aproveitada indevidamente por labo- ratórios farmacêuticos e outros grupos de pesquisa inte- ressados em eventuais dividendos econômicos decorrentes do mapeamento feito pelo projeto. "Os direitos dos índios

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Na visão dos índios, algumas plantas atuam como fortificantes e são usadas em competições, como a corrida de toras

serão respeitados", garante o médico. "Já firmamos um pré- acordo com os Krahô, que receberão sua parte se desenvol- vermos remédios comerciais a partir de seus conhecimentos."

Como a quantidade de informações e plantas obtidas junto aos Krahô é muito grande, ainda que trabalhassem apenas com as que parecem ter algum efeito sobre o sistema nervoso central, Carlini e Eliana resolveram direcionar seus esforços para cinco categorias de interesse: espécies com efei- tos analgésicos; que ajudam a controlar o peso; com ação hipnótica/ansiolítica; que atuam sobre a memória e o pro- cesso de aprendizagem; e que sejam adaptógenas (aumen- tam a resistência física). Se não procedessem assim, o risco

de o projeto perder o foco seria grande. A idéia é escolher duas ou três plantas de cada uma dessas categorias e concen- trar os estudos farmacológicos nessas 10 ou 15 espécies. O res- to do material coletado no levantamento fica, por enquanto, fora da linha de frente dos estudos. "Não daria para pesqui- sarmos tudo", comenta Eliana. "Tínhamos de estabelecer al- gumas prioridades, apesar de termos encontrado práticas curiosas fora de nossas categorias de interesse, como o empre- go, entre as mulheres, de plantas para promover a fertilidade ou inibir, temporária ou permanentemente, a concepção."

A maior parte dos fitoterápicos feitos pelos Krahô é ad- ministrada na forma de chás, feitos com uma ou várias

Massacres e migração: a saga dos filhotes de ema Dos milhares de membros do

povo Krahô que tiveram os primei- ros contatos com o homem ocidental em fins do século 18, quando ainda habitavam o Maranhão, sobravam cerca de 400 índios na década de 1930, possivelmente o momento mais crítico de sua história. Alvo de inúmeros massacres e deslocamen- tos, os remanescentes da etnia mi- graram para o sul, subiram o rio To- cantins e se fixaram numa área onde, em 1944, o governo federal delimi- tou sua reserva indígena: 302 mil hectares de cerrado no norte do Es-

tado do Tocantins, nos municípios de Goiatins e Itacajá. A Fundação Nacional do índio (Funai) demarcou as terras da Kraolândia, como é cha- mada a reserva, apenas em 1975. E sua homologação se deu ainda mais tarde, em 1990. Hoje os membros da etnia batem na casa dos 1 700 índios.

A reserva conta com 16 aldeias e 58 xamãs. A partir de entrevistas e questionários aplicados em sete desses curandeiros, a bióloga Eliana Rodri- gues, da Unifesp, fez o levantamento de plantas medicinais usadas em três aldeias, Serra Grande, Forno Velho e

Aldeia Nova, as duas primeiras de di- fícil acesso. Cada aldeia é constituída em torno de um pátio circular, ao re- dor do qual são erigidas as moradias. Sua quantidade de habitantes pode variar de 40 a mais de 250 pessoas. Entre suas lideranças, destacam-se o cacique (pahi) e o prefeito, além dos xamãs. Os homens se ocupam da caça, pesca e do preparo da roça. Além de cuidar da casa e dos filhos, as mulheres cortam lenha e, não raro, desempenham as mesmas tare- fas dos homens. Suas casas são de pau-a-pique, com telhado feito de

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partes das plantas, inteiras ou raladas. O xamã também pode aplicar topicamente, sobre o corpo dos pacientes, partes dos vegetais ou usá-las para preparar cigarros, ba- nhos ou inalações. Em alguns casos, folhas e raízes de al- gumas plantas são consumidas pelos doentes, pois os índios acreditam que as propriedades terapêuticas estejam no su-

mo desses vegetais. Durante o exercício de sua função, os xamãs, denominados wajacas em timbira, fumam cachim- bos recheados de tabaco, maconha ou outras plantas alu- cinógenas. A fumaça é assoprada sobre os pacientes. De- pendendo do caso, o wajaca pode espalhá-la pelo corpo do doente, a fim de "visualizar" melhor o mal. Ou concentrá-

la num único ponto para poder "chupar" o mal, extraindo a enfermidade-feitiço do organismo em sofrimento.

No dia seguinte a esse ritual, praticado geralmente à noite, os xamãs formulam a receita com as plantas que, em sua visão,

folha de palmeira, sem água encana- da ou luz elétrica.

Em poucas aldeias há escolas, com professores nativos, mantidas por uma entidade não-governamen-

tal, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI). As aulas são em timbira - os índios que falam português só usam nosso idioma para se comunicar com o homem das cidades. Os inte-

Cerca de 1 700 índios vivem na Kraolândia, reserva de 302 mil hectares no norte de Tocantins

resses da etnia são defendidos por uma entidade que representa vários povos timbira, entre os quais os Kra- hô, a Associação VYTY-Cati. Em sua língua, os Krahô se autodenominam Mãkrare, que significa literalmente filhotes de ema. O paralelo entre os índios e o animal faz sentido. Assim como esse bicho, os membros da et- nia gostam de vagar pelo cerrado, mas sempre voltam para casa. É o destino do índio.

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vão ajudar o colega da aldeia. | Para acompanhar o efeito de s seus preparados, passam a vi- 1 sitar a casa dos seus pacientes. Se uma receita não funciona, tentam outra. "Como os nos- sos médicos, os xamãs dos Krahô se especializam em uma ou mais doenças", comenta Eliana. "Alguns cuidam mais de picadas de cobra, gripes e assim por diante." Às vezes, obviamente, não há tratamen- to que dê resultado. A morte é vista por eles como fruto de um acidente, feitiço ou doença.

Por que os pesquisadores da Unifesp resolveram es- tudar o emprego de fito- terápicos entre os Krahô, presentes unicamente no

Tocantins, em vez de qualquer outra etnia nacional? Resposta: esse povo foi o que mais se aproximou do perfil desejado. Estava num bioma cuja flora é pouco estudada do ponto de vista etnofarmacológico, o Cerrado. Carlini e Eliana não queriam trabalhar com grupos humanos estabelecidos na Ma- ta Atlântica ou na Floresta Amazônica, ecossistemas onde se concentra a maior parte das pesquisas botânico-farmaco- lógicas. Além disso, a etnia preenchia outros três requisitos fundamentais: valia-se de rituais e plantas alucinóge- nas durante suas práticas medicinais; tinha, entre seus membros, especialis- tas em práticas de cura; e se encontrava numa área isolada geograficamente, sem acesso à rede pública de saúde. "Muitos índios nem sabem o que é novalgina", diz Eliana, que, no traba- lho de campo, foi auxiliada por seu ir- mão Eduardo Rodrigues, estagiário da Unifesp. A maior cidade próxima das aldeias Krahô é Carolina, no sul do Maranhão, com 24 mil habitantes, distante cerca de 12 horas de carro. A viagem, por estradas de terra, só pode ser feita em um veículo com tração nas quatro rodas, geralmente uma picape.

O processo de descoberta de uma droga sempre é longo. É verdade que a opção de conduzir as pesquisas a partir da indicação de fitoterápicos uti-

lizados pelos índios encurta um pouco esse percurso. Afinal, antes de inicia- rem os estudos científicos, os pesqui- sadores já têm uma noção de qual pode ser a esfera de ação do possível medicamento. Mesmo assim, há uma série de etapas que precisam ser ven- cidas para comprovar a eficácia - e a não-toxicidade - de um medicamento.

Quando se trabalha com fitoterápi- cos, uma dessas etapas é promover o cultivo das espécies nativas com poten- cial para gerar remédios, gerando assim uma fonte controlada das plantas que serão alvo de novas coletas. Isso vem sendo feito nas aldeias desde junho passado, com o auxílio de uma agrôno- ma, Kátia dos Santos, que orienta os Krahô sobre os melhores procedi- mentos agrícolas. De posse de exem- plares das plantas escolhidas, os pesqui- sadores preparam extratos e dão início às análises científicas propriamente ditas em seus laboratórios. As espécies can- didatas a gerar fitoterápicos são inicial- mente testadas em animais, para de-

O PROJETO

Usos Tradicionais de Plantas Psicoativas por Dois Grupos Humanos no Brasil: Uma Reflexão sobre Eficácia Simbólica e Princípios Ativos

MODALIDADE Linha regular de auxílio à pesquisa

COORDENADOR

EUSALDO CARLINI - UNIFESP

INVESTIMENTO

R$ 45.887,50 e bolsa de doutorado

Os autores do trabalho, a bióloga Eliana Rodrigues

e o médico Elisaldo Carlini

terminar se seu emprego ofere- ce algum risco. Se aprovados nessa etapa, os extratos vege- tais seguem para uma série de experimentos com seres hu- manos. Nessa nova bateria de testes, sua toxicidade é nova- mente averiguada e determi- nada sua eficácia como droga contra algum problema de saú- de. Em seguida, os pesquisado-

res devem estabelecer em que dosagem o medicamento pode ser prescrito e quais são seus eventuais efeitos colate- rais. Os pesquisadores da Unifesp não têm a pretensão de encontrar o prin- cípio ativo das plantas que se mostra- rem úteis para gerar medicamentos. Querem apenas determinar e garantir o registro comercial de seu extrato, a partir do qual se produzirá um fitote- rápico. "Para cada planta que chega ao fim desse processo, abandonamos dez pelo caminho", estima Carlini. Isso de- pois de consumir cinco anos de pes- quisa e R$ 2 ou R$ 3 milhões de reais em investimentos.

O médico, no entanto, está conven- cido de que é mais barato procurar drogas no meio da rica biodiversidade nacional - o Brasil está entre os sete países do mundo com maior número de espécies vegetais - do que traba- lhar com a síntese química de fárma- cos, como fazem os grandes laborató- rios multinacionais. "Essa é a grande chance para a indústria brasileira", afirma Carlini. Para acelerar suas pes- quisas com os fitoterápicos indicados pelos índios, o projeto da Unifesp bus- ca agora estabelecer parcerias com a ini- ciativa privada. O laboratório Ache, a maior indústria farmacêutica nacional, é um dos interessados em financiar os estudos. "Perdemos o bonde da histó- ria na geração de drogas a partir da quí- mica fina", diz José Eduardo Bandeira de Mello, diretor-geral da empresa. "Se o Brasil não entrar firme agora na pesquisa de fitoterápicos, vamos per- der o segundo bonde." •

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Promoçlo

Avaliação dos projetos dos 21 grupos de pesquisa do projetoGenoma Funcional da Xy/ella fastidiosa

Considerações do Comitê Assessor FuncionalAlemanha - Estados Unidos - Reino Unido - Hong Kong

Arruda, P • Azevedo, JL • aellato, CM • Bergamin Filho, A • Brant, P • Ferro, JGomes, SL • Harakava, R • Lambais, MR • Lemos, EGM • Li, W • Lopes, JRSLopes, SA • Machado, EC • Machado, M • Manfio, G.- Mendes, B • Novello, JC

Oliveira, RLBC • Pascholati,SF • Rasera, AC • Rosato, YB • Tsai, SMCash, Phil • Danchin, Antoine • Gabriel, O • Hoheisel, J

cOMPAalij

Patroclnlo

It!f:l Applied~g Biosystems

I).PerkinE e

life sciences.

Page 20: Da aldeia ao laboratório

POLíTlC~ CIENTíFIC~E TECNOLÓGIC~

GENÜMICA

A genética lucrativa do papelEmpresas de papel e celulosepatrocinam projetodo genoma do eucalipto

As indústrias de papel, celulo-se e produtos florestais apos-tam na genômica funcional

para aumentar a produtividade dasflorestas de eucalipto, reduzir custosde produção e reforçar asua competitividade nomercado brasileiro e inter-nacional. Um consórcioformado pela VotorantimCelulose e Papel (VCP), Ri-pasa Celulose e Papel, Su-zano de Papel e Celulose eDuratex está participandodo projeto ForESTs (Eu-calyptus Genome SequencingProject Consortium), de se-qüenciamento do genomade árvores de eucalipto, queestásendo realizadopelo Pro-jeto Genoma Agronômico eAmbiental (Agronomical andEnvironmental Genome -AEG), da FAPESP.Este é oprimeiro projeto Genomafinanciado dentro do projeto Parceriapara Inovação Tecnológica (PITE). Aexpectativa é que a análise funcionaldos genes da madeira, raízes, folhas eflores permita decifrar a origem deproblemas que comprometem o de-senvolvimento da planta e favoreça aseleção das melhores mudas.

"Na primeira fase do programa,vamos produzir 100 mil seqüências(ESTs) para encontrar, no mínimo,15 mil genes", afirma Helaine Carrer,do departamento de Ciência Biológi-ca da Escola Superior de AgriculturaLuiz de Queiroz (Esalq), da- Univer-sidade de São Paulo (USP), coorde-

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nadora do projeto. Na segunda fase,a pesquisa vai identificar os diferen-tes genes expressos nas diversas par-tes da árvore, por meio de utilizaçãoda técnica de microarrays, que per-mite a associação desses genes a de-terminadas características biológicasda árvore.O objetivo será identificarsua resistência a diferentes doenças,tolerância a estresse, qualidade da ma-deira e outras características agronô-micas. O projeto prevê, ainda, o de-

Pesquisas elevaram a produtividade média das florestas

senvolvimento de um sistema deanálise de dados para a seleção dosmelhores clones do eucalipto.

As pesquisas avançam em ritmoacelerado: em menos de dois meses jáforam depositadas na bioinformáticado projeto 35 mil seqüências e obti-dos cerca de 10 mil genes. ''A primei-ra fase estará encerrada em fevereiro,quando partiremos para a análisefuncional", prevê Helaine. Mas o inte-resse prático dos parceiros está na se-gunda fase. "Os resultados terão forteimpacto na produtividade florestal ena produção de celulose. Poderemosutilizar as informações como um mar-

cador para a seleção de novos materiaisgenéticos", prevê Celina Ferraz do Val-le, responsável pelo projeto na VCP.

Nesta primeira fase, o custos de se-qüenciamento dos genes - orçadosem US$ 530 mil - é financiado pelaFAPESP.As empresas participam comoutros R$ 500 mil, utilizados para opagamento de pessoal vinculado aos20 laboratórios que integram a redeAEG. Na segunda fase, as empresas sepreparam para investir algo em torno

de R$ 1,2 milhão, na análi-se funcional dos genes."Trata-se de um projeto derisco, mas temos confiançana equipe e buscamos umaferramenta que possibiliteo melhoramento assistidoe a seleção precoce das mu-das, através do biochip",afirma Raul Chaves, daDuratex, empresa que man-tém 70 mil hectares de flo-restas de pinus e eucaliptospara a produção de chapaspara a indústria moveleirae laminados.

Vantagem competitiva - Oeucalipto, perfeitamente a-daptado às condições climá-

ticas do país, é a árvore preferida dasindústrias de polpa, papel e celulose,desde a década de 40. Atualmente, asflorestas de eucalipto cobrem cerca de3 milhões de hectares do territórionacional. A indústria florestal que uti-liza o eucalipto como matéria-prima- polpa, papel e celulose - representaalgo em torno de 4% do Produto In-terno Bruto, 8% das exportações eemprega em torno de 150 mil pesso-as. O investimento das empresas empesquisa elevou a produtividade mé-dia anual das árvores de 12 metroscúbicos por hectare, na década de 70,para cerca de 40 metros cúbicos por

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hectare, nos anos 90. "Semesse ganho de produtivida-de, precisaríamos de área umavez e meia maior para ter osmesmos resultados", afirmaLuiz Cornacchioni, gerentede planejamento da Suzano,cujas florestas de eucaliptosomam 86 mil hectares.

Os melhoramentos clás-sicos garantiram ao Brasil acondição de maior produtormundial de celulose de fibracurta, produzida a partir doeucalipto. Até 2005, a indús-tria de papel, celulose e deprodutos florestais tem pla-nos de investir a expressivasoma de US$ 6,6 bilhões pa-ra consolidar o mercado.Mas os ganhos de produtivi-dade até agora obtidos têmsido resultados de investi-mentos em melhoramentosgenéticos clássicos, que têmritmo semelhante ao do cres-cimento da árvore. "Tudo oque colhemos hoje é resulta-do de pesquisas feitas há dezanos e de sete anos de traba-lho operacional", observa Jo-sé Maria de Arruda MendesFilho, gerente-geral da VCP.A lentidão pode comprome-ter as vantagens competitivasacumuladas nas duas últimasdécadas, já que os países asi-áticos, que têm adotado pro-gramas fiscais agressivosde incentivo aplantações de eucalipto, podem ganhara dianteira. "Precisamos encontrar no-vas tecnologias e apostar naquilo que éponta. A genômica é uma caixa-preta,mas somos curiosos e pagamos paraver", afirma o gerente-geral da VCP.

Parceria de futuro - As empresas queintegram o consórcio não têm dúvi-das de que a biologia molecular podeser uma excelente ferramenta paraacelerar esse processo e avançar naconquista de novos mercados. "Os re-sultados nos permitirão aumentar aprodução na floresta e na indústria,com ganhos de produtividade na con-fecção de celulose e papel", diz Izabel

Menezes de Bulhões Gomes, respon-sável pela área de Tecnologia e De-senvolvimento da Ripasa, empresaque registra 71,2 mil hectares de flo-resta, sendo 56,2 mil hectares de eu-calipto e 15 mil hectares de preserva-ção permanente ..

Projeto semelhante, de seqüencia-mento de ESTsde árvores como o Pi-nus e Bircg, estão sendo desenvolvi-dos nos Estados Unidos e paíseseuropeus há cerca de dois anos. "Eeles não chegaram ainda a 50 mil se-qüências': revela Helaine. "O Brasilpoderá chegar na frente na análise dogenoma funcional da árvore, já que aestrutura de pesquisa do projeto Ge-no ma montada pela FAPESP é única:

Projeto vai identificar 15 mil genesde folhas, flores e da madeira paradecifrar problemas e selecionar mudas

envolve 20 laboratórios que traba-lham em rede e com eficiência."

Nos últimos 30 anos, a maior par-te das pesquisas sobre o eucalipto foidesenvolvida em consórcio formadopelo Instituto de Pesquisa Florestal(Ipef) - que representa as empresas- e o Departamento de Ciências Flo-restais da Esalq. Recentemente, como desenvolvimento das indústrias e ocrescimento da demanda por melho-res materiais com características es-pecíficas de crescimento, as empre-sas passaram a investir em seuspróprios programas de pesquisa -em muitos casos, com o apoio deuniversidades e institutos de pesqui-sa -, ou em colaboração com institu-ições governamentais.

O consórcio formado para o se-qüenciamento e análise funcional dogenoma do eucalipto inaugura umanova modalidade de parceria. As em-presas integrantes do consórcio nãotêm dúvidas de que se trata de umaparceria de futuro. "Estamos promo-vendo a interação entre duas comuni-dades: a científica e a industrial. Te-mos a matéria-prima e vamos buscarformas para aprimorá-Ia", diz MendesFilho, da Votorantim. ••

PESQUISA FAPESP . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • 21

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

EMPRESA

IBGE sai a campo Pesquisa vai avaliar

os esforços de inovação

da indústria brasileira

O Instituto Brasileiro de Geo- grafia e Estatística (IBGE),

com o apoio do Ministério da Ciên- cia e Tecnologia (MCT), vai avaliar o esforço de inovação da industria brasileira. A Pesquisa so- bre Inovação Tecnológica (Pintec), iniciada em 19 de novembro, vai consul- tar 10 mil empresas de diversos setores - num universo de 72 mil indús- trias -, com mais de dez empregados, em todo o país. O objetivo é iden- tificar as iniciativas ino- vadoras em tecnologia de produtos e processos, contabilizar os investi- mentos em pesquisa e de- senvolvimento (P&D) e analisar as relações de cooperação com outras instituições, explica Was- malia Bivar, coordenado- ra da Pintec. O resultado será uma série de indica- dores setoriais e regionais para ava- liar a inovação tecnológica no país.

Também serão avaliadas outras formas de incorporação de tecnolo- gia, por meio de patentes, marcas e aquisição de máquinas e equipamen- tos, assim como os gastos com trei- namento e qualificação de mão-de- obra, entre outros. "Será possível saber, por exemplo, se a empresa so- licitou patente no Brasil ou no exte- rior e qual o percentual do fatura- mento coberto por esse registro", ela acrescenta. As fontes de financia-

mento serão identificadas, assim co- mo os principais parceiros das em- presas no processo de inovação.

"Essas informações serão impor- tantes para desenhar políticas de in- centivo e investimento em P&D", diz Sinézio Pires Ferreira, assessor da Se- cretaria Executiva do MCT. Para as empresas, a pesquisa vai gerar infor- mações fundamentais para orientar a escolha de estratégias de moderniza- ção, de forma a ampliar sua produti-

vidade e aumentar a competitividade no mercado internacional, completa Wasmalia. Os resultados estarão dis- poníveis em duas etapas, em maio e abril do próximo ano.

Será a primeira pesquisa sobre investimentos em tecnologia e ino- vação de abrangência nacional. A Associação Nacional de Pesquisa, De- senvolvimento e Engenharia das Em- presas Inovadoras (Anpei), a Funda- ção Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e a Sociedade Brasi- leira de Estudos de Empresas Trans-

nacionais e da Globalização Econô- mica (Sobeet) realizam pesquisa se- melhante, mas com caráter regional e setorizado. A Pintec terá abrangência maior: coletará dados de empresas em todo o território nacional para o período 1998 - 2000, consolidando informações sobre os investimentos públicos e privados em inovação tec- nológica. Esses indicadores permiti- rão, ainda, compatibilizar as infor- mações da indústria nacional com o desempenho das empresas de outros países, já que a Pintec obedece a pa- drões semelhantes aos de pesquisas realizadas, por exemplo, na União Européia. "É importante que os da- dos possam ser comparados e que a Pintec tenha um período de referên- cia", justifica Wasmalia.

Além das variáveis da pesquisa, os dados da Pin- tec serão ainda cruzados com as informações da Pesquisa Industrial Anual (PIA), realizada pelo IBGE, que avalia receitas, gastos

Ç~r j | e outras características \s **/ s das empresas. Essa estra-

' tégia permitirá a amplia- / ção das informações, o a-

profúndamento do perfil das empresas e a multipli- cação dos indicadores so- bre os investimentos em inovação no país.

O IBGE também está inovando na forma de aplicação do questionário da Pintec. O sistema tra- dicional, com questões feitas diretamente ao

entrevistado, será adotado apenas nas empresas com mais de 500 fun- cionários. "A estrutura mais comple- xa vai exigir visitas diretas", afirma Wasmalia. Nas demais, os dados se- rão coletados por telefone, em entre- vistas previamente agendadas. Nos dois casos, os pesquisadores utiliza- rão um palmtop - um computador pouco maior que uma agenda de bolsa - para a coleta das informa- ções. "Esse sistema permite avaliar a consistência dos dados durante a própria entrevista", ela garante. •

22 • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

Page 23: Da aldeia ao laboratório

POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

METEOROLOGIA

Previsão confiável FAPESP, em parceria

com SCTDE, lança programa

de hidrometeorologia

A FAPESP, em parceria com o Conselho de Hidrometeorolo-

gia (Cehidro), da Secretaria de Ciên- cia, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico (SCTDE), está lançando o programa Sistema Integrado de Hidrometeorologia do Estado de São Paulo (Sihesp). O programa vai reu- nir um conjunto de pesquisas sobre os recursos hídricos - tanto os de su- perfície e subsuperfícies como os de atmosfera -, cujos resultados permi- tirão ao setor produtivo, e à socieda- de como um todo, dispor de infor- mações meteorológicas confiáveis que permitam previsões de curtíssi- mo, médio e longo prazo (ver quadro nesta página). A expectativa é de que cerca de 60 projetos participem da seleção. "No ano passado, pedimos

que os interessados nos enviassem pré-projetos para que pudéssemos avaliar o programa, que estava em fase de elaboração. Naquela época, recebemos 68 solicitações. Estamos supondo que agora não será diferen- te", conta Luiz Nunes, coordenador- adjunto da Fundação.

A maior parte dos recursos que a FAPESP destinará ao Sihesp - algo em torno de R$ 15 milhões - finan- ciará a compra de equipamentos, co- mo radares meteorológicos, perfila-

Áreas de pesquisa do programa Sihesp

■ Meteorologia

• Hidrologia Superficial

• Água Subterrânea

■ Sensoriamento Remoto da Atmosfera

" Recursos Hídricos e Saneamento

' Oceanografia Costeira e Gerenciamento Costeiro

■ Agricultura

• Meio Ambiente

■ Impactos Socioeconômicos

/ / dores de vento, monitores do estado do mar e redes meteorológicas que serão utilizadas para o desenvolvi- mento dos diversos projetos de pes- quisa. A Secretaria entrará com con- trapartida financeira que incluirá a instalação, manutenção e operação dessa rede observacional. Concluídos os projetos, os equipamentos serão doados às instituições às quais esta- vam vinculados os pesquisadores.

Os pedidos de financiamento serão encaminhados à FAPESP até o dia 14 de dezembro para serem ava- liados por assessores internacionais. "Os resultados, muito provavelmente, serão publicados até meados de feve- reiro", afirma. Os projetos serão ana- lisados como auxílios individuais. Os aprovados contarão com apoio para a pesquisa por um período de dois anos, que poderá ser prorrogado, em função do estágio de desenvolvimen- to do projeto.

Os resultados das pesquisas, adian- ta Nunes, deverão ter forte impacto na prevenção de enchentes, na defesa civil, em programas de reflorestamen- to, entre outros. Outro objetivo do programa é desenvolver tecnologias que permitam a avaliação de reserva- tórios de água, do aquecimento dos reservatórios, desmatamento da Serra do Mar ou da poluição do aqüífero Guarani. •

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ENTREVISTA: ESPER CAVALHEIRO

Da teoria à prática 0 novo presidente do CNPq, o neurologista

Esper Cavalheiro,fala sobre bolsas, Relatório

Tundisi e o papel das agências de fomento

O neurologista paulista Esper Abrão Cavalhei- ro é o novo presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq). Substitui Evando Mirra, indicado para a coordenação do recém-criado Cen- tro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Há dois anos, Ca- valheiro deixou a diretoria do Depar- tamento de Neurologia e Neurocirur- gia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para assumir a Secre- taria de Políticas e Programas do MCT. Participou do processo de re- formulação do ministério e afirma, em entrevista à editora Claudia Izique, que a troca no comando da agência é uma "substituição de continuidade".

■ Quais são os seus planos no comando do CNPq? Há mudanças em curso? — Não estamos no momento de pro- mover grandes mudanças. Desde que fui chamado pelo ministro Ronaldo Sardenberg, há dois anos, para ocupar a Secretaria de Políticas e Programas do MCT, passei a integrar uma equipe de trabalho que envolvia diretamente as duas agências de fomento do go- verno: o CNPq e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Os planos

foram traçados naquele momento. Agora é hora de colocá-los em práti- ca. Desde aquela época, a intenção do ministro era aumentar os recursos dis- poníveis para pesquisa em ciência e tecnologia. Essa meta está sendo alcan- çada com a implementação dos fun- dos setoriais. O plano também previa a implantação de políticas de longa duração, que não fossem atropeladas por problemas circunstanciais e que permitissem um planejamento e o avanço do setor no país. Esse objetivo está para ser alcançado: o MCT rea- lizou a Conferência Nacional de Ciên- cia e Tecnologia, em setembro, e está elaborando o Livro Branco com as principais metas para o desenvolvi- mento. Vivemos, portanto, uma fase em que a política está bastante clara e o papel das agências definido. Recente- mente, passamos a contar com o apoio do CGEE para a definição de políticas estratégicas. Assim, as regras do jogo já estão definidas. Assumo o cargo numa substituição de continuidade.

■ Quais são os novos papéis das agên- cias aos quais o senhor se refere? — A Finep ficará claramente voltada para a relação com empresas, com o objetivo de promover a sua aproxima- ção com a universidade e estimular a pesquisa empresarial, propriamente

dita. No Brasil, como se sabe, o inves- timento na inovação é muito peque- no, salvo honrosas exceções. Temos um potencial muito grande de pes- quisadores nessa área de tecnologia, mas, infelizmente, estão distantes do parque empresarial. No caso do CNPq, a nossa missão é financiar e balizar as atividades desenvolvidas nas univer- sidades e nos institutos de pesquisa, formando, ao mesmo tempo, recursos humanos e estimulando a pós-gra- duação no país.

■ Na sua posse, o ministro Sardenberg falou que o CNPq terá um Núcleo de Planejamento Estratégico, nos mesmos moldes do da Finep. Qual será sua tarefa? — Estamos estudando a constituição deste Núcleo de Planejamento Estra- tégico dentro do CNPq. O primeiro esboço de sua estrutura já está pronto. Esse núcleo vai fazer a interface do CNPq com o CGEE, com a Finep e com o próprio ministério. O CNPq tem uma quantidade enorme de ins- trumentos, desde as bolsas de inicia- ção científica até programas especiais como o Southern Observatory for As- trophyskal Research (Soar), em cons- trução na região de Cerro Pachón, no Chile. O CGEE vai delinear quais são as prioridades. Precisamos saber se o CNPq tem instrumentos necessários

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para se adequar às políticas que o CGEE considerar necessárias. É bom lembrar que o CNPq, a Finep e o CGEE têm atividades independentes. É preciso afinação para não atirar em direções opostas, utilizando o mes- mo dinheiro.

'Nesses rearranjos, estão previstas altera- ções nas relações com as fundações esta- duais de amparo à pesquisa e as secreta- rias estaduais de Ciência e Tecnologia? — Não há mudança nenhuma. Não há dúvida de que cada região deste país tem necessidades diferentes. Mas tem que haver uma clara interação entre as ações regionais, estaduais e munici- pais com aquilo que o MCT definiu como prioridade. Sabemos que deter- minadas ações que ocorrem em re- giões do país são dominadas por de- sejos políticos que nem sempre têm relação com os problemas da comu- nidade científica local. Pretendemos, na discussão com os líderes, tentar acoplar os programas do MCT, CNPq e Finep a esses anseios que são legíti- mos, levantados por discussões mais amplas e menos conduzidos por si- tuação política momentânea.

■ No ano passado, o CNPq reduziu para 4.075 o número de bolsas distri- buídas em São Paulo. Há perspectiva de aumento no número de bolsas para São Paulo? — Essa é uma discussão ótima. São Paulo tem uma quantidade de grupos de pesquisa muito maior que a média nacional. A competência instalada é muito grande. Isso não é novidade. São Paulo soube, por meio da FAPESP, criar mecanismos de estabilidade fi- nanceira para grupos de pesquisa que são invejados até no exterior. Nós, aqui em São Paulo, nunca nos preo- cupamos com a possibilidade de o di- nheiro não chegar. A demanda por mais recursos para bolsas é justa. Mas é preciso levar em conta que, no pa- norama nacional, a situação é diferen-

Tem que haver interação entre ações regionais, estaduais, municipais eo MCT

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • 25

Page 26: Da aldeia ao laboratório

te. São Paulo tem um desempenho muito superior em relação ao resto do país. No Brasil existem regiões onde a ciência começou ontem. São Paulo auxilia todos os demais Estados ao re- ceber alunos para pós-graduação, e esse treino permitiu que outras áreas começassem a produzir ciência. São Paulo treinou mestres e doutores e eles, agora, estão ativos.

■ Os fundos setoriais aumentaram sig- nificativamente o orçamento do MCT. Esse crescimento vai se refletir também no orçamento do CNPq, elevando o número de bolsas ou os valores pagos aos bolsistas? — O orçamento do MCT deverá cres- cer, no mínimo, 20%. Mas o dinheiro para recursos humanos é votado se- parado dentro do Plano Plurianual. Os recursos destinados a bolsas repre- sentam cerca de 60%. Alguns progra- mas têm dotação específica, como, por exemplo, o de biotecnologia. Em relação às bolsas, seus valores são pro- porcionais ao valor dos salários dos docentes das universidades federais. Há perspectivas de que esses valores sejam revistos. Não dá para imaginar que esses valores se manterão no mes- mo estágio.

■ O Relatório Tundisi preocupa a comu- nidade científica. A retirada da pós-gra- duação dos institutos é factível? Como o senhor vê as críticas ao relatório? — Tomei conhecimento do relatório como membro do MCT. O debate em torno de suas propostas deixa claro um problema: todos gostam de mu- dança, mas ninguém gosta de mudar. O relatório é resultado de uma ampla discussão com cada um dos institutos de pesquisa do país. Mas as pessoas insistem em generalizar as propostas contidas no relatório. O grande pro- blema é como elas avaliam o seu feu- do. A pós-graduação não pode seguir o mesmo caminho da especialização, copiando-lhe a estrutura. A formação do pesquisador não é a do especialis- ta. Na área da saúde, por exemplo, foi feito um trabalho imenso para agru- par coisas que jamais deveriam ter sido desmembradas. Com cursos frág-

il Ninguém quer dividir poder. Todos gostam de mudança,

mas ninguém gosta de mudar JJ

mentados por área de especialização, a pós-graduação acabou por se tornar um feudo. Ninguém quer dividir po- der. Quando se fala em associação, está implícito que alguém vai cair fora. Se a coordenadoria fica na universidade e não no instituto, o dinheiro será ad- ministrado pela universidade. A solu- ção é uma boa conversa entre as partes envolvidas. Há quem diga que o rela- tório não é bom por razões intelec- tuais. Eu preciso ser convencido disso.

■ O sistema de pós-graduação brasileiro se orgulha do aumento do número de doutores formados nos últimos anos. Ao mesmo tempo, há um número de doutores jovens, com boa formação, que não consegue emprego nem nas univer- sidades nem nos institutos. Como abrir esse mercado? — Nós nos orgulhamos do cresci- mento do número de doutores no país. Na década de 70 e 80, cresceram as universidades privadas, o que po- deria ter representado uma abertura de mercado para doutores e mestres formados nas universidades públicas. Mas a Lei de Diretrizes e Bases da Edu- cação permitiu que as universidades privadas colocassem especialistas, e não doutores e mestres, no comando da pós-graduação. Isso encurtou o

mercado. Além dessa dificuldade, os jovens recém-doutores disputam o mercado das universidades privadas com doutores com mais tempo de formação. Por outro lado, as univer- sidades públicas não podem crescer mais por força de restrições orçamen- tárias. As particulares, infelizmente, têm frustrado as nossas expectativas ao não se tornarem centros de pes- quisa. É claro que existem honrosas exceções. E, finalmente, mais um problema: as empresas não estão em- penhadas em receber os jovens pes- quisadores. A nossa expectativa é que as universidades públicas voltem a contratar. Há um envelhecimento dos professores universitários. A média de idade aumenta a cada ano, o que não é um bom sinal para a C&T. Esperamos também que as universidades priva- das, em vez de montar um quadro de pessoal para demonstração, invistam nas pessoas. Apostamos, ainda, no de- senvolvimento empresarial e na ino- vação para ampliar o mercado de tra- balho para nossos doutores.

■ Como um pesquisador como o senhor se sente ao deixar o laboratório de pes- quisa para assumir um cargo como a presidência do CNPq? — Estou muito contente de poder olhar o país como um todo. Nós, pes- quisadores de São Paulo, somos prote- gidos por uma agência de fomento como a FAPESP. Mas é um privilégio dirigir o CNPq e ver o grande núme- ro de desafios que se colocam para a C&T no país. Só lamento, como pes- quisador, não estar ao lado do aluno quando ele faz uma observação pela primeira vez, quando descobre o co- nhecimento. Agora, eles me comuni- cam seu sucesso por e-mail. Essa é a vitória do professor. Por outro lado, em Brasília, o momento é dos mais di- nâmicos. Nunca se falou tanto em ciên- cia e tecnologia. Quando fui convida- do, a grande motivação era colocar C&T na agenda nacional. E foi o que ocorreu. Descobri que tinha coisas importantes fora da área da medici- na. É bom poder estudar coisas de áreas que não conhecia. Às vezes, sin- to desejo de começar de novo. •

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Page 28: Da aldeia ao laboratório

CIÊNCIA

LABORATÓRIO

A salvação de Veneza na arte de Canaletto Mesmo morto há 230 anos, o pintor Canaletto (1697- 1768) contribui para tentar salvar Veneza do avanço do mar. Pesquisadores desco- briram que a alta precisão de seus quadros retratando a cidade no século 18 mos- trava o nível do mar um sé- culo e meio antes que fos- sem criadas técnicas de medição, segundo a revista New Scientist (20 de outu- bro). Veneza é construída sobre uma laguna do Mar Adriático, o que a faz tre- mendamente vulnerável à mudança do nível das águas, especialmente agora, com o aquecimento global. Os primeiros instrumentos usados para medir o nível do mar surgiram em 1872. Hoje, os pesquisadores es- tão empenhados em procu- rar caminhos para desco- brir o que aconteceu antes disso, para ajudar a prever o que deverá ocorrer no futu- ro. Dario Camuffo e equipe, do Instituto de Ciência At- mosférica e Clima de Pá- dua, descobriram que as pinturas de Canaletto (Gio- vanni Antônio Canal) po-

O Canal de São Vio, pintado em 1723: precisão e detalhes já auxiliam os pesquisadores

dem ser usadas para recons- truir o passado. O pintor veneziano utilizava um tipo de câmara escura para deli- near a paisagem com os edi- fícios que ele colocava nas telas. Os especialistas dizem que esse foi um jeito encon- trado para que conseguisse terminar os quadros - sem- pre extremamente detalhis- tas - mais rapidamente. De

acordo com Camuffo, o efei- to é quase tão bom quanto uma fotografia. "Canaletto é absolutamente confiável", diz o pesquisador. Olhadas com atenção, essas "pintu- ras fotográficas" mostram um linha marrom-verde nos edifícios, que marca o nível da maré. Camuffo compa- rou a posição da linha na pintura com a dos dias de

hoje. E descobriu que o ní- vel relativo do mar em Ve- neza aumentou 0,8 metro (ou 2,7 milímetros por ano) desde o tempo de Canalet- to. A informação será de grande valor para ajudar os pesquisadores a decidir qual a melhor maneira para proteger Veneza e sua he- rança cultural do avanço das marés. •

■ Areia ácida, de Gobi para o Japão

Areia poluída tornou-se um problema pior do que chuva ácida no Japão. Normalmen- te, a areia soprada para o Ja- pão dos desertos de Gobi e de Taklamakan, no este da Ásia, a cada primavera, não causam problemas para os japoneses. Ocorre que pesquisadores do Instituto Nacional para Estu-

dos Ambientais de Tsukuba têm demonstrado que a areia tornou-se ácida porque capta poluentes químicos durante a viagem de um lugar para ou- tro, como ácido sulfurico e ní- trico. "A areia, trazida pelo vento através do Pacífico, pode chegar até o Havaí", dis- se Masataka Nishikawa, que lidera a equipe de estudos, para a revista New Scientist (20 de outubro). •

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■ A nova ameaça trazida pelas pombas

Além da sujeira que fazem pelas cidades, as pombas es- tão disseminando um tipo de ácaro típico do meio rural, que começa a aparecer com freqüência em áreas urbanas e a preocupar especialistas. O ácaro hematófago Dermanys- sus galinae (piolho de gali- nha) causa dermatite (coceira intensa) e transmite bactérias como a riquetsia, responsável pelo tifo. O principal vetor na cidade são os pombos, que fazem ninhos nos telhados. O Laboratório de Ixódides do Departamento de Entomolo- gia da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) estuda o fenômeno desde 1999, a par- tir da infestação pelos ácaros em um dos prédios da Uni- versidade Federal de Mato Grosso do Sul, em um apar- tamento residencial de Copa- cabana, no Rio, e no próprio prédio do Pavilhão Carlos Chagas, no campus da funda- ção. "Quando os ninhos são destruídos e os pombos ex- pulsos, o ácaro hematófago busca alimento no sangue humano", diz Nicolau Serra Freire, coordenador do estu- do. Como prevenção, o ideal é evitar os ninhos de pombos em telhados, calhas e condi- cionadores de ar. Os prejuízos financeiros são maiores na indústria avícola, na qual os Dermanyssus infestam as gali- nhas e fazem a produção de ovos cair 15%. •

■Teste para diagnóstico de pânico

Já é aplicado experimental- mente no Rio de Janeiro um teste que ajuda no diagnósti- co e tratamento de transtor- nos do pânico. O trabalho vem sendo feito pelo Institu- to de Psiquiatria e Instituto

Pombas fazem ninhos em telhados e calhas e podem estar infestadas

com o ácaro Dermanyssus (ao lado)

de Biofísica Carlos Chagas Filho, ambos da Universida- de Federal do Rio de Janeiro. O teste consiste em fazer o paciente inspirar por alguns segundos uma mistura dos gases C02 e 02. "As sensaçõ-

es são as mesmas que as sen- tidas pelos indivíduos que têm o transtorno do pânico, apenas um pouco mais brandas, segundo alguns re- latos, porque o paciente sabe que está num hospital sob

cuidados médicos", explica Antônio Egídio Nardi, do Ins- tituto de Psiquiatria. Hoje, o mal é diagnosticado por meio de exames psiquiátri- cos, com base nos sintomas. O estudo dos especialistas da UFRJ é promissor. Estima-se que o teste, mais preciso, po- derá ser usado em clínica em mais cinco anos. "Existem pesquisadores que têm estu- dos semelhantes em outros países, como Estados Unidos e Holanda, mas conseguimos desenvolver aqui um traba- lho original, que dá mais pre- cisão no diagnóstico." O transtorno caracteriza-se por crises súbitas de alta ansieda- de sem motivo aparente, que incluem taquicardia e falta de ar. O distúrbio pode atin- gir proporções tais que, às vezes, impedem o paciente de sair de casa. •

Um perfeito embrião de dinossauro

Um ovo desenterrado há mais de 30 anos nos Esta- dos Unidos contém um embrião de dinos sauro em excelente estado. De acor- do com James Lamb, doutoran- do em geologia e paleontologia da Universidade Esta dual da Carolina do Norte, esse é um dos me- lhores fósseis descobertos até hoje. Lamb acredita que os estudos sobre o em- brião podem apontar no- vas pistas sobre como era o clima e o ambiente no tempo dos dinossauros - no caso específico, há 83 milhões de anos. Esse foi o primeiro ovo encontrado na parte oriental dos Esta- dos Unidos. Ele provavel- mente pertence a Lopho-

Ovo com embrião: conservação excepcional

rhothan, um dinossauro com bico de pato que viveu apenas na área do atual Es- tado do Alabama. O ovo foi descoberto por três es- tudantes em 1970, mas, na época, os pesquisadores não puderam determinar com precisão o conteúdo.

Lamb começou a estu- dá-lo e descobriu o

que lhe pareceu três pequenos ossos. Ao usar um scanner, ele confirmou que havia um embrião em bom estado

dentro do ovo e co- meçou a dissolver a

casca com ácidos. O pesquisador acredita

que, no passado, o ovo fi- cou mergulhado no mar e a casca porosa permitiu que a água salgada e sedi- mentos o enchessem por dentro. Essa combinação de material marinho aju- dou a preservar o embrião em excelente estado por milhões de anos. Depois que a pesquisa tiver sido concluída, o material ficará exposto no Museu de Ciên- cias Naturais. •

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO OE 2001 • 29

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CIÊNCIA

MEDICINA

Chá de quebra-pedra impede que

os cristais de oxalato de cálcio

se juntem e formem cálculos renais

os últimos anos, várias pesquisas científicas praticamente compro- varam os benefícios do uso do chá de quebra-

pedra para combater cálculos renais. Faltava, no entanto, desvendar o me- canismo de ação das infusões feitas com as folhas e sementes da espécie vegetal Phyllantus niruri, nome cientí- fico da planta. Estudos recentes con- duzidos por pesquisadores da Univer- sidade Federal de São Paulo (Unifesp) deram um passo significativo nessa 'ireção. Ao contrário do que a sua po- ular designação dá a entender, o chá

de quebra-pedra não quebra nada.

tir em pedaços menores, como mui- tos acreditam. Seu efeito positivo é um pouco mais sutil, mais preventivo do que curativo, mas não menos efi- ciente. O chá impede a agre cristais de oxalato de cálcio, >., nente químico mais comum d; dras. Sob sua ação, os cristais acabai não aderindo uns aos outros, evitan-

30 • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

do assim a formação de cálculos de maior dimensão, aqueles que provo- cam dor na região do rim e são difí- ceis de ser expelidos sem o auxílio de algum remédio ou tratamento.

Na prática, as infusões com Phyllantus param o processo de cres- cimento das pedras já existentes e evi- tam a formação de novos cálculos. Somente por causa dessa proprieda- de, o consumo do chá, sob supervisão médica, já seria recomendado. Mas as pesquisas indicam que a bebida pode proporcionar ainda um segundo alí- vio aos portadores de cálculos renais, em torno de 10% da população geral: o quebra-pedra é capaz de relaxar o sistema urinário, o que torna menos penosa a tarefa de eliminar as pedras. "Na pior das hipóteses, o chá de que- bra-pedra é tão eficaz quanto as dro- gas convencionais usadas para tratar de cálculos renais", compara o nefro- logista Nestor Schor, da Unifesp.

ís barato e comprovadamente o." Schor é coordenador de

Page 31: Da aldeia ao laboratório

projeto temático da FAPESP sobre in- suficiência renal aguda e outras ques- tões relacionadas aos rins, como o es- tudo da formação de pedras no órgão e o mecanismo de ação do extrato aquoso - c-próprio chá - do Phyllan- tus. Numa outra linha de estudo do temático, pesquisadores descobriram que uma protaína da urina, a retinol binding protein (RBP), pode ser um indicador precoce de futuros proble- mas renais em lacientes que sofreram transplante de coração (ver quadro).

A presença de pedras nos rins é um problema antigo da espécie humana. A análi-

se de múmias egípcias ik. mostra que os cálculos

renais já atormentavam a vida desse povo há, pelo menos, 7 mil anos. Não há nada específico que possa ser apontado como o grande fator desen- cadeador da formação das pedras na maioria das pessoas, apesar da inci- dência de cálculos apresentar uma curva crescente na história recente.

Fatores genético-hereditários, proble- mas metabólicos, infecções no trato urinário e até o sedentarismo podem estar associados à ocorrência do pro- blema. A idéia de que dietas extrema- mente ricas em cálcio originam obri- gatoriamente pedras nos rins não tem respaldo científico. A menos que te- nha uma clara predisposição gené- tico-metabólica, uma pessoa não desenvolve cálculos por causa do con- sumo de leite e seus derivados, ali- mentos com alta concentração desse elemento químico. De concreto, as es- tatísticas médicas mostram que as ta- xas atuais de reincidência de cálculo são altas. "Metade das pessoas que ti- veram pedra nos rins volta a ter o pro- blema no período de um ano e 70% em dois anos", diz Mirian Boim, fisio- patologista da Unifesp que estuda há 15 anos o emprego do quebra-pedra contra cálculos.

Ação antiaderente - O mecanismo de ação do chá no combate à gênese de pedras nos rins ainda não foi total-

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001

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mente desvendado, mas os pesquisadores contabilizam alguns progressos. Desco- briram, por exemplo, que a infusão de Phyllantus dimi- nui a adesão de cristais de oxalato de cálcio nas pare- des (epitélio) do túbulo re- nal, um fino tubo que faz parte de cada unidade ativa de excreção do rim. O que isso tem a ver com a ori- gem dos cálculos? Para que ocorra a formação de pe- dras no rim, é imprescindí- vel que haja a adesão dessas minipartículas nos tecidos do túbulo. "Se isso não acon- tecesse, os cristais de oxala- to ficariam em suspensão e seriam eliminados pela uri- na", diz Mirian. Após gru- dar nos tecidos do túbulo, as partículas de oxalato de cal- Cristais de cio são absorvidas pelas cé- lulas renais, num processo chamado de endocitose. Quando são grandes, com mais de meio milímetro, os cris- tais podem provocar a morte das célu- las. Já os menores passam algum tempo no interior das células e são liberados de volta ao túbulo renal. O problema é que, depois do passeio intracelular, os cristais retornam mais robustos, acrescidos de proteínas e agregados que aumentam a sua dimensão.

cálcio em uma folha de Phyllantus ampliados 400 vezes: suposta autodefesa

Com os indícios colhidos em seus experimentos, os pesquisadores for- mularam uma hipótese para explicar por que o chá de quebra-pedra evita a adesão das partículas de oxalato de cálcio. De uma forma simplificada, pode-se dizer que os cristais se pren- dem à parede celular porque há uma atração elétrica entre ambos. Os cris- tais têm carga positiva, e a parede ce- lular, negativa. "O Phyllantus parece

mudar a polaridade da carga dos cris- tais, inibindo assim sua adesão ao epi- télio e diminuindo o processo de en- docitose", diz Mirian. Para dificultar ainda mais a formação de cálculos, o chá promove também uma alteração na estrutura do tipo de cristal de oxa- lato de cálcio mais maléfico ao orga- nismo, os chamados monoidratados, que se fixam mais facilmente à parede celular. O chá os transforma em cris-

Um alívio para os transplantados

A ciclosporina, principal droga usada no combate à rejeição de ór- gãos transplantados, aumenta a so- brevida dos pacientes, mas costuma causar um efeito colateral indeseja- do. Seu uso continuado e em altas doses provoca danos aos rins, po- dendo levar ao comprometimento total desse órgão, problema de saúde que aumenta o risco de morte nesse tipo de doente. A equipe do médico Álvaro Pacheco e Silva Füho, da Uni- fesp, descobriu uma forma de diag- nosticar precocemente essa agressão

aos rins, quando os prejuízos ao fun- cionamento do órgão ainda estão em sua fase inicial e, talvez, possam ser controlados.

Os pesquisadores perceberam que transplantados do coração que apre- sentam altas concentrações de uma conhecida proteína encontrada na uri- na, a retinol binding protein (RBP), têm maior chance de desenvolver in- suficiência renal crônica. Mesmo quando todos os demais parâmetros clínicos do paciente revelam-se ple- namente satisfatórios, como a taxa

de creatinina (proteína classicamen- te medida para inferir o grau de fun- cionamento dos rins), o simples au- mento na quantidade de RBP na urina indica que o dano aos rins já está em curso. "Nesse caso, estamos falando de transplantados que, até agora, julgávamos perfeitamente saudáveis", comenta Silva Filho. "Pa- cientes que qualquer médico exami- naria e diria que estão muito bem."

O médico conseguiu estabelecer a relação entre os níveis de RBP e problemas nos rins depois de realizar

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tais diidratados, cujo grau de adesão é bem menor.

Evitar a entrada de partículas de oxalato de cálcio em células parece ser uma propriedade não só do chá de que- bra-pedra, mas da pró- pria planta. Alertada por uma colega australiana, que havia observado a presença de cristais nas folhas de espécies vege- tais semelhantes ao Phy- llantus, a fisiopatologis- Pedras de oxa ta percebeu o mesmo fenômeno no quebra-pedra. Num aparente mecanismo de autodefesa, que regula o nível de cálcio em suas células, a planta inibe a entrada dos cristais, o que provocaria o acúmulo das partículas na sua parte externa, as folhas. Com auxílio de um microscó- pio eletrônico, Mirian visualizou fa- cilmente os cristais nas folhas da que- bra-pedra. Ao que tudo indica, esse mecanismo natural de regulação da entrada de cálcio mantém-se no ex- trato aquoso da planta e é repassado para quem toma o chá.

Bola de golfe - As pedras nos rins po- dem ser do tamanho de um grão de areia ou de uma pérola. Em casos ex- tremos, alcançam a dimensão de uma

ato de cálcio: tormento há pelo menos 7 mil anos

bola de golfe. Podem ser lisas ou exi- bir recortes. Ser amarelas, avermelha- das ou marrons. Em 80% dos casos, são constituídas de oxalato de cálcio, mas há também cálculos feitos de fos- fato de cálcio, ácido úrico e outros materiais. Ou ainda uma combinação

O PROJETO

Aspectos Celulares e Moleculares da Insuficiência Renal Aguda

MODALIDADE

Projeto temático

COORDENADOR

NESTOR SCHOR - Unifesp

INVESTIMENTO

R$ 2.469.886,53

medições em 92 transplantados cardíacos em ótimas condições clí- nicas. Entre os que exibiam índices da proteína superior a 0,4 miligra- ma por litro de urina, 38% desen- volveram insuficiência renal crôni- ca, levando à perda de um ou ambos os rins. Nos pacientes com taxas menores do que esse índice, não houve registro de nenhum caso de insuficiência. "E nenhum desses transplantados perdeu o rim."

Vista agora como um marcador do nível de toxicidade renal da ci- closporina, a taxa de RBP é uma nova arma na luta para controlar os efeitos colaterais da ciclosporina. É

uma batalha árdua. Para diminuir a ação negativa da droga anti-rejeição, os médicos costumam reduzir a dose do remédio ou utilizar novos compostos aparentemente menos tóxicos, como a azatioprina ou o mi- cofenolato mofetil. "Com esses pro- cedimentos, já conseguimos dimi- nuir a taxa de RBP em alguns pacientes, mas ainda não temos cer- teza de que as células renais deixa- ram de sofrer", pondera Silva Filho. De qualquer forma, a descoberta do marcador fornece um aviso anteci- pado do problema. "Encontramos um novo uso para um velho teste", comenta Silva Filho.

de vários elementos quí- micos. Em casos simples, os médicos geralmente pedem que os portado- res de cálculos tomem muita água, o que facili- ta a movimentação e eliminação da pedra, e um analgésico ou anti- inflamatório para dimi- nuir a dor. Em situações extremas, em que a pe- dra é maior e o sofri- mento é grande, o pa- ciente é internado num hospital. No passado, o procedimento - padrão

nessas ocasiões era a cirurgia para re- tirar o cálculo. Hoje em dia, em alguns casos, podem ser empregados métodos alternativos não - invasivos, como o uso de equipamentos que criam on- das de choque que partem as pedras em pedaços menores.

Todas as evidências científicas, fruto de pesquisas com o uso do chá em ratos, seres humanos e testes con- duzidos in vitro, indicam que a bebi- da pode ser uma alternativa a alguns desses procedimentos. Afinal, o extra- to aquoso do Phyllantus realmente previne a formação de novas pedras e pode auxiliar a eliminação das já exis- tentes. Isso, no entanto, não quer di- zer que os pesquisadores da Unifesp recomendem seu uso indiscriminado. Ainda são necessários estudos mais prolongados, que acompanhem a ação do chá em seus usuários por um período de seis meses. Até agora, o tempo máximo de acompanhamento se restringiu a três meses. Os médicos também não sabem qual é a dose ideal de chá que deve ser consumida pelos portadores de cálculo. Além dessas questões científicas, há empecilhos práticos que desestimulam a autome- dicação com as infusões de quebra- pedra. Não há disponível no mercado um chá comercial de qualidade feito com a espécie vegetal e algumas pes- soas podem confundir o Phyllantus com outras plantas e acabar tomando a infusão errada. "O chá funciona, mas é preciso ter cuidado com o que se toma", afirma Schor. •

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CIÊNCIA

FÍSICA

Hemodiálise com precisãoDispositivo calibra máquinasfiltradoras dosangue de pacientes renais

Umaequipe do Instituto de Físi-ca da Universidade de São Pau-

lo (USP) aproveitou as característicasdos cristais líquidos - substâncias queficam a meio caminho entre sólidoscristalinos (cristais) e líquidos isotró-picos (como a água) - para produzirum equipamento que calibra comprecisão as máquinas de hemodiálise,de modo a tornar mais eficiente a fil-tragem que elas fazem do sangue depessoas com insuficiência renal. Ogrupo, coordenado pelo professorAntônio Martins Figueiredo Neto, jáapresentou pedido de patente aoInstituto Nacional de Proprieda-de Industrial (INPI) e espera quealgum fabricante se interesse emproduzi-lo em escala comercial.

O sistema consiste em injetarcristal líquido na mangueira poronde deve fluir o sangue e, pormeio de uma célulaóptica, medir asvariações na velocidade do fluido.Conhecida a velocidade, pode-sesaber se a máquina está adequa-damente calibrada ou não. Hoje,as máquinas de hemodiálise sãocontroladas de forma manual,imprecisa, o que pode deixar ofluxo do sangue muito rápido,vagaroso demais ou com variaçõ-es bruscas de velocidade. "O apa-relho", diz Figueiredo, "pode veri-ficar a qualidade do fluxo: isto é,se o circulador de sangue a sertestado provocar variações brus-cas no fluxo - o que poderia acar-retar mudanças não desejadas napressão sanguínea -, o aparelhopode detectar o problema e suge-

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rir mudanças nas partes móveis docirculador para evitar isso".

Os cristais líquidos - um tipo defluido complexo - foram descobertosem 1888,quando o botânico austríacoFriedrich Reinitzer estudava proprie-dades de derivados do colesterol- ace-tato e benzoato de colesterila. Desco-briu que essas substâncias, que àtemperatura ambiente tinham aparên-cia sólida cristalina, quando aquecidas,se transformavam num fluido leitoso.Prosseguindo o aquecimento, volta-vam a mudar de aparência, desta vezpara um líquido transparente. Nobenzoato de colesterila, os dois pon-tos de fusão estavam a 145,5°C e178,5°C (graus Celsius). "Uma vezque o fenômeno poderia ser devido aeventuais impurezas no material, Rei-nitzer pediu ao químico alemão Otto

Figueiredo e ferrofluido: propriedade magnética

Lehmann que o submetesse a análisequímica, para descobrir os possíveiscontaminantes", conta Figueiredo."Depois de um estudo criterioso, Leh-mann concluiu que não havia conta-minante algum: os derivados de co-lesterol eram substâncias puras."

Fase mesomórfica - Como explicar,então, seu comportamento? A respos-ta veio em 1922 com o francês GeorgeFriedel: a fase leitosa, que chamoumesomórfica, correspondia ao até en-tão desconhecido cristal líquido, esta-do intermediário entre o sólido cris-talino e o líquido isotrópico.

"Outra característica notável des-ses materiais", diz Figueiredo, "é querefletem seletivamente a luz branca.Parte da radiação é absorvida e parterefletida, resultando disso luzes colo-

ridas, que variam com a tempera-tura". Foi essa propriedade, aná-loga à dos sólidos cristalinos, quelevou Lehmann a dar aos fluidosleitosos o nome de cristais líqui-dos. E foi também o que levou ospesquisadores da USP a desen-volver o equipamento.

"Os cristais líquidos': diz Fi-gueiredo, "agrupam-se em duasgrandes famílias: os termotrópi-cos, cujas transições de fase são re-gidas pela temperatura, e os liotró-picos, que também podem mudarde fase com apropriadas varia-ções de concentração e em fun-ção da temperatura': Os termo-trópicos respondem por 99% dasaplicações - por exemplo, mos-tradores de relógios digitais, telasde TV e monitores de computa-dor. Mas, por serem menos estu-dados e por suas especificidades,os liotrópicos atraem mais: paraeles se voltam 60% do trabalhoda equipe, que integra o Grupode Fluidos Complexos do Ifusp.

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Protótipo do invento: velocidade do fluxo de sangue controlada

Seu projeto consistiuno uso de técnicas de ópti-ca linear e não-linear e deradiocristalografia para es-tudar estrutura e proprie-dades de cristais líquidos eferro fluidos - outro tipode fluido complexo.

"Descobrimos, por e-xemplo, que alguns lio-trópicos são opticamenteisotrópicos - têm as mes-mas propriedades físicasem todas as direções -quando em repouso, masse tornam anisotrópicosquando em movimento."Assim, em movimento,seu índice de refração varia, de modoque deixa passar mais ou menos luz,conforme a velocidade. "Foi combase nessa propriedade que inventa-mos o dispositivo que permite verifi-car o funcionamento dos equipa-mentos de hemodiálise."

Orientação paralela - As peculiarida-des dos cristais líquidos decorrem daassimetria de suas moléculas. Em cer-tas condições de concentração, pres-são e temperatura, os eixos molécula-res podem se orientar paralelamenteuns aos outros. É esse ordenamentoque faz os cristais líquidos se compor-tarem um pouco como líquidos, umpouco como sólidos cristalinos, e nãoser nem uma coisa nem outra inde-pendentemente. Ocorre que o con-junto de moléculas de um líquido nãoapresenta nenhum tipo de ordem deposição, enquanto o conjunto de mo-léculas de um sólido cristalino temordem posicional. Os cristais líquidostêm a fluidez dos líquidos comuns e,ao mesmo tempo, propriedades ópti-cas típicas dos sólidos cristalinos.

Os termotrópicos, que mudam defase com a temperatura, têm molécu-las em forma de bastões, discos ou ba-nanas, todas com grande assimetriaou, mais precisamente, anisotropia deforma. É essa anisotropia - o fato deas moléculas não se distribuíremigualmente em todas as direções,como num líquido comum - que per-mite seu ordenamento orientacional.

Já os constituintes básicos dos lio-trópicos, que também mudam de fasecom certas variações de concentração ede temperatura, não são formados demoléculas isoladas, mas de agregadosmoleculares chamados micelas. Osagregados se formam porque suasmoléculas têm características antagô-nicas - uma região polar e outra apo-lar. Em contato com um solvente po-lar como a água - cujas moléculastêm um dipolo elétrico, ou seja, car-gas positivas e negativas afastadasumas das outras -, as micelas tendema assumir certa orientação: por afini-dade elétrica, a região polar se aproxi-ma da molécula de água vizinha, e aregião apolar permanece afastada.

A partir de uma concentração crí-tica, as porções polares se juntam,como num casulo, dentro do qual asporções apolares ficam isoladas doambiente aquoso. Cada casulo é umamicela, e funciona como blindagementre as regiões apelares e a água. "É o

O PROJETO

Investigação de Propriedades Õpticase Mecânicas de Cristais Líquidos

MODALIDADEProjeto temático

COORDENADORANTÓNIO MARTINS FIGUEIREDO NETO -Instituto de Física da USP

INVESTIMENTOR$ 31.000,00 e US$ 209.400,00

que ocorre quando lava-mos as mãos com sabãopara eliminar a graxa.Quando temos na mãograxa - um material apo-lar - e tentamos lavar comágua apenas, não conse-guimos removê-Ia. Assim,misturamos detergente (eu-jas moléculas são anfifíli-cas, com regiões polares eapelares) e esfregamos asmãos, misturando água,detergente e graxa. Agora,as moléculas do detergenteformam superestruturasdo tipo micelar (casulos)com a graxa dentro, sendo

lavadas pelo fluxo de água." A pro-pósito, a qualificação dos cristais lí-quidos como substâncias puras seaplica aos termo trópicos, mas não aosliotrópicos - que são, de fato, mistu-ras de pelo menos duas substâncias: aque compõe as micelas e o solvente.

Ferro em líquido - Outra classé de flui-dos complexos estudada pelo gruposão os ferro fluidos, com propriedadesmagnetoópticas muito interessantes.Eles foram inventados nos anos 60 naNasa, para transportar combustíveldos tanques até os motores dos satéli-tes espaciais.

"Os técnicos da agência espacialamericana produziram um ingredien-te magnético que podia ser dissolvidono combustível. Bastava então aplicarcampos magnéticos de baixa intensi-dade para conduzir o material de umcompartimento a outro, arrastando ocombustível junto", explica Figueiredo.Para isso, obtiveram uma suspensãocoloidal com grânulos de magnetitade cerca de 10 nanômetros, que podiaser dissolvida no combustível sem queo material magnético se depositasseno fundo do tanque.

''Asaplicações tecnológicas do pro-duto depois se diversificaram. Hoje, eleé usado, por exemplo, na fabricação detintas magnéticas que podem tornaraviões invisíveis ao radar, selos rotató-rios que protegem os discos rígidos doscomputadores e em dispositivos quedetectam a inclinação dos aviões." •

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Efeito protetor

Ocanadense Brian IohnBandy fez o caminhoinverso de muitos pes-quisadores brasileiros:saiu de seu país ao ter-

minar o doutorado para prosseguir acarreira aqui. Veio em 1996, fez pós-doutoramento no Instituto de Quími-ca da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e voltou para o Canadá no anoseguinte. Atraído de novo pelo Brasil,reinstalou-se em 1998 para uma se-gunda temporada no mesmo instituto.Nesse vaivém, concluiu um estudoque aumentou a impor-tância de um grupo desubstâncias, os bioflavo-nóides, antes vistas ape-nas como vitaminas. Ban-dy mostrou que sãomuito mais que isso:protegem as células ani-mais do envelhecimento eda morte prematura. °artigo assinado por ele epor seu supervisor, Etel-vino Bechara, foi a capada edição de agosto dolournal of Bioenergeticsand Biomembranes, dosEstados Unidos.

Os resultados ates-tam pela primeira vez opapel essencial dos bio-flavanóides nas reaçõesde produção de energiadentro da célula e indicamcomo as vitaminas agemconjuntamente em bene-fício do organismo. En-contrados em extratos de plantas eabundantes, por exemplo, no chá ver-de (Camellia sinensis) e no vinho tin-to, os flavonóides - chamados de bio-flavonóides quando vistos comonutrientes - atuam em conjunto coma vitamina C ou ascorbato, tambémencontrada em frutas e hortaliças. Jáse sabia há anos que o ascorbato iso-lado pode até ser tóxico, ainda que in-diretamente, por promover reações

que liberam substâncias danosas à cé-lula - um alerta para quem exageranas doses de vitamina C e acha quenão precisa de qualquer outra, nemde frutas ou verduras.

Dupla afinidade - Por meio de técnicasque monitoram a transferência de elé-trons, as alterações da forma das molé-culas de proteínas chamadas citocromose a formação e o desaparecimento deradicais livres, Brian e Bechara deta-lharam esses mecanismos de intera-ção, que decorrem de uma proprieda-

cada célula animal- uma célula do fí-gado humano, por exemplo, tem de1.000 a 2.000 mitocôndrias.

Vencida a membrana, os elétronschegam ao destino que beneficia quemquer adiar o envelhecimento: os cito-cromos c, proteínas que protagoni-zam as reações de respiração celular -que levam à produção de energia paraa célula. Em conjunto, os citocromossão vermelhos e lembram sangue porcausa dos átomos de ferro, que for-mam uma ramificação da molécula,o chamado grupo heme. É por causa

dos citocromos que as mi-tocôndrias têm normalmen-te a cor bege escuro. Outrapeculiaridade é que, às ve-zes, as mitocôndrias emi-tem luz, como resultado dareação do oxigênio com umelétron excitado, ao longodas reações da respiraçãocelular.

Nesse processo, um doscompostos que se formamé o peróxido de hidrogênio(ou água oxigenada, H202).Reagindo com o citocro-mo c, o H202 origina radi-cais hidroxila. Eles é quesão o perigo. As hidroxi-Ias, um dos tipos dos cha-mados radicais livres, que-bram o heme e retiram oferro do citocromo, comconseqüências nada boas,do ponto de vista do fun-cionamento do organismo:sem o ferro, o cito cromo

perde não só o vermelho característi-co, mas também a capacidade deatuar na respiração celular. É aindapior quando os radicais fazem as mi-tocôndrias incharem e se romperem.E, livres no interior da célula, os cito-cromos c disparam o processo demorte celular, a chamada apoptose.

Os bioflavonóides conduzem elétrons do ascorbato e evitamdanos a uma molécula essencial à respiração celular

Mitocôndrio

Medição de citocromos: estudo revelainteração de substâncias que ajudaas vitaminas a beneficiar o organismo

o ascorbato, por ter afinidade apenas(\ com a água, não se aproxima da~ membrana interna da mitocôndria

• Bioflavonôide

de das moléculas de bioflavonóides: adupla afinidade química, tanto pelaágua como pela membrana da mito-côndria - compartimento celular emque se processam as reações químicasresponsáveis pela produção de ener-gia. Os bioflavonóides - pelo menoscinco dos 20 testados - provavelmen-te ficam parcialmente envolvidos pelamitocôndria e parcialmente fora dela.É uma posição ideal para apanharemelétrons do ascorbato, que têm afini-dade apenas pela água (permanecemafastados da membrana), e conduzi-los para dentro das membranas dedezenas de mitocôndrias contidas em

Uma descoberta - Nem Bandy nemBechara pretendiam estudar bioflavo-nóides nesse papel. Ao começar' o tra-balho, Bandy comprovou que o asco ribato sozinho protege o citocromo c dbataque dos peróxidos, efeito não muitobem caracterizado antes. Mas era um

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efeito limitado. Numa situaçãomais perto do real- com liposso-mos, um tipo de membrana artifi-cial feito com as moléculas maiscomuns na membrana das mito-crôndrias -, não funcionou. Ex-plica-se o resultado pelo fato de oascorbato ter afinidade apenascom água - na prática, fica longeda membrana.

Disposto. a descobrir os meca-nismos e as substâncias que impe-dem a destruição do citocromo c,Bandy resolveu testar um biofla-vanóide que, como ele sabia, temafinidade pela membrana. Só ti-nha um na prateleira, a epicatequi-na. Testou e deu certo. "Foi sorte';diz. "Há centenas de bioflavanói-des e nem todos funcionam dessemodo." A descoberta teria naufra-gado se, por exemplo, tivesse usa-do naringerina ou hesperetina, doisdos cerca de 20 bioflavonóidesque testou mais tarde e parecem nãoligar para o ascorbato.

Até então, os bioflavonóides sóeram conhecidos como antioxidan-tes, que anulam a ação dos radicais li-vres. "Ainda não havia sido descritanenhuma situação em que eram real-mente indispensáveis nos processoscelulares," Das reações em conjunto, ocaso clássico era o da vitamina P,que,junto com a vitamina C, impede apermeabilidade dos vasos sangüíneose assim evita o escorbuto - doençaque faz as gengivas sangrarem e pro-voca graves hemorragias. Era típicados viajantes do século 16, que per-maneciam meses em alto-mar sem

o PROJETO

Interações de Ascorbato,Biof/avonóides e BiofatoresRedox em Citocromos c induzidosa Estresse Peroxidativo e Apoptose

MODALIDADE

Bolsa de pós-graduação no país

COORDENADOR

ETELVINO José HENRIQUES BECHARA -

Instituto de Química da USP

INVESTIMENTOR$ 96.000,00

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Bandy: ascorbato (vitamina C) sozinho é perigoso

comer frutas ou verduras frescas. Eramortal. Há relatos de que, de 400 pes-soas a bordo, só dez sobreviveram. Ohúngaro Albert Szent-Gyorgyi (1893-1986, Nobel de Medicina em 1937)descobriu que a vitamina C, por elepróprio descoberta em 1928,não fun-ciona sozinha para deter o rompi-mento dos capilares - era preciso algomais, a vitamina P.

Ascorbato perigoso - Os resultados aque Bandy chegou também têm im-plicações práticas. No tratamento depacientes que sobreviveram a um en-farte ou durante cirurgias do coração,por exemplo, o ascorbato parece nãodar a menor proteção à rnitocôndriadas células do coração contra o ataquedos peróxidos. "Talvez funcione comalguns bioflavanóides", cogita ele. Emprincípio, seu trabalho também pode-ria ajudar a conter o envelhecimento,pois sugere uma combinação de nu-trientes que seria mais eficiente paraminimizar os danos às células - o cha-mado estresse oxidativo, resultadodos processos de respiração que ocor-rem na mitocôndria.

A pesquisa avança. Recentemente,Bandy obteve as primeiras evidênciasdo que pode ser chamado de lado

ruim do ascorbato. Sozinho, mes-mo em baixas concentrações, podefazer a mitocôndria inflar, primei-ro passo para o processo de mortecelular. "O ascorbato sozinho é pe-rigoso", comenta, antes de contaroutra novidade, também sujeitaa verificações mais aprofundadas:há bioflavonóides capazes de blo-quear essa ação do ascorbato. Ani-mado com o fato de seu segundopós-doutoramento ter sido reno-vado até setembro do próximoano para que possa explorar esseoutro lado da cooperação entre oascorbato e os bioflavonóides, elese prepara para lidar com mito-côndrias isoladas, ainda mais pró-ximas dos organismos reais.

A parceria - Aos 44 anos, Bandynão deve voltar tão cedo a seu paíspara ficar. Bechara o ajuda a pro-curar um espaço numa universi-

dade brasileira. Ambos se conheceramem 1995,num congresso sobre radicaislivres em Pasadena, nos Estados Uni-dos. Bandy terminara o doutorado naSimon Frase University de Burnaby,Canadá. Na tese, mostrava como os es-portistas gastam energia e geram maismitocôndrias. Impressionou Becharao fato de Bandy ter escrito um artigo- sobre o papel da mitocôndria no es-tresse oxidativo - que já era referênciainternacional.

Bechara, que na época já estudavao ácido amino-levinolínico - uma dasfontes de radicais livres que atacammitocôndrias -, viu o recém-doutorcomo ótimo parceiro. De lá para cá,observou o desenvolvimento e o gos-to de Bandy pelo Brasil: o canadense,que já gostava de pescarias e de longascaminhadas pela mata, entrou noscursos extras do Instituto de Químicae hoje se sente à vontade para dançarsamba e jogar futebol.

O supervisor Bechara especiali-zou-se também na tarefa de reter pes-quisadores promissores. Antes deBandy, trouxe o italiano Paolo Di Mas-cio, recém-doutorado em Dusseldorf,Alemanha. Mascio ficou dois anos, fezconcurso e hoje é titular no Institutode Química da USP. •

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CIÊNCIA

NUTRIÇÃO

Informação no pratomg) ou mesmo à cenoura (0,6 mg).Inversamente, quem precisa evitarzinco, cujo excesso causa rachadurasna pele, pode se fartar com almeirão,batata-doce branca e roxa, cenoura,couve-manteiga, ervilha, jiló e vagem,

hortaliças nas quais nãose detectou essemineral,de acordo com o levan-tamento das autorasdesse trabalho.

O trabalho remete aum problema amplo."Temos de rever a ali-mentação", diz a enge-nheira agrônoma Ritade Fátima AlvesLuengo,uma das autoras. Numpaís de clima normal-mente ameno como oBrasil, além do valiosotrivial arroz com feijão e"mistura" (proteína ani-mal), as pessoas preci-sam consumir mais oschamados alimentos demanutenção, que são ashortaliças e as frutas, ri-cas em vitaminas e saisminerais. É uma situa-ção diferente da dos paí-ses de clima frio, onde aprioridade são as proteí-nas e as gorduras, paraajudar o corpo a mantero calor. Um agravante éque vitaminas e sais mi-

nerais não se acumulam no organismo,como as gorduras: precisam ser cons-tantemente repostos. É preciso, portan-to, aumentar seu consumo, bem comoo de frutas. A propósito, conclui Rita,"uma tabela equivalente de frutas se-ria muito bem-vinda':

Elaborada pela agrô-noma Rita junto comas bibliotecárias Rosa-ne Mendes Parmagnani,Márcia Regina Parentee Maria Fátima Bezer-ra Ferreira Lima, a Ta-bela de Composição Nu-tricional das Hortaliçaspode ser solicitada peloendereço [email protected]. •

Hortaliças: apesar da variedade, consumo ainda baixo

específicas. Quem, por exemplo, temanemia - ou não quer ter - deve bus-car alimentos ricos em ferro. Caso secanse do sabor do brócolos - que tem15.000 miligramas (mg) de ferro em100 gramas -, pode recorrer ao grão-de-bico (6.240 mg), à acelga (2.900

Alternativas à mesaTabela facilita a busca de fontes de vitaminas e ferro

Espécies Fibra Calorias Água Vit.A Vit. B% % mg mg

Cenoura 1,8 50,0 87,79 1100 60

Brócolos 3,8 29,40 90,69 350 54

Couve- 1,3 25,0 89,00 750 96manteiga

Fonte: Embrapa Hortaliças

Vit.C Potássiomg mg

26,8 328,6

82,7 325

180,0 358,4

Sódiomg

Levantamento do conteúdode hortaliças visa a melhorara alimentação no país

As hortaliças não têm grandeprestígio com o brasileiro, que,

em média, só come 50 quilogramas(kg) delas por ano. Isso é três vezesmenos que a média de consumo doalemão, do norte-americano e do ja-ponês, por exemplo, embora estes pre-cisem menos de hortaliças, por nãoviverem num clima tropical. E o con-sumo de hortaliças no país é baixo,independentemente da camada social:vai de 30,8 kg anuais per capita, entreos que ganham até dois salários mí-nimos, até 72,3 kg, na faixa acima de30 salários mínimos.

Se continuarmos assim, não serápor falta de informação: pesquisado-ras da Embrapa Hortaliças, de Brasí-lia, reuniram num pôster de 60 por60 centímetros amplas informaçõessobre a composição nutricional de 53hortaliças alinhadas alfabeticamente,da abóbora à vagem. Para cada horta-liça, o quadro mostra seu conteúdo de19 nutrientes.

A essa tabela, onde juntaram infor-mações dispersas em muitos livros emanuais, as pesquisadoras acrescen-taram as recomendações da Organiza-ção Mundial de Saúde(OMS) e da Organiza-ção das Nações Unidaspara Alimentação eAgri-cultura (FAO) sobre oconsumo mínimo ne-cessário de nutrientespara adultos, gestantes ecnanças.

A tabela tambémserve de orientação paraatender a necessidades

Ferromg

53,70 0,600

27 15,000

243,8 2,200

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 39

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CIÊNCIA

MEDICINA

Bebês a saIvoSubstância pulmonar de queprematuros precisam é produzidaexperimentalmente no Butantane testada com sucesso em coelhos

Porcose coelhos ajudarão a

produzir em escala co-mercialo surfactante pul-monar, uma substânciaessencial ao tratamento de

um mal que a cada ano atinge milha-res de bebês prematuros no país ecausa muitas mortes: a síndrome dodesconforto respiratório (SDR). Pes-quisadores da Faculdade de Medicinada Universidade de São Paulo (FM-USP) já obtiveram bons resultadoscom a aplicação, em coelhos prema-turos, de um surfactante extraído dopulmão de porcos e produzido peloInstituto Butantan.

Produzido naturalmente pelospulmões, o surfactante age no interiordos alvéolos (bolsas microscópicasnas quais ocorrem as trocas gasosasde oxigênio e gás carbônico), permi-tindo que eles se mantenham abertosdurante a expiração (ver quadro). ASDR, causada pela produção insufi-ciente de surfactante pelos pulmões, éuma das principais patologias dos

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prematuros. Quanto menor o tempode gestação, maior a imaturidade pul-monar e a incidência da SDR: dela so-frem cerca de 50% dos chamados pre-maturos extremos, que nascem entreseis e meio a sete meses de gestação(da 26a à 28a semana), mas muitosdos que nascem entre a 28a e a 31a

semana também são afetados. Noano 2000, a SDR foi responsável por7.715 internações e 2.664 mortes debebês prematuros no país, segundo oDepartamento de Informática do Sis-tema Único de Saúde (DataSUS).

O tratamento da SDR consiste nareposição artificial de surfactante du-rante as primeiras horas de vida dobebê, diretamente na traquéia. O sur-factante é importado, a preços que va-riam de RS$ 900 e R$ 1.200 por am-pola, o que torna a terapia muito carapara o sistema público de saúde. Emcada caso, podem ser usadas até duasampolas do medicamento, dependen-do da gravidade da doença e da mas-sa corporal do bebê.

A promessa de uma solução nacio-nal está na extração de surfactante dopulmão de porcos, que são, como ou-tros mamíferos, uma fonte importan-te da substância. Vai nessa direção O

projeto de pesquisa finalizado recen-temente pelo pediatra Celso MouraRebello, da FM-USP.

Bons resultados - Rebello e sua equipemensuraram em coelhos prematurosos efeitos de um surfactante de ori-gem porcina fabricado experimental-mente pelo Instituto Butantan. Os re-sultados foram comparados aosobtidos com a aplicação de um dossurfactantes mais vendidos, produzi-do a partir de pulmão bovino.

Antes de desenvolver a metodolo-gia, Rebello passou por um treina-mento de dois anos na Universidadeda Califórnia, em Los Angeles (EUA),sob orientação de Alan Iobe e Machi-ko Ikegami, referências internacionaisna área de pulmão prematuro. O pro-jeto foi desenvolvido no Laboratório

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Coelha usada em teste: equivalência com produto importado

de Pesquisa Experimentaldo Departamento de Pedia-tria da FM -USP. Rebellocomparou três característi-cas do funcionamento mecâ-nico dos pulmões: a pressãosuportada durante a ventila-ção mecânica, o volume dear e a capacidade de disten-são do pulmão.

Foram estudados 93 coe-lhinhos, divididos em qua-tro grupos: 21 deles recebe-ram o produto comercial;22, o surfactante produzidopelo Butantan; 25 o surfac-tante natural extraído decoelho; e os 25 restantescompuseram o grupo de controle,que não recebeu nenhuma terapia.Todos os animais nasceram de cesaria-na no 27° dia da gestação, para simu-lar condições comparáveis às de umprematuro extremo. Os animais fo-ram anestesiados e conectados a umaparelho de ventilação mecânica du-rante 20 minutos, por meio de umapequena incisão na traquéia.

Os alvéolos pulmonares são ossacos microscópicos onde chegafinalmente o ar que respiramos:ali o oxigênio inspirado é absorvi-do para entrar na corrente san-guínea pelos vasos capilares e tro-cado por gás carbônico, que sai naexpiração. O surfactante pulmo-nar é um líquido que atua comouma espécie de detergente natu-ral, para manter os alvéolos com aviscosidade adequada para exer-cer sua função. É um líquido vis-coso (por ter cerca de 90% de lí-pides na sua composição), decoloração clara (entre o branco eo amarelo claro).

Como a parede interna dos al-véolos é recoberta por uma fmíssi-ma película de água, esses saqui-nhos se fechariam quando seesvaziassem durante a expiração,

A evolução dos animais forneceudados, que foram analisados por umprograma de computador desenvolvi-do no Setor de Pneumologia Experi-mental da FM-USP. A análise mos-trou que a pressão necessária para queos pulmões recebessem determinadovolume de ar foi 30% menor nos gru-pos tratados com surfactante do queno grupo de controle. Além disso, no

Um líquido preciosodevido à força de atração entre.asmoléculas de água. O surfactantereduz essa força, impedindo que asparedes internas dos alvéolos gru-dem na expiração. Produzido con-tinuamente por células especiali-zadas dos alvéolos - chamadaspneumócitos do tipo 2 -, o surfac-tante é composto por quatro tiposde proteína (SPA, SPB, SPC eSPD), além de fosfolípides (com-postos de gorduras e fosfato).

Na falta desse detergente natu-ral em quantidade suficiente, ocor-re a síndrome do desconforto res-piratório (SDR). Essa produçãoinsuficiente se deve à prematuri-dade do bebê e, conseqüentemen-te, do órgão pulmonar. Por isso, arespiração torna-se extremamentedifícil e, se o problema não for tra-tado com surfactante, o bebê po-

teste para avaliar a capaci-dade de distensão dos pul-mões - ou complacência -,os coelhos tratados tiveramresultados melhores. De-pois da ventilação mecâni-ca, parte dos animais foisubmetida à avaliação dovolume que os pulmõesatingiam sob uma pressãoestabelecida.Verificou-se queo pulmão dos coelhos quereceberam surfactante al-cançava um volume maior.E, no exame ao microscó-pio, os pulmões dos coelhosque não receberam o medi-camento apresentaram pro-

porção maior de alvéolos danificadosque os tratados.

A ação de cada surfactante tam-bém foi analisada in vitro. "Em todosos testes, não houve diferença de efi-cácia entre o produto comercial e osurfactante do Butantan', destaca opesquisador. Os dados da pesquisa fo-ram apresentados no Congresso Bra-sileiro de Perinatologia, realizado de

derá morrer por insuficiência res-piratória. O pesquisador explica:

"O surfactante começa a serdetectado no pulmão humano apartir da 24a semana de gestação. Asua produção aumenta gradativa-mente e atinge o valor máximo porquilograma de massa corpórea nagestação de termo, a que chega acompletar 40 semanas. Antes da36a semana, a produção ainda épequena: portanto, se ocorrer onascimento prematuro (por defini-ção, prematura é a gestação quenão completou 37 semanas), essaprodução insuficiente de surfac-tante pode causar a SDR. É claroque, quanto menor for a idade ges-tacional - particularmente no pre-maturo extremo, como foi dito -mais grave será a SDR, podendo le-var à morte do prematuro".

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10a 14 de novembro de 2001em Florianópolis (SC).

Antes de iniciar a produ-ção em escala comercial, oButantan precisa registrar oproduto na Agência acio-nal de Vigilância Sanitária(Anvisa), do Ministério daSaúde, responsável pela fis-calização de medicamentos.Para isso, será essencial o es-tudo clínico do surfactantenacional no tratamento deseres humanos, para compro-var que é eficaz.

Novo estudo - Com esseobjetivo, Rebello prepara umestudo que deverá começarem agosto de 2002 e durarcerca de dois anos. O trabalhoserá submetido à ComissãoNacional de Ética em Pesqui-sa (Conep) e terá a colabora-ção do Instituto Nacional deSaúde Infantil e Desenvolvi-mento Humano dos EUA.Envolverá cerca de 360 bebês prema-turos e nove hospitais universitários -cinco da capital paulista, três no inte-rior e um de Porto Alegre (RS).

O professor Isaías Raw, coordena-dor do Centro de Biotecnologia doButantan, instituto que desenvolvedesde 1997 a produção do surfactantenacional, lembra que "a testagem clí-nica é o passo mais complicado antesdo início da produção industrial dosurfactante" Ele estima que seja ne-cessário investir cerca de R$ 1 milhãopara completar essa etapa. As demais- estudo em bancada e desenvolvi-mento tecnológico da produção delotes do produto com qualidade parateste em seres humanos - já foram fi-nalizadas com sucesso.

Os pesquisadores estão confiantes,pois o surfactante do Butantan teráuma grande vantagem em relação aoconcorrente importado: baixo custo.Raw calcula que o produto possa servendido ao governo federal para dis-tribuição na rede do SUS por valoresentre R$ 125 e R$ 200 a ampola - cer-ca de 15% do preço do produto im-portado.

Rebello: até casos mais leves poderão ser beneficiados

Um dos motivos para essa redu-ção é a técnica de extração do surfac-tante do pulmão dos porcos, que oinstituto está patenteando. Essa téc-nica, explica Flávia Kubrusly, do Cen-tro de Biotecnologia do Butantan,"substitui o uso de centrífugas de altavelocidade para a extração de surfac-tante por um tipo de papel chamadoDEAE celulose, que sai bem mais ba-rato para uso em grande escala". Háoutros motivos para o custo baixo: oButantan não faz campanhas de mar-keting e a venda não visará ao lucro.

o PROJETO

Com a redução do preço,o uso do produto deverá am-pliar-se para o tratamento dedoenças pulmonares de re-cém-nascidos a termo - osque nascem no período nor-mal, depois de 37 semanas degestação - e até de criançasvítimas de pneumonia gra-ve. Nessa e noutras doenças,como a síndrome de aspira-ção do mecônio durante oparto, o surfactante ajuda narecuperação (mecônio é o lí-quido do aparelho digestivodo próprio bebê). No entan-to, como a dosagem é calcu-lada com base na massa cor-poral - 100 miligramas porquilograma do bebê -, essaterapia é atualmente muitocara. "Em crianças e adultos,o custo atual é proibitivo. Obarateamento do medica-mento aumentaria as chan-ces de usá-lo para tratar es-sas doenças", afirma Rebello.

Mais benefícios - Além da potencialeconomia para o governo e da am-pliação do uso do medicamento, háoutros benefícios associados à produ-ção nacional. Para a universidade pú-blica, é o aprendizado da realização doschamados ensaios clínicos multicên-tricos, tecnologia que, segundo Rebel-10, é dominada principalmente peloslaboratórios farmacêuticos. Tambémhá uma aquisição de competênciatecnológica que poderá ser aplicadaa outros produtos. Além disso, a pro-dução terá surfactantes diferenciados,como o liofilizado, uma inovaçãoadotada pelo Butantan. Raw afirmaque a técnica desenvolvida para a pro-dução foi um achado: "A tecnologiaadotada revelou-se tão boa que, comuma planta (fábrica) pequena como aque possuímos, podemos suprir a ne-cessidade brasileira de consumo desurfactante". Essa necessidade, segun-do Flávia Kubrusly, é de cerca de 180mil doses - o que equivale a 22,S milampolas -, para tratar prematurosafetados pela SDR, número calculadoem torno de 45 mil bebês por ano. •

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Avaliação in Vivo e in Vitroda Função de um Novo SurfactantePulmonar de Origem Porcina,Desenvolvido e Produzidocom Tecnologia Nacional

MODALIDADE

Linha regular de auxílio à pesquisa

COORDENADOR

CELSOMOURA REBELLO- Faculdadede Medicina da USP

INVESTIMENTO

R$ 130.257,72 e US$ 145.147,29

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Como explicar o fato deas populações serem gene-ticamente homogêneas, mes-mo ocupando regiões geo-gráficas tão distantes?

A hipótese do grupo daUFSCar é a de que, em pon-tos intermediários entre aFlórida e o Pantanal, avesdaAmérica do Norte cruzamcom avesda América do Sul.Desse cruzamento resulta-riam filhotes com caracterís-ticas genéticas das duas re-giões - é o que os biólogoschamam de fluxo gênico.

Fluxo gênico - De 1997 a2000, a equipe de São Car-los fez três expedições aoPantanal, tendo manipula-do cerca de 500 filhotes decabeças-secas. Anilhas me-tálicas coloridas foram fi-xadas nas pernas de todos.Essas anilhas seguem pa-drões internacionais deidentificação e, pelo seu uso,é possível desvendar rotas migratórias.

Caso as aves anilhadas sejam en-contradas por pesquisadores de ou-tras regiões ou países, sua rota poderáser descoberta após o ciclo reproduti-vo. Se identifica das nos ninhais, po-derão ajudar a esclarecer depois emquanto tempo, e em que proporção,

em ninhais do México, oque reforça a idéia do fluxogênico. "A América Centraldeve ser o ponto de encon-tro entre as populações daAmérica do Norte e do Sul",diz a pesquisadora.

O grupo procurou fazeruma análise comparativacom dois estudos feitos nosEstados Unidos na décadade 90 sobre a estrutura ge-nética das populações decabeça-seca. As análises,feitas nas mesmas regiõesda molécula de DNA anali-sadas pelos norte-america-nos, levaram aos mesmosresultados. Estudos comdois tipos de marcadoresgenéticos apontam na mes-ma direção. Ou seja, as po-pulações são mesmo muitoparecidas geneticamente.

Mais fêmeas - Num dosoito ninhais estudados,Sílvia encontrou maior

proporção de fêmeas entre os filho-tes. Esse desvio ocorreu numa áreaatingida por resíduos de mercúrioprovenientes do garimpo de ouro naregião de Poconé, norte do Pantanal.

Nesse lugar, filhotes fêmeas pre-dominam, na proporção de duaspara cada macho. "Entre as aves, são

Cabeça-seca: ciclo reprodutivo é cumprido no Pantanal

machos e fêmeas voltam - se é quevoltam - ao lugar onde nasceram.

Sílvia revela que nunca se encon-trou no Brasil um cabeça-seca que te-nha sido anilhado - identificado poruma braçadeira colorida na perna - nosEstados Unidos. Contudo, aves anilha-das nos Estados Unidos já foram vistas

A cabeça-seca tem o reflexomais rápido já registrado entre osvertebrados: só precisa de 25 milé-simos de segundo para fechar obico e engolir um peixe. E, a favorde sua preservação, a glutona tam-bém tem a longevidade: a Mycteriaamericana vive cerca de 40 anos ealcança maturidade sexual a partirdo terceiro ano.

Os casais são aparentementemonogâmicos em cada temporadade cio, e a fase reprodutiva começacom a formação de pares nos ni-- ---

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Rápidas e longevasnhais. Os cabeças-secas formam pela fêmea, que se revezam nessaninhais em meio a outras aves tarefa e na pesca. O barulho de mo-aquáticas como a garça (Ardea al- tores de popa, a presença de vacasba) e o colhereiro (Platalea ajaja). e de seres humanos circulando naPara esses grandes núcleos, que área do ninhal provocam distúr-podem abrigar de 200 até 4.000 bios, que levam muitas vezes os ca-casais, são atraídos predadores co- sais a abandonar os ninhos.mo o gavião (Caracara plancus), o Os cabeças-secas preferem co-urubu (Coragyps atratus) e a su- mer peixes, mas não dispensam in-curi (Eunectes murinus). setos, moluscos, crustáceos e até

A postura ocorre em intervalos pequenos anfíbios e répteis. Pes-de um a dois dias. Os ovos são in- cam intensamente, dia e noite, emcubados por um mês e chocados águas de no máximo 50 centíme-24 horas por dia pelo macho ou tros de profundidade.

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Ninhal: proximidade de outras espécies e também de predadores

as fêmeas que determi-nam o sexo do filhote,diferentemente do queocorre entre humanos",comenta a pesquisadora.

Quando nascemmais fêmeas, a estrutu-ra da população de umninhal se altera. "As fê-meas cabeças-secas",diz Sílvia, "parecem sedispersar mais do queos machos, retomandoem menor proporçãoao ninhal onde nasce-ram. Daqui a três anos,fêmeas nascidas nesseninhal vão formar ni-nhais em outros luga-res. Já os machos retor-narão ao lugar ondenasceram - é a chama-da filopatria"

Como Poconé nãooferece boas condiçõespara a reprodução, as fê-meas favorecem a pro-dução de mais fêmeas, osexo mais dispersivo emenos dependente des-se local para se repro-duzir. A pesquisadoraacredita que o desvio ob-servado na distribuiçãosexual desse ninhal podeestar, portanto, sinalizando que a co-lônia está em processo de extinção.

Preservação - As conclusões do grupodo Departamento de Genética daUFSCar poderão ajudar a mudar asestratégias de preservação das popu-lações dessa ave. A pesquisa eviden-ciou que as populações pantaneirasde cabeça-seca vão muito bem, comíndices crescentes de reprodução. Umquadro bem diferente das populaçõesdos Estados Unidos - onde a espécieestá na lista das ameaçadas de extin-ção desde 1984.Na região de Evergla-des, sul da Flórida, por exemplo, apopulação caiu de 20 mil casais parapouco mais de 5 mil.

Para restaurar as populações afeta-das e evitar cruzamento entre aparen-tados, alguns pesquisadores norte-

americanos propuseram a introduçãode indivíduos de populações abun-dantes, como as do Brasil, em áreascomo a de Everglades.

Contudo, os estudos da UFSCarmostram que essa estratégia de nadaadiantaria, pois as aves do Brasil são

muito semelhantes àsde Everglades e o obje-tivo, a introdução de"sangue novo", não se-ria alcançado com esseprocedimento.

A ocorrência do flu-xo gênico remete a no-vas estratégias de conser-vação da espécie. "Talvezseja o caso de priorizar amanutenção de condi-ções gerais que garan-tam o fluxo gênico, emvez de preservar um ououtro sítio onde asavessereúnem para se alimen-tar ou se reproduzir",cogita Sílvia. "Se o fluxoé real, as ações conserva-cionistas não podem serplanejadas isoladamen-te. É preciso compreen-der, por exemplo, que oimpacto em Evergladesnão afetou apenas aspopulações norte-ame-ricanas, mas todas aspresentes no continenteamericano. E, se aconte-ceram perdas naquelelocal, elas já foram tam-ponadas pelo fluxo deindivíduos migrantes,os quais restauraram a

variabilidade genética da populaçãoimpactada, sem serem percebidos. Ouseja, para manter as populações sadiasgeneticamente, é preciso uma açãoconjunta das três Américas, visandoao monitoramento e à proteção deáreas essenciais para a reprodução e aalimentação dessas aves."

A pesquisa desfaz equívocos, escla-rece um pouco mais sobre o compor-tamento da ave e propõe um plano deconservação, mas, para Sílvia,ainda háquestões intrigantes a responder.

Falta saber, por exemplo, paraonde migram quando saem de seuciclo reprodutivo no Pantanal: "Vãomesmo até a América Central? Emque regiões se misturam em maiorproporção?". São perguntas que aequipe da UFSCar pretende esclarecernum próximo projeto. •

o PROJETO

INVESTIMENTOR$ 30.935,96 mais US$ 18.693,00

Estrutura de Populações de Mycteriaamericana nos Ninhais do PantanalMato-Grossense

MODALIDADELinha regular de auxílio à pesquisa

COORDENADORASílVIANASSIFDEl LAMA- Departamentode Genética da Universidade Federalde São Carlos

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p(anhecianum diade setembro últi-mo no extremosul do desertochileno do Ata-

cama quando a astro físicaDaniela Lazzaro tirou osolhos da tela do computador ligadoao telescópio e respirou aliviada, de-pois de ter passado a noite observan-do asteróides a centenas de milhõesde quilômetros. Era o ponto final de1.300 horas e 135 noites de observa-ções em cinco anos, que produziramum dos mais amplos estudos sobre acomposição dos asteróides e deverãoajudar a entender a formação e evolu-ção do Sistema Solar.

"Na reunião da Sociedade Astro-nômica Brasileira em agosto", diz Da-niela, "apresentei os resultados quasefinais desse grande levantamento dacomposição de asteróides, em desen-

WAGNER DE OLIVEIRA

análise da distribuição totalde composições no cinturãode asteróides, mostrando queé diferente da consideradaaté o presente. Com cerca de800 asteróides observados,nosso levantamento já é o se-

gundo maior do mundo em númerode objetos."

Todo o trabalho foi feito no teles-cópio de 1,52 metro do EuropeanSouthern Observatory (ESO), em LaSilla, e faz parte de um convênio como Observatório Nacional (ON) doRio de Janeiro, onde Daniela trabalha.Pelo convênio, o ON usa metade dotempo do telescópio. O levantamentoe todos os dados estarão à disposiçãoa partir de dezembro pela Internet,em www.on.br.

O método de análise foi a espec-troscopia de reflexão, que permiteapurar a composição química e mine-

Um dos maiores levantamentos sobreos menores corpos do Sistema

Solar ajudará a entender sua formação

volvimento desde 1996, assim comoforam apresentados os trabalhos dealunos meus que trabalham com da-dos desse levantamento. Temos bas-tante resultados". E exemplifica: "En-tre os resultados importantes obtidosaté agora eu poderia citar: a desco-berta de alguns objetos com compo-sição bastante rara, um deles tema deartigo publicado na revista Scienceem junho de 2000; a análise da distri-buição de composições em algunsgrupos e famílias de asteróides, com-provando uma origem distinta; e a

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ralógica da superfície de um asteróidea partir do princípio de que diferentesmateriais refletem a luz distintamente.Os principais minerais encontradosforam piroxênio, olivina, níquel-fer-ro, feldspatos e minerais enriquecidoscom carbono e orgânicos.

Testemunhas do começo - Asteróidessão blocos de pedra de vários tama-nhos localizados predominantementeno Cinturão de Asteróides, uma faixasituada entre Marte e [úpiter, distanteentre 1,5 e 5 unidades astronômicas(UA) da Terra. Cada UA equivale a 150milhões de quilômetros, distância mé-dia entre a Terra e o Sol.

Como são bem menores que osplanetas, os asteróides preservam ma-teriais dos estágios finais de formaçãodo Sistema Solar, que não sofreramuma significativa evolução térmica,química e tectônica após um processo

de aglomeramento chamado acreção.Daniela explica o processo: •

"Todos os corpos do Sistema Solarforam formados a partir da acreçãode pequenos corpos, chamados deplanetesimais, de tamanhos entre al-guns centímetros e alguns metros.Quanto maior o corpo, mais planete-simais foram aglomerados. A acreçãoem si já gera um calor interno: logo,quanto maior o corpo, mais calor in-terno 'primordial' - calor oriundo doprocesso de acreção - esse corpo terá.Maior calor leva a maiores transfor-mações químicas e mineralógicas.Mais ainda: quanto maior o corpo,maiores pressões são geradas. Essaspressões também levam a transfor-mações químicas e mineralógicas. Poroutro lado; um corpo pequeno terápouco calor primordial, assim comopequenas pressões internas: logo, osmateriais que inicialmente tiveram

acreção serão mantidos inalterados,ou pouco alterados." É por isso que osasteróides são chamados objetos pri-mordiais. Há 30 mil deles cataloga-dos. "Eles são fundamentais para seentender os mecanismos que deramorigem ao Sistema Solar que observa-mos hoje': acentua Daniela.

O estudo, que analisou a composi-ção mineral da superfície de 830 aste-róides, só perde em número para o le-vantamento disponibilizado este anopelo Massachusetts Institute of Tech-nology (MIT), que abrangeu 1.200 as-teróides. "Nosso estudo e o do MIT sãomuito similares,mas se concentram emregiões distintas do Cinturão de Aste-róides - ou seja, em grande parte sãocomplementares. A maioria dos obje-tos observados por nós não foi obser-vada por eles e vice-versa, já que desdeo início existiu uma boa cooperaçãoentre as duas equipes."

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fio Chile permiti-conclusões. Foi possível

rmar que "famílias" de asterói-des, partes de um corpo maior quesofreu uma forte colisão, apresentamo que os pesquisadores chamam derelação genética entre seus membros.Foram analisadas três grandes famí-lias: Flora, Themis e Eunomia. Em Flo-ra e Eunomia, o principal mineral en-contrado foi o piroxênio. "Do pontode vista mineralógico, os membros decada família têm o mesmo perfil entresi e diferente das outras famílias. Ouseja, cada grande família foi resultadode uma colisão diferente", diz Daniela.

O mesmo não pode ser dito dos"grupos dinâmicos", aglomerações deasteróides posicionadas em pontosespecíficos do Cinturão, que sofreminfluência gravitacional de Iúpiter, Apesquisa em detalhe de dois dessesgrupos, Phocaea e Hungaria, mostrouque eles não têm uma composição se-melhante e que cada asteróide revelauma origem. "Nesse caso, não existiuum corpo grande que se quebrou.Cada asteróide veio de um lugar dife-rente e está ali por processos dinâmi-cos, como a força gravitacional de Iú-piter", explica a astrofísica.

Efeito radioativo - O modelo baseadona influência do Sol na composiçãomineralógica dos asteróides do Cin-turão é contestado pelos dados gera-dos na pesquisa. Segundo o modelo, osasteróides teriam chegado à composi-ção atual conforme o grau de aqueci-mento que sofreram a partir de suas

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Do grande Ceres aos pedregulhos

distâncias do Sol. Asteróides mais pró-ximos do astro, por exemplo, teriamsido aquecidos e passado por trans-formações que determinaram suascomposições mineralógicas. Já os maisdistantes do Sol não teriam sofrido osefeitos do aquecimento e seriam, por-tanto, mais primitivos.

As observações em La Silla con-testam essa separação da composiçãodos asteróides do Cinturão, segundosua distância até o Sol. Em vez disso,uma das hipóteses consideradas é apossível presença de materiais radioa-tivos nos asteróides. Quantidades dis-tintas desses materiais levariam a dis-tintos graus de aquecimento. "O Solnão deve ser o único culpado peloaquecimento maior que alguns asté-róides sofreram", afirma Daniela. "Narealidade, o que ocorre é que materiaisradioativos decaem e nesse processo

Também chamados de "planetasmenores", por orbitarem o Sol comoplanetas, eles se concentram numafaixa entre Iúpiter e Marte, chamadaCinturão de Asteróides, mas há mui-tos outros espalhados desde a órbitada Terra - com a qual podem cho-car-se de vez em quando - até paralá da órbita de Saturno. O maior as-teróide é Ceres, com 1.000 quilôme-tros (km) de diâmetro, descobertoem 180l. Há mais 15 com diâmetro- -

geram calor. Quanto mais desses ma-teriais um asteróide tiver juntado du-rante sua formação, mais calor será ge-rado posteriormente no processo dedecaimento radioativo, fato que levará amodificações químico- mineralógicas."

Rocha basáltica - O estudo tambémlevou ao descobrimento de três aste-róides com composição rara. Eles têmuma superfície de rocha basáltica, cria-da pela erupção de vulcões e antes sóencontrada em seis corpos do SistemaSolar - Terra, Lua, Marte, Vênus, 10(lua de [úpiter) e no asteróide Vesta,que tem 500 quilômetros de diâmetro.Até então, considerava-se que fossemraros os corpos celestes com resquí-cios de atividade vulcânica.

A equipe do ON constatou a com-posição basáltica de Magnya, asterói-de de 30 quilômetros que é provavel-

superior a 240 km e muitos que nãopassam de pedregulhos. Todos jun-tos não chegariam à metade do ta-manho da Lua.

As observações diretas de aste-róides são feitas basicamente a partirda Terra, como o exaustivo estudobrasileiro no observatório de La Sil-la. Já a primeira imagem espacial deum asteróide com alta resolução foiobtida de Gaspra em 1991, pela son-da americana Galileo. Dois anos de--

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mente fragmento de um corpo maior.O achado, publicado no artigo deScience, mostrou que esse asteróide,de apenas 30 quilômetros de diâme-tro, pode ter sido o que restou de umcorpo celeste maior, que teria passadopor intensa atividade vulcânica. "Asteorias de formação de corpos basálti-cos no Cinturão terão de ser revistas.A composição de Magnya implica quepelo menos um segundo asteróide ba-sáltico, além de Vesta, foi formado",Daniela enfatiza. Ela acha que os me-teoritos basálticos que caem na Terra

pois, a mesma nave chegou bem per-to do asteróide Ida. Em 1997, a gran-de aproximação da sonda Near como asteróide Mathilde permitiu cons-tatar que ele é rico em carbono. Ima-gens do grande Vesta, com cerca de500 km de diâmetro, foram forneci-das pelo telescópio espacial Hubble.

Há asteróides que se situam emrota de colisão com a Terra. DanielaLazzaro distingue três tipos deles:"Meteoróide é um pequeno asterói-de que pode entrar na atmosfera daTerra. Meteoro é o que de fato entrana atmosfera e, devido ao atrito com

podem ser outros pedaços da frag-mentação do corpo maior que deuorigem a Magnya.

Em 2001, além de Magnya, a equi-pe do ON encontrou mais dois aste-róides com composição basáltica. Sãoos fragmentos de Vesta maiores e maisdistantes desse asteróide já descober-tos. "Isso comprova que a família deVesta se estende muito além dos limi-tes atuais", diz Daniela.

Outra parte do estudo mostrouainda que os asteróides com superfí-cie de piroxênio e olivinas são os mais

ela, chega a ficar incandescente, riscao céu e se desintegra totalmente: épopularmente chamado de 'estrelacadente'. E meteorito é um peque-no asteróide que entra na atmosfe-ra, mas não se desintegra totalmenteao atravessá-Ia, e chega a atingir a su-perfície. Sobra um pedaço no chão,ou até se forma uma cratera". Esse émuito importante para os estudosastro físicos e, sempre que encontra-do, é analisado em laboratório. "Jáque não podemos ter um asteróideem laboratório, pelo menos temosum pedacinho dele", diz Daniela.

abundantes no Cinturão. Antes, acre-ditava-se que os do tipo carbonáceopredominavam.

Os principais achados da missãoobservacional deverão ser publicadosna revista de astronomia Icarus, dosEstados Unidos. ''A pesquisa insere oBrasil com destaque na área de astro-física do Sistema Solar", diz Daniela. Apesquisadora acha que recursos mi-nerais oriundos de asteróides, comotitânio e ferro, podem futuramenteser usados na Terra, e a pesquisa doObservatório servirá de referênciapara esse trabalho. "Esses dados sãofundamentais para a escolha de aste-róides a serem visitados por missõesespaciais", observa ela.

Com os dados, foi possível obter adistribuição precisa de composiçõesfísico-químicas no Cinturão de As-teróides como um todo. "Esse trabal-ho será fundamental para o entendi-mento da formação e evolução doCinturão e do Sistema Solar", diz Da-niela, que trabalhou em conjuntocom pesquisadores do Instituto As-tronômico e Geofísico da Universi-dade de São Paulo (IAG-USP), doMIT e do Laboratório de Jato-Pro-pulsão da Nasa, a agência espacialdos Estados Unidos. •

PESQUISA FAPESP . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 57

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CIÊNCIA

Armadilha de

Nomundo há quatro

grupos empenhadosem obter a partir deátomos de cálcio umestranho estado da

matéria - os condensados de Bose-Einstein -, e entre eles está o da Uni-versidade Estadual de Campinas (Uni-camp) liderado por Artemio Scalabrin.Os demais grupos usam elementos daprimeira coluna da tabela periódica,como sódio, lítio e rubídio. ''A vanta-gem do cálcio e de outros integrantesda segunda coluna é sua peculiar es-trutura eletrônica, que pode permitirsimplificar o método de obtenção doscondensados", diz Scalabrin.

Flávio Caldas da Cruz, também doGrupo de Lasers do Instituto de Físicada Unicamp que desenvolve o proje-to, recorda: "Quando o primeiro con-densado foi produzido, gerou-se a ex-pectativa de que ocorreria no setor amesma explosão pro-vocada pela criaçãodo laser, nos anos 60.No entanto, passadosquase sete anos, ape-nas um número limi-tado de grupos expe-rimentais obteve essescondensados. O principal motivo é agrande dificuldade técnica, em parti-cular a associada à armadilha magné-tica, de se obter esses objetos".

"Daí o interesse no condensado decálcio", explica Cruz. "Graças à sua es-trutura de níveis, esse elemento tempropriedades específicas que ofere-cem a perspectiva de se chegar a talestado da matéria apenas por métodosópticos. Para isto, um segundo tipo dearmadilha, semelhante a uma pinçaóptica, substituiria a armadilha mag-nética. Isso representaria um impor-tante atalho para os condensados."

Átomos aprisionados - Com seu se-gundo projeto temático, em fase deconclusão, 60 trabalhos em revistas in-ternacionais, sete teses de doutora-mento e seis de mestrado concluídasnos últimos dez anos, o Grupo deLasers acredita ter cacife para a em-preitada. "Sempre desenvolvemos osequipamentos necessários à pesqui-

58 . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

sa", revela Daniel Pereira, integranteda equipe. "Somos hoje o único gru-po brasileiro com presença no restritocírculo de laboratórios internacionaiscapazes de realizar medidas de fre-qüência de lasers na região do tera-hertz (que corresponde a 1 trilhão deoscilações por segundo)."

Equipe cria atalhopara obter um estadoespecial da matéria

JOSÉ TADEU MANTES

FÍSICA

Na batalha pelo condensado, ogrupo já faz o mais difícil: aprisionaros átomos de cálcio. Para isso, adota oseguinte procedimento: inicialmente,um forno aquece o cálcio metálico,transformando-o em vapor e elevan-do-o para 600 graus Celsius. Com oaquecimento, os átomos alcançam avelocidade média de 700 metros porsegundo (rn/s). No vácuo, os átomossão colimados - ou seja, suas trajetó-rias se tornam paralelas - e consti-tuem um feixe.

Em seguida, ao deslocar-se porum tubo, o jato de átomos é desacele-rado pela pressão de radiação de umlaser que aponta em sentido contrário- os fótons, partículas de luz, têm acapacidade de pressionar a matéria, oque produz um fenômeno como acauda dos cometas. A desaceleraçãopelo laser - cerca de um milhão de ve-zes maior, em valor absoluto, que aaceleração da gravidade - faz a veloci-dade dos átomos cair para cerca de

0,5 m/s. Desacelerados, os átomos po-dem ser aprisionados por meio de umdispositivo composto de seis lasers-opostos dois a dois e dispostos segun-do três direções ortogonais, cada umacorrespondendo a um eixo cartesianodo espaço - e um campo magnético.

Com essa técnica, cerca de 10 mi-lhões de átomos são confinados numaesfera de 1 milímetro de diâmetro. Abaixa mobilidade faz sua temperaturadespencar para o platô de 1 milikel-vin, um milésimo de grau acima dozero absoluto (o zero kelvin corres-ponde a -273,15 graus Celsius). Otempo de permanência dos átomos naarmadilha é de cerca de 20 milissegun-dos - duração que parece irrisória,mas, para a escala de tempo dos fenô-menos atômicos, é muito. "Mesmonessa temperatura baixíssima aindaocorrem colisões entre os átomos. É achamada colisão ultrafria, muito pou-

co estudada até o momento para ele-mentos da segunda coluna da tabelaperiódica", comenta Pereira.

Relógios atômicos - A obtenção docondensado não é a única finalidadedesse experimento. "Uma de suas im-portantes aplicações práticas é estabe-lecer padrões universais de freqüên-cia, tempo e comprimento': informaScalabrin. "Uma transição do cálcio éatualmente utilizada como padrão defreqüência. E permite definir tambémpadrões de tempo e comprimento, es-senciais em metrologia, redes de tele-comunicações e de energia elétrica enavegações aérea e marítima. Quandoos átomos têm velocidades mais altas,esse padrão sofre variações e é pertur-bado por um número maior de coli-sões. Em temperaturas próximas ao ze-ro absoluto, a freqüência atinge umaestabilidade quase ideal. A perspectivaé construir, a partir daí, relógios atô-micos portáteis de altíssima precisão."

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o pesquisador fala em transiçãodo cálcio. Para entender, é preciso re-cordar o modelo quântico do átomo,formulado pelo dinamarquês NielsBohr em 1912. Quando recebe umaporte externo de energia, o elétronsalta de um nível relativamente próxi-mo ao núcleo para outro mais distante.Transcorrido um intervalo de tempoindeterrninado, a partícula deixa essacondição excitada e retoma ao estadofundamental, devolvendo ao meio ex-terior a energia excedente. Bohr ela-borou seu modelo para o átomo dehidrogênio, o mais simples de todos,constituído por apenas um próton eum elétron. Mas ele pode ser genera-lizado para átomos mais complexos.No caso do cálcio, que tem 20 elétronsdistribuídos por várias camadas, sãoas duas partículas da última camadaque transitam para níveis diferentesquando excitadas.

A energia para isso é conferida pe-los fótons, partículas ligadas à intera-ção eletromagnética, que compõem aemissão do laser. Para produzir essastransições, o laser precisa ser altamen-te monocromático, com uma cor mui-

o PROJETO

Espectroscopia Atômica e Molecularcom Lasers

MODALIDADEProjeto temático

COORDENADORARTEMIO SCALABRIN - Instituto de Físicada Unicamp

INVESTIMENTOR$ 199.624,98 e US$ 336.494,00

to bem definida. A freqüência asso-ciada a cada transição é a do laser-idêntica à da luz emitida pelo átomoquando seus elétrons voltam ao esta-do fundamental. "Entre as muitastransições possíveis de um átomo,aquelas que realmente interessam são

as que envolvem os chamados níveismetaestáveis, nos quais o elétron é ca-paz de permanecer durante um lon-go tempo, antes de decair", afirmaCruz. "Isso se deve ao fato de que,quanto maior o tempo de permanên-cia do elétron num nível, mais defini-da é a energia necessária para produ-zir essa excitação. Quando o tempo depermanência é curto, há uma grande

indefinição no valor daenergia - o que é uma de-corrência direta do Prin-cípio da Incerteza, um dospilares da física quântica."

Três transições são es-pecialmente interessantes no cálcio.Duas são estimuladas pela radiaçãoeletromagnética na faixa do infraver-melho longínquo, em 1,6 e 3,2 tera-hertz (THz). Outra, ainda mais ener-gética, é produzida pela luz visível em456 THz. Essas transições tornam ocálcio extremamente promissor para odesenvolvimento de relógios atômi-cos de altíssima precisão. "O motivo é

Bem perto do zero absoluto

A pesquisa do Grupo de Lasersda Unicamp envereda por um cam-po recente: a produção experimen-tal de um condensado de Bose-Eins-tein foi conseguida pela primeiravez em 1995 e seus autores - osamericanos Eric Cornell e Carl Wie-man, da Universidade do Colorado,

em Boulder, e o alemão WolfgangKetterle, do Massachusetts Instituteof Tecnology (MIT) - receberam oNobel de Física de 200 l.

Previsto teoricamente em 1924pelo indiano Satyendra Nath Bose(1894-1974) e pelo judeu-alemãoAlbert Einstein (1879-1955), o con-

densado foi buscado por décadas,até ser obtido independentementepela dupla Cornell e Wieman e porKetterle. A presteza da premiaçãoindica a importância do feito.

O condensado é um estado damatéria em que os átomos perdemsuas individualidades e passam a secomportar como entidade única.Ocorre quando os corpúsculos es-tão em um nível excepcionalmente

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que, quanto mais elevada a freqüênciado oscilado r, maior a estabilidade dos'tique-taques' do relógio': explica Cruz.

"Os relógios atômicos convencio-nais, baseados no césio e no rubídio,utilizam oscilações geradas na faixa demicroondas do espectro eletromag-nético, no patamar do gigahertz (1 bi-lhão de oscilações por segundo). Umeventual relógio de cálcio, alimentadopelas oscilações do campo eletromag-nético de lasers, operaria com freqüên-cias milhares de vezes mais altas."

A idéia de produzir um relógio decálcio no infravermelho longínquo, tro-cando os geradores de microondas por

baixo de energia, em temperaturaalguns bilionésimos de grau acimado zero absoluto. A situação prova-velmente não existe na natureza,pois nem mesmo o espaço interga-láctico é tão frio, mas pode ser obti-da em laboratório.

A técnica para isso consiste em re-duzir drasticamente a agitação tér-mica dos átomos, aprisionando-osnum volume muito pequeno por

Aparelhagem feitapelo próprio grupo e

o resultado: umátomo de cálcio

imobilizado

lasers como fonte excitatória, existe hácerca de 30 anos e tem sido incrernen-tada. Verificou-se,por exemplo, que, es-friando-se os átomos, era possível ob-ter freqüências mais estáveis. E que ocálcio apresentava aquela outra transi-ção, na faixa visível do espectro, comfreqüência ainda mais alta. Tudo issogerou grande expectativa, mas haviaum problema: até há dois anos, medir

meio de uma armadilha de lasers ede um campo magnético. E, depois,usar uma armadilha magnética ma-nipulada com radiofreqüência, demodo a expelir os átomos maisenergéticos, deixando ficar apenasos impecavelmente quietos.

A coerência de comportamentodesse gás de átomos ultrafrios é talque faz com que ele esteja para umgás à temperatura ambiente assim

freqüências na faixa do terahertz pare-cia impossível.De pouco adiantava pro-duzir uma transição de freqüência tãoelevada se não havia como mensurá-la.

Foi quando se descobriu que umlaser de pulsos ultracurtos poderia ser-vir para medir a freqüência de outrolaser. Ao contrário do laser usado paraexcitar o átomo, cuja emissão deve sercontínua e altamente monocromática,esse laser medidor emite pulsos des-contínuos e policromáticos - isto é,compostos por radiações de diferen-tes freqüências. E sua emissão poli-cromática é o chamado "pente de fre-qüências" - algo que funciona comouma régua para a aferição de outrasfreqüências. Isso, por si, já parecia mui-to bom. Mas o impressionante era operíodo de cada pulso: algo da ordem

do femtossegundo (1 qua-~ trilhonésimo de segundo).

Com pulsações tão rápi-das, esse laser pode balizartranqüilamente freqüênciasde centenas de terahertz.

Esse laserpulsante mu-dou o cenário e forneceu oingrediente que faltava aorelógio atômico de cálcio.Pois, em princípio, tudo oque se precisa para fazer o .

relógio é um oscilado r estável e ummedidor de oscilações. O oscilado r,no caso, é o laser monocromático es-tabilizado à transição atômica docálcio. E o medidor, o laser de pulsosultracurtos. Daí até o relógio efetivoé uma questão de vencer obstáculostécnicos, o que também pode ser ditoquanto à obtenção dos condensados.Mas o caminho já foi aberto. •

como o laser está, num exemplo tri-vial, para a luz de uma lanterna.

Uma das possíveis aplicações docondensado é justamente a criaçãode "lasers' atômicos. Há equipes quetrabalham nessa direção, mas o pro-cesso está em fase muito preliminar.No momento, a pesquisa se concen-tra no estudo das propriedades físicasdos condensados, ainda largamentedesconhecidas.

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/OEZEMBRO DE2001 • 61

Page 62: Da aldeia ao laboratório

TECNOLOGIA

LINHA DE PRODUÇÃO

Válvula cardíaca de córnea de atumUm novo tipo de válvulacardíaca, feita a partir deum material biológico inu-sitado, córneas de atum, foidesenvolvido pela empresapaulista Braile Biomédica,de São José do Rio Preto, emparceria com cientistas ita-lianos da Universidade deMilão. A principal vanta-gem do implante, cuja fun-ção é regular o fluxo sanguí-neo, é ser menos vulnerávelao processo de calcificação.Esse problema reduz a vidaútil dos implantes e ocorredez anos após a introduçãode válvulas biológicas, nor-malmente fabricadas comtecido bovino ou suíno. Opesquisador Gilberto Gois-sis, do Instituto de Químicada USP de São Carlos, tam-bém participou do processode desenvolvimento do ar-tefato. "Estam os fazendotestes de qualidade e dura-

• IPT cria centro parapesquisar design

Para assessorar produtores detodo o país, o governo paulis-ta instalou no Instituto dePesquisas Tecnológicas (IPT)o Centro São Paulo Design,que deverá começar atenden-do à indústria de móveis, porsua capacidade de gerar em-pregos e exportar. "A indús-tria brasileira tem uma tra-dição de importação detecnologia, tanto de produtoquanto de processo", explicaJoão Pizysieznig Filho, da Di-visão de Economia e Enge-nharia de Sistemas do IPT."Design próprio, original por

Válvula de atum: menos vulnerável à calcificação

bilidade do material", dizGoissis, que foi coordena-dor de um projeto do pro-grama Parceria para Inova-ção Tecnológica (PITE) daFAPESP entre a universida-de e a Braile. Os experimen-tos são conduzidos em seulaboratório, equipado du-

definição, não pode ser im-portado. Em muitos setoresindustriais, o Brasil competecom cópias de design estran-geiro:' De acordo com Pizy-sieznig, isso tende a depreciaro produto brasileiro e com-promete a competitividadeda economia. "A indústria,em geral, atua na tecnologiade· processo e de produto,mas raramente vai adiante naconcepção e nos ensaios dedesign e de material alternati-vo", diz. O Centro São PauloDesign pretende interagircom as divisões técnicas doIPT, desenvolvendo trabalhosoriundos tanto do centroquanto das divisões técnicas

62 . NOVEMBRO/DEZEMBRODE2001 • PESQUISA FAPESP

rante o PITE. Além de tra-balhar com o implante decórnea de atum, Goissisprossegue os estudos paraaprimorar o desempenhode válvulas cardíacas con-feccionadas a partir do peri-cárdio, membrana que en-volve o coração, bovino. •

do instituto, para difundir acultura do designo A partir de2002, o centro vai expandir asatividades e passará a atendertambém outros setores. Cerâ-mica e iluminação são ospróximos alvos. •

• Os grandespólos do mundo

Técnicos da Organização pa-ra a Cooperação e o De-senvolvimento Econômico(OGDE) iniciaram em mea-dos da década de 90 um estu-do entre os 30 países mem-bros da organização com oobjetivo de levantar o poten-cial de cada um para sediar os

chamados "empreendimen-tos baseados no conhecimen-to". Esses empreendimentos sesituariam nas áreas aeroespa-cial, farmacêutica, química,de equipamentos médicos ede maquinaria em geral, cor-reios e telecomunicações, fi-nanças, seguros e serviçospara negócios em geral. Oscritérios de avaliação dos paí-ses privilegiaram uma série dedados: participação de cadasetor no Produto Interno Bru-to, número de patentes nasáreas selecionadas em relaçãoà população, produtividadedo trabalho, investimentosnos setores de conhecimento(software, pesquisa e desen-volvimento e educação supe-rior), de tecnologia da infor-mação e de capital de risco,participação da produção edos serviços das empresas es-

Países mais propensosao sucesso em atividadesbaseadas no conhecimento

POSiÇÃO PAis PONTUAÇAo1 Suiça 522 Suécia 443 EUA 404 Irlanda 385 Holanda 336 Hungria 317 Bélgica 29

Canadá 299 Inglaterra 2810 Coréia do Sul 27

Finlândia 2712 Alemanha 2613 Japão 2014 Austrália 1915 Luxemburgo 16

Áustria 15França 15

18 Dinamarca 1319 Noruega 1220 Itália 1021 Rep. Tcheca 822 Islândia 723 Polônia 624 Nova Zelândia 425 Portugal 1

Não classificados: México, Grécia,Espanha, Turquia e EslováquiaFonte: Financial Times com baseem dados da OCDE

Page 63: Da aldeia ao laboratório

trangeiras e proporção de es-tudantes estrangeiros no en-sino superior. Com base nes-ses levantamentos da OCDE,que tem sede em Paris, o jor-nal inglês Financial Timesconferiu pontos aos países eos classificou (ver tabela)conforme sua capacidadepara desenvolver aqueles se-tores de alta tecnologia no sé-culo 21. Os resultados foramconsiderados em boa partesurpreendentes. •

• Outdoors iluminadoscom energia solar

Em breve, boa parte dos out-doors do Recife poderá seriluminada por um sistemacomposto por placas fotovol-táicas que convertem energia

solar em energia elétrica.Desenvolvido pelo Núcleode Apoio a Projetos de Ener-gias Renováveis (Naper) daUniversidade Federal de Per-nambuco (UFRJ) , o sistemafoi encomendado pela Ban-

deirantes Mídia Externa,uma das maiores empresasde outdoors das regiões Nor-te e Nordeste. "O uso deenergia solar em área urbanano país é muito limitado",diz Heitor Scalambini Cos-

Pimenta-longa vira cosmético e inseticidaPesquisadores da EmpresaBrasileira de Pesquisa Agro-pecuária (Embrapa) estãocriando tecnologia paratornar a pimenta-longa(Piper hispidinervum) umacultura comercial. O obje-tivo é atender à demandapelo óleo essencial safrol,usado por indústrias decosméticos (como fixador)e de inseticidas. O safrol écomumente extraído dosassafrás (Ocotea pretiosaMezz) , cuja exploração naMata Atlântica foi proibidahá alguns anos. Hoje o óleovem da China e do Vietnã,onde é obtido da mesmaforma destrutiva antes pra-ticada aqui. Como o safroltambém está presente napimenta-longa, nativa doAcre, surgiu o interesse emcultivá-Ia. Os pesquisado-res desenvolveram tecnolo-gias simples para destilar oóleo e vendê-Io às empre-sas. Ao mesmo tempo, ob-

~-::-:--.,-:;;::~~~-,,:.v~~ ~ sil, Pirisa Piretro e Endura~ Spa participam financiando

as destilarias e comprandoa produção. Os produtoresreceberam treinamentos so-bre cultivo, beneficiamentoe detecção de- doenças. Háuma expansão gradual econtrolada das áreas de cul-tivo, considerando que oprocesso de domesticaçãoda espécie é recente. Sãomonitorados os custos e asetapas do processo, para as-segurar sua viabilidade eco-nômica, e a qualidade doóleo é rigorosamente con-trolada, pois deve ter umteor de safrol de, no míni-mo, 90%. Em três anos,houve três colheitas. Se-gundo dados preliminares,o cultivo pode atingir umaprodutividade anual porhectare de 200 a 250 quilo-gramas de óleo, cotado en-tre US$ 4,5 e US$ 8 por li-tro. Os resultados já atraemoutros produtores. •

Pimenta: fonte de safrol

servaram a planta em seuhábitat natural - áreas decapoeira -, verificando va-'nações do teor de safrol ede resistência a doenças. Oprojeto, que tem a parceriada agência britânica de de-senvolvimento (DFID), se-lecionou 30 produtores emduas associações, de Ron-dônia e do leste do Pará.Cada associação tem umadestilaria comunitária. Asempresas Geroma do Bra-

ta, coordenador do Naper."Com esse projeto, queremosmostrar que existem nichosde mercado para a energiasolar em grandes cidades", ex-plica. O sistema desenvolvi-do pelo Naper é constituídopor quatro placas fotovoltai-cas, um conjunto de bateriaspara armazenar a energia ge-rada durante o dia e utiliza-da à noite, um controladorde carga que protege a bate-ria de sobrecargas e um tem-porizador para apagar eacender as luzes num deter-minado intervalo de tempo,além de lâmpadas e refleto-res eficientes. Segundo Cos-ta, as placas têm vida útil de25 anos e o retorno do inves-timento inicial, de R$ 5 mil,se dá em 15 meses. •

• IBGEinvestiganível de inovação

Sabe-se que, apesar do reco-nhecido nível tecnológiconacional, as empresas priva-das brasileiras investem mui-to pouco em pesquisa e de-senvolvimento (P&D). Paradescobrir por que isso acon-tece e o que fazer para re-verter a situação, o InstitutoBrasileiro de Geografia e Es-tatística (IBGE) começou aproduzir, em novembro, umaampla pesquisa com umaamostra de nada menos que10 mil indústrias. O estudopermitirá traçar um amplopanorama das atividades deinovação empreendidas, dosproblemas que as empresasenfrentam no setor e daseventuais relações que têmcom universidades, institu-tos e centros de pesquisa. Osresultados, que deverão serconhecidos em janeiro e ju-lho de 2002, darão subsídiosao Ministério da Ciência eTecnologia para traçar polí-ticas de incentivo ao investi-mento em P&D. •

PESQUISA FAPESP . NOVEMBRO/DEZEMBRODE2001 63

Page 64: Da aldeia ao laboratório

TECNOLOGIA

INCUBADORAS

Fenômenomundial

Congresso mostra o vigor dosistema de incubação de empresasque cresceu, em 15 anos, de 200unidades para 3 mil no mundo

MARCOS DE OLIVEIRA

Incubadorasde empresas do

mundo, uni-vos. Bem que essepoderia ser o brado final doprimeiro congresso mundialdesse tipo de empreendimento

realizado no Rio de Janeiro, entre osdias 23 e 25 de outubro. Os represen-tantes de 30 países e a presença de 500participantes brasileiros reafirmarama importância das incubadoras em ummundo onde está sedimentada a im-portância das empresas de base tec-nológica - as principais clientes dasincubadoras e as que mais necessitamde tempo para crescer - como impul-sionadoras do desenvolvimento de ca-da país. As incubadoras fizeram partedo cenário de pesquisa e desenvolvi-mento tecnológico do final do século20 e entram com toda a força neste sé-culo. Têm, em comum, a oferta de cui-dados administrativos, tecnológicos,de marketing e de produção para em-presas nascentes, sempre de pequenoporte, que se fortalecem na incubado-ra para ganhar o mercado.

Segundo o professor Rustam Lal-kaka, assessor do Programa das Na-ções Unidas para o Desenvolvimen-to (Pnud) e presidente da Business &

64 • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

Technology Development Strategies,uma consultoria dos Estados Unidos,havia, no mundo, 200 incubadoras em1985, geralmente ligadas a pólos ouparques de tecnologia. Hoje, esse nú-mero chega a 3 mil. A maior parte estános Estados Unidos, país que contacom cerca de 800 incubadoras. O Bra-sil possui 159. Não é pouco. Em 19156,eram duas. O crescimento médio deinstalação de incubadoras até aqui foide 30% ao ano.

Apoio asiático - A proliferação de in-cubadoras em países asiáticos tambémé exponencial. Na China, em 1995,não havia uma só incubadora. Nestefinal de 2001, os chineses estão pertode inaugurar a incubadora de número200. ''As incubadoras na China estãoajudando na adequação da economiasocialista para a capitalista", contouLalkaka, que deu cursos de formaçãopara dirigentes das empresas e das in-cubadoras chinesas. "Os chineses sãomuito humildes, querem aprender."

As incubadoras chinesas são alta-mente subsidiadas pelo governo. Sãoconstruídos prédios padronizados decinco andares com 10 mil metros

quadrados - nos Estados Unidos, emmédia, as incubadoras têm 2 mil m2.

Com isso, o governo chinês quer queas incubadoras estimulem a culturado empreendedorismo e o desenvol-vimento de tecnologia. Subsídios àsincubadoras também são fatores deincentivo em países tradicionalmen-te capitalistas como o Japão e a Co-réia do Sul. .

"O governo japonês criou uma as-sociação de incubadoras há dois anoscom o objetivo de criar 200 empreen-dimentos desse gênero em cinco anos':lembrou o professor Luís Afonso Ber-múdez, presidente da Associação Na-cional das Entidades Promotoras deEmpreendimentos de TecnologiasAvançadas (Anprotec), a entidade quereúne as incubadoras brasileiras. NaCoréia, segundo Lalkaka, as incubado-ras também dependem de fortes sub-sídios governamentais. ''A maioria estáligada a universidades, e elas estão en-tre as mais avançadas do planeta nasáreas tecnológica e comercial."

Na Malásia, outro exemplo de go-verno de país em desenvolvimentoque aposta nas incubadoras. O poderfederal daquele país está distribuindo,

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entre 2001 e 2005, US$ 52 milhõespara a formação e ampliação de clusters(grupos) de empresas de desenvolvi-mento tecnológico ligados às univer-sidades, como forma de diminuir o es-paço entre a produção de tecnologiadentro do ambiente acadêmico e o mer-cado. Em Israel, o apoio governamen-tal e privado foi decisivo para edificarum dos mais bem-sucedidos exemplosde incubação. Durante dez anos, de824 projetos de empresas, 643 foramgraduados e alcançaram o mercado. Aoperação já rendeu US$ 150 milhõesem vendas, 90% em exportações. Issopara um apoio governamental de US$258 milhões e de US$ 525 milhões deinvestimento do capital privado.

Prédios públicos - A relação entre sub-sídio e eficácia em países em desenvol-vimento, no caso das incubadoras, pare-ceser a regra inicialde sucessopara essesempreendimentos. E o Brasil não ficaatrás. "Das 159 incubadoras existentes,70% são de cunho tecnológico, vin-culadas formalmente a institutos depesquisa e universidades públicas", in-formou Bermúdez. Nesses casos, oprédio e as instalações para abrigar asempresas são cedidos por entidadespúblicas e prefeituras. O exemplo maisrecente é a Universidade Estadual deCampinas (Unicamp), que instalouuma incubadora dentro do seu campuse escolhe atualmente as oito empresasque vão compor o empreendimento.

Lalkaka: formação para chineses

A manutenção dessas incubadorastambém é paga, em parte, por institui-ções como o Serviço Brasileiro deApoio à Micro e Pequenas Empresas(Sebrae) e pelo sistema da Confedera-ção Nacional da Indústria (CNI) como Serviço Nacional de AprendizagemIndustrial (Senais) e Instituto EuvaldoLodi. "Amédia de gastos anuais de umaincubadora no Brasil varia de R$ 150a R$ 250 mil, com salários de gerentes,consultores e infra-estrutura como te-lefones e luz", afirma Bermúdez. A in-cubação para a empresa, no entanto,

não é gratuita. A média brasileira estáem R$ 10,00o m2 como taxa que o em-preendedor paga à incubadora. Valorpago nos dois ou três anos que a em-presa leva para se graduar e se sustentarcom pernas próprias no setor econômi-co que escolheu.

As perspectivas brasileiras para ofomento às novas incubadoras são boas.Durante o congresso no Rio, o Sebraeanunciou investimentos para criar 42novas incubadoras em todo o país atéo final do próximo ano. Estados comoPiauí, Sergipe e Tocantins, que não ti-nham incubadoras, agora vão ter. OSebrae também anunciou investi-mentos em mais 57 incubadoras já emfuncionamento. No total serão R$ 5,4milhões em financiamento direto às in-cubadoras. Entre as novas, dez vão reu-nir empresas de base tecnológica, comoa que vai ser instalada na UniversidadeFederal do Piauí e na Fundação Univer-sidade do Tocantins .Também está nes-sa categoria uma incubadora solicitadapelaAssociaçãodos Amigos da EstaçãoCiência, entidade ligada ao Centro deDifusão Científica, Tecnológica e Cul-tural da USP (Estação Ciência). A idéiaé concretizar, de forma empresarial, asiniciativas na área de produção demateriais para ensino e divulgação daciência. "Existem muitas experiênciastalentosas - a maioria de professores-que podem resultar em empresas",afirma o professor Ernst Hamburger,diretor da Estação Ciência.

Velhas fábricas, novos negócios

O movimento de incubação deempresas é um fenômeno recente. Aprimeira tentativa registrada deagrupar empresas num mesmo localde trabalho - e a origem do nome in-cubadora, surgiu em 1959, na cidadede Batavia, no Estado de Nova York,nos Estados Unidos. Naquele ano,depois de a cidade perder uma gran-de fábrica de tecelagem, a comunida-de local resolveu investir em outrotipo de atividade. A escolha recaiusobre o setor de produtos originários.

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de frango, e o local ocupado foi a an-tiga fábrica de tecidos. Da área ondese instalou a chocadeira dos ovos, fi-cou o nome incubadora, que se espa-lhou pelo mundo.

As incubadoras, da forma comosão conhecidas hoje, surgiram noinício dos anos de 1970. Elas resulta-ram de três movimentos simultâ-neos nos Estados Unidos, segundo aAssociação Nacional das Incubado-ras de Empresas (NBIA): a necessida-de de dar uma finalidade para áreas

abandonadas, como grandes galpõese fábricas, a ação da Fundação Na-cional de Ciência (NSF) para en-corajar iniciativas de inovação nasuniversidades e a iniciativa de em-presários de sucesso e grupos de in-vestidores em transferir a experiên-cia e o conhecimento para novasempresas num ambiente favorável àinovação e novos negócios.

Outro impulso veio do departa-mento americano para a Adminis-tração de Pequenos Negócios (SBA).A partir de 1984 até 1987, a entidadepromoveu cursos e investiu na for-mação de incubadoras em todo o

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período, ou seja, um ín-dice de sucesso de 80%.

Excluindo-se os Es-tados Unidos, onde ape-nas no início das ativi-dades do movimento deincubadoras existiu apli-cação de fundos fede-rais, grande parte dasincubadoras no mundosobrevive, e bem, comdinheiro público. A si-tuação das empresas, noentanto, não é a mesma.Apenas em alguns paí-

ses europeus e nos Estados Unidosexiste uma cultura de investimentoprivado em pequenos empreendi-mentos de alta tecnologia. O exemplomaior ainda é o Vale do Silício, regiãona Califórnia que reúne empresas bem-sucedidas nas áreas de informática etelecomunicações.

Bermúdez: 70% tem vínculo com as universidades

Outras incubadoras estão na áreada chamada economia tradicional emque a tecnologia não é preponderante,como a da Associação Comercial e In-dustrial e Serviços de Arapiraca (AL).Nessa categoria estão as incubadorasagrícolas, em que a ênfase é no preces-samento de produtos do campo. Umaoutra categoria, a mista, reúne em-preendimentos de desenvolvimentode tecnologia e, ao mesmo tempo, em-presas da economia tradicional. Umexemplo é aquela que vai se formar naFaculdade de Ciências Econômicas doTriângulo Mineiro, em Uberaba (MG).

A importância das incubadoras pa-ra as pequenas empresas está clara nasestatísticas do Sebrae. Entre as peque-nas empresas que ultrapassam os trêsanos de vida, 56% fecham as portas de-finitivamente. Nas incubadoras, ape-nas 20% não sobrevivem ao mesmo

país. Em 1984, foram inauguradas20 incubadoras, e no ano de 1987, onúmero pulou para 70 .

No Brasil, a primeira incubado-ra abriu as portas em 1985, na Fun-dação Parque de Alta Tecnologia(Parqtec) em São Carlos, ao ladodos campi da Universidade de SãoPaulo (USP) e da Universidade Fe-deral de São Carlos (UFSCar). Em1986, surgiu o Centro Empresarialpara a Laboração de TecnologiasAvançadas (Celta), de Florianópolis(SC), incubadora da FundaçãoCentros de Referência em Tecnolo-gias Inovadoras (Certi).

Cultura do encontro - Para o presiden-te da Associação Americana de SeedMoneye Capital de Risco (Nasvf), Ro-bert Heard, "a cultura do encontroentre empresários e investidores levaao investimento". Para ele, "é impor-tante difundir o conhecimento (geradonas empresas) não só para os investi-dores, mas para toda a comunidade':Ele falou também que a mudança decultura acontece com treinamentodos empresários e uma forte rede deinformações, que possibilite a um in-vestidor conhecer um empreendedore vice-versa. Heard disse que essa redeainda é fragmentada nos Estados Uni-dos. "Esse é um dos nossos proble-mas", afirmou o investidor que dirigea Nasvf, entidade fundada em 1997.

"Nos últimos três anos, cresceu apercepção dos investidores em alta tec-nologia em considerar as incubadorascomo importantes fontes de investi-mento em negócios",disse Rina Pridor,coordenadora do Programa de Incuba-doras de Empresas do Ministério daIndústria e Comércio de Israel. Na-quele país, 59% das empresas gradua-das levantaram fundos privados deinvestimento. A aproximação entre ocapital de risco e os empreendedoresparece ser a chave para a efetivação

Novas opçõesde fundos

As incubadoras de empre-sa estão na base de um novoprograma que vai estimular atransferência de projetos ino-vadores da universidade ecentros de pesquisa para oâmbito empresarial. A novi-dade é o Fórum Brasil de Ino-vação, uma iniciativa da Fi-nanciadora de Estudos eProjetos (Finep) que vai con-tar com recursos dos FundosSetoriais. O primeiro editalvinculado ao Fundo Setorialde Petróleo (CTPetro) estápronto e já recebe propostasde projetos. O montante definanciamento previsto é deR$ 10 milhões. Os grupos depesquisa deverão trabalharjunto com as incubadoras deempresas de base tecnológica,responsáveis pela coordena-ção empresarial dos projetos.

O outro fundo coordena-do pela Finep é o Brasil Ven-ture, para financiamento deempresas nascentes. Para essefundo estão destinados maisR$ 30 milhões. Esses fundosdevem aumentar a participa-ção do capital de risco nas 58empresas que participaramdas cinco edições do VentureFórum Brasil, que são roda-das de apresentação das em-presas a uma platéia de inves-tidores. "Depois de um ano,quatro empresas firmaramacordo de entrada de capitalna empresa por meio de ces-são de cotas de ações", infor-mou Luciane Gorgulho, su-perintendente da Área deDesenvolvimento em Capitalde Risco da Finep. Mais setefecharam acordo, mas aindanão estabeleceram a partilhadas ações.

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • 67

,

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dessa simbiose tão necessanapara a implentação de novas em-presas e novas tecnologias. NoBrasil, a Financiadora de Estudose Projetos (Finep) do Ministérioda Ciência e Tecnologia, por meiodo projeto Inovar, tem propor-cionado encontros entre as duaspartes por meio de rodadas deapresentação de empresáriospara uma platéia de representan-tes de fundos e empresas de in-vestimento (veja quadro).

Capital arisco - A atuação dosfundos e empresas de capital derisco no Brasil em empresas debase tecnológica ainda é conside-rada baixíssima. "O capital de ris-co no Brasil deveria ser chamadode capital arisco", cunhou SílvioMeira, presidente do Centro deEstudos e Sistemas Avançados(Cesar), uma organização não-gover-namental que reúne empresas nas-centes no Centro de Informática daUniversidade Federal de Pernambuco(UFPE), durante um simpósio naConferência Nacional de Ciência eTecnologia e Inovação, realizada emBrasília no último mês de setembro.

"No Brasil, faltam bons exemplosde casos de sucesso apoiados pelo ca-pital de risco, atividade ainda tratadacomo 'pôr o dinheiro em algo perigo-so', e não em investir em oportunida-des, como é o conceito existente nosEstados Unidos", disse o professorCarlos Henrique de Brito Cruz, presi-dente da FAPESP,que falou durante ocongresso de Incubadoras, na mesaModelos e Experiências no Financia-mento de Inovações e Negócios. Britofalou também do Programa de Inova-ção Tecnológica em Pequenas Empre-sas (PIPE), em que estão sendo gera-dos muitos casos que podem, dentrode pouco tempo, servir de exemplo deeficácia econômica e geração de pes-quisa e desenvolvimento nas pequenasempresas. Dos 181 projetos do PIPEque a Fundação apóia, 24 são de em-presas instaladas em incubadoras,num total de R$ 3 milhões. O financia-mento sem necessidade de retorno daFAPESP serve para a compra de equi-

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Incubadoras vinculadas às Universidadese Centros de Pesquisa (%)

200170 70

2000

1999

Formal Informal Sem vínculo

pamentos e para o pagamento de servi-ços necessários para a empresa desen-volver o projeto.

As dificuldades em obter maioratenção dos fundos de capital de riscosão uma preocupação européia tam-bém. "Na Europa está muito desen-volvida a cultura de subvenção, en-quanto nos Estados Unidos a culturaé de investimento, é de risco",afirma oespanhol Luís Sanz, diretor da Asso-ciação Internacional de Parques deCiência. Para Heinz Fiedler, da incu-badora da Universidade Técnica deBerlim, na Alemanha - um país com300 incubadoras -, a solução paraatrair o capital de risco está em umabem-humorada inversão de "valores':"Uma vez, numa reunião com investi-dores de capital de risco, onde ofere-cíamos nossos produtos, eu pergunteia um deles: Por que eu tenho que acei-tar seu dinheiro?" Certamente é comesseespírito que as incubadoras devemseguir em frente, para superar omaior desafio que acompanha as em-presas: superar a falta de capital.

Aliado a esse esforço, os especialis-tas reunidos no Rio de Janeiro apon-tam o treinamento de empresários egerentes de incubadoras como um fa-tor para atingir o pleno sucesso. Ou-tro fator é a formação de redes de

informação com troca de ex-periências entre as incubadortas.

A importância que as incuba-doras estão ganhando ao redor domundo, conforme a impressãodeixada pelo congresso, levou odiretor científico da Anprotec,Ary Plonski, na sessão de encer-ramento a fazer o seguinte co-mentário: ''As incubadoras nãopodem mais ser entendidas comouma moda. As incubadoras estãose transformando em um novoparadigma da sociedade numa li-nha que favorece o desenvolvi-mento da ciência e da tecnologiaestimulado pela energia criativa':''As incubadoras também são umbom negócio para a comunidadeonde ela está inserida", comple-tou [ames Robbins, diretor da As-sociação Nacional de Incubadorasde Empresas (NBlA) dos Estados

Unidos. "É preciso se perguntar quan-tos negócios, quantos impostos equantos empregos (no Brasil somam7 mil) a incubadora proporciona pa-ra a cidade onde está instalada': inda-gou Robbins como exercício.

Vôos futuros - No âmbito das univer-sidades e dos centros de pesquisa aparceria com incubadoras parece serfundamental. Há, porém, quem vejamudanças no futuro da relação dasincubadoras com as instituições deensino. "Na universidade do futuro, aincubadora vai desaparecer, porqueela vai passar a ser parte integrante decada unidade acadêmica", afirma oconsultor Henry Etzkowitz, da TripleHelix Network, uma consultoria dosEstados Unidos. Hoje, as incubado-ras já cumprem um papel de forma-ção empresarial, em que se aprendea fazer pesquisa dentro da empresacom a colaboração de universida-des e institutos de pesquisa. Umafunção comentada pelo conferencis-ta convidado para abrir o congressode incubadoras no Rio, o sociólogoDomenico de Masi, professor da Uni-versidade de Roma. Para ele, a fun-ção primordial das incubadoras "éensinar e transformar os vínculos emoportunidades". •

Page 69: Da aldeia ao laboratório

TECNOLOGIA

INCUBADORAS

De frente para a vida real

MARILI RIBEIRO

Grupo de empresas daCiatec inaugura novosistema de pós-incubação

PiberPhone está pronto para sedestacar no mercado. Ele leva a

sigla FWL210, que vai lhe dar umaidentidade própria no mundo comer-cial das telecomunicações. O aparelhodesenvolvido em parceria pelas em-presas FiberWork Comunicações Óp-ticas e Elemed Equipamentos Médicose Hospitalares vai ser útil para as em-presas de telecomunicações fazeremmanutenção e montagem delinhas de transmissão de fibrasópticas. O produto resume opotencial e a ambição de em-preendedores a caminho da vi-da real,depois de um período deincubação nos berçários de ne-gócios patrocinados pela Com-panhia de Desenvolvimento doPólo deAltaTecnologiade Cam-pinas (Ciatec). Elas fazem par-te de um grupo de 19 empresasgraduadas pela Ciatec em sole-nidade realizada no dia 19 deoutubro. Juntas, elas já faturamR$ 18 milhões por ano.

A graduação é o momentoem que a empresa deixa o am-biente da incubadora - ondeela recebeu toda a infra-estru-tura técnica e administrativa pa-ra progredir - para enfrentaros desafios do mercado. Mas aCiatec resolveu inovar. A incu-badora agora tem uma fase depós-incubação que terá seis em-presas das 19graduadas. Assim,a FiberWork, a Elemed e maisquatro outras empresas - Op-

toLink, Bioluz, Ecco e SAAT- ganha-ram uma nova condição, passaram aser empresas pós-incubadas. Além deum simpático trocadilho com a idéiada "pós-graduação", a nova fase visa adiluir um pouco mais os riscos dosempreendimentos que vão entrar nomercado competidor. Elas seguempara um período de pós- incubaçãonum prédio ainda mantido pela Cia-tec, onde as empresas vão assumirmais riscos e os principais custos deadministração: secretárias, computa-dores, telefones, despesas com água,luz e limpeza, num ambiente já próxi-mo da independência empresarial.

Com cinco anos de existência, aCiatec abrigou 24 empresas, das quais13 já estão competindo fora da prote-

FiberPhone da FiberWork e da Elemed: melhor e barato

ção do sistema de incubação em que éoferecida quase que gratuitamente ainfra-estrutura física e de orientaçãomercadológica e tecnológica. O custopara as empresas é ínfimo: uma taxamensal de R$ 4,00 por metro quadra-do. A Ciatec é mantida pela prefeiturade Campinas e pelo Sebrae, num totalde investimentos que chega a R$ 200mil por ano. Soma-se a esse valor, queserve para a manutenção do prédio daCiatec e para o pagamento de funcio-nários da incubadora, mais R$ 1 mi-lhão em investimentos nas empresas -sem necessidade de retorno -, promo-vidos pelo Programa de InovaçãoTecnológica em Pequenas Empresas(PIPE) da FAPESP. Além da Fiber-Work e da Elemed, Ecco e OptoLink,

também recebem apoio daFAPESP as empresas Smatec,Ram, Unilaser, Valitech, Fisso-re e Pro-Clone (veja quadro).

Unindo distâncias - Em novafase, todas as empresas recém-diplomadas, após cinco anosem incubação no programa deapoio mantido pelo Núcleo deApoio ao Desenvolvimento deEmpresas (Nade) da Ciatec, vãoassumir maiores responsabili-dades pelos fluxos de seus cai-xas porque vão arcar com oscustos da infra-estrutura. Porisso, a Elemed e a FiberWorktratam com carinho o lança-mento do FiberPhone, que vaiacontecer na feira de teleco-municações Telexpo 2002, pre-vista para acontecer no segun-do trimestre do próximo ano.

O novo aparelho é capaz demanter a comunicação em dis-tâncias de até 200 quilômetros(krn) sem a necessidade da in-termediação de uma central te-lefônica, como acontece nas li-

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • 69

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gações comuns. Os apare-lhos existentes no mercadofazem transmissões em até150km. Outras vantagens sãoa capacidade do aparelhoem operar em linhas con-vencionais de telefonia fixae de celular, além de funcio-nar com uma fibra ópticaúnica, características queelevam o FiberPhone a umacategoria superior aos equi-pamentos similares. Tudoisso por um preço 60% me-nor que os importados, emtorno de U$ 5 mil. "Reduzi-mos a margem de lucro para ganharvisibilidade, porque temos um produ-to mais avançado que vai conseguirescala de produção", defende o enge-nheiro eletrônico Climério dos San-tos Vieira, dono da Elemed e sócio daFiberWork na iniciativa. Para SérgioBarcelos, diretor de tecnologia da Fi-berWork, "o FiberPhone trará umadicional de faturamento superior aUS$ 200 mil para as duas empresasem 2002':

a Unicamp, que trabalhadentro de referenciais aca-dêmicos internacionais, oque significa que seus egres-sos são competidores capa-zes de enfrentar o mercadoglobalizado com inteligên-cia, criatividade e capacida-de de aprendizado contínuo':comenta Brito.

"É preciso que se com-preenda que o investimentoem desenvolvimento tec-nológico está articulado coma própria noção de sobera-nia nacional. Não há regis-

tro, ao longo do século 20, de algumpaís que tenha se desenvolvido emtermos sociais e econômicos semsoberania. Soberania é a formação, aexistência de uma base tecnológicaprópria e autônoma", comenta overeador Sérgio Benassi, do PC do B,primeiro-secretário da Câmara Muni-cipal de Campinas.

''A graduação dessas novas empre-sas demonstra o alto retorno do in-vestimento público numa política dedesenvolvimento industrial", afirma overeador. A forma de avaliar os bene-

fícios desse investimento estána observação dos índices desobrevida bem acima da médiaentre as iniciativas empresari-ais. Cerca de 80% das incuba-das na Ciatec resistem apóstrês anos, contra uma mortali-dade de 70% das microempre-sas em geral. A experiência deapoio a essas empresas ressen-tia-se de uma passagem maissuave, na abalizada opinião dopresidente da Ciatec e tambémsecretário de Cooperação In-ternacional de Campinas, oprofessor emérito da Uni-camp e físico Rogério Cezarde Cerqueira Leite.

Devoto abnegado do in-centivo às incubadoras, Cer-queira Leite reconhece o perigodessas células inovadoras se-rem engolidas pelas estruturasbem enraizadas no mercado.Por isso mesmo, acredita noaperfeiçoamento do processo

Laser da Ecco: equipamento para microcirurgias estéticas

os, ilumina os pólos empresariais. Épregação recorrente entre economis-tas que o futuro está no vastíssimocampo das inovações científicas e tec-nológicas. "O estímulo à criação deempresas baseadas em conhecimentoé uma atividade essencial porque re-sulta no aumento da capacidade de ri-queza local, gerando novos empregosdiretos e indiretos", afirma o professorCarlos Henrique de Brito Cruz, presi-dente da FAPESP. "É enorme o im-pacto na vida da cidade de uma exce-lente universidade de pesquisa comoCorrente elétrica - A perspectiva de

Santos Vieira no momento emque estiver cara a cara com asvicissitudes do mercado é ga-rantir uma receita básica de so-brevivência para o seu negócio.Isso sem abrir mão dos novosprojetos em andamento. Para-lelamente à carteira de mais decem clientesque acumulou pres-tando serviços de manutençãode equipamentos médico-hos-pitalares e de radiofreqüência,Vieira seguirá perseguindo so-luções para o eletrocardiógra-fo, aparelho que mede a cor-rente elétrica do coração - queele inventou. "Estou apanhandocom as complicações técnicaspara que ele cumpra a funçãode fazer diagnóstico automáti-co, como pretendia."

A capacidade de buscar al-ternativas típicas do universocientífico, em comunhão como credo do apelo comercial pre-sente no dia-a-dia dos negóci-

70 . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

Amplificadores da OptoLink: acordo multinacional

Page 71: Da aldeia ao laboratório

atualmente em vigor. Daí a cri-ação da etapa da "pós-incuba-ção" na Ciatec de Campinas."Um dos ingredientes funda-mentais para que dê certo umaincubadora, mais até do que aajuda financeira e a estruturabásica que oferecemos, é aexistência de um ambientepropício à troca de idéias", in-siste Cerqueira Leite. "O suces-so desfrutado aqui advém dofato de esse pessoal ser prove-niente da Unicamp ou da Tele-brás", comenta.

As empresas incubadas, emparticular aquelas voltadas aodesenvolvimento de produtosde alto valor agregado tecno-lógico, sofrem na hora de en-frentar as naturais condiçõesde disputa por um mercadomovido a novidades e cercadode atores com polpudos inves-timentos financiando sua re-taguarda. Que o diga o físicocarioca Idelfonso Felix de FariaIúnior, à frente da OptoLink,incubada desde 1997 na Ciatec, (vejaPesquisa FAPESP nO 67). No segmen-to em que resolveu atuar, o de equi-pamentos de transmissão para redede fibra óptica, há gigantes internacio-nais como Corning, Etek, Gould Ele-tronics. Inovar no desenvolvimentode produtos ou serviços com todasessas sombras no encalço requer bemmais do que capacidade criativa. Ocapital para a arrancada veio atravésda sociedade com a Solectron, multi-nacional norte-americana do setor.Dona de uma receita de US$ 1,8 bi-lhão, a companhia está presente nosquatro cantos do planeta e dará à Opto-link condições de triplicar sua atualcapacidade de montar mil peças de aco-pladores ópticos por mês. Esses aco-pladores têm a função de juntar ouseparar os sinais transmitidos por fi-bra óptica. Até o final do ano, Faria es-pera um faturamento de R$ 1 milhão.

Muitos convites - Há quem olhe delado para esse tipo de parceria, comoadmite o próprio Faria. "Desde que aOptoLink destacou-se, comecei a ser

Isocort da Bioluz: novas perspectivas no mercado

procurado por empresários interes-sados em me transformar em umempregado bem remunerado", contaFaria. Ele driblou os convites o quan-to pôde até o surgimento da propos-ta da Solectron, que, segundo Faria, éfabricar os produtos com investi-mento da empresa americana e divi-dir os lucros. "Consegui a parceriaideal para continuar desenvolvendomeu trabalho, investindo em produ-tos que eles vão comercializar pelomundo inteiro."

A formação de novas pequenasempresas de cunho tecnológico es-barra na cultura vigente no ambienteda universidade brasileira. "Alguns se-tores até são abertos, mas outros sãomuito fechados a iniciativas do gêne-ro. A dificuldade em mudar essa cul-tura está bem dentro da mediocridade.Há uma atitude defensiva do profes-sor universitário, que tem medo deentrar em contato com a realidade",considera o professor Cerque ira Leite.

"Cabe aos mais competentes ba-talhar o dinheiro de projetos patroci-nados por instituições como a FA-

PESP, o Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq), ou enti-dades afins, para evoluír emsuas propostas, o que acaba re-forçando a importância deáreas de incentivo como a cria-da na Ciatec."

Soma de idéias - "Outro fatorimportante dentro de uma in-cubadora é a convivência e atroca de experiências entre osempreendedores': lembra Bri-to. O físico Sérgio Celaschi, hácinco anos no comando daEcco, advoga com fervor a tesede que a força dos empreendi-mentos nascidos na Ciatec estádiretamente relacionada aocompartilhamento de idéias."Na passagem para o mundoreal não vamos competir entrenós e sim disputar fatias dis-tintas do mercado porque é aúnica fórmula de conquistar-

mos lugar lá fora", acredita Ce-laschi, sócio também da Opto-

Link, empresa vizinha à Ecco no galpãoda Ciatec. Geografia que pretendemmanter no novo endereço das instala-ções destinadas à fase de "pós-incu-bação': A Ecco produz equipamentosà base de lasers para rnicrocirurgia e fi-sioterapia estética realizadas em con-sultórios. A empresa deve atingir umfaturamento de R$ 350 mil neste anoe de R$ 1 milhão em 2002.

Soluções de sucesso - Entre os exem-plos das empresas que deixaram aCiatec e parecem destinadas ao su-cesso ganha destaque a Go Wap, queassinava IntraWeb Sistemas nos tem-pos em que os dois recém-formadosem engenharia de computação naUnicamp, Fabrício Blois e Fábio Pó-voa, a fundaram. Eles incorporaramo propósito de desenvolver produtose serviços voltados à aplicação emIntranet e Internet. Encontraram so-luções que chamaram a atenção deum mercado em formação e bastan-te carente. Em três anos, pularam deum faturamento de R$ 150 mil e doisfuncionários para R$ 6 milhões e 40

PESQUISA FAPESP . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • 71

Page 72: Da aldeia ao laboratório

empregadjetou veiotal da emptimentoBravo, quselheirospresidentevo Franco

A queiconta cosolidadosaicas, coda inventigosto dochamamde terceirresistêncinacional etos empreestrangeirFaria, dadificuldad

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EMPRESA

I Ecco

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Fissore

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ProClone

I Ram

Smatec

I Unilaser

Valitech

I r'lnvestime

72 • NOVEMBRO

os. A alavanca que os pro-da venda de 30% do capi-resa para o fundo de inves-de capital de risco Rioe tem entre os sócios-con-de maior visibilidade o ex-

do Banco Central Gusta-

xa habitual de quem nãom um sócio capitalista con-fica em questões mais pro-mo a ausência de aceitaçãovidade nativa. Algo bem aoque críticos e humoristas

de complexo de inferiorida-o-mundista. "Há enorme

a em adquirir tecnologiam Campinas, porque mui-sários preferem a chancelaa no produto", queixa-seOptoLink. No vácuo dessae, surgiu na Ciatec de Cam-angram Consulting, aindae incubação, que está se es-do em oferecer alternativasmg para empresas nascen-

nologia. "Nós aprendemos apoucos recursos, porque

resas não têm para aplicar",diretor George Souza. "O

Leite: ambiente para a troca de idéias

trabalho de construção de marca de-pende assim diretamente de potenci-alizarmos os canais mais baratos natentativa de dar alguma visibilidade àempresa."

Sem marketing e sem condiçõesde estruturar redes de distribuiçãoou revenda de seus produtos, a con-solidação de um empresa incubadaexige esforço duplo de seus donos. Ofísico Paulo Ricardo Steller Wagner,

Empresas financiadas pelo PIPE da FAPESP

AREA DO PROJETO ESTAGIO INVESTIMENTO

Laser para aplicações médicas Pós-incubada RS45.500,00

Eletrocardiógrafo para análise Pós-incubada RS27.240,00de batimentos cardíacos

Instrumentação de testes Pós-incubada RS 118.012,10para fibras ópticas e USS 120.850,00

Empacotamento eletromecânico Incubada RS 18.400,00de microssensores e USS31,185,00

Amplificadores para fibras ópticas Pós-incubada RS82,900,00e USS 143.460,00

Produção biotecnológica Incubada RS263.000,00de mudas de plantas

Softwares para instituições Graduada RS33.000,00educacionais

Sistema para reconhecimento Graduada RS49,150,00de impressão digital

Sistema a laser para medir Incubada RS245.505,00poluentes na atmosfera

Desenvolvimento de esterilizador Incubada RS147.890,00à plasma e USS18.494,75

k

nto total RS1.030.597,10 e USS313.989,75

IDEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

proprietário da Bioluz Equipamen-tos e Serviços aposta, na parceriacom os clientes, desenvolvendo equi-pamentos sob encomenda para po-der bancar os custos. Uma combina-ção que funciona no setor em que seespecializou, o de aparelhos para ra-dioterapia. A empresa iniciou suasatividades há cinco anos e já contabi-liza no currículo equipamentos comalto grau de especialização, caso dodesenvolvido para posicionamentode pacientes em tratamento de radi-oterapia. Formado por três pontosde laser, esse aparelho dá ao médicoque faz a aplicação de radioterapia aposição exata do local onde está a le-são do câncer. "Esses equipamentosestão em operação nos 180 hospitaise clínicas que oferecem esse tipo detratamento", conta Wagner.

Produtos e relevâncias - "O impor-tante quando se vai para o mercado ésaber que, ao passar por aqui, deixa-mos uma retaguarda em que podere-mos nos realimentar", acredita Wag-ner. Ele e sua equipe, formada por doisfuncionários, preparam o lançamentode um novo produto: um cortador demoldes de isopor usado para a produ-ção de blindagens de metal que prote-gem as áreas adjacentes ao local quereceberá tratamento radioterápico.Com esse equipamento, Wagner acre-dita que: poderá triplicar seu atual fa-turamento, de R$ 350 mil, no períodode pós-incubação.

Para o presidente da Ciatec, Cer-queira Leite, apostar na inventivida-de dos brasileiros faria mais para oBrasil contemporâneo do que conti-nuar perseguindo o aumento das ex-portações de aço. "Conhecimento ecompetência são os bens mais funda-mentais para o futuro do Brasil. Nãobasta ser rico em minerais estratégi-cos. Tem que saber fazer. Buscar ca-pacitação tecnológica e inovação",defende o professor. Para ele, o in-centivo ao potencial de empreende-dores natos tem que ganhar relevân-cia na economia nativa. A Ciatec deCampinas, com o aval das atuais in-vestidas, demonstra estar cumprindosua missão nesse cenário. •

Page 73: Da aldeia ao laboratório

TECNOLOGIA

Longo tempo - Outros estudos, moti-vados pela preocupação com o meioambiente, indicam a possibilidade dereaproveitamento dos resíduos sóli-dos de construção e demolição: elessubstituiriam a brita usada na massade concreto, com provável redução

ENGENHARIA DE MATERIAIS

Construção para o futuronos custos. Essas inovações, porém,devem ser mais bem desenvolvidas edifundidas para integrar-se à rotinada construção civil: "Devemos conhe-cer melhor o comportamento, ime-diato e ao longo do tempo, dessesnovos concretos nas estruturas resis-

Novos materiaisresultam em concretomais durável

PESQUISA FAPESP . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • 73

Pesquisadores do Departamentode Estruturas da Escola de En-

genharia de São Carlos da Universida-de de São Paulo (EESC-USP) concen-tram-se há cinco anos num projetosobre novos tipos de concreto para aengenharia civil, que poderão substi-tuir com vantagens a tradicional mis-tura de cimento, água, areia e pedradas estruturas de concreto armado.No projeto, foram desenvolvidos maisde 30 estudos para avaliar a segurançada aplicação de elementos pré-rnol-dados e de novos tipos de concreto.

"Do modo como evoluem a ciên-cia e a tecnologia de materiais, váriostipos de concreto com propriedadesmuito específicas deverão ser empre-gados de acordo com as necessidadesde cada construção, tornando-asmais seguras e duráveis", prevê oprofessor João Bento de Hanai, coor-denador do projeto temático queavaliou o potencial dos concretos es-peciais. E alguns avanços já permiti-ram desenvolver novas fórmulas: porexemplo, a adição de compostos or-gânicos e pozolanas (pós finos deri-vados de escória de alto-forno, cinzade casca de arroz ou a sílica ativa ex-traída da fumaça das siderúrgicas)deixa o concreto mais compacto e re-sistente, enquanto a adição de fibrascurtas (de aço, poliméricas ou natu-rais como o sisal e a piaçava) dá aoconcreto maior capacidade de defor-mação e absorção de energia.

Detalhe de prensa para os testesde novos materiais: pesquisa abrangeaproveitamento de resíduos variados

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tentes de uma obra", in-forma Hanai.

O concreto de altaresistência - dotado deminerais e aditivos redu-tores de água que o tor-nam mais compacto ecerca de três a quatro ve-zes mais resistente que oconcreto comum - é umdos materiais que Hanaiestudou. O objetivo foiavaliar sua eficiência nareabilitação de estrutu-ras danificadas pela açãodo tempo, por falta demanutenção ou por fa-lhas construtivas. Na re-cuperação de pilares,por exemplo, uma dastécnicas analisadas foi oreforço por encamisa-mento - que consiste emconstruir uma espéciede capa de concreto aoredor do pilar original.

A pressão- ou resistên-cia de um material é me-dida em megapascais(MPa). Por serem maisresistentes à compressão- acima de 50 MPa, en-quanto o concreto co-mum usualmente tem re-sistência em torno de 25MPa -, esses concretosespeciais seriam ideaispara as estruturas de edi-fícios e obras de infra-es-trutura. Mas, segundo o pesquisador,a aplicação exige cuidados: "O concre-to do pilar a ser reforçado, por exem-plo, tanto por sua idade como pelacomposição, tem propriedades de de-formação e resistência diferentes doconcreto novo, aplicado por fora': ex-plica Hanai. Por isso, é preciso enten-der como esses materiais diferentestrabalham em conjunto e avaliar, casoa caso, a real eficiência desse reforço.

de armadura no interiordo concreto. Se coloca-das em quantidades ade-quadas, elas vão contro-lar todo o processo defraturamento interno quepossa ocorrer no concre-to e reduzir o risco de umaruptura brusca", explica.

Material reciclado - Maisdo que soluções técnicaspara melhorar a eficiên-cia e a segurança dasconstruções, os pesqui-sadores da EESC buscamsaídas para o problemaambiental gerado pelolixo produzido nos can-teiros de obras. Uma li-nha de pesquisa lideradapor Eloy Ferraz Macha-do [únior, por exemplo,está voltada para a reuti-lização dos resíduos sóli-dos de construção e de-molição.

''A idéia de usar o re-síduo moído no lugar dabrita para fazer concre-to, por exemplo, não énova", diz Machado,"mas sua aplicação es-barrava num inconve-niente: apesar de ofere-cer boa resistência, oconcreto de reciclado émais poroso que o con-creto normal, o que fa-

vorece a penetração de agentes exter-nos que corroem a armadura nointerior do concreto".

A solução encontrada foi dimi-nuir a permeabilidade do concretocom reciclado adicionando látex àmistura. O resultado foi satisfatório.Nos testes de corrosão, feitos segun-do critérios da ASTM (American 50-ciety for Testing and Materiais, ou As-sociação Americana para Testes eMateriais), o concreto de recicladoteve resultados melhores que os doconcreto comum: a perda de massana armadura foi de 1,6% para o re-ciclado com látex e de 3,4% para ocomum. "Agora estamos testando

Sistema servo-hidráulico na UFSCar: para medição da resistência

Igual ao vidro - Se houver uma sobre-carga e o concreto usado no encami-samento tiver uma ruptura brusca,isso poderia provocar o rompimentoda estrutura interna. A possibilidade

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existe devido às próprias característi-cas do concreto de alta resistência.Por ser mais compacto, ele tambémse mostra mais frágil no instante daruptura: "O comportamento do con-creto de alta resistência é semelhanteao do vidro. Embora seja muito re-sistente, não tem boa ductilidade(capacidade de se distender) e tendea se estilhaçar".

Para melhorar o desempenho des-ses concretos e evitar acidentes, umapossível solução apontada pelo pes-.quisador é adicionar alguns tipos defibra. ''As fibras, como as de aço, car-bono ou de outros materiais polimé-ricos, funcionam como uma espécie

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e consultoria ou aindana realização de ensaiosde estruturas e mate-riais. Parcerias desse tipojá foram firmadas comempresas como o Insti-tuto Brasileiro de TelasSoldadas, para um estu-do já concluído sobre an-coragem de telas solda-das em lajes de edifícios,e com o Grupo Gerdau,para um projeto em an-damento de pisos indus-triais de concreto arma-do com telas soldadas.

Recursos não faltam.Com o projeto temático,foi possível montar noDepartamento de Estru-turas uma sala com climacontrolado por computa-dor, que permite prepa-

rar amostras para testes de resistên-cia e deformabilidade de elementosestruturais ao longo do tempo. Comisso, é possível testar estruturas nasmesmas condições ambientais do lo-cal da construção, controlando tempe-ratura e umidade do ar. "Emboranossa especialidade seja a construçãocivil, hoje temos condições de testaroutros materiais e estruturas para di-versos segmentos do setor produti-vo", conclui Hanai.

Pesquisadores no laboratório de concreto: buscando saídas para problemas ambientais

quantidades menores de látex namistura para encontrar a proporçãoideal, de forma que o uso do látexnão encareça demais o produto fi-nal", revela Machado.

Embora ainda não tenha dadospara calcular o custo final do concre-to com reciclado, ele acredita queserá uma alternativa viável para aconstrução de casas populares, comvantagens para o meio ambiente e oscofres públicos: "O custo com o ge-renciamento das deposições irregu-lares é de US$ 5,3 por tonelada, en-quanto o custo de reciclagem nãopassa de US$ 3,94 por tonelada", afir-ma. Isso é o começo. "O próximopasso é usar resíduos reciclados nafabricação de blocos e, numa próxi-ma etapa, na confecção de argamas-sa",diz. "A meta final é construir umacasa inteira com reciclados."

Grupo permanente - Nos quatro anosde pesquisa, o grupo concluiu 33 es-tudos que renderam 18 dissertaçõesde mestrado, três teses de doutorado e12 trabalhos de iniciação científica,além de outras 20 pesquisas a seremconcluídas nos próximos 12 meses, amaioria em doutorado. O número depublicações geradas superou as expec-tativas: mais de 200, entre livros, arti-

gos, relatórios técnicos e trabalhos emcongressos. Animados, os pesquisa-dores decidiram manter-se como gru-po de trabalho permanente no Depar-tamento de EESC-USP.

A longo prazo, o conhecimentogerado poderá contribuir para oaperfeiçoamento das normas técni-cas que orientam os profissionais daprodução, quando forem revistaspela Associação Brasileira de NormasTécnicas (ABNT). Mas o setor pro-dutivo pode ter benefícios mais ime-diatos. A tecnologia está disponívelpara empresas públicas ou privadasinteressadas na elaboração de proje-tos em parceria com a universidade,na prestação de serviços de assessoria

o PROJETO

Avaliação do Campo Potenciale Desenvolvimento de Aplicaçõesde Concretos Especiais no Projeto,na Execução e na Reabilitaçãode Estruturas de Concreto

MODALIDADEProjeto temático

COORDENADORJoÃO BENTO DE HANAI - Escolade Engenharia de São Carlos da USP

INVESTIMENTOR$ 19.434,90 e US$ 23.442,00

Máquina universal - O departamentoconta ainda com um bem equipadolaboratório para ensaios mecânicos.Um dos equipamentos mais impor-tantes é o sistema servo-hidráulicocomputadorizado, adquirido por meiodo Programa de Infra-Estrutura daFAPESP."A máquina universal de en-saios é a única na América Latinacom altura livre para ensaio de peçasde até 4 metros e capacidade de 300toneladas de carga", afirma Hanai. "Osistema servo-hidráulico estende-setambém à laje de reação do laborató-rio, com 26 metros de comprimento.Com esse equipamento, podemos si-mular até o efeito de terremotos etestar grandes estruturas da indústriamecânica, como um vagão ferroviá-rio, se necessário." •

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TECNOLOGI1I.

ENERGIA

Competência da UniTechEmpresa do PIPEparticipada construção de uma célulaa combustível em Minas

Um nova fase empresarial foiiniciada pelo químico Antônio

César Ferreira e sua empresa UniTech,após a conclusão de seu projeto de pro-dução de célula a combustível no Pro-grama de Inovação Tecnológica em Pe-quenas Empresas (PIPE) da FAPESP.Ele participou ativamente no desen-volvimento da primeira célula a com-bustível apresentada pela CompanhiaEnergética de Minas Gerais (Cemig),a concessionária estatal de energiaelétrica do Estado de Minas Gerais,durante o 10 Congresso de InovaçãoTecnológica em Energia Elétrica (Ci-tenel), no início de novembro, emBrasília.

A célula, do tamanho de um frigo-bar, é alimentada por hidrogênio e ca-paz de produzir 1,5 quilowatt (kW)de eletricidade. "O equipamento fazparte de um programa de três anos,com aporte de R$ 5 milhões, que a Ce-mig está destinando para vários pro-jetos de desenvolvimento de células acombustível': afirma JoséHenrique Di-niz, gerente de Tecnologia e Alternati-vas Energéticas da Cemig. Tambémparticipam dos projetos, além dos pes-quisadores da Cemig, pesquisadoresdo Instituto de Química de São Car-los, da Universidade de São Paulo(USP), do Instituto de Pesquisas Tec-no lógicas (IPT) e da empresa Clam-per, de Belo Horizonte.

A apresentação dessa nova célula acombustível, que usa tecnologia de-senvolvida no Brasil, é um marco im-portante para o país porque em todoo mundo busca-se o aperfeiçoamentotécnico e a expansão do uso desse equi-

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Ferreira: a perspectiva é ampliar a empresa e produzir células em escala industrial

pamento silencioso, alimentado comhidrogênio puro, que não polui e geraapenas água como resíduo. O combus-tível ainda pode ser retirado do gásnatural, do álcool ou, ainda, da gaso-lina. A opção mais óbvia, que seria aextração do hidrogênio da água, éuma opção cara porque é preciso umenorme gasto de energia nesse proces-so carente de novos estudos.

Segundo protótipo - A célula a com-bustível da Cemig .é, na verdade, osegundo protótipo em que Ferreiratrabalha. O primeiro, de 1 kW - sufi-ciente para cinco lâmpadas de 100watts -, ele produziu durante o proje-to financiado pela FAPESP,encerradoneste ano. Ferreira não se cansa de di-zer em eventos em que é convidadopara falar de célula a combustível quefoi o financiamento da FAPESP queproporcionou a volta dele ao Brasildepois de uma temporada de nove

anos nos Estados Unidos (veja Pes-quisa FAPESP edições 60 e 64). "Man-dei o projeto em 1997 ainda dos Esta-dos Unidos", lembra Ferreira. No anoseguinte, ele montou a empresa em suacidade natal, Cajobi, próxima a SãoJosé do Rio Preto, em uma pequena ca-sa de propriedade da família.

A preparação acadêmica de Fer-reira teve início com a graduação,mestra do e doutorado no Instituto deQuímica de São Carlos da USP. De-pois, ele seguiu para os Estados Uni-dos, onde fez o pós-doutorado e tra-balhou como pesquisador em célula acombustível na Universidade do Te-xas Agricultura e Mecânica (A&M).Depois, ele atuou como pesquisadorna empresa MER, no Arizona. Nesseslocais, ele executou projetos para ór-gãos governamentais como a AgênciaEspacial Americana (Nasa), o exérci-to americano e o departamento deenergia, além das empresas japone-

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Coração da célula: sanduíche de catalisadores e membrana polimérica

sas Asahi e Mazda. Mes-mo depois de conquis-tar a cidadania america-na e receber propostas deempresas de capital derisco para montar umaempresa e produzir célu-las nos Estados Unidos,no estado de Connecti-cut, Ferreira voltou aoBrasil com a perspectivade produzir células acombustível para toda aAmérica Latina.

Com o financia-mento de R$ 197 mil eUS$ 77 mil do PIPE,Ferreira montou a em-presa e seu laboratóriopara desenvolver os catalisadores, pe-ças que ele chama de coração da cé-lula a combustível. É nos catalisadoresonde ocorre a separação das partícu-las do hidrogênio. Esse gás (H2) pe-netra no lado anodo (negativo) dacélula e tem sua estrutura quebradaem partículas positivas, os prótons, enegativas, os elétrons. As primeiras pas-sam pela membrana polimérica e en-contram os átomos de oxigênio do arno outro lado, o cato do (positivo),formando água. Os elétrons, que nãoconseguem passar pela membrana,circulam na área fora do eletrodo (ca-talisador mais membrana), gerandoenergia elétrica.

Centros de pesquisa de institui-ções acadêmicas e de empresas avan-çam no desenvolvimento de materiaispara as células a combustível que astornem mais eficazes e baratas. Hámenos de três anos, empresas nos Es-tados Unidos, Canadá, Alemanha e Ja-pão começaram a vender esses equi-pamentos, ainda 'sob encomenda e deprodução restrita. Existem hoje diver-sos protótipos com capacidade de for-necimento de eletricidade entre 10watts (W) e 11 megawatts (MW), paraservir a equipamentos portáteis de pe-quenas cidades.

Com tamanha capacidade de mer-cado, os próximos passos de Ferreira,devem levar em conta uma análise cri-teriosa de propostas que está receben-do para iniciar a escala industrial de

suas células. Ele também estuda aoferta do prefeito de Cajobi para ins-talar a UniTech num prédio de 400m2 com possibilidade de expansãopara 10 mil m2. "Não sei ainda o quevai acontecer", diz Ferreira, sem an-gústias e tranqüilo quanto ao seu fu-turo. Ele acredita que pode, dentro depouco tempo e com investimento deuma outra empresa, produzir célulasde 100 kW de potência. "É uma ques-tão de investimento': avalia.

Pai da célula - Os princípios do fun-cionamento da célula a combustívelforam desenvolvidos, em 1835, pelogalês William Robert Grove, consi-derado, hoje, o pai da célula a com-bustível. A forma mais próxima dascélulas atuais surgiu em 1930, nosestudos do engenheiro inglês Fran-

o PROJETO

Materiais Avançados paraFabricação de Separadores Bipolarespara Células a Combustívelde Polímero Condutor lônico

MODALIDADE

Programa de Inovação Tecnológicaem Pequenas Empresas (PIPE)

COORDENADOR

ANTÔNIO CÉSAR FERREIRA - UniTech

INVESTIMENTO

R$ 197.184,64 e US$ 77.482,00

eis Bacon. Desde en-tão, elas ficaram quaseesquecidas porque opetróleo barato e a di-ficuldade em se obtermateriais mais eficien-tes impediram ummaior avanço tecnoló-gico e comercial dascélulas.

No final dos anos50, a idéia da célula acombustível foi reani-mada e desenvolvida pe-la Nasa como a melhoralternativa para a pro-dução de energia elétri-ca e água para as espa-çonaves das missões

Gemini e Apollo. As primeiras célu-las usadas na corrida espacial erammuito caras. Hoje, a tendência é decélulas mais baratas, como a que uti-liza a tecnologia PEMFC, do inglêsCélula a Combustível com Membra-na de Troca de Prótons, o tipo de cé-lula desenvolvido por Ferreira.

Substituição de motores - Além deproduzir energia elétrica em estaçõesestacionárias, as células a combustí-vel são a grande promessa para a subs-tituição dos motores a combustãousados hoje em todo tipo de veículo.Quase todas as montadoras desen-volvem projetos de células a combus-tível adaptadas a veículos automoto-res. A Daimler-Chrysler, Honda eBMW já apresentaram automóveisimpulsionados por células a hidrogê-nio, ainda híbridas com a gasolina.As baterias convencionais de chum-bo, que geram eletricidade para osveículos, também devem ser trocadaspor células a combustível. A BMW jáusa esse tipo de bateria em dois mo-delos de automóvel.

O desafio de Ferreira agora é am-pliar sua empresa -que possui cin-co funcionários - e colocar o produ-to no mercado. A implantação deuma planta industrial ainda levatempo e o mercado está aberto paraesse tipo de gerador de energia elé-trica que utiliza um combustívellimpo e confiável. •

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uatro novas variedadesde maracujazeiro obtidaspor uma técnica de mani-pulação genética inéditano Brasil estão em cultivo

no campus da Escola Superior de Agri-cultura Luiz de Queiroz (Esalq) daUniversidade de São Paulo (USP), emPiracicaba. São plantas originárias deum processo chamado hibridação so-mática, que possibilita a fusão de célu-las de espécies cultivadas com espéciessilvestres resistentes a várias doenças.Bem diferentes dos híbridos interes-pecíficos usados na agricultura, que

espécies de um mesmo gênero. Em-bora de aplicação mais restrita - a téc-nica não levanta suspeitas de riscosambientais ou para a saúde do ho-mem -, a hibridação somática resultaem variedades que conservam todasas características genéticas das duasplantas que lhes deram origem. A téc-nica surgiu na década de 80 como umrecurso para o melhoramento deplantas. É empregada com sucesso nacitricultura nos Estados Unidos,França, Espanha e Israel. No Brasil, osprimeiros estudos para melhorar acultura do maracujá começaram há

As pesquisas para o melhoramen-to de citros também avançam. Nos úl-timos cinco anos, o professor Francis-co de Assis Alves Mourão Filho, doDepartamento de Produção Vegetal, ea professora Beatriz Ianuzzi Mendes,do Laboratório de Biotecnologia Ve-getal do Centro de Energia Nuclear naAgricultura (Cena), já produziram 11combinações de híbridos somáticoscom o objetivo de controlar doençasnos laranjais. A pesquisa foi desenvol-vida dentro do Programa de apoio aJovens Pesquisadores, da FAPESP, erecebeu investimentos de R$ 150 mil.

TECNOLOGIA

BIOTECNOLOGIA

SomadequalidadesEsalq desenvolve técnica inéditano Brasil para a produção de plantashíbridas a partir de espécies de maracujáou de citros mais resistentes a doenças

MARIA APARECIDA MEDEIROS Flor de maracujá: híbrido de Passiflora giberti (silvestre) com P.edulis

são obtidos por cruzamento, eles têma soma do número de cromossomosdas espécies usadas na fusão celular. Atécnica também foi usada no melho-ramento de citros e promete bons re-sultados para o controle de doençasque freqüentemente atacam os poma-res brasileiros. As novas variedades po-derão ser usadas como porta-enxertonas culturas de maracujá e de citros.

Diferentes dos transgênicos, obti-dos pela transformação da célula coma introdução de genes oriundos deoutras espécies, os híbridos somáticossão produzidos pela fusão completade duas células somáticas isoladas de

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dez anos sob a coordenação da pro-fessora Maria Lúcia Carneiro Vieira,do Departamento de Genética daEsalq. Desde então, a pesquisadora sededica à obtenção de porta-enxertosmais resistentes de maracujá, redu-zindo a incidência de doenças provo-cadas principalmente por fungos. "Seconsiderarmos doenças provocadaspor vírus, bactérias e fungos, juntas,elas provocam uma perda de 35% naprodução dos cerca de 45 mil hecta-res cultivados em todo o país", afirmaMaria Lúcia. Os projetos financiadospela FAPESPjá somam investimentosde US$ 200 mil.

Indústria de sucos - O maracujazeiroé uma planta nativa da América doSul. Das 600 espécies conhecidas, cer-ca de 400 são originárias de várias re-giões do Brasil. Apenas cinco são cul-tivadas, sendo a Passiflora edulis f.flavicarpa, o maracujá-azedo, a prin-cipal espécie utilizada pelos agriculto-res, que a cultivam para a indústria desucos e que confere ao país o título demaior produtor mundial de maracu-já. "O suco do maracujá é o segundomais exportado pelo Brasil - só per-de para o de laranja -, e o principalmercado comprador é a Europa,onde o maracujá é muito apreciado

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pelo sabor considerado exótico", in-forma Maria Lúcia.

Apesar de bastante rentável- cer-ca de R$ 8 mil por hectare plantado-, a cultura do maracujá enfrenta sé-rios problemas devido à falta de ma-terial genético selecionado, pois osprogramas de melhoramento sãoainda incipientes. "Trata-se de umadomesticação muito recente", explicaa pesquisadora. Diferente da uva, porexemplo, cuja domesticação é mile-nar, o maracujá começou a ser culti-vado após a colonização, há menosde SOb anos. Com a introdução damono cultura, a espécie se tornoualvo de muitas doenças que afe-tam consideravelmente aprodução.

O ataque de doenças pro-vocou, nos últimos anos,uma rotatividade da cultura,que adquiriu um caráter nô-made. Essa característicatambém acarreta outro tipode prejuízo. O maracujazeiro éplantado em mourões, de formaque a planta cresça na verticale se espalhe pelas laterais,como uma parreira. Isso im-plica alto custo na implanta-ção e no manejo da cultura."Quando incide a doença se-veramente, o agricultor perdetodo esse investimento", lembraMaria Lúcia. Para evitar a perda dasplantas no período de chuvas, quan-do a incidência de doenças aumen-ta em decorrência da umidade etemperatura elevadas, os agricul-tores substituem todas as plantaslogo após a primeira safra, plan-tando tudo de novo para a safraseguinte, tornando a cultura anual."Embora não resolva o problema,isso é menos oneroso que o carátermigratório." _

A esperança da pesquisadora parauma solução eficiente está no germo-plasma silvestre. Há várias coleçõesde passifloras no Brasil, por exemplo,na Embrapa Mandioca e Fruticultu-

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Flor híbrida maior: P. a/ata(maracujá silvestre resistente afungos) e P. edu/is (comercial):

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ra, em Cruz das Almas, naBahia, e na unidade de Iabo-ticabal da Universidade Esta-dual Paulista (Unesp), ondeMaria Lúcia mantém laços decolaboração. "Nessas espéciesjá foram identificados genesde resistência com bom po-tencial para melhorar o de-sempenho da espécie comer-cial", afirma. A introduçãodesses genes pode ser feita devárias formas. Uma delas é ocruzamento de espécies silves-tres como a cultivada para ob-ter um híbrido sexuaL "Isso jáfoi feito há alguns anos, mas amaioria desses híbridos não sepresta como doador de pólen.Para recuperar a produtivida-de da espécie cultivada, seriamnecessários vários retrocruza-mentos com a espécie comer-cial, o que é inviável porque oshíbridos sexuais são estéreis",explica Maria Lúcia.

terísticas genéticas das duasplantas originais (a comerciale a silvestre). "Isso ocorre por-que a fusão cria um genomatetraplóide, ou seja, que tem odobro do número de cromos-somos da espécie na natureza",explica Maria Lúcia.

Resistente a doenças - Os pri-meiros híbridos somáticos fo-ram obtidos em 1995, com afusão de células do maracujá-azedo (Passiflora edulis f.flavi-carpa), que é a variedade maiscultivada, com células das es-pécies silvestres P. cincinnata(que é resistente à bacteriosecausada por Xanthomonas sp.pv. passiflorae), P. giberti e P.alata (resistentes à morte pre-matura, de etiologia aindadesconhecida, que causa o de-finhamento das plantas). Aespécie P. alata (ou maracujá-doce) também se mostra re-sistente à murcha, uma doen-ça de solo provocada pelo

fungo Fusarium oxysporum."Esses híbridos tendem a ser mais

vigorosos, a ter folhas e caules maisespessos, porque suas células sãomaiores", explica a pesquisadora. "Noentanto, eles não são produtivos e suaaplicação mais importante é comoporta-enxertos para a variedade co-mercial." Além de mais vigoroso, es-pera-se que o híbrido somático tenhamaior resistência a doenças de solo eque apresente alguma atenuação dossintomas provocados pela bactériaXanthomonas, servindo de proteçãopara a copa utilizada na enxertia. Asmudas de maracujá comercial enxer-tadas nos híbridos apresentaram bomdesenvolvimento tanto no que se refe-re à copa como ao porta-enxerto. Opróximo passo é avaliar seu desempe-nho quanto à produtividade e resis-tência a doenças.

Porta-enxerto de maracujá: uso para as novas variedadesCaminhos da fusão - A saídapara a obtenção de plantas mais resis-tentes veio com a biotecnologia nosistema de hibridização. No caso domaracujá, as células são extraídas dasfolhas, tanto da espécie cultivadacomo da silvestre. O sucesso da técni-ca depende de mecanismos eficientesque promovam a fusão celular, o quepode ser feito por um agente químicoou por choques de corrente elétrica.Em ambos os casos, o objetivo é pro-vocar a destruição das paredes celula-res, que funcionam como barreirasimpedindo a fusão. As células sem pa-rede, chamadas protoplastos, sãomantidas sob pressão osmótica con-trolada, para evitar o rompimento damembrana plasmática, o que provo-caria a destruição da célula.

Após vários processos de lavageme centrifugações, os protoplastos sãomantidos em meio de cultura, onde aparede celular é regenerada e as célu-las híbridas passam a se multiplicar.Surgem pequenas colônias originadasde uma única célula, que podem serobservadas ao microscópio óptico.Geralmente, depois de 28 dias, as co-

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lônias podem ser vistas a olho nu esão transferi das para um meio sólido.Forma-se uma massa indiferenciadade células, chamada calo, que daráorigem a muitos brotos. Cada um de-les se desenvolverá como uma novaplanta, que ainda precisa passar porvárias análises até que se tenha garan-tias de que se trata de um híbrido so-mático verdadeiro.

Depois de selecionados, os híbri-dos somáticos são cultivados até a faseadulta, quando florescem e dão frutos.A nova planta mantém todas as carac-

o PROJETO

Hibridação somática emmaracujazeiro, estudos básicose suas aplicações nomelhoramento genético

MODALIDADELinha Regular de Auxílio a Pesquisa

COORDENADORAMARIA LÚCIA CARNEIROVIEIRA - Esalq/USP

INVESTIMENTOR$ 87.227,00

Ganho na citricultura - A expectativados pesquisadores é que a hibridaçãosomática promova um salto muitopositivo também no melhoramentode citros. Segundo Mourão Filho,

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Laranja híbrida: novo campo para a hibridação somática

programas de melhoramentoconvencional existem há maisde cem anos, mas os resulta-dos não são bons, porque asplantas cítricas têm algumascaracterísticas que dificultamo melhoramento. Um dosproblemas é a alta variabili-dade do resultado dos cruza-mentos. "Quando se faz a po-linização de uma planta comuma variedade de outraespé-cie, a progênie varia muitonas suas características", diz."Você pode até ter uma plan-ta com tolerância à seca ou acertas doenças, mas ela per-deu as características desejá-veis da planta original." Ou-tro problema: devido a umacaracterística das sementesde citros, a germinação dáorigem não apenas a um em-brião zigótico, que é resul-tante do grão de pólen com oóvulo, mas também a váriosoutros que são idênticos àmãe. "É como voltar à estacazero em melhoramento, porque, nahora de semear, recuperam-se plan-tas idênticas à mãe", afirma.

A estratégia adotada pelos pesqui-sadores foi obter variedades mais re-sistentes para ser usadas como porta-enxertos. No campo, a variedademais utilizada hoje é o limão-cravo.Embora muito tolerante à seca e vi-goroso, ele é muito sensível ao declí-nio, uma doença de causa desconhe-cida que leva à morte da planta, e àgomose, doença provocada por fun-gos. "Mas existem outros porta-en-xertos, como a laranja-doce ou laran-ja-caipira, que são mais tolerantes aodeclínio, embora sejam sensíveis àseca. Assim, nosso objetivo foi somarvariações genéticas com característi-cas complementares para melhorar odesempenho dos porta-enxertos", ex-plica Mourão Filho.

Atualmente, os 11 híbridos de ci-tros obtidos no projeto estão em fasede crescimento. A próxima etapa, queestá sendo financiada pelo FundoPaulista de Defesa da Citricultura(Fundecitrus), é fazer a enxertia e le-

var as plantas ao campo para avalia-ção de resistência a doenças e obten-ção de um índice de produtividade.Os pesquisadores estão otimistas."Com certeza, vamos obter bons re-sultados para o agricultor", afirmaMourão Filho. Mas o resultado maisimportante já foi obtido: o domíniode uma técnica que promete dar mui-tos frutos nos próximos anos.

Caminho transgênico - Além dos hí-bridos somáticos, Maria Lúcia buscaalternativas para o melhoramento do

o PROJETO

Produção de Híbridos Somáticosde Citros através da Fusãode Protoplastos

MODALIDADELinha Regular de Auxílio à Pesquisa

COORDENADORAFRANCISCODEASSISALVESMOURÃO FILHO- Esalq/USP

INVESTIMENTOR$ 497.090,58

maracujá. Uma delas é a pro-dução de variedades transgê-nicas, mais tolerantes à bacte-riose provocada pelaXanthomonas. O gene bacteri-cida atacina A foi extraído daTrichoplusia ni, uma mariposaque freqüentemente atacaplantações de repolho, couve-flor e soja. A transformaçãodos tecidos da planta foi obti-da por bombardeamento departículas de tungstênio. De-zenas de brotos transgênicosestão em fase de crescimentoem meio de cultura. SegundoMaria Lúcia, a pesquisa develevar cinco anos para trazerresultados conclusivos, consi-derando todos os procedi-mentos de biossegurança en-volvidos no processo.

Outra frente da batalhacontra a Xanthomonas é a bus-ca de genes resistentes nas po-pulações exóticas (de fora daAmérica do Sul) de maracujá."Realizamos um cruzamento

muito promissor entre uma varieda-de rústica, oriunda do Marrocos, naÁfrica, e resistente á Xanthomonas,com uma variedade comercial (Ma-guary), suscetível à bactéria", conta apesquisadora. As 90 plantas obtidasdesse cruzamento foram analisadasquanto ao seu perfil de DNA e foiconstruído um mapa de ligação con-tendo os marcadores existentes noDNA. Esse mapa molecular é o pri-meiro no mundo considerando setratar de uma espécie fruteira tropi-cal. Também para cada indivíduo fo-ram analisados os níveis de resistên-cia a Xanthomonas.

"Observamos que há indivíduosda população filial que se mostrammais resistentes que o genitor marro-quino, indicando haver possibilidadede resistência à bacteriose", afirma.Agora, as 90 plantinhas estão sendotransferidas para o campo, onde se-rão avaliados os níveis de produtivi-dade. Elas farão parte de uma popu-lação de plantas de maracujá que vãodar novo impulso à cultura dessafruta no Brasil. •

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HUMANIDADES

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Aemocraciaé um artigo de

luxo. Enquanto a maioriados países pobres vivesob uma ditadura, gran-de parte dos países ricos

é regida pela democracia. Segundo olivro Democracy and Development -Political Institutions and Well-Being inThe World, 1950-1990 (CambrigdeUniversity Press, Estados Unidos), essefenômeno ocorre porque há umaassociação entre manutenção dademocracia e o nível de desenvolvi-mento econômico. "Verificamos quehá uma maior dificuldade de observardemocracias com más performanceseconômicas porque esses regimes ten-dem a ir para a ditadura quando issoocorre", analisa Fernando Limongi,um dos autores do livro. Professor deCiência Política da Universidade deSão Paulo (USP) e coordenador doCentro Brasileiro de Análise e Planeja-mento (Cebrap), Limongi obteveapoio da FAPESP para o desenvolvi-mento desse trabalho nos EstadosUnidos, escrito com Adam Przeworski(New York University), José AntonioCheibub (YaleUniversity) e Michael E.Alvarez (DePaul University).

Segundo a pesquisa, a sobrevivên-cia de uma democracia está relaciona-da a um patamar de renda per capitado país. Ou seja, quanto maior a ren-da, maior a estabilidade do regime.Acima de US$ 6 mil, observou-se queo regime democrático está asseguradopara sempre, faça chuva ou sol na eco-nomia. Já entre US$ 4 mil e US$ 6 milde renda, há uma probabilidade de apermanência do sistema político serde aproximadamente cem anos."Quando um país é rico e adotou oregime democrático, se constitui umasituação de equilíbrio e permanênciada estrutura", afirma Limongi.

No entanto, se uma nação tiveruma renda per capita abaixo de US$ 1mil, a possibilidade de resistência doregime democrático se torna frágil.Os números indicam que o sistemadeve perdurar apenas 8,2 anos. Abai-

Desfile militar: ditaduras são maisprováveis em países com renda percapita abaixo de US$ 1 mil

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Troca de comando no regime militar brasileiro: estudo derruba mito sobre prosperidade do país

xo do limiar de renda percapita de US$ 4 mil, umademocracia passa a correrrisco de continuar em vi-gor no país por apenas 33anos. O drama ocorre por-que crises econômicas emdemocracias pobres ten-dem a exterminar o regi-me democrático do jogopolítico - e crises econô-micas em países pobres eautoritários levam à pre-servação da ditadura.

Esses indicadores fo-ram colhidos a partir deuma análise estatística arespeito da sobrevivência eda morte de regimes políti-cos em 135 países entre 1950 e 1990.Ao longo desse período, foram avalia-dos 224 regimes, dos quais 101 eramdemocráticos e 123 autoritários. Fo-ram identificadastambém 40 transiçõespara a ditadura e 50 para a democra-cia. Um país democrático, segundo apesquisa, é aquele cujo partido deoposição tem alguma chance de ga-nhar uma eleição oficial.

A partir desses dados, os autoresidentificaram que a sobrevivência dademocracia em países pobres está li-gada à capacidade do governo de pro-mover crescimento econômico cominflação moderada. Concluíram tam-bém que as chances de um regime de-mocrático ser preservado é aindamaior quando a economia cresce aci-ma de 50/0 ao ano. Mas é muito menorse apresentar crescimento negativo.Um país democrático com renda percapita de menos de US$ 1mil, mas comcrescimento econômico, tem maispossibilidades de manter o regime doque a democracia de um país com ren-da per capita entre US$ 1 mil e .uS$ 4mil, mas com crescimento negativo.

Luz vermelha - A Argentina, porexemplo, está no terceiro ano conse-cutivo de crescimento negativo. Mas,de acordo com Limongi, as próximaseleições estão garantidas. Isso ocorreporque o país está acima da renda percapita considerada limiar de seguran-ça. A Venezuela, por sua vez, está com

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a luz vermelha acesa. O país está abai-xo do indicador de sustentação da de-mocracia. "Era um país rico, entrounuma crise e sua economia decres-ceu", diz Limongi. "Não seria umasurpresa se se tornasse uma ditadura."Segundo Przeworski, as transições deregime são tipicamente precedidaspor crises econômicas, mas é possíveldeterminar qual é a causa e qual é oefeito. "Uma crise econômica podecriar uma crise política. Uma vez quehá uma crise política, a crise econô-mica se aprofunda", afirma.

A explicação para a estabilidade dademocracia em países com renda percapita acima do limiar é a do jogo po-lítico. Segundo Limongi, a mudançade um regime é feita por meio de umgolpe de Estado, o que sempre trazproblemas. "O que você pode ganharsendo um ditador por meio de umgolpe em um país rico pode ser me-nor do que o que se vai ganhar se es-perar a próxima eleição. Há estímulospara concorrer ao próximo pleito':afirma Limongi. ''As ditaduras repri-mem e as pessoas têm medo de pres-sões físicas. No momento em que ospaíses se tornam mais ricos, há umavida melhor para botá-la em risco",observa o professor Przeworski.

A premissa do livro é buscar res-postas para uma ideologia dominanteaté os anos 80, que apontava a ditadu-ra como elemento essencial para apromoção do crescimento econômico

em países pobres. E, uma vez que es-ses países tivessem conquistado de-senvolvimento econômico, a demo-cracia seria imediatamente adotada.O resultado do estudo, porém, põe es-ses pressupostos por água abaixo. Pri-meiro, porque se identificou que, se opaís se transformou em uma naçãorica e é autoritário, não haverá umatransformação direta e imediata parauma democracia por essa razão. "Ocrescimento econômico não leva di-retamente à democracia", avalia Li-mongi. Alguns países, como Taiwan,Espanha e Coréia do Sul, ficaram ri-cos sob a ditadura e não transitarampara a democracia por esse fato. "Nãoé um processo endógeno', alerta.

Outros fatores - Para o professor, sãonecessários elementos exteriores paraque isso ocorra e as respostas não sãopassíveis de estatísticas. Na Espanha,por exemplo, houve a morte do dita-dor Franco, em 1975. A ausência deum líder enfraqueceu a possibilidadede uma ditadura continuar. Em Taiwan,houve o rompimento com o regimeautoritário por uma estratégia de po-lítica externa. O governo do país ava-liou que para ter apoio internacionalpara sua ação de independência daChina era melhor ser uma nação demo-crática. "Mas, ao transitar de regime econquistar a democracia, sua manu-tenção nesse sistema é mais fácil de sedar", sustenta Limongi.

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Trabalho em país asiático: outros fatores favorecem crescimento

o segundo indica-dor que caminha nacontramão da tese daditadura para o desen-volvimento está nasevidências fortes de queum regime democráti-co ou ditatorial não in-fluencia diretamente nocrescimento econômi-co. Dos países autoritá-rios com renda per capitaanual de menos de US$1 mil na primeira vezem que foram observa-dos na pesquisa, 56 nãoconseguiram desenvol-vimento econômico em1990, 18 deles chega-ram a uma renda de US$ 1 mil, seisobtiveram uma renda de US$ 2 mil etrês de mais de US$ 3 mil. A Coréia doSul e Taiwan, entretanto, tiveram umêxito extraordinário: são os dois úni-cos regimes ditatoriais que entra-ram em 1950 com uma renda inferi-or a US$ 1 mil e em 1990 excediamUS$ 5 mil.

Demografia e ditadura - "O que apren-demos é que os regimes políticos - di-tadura ou democracia - não afetam ataxa de crescimento do PIE. Mas tam-bém descobrimos, para nossa surpre-sa, que a população cresce mais rápi-do nas ditaduras", conta Przeworski."Ao mesmo tempo, identificamos quea renda per capita cresce mais rápidonas democracias. Ou seja, parece queo regime político tem mais impactoem demografia do que em economia."

Mas a pesquisa indica que até opatamar de US$ 3 mil de renda percapita a composição da taxa de cresci-mento depende dos mesmos fatorestanto para um regime autoritáriocomo democrático. No entanto, quan-do se ultrapassa esse valor, os dois re-gimes apresentam a mesma taxa decrescimento, mas com uma fórmuladiferente. "Chegam aos mesmos re-sultados, mas a função de produçãorevela que a democracia se baseia emum tipo de fator e o autoritarismo emoutro': explica o professor Limongi."A democracia paga melhor os traba-

lhadores e têm maior desenvolvimen-to tecnológico. No autoritarismo ostrabalhadores são mais explorados."

A explicação pode estar no proces-so político aberto das democracias,que permite que reivindicações dostrabalhadores sejam mais aceitas. "Asdemocracias tendem a se aproximarda social-democracia, com melhordistribuição de renda e maior partici-pação do trabalhador na produção",avalia Fernando Limongi. "Os regi-mes autoritários tendem mais ao pro-cesso de Singapura, Coréia, Taiwan eTailândia, modelos em que a mão-de-obra é utilizada intensivamente, semque ela seja muito produtiva."

Há, entretanto, outros contornosque favoreceram o crescimento ex-traordinário dos Tigres Asiáticos paraalém do regime político. "Esses paísespuderam proteger seus mercados eadotar políticas exportadoras", dizLimongi. "Os Estados Unidos não fe-charam o mercado para eles. Issoocorreu por razões estratégicas. A Co-réia do Sul era metade comunista emetade não. Os Estados Unidos deixa-ram esse país se desenvolver para ga-nhar força contra o bloco soviético.O mesmo ocorreu com Taiwan."

Na década de 70, o Brasil figuravaao lado da Coréia do Sul e do Méxicocomo um New Industrialized Country(NIC). No entanto, saiu dessa catego-ria porque teve dificuldades de conti-nuar a entrar no mercado americano.

"Os Estados Unidosqueriam reciprocidadede abertura, mas o Bra-sil não abriu", diz. A di-ferença, porém, é que aCoréia pode continuarfechada e, ao mesmotempo, exportar para osEstados Unidos. "Nãotem nada a ver com au-toritarismo. Tem a vercom estratégia políticada maior hegemonia domundo."

Muitas das teoriasdesenvolvidas sob oponto de vista da dita-dura para o desenvolvi-mento eram influencia-

das pelo que se acreditava ser o sucessoda ex-União Soviética: um sistemaextremamente fechado com mobili-zação de todos os recursos para o in-vestimento. Nos anos 60, no auge daGuerra Fria, os políticos de direitados Estados Unidos consideravamque estavam perdendo a luta inter-nacional por causa dos altos vôosque o bloco socialista estava levan-tando. Para eles, a grande inimiga, aextinta União Soviética, possuía ummodelo para o desenvolvimento depaíses subdesenvolvidos.

Brasil- No interior dessa preocupação,os Estados Unidos começaram aapoiar regimes autoritários pelo mun-do. O golpe militar de 1964 no Brasilé fruto dessa ideologia. Foi o períodomais próspero da economia. Mas, nosanos 80, o ritmo de crescimento caiuassustadoramente. Para alguns, a que-da do crescimento era fruto da rede-mocratização do país. "Nas décadasde 50, 60 e 70, o Brasil acompanha omesmo passo da Coréia do Sul. Nadécada de 80, ele pára e a Coréia con-tinua", expõe Limongi. De acordocom Przeworski, não há uma relaçãoentre a estrutura de desenvolvimentodo Brasil e seu regime político. O pro-blema do país, segundo ele, está na di-ficuldade de cobrar impostos dosmais ricos e usar os tributos para au-mentar o investimento social, seja umregime autoritário ou democrático. •

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HUMANIDADES

LITERATURA

o cavaleiroda sabedoriaExpulso do Partido Comunista Brasileiro,Astrojildo Pereira dedicou-se a pensaruma política cultural pioneira para o país

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trOjildO Pereira (1890-1965), fundador eprimeiro secretário-geral do Partido Co-munista Brasileiro, foi uma das perso-nalidades mais inquietas, intensas econtroversas envolvidas na tentativa

de desenvolver uma política cultural no país. Eram asdécadas de 30 e 40, a intelectualidade efervescia - for-mada por nomes como Carlos Drummond de Andra-de, Manuel Bandeira e Otto Maria Carpeaux, seusamigos - e, mais tarde, desembocaria na modernida-de. De início, Astrojildo preferiu dedicar-se à política,mas o Brasil ganhou, graças ao partido que expulsou,em 1931, um dos seus mais brilhantes estudiosos dasletras, um pensador bem formado pelas leituras deMachado de Assis, feitas desde a juventude.

Apesar das críticas de seus adversários de partido,foi entre os intelectuais que se disseminou a imagemde pessoa sensível e profunda. Daí o título do livrodo professor de comunicação comparada na Facul-dade de Comunicação da Fundação Armando Álva-res Penteado (Faap), Martin Cezar Feijó: O revoluci-onário cordial - Astrojildo Pereira e as origens de umapolítica cultural (250 págs., R$ 26). Recérn-lançadapela editora Boitempo, cuja edição foi parcialmentepatrocinada pela FAPESP,a obra foi o tema de douto-rado de Feijó na Escola de Comunicações e Artes daUniversidade de São Paulo (ECA/USP), em 1999.

Esse é o décimo livro de Martin Feijó e não é o pri-meiro sobre um dos poucos homens que realmentepensaram a política cultural brasileira. Em 1983, quan-

Astrojildo Pereira: influenciando,após sua morte, Paulo Freire,

o Cinema Novo e o Tropicalismo

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do trabalhava na Secretaria Municipalda Cultura de São Paulo, Feijó publi-cou O que é política cultural, na cole-ção Primeiros Passos, da editora Bra-siliense. Passados dois anos, já comoeditor de cultura de A Voz da Unidade,jornal do partido, o autor foi a Rio Bo-nito (RJ), onde Astrojildo nasceu, en-trevistou intelectuais que conviveramcom ele,como Francisco AssisBarbosa,correspondeu-se com Carlos Drum-mond de Andrade e visitou Niterói,onde Astrojildo morou. "Fui verificarque fatos antecederam a sua atraçãopara o comunismo e o marxismo': ex-plica. Como resultado de seus estudos,publicou Formação Política de Astro-jildo Pereira (editora Novos Rumos),que trata do período de sua vida até osurgimento com o partido.

Em um primeiro momento, o pro-fessor pensou em escrever a biografiade Astrojildo. Em 1990, porém, mu-dou o rumo e decidiu buscar o concei-to de política cultural dentro da vida eobra de Astrojildo, para o seu doutora-do. Surgiu, assim, um livro com ares debiografia, sem o hermetismo dos textosacadêmicos, mas permeado da princi-pal preocupação do autor sobre o ain-da não formado projeto cultural parao país. "Minha pretensão é que seja umponto de partida do pensamento po-lítico-cultural para o futuro, não parao passado", afirma o professor.

Machado de Assis - A obra se baseiaem duas importantes pilastras quenortearam a vida desse intelectual: ocomunismo e Machado de Assis. Vá-rias histórias que ele protagonizou otornaram uma espécie de figura len-dária e ilustram a força desses dois ve-tores em sua trajetória. Ainda dirigen-te comunista, ele estava convencidode que seu partido deveria estabeleceruma aliança com o capitão do exérci-to Luís Carlos Prestes - o "Cavaleiroda Esperança", que acabara de cortar opaís disposto a transformar o quadrode atraso e miséria no Brasil. Era 1927e Astrojildo foi de trem até Corumbá,em Mato Grosso, e seguiu de automó-vel até Puerto Suarez, na Bolívia, paraconversar com Prestes. Antes de par-tir, o comunista deixou livros marxis-

tas para o militar. Esse leu com aten-ção aquela literatura "que trazia umanova possibilidade para seu anseio detransformar o mundo e não apenasderrubar um governo", como observaFeijó no livro. Assim, foi pelas suasmãos que o dirigente militar conver-teu-se em comunista. "E esse encon-tro levou Astrojildo a receber uma dasmais fortes críticas dentro do partido,a de ser 'prestista", observa Feijó."Esta foi uma das justificativas para asua expulsão do PCB, depois de tersido destituído do cargo de secretá-rio-geral, em 1931."

Mas, como se costuma dizer, hámales que vêm para bem. "Sua ex-pulsão foi fundamental para ele co-meçar a trabalhar sobre uma políticacultural para o país; foi quando afas-tado da militância que ele se relacio-nou mais com a intelectualidade ca-rioca, começou a escrever e retomouMachado de Assis", diz Feijó. Umacomovente história também ilustra àperfeição a admiração de Astrojildopor Machado e o quanto o escritorfoi importante em sua formação in-telectual. Em 1908, quando o futurointelectual tinha 17 anos, o escritoragonizava no leito de sua casa emCosme Velho, no Rio. Sem avisar aninguém, o jovem tomou a balsa deNiterói e dirigiu-se àquela casa ondenão conhecia ninguém. Bateu naporta e pediu para ver o dono e, nãosem relutância, a passagem lhe foipermitida. O rapaz entrou no quar-to, ajoelhou-se e beijou-lhe a mão.Despediu-se de todos e saiu. O doen-te morreria poucas horas depois. Esó mais de 30 anos mais tarde se sa-

o PROJETO

o revolucionário cordial-Astrojildo Pereira e as origensde uma política cultural

MODALIDADEAuxílio publicação

COORDENADORCELSO FREDERICO - ECA/USP

INVESTIMENTOR$ 5.000,00

beria quem fora "aquele menino ele-vado", citado por Euclides da Cunha,uma das testemunhas da cena, pormeio do livro publicado por LúciaMiguel Pereira sobre Machado. En-tão, ele já era um homem de trajetó-ria invejável. Suas credenciais eraminúmeras: jornalista cultural, histo-riador, militante, pensador, publicis-ta, autodidata e, o mais notável, oprincipal estrategista de uma políticacultural de esquerda.

Tropicalismo - Machado de Assis eFormação do PCB são dois de seus li-vros definitivos. Mas, para Feijó, seutexto mais importante foi Machado deAssis, Romancista no Segundo Reina-do, publicado em 1939 na RevistaAcadêmica, em que Mário de Andradetrabalhava. Ele também aponta Tare-fas da Inteligência Brasileira, publica-do em 1944, em que Astrojildo apre-sentou propostas decisivas para seremdiscutidas, um ano mais tarde, duran-te o Congresso de Escritores, em SãoPaulo. "Ele afirmava que o intelectualé o agente do processo cultural, porisso, ele tem de estar desligado do Es-tado e também do partido para poderpensar o país sem amarras", conta Fei-jó. "E diz que o caminho passa pelaeducação, pela alfabetização do ensi-no primário ao ensino superior; istoé, não basta aprender a escrever, é pre-ciso aprender a entender o que se lê ea pensar." É como se fosse uma linhacontínua que vai formando um cami-nho pelas décadas do século 20.

"Paulo Freire pegaria esse mesmoconceito, e muitas propostas embuti-das e defendidas naquele texto tam-bém foram desenvolvidas, mais tarde,pelo Cinema Novo, pelo Tropicalismo,pelos teatros de Arena e Oficina': dizFeijó. "Essa efervescência cultural éalgo devedora de Astrojildo, seu grupode pessoas e, até, a Machado de Assis,pois, além de grande escritor, ele tam-bém tentou pensar uma política cul-tural dentro dos limites de sua época':conclui. Agora, é tentar continuar to-mando a ponta dessa linha e seguirpara a frente pelo século 21. O Revolu-cionário Cordial abre algumas portaspara refletir sobre o assunto e agir. •

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HUMANIDADES

ENTREVISTA: LEOPOLDO DE MEIS

Ciência com arte e emoção

Leopoldo de Meis, 63 anos,é uma figura excepcionaldentro da comunidade ci-entífica brasileira. Médicoformado pela Universida-

de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),professor titular de Bioquímica noInstituto de Ciências Biomédicas daUFRJ e pesquisador dos mais respeita-dos em sua área, ele publica sem cessarnas mais importantes revistas científi-cas internacionais de Bioquímica. Suaslinhas de pesquisa: Mecanismos detransdução de energia em siste-mas biológicos, transporte ativode íons, e síntese e hidrólise deATP (adenosina trifosfato). Atéaí, temos traços de um currícu-lo que não o distinguiria muitode outros bons pesquisadoresbrasileiros. O que então singu-lariza esse brasileiro e carioca,nascido na Itália e trazido parao Brasil em decorrência da bus-ca de seu pai - músico de for-mação erudita, violoncelista -por melhores condições de vidano pós-guerra, é seu esforço per-sistente para tornar a ciênciamais compreensível. E aqui en-tenda-se a ciência tanto comoum corpus global de conheci-mentos quanto em sua condi-ção de poderosa prática social.

Trata-se de torná-Ia mais com-preensível, primeiro, para si mes-mo. Porque é de seu desejo pes-.soal de compreensão que semdúvida De Meis fala, ainda queassim termine por abarcar seuspares, quando diz "como seriabom se fosse permitido a cadaespecialista trabalhar tambémna claridade dos demais': Emsegundo - e talvez mais funda-mental-lugar, seu esforço diri-

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ge-se para reduzir a opacidade da ciên-cia para os não-especialistas, para a so-ciedade em geral. E é por força desseobjetivo admirável que de Meis inclui"Educação, gestão e difusão para Ciên-cia" entre suas linhas de pesquisa e pro-cura, incansavelmente, formas de tradu-zir a ciência, com emoção, para os leigos.

Essas buscas o conduziram, por umtempo, à política científica, depois, aexperiências educacionais e, mais re-centemente, a um diálogo com a artee com outras linguagens de comunica-

ção fácil. O resultado disso são livros emquadrinhos sobre ciência, uma peçade teatro, um filme de divulgação cien-tífica com belíssimas e vertiginosas ima-gens produzidas por computação grá-fica e novas idéias que jorram de suaimaginação. O texto que se segue con-tém apenas os trechos principais daentrevista que Leopoldo de Meis con-cedeu a Pesquisa FAPESP, em sua lin-guagem viva, apaixonada, coloquial,atravessada por gírias - carioca, enfim.

• Embora já fosse há muito tem-po um pesquisador respeitado emsua área, o senhor tornou-se bemmais conhecido depois da publi-cação de seu livro Perfil da Ciên-cia Brasileira. Como começou seuinteresse por esses estudos?- Houve uma época em quefiz política científica. Hoje, nãofaço mais, embora respeite mui-to as pessoas que sabem fazerisso. Eu não tenho vocação. Maso trabalho foi feito em 1988,1989, e foi publicado em 1990.Eu mostrei os dados do cresci-mento da pós-graduação noBrasil, comparando com os da-dos externos que consegui. Mos-trei o tempo gasto, publicaçõespor ano, a qualidade das revis-tas em que se publicava, seu im-pacto, etc. E o resultado dessascomparações é que, na realida-de, não havia nenhuma diferen-ça significativa entre os que fize-ram pós-graduação no Brasil eos que fizeram lá fora. Em rela-ção ao pós-doe, sim, fazia umagrande diferença ir lá fora.

Gibi sobre termodinâmica:ensino mais divertido

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• Mas a essa altura, não está na hora defortalecer o pós-doe internamente?- Ah, claro. Tem uma quantidadeenorme de grupos brasileiros de pes-quisa que não deve absolutamentenada para ninguém. Podem-se contardezenas desses grupos que são de al-tíssimo nível para oferecer pós-doe.

• Haveria ainda no país um entendi-mento insuficiente de qual é o papel daciência para o desenvolvimento nacional?- Eu acho que sim. A maior parte donosso Congresso não tem a menoridéia do que é ciência. E não só ele. Háuns poucos anos fiz um trabalho ba-seado em entrevistas com os técnicosdo CNPq, e a filosofia vigente era queciência básica devia ser feita somentelá fora, porque não tínhamos condi-ções econômicas para desenvolvê-Iaaqui. Deveríamos fazer ciência aplica-da. Ora, isso é coisa de quem realmen-te não tem a menor idéia do que sejaciência. Não existe ciência e ciênciaaplicada ... Quem começa a classificarassim, comigo já leva nota zero. Gos-to, nesses casos, de citar Pasteur, quedizia que não há ciência básica e apli-cada, mas o conhecimento e sua utili-zação. Eu pergunto como é que vocêvai classificar o projeto Genoma daXylella? Vai dizer que é ciência aplica-da? É um somatório de coisas, in-cluindo formação de gente.

.A que se deve essa visão?Acho que a ciência é muito nova noBrasil. Alguns países, pouco tempodepois do começo da ciência moder-na, a incorporaram logo, em termosnão só econômicos, mas culturais. Eaté agora 70% ou 80% da ciência éfeita nesses países precursores.

• Enquanto nós estamos ali com 1,2%da produção científica mundial.- Mas isso é espetacular, se você con-siderar que antes do desenvolvimentoda pós-graduação o Brasil inteiro pu-blicava 50, 60 trabalhos, em todas asáreas do conhecimento. Portanto, aciência no Brasil é muito nova ...

• Ou seja, a ciência só começa a se ins-titucionalizar no Brasil no pós-guerra.

- Sim, e portanto é um traço cultu-ral novo, que ganha um vigor enormeapós a pós-graduação, a melhor bola-ção jamais feita no Brasil. Ela cresceude uma forma vigorosa, e é funda-mental para o país nesse processo deglobalização.

• Qual é, aliás, a sua análise sobre nos-sa articulação com as tendências, as li-nhas dominantes de pesquisa nessemundo globalizado?- Estamos agora cada vez mais expos-tos às coisas que acontecem em outrospaíses. Coisas culturais, econômicas ...Estamos num momento muito deli-cado, porque em qualquer lugar domundo começa-se a ter idades cultu-rais, idades de conhecimento, distintas.São grupos populacionais enormescom grandes discrepâncias de exposi-ção, aquisição e entendimento do quenós, espécie humana, já descobrimos.

• E isso explica suas preocupações emtorno da educação e difusão científicas.- Sim, porque enquanto estamos fa-lando do desconhecimento sobre ocarro, o computador, etc., é uma coisa,mas quando você passa para outrosníveis, por exemplo, para a medicaçãoda alma, digamos assim, a coisa ficacomplicada. Hoje pode-se ir à farmá-cia, tomar um Prozac e medicar a alma.Ora, lidar com o relógio e não enten-dê-lo, tudo bem, mas quando come-ça-se a dispor de coisas que mexemcom toda a estrutura do indivíduo enão se as entende, isso pode dar numsamba do crioulo doido.

• E qual é a sua preocupação específicanesse âmbito?- É o conflito humano-tecnológicoque está surgindo. Os conceitos mile-nares de paternidade, maternidade, etc.estão mudando com esse negócio deinseminação artificial, clonagem ...Há-bitos milenares estão mudando deforma muito rápida. E se as pessoasnão têm a possibilidade de entender oalcance das mudanças, elas estarãonão só alienadas de seu próprio uni-verso social, mas sofrendo. Não esta-mos lidando com algo só econômico,mas com o que é humano, e o terrormaior é que os homens das ciênciasexatas e das humanas não se falam.

• Daí o senhor defende um processo deeducação e de difusão constantes dessasconquistas novas da ciência e da tecno-logia para que a sociedade se preparepara as mudanças que estão em curso.- Isso é muito ambicioso. Antes depensar tão longe,penso no entendimen-to entre os próprios cientistas. Veja, omatemático tem uma visão do univer-so muito precisa, mas muito distanteda visão que um biólogo tem. Muitodiferente da visão de um físico, de umquímico. A quantidade de conhecimen-to que temos é tamanha, que é impos-sível uma pessoa controlar todas asáreas do conhecimento. Até um século,dois, o volume de conhecimento era

Lavoisier em quadrinhos: à frente de umasilenciosa revolução nos laboratórios

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pequeno e o cérebro podia absorver,digerir um pouquinho de cada coisa eisso tudo se misturava. Gosto do exem-plo de Descartes: era um grande filó-sofo, um grande matemático (as coor-denadas cartesianas) e um grandebiólogo (descobriu a hipófise). Com aenorme quantidade de pesquisas, hoje,quando só nas revistas indexadas pu-blica-se anualmente 1,2 milhão de tra-balhos, isso é impossível. A produçãode novos dados acontece numa velo-cidade avassaladora, porque a quanti-dade de pessoas no planeta que traba-lha em ciência aumentou de maneiraincrível: no começo dos 1900 se calcu-lava algo em torno de 2 mil, 3 mil pes-soas, e hoje o número estimado é aci-ma de 20 milhões. A velocidade daprodução obrigou a superespecializa-ção: o que fazemos é cavar em pro-fundidade e um especialista não con-segue entender o universo do outro.

• E o que poderia articulá-losi- Uma nova linguagem que permi-tisse às diversas ciências se comunicarcom rapidez e clareza. Se conseguísse-mos cada um trabalhar também na cla-ridade dos demais, acho que encon-traríamos saídas e entenderíamos ouniverso muito mais depressa.

• Mas aí não seriam os 20 milhões deespecialistas que entenderiam um pou-co mais de tudo enquanto os outros fi-cariam cada vez mais à margem?- Primeiro os cientistas. Isso já pro-vocaria um grande salto. O outro pe-daço, onde eu também procuro traba-lhar, é diferente. Veja, quando se falade ciência nos jornais, revistas, etc., namaior parte das vezes aborda-se o as-pecto muito importante da aplicaçãoda ciência, de sua utilidade, de sua im-portância para a economia de umpaís, para o desenvolvimento econô-mico, social, o que é absolutamentecorreto, mas raramente fala-se sobreum outro lado que é o do desejo do ho-mem de entender o universo. Essa é aparte lúdica da ciência, suas motivaçõesoriginais e, depois, as emoções associa-das com a ciência. Isso ninguém ensi-na e por isso as nossas aulas de ciênciasão tão chatas.

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• Mas as aulas não são chatas tambémpela falta de motivação dos professores?- Sem dúvida isso contribui. Mas, ti-rando isso, o fato é o seguinte: só mos-tramos o lado utilitário da ciência, e ooutro lado, igualmente importante efundamental para o menino em forma-ção, fica esquecido. Ora, um meninode 7, 10, 15 anos, excepcionalmentepode até estar interessado em ProdutoInterno Bruto, mas está muito mais in-teressado no que ele gosta e no quenão gosta. E mostrar que a ciência trazalgo muito maior, por exemplo, enten-der o universo, pode ser, para eles, umnegócio importante.

• O seu trabalho teatral com o métodocientífico se insere exatamente aí.- Exatamente aí. Começou comoum trabalho de pesquisa. Queria vercomo é que as crianças viam a ciênciae pedi que desenhassem o cientista. Apartir de uma amostra grande feita noBrasil e nos Estados Unidos, vimosque o desenho não muda desde que acriança tem 6 ou 7 anos até ela entrarna universidade. É sempre o mesmodesenho machista, não tem mulherfazendo ciência ... A coisa passa peloestereótipo do homem sempre solitá-rio, com a cara meio entediada, nãohá comunicação. Mais de 30% dessesdesenhos mostravam pessoas quevocê não convidaria para tomar cháem sua casa. Umas caras horríveis,loucos, desvairados ... Depois, em ou-tros trabalhos, perguntamos a univer-sitários o que era ciência. Escolhemosos que tinham acabado de passar novestibular de Medicina, porque é omais difícil e que requer mais conhe-cimento da ciência que se ensina nocolégio, e os meninos da Escola de Be-las-Artes. Esperava respostas diferen-tes. Nada! Todos diziam que ciência éum negócio lógico e não precisa decriatividade, porque se descobre o quejá está aí.

• É só observação.- É. Lógica, observação, precisão ...nenhuma emoção, nenhum senti-mento. Aí perguntei "o que é arte?", ediziam o contrário: é emoção, criati-vidade, criar coisas novas, universos.

• Mas de onde vem essa visão?- Não sei. Eu pedi a um colega meudos Estados Unidos, Harvey Penefsky,um dos descobridores da transduçãomitocondrial, para fazer a mesma coi-sa no College Siracuse, no segundo anode college, quando o menino tem quetomar sua decisão de carreira. O re-sultado foi idêntico. Portanto, não éuma qualidade brasileira essa visãodistorcida. E, então, comecei a pensarde que maneira poderia tentar fazeralguma coisa sobre isso e fui criticadopor muitos colegas (fui elogiado poroutros também), que diziam: "Comovocê vai fazer sociologia da ciência?':Fiquei angustiado porque realmentenão tinha leitura suficiente disso.

• Isso foi nos anos 1980, não?- Nos anos 80. Naquela época eu jo-gava bastante bola, e quando se jogabola, você está correndo, mas de vezem quando está parado e, enquanto aspernas estão correndo, a cuca funcio-na. Aí fiquei muito angustiado, até quedisse: "Besteira, cara! Desde os 18 anoseu faço sociologia da ciência, estou in-teragindo com pessoas de ciência, voufazer!" É minha tribo, são meus índios,qual é? Aí comecei a fazer. Se certo,errado, não sei, mas alguma coisa estáacontecendo. E uma das coisas que eucomecei há muito tempo foi a darcursos para meninos de colégio quan-do eles entram em férias. Um negóciomaravilhoso. No princípio, eu mesmodava o curso, mas desde o fim dos anos80 os pós-graduados ficaram muitoentusiasmados com isso. Então, o es-quema é assim: um professor pegaum tema, os pós-graduados durante aépoca letiva preparam um curso pu-ramente experimental, cuja caracte-rística não é fazer o menino ver, masdescobrir. São 80, 90 meninos, emcada rodada. Depois, os pós-gradua-dos começaram a reclamar comigoporque as professoras criavam caso,então elas vieram. Umas 50 por ano.Enfim, temos um bom programa dosmeninos de baixa renda que traba-lham em laboratório. Escolho um me-nino que tem que ser bom no curso.Boto no laboratório para trabalharcom o pós-graduado que passa a ser o

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tutor dele, tem que cuidar, acompa-nhar o boletim, explicar os deveres decasa, tudo.

• E que idade têm esses meninos?- Em torno de 15, 16 anos. Em com-pensação, o menino funciona comouma espécie de técnico, ajuda o pós-graduado a trabalhar. E mostra para opós-graduado uma realidade, extre-mamente cruel muitas vezes, a quenormalmente ele não é exposto. E oobjetivo não é o menino ficar melhor-zinho, é entrar para uma faculdadepública. E já são mais de 40 que con-seguiram isso, tem um ótimo, brilhan-te, que está fazendo doutorado.

• Depois veio o teatro mesmo.- Sim. Os cursos ainda não me satis-faziam. E aí pensei, outra vez jogandobola: a linguagem da arte é muito im-portante se você quer transmitir emo-ção. O cientista tem os seus momen-tos de emoção, o problema é comotransmitir essa emoção. Os bons cien-tistas, os que se destacam, falam des-sas emoções, falam da intuição .

• E isso levou a quê?- Eu não tinha a menor idéia do quefazer. Então comecei a ir a tudo quan-to era palestra que aparecia sobre "ci-ência e arte". A maior parte era inte-ressante, algumas brilhantes, outraschatas. Mas o fato é que em nenhumadelas eu entendi qual é a relação entreciência e arte. Era bonito, mas não ti-nha nada a ver "habeas corpus" com"corpus christi". Então eu disse "bah,vou tentar aprender a linguagem dasartes': E tem uma colega maravilhosada escola de Belas-Artes, a LourdesBarreto, com quem comecei a conver-sar. Primeira coisa que percebi: o ma-terial de ciência que vai para as esco-las é chato pra caramba; dois: é feio;três: é difícil de entender; quatro: nãofala a linguagem dos garotos. Aí lem-brei que quando eu era garoto adora-va o almanaque. Quando chegava ofim do ano tinha três coisas maravi-lhosas que aconteciam: primeiro, fé-rias, ficava livre do colégio, ah, que ma-ravilha, ficar livre daquela porcaria.Número dois, ia chegar o Natal, ia ter

festa. E, número três, apareciam os al-manaques. Eu adorava gibi, PríncipeValente, Tarzan ... Aí pensei, "vou fazerum". Procurei com meus colegas daBelas-Artes um cara bom para fazergibi, eles indicaram o Diucênio Ran-gel e fizemos O Método Científico.

• Quando foi publicado?- A primeira edição foi em 1996. Fo-ram 4 mil exemplares, feitos comapoio da Academia Brasileira de Ciên-

aquilo que estaria nos slides". Os estu-dantes de pós-graduação ficaram ani-mados, começaram a inventar coisasmaravilhosas para fazer com o proje-tor, roupas, papéis. E aí nós fizemos.Os meninos adoraram, bateram pal-mas de pé, gritaram ... Depois, a Uni-versidade Mackenzie soube da histó-ria, pediu que levássemos para SãoPaulo. O pessoal do Sul chamou, fize-mos uma turnê começando por PortoAlegre, e de repente estavam 8,5 mil

De Meis:"O cientista tem seus momentos de emoção; o problema é como transmitir"

cias, do CNPq, e distribuídos gratui-tamente nas escolas, graças ao apoioda Fundação Vitae. Depois, foram mais4 mil exemplares na segunda edição, eaí a FAPESP foi preciosa: comproumetade, distribuiu nas escolas. De-pois, em 1998, veio no mesmo estilo"A respiração e a P lei da termodinâ-mica ou ... a alma da matéria': Estoutentando fazer um agora sobre a his-tória das vacinas.

• Mas como aconteceu o teatro?- Foi uma coisa gozada. Toda vezque eu faço o curso de férias, trago umconferencista que possa mexer com acabeça dos meninos. Aí um conferen-cista programado não pôde vir e opessoal disse: "Você vai dar a palestra,Leopoldo", e eu, "Deixa estar, vamosfazer o seguinte: em vez de apresentarslides, eu falo e vocês representam

crianças dentro do anfiteatro na Uni-versidade Federal do Rio Grande doSul (UFRGS). A cada vez que viajáva-mos, íamos mudando, botando maismúsica, mais figurino. Fomos a SantaMaria, Pelotas, Caxias do Sul, Vitória,São Carlos, Campinas e, há pouco, SãoPaulo de novo, na Escola Paulista(Universidade Federal de São Paulo,Unifesp). Agora as sociedades brasilei-ras de Bioquímica e de Química nosconvidaram para apresentar. E nós va-mos. Fomos a diversos colégios, aoPedro Il, etc., sempre em grupo de 13a 16 pessoas, entre professores e pós-graduados. Agora, finalmente, o queestou mais envolvido é com compu-tação gráfica e cinema. Mitocôndriaem três atos, filme de animação é o pe-daço mais novo dessa jornada. Anossa sala de cinema no laboratórioacabou de ser montada. •

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HUMANIDADES

Johann Moritz Rugendas, Festa de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros: festividades para subverter a opressão

HISTÓRIA

o Brasil sempre foi de festaLivro mostra de que modoas comemorações evoluírame influíram em nossa história

Com o objetivo de aprofundar oentendimento sobre a singular

experiência das festividades no Brasile suas implicações na formação daidentidade e da cultura nacionais, oshistoriadores István Iancsó, da Uni-versidade de São Paulo (USP), e IrisKantor, bolsista de doutoramento daFAPESPe professora licenciada da Es-cola de Sociologia e Política, organi-zaram dois volumes que reúnem 49artigos de pesquisadores brasileiros e

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contribuição de autores portuguesessobre o tema: Festa - Cultura e Socia-bilidade na América Portuguesa (FA-PESP,Hucitec, Edusp e Imprensa Ofi-cial, 990 págs, R$ 115). O trabalho éfruto de um seminário internacionalde seis dias organizado há dois anos naUSP,que teve o mesmo título da obra.Ambos, seminário e livro, receberamfinanciamento da FAPESP.

Os artigos reunidos nas quase milpáginas dos volumes fornecem amplocaleidoscópio de temas e, segundo osorganizadores, contribuem para dimi-nuir a imensa lacuna bibliográfica nahistoriografia sobre o período. A idéiaque originou o seminário foi exata-mente fazer um balanço das pesquisassobre assuntos ligados às festas, desde

seus aspectos mais detalhados, de "mi-cro-história", até exercícios de históriacomparada e abordagens interdiscipli-nares sobre os fenômenos festivos, queincluem o olhar de outros ramos doconhecimento, como antropologia, le-tras, filosofia, música e dança.

Valorizando o aspecto do diálogoentre os diversos olhares sobre as fes-tas, acompanha o livro um CD com26 músicas compostas entre os sécu-los 13 e 18. Trilha sonora para a lei-tura, o CD teve curado ria de Maurí-cio Monteiro e direção artística deAnna Maria Kieffer, além da partici-pação de mais de 50 pessoas. Os gru-pos de pesquisa musical haviam dadoum clima diferente ao seminário,apresentando-se depois de palestras.

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L' _Como as festas são um

dos pontos principais daimagem do brasileiro so-bre ele mesmo e do estran-geiro sobre o país, é inegá-vel que essas manifestaçõescoletivas influam sobre aconstrução da identidadenacional. Para o professorIancsó, a raiz do fato estáno significado que as festi-vidades tinham e aindatêm. "As festas significamum instrumento para fu-gir do controle de um Es-tado com o qual sempremantivemos uma relaçãode sofrimento e de antagonismo, aocontrário do paradigma europeu eOcidental, em que a identidade é es-truturada pelo Estado, que represen-ta um instrumento de emancipação.No Brasil, o Estado, criado pelas eli-tes, nunca foi um instrumento de li-bertação e de identificação, mas simde coesão", afirma.

gelizar e doutrinar os índios, usandoesses instrumentos como recurso pe-dagógico. Isso, porém, não é algo es-pecífico do Brasil e da América portu-guesa, mas do Peru, do México e deoutros povos andinos."

De acordo com a historiadora, es-sa estratégia de transculturação dosjesuítas era parte de sua vocação mis-sionária, de seus objetivos de evange-lização dos territórios recentementedescobertos. "Os jesuítas chegaram aser até condenados por excesso dediálogo. Eles atuavam como antropó-

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Batuque: alegria do "inimigo interno"

logos, na medida em queprocuravam fazer tradu-ções entre a cultura euro-péia e as diferentes cultu-ras ameríndias", salienta.No período compreendidoentre o final do século 17 einício do século 18, a par-tir da descoberta do ouro,começaram a se formar osnúcleos urbanos com ex-pressiva densidade demo-gráfica, em especial nas ci-dades de Minas Gerais.

Nesse segundo momen-to, quando a sociedade ur-bana se consolidou, passou

a haver a necessidade de se estabelecertradições de festas. E foi o modelo mi-neiro o exportado para o restante dopaís. "As festas daquela época seguiamum modelo ditado pela metrópole,que foi chamado 'triunfo cristão', pa-recido com o atual Corpus Christi",diz Iris. "Eram festas processionais, emque na frente iam as populações maissubalternas, os escravos, os índios. Nocaso de Portugal, iam os mouros e osjudeus. Mais ao centro da procissãoseguiam as camadas mais altas, numaespécie de ordenamento que ia numcrescendo do inferior ao superior. Emgeral, usavam o recurso dos carros ale-góricos e das coreografias."

Debret, a marimba do passeio de domingo: comungar ideais

Inimigo interno - O Estado, para Ianc-só, era e continua sendo um instru-mento de controle do "inimigo inter-no", a maior parte da população.Diante disso, assumem maior rele-vância as ocasiões em que os brasilei-ros conseguem se ver como um con-junto de pessoas que partilham ecomungam ideais, valores e sentidos."Isso acontece nas situações festivas,não porque é festa, mas porque é detodos", explica Iancsó. Ele continua:"As pessoas dizem que nossa identi-dade é mal-acabada, uma identidadefestiva. Isso é bobagem, porque repre-senta uma aceitação acrítica do para-digma dos países europeus:'

A professora Iris afirma que osdois volumes procuram abarcar basi-camente os três períodos que chamade "a pré-história do carnaval': Ela ex-plica que, logo no início do períodocolonial, os principais ritos de socia-bilidade eram as festas da catequese,dominadas basicamente pelos jesuí-tas, principais construtores do imagi-nário festivo de então. "Eles entende-ram a importância da utilização damúsica e do teatro para cativar, evan-

Erudito e popular - Ambos os períodostambém se diferenciavam pelo que secultuava nas festividades. Enquanto omodelo jesuítico era mais devocional,as festas barrocas cultuavam o rei. Írisexplica: "A festa era um reforço dapresença real na ausência e distânciado monarca. Como obedecer à dis-tância que se verificava entre a colôniae a metrópole? As festas funcionavamcomo espécie de colonização do ima-ginário." Outro dado interessante éque esse momento antecede a divisãoentre a cultura erudita e a popular,que ainda hoje permanece. Os pobresestavam presentes às mesmas festivi-dades que as elites. As comemoraçõescoletivas tinham uma função orde-nadora, de delimitação de hierar-quias. Nem sempre a festa é de quemquiser ou vier. •

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HUMANIDADES

IMPRENSA

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Revistas "chiques" dos anos 10 e 20: apesar do esforço da elite cultural, as publicações que faziam sucesso eram as de consumo

Em revista, o desvarioda paulicéia culturalEstudo mostra relaçãoentre mídia e vida cotidianana São Paulo antiga

Na paulicéia desvairada, a luzelétrica tomou conta das ruas.

As mulheres encurtaram os cabelos eas saias, os bondes aceleraram a vida.Novos hábitos noturnos: o bar, o res-taurante, as lojas de departamentoiluminadas. São Paulo do início do sé-culo 20 viveu sua belle époque com di-reito a quase todo glamour de Paris.Mais: foi a cidade em que se desenvol-veu, com esplendor, uma indústria atéentão incipiente no país: a da produ-ção editorial de revistas.

Em Revistas em Revista: Imprensae Práticas Culturais em Tempos de Re-

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pública, São Paulo (1890-1922) a his-toriadora Ana Luiza Martins apresen-ta um extenso levantamento docu-mental e iconográfico sobre essaspublicações, que chegaram a somarmais de 200 títulos entre 1890 e 1922.A pesquisa, desenvolvida como tesede doutorado defendida no departa-mento de História da Universidade deSão Paulo (USP), acaba de ser lançadaem livro, uma publicação ilustrada emuito bem cuidada, feita com apoioda FAPESP pela Edusp e ImprensaOficial (591 páginas, R$ 50).

O livro tem prefácio do bibliófiloJosé Mindlin e é comentado, na con-tracapa, pela historiadora Maria Lui-za Tucci Carneiro. Foi feito com baseem documentos de diversos arqui-vos, entre eles o do Instituto Históri-co e Geográfico de São Paulo e o doInstituto de Estudos Brasileiros daUSP, além de bibliotecas particulares,

como a do próprio José Mindlin.Apresenta análises que permitem en-tender de que forma essas revistascolaboraram para a formação de umpúblico leitor, ao mesmo tempo emque, fato inusitado, deram propulsãoa uma nova realidade econômica emercadológica nos centros urbanos.

Imprensa tardia - "As revistas tiveramum papel muito importante no Brasilnaquela virada do século 20, em fun-ção da própria história da imprensano país", explica Ana Luiza. "Foi umaimprensa tardia, se comparada com aexistente nos países latino-america-nos de colonização espanhola, osquais conheceram o prelo desde o sé-culo 16." A primeira impressão ofici-al feita em solo brasileiro só ocorreuapós a chegada de D. João VI ao Riode Janeiro em 1808, fato que elevou acidade à capital do Império portu-guês. "Antes do Império, qualqueratividade que pudesse resultar na pu-blicação de um periódico era subme-tida a uma censura rigorosíssima,principalmente no tempo em que aInquisição esteve na Colônia", diz.

Um segundo momento curioso daimprensa nacional foi quando, ape-sar de ter surgido no Rio, ela teve

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Ação do guarda: usando a imprensa para educar o povo

São Paulo como palco de seu grandedesenvolvimento. "Ela surgiu tardia-mente, mas num período de grandese importantes mudanças", observa aprofessora Maria Luiza Tucci. Essastransformações ocorriam principal-mente em solo paulista, sob a égidedos barões do café, que cultivavam aterra roxa no interior e apostavam namodernidade da capital.

De que tratavam, então,essas publicações, responsá-veis pelo nascimento e cresci-mento de um verdadeiro par-que gráfico na então terra dagaroa? "De um pouco detudo", diz Maria Luiza. Entreas de maior popularidade es-tavam as femininas, as de es-portes, as religiosas, as quetratavam de educação e - pas-me - as revistas agrícolas."Ocorre que essas publicaçõessurgiram no início da Repú-blica, quando os grupos maisprogressistas estavam lutandopor uma melhor educação -não podemos esquecer que opaís tinha uma herança escra-vocrata, portanto, era predo-minantemente analfabeto",explica a pesquisadora. O pe-ríodo foi marcado tambémpelo fortalecimento do ensinopúblico, com a fundação, porexemplo, dos grupos escolaresCaetano de Campos e Rodri-gues Alves. "As revistas servi-am para ampliar o público lei-tor e era importante falar sobreassuntos valorizados pelo governo,por exemplo, a agricultura, em pri-meiro lugar, e a educação, logo emseguida", continua a historiadora.

Embora fossem setorizadas, as re-vistas não eram monotemáticas, deforma que era possível, por exemplo,encontrar peças literárias em umarevista que tratava de assuntos liga-dos à terra e ao plantio. "Um grandeexemplo foi a revista Chácaras eQuintais, na qual a escritora Iúlia Lo-pes de Almeida despontou, publi-cando seus contos", narra Maria Lui-za. "Esse tipo de coisa era uma via demãodupla: ao mesmo tempo em que

a autora conquistava seu público, suaobra ajudava a revista a encontrarleitores entre os mais diferentes gru-pos da sociedade", explica ela. Comoainda não havia editoras de livros,muitos autores e até movimentos li-terários ficaram conhecidos graçasaos periódicos. Niterói, por exemplo,a primeira revista brasileira de que setem notícia, impressa na França, foi

---_ ..._ ...~---Fóra da calçada ...

espaço de veiculação dos escritoresdo Romantismo.

As revistas paulistas religiosastambém apostavam na diversidadede assuntos para atrair mais leitores.Leia-se: fiéis. "Costumavam divulgarexposições de arte. A primeira expo-sição de Benedito Calixto em SãoPaulo foi divulgada em uma revistada Igreja", aponta a pesquisadora. Oimpresso periódico foi o meio en-contrado pelos eclesiásticos paracompensar a diminuição do poderda Igreja após a separação dessa ins-tituição do Estado, o que ocorreucom a proclamação da República. Jáas esportivas acompanhavam o mo-

dismo trazido pelos ingleses. Naque-le tempo, além do tênis, o futebol,hoje um evento popular, também eraum esporte exclusivamente elitista.

"Sem dúvida, as mais lidas eram asrevistas femininas", afirma a autora.Vários motivos explicam essa popula-ridade. "Naquele tempo, havia maismulheres do que homens alfabetiza-dos na elite", diz Maria Luiza. "Além

disso, as revistas femininaspodiam entrar nas casas dasfamílias, porque mesmo quecontivessem, por exemplo,contos ou textos literários,eles jamais chocariam moçase senhoras, como costumavaacontecer, muitas vezes, comas revistas literárias", continua.O período estudado segue so-mente até 1922, justamentepor se tratar do ano em que oModernismo se afirmou e asrevistas modernistas apresen-taram rupturas de linguagem ede propostas em relação a suasantepassadas.

Beleza gráfica - Um passeiopelas páginas coloridas de Re-vistas em Revista permite aoleitor deliciar-se com a belezagráfica de muitas dessas pu-blicações (Sports, Correio Pau-listano, A Estação, Vida Mo-derna). Os títulos mostram oesforço criativo para assuntosgerais (A Rolha, O Parafuso, ACigarra, A Farpa, A Vespa,

Arara, O Queixoso - de oposição aogoverno, Caras Y Caretas) e para falarde São Paulo de maneiras diferentes(A Garoa, Ilustração Paulista, CorreioPaulista no, Vida Paulista, Ilustraçãode s. Paulo, O Álbum Paulista).

Os esforços gráficos e editoriaiseram acompanhados pelo desenvol-vimento da publicidade. "Foi naqueleperíodo que surgiu a idéia de revistacomo negócio. Vingavam as de con-sumo. Revistas literárias eram conhe-cidas por durar pouco tempo, daí ainserção da literatura em outros tiposde publicação", diz Maria Luiza.Qualquer semelhança com os dias dehoje não é mera coincidência. •

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LIVROS

odebate estético e ideológico na MPBComo se deu a evolução da música popular nos anos 60

ALEXANDRE AGABITI FERNANDEZ A redefinição do estatu-to da MPB se dá em meio àoscilação paradoxal entre oestabelecimento de umacultura de protesto e de re-sistência ao regime militar ea consolidação de um pro-duto cultural valorizadoeconomicamente. Antes dogolpe militar de 1964, o ar-tista engajado atuava emduas frentes: no mercado eem organizações culturais

fora dele, não sem desconforto. Depois que osmilitares tomaram o poder, essas organizaçõesforam colocadas na ilegalidade e o mercado pas-sou a ocupar todo o espaço disponível.

Napolitano mostra como o nacional-popularmuda de registro, deixando de dar o tom da es-tratégia reformista para se tornar vetor da resis-tência. Com o advento dos movimentos da Jo-vem Guarda e do rock, a MPB vive um impasseentre ocupar o mercado e não perder as ligaçõescom a identidade nacional. Duas tendências seopõem, os "nacionalistas" e os "vanguardistas".Lúcido, o autor matiza a dicotomia entre ambos,evitando associar uns com o "conteúdo" musicale outros com a "forma". Em vez disso, ele preferefalar em "estilização da tradição" e em "revisãodos códigos musicais e poéticos da MPB".

Marcos Napolitano conclui o estudo sobre amúsica popular nos anos 60 com uma análise doTropicalismo - última etapa do processo de ins-titucionalização da MPB -, que surge desse im-passe e do esgotamento do nacional-popular co-mo eixo da cultura e da política. O movimentoassinala a passagem de uma cultura política dematriz romântica para uma cultura de consumo,em sintonia com a nova etapa do desenvolvimen-to do capitalismo no Brasil, confundindo a dico-tomia entre arte e mercado.

Durante a década de60: ~ literatura, amusica, o teatro e

o cinema foram espaçosprivilegiados de discussãoestética e política, numaépoca marcada pelo auto-ritarismo e pelo avanço damercantilização da cultu-ra. Em Seguindo a Canção- Engajamento Político eIndústria Cultural na MPB (1959-1969), MarcosNapolitano estuda a evolução da vertente maispopular da produção cultural da época, a músi-ca, a partir de uma perspectiva histórica que ado-ta como balizas a participação política e as de-mandas da indústria cultural. O trabalho foioriginalmente apresentado como tese de douto-rado à Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universidade de São Paulo (USP),em 1999. '

O autor analisa dez anos de debate estético eideológico em torno da música popular brasilei-ra (MPB), que a forjou enquanto instituição cul-tural. Evitando delimitar esteticamente a MPB,Marcos Napolitano esmiuça suas articulações so-ciológicas, históricas e ideológicas. A partir dosanos 60, as formas de consumo cultural do paísmudam: o mercado de bens culturais se moder-niza, ampliando seu poder de ação com a massi-ficação do disco e a generalização da televisão. Oautor estuda ainda o importante papel dos festi-vais da canção, realizados entre 1966 e 1968, nes-se processo.

À medida que se institucionaliza, a MPB vaise tornando uma "fonte de legitimação na hierar-quia sociocultural brasileira", passando a ocuparum espaço próprio, dotado de certa autonomia,que gera sua própria identidade e reconhecimen-to. O momento inicial desse processo é a eclosãoda bossa nova, em 1959, quando o compositorpassa a ter mais autonomia em relação ao seutrabalho de criação, assumindo a canção comomodo de reflexão sobre seu fazer estético.

"seguindoa canção"engajameI1!o poIiioo einWsIria cultural naMPB(195H969)

Seguindo a Canção -Engajamento Políticoe Indústria Culturalna MPB (1959-1969)

Marcos Napolitano

Annablume/FAPESP372 páginasR$ 25,00

ALEXANDRE AGABITI FERNANDEZ é jornalista e doutor emcinema pela Universidade de Paris III.

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LANÇAMENTOS

Demanda do Santo Graal: dasOrigens ao Códice PortuguêsAteliê EditorialHeitor Megale400 páginas / R$ 39,00

Escrito pelo grande especialistabrasileiro em literatura medieval,responsável pela edição da Demandaem português (esgotada, mas queserá reeditada em breve pela Ateliê),este livro é um guia valioso e de

grande erudição para se conhecer os meandros da históriamágica e simbólica da busca pelo cálice na Bretanha.Megale passa em revista as aventuras dos cavaleiros do reiArthur e de que forma elas foram retratadas. Esse, aliás, é ogrande atrativo do estudo: como se deu a trasmissão desseciclo de lendas e a sua eterna permanência.

Doenças das AvesFacta/FAPESPAngelo Berchieri Júnior e Marcos Macari490 páginas / R$ 140,00

Concebido com o apoio da FAPESP,este é um livro de referênciaobrigatório para todos osinteressados na avicultura.Reunindo uma equipe de 57especialistas brasileiros, é umasúmula definitiva das muitas

doenças que atingem as aves, incluindo tambémas formas de combatê-Ias por meio de imunologiae vacinas, cobrindo uma lacuna na literatura científica,já que o estudo dessas patologias é muito recente.

=- Economia Social no BrasilEditora SenacLadislau Dowbor e Samuel Kilztajn (org.)388 páginas / R$40,00

Com o objetivo de "colaborar paraa construção de um Brasil maisjusto e melhor", definição dada.pelos dois economistas nessareunião de estudos, EconomiaSocial no Brasil pretende discutir

temas fundamentais para o entendimento das grandesestruturas econômicas nacionais, comodistribuição da renda, pobreza, trabalho informal,emprego na agricultura, garantia de renda mínima,desigualdade social, sistema previdenciário, entre muitosoutros, tratados com profundidade por um grupode pesquisadores ligados ao Laboratório de EconomiaSocial (LES), da Pontifícia Universidade Católica de SãoPaulo (PUC-SP) e de outras instituições acadêmicas.

REVISTAS

Educação e Pesquisa2001 - volume 27

A revista da Faculdade deEducação da Universidade de SãoPaulo traz em sua edição maisrecente um artigo que levanta umaquestão polêmica: de que forma sedão as relações entre violênciae pesquisa na escola brasileira após1980. Do mesmo interesseé o artigo de Fúlvia Rosemberg

que examina a produção brasileira contemporânea sobreas articulações entre educação e gênero. Ioana Bahiaexamina o significado da evasão escolar na vida de umacomunidade de produtores rurais de ascendência alemã.Teima Ferraz Leal e Patrícia Santos da Luz, daUniversidade de Pernambuco, discutem a sua pesquisasobre a produção de narrativas em duplas de alunos.

Estudos de CinemaNúmero 3

Editada pelo Programa deEstudos de Pós-Graduação emComunicação Social da PUC-SP,

Es1udosdeCinema com apoio da FAPESP, a revista., traz nesta edição textos sobre a

0- produção e o estudo do cinemaedvc -__ para bem além do tradicional eixo'--------'

Rio-São Paulo. Entre os artigos:Panorama Histórico da Produção de Filmes no Brasil, deCarlosAugusto Calil; Bocage, o Triunfo do Amor:Registro de uma Cultura, de Djalma Limongi Batista; odepoimento Uma Vida de Ator, com Carlos AlbertoRiccelli; Modernismo Reacionário: o Cinema da DeusaImperfeita, Leni Riefenstahl, de Adriana Kurtz.

Comunicação e EducaçãoNúmero 21Teatro Brasileiro, Escola e Televisão,Educação para os Meios

A publicação do Curso de Pós-Gradução lato sensu de Gestão deProcessos Comunicacionais doDepartamento de Artes da ECA-USP traz nesta edição os seguintesartigos: Escola e Televisão: para

além dos antagonismos, de Iara Vieira Guimarães;Da Imagem Pedagógica à Pedagogia da Imagem, de AnitaLeandro; Multiculturalismo e Identidade: os Meios deComunicação e Escola, de Quartim de Moraes; CompositorMusical e Professor: Uma Visão Comparativa, de AguidaBarreiro; Ciberespaço e Violência Simbólica, de Paulo daSilva Quadros; e, entre outros, Por uma TV de Vanguarda.

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