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1 ARTUR MENDES PINTO MURGIDO NO PASSADO E NO PRESENTE

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ARTUR MENDES PINTO

MURGIDO NO PASSADO E NO PRESENTE

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PREÂMBULO Ao escrever estes apontamentos sobre Murgi-do, pretendo única e simplesmente, mostrar aos jo-vens atuais e deixar para os vindouros, uma amostra como a vivência na aldeia é hoje e de como terá sido no passado. Só consigo recuar no tempo até aos meus avós e tenho pena de não poder ir até mais para trás, mas naquele tempo, ninguém escrevia, mesmo que fosse mal como eu o faço agora. De geração para geração muitas coisas mudam e podemos os desta idade, constatar as mudanças que já se realizaram no nosso tempo. Para melhor, bem melhor. Ao conhecermos as dificuldades que tiveram os nossos pais e os nossos avós, não nos será difícil ima-ginar como terá sido para os que viveram muito an-tes deles. No primeiro e segundo capítulo, não sei se en-quadro bem as personagens no espaço e no tempo,

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muito em especial sobre o Tio Firmino, porque a his-tória narrada foi passada antes da minha existência e me foi contada, quando ainda era um garoto, por homens que provavelmente tinham mais idade do que eu tenho hoje. Os jovens de hoje são obrigados a levantarem-se bem cedo, porque bem manhã, uma camioneta os espera para os levar para a escola. Uma tarefa abor-recida levantar cedo.

Os de outro tempo, não tinham à sua espera uma camioneta, nem sabiam o que isso era, mas tam-bém se levantavam cedo, mas em vez de escola, iam descalços a caminhar sobre pedras e penhascos, tan-gendo os gados para as pastagens e em vez de sacola, levavam uma taleiga com a merenda, um naco de broa de milho e uma cebola rachada com sal. Não me acusem de saudosismo, mesmo gos-tando de recordar esses tempos, sinto-me muito feliz ao ver as transformações ali operadas, quer na habi-tabilidade, no modo de viver e pensar. Também des-fruto delas quando estou em Murgido.

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I

A semana começa chuvosa e fresca, as nuvens mais pardacentas do que nunca, de vez em quando, de forma sorrateira e enganadora, lá deixavam de mandar aqueles gélidos chuviscos, que pareciam que não molhavam, mas pouco tempo a levar com eles nas costas, tudo ficava ensopado, e, aparecia como que a fazer escárnio de quem estava cá em baixo, um leve raio de sol peneirado por entre as nuvens que desaparecia tão depressa como chegava, para man-dar uma forte bátega de chuva que fazia correr aqueles que se atreviam a confiar no que parecia ser mas não era. A Tia Rita Grila, que tinha mesmo de ir à horta buscar as couves para fazer o caldo, e, como a horta ficava perto, confiou na promessa de que a chuva ia dar uma pausa e para surpresa sua, foi apanhada na horta, já com um bom braçado de couves apanhadas, que davam para alguns dias. Tentou sair o mais de-pressa que pôde, a correr, correr como quem diz,

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aquela perna manca a não ajudar muito, mais seria a passo de caracol, até se esqueceu de fechar a cancela e já a meio de caminho, com a chuva a cair-lhe ca-beça abaixo, ao lembrar-se do que se tinha esquecido lá volta atrás fechar a cancela para impedir a entrada dos animais que passavam pelo caminho e ao verem verdes e frescas, não passariam sem ir fazer o seu re-pasto. Na sexta-feira o dia acorda pardacento, mas sem mandar pinga de água.

Ao olharem-se as nuvens, pareciam que esta-vam zangadas e travavam entre elas uma luta feroz, tão depressa se estendiam parecendo uma toalha rendilhada, como formavam enormes castelos que se esbarravam uns contra os outros, assemelhando-se às formas da terra, ou daquela serra, cordilheira atrás de cordilheira, outeiros e vales.

À noite, logo ao escurecer, começou uma chu-va suave, que até convidava a ir, depois da ceia, para debaixo dos cobertores e ouvi-la a bater no telhado de lousa vã.

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Onze horas, já toda a aldeia dormia, mas todos, velhos, novos ou crianças, saltam da cama e todos gritam, uns procuravam outros e saíam para a rua, onde os cães ladravam assustados, sem saberem a quê, em correria de um lado para o outro.

Os vizinhos perguntavam uns aos outros, o que tinha acontecido, mas ninguém sabia, não havia uma resposta, mas todos sabiam que tinham ouvido uma explosão, um estrondo que parecia que a terra tinha rebentado e que pelos buracos da parede das casas que eram de pedra tosca, entrou uma luz que deu a impressão de que tudo estava a arder.

Por isso, assustados saltaram da cama, fugindo para a rua descalços, os homens em ceroulas, as mu-lheres em combinação, as crianças com o que tinham vestido e essas, nada perguntavam, agarradas aos mais velhos berravam sem parar.

Algum tempo depois sem ninguém entender, porque ninguém entendia o que acontecera, mas pa-ra todos tinha sido o fim do Mundo, a terra tinha ex-plodido porque já diziam os antigos que o Mundo ia

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acabar e o fim seria com lume, pois já houvera o Di-lúvio no tempo de Noé. Não entendiam e cismavam, por que razão, aquele pedaço de chão não teria ardi-do e desaparecido, julgando que a terra teria acaba-do, assim pensavam, e logo cada um por si, ou em grupo rezavam ave-marias de agradecimento à Nos-sa Senhora dos Remédios, que com a sua garça prote-geu aquele chão e aquela gente.

Os corpos começaram a regelar e todos come-çam a recolher às suas casas e a enrolarem-se em roupas mais quentes, mas ninguém voltou a dormir, nem tão pouco se deitaram, aninhando-se cada um como pôde junto da lareira que entretanto acende-ram.

Alta madrugada, já bem para o romper do dia, novo susto, e desta vez sem clarão, levando-os a acreditar que não teria sido a terra que rebentou, mas sim o céu, porque de cima caía água a rodos, nada parecida com as fortes chuvadas a que estavam habituados, caía mesmo em forma de enxurrada, le-vando aquela gente a pensar que a profecia de que o

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fim do Mundo seria de lume falhara e esse fim vinha a caminho mas iria ser de água.

A tromba de água durou bem até meio da ma-nhã, parando surpreendentemente como começara, parecia que alguém a tinha fechado de supetão.

Munidos de agasalhos, mas receosos, alguns apenas saíram de casa e logo começaram a chamar outros para verem os caminhos, os mais fundos que pareciam autênticos ribeiros. Olhando em frente, pa-ra a encosta do Caunho, cada regato parecia um rio que corria desabrido em direcção ao vale.

Aflita, a Tia Amélia da Uz, gritava e pedia ajuda para irem acudir ao filho, ao Manel que era caseiro na Quinta da Castanheira, que ficava bem no vale para onde corria tanta água, e bem poderia já ter chegado à casa. Correram até lá, mas para além de encontrarem o que parecia ser um mar, ainda estava a uma boa distância da casa, e, ao lado, protegido no alpendre, estava o filho e a mulher, mas estavam prontos para fugirem mais para o alto se a água se aproximasse.

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A Tia Emília Monteira, também pediu ajuda para irem ao Ponto do Ribeiro em socorro do filho que morava numa casa muito pequenina, onde ape-nas cabia uma cama e uma ínfima lareira e ficava entre dois ribeiros, o que vinha do Penedo Galego, aquele que traria maior caudal, no entanto, ali se po-dia espalhar por toda a lameira do lado direito, mas o outro, que vinha do Cadaval, que apesar de ser de curto percurso, poderia ser mais perigoso por não ter espaço para expansão.

A casa tinha por baixo uma loja ao nível do caminho onde a água tinha já entrado, por sorte as ovelhas não tinham pernoitado ali, Já há mais de quinze dias que ficavam no Cruzeiro, numa loja do Tio Manuel da Carreira, para curtirem o estrume. O Jaquim Monteiro com a sua Domingas, embrulhados em trapos velhos, a tiritarem de frio, já tinham subi-do para umas hortas acima e poderiam subir mais se a enxurrada os empurrasse.

Passado o susto, parecia que tudo estava bem, mas por mais que cada um se quisesse esforçar a isso,

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aquele estrondo e o clarão que entrou buracos aden-tro dos velhos casebres, não deixavam de aflorar à memória de todos e de cada um.

O Tio Jaquim e Tio Manel, cunhados, novos e

robustos, subiam com muito receio e até medo, mas tinha de ser, ambos tinham as vacas no Dafonso que fica bem quase no fim da enorme encosta e precisa-vam ir lá, porque estavam receosos, quem o não esta-ria, para verem o que teria acontecido. Bem se enco-rajavam um ao outro, mas o susto fora tal que pare-cia que davam dois passos em frente e três para trás. Até ao Chãodacal foi um suplício, cada passo que da-vam na Calçada da Barreira, onde havia umas lojas subterrâneas. Pararam a olhar para elas, para aquelas furnas, ali existentes, que serviam para acolher os animais, eram muito usadas, porque eram quentes no inverno e frescas no verão, poderiam elas ter desaba-do, mas não.

Do Tio Manel ainda seria de esperar, que era mais frágil, temeroso, nada dado a aventuras, agora

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do Tio Joaquim, um homem forte, que parecia feito de aço, com uma fortaleza que partia pedra a murro, mas naquele momento era o mais borrado de medo, até que chegados ao Penedo Mosqueiro, olham para o fim da encosta e veem a espreitar, vindas do outro lado da serra, um montão de nuvens negras, em for-ma de castelo e ameaçadoras, que fazem com que o Tio Manel, tremendo e gaguejando, quer voltar para trás, mas aí, o Tio Joaquim, recupera o seu tempera-mento de aço e lhe diz que tinham que ir, mesmo que não voltassem de lá, mesmo que fosse a última vez que subiam aquele caminho, as vacas precisavam de ver os donos, também elas, estariam assustadas, ou quem sabe, se com o estrondo, que terá feito a loja tremer, poderia muito bem a porta ter-se aberto e andarem elas perdidas e desorientadas.

Ao chegarem à Fraga da Bouça, as pernas de ambos tremiam, receosos do que iriam encontrar, os nervos de aço do Tio Joaquim pareciam que enferru-jaram mais uma vez. Ambos precisavam de coragem e arrancaram-na do fundo das entranhas. Depois de

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subirem a encosta da Esteva da Ribeira, ao entrarem no caminho plano que os levava até ao Dafonso, novo desânimo, logo ali, bem perto, estava o imponente Penedo da Cova da Zorra, que na sua base tinha luras em toda a volta e algumas de largura significativa, ali residiam muitos animais selvagens conhecidos: como texugos, raposas e quiçá, lobos ou javalis, que com o abalo provocado pelo estrondo poderiam ter saído e andarem ali bem junto ao caminho e por via do susto se tornarem perigosos. Tal não foi o receio com o que lhes pareceu ser o fim do Mundo, que nem parecia deles, terem pavor de animais, que mesmo sendo bravios, ambos conheciam bem, porque os viam por lá, quase todos os dias.

Poucos metros mais à frente respiram fundo, porque o penedo não dava sinais de se ter mexido e os bichos selvagens, com susto ou não, estavam reco-lhidos. Dali já avistavam a porta das lojas e bem fe-chadas, as vacas não tinham saído. Abriram as portas e afagaram as cabeças dos animais, que estariam mais desejosos da presença dos donos do que nunca.

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Muitos, quase a maioria, até ficaram com re-

ceio de ir despejar o intestino, ou como se dizia por lá, cagar, até isso, uma necessidade fisiológica, tinha de ser bem programada, porque poucas eram as ca-sas que tinham junto uma horta, onde num canto mais escondido, desse para fazer de cagadeira. O que aconteceria se quando de cocaras, viesse um estrondo ou uma descarga de água como a que ainda tinham bem presente? Por certo se borrariam.

Poderá parecer às gentes que hoje vivem em Murgido, que isto não passa de uma balela sem nexo, que um incongruente se lembrou de divagar sobre o passado, mas não, as casas não tinham cagadeira e muitos para cagar no que era seu, tinham de ir para os seus campos e alguns ainda ficavam a alguma dis-tância, esses tinham de preparar o intestino para só funcionar pela manhã, enquanto outros, prepara-vam-no só para a noite, depois do escurecer, que fa-cilitava para não serem vistos.

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Como pontos mais usados para despejar a tri-pa, podemos indicar o serradouro, junto à Eira de Baixo, local que ainda existe, mas já não se serra ali madeira há muitos anos. Os serradores antes de ini-ciarem o seu trabalho, tinham de espalhar umas pazadas de terra e depois com uma sachola raspar tudo para um monte para não pisarem a trampa. Ou-tro local que servia de cagadeira noturna era a Bar-roca, que ficava bem escondida de um e outro lado e era um caminho público, mas só se passava ali com animais, fora disso, ninguém passava, porque um pouco mais acima pelo Quinchouso, havia dois car-reiros, um de cada lado até Fondevila. Quando por necessidade tinha de passar alguém pela Barroca, teria de olhar bem para onde punha os pés se não queria pisar o que não desejava.

O pior dos piores, era se o intestino ficava des-temperado, e com o estrondo ouvido e a tromba de água caída, muitos foram sujeitos a grande caganei-ra, isso acontece a todos, por uma ou outra razão e muitas das vezes sem razão nenhuma, a tripa revol-

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ta-se e para quem não tinha cagadeira, deveria ser um pouco complicado, só restava arrastar o penico, apontar-lhe bem o rabo, porque tinham de acertar, não podia cair ao lado e evacuar aí mesmo e se acon-tecia durante a noite, logo pela manhã, lá se viam, nomeadamente as mulheres, a saírem de casa segu-rando na mão, muito bem tapado com qualquer tra-po para ninguém ver o penico, muito menos o seu recheio, que iam despejar às hortas ou onde corresse um rego de água e que ficasse num local bem escon-dido.

II

Não tinha dentes, para mastigar as côdeas do pão de milho, que por norma eram duras e pior quando o pão já havia sido cozido há quinze dias. Tinha de as pôr a amolecer na água do caldo, mas não deixava de comer uns bons nacos de pão e umas boas malgas de caldo feito com as couves da horta, talvez fosse mesmo isso, que lhe dava tanta rijeza pa-ra enfrentar a dureza da vida. Mesmo sem ter muito

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para fazer, ainda o dia não tinha raiado e o galo mal cantara já o Tio Firmino andava pelos caminhos, mesmo que fosse frio ou chovesse copiosamente, em-brulhado numa croça, lá ia fazer a sua caminhada. Seria homem de poucas falas, não metia conversa com ninguém, para além da saudação ao cruzar-se com algum vizinho e seria sempre ele a saudar pri-meiro, o que causaria alguma estranheza aos vizi-nhos, porque andando ele sempre a olhar para o chão para não tropeçar em nenhuma pedra, era ele que sempre via o outro primeiro.

Ninguém sabia a idade dele, nem ele próprio saberia quantos anos tinha, só sabia, dizia quem o conheceu, que já tinha visto e passado por muita coi-sa, que da sua criação já há muito tempo, todos ti-nham viajado lá para o outro lado, para longe, muito longe, talvez para o Céu.

Diziam que era um homem sábio, sabia de tu-do; sobre culturas; sobre os gados e o tempo. Não ha-via ninguém na aldeia que não tivesse um carinho especial para com ele e não lhe pedisse conselhos.

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Era Domingo, o estrondo e a tromba de água ainda estavam bem frescos na memória de todos. Junto à fonte encontravam-se uma meia dúzia de pessoas, que entre elas, discutiam os acontecimentos; para uns, seria um sinal de que o Mundo estava a chegar ao fim; para outros, teria sido um tremor de terra, que fez rebentar lume e em seguida rebentar as nuvens.

Em passo lento e a olhar para o chão como o seu costume, vem dos lados de Cimodevila o Tio Fir-mino, que parou a ouvi-los e riu-se dos disparates que ouvia. Um dos presentes, aquele que não confia-va na sabedoria daquele idoso, por pensar que tudo o que dizia não passava de tonteira de velho de idade desconhecida, talvez dado à sua juvenilidade, o ques-tiona sobre o acontecido. Continuando com o mesmo sorriso, disse-lhe que sabia muito bem e até estava admirado de ainda o não terem questionado, prova de que todos estavam incrédulos, pois o que aconte-cera não tinha sido mais nem menos do que já havia acontecido há muitos anos, e se não eram capazes de

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discernir sobre tal acontecimento era porque dormi-am a bom dormir, se tivessem ouvido o que tinha vindo antes, saberiam o que acontecera.

Ficam boquiabertos ao ouvirem o homem que tinham como um sábio e um dos presentes, solicita para lhes dizer o que tinha acontecido.

Procurou a primeira pedra para se sentar, para dar folga às pernas já cansadas e começou: - antes daquele grande estrondo, passaram sobre a aldeia uns ligeiros trovões, que não ouviram porque dormi-am e depois rebentou mesmo sobre o lugar aquele estrondo, que não foi mais nem menos do que um forte trovão e o lume que entrou pelos buracos das casas foi uma faísca que caiu bem no meio da aldeia, mas por sorte não atingiu nenhuma casa, a tromba de água que se seguiu foi resultado do trovão que apavorou todos, mas se tivesse acontecido de dia, não teria causado tanto mistério, assim como todos dor-miam, pareceu-lhes mesmo o Mundo a desabar.

Todos ficaram embasbacados ao ouvirem tão sábia explicação e fazia sentido, pois tudo não passa-

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ria de uma trovoada e um trovão mais forte mesmo em cima da aldeia quando todos dormiam baralhava tudo e sempre que em anteriores trovadas vinham os lampejos, diziam os antigos, que com o lampejar caía uma faísca e se enterrava na terra, não mais sendo vista, faísca que seria um diamante e se alguém o en-contrasse ficaria muito rico, mas parece, que nin-guém, alguma vez, enriqueceu por esse processo.

Não duvidaram do saber daquele homem, que não sabia a idade, sendo a explicação aceite por to-dos, não puseram nada em dúvida, até o mais des-crente terá mudado de opinião sobre a sabedoria que a vida deu aquele homem.

Das muitas histórias teve conhecimento quan-do era novo, contadas por pessoas também de idade desconhecida como a dele, que também como ele, teriam de pôr as côdeas de pão a amolecer no caldo.

Por vezes, aqui ou ali alguém contava um feito passado, que quando, ou nem se sabe já, por ter sido no passado, teria acontecido uma coisa ou outra, mas que dado ao desconhecido era desacreditado, diziam

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alguns, isso era impossível, balelas diriam outros, no entanto, se tivesse sido o Tio Firmino a contar acredi-tavam.

III

Um terá sido o primeiro. Quem? Provavelmen-te já ninguém sabe. Mas como teria sido com esse? Quem lhe teria mandado a carta de chamada? Vivia-se mal naquela aldeia, os mais afoitos, tentaram me-lhor sorte e porque diziam que bastava abanar a ár-vore e as patacas caíam, lá se aventuraram a emigrar e muitos partiram, partiram bem para o outro lado do atlântico, que nem sabiam o que era, nem como seria caminhar dias e dias, num barco provavelmente pouco aconchegante, rodeados por uma imensidão de água, que vez alguma imaginaram existir.

Quantos se terão achado perdidos e se terão arrependido de terem partido, mas já nada havia a fazer, precisavam de paciência, porque o Brasil, ain-da estava muito longe.

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Uns foram e voltaram, outros até casaram por lá e trouxeram filhos, mas foram poucos, porque ou-tros, não tiveram retorno, nunca mais viram a família que deixaram, nem a terra que os viu nascer. Todos tiveram como ponto de chegada São Paulo ou o Rio de Janeiro, à exceção de um, que terá ido para o local onde nascera, porque tinha nascido ali e vindo com os seus pais que regressaram. Essa parte do Brasil, onde nascera, será provavelmente no interior, cujo estado ou cidade, não eram sabidos em Murgido, era simplesmente designado por roça.

Para o Brasil, normalmente iam jovens, com idade entre os dezoito e os vinte e cinco anos e quase só homens solteiros, excetuando um ou outro casal e poucas mulheres.

Precisavam de ter lá um familiar ou amigo que lhe mandasse a carta de chamada, porque sem essa carta, não eram autorizados a sair do país, carta que não era mais do que um termo de responsabilidade. Ficava o chamador responsável em lhe arranjar ha-bitação e trabalho.

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Quando cada um partia, era um dia triste na aldeia, muito em especial para a família e amigos. Despediam-se com a mesma dor como quando al-guém partia por morte. Era forte o pesar de quem partia como de quem ficava, tinham quase como cer-to de que alguma vez mais se iam voltar a ver. Os que iam tinham pela frente um mundo desconhecido, não conheciam bem o seu país, muitos nunca tinham saí-do da sua terra para uma distância de mais de vinte quilómetros, os que ficavam apenas sabiam que os que partiam iam para o Brasil, mas desconheciam que era noutro continente, lá muito longe.

O início da caminhada, sempre acompanhada, normalmente pela pessoa da terra mais acostumada a viajar, por aquela que já tinha ido ao Porto ou a Lis-boa, já tinha visto os barcos e o mar. A caminhada até à Ponte da Ribeira, era feita com um afrouxar de pernas, parando aqui e acolá, com várias tentativas de voltar para trás, valendo-lhe o encorajamento do acompanhante, que se via, por vezes, obrigado a ter de os empurrar para a frente. Durante o primeiro

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tempo de caminho, tudo se tornava mais difícil, por-que até a eles, ainda chegava o choro dos que fica-ram. Chegados à estrada, vinha a camioneta que os levava até ao Porto, para apanharem o comboio até Lisboa.

O primeiro deslumbramento, o cais onde se

encontravam vários navios, entre os quais aquele em que iam embarcar, ali em cima da água, bem encos-tados ao paredão e ali tanta gente à espera de ordem para embarcar, que se espalhava por todo aquele lar-go, uns abraçando outros, mães abraçando filhos, ir-mãos abraçando irmãos, só quem era de Murgido, tinha única e simplesmente a pessoa que os acompa-nhava, que estava ali para os orientar, para lhes ensi-nar o caminho e não para se despedir, mas era o que lhe dava o último abraço.

Por fim ordem para o embarque e embarca-vam, quem os acompanhava ficava fora, retornava à sua terra.

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Que coisa para onde entravam, muito maior do que a casa onde sempre viveram. Um homem com uma farda, depois de ter despachado a trouxa que levavam, para um sítio que dizia ser o porão, condu-zia-os a uma espece de quarto ao qual chamava ca-marote, mostrava-lhes uma sala e dizia-lhes que era ali que iam tomar as refeições, depois levava-os a um andar superior, a um corredor ao qual chamava con-vés, já pejado de companheiros de viagem, a dizerem adeus para os que tinham ficado no cais.

Algum tempo passado, coisa estranha, a terra tinha desaparecido, de um e outro lado, nada mais restava do que água e mais água. Que teria aconteci-do à terra? Perguntariam a si próprios. Num ou nou-tro canto lá se encontrava alguém, tão abismado, tão perdido, o que originava meter conversa, falar do desconhecido, do desânimo, mas reforçando a espe-rança, dando origem a um cimentar de amizade para a viagem, para afastar a solidão.

Seguiam-se noites e dias e aquela coisa enorme a balouçar por entre as ondas, que metia medo, ape-

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sar de já ser puxada por um motor, bem diferente de alguns anos antes, que seguia pela força do vento.

Por fim terra à vista, iam-se aproximando dela e aquela coisa atracava, todos saíam e ali tinham à espera, o tio, o primo, o cunhado do tio, a sogra do vizinho, quem tinha mandado a carta de chamada, seguiam para o destino, aí as dificuldades aumenta-vam, era preciso arranjar trabalho, havia as dívidas contraídas com a passagem para pagar, arranjar tra-balho, mesmo sendo no Brasil não era fácil e só os trabalhos que outros rejeitavam estavam disponíveis, para muitos, logo aí, morria a esperança de um dia voltarem ricos à aldeia onde nasceram.

Houve também os que partiram casadoiros, de namoro firme, mas partiram sós, deixando o casa-mento marcado, que se realizava alguns meses pas-sados, com um procurador a fazer de noivo, para de-pois ser o marido a mandar a carta de chamada, aguardada ansiosamente, porque para além de outras saudades, a lua-de-mel estava por fazer.

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IV Tal como em qualquer outra aldeia, em Mur-

gido havia os pequenos agricultores. Os que traba-lhavam as suas terras, no meio em que viviam eram consideradas ricos, mas havia também os caseiros que fabricavam a terra dos outros.

Dividia-se a aldeia por duas classes: ricos e po-bres; os pobres eram aqueles que para além da casota onde viviam nada mais tinham de seu e trabalhavam como caseiros ou à jorna.

Os jovens, principalmente os das chamadas famílias ricas, tinham a sua liberdade dificultada aquando na altura de arranjar namoro, não poder ele ou ela, namorar com um de uma classe diferente, os pais, chamados ricos, queriam para o filho ou filha, quem tivesse um dote, pelo menos igual, muito me-lhor se fosse superior.

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Quando fulano namorava com fulana, se os dotes se equilibrassem, havia o contento de todos e os pais babados, logo queriam casá-los, caso contrário, estalava-se uma guerra feroz, muito mais dificultada para as raparigas, se alguma começasse a namorar um rapaz da classe pobre, por imposição dos pais terminava imediatamente o namoro, ou sofria os maiores castigos, incluindo a proibição de sair sozi-nha, de ir a bailes, de conviver com os da sua idade e se teimava, se resistia à vontade paterna, nada mais lhe restava, do que com a ajuda de alguma comadre, porque havia sempre quem estivesse para a ajudar, para levar recados, servir de alcoviteira, fugir com o namorado, andarem por palheiros até que alguma das família os aceitasse, que por norma era sempre a mais pobre a primeira, porque a outra, sentia-se tão ferida no seu orgulho, que por vezes levava anos.

Depois de aceites por uma das famílias, tinham de casar no menor tempo possível, porque não podi-am viver em pecado, mas também não podiam fazer

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um casamento normal, porque tinham pecado antes do casamento.

Depois de tudo tratado com o Senhor Abade, lá iam os dois, caminho abaixo, até à Igreja Matriz, on-de se realizava o enlace religioso e os tirava do peca-do e a partir daí já podiam viver como um casal normal, aceite por todos os vizinhos, mas não tiveram boda nem convidados.

Acontecia em algumas das vezes, rapaz ou ra-pariga, se filho único, e tinha um bom dote previsível, ser disputado, não por um namorado ou namorada, mas pelos pais, que eram sempre eles que escolhiam e se fosse perguntado a alguns namorados, porque namoravam, desde quando, não sabiam responder, muito menos o que era amor.

Era norma, nas vésperas do casamento, os noi-vos irem confessar-se. Iam juntos, embora a conversa com o Senhor Abade fosse em separado. Contava-se que numa determinada altura, o Senhor Abade terá perguntado a um noivo se casava por amor ou por-que gostava da noiva. Depois de pensar um pouco

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responde: por amor, só pode ser por amor. O Senhor Abade em face da resposta interroga: Porque só pode ser por amor? O noivo responde: só pode ser por amor, porque eu não gosto dela nem um bocadinho.

V

O dia amanhecera bonito. Manhã bem cedo, entre o lusco-fusco, o céu bem estrelado e sem nu-vens, a prometer um lindo sábado primaveril. Quem àquela hora passasse pelo Pisão e muitos eram, por-que quase todos madrugavam, eram surpreendidos pelo Manel que de tronco nu, servindo-se do tanque de água limpa, para o qual a fonte brotava, água que se destinava para que os animais ali bebessem, muni-do de um bom bocado de sabão se lavava cuidadosa-mente da cintura para cima, pois tinha de se apre-sentar bem lavado, para daí a pouco, ir fazer a barba, estando já o barbeiro à espera e a amolar a navalha.

Não podia perder tempo, porque a hora do al-moço, a primeira boda chegava depressa, aí por volta das dez horas e ainda tinha de ir vestir o seu fato de

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noivo, calçar os sapatos, pôr a gravata e o chapéu, não podia descuidar-se pois os seus convidados num ápice estavam prontos e não podiam deixar a noiva e os seus convidados esperarem, era esse o uso, o noivo passar com os seus pela casa da noiva e depois todos em conjunto seguirem caminho abaixo até Candemil, o noivo à frente e a noiva à retaguarda.

Até à Ponte da Ribeira, caminho tortuoso, cada um seguia como podia, procurando o melhor chão para por o pé, para não estragar os sapatos. Ao che-garem à estrada, aí todos se perfilavam, seguindo pe-la mesma ordem, ocupando metade da faixa de roda-gem, deixando a outra para os automóveis.

Ao chegarem a Candemil, ao rompimento onde saíam da estrada em direção à igreja, umas tantas senhoras daquele lugar os esperavam para verem o cortejo nupcial.

A entrada na igreja era feita com os noivos à frente em direção ao altar, onde o Senhor Abade já os aguardava. Todos se acomodavam e o celebrante ini-ciava a cerimónia, dissertando sobre a responsabili-

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dade daquele acto, chamando a atenção de forma para que não houvesse dúvidas sobre a responsabili-dade que um e outro iam assumir.

Como quase sempre acontece, os convidados, de forma o mais secreta possível lá começavam a se-gredar, sobre este ou aquele assunto, muito em espe-cial as mulheres, pois era ali, depois de uma boa ca-minhada, onde estavam mais próximos e sempre ca-da uma a pensar que ninguém notava porque esta-vam entretidos a ouvir o celebrante e assim aprovei-tavam para criticar ou elogiar esta ou aquela sobre a forma como ia vestida, se estreava roupa nova ou se a que usava já tinha usado num ou noutro invento.

A paciência por vezes cansa até os santos e o padre, apesar de ser tido por todos como um santo homem, apesar de já ser de idade um pouco avança-da, ainda com bom ouvido, interrompe a sua disser-tação, e bem ao contrário do usual, levanta a voz e diz: - estamos numa cerimónia religiosa na casa de Deus, deixem o corte e costura para depois, porque ali só ele e os noivos falavam, caso alguns assim não o

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quisessem entender, pedia por favor para saírem da igreja. Por respeito, vergonha ou nem uma nem ou-tra, ninguém mais se atreveu a desviar os olhos e os ouvidos para além do acto que se realizava.

Dito o sim, mesmo sem troca de alianças, por-que naquele tempo não se usava naquela terra, lá saíam os noivos a abrirem o cortejo, que era esperado por algumas senhoras de Candemil que deitavam flo-res aos esposados.

Seguia o ajuntamento devidamente organizado com os esposados à frente.

Pouco tempo depois em Murgido, um foguete estoirava no ar. Não havia casamento em que não fossem deitados pelo menos, dois foguetes. O primei-ro foguete era para avisar que o ajuntamento do ca-samento chegava ao Iteiro, onde era esperado pela tocata, concertina ou instrumentos de cordas que a partir daí seguia na retaguarda a tocar e uma senho-ra da família ou não, com um grande saco de bolos de trigo, seguia junto da esposada, para que esta cumprisse a tradição de dar um bolo de trigo a cada

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mulher que se aproximasse do caminho, enquanto o esposado oferecia a cada homem um cigarro e não era um cigarro qualquer, igual ao que os fumadores dali usavam, que era preciso desenrolar o cigarro e enrolar de novo antes de o acender, aquele era um cigarro feito, dos de cu aberto e todos os homens aceitavam e fumavam, mesmo os não fumadores, era um privilégio fumar um cigarro do casamento e ha-via aqui uma particularidade, os rapazolas que esta-vam naquela fase de entre o rapaz e o homem, se re-cebiam um cigarro do esposado, sentiam-se vaidosos e fumavam-no mesmo na frente dos pais, sem serem repreendidos, era um cigarro do casamento não pa-recia mal. O segundo foguete era lançado para o ar no fim da boda, para anunciar que ia começar o bai-le, por isso, já todos podiam ir e ninguém faltava, porque não era um baile qualquer, era o baile do ca-samento e nem todos tinham visto a chegada dos es-posados.

Era natural, se o não era, assim o parecia, mais os vizinhos do que os recém-casados, contarem o

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tempo e a mulher era, poucos meses passados, diari-amente observada, ai dela, o que não diriam as outras se a barriga não começasse a crescer. Estaria o novo casal, mesmo que não fosse essa a sua vontade, obri-gado, passados noves meses, a ter um filho.

VI

Naquele tempo em Murgido, todos os casais ti-nham muitos filhos, mas dado ao isolamento a que a aldeia estava votada, muitos não vingavam, ou me-lhor, só terão vingado os mais resistentes, porque os mais frágeis, mal fossem atacados por qualquer ma-leita pereciam. Não havia qualquer possibilidade de tratar a maleita, o médico ficava longe, tudo ficava longe.

Havia até casais que perdiam todos os filhos, poucos dias após o nascimento, lá ia mais um anjinho para o céu.

Qualquer funeral era sempre visto com algu-

ma tristeza, mas o de um anjinho, para além da dor

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dos mais próximos, era visto como um, que tinham a certeza de que ia para o céu, e esse funeral, para além do Senhor Abade e do homem da Cruz, só era acompanhado por crianças e do sexo masculino, mesmo que o anjinho fosse do sexo feminino, assim como ao funeral de adultos as mulheres não iam. Não havia criança masculina que faltasse, tendo como limite de idade a sua robustez, pois tinha de ser capaz de fazer a caminha entre Murgido e Candemil. Al-guns ainda eram tão pequenos que a opa arrastava pelo chão, mesmo havendo opas para crianças.

VII

Não era sempre, mas durante uma determina-da época do ano a corneta tocava todos os dias entre as oito e as nove horas. A corneta era o sinal que era dado a toda a aldeia de que estava na hora para ir botar o gado, os pastores estavam prontos e iam a caminho do Chãodacal.

O local para tocar a corneta era a Eira da Uz, bem junto ao malhadouro, onde ela estava escondida

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num buraco que todos conheciam. Era um local alto e daí o som da corneta chegava a toda a aldeia e logo um membro de cada família, seguia a caminho do Chãodacal, para abrir a porta às suas cabras ou ove-lhas, para irem para a serra. Quase todas as famílias tinham no Chãodacal a sua loja onde tinham o gado miúdo.

A corneta era tocada por um dos pastores, por norma eram dois, tarefa que corria por todos, cada um ia nos seus dias, ou seja quando chegava à sua porta e como na altura a aldeia era pequena, a vez de cada um demorava mais ou menos quinze dias. Havia quem tivesse de ir mais de um dia, dependia das ca-beças de gado que tinha.

À noite não havia corneta, mas como de manhã lá iam barreira a cima, para cumprirem a tarefa que designavam “ir ao gado”, onde cada um verificava se todos os seus animais tinham chegado, porque vezes havia que ficavam perdidos na serra e havia que os ir procurar.

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Não era todo o ano que a corneta tocava, ape-sar de todo o ano sair a vezeira e sensivelmente há mesma hora, mas só quando havia crias novas que ainda não saíam com as mães para as pastagens, fora dessa época só era preciso ir à noite meter o gado, porque eram os pastores que abriam a porta de todas as lojas e os animais juntavam-se no local denomi-nado as Fragas, onde aguardavam a indicação dos pastores para saberem o caminho que haviam de se-guir, na direção do Penedo Mosqueiro ou da Legoi-nha, tal não era o seu amestramento.

A ida ao gado tornava-se num acto social, por-que enquanto esperavam que o gado chegasse, aglo-meravam-se em pequenos grupos perto das suas lo-jas e depois de recolherem os animais juntavam-se quase todos no local denominado Rossio, onde per-maneciam por algum tempo em amena cavaqueira, e cada um se queixava se algum dos seus animais não tivesse chegado.

Depois todos desciam a Calçada da Barreira em grupos até ao Cruzeiro, onde se dividiam uns pa-

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ra Cimodevila e outros para Cabodevila. Era também enquanto esperavam pela chegada do gado que a ca-chopada aproveitava para jogar a cabra cega.

VIII As gentes de Murgido eram ao tempo de uma

robustez admirável, resistiam às fortes intempéries que fustigavam aquela serra, mesmo desprovidas de bons agasalhos e as casas que habitavam eram des-confortáveis, com buracos nas paredes por onde en-trava o frio e para se taparem durante a noite usa-vam umas mantas feitas de trapos que não aqueceri-am muito, poderá aqui não se compreender muito bem, se Murgido era uma aldeia onde quase todos ti-nham as suas ovelhas, e sendo uma terra tão fria, não aproveitarem a lã para fazer agasalhos e bons cober-tores, mas não, a única coisa que faziam da lã que tosquiavam, era uns meotes ou coturnos, a restante era para vender para a ajuda na compra do azeite e

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do sal, porque esses alimentos tinham mesmo de comprar.

Era uma aldeia, perdoem-me por pôr o verbo

no passado, porque hoje já nada é assim, vocacionada para a agricultura do milho, mas também, em menor monta, se cultivava o centeio, o trigo e linho.

O trigo era malhado nas Eiras de Baixo, da Uz ou de Cimadolugar e para tal havia que obedecer a alguns preceitos: era preciso borrar a eira para o tri-go não ficar com areia; o trigo era colocado na eira em duas filas paralelas com as espigas sobrepostas; depois dois grupos de homens, um de cada lado, ma-lhavam com os manguais, em cima das espigas e fa-ziam-no ordenadamente, mas a determinada altura empolgavam-se de tal forma feroz para ver qual era o grupo que dava a pancada maior.

O linho também tinha as suas fases interessan-tes: a barrela, fiar, dobar, ensarilhar e novelar, traba-lho que era executado pelas mulheres que quase sempre, faziam-no a cantar lindas cantigas.

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Havia uma particularidade em relação ao li-nho, nas travessuras da noite de São João, os rapazes costumavam irem-se rebolar no linho, o que deixava os seus donos chateados, porque se a planta já esti-vesse em fase adiantada, acabava por quebrar e cau-sava prejuízo.

IX

Em Murgido no tempo em que era uma aldeia isolada, poderá muito bem dizer-se isolada do Mun-do, como muitas outas o seriam, os seus habitantes eram alegres, divertidos, tinham as suas tradições se-culares que cumpriam religiosamente, tais como: as vividas no Entrudo, a Serra da Velha, as travessuras do São João e sei lá que mais.

O Entrudo ou Carnaval começava com a se-mana dos amigos, seguindo-se a semana das amigas, a semana dos compadres e a semana das comadres, que tinham como dia principal a quinta-feira.

Havia uma certa rivalidade entre homens e mulheres, no bom sentido claro, mas na semana de

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cada um, enquanto uns diziam que era a semana da fome, os outros diziam que era a semana da fartura e na quinta-feira sempre haveria uma melhoria no almoço, uma linguiça pelo menos.

Na quinta-feira de compadres as raparigas lá faziam valer a sua força e queimavam o compadre, um boneco feito em papel colorido, mas faziam-no de uma janela onde estavam devidamente protegidas, caso contrário, os rapazes rasgavam o compadre e não o deixavam queimar e mesmo assim, se não trancassem bem todas as portas e janelas eram sur-preendidas por eles.

Os rapazes na quinta-feira de comadres tam-bém faziam a queima das comadres, eram sempre mais do que uma e faziam a sua brincadeira à qual chamavam a corrida das comadres.

As comadres eram feitas pelas mulheres e fazi-am-nas com o maior prazer. A corrida começava ao fim do dia da quinta-feira e no Chãodacal. Até aí os rapazes que transportavam as comadres iam à-vontade e até mesmo acompanhados pelas raparigas.

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Depois do início da corrida que percorria todos os caminhos da aldeia, travava-se uma luta feroz en-tre rapazes e raparigas, elas tentavam rasgá-las para não serem queimadas e eles tudo faziam para não as deixar tocar-lhe. O pior local de passagem era no caminho da Carreira, onde as raparigas que não se-guiam a corrida, acompanhadas com mulheres já casadas, faziam uma barreira que era difícil de transpor, mas por vaidade os rapazes não mudavam de caminho e tinham de passar ali e por vezes, uma ou outra ficava ali esfrangalhada e se algum dos ra-pazes se deixasse agarrar pelas mulheres, não se li-vrava de ser levado por elas até ao Pisão, onde o me-tiam dentro do tanque deixando-o bem molhado.

As comadres que escapassem eram queimadas no Espinheirinho, mas para isso, tinham de fazer uma forte barreira para segurar as raparigas que tu-do faziam para as não deixar queimar.

Na terça-feira de Carnaval para além do res-petivo bailarico havia as mascaradas.

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Os rapazes vestiam-se de mulher e as rapari-gas de homem, de cara tapada para não serem reco-nhecidos, não faltando o mascarado que chamavam de Roto Farrapilha, era o terror da pequenada, por-que se vestia de roupas muito rotas e cheio de choca-lhos pendorados.

Na noite da quarta-feira do meio da quaresma,

os rapazes faziam a serra da velha, a todas as mulhe-res que achavam que eram velhas, indo à sua porta e numa lata roçavam com um pau a fingir de serra e gritavam “aí avozinha que me davas tanta côdiazinha e agora não me dás nada”.

Depois vinha o São João, que para além de di-

vertido, tinha as suas travessuras. Na Eira de baixo era feita uma cascata com

uma caniça de carro de bois que cobriam com lindas flores, improvisavam no interior uma fonte e coloca-vam lá a imagem de São João e por vezes era feito ali um bailarico. Alta noite, os rapazes solteiros iam tirar

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os vasos de flores das raparigas e iam colocá-los na capela junto à torre ou na fonte quando já não havia lugar na capela. Iam roubar cerejas onde as houvesse e alguns traziam lindos ramos que iam pendurar na porta das suas namoradas e aqui entrava a maldade ou talvez o ciúme, porque outro rapaz que andasse embeiçado pela mesma rapariga, esperava que o na-morado se fosse embora dali e ia lá tirar as cerejas e prendia lá um burro. Eram também nessa noite tran-cados os caminhos, usando tudo que desse para isso; troncos de madeira, carros de bois e tudo o mais que servisse para impedirem que na manhã seguinte al-guém conseguisse passar.

X

A serra, em tempo bom, aquém ou além, num outeiro ou num vale tinha gente. Por um ou outro caminho lá se ouvia o chiar de um carro carregado de mato ou lenha.

Ao falarmos de um carro carregado, há que fa-zer uma homenagem às bravas e valentes mulheres

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de Murgido. Uma carrada de mato ou lenha, para além do carro e das vacas, tinha de ter, pelo menos, duas pessoas, a que seguia à frente das vacas e outra na retaguarda que puxava por duas cordas, uma pa-ra não deixar que o carro tombasse e para isso era preciso ter força, ter pulso e os caminhos eram si-nuosos e por vezes só um braço forte impedia que a roda levantasse e o carro se voltasse de rodas para o ar, a outra ligada ao travão, uma chapa adequada para o efeito, enrolada ao eixo do carro, que se fosse necessário, fazia parar o carro na mais ingreme des-cida. Essas duas pessoas na maioria das vezes eram o marido e a mulher, ele à frente e ela à retaguarda com as duas mãos nas cordas com uma força de guerreira.

Com a chegada de Abril, vinha o tralho duro

de quem trabalhava o campo, as beçadas sementeira do milho, Era preciso preparar as terras, estrumá-las e lavrá-las. Depois de fins de Maio, mesmo com um trabalho contínuo, era mais suave, as sachas e depois

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a rega, por fim o Outubro muito atarefado com o corte do milho e as esfolhadas, as espigas tinham de estar no canastro antes que viessem as chuvas.

XI Dizia-se em Murgido entre os lavradores, e, a

palavra lavrador ali era empregue ao pequeno agri-cultor, aquele que trabalhava os seus campos ou co-mo caseiro, que fraco era o lavrador que por ano não comesse sete carros de estrume o que significava que era um razoável agricultor e que tratava bem das su-as terras, que estrumava muito.

O estrume que saía das lojas dos animais vinha muito sujo e bem curtido e quanto mais curtido me-lhor era, mas também mais sujava as mãos e as rou-pas, quando se tirava da loja, se carregava o carro e se espalhava no campo.

Dizia-se também que fraco era o mês de Maio que não rompesse uma croça. Para que o mês de Maio fosse bom tinha de chover muito e como era o

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mês em que a sementeira do milho tinha de ser feita quer chovesse quer não e trabalhar na beçada com uma croça pelas costas, não havia croça que resistis-se.

A croça era uma capa feita de junco parecida com o capote alentejano, que protegia da chuva e do frio. Comprava-se nas feiras e por norma não durava mais do que um ano. No inverno era usada todos os dias e mesmo num forte dia de chuva não deixava que se molhassem, usavam também um capelo e umas polainas.

As polainas eram também feitas de junco e quase todos os homens as sabiam fazer, uns ensina-vam outros, e aqueles que as não faziam, nem sempre era por não saberem, mas por falta de tempo ou pa-ciência para irem para o monte colher o junco, cuja planta só se dava nos vales e não em todos.

O capelo era feito de lã que era tecida em manta, mais ou menos com a largura das costas e uma manta dava para fazer vários capelos. Quem comprava a mante fazia os capelos, cortando-os com

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um comprimento para dar até ao meio das costas, cosendo-os num dos lados em forma de capuz. Eram usados para a chuva e para o frio, porque protegia a cabeça, orelhas e pescoço e também o usavam quan-do carregavam às costas, molhos de erva ou outros. Por norma iam comprar a manta para fazer os cape-los à feira de Santo André em Mesão Frio, no mês de Novembro

XII

É costume dizer-se que mudam-se os tempos mudam-se as vontades, as vontades não sei se terão ou não mudado em Murgido, algumas talvez, mas os costumes, esses terão mudado.

Até por volta dos anos trinta do século passado, em Murgido, quando um rapazote atingia dezoito anos compravam-lhe uma racha, que não era, nem mais nem menos, do que uma vara, da grossura de uma bengala, mas da altura de um homem. Talvez o nome daquela vara derive do facto de acertando com ela numa cabeça a racharia.

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Todos os homens, nomeadamente os mais no-vos tinham uma certa vaidade na sua racha que usa-vam sempre que se deslocavam para qualquer local que fosse para fora da terra e mesmo na terra, nome-adamente aos Domingos lá andavam de racha na mão, dava-lhes uma certa autoridade e tinha que ser de pau de lodo, porque vergava, ou seja, conseguiam curvá-la até juntar as extremidades e não partia.

Usavam-na para jogar o pau amigavelmente e também como defesa pessoal. Havia muitos barulhos, nome que davam às brigas entre rivais e por vezes nem rivais eram, mas era importante mostrar quem melhor sabia usar a sua racha nas costas dos outros.

As aldeias da Póvoa e Murgido sempre foram

amigas, as suas gentes se davam bem, mas de vez em quando, entre uns e outros, havia grandes barulhos e por vezes, resultava que houvesse cabeças partidas, mas não deixavam de continuar amigos.

Os rapazes de uma aldeia iam aos bailes da ou-tra e como iam sempre munidos da racha, ao mais

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pequeno desentendimento, após saírem da sala do baile lá havia pancadaria rija, no entanto, tinham por vaidade não acertar na cabeça do adversário, consi-deravam isso uma mestria, aquele que acertasse na cabeça do outro, em vez de acertar nos ombros ou nas costas, era considerado um mau jogador de pau.

Contou-me o Tio Joaquim Florindo, quando eu ainda era rapazote que no dia da Romaria da Senho-ra do Corvacha havia sempre barulho entre os razes de Murgido e os da Póvoa, porque estes, tinham de passar em Murgido e no regresso faziam-no de for-ma provocatória. Num determinado ano, após passa-rem chandeirada, os rapazes da Póvoa que seriam em número muito superior, começaram numa algazarra triunfante e já na romaria tinham feito troça dos ra-pazes de Murgido.

Os rapazes de Murgido por se sentirem vexa-dos vieram embora antes dos da Póvoa e em Murgido juntaram-se a outros e quando os da Póvoa regressa-vam, uns esperaram-nos bem de frente no caminho dos palheiros, enquanto outros se esconderam no

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Pousão e logo que eles passaram a casa apareceram-lhe por detrás e de um lado e doutro, deram-lhe um grande enxerto de pancada, que os levou a saltarem para o campo que fica do lado de baixo e a rende-rem-se.

Após a rendição, os de Murgido acompanha-ram-nos até ao Moinho Velho, com o maior respeito e amizade e todos se despediram com um aperto de mão, mesmo que alguns fossem bem amachucados.

Fora dessas picardias qualquer homem ou ra-paz de uma aldeia podia ir à outra que era muito respeitado, mesmo por aqueles que dias antes se ti-nham envolvido numa zaragata. Havia rapazes de uma aldeia que namoravam com raparigas da outra, onde iam aos Domingos e sempre eram bem recebi-dos e estimados.

XIII

Murgido era uma terra dura pelo trabalho, mas tinha também o tempo de menos labuta, o tempo do sossego nos afazeres do dia-a-dia, não precisavam

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as suas gentes de andar numa azáfama, não por não haver muito trabalho, mas um trabalho diferente, mais leve, o trabalho dos agricultores era menos can-sativo, poderia muito bem dizer-se que entre o mês de Outubro e o mês de Abril, estariam no período do descanso. Os agricultores tratavam dos animais, ro-çavam mato para curtir e estrumar os campos, corta-vam lenha para se aquecerem do duro frio e não só, porque essa lenha servia para todos os dias acender a lareira para cozinhar.

Quem tem menos de trinta anos, talvez tenha

dificuldade em entender o que terá sido o antiga-mente, porque o hoje, é bem diferente, totalmente diferente, a começar pelo modo de viver, das casas, dos caminhos, nada é igual.

Enquanto os de agora começam logo em crian-ças a frequentar a escola que se prolonga pela ado-lescência, os antepassados, em vez de iram para a es-cola iam para os campos guardar as vacas, serra fora levá-las ao monte depois das beçadas e quase sempre

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descalços, com os pés à mercê de qualquer ferimento, provocado por topadas nas pedras ou à picada de uma tacha usada nos tamancos que se arrancava do pau e por vezes ficava na terra, de bico para cima, como que à espera de um pé desprotegido.

No passado, o caminho desde a Ponte da Ribera até Murgido, pelo menos, desde o início da encosta da Castanheira até à aldeia era difícil, não só porque era a subir, mas porque era de pedra mal-amanhada com altos e baixos.

Os caminhos dentro da aldeia eram maus, tan-to para as pessoas como para se circular com o carro puxado pelas vacas.

A gente nova, alguns nem saberão do que falo, talvez nunca tenham utilizado o cainho velho entre a Ponte da Ribeira e Murgido, porque felizmente, têm uma estrada para caminhar, apé ou de carro. Nos caminhos da aldeia, hoje por todos eles se pode andar de carro, bem diferentes de outros tempos, que eram maus e para por eles andar de noite só com a velha

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lanterna de azeite que pouco alumiava, mas sempre dava para ver as pedras.

Murgido tem sofrido ao longo dos tempos grandes transformações. As casas de ontem, já quase não existem, quase todas foram reconstruídas e mui-tas construídas de novo, as quais causam a inveja de qualquer vila ou cidade.

XIV

Não posso acabar esta minha divagação sobre Murgido, sem voltar ao passado. Como em qualquer outra aldeia isolada, também ali havia o remédio pa-ra tratar várias doenças e uma delas despertava-me alguma curiosidade, por isso, vou deixar o seu regis-to.

Quando uma criança, ou já não tão criança, por vezes já um pouco crescida, andava enfezada, talvez por sofrer de alguma moléstia, logo diziam que era auguaço, porque quem sabe, teria visto alguém a comer qualquer coisa que não pôde comer e ficou com desejos e tinha de ser tratada e para isso, para

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que ficasse curada tinha de comer um naco de bôla atrás da porta e não podia ser na sua casa, tinha de ser na casa de uma vizinha. Assim, quando a vizinha cozia o pão e fazia a bôla, lá ia a criança para trás da porta da vizinha e comia o bocado da bôla para ficar boa, só não sei, se isso alguma vez deu resultado.

MAIO 2015