d,·, · os vagabundos 1 1 li li 1 eia. ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a...

15
OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d11 ! aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme. humano - artista, operário e revolucion , 111 nto. Só nos falta - quem diria? - um pou~ 11 ·o. Conselhos de administração com mais d1 embros (dos quais trinta "relicários" e d, ·, )S "), dispensamos. às borboletinhas benfeitoras que voltej:1111 , .a noite tempestuosa do capitalismo católico, so avançaram na leitura até aqui, aviso-llw, 1 braços no catecismo e, caso sejam "sin c.:os lares de grandes anormais precisam dr evotadas. orço de reeducação não sustentado por uma por uma revolta cheira muito rapidamentt :lhos ou a água benta contaminada. O que )ara esses moleques é ensiná-los a viver, não ~judá-los, não os amar.

Upload: others

Post on 13-Jul-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1

eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11

! aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme.

humano - artista, operário e revolucion:í , 111

nto. Só nos falta - quem diria? - um pou~ 11

·o. Conselhos de administração com mais d1 embros (dos quais trinta "relicários" e d,·, )S "), dispensamos.

às borboletinhas benfeitoras que voltej:1111, .a noite tempestuosa do capitalismo católico, so avançaram na leitura até aqui, aviso-llw, 1 braços no catecismo e, caso sejam "sinc.:t· os lares de grandes anormais precisam dr evotadas.

orço de reeducação não sustentado por uma por uma revolta cheira muito rapidamentt :lhos ou a água benta contaminada. O que )ara esses moleques é ensiná-los a viver, não ~judá-los, não os amar.

~

Page 2: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

OS VAGABUNDOS EFICAZES

Privados "deles" no momento, as muralhas me ensinam. Maciços de tijolos vermelhos com ângulos retos,

elas são mordiscadas pelos bisnetos daqueles que as construíram. Verdes e vermelhas, elas se parecem com enormes soldados mutilados. As crianças correm sobre suas costas. Sua grande veste de grama é toda entre­cortada de jardins operários cercados de quatro fileiras de arame farpado que fixam estrelas de ferrugem sobre as verduras, quando se caminha, e no céu, quando se deita na grama.

Cada jardineiro fez para si, criança tenaz, um pequeno santuário de ferramentas.

Uma enorme pilha municipal de detritos, franja extrema do bem de outrem, defuma com inúmeros pequenos incêndios sem chamas e fermenta. Uma fumaça se arrasta baixa emergindo das carcaças de fogões enferrujados, dos colchões esburacados, das barras de cama-gaiola. Latas de conserva vazias bri­lham quando o sol se mistura à fumaça.

Velhos do hospício e crianças estão grudados à colina fedorenta . Brigam pelos achados.

No horizonte, na borda da . cidade, hospício, caserna, abatedouros, e a bagunça imunda dos bair­ros inverossímeis.

Na entrada dos cortiços, ficam sentadas estranhas crianças, crianças vomitadas. Para falar de sua cor e de sua forma, não há outra palavra.

Page 3: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

II8 OS VAGABUNDOS EFICAZ!!~

X

Se digo: "As crianças são como os pais as fizeram e as educaram ... ", eu me deparo com o consentimento universal.

Se prossigo: "Os pais são como a atual sociedade os força_ a_ ser. Seria preciso ver como mudar realmente as c~~?1çoes de vida ... ", fecham-me a boca e o Centro que d~nJ~, sob o pretexto de que alguns de seus operários nao tem o aspecto, que coisa!, de verdadeiros educadores.

X

Bom. Deit~do na grama das muralhas, debruço-me e observo o madaptado.

PRIMEIRA OBSERVAÇÃO. Vivi durante quatro anos em. um :si~o de alie_nados. Os alienados mais típicos, mais cromcos, mais dementes não me surpreende ram: momentos de mim mesmo tornados homens um

"pon_to de vista" mantido por mais tempo do que ~erin preciso; um desapego que sono nenhum pode romper e o resto do mundo que parte à deriva sem que se faça um ?e.sto para saltar na roda que gira; a solução únicn e trag1ca que se impõe por falta de mobilidade.

Por vezes, sou eu mesmo esse alienado que é pers­crutado para ser liberado. Profundamente adormecido,

OS VAGABUNDOS EFICAZES

"eu" surge, desperto, mas "eu" se aflige ao se sentir em um corpo imóvel, inerte, mineral. Então, "eu" busca os contatos, as alavancas. "Eu" busca o mais sensí­vel, o mais leve, um dedinho, os lábios, as pálpebras e, com todas as suas forças dirigidas a um desses pon­tos, "eu" consegue uma onda, um estremecimento, um movimento leve e quase imperceptível, que é como um imenso alívio, pois ele basta para me impelir ao movi­mento reencontrado e ao mundo vivo que me aguarda.

Mas não limito a isso meu sucesso, pois não sou meu próprio psiquiatra-psicólogo. Esse primeiro gesto balbuciado é a chave que me abre para todas as cir­cunstâncias que me aguardam e não uma pequena cla­raboia sobre mim mesmo. Minha vida aproveita disso para ser inundada de seres vivos e sempre aberta ao imprevisto até a fadiga extrema.

SEGUNDA OBSERVAÇÃO. Eu arrasto comigo, sem dúvida desde o meu nascimento, uma espécie de angústia, de medo prévio, que se alia a uma magreza de homenzi­nho de arame.

Maio 1940. Aqui estou, como os demais, preso na guerra, um coelho perdido na sucata monumental e nos apitos e na carne humana da qual escorre san­gue e suor através do assoalho do caminhão. Desde que parei de crescer, é o único período da minha vida em que ganhei peso (oito quilos ). Meu medo tinha

Page 4: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

120 OS VAGABUNDOS EFICAZH\

encontrado o alimento que lhe convinha. Ele já não me consumia mais.

Desde então, essa angustiazinha vagabunda voltou. Ela pousa despreocupada no menor cansaço como uma mosca reluzente no lixo pressentido. Expulso-a com um violento golpe de raciocínio, ela vai pousar ao lado. Resta-me apenas esperar que um grande e forte acon­tecimento venha seduzi-la e tirá-la de perto por um tempo. Mas eu a conheço ... É capaz de voltar grávida.

TERCEIRA OBSERVAÇÃO. Quando tinha doze ou treze anos, encontrei furtivamente uns livros e documentos nos quais o sexo tinha o lugar de pedra angular.

Dizia-se neles que o sexo era o motor de tudo o que vive, de tudo o que é. O grande segredo, a grande força .

Então, me senti tão pequeno, tão magricelo, tão per­dido em uma espécie de catedral gótica cujos signos, os trejeitos, os mistérios eu não compreendia, rejei­tado dessa comunhão que eu pressentia unânime ao meu redor, e necessária pois geradora de toda a vida. Excluído, morto-vivo, com esse sexo minúsculo e com a certeza ineficaz que me fazia odiar antecipadamente as mulheres e seus desejos, os quais apenas os gigantes poderiam enfrentar.

Estragos do conhecimento intelectual prévio e prematuro.

Estragos que reencontro nas crianças para as quais

OS VAGABUNDOS EFICAZES l 2.I

a moral ensinada sem precaução é a catedral deserta que elas temem e cujos vitrais quebram por ódio_ dessa vida coletiva da qual são excluídas, pequenas cnanças decepcionadas antecipadamente por não serem gran­des homens.

QUARTA OBSERVAÇÃO. Nas paredes dos dois cômodos onde vivo (o maior tem cinco janelas), estão pendura­dos desenhos. Todos malogrados. Os desenhos de que gosto no momento, eu os dou ou então, o~namenta_­dos de cor, um diretor de galeria tenta vende-los aqui e ali. Guardo nessas paredes que me são familiares todos os malogrados que, sozinhos, são a esperança da descoberta.

Esses traços deixados pela minha mão em uma grande folha, não posso acreditar que, passados os breves momentos de encantamento, sejam suficientes.

Posso me deixar escorrer inteiro neles, ou somente me descrever neles como uma carroça se descreve, para quem tem bons olhos, pelos sulcos que ela deixa.

X

Criança tenaz, sem dúvida ainda terei que esperar muito tempo pela minha puberdade social, essa aceitação pura e simples das maneiras que têm os homens de nunca ser eles mesmos e de mutilar raivosamente as crianças.

Page 5: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

12.2. OS VAGA BUNDOS EFICAZll~

Se na origem dos distúrbios de comportamento os médicos detectam taras hereditárias, a meu ver, de modo geral, inscrevem-se diante disso as mesquinha• rias e a desonestidade do adulto reinante.

Há meses, na falta de uma "instituição", quando me trazem uma criança difícil, eu a mando ir brincar e tranco o pai. As confissões que obtenho não são feitas para que eu me reconcilie com a vidinha burguesa.

N ão há mais um dia sequer em que os jornais não nos falem de crimes e delitos cometidos por garotos.

"Não há mais moral" ... e é por isso que a sua filh:1 está muda.

Mas há moral, sim, até demais, e da pior espécie, degenerada pelo temor, heredo-católica,1 e que faz o seu disse-me-disse protegida justamente por esse temor'.

X

Cinema, rádio e imprensa trazem o mundo em im:1 gens, música, frases. Constituem o pasto permanenrt da potência imaginária das crianças. Como pode no~ espantar que elas queiram ficar imediatamente de pé

1. Deligny retoma aqui de forma irônica o prefixo heredo- (ck hereditariedade), tão em voga naquela época para naturalizar 0 11

indivíduos com distúrbios de caráter, as " taras" , os vícios e mesmo diversas doenças. Fala-se então, por exemplo, de heredo-tuben.a1 lose, heredo-sífilis, heredo-alcoolismo. [N.T.]

OS VAGABUNDOS E FICAZES 123

nesse mundo que, por uma ilusão de óptica cotidiana­mente alimentada, veem pela janela?

Conselhos, ameaças, restrições e promessas são de um tempo que já passou.

A criança de hoje "conhece" o mundo - das soli­dões geladas, dos grandes hotéis, do Equador e dos botecos obscuros. Ela acredita conhecê-lo, acredita nas imagens. Tem repulsa aos livros. Está desgostosa da monotonia cotidiana e hesitante com a vida familiar. As evasões vêm ao seu encontro.

Desastre? Desastre coletivo se o adulto persistir em manter a criança com as mãos atrás das costas. A criança se revira e morde, pula pela janela e cai, pois o mundo mil vezes visto e que ela acreditava pronto para recebê-la é apenas reflexos e miragem. Se ele existe, está muito mais longe. Pode-se alcançá-lo com um passo depois do outro. Mas a criança do cinema, do rádio, da heliogravura não sabe andar.

Machucada, retorna à existência obrigatória. Machucada, prepara o próximo salto através de sua janela no mundo das imagens, e, visto que é preciso ter dinheiro, ela há de "encontrá-lo". Ou então renun­ciará, enojada para sempre por saber que há na Terra dois mundos vizinhos e, contudo, tão distantes quanto a Terra e a Lua: aquele no qual a vida é atrozmente cotidiana e aquele dos espaços pitorescos, dos encon­tros imprevistos, onde os gestos espontâneos não são

Page 6: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

I 24 OS VAGABUNDOS EFICAZES

freados por uma atmosfera espessa de necessidades. Crianças prontas para o crime, crianças murchas de

antemão ... Talvez seja tempo de repensar a educação em função do nosso mundo de diversas profundidades.

A necessidade é tal que daqui a pouco inúmeros edu­cadores vão se revelar. Eles existem. Estão um pouco desamparados no momento. Entediam-se tanto que se poderia pensar que são imorais e antissociais.

X

Milhares de crianças se esgueiram, para quem sabe ver, nas ruelas estreitas traçadas muito profundamente nas preocupações massivas dos adultos. Na falta de um guia, brincam de guerrinha.

X

Meio poetas, meio pintores, meio cantarolantes de belas músicas, meio intérpretes, exibidores de si mes­mos e de marionetes, honestos com o instante, chu­padores de certezas e cuspidores de questões, película viva à flor da sociedade, incontestavelmente inadap­tados, inquietos com sua vagabundagem e pacientes como empalhadores de cadeiras - aí estão os compa­nheiros de que as crianças precisam.

Exploradores ingênuos e pobres, eles não

OS VAGABUNDOS EFICAZES 1 25

sobrecarregarão o povo infantil com o peso de sua bagagens pseudocientíficas, pseudo-históricas, pseu­domorais, coleção de bibelôs injuriosos, presentes típicos daqueles que vêm do mundo dos adultos.

X

O mínimo desenho infantil é um chamado. Muito frequentemente, os adultos respondem curiosos, fér­teis em comentários. Vemo-nos assim no coração da fraude habitual.

Contrassensos, rupturas, tremores, rascunhos, igno­râncias são admitidos e mesmo apreciados quando expressos no papel, balbucios de uma ingenuidade aplicada.

Se a mesma ingenuidade for expressa em atos, ins­tabilidades, audácias, desdém e preguiças, o adulto provocado se torna odioso.

E assim pegamos no flagra essa derivação artística, em cuja direção cresce a sociedade que não quer ser incomodada, que quer que se cuspa nas paredes, que até se apressa em enquadrar os cuspes, que organizará exposições de hediondos catarros, muito feliz por não tocarem na ordem discreta de suas construções, de suas hierarquias, de seus hábitos.

Um desenho infantil não é uma obra de arte: é um chamado para novas circunstâncias.

Page 7: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

126 OS VAGABUN D OS EFICAZll~

X

Criador de circunstâncias, assim é o educador a se debater com todas as inércias. Boa sorte.

Eu o aconselho a preservar um modo de expressão pessoal. Mesmo que seja apenas para absorver essa espuma de delírio que borbulha em torno de toda ação intensa.

Quando era responsável por um Centro ou um pavilhão, aconteceu-me de me sentir um compositor. Aconteceu-me de confundir coletividade infantil com tocar órgão. Nascia uma música de revolta ornamen­tada de humor que formava em torno de mim uma bolha, um universo no qual eu vivia confortavelmente. Fraude para as vidas confinadas.

X

São crianças difíceis, são crianças que experimentaram o delito. Os companheiros um tanto superficiais de que eu falava há pouco servem para crianças que, ademais, têm bons laços afetivos.

Para as crianças oriundas de todas as misérias, é pre­ciso companheiros de uma raça diferente.

X

OS VAGABUNDOS EFIC AZ !'.,

Nos bairros e periferias corroídos p o 1 11 111 , , 11111 p 1

manente de miséria, onde a pequc11 :1 11 11111 1d 11 li d11 egoísmo é veementemente raspada a cad:1 d 1.1 , v 1v1 , 1

povo das fábricas e dos canteiros de obras. Aqui, as casas são gaiolas feitas de tijolos emburid:1~

em pátios sombrios como poços. Elas são colocadas em pequenos jardins e olham

umas às outras por todas as janelas, sem segredo pos­

sível entre si. Lá vivem mulheres gordas que parecem ter parido

rodas as crianças do bairro, as quais vemos passar em filas nas horas da escola pelas pequenas vias rodea­das por cercas vivas com arame farpado e tábuas mal

pregadas. Lá vivem meninas carinhosas e tenazes como

rainhas-cupim. Lá vivem meninos trabalhadores braçais, metalúrgi-

cos, pedreiros que não querem que a pesada mandíbula do trabalho na fábrica ou da construção se feche sobre eles, que mantêm, à força, a mandíbula entreaberta e querem saber aonde estão indo e o que são.

Eles sabem, nos sábados à noite, ganhar o magní­fico aspecto do vagabundo e cantam e dançam e fazem mímicas e desenham e sabem se entregar à música como ao sol, ao teatro como à montanha.

Fim de turno. A despeito dos cansados por anteci­pação, uma nova raça acaba de nascer sob o sol. Era

Page 8: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

128 OS VAGABUNDOS EFICAZES

preciso que, mais cedo ou mais tarde, esse sofrimento e esse burburinho humano dos bairros periféricos nos dessem esses vagabundos sociais em busca (não mais no espaço, mas aí mesmo onde nasceram) de um modo de vida mais honesto, em busca, se quisermos, de uma moral que não feda a preconceitos soterrados sob os detritos de uma estrutura social que desmorona.

Os mais conscientes dentre eles às vezes têm febre.

X

Um deles me disse (ele estava deitado em um cômodo de uma pequena construção perto do Marne2, um cômodo cujas paredes precisam ser pintadas após cada chuva, pois o teto tem buracos; onde "eles" se reúnem em qua­tro ou seis ou dez; onde o pequeno armário de livros foi feito para nada, por um marceneiro vizinho; onde se inquietam e falam e se amam e são da resistência e da revolução de cada dia; onde recusam veementemente dias seguintes que sejam gastos como vésperas), um deles me disse (e estava deitado porque tinha uma febre de quarenta graus de tanto ter feito "mímica" com os cama­radas, em palanques cheios, durante uma incontável festa popular): "Escrevo poemas assim, e pinto, sabe? Estou trabalhando a mímica ... e temo estar desequilibrado."

2. Nome de um rio afluente do Sena. [N.T.]

OS VAGABUNDOS EFICAZES

X

Desequilibrado? Pestalozzi, Rimbaud, Van Gogh, vocês - cujo dese­

quilíbrio deixou uma marca gigantesca e cujos tesouros, · ecos e a própria tenacidade nos maravilham - digam a ele o que significa ser "professor de escola", ou enru­bescer aos vinte e cinco anos como um adulto surpreso ao ser lembrado de masturbações infantis, com a mera evocação de uma obra literária que cria a poesia atual, que "pinta, pinta, pinta" porque não se tem o "dom da palavra que permitiria ajudar os humildes".

Três incansáveis, em busca de uma moral que não seja uma impressão morta, em breve espalhados nesse solo vivo do povo que vai ao encontro da vida.

X

Pestalozzi. Rimbaud. Van Gogh. Ansiava por me juntar a eles desde o início do livro.

Eles, sua obra, sua vida, suas cartas. Queria envergo­nhar os "professores", os "juízes", os "artistas" fri­sando que esses três vagabundos grandiosos haviam sido muito conscientemente os irmãos inquietos dos jovens delinquentes. Eu queria ter entrelaçado seus tra­ços ao longo desse diário de bordo coletivo.

Fugas, detenções, miséria, temor, revolta, asilo.

Page 9: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

130 OS VAGABUNDOS EFICAZES

Nenhum dos três se queixaria da vizinhança. Questão de hábito.

Mas, em seguida, desisti de esmiuçar o que se ofe­rece como um belo fruto de vida para quem sabe ler e olhar.

X

A exasperação de seres machucados por condições sociais intoleravelmente desonestas e as impaciên­cias de crianças oprimidas por adultos desajeitados se exprimem através dos mesmos sinais.

Quando o povo for libertado e ousar andar com seus próprios pés, a obra de arte ganhará para ele formas, cores e músicas familiares.

Será preciso, por favor, libertar ao mesmo tempo as crianças e colocá-las junto de educadores de presença leve, provocadores de alegria, sempre prontos a remo­delar bolas de argila, vagabundos eficazes maravilha­dos pela infância.

Esperança.

(1947)

Page 10: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

am

go­::ha um

ap­;ão eus ,res

ões am ap­g1a 1es, um

já,

:se­

em de na Ul­

.pü res ra,

Page 11: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

O BEM, O MAL E SEUS DEFENSORES 15

Em 1945, eu escrevia Graine de crapule1 após ter vivido alguns anos com crianças inadaptadas. Pequeno livro nascido ao acaso dos dias. Amargo, disseram-me.

Amargo? O entusiasmo do primeiro esforço me ins­pirou esses versos improvisados enquanto caminhava.

Encarregado - seriam essas pequenas fórmulas tão agradáveis a todos os-ouvidos? - de dirigir um centro de observação para crianças difíceis e decidido a não deixar que se perdessem ou sumissem na confusão do cotidiano as pequenas fórmulas escritas por mim, eu oferecia aos leitores de Graine de crapule a redação de um diário de bordo contando como a experiência destroça ou estimula a frágil frota - alguns a imaginam toda feita de barquinhos de papel ornados de utopia -dos princípios da pedagogia ativa.

Pude flagrar os náufragos vergonhosos dessa frota. Os testemunhos que depois recebi, de outros educado­res lidando com as mesmas dificuldades, me incitam a nomear os inimigos da infância, inimigos frequente­mente inconscientes, pois são em primeiro lugar ini­migos de si próprios, desde muito jovens. Encontrei-os repetidamente, pois sua vanguarda milita nas institui­ções de educação e seu Estado-maior sitia os comitês, os conselhos, as associações encarregadas de proteger

e. Algo como "Germe de crápula", título do livro de aforismos, onde Deligny explora uma pedagogia outra. "Crápula" recebe aí um sentido positivo (NT).

Page 12: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

16 OS VAGABUNDOS EFICAZES

a infância. A desenvoltura dessas pessoas em aparente­mente aceitar e assimilar verdades às quais não ousam se opor só se compara com a sua habilidade paciente de evitar a verdadeira aplicação prática de princípios que ameaçam o conforto moral e social do qual são os representantes patentes e prudentes.

Elas pululam em torno das crianças em situação de perigo "moral", delinquentes ou inadaptadas. Defensores dissimulados de uma ordem social podre e ruindo por toda parte, ocupam-se das vítimas mais fla­grantes dos desmoronamentos: as crianças miseráveis. Importunos e tenazes, juntam-se como moscas, e o zumbido de sua atividade benfeitora camufla a simples necessidade de desovar nessa carne moribunda seus próprios desejos de obediência servil, de conformismo flácido e de moralismo de meia-tigela.

Empregam de bom grado um termo magnífico, de uma tolice suntuosa, pérola que cresce com as secreções dos milhares de comitês grudadas nas mesas das reu­niões administrativas como ostras no rochedo: a cor-

~ ' reção moral. Como se as crianças tivessem em algum lugar um pedaço de não-sei-quê, direito em uma, torto em outras, e que poderia ser modelado vergando-lhes as costas a golpes de exemplos ou dando-lhes bolachas amanteigadas nos dias de visita ou de grande festa.

Todos esses burocratas pequeno-autoridades escon­dem a frouxidão do seu caráter em sua situação social

O BEM, O MAL E SEUS DEFENSORES 17

como o bernardo-eremita2 protege sua barriga com uma concha emprestada. Como é que eles, insuficientes sociais docilmente resignados a um emprego monó­tono notoriamente ineficaz, poderiam compreender essas crianças que têm a improvável ousadia de mani­festar transtornos de comportamento?

Gostam da ordem, dos relatórios escritos para se manterem acobertados e das fofocas para se informar. Ignoram o que uma turma de garotos e garotas pode consumir de energia, de pregos, de tijolos, de solas, de tempo, de ideias, de tudo o mais.

Um estabelecimento bem "administrado" - será que isso quer dizer que tudo o que vive nele em breve vai morrer?

Nesse eterno combate dos ativos contra os passivos, faço apelo aos psicólogos, psiquiatras, biólogos e peda­gogos que se afastam na descoberta do homem, sem ouvir os chamados desesperados dos educadores, que, na aleatoriedade dos estabelecimentos, tentam ajudar as crianças a viver reunidas em torno deles, e se sentem insidiosamente bloqueados - as crianças e eles mes­mos - pelas "circunstâncias" antiquadas e mesquinhas impostas pelas atuais administrações.

Educadores ... ? Quem são vocês? Formados, como se diz, em estágios ou em cursos nacionais e internacionais,

2. Espécie de crustáceo que se abriga em conchas vazias de outros animais. [N.T.]

Page 13: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

18 OS VAGABUNDOS EFICAZES

instruídos sem nenhuma preocupação prévia em saber se têm no estômago um mínimo de intuição, de ima­ginação criadora e de simpatia com o homem, envol­tos em um vocabulário médico-científico e em técnicas esboçadas, largam vocês, em sua maioria frutos infantis da burguesia, ainda encaracolados em si mesmos em

' plena miséria humana. E ano após ano, algumas marionetes aqui, uns

corais ali, testes e tretas, complexos e estatísticas, con­gressos e relatórios tecem uma rede de camuflagem em torno desse misterioso lixo social da infância ina­daptada3 que morre em cortiços, dá errado em casas burguesas e definha com frequência bem maior do que se admite nos anexos de prisões ou de estabelecimen­tos inumanos.

X

3. A noção de "infância inadaptada" foi institucionalizada por de­creto pelo governo da Ocupação de Vichy em 1943, reagrupando categorias de uso corrente como "infância infeliz", "em perigo mo­ral" ou "deficiente". Junto com o surgimento da noção, instituições são estruturadas, criam-se novas profissões e leis, em suma, surge uma verdadeira tecnologia médico-jurídico-social destinada à juven­tude "anormal" ou "desviante". Em 1947, data de publicação do li­vro, pouco mais de dois anos depois da Liberação, em um momento ainda de indefinição e de negociação entre gaullistas e membros do Partido Comunista Francês, Deligny está envolvido em uma batalha institucional em torno dos usos e do futuro dessa noção. (N.T.]

O BEM, O MAL E SEUS DEFENSORES 19

Visto que "eu" redigi esse diário de bordo, parece-me útil esboçar, nesse prefácio, uma breve auto-observa­ção desse "eu".

Sempre curvado sobre mim mesmo, ao ponto de sen­tir dor no osso achatado que se encontra no centro do peito que deve ser a dobradiça do homem, eis que já não sou simétrico e nunca me pareço comigo. Há uma boa parte desse "eu", informe, plástico, afetivo, que se deixa marcar como a massa do vidraceiro.

Em breve serão dez anos desde que me encontro entre aqueles que põem fogo nas fazendas, roubam carvão nas barcaças, aqueles que fraudam e vagabundeiam, essa ralé de menores que crimeia,4 ingrateia, assistên­cia-publiqueia,5 e se masturbam a existência. Varíola, álcool, tuberculose, indiscutivelmente. Cortiços, bai­xeza humana, mães que se reproduzem como coelhas e o pai em cima da filha, simples assim.

Tenho um enorme rancor do câncer capitalista que

4. A escrita mais tardia de Deligny, a partir do fim dos anos , 960, ao trabalhar e viver com crianças autistas mudas, será caracterizada pela constante criação de infinitivos. Mas a expe­rimentação na língua usando verbos já começa a dar sinais nesse período. [N.T.] 5. Assistência Pública era o órgão responsável por direcionar aos Centros de Observação e de Triagem (COTs) parte dos jovens ór­fãos e maltratados ou cujos pais haviam sido considerados incapa-1.cs de criá-los por razões diversas (alcoolismo, incesto, violência doméstica). [N.T.]

Page 14: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

1 1 1

1 1 1

1

'" OS VAGABUNDOS EFICAZES·

vai, como se diz, atingir o coração. É provável que ainda vá feder um pouco no subúrbio. Mas e amanhã?

Seria uma pena que nas cidades-jardins, nas escolas ensolaradas, as crianças ficassem cinzentas, monótonas e dóceis, anestesiadas por séculos de desconfiança em relação ao homem.

Assim, há dez anos, passo muito tempo com "eles", sem um pingo de devoção, e com alguns meninos e meni­nas com quem tenho amizade. E falo de mim mesmo, de minha atitude em relação às dificuldades pitorescas da minha profissão. Invento, enquanto lhes falo, reflexos ou intuições que não tinha. E, com mentiras em supersimu­lação, formo-me. Torno-me o educador que deveria ter sido, um pouco ofegante por correr atrás desse "eu" por mim descrito nos momentos de entusiasmo.

Malandro, obstinado e exigente na vida cotidiana, sempre enredado no social como um vagabundo no arame farpado, sou, diante do mais maltrapilho dos fugitivos arrastados por dois policiais, como um pintor seguro em sua técnica diante de um desenho de criança, desagradavelmente consciente da minha sociabilidade.

Imagino o outro fazendo um rápido inventário dos seus últimos delitos e calculando o número de cigar­ros pelos restos de tabaco acumulados no único bolso forrado que lhe resta. Sinto seu desconforto diante de pessoas com uniforme. Meu pai era oficial. Meu avô, chefe de alfândega.

O BEM, O MAL E SEUS DEFENSORES

"Tenho", como se diz, uma criança pequena. H:-.1 entre nós uma ruptura latente: minha morte, que deve chegar ao menos uns trinta anos antes da dela; e aprecio diariamente essa separação posta entre mim e a "minha" criança, como um ponto que nos afasta um do outro, apontando para o meu desaparecimento enquanto lhe atribui uma vida nova e virgem.

Mas entendo melhor como a preocupação mesqui­nha de eternidade individual leva aqueles mesmos que não creem mais no paraíso a querer com todas as forças se prolongar tal como são. Parece que vejo inumeráveis pais abusivos, carregando cestas cheias de preconceitos, galoparem em direção à velhice temerosa montados em seus filhos como árabes em suas mulas.

E quando os pais não estão, quando as crianças são entregues, sei que as cestas ficam ainda mais pesadas, os pontapés mais ferozes e dissimulados, as rações mais raras, pois os caravaneiros querem ordem no pequeno cortejo cinzento da infância inadaptada, que dá coices e bufa ou se cala para sempre.

Amoral? Em todo caso, de forma alguma defensor da moral "em alta", como se diz na bolsa.

Antissocial? Seguramente estranho a essa explora­ção hipócrita do homem pelo homem, a essa transpi­ração de tédio, a toda hierarquia preestabelecida.

Mas sinto o egoísmo como uma acrobacia mental

Page 15: d,·, · OS VAGABUNDOS 1 1 li li 1 eia. Ela é em primeiro lugar um albergtll' d 11 aberto a todos que passam por ali. Alg1111 es moram nela com sua família. O resto é com a geme

1 1 1

1 1

OS VAGABUNDOS EFICAZES

que, com a primeira hesitação, deixa você em pedaços no fundo da sua própria angústia.

Então eu busco, junto com aqueles que não encon­traram como companheiros.