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209 IDE SÃO PAULO, 38 [60] OUTUBRO 2015 Cuspe, catarro, remela e caca de nariz Luciana Saddi* Não era verdade, não podia ser verdade, onde já se viu que bei- jo na boca era uma coisa daquelas, duas línguas se encostando? Uma entrando na boca da outra. Onde inventaram uma coisa tão nojenta? Já era difícil viver num mundo onde o coelhinho da páscoa era uma invenção cretina de adultos tentando con- vencer crianças estúpidas que um coelho bota ovos e ainda por cima de chocolate, como? Se os coelhos são brancos, é óbvio que os ovos não podem ser escuros! É mais que óbvio ululan- te que essa é uma crendice para quem quer comer chocolate até explodir, como minha mãe, por exemplo, que acredita em coelho da páscoa porque lhe convém. Mas beijo na boca? não pode ser uma coisa podre dessas, parece tão lindo na televisão! Nunca vi nenhuma língua pra fora das bocas beijoqueiras. Uma língua lambendo outra língua nem em novela nem em filme nem na vida real – nunca vi meus pais se beijarem, nunca. Só pode ser mentira daquelas meninas do vizinho. Agora não venham vocês me dizer que os atores mentem, que bei- jam de boca fechada, que fingem e por isso nunca vemos lín- guas nos seus beijos. Será que a humanidade se transformou numa coisa podre de salivas alheias sendo engolidas junto com pedaços de comida? Que sina! Ou beijar na boca é igual a chupar picolé de limão sentada no lixo da cozinha? Quem inventou uma infâmia dessas? Línguas estranhas se debaten- do umas nas outras, saliva dos outros sendo engolida como cuspe, como catarro, como remela de olho ou caca de nariz. Não combina com beijo na boca! Uma coisa que é só minha entrando na sua e uma coisa que é só sua sendo engolida por mim. E ainda tem gente que diz que é bom beijar na boca, como? Só se for tortura chinesa, me falaram que os chineses torturam melhor que os outros povos, eles te mandam beijar na boca senão arrancam suas unhas com alicate e você bei- ja a boca do cachorro, que é a única com língua disponível, porque os cães são uns lambedores nojentos. Se me falarem: abre a boca, põe a língua pra fora e encosta essa sua língua de chupar picolé na língua daquele menino, eu me mato. Eu que não vou engolir saliva de menino nenhum. Juro. Jamais. *Psicanalista. Membro efetivo da SBPSP. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC- -SP. Autora dos livros O amor leva a um liquidificado (Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Editora Jabuticaba). 209-211

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Cuspe, catarro, remela e caca de narizLuciana Saddi*

Não era verdade, não podia ser verdade, onde já se viu que bei-

jo na boca era uma coisa daquelas, duas línguas se encostando?

Uma entrando na boca da outra. Onde inventaram uma coisa

tão nojenta? Já era difícil viver num mundo onde o coelhinho

da páscoa era uma invenção cretina de adultos tentando con-

vencer crianças estúpidas que um coelho bota ovos e ainda por

cima de chocolate, como? Se os coelhos são brancos, é óbvio

que os ovos não podem ser escuros! É mais que óbvio ululan-

te que essa é uma crendice para quem quer comer chocolate

até explodir, como minha mãe, por exemplo, que acredita em

coelho da páscoa porque lhe convém. Mas beijo na boca? não

pode ser uma coisa podre dessas, parece tão lindo na televisão!

Nunca vi nenhuma língua pra fora das bocas beijoqueiras. Uma

língua lambendo outra língua nem em novela nem em filme

nem na vida real – nunca vi meus pais se beijarem, nunca.

Só pode ser mentira daquelas meninas do vizinho. Agora

não venham vocês me dizer que os atores mentem, que bei-

jam de boca fechada, que fingem e por isso nunca vemos lín-

guas nos seus beijos. Será que a humanidade se transformou

numa coisa podre de salivas alheias sendo engolidas junto

com pedaços de comida? Que sina! Ou beijar na boca é igual

a chupar picolé de limão sentada no lixo da cozinha? Quem

inventou uma infâmia dessas? Línguas estranhas se debaten-

do umas nas outras, saliva dos outros sendo engolida como

cuspe, como catarro, como remela de olho ou caca de nariz.

Não combina com beijo na boca! Uma coisa que é só minha

entrando na sua e uma coisa que é só sua sendo engolida por

mim. E ainda tem gente que diz que é bom beijar na boca,

como? Só se for tortura chinesa, me falaram que os chineses

torturam melhor que os outros povos, eles te mandam beijar

na boca senão arrancam suas unhas com alicate e você bei-

ja a boca do cachorro, que é a única com língua disponível,

porque os cães são uns lambedores nojentos. Se me falarem:

abre a boca, põe a língua pra fora e encosta essa sua língua de

chupar picolé na língua daquele menino, eu me mato. Eu que

não vou engolir saliva de menino nenhum. Juro. Jamais.

*Psicanalista. Membro efetivo da SBPSP. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC--SP. Autora dos livros O amor leva a um liquidificado (Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Editora Jabuticaba).

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Tem sido muito difícil viver nesse mundo onde as meninas do

vizinho inventam qualquer coisa pra chamar a atenção. Há dias

que o beijo de língua não sai da minha cabeça. Acordo e penso:

será verdade? Elas falaram com tanta convicção e eu era a única

que não sabia de nada, nem fingi que sabia, tamanha a surpresa,

que asco! Nunca pensei nisso. Já pensei em tanta coisa... já pen-

sei que cadeira podia ter qualquer outro nome, podia ser cha-

mada de lápis ou de garrafa e eu podia ser Dorisflor, Reverenda

ou Crista, sei lá! Já pensei que os mortos comem as flores do

cemitério na hora da solidão. Mas língua com língua, que nojo!

Não sei se é verdade, dizem que na minha escola tem uma

menina mais velha que paga com chocolate pra comer casca de

ferida. Ela faz isso atrás das árvores, perto do muro. Tenho uma

enorme no joelho, mas não vendo não. Só de pensar numa coisa

dessas... dá vontade de desmaiar. Casca de ferida e língua, cada

um que cuide bem da sua. O comércio é muito instável, diz meu

pai, a qualquer momento, uma coisa que vende muito, para de

vender. E tem uma outra garota que chupa pus até de graça! Eu

que não quero saber. E falam que a Santa da Capela chora lágri-

mas de sangue e que as freiras ficam de boca aberta embaixo da

Santa, será? Assim, vestidas de uniformes, as meninas e as freiras

não parecem ser pessoas sujas.

Hoje olhei a língua do meu cachorro, que sempre me lambe,

a língua do gato e a do passarinho na gaiola, eu acho que pas-

sarinho não tem língua, um problema a menos. Meu cachorro

lambe tudo, lambe chão, lambe lixo, lambe a pele suada da gen-

te. A língua do cachorro é grande e macia. Cachorro não tem

lábio, mas em compensação tem muitos dentes. Abri a boca dele

e pus minha língua na dele, foi a pior coisa que já senti na minha

vida. Agora imagina lamber a língua dele e ele lamber a minha,

socorro! Ele come carniça! Odeio boca fedida!

Hoje abri a boca e lambi o espelho na tentativa de provar se

existe ou não existe o beijo na boca de línguas se lambendo. O

espelho é gelado demais, achei nojento. Ontem lambi um sorve-

te de uva, imaginei que era a boca do homem dos meus sonhos,

a boca do meu futuro marido... não vou casar. Minha amiga

falou que beijar é bom, se não fosse ninguém beijava. Meus pais

não beijam, juro que eles não beijam. Os pais dela vivem se

beijando e ela garante que tem língua envolvida na coisa. Podia

ser que um põe a língua na boca do outro, mas o outro não põe

a língua na boca do um, fica mais limpinho, mais organizado, e

depois muda, alguém dá uma ordem e aquele que não pôs, põe.

Mas parece que é tudo ao mesmo tempo! O caos.

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Você sabia que odeio saber que Papai Noel não existe? – o

maior golpe que já sofri. E agora não posso nem contar aos meus

pais que eles são uns otários, porque gostam tanto do Papai Noel

que me dá até pena. Também não posso falar de beijo na boca,

eles nunca beijaram, não seria justo com eles inventar moda!

Talvez as meninas tenham alguma razão, talvez seja um pou-

co verdade, vi uma pontinha de língua no beijo da novela. Outro

dia elas me disseram algo ainda pior: o pênis entra na mulher.

Me arrependi de ter ido nadar na piscina delas, cada vez que

vou lá é um choque, ainda bem que vão se mudar logo daqui.

Como assim? Xixi com xixi. Minhoca? Ele faz xixi nela. Ela

faz xixi nele? Um pesadelo. Onde o mundo vai parar? Só falta

alguém falar que tem cocô também nessa história. E eu achava

que era só encostar que o filho vinha! Entrar já é demais, uma

minhoca suja entra no lugar do xixi da mulher? É sujeira pra

tudo quanto é lado, saliva é pinto! Justo agora que eu estava

me acostumando com beijo na boca aparece uma história mais

tenebrosa ainda?

n

LUCiANA SAddi

Praça Morungaba, 66

01450-090 – São Paulo – SP

tel.: 11 99983-7195

[email protected] 10.04.2015aceito 25.04.2015

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