curso de direito constitucional€¦ · etimologicamente, a palavra federação remonta ao...

23
15ª Edição revista atualizada ampliada MARCELO NOVELINO Curso de Direito CONSTITUCIONAL 2020

Upload: others

Post on 26-Apr-2020

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

15ª Edição

revistaatualizadaampliada

MARCELO NOVELINO

Curso de Direito

CONSTITUCIONAL

2020

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 3Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 3 06/02/2020 14:44:1106/02/2020 14:44:11

Page 2: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 281

C A P Í T U L O 1 7

Estrutura, fundamentos e objetivos do Estado brasileiro

Sumário: 1. Princípios estruturantes: 1.1. Princípio republicano; 1.2. Princípio federativo: 1.2.1. Princípio da indissolubilidade do pacto federativo; 1.3. Princípio do Estado democrático de direito: 1.3.1. Estado liberal; 1.3.2. Estado social; 1.3.3. Estado democrático de direito (Estado constitucional democrático) – 2. Princípio da separação dos poderes – 3. Fundamentos: 3.1. Soberania; 3.2. Cidadania; 3.3. Dignidade da pessoa humana: 3.3.1. Dignidade da pessoa huma-na e direitos fundamentais; 3.4. Valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa; 3.5. Pluralismo político – 4. Objetivos fundamentais – 5. Princípios regentes das relações internacionais – 6. Quadro comparativo.

A Constituição de 1988 consagra, no Título I, os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, os quais estabelecem a forma, a estrutura e os fun-damentos do Estado brasileiro (CF, art. 1.º), a divisão dos poderes (CF, art. 2.º), os objetivos primordiais a serem perseguidos (CF, art. 3.º) e as diretrizes a serem adotadas nas relações internacionais (CF, art. 4.º).

1. PRINCÍPIOS ESTRUTURANTESCF, art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Demo-crático de Direito [...].

Os princípios estruturantes constituem e indicam as diretrizes fundamentais in-formadoras de toda a ordem constitucional. Dotados de elevado grau de abstração, esses princípios são densificados por outros mais específicos que iluminam o seu significado em um processo de “esclarecimento recíproco” que, segundo Karl Larenz (1997), possui duplo sentido: “o princípio esclarece-se pelas suas concretizações e estas pela união perfeita com o princípio.” O princípio democrático, por exemplo, é densificado por uma série de princípios constitucionais gerais (como o princípio do sufrágio universal) que, por sua vez, são densificados por princípios constitucionais especiais (como o princípio da liberdade de propaganda, igualdade de oportunidades e imparcialidade da campanha eleitoral), os quais também recebem a concretização de diversas regras constitucionais (CANOTILHO, 2000).

Serão analisados, a seguir, os princípios estruturantes consagrados no caput do artigo 1.º da Constituição da República, os quais expressam as decisões políti-cas fundamentais do legislador constituinte em relação à forma e à organização do Estado brasileiro.

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 281Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 281 06/02/2020 14:44:3706/02/2020 14:44:37

Page 3: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino282

1.1. Princípio republicano

A história republicana brasileira tem início em 15 de novembro de 1889, com a derrocada do regime imperial. A consagração desta forma de governo no âmbito constitucional é inaugurada com o advento da Constituição de 1891, sendo que, desde então, todas as cartas políticas brasileiras seguiram o mesmo caminho. A compreensão das decorrências advindas da consagração do princípio republicano no texto constitucional pressupõe uma análise, ainda que sucinta, dos desdobramentos filosóficos envolvendo este conceito e de sua evolução histórica.

Antes de se tornar hegemônica em todo o mundo, a forma republicana de go-verno foi objeto de contemplação teórica e de lutas por sua aplicação prática. Os esforços teóricos a respeito têm início na antiguidade, quando Aristóteles traz as ideias de monarquia (governo de um só), aristocracia (governo de alguns) e democracia (governo do povo) ou república, segundo alguns tradutores. As três formas teriam também modelos degenerados, quais sejam, a tirania, a oligarquia e a demagogia, respectivamente. Tal conceituação, apesar de ter um caráter generalista e se utilizar de termos que não correspondem exatamente às concepções atuais, ainda possui relevância quando se estuda quem são os governantes de um povo e, sobretudo, quais os interesses prevalecentes. As reflexões teóricas envolvendo as formas de governo são posteriormente desenvolvidas por filósofos como Maquiavel – que, a partir de análises empíricas, constata a preponderância dos modelos monárquicos e republicanos – e Montesquieu – ao tratar sobre os governos republicanos (governo de todos ou muitos), monárquicos (poder concentrado em uma pessoa, porém limitado por leis) e despóticos (poder sem limitações) (DALLARI, 1998).

A monarquia, durante muitos séculos, foi a forma de governo adotada pela maioria dos Estados, principalmente até o início da idade contemporânea. Dentre suas principais características podem ser mencionadas a hereditariedade na transfe-rência do poder e a vitaliciedade do governante, que reinava livre de responsabili-dades de natureza política, civil ou penal. Em geral, nos governos monárquicos, o soberano não prestava contas aos súditos acerca das diretrizes políticas adotadas, diversamente do que costuma ocorrer nos Estados contemporâneos. Outrossim, não se cogitava a possibilidade de responsabilização civil da Administração Pública pelos danos causados aos cidadãos, tampouco de responsabilização penal do governante pela prática de atos ilícitos.

A república (res publica: “coisa do povo”) surgiu como uma forma de governo oponível à Monarquia, com a finalidade de retirar o poder das mãos do Rei e passá--lo à nação. O surgimento de governos republicanos se dá com o florescimento dos ideais de liberdade e igualdade postulados, sobretudo, por pensadores liberais do século XVIII. Cultivava-se a insurgência contra as injustiças da sociedade estamental baseada na monarquia, a qual não visava ao benefício comum, mas de um pequeno grupo social. A ascensão da burguesia enquanto classe economicamente mais forte possibilita a luta não só pelos ideais iluministas, mas, em especial, por princípios

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 282Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 282 06/02/2020 14:44:3706/02/2020 14:44:37

Page 4: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 283

fomentadores de seus empreendimentos, que, em alguns momentos, são convergen-tes com os anseios populares de previsibilidade e segurança jurídica. Esse processo desencadeado na Europa, em especial com a Revolução francesa de 1789, dá origem às ideias responsáveis pela construção do republicanismo tal como atualmente é conhecido. A principal contribuição para a concretização dessa forma de governo foi dada, no entanto, pela Revolução Americana de 1776, que construiu uma república sobre ideais bastante sólidos, consagrados em 1787 na primeira constituição escrita da história. Tal movimento emancipatório serviu como fonte de inspiração para um grande número de países, nos quais foram desencadeados processos de democrati-zação. Desde então, a maioria dos povos vem se insurgindo contra as monarquias, que ainda predominaram no século XIX, mas que foram se tornando cada vez mais escassas a partir do século XX.

A república se caracteriza pelo caráter representativo dos governantes, inclusive do Chefe de Estado (representatividade), pela necessidade de alternância no poder (temporariedade) e pela responsabilização política, civil e penal de seus detentores (responsabilidade). A forma republicana de governo possibilita a participação dos cidadãos, direta ou indiretamente, no governo e na administração pública, sendo irrelevante a ascendência do indivíduo para fins de titularidade e exercício de fun-ções públicas.

1.2. Princípio federativo

Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”. A forma federativa de Estado tem sua origem a partir de um pacto celebrado entre Estados que cedem sua soberania para o ente central e passam a ter autonomia nos termos estabelecidos pela cons-tituição. Nessa aliança que toma a forma de um só Estado é instituído um governo central ao lado de outros regionais, dotados de autonomia necessária à preservação das diferenças culturais locais, mas unidos em prol de ideais comuns. Há, portanto, a incidência de mais de uma esfera de poder sobre a mesma população e dentro de um mesmo território.

O princípio federativo, que tem como núcleo essencial o respeito à autonomia constitucionalmente conferida a cada ente integrante da federação, deve servir de diretriz hermenêutica tanto no âmbito de elaboração quanto no de aplicação das normas.

1.2.1. Princípio da indissolubilidade do pacto federativo

No Brasil, as unidades federadas receberam a denominação de Estados, o que, em termos políticos, reforça a ideia de autonomia atribuída a cada uma delas. O vínculo entre esses Estados-membros, que são entes federativos unidos pela constituição,

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 283Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 283 06/02/2020 14:44:3706/02/2020 14:44:37

Page 5: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino284

não tem natureza semelhante à de acordos internacionais celebrados entre Estados soberanos e que, a qualquer instante, pode ser denunciado pelo Estado-parte.

O princípio da indissolubilidade do pacto federativo, consagrado no Brasil desde a primeira Constituição Republicana (1891), tem por finalidade conciliar a descen-tralização do poder político com a preservação da unidade nacional. Ao estabelecer que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Distrito Federal e Municípios, a Constituição veda, aos entes que compõem a fede-ração brasileira, o direito de secessão. Caso ocorra qualquer tentativa de separação tendente a romper com a unidade da federação brasileira, é permitida a intervenção federal com o objetivo de manter a integridade nacional (CF, art. 34, I).

1.3. Princípio do Estado democrático de direito

O Estado de direito assumiu formas variadas e passou por profundas transforma-ções ao longo de sua história. A abordagem das diferentes configurações adotadas por este modelo contribui para a adequada compreensão do significado do princípio do Estado democrático de direito.

1.3.1. Estado liberal

A primeira institucionalização coerente e com certo caráter geral do Estado de direito ocorre com a Revolução Francesa, ainda que sejam encontrados precedentes mais ou menos imprecisos da ideia de “império da lei” na Antiguidade, na Idade Média e no Ancien Régime. O Estado de direito é um Estado liberal de direito, que representa a institucionalização do triunfo da burguesia ascendente sobre as classes privilegiadas do Antigo Regime. Contra a ideia de um Estado de polícia, que tudo regula e que assume a busca da “felicidade dos súditos” como tarefa própria, no Estado Liberal há nítida distinção entre forças políticas e econômicas (Estado abstencionista).1

A limitação do Estado pelo direito com a distribuição das funções em órgãos distintos (“separação dos poderes”) é um dos aspectos distintivos em relação ao modelo anterior. No Estado monárquico absolutista, o poder legiferante, a execução da lei e a jurisdição se concentravam em um só órgão. Como anota Dieter Grimm (2006a), “o monarca não estava apenas autorizado a interpretar as leis promulgadas por ele como autênticas, ou seja, com efeito obrigatório para a aplicação do direito, mas, sobretudo, podia também avocar todo ato de aplicação do direito e, ele mesmo, tomar decisões individuais baseadas na sua própria compreensão da norma.”

As principais características do Estado liberal são:

1. No Estado de polícia, característico do século XVIII, o soberano governava em nome do Estado, mas exercia o poder de forma discricionária, conforme aquilo que considerasse de interesse do Estado e dos súditos.

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 284Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 284 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 6: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 285

I) os direitos fundamentais basicamente correspondem aos direitos da burgue-sia (liberdade e propriedade), sendo consagrados apenas de maneira formal e parcial para as classes inferiores;

II) a intervenção da Administração Pública somente pode ocorrer dentro da lei (princípio da legalidade da Administração Pública);

III) a limitação pelo Direito se estende ao soberano que, ao se transformar em “órgão do Estado”, também passa a se submeter ao império da lei (Estado limitado);

IV) o papel do Estado se limita à defesa da ordem e segurança públicas, sendo os domínios econômicos e sociais deixados à esfera da liberdade individual e de concorrência (Estado mínimo).2

A concretização do Estado de direito ocorre de variadas formas, em razão da pluralidade de culturas, de circunstâncias históricas e da configuração de cada or-denamento jurídico estatal. Ainda que em todas as experiências jurídicas possa ser identificada uma tentativa de alicerçar a juridicidade estatal, a “domesticação do domínio político” pelo direito ocorre de maneiras distintas, motivo pelo qual se faz relevante identificar e distinguir três conceitos: Rule of Law, Rechtsstaat e État Légal.

O marco teórico do Rule of Law é Albert V. Dicey, com sua obra The law of the Constitution (1885). Compreendida como o governo das leis, em substituição ao governo dos homens, a expressão encontra sua base na limitação do poder arbitrá-rio e na igualdade dos cidadãos ingleses perante a lei, ideais florescidos durante a Idade Média. Em que pese a variação do sentido da interpretação conferida a esta fórmula, Canotilho (2000) identifica quatro significados básicos atribuídos à Rule of Law: a obrigação da observância de um processo justo legalmente regulado, quando se tiver de julgar e punir os cidadãos, privando-os da sua liberdade e propriedade (princípio do devido processo legal em seu caráter substantivo); a proeminência das leis e costumes do país perante a discricionariedade do poder real; a sujeição de todos os atos do executivo à soberania do parlamento; a igualdade de acesso aos tribunais por parte dos cidadãos a fim de defenderem os seus direitos segundo “os princípios de direito comum dos ingleses (Common Law) e perante qualquer entidade (indivíduos ou poderes públicos).”

O Rechtsstaat (Estado de direito) surge na Prússia do século XVIII, sob a in-fluência de diversas experiências políticas e culturais que tinham como viga mestra a impessoalidade do poder. O Estado era considerado o único soberano, sendo todos, do Rei ao mais ínfimo funcionário, seus servidores. Diversamente de outras culturas

2. O liberalismo político postula um Estado limitado, enquanto o liberalismo econômico propugna por um Estado mínimo. Para Adam Smith, principal representante desta vertente econômica, o Estado deve ter apenas três deveres: proteger a sociedade da violência e da invasão por outras sociedades; estabelecer uma adequada administração da justiça; e erigir e manter certas obras e instituições públicas que nunca seriam do interesse privado, porquanto o lucro não reembolsaria as despesas.

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 285Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 285 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 7: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino286

– como a inglesa –, que distinguiam na lei tanto o aspecto formal (voluntas) quanto o material (ratio), no Rechtsstaat a lei é compreendida como sinônimo de vontade do soberano. O direito torna-se mera força, sendo eliminada a antítese, identificadora do constitucionalismo, entre o poder e os direitos individuais. Isso se explica pelo fato de este ideal ter amadurecido dentro do clima do positivismo jurídico, no qual o místico respeito pela lei é associado a um modo de concebê-la absolutamente voluntarista. Se o Estado de direito é apenas um modo de exercer o poder, o direito não será um verdadeiro limite a este poder, mas apenas o modo de se externar. O cidadão não pode opor os próprios direitos originários contra o Estado, porquanto sua soberania não conhece limites. O Estado persegue seus fins somente dentro das formas e dos limites do direito e, portanto, deve garantir aos cidadãos a certeza de sua liberdade jurídica, uma liberdade sempre concedida pelo Estado. Mateucci (1998) observa que, ao delimitar a justiça ao campo administrativo, excluindo-a do constitucional, a teoria do Rechtsstaat apresenta o grave inconveniente de não opor limites ao poder do Estado, senão os de caráter processual, sendo os direitos individuais concebidos apenas como o resultado de uma autolimitação por parte do Estado.

No constitucionalismo francês, a expressão État légal pode ser compreendida como o estabelecimento de normas por meio de legisladores eleitos democraticamen-te. As leis elaboradas pelo Parlamento são concebidas como a expressão da vontade política geral e dos imperativos constitucionais, tal como enumerado na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), os quais limitam os legisladores em suas escolhas, ainda que as limitações e objetivos impostos pela Constituição desempe-nhem um papel exclusivamente político. As concepções de État légal e Rechtsstaat são muito próximas. Ambas se referem a um sistema de leis feitas pelo legislador, ainda que apenas no État légal se verifique a exigência de que este seja eleito de-mocraticamente. Canotilho (2000) assinala que o État légal foi concebido como uma ordem jurídica hierárquica de quatro níveis, cuja estrutura ainda serve de paradigma para alguns Estados constitucionais da atualidade: I) no vértice da pirâmide, estava situada a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, que, ao consagrar os “direitos naturais e sagrados do homem”, estabeleceu uma disciplina vinculativa para a própria constituição; II) no plano imediatamente inferior, situava-se a constituição de 1791; III) logo abaixo, vinham as leis; e IV) na base da pirâmide, situavam-se os atos do executivo de aplicação das leis. Toda-via, a supremacia da constituição acabou sendo neutralizada pela primazia da lei. A sujeição do poder ao direito, por estar radicada mais na substância das suas ideias do que na capacidade de elaborar procedimentos capazes de lhes conferirem uma operatividade prática, acabou fazendo do constitucionalismo francês, paradoxalmente, um “constitucionalismo sem constituição”.

Interessante notar que a profunda desconfiança dos revolucionários franceses nos juízes não deixava margem para adjudicação da constituição, o que posteriormente acabou se mostrando inadequado para uma democracia constitucional. Na tentativa de remediar esta deficiência, o État du Droit foi invocado para suprir o État légal, com

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 286Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 286 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 8: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 287

a tarefa de transformar garantias constitucionais de natureza política em garantias legais. Sua finalidade era substituir a “Constituição como política” pela “Constituição como lei”, conferindo-lhe um caráter jurídico. A combinação entre État légal e État du Droit é mais próxima do Verfassungsstaat (“Estado Constitucional”) do que do Rechtsstaat (“Estado de Direito”).

Nos Estados Unidos, a noção de “Império do Direito” (The Reign of Law) ganhou contornos inovadores, tendo como aspecto distintivo a ideia de submissão de todos ao Direito (Always under Law). O Estado constitucional estadunidense apresenta os seguintes aspectos distintivos: I) direito do povo de elaborar uma lei superior na qual são estabelecidos os direitos e liberdades dos cidadãos, os esquemas essenciais do governo e seus respectivos limites; II) associação da juridicidade do poder à justifi-cação do governo (sempre subordinado às leis), cujas razões devem ser públicas de modo a tornar patente o consentimento do povo em ser governado sob determinadas condições; III) tribunais constituídos por juízes (agentes do povo) nos quais este deposita a confiança de preservação dos princípios de justiça e dos direitos con-sagrados na lei superior. A justiça é exercida em nome do povo, podendo os juízes recorrer à constituição para declarar a nulidade de leis (CANOTILHO, 2000).

1.3.2. Estado social

O regime liberal pressupõe certa igualdade entre os indivíduos, por requerer uma competição equilibrada. Com a crise econômica e a crescente demanda por direitos sociais após o fim da Primeira Guerra Mundial (1918), houve também a crise do li-beralismo, dando origem a uma transformação na superestrutura do Estado liberal. O Estado abandona sua postura abstencionista para assumir um papel decisivo nas fases de produção e distribuição de bens e passando a intervir nas relações econômicas. A noção contemporânea de Estado social surge a partir da busca da superação do antagonismo existente entre a igualdade política e a desigualdade social. Ao contrário do Estado socialista (Estado proletário) que o marxismo intenta implantar, o Estado social conserva sua adesão ao capitalismo, sendo este o principal aspecto distintivo entre os dois modelos (BONAVIDES, 2007).

O Estado social adota os mais variados sistemas de organização política, alguns inclusive antagônicos. A Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, Portugal salazarista, a Inglaterra de Churchill, os Estados Unidos de Roosevelt, a França durante a Quarta República e o Brasil, a partir de 1930, foram Estados sociais. Suas principais características são:

I) intervenção no âmbito social, econômico e laboral, com o abandono da postura abstencionista;

II) papel decisivo na produção e distribuição de bens;

III) garantia de um mínimo bem-estar, por exemplo, com a criação de um salário social para os mais carentes;

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 287Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 287 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 9: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino288

IV) estabelecimento de um grande convênio global implícito de estabilidade econômica (pacto Keynesiano).

Em geral, as expressões Estado social e Estado do bem-estar social (Welfare State) são utilizadas para designar o modelo de Estado voltado à satisfação das necessidades individuais e coletivas dos cidadãos. Contudo, há quem identifique este último a um dos aspectos específicos da ação política do Estado social, qual seja, a preocupação com o bem-estar da coletividade. Nesta acepção, o Estado do bem-estar poderia ser associado também a outros modelos, como alguns Estados absolutistas.

1.3.3. Estado democrático de direito (Estado constitucional democrático)

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, na tentativa de consolidar as conquistas e suprir as lacunas das experiências anteriores, surge um novo modelo de Estado que tem como notas distintivas a introdução de novos mecanismos de soberania popular, a garantia jurisdicional da supremacia da Constituição, a busca pela efetividade dos direitos fundamentais e a ampliação do conceito de democracia. As constituições contemporâneas “representam o intento de recompor a grande fissura entre democra-cia e constitucionalismo”, por meio de uma fórmula que promova um justo equilíbrio entre o princípio democrático e a força normativa da constituição (FIORAVANTI, 2001). Na busca pela conexão entre a democracia e o Estado de direito, o princípio da soberania popular se apresenta como uma das vigas mestras deste novo modelo, impondo uma organização e um exercício democráticos do Poder (ordem de domínio legitimada pelo povo). Além da ampliação dos mecanismos tradicionais de democracia representativa, com a universalização do sufrágio para categorias antes excluídas do processo participativo (como mulheres e analfabetos...), são consagrados instrumentos de participação direta do cidadão na vida política do Estado, tais como plebiscito, referendo e iniciativa popular.3 A tensão entre a nova configuração do constitucio-nalismo e o conceito meramente formal de democracia, tradicionalmente associado à premissa majoritária, promove o desenvolvimento de uma dimensão substancial da democracia,4 a fim de assegurar que os direitos fundamentais sejam efetivamente usufruídos por todos, inclusive pelas minorias perante a vontade popular majoritária.5

3. Por considerar que o povo era incapaz de tomar decisões de forma direta, Montesquieu (2009) afirmava: “a grande vantagem dos representantes é serem capazes de discutir os negócios. O povo não está apto para isso, o que constitui um dos grandes inconvenientes da Democracia. [...] O povo não deve participar senão para escolher os seus representantes, o que está muito ao seu alcance.”

4. FERRAJOLI (2005): “A subordinação da lei aos princípios constitucionais equivale a introduzir uma dimensão substancial, não só nas condições de validade das normas, mas também na natureza da democracia, para representar um limite e, ao mesmo tempo, completá-la. Um limite porque aos direitos constitucionalmente estabelecidos correspondem proibições e obrigações impostas aos poderes e da maioria, que de outra forma seriam absolutos. E a completa porque estas mesmas proibições e obrigações se configuram como outras tantas garantias dos direitos de todos, frente ao abuso de tais poderes que – como a experiência ensina – poderiam de outro modo envolver, junto com os direitos, o próprio método democrático.”

5. GRIMM (2006b): “Parece difícil adotar um conceito de democracia que seja puramente formal. Primeiro, um conceito de democracia baseado somente no princípio majoritário é incapaz de assegurar eficazmente um

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 288Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 288 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 10: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 289

A fim de destacar a mudança do paradigma de Estado, que antes associado à ideia de “império da lei” (Estado de direito) passa a ter na supremacia da constituição sua característica nuclear (Estado constitucional), há quem prefira a designação Estado constitucional democrático.6 No Estado constitucional, a constituição é a norma mais elevada, não apenas sob o ponto de vista formal, mas também substancial.7 Dentre as principais características desse modelo de Estado estão:

I) consagração de institutos de democracia direta e indireta que introduzem o povo no governo do Estado, tais como plebiscito, referendo e iniciativa popular (CF, art. 14, I a III);

II) preocupação com a efetividade e dimensão material dos direitos fundamen-tais, assegurados mediante a jurisdição constitucional;8

III) limitação do Poder Legislativo, não apenas no aspecto formal (modo de produção do direito), mas também no âmbito material, fiscalizando a compa-tibilidade do conteúdo das leis com os valores consagrados na Constituição;

IV) imposição constitucional não apenas de limites, mas também de deveres ao legislador;

V) aplicação direta da constituição com o reconhecimento definitivo de sua força normativa;

VI) ampliação do conceito meramente formal de democracia (participação popular, vontade da maioria, realização de eleições periódicas, alternância no Poder) para uma dimensão substancial, como decorrência do reconhecimento da força normativa e vinculante dos direitos fundamentais, os quais devem ser usufruídos

governo democrático. Ele não previne a maioria de abolir a regra da maioria. Segundo, a democracia, ainda que identificada com a regra da maioria, fica difícil de ser concebida sem umas garantias adicionais para o funcionamento do processo democrático. Liberdade de expressão e informação são, indiscutivelmente, as mais importantes. A proteção da minoria é outra garantia cuja ausência diminuiria sensivelmente as chances de uma mudança democrática. Essas garantias adicionais, quando atribuídas à noção de democracia, poderiam, por óbvio, estar sujeitas ao escrutínio judicial sem violar o princípio democrático”.

6. Em um sentido mais amplo, o conceito de Estado constitucional pode ser empregado, pela primeira vez, para a Monarquia Constitucional inglesa do século XVII, na qual foram elaborados os documentos mais próximos das Constituições escritas modernas – como o Agreement of the People (1647) e o Instrument of Government (1653), ainda que tenham sido manifestações isoladas e de aplicação muito breve (STERN, 1987). Atualmente, qualquer que seja o seu conceito ou justificação, o Estado só se concebe como Estado constitucional (CANOTILHO, 2000).

7. Para Ferrajoli (2005), o Estado legislativo de Direito e o Estado constitucional de Direito são modelos norma-tivos que refletem experiências históricas diferentes, ambas desenvolvidas no continente europeu e, cada uma delas, fruto de uma mudança de paradigma na natureza e estrutura do Direito, da ciência jurídica e da jurisdição.

8. A inter-relação entre Estado de direito, direitos fundamentais e democracia é assinalada por Marcelo Neves (2009) nos seguintes termos: “Estado de direito e direitos fundamentais sem democracia não encontram nenhuma garantia de realização, pois todo modelo de exclusão política põe em xeque os princípios jurídicos da legalidade e da igualdade, inerentes, respectivamente, ao Estado de direto e aos direitos fundamentais. Por seu turno, a democracia sem Estado de direito e direitos fundamentais descaracteriza-se como ditadura da maioria. Essas são as dimensões da complementariedade.”

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 289Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 289 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 11: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino290

por todos, inclusive pelas minorias perante a vontade popular (pluralismo, proteção das minorias, papel contramajoritário do Poder Judiciário...).9

2. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERESCF, art. 2.º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

No célebre “sistema de freios e contrapesos” (checks and balances) a repartição equilibrada dos poderes entre os diferentes órgãos é feita de modo que nenhum deles possa ultrapassar os limites estabelecidos pela constituição sem ser contido pelos demais. A classificação das funções do Estado foi inicialmente esboçada por Aristóteles (384 a 322 a.C.) no texto intitulado “Política”. Nos tempos modernos, John Locke foi o primeiro autor a formular uma teoria da separação dos poderes do Estado, apesar de só tê-lo feito entre Legislativo e Executivo, não contemplando o Judiciário. De acordo com o filósofo inglês – que contribuiu para a formação da separação dos poderes por meio da interpretação de instituições adotadas na Grã--Bretanha em decorrência da Revolução de 1688 –, reunir o Legislativo e o Executivo em um mesmo órgão “seria provocar uma tentação muito forte para a fragilidade humana, tão sujeita à ambição...” (CAETANO, 2003).

Inspirado na obra de Locke, Montesquieu escreveu o clássico tratado L’Esprit des lois (1748). Após constatar, com base na “experiência eterna”, que todo aquele que é investido no poder tende a dele abusar até que encontre limites, o escritor francês sustenta que a limitação a um poder só é possível se houver um outro poder capaz de limitá-lo. A descrição da Constituição inglesa como exemplo de limitação do Poder pelo Poder, argumenta Ferreira Filho (2007), pode ter tido a intenção ocul-ta, em razão das cautelas exigidas pela época, de “recomendar a divisão do Poder como remédio contra o absolutismo e como garantia da liberdade”, especialmente se assegurada a independência do Judiciário. A obra de Montesquieu teve grande difusão não apenas na Europa, mas também na América, influenciando a Constituição da Filadélfia que consagrou a fórmula da especialização dos órgãos e da recíproca limitação entre os poderes, “com o objetivo concreto de impedir a concentração e o exercício despótico do poder.” Na sua concepção, deve ser atribuído a cada órgão não apenas a faculdade de decidir ou estatuir certo domínio da atividade estatal, mas também a faculdade de impedir os abusos por parte dos demais órgãos (CAETANO,

9. Ferrajoli (2005) lembra que “uma Constituição não serve para representar a vontade comum de um povo, mas para garantir os direitos de todos, inclusive frente à vontade popular. Sua função não é expressar a existência de um demos, é dizer, de uma homogeneidade cultural, identidade coletiva ou coerência social, mas, ao contrário, a de garantir, através daqueles direitos, a convivência pacífica entre sujeitos e interesses diversos e virtualmente em conflito. O fundamento de sua legitimidade, diversamente do que ocorre com as leis ordinárias e as opções de governo, não reside no consenso da maioria, mas em um valor muito mais importante e prévio: a igualdade de todos nas liberdades fundamentais e nos direitos sociais, ou seja, em direitos vitais conferidos a todos, como limites e vínculos, precisamente, frente às leis e aos atos de governo expressados nas contingentes maiorias.”

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 290Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 290 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 12: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 291

2003). Na Revolução Francesa, as fórmulas práticas de equilíbrio dos órgãos supremos do Estado se converteram em doutrina de exercício da soberania. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão preceitua, em seu artigo 16, que “toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição.”

A doutrina liberal do início do século XIX preconizava uma rigorosa separação de funções a serem atribuídas com exclusividade a cada órgão da soberania. No entanto, esta rígida separação, diversamente da fórmula elaborada por Montesquieu, mostrou-se inadequada, sendo que atualmente a ideia de limitação da soberania por meio da re-partição das competências distribuídas por diversos órgãos perdeu grande parte de seu valor. Hoje, o princípio não apresenta a mesma rigidez, e a ampliação das atividades estatais impôs novas formas de inter-relação entre os Poderes, de modo a estabelecer uma colaboração recíproca. Atualmente há uma tendência de considerar que a teoria da separação dos poderes engendrou um mito, consistente na atribuição a Montesquieu de um modelo teórico reconduzível à teoria dos três poderes rigorosamente separados, no qual cada poder recobriria uma função própria sem qualquer interferência dos outros.10

A Constituição de 1988, além de consagrar expressamente o princípio da se-paração dos poderes (CF, art. 2.º) e protegê-lo como cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4.º, III), estabeleceu toda uma estrutura institucional de forma a garantir a independência entre eles, matizada com atribuições de controle recíproco. Por não haver uma “fórmula universal apriorística” para este princípio, é necessário extrair da própria Constituição o traço essencial da atual ordem para fins de controle de constitucionalidade.11 A independência entre os poderes tem por finalidade estabelecer um sistema de “freios e contrapesos” para evitar o abuso e o arbítrio por qualquer dos Poderes. A harmonia, por sua vez, exterioriza-se no respeito às prerrogativas e faculdades atribuídas a cada um deles.

3. FUNDAMENTOSCF, art. 1.º A República Federativa do Brasil [...] tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa;

V – o pluralismo político.

10. Nas palavras de José Afonso da Silva (2005a), “a ‘harmonia entre os poderes’ verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.”

11. STF – ADI 98, Rel. Min. Sepúlveda Pertence (07.08.1997).

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 291Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 291 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 13: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino292

Os fundamentos de um Estado devem ser compreendidos como os valores essen-ciais que compõem sua estrutura. A consagração expressa da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa e do pluralismo político como fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art. 1.º, I a V), sem dúvida, atribui a esses valores especial significado dentro de nossa ordem constitucional.

Os princípios nos quais esses fundamentos se materializam desempenham um importante papel, seja de forma indireta, atuando como diretriz para a elaboração, interpretação e aplicação de outras normas do ordenamento jurídico, seja de forma direta, quando utilizados como razões para a decisão de casos concretos. Apesar de esses princípios fundamentais não possuírem qualquer tipo de hierarquia normativa em relação às demais normas constitucionais, o elevado grau axiológico de que são dotados e a posição de destaque atribuída pelo Poder Constituinte Originário confe-rem peso elevado às razões por eles fornecidas, a ser considerado diante de eventual colisão com outros princípios constitucionais.

3.1. Soberania

A soberania estatal, enquanto atributo caracterizador do Estado, passou por um longo período de desenvolvimento teórico, até alcançar sua configuração atual. A edificação do conceito confunde-se com o próprio processo histórico de formação de Estados, uma vez que não era atribuível às instituições antes existentes, para as quais foram estabelecidas concepções análogas à soberania, porém essencialmente distintas. No século XVI, apontado como o marco inicial de seu desenvolvimento teórico, destaca-se a obra Les Six Livres de la République, de Jean Bodin (1576). No plano das relações internacionais, entretanto, esta noção somente é concretizada com a Paz de Westfalia (1648), responsável pela afirmação da coexistência de Estados independentes.

Em seus primórdios, o conceito de soberania – para o qual não houve equiva-lente na Antiguidade ou na Idade Média – designava precipuamente o poder supremo atribuído ao príncipe no âmbito interno, e não a independência de um Estado em relação aos demais. Posteriormente, a soberania passou a ser definida como um poder político supremo e independente. Supremo, por não estar limitado por nenhum outro na ordem interna; independente, por não ter de acatar, na ordem internacional, regras que não sejam voluntariamente aceitas e por estar em igualdade com os poderes supremos dos outros povos (CAETANO, 2003).

O conceito pode ser utilizado, portanto, em dois âmbitos distintos. A soberania externa com referência à representação dos Estados, uns para com os outros, na or-dem internacional; a soberania interna relacionada à supremacia estatal perante seus cidadãos na ordem interna. Por ser um instituto dinâmico, a soberania está constan-temente sujeita a alterações em seu sentido. A evolução do Estado de Direito formal

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 292Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 292 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 14: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 293

para o Estado Constitucional Democrático fez com que, no plano interno, a soberania migrasse do soberano para o povo, exigindo-se uma legitimidade formal e material das Constituições. No plano externo, a rigidez de seus contornos foi relativizada com a reformulação do princípio da autodeterminação dos povos e o reconhecimento do Estado pela comunidade internacional.

O desenvolvimento dos meios de comunicação e de informação (rede mundial de computadores), a globalização política e econômica, fizeram com que o concei-to de soberania fosse ainda mais flexibilizado, causando uma crise na delimitação deste conceito e impondo sua reavaliação em face da atual conjuntura. Segundo Zagrebelsky (1992), desde o final do século passado algumas “forças corrosivas” têm atuado vigorosamente na soberania estatal, tanto interna como externamente, dentre elas: I) o pluralismo político e social interno, que se opõe à ideia de soberania e de sujeição; II) a formação de centros de poder alternativos e concorrentes com o Estado, operantes no campo político, econômico, cultural, religioso e, com frequên-cia, em dimensões totalmente independentes do território estatal; III) a progressiva institucionalização de “contextos” integrantes dos poderes estatais em dimensões supraestatais, às vezes promovida pelos próprios Estados; e, IV) a atribuição de di-reitos aos indivíduos, que podem fazê-los valer, perante jurisdições internacionais, frente aos próprios Estados a que pertencem.

3.2. Cidadania

A cidadania, enquanto conceito decorrente do princípio do Estado Democrático de Direito, consiste na participação política do indivíduo nos negócios do Estado e até mesmo em outras áreas de interesse público. O tradicional conceito de cidadania vem sendo gradativamente ampliado, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Ao lado dos direitos políticos, compreendem-se em seu conteúdo os direitos e garantias fundamentais referentes à atuação do indivíduo em sua condição de cidadão.

3.3. Dignidade da pessoa humana

Consagrada expressamente no inciso III do artigo 1.º da Constituição brasileira de 1988, a dignidade da pessoa humana desempenha um papel de proeminência entre os fundamentos do Estado brasileiro. Núcleo axiológico do constitucionalismo contemporâneo, a dignidade é considerada o valor constitucional supremo e, enquan-to tal, deve servir, não apenas como razão para a decisão de casos concretos, mas principalmente como diretriz para a elaboração, interpretação e aplicação das normas que compõem a ordem jurídica em geral, e o sistema de direitos fundamentais, em particular. O reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana pelas constituições em diversos países ocidentais tiveram um vertiginoso aumento após a Segunda Guerra Mundial, como forma de reação às práticas ocorridas durante o nazismo e o fascismo e contra o aviltamento desta dignidade praticado pelas ditaduras ao

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 293Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 293 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 15: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino294

redor do mundo. A escravidão, a tortura e, derradeiramente, as terríveis experiências feitas pelos nazistas com seres humanos, fizeram despertar a consciência sobre a necessidade de proteção da pessoa, com o intuito de evitar sua redução à condição de mero objeto. A partir do início da década de 1990, com a queda do comunismo, a dignidade foi consagrada também em diversos textos constitucionais de países do leste europeu.12

O fato de ser cada vez maior o número de declarações universais de direitos e de constituições que a consagram expressamente é relevante na medida em que confere a esta noção um inquestionável caráter jurídico. Vale dizer: a positivação impõe que a dignidade, enquanto valor originariamente moral, seja reconhecida também como um valor tipicamente jurídico, revestido de normatividade. Ainda que o princípio da dignidade da pessoa humana possa ser deduzido do sistema de direitos fundamentais, a consagração expressa, no mínimo, reduz o ônus argumentativo do intérprete. A inclusão nos textos constitucionais reforça, ainda, o reconhecimento de que a pessoa não é simplesmente um reflexo da ordem jurídica, mas, ao contrário, deve constituir o seu objetivo supremo, sendo que na relação entre o indivíduo e o Estado deve haver sempre uma presunção a favor do ser humano e de sua personalidade. O indivíduo deve servir de “limite e fundamento do domínio político da República”, pois o Estado existe para o homem e não o homem para o Estado (CANOTILHO, 2000).

A dignidade, em si, não é um direito, mas uma qualidade intrínseca a todo ser humano, independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro requisito. Nesse sentido, não pode ser considerada como algo relativo. Nas palavras de Béatrice Maurer (2005), “a pessoa não tem mais ou menos dignidade em relação à outra pessoa. Não se trata, destarte, de uma questão de valor, de hie-rarquia, de uma dignidade maior ou menor. É por isso que a dignidade do homem é um absoluto. Ela é total e indestrutível. Ela é aquilo que chamamos inamissível, não pode ser perdida.” O fato de a dignidade ter um caráter absoluto – isto é, não comportar gradações no sentido de existirem pessoas com maior ou menor dignida-de – não significa que a dignidade humana seja um princípio absoluto, pois apesar de ter um peso elevado na ponderação, o seu cumprimento, assim como o de todos os demais princípios, ocorre em diferentes graus, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes.

Uma série de obstáculos dificulta a tarefa de definir com precisão o que seja a dignidade da pessoa humana, mas não impede a identificação de hipóteses nas

12. Como exemplo, podem ser citadas a Constituição da República da Croácia, de 22 de dezembro de 1990 (art. 25); a Constituição da Bulgária, de 12 de julho de 1991 (preâmbulo); a Constituição da Romênia, de 8 de dezembro de 1991 (art. 1.º); a Lei Constitucional da República da Letônia, de 10 de dezembro de 1991 (art. 1.º); a Constituição da República Eslovena, de 23 de dezembro de 1991 (art. 21); a Constituição da República da Estônia, de 28 de junho de 1992 (art. 10.º); a Constituição da República da Lituânia, de 25 de outubro de 1992 (art. 21); a Constituição da República Eslovaca, de 1.º de setembro de 1992 (art. 12); a Constituição da República Tcheca, de 16 de dezembro de 1992 (Preâmbulo) e a Constituição da Federação da Rússia, de 12 de dezembro de 1993 (art. 21).

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 294Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 294 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 16: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 295

quais ocorre sua violação no plano jurídico. Como já dito anteriormente, a dignida-de é uma qualidade intrínseca de todo ser humano, e não um direito conferido às pessoas pelo ordenamento jurídico. A sua consagração como fundamento do Estado brasileiro não significa, portanto, a atribuição de dignidade às pessoas, mas sim a imposição aos poderes públicos dos deveres de respeito, proteção e promoção dos meios necessários a uma vida digna.

O dever de respeito impede a realização de atividades e condutas atentatórias à dignidade humana (“obrigação de abstenção”). De acordo com a denominada “fórmula do objeto”, a dignidade é violada nos casos em que o ser humano é tratado não como um fim em si mesmo, mas como mero instrumento para se atingir determinados objetivos. Por existirem situações em que o tratamento de determinadas pessoas como objeto de medidas estatais não significa necessariamente uma violação de sua dignidade,13 a fórmula do objeto deve ser matizada. Assim, pode-se dizer que a violação da dignidade ocorre quando o tratamento como objeto constitui uma expressão do desprezo pela pessoa ou para com a pessoa. Esta acepção, ligada ao valor liberdade, veda a prática de condutas violadoras da dignidade, exigindo uma abstenção dos poderes públicos e dos particulares. Em síntese, o dever de respeito à dignidade impede que uma pessoa seja tratada como um meio para se atingir um determinado fim (aspecto objetivo), quando este tratamento for fruto de uma expressão do desprezo pela pessoa em razão de sua condição (aspecto subjetivo).

O dever de proteção exige uma ação positiva dos poderes públicos na defesa da dignidade contra qualquer espécie de violação, inclusive por parte de terceiros. Nesse sentido, cabe ao Poder Legislativo estabelecer normas adequadas à proteção da dignidade (princípio da proibição de proteção insuficiente), e.g., por meio da criminalização de condutas que causem uma grave violação a este bem jurídico. No âmbito da aplicação judicial do direito, o dever de proteção à dignidade atua como importante diretriz hermenêutica a orientar a interpretação e aplicação de outras normas.14

O dever de promoção impõe a adoção de medidas que possibilitem o acesso aos bens e utilidades indispensáveis a uma vida digna. Ligado à igualdade material,

13. É o caso, por exemplo, de voluntários que se oferecem para participar de experiências relacionadas ao desenvolvimento de nova vacina ou de novo medicamento.

14. O princípio da dignidade da pessoa humana costuma ser utilizado, por exemplo, na interpretação do caput do artigo 5.º da Constituição. Nesse sentido: STF – HC 94.447, Rel. Min. Gilmar Mendes (06.09.2011): “Em conclusão, a Segunda Turma concedeu a ordem para afastar o óbice da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito a estrangeiro não residente no país. (...) Consignou, de início, que o fato de o estrangeiro não possuir domicílio no território brasileiro não afastaria, por si só, o benefício da substituição da pena. (...) Não se trataria, pois, de critério que valorizasse a residência como elemento normativo em si mesmo. Assentou que a interpretação do art. 5.º, caput, da CF não deveria ser literal, porque, de outra forma, os estrangeiros não residentes estariam alijados da titularidade de todos os direitos fundamentais. Ressaltou a existência de direitos assegurados a todos, independentemente da nacionalidade do indivíduo, porquanto considerados emanações necessárias do princípio da dignidade da pessoa humana. (...) Nesse ponto, concluiu que o fato de o paciente não possuir domicílio no Brasil não legitimaria a adoção de tratamento distintivo e superou essa objeção” (Informativo 639/STF).

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 295Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 295 06/02/2020 14:44:3806/02/2020 14:44:38

Page 17: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino296

exige uma atuação positiva dos poderes públicos, no sentido de fornecer prestações materiais (saúde, educação, moradia, lazer, trabalho, assistência e previdência so-cial...) e jurídicas (elaboração de leis, assistência judiciária, segurança pública...). A dignidade atua, sob esta perspectiva, como princípio cujo núcleo é o “mínimo existencial”.15 Segundo Ana Paula de Barcellos (2002), a ideia do mínimo existencial (ou núcleo da dignidade humana) tem sido proposta como forma de superação de várias dificuldades inerentes à dignidade, “na medida em que procura representar um subconjunto, dentro dos direitos sociais, econômicos e culturais, menor – minimi-zando o problema dos custos – mais preciso – procurando superar a imprecisão dos princípios – e, sobretudo, efetivamente exigível do Estado...”.

A partir de tais considerações é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, possui uma tripla dimensão normativa. Isso significa que, por meio da interpretação do dispositivo constitucional que a consagra (CF, art. 1.º, III), é possível extrair três distintas espécies de normas:16

I) uma metanorma, que atua como diretriz a ser observada na criação e inter-pretação de outras normas. A atuação como elemento informador do desen-volvimento do conteúdo da Constituição faz da dignidade uma importante diretriz hermenêutica, cujos efeitos se estendem por todo o ordenamento jurídico. Mesmo quando possível o recurso a um direito fundamental espe-cífico, ela deve ser considerada como parâmetro valorativo;

II) um princípio, que impõe aos poderes públicos o dever de proteção da dig-nidade e de promoção dos valores, bens e utilidades indispensáveis a uma vida digna; e,

III) uma regra, a qual determina o dever de respeito à dignidade, seja pelo Estado, seja por terceiros, no sentido de impedir o tratamento de qualquer pessoa como um objeto, quando este tratamento for expressão do desprezo pelo ser humano.

3.3.1. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais

Existe uma relação de mútua dependência entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, pois, ao mesmo tempo em que estes surgiram como uma exigência da dignidade de proporcionar o pleno desenvolvimento da pessoa humana, somente por meio da existência desses direitos a dignidade poderá ser respeitada,

15. Para Luís Roberto Barroso (2001), o núcleo material elementar da dignidade da pessoa humana “é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade.”

16. Esta afirmação parte da premissa de que a norma e o texto normativo (dispositivo) não se confundem. Por certo, um dispositivo pode conter várias normas, assim como uma norma pode surgir a partir de vários dispositivos.

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 296Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 296 06/02/2020 14:44:3906/02/2020 14:44:39

Page 18: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 297

protegida e promovida. A intenção específica da consagração de um conjunto de direitos fundamentais é explicitar uma ideia de ser humano, manifestada juridica-mente no princípio da dignidade da pessoa humana. Esta se constitui na referência valorativa de todos os direitos fundamentais, delimitando, desse modo, o âmbito de sua matéria. Os direitos fundamentais constituem um sistema estruturado em refe-rência a esse valor que os fundamenta.17 A dignidade é o fundamento, a origem e o ponto comum entre os direitos fundamentais, os quais são imprescindíveis para uma vida digna. Nas palavras de Jürgen Habermas (2010), “a dignidade humana, que é uma e a mesma em toda parte e para todos, fundamenta a indivisibilidade de todas as categorias dos direitos humanos. Só em colaboração uns com os outros podem os direitos fundamentais cumprir a promessa moral de respeitar igualmente a dignidade humana de cada pessoa.”

O reconhecimento de certos direitos fundamentais é manifestação necessária da primazia da dignidade da pessoa humana, núcleo axiológico da constituição. É certo, no entanto, que nem todos os direitos fundamentais derivam da dignidade humana com a mesma intensidade: enquanto a vida, a liberdade e a igualdade decorrem de forma direta (derivações de primeiro grau), outros são apenas derivações indiretas (derivações de segundo grau).18

Uma questão interessante pode ser suscitada no que se refere à relação entre os direitos fundamentais e a dignidade: se a dignidade, de fato, é o fundamento dos direitos fundamentais, como explicar o fato de que somente após a Segunda Guerra Mundial ela começou a desempenhar um papel central nas constituições? Por que esta noção não estava presente na clássica declaração de direitos humanos do século XVIII nem nas Constituições até metade do século XX? Por que começou a se falar de direitos humanos/fundamentais muito antes de se falar em dignidade humana? Será que apenas após o Holocausto a ideia de direitos humanos se torna, por assim dizer, retrospectivamente carregada com o conceito de dignidade?

Contrariamente à hipótese de uma carga moral retrospectiva dos direitos humanos, Habermas (2010) defende a tese de que esta conexão conceitual existe desde o início, ainda que apenas de forma implícita. Adotando como ponto de partida histórico a ideia de que os direitos humanos sempre foram o produto de resistência ao despotismo, à opressão e à humilhação, argumenta que a conexão conceitual entre a dignidade humana e os direitos humanos tem evidentes traços em comum desde o início do desenvolvimento. O filósofo alemão conclui afirmando

17. ANDRADE (2001): “Os direitos fundamentais são os pressupostos elementares de uma vida humana livre e digna, tanto para o indivíduo como para a comunidade: o indivíduo só é livre e digno numa comunidade livre; a comunidade só é livre se for composta por homens livres e dignos.”

18. Nesse sentido, Salvador Vergés Ramírez (1997) afirma que “o parentesco da vida, liberdade e igualdade com a dignidade os situa no primeiro grau. Efetivamente, tais direitos são indiscutíveis, com a correlativa exigência de sua promoção, enquanto se assentam sobre o pilar da racionalidade da pessoa, que é o conteúdo mais nuclear de sua dignidade. Em concreto, o direito à vida, à liberdade e à igualdade são a irradiação dessa qualidade específica da condição humana.”

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 297Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 297 06/02/2020 14:44:3906/02/2020 14:44:39

Page 19: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino298

que a “dignidade humana significa um conceito normativo de fundo a partir do qual os direitos humanos podem ser deduzidos ao especificar as condições em que a dignidade é violada.”

3.4. Valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa

O reconhecimento dos valores sociais do trabalho como um dos fundamentos do Estado brasileiro impede a concessão de privilégios econômicos condenáveis, por ser o trabalho imprescindível à promoção da dignidade da pessoa humana, uma vez que pode ser visto como um ponto de partida para o acesso ao mínimo existencial e condição de possibilidade para o exercício da autonomia. A partir do momento em que contribui para o progresso da sociedade à qual pertence, o indivíduo se sente útil e respeitado. Sem ter qualquer perspectiva de obter um trabalho com uma justa remuneração e com razoáveis condições para exercê-lo, o indivíduo acaba tendo sua dignidade violada. Por essa razão, a Constituição reconhece o trabalho como um direito social fundamental (CF, art. 6.º), conferindo uma extensa proteção aos direitos dos trabalhadores (CF, arts. 7.º a 11). A consagração dos valores sociais do trabalho impõe, ainda, ao Estado o dever de proteção das relações de trabalho contra qualquer tipo de aviltamento ou exploração, como tem ocorrido com certa frequência na história do trabalho assalariado.

A liberdade de iniciativa, que envolve a liberdade de empresa (indústria e co-mércio) e a liberdade de contrato, é um princípio básico do liberalismo econômico. Além de fundamento da República Federativa do Brasil, a livre-iniciativa está con-sagrada como princípio informativo e fundante da ordem econômica (CF, art. 170), sendo constitucionalmente “assegurado a todos o livre exercício de qualquer ativi-dade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (CF, art. 170, parágrafo único). A ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (CF, art. 170). Para ser considerada legítima, a liberdade de iniciativa deverá ser exercida com este fim, e não voltada simplesmente para o lucro ou para a realização pessoal do empresário (SILVA, 2005a). Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, “o princípio da livre-iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do consumidor.”19

3.5. Pluralismo político

O pluralismo, antes de ser uma teoria, consiste em uma situação objetiva, na qual estamos imersos. Nossas sociedades são pluralistas, isto é, são sociedades com vários centros de poder (BOBBIO, 2009). Do ponto de vista normativo, o pluralismo

19. STF – RE 349.686, Rel. Min. Ellen Gracie (14.06.2005). No mesmo sentido: AI 636.883 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia (08.02.2011).

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 298Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 298 06/02/2020 14:44:3906/02/2020 14:44:39

Page 20: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 299

impõe a opção por uma sociedade na qual a diversidade e as liberdades devem ser amplamente respeitadas.

O caráter pluralista da sociedade se traduz no pluralismo social, político20 (CF, art. 1.º, V), partidário (CF, art. 17), religioso (CF, art. 19), econômico (CF, art. 170), de ideias e de instituições de ensino (CF, art. 206, III), cultural (CF, arts. 215 e 216) e dos meios de informação (CF, art. 220). Esse fundamento é concretizado, ainda, por meio do reconhecimento e proteção das diversas liberdades, dentre elas, a de opinião, a filosófico-religiosa, a intelectual, artística, científica, a de comunicação, a de orientação sexual, a profissional, a de informação, a de reunião e a de associa-ção (CF, art. 5.º, IV, VI, IX, X, XIII, XIV, XVI e XVII). Ferrajoli (2005) adverte que a garantia dos direitos de liberdade e igualdade é condição necessária para a formação da única identidade coletiva que realmente vale a pena perseguir, qual seja, aquela fundada no respeito recíproco, e não em exclusões ou intolerâncias geradas pelas identidades étnicas, nacionais ou religiosas.

Consagrado na Constituição de 1988 como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art. 1.º, V), o pluralismo político, em um sentido amplo, compreende: o pluralismo econômico (economia de mercado; concorrência de empresas entre si; setor público distinto do privado); o pluralismo político-partidário (exis-tência de vários partidos ou movimentos políticos que disputam entre si o poder na sociedade) e o pluralismo ideológico (diversas orientações de pensamento; diversas visões de mundo; diversos programas políticos; opinião pública não homogênea, não monocórdia, não uniforme).

O pluralismo está indissociavelmente ligado à diversidade e à alteridade. Não há pluralismo sem respeito às diferenças, ao caráter do que é outro, ao antônimo da identidade. Ao abordar o “princípio da alteridade”, Wellington Nery assevera a importância do pluralismo nas sociedades, as quais devem ser múltiplas como a vida o é. E lembra: “o diferente é necessário, imprescindível, essencial. Respeitar o outro é querer respeito consigo. Somos todos uns em função do outro. Não nos cabe o preconceito, a intolerância, a estupidez, a barbárie.”21

20. STF – ADI 3.059 MC/RS, Rel. Min. Carlos Britto: “... entendido o pluralismo político, já do ângulo dos cida-dãos, como o direito de se organizar em pessoas jurídico-eleitorais diferenciadas para conceber por um modo peculiar o governo da polis. Com seus naturais desdobramentos quanto à forma de investidura e sua duração, exercício e acompanhamento crítico desse poder de abrangência territorial e pessoal máxima. Logo, e em última análise, direito à convivência político-ideológica dos contrários, que é um dos mais visíveis conteúdos da democracia.”

21. Em outro trecho, o jornalista faz alusão às intolerâncias que, de forma lamentável, ainda se mostram vis-ceralmente presentes na vida contemporânea: “Ante a diferença, buscamos a negação. Ante a diversidade, buscamos a solidão. Queremos os iguais, queremos espelhos. Queremos um conforto e uma segurança em muros de medo e vemos o mundo por entre frestas de pouca luz, de parca lucidez. A realidade cada vez mais diluída em constantes pesadelos é uma realidade não vivida plenamente. Uma realidade negligenciada pelo indiferentismo que nos domina. A nossa realidade vem sendo carcomida pelo medo. Estamos sós e mal acompanhados num mundo que desaba em certezas axiomáticas. Estamos sós e desamparados num mundo que se apequena em posicionamentos fundamentalistas. Estamos sós, num mundo de intolerâncias.”

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 299Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 299 06/02/2020 14:44:3906/02/2020 14:44:39

Page 21: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino300

A importância desses valores (pluralismo, diversidade e alteridade) é destacada pelo Ministro Celso de Mello ao asseverar que o Supremo Tribunal Federal “haverá de continuar pautando a sua atuação – permanentemente imune a confessionalismos, a fundamentalismos e a dogmatismos, que tanto oprimem o pensamento e sufocam o espírito – pelo elevado sentido ético do pluralismo, da diversidade e da alteridade, dando prevalência ao respeito pelo outro, pelo diferente, por aquilo com que não concordamos, estimulando e praticando a crença de que, na visão da totalidade, há de sempre haver espaço para o Outro e para o dissenso [...].”22

Fruto da concepção liberal, a sociedade pluralista é, por natureza, uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos, o que pode levar a divisões irre-dutíveis. Por isso, a Constituição, principal elemento de integração comunitária (princípio do efeito integrador), estabeleceu como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3.º, I).

Na visão de Norberto Bobbio (2009), o pluralismo permite explicar uma carac-terística fundamental da democracia dos modernos em comparação com a democracia dos antigos: “a liberdade – melhor: a liceidade – do dissenso.” O saudoso jusfilósofo italiano, ao defender que “a democracia de um Estado moderno nada mais pode ser que uma democracia pluralista”, ensina que “a teoria democrática e a teoria pluralista têm em comum o fato de serem duas propostas diversas mas não incompatíveis (ao contrário, são convergentes e complementares) contra o abuso do poder; represen-tam dois remédios diversos mas não necessariamente alternativos contra o poder exorbitante.” A consagração do pluralismo político como fundamento da República é um passo fundamental em direção a uma democracia pluralista.

4. OBJETIVOS FUNDAMENTAISCF, art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Inspirada em dispositivo da Constituição portuguesa de 1976, a Constituição brasileira de 1988 inovou em relação às anteriores ao estabelecer os objetivos fun-damentais (CF, art. 3.º) que visam à promoção e concretização dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Diversamente dos fundamentos (CF, art. 1.º), que são valores estruturantes do Estado brasileiro, os objetivos fundamentais consistem em algo exterior a ser perseguido na maior medida possível.

22. Discurso proferido na posse do Ministro Gilmar Mendes como Presidente do STF.

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 300Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 300 06/02/2020 14:44:3906/02/2020 14:44:39

Page 22: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

Cap. 17 • ESTRUTURA, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO BRASILEIRO 301

A construção de uma sociedade justa e solidária (princípio da solidariedade) e a busca pela redução das desigualdades sociais e regionais estão associadas à concre-tização do princípio da igualdade, em seu aspecto substancial (igualdade material). Nesse sentido, legitimam a adoção de políticas afirmativas (ações afirmativas ou discriminações positivas) por parte do Estado.

A promoção do bem de todos, sem quaisquer formas de preconceito e discrimi-nação, está diretamente relacionada à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana e ao respeito às diferenças, como exigência do pluralismo.

A erradicação da pobreza é uma das muitas concretizações do princípio da dig-nidade da pessoa humana, por estar indissociavelmente relacionada à promoção de condições dignas de vida. Com o objetivo de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência, foi instituído o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza (EC 31/2000), cujos recursos são aplicados em ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida (ADCT, art. 79). O prazo de vigência, inicialmente previsto até o ano de 2010, foi prorrogado por prazo indeterminado (EC 67/2010).

O rol de objetivos fundamentais constante do artigo 3.º da Constituição é apenas exemplificativo, isto é, não se exaure nos expressamente enumerados.

5. PRINCÍPIOS REGENTES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAISCF, art. 4.º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações inter-nacionais pelos seguintes princípios:

I – independência nacional;

II – prevalência dos direitos humanos;

III – autodeterminação dos povos;

IV – não intervenção;

V – igualdade entre os Estados;

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X – concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômi-ca, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Os princípios elencados no artigo 4.º da Constituição estabelecem orientações e limites para as condutas a serem adotadas pelo Brasil perante outros Estados e organismos internacionais. Inspirada na Constituição portuguesa de 1976, a siste-matização desses princípios pode ser creditada à atuação decisiva de destacados

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 301Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 301 06/02/2020 14:44:3906/02/2020 14:44:39

Page 23: Curso de Direito CONSTITUCIONAL€¦ · Etimologicamente, a palavra federação remonta ao vocábulo latino “foedus”, que pode ser entendido como “aliança” ou “pacto”

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • Marcelo Novelino306

Por fim, o princípio da integração latino-americana impõe ao Estado brasileiro a adoção de medidas de natureza econômica, política, social e cultural voltadas à formação de uma comunidade de nações da América Latina. Para Marcos Augusto Maliska (2014), o termo “integração” deve ser compreendido como uma autorização, concedida pelo legislador constituinte originário, para a busca de uma integração supranacional, e não apenas para uma de uma associação de Estados nos moldes tradicionais do direito internacional, ou seja, com a observância dos princípios clássicos da soberania.

6. QUADRO COMPARATIVO

Princípios fundamentais

Fundamentos (CF, art. 1.º)

Objetivos fundamentais (CF, art. 3.º)

Princípios a serem observados nas relações inter-

nacionais (CF, art. 4.º)

I. SoberaniaII. CidadaniaIII. Dignidade da pessoa humanaIV. Valores sociais do trabalho e da livre-iniciativaV. Pluralismo político

I. Construir uma sociedade livre, justa e solidáriaII. Garantir o desenvolvimento nacionalIII. Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as de-sigualdades sociais e regionaisIV. Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação

I. Independência nacionalII. Prevalência dos direitos hu-manosIII. Autodeterminação dos povosIV. Não intervençãoV. Igualdade entre os EstadosVI. Defesa da pazVII. Solução pacífica dos conflitosVIII. Repúdio ao terrorismo e ao racismoIX. Cooperação entre os povos para o progresso da humanidadeX. Concessão de asilo políticoParágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a inte-gração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 306Novelino -Curso de Dir Constitucional-15ed.indb 306 06/02/2020 14:44:3906/02/2020 14:44:39