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CURRÍCULO E DIDÁTICA: ENTRELAÇAMENTOS EM TORNO DA TEMÁTICA DO CONHECIMENTO O painel se insere na discussão do campo do currículo e a relação deste com a Didática. A proposta quer trazer à tona aproximações e distanciamentos entre Didática e Currículo tendo a temática do conhecimento escolar como elo. Inserido no subeixo 2, Didática, Currículo e Avaliação, a proposta pretende trazer entrelaçamentos entre Didática e Currículo na compreensão de licenciandos e licenciandas de Pedagogia, a partir da discussão conceitual sobre o conhecimento escolar.Traz também as discussões de Michael Young no tocante a compreensão do papel do currículo na escola. Para tal, se amparada em abordagens que buscam a problematização do conhecimento especializado e o papel docente no enquadramento e estratificação deste. Young suscita questões acerca de como os conhecimentos são selecionados para a composição dos currículos escolares. Poder e contextualização do conhecimento são questões desafiadoras à práxis educativa e revelam a complexidade dos processos educativos e da atuação docente. A renovação da centralidade do conhecimento especializado, agora denominado poderoso por Young, provoca uma ruptura estratificante e descontextualizadora no campo do currículo, hierarquizando radicalmente saberes com a redução do papel docente na construção do currículo escolar. O docente se encontra limitado ao campo da Didática, uma vez que o conhecimento escolar passa a ser determinado exclusivamente por especialistas. Tal visão, corroborada por Young, foi percebida nas vozes discentes do curso de Pedagogia, cuja questão do conhecimento escolar, central à Didática e ao Currículo, acabou por se revelar despolitizada e instrumental na acepção dos graduandos. O painel defende a importância de se superar a visão estratificada, descontextualizada e despolitizada acerca do conhecimento escolar. Palavras-chave: Didática. Currículo. Conhecimento. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 6339 ISSN 2177-336X

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CURRÍCULO E DIDÁTICA: ENTRELAÇAMENTOS EM TORNO DA

TEMÁTICA DO CONHECIMENTO

O painel se insere na discussão do campo do currículo e a relação deste com a Didática.

A proposta quer trazer à tona aproximações e distanciamentos entre Didática e

Currículo tendo a temática do conhecimento escolar como elo. Inserido no subeixo 2,

Didática, Currículo e Avaliação, a proposta pretende trazer entrelaçamentos entre

Didática e Currículo na compreensão de licenciandos e licenciandas de Pedagogia, a

partir da discussão conceitual sobre o conhecimento escolar.Traz também as discussões

de Michael Young no tocante a compreensão do papel do currículo na escola. Para tal,

se amparada em abordagens que buscam a problematização do conhecimento

especializado e o papel docente no enquadramento e estratificação deste. Young suscita

questões acerca de como os conhecimentos são selecionados para a composição dos

currículos escolares. Poder e contextualização do conhecimento são questões

desafiadoras à práxis educativa e revelam a complexidade dos processos educativos e da

atuação docente. A renovação da centralidade do conhecimento especializado, agora

denominado poderoso por Young, provoca uma ruptura estratificante e

descontextualizadora no campo do currículo, hierarquizando radicalmente saberes com

a redução do papel docente na construção do currículo escolar. O docente se encontra

limitado ao campo da Didática, uma vez que o conhecimento escolar passa a ser

determinado exclusivamente por especialistas. Tal visão, corroborada por Young, foi

percebida nas vozes discentes do curso de Pedagogia, cuja questão do conhecimento

escolar, central à Didática e ao Currículo, acabou por se revelar despolitizada e

instrumental na acepção dos graduandos. O painel defende a importância de se superar a

visão estratificada, descontextualizada e despolitizada acerca do conhecimento escolar.

Palavras-chave: Didática. Currículo. Conhecimento.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

6339ISSN 2177-336X

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CONTEXTUALIZAÇÃO E ENQUADRAMENTO: DE QUÊ CONHECIMENTO

PODEROSO ESTAMOS FALANDO?

Teodoro Adriano Costa Zanardi

Doutor em Educação pela PUC/SP. Professor do Programa de Pós-graduação stricto

sensu em Educação da PUC/MG.

Resumo: O conhecimento especializado defendido por Michael Young se constitui em

conceito fundamental para a compreensão da proposta de construção de um Base

Nacional Comum Curricular. Neste sentido, este trabalho se propõe a analisar sob uma

perspectiva crítica de cunho freireano como a concepção de conhecimento poderoso e

enquadramento se relacionam com uma proposta de contextualização do currículo. A

partir da categoria empoderamento desenvolvida por Freire, é enfrentada a proposta de

Base Comum e de enquadramento forte, que ignora o papel tanto dos educandos e

educandas quanto dos educadores e educadoras como sujeitos do currículo, para

enfatizar a necessidade de um compromisso do campo do currículo com uma

contextualização forte para proporcionar um conhecimento transformador. A Base

Nacional Comum serve, assim, como pano de fundo revelador de uma posição

centralizadora e homogeneizadora de um conhecimento compreendido como poderoso

que se funda em um distanciamento entre os conceitos, com pretensões de

universalidade, e realidade vivida pela comunidade de educadores(as) e educandos(as),

como defende Michael Young. A busca por um currículo nacional tem como escopo a

busca por um padrão de conhecimento acessível a todos educandos e educandas. Isto

significa necessariamente um padrão de educação em que educadores(as) e

educandos(as) se encontrem mediatizados pelo conhecimento especializado (poderoso)

eleito pelo processo de construção da Base Nacional Comum. O trabalho se desenvolve

através de estudo bibliográfico que privilegia os conceitos de Young, Bernstein e Freire,

para trazer para a centralidade do currículo a práxis docente como fundamento para a

contextualização do conhecimento e para a construção do currículo.

Palavras-chave: Práxis docente; conhecimento; contextualização.

1. Introdução

A construção de uma Base Nacional Comum Curricular torna relevante o

pensamento de Michael Young no que tange à principal função social da escola que,

segundo o autor, seria a transmissão de um conhecimento especializado, por ele

denominado conhecimento poderoso.

Nestes termos, a eleição de direitos de aprendizagens que pretende oportunizar a

todos brasileiros e brasileiras da educação infantil até o ensino médio tem como

fundamento a necessária equidade em uma sociedade tão desigual como a nossa.

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Diante das concepções de conhecimento poderoso e enquadramento forte,

expostas por Michael Young, e o desenvolvimento da Base Nacional Comum

Curricular, trazemos reflexões sobre como a práxis educativa se coloca neste contexto,

problematizando estas questões a partir de uma perspectiva freireana. O que se pretende,

assim, é estabelecer um diálogo sobre o currículo e a contextualização do conhecimento

que não perca de vista a questão da realidade vivida por educadores(as) e

educandos(as).

Esta proposta se desenvolve através de uma abordagem qualitativa de cunho

bibliográfico, que traz, além da referência já citadas, Paulo Freire como fundamento

para a construção de um currículo crítico e transformador que valorize a ação-reflexão

de educadores(as) e educandos(as).

2. A Base Nacional Comum Curricular: o conhecimento poderoso e o

enquadramento forte

O início do processo de elaboração para implantação de uma Base Nacional

Comum Curricular renova a discussão sobre o papel da escola em nossa sociedade e a

centralidade do currículo neste contexto. Fundada na concepção de que a padronização

dos conhecimentos a serem escolarizados é indispensável para a efetividade do

princípio da igualdade de oportunidades, a Base traz em seu bojo a proposta de

conhecimentos especializados que devem ser proporcionados a todos

independentemente da

No mesmo sentido, a Base se propõe a orientar os educadores(as) no quediz

respeito ao que ensinar em sala de aula, partindo do pressuposto que estes sujeitos

estariam desorientados sobre quais são os conhecimentos importantes para a sociedade e

as futuras gerações.

De acordo com o MEC,

A Base Nacional Comum Curricular (BNC) vai deixar claro os

conhecimentos essenciais aos quais todos os estudantes brasileiros têm o

direito de ter acesso e se apropriar durante sua trajetória na Educação Básica,

ano a ano, desde o ingresso na Creche até o final do Ensino Médio. Com ela

os sistemas educacionais, as escolas e os professores terão um importante

instrumento de gestão pedagógica e as famílias poderão participar e

acompanhar mais de perto a vida escolar de seus filhos.

A Base será mais uma ferramenta que vai ajudar a orientar a construção do

currículo das mais de 190 mil escolas de Educação Básica do país,

espalhadas de Norte a Sul, públicas ou particulares. (2016).

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Isto vem na esteira da proposta de Michael Young e seu conhecimento poderoso.

Ao responder para quê servem as escolas, Young faz uma defesa enfática da função

escolar de transmissão do conhecimento. Young determina, em seu artigo,que o

conhecimento poderoso – verdadeiramente útil – é o conhecimento especializado (2007,

p. 1295).

Em texto publicado mais recentemente, em 2013, Young coloca a indagação em

termos mais precisos – “qual é o conhecimento a que os alunos têm direito”? – para

concluir que existe um “conhecimento melhor” (2013, p. 234), sendo este o

conhecimento, por ele, adjetivado como poderoso.Daí Young elenca duas características

básicas deste conhecimento.

Ele é especializado, tanto na maneira como é produzido (em cursos,

seminários e laboratórios) quanto na maneira como é transmitido (em

escolas, faculdades e universidades), e essa especialização se expressa

na fronteira entre áreas de conhecimento e disciplinas escolares que

definem seu foco e seus objetos de estudo. Em outras palavras, não

me refiro ao conhecimento geral. Isso não significa que os limites

sejam fixos e imutáveis. No entanto, significa que o aprendizado e a

pesquisa interdisciplinar dependem do conhecimento baseado nas

áreas disciplinares.

Ele é diferente das experiências que os alunos levam para a escola ou

que os estudantes mais velhos levam para a faculdade ou a

universidade. Essa diferença expressa-se nos limites conceituais entre

o conhecimento cotidiano e o escolar. (2013, p. 235).

Segundo Young, a utilidade deste conhecimento reside na sua validade para

qualquer contexto, ou seja, é um conhecimento que independe do contexto,

“independente de contexto ou conhecimento teórico” (2007, p. 1296).

É desenvolvido para fornecer generalizações e busca a universalidade. Ele

fornece uma base para se fazer julgamentos e é geralmente, mas não

unicamente, relacionado às ciências. É esse conhecimento independente de

contexto que é, pelo menos potencialmente, adquirido na escola e é a ele que

me refiro como conhecimento poderoso. (YOUNG, 2007, p. 1296).

Para esta elaboração, Young recorre a outro conhecido curriculista inglês, Basil

Bernstein, que traz os conceitos classificação e enquadramento para o campo do

conhecimento escolar.

Young traz estes conceitos nos seguintes termos:

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Bernstein começa conceituando as fronteiras em termos de duas

dimensões. Primeiramente, ele faz uma distinção entre a

classificação do conhecimento – ou o grau de isolamento entre

domínios de conhecimento – e o enquadramento do conhecimento –

o grau de isolamento entre o conhecimento escolar ou o currículo e o

conhecimento cotidiano que os alunos trazem para a escola. Em

segundo lugar, ele sugere que a classificação do conhecimento pode

ser forte – quando os domínios são altamente isolados um do outro

(como no caso de física e história) – ou fraca – quando há baixos

níveis de isolamento entre domínios (como nos currículos de

humanidades ou ciências). Da mesma forma, o enquadramento pode

ser forte – quando o conhecimento escolar e o não-escolar são

isolados um do outro, ou fraco, quando as fronteiras entre o

conhecimento escolar e o não-escolar são diluídas (como no caso de

muitos programas de educação adulta e alguns currículos planejados

para alunos menos capazes). (2007, p. 1297).

Young deseja assim um conhecimento especializado em que haja o isolamento

dos domínios das áreas (classificação forte), bem como uma rígida fronteira entre o

conhecimento considerado escolar e o considerado não-escolar (enquadramento forte).

Bernstein (1996, p. 59)define o enquadramento como o princípio “que regula as

práticas comunicativas das relações sociais no interior da reprodução de recursos

discursivos, isto é, entre transmissores e adquirentes”.

Percebe-se que a definição de Bernstein vai bem além da simplificação exposta

por Young na sua defesa do conhecimento poderoso e da necessidade de fronteiras e

isolamento dos conhecimentos para que a escola cumpra o seu papel.

El enmarcamiento tiene que ver con quien controla algo. Podemos describir

lo que sigue como la lógica interna de la práctica pedagógica. El

enmarcamiento se refiere a la naturaliza del control em que se ejerce sobre:

la selección de la comunicación;

su secuencácion (qué es lo que va antes y qué es lo que va después);

su ritmo (el grado previsto de adquisición);

el control de la base social que hace posible esta transmisión.

Cuando el enmarcamiento es fuerte, el transmissor tiene el control explícito

de la selección, el ritmo, los critérios y la base social de la comunicación.

(BERNSTEIN, 1996a, p. 44-45).

As questões de controle e de seleção são fundamentais para Bernstein e

imbricadas com a categoria enquadramento (enmarcamiento). O enquadramento forte se

traduz em uma centralização da distribuição do conhecimento, sendo o chamado

transmissor peça-chave neste contexto.

Mainardes e Stremel explicitam a complexidade do pensamento bernsteiniano

enfatizando a questão do poder, que foi abandonado por Young ao desenvolver o

conhecimento poderoso a partir do enquadramento.

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Os conceitos de classificação e enquadramento são centrais na teoria do

discurso e da prática pedagógica desenvolvida por Bernstein. Enquanto o

termo classificação (poder) é usado para descrever as relações de poder e

controle do que é ensinado e aprendido, enquadramento (controle) é usado

para descrever as relações de poder e controle que influenciam o como o

processo ensino/aprendizagem é conduzido. (2010, p. 38).

Nos últimos artigos de Young (2007; 2011; 2013), amplamente divulgados nas

revistas científicas brasileiras (na esteira de uma Base Nacional Comum Curricular), é

legado ao esquecimento as questões de ideologia, controle e legitimação, bem como do

poder, como já dito. Ignora estas questões para depositas em uma comunidade de

especialista, que não tem como ser neutra, o protagonismo na seleção dos

conhecimentos a serem escolarizados.

Young se centra na questão dos produtos diferentes que são distribuídos entre

aos alunos em conformidade com a sua classe em acordo com a teoria de Bernstein

(1996). Defende, também, que a superação da desigualdade na entrega dos

conhecimentos seria um importante instrumento para superação das desigualdades

sofridas pelos alunos de origem mais pobre. No entanto, Young, ao contrário de

Bernstein, não está preocupado com a análise do ambiente que produz estas

desigualdades que as crianças trazem para as escolas, mas simplesmente com a

necessidade de uma rigidez na transmissão de conhecimentos teóricos e conceituais sem

qualquer importância para o contexto vivido.

Assim, Young, ao que parece, pressupõe que as questões de poder, divisão do

trabalho, princípios hierárquicos se resolverão através do enquadramento realizado pelo

conhecimento ditado pelo especialista e a transmissão deste conhecimento pelos

educadores e educadoras independentemente do contexto e da realidade vivida.

3. Conhecimento poderoso mediatizado pelo mundo

Young renova através de seu conceito de conhecimento poderoso o

gerenciamento científico característico das teorias tradicionais do currículo e fortalece a

manipulação de educadores(as) com a consagração e mitificação da transmissão do

conhecimento especializado que deve ser universalizado. Evidencia na teoria de Young

a busca de certezas a serem transmitidas pela escola que desconsidera o papel de

educadores(as) e educandos(as) como sujeitos produtores de conhecimento valiosos

para o currículo.

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Neste sentido, a sala é o lugar de transmissão de teorias e conceitos, sendo o

currículo um conjunto de fatos pré-determinados a serem legitimados pela ação

educativa dos docentes.

A partir do conceito de conhecimento poderoso de Young, o(a) professor(a) não

produz conhecimento, como afirma Kincheloe (1997, p. 44), o conhecimento escolar “é

um empréstimo dos especialistas”.

Sob uma perspectiva crítica, devemos perguntar não somente “o que ensinar?”,

mas necessariamente “por que ensinar este conteúdo?”. Young, na melhor tradição das

teorias tradicionais do currículo, pressupõe que as razões ficam confiadas aos

especialistas como se desenvolve, na atualidade brasileira, no desenvolvimento da Base

Nacional Comum Curricular. Os (as) educadores(as) são cada vez mais distanciados da

construção curricular, tornando-se sujeitos passivos seguidores de prescrições com aulas

padronizadas de planos formatados (KINCHELOE, 1997).

A compreensão de um conhecimento que empodera os sujeitos para a

transformação individual e a social deve caminhar para o fortalecimento da capacidade

docente em articular os conhecimentos, tendo o texto valor dentro de seu contexto. Os

educadores(as), educandos(as) e contexto são elementos de um sistema dinâmico que o

currículo não pode negligenciar.

A práxis, nos termos de Paulo Freire (2005), envolve a ação e reflexão que são

indissociáveis. É a práxis que potencializa a transformação, não o verbalismo sem ação

ou ainda o ativismo sem reflexão. A práxis educativa empodera os sujeitos em processo

de educação como fazedores e pensadores que conhecem e produzem conhecimento.

O empoderamento pelo conhecimento nem é dizer o conhecimento aos outros,

como ato de prescrição que subtrai a palavra dos demais (FREIRE, 2005). Daí a

necessidade de compreensão de que o conhecimento deve ir para além do prescrito por

especialistas, pois estas prescrições se impõem pelo monólogo e a existência humana e

sua proposta transformadora se realiza pela possibilidade de se dizer a Palavra.

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco

pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os

homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o

mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta

problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.

(FREIRE, 2005, p. 90).

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A educação escolarizada se insere no contexto do encontro entre sujeitos

(educadores(as) e educandos(as)) mediatizados pelo mundo. A práxis educativa se

realiza na pronuncia deste mundo problematizado e contextualizado.

Como explica Rossato:

A educação deve partir da realidade para compreender o homem e ser posta a

seu serviço. Não pode ser reduzida a um conjunto de técnicas. O objetivo

principal é a compreensão e a interpretação do papel de cada educando no

mundo. Sua ação se torna um ato político porque ela mostra ou ela oculta a

realidade. (2008, p. 332).

Por isto, o currículo não pode ser considerado um produto acabado e é

necessário que a ação docente se funde na ação-reflexão-ação como forma de se

confrontar com as situações e condições desiguais que caracterizam a nossa sociedade.

A atuação docente se caracteriza por um fazer-pensar que não pode ser desprezado. A

ação transformadora da educação só se viabiliza com o desvelamento da pretensa

neutralidade do conhecimento e um enquadramento que valorize a teoria enquanto

potencializadora da superação do contexto social injusto e desigual.

4. Enquadramento vs. Contextualização: onde está o potencial transformador do

conhecimento?

A busca por um currículo nacional tem como escopo a busca por um padrão de

conhecimento acessível a todos educandos e educandas. Isto significa necessariamente

um padrão de educação em que educadores(as) e educandos(as) se encontrem

mediatizados pelo conhecimento especializado (poderoso) eleito pelo processo de

construção da Base Nacional Comum.

Neste cenário, ficará sob a responsabilidade de escolas e, especialmente, de

educadores(as) o enquadramento forte dos conceitos e teorias para que haja o sucesso

dos fundamentos da proposta que, vale repetir, é oportunizar a todos o conhecimento

especializado.

Ora, no enquadramento forte, sabidamente, o “transmissor teria um controle

explícito sobre a seleção, sequência e ritmos da prática pedagógica”. Já em um

enquadramento fraco, “os aprendizes são vistos a partir de seu interesse em ser

criativos, interativos e autônomos”, como explica Lucíola Santos (2003, p. 29).

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O que não pode se perder de vista é que tanto o conhecimento poderoso como a

Base Nacional Comum Curricular corrompem também a questão do transmissor, pois

neste caso os educadores e as educadoras não têm controle explícito sobre a seleção e a

sequência. Estas são prescrições de especialistas que violentam a práxis educativa na

busca de uma educação domesticadora.

A questão do enquadramento necessita contemplar a criatividade, participação e

autonomia de educadores(as) e educandos(as) na construção do curricular. Um

enquadramento que deve ter como ponto de partida o contexto para construção e

desenvolvimento do currículo com os conceitos e as teorias mediatizadas pelo mundo

que se presentifica na Palavra dos sujeitos em processo de humanização.

A concepção, aqui defendida, rejeita a de Young que considera o mundo apenas

um conceito dentro de uma perspectiva curricular. Para o curriculista inglês, “onde o

mundo é tratado como um „objeto de pensamento‟ e não como um „lugar de

experiência‟” (YOUNG, 2011, p. 616).

O currículo do conhecimento poderoso de Young deixa o mundo vivido na porta

da escola como se este não tivesse relação indissociável com os conhecimentos

especializados seja por questioná-los, seja para que este forneça as explicações

necessárias para a compreensão deste mundo.

Esta cisão de mundos coloca os(as) educadores(as) no papel exclusivo de um

transmissor que faz poucas escolhas ou nenhuma no campo do currículo com o retorno

as concepções mais tradicionais deste campo, uma vez que “o quê?” está dado, cabendo

aos(as) educadores(as) o “como?”).

Esta cisão proposta por Young entre o mundo e o currículo é enfrentada por

Freire em “Medo e Ousadia” da seguinte forma:

O que é que eu quero dizer com dicotomia entre ler as palavras e ler o

mundo? Minha impressão é que a escola está aumentando a distância entre as

palavras que lemos e o mundo em que vivemos. Nessa dicotomia, o mundo

da leitura é só o mundo do processo de escolarização, um mundo fechado,

isolado do mundo onde vivemos experiências sobre as quais não lemos. Ao

ler palavras, a escola se torna um lugar especial que nos ensina a ler apenas

as "palavras da escola", e não as "palavras da realidade". O outro mundo, o

mundo dos fatos, o mundo da vida, o mundo no qual os eventos estão muito

vivos, o mundo das lutas, o mundo da discriminação e da crise econômica

(todas essas coisas estão aí), não tem contato algum com os alunos na escola

através das palavras que a escola exige que eles leiam. Você pode pensar

nessa dicotomia como uma espécie de "cultura do silêncio" imposta aos

estudantes. A leitura da escola mantém silêncio a respeito do mundo da

experiência, e o mundo da experiência é silenciado sem seus textos críticos

próprios (FREIRE; SHOR, 1986, p.164).

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A contextualização forte, neste sentido, teria como fundamento uma educação

problematizadora que se vincula à práxis com a busca de ideias e conceitos que

possibilitam a interpretação do mundo para a ação. O vínculo entre a Palavra e a ação

só é possível através de uma educação que privilegie o mundo vivido através da

pronúncia da Palavra. Esta contextualização se faz na busca pela escuta da Leitura de

Mundo que educadores(as) e educandos(as) trazem para escola e revelam seus mundos.

É na partilha da Palavra que se potencializa uma educação transformadora que

possibilitam aos sujeitos a tomada de posse do real para a ação.

A construção do conhecimento tem por base, nesta acepção, o diálogo entre

sujeitos mediados pelo mundo vivido. Educadores e educandos colocam-se

como sujeitos cognoscentes em razão de seu inacabamento e de um mundo

que está em processo. A seleção de conteúdos por especialistas distantes

desta realidade revelam-se alienadoras dos sujeitos em processo de

conhecimento e desprezam o mundo vivido e sua possibilidade de

transformação. (ZANARDI, 2013).

O conhecimento poderoso intenciona, por outro lado, uma contextualização

fraca na qual o contexto seja desprezado pelo currículo com o seu deslocamento para

questões didático-pedagógicas ou mesmo motivacionais. É um conhecimento ao estilo

do “Eva viu a uva”.

Como explica Paulo Freire,

Não basta saber ler que “Eva viu a uva”. É preciso compreender qual a

posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a

uva e quem lucra com esse trabalho. (1991, p. 22).

Esta passagem sintetiza o compromisso que o currículo deve ter com um

conhecimento contextualizado que busque o fortalecimento na busca da pronúncia da

Palavra de educadores(as) e educandos(as) e tenha no diálogo mediatizado pelo mundo

seus fundamentos.

Este compromisso fortalece e reconhece o papel de educadores e educadoras

como sujeitos fundamentais para o campo do currículo e indispensáveis para o diálogo

problematizador inerente aos contextos vividos.

5. Considerações finais

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Em sedede considerações finais, é importante salientar como o pensamento de

Young com a defesa do conhecimento poderoso e o resgate do conceito de

enquadramento de Bernstein renovam o enfraquecimento dos educadores(as) frente à

sociedade e, especialmente, frente aos educandos(as), uma vez que se explicita seu

papel de transmitir conhecimentos que estes (educadores(as)) pegam de empréstimo dos

especialistas. Some-se a isso a questão das premissas estabelecidas pela Base Nacional

que toma como verdade que os educadores(as) não sabem o que ensinar, sendo que pela

Base estes teriam a iluminação trazida pelos especialistas que vão detalhar os

conhecimentos a serem transmitidos.

Ainda nesta perspectiva, o currículo passa a se constituir em um campo em que

o contexto é intensamente desvalorizado. A perspectiva problematizadora para a

construção do currículo é desconsiderada assim como o mundo vivido pelos sujeitos da

escola.

Sob uma perspectiva crítica e freireana do currículo, faz necessário resgatar

uma das mais velhas lições de Freire contida na frase “Eva viu a uva”. Símbolo de uma

educação alienadora e descontextualizada, esta sentença revela sua opção por um

conhecimento dado por especialistas que desconsidera/distancia-se do mundo vivido.

Assim, como forma de valorização da práxis educativa e potencializar a ação

de educadores e educadoras, urge problematizar o conhecimento poderoso e a Base

Nacional Comum Curricular. Lado outro, uma contextualização forte potencializa o

diálogo entre educadores(as) e educandos(as) mediatizados pelo mundo, como nos

ensinou o mestre Paulo Freire.

Referências

BERNSTEIN, Basil. A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e

controle. Petrópolis: Vozes, 1996.

BERNSTEIN, Basil. Pedagogía, control simbólico e identidade. Madrid: Ediciones,

1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 41. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 3. ed. Rio de

Janeiro, Paz e Terra, 1986.

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6349ISSN 2177-336X

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CURRÍCULO E DIDÁTICA: DISCUSSÕES EM TORNO DA

ESPECIALIZAÇÃO, ESTRATIFICAÇÃO E CONECTIVIDADE DOS

SABERES ESCOLARES

Silene Gelmini Araújo Veloso

Mestre em Educação pela PUC/MG. Professora do curso de Pedagogia da

Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Belo Horizonte.

Resumo: O texto procura discutir as relações de poder estabelecidas a partir das

definições de conteúdos curriculares e suas metodologias de ensino. A utilização das

definições de especialização, conectividade e estratificação dos saberes apresentada por

Young (2000), foi fomento de tal discussão que busca explicitar como tais conceitos

provocam a “distribuição” de desiguais conhecimentos a diferentes públicos, e mais,

como tais critérios de seleção de conteúdos curriculares hierarquizam os conhecimentos

considerados “superiores” e “inferiores”. Pensados dessa forma, os saberes veiculados

pela escola estariam segregados entre aqueles de alto status e baixo status, entre saberes

puros, acadêmicos e especializados de um lado, e aplicados, profissionalizantes e gerais,

de outro, e ainda entre aqueles mais isolados ou mais conectivos com a realidade dos

alunos.A abordagem deste texto procura problematizar como os critérios de

estratificação, especialização e conectividade dos saberes qualificam diferentemente os

saberes escolares e se estabelecem como formas de poder, por meio do currículo,

estabelecendo uma desqualificação de determinados conhecimentos considerados de

menor “prestígio” pedagógico, destinados a determinados grupos sociais. Tal

estratificação também ocorre na distinção conceitualentre pedagogia e currículo feita

por Young (2011). Ao destinar o currículo como atividade da comunidade de

especialistas responsáveis pela definição dos conhecimentos do currículo e a pedagogia

como campo de saber reservado aos professores para motivar os alunos, o autor

dicotomiza e também estratifica conhecimentos. Contrariamente a Young

(2011),defendemos a complementaridade e interdependência entre pedagogia (que neste

texto aproximamos do conceito de didática) e currículo e a compreensão da prática

educativa como práxis.

Palavras-chave: Estratificação dos saberes. Currículo. Didática.

1. Introdução

A compreensão dos processos educativos que caracterizam a educação formal

em nossa sociedade é permeada de análises sobre aspectos como a seleção e

organização dos conteúdos escolares, finalidades da prática educativa, métodos,

processos e recursos de ensino, avaliação da aprendizagem, dentre outras.Pensar a

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prática educativa significa, portanto, responder questões sobre:Qual é o conhecimento a

ser ministrado na escola? De que “parte” da sociedade vem esse conhecimento? A quem

ele será oferecido? Por quê? De que forma? E a serviço de quê?

Tais questões nos remetem às discussões em torno do currículo, da pedagogia e

da didática como campos do conhecimento que têm como centralidade de seus objetos

de estudo, a escola como instituição formal de construção e transmissão de conteúdos

de ensino.

É nesse sentido que, neste texto,pretende-se discutir as aproximações e os

distanciamentos entre os campos de conhecimento do currículo e da didática a partir

daanálise dos conceitos de estratificação, especialização e conectividade dos saberes

escolares, (YOUNG, 2000); entre pedagogia e currículo (YOUNG, 2011),e as

consequências de um e outro movimento para o desenvolvimento de um

quefazerpedagógico mais consciente em sala de aula.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica com base teórica nos seguintes autores:

Young (2007,2000, 2011), Apple (1999), Libâneo (1994) e Candau (2001,2008).

2. O “currículo do passado” e o “currículo do futuro” em Young:

estratificação, especialização e conectividade dos saberes.

Em seu livro “O currículo do futuro: da Nova Sociologia da Educação a uma

teoria crítica do aprendizado”, Young (2000)apresenta três questões que ofereceriam a

base da abordagem do currículo como saber socialmente organizado: “a estratificação

do saber, a amplitude do âmbito de saber (ou grau de especialização) e as relações entre

as áreas do saber.” (YOUNG, 2000, p. 30). Para o autor,

1. O poder que alguns têm de definir o que é saber “valorizado” leva à

questão de explicar como o saber é estratificado e segundo que critérios.

A ideia de o saber ser estratificado tem dois aspectos – que podem ser

definidos como seus componentes de “prestígio” e “propriedade”. As

diferenças de prestígio remetem às diferentes maneiras como diferentes

tipos de saber são avaliados – por exemplo, saber puro e aplicado,

acadêmico e profissionalizante, genérico e especializado. O aspecto de

“propriedade” da estratificação do saber remete a como o acesso ao saber

é, em ampla medida, controlado nas sociedades modernas por

profissionais e outros especialistas. Assim, o aspecto da “propriedade”

da estratificação aponta para a distribuição do saber em vigor e para a

sua relativa estrutura de premiação. Sugere que, em diferentes

sociedades, a concepção dominante do saber deve provavelmente ser

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associada às ideias dominantes acerca da propriedade em geral – seja ela

privada, estatal ou comunitária.

2. A restrição do acesso a algumas áreas do saber a grupos específicos

também é uma questão de poder. Ela coloca a questão, relativamente aos

currículos, de qual seja o âmbito dos currículos oferecidos a diferentes

grupos e de quais são os fatores que podem influir no que é considerado

o grau e o tipo de especialização apropriado a diferentes grupos de

alunos em diferentes idades.

3. A terceira questão aponta para as relações entre as áreas de saber e entre

aqueles que têm acesso a elas. As relações entre áreas de saber também

são expressões de poder; nesse caso, o poder que alguns têm de manter

ou derrubar as delimitações do saber. As relações entre as áreas de saber

podem ser consideradas como um contínuo entre estar isolado e ser

conectivo.(YOUNG, 2000, p. 31)

Assim, Young (2000) provoca importantes reflexões sobre a produção e

“distribuição” dos conhecimentos à sociedade. Uma delas refere-se à relação de poder

que se estabelece na oferta de distintos conhecimentos a diferentes grupos sociais.

Apple (1999) também aponta nesse sentido quando afirma que as escolas não

foram necessariamente construídas para ampliar e fortalecer o capital cultural de todas

as classes e comunidades. Mas, ao contrário, para privilegiar conhecimentos, costumes e

valores dos segmentos mais poderosos da população, contribuindo ideologicamente

para a formatação da sociedade discriminatória que vivemos até os dias atuais. Assinala

que o conhecimento que se introduziu nas escolas do passado e que hoje também se

introduz não é fortuito.

Encontra-se selecionado e organizado em torno de conjuntos de

princípios e valores que provêm de determinados quadrantes da sociedade,

que representam determinadas visões de normalidade e desvio, de bom e

mau, e de como devem “atuar as boas pessoas”. Dessa forma, a compreensão

da razão pela qual o conhecimento de alguns grupos sociais foi

primeiramente representado nas escolas, implica interpretar os interesses

sociais que, regra geral, orientaram a seleção e organização do currículo.

(APPLE, 1999, p.111 - 112)

Portanto, os interesses que serviram como base para a atuação dos mais

influentes especialistas em currículo não foram e não são neutros. Eles assumem

compromissos com estruturas e políticas educacionais específicas, que contribuíram e

ainda hoje contribuem para a promoção de desigualdades sociais.

Dessa forma, a estratificação do saberem seu componente de “prestígio”, citada

por Young (2000),faz entender que o “conhecimento valorizado” provém semprede

determinadas camadas de nossa sociedade.

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Um segundo aspecto assinalado pelo autor refere-se ao tipo de saber

privilegiado: “puro, acadêmico e especializado”. Ao contrário do saber “aplicado,

profissionalizante e genérico” considerado “sem prestígio”. A restrição do acesso a

algumas áreas do saber também se coloca como uma questão de seleção do que deve ser

veiculado como conhecimento para algumas classes da sociedade e não para outras, o

que determina o grau de especialização do conhecimento a que diferentes grupos sociais

têm acesso. Ainda outra questão levantada por Young (2000) refere-se às relações entre

as áreas do saber que podem se constituir emsaberes mais isolados ou mais conectivos,

também revelando distintos conhecimentos ofertados a diferentes públicos.

Assim, ficam conceituadas três dimensões por meio das quais as opções de

organização do currículo podem ocorrer: “estratificação alta e baixa, maiores e menores

graus de especialização e relações isoladas e conectivas entre áreas de saber”(YOUNG,

2000, p. 31)

Quanto à especialização do saber, Young (2000) diz que tal aspecto refere-se

implicitamente à distribuição de recursos como tempo, livros e outros materiais aos

alunos e professores e, argumenta que, estranhamente, aqueles que se mostram mais

necessitados de educação sejam aqueles que menos recebam educação.

As relações de conectividade entre áreas do saber levantam questões sobre os

interesses em mantê-las isoladas. Tal reflexão é importante no sentido de compreender

que categorias são usadas pela sociedade para compreender-se e compreender o mundo

circundante. (YOUNG, 2000, p. 31)

Interessante aqui perceber como a conectividade ou o isolamento dos saberes

pode dizer muito sobre diferentes concepções de ensino e aprendizagem (objeto de

estudo da didática). Conectividade ou isolamento podem nos apontar diferentes

caminhos para formas de construção e transmissão do conhecimento: por meio das

relações entre diversas áreas de saber em diálogo com as experiências dos sujeitos

professores e alunos, que, em conjunto, irão constituindo uma visão da realidade ou

com conhecimentos estanques, isolados e fragmentados, porém especializados.

A terceira questão levantada refere-se à estratificação do saber. Young

argumenta que:

(...) é por meio do conceito de estratificação que somos levados a

considerar a base social de diferentes tipos de conhecimento e que podemos

começar a levantar questões acerca das relações entre a estrutura de poder da

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sociedade e os currículos, o acesso ao saber e as oportunidades de legitimá-lo

como “superior” e a relação entre o saber e suas funções em diferentes tipos

de sociedade.(YOUNG, 2000, p. 34)

Segundo o autor, os altos níveis de estratificação permitem definições

sobre quais são os conhecimentos a serem incluídos e excluídos dos currículos, sobre

uma hierarquia rígida entre professores e alunos e ainda sobre a definição de

conhecimentos de alto status e baixo status.

Na pesquisa de currículos acadêmicos, Young (2000) demonstra como os

conhecimentos de tais currículos foram legitimadoscomo de alto status por pessoas que

detêm posições de poder. Apresenta princípios dominantes do saber de alto status,

pretensa característica dos currículos acadêmicos,em contraposição ao saber de baixo

statusevidenciado em cursos profissionalizantes secundários.

O quadro abaixo estabelece uma comparação entre tais características:

SABER DE ALTO STATUS SABER DE BAIXO STATUS

- Letras: ênfase dada à escrita;

- Individualismo (evita-se o

trabalho de grupo ou a cooperação no

modo como o aprendizado é avaliado);

- Abstração do saber e sua

estruturação;

- Compartimentalização

independente do saber do aluno;

- Não correlatividade dos currículos

acadêmicos (isolamento em relação ao dia

a dia e a experiência comum).

- Organização em termos de

apresentação oral;

- Atividades e avaliação em grupo;

- Caráter concreto do

conhecimento;

- Estabelecimento de correlação do

conhecimento com o saber não escolar

Fonte: Elaborado pela autora com base em Young (2000)

Nota-se, nas comparações acima evidenciadas, uma clara distinção entre

os saberes vinculados à erudição, considerados mais elaborados e, portanto, necessários

a determinadas classes sociais como forma de manutenção do poder, eos saberes

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relacionados à “experiência comum”, considerados de menor valor, e, portanto,

dedicados às classes “inferiores” de nossa sociedade, àqueles menos competentes.

Outra importante observação refere-se à classificação metodológica

“qualitativamente diferenciada” entre procedimentos de ensino/avaliação que

distinguem estratégias que envolvem a abstração, a escrita e as atividades individuais de

um lado, como de maior valor, e as comunicações orais eas atividades em grupo, de

outro, como menos valorosas. Tal classificação nos remete a instrumentos já utilizados

pela didática em uma tentativa apenas de categorização de processos cognitivos ede

objetivos educacionais, que precisam ser superados. A organização de estruturas em

níveis de complexidade crescente e organização hierárquica de habilidades,já se

constituíram em objeto central de uma didática instrumentalista tão questionada e que

deve caminhar no sentido da compreensão da educação formal e dos processos de

ensino e de aprendizagem de forma mais crítica e consciente.

Educar precisa ser compreendido como ato mais complexo que a ordenação de

métodos e técnicas de ensino, cercadas pela elaboração de eficientes objetivos

educacionais e eficazes procedimentos de ensino. É ato político que envolve poder por

espaços privilegiados de conhecimento e que, nesse campo, currículo e didática são

fundamentais instrumentos de luta por uma educação mais equânime do ponto de vista

social e mais problematizadora do ponto de vista metodológico.

Ainda sobre as questões sobre especialização, conectividade e estratificação dos

saberes, Young (2000)sinaliza uma transição do que chamou de “currículos do

passado”, considerados isolados e altamente estratificados, para os “currículos do

futuro” que considerou ser o caminho a ser trilhado: currículos mais conectivos e com

baixo grau de estratificação.

Contrariamente à posição assumida em 2000, em 2011, ao escrever o texto “O

futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa

de um currículo centrado em disciplinas”, Young passa a defender a importância da

manutenção das disciplinas escolares, em direção ao “currículo de engajamento”.

Para além das diferentes concepções apresentadas por Young (2000,

2011), ficam importantes questões para o currículo e a didática, a partir dos conceitos de

especialização, conectividade e estratificação dos saberes escolares. Talvez a mais

importante delas seja o afastamento darelação teoria/prática estabelecido por currículos

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que têm sustentação nestes critérios. Ao segmentar, e pior, ao classificar e qualificar de

formas diferentes os conhecimentos que se fundam em bases abstratas, teóricas, de um

lado, e de outro, os conhecimentos e as habilidades que têm como referência a

experiência e a vida cotidiana, esses critérios segregam, por meio do conhecimento, os

sujeitos sociais e procuram determinar o “local” social e de trabalho de cada um.

Também caminham em direção oposta ao que se quer quando pensamos a educação no

sentido da formação humana integral, em que o horizonte que se vislumbra é uma

formação em que “o ser humano se desenvolva em todas as suas potencialidades, por

meio de um processo educacional que considere a formação científica, tecnológica e

humanística, a política e a estética, com vistas à emancipação das pessoas” (BRASIL,

2013, p. 34)

Nesse sentido, não há porque dissociar o desenvolvimento de metodologias

relacionadas ao desenvolvimento de habilidades orais e incentivo à cooperação que se

estabelece nos trabalhos em grupo como status inferior, e a abstração e efetivação de

atividades e avaliações individuais, de status superior de forma diferenciada, por

entendermos que: primeiro, o desenvolvimento de todas essas metodologias são

igualmente importantes na construção da autonomia intelectual e ética dos sujeitos da

educação; segundo, por acreditarmos que “(...) educação é um fenômeno social e que

isso significa que ela é parte integrante das relações sociais, econômicas, políticas e

culturais de uma determinada sociedade” (LIBÂNEO, 1994, p. 18), revelando seus

interesses.

Dicotomizar teoria e prática, conhecimentos abstratos e conhecimentos da

experiência/vida cotidiana, metodologias de status superior e inferior, conteúdos

curriculares e procedimentos de ensino, podem revelar um sistema educacional com

uma concepção de homem e de mundomais voltados para a segregação do que para a

formação do ser humano autônomo intelectualmente e emancipado eticamente, como

sentido mais pleno de educação.

A separação dos campos do currículo e da pedagogia estabelecido por Young

(2011), também pode contribuir para uma visão segmentada do conhecimento, a

exemplo do que vimos acima, e sinalizar no sentido da formação fragmentada,

contraexemplo do que entendemos dos processos educativos. É o que veremos a seguir.

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3. Da segmentação entre Pedagogia e Currículo em Young (2011) à

entrelaçada relação entre Didática e Currículo: uma

necessáriacompreensão dos componentes teóricos e práticos da ação

educativa.

A discussão em torno do sentido e da finalidade da escola tem ocupado a atenção

de Young nos últimos anos (2007, 2010, 2011). O autor responde, em 2007, à questão

“Para que servem as Escolas?”, em um artigo em que assinala:“as escolas capacitam ou

podem capacitar jovens a adquirir o conhecimento que, para a maioria deles, não pode

ser adquirido em casa ou em sua comunidade, e para os adultos, em seu ambiente de

trabalho” (YOUNG, 2007, p. 1294). Portanto, para ele a função da escola é a oferta do

“conhecimento poderoso”, “conhecimento realmente útil”, “que não é disponível em

casa” (YOUNG, 2007, p. 1294).

Ao explicitar a necessidade de se pensar radicalmente sobre a importância da

definição dos conhecimentos curriculares, Young (2011) faz importantes críticas sobre

como as reformas curriculares têm caminhado no sentido da manutenção do interesse do

aluno pela escola ou para o desenvolvimento de competências para a empregabilidade,

atendendo, assim, às mudanças do perfil exigido no “novo” mercado de trabalho.O

autor denomina tais currículos de “instrumentalistas” e aponta como as reformas

curriculares da Inglaterra nas décadas de 80 e 90 caminharam nesse sentido. Para o

autor, tais reformas curriculares deram importância demasiada a contextos sociais,

políticos e econômicos que, sob pressões da globalização mundial, influenciaram os

currículos:

(....) as propostas ignoraram, ou pelo menos secundarizaram, o papel

educativo fundamental do currículo, que se deriva tanto do propósito das

escolas como do que elas podem ou não podem fazer. Embora não devamos

esquecer o contexto mais amplo, escolhas curriculares têm de ser tratadas

pelo que são: maneiras alternativas de promover o desenvolvimento

intelectual de jovens. Quanto mais nos focamos na possibilidade de um

currículo reformado para resolver problemas sociais ou econômicos, tanto

menos provável que esses problemas sejam tratados em suas origens, que não

se encontram na escola.(YOUNG, 2011, p. 611-612)

Embora tenhamos discordâncias do pensamento de Young sobre a

importância do contexto para a seleção de conteúdos do currículo, há aqui uma

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afirmação fundamental sobre a resolução de problemas sociais e econômicos via escola.

Historicamente, a escola, muitas vezes, foi usada para esse fim e serviu outras tantas

para a reafirmação de conceitos hegemônicos e manutenção de status quo. Fica

registrado de seu pensamento o quanto é creditado à organização pedagógica da escola

um poder de intervenção na sociedade que, a rigor, não se resolve e não está vinculado

às questões de ordem pedagógica. Por não ser ingênuo, tal pensamento carrega consigo

intenções ideológicas claras.

Ao construir o mesmo argumento, Young afirma que tais reformas,

(...) procuravam dar menos peso aos conteúdos das disciplinas e

mais relevância aos temas tópicos que atravessavam todas as disciplinas,

procurando maneiras de personalizar o currículo e relacionar os conteúdos

mais diretamente às experiências cotidianas dos alunos. (...)

O currículo reformado enfatizava sua flexibilidade e sua relevância

para a experiência que os estudantes levavam para a escola. Em outras

palavras, o currículo era visto como um instrumento para motivar os

estudantes para aprenderem. (YOUNG, 2011, p. 612)

Nesse sentido,o autor faz uma distinção conceitual radical entre currículo e

pedagogia. Para ele, “o currículo refere-se ao conhecimento que um país considera

importante que esteja ao alcance de todos os estudantes”. Já a pedagogia “refere-se às

atividades dos professores para motivar os alunos e ajudá-los a se encorajarem no

currículo e torná-lo significativo.” (YOUNG, 2011, p. 612)

Assinala ainda outros contrapontos entre pedagogia e currículo. Para ele, o

currículo é da responsabilidade de formuladores de currículo, especialistas responsáveis

por estabelecer os conceitos importantes aos quais os alunos precisam ter acesso; o

currículo tem finalidade própria que é o desenvolvimento intelectual dos estudantes e

deve estar baseado em conceitos; o currículo deve excluir o conhecimento cotidiano dos

estudantes”, “o conhecimento incluído no currículo deve basear-se em conhecimento

especializado desenvolvido por comunidade de pesquisadores. Já à pedagogia e aos

professores caberia a responsabilidade de motivar os estudantes e transformar os

conceitos “ditados” pelo currículo em realidade para os alunos. “São os professores com

a sua pedagogia (...) que se servem do conhecimento do cotidiano dos alunos para

ajudá-los a se engajarem com os conceitos definidos no currículo e perceberem a sua

relevância.” (YOUNG, 2011, p. 614)

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Percebemos na conceituação de Young (2011), novamente, uma distinção entre

teoria e prática registradas, desta vez, sob a forma de currículo e pedagogia. Currículo

entendido como a seleção de “conhecimentos poderosos”, feita por especialistas que

determinam teoricamente conteúdos e conceitos. Pedagogia compreendida como a

forma e a dinâmica de trabalho, por meio das quais os professores irão acessar o

cotidiano dos alunos para transformá-lo em conceitos estabelecidos no currículo. Assim,

currículo e pedagogia nos são apresentados com funções bem distintas.

Interessantetambém observar como, nessa perspectiva, a proposta da pedagogia

instituída por Young (2011), se aproxima do objeto de estudo da didática entendido

como o processo de ensino. Ao tratar a pedagogia como “as atividades dos professores

para motivar os alunos a se engajarem no currículo e torná-lo significativo”, Young

(2011), refere-se à ideia de forma, responde à questão do “como”, sempre característica

da didática instrumentalista.

Sob esse ponto de vista, Young (2011), acirra a discussão em torno do

afastamento entre currículo e pedagogia ou currículo e didática, como queremospropor,

enquanto discussão, e negar enquanto afirmação.

Muitos e controversos são os pontos de vista em torno da aproximação, do

distanciamento ou da complementaridade entre didática e currículo:

Na discussão das relações propriamente ditas entre o Curriculo e a

Didática, Estrela (2011) deixa claras, pelo menos, três possibilidades de

interpretação. Uma delas é a de se entenderem os campos do Currículo e da

Didática como sobrepostos. Neste caso, pode-se deduzir que os curriculistas

defenderiam a possibilidade e a propriedade da substituição da Didática pelo

Currículo, e os especialistas em Didática defenderiam o contrário. Uma outra

seria a do entendimento de que os campos possuem tradições diferentes, e

não se sobrepõem, mas se interdependem. Ao lado dessas posições, há a

defesa da maior ou menor abrangência de um campo em relação ao outro,

implicando relações de conjunto e subconjunto, ora o Currículo englobando a

Didática, ora o contrário. (PACHECO; OLIVEIRA, 2012, p.6)

Tais discussões em torno dos objetos de estudo da didática e do currículo e ainda

das interseções entre as duas áreas do conhecimento podem nos ajudar a estabelecer

algumas sínteses. Primeiro, que não há um consenso sobre a unilateralidade de seus

objetos de estudo, considerados coincidentes por alguns autores, em alguns momentos,

e discrepantes em outros. Segundo, que há uma discussão inclusive sobre a

sobreposição de um dos campos ao outro, evidenciando as lutas de poder das tradições

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de cada área do conhecimento. Há ainda evidências sobre as discussões entre a ideia do

“contém ou está contido”, revelando a abrangência dos campos do currículo e da

didática. A partir dessa terceira consideração que perpassa a relação currículo/didática

pode ser estabelecida uma questão: o currículo, que tem como objeto de estudo o

conhecimento escolar envolveria a didática com sua preocupação com os processos de

ensino e aprendizagem, ou seria a didática, com sua compreensão dos processos

educativos formais, que envolveria o currículo, compreendido como conteúdos de

ensino veiculados a partir da prática educativa?

Questões como estas, acima levantadas, nos revelam distintas visões em torno

dos campos de conhecimento da didática e do currículo. Porém, não nos ocorre que

nelas estejam contidas uma ideia de segregação entre os dois campos, assim como

percebemos nas afirmações de Young (2011) sobre a diferenciação entre currículo e

pedagogia (que aqui estamos aproximando da didática). Podemos discutir sobre os

objetos de conhecimento da didática e do currículo, sobre as especificidades de um e

outro campo e a preservação de seus temas. Mas, não podemoscercá-los em diferentes

“redomas” como conhecimentos estanques que não se relacionam ou não se

complementam.

As afirmativas abaixo podem, de alguma forma, esclarecer este ponto:

A complementaridade entre Currículo e Didática seria uma

necessidade que lhes é intrínseca, visto conteúdo, mais relacionado com

Currículo, e método (forma), mais relacionado com Didática, não poderem

ser tratados independentemente um do outro, considerando-se a dialeticidade

da relação conteúdo-forma, na educação. (PACHECO; OLIVEIRA, 2012,

p.3)

A (re)construção da didática nos últimos anos resgata e atualiza a

perspectiva de uma visão contextualizada e multidimensional do processo

pedagógico. Passa então a trabalhar as questões inerentes aos processos de

ensino-aprendizagem articulando as contribuições de diferentes áreas do

conhecimento. Este movimento levou muitas vezes a uma perda de

especificidade, passando os cursos de didática a se limitar a um elenco de

temas de fato trabalhados por outras disciplinas, se assim podem ser

categorizadas essas áreas de conhecimento chamadas de ciências da

educação. Acreditamos que hoje esta etapa já foi superada e que a

especificidade de seu objeto de estudo, o processo de ensino-aprendizagem,

para uns, o trabalho docente, a prática pedagógica, a aula, para outros, é claro

em suas diferentes formulações, que se situam num horizonte de sentido

comum, assim como sua intencionalidade orientada à compreensão e

intervenção nos processos pedagógicos. (CANDAU, 2001, p. 155)

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6361ISSN 2177-336X

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Compreender, portanto, as intrínsecas relações entre didática e currículo é

condição de superação da estratificação do saber, de umadidática instrumentalista e de

uma educação dividida entre teoria e prática, entre conteúdos de valoração diferente,

inclusive da compreensão do currículo como conhecimento de alto status e a didática

como área de baixo status (uma vez que se relaciona com conhecimentos ligados à

prática pedagógica). É reconhecer a importância das intrincadas e interdependentes

relações entre os conhecimentos que embasam e explicitam a prática pedagógica.

4. Considerações Finais

Procuramos discutir, neste texto, os conceitos de especialização, conectividade e,

especialmente, estratificação dos saberes escolares (Young, 2000), e como tais critérios

estabelecem uma organização curricular que produz e distribui diferentes

conhecimentos à sociedade. Segundo Young os saberes são estratificados em alto

oubaixo status, revelando currículos de maior ou menor “prestígio”, com maior ou

menor conectividade entre esses saberes e a realidade cotidiana dos alunos e ainda com

que nível de especialização esses conteúdos são veiculados.

Analisamos como tais critérios, além de estabelecerem um “ranking” valorativo

entre os saberes (conhecimentos acadêmicos, “ciência pura”, abstração, versus realidade

cotidiana dos alunos, conhecimentos concretos) e os procedimentos metodológicos

(trabalho individual, prova, versus apresentação oral, trabalho em grupo) fragmentam os

saberes escolares entre aqueles considerados superiores, alto status, e adequados apenas

às camadas competentes de nossa sociedade, e “os outros conhecimentos” considerado

de baixo status é reservado aos “inaptos”.

Tal relação dicotômica também se coloca nas definições estabelecidas

por Young (2011) entre pedagogia e currículo. Ao definir o currículo como campo para

especialistas, com apresentação de “conhecimentos realmente úteis” entendidos como

aqueles que se afastam do cotidiano dos alunos, e a pedagogia (que neste texto

aproximamos do conceito de didática) como campo para professores que, aí sim,

utilizariam de suas práticas e do conhecimento da realidade para “motivar” os alunos na

aquisição do conhecimento conceitual estabelecido no currículo, o autor parece:

valorizar o conhecimento curricular em detrimento do conhecimento que se efetiva na

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6362ISSN 2177-336X

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prática educativa da sala de aula, segmentar teoria e prática como conhecimentos

estanques e, por fim, não reconhecer a intrínseca relação entre currículo e didática.

Opondo-nos a tais interpretações, acreditamos que a educação em seu

sentido pleno de formação do homem emancipado e autônomo passa pela cotidiana

articulação entre teoria e prática como forma de busca incessante denossa coerência

pedagógica e como resposta às questões: quem queremos formar, para quê e de que

forma?

Referências:

APPLE, Michael W. Ideologia e Currículo. 2. ed. Portugal: Porto Editora, 1999.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Formação de

professores do ensino médio: ensino médio e formação humana integral. Curitiba:

UFPR/Setor de Educação, 2013. (Caderno, 1).

CANDAU, Vera Maria. A Didática Hoje: uma agenda de trabalho. In: CANDAU, Vera

Maria (org.). Didática, Currículo e Saberes Escolares. 2.ed. Rio de Janeiro: DP&A,

2001.

CANDAU, Vera Maria (Org.). A didática em questão. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo, Cortez, 1994.

PACHECO, José Augusto; OLIVEIRA, Maria Rita. Currículo e didática: um diálogo

luso-brasileiro. X Colóquio sobre Questões Curriculares & VI Colóquio Luso Brasileiro

de Currículo: Desafios Contemporâneos no Campo do Currículo. 2012.

YOUNG, Michael F. D. Conhecimento e currículo: do socioconstrutivismo ao

realismo social na sociologia da educação. Porto: Porto Editora, 2010.

YOUNG, Michael F. D. O currículo do futuro: da nova sociologia da educação a uma

teoria crítica do aprendizado. Campinas, SP: Papirus, 2000.

YOUNG, Michael F. D. O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o

argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas. Revista

Brasileira de Educação, v. 16 n.48, set./dez. 2011.

YOUNG, Michael F. D. Para que servem as escolas? Educação & Sociedade,

Campinas, v. 28, n.101, p. 1287-1302, set./dez. 2007.

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6363ISSN 2177-336X

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PERCEPÇÃO DE DISCENTES DE UM CURSO DE PEDAGOGIA EM

RELAÇÃO AO CONHECIMENTO: MARCAS DA DESPOLITIZAÇÃO

Márden de Pádua Ribeiro

Mestre em Educação pela PUC/MG. Professor do curso de Pedagogia da

Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Belo Horizonte.

Resumo: O presente artigo é resultado de pesquisa realizada em um curso de

Pedagogia situado em uma instituição privada de Belo Horizonte e consiste em um

grupo focal realizado com graduandos do curso a partir da seguinte questão: qual o

papel da disciplina de Didática na formação do pedagogo? A partir deste tema

norteador, as discussões se desdobraram para a centralidade da temática do

conhecimento como dimensão central no campo da Didática. No entanto, foi possível

perceber uma concepção instrumental acerca da Didática e despolitizada no que tange

ao conhecimento. Também foi abordado um certo hibridismo entre os campos da

Didática e Currículo na percepção dos discentes. O trabalho defende a superação de

uma concepção instrumental de Didática e de uma percepção ingênua face ao

conhecimento. Reitera a importância de se perceber a Didática em suas múltiplas

dimensões, para além do "como fazer docente". Ressalta ainda a necessidade de se

discutir a temática do conhecimento de modo problematizado, recusando sua pretensa

neutralidade. A pesquisa se apoia, especialmente em Candau (2005), Libâneo (2011),

Freire (1992).

Palavras-chave: Didática. Currículo. Conhecimento

1. Introdução e metodologia

O presente trabalho é fruto de uma pesquisa desenvolvida em um curso

privado presencial de Pedagogia de Belo Horizonte. Nesta pesquisa, foram realizados

grupos focais com os discentes do curso a partir do seguinte problema: como os

graduandos compreendem o papel da disciplina de Didática na sua formação.

Contudo, através das discussões realizadas nos grupos focais, a temática

referente ao conhecimento se mostrou central nas falas dos graduandos e também foi

perceptível uma compreensão despolitizada acerca do conhecimento. Sendo assim, o

presente trabalho tem como objetivo, ressaltar a concepção instrumental de Didática que

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6364ISSN 2177-336X

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os discentes possuem, como possível consequência de uma noção despolitizada em

relação à temática do conhecimento.

Os objetivos específicos do texto são: descrever e analisar a concepção

dos graduandos acerca da Didática, defender a temática do conhecimento como um elo

que hibridiza os campos da Didática e do Currículo, refletir sobre a importância de se

problematizar o conhecimento - temática importante aos dois campos - e compreendida

pelos discentes sob forte instrumentalização e suposta neutralidade.

Os alunos participantes da pesquisa foram submetidos à técnica

conhecida por grupo focal, que conforme aponta Gatti (2005, p.12) é “uma técnica de

levantamento de dados que se produz pela dinâmica interacional de um grupo de

pessoas com um facilitador”. O objetivo central do grupo focal é identificar percepções,

sentimentos, atitudes e idéias dos participantes a respeito de um determinado assunto,

produto ou atividade (DIAS 2000).

O grupo focal contou com a participação de alunos que já cursaram a

disciplina de Didática e de Currículo e estão nos momentos finais da graduação em

Pedagogia. Os encontros foram feitos em três grupos de quatro a oito alunos,

totalizando 18 discentes. Foram respeitados seus respectivos horários de atividades

acadêmicas, e foi concedida autorização da direção da Instituição e coordenação do

curso de Pedagogia. Os encontros ocorreram do meio para o final do semestre de 2014,

ocorreram na própria instituição, em ambientes adequadamente preparados, no intuito

de criar no grupo uma sinergia própria, de modo a emergir idéias diferentes das opiniões

particulares, conforme sugere Gatti (2005).

2. Discussões

Inicialmente foram colocados para os alunos de forma sucinta, os

objetivos da pesquisa, os procedimentos e a duração do encontro, em média de trinta a

sessenta minutos. A discussão gerou em torno da seguinte questão: “Como vocês

percebem a importância da disciplina de Didática em sua formação?”. Todo processo de

interlocução foi coordenado e os dados foram registrados concomitantemente. Deixou-

se claro aos alunos que as reflexões dali produzidas seriam confidenciais e que a ampla

liberdade de pensamento e expressão estava assegurada, bem como a autonomia do

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pesquisador em relação ao docente da disciplina e à coordenação do curso de

Pedagogia. Os nomes dos alunos foram mantidos em sigilo e utilizados pseudônimos.

Os discentes, nas discussões, trouxeram a questão do conhecimento como

um tema caro às suas formações. Discutiram-no à exaustão, centralizando essa pauta

nos grupos focais tendo a Didática como pano de fundo. Buscaram discutir a Didática

sempre a partir da lógica do conhecimento escolar, de suas escolhas e seleções, de suas

"adequações", da importância do docente nesse processo e das técnicas e formas de se

transmitir o conhecimento.

Desse modo, foi possível constatar uma noção de conhecimento escolar

instrumental, sendo a Didática uma espécie de responsável por garantir ao educador os

meios mais eficientes de seleção desses conhecimentos. Em alguns momentos,

percebeu-se também um hibridismo entre Didática e Currículo, na medida em que

questões de seleção e distribuição do conhecimento também perpassaram as

argumentações dos graduandos, reforçando a ideia de que tal temática penetra os dois

campos de modo a tornar difícil, nesse ponto, a delimitação de suas fronteiras.

A dimensão do conhecimento corresponde a um tema que certamente é

fundamental aos dois campos: didática e currículo. Sabe-se também que ambos os

campos possuem grandes convergências, se complementam e suas fronteiras não são tão

facilmente visualizáveis. Essa é a hipótese que a pesquisa utiliza para argumentar que a

noção de Didática apresentada pelos graduandos, sob a centralidade do conhecimento, é

uma compreensão também diretamente relacionada às preocupações do currículo.

Entende-se aqui a Didática e o Currículo como pertencentes a campos de

estudo, com base em Bourdieu (1983). Um campo é concebido como um espaço social

de relações entre agentes que compartilham interessem em comum, mas disputam por

interesses específicos e não dispõem dos mesmos recursos. Ademais, possuem

objetivos, estrutura e lógica de funcionamento próprios, para cuja constituição concorre

a existência não só de profissionais e de um público também próprios, que produzem e

consomem os bens simbólicos dessas áreas, como ainda de instâncias e instituições

legitimadoras e divulgadoras desses bens. A Didática e o Currículo estão presentes nas

graduações em Pedagogia sob forma de disciplinas escolares. Embora áreas que se

articulam, a própria constituição curricular desses cursos ao separá-los em disciplinas,

fornece sinais de que, embora híbridos em diversos momentos, também possuem suas

fronteiras.

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A complementaridade entre Currículo e Didática seria

uma necessidade que lhes é intrínseca, visto conteúdo, mais

relacionado com Currículo, e método (forma), mais relacionado

com Didática, não poderem ser tratados independentemente um

do outro, considerando-se a dialeticidade da relação conteúdo-

forma, na educação. (PACHECO; OLIVEIRA, 2012, p.3)

Os discentes logo nas primeiras discussões nos grupos focais, deixaram

muito claro uma concepção instrumental da Didática. É entendível que graduandos que

iniciam um curso superior de Pedagogia tragam tais assertivas, mas, se tratando de

quase formandos do curso, é no mínimo preocupante, que mesmo nas interações que os

grupos focais proporcionam, a compreensão instrumental da Didática tenha sido

consensual.

Os graduandos compreenderam a Didática da seguinte maneira:

“Instruções, maneiras criativas de se lecionar” (Roberta); “forma metodológica”

(Jéssica, Jecilda, Jessé, Jeraíldo, e Jéferson); “métodos de ensino” (Jeraíldo, Jessé e

Jéssica); “método de passar o conhecimento” (Velise); “técnica de transmitir melhor o

conteúdo” (Regiane); “é a forma de selecionar os melhores conhecimentos e os mais

adequados” (Jessé, Regiane, Dila, Veluma). O aluno Telmo vai mais adiante,

expressando uma certa ironia e um certo desdém:

[...] é decorar regrinhas para tornar o ensino mais

produtivo, tipo não usar pincel vermelho nos cartazes, não

sentar na mesa enquanto dá aula, essas coisas. O que eu vi na

disciplina pelo menos foi tipo essas coisas. Não se deve ficar

parado ali no mesmo lugar. (Telmo).

E a definição da Didática sob uma visão instrumental não pára por aí.

Outros alunos assim se manifestam: "é a maneira com que o professor lida com os

alunos [...] como você vai fazer a aula, a duração, você tem que buscar uma Didática”

(Dil); "é o instrumento auxiliar na elaboração dos planejamentos de ensino” (Dilena);

"as maneiras de melhorar o aprendizado” (Dila); “aperfeiçoamento de métodos, técnicas

no processo de ensino-aprendizagem em sala de aula. Seria o aproveitamento dos

materiais que estão à disposição na sala de aula” (Solange).

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Nesse sentido, a visão dos alunos expressa uma Didática puramente

instrumental e preocupada exclusivamente com o “como fazer”, deixando à margem do

processo didático o “para que fazer” e o “por que fazer”. A Didática instrumental,

conforme (CANDAU, 2005, p. 13-14),

[...] é concebida como um conjunto de conhecimentos

técnicos sobre o “como fazer” pedagógico, conhecimentos estes

apresentados de forma universal e, conseqüentemente,

desvinculado dos problemas relativos ao sentido e aos fins da

educação, dos conteúdos específicos, assim como do contexto

sociocultural concreto em que foram gerados.

Tais considerações justificam a necessidade premente de se repensar a

Didática, buscando superar a concepção unicamente instrumental que concebe a

didática como um jogo de regras, um conjunto de normas e um "como fazer"

despolitizado. É preocupante constatar que futuros profissionais da educação saiam com

essas premissas acerca de um campo de estudo fundamental à Pedagogia.

Libâneo (2008) defende que a Didática engloba a construção de

fundamentos que consistem no conjunto de saberes, conhecimentos, tendências,

paradigmas, que justificam e respaldam as ações pedagógicas, atentando-se às

condições relacionadas à sociedade e às comunidades, às políticas educacionais que

influenciam as práticas, bem como a preocupação com a efetiva organização do

trabalho didático em suas diferentes dimensões. Para ele, os estudos da Didática

constituem-se no modo como se concretizam as práticas socioeducacionais, a partir de

seus objetivos, conteúdos, métodos, ações, estratégias de aprendizagem e avaliação.

Os discentes ao preconizarem uma noção instrumental da Didática,

deixaram de compreender uma concepção de Didática fundamental que apóia-se na

multidimensionalidade do processo de ensino-aprendizagem, articulando as dimensões

técnica, humana e política; no esforço pela explicitação dos pressupostos – o contexto

em que foram gerados, a visão de homem, de sociedade, de educação e de

conhecimento – e na unidade entre teoria e prática, como explica Candau (2005).

Não é intenção do presente trabalho inferir se o docente da disciplina de

Didática da instituição pesquisada possui uma concepção tão instrumental a ponto de ter

exercido influência nos graduandos, até porque, embora contida em uma disciplina

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específica, a Didática transita por outras disciplinas, por variados textos, de modo que

os graduandos não limitaram o contato com este campo de estudo somente na disciplina

voltada a ele. Cruz e André (2014) realizaram pesquisa exclusivamente com professores

de Didática em instituições públicas e privadas e constataram que a maioria dos

docentes tem dificuldade em definir conceitualmente a Didática e quando o fazem,

majoritariamente caminham para uma concepção instrumental.

Então, o fundamental é problematizar que consequências uma noção

instrumental de Didática acarreta aos futuros profissionais da educação. Carregando

uma visão tão voltada ao "como fazer" limitado aos conjuntos de regras e normas do

fazer docente, os graduandos deixam de perceber a potencialidade da Didática em seu

sentido mais amplo. Desconsideram que a Didática não se limita apenas a um conjunto

de orientações mecânicas e não a encaram de modo crítico, pois não percebem que a

Didática diz respeito a um fazer docente que carrega em si um projeto de sociedade, que

não se faz somente pelo educador e sim na relação deste com as demais dimensões que

envolvem a relação ensino e aprendizagem, dentro e para além do espaço de sala de

aula.

É importante destacar que a concepção de Didática fundamental proposta

por Candau (2005), não nega a dimensão técnica, porém a ressignifica do ponto de vista

político. Para a autora, a prática pedagógica, objeto da Didática, por ser política, exige

também a competência técnica. Assim é necessário que haja uma conexão entre as

esferas humana, técnica, política e social, que dizem da multidimensionalidade do

processo de ensinar e aprender, objeto central à Didática.

Cruz e André (2014, p.184) chamam a atenção de que nos cursos de

formação de professores, "o ensino da Didática parece querer superar a tendência

instrumental, mas sem conseguir definir o foco do que seria o fundamental". Tal visão é

semelhante ao que aponta Libâneo (2008a), ao defender que a Didática tem

enfraquecido o seu objeto, visto que há uma dispersão que tem se consolidado no campo

nos últimos anos. Segundo Libâneo (2008a, p.237), o objeto da Didática não tem

recebido o tratamento devido nos cursos de formação docente: “por que hoje os

programas de didática tratam de todos os temas, menos daqueles que ajudam os

professores a atuarem eficazmente nos processos de aprendizagem dos alunos?”

Libâneo (2011, p.29) ao realizar pesquisa sobre o ensino de Didática no

Estado de Goiás, percebeu na análise dos planos de ensino das disciplinas “que ao

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6369ISSN 2177-336X

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menos 70% delas expressam uma didática instrumental (...)”. No entanto, Cruz e André

(2014, p.192) possuem visão diferente. A partir de suas experiências como docentes da

disciplina de Didática e no contato com demais colegas, as pesquisadoras defendem

"que parece predominar uma abordagem de Didática que tende a ignorar o ensino de

conteúdos ligados ao foco instrumental e priorizar diversos assuntos que envolvem a

formação docente". Alertam ainda que, o ensino e a aprendizagem não são afirmados

como o núcleo central da discussão. Mas alegam que as discussões são distanciadas das

escolas, "sem trabalhar com os licenciandos, futuros professores, o que e como ensinar"

(CRUZ, ANDRÉ, 2014, p.192).

Candau (2005, p. 38), ao analisar o campo da Didática, defende que

“mais do que uma questão de dispersão é possível interpretar esta realidade como um

momento de desestabilização e diversificação, em que emerge uma pluralidade de

enfoques, temáticas e problemáticas”. Para Cruz e André (2014), o ensino de Didática

se beneficia da diversificação, porém enfrenta o desafio de não perder o foco em face à

pluralidade de temáticas e abordagens confluentes à área. As autoras concluem:

Nossas observações apontam que a proposta de uma

Didática que ajude o professor a entender o processo de ensino e

aprendizagem para delineá-lo a partir de um contexto situado

não tem sido assumida pelos cursos de formação inicial, ainda

que o caráter prescritivo, próprio da Didática instrumental,

pareça superado. Se o prescritivo não prevalece, mas o

fundamental da Didática também não se estabelece, o que conta

como Didática nos cursos de formação de professores? (CRUZ,

ANDRÉ, 2014, p.192, grifo nosso).

As discussões travadas nos grupos focais com os discentes mostram

resultado diferente desta conclusão defendida pelas autoras. Como se evidenciou, a

noção instrumental foi consensual entre os graduandos, que se revezaram, ora

enfatizando a questão das normas e regras de como se dar a aula, ora ressaltaram as

formas mais adequadas de se selecionar os conhecimentos. Assim, a pesquisa aqui

relatada se aproxima mais das conclusões tiradas por Libâneo (2008a, 2011).

A partir de uma concepção instrumental da Didática, a temática do

conhecimento foi evidenciada pelos graduandos. Importante para a Didática, o

conhecimento é uma dimensão central também ao campo do Currículo. Desse modo, os

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discentes ressaltaram suas concepções também instrumentais, despolitizadas e

pretensamente neutras acerca do conhecimento. Percebe-se, através dessa temática, um

hibridismo entre Didática e Currículo na própria compreensão dos graduandos. Não são

muito claras as fronteiras entre esses campos, visto que nas discussões se evidenciou

que ambos ressaltam o conhecimento, os seus modos mais "adequados" de seleção e

distribuição e a centralidade do professor nessas escolhas. Foi recorrente nos grupos

focais, a reclamação por parte dos discentes de que se viu a mesma coisa na disciplina

de Didática e de Currículo, ainda que, na disciplina de Didática, os discentes relataram:

"aprendemos mais regras e dicas e como o professor organiza os conteúdos que ele vai

ensinar" (Roberta, Jiraíldo), enquanto na disciplina de Currículo, discutiu-se "que

conhecimentos que entram nos diversos anos de ensino, quais são adequados" (Velise).

É interessante notar que, mesmo a disciplina de Didática sendo o objeto de estudo dos

grupos focais, vários discentes tenham resgatado conteúdos que estudaram na disciplina

de Currículo, pois viram semelhanças entre os campos. Ainda assim, a percepção

instrumental continuou consolidada.

Sob uma perspectiva instrumental de Didática, não é surpresa que as

percepções sobre o conhecimento tenham também perpassado por tais assertivas.

Também não surpreende tal temática ser enfatizada pelos graduandos, na medida em

que a Didática é um campo cuja questão do conhecimento lhe diz respeito de modo

significativo. De uma maneira geral, os discentes conceberem que o papel da Didática é

auxiliar o professor a escolher os conhecimentos/conteúdos mais adequados aos alunos

e demonstraram acolher sem grandes problematizações a ideia de um conhecimento

legítimo, adequado. Esse papel do docente como aquele que seleciona os "adequados"

conhecimentos também foi mencionado pelos graduandos ao relatarem a importância da

teoria curricular aos professores.

Tais falas evidenciam essa dimensão: "A Didática é fundamental por que

ela ajuda o professor na hora de montar seu plano de ensino e determinar quais

conteúdos ele vai abordar em sala" (Dila, Dilena,Veluma); "A Didática, o Currículo, são

matérias que ajudam a definir que conteúdos são mais adequados aos alunos, pela idade

deles, pelo ano em que estão, essas coisas". (Solange, Jessé, Roberta); "aprendemos

muito sobre os conteúdos nas aulas de Didática. Como passar para os alunos, como

escolher os conteúdos mais importantes" (Jiraíldo, Telmo); "A Didática permite ao

professor saber quais conhecimentos ele tem que passar para os alunos e ajuda também

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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e dar aula com mais qualidade" (Regiane). Dois depoimentos chamam a atenção no que

diz respeito a uma tendência a não se problematizar o conhecimento, aceitando-o de

forma naturalizada:

Tem aqueles conhecimentos que qualquer escola transmite aos

alunos. Os mesmos de sempre. Então o professor deve saber transmitir

pois o conhecimento é o mesmo, os conteúdos são os mesmos mas a

forma que o professor passa muda de cada professor. Acho que é isso

é que é o desafio da Didática, o que ela pode ajudar o pedagogo.

(Jessé)

Toda escola vai falar de adição, de subtração, de plantas, de

história do Brasil, de solos, essas coisas. Mas cada professor deve

fazer isso adaptando ao seu jeito com técnicas que conseguem fazer o

aluno aprender aqueles conteúdos. Conhecer a Didática é importante

para saber como o professor vai transmitir esses conteúdos. (Velise)

Tais assertivas centralizam o conhecimento como temática central à

Didática. Porém, concebem-no de um modo despolitizado, ingênuo e instrumental no

que diz respeito à ênfase na seleção de uma maneira meramente técnica, ancorada em

percepções de "mais adequado", "melhor", "mais importantes", "os mesmos de sempre";

sem se darem conta de questões importantes que permeiam tais conceitos: adequado

para quem? Melhor para que e para quem? Quem determina quais são os mais

importantes? Tais questionamentos têm sido amplamente enfatizados por teóricos

críticos do currículo como Apple (2006), Giroux (1997) e também por Paulo Freire

(1986, 1992).

Defende-se que a teoria crítica curricular amparada pode contribuir para

que se problematize a questão do conhecimento, colaborando assim para a

desconstrução da visão instrumental da Didática. Integrar as concepções de Candau

(2005) e Libâneo (2008) às contribuições dos teóricos críticos do currículo que

problematizam o conhecimento, é fundamental na busca por uma visão mais política da

Educação, como um todo, em superação do instrumentalismo.

Os graduandos, ao conceber que existem os conhecimentos que as

escolas transmitem aos alunos, sem problematizar quais outros não se transmite, acabam

por priorizar o aspecto técnico do fazer docente e negligenciar o político. Problematizar

o conhecimento tanto no viés curricular, como na Didática, e, sobretudo no híbrido entre

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6372ISSN 2177-336X

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os dois campos, é fundamental caso se procure a construção de uma concepção de

educação crítica e transformadora.

O conhecimento neutro, ilusão pretensamente buscada por algumas

concepções tradicionais de educação, não se sustenta a partir da constatação de que todo

conhecimento carrega em si interesses ideológicos que por sua vez estão em constante

conflito com demais interesses. De modo que toda seleção de conhecimento diz de uma

concepção de educação ali embutida e inevitavelmente ocasiona em exclusões e

silenciamentos. Historicamente, o dito conhecimento universal-legítimo, na percepção

de Paraíso (2015), Giroux (1997), Mclaren (1997) e Apple (2006) nada mais é do que o

conhecimento universalizado por determinados grupos, geralmente vencedores e

dominantes, que legitimam e tornam hegemônicas determinados saberes em detrimentos

de outros; determinadas culturas em detrimento de outras.

[...]a partir do momento em que preservam e distribuem o que

é considerado como o “conhecimento legítimo” – o conhecimento que

“todos devemos ter” – as escolas conferem legitimação cultural ao

conhecimento de grupos específicos. Todavia, isso não é tudo, uma

vez que a capacidade de um determinado grupo tornar seu

conhecimento em “conhecimento para todos” encontra-se relacionada

com poder que esse mesmo grupo detém no campo político e

econômico. Assim, poder e cultura devem ser vistos, não como

entidades estáticas sem relação entre si, mas como atributos das

relações econômicas existentes numa sociedade.(APPLE,2006, p. 138)

Os questionamentos de Giroux (1997) são cruciais na direção de uma

noção problematizadora do conhecimento a ser ensinado nas escolas:

[...] 2. Como tal conhecimento é produzido? 3. Como tal

conhecimento é transmitido em sala de aula? 4. Que tipos de

relacionamentos sociais em sala de aula servem para espelhar e

reproduzir os valores e normas incorporados nas relações sociais

aceitas de outros lugares sociais dominantes? 5. Quem tem acesso a

formas legítimas de conhecimento? 6. Aos interesses de quem este

conhecimento está a serviço? 7. Como são mediadas as contradições e

tensões políticas e sociais através de formas aceitáveis de

conhecimento escolar e relacionamentos sociais? (GIROUX, 1997,

p.45).

Paraíso (2015) chama a atenção para a necessidade de se questionar a

pretenda universalização do conhecimento que legitima determinados saberes,

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fornecendo uma impressão ilusória de que abarcam, no geral os saberes acumulados

historicamente pela humanidade.

Vale destacar que o conhecimento nomeado universal é aqui

compreendido como resultado das escolhas de um grupo, do mesmo

modo que o conhecimento nomeado particular também é

conhecimento de um grupo. O conhecimento universal é produzido

em meio a relações de poder-saber. Logo, ele não tem nada de geral,

não abrange todas as coisas, não atende a todas as culturas, não possui

um caráter geral, absoluto e neutro. Ele nada mais é que o resultado de

escolhas e exercícios de poder, assim como qualquer outro

conhecimento. Os conhecimentos chamados universais são, portanto,

também particulares, e só são considerados universais porque em meio

a relações de poder conseguiram se impor como universais

(PARAÍSO, 2015, p. 789).

Não significa que o docente em sua prática, deve sonegar aos educandos

o conhecimento tido como historicamente acumulado pela sociedade, ou conhecimento

padrão na acepção de Freire (1992). Não se trata também de substituir o conhecimento

legitimado pelos dominantes, por outro conhecimento calcado na lógica somente dos

oprimidos. A saída freireana para essa questão, que diz tanto para o Currículo quanto

para a Didática, consiste na transmissão dos conhecimentos historicamente acumulados

de maneira problematizada.

O chamado “padrão” é um conceito profundamente

ideológico, mas é necessário ensinar a sua utilização enquanto se

criticam, também, suas implicações políticas.Agora, a questão é a

seguinte: sabendo de tudo isso, terá o professor libertador o direito de

não ensinar as formas padronizadas? Terá o direito de dizer: “Sou um

revolucionário, portanto, eu não ensino o „bom‟ inglês?” Não. Do meu

ponto de vista, o educador deverá tornar possível o domínio, pelos

estudantes, do inglês padrão, mas – e aqui está a grande diferença

entre ele e outro professor reacionário – enquanto o professor

tradicional ensina as regras do inglês de primeira (risadas), ele acentua

a dominação dos estudantes pela ideologia elitista, que está inserida

nessas regras. O professor libertador lhes ensina a forma padronizada,

para que possam sobreviver, discutindo com eles todos os ingredientes

ideológicos dessa ingrata tarefa. Você está vendo? Acho que é dessa

forma que os professores podem refletir sobre o medo que eles têm da

rejeição dos estudantes e também sobre o medo que têm das formas

padronizadas (FREIRE; SHOR, 1986, p.49).

O conhecimento é uma temática fundamental para os campos da Didática

e do Currículo. Problematizá-lo no intuito de questionar sua pretensa neutralidade e

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desconfiar de sua universalidade que visa garantir um determinado conhecimento

legítimo, são tarefas importantes que compreendem concepções críticas de Didática e de

Currículo. Os discentes do curso de Pedagogia em questão, ao encararem a Didática de

modo instrumental, acabaram por dar um olhar ingênuo e despolitizado ao

conhecimento, embora o percebem como temática central ao campo da Didática.

3. Considerações finais

Buscou-se no presente trabalho argumentar que um noção instrumental

de Didática, observada nas argumentações dos graduandos de um curso privado de

Pedagogia, ocasionou em compreensões despolitizadas acerca do conhecimento escolar.

Reitera-se uma preocupação com tais conclusões na medida em que os sujeitos da

pesquisa foram graduandos que finalizavam o curso de Pedagogia e portanto, estavam

prestes a se efetivarem como pedagogos.

É salutar que tenham percebido a importância do conhecimento escolar

para o campo da Didática e interessante que tenham compreendido que tal temática é

cara também ao campo do Currículo. De fato, o conhecimento é um elo que hibridiza os

dois campos, dificultando o estabelecimento de suas fronteiras, contribuindo para a

noção de que Currículo e Didática são campos intrinsecamente complementares.

No entanto, o desafio de se superar a noção instrumental e despolitizada

da Didática, do Currículo, sob a luz do conhecimento escolar, permanece premente. Por

mais que se tenha décadas de produções acadêmicas na direção da superação do

instrumentalismo, ainda assim pode-se perceber tais compreensões na formação de

professores. Assim, é necessário que se revigore a luta em busca da politização da

Educação, desmascarando a sua pretensa neutralidade.

O presente trabalho não adota um tom de culpabilização dos graduandos,

afirmando com total certeza de que serão docentes instrumentais no decorrer de suas

carreiras e sim, reflete e problematiza a manutenção de concepções instrumentais de

Didática que ainda não foram superadas, e das consequências que tais noções acarretam

em outras temáticas cruciais para a prática pedagógica. Permanece desafiador o cenário

da formação de professores em busca de uma formação problematizadora que não se

resuma ao "como fazer" docente.

Referências

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