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CURRÍCULO DE CIÊNCIAS: UMA ABORDAGEM CULTURAL ELIZABETH MACEDO UERJ 2005-- 2008

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CURRÍCULO DE CIÊNCIAS: UMA ABORDAGEM CULTURAL

ELIZABETH MACEDO

UERJ

2005-- 2008

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RESUMO

Este projeto tem origem em trabalhos anteriores e repousa sobre duas preocupações, a

primeira com a diferença e a segunda com a centralidade da cultura no campo do currículo.

Para tratar a diferença, tenho procurado articular um entendimento antropológico da

diferença com a perspectiva relacional de autores pós-coloniais. Com isso, os estereóripos que

marcam a diferença têm sido vistos como uma forma de tentar expelir tudo que não se encaixa nos

limites simbólicos estabelecidos pelas culturas, mas também como uma projeção sobre o outro da

―parte má‖ do eu que nos persegue e com a qual não sabemos lidar. A compreensão da diferença no

currículo depende, então, de um tratamento relacional que problematize as próprias normas pelas

quais é construída. Os sistemas de representação em que a diferença é construída precisam ser

confrontados com outros sistemas, de modo a promover uma reflexão sobre como, ideologicamente,

são representados grupos dominantes e subordinados em diversos artefatos culturais formais e

informais, entre eles o currículo Trata-se de uma tentativa de entender como as relações de poder

são naturalizadas nas formas como esses artefatos demarcam as fronteiras entre as culturas dos

diferentes grupos.

Para se pensar a diferença, não como diversidade, mas como um discurso relacional em

que o próprio sistema de sua representação está em questionamento, parece fundamental a

compreensão do currículo como híbrido cultural em que sistemas simbólicos dominantes negociam

com posições minoritárias que resistem à totalização, permitindo à diferença cultural rearticular a

soma de conhecimentos. Assim, proponho que vejamos o currículo como um espaço-tempo de

colonização, em que convivem as culturas locais dos variados pertencimentos de alunos e

professores com as culturas globais, majoritárias tanto nos currículos escritos quanto,

possivelmente, nos vividos nas salas de aula. Nego, como querem algumas teorizações no campo do

currículo, que os currículos oficiais sejam a expressão das culturas globais, enquanto os currículos

em ação guardem distância segura em relação a essas culturas. Proponho que ambos sejam tratados

como espaços-tempo de colonização. No caso das ciências, há uma óbvia hegemonia do discurso do

iluminismo, centrado na separação entre natureza e cultura e numa acepção internalista de ciência,

que não impede que sejam percebidas negociações operadas com outros sistemas referenciais que

expõem o hibridismo não apenas do currículo, mas do próprio discurso globalizante do iluminismo.

Essas duas preocupações foram desenvolvidas em projeto atualmente em andamento, em

que são analisados propostas curriculares e livros didáticos de ciências desde os anos 1970. O

presente projeto tem por objetivo aprofundar a forma como a diferença vem sendo tratada nos

currículos de ciências—dentre as quais privilegio questões de raça, gênero e sexualidade— tendo

em vista o fazer curricular de uma escola específica no mesmo período, no caso o Colégio de

Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp/UFRJ).

A análise do currículo vivido na instituição terá por horizonte a idéia, defendida por

Stephen Ball, de que as políticas curriculares são contínuos que envolvem contextos de influência,

de produção do texto e de prática. Portanto, ainda que penetrando no campo pelo contexto da

prática, não pretendo autonomizá-la. O trabalho de campo compreenderá análise documental e

entrevistas focadas com professores e alunos que produziram os currículos de ciências como prática

cultural no período estudado. Dessa forma, espera-se analisar o fenômeno da dominação cultural

como um processo dinâmico que envolve a materialização de conflitos e contradições.

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ANTECEDENTES, OBJETIVO E JUSTIFICATIVA DO ESTUDO

Desde o início dos anos 1990, o campo do currículo vem respondendo de forma

sistemática à centralidade da cultura nas sociedades contemporâneas. Como salienta Pinar

(2002), a importância do entendimento do currículo como texto político foi substituída pelo

―explosivo crescimento dos estudos culturais‖ (p.114). Lembrando que a maioria dos

curriculistas que tratava o currículo numa perspectiva política migrou para uma vertente

mais próxima aos estudos culturais, Pinar defende que esses estudos representam, de

alguma forma, uma continuação dos interesses políticos desses autores1.

A afirmativa de Pinar nos permite, de alguma forma, entender que a guinada em

direção à cultura não afastou o campo do currículo de uma preocupação política. Esse

entendimento, no entanto, só faz sentido se alicerçado em uma nova leitura do cultural, que,

como defendem Santos e Nunes (2003), não se fixe nas distinções entre cultura, economia e

política. Uma leitura que compreenda que o cultural, ao ser re-funcionalizado como

mercadoria, rearticula sua dimensão política. É bem verdade que, muitas vezes, o potencial

político do cultural fica restrito ao exercício de práticas de escolhas ligadas ao consumo

(Jameson, 2001), mas parece também aceitável que o espaço da cultura incorpora

alternativas, para além dos valores de mercado. Segundo Santos e Nunes (2003), essas

alternativas são construídas num espaço político re-configurado, em cruzamentos das

características globais do capitalismo com especificidades locais num hibridismo que

transcende espaços nacionais e atores sociais privilegiados.

É nesse espaço de alternativas, que buscamos pensar, nos últimos anos, a temática

da diferença no currículo escolar. Desde 2000, ainda em projeto integrado com a UFRJ, sob

a coordenação do Dr. Antonio Flavio Moreira, venho trabalhando com a temática do

multiculturalismo, não apenas no campo do currículo, como também nas propostas

curriculares. Naquela ocasião, analisamos guias curriculares dos municípios do Rio de

Janeiro (Multieducação) e Belo Horizonte (Escola Plural), tendo como foco a apreensão do

multiculturalismo por esses documentos. Em 2002, em projeto desenvolvido apenas pelo

grupo "Currículo: sujeitos, conhecimento e cultura" do Programa de Pós-graduação em

1 O autor cita os casos de Apple, McLaren, Wexler, Giroux e Bowers. No Brasil, o grupo de estudiosos do Rio

Grande do Sul, sob a coordenação do professor Tomaz Tadeu da Silva, dá guinada semelhante à descrita por

Pinar (Lopes, A.C. e Macedo, E., 2003) e os trabalhos mais recentes de Antonio Flavio Barbosa Moreira também caminham nessa direção. No campo da didática, Vera Candau desenvolve trajetória semelhante.

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Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que coordeno, busquei

entender como a diferença vem sendo construída, nos últimos trinta anos, pelos currículos

escolares, focalizando a disciplina Ciências nas quatro últimas séries do ensino

fundamental. Com essa iniciativa, pretendi integrar esforços anteriores no campo da

história das disciplinas escolares, especialmente das ciências naturais, com o foco mais

específico nas questões da diferença cultural.

Trabalhei, nesses últimos dois anos, com as propostas curriculares para o ensino de

ciências no município do Rio de Janeiro e no plano federal, desde 1971 até 2002, buscando

entender como elas hibridizam diferentes discursos— do iluminismo, do mercado, de

saberes locais— e como concebem a diferença, ajudando a constituí-la. Valendo-me de

autores ligados ao que se convencionou chamar de pós-colonialismo, pretendi tratar as

formas instituídas de marcar e dividir os sujeitos num espaço teórico e num lugar político

de articulação (Bhabha, 2003), enfocando, de juntas ou não, questões de raça, gênero e

sexualidade. Algumas construções que fomos desenvolvendo ao longo desse estudo são a

base sobre a qual construo o presente projeto. Pretendo, com isso, dar continuidade a uma

reflexão coletiva sobre a diferença no currículo e sobre a constituição de campos

disciplinares nos currículos escolares.

A primeira construção que julgo importante ter na base deste projeto tem a ver

com a noção de diferença e com a forma como ela vem sendo tratada nos currículos. Desde

2000, desenvolvendo o projeto sobre como as questões do multiculturalismo vinham sendo

apropriadas pelo campo do currículo (Moreira e Macedo, 2000), incomodava-me que a

aceitação da diferença pudesse dificultar ações políticas pelo esfacelamento dos projetos de

emancipação e combate às desigualdades. De um lado, encontravam-se propostas que

tratavam a diferença de forma essencial e defendiam currículos centrados nas

especificidades dos grupos culturais. De outro, projetos que, sob a alegação de reduzir as

desigualdades, acabavam por reduzir as diferenças ao mesmo, geralmente priorizando

aspectos econômicos. No espaço destinado a propostas multiculturais2, a percepção,

2 Utilizo o termo mutlticulturalismo sem pretender que seja entendido como uma doutrina política, não

pretendendo com esse termo endossar nenhum ―estado ideal ou utópico‖ (Hall, 2003, p.52). Como o autor, utilizo o termo ―sob rasura‖, mantendo-o apenas em virtude de sua grande utilização na literatura sobre currículo. Quero mais propriamente afirmar o caráter multicultural das sociedades contemporâneas em que

diferentes comunidades culturais convivem, suas características sociais e seus ―problemas de governabilidade‖ (Hall, 2003, p.52).

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também observada por McCarthy (1994) quando da análise da realidade americana, de que

elas têm falhado na solução das desigualdades porque ―dependem quase que

exclusivamente da reversão de valores, atitudes e natureza humana dos atores entendidos

como ‗indivíduos‘‖ (p.87). Buscava, então, uma forma de pensar a diferença que p udesse

dar conta de uma luta comum por igualdade sem perder de vista a diferença e sem acreditar

numa possível reversão de preconceitos baseada na boa vontade ou na convivência pacífica.

Chamou-me a atenção, na ocasião, algo a que Gilroy (2001) denominava

solidariedade na diferença. O autor defendia que era falsa a oposição entre particularismo e

nacionalismo étnico ou racial. Em contrapartida, indicava que a idéia de rotas

transnacionais era mais substantiva do que a de raiz para pensar as identidades étnicas, esta,

de certa forma, recapturando princípios absolutistas comuns ao nacionalismo, ao

colonialismo e ao racismo. As rotas internacionais, móveis, eram constituídas na resistência

de sujeitos diaspóricos em quaisquer lugares em que contestassem a conti nuidade da

opressão colonial tendo por base idéias de outras pessoas de outros tempos e espaços.

Dessa forma, a noção de identidade essencializada e a visão de um sentido sempre fixo e

fechado eram desmentidas por Gilroy. Era possível, então, pensar uma solidariedade na

diferença que fosse contingente, descontínua e transnacional e que aproximasse, num

momento, sujeitos oprimidos de diferentes lugares.

Por essa porta, fui levada às discussões pós-coloniais e a teóricos como Bhabha

(2003), Hall (1997a, 2003), Said (1990), Gilroy (2001) e Spivak (1994, 1996), que vieram

se juntar a autores que tratavam a diferença no currículo, em especial McCarthy (1994),

Mahalingam e McCarthy (2000), Willinsky (1998) e Fleuri (2000, 2001, 2002)3, e a

algumas discussões levantadas por Santos e Nunes (2003). Criei assim um terreno sobre o

qual compreender a diferença que articulava um entendimento antropológico da diferença

com uma perspectiva relacional com forte matriz psicanalítica (Hall , 1997b). Com isso,

tornava-se possível entender os estereóripos que marcam a diferença como uma forma de

tentar expelir tudo que não se encaixa nos limites simbólicos estabelecidos pelas culturas,

mas também como uma projeção sobre o outro da ―parte má‖ do eu que nos persegue e com

a qual não sabemos lidar.

3 Também as discussões de Skliar (2002) e, no campo do ensino de ciências, de Haraway (1989,1997),

Harding (1998, 2000) e Wortmann e Veiga-Neto (2001) foram importantes contribuições ao longo dos últimos anos.

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Apresentava-se, então, para mim, a idéia de que a diferença cultural nos currículos

só pode ser compreendida numa perspectiva relacional que problematize as próprias

normas pelas quais é construída. Os sistemas de representação em que a diferença é

construída precisam ser confrontados com outros sistemas, de modo a promover uma

reflexão sobre como, ideologicamente, são representados grupos dominantes e

subordinados em diversos artefatos culturais formais e informais, entre eles o currículo

(McCarthy, 1994). Trata-se de uma tentativa de entender como as relações de poder são

naturalizadas nas formas como esses artefatos demarcam as fronteiras entre as culturas dos

diferentes grupos.

Essa exigência nos leva à segunda construção da qual parto para dar forma a este

projeto: a idéia de que o currículo é um processo cultural, um espaço-tempo em que

sistemas simbólicos dominantes negociam com posições minoritárias que resistem à

totalização, permitindo à "diferença cultural rearticular a soma de conhecimentos"

(McCarthy, 1994, p.85). Embora essa idéia, a princípio, nada tenha de novo, a produção

sobre currículo tem freqüentemente mantido a centralidade da categoria conhecimento o

que dificulta a percepção do currículo como espaço-tempo de produção cultural. É comum

no campo a utilização dos termos cultura e conhecimento sem maiores distinções, o que

torna o currículo um espaço-tempo em que extratos selecionados da cultura são ou não

legitimados4. Entendo que essa abordagem vem prejudicando o entendimento dos

currículos como espaço-tempo da diferença e, portanto, me esforço, neste projeto, por

defender a idéia de um currículo como processo cultural.

Derivo, dessa primeira construção, decisões teórico-metodológicas relevantes para

o presente projeto. Conceptualizar o currículo como processo cultural implica também em

reconceber as formas como vêm sendo estudadas as políticas curriculares. Análise das teses

e dissertações defendidas pelos Programas de Pós-graduação em Educação5, vinculadas a

projetos institucionais de grupos de pesquisa, assim como dos artigos publicados nos

4 Esta discussão foi realizada no texto "Currículo como espaço-tempo de fronteira cultural" (Macedo, 2004),

submetido à avaliação para ser debatido na Reunião Anual da ANPEd de 2004. 5 Essa análise foi empreendida pela doutoranda Ozerina Victor de Oliveira, participante do grupo de pesquisa,

e é parte integrante do material apresentado ao Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ como requisito para o exame de qualificação.

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principais periódicos da área6, demonstra que a quase totalidade dos trabalhos sobre política

curricular preocupa-se com a dimensão macro do processo. São textos que, em sua maioria,

analisam as diretrizes curriculares formais com modelos centrados na atuação do Estado.

Por outro lado, alguns (bem menos numerosos) estudos priorizam a atuação potencial dos

sujeitos na construção das políticas curriculares cotidianas, focalizando mais detidamente

os currículos vividos do que os formais. Entendo, subsidiada por Ball (1997), que o

privilégio de uma ou outra dimensão do fazer curricular traz inegáveis prejuízos para os

estudos de política do currículo. Embora em sentidos opostos, as análises acima referidas

trabalham com a mesma lógica que separa, artificialmente, os contextos de produção e de

implementação do currículo, ora reforçando a dominação via currículo ora autonomizando

a resistência dos sujeitos. Ao tomar o currículo como processo cultural, a distinção entre

currículo formal e vivido precisa ser desconstruída a partir da compreensão de que tanto um

quanto outro são produzidos na negociação entre diferentes discursos. Desenvolvem-se,

portanto, num espaço ambivalente de controle e resistência. As opções metodológicas pela

análise de materiais curriculares ou do cotidiano da escola não são senão formas

diferenciadas pelas quais buscamos nos aproximar dos processos culturais de fazer

currículo. Elas nos permitem perceber, em contingências distintas, o hibridismo que

caracteriza esse fazer.

A separação entre formal e vivido cria uma outra dicotomia que precisa ser

questionada. Trata-se da idéia de que o projeto iluminista de escola é privilegiado na

seleção do conhecimento escolar que faz parte dos documentos escritos e que os saberes de

professores e alunos seriam, de certa forma, transgressores (Alves e Garcia, 1999; Alves e

Oliveira, 2002). Defendo que tanto os discursos globais— do iluminismo, do mercado,

sobre a escola e a pedagogia— quanto aqueles que a Modernidade convencionou chamar de

senso comum ou de cultura popular, se entrecruzam, entre outros saberes contingentes, na

produção dos currículos. Existem, portanto, perspectivas globais e locais tanto nas

diretrizes curriculares escritas quanto nas praticadas pelos sujeitos curriculares. O

iluminismo e o mercado são fortes marcadores dos currículos escritos, mas também

6 Essa conclusão tornou-se possível pela análise do material resumido para o estado da arte do Currículo da

Educação Básica, realizado por equipe coordenada pela pesquisadora com a participação de Alice Casimiro

Lopes, Edil Vasconcelos de Paiva, Inês Barbosa de Oliveira, Rita de Cássia Frangella e Rosanne Evangelista Dias, com financiamento do INEP.

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residem nas culturas dos sujeitos que os praticam, assim como elementos culturais locais

penetram nos currículos formais e aí negociam sua permanência. Uma permanência que é

também ausência, posto que a negociação envolve, em ambos os casos, um hibridismo que

mantém e altera as culturas que dialogam no currículo.

Foi tendo como base essas duas construções, que esbocei brevemente, que vimos

analisando os currículos de ciências do ensino fundamental dos últimos trinta anos. As

principais fontes com as quais trabalhamos foram os próprios documentos curriculares— e

as legislações a eles vinculadas— e os livros didáticos mais utilizados no período. Nossas

análises pretenderam entender como alguns estereótipos marcadores da diferença eram

construídos, não apenas, mas também por esses materiais. Além dos próprios documentos

escritos, que buscamos entender como produto cultural, pretendemos, por intermédio de

entrevistas com formuladores de políticas e com professores de ciências, perceber a

dinâmica cultural envolvida no fazer curricular, fazer entendido como produção de

materiais escritos e como produção do cotidiano da aula.

No hibridismo de discursos que constitui o currículo de ciências, confirma-se

óbvia a hegemonia do discurso do iluminismo, centrado na separação entre natureza e

cultura e numa acepção internalista de ciência. Essa hegemonia, no entanto, não impede

que sejam percebidas negociações operadas com outros sistemas referenciais que expõem o

hibridismo não apenas do currículo, mas do próprio discurso globalizante do iluminismo.

Essas negociações têm sido mais acessíveis quando centramos nossa análise nas formas de

produção e de utilização dos documentos curriculares do que quando operamos a análise do

material apenas como produto. Os limites que delimitamos, no entanto, para a pesquisa

atualmente em fase de conclusão fazem com que algumas especificidade do processo de

produção do currículo como política cultural tenham sido, ainda, pouco exploradas. Refiro-

me mais propriamente às interfaces entre o fazer curricular no âmbito de uma disciplina e

características institucionais.

Os estudos históricos sobre disciplinas escolares marcam a importância de

características dos estabelecimentos na forma como elas se desenvolvem, sendo a maioria

das pesquisas centradas em instituições específicas (Goodson, 1994; Popkewitz, 1987).

Essas pesquisas mostram que, apesar de um certo movimento comum das disciplinas

escolares em países, regiões e escolas, havia especificidades que apontavam para uma

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associação entre a história das disciplinas e a história das instituições educacionais. Fatores

internos das próprias escolas, como, por exemplo, liderança e biografia dos sujeitos,

contribuíam de forma relevante para os rumos de uma disciplina no currículo 7. Considerar

as particularidades das instituições escolares pode, portanto, permitir aos estudos de história

das disciplinas escolares matizar movimentos mais globais e perceber mais claramente

movimentos próprios do fazer curricular.

A preocupação com as dinâmicas institucionais na constituição de uma disciplina

escolar assume, ainda, maior relevo no momento em que fiz uma opção por tratar o

currículo como processo cultural e a diferença como diferença cultural (Bhabha, 2003). Isso

porque como processo cultural, o currículo estará sempre no entre-lugar entre discursos

globais e contingências locais. E a diferença cultural implica em entender como a diferença

é vivida e ela só é vivida— expressa, aceita, transgredida— em espaços-tempos locais.

Com isso não quero argumentar que os currículos formais que foram o foco maior da

pesquisa em conclusão são discursos não contingentes ou que se estabelecem num espaço-

tempo não-local. Apenas defendo que tratá-los numa outra dimensão, no espaço-tempo de

uma escola, pode contribuir para compreender um pouco melhor a forma como a diferença

tem sido vivida nesses currículos.

Assim, o objetivo deste projeto é tratar a diferença nos currículos de

ciências—dentre as quais privilegio questões de raça, gênero e sexualidade— tendo

em vista o fazer curricular de uma escola específica desde a década de 1970, no caso o

Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp/UFRJ).

Entendo, como já explicitei, que esse fazer curricular é um processo que hibridiza

diferentes tradições, dentre as quais, perspectivas globais como o iluminismo e formas

variadas de transgressão, uma transgressão não apenas externa, mas também interna aos

próprios discursos globalizantes.

A seleção da escola na qual o projeto será realizado deve-se a projeto anterior

desenvolvido na Instituição (Moreira, Lopes e Macedo, 2000), que revelou que, a partir dos

anos 1970, a dinâmica curricular no campo das ciências naturais foi muito rica, englobando

a participação ativa da equipe em diversos projetos que se propunham a repensar o ensino

7 Nessa linha de estudos, desenvolvemos anteriormente um conjunto de trabalhos, a maioria em cooperação

com o Núcleo de Estudos em Currículo da UFRJ. Além de teses e dissertações, orientadas e em andamento, destaco os trabalhos Macedo, 1997 e Moreira, Lopes e Macedo, 2000.

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de ciências (Lopes, 2000 e Lopes, Serra e Gomes, 2001) no país. Ressalta-se, ainda, a

importância da Instituição na formação de quadros para o ensino de ciências no Rio de

Janeiro, em função de sua característica de campo de estágio de licenciados da

Universidade. Para além dessa riqueza, a escola possui acervo bastante bem organizado no

PROEDES/UFRJ que permite o acesso a fontes importantes para a pesquisa.

UM POUCO MAIS DOS MARCADORES TEÓRICOS

Currículo como entre-lugar de cultura: uma possibilidade para se pensar a diferença

Tenho utilizado, para tratar o currículo como cultura 8, as teorizações de autores

pós-coloniais, especialmente no sentido de entender os currículos como espaços-tempos de

fronteira em que se hibridizam diferentes perspectivas e discursos. Defendo, com base

nesses autores, que apenas nas fronteiras é possível pensar a diferença cul tural, fugindo de

perspectivas que privilegiam a diversidade ou pluralismo.

A parceria com autores pós-coloniais exige-nos respostas para alguns argumentos.

Poder-se-ia alegar que o pós-colonialismo surgiu e desenvolveu-se para entender o

hibridismo cultural de países que viviam sua independência política, sendo, portanto,

imprópria a sua utilização para entender, não apenas a realidade brasileira em que a

descolonização política é muito mais antiga, como também uma questão tão específica

como a educação ou, ainda mais especificamente, o currículo. Quanto à primeira, lanço

mão de Bhabha (1999) quando expressa que entende por pós-colonialismo a resistência a

todas as formas de globalismo, ampliando seus questionamentos para o eurocentrismo

ampliado9 presente em diversas manifestações contemporâneas. Quanto à segunda, cito

estudos que têm feito excelentes leituras pós-coloniais da educação (como por exemplo,

Skliar, ; Fleuri, 2001; Giroux, 2003 e Ladwig, 2003).

Os currículos escolares pensados como híbridos culturais são práticas

ambivalentes que incluem o mesmo e o outro num jogo em que nem a vitória nem a derrota

jamais serão completas. Entendo-o como um espaço-tempo em que se hibridizam os

8 Utilizo aqui a idéia de que os currículos são dinâmicas que se propõem a balizar consensos simbólicos no

sentido de projetar uma maneira de ser dos sujeitos e das sociedades, podendo, portanto, ser entendidos como processos culturais (García Canclini, 2001) 9 A terminologia Europa ampliada foi utilizada por Said e expressa a aliança entre o iluminismo europeu e a

hegemonia contemporânea tanto política como cultural dos EUA.

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discursos da ciência, da nação, do mercado, os "saberes comuns", as religiosidades e tantos

outros, todos também híbridos em suas próprias constituições. É um espaço-tempo em que

os bens simbólicos são descolecionados, desterritorializados, "impurificados", num

processo que explicita a fluidez das fronteiras entre as culturas do eu e do outro e torna

menos óbvias e estáticas as relações de poder (García Canclini, 1998). Defendo que, nesse

híbrido que é o currículo, tramas oblíquas de poder tanto fortalecem certos grupos como

potencializam resistências. Em um e outro movimento, que são parte do mesmo, a diferença

aparece na negociação "com as estruturas de violência e violação que (as) produziram"

(Spivak, 1994, p.199).

O entendimento do currículo como híbrido cultural me parece crucial para se

pensar a diferença, não como diversidade (Burbules, 2003), mas como um discurso

relacional em que o próprio sistema de sua representação está em questionamento. Como

defende Skliar (2002), um outro que, ao contrário do outro multicultural, é político, "que

não vive somente para contestar o malefício, que não se alinha facilmente a uma cultura

que pode ser ordenada como múltipla, que não pode ser reduzido (...) a uma ação apenas

relacional e comunicativa" (p.202).

Pensar em um espaço-tempo de fronteira contemporâneo é pensar em uma cultura

global e homogênea, mas também em lógicas culturais alternativas. O espaço-tempo do

currículo traz, sem dúvida, marcas de uma homogeneidade ditada tanto pela cultura do

iluminismo quanto por uma cultura de mercado, características do pensamento Moder no e

dentro das quais torna-se difícil pensar a diferença. Para Santos (1997), o equilíbrio entre

regulação e emancipação que caracterizaria a Modernidade foi sendo desestabilizado ao

longo dos anos em um processo contraditório. O sentido dessa desestabilização apontou, no

entanto, fortemente para a submissão da subjetividade (e da diferença individual) ao

coletivo homogeneizado.

Em sua tentativa de compreender as lógicas culturais homogeneizantes da

Modernidade, Santos (1997) argumenta que a função de regulação fortaleceu-se em

detrimento da emancipação. Para o autor, no capitalismo, o pilar da regulação foi

caracterizado por uma hipertrofia do princípio de mercado em relação aos seus outros dois

constituintes— os princípios de estado e de comunidade— com três fases características.

Do capitalismo liberal, com primazia absoluta do mercado, passou-se ao estado-

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providência, em que este dividia espaço com o estado por pressão da comunidade, para uma

retomada da hegemonia do princípio mercado. Interessa-me, nesse movimento, entender

como a teoria liberal, que expressa esse desequilíbrio entre mercado, estado e comunidade,

levou à ocultação da diferença. Santos (1997) destaca que o liberalismo tentou

compatibilizar as subjetividades individuais e coletivas por meio da distinção entre Estado e

sociedade civil, regulando-a pelo princípio da cidadania. Se por um lado, no entanto, a

cidadania abre possibilidades de realização das subjetividades individuais (e das

diferenças), por outro, cria uma individualidade abstrata e universal, que "transforma os

sujeitos em unidades iguais e intercambiáveis no interior de administrações burocráticas

públicas e privadas, receptáculos passivos de estratégias de produção, enquanto força de

trabalho, de consumo, enquanto consumidores, e de estratégias de dominação, enquanto

cidadãos da democracia de massas" (p.240). Dessa forma, a cidadania, com sua marca de

democracia e igualdade profundamente seletivas, dificulta a tematização da diferença no

quadro da regulação do estado liberal10.

Se no âmbito da regulação, a marca da Modernidade parece ter sido a

homogeneização, no pilar da emancipação, a racionalidade cognitivo-instrumental da

ciência teve primazia em detrimento das racionalidades moral-prática do direito e estético-

expressiva da arte e da literatura. Para Santos (2000), esse duplo movimento de redução da

emancipação à racionalidade cognitivo-instrumental e da regulação ao princípio de

mercado acabou por reduzir, na Modernidade, a emancipação à regulação. Nas palavras do

autor, "a emancipação deixou de ser o outro da regulação para se converter em seu duplo"

(p.57). São visíveis os efeitos da absorção da emancipação pela regulação em diferentes

esferas do social, entre elas a escola e o currículo. Marcas como a relação entre escola e

mercado de trabalho, a colonização do conceito de cidadania por práticas de mercado, a

disciplinarização dos currículos, a sobrevalorização das ciências em detrimento das artes

10 É importante salientar que Santos (1997) enumera uma série de resistências aos princípios liberais, dentre

os quais o marxismo, o movimento estudantil e os novos movimentos sociais. Sobre o marxismo, o autor, embora salientando sua aguda capacidade crítica em relação ao estado liberal, defende que o sujeito monumental do liberalismo foi substituído pela classe operária. Dessa forma, a homogeneização reguladora do estado foi contraposta à homogeneização emancipadora de sujeitos coletivos. Em relação ao movimento estudantil, Santos (1997) defende que, a despeito de triunfar na substituição da cidadania homogeneizante por outra capaz de abarcar a subjetividade, negligenciou a cidadania liberal e acabou sendo desarmado com

grande facilidade. Em relação às novas formas de resistências, capazes de tematizar a diferença, serão analisadas oportunamente.

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são exemplos, entre tantos outros, desses efeitos. Trata-se de marcas de uma tendência

cultural dominante, cuja hegemonia no currículo tem sido questionada tanto pelas teorias

críticas quanto pelo pós-estruturalismo.

Defendo, no entanto, que essas teorizações têm apresentado dificuldades para

pensar a diferença na sociedade moderna (e no currículo). No caso das teorias críticas, a

vinculação da emancipação à idéia de classe condiciona a subjetividade individual à

coletiva, dificultando a tematização da diferença. Em relação às teorizações pós-estruturais,

concordo com Santos (1997) quando defende que Foucault denuncia com propriedade o

excesso de controle viabilizado pelo poder disciplinar (e pela ciência)— que regula e

domestica corpos para maximizar sua utilidade social— ao mesmo tempo em que "exagera

ao inscrever esse excesso de regulação na matriz do projeto de modernidade, a ponto de

fazer dele não só o único resultado, mas também o único resultado possível deste projeto"

(p.236). A essas dificuldades, contraponho as discussões pós-coloniais, que reconhecem

que a tendência cultural dominante é a homogeneização (seguindo imperativos postos por

um mercado e por uma ciência globais), ao mesmo tempo em que ressaltam que essa

tendência ―não pode controlar ou saturar tudo dentro de sua órbita" (Hall, 2003, p.59).

Nesse sentido, a homogeneização permite o surgimento de efeitos inesperados, tais

como as formações subalternas e as tendências emergentes, salientadas por Hall (2003).

Formações e tendências que não estão imunes aos princípios da homogeneização, mas que

compõem um sistema cultural que não pode se estabilizar sem conter em si a diferença. Um

sistema que nem ―inaugura(m) formas totalmente distintas de vida‖ (p.61) nem

―conserva(m) intactas as formas antigas e tradicionais‖ (p.61). Em outras palavras, Hall

(2003) defende que os sistemas globais convivem com localismos que eles mesmos

produzem. Localismos que chocam suas distintas temporalidades com o desejo universal

desses sistemas e só podem ser superados pela mediação do próprio sistema a que resistem

(Santos e Nunes, 2003).

Nas sociedades globais, os localismos assumem diferentes estratégias, do

ressurgimento de pertencimentos étnicos a movimentos locais de resistência ao global.

Santos e Nunes (2003) organizam as estratégias de resistência em dois grupos. Enquanto há

estratégias que mobilizam os conceitos globais de forma transgressiva ou subversiva, há

outras que denunciam esses conceitos e propõem conceitos alternativos. Além de não se

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poder, segundo o autor, estabelecer a primazia de umas sobre as outras, diferentes

processos de hibridismo as têm articulado para responder a diversas situações históricas

particulares. De qualquer forma, trata-se de estratégias que não criam algo de totalmente

novo, diferente, mas que também não se localizam no tradicional marcado pelos

globalismos. Como lembra Hall (2003), essas estratégias "constituem sítios potenciais de

resistência, intervenção e tradução (...) [que] surgem de dentro do global sem ser

simplesmente um simulacro deste" (p.61). É importante ressaltar que não se trata de um

conjunto de estratégias que pode ser pensado tendo em vista uma perspectiva trans-histórica

ou estável. Ao contrário, elas habitam a conjuntura e possuem temporalidades distintas.

É, pois, na perspectiva de que, para além dos discursos homogeneizantes— do

iluminismo, do mercado, da nação— o currículo escolar é habitado por uma diferença que

não se define como a oposição ao homogêneo que penso ser possível tratá-lo como uma

espécie de espaço-tempo cultural liminar. Um espaço-tempo em que as culturas presentes

negociam com "a diferença do outro", que explicita a insuficiência de todo e qualquer

sistema de significação. Tomando por empréstimo de Bhabha (1998), suas considerações

sobre o processo de colonização cultural e político por que passou a Índia, tento perceber o

ato pedagógico na perspectiva de uma colonização dos saberes locais pelos sistemas globais

hegemônicos no currículo. Essa tarefa pode parecer, a primeira vista, um tanto quanto fora

de propósito, mas, como Ladwig (2003), acredito que "a descrição eloqüente e elaborada de

Bhabha relativa ao hibridismo cultural diz-nos tanto sobre a colonização de nossos filhos

quanto sobre a maldade cometida, tempos atrás, em terras bem distantes dos centros

imperiais" (p.277).

Assim, proponho que vejamos o currículo como um espaço-tempo de colonização,

em que convivem as culturas locais dos variados pertencimentos de alunos e professores

com as culturas globais, majoritárias tanto nos currículos escritos quanto, possivelmente,

nos vividos nas salas de aula. Nego, como querem algumas teorizações no campo do

currículo, que os currículos oficiais sejam a expressão das culturas globais, enquanto os

currículos em ação guardem distância segura em relação a essas culturas. Proponho que

ambos sejam tratados como espaços-tempo de colonização. Uma colonização que não é

operada pelo professor sobre o aluno, como parece propor Ladwig (2003), mas por um

híbrido iluminismo/mercado sobre outros sistemas culturais. Defendo que tanto professor

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como aluno convivem com a proposta colonial de substituição de saberes menos

organizados (ou sincréticos11) por outros com nível maior de organização (ou sintéticos).

Falo, portanto, de um colonialismo de que somos todos agentes em maior ou menor grau

em momentos diversos.

A perspectiva de que o ato pedagógico e o currículo escolar seja um espaço-tempo

de colonização recoloca, em novos moldes, preocupações expressas pelas teorias da

reprodução, que denunciavam o quanto a escola e o currículo estavam a mercê dos

imperativos dos saberes dos grupos tanto cultural quanto economicamente hegemônicos.

Muda a forma de enxergar a relação entre o hegemônico e o subalterno, o que permite que

seja pensada a diferença nos currículos. A lição que Bhabha (1998) tira do colonialismo e

que pode nos ser útil é que nenhuma dominação cultural é tão poderosa a ponto de minar os

sistemas culturais locais. No entanto, é também verdade que nenhum sistema local fica

imune ao colonialismo. Nenhuma diferença tem o poder de permanecer existindo a despeito

da dominação, como nenhuma dominação acaba com a diferença.

Para explicitar a dominação colonial, Bhabha (1998) lança mão da noção de

ambivalência, mostrando como o aparato discursivo colonial ao mesmo tempo em que

reconhece a diferença, a repudia, produzindo conhecimentos que são utilizados no exercício

da vigilância. O outro é construído pelo discurso colonial, com base em um discurso de

oposição que tem no estereótipo uma de suas principais estratégias, repetindo a exaustão o

já sabido. Assim, no espaço-tempo do currículo, tratado como espaço-tempo de hibridismo

cultural, os outros saberes do currículo serão sempre tomados como o negativo do

conhecimento acumulado. A insistência de diferentes discursos pedagógicos sobre a

necessidade de partir do conhecimento do aluno, dos saberes prévios, da realidade concreta

e tantos outros epítetos mostra o quanto é necessário nomear o outro. Ao repetir

exaustivamente essa nomeação, a cultura iluminista da escola expõe, no entanto, a

ambivalência que permeia seu desejo de dominação. A sua superioridade, que, se existe,

deveria ser facilmente aceita, precisa, na verdade, estar sempre sendo constantemente

salientada. Para isso, apóia-se numa fantasia de origem capaz de distingui-la das outras

culturas, também elas fixadas por meio de estratégias discursivas estereotipadas.

11

Uso aqui a terminologia tornada clássica por Saviani e pela pedagogia histórico-crítica, sem nenhuma

alusão exclusiva e este grupo como defensor de uma pedagogia colonial. Defendo que a tradição pedagógica tem como um de seus pilares o desejo iluminista do conhecimento, entendido como ciência e tecnologia.

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A fantasia colonial do currículo alicerça-se, portanto, em objetos impossíveis, ou

seja, numa pretensa diferenciação entre os saberes do iluminismo, da escola, e aqueles

trazidos por professores e alunos de sua vida cotidiana. Ocorre que essa distinção só é

tornada possível por meio de estratégias de fixação, cuja ambivalência nega a sua própria

possibilidade de existência. O discurso colonial, como nos lembra Bhabha (1998), apóia-se

no reconhecimento e no repúdio à diferença, vivendo, portanto, sempre no espaço liminar

em que é impossível a fixação de sentidos. O projeto iluminista, ao mesmo tempo em que

despreza os outros saberes, afastando-os como o lugar do erro, torna-os próximos ao buscar

colonizá-los. O desejo do colonizador em relação ao colonizado— aquele que tem algo de

que o colonizador não dispõe— torna a colonização total uma empreitada impossível.

A preocupação de Bhabha em, salientando as formas quase intransponíveis de ação

do colonialismo, tematizar a possibilidade de entendimento dos discursos transgressores me

parece uma ferramenta útil para pensar uma política da diferença no currículo. Permite-nos

perceber que as culturas presentes no espaço-tempo do currículo não podem ser fixadas,

ainda que os discursos do iluminismo— e aí encontram-se boa parte de nossas teorias

pedagógicas— busquem criar oposições e nos forçar a assumir uma posição de um ou de

outro lado. O que Bhabha nos possibilita compreender é que as alternativas precisam ser

construídas no entre-lugar entre esses supostos lados. No espaço-tempo liminar em que as

culturas convivem e negociam sua existência. Uma negociação em que "nos identificamos

com o outro exatamente no ponto em que ele é inimitável, no ponto em que se esquiva da

semelhança" (Zizek, in Bhabha, 1998, p.257).

MARCOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: O FAZER CURRICULAR COMO POLÍTICA

A discussão dos aspectos metodológicos envolvidos na pesquisa que se propõe a

entender como a diferença vem sendo vivida nos currículos de ciências do Colégio de

Aplicação desde os anos 1970 até este início do século XXI traz de volta algumas questões

teóricas que já foram abordadas em projeto anterior (Macedo, 2002) e que, portanto, serão

aqui apenas mencionadas. A primeira diz respeito à própria noção de disciplina escolar.

Nos limites da teorização pós-colonial, talvez não fizesse sentido tratar, numa perspectiva

histórica, as disciplinas escolares visto que os campos disciplinares são postos sob

suspeição. Imagino que esse seria o caso se as disciplinas escolares fossem tomadas apenas

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17

como campos epistemológicos, mas defendo que a análise torna-se relevante na medida em

que elas sejam entendidas como processos sociais direcionados por finalidades sócio-

educacionais específicas (Macedo e Lopes, 2002). Nesse sentido, as disciplinas

corporificam um discurso não apenas sobre o conhecimento/cultura válido, mas sobre os

seus ―outros‖, funcionando como um instrumento estratégico de dominação discursiva, que

cumpre ser estudado. A segunda refere-se à forma como a perspectiva histórica é encarada

por este projeto. Estarei trabalhando sem a pretensão de estar fazendo a história dos

historiadores12, mas com a convicção de que a perspectiva da história pode ajudar-me,

como estudiosa do campo do currículo, a perceber a dinâmica social que faz com que o

conhecimento escolar se configure, num determinado contexto, de uma dada forma entre

muitas possíveis. Pretendo, portanto, entender como as tradições, os costumes, as normas,

as distribuições de poder, aceitas e transgredidas, contribuíram para que a diferença fosse

vivida nos currículos de ciências.

A essas duas preocupações já desenvolvidas em projeto anterior (Macedo, 2002),

soma-se a necessidade de precisar a dinâmica do fazer curricular que buscarei reconstruir.

Por defender que o fazer curricular é um processo político, por excelência, apóio-me nos

estudos de Ball (& Bowe, 1992; 1994, 1998 e 2001) para entender essa dinâmica e a partir

dela construir os caminhos metodológicos da pesquisa. Para o autor, em co-autoria com

Bowe (1992), a dinâmica curricular envolve três contextos primários, públicos e privados,

que constituem um ciclo político contínuo. Num nível mais amplo, o autor destaca o

contexto de influência, no qual são estabelecidos os princípios básicos que orientam as

políticas em meio a lutas de poder nas quais os atores são desde partidos políticos e esferas

de governo a agentes internacionais. Em associação com esse contexto, Ball e Bowe (1992)

apresentam o contexto de produção dos textos políticos, em que, em nível geralmente

central, são escritos os documentos curriculares. Por fim, os autores destacam um terceiro

contexto, denominado da prática, onde os princípios mais gerais e os textos escritos são

recriados no cotidiano. A articulação entre esses contextos é um processo contínuo que

envolve deslizamentos interpretativos e contestações.

12

Refiro-me aqui a observação de Maria do Carmo Martins (2003) de que os autores do campo do currículo

utilizam-se da história com a finalidade de conferir identidade ao campo, diferentemente da perspectiva de historiadores que não vêem a história apenas como forma de ajudar a entender outros objetos.

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O modelo de análise proposto por Ball e Bowe (1992) sugere que há um

movimento no sentido do contexto de influência para os de produção do texto e da prática

que leva a certas homogeneidades no fazer curricular. São agentes desse movimento tanto

os organismos nacionais e internacionais de financiamento, que atuam de forma direta,

quanto comunidades disciplinares e institucionais e sujeitos envolvidos na propagação de

idéias oriundas de intercâmbios diversos. Em texto oriundo de pesquisa anterior, em co-

autoria com Moreira (Moreira e Macedo, 1999), discuti como, no contexto de influência e

mesmo no de produção do texto, a transferência educacional tem viabilizado certa

semelhança entre as políticas curriculares no Brasil e em outros países do mundo. Na

ocasião, lembrávamos, no entanto, que essas políticas sofriam re-interpretações, sendo

reinscritas nos contextos nacionais e locais13. Essas re-inscrições mostram que as políticas

curriculares estão para sempre sujeitas a leituras várias e, paradoxalmente com seu desejo

de definir como as instituições escolares devem funcionar, viabilizam infinitas re-

interpretações que ocorrem nos três contextos descritos pelo autor. Na prática, os textos são

reinscritos no vivido e na própria produção do texto curricular os discursos de influência—

dos governos, legislativos, das agências, pedagógicos— assumem novos e diferentes

significados. Dessa forma, os currículos em suas dimensões formais e práticas podem ser

vistos como híbridos de discursos que negociam, na contingência, seus sentidos.

Quando falo em negociar sentidos na prática quero deixar claro que nem toda

interpretação é possível e que há redes de poder oblíquas que tornam certos sentidos

possíveis ao mesmo tempo em que dificultam outros. As possibilidades de releitura de que

fala Ball (1994) dependem de condições históricas dos contextos nos quais as leituras vão

se fazer, sendo tais leituras mais ou menos autônomas dos poderes centrais ou dos

contextos de influência.

Na pesquisa em fase de conclusão aproximei-me da dinâmica do fazer curricular

de ciências desde 1971 pela via do contexto de produção dos textos. No entanto, ao tratar

de forma privilegiada esse contexto, procurei manter a dinâmica proposta por Ball (1994).

Entendo que parti desse contexto apenas como via de entrada para a compreensão de todo o

13

Sobre as releituras do contexto de influência no contexto de produção dos textos, há trabalhos de Dússel, Tiramonti e Birgin, 1998; Terigi, 1997; e Barreto, 1998. Quanto à re-inscrição dos textos no contexto da

prática, alguns trabalhos sobre produção cotidiana de alternativas curriculares, de autoria de Nilda Alves, Regina Leite Garcia e Inês Barbosa de Oliveira, são exemplos importantes.

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processo, posto que o estudo do contexto de produção do texto envolveu compreender tanto

as influências em meio as quais os textos foram escritos quanto os espaços que se abriam e

se abrem para suas re-inscrições práticas. Essa opção me permitiu entender a dinâmica do

fazer curricular nas ciências, mas ainda parece insuficiente. Por isso, estou propondo agora

penetrar nesse universo por uma outra via, a das práticas curriculares, buscando entender

como o campo da ciência e o cotidiano de uma instituição permitiram que os textos

curriculares fossem re-inscritos.

Mantenho, no entanto, a mesma preocupação em tentar captar a dinâmica do fazer

curricular como um ciclo que envolve os contextos de influência, de produção do texto e da

prática. Proponho que o cotidiano da escola estudada, em sua confluência com um campo

disciplinar específico, re-inscreve a história dos contextos de influência e de produção do

texto numa contingência específica e pode permitir, mais facilmente, visualizar resistências

e transgressões. Não advogo que tal facilidade se deva ao fato de que as resistências e

transgressões tenham no espaço da prática um lócus privilegiado de existência, mas apenas

que nesse contexto as informações sobre elas estão mais accessíveis à pesquisa14.

A opção por penetrar no fazer curricular pelo contexto da prática me impulsiona

também a considerar que a dinâmica desse contexto, além das interfaces que mantém com

os contextos de influência e de produção do texto, articula níveis diferenciados. Por um

lado, os estudos das instituições escolares (Nóvoa, 1995) vêm mostrando que há

especificidades desse espaço, um espaço entre o macro-sistema e o micro-sistema da sala

de aula onde se questões educativas relevantes são decididas. Por outro, convivem na

escola sujeitos individuais que, com suas biografias, atuam na re-leitura dos currículos

praticados numa instituição. Defendo, portanto, que há, no contexto da prática, uma

dimensão meso da escola, com sua dinâmica própria, e outra micro, constituída pela

experiência vivida por cada um dos atores curriculares. Também aqui hibridizam-se e

negociam-se posições.

14

Um dos aspectos que chama a atenção na pesquisa atualmente em conclusão diz respeito à dificuldade de acesso ao processo cotidiano de produção dos textos curriculares. Os registros sobre esse processo são escassos nas Secretarias de Educação e a participação dos profissionais na elaboração dos materiais tem parecido, por dados das entrevistas, ter-se dado de forma muito fragmentada. Na medida em que os elaboradores desses documentos nas Secretarias foram, em sua maioria, externos à própria Secretaria—

atuando apenas como prestadores de serviços e/ou consultores—, tornou-se difícil compreender as negociações que se efetivaram na produção dos textos curriculares em análise.

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20

Dar conta da dinâmica curricular como híbrido negociado de todas essas múltiplas

possibilidade exige opções metodológicas. Sem ingenuidade, é preciso que tenhamos

clareza de que essas opções inscrevem limites dos discursos possíveis sobre o

conhecimento, definindo aquilo que pode e deve ser estudado do ―outro‖ que precisa

permanecer obscuro. Um poder e dever que traz sempre a marca o obscuro, que se insinua

diariamente (Bhabha, 2003). Com todos os riscos, é preciso optar.

A opção pela instituição escolar na qual o estudo será realizado poderia, sem

prejuízo daquilo que se tem por objetivo, ter sido fortuita. Trata-se de perceber a dinâmica

de hibridismo de textos curriculares, de tradições e de crenças sobre a ciência que ocorre no

cotidiano da escola. É certo que há elementos comuns nas re-inscrições que as escolas

operam, mas é também claro que cada instituição, em cada momento, re-interpretará de

forma diferente a plêiade de discursos com a qual convive. No entanto, os fortuitos

precisam ser lidos como opções que, por vezes, escondem sob a tradição ou sob a rubrica

do acaso, apagamentos. Ao optar pelo CAp/UFRJ tenho clareza de que se trata de uma

escola de classe média, localizada na zona sul do Rio de Janeiro, e que atua na formação de

professores de elite que estudam numa das mais conceituadas Universidades do país. Esse

perfil, no entanto, não é homogêneo e pode ser produtivo, por sua aproximação com os

padrões dominantes, para a análise de como a diferença se constitui no currículo de

ciências.

Em relação à periodização, procurei seguir aproximadamente a mesma

delimitação que havia realizado na pesquisa atualmente em fase de conclusão para que as

análises empreendidas a partir do contexto da prática possam ser associadas àquelas que

venho realizando tendo como foco o contexto de produção do texto. Na época, a

delimitação inicial do período em 1971 teve por marco a reforma de ensino do período

militar, fortemente influenciada por diretrizes americanas, ocorrida num momento em que,

em nível internacional, as teorias críticas de currículo estavam iniciando questionamentos

sobre questões de raça e gênero, no esteio do incremento dos movimentos organizados da

sociedade civil. Embora esses questionamentos somente chegassem ao Brasil cerca de 10

anos mais tarde, optou-se por iniciar a periodização em 1971 em virtude das profundas

modificações que a Lei 5692/71 trouxe para a organização curricular brasileira,

modificações que, com poucas alterações, permaneceram válidas até a promulgação da

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LDB 9394/96. O marco final será ampliado para 2003 de modo que os efeitos dos

documentos curriculares do Governo Fernando Henrique Cardoso possam ser mais

perceptíveis.

O cotidiano da escola, especialmente do currículo de ciências, será estudado por

meio de análise documental e de entrevistas. A análise documental privilegiará o contexto

da prática, mas também considerará os documentos de outros contextos 15. Os documentos

privilegiados serão aqueles produzidos pelos atores curriculares no âmbito da escola e do

ensino de ciências, tais como planos de aula, cadernos escolares, livros de exercícios,

provas, guias para orientação de estagiários, apostilas. Igualmente, serão analisados

documentos esparsos relacionados ao currículo de ciências, tais como vídeos, fotografias,

material concreto que tragam informações de atividades extra-sala de aula envolvendo as

ciências, tais como feira de ciências e oficinas.

As entrevistas terão por objetivo buscar re-construir a complexidade dos jogos

ideológicos que se estabeleceram no dia-a-dia curricular a partir de uma versão, também

ideologizada, das representações dos entrevistados. Trata-se de um instrumento que permite

a ampliação do entendimento do fazer curricular pelas percepções particulares dos atores

culturais que o produziram. As entrevistas serão realizadas com professores, coordenadores

da disciplina ciências e alunos que construíram o currículo durante os anos em foco. Será

organizada como um misto de história de vida16 e entrevista focada no fazer curricular de

ciências. No caso dos docentes e coordenadores, será produzido um roteiro para cada

entrevistado, procurando enfatizar sua participação no fazer curricular, tendo em vista a

análise dos documentos. Em relação aos discentes, os roteiros semi-estruturados serão

únicos. Em ambos os casos, será solicitado dos entrevistados que revivam experiências

curriculares envolvendo questões relacionadas à diferença, seja pela lembrança de

estereótipos construídos pelo currículo seja pela memória de transgressões.

Esse conjunto de documentos e entrevistas será lido a partir das preocupações

expressas por Le Goff (1993) como "parcialmente determinados por sua época e seu meio"

15

Nesse sentido, o trabalho contará, ainda, com as análises já realizadas na pesquisa atualmente em fase de conclusão e com aquelas constantes do relatório do estudo intitulado ―Currículo de Ciências: um estudo sócio-histórico‖, realizado por Moreira, Lopes e Macedo (2000). 16 Tomo a expressão ―história de vida‖ em um sentido restrito, no qual a biografia do entrevistado funciona

como um norteador não apenas da entrevista, mas também da sua interpretação.

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(p. 54). Essas preocupações nos obrigam a desconstruir a idéia de documento como a

expressão da verdade, impelindo-nos a buscar compreender as suas condições de produção,

com seus inúmeros apagamentos. Aceito, portanto, como Le Goff (1993), que "o

documento é produzido consciente ou inconscientemente pelas sociedades do passado,

tanto para impor uma imagem do passado, quanto para dizer ‗a verdade‘" (p. 54). Assim,

procurarei construir uma teia de representações em que os sentidos postos pelos

documentos sejam sempre lidos numa perspectiva relacional que saliente os possíveis

apagamentos.

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EQUIPE E PLANO DE ATIVIDADES

As atividades de pesquisa serão realizadas de março de 2005 a fevereiro de 2008 ,

sendo a equipe formada pela coordenadora da pesquisa, por bolsistas de Iniciação científica

e por mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ.

Coordenadora Elizabeth Fernandes de Macedo

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ATIVIDADES

Composição da equipe de trabalho

Coordenação das reuniões da equipe

Coordenação da análise bibliográfica

Coordenação das atividades dos membros da equipe

Supervisão do trabalho de bolsistas de IC e dos pós-graduandos

Coordenação das atividades de campo

Coordenação do levantamento dos documentos a serem analisados

Coordenação do preparo e da realização das entrevistas

Contatos com sujeitos a serem entrevistados

Coordenação da análise dos dados

Coordenação da elaboração do relatório

Bolsistas IC SOLICITAÇÃO CNPQ- 2 BOLSISTAS

SOLICITAÇÃO PIBIC/UERJ- 2 BOLSISTAS

Atividades

Participação nas reuniões da equipe

Participação na leitura e na análise da bibliografia

Elaboração de resumos referentes à bibliografia analisada

Participação na seleção e na análise dos documentos

Participação no preparo e na realização de entrevistas

Transcrição de entrevistas

Participação na análise dos dados obtidos e na elaboração do

relatório

Participação na elaboração da home-page para divulgação de resultados da pesquisa

Mestrandos e

Doutorandos

ALUNOS REGULARES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

EDUCAÇÃO DA UERJ

ATIVIDADES

Participação nas reuniões da equipe

Participação na leitura e na análise da bibliografia

Elaboração de resumos referentes à bibliografia analisada

Participação na seleção e na análise dos documentos

Participação no preparo e na realização de entrevistas

Participação na análise dos dados obtidos e na elaboração do relatório

Participação na elaboração da home-page para divulgação de

resultados da pesquisa

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CRONOGRAMA

Ano Mês ATIVIDADES

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

03

04

05

06

2005 07

08

09

10

11

12

01

02

03

04

05

2006 06

07

08

09

10

11

12

01

02

03

04

05

2007 06

07

08

09

10

11

12

2008 01

02

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Atividades

1. Estudo da bibliografia

2. Contato com a escola e com o PROEDES

3. Análise de documentos do contexto de influência

4. Análise documental no PROEDES

5. Análise documental na escola

6. Seleção e contato com os professores e coordenadores a serem entrevistados

7. Preparo das entrevistas com professores e coordenadores

8. Realização das entrevistas com professores e coordenadores

9. Transcrição e análise preliminar das entrevistas de professores e coordenadores

10. Seleção e contato com os alunos a serem entrevistados

11. Preparo das entrevistas com alunos

12. Realização das entrevistas com alunos

13. Transcrição e análise preliminar das entrevistas com alunos

14. Análise final integrada dos documentos

15. Elaboração de banco de dados com resultados

16. Elaboração do relatório final

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