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PROMESSAS E MILAGRES NAS DEVOÇÕES POPULARES: A Dança de São Gonçalo em Campo Maior-PI

Márcio Douglas de Carvalho e Silva1

RESUMO

O presente artigo tem como foco de análise a devoção popular a São Gonçalo na zona rural do município Campo Maior-PI. Trata-se de santo de origem portuguesa que, desde o período colonial, ganhou muitos fiéis e, graças aos pagadores de promessas que atribuem ao santo diversos milagres, tem sua prática de devoção viva até a atualidade, manifestada em um rito festivo que apresenta características comuns da cultura popular. A pesquisa buscou analisar os aspectos característicos do ritual de agradecimento ao santo com sua dança e cantigas que envolvem o sagrado e o profano. Para chegarmos a este enfoque, além de embasamentos bibliográficos, a pesquisa etnográfica foi fundamental para alcançarmos nossas conclusões.

Palavras-Chave: Dança de São Gonçalo, Cultura Popular, Ritual.

AbStRACt

This article is focuses on the popular devotion of São Gonçalo in the rural municipality of Campo Maior-PI. He is a Portuguese born saint, who, since colonial times, has won many faithful. Many people credit him with providing miracles, he finds lively devotion in the present time, manifested in a festive rite of popular culture. The research sought to analyze the features of the ritual, with their dance and songs involving sacred and the profane. To get to this approach, as well as bibliographic emplacements ethnographic research, were essential to reach our conclusions.

Keywords: Dance São Goncalo, Popular Culture, Ritual.

1 Graduado em História pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI. Faz curso de Especialização em História e Cultura Afro-bra-sileira e Africana (UESPI). Professor efetivo da rede Estadual de Ensino do Piauí. E-mail: [email protected].

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INtRODUÇÃO

É possível encontrar, em um país multicultural como o Brasil, conjunções diversas de representações que atravessam os vários aspectos do comportamento humano. No âmbito religioso, com facilidade é possível perceber as várias demandas de expressões religiosas que, mesmo sendo representações de fé, acabam se distinguindo de acordo com o modo como essa fé é encarada, o que reflete profundamente na maneira como ela se torna explícita.

Desde os primórdios da colonização portuguesa, o Brasil já nascia portando uma demanda muito grande de representações de fé; a adição constante de práticas religiosas vindas de outros continentes, mesmo com a prevalência oficial da religião católica, somadas às dos nativos, formaram no “paraíso terrestre” um verdadeiro paraíso no que diz respeito à maneira como o homem busca entrar em contato com os seres que julga serem superiores a ele mesmo e que, por isso. é portador de um poder que pode modificar o seu curso natural de acontecimentos mediante a fé em quem ele crê.

O cristianismo, presente no Brasil desde a introdução portuguesa, sempre se manteve firme na sua doutrina, porém, isso não foi suficiente para conter as demandas assimilativas que a religião foi incorporando de outras crenças.

As manifestações envolvendo a devoção a santos apresentam-se na religião católica desde muito cedo e até a atualidade sempre se preserva o culto a mártires cristãos. A contabilidade dos eleitos pelo povo e dos atestados pela igreja oficial não é confluente, pois, muitas vezes, benfeitores acabam caindo na veneração popular sem ter o aval institucional religioso, o que não implica dizer que perdem a sua notoriedade diante dos fiéis.

A hagiografia regular e a popular são díspares. Santos podem ser santos para o povo, mas não santos para a igreja. O ideal de santidade nesse caso depende muito do julgamento do crente. É o que acontece nas representações religiosas populares.

O ponto de que parte esse trabalho baseia-se nesse tipo de devoção – a não oficial – a um determinado beato português que nas graças do povo torna-se santo e milagroso. Famoso por operar milagres e de ser festeiro, nosso santo vem de longe.

São Gonçalo de Amarante é português, mas já é velho conhecido dos brasileiros. É comum encontrar em quase todo o Brasil práticas religiosas que memorizam a sua existência e atuação na cura de males que assolam a vida dos seus fiéis.

Tendo seu primeiro registro feito pelo viajante francês Gentil de La Barbinais, na Bahia, em 1718, São Gonçalo faz-se presente no contexto religioso do brasileiro em várias regiões do Brasil até a atualidade. Institucionalizado ou não, ganhou respaldo e atualmente está presente no cotidiano religioso do nordestino ao paulista, apresentando uma demanda ampla de

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manifestações no ato do seu culto através das promessas.

Encarado por muitos como manifestação cultural, para seus praticantes essa é uma “maneira a mais” de buscar contato com as divindades, o que não implica a participação desses fiéis nos cultos oficiais da igreja católica.

Para entender como se constitui essa devoção a São Gonçalo, foi importante considerar que a tradição religiosa popular é, na maioria das vezes, estendida adiante através da oralidade. É desse ponto que parte a nossa principal fonte de informações sobre São Gonçalo, assim como o uso iconografias e entrevistas com os promesseiros e participantes ativos das danças. O contato com as festas de louvor a São Gonçalo tornou-se um elemento básico. A observação das cantigas, a melodia saída da sanfona, a batida do zabumba, o tocado do triângulo, as vozes das cantadeiras, o bater de pé no chão, assim como todo o gingado que envolve a festa ao santo português foram analisados.

CULtURA POPULAR E DEVOÇÃO

Os aspectos pertinentes ao catolicismo popular no Brasil são oriundos ainda da época colonial; segundo Laura de Melo e Sousa (2009), o catolicismo romano “a se mesclar com elementos estranhos a ele, multifacetados (...), como a própria religião africana transmigrada (...) a colônia viria proliferarem em seu solo as santidades sincréticas (...) fazendo com que “traços católicos, indígenas e judaicos, misturaram-se (...) na colônia” (SOUZA 2009, p. 130-134), nos revelando uma crença formada por um conjunto de concepções religiosas díspares.

As relações de devoção e “favores” que se estabeleciam entre santos e os fiéis eram possuidores de um grau muito forte de intimidade. Mott (1998) em um artigo no primeiro volume da coleção História da Vida Privada no Brasil deixa bem claro como se davam essas relações. Esse contato mais pessoal com a divindade dispensava o intermédio de um sacerdote e facilitaria o contato e o pedido ao santo.

Nessa abordagem da cultura popular no que tange ao aspecto religioso, podemos perceber que, para Marilena Chauí (2007), a religião popular pode ser vista como uma prática comumente aceita no meio social dos mais desfavorecidos economicamente, havendo uma contraposição à religião do templo religioso oficial; a religiosidade popular, mais praticada no âmbito rural por pessoas simples, acaba por se objetar ao catolicismo oficial na sua forma de manifestação e com a “oposição entre leigos e clero, e entre festividades e sacramentos, isto é, entre uma religiosidade espontânea e uma religião vertical imposta autoritariamente” (CHAUÍ, 2007, p. 82).

Essa espontaneidade avistada por Chauí (2007) caracteriza esse aspecto do comportamento humano como algo que muitas vezes nos revela ser motivada pela necessidade de alimentação

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de suas esperanças, uma solução para suas aflições, faz com que o homem recorra diretamente à divindade sem fazer uso do intermédio do clero.

As designações de cultura popular e erudita são rebatidas por Arantes (2006), quando afirma que ambas são concepções que não se sustentam como objetivas, pois, segundo o autor, no seu contexto mais abrangente, a cultura deve ser vista em suas diferentes formas de manifestação “como partes inter-relacionadas” (ARANTES, 2006, p. 39); mesmo que se apresente de diferentes formas, quando representada no grupo, ela possui sempre uma relação de aproximação e troca com outros modos de manifestações culturais.

Essa análise da cultura popular das classes que estão à margem e da chamada cultura letrada é bem exposta na obra de Carlo Ginzburg (2006) intitulada O queijo e os Vermes, podendo ser percebida certa relação de influências que uma acaba provocando sobre a outra. Na análise da obra, é possível perceber, a partir do intercurso de relações das classes dominantes com as subalternas, o que o autor defende como “circularidade”, ou seja, “um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo [...]” (GINZBURG 2006, p. 10).

Essas “versões” culturais prestadas ao longo do tempo pelos grupos sociais são, também no aspecto religioso, apresentadas em formas de símbolos que são como um “código” que tentam formar maneiras de se estabelecer as relações sociais e representar as suas práticas religiosas. Analisando nesse viés, podemos ver essas práticas como próprias da cultura popular “adotadas na vida em sociedade e relacionadas com o folclore e a tradição. (...) Muitas vezes, a cultura popular vem de ágrafos, entretanto eles assimilam sabedoria pela oralidade, signos e vivência”. (SOUZA, et al, 2006, p. 06).

Na religiosidade popular, a maneira como é constituída a promessa pode se caracterizar como “um pacto que obriga os dois lados a alguma ação positiva no sentido de resolver o problema apresentado” (DaMATTA, 1986, p. 75). Para alcançar o que desejam – essa salvação/cura imediata, os fiéis encontraram uma forma de fazer por onde merecer o milagre: a promessa. Esta é feita como uma forma de “pressionar” o santo ou mesmo acreditar que com uma promessa determinada a um santo, certamente será atendido. O modo como a promessa é vista pelos praticantes torna-se um dos grandes trunfos da religiosidade popular, essa relação de troca, o chamado “toma-lá-dá-cá”, “a economia das trocas entre homens e deuses é regida, desde sempre pela fórmula latina do ut dês, “eu dou para que dês” (MATA, 2010, p. 130).

São várias as formas de pagamento, dependendo do “tamanho” do milagre que é pedido, essa curiosa troca de favores entre uma pessoa e uma divindade é muito comum na cultura popular. A crença é o que vale, o significado exercido pela fé é o que move as pessoas a fazerem promessas com a certeza de que alcançarão a graça desejada. O milagre é o produto final desse contrato; após o recebimento do milagre, chega a vez do receptor agradecer o

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bem recebido: o votos antes feitos agora tornam-se ex-votos que, geralmente, são conhecidos como representações tangíveis.

Essas relações de trocas voto/ex-voto, milagre/ritual são bem definidas por Marcel Mauss (1974) no livro Sociologia e Antropologia, em que o autor faz um ensaio sobre a Dádiva, estabelecendo uma analogia entre as relações de trocas de dádivas e a obrigação de dar e receber. Nesse sistema, Mauss define essas relações de trocas como “sistemas de prestações totais”, definindo ainda que “o mais importante, entre esses mecanismos espirituais, é evidente o que se obriga a retribuir o presente recebido” (MAUSS, 1974, p. 48).

Na retribuição, ou pagamento da graça recebida, o fiel geralmente realiza um ritual religioso. O rito a São Gonçalo é possuidor de vários símbolos que são transmitidos às gerações seguintes por meio da cultura popular, sendo que “as forças morais que os símbolos religiosos exprimem são forças reais, com as quais devemos contar (...) elas são tão necessárias ao bom funcionamento da nossa vida moral quanto os alimentos para o sustento da vida física” (DURKHEIM, 1996, p. 416-417). Os milagres atribuídos a São Gonçalo fazem com que o mesmo seja digno de crédito e de depósito de esperanças; sobre esses ritos praticados em forma de pagamento da promessa podemos perceber que

Os ritos só podem ser definidos e distinguidos das outras práticas humanas, notadamente das práticas morais, pela natureza especial do seu objeto. Com efeito, uma regra moral, assim como um rito, nos prescreve maneiras de agir, mas que se distinguem a objetos de um gênero diferente. Portanto, é o objeto do rito que precisamos caracterizar para podermos caracterizar o próprio rito. (DURKHEIM, 1996, p. 19).

O contexto/motivo estabelecido para a realização do rito é a promessa que se dirige ao santo, tendo ele uma função básica de “manter a vitalidade dessas crenças, para impedir que elas se apaguem da memória” (DURKHEIM, 1996, p. 409). Quanto ao modo que o rito é apresentado na Dança de São Gonçalo podem ser percebidas algumas modificações na intenção inicial da promessa. Um sentido dúbio na prática religiosa vem apresentando aspectos profanos juntamente com o ritual sagrado.

Para Durkheim (1996) esse caráter dúbio está presente em todas as religiões. Nessa abrangência, percebe-se que o sagrado e o profano se estabelecem como maneiras do ser humano posicionar-se diante da sua existência. Em linhas gerais, o autor afirma que o sagrado produz uma ligação entre o transcendente e o material, sendo que, ao sacralizar determinado objeto, lugar ou pessoa, está distinguindo-os dos demais.

Essa nova modalidade de relação com o sobrenatural, mesclando elementos profanos juntamente com os sagrados são bem característicos da devoção a São Gonçalo até a atualidade, no decorrer da efetivação do ritual de agradecimento, onde essas duas modalidades de transcendência se conjuntam na realização da festa religiosa, levando a crer que essa

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mesclagem de traços profanos no ritual sagrado seja, talvez, dada de forma não proposital, uma vez que o ser humano sempre está buscando o sagrado, que é como uma “necessidade indestrutível” do homem.

SÃO GONÇALO E A PROPAGAÇÃO DO CULtO NO bRASIL

As principais informações sobre a vida de São Gonçalo, contidas em um verbete do Dicionário do folclore brasileiro de Câmara Cascudo (1954), mostram uma história de vida dedicada ao trabalho paroquial e a peregrinações eremíticas. Vários são os adjetivos atribuídos ao beato português, cabe aqui destacar o seu legado nas tradições populares, a imensa alegria a ele é atribuída e a habilidade de tocar viola, esta que o mesmo utilizava para animar as noites, quando também dançava com as prostitutas no intuito de tentar convertê-las a não cair em tentação. Para punir-se por essa atitude, nas suas danças usava pregos nos sapatos que feriam os seus pés.

Considerado milagreiro, São Gonçalo começou a operar milagres que puderam ser conhecidos quando o mesmo ainda era vivo. Santo muito venerado no Brasil, além da sua fama de ser casamenteiro, possui muitas “especialidades”, sendo procurado pelos devotos para os mais variados pedidos que vão desde a cura de doenças a problemas financeiros.

O culto a São Gonçalo chegou ao Brasil por meio de devotos vindos de terras lusitanas e espalhou-se pelas terras do além-mar. As indicações da existência do seu culto na Bahia no século XXIII estão presentes na 15ª carta do viajante francês La Barbinais que atesta a presença do culto a São Gonçalo na capela do Rio Vermelho, na Freguesia de Nossa senhora da Vitória, proximidades de Salvador em 1718.

De acordo com Cascudo (1954, p. 43), a “festa veio para o Brasil com os fiéis do santo de Amarante” e deixou marcas na tradição de muitas regiões do Brasil.

As descrições do viajante francês Gentil La Barbinais nos dão uma ideia de como eram executadas as festas de louvor a São Gonçalo e a importância que devotar o santo português tinha na sociedade brasileira. As descrições de Barbinais, além de destacar a presença de diferentes grupos sociais na devoção ao santo, dão a entender que o culto era povoado pela bagunça, pela algazarra, mesclando traços profanos na festa sagrada.

Atualmente, é possível encontrar a Dança de São Gonçalo em praticamente todas as regiões do Brasil. No Norte, Sudeste e principalmente Nordeste, onde o sertanejo, incansável de recorrer a seres que considera superiores, deposita sua confiança em São Gonçalo para resolver os problemas que o aflige.

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O CULtO POPULAR A SÃO GONÇALO: CARACtERÍStICAS

A movimentação dos preparativos para a realização de um ritual de agradecimento a São Gonçalo começa por volta de meio-dia. Além de organizar todos os detalhes como arrumar puxadores2 da dança, cantadeiras, tocadores e os demais preparativos, também há a preocupação de preparar as joias para serem leiloadas depois do ritual (como assados, bolos e doces).

O altar é preparado no terreiro da casa do promesseiro, geralmente em frente à porta da casa. É feito no chão com cipós posicionados em forma de arco e depois coberto por lençóis e enfeitado com duas canas-de-açúcar que, fincadas no chão, cruzam-se em frente ao altar do santo. Dentro do arco é colocado algum objeto que de suporte para colocar a imagem do santo, sendo completado quase sempre com duas velas e, em alguns casos, algumas flores, muito raro se ver uma decoração mais enfeitada com flores, por se tratar de um santo do sexo masculino.

Algo que destacamos na imagem de São Gonçalo, é que a mesma está sempre amarrada com muitas fitas de várias cores, em algumas imagens dificultando até a visualização do corpo do santo. Segundo informações colhidas dos devotos, essas fitas são amarradas à imagem de acordo com os milagres que o santo vai fazendo, quanto mais fitas, mais ele é milagroso. Podemos perceber alguns desses aspectos nas figuras 01 e 02.

Fig. 01. Altar de São Gonçalo Fonte: Arquivo pessoal do autor

2 São geralmente homens que ficam a frente das fileiras de dançadores conduzindo a dança.

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Fig. 02. Imagem de São Gonçalo Fonte: Arquivo pessoal do autor

Além das características pertinentes ao altar de São Gonçalo já descritas acima e presentes na figura 01, damos atenção agora às joias que se encontram penduradas na frente do arco. Essas joias não fazem parte das outras demais preparadas para o leilão, são as joias que são conhecidas como “as do arco de São Gonçalo”, que também são leiloadas dando início ao leilão das demais, porém, as mesmas têm conotação especial. Na maioria das vezes, são penduradas no altar bananas, laranjas, bolos de goma, pudim, manga, uva, maçã, entre outras coisas. As joias do arco são um caso à parte, pois, geralmente, são leiloadas por um preço muito acima do seu valor real, caso fossem compradas no comércio convencional, e quem as arremata geralmente ganha notoriedade, pois todo mundo quer saber quem arrematou o arco de São Gonçalo, por ser um conjunto de joias aparentemente com pouco valor e que vale muito no leilão.

Atentando-nos para a figura 02, verificamos na imagem de São Gonçalo características pertinentes à representação do santo português no Brasil, como a viola. Os demais componentes da imagem não são perceptíveis na figura justamente porque a mesma está encoberta por fitas da cintura para baixo; o que nos resta concluir é que a imagem usada para os cultos no município de Campo Maior é a mesma que obedece ao padrão do restante do país: a de São Gonçalo camponês com calção, bota, chapéu na cabeça e capa azul além da viola na mão.

Após a preparação do altar, começam a chegar as pessoas que vão participar da dança, entre eles tocadores, puxadores, dançarinos/cantadores e as demais pessoas que vêm prestigiar o culto. Tendo seu início programado geralmente entre as oito e nove horas da noite, a dança

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de São Gonçalo começa com tiros de foguetes, que se tornam frequentes assim que tem início uma nova jornada3, que variam de acordo com a promessa, podendo ser de 08, 10, 12, e até 24 jornadas.

O ritual inicia-se quando se posicionam o sanfoneiro, zabumbeiro e um triângulo ao lado do altar do santo. Em seguida, formam-se duas fileiras de dançadores em frente ao altar, compostas por quatro homens na frente (os puxadores - dois de cada lado) seguidos das cantadoras. Não há restrição do sexo, idade ou se precisa saber dançar São Gonçalo ou não para participar da fila, é só entrar e começar a dançar como os mais velhos fazem na frente. A única exigência é que se formem números iguais de participantes de cada lado, para combinar os pares nos momentos em que os participantes se cruzam nas filas.

Fig. 03. Fila para a dança de São Gonçalo Fig. 04. Finalização de uma jornada Fonte: Arquivo pessoal do autor Fonte: Arquivo pessoal do autor

Após formadas as filas, acompanhados ao som dos instrumentos musicais já citados acima, os puxadores dão início à dança de São Gonçalo, acompanhados pelos demais seguidores da dança, que é caracterizada pelo jogar de um corpo de um lado para o outro, em forma de zigue-zague, sempre pisando forte no chão. Os que sabem as cantigas do santo acompanham cantando. Ao longo desse processo, são comuns os gritos de “Viva São Gonçalo” e algazarras e gritos sem sentido com a dança. Observamos que os poucos que se envolvem na fila sabem cantar as cantigas, muitos entram pela folia e põem-se a sorrir e a conversar enquanto se dança em frente ao altar.

A figura 04 mostra o momento do término de uma jornada, quando dois participantes se ajoelham em frente ao altar e, enquanto isso, o som dos instrumentos diminui seu tom alegre e a sanfona, com um tom choroso acompanha a finalização da jornada. Na imagem, é possível ainda perceber no mesmo plano a presença de dois puxadores. Em seguida, todos se levantam,

3 É o período em que se realiza cada parte da dança com inicio e finalização ao pé do altar do santo, cada uma das fileiras tem direito a conclusão de cada jornada em frente a São Gonçalo e logo em seguida se inicia uma nova fase da dança.

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entram nas suas filas e recomeçam a dança com muita animação. Dependendo da promessa, em algumas jornadas, os promesseiros ficam de joelhos em frente ao altar com a imagem de São Gonçalo nas mãos, já outras vezes seguram a mesma sobre a cabeça.

Ao término do ritual, na maioria das vezes, os “mais velhos” que participam da roda reúnem-se em frente ao altar e rezam um terço. Logo em seguida, o sanfoneiro anima com a “Valsa de São Gonçalo”.

Fig. 05. Valsa de São Gonçalo Fonte: Arquivo pessoal do autor

Homens e mulheres juntam-se em frente ao altar para dançar a valsa, geralmente executada em um terreno de chão batido; sobe a poeira, o que não desanima os dançarinos, em um dos momentos mais animados do ritual. Em seguida são realizados os leilões.

O PROFANO NA DANÇA DE SÃO GONÇALO

Possuindo traços na sua execução que lembram características associadas a cultos pagãos, a dança de São Gonçalo, embora seja voltada para uma divindade cristã, mescla algumas características profanas. La Barbinais já as identificara em sua viagem ao Brasil no século XVIII, elementos que ele mesmo considerou de caráter dessa natureza.

Gilberto Freyre (2006) exemplifica bem as situações nas quais São Gonçalo era usufruto de ritos profanos, afirmando ser a prática do culto a São Gonçalo aquela possuidora de caráter

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mais sensual, envolvendo safadezas e porcarias. A fama de arrumador de casamento para as mais velhas faz com que essas práticas exóticas se espalhem e a intimidade com o santo aumente como exemplificado abaixo: “Casai-me, casai-me, São Gonçalinho, que hei de rezar-vos, amigo santinho” (FREYRE, 2006, p. 327).

Essa modalidade de relação com o sobrenatural, mesclando elementos profanos juntamente com os sagrados, bem característicos na devoção a São Gonçalo, está presente até a atualidade no decorrer da efetivação do ritual de agradecimento, onde essas duas modalidades de transcendência se conjuntam na realização da festa religiosa. O que leva a crer que essa mesclagem de traços profanos no ritual sagrado seja, talvez, dada de forma não proposital, uma vez que o ser humano sempre está buscando o sagrado que é como uma “necessidade indestrutível” do homem.

Durante as observações dos rituais ao santo em localidades do município de Campo Maior, verificamos vários tipos de comportamento - desde o preparo para a dança à sua concretização e após o seu término - que identificam características profanas, juntas ou presentes naquele ritual que, por si só, deveria ser sagrado.

Já sabemos que o ritual a São Gonçalo é animado, com danças, cantigas, foguetes, sanfoneiros, gritos, etc. Porém, além desses elementos que fazem parte da dança, verificamos que nos preparativos para a festa alguns dançadores se alcoolizavam e acabaram por realizar a dança completamente embriagados, fazendo com que o fiel ficasse mais animado e aumentasse a sua algazarra, enquanto dançava em frente ao altar de São Gonçalo. O uso de bebida alcoólica nos rituais de São Gonçalo já é rotineiro.

Na maioria dos casos, os dançantes fumam e bebem enquanto cultuam São Gonçalo, em uma de nossas observações foi possível verificar uma garrafa, já seca, de vinho junto ao altar do santo, como é possível observar pela figura 06. Além de uma garrafa de vinho tinto já totalmente consumida, também é possível perceber pela imagem que o altar de São Gonçalo é montado em cima de uma caixa seca de cerveja, o que significa que há bebida alcoólica a ser consumida, antes, durante e após o ritual.

Em outra ocasião, foi possível perceber que um dos dançarinos bebia ao mesmo tempo em que dançava em louvor a São Gonçalo; o mesmo guardava um copo com cachaça ao lado da imagem do santo e, ao fim de cada jornada, quando ele se posicionava de frente para o altar, tomava um gole.

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Fig. 06. Altar de São Gonçalo4 Fonte: Arquivo pessoal do autor

A fusão de vários elementos comportamentais, religiosos e profanos é o que mais acontece nessas danças de devoção. Não raro, sempre após a dança a São Gonçalo, são feitas festas com bandas de forró ou serestas, o que faz com que mais pessoas apareçam para apreciar o adjunto.

Geralmente, a Dança a São Gonçalo começa por volta das 8 horas da noite, como estratégia para terminar cedo para dar início à festa. Há uma associação da história de vida do santo com as festas após os rituais, como forma de justificar em parte a realização das mesmas e que, muitas vezes, as festas são promovidas aproveitando a ocasião da dança de São Gonçalo, como forma de angariar fundos para o organizador devoto do santo.

Em todo esse universo de promessa, fé e contrato com uma divindade, percebemos a existência de caracteres profanos ocasionados por várias causas. Desde a colônia, o culto a São Gonçalo já recebia denominações profanas, sendo trazido para atualidade com a fama de ser um santo bagunceiro e que gosta de folia. Em certo ponto percebemos que os devotos aproveitam-se dessa condição para justificar os exageros cometidos na Dança de São Gonçalo.

OS PRAtICANtES DA DANÇA DE SÃO GONÇALO

Mediante a apresentação das principais características do culto de devoção a São Gonçalo em Campo Maior-PI no que diz respeito a sua execução, cabe também destacarmos e analisarmos, de forma mais detalhada, quem são na verdade as pessoas que mantêm viva a devoção ao beato português.

4 As moedas e notas de dinheiro do lado da imagem de São Gonçalo são ofertas que os participantes colocam ao longo das jornadas, que ficam para o organizador da festa.

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Foi possível observar no decorrer da pesquisa que, desde a idealização até a execução da festa, há o envolvimento de muitos atores. Tudo parte da promessa: o promesseiro é o responsável principal - na maioria das vezes, após fazer um pedido ao santo, concebida a benção é hora de devolver a graça recebida, e o pagamento da promessa é feito a partir da execução do ritual de louvor. É esse pagador de promessa que fica responsável de agrupar todos os demais integrantes necessários para a realização da dança, que envolve a participação tanto de homens como de mulheres.

Um dos integrantes primordiais é o tocador, como já destacamos acima; o sanfoneiro é um dos mais importantes, pois anima e dá ritmo às cantigas que serão executadas ao longo do ritual por cantadores e cantadoras que, ao mesmo tempo em que dançam, cantam. Não há uma quantidade exata de participantes que devem cantar e dançar, mas é de extrema importância que existam pelo menos dois puxadores, um em cada fileira. Os puxadores são pessoas, homens ou mulheres que têm mais experiência na realização do ritual e servem como guias para conduzir os que seguem o mesmo formando as fileiras.

Além dessas pessoas que estão diretamente ligadas à execução do ritual em si, há a participação de muitas outras. Ao longo do dia inteiro, homens e mulheres trabalham na confecção do altar do santo que é exposto no terreiro da casa do promesseiro e serve como base para toda a execução do ritual, além das mulheres que são as principais responsáveis pela preparação das joias que serão leiloadas, fazendo-se importante também a participação do gritador do leilão.

Sabendo que a motivação principal para a efetivação da festa é o recebimento de uma graça, percebemos, ao longo da pesquisa, que essas pessoas estão enquadradas em uma faixa etária e uma classe social praticamente determinada. Pela observação feita, chegamos ao número médio etário de 58 anos. Podemos perceber, ainda, que tanto esses promesseiros como os demais integrantes são pertencentes a um mesmo nível social, geralmente agricultores e aposentados que não possuem uma renda mensal muito acentuada e nem são portadores de algum grau de instrução escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dança de São Gonçalo, além do caráter religioso-devocional, é possuidora de aspectos culturais extremamente associados a nossa pluralidade de representação, ganhando importância na vida dos devotos que disseminam a sua devoção constantemente, significando-a e ressignificando-a de acordo com suas necessidades.

Geograficamente, quase em sua totalidade praticada por pessoas que vivem na zona rural do município de Campo Maior, a Dança de São Gonçalo está quase sempre associada à indústria milagreira. A sobrevivência da prática religiosa vem sendo garantida graças aos fiéis (maioria de

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idosos) que acreditam no santo e fazem promessas diante necessidade de encontrar respostas para suas indagações, recorrendo a São Gonçalo. Essas pessoas quase sempre possuem pouco grau de instrução, além de poucos recursos financeiros, o que demonstra que São Gonçalo é um santo mais presente na concepção de classes desfavorecidas.

Na realização do ritual não pode ser esquecida a existência de um lado profano, caracterizado por uso de bebidas alcoólicas pelos participantes no momento da execução da dança, e até a existência de festas e serestas ao final do ritual de louvor.

Contudo, pode ser observado, dentro do contexto campo-maiorense, que a importância cultural da dança de São Gonçalo está centrada, além do seu caráter devocional, à expressão artística que vive em confluência com a fé, o que leva a crer que a dança é possuidora de uma carga cultural altamente rica que ainda persiste até os dias atuais, ganhando forte representatividade no município de Campo Maior.

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Revista Observatório da Diversidade CulturalVolume 2 Nº1 (2015)

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