cultura popular folclore

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PGM 3 – QUEM CONTA UM CONTO... MARIA LAURA VAN BOEKEL CHEOLA “Quem conta um conto aumenta um ponto”... ou diminui... ou altera. Tomando-se ao pé da letra este ditado, descortina-se o mundo dos contos populares; contos que, como a própria denominação diz, foram criados e narrados pelo povo, nasceram da oralidade (da boca) e do espírito inventivo de muitos. Não se pode atribuir a eles um único autor, mas vários que, com suas idéias, contribuíram para alargar o campo da literatura oral. E como acontece o processo de criação do conto popular? Há muitos e muitos anos, ainda quando a vida amanhecia no planeta, o homem já narrava. Primeiro, falava de seu cotidiano: seus hábitos e seus revezes. Depois, em determinado momento, sentiu a necessidade de dar conta de acontecimentos que escapavam a seu entendimento racional; precisava encontrar explicações tanto para fenômenos da natureza quanto para o fato de ser quem era e estar onde estava. Concebeu, então, o conto maravilhoso que, com seus elementos mágicos, explicava o que a razão desconhecia. Não se sabe precisar quando esse costume de contar histórias se instituiu como prática social, porém pode-se afirmar que é bem antigo, de ordem universal, ocorrendo, portanto, em todas as civilizações, como vem sendo comprovado por diferentes estudos etnográficos. Nas comunidades populares esses contos eram e são, mesmo hoje, normalmente narrados à noite, depois do trabalho ou durante atividades de ritmo lento, como a pesca e a confecção de renda não só para relaxar e divertir, mas para fazer as pessoas refletirem sobre suas vidas pessoais e o contexto social em que estão inseridas. Nesses encontros de “contação” de histórias, que devem ser considerados “processos comunicativos artísticos” (Bem Amos,1972) construídos pelas pessoas que deles participam (contadores e platéias, entre os quais há uma troca constante ) em tempo e espaço bem específicos – os contos nascem e renascem. É o convívio de tradição e inovação. Uma mesma história pode ser narrada em vários pontos do planeta, o que vem acontecendo há séculos, mas, em cada um desses lugares, apesar de ser mantida sua “espinha dorsal”, ela apresenta variações. Como diz a pesquisadora Beth Rondelli (1983): “(...) as variações de uma narrativa podem diferir quanto às palavras empregadas, quanto à seqüência, quanto à introdução de novos elementos e quanto ao próprio conteúdo das estórias, existindo, portanto, certo grau de criatividade do contador que também é autor, na medida em que sua criação contém doses de originalidade.(...)

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Page 1: Cultura Popular Folclore

PGM 3 – QUEM CONTA UM CONTO...

MARIA LAURA VAN BOEKEL CHEOLA

“Quem conta um conto aumenta um  ponto”... ou diminui... ou altera. Tomando-se ao pé da letra este ditado, descortina-se o mundo dos contos populares; contos que, como a própria denominação diz, foram criados e narrados pelo povo, nasceram da oralidade (da boca) e do espírito inventivo de muitos. Não se pode atribuir a eles um único autor, mas vários que, com suas idéias, contribuíram para alargar o campo da literatura oral. E como acontece o processo de criação do conto popular?  

Há muitos e muitos anos, ainda quando a vida amanhecia no planeta, o homem já narrava. Primeiro, falava de seu cotidiano: seus hábitos e seus revezes. Depois, em determinado momento, sentiu a necessidade de dar conta de acontecimentos que escapavam a seu entendimento racional; precisava encontrar explicações tanto para fenômenos da natureza quanto para o fato de ser quem era e estar onde estava. Concebeu, então, o conto maravilhoso que, com seus elementos mágicos, explicava o que a razão desconhecia.

Não se sabe precisar quando esse costume de contar histórias se instituiu como prática social, porém pode-se afirmar que é bem antigo, de ordem universal, ocorrendo, portanto, em todas as civilizações, como vem sendo comprovado por diferentes estudos etnográficos.

Nas comunidades populares esses contos eram e são, mesmo hoje, normalmente narrados à noite, depois do trabalho ou durante atividades de ritmo lento, como a pesca e a confecção de renda não só para relaxar e divertir, mas para fazer as pessoas refletirem sobre suas vidas pessoais e o contexto social em que estão inseridas.

Nesses encontros de “contação” de histórias, que devem ser considerados “processos comunicativos artísticos” (Bem Amos,1972) construídos pelas pessoas que deles participam (contadores e platéias, entre os quais há uma troca constante ) em tempo e espaço bem específicos – os contos nascem e  renascem. É o convívio de tradição e inovação. Uma mesma história pode ser narrada em vários pontos do planeta, o que vem acontecendo há séculos, mas, em cada um desses lugares, apesar de ser mantida sua “espinha dorsal”, ela apresenta variações. Como diz a pesquisadora Beth Rondelli (1983):

“(...) as variações de uma narrativa podem diferir quanto às palavras empregadas, quanto à seqüência, quanto à introdução de novos elementos e quanto ao próprio conteúdo das estórias, existindo, portanto, certo grau de criatividade do contador que também é autor, na medida em que sua criação contém doses de originalidade.(...)

Enfim, as estórias (...) são elementos de uma tradição compartilhada tanto pelo narrador como pelos ouvintes e transmitidas por meio de um processo de reelaboração que os integra ao momento presente.”

Mas, cuidado: engana-se quem pensa que a criatividade do contador não obedece a nenhuma regra. Toda invenção, para ser aceita, deve adequar-se às normas da estrutura da tradição oral. De acordo com Peter Burke (1980):

 “O indivíduo pode inventar, mas numa cultura oral, como ressaltou Cecil Sharp, ‘a comunidade seleciona’. Se um indivíduo produz inovações ou variações apreciadas pela comunidade, elas serão imitadas e assim passarão a fazer parte do repertório coletivo da tradição. Se suas inovações

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não são aprovadas, elas morrerão com ele, ou até antes. Assim, sucessivos públicos exercem uma ‘censura preventiva’ e decidem se uma determinada canção ou estória vai sobreviver e de que forma sobreviverá. É nesse sentido (à parte o estímulo que dão durante a  apresentação) que o povo participa da criação e transformação da cultura popular da mesma forma como participa da criação e transformação de sua língua natal.”

Cabe esclarecer que essas inovações, essas variações, estabelecidas com o aval dos ouvintes, são oriundas da combinação de elementos que vêm-se reproduzindo na literatura oral. Portanto, a criatividade está na forma como é feita a seleção e combinação das recorrentes fórmulas e motivos do universo do conto popular.

Por fórmulas, entendem-se  palavras, frases e expressões que se repetem em contos diferentes nas diversas sociedades ao longo do tempo. Como exemplo, tem-se a freqüente repetição da expressão “era uma vez” ou seus equivalentes no início das histórias e da frase “viveram felizes para sempre”.

Por motivos, entendem-se temas, episódios, que transitam, com suas variações, por versões de um mesmo conto ou por contos diferentes. Como exemplo, a história de João e Maria; o motivo de seu abandono tem feições distintas: os pais não têm dinheiro para alimentá-los e decidem deixá-los à mercê da sorte, ou a madrasta, por ciúmes, convence o pai a abandoná-los.

É importante ressaltar que essa circularidade, apontada como característica da literatura oral, também acontece na literatura escrita. A diferença está não na essência do fenômeno, mas no grau. Ambas trabalham com repetições, lugares-comuns, variações. Na literatura escrita, contudo, a incidência é menor, pois sua natureza gráfica propicia maior liberdade inventiva, havendo, portanto, menor freqüência de repetições, descrições mais minuciosas e personagens bem mais demarcadas.

As relações entre essas duas formas de literatura não param aí. Uma se alimenta da outra. Os contos populares influenciaram a literatura escrita: temas encontrados naqueles eram reiterados nesta, como é o caso  da obra clássica de Goethe, Fausto, inspirada num tradicional teatro de bonecos. Por sua vez, a tradição escrita também presenteou o mundo da oralidade com bons argumentos para suas histórias.

No Brasil de hoje, há exemplo dessa comunicação recíproca entre as duas tradições. No livro intitulado O narrado e o vivido, Beth Rondelli nos mostra, a partir da realidade de Raposa – comunidade pesqueira do Maranhão, onde a prática de contar histórias, depois de um dia de trabalho, é bastante presente que a literatura nordestina escrita e a oral mantêm fortes laços. É comum ver um contador de histórias transformar um romance ou um folheto, sob a forma de poema, em prosa oral, como também não é raro presenciar o inverso: a história de Trancoso, que é o conto maravilhoso, sendo elaborada na forma de poesia escrita.

Os próprios contos maravilhosos apresentam-se ora no registro oral, ora no registro escrito, com características distintas, adequadas a cada um deles. Segundo Robert Darnton, no livro O grande massacre de gatos, uma parte dos contos recolhidos pelos irmãos Grimm e publicados no início do século XIX foi conseguida com uma vizinha e amiga deles, Jeannette Hassenpflug. As histórias foram contadas a ela por sua mãe, que descendia de uma família francesa huguenote. Os huguenotes levaram os contos para a Alemanha, mas o primeiro contato que esse grupo de franceses teve com as narrativas foi, na própria França, por intermédio de um livro publicado por Charles Perrault, que recolhera as histórias exclusivamente de fonte popular (ao contrário do que aconteceu com os Grimm), consultando a babá de seu filho.

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Perrault coletou contos populares, na França do século XVII, com o propósito de entreter o filho do rei Luís XIV e os freqüentadores dos salões. Os contos passaram de um registro a outro do oral ao escrito – até chegarem aos irmãos Grimm no século XIX, que pesquisaram a literatura oral com o objetivo de reafirmar a nacionalidade alemã. Nação recém-saída do jugo napoleônico, a Alemanha passou a ser identificada pelos intelectuais por um elenco de costumes e crenças de seu povo. Nesse percurso, as histórias folclóricas passaram da tradição oral (meio rural francês) à escrita (seleção de Perrault), daí voltando à forma oral (narração dos descendentes huguenotes na Alemanha) para, a seguir, retornar à literatura impressa (coleção dos Grimm). As mudanças de ambientes (das cabanas para os salões da corte) e de suporte (da palavra oral ao texto escrito) acarretaram alterações de forma e conteúdo Perrault acrescentou conclusões morais que não existiam originalmente. Além disso, fez cortes, acréscimos e mudanças de tom.

No Brasil também existem coleções de contos populares publicadas. No final do século passado e  início deste, aliás, estudar folclore, neste país, era estudar a literatura oral. Nessa época, várias coleções foram editadas como as de Basílio de Magalhães, Sílvio Romero e Figueiredo Pimentel.

Outro pesquisador foi o folclorista potiguar Câmara Cascudo que lançou, na década de 1940, Contos tradicionais do Brasil, reunindo narrativas de todo o território nacional. Mas há que se ter atenção para o fato de a seleção feita por Cascudo não possuir nenhuma intenção didática; ele apresenta as narrativas exatamente como as ouviu, sem juízo de valor, sem as adocicar, como diz:

“A linguagem dos narradores foi respeitada noventa por cento. Nenhum vocábulo foi substituído. Apenas não julguei indispensável grafar ‘muié’, ‘prinspo’, ‘prinspa’, ‘timive’, ‘terrive’. Conservei a coloração do vocabulário individual, as imagens, as perífrases, intercorrências.’ Sua preocupação era mostrar o povo brasileiro com suas peculiaridades, suas idiossincrasias. Como afirma o folclorista: ‘o conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, idéias, mentalidades, decisões e julgamentos.”

Todas essas coletâneas citadas atestam, uma vez mais, a circularidade das narrativas. Motivos encontrados em contos dos Grimm e Perrault são identificados nas histórias brasileiras, adaptados à realidade local. Os contos brasileiros mantêm diálogos também com o imaginário de povos africanos e indígenas.

Outra fonte de contato com a tradição oral são as novas versões dos contos populares produzidas por escritores brasileiros contemporâneos que, com mestria, dão um novo colorido às histórias tradicionais. Vale a pena conferir em publicações como Meu livro de folclore, de Ricardo Azevedo; O velho, o menino e o burro, de Ruth Rocha; A festa no céu, de Ângela Lago.

Então, leitor(a), se você quiser conhecer um pouco mais do povo brasileiro, um mergulho no mundo das histórias populares torna-se indispensável. E, assim, quem sabe, depois desse mergulho, você possa somar novas informações a este texto que agora se encerra...

Entrou pelo pé do pato Saiu pelo pé do pinto E quem quiser Que conte cinco!

Bibliografia

Page 4: Cultura Popular Folclore

AZEVEDO, Ricardo. Meu livro de folclore. São Paulo: Ática, 1997.

BURKE, Peter. A cultura popular na idade moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.

LAGO, Ângela. A festa no céu. São Paulo: Melhoramentos, 1994.

ROCHA, Ruth. O velho, o menino e o burro e outras histórias caipiras. São Paulo: FTD, 1993.

RONDELLI, Beth. O narrado e o vivido. Rio de Janeiro: FUNARTE/IBAC, coordenação de Folclore e Cultura Popular, 1993.

 

NOTAS:

 

1        Maria Laura van Boekel Cheola, formada em Letras e contadora de estórias, integrou a equipe do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular até 2002