cultura popular

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28 A CULTURA POPULAR entre a tradição e a transformação VIVIAN CATENACCI Cientista Social, Coordenadora do Projeto Viverarte – SP Resumo: A cultura popular analisada a partir da concepção dos folcloristas e dos membros do Centro Popular de Cultura, colocando em cena os termos tradição e transformação, considerados antagônicos por ambas as tendências e envolvidos pela questão nacional, amplamente discutida pelas Ciências Sociais durante todo o século XX. Palavras-chave: cultura popular; tradição e transformação; nacionalismo. heterogeneidade é uma das características da cul- tura popular, muito estudada no século XX e, portanto, no interior das Ciências Sociais podem ser verificadas suas diferentes concepções. A cultura popular, aqui será examinada sob uma abor- dagem multidisciplinar, focalizando aspectos que auxiliam a compreensão desse fenômeno complexo e polissêmico. O primeiro deles diz respeito à concepção de povo e de cultura popular para os folcloristas. O segundo, à análise de diferentes concepções do conceito de popular, inician- do o deslocamento do eixo da discussão para o âmbito da política. O terceiro reflete sobre o Centro Popular de Cul- tura, explicitando primeiramente seu surgimento e em se- guida a concepção dos intelectuais “cepecistas” de cultu- ra popular e seu papel na sociedade. Com base nessas reflexões, estarão sendo analisados conceitos – tradição/transformação – geralmente apresen- tados como antagônicos, mas que vistos como complemen- tares podem dar novas respostas a essa discussão. A ques- tão nacional também faz parte deste artigo, uma vez que se encontra diretamente associada ao tema, tanto na con- cepção dos folcloristas, quanto dos intelectuais cepecistas. FOLCLORE: CULTURA POPULAR, TRADIÇÃO O termo folklore folk (povo), lore (saber) – foi cria- do pelo arqueólogo inglês Willian John Thoms em 22 de agosto de 1846 e adotado com poucas adaptações por gran- de parte das línguas européias, chegando ao Brasil com a grafia pouco alterada: folclore. O termo identificava o saber tradicional preservado pela transmissão oral entre os camponeses e substituía outros que eram utilizados com o mesmo objetivo – “antigüidades populares”, “literatura popular” (Vilhena, 1997:24). Contudo, a idéia de identi- ficar nas tradições populares uma sabedoria não era nova quando a palavra folclore foi criada. Os intelectuais românticos valorizaram de forma posi- tiva a cultura popular em um momento em que a repres- são sobre ela se intensificou – final do século XVIII e iní- cio do século XIX. Esses estudiosos, que tinham grande curiosidade com relação ao que era bizarro, dedicaram- se a esse tema e foram “responsáveis pela fabricação de um popular ingênuo, anônimo, espelho da alma nacional, [sendo] os folcloristas seus continuadores, buscando no Positivismo emergente um modelo para interpretá-lo” (Vilhena, 1997:24). Entre esses românticos estão os ale- mães Jacob e Wilhelm Grimm que, impulsionados em gran- de parte pelo interesse nas tradições populares desperta- do pelo movimento romântico naquele país e, como se verá a seguir, pelo contexto de grandes transformações do qual faziam parte, inauguraram uma coleta de contos pelo con- tato direto com os camponeses, indicando inclusive o lo- cal onde a história havia sido ouvida. Esses estudiosos alemães e o método utilizado por eles na coleta das tradi-

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CULTURA POPULARentre a tradição e a transformação

VIVIAN CATENACCI

Cientista Social, Coordenadora do Projeto Viverarte – SP

Resumo: A cultura popular analisada a partir da concepção dos folcloristas e dos membros do Centro Popularde Cultura, colocando em cena os termos tradição e transformação, considerados antagônicos por ambas astendências e envolvidos pela questão nacional, amplamente discutida pelas Ciências Sociais durante todo oséculo XX.Palavras-chave: cultura popular; tradição e transformação; nacionalismo.

heterogeneidade é uma das características da cul-tura popular, muito estudada no século XX e,portanto, no interior das Ciências Sociais podem

ser verificadas suas diferentes concepções.A cultura popular, aqui será examinada sob uma abor-

dagem multidisciplinar, focalizando aspectos que auxiliama compreensão desse fenômeno complexo e polissêmico.O primeiro deles diz respeito à concepção de povo e decultura popular para os folcloristas. O segundo, à análisede diferentes concepções do conceito de popular, inician-do o deslocamento do eixo da discussão para o âmbito dapolítica. O terceiro reflete sobre o Centro Popular de Cul-tura, explicitando primeiramente seu surgimento e em se-guida a concepção dos intelectuais “cepecistas” de cultu-ra popular e seu papel na sociedade.

Com base nessas reflexões, estarão sendo analisadosconceitos – tradição/transformação – geralmente apresen-tados como antagônicos, mas que vistos como complemen-tares podem dar novas respostas a essa discussão. A ques-tão nacional também faz parte deste artigo, uma vez quese encontra diretamente associada ao tema, tanto na con-cepção dos folcloristas, quanto dos intelectuais cepecistas.

FOLCLORE: CULTURA POPULAR, TRADIÇÃO

O termo folklore – folk (povo), lore (saber) – foi cria-do pelo arqueólogo inglês Willian John Thoms em 22 de

agosto de 1846 e adotado com poucas adaptações por gran-de parte das línguas européias, chegando ao Brasil com agrafia pouco alterada: folclore. O termo identificava osaber tradicional preservado pela transmissão oral entreos camponeses e substituía outros que eram utilizados como mesmo objetivo – “antigüidades populares”, “literaturapopular” (Vilhena, 1997:24). Contudo, a idéia de identi-ficar nas tradições populares uma sabedoria não era novaquando a palavra folclore foi criada.

Os intelectuais românticos valorizaram de forma posi-tiva a cultura popular em um momento em que a repres-são sobre ela se intensificou – final do século XVIII e iní-cio do século XIX. Esses estudiosos, que tinham grandecuriosidade com relação ao que era bizarro, dedicaram-se a esse tema e foram “responsáveis pela fabricação deum popular ingênuo, anônimo, espelho da alma nacional,[sendo] os folcloristas seus continuadores, buscando noPositivismo emergente um modelo para interpretá-lo”(Vilhena, 1997:24). Entre esses românticos estão os ale-mães Jacob e Wilhelm Grimm que, impulsionados em gran-de parte pelo interesse nas tradições populares desperta-do pelo movimento romântico naquele país e, como se veráa seguir, pelo contexto de grandes transformações do qualfaziam parte, inauguraram uma coleta de contos pelo con-tato direto com os camponeses, indicando inclusive o lo-cal onde a história havia sido ouvida. Esses estudiososalemães e o método utilizado por eles na coleta das tradi-

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ções populares tiveram grande influência sobre os primei-ros folcloristas brasileiros.

É importante destacar, porém, o contexto no qual apalavra folclore foi gerada para podermos compreender,posteriormente, quão abrangente é essa discussão na áreadas Ciências Sociais no Brasil.

Como aponta Ortiz (1985), até meados do século XVIIa fronteira entre cultura popular e cultura de elite não es-tava bem delimitada, porque a nobreza participava dascrenças religiosas, das superstições e dos jogos realiza-dos pelas camadas subalternas. É claro que o mesmo nãose pode dizer com relação ao povo no universo das elites.No entanto, o que vai interessar para este artigo é que poucoa pouco começa a ocorrer o distanciamento entre a cultu-ra de elite e a cultura popular, intensificando o processode repressão da primeira sobre a última. Os motivos quecontribuem para isso na Europa são, principalmente, deordem política. A implementação de uma política de sub-missão das almas com base na doutrina oficial definidapela Teologia, feita por parte da Igreja – tanto católicacomo protestante – e o processo de centralização do Esta-do, ou seja, instituição de uma administração unificadados impostos, da segurança e da língua, podem ser identi-ficados como os principais fatores que levaram à separa-ção entre as duas culturas apontadas acima. Ortiz (1985)destaca ainda a crescente preocupação das autoridades compráticas que geram protestos, tumultos, como o carnaval– entre outras manifestações populares. Dessa forma, opovo entra no debate moderno e passa a interessar paralegitimar a hegemonia burguesa, mas incomoda como olugar do inculto. Teve início nesse período o processo dedesencantamento do mundo, baseado em valores de uni-versalidade e racionalidade, e valorização da cultura bur-guesa – moderna – em detrimento da cultura popular –tradicional.

Justamente em meados do século XIX, quando o ter-mo folclore é criado, a modernização capitalista encon-trava-se a todo vapor e os intelectuais que se dispunham aestudar as manifestações populares não pensavam em vol-tar ao passado como os românticos, pois, com base noprojeto iluminista, acreditava-se que “o domínio científi-co da natureza permitia liberdade da escassez, da neces-sidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. Odesenvolvimento de formas racionais de organização so-cial e de modos racionais de pensamento prometia a li-bertação das irracionalidades do mito, da religião, da su-perstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem comodo lado sombrio da nossa própria natureza humana. So-

mente por meio desse projeto poderiam as qualidades uni-versais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser re-veladas” (Harvey, 1999:23).

Como se vê, o pensamento vigente da época estava di-retamente relacionado com a crença na ciência, nas for-mas racionais de organização social e de produção queteriam a ordem, a disciplina, a obediência e a submissãocomo principais elementos; e o progresso, enquanto avançotecnológico, como objetivo.

Nesse momento da modernidade, os limites para a ex-pansão do capital, ou seja, para a internacionalização docapital mercadoria, do capital produtivo e por último docapital financeiro, se ampliavam cada vez mais devido,essencialmente, aos avanços tecnológicos dos meios decomunicação e de transporte. A construção de estradas deferro, a rapidez, a segurança e o conforto dos barcos avapor aumentavam dia a dia, desde a metade do séculoXIX, diminuindo a distância entre os países europeus eprincipalmente entre os continentes. As inovações ocor-ridas nas comunicações, como o aperfeiçoamento do te-légrafo, também foram essenciais para que essas distân-cias diminuíssem, estimulando a troca de mercadorias, odeslocamento de pessoas e conseqüentemente o aumentoda competitividade entre os países.

A organização da sociedade, nesse contexto, tambémsofria mudanças profundas, e a mais relevante para estetrabalho é o crescimento das cidades em detrimento docampo. Benjamin na obra Charles Baudelaire um líricono auge do capitalismo (1995) explicita as mudanças ocor-ridas na postura dos indivíduos perante a novas formas dese relacionarem, já que a modernidade colocava um novoelemento que caracterizaria os relacionamentos nas gran-des cidades: a impessoalidade. Nesse sentido, o autor apre-senta o flâneur, denominado por Baudelaire “o homemdas multidões” (Benjamin, 1995:45).

Visto que as transformações que ocorreram na organi-zação social, nos modos de produção e conseqüentemen-te nas formas de circulação do capital nesse período, erampermeadas pelo fugidio, pelo transitório e pelo impessoal,que espaço teria a tradição neste contexto? Essa foi umadas grandes questões colocadas aos intelectuais europeuse aos brasileiros que iniciaram os estudos sobre o folcloreno final do século XIX. Porém, no caso do Brasil, os inte-lectuais se viram diante de uma outra pergunta, diretamenteligada à questão da identidade nacional: “quem somos,afinal?”

Essa pergunta que percorreu todo o século XX, pre-sente ainda no século XXI, foi enfrentada no século XIX

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por intelectuais como Silvio Romero – apontado como opai dos estudos folclóricos brasileiros –, Celso de Maga-lhães e Couto de Magalhães, que acreditavam na investi-gação da origem e das características das manifestaçõesfolclóricas como o meio mais eficiente para afirmar a iden-tidade nacional. Para tanto, era necessário entrar em con-tato com o povo, ou seja, com as classes subalternas, oshomens simples, “deseducados” e ao mesmo tempo teste-munhas e arquivos da tradição. Essas manifestações fol-clóricas que, segundo eles, encontravam-se presentes prin-cipalmente no meio rural, estariam ameaçadas peloprocesso de modernização em que o Brasil estava se inse-rindo. Acreditava-se nesse sentido na incompatibilidadeentre as manifestações folclóricas e o progresso, ou seja,entre os avanços da modernidade e a tradição. Esses estu-diosos estavam ao mesmo tempo diante da necessidadede salvar o que pertencia ao nosso passado, e o desejo deesquecê-lo – colonização, exploração, escravidão emestiçagem. É um dilema bastante claro nas obras de Sil-vio Romero, que passou a se dedicar, especialmente, aoregistro de contos, poesia e cantos tradicionais, e a bus-car neles a identidade nacional.

E por que Silvio Romero teria buscado as origens es-pecificamente brasileiras nos contos, cantos e poesias tra-dicionais? Segundo Brandão (1995), Silvio Romero teriasido influenciado pelos trabalhos realizados pelos irmãosGrimm, que já circulavam pelo Brasil, e pela própria de-finição do recém-inventado conceito ‘folclore’, que, comovimos, estava diretamente relacionado com o que era iden-tificado como ‘literatura popular’. Já no século XIX e iní-cio do XX, podia-se encontrar uma grande quantidade deversões abrasileiradas dos textos não apenas dos Grimm,mas também de Perrault e Andersen. A influência dos ir-mãos Grimm encontra-se visível não apenas nos trabalhosrealizados por Silvio Romero (1954), Couto de Magalhães(1975) e Celso de Magalhães (1973), mas também nasobras de João Ribeiro (1969) no início do século XX.

O objetivo de Silvio Romero nos seus estudos sobreessas manifestações populares foi indicar o ‘corpo das tra-dições’ formado pela relação entre três raças – branca,negra e indígena –, apontar os elementos culturais especí-ficos de cada uma delas e até que ponto esses elementosjá estariam fundidos. Assim, Romero investiga quais se-riam os agentes transformadores – o mestiço – e os agen-tes criadores da nossa cultura – as três raças, sendo a brancao principal agente criador.

Romero utiliza-se da teoria da seleção natural, elabo-rada por Darwin, ao afirmar que pela lei da adaptação as

raças tenderiam a modificar-se no mestiço, que tenderia ase integrar à parte, formando um novo tipo em que predo-minaria o branco. Nesse sentido, o futuro do Brasil per-tenceria a essa raça, já que todos os primeiros tipos na-cionais têm origem branca. Alguns argumentos como aextinção do tráfico negreiro, o desaparecimento dos ín-dios, inevitável na concepção dos estudiosos deste perío-do, e a crescente imigração européia são utilizados porRomero para legitimar essa tese de que os negros e índiosestariam condenados ao desaparecimento e o mestiço se-ria apenas uma etapa para a constituição do branco purocomo verdadeira raça brasileira. Justamente devido à fu-são das raças não estar completa, não tínhamos no finaldo século XIX no Brasil um caráter original, um espíritopróprio, que segundo o autor viria com o tempo.

Como se pode perceber, a resposta para a pergunta “oque somos” não é completamente respondida pelo nossopassado, segundo os estudos de Silvio Romero e dos de-mais folcloristas desse período. A resposta é remetida paraum futuro no qual o branqueamento seria concretizado,formando uma civilização européia nos trópicos, na Amé-rica tropical. E exatamente por acreditar não apenas napreponderância das idéias civilizatórias, mas no processode branqueamento pela miscigenação, que esses autorespercebiam a necessidade urgente de registrar as manifes-tações populares antes que fossem totalmente degradadase/ou desaparecessem. Por fim, a grande contribuição dosprimeiros estudos sobre o folclore foi ter tornado visívela questão do popular no Brasil, apesar de terem se limita-do ao registro dos fatos folclóricos e/ou à sua utilizaçãoestética.

No entanto, no decorrer do século XX, outros traba-lhos foram realizados respondendo a essa questão de for-ma diferente dos primeiros folcloristas brasileiros, am-pliando a discussão sobre o folclore. Uma das tendênciasque orientaram a preocupação desses estudiosos via a ne-cessidade de transformar o folclore em uma disciplina cien-tífica autônoma, com campo e métodos próprios de inves-tigação,1 que teria como objetivo reconstruir e explicar asmanifestações folclóricas, registrando-as e classificando-as. Desse modo, porém, eles acabavam deslocando essasmanifestações do contexto histórico-social em que eramconcebidas e no qual se manifestavam, contendo então umarede de significados.

A outra tendência, na qual Florestan Fernandes (1958)se inclui, trabalha o folclore como um recurso das Ciên-cias Sociais para entender e explicar a realidade, ou seja,as manifestações tradicionais. Longe de ser uma discipli-

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na autônoma ou apenas um recurso literário, é um fatohistórico-social e como tal deve ser trabalhado cientifica-mente, mas por meio de ciências como a Antropologia, aEtnologia, a Sociologia. Esses intelectuais apontam, ain-da, algumas questões relacionadas à definição feita pelosfolcloristas de cultura popular, qual seja o saber tradicio-nal das classes subalternas. Uma delas diz respeito ao fatode que, ao definir cultura popular dessa forma, correla-ciona-se esse saber tradicional à dimensão de atraso, deretardatário. Legitima-se, assim, a existência de uma dico-tomia estrutural da sociedade: de um lado, uma elite – quepromoveria o progresso – e de outro, o povo – represen-tando a permanência das formas culturais.

POPULAR: TRADIÇÃO, POPULARIDADE, POVO

Vários autores refletem de forma bastante crítica so-bre as concepções e os estudos relativos ao conceito depopular, realizados durante o século XX.

Canclini (1989), por exemplo, destaca a importânciada desconstrução do popular para posteriormente recons-truir este conceito. Contudo, essa reconstrução não devese dar apenas pelo prisma de uma das disciplinas das Ciên-cias Sociais, mas sim pelo trabalho em conjunto de todaselas.

Como se viu, o popular está inserido no processo cons-titutivo da modernidade, abarcando as seguintes contra-dições (Canclini, 1989:206):

MODERNO = CULTO = HEGEMÔNICO

TRADICIONAL = POPULAR = SUBALTERNO

Esse autor explora tais contradições, afirmando que ahistória do popular sempre foi relacionada com a históriados excluídos, que não têm patrimônio ou não conseguemque ele seja reconhecido e conservado. Por conseguinte,na maioria dos estudos feitos sobre a cultura, o avanço éconsiderado como promovido única e exclusivamentepelos setores hegemônicos, já que no tradicional estãoarraigados os setores populares. Foi essa a postura assu-mida pelos iluministas, que viam os processos culturaisrestritos às elites; pelos românticos que exaltavam os sen-timentos e as formas populares de expressá-los, utilizan-do de forma lírica as tradições populares; e pelospositivistas, que procuravam situar o folclore no espíritocientífico. E precisamente esse um dos pontos da críticaque se faz a esses intelectuais, por estudiosos que se in-

cluem na terceira tendência apresentada acima. Hoje, po-rém, existe uma propensão para o tradicionalismo emamplas camadas hegemônicas, que pode se combinar como moderno desde que a exaltação da tradição se limite àcultura e que a modernização se perpetue, nos âmbitossocial e econômico. Nesse sentido, de certa forma a dico-tomia colocada por Canclini (1989) permanece.

A proposta de desconstrução do conceito popularpassa, segundo o autor, pela necessidade de desfazer asoperações científicas e políticas que levaram à cena opopular: o folclore, as indústrias culturais, o populismopolítico.

Em todas essas operações, Canclini destaca que o po-pular é algo construído, mais que preexistente. Hoje, opopular na América Latina não é o mesmo quando apre-sentado pelos folcloristas e antropólogos nos museus, nosanos 20 e 30; pelos comunicólogos nos meios massivos,desde os anos 50; ou pelos políticos, para o Estado oupartidos e movimentos de oposição, desde os anos 70.

Para esse autor, a crise atual da investigação do popu-lar se dá devido à forma pela qual os paradigmas sãoconstruídos nas Ciências Sociais. Segundo ele, essa cons-trução é feita de forma desconectada, e essa cisão quecondiciona as divisões interdisciplinares é a mesma queconfronta tradição e modernidade.

Tal confronto fica bastante claro na análise da concep-ção de popular para os folcloristas. O autor confirma oque foi colocado anteriormente ao apontar que os estudosrealizados no século XIX tinham como aspecto positivo avisibilidade da questão do popular e como aspecto nega-tivo a utilização de métodos que não foram guiados poruma delimitação do objeto de estudo, mas por interessesideológicos e políticos.

“O folk é visto [aqui na América Latina] de forma se-melhante à da Europa, como uma propriedade de gruposindígenas ou camponeses isolados e auto-suficientes, cu-jas técnicas simples e a pouca diferenciação social os pre-servariam de ameaças modernas. Interessam mais os bensculturais – objetos, lendas, músicas – que os agentes queos geram e consomem. Essa fascinação pelos produtos, odescaso pelos processos e agentes sociais que os geram,pelos usos que os modificam, leva a valorizar nos objetosmais sua repetição que sua transformação” (Canclini,1989:211).

Portanto, o popular, olhando pelo prisma do folclore,é o que se refere à tradição, o depósito da criatividadecamponesa, da suposta transparência da comunicação caraa cara, da profundidade que se perderia com as mudanças

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exteriores da modernidade. Nesse sentido, os folcloristasdão poucas explicações sobre o popular, não sendo capa-zes de reformular seu objeto de estudo de acordo com odesenvolvimento de sociedades em que os fenômenosculturais poucas vezes têm as características que o folclo-re define e valoriza.

As comunicações massivas, porém, colocam o popularem cena de um modo diferente e são vistas pelosfolcloristas como ameaça às tradições populares. A mí-dia, na medida em que trabalha com as manifestaçõespopulares – mito, folhetim, festa, humor, superstição – in-corporando-as à cultura hegemônica, assume um papel deconcorrente do folclore. O popular é visto pela mídia atra-vés da lógica do mercado, e cultura popular para oscomunicólogos não é o resultado das diferenças entre lo-cais, mas da ação difusora e integradora da indústria cul-tural. O popular é, dessa forma o que vende, o que agradamultidões e não o que é criado pelo povo. O que importaé o popular enquanto popularidade. Além disso, para omercado e para a mídia o popular não interessa como tra-dição, ou seja, como algo que perdura. Ao contrário, oque tem popularidade na indústria cultural deve ser, apósatingir o seu auge, relegado ao esquecimento, a fim de darespaço a um novo produto que deverá ser acessível aopovo, ser do gosto do povo, enfim, ser popular.

Por conseguinte, o populismo – operação política quetambém coloca em cena o popular – utiliza a cultura paraedificar o poder. Um projeto populista, ao mesmo tempo,deixa de lado a exaltação da tradição, selecionando do tra-dicional o que é compatível com o desenvolvimento con-temporâneo, e reverte a tendência de fazer do povo ummero espectador, criando situações nas quais ele atue,participe – eventos cívicos como desfiles ou manifesta-ções de protesto, por exemplo. Em um governo populista,os valores tradicionais do povo, assumidos e representa-dos pelo Estado ou por um líder carismático – como noBrasil durante o governo de Getúlio Vargas –, acabam porlegitimar a ordem administrada por este último e, ao mes-mo tempo, concedem aos setores populares a confiançade participar de um sistema que os inclui e reconhece. Opopular, nesse sentido, é visto por essa forma de governocomo simplesmente povo.

Retomando idéias anteriores, são várias as formas pe-las quais o popular é apresentado: para os folcloristas serefere à tradição; para a indústria cultural, à popularidadee para o populismo, ao povo. Contudo, apesar de cada umadessas tendências reivindicar uma concepção de popular,todas contribuem para o processo de fazer o povo falar ao

coletar narrações, incluir entrevistas de rua em programasde rádio e televisão, compartilhar com o povo os palcosdo poder. Essa reivindicação de popular gerou tambémoutros movimentos construídos pelas próprias camadaspopulares – sindicatos, partidos políticos, movimentos deminorias, educativos, etc. – e movimentos identificadospor Canclini como populismo de esquerda ou populismoalternativo, caso do Centro Popular de Cultura – CPC.

Para esse movimento, a concepção de cultura popularestava diretamente relacionada com a questão da partici-pação popular, como no populismo de direita, mas nãouma participação que objetivasse a ordem, a manutençãodo poder; pelo contrário, o objetivo maior da cultura po-pular, identificada por eles como revolucionária, era atransformação da sociedade. Nesse sentido, o CPC rom-pe a identidade “forjada” entre folclore e cultura popular.Enquanto o folclore é interpretado como manifestaçõesculturais tradicionais, a noção de cultura popular é defi-nida pelo Centro Popular de Cultura em termos exclusi-vos de transformação (Ortiz, 1986).

CPC: CULTURA POPULAR, TRANSFORMAÇÃO

A conjuntura brasileira na passagem dos anos 50/60,especialmente os primeiros anos desta última década,é marcada por uma grande agitação política e cultural.Sendo assim, para compreendermos as mudanças queocorrem nesse período no enfoque da cultura popular,é necessário situá-las como parte de um processo maisamplo de transformações econômicas, sociais e políti-cas do país.

O Brasil havia passado pela ditadura varguista e pelapolítica desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, cujoslogan era “avançar cinqüenta anos em cinco”, períodoem que as bases econômica e social da sociedade haviamevoluído rapidamente. As novidades introduzidas, comoa industrialização com a participação de multinacionais,incentivada por uma política de abertura ao capital estran-geiro, e a inauguração de Brasília, davam aos artistas eintelectuais da época a idéia de que estavam vivendo ummomento de ruptura histórica.

No entanto, no momento seguinte (governo Jânio Qua-dros – João Goulart), o Brasil encontra sérias dificuldadespara manter o ritmo de crescimento econômico do períodoanterior. Enfrentou-se a renúncia de Jânio Quadros e a ten-tativa de golpe – “adiada” para abril de 1964 –, quando seuvice João Goulart, membro de uma chapa apoiada pela es-querda, teve dificuldades em assumir o poder.

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Nesse momento, começa a haver uma crescente desa-gregação das alianças que até então mantinham os esque-mas tradicionais de manipulação populista, abrindo espa-ço para a reivindicação da esquerda – especificamente doPCB – de uma coerência política por parte do governo.Vivia-se um momento de muita efervescência, de pers-pectiva de grandes mudanças. A expectativa de reformasde base no governo Goulart; as desapropriações para areforma agrária no governo Brizola, no Rio Grande do Sul;o crescimento das ligas camponesas e dos conflitos trava-dos entre posseiros e latifundiários no nordeste do país;e, no âmbito internacional, a Revolução Cubana, apresen-tavam-se como indicativos de um processo revolucioná-rio. Acreditava-se que pela ação política, pela militânciapartidária, transformações importantes ocorreriam na so-ciedade em um prazo relativamente curto.

Desse modo, temas políticos como o nacionalismo, ademocratização, a modernização e a valorização do povo,que estavam sendo debatidos principalmente nas univer-sidades e suas organizações nacional (UNE), estadual(UEE) e local (CA), nos sindicatos – bastante fortaleci-dos nesse momento – e nos partidos de esquerda, ganhamimportância e marcam profundamente as manifestaçõesartísticas desse período. A influência desse clima políti-co-ideológico nas discussões sobre o “povo brasileiro”pode ser percebida, por exemplo, na origem e concepçõesde povo e de cultura popular, por parte dos artistas e inte-lectuais que organizaram e dirigiram o Centro Popular deCultura.

O CPC surge em 1961 como produto e, ao mesmo tem-po, como tentativa de responder, através da arte, às ques-tões colocadas por esse contexto. Esse movimento artísti-co surgiu como dissidência do grupo paulista “Arena”, namedida em que alguns dos seus membros, muito preocu-pados com a produção de uma dramaturgia crítica da rea-lidade social brasileira, destacavam a necessidade de maioraproximação entre os artistas e o povo. Oduvaldo ViannaFilho (Vianinha) e Chico de Assis estavam entre os artis-tas que juntamente com Carlos Estevam Martins – um dosprincipais teóricos desse movimento e autor do Antepro-jeto do Manifesto do CPC – organizaram o Centro Popu-lar de Cultura, com sede no auditório localizado no pré-dio da UNE, no Rio de Janeiro.

A grande preocupação dos cepecistas era a construçãode uma cultura nacional popular que visasse à transfor-mação de toda a sociedade brasileira.

Antes de entrar especificamente na discussão sobre aconcepção de arte/cultura popular para o CPC, vale des-

tacar qual seria a sua concepção de povo. Os artistas eintelectuais cepecistas entendiam “povo” como a cama-da subalterna da sociedade, a classe trabalhadora, a classerevolucionária, responsável pela transformação da socie-dade, pela insurreição do novo. O povo, porém, não ti-nha segundo eles consciência dessa sua missão, de seupapel na sociedade, e cabia aos intelectuais e artistas doCPC despertá-los para essa consciência. E, apesar de sereferirem ao povo sempre na terceira pessoa e de nãopertencerem efetivamente à classe trabalhadora, os mem-bros do CPC se consideravam povo na medida em quehaviam adotado de forma consciente a ideologia revolu-cionária.

A arte era o que dava base à ação política do CPC, era oseu instrumento de articulação, de comunicação com o povo.Qualquer outro tipo de arte – desvinculada da militânciapolítica e, conseqüentemente, da realidade social – era re-jeitada como arte alienada e alienante. Nesse sentido, parao CPC, arte e política se misturam, sendo a primeira umrecurso para a última. Era justamente pelo atrelamento entrearte e política que esses artistas e intelectuais buscavamconstruir o que denominavam de verdadeira arte ou cultu-ra popular: a cultura popular revolucionária. Era popularpor ser uma cultura dirigida ao povo e revolucionária porter como objetivo a transformação da sociedade (Barcellos,1994:217).

A fim de possibilitar maior compreensão sobre a arteou cultura revolucionária, Carlos Estevam Martins(Hollanda, 1981) apresenta as diferenças existentes entrea arte cepecista, a arte do povo e a arte popular. A primei-ra é, segundo ele, própria das comunidades rurais, arcai-cas, atrasadas, em que o artista não se distingue do povo ese limita, devido à simplicidade da sua arte a ordenar osfatos do cotidiano, da realidade arcaica do qual faz parte.A arte do povo é “[...] tão desprovida de qualidade artís-tica e de pretensões culturais que nunca vai além de umatentativa tosca e desajeitada de exprimir fatos triviais da-dos à sensibilidade mais embotada. É ingênua e retarda-tária e na realidade não tem outra função que a de satisfa-zer necessidades lúdicas e de ornamento”2 (Hollanda,1981:130).

A arte popular, porém, é própria dos centros urbanos,industrializados, e elaborada por artistas pertencentes aclasses sociais distintas do seu público. Para Martins, essaarte “consegue ser lírica lidando com a miséria, consegueser saudosista quando se trata do futuro, é capaz de ironiaou abnegação diante da dor mais pungente (...)” (Hollanda,1981:130).

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Já a arte popular revolucionária parte da essência dopovo, que só pode ser vivenciada pelo artista quando elese defronta com a realidade social desse povo, a de classedestituída do poder de dirigir a sociedade sustentada porsua força de trabalho. Assim, a arte cepecista pretende serpopular pois se identifica com os objetivos do povo e seune a ele na luta pela direção da sociedade.

Por essas definições, porém, os integrantes do CPCacabam negando a validade das manifestações popularese mantêm o preconceito em relação à cultura popular aoaproximá-la da “falsa cultura”, entrando, por conseguin-te, num processo de alienação que eles tanto combateram(Ortiz, 1986).

No que se refere à produção artística, os artistas do CPC,ao buscarem um outro público (o povo), criaram uma novaconcepção de texto, de cena, de produção, de interpreta-ção, produzindo várias peças teatrais como Eles não usamblack-tie, O auto dos 99% e A vez da recusa, por exem-plo, apresentadas em portas de fábricas, favelas e sindi-catos; o filme Cinco vezes favela; a coleção de livrosCadernos do povo e a série Violão de rua, entre outros.

O CPC foi , sem dúvida, um exemplo de movimento depolitização da arte, identificada como cultura popular, eserviu de fundamento para um projeto político revolucio-nário.

CONCLUSÃO

A questão da cultura popular foi apresentada muitorecentemente pelos romancistas e folcloristas. No entan-to, as obras produzidas para discutir ou reivindicar umadeterminada concepção desse tema são inúmeras e diver-sificadas. Neste artigo, foram apresentadas duas concep-ções, salientando o contexto histórico, social, político eeconômico no qual cada uma delas foi construída. Bus-cou-se, ao apresentá-las dessa forma, destacar que o modopelo qual se entende, se define cultura popular, é ao mes-mo tempo produto de um contexto determinado e de umdiálogo sobre as questões colocadas por ele. Foram ex-postas, portanto, as formas com as quais os folcloristas eos membros do movimento artístico cepecista lidaram eresponderam às indagações colocadas por seu tempo so-bre o “povo brasileiro”.

Tanto a concepção dos primeiros folcloristas brasilei-ros – representados por Silvio Romero – como a doscepecistas faziam parte de um movimento político de cu-nho nacionalista e ambas estavam inseridas em um mo-mento de grandes mudanças no cenário brasileiro. Nas

palavras de Romero, o final do século XIX era “[...] omomento decisivo da nossa história: o ponto culminante;a fase da preparação do pensamento autonômico e daemancipação política” (Romero, 1959:14). Alguns pro-blemas apresentados como capitais precisariam ser enfren-tados naquele momento: “[...] pela face política, o federa-lismo, a república e organização municipal; pela faceeconômica, o velho e temeroso problema da emancipa-ção dos escravos esta[va] substituído por três outros: oaproveitamento da força produtora do proletariado, a or-ganização do trabalho em geral, a boa distribuição da pro-priedade territorial; pelo lado social, a colonização estran-geira, grande naturalização, reforma do ensino teórico etécnico” (Romero, 1959:28); e pelo lado cultural – pode-se acrescentar – o programa de branqueamento, no qualera depositada a esperança de que um dia o Brasil pode-ria dar certo. Era nesse contexto e no interior desse pro-grama que as discussões a respeito do popular e o registrodas manifestações populares se realizavam com o intuitode, posteriormente, aproveitar os aspectos positivos, osprincipais elementos, os saberes de cada uma das culturas– naquele momento denominadas como raças – que for-mariam o que se poderia chamar de brasilidade. Num pe-ríodo posterior, a preocupação sobre os avanços da mo-dernidade alertou os folcloristas sobre a necessidade dacriação de um método de registro e de análise das tradi-ções populares, ou seja, a necessidade de transformar ofolclore em Ciência: ‘Folclore’.

O povo aparece, nesse sentido, como detentor de umsaber denominado saber tradicional, que guardaria as es-pecificidades nacionais, os elementos que compunham aidentidade nacional. Não se falava, porém, entre osfolcloristas da primeira e da segunda tendência sobre anecessidade de preservar, manter as condições materiaise ‘espirituais’ de existência do próprio povo, produtor doque eles denominavam tradicional. Mas o que interessavaa esses estudiosos era, antes de mais nada, o produto,mesmo desligado do contexto no qual havia sido criado edo sentido da sua criação. Contudo, as manifestações po-pulares são ‘elevadas’ ao nível de um saber, inferior tal-vez, mas um saber que merece estudo, investigação.

Os cepecistas, que também reivindicavam para si umadeterminada concepção de cultura popular – a única ver-dadeira –, estavam inseridos, como os folcloristas, em ummomento de grandes turbulências no cenário nacional. En-tretanto, o que motivava, envolvia e dava sentido a essastransformações e, conseqüentemente, à concepção de povoe de cultura popular criada pelos membros do CPC, era

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CULTURA POPULAR: ENTRE A TRADIÇÃO E A TRANSFORMAÇÃO

muito diferente do que envolvia os folcloristas do séculoXIX e de meados do século passado.

O Brasil, no momento da criação do CPC, era um paísem processo de modernização; no entanto, o capitalismojá estava constituído – ao contrário do contexto descritopor Romero. Era um momento bastante crítico não só comrelação ao âmbito econômico, mas também à esfera so-cial e à política. Para citar Carlos Estevam Martins, “aomesmo tempo em que havia um reconhecimento dos pro-blemas do país, vivia-se uma esperança, quase que funda-da numa certeza, de que o futuro ia ser melhor mediante aação e mobilização”3 (Barcellos, 1994:72).

Podemos observar nessa fala de Carlos Estevam umagrande diferença entre o contexto no qual movimentofolclorista e o movimento do CPC estavam inseridos.Enquanto os folcloristas viviam em um momento de trans-formações na conjuntura social, econômica e política vis-tas como inevitáveis, e a única possibilidade de salvar asmanifestações seria registrá-las o mais rápido possível, osartistas e intelectuais do CPC viviam em um momentohistórico não apenas nacional mas internacional – Revo-lução Cubana – no qual se acreditava que a mobilizaçãopolítica podia transformar e dar novos rumos – mais jus-tos, igualitários – à sociedade brasileira. Porém, para eles– baseados na teoria marxista – essa transformação só seriapossível se as classes subalternas, os trabalhadores, to-massem consciência do seu papel no processo revolucio-nário.

Portanto, da mesma forma que para os folcloristas, povoé a camada subalterna da sociedade . Mas, em vez de pos-suir um saber, para os cepecistas o povo é detentor de umpoder, uma força revolucionária que tem como missãotransformar a sociedade. Como se vê, para esses intelec-tuais o povo tem o compromisso de trazer o novo e paraisso, deve ser ‘desalienado’, por meio do que os cepecistasapontam como a verdadeira cultura popular: a revolucio-nária.

Ao colocar essas duas concepções de cultura popular– dos folcloristas e cepecistas – frente a frente, expõe-setambém a contradição tradição X transformação, muitopresente nos diversos embates travados sobre esse tema.Estudos mais recentes que abordam a questão da culturapopular apontam, entretanto, novas respostas para esseconfronto, afirmando que é preciso pensar em tradição etransformação como complementares entre si e nãoexcludentes. Pois o termo tradição não implica, necessa-

riamente, uma recusa à mudança, da mesma forma que amodernização não exige a extinção das tradições e, por-tanto, os grupos tradicionais não têm como destino ficarde fora da modernidade (Canclini, 1989:239).

NOTAS

E-mail da autora: [email protected]

1. Esta tendência tinha como principal representante Amadeu Amaral, autor deTradições populares (1948).

2. Trecho do Anteprojeto do Manifesto do CPC elaborado por Carlos EstevamMartins, primeiro presidente deste movimento.3. Este depoimento foi dado por Carlos Estevam Martins em uma entrevista rea-lizada pela pesquisadora Jalusa Barcellos (1994).

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