cultura negra como expressão de luta e vida

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DONA VILMA: Cultura Negra Como Expressão de Luta e Vida Maria Nilza da Silva Jairo Queiroz Pacheco ( Organizadores) Dona Vilma Cultura Negra Como Expressão de Luta e Vida

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DONA VILMA: Cultura Negra Como Expressão de Luta e VidaMaria Nilza da Silva

Jairo Queiroz Pacheco ( Organizadores)

Dona VilmaCultura Negra Como Expressão de Luta e Vida

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Algumas fotografias não estão datadas mas foram mantidas por ajudar a recompor a memória do Dona Vilma Santos de Oliveira.

Obra disponível em formato digital no sítio: http://www.uel.br/projetos/leafro/pages/publicacoes-da-equipe-leafro.php

Pesquisas iconográfica e hemerográfica: Mariana Panta e Tamara VieiraPreparação de textos: Mariana PantaRevisão ortográfica: Aluysio Fávaro (exceto texto de Bernardo Pellegrini revisado por Marco Pellegrini)Capa: Edinaldo de OliveiraImagem da capa: Kennedy Piau Ferreira (foto de Dona Vilma)

Programa UNIAFRO / MEC / SESU / SECADIConvênio MEC / FNDE 400105/2010Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEABLEAFRO – Laboratório de Cultura e Estudos Afro-BrasileirosCoordenação: Profa. Dra. Maria Nilza da SilvaDepartamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina

Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

D674 Dona Vilma : cultura negra como expressão de luta e vida / Maria Nilza da Silva e Jairo Queiroz Pacheco, organizadores. – Londrina : UEL, 2014.

192 p. : il.

Vários autores. Publicação disponível também em formato digital: http://www.uel.br/projetos/leafro/ ISBN 978-85-7846-275-8

1. Oliveira, Vilma Santos de, 1950-2013 – Biografia. 2. Mães-de-santo. 3. Mulheres na cultura popular. 4. Negros – Londrina (PR). 5. Candomblé – Londrina (PR). I. Universidade Estadual de Londrina. Laboratório de Cultura e Estudos Afro-Brasileiros. II. Silva, Maria Nilza da. III. Pacheco, Jairo Queiroz.

CDU 326(091)

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Sou uma pessoa comum, casada , quatro filhos, 59 anos, negra. Ativista dos movimentos negros, candomblecista, pobre, mas feliz com o pouco que tenho. Estou

sempre tentando aprender e compreender, procuro servir em tudo que posso. Sou simples, gosto do convencional. Trabalho muito, lutando pelo meu sustento, sem deixar

de usufruir das coisas boas que a vida me oferece e, às vezes, triste pelas coisas ruins que vejo e não consigo dar conta. Sou mais ou menos assim...

Vilma Santos de Oliveira1

1 https://www.blogger.com/profile/11674508017112094813. Acesso em 22 de junho de 2014.

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Sumário

PREFÁCIO ............................................................................................

APRESENTAÇÃO ................................................................................

EU E A YÁ, A YÁ E EU: NOSSA VIDA COM MUKUMBY ..........Bernardo Pellegrini

YÁ MUKUMBY: POSSIBILIDADES DE ARTICULAÇÕES ENTRE O SAGRADO, O POLÍTICO E O POÉTICO ....................Kennedy Piau Ferreira

MULHER, NEGRA, MÃE-DE-SANTO ...........................................Teresinha Bernardo

FRAGMENTOS DE UM POEMA PARA YÁ MUKUMBY ..........Acácio S. Almeida Santos

OS CRIMES RACIAIS E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO: UMA EXPERIÊNCIA CONCRETA DE COMBATE AO RACISMO ......................................................................................Paulo César Vieira Tavares

IMEDIATISMO VERSUS PRECISÃO: A COBERTURA DO ASSASSINATO DE YÁ MUKUMBY NA IMPRENSA ....................Guilherme Souza Costa

FOTOGRAFIAS ...................................................................................

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Fotografias

VILMA SANTOS DE OLIVEIRA – Yá Mukumby

Comunidade Negra .................................................................................A Conferência de Intelectuais da África e da diáspora - CIAD - Salvador (BA), 2006 ...............................................................................................“Em casa” ................................................................................................Religiosidade ...........................................................................................Música .....................................................................................................Cotidiano ...............................................................................................Prêmio Zumbi dos Palmares: Câmara Municipal de Londrina – 20/11/2002 ..............................................................................................Imprensa ..................................................................................................Homenagens in memoriam .......................................................................A última foto ...........................................................................................

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PREFÁCIO

“[...] Era um peixe pequeno, um peixinho, como o comprimento de meio dedo, com escamas prateadas e nadadeiras delicadas, branquiadas, espelhadas e

trêmulas. Um olho de peixe redondo e arregalado ao máximo mirou os dois por um instante como se sugerisse a Maia e Mati que todos nós, todos os seres

vivos sobre este planeta, pessoas e animais, aves, répteis, larvas e peixes, na realidade todos nós estamos bem próximos uns dos outros, apesar de todas as muitas diferenças entre nós: pois quase todos nós temos olhos para ver

formas, movimentos e cores, e quase todos nós ouvimos vozes e ecos, ou pelo menos sentimos a passagem da luz e da escuridão através da nossa pele. E

todos nós captamos e classificamos, sem parar, cheiros, gostos e sensações. Isso e mais: todos nós sem exceção nos assustamos as vezes e até mesmo ficamos

cansados, ou com fome, e cada um de nós gosta de coisas e detesta outras, que nos inspiram temor ou aversão. Além disso, todos nós sem exceção somos

sensíveis ao extremo. E todos nós, pessoas répteis insetos e peixes, todos nós dormimos e acordamos e de novo dormimos e acordamos, todos nós nos

empenhamos muito para que fique tudo bem para nós, não muito quente nem frio, todos nós sem exceção tentamos a maior parte do tempo nos preservar e nos guardar de tudo o que corta, morde e fura. Pois cada um de nós pode ser

amassado com facilidade. E todos nós, pássaro e minhoca, gato menino e lobo, todos nós esforçamos a maior parte do tempo em tomar o máximo cuidado

possível contra a dor e o perigo, e apesar disso nós arriscamos muito sempre que saímos para correr atrás de comida, atrás de uma brincadeira e também

atrás de aventuras emocionantes. E assim, disse Maia depois de refletir sobre esse pensamento, e assim no fundo é possível dizer que todos nós sem exceção

estamos no mesmo barco: não apenas todas as crianças, não apenas toda aldeia, não apenas todas as pessoas, mas todos os seres vivos. Todos nós. E ainda não

sei bem dizer se as plantas são um pouco nossos parentes distantes. (Amós Oz. De repente, nas profundezas do bosque. São Paulo:

Cia. Das Letras, 2007, p.45-47)

Acordei em um domingo ensolarado com a intenção de ir caminhar e tentar orar, pois tinha voltado de uma viagem de férias e

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havia encontrado um ente querido diagnosticado com câncer. Antes, abri o computador e o Facebook, mania atual de me conectar aos amigos logo que levanto. Eis que leio a trágica notícia do assassinato de três mulheres das quais eu tinha estado perto em algum momento de minha vida. Fiquei desnorteada, revoltada, o ódio e a falta de fé aumentou e me dominou. Como sempre faço nesses momentos, comecei a buscar referências literárias, e a me perguntar que livro poderia me consolar. Fui para o quarto em que estudo e fiquei olhando os livros na estante, me deparei com o livro de Amós Oz e reli-o com fúria. Então, acalmei-me, respirei nas profundezas do meu bosque e meditei o quanto essas mulheres, Vilma, Allial e Olívia representavam a luta épica das mulheres, negras, velhas, meninas... Uma morte de nós! “Todos nós sem exceção”, como medita Maia, a personagem de Amós Oz, “estamos no mesmo barco”.

Eu que havia acordado com a intenção de me religar a algo que desse sentido à vida, fui remexida com o sentido da morte... Não vi sentido, como não vejo ainda. Mas, lembrando de Dona Vilma e de sua sabedoria transcendental, meditei sobre o quanto ela entendia perfeitamente que todos nós somos feitos da mesma matéria, vivemos e navegamos no mesmo barco.

Ao ler as reflexões e depoimentos deste livro pude compreender novamente que o que pensei sobre Dona Vilma naquele domingo triste fazia sentido. Quando os leitores desta obra concluírem seus capítulos, que podem ser lidos da maneira e na ordem que desejarem, foi assim que fui fazendo, driblando um pouco minhas emoções, que voltaram fortes e misturadas, perceberão que Dona Vilma vivia essa plenitude com o os seres vivos e mortos; que ela acolhia verdadeiramente; que ela agregava.

O maior aprendizado que tive com ela foi observando sua luta e lendo este livro. Infelizmente eu não fui próxima e íntima da Mãe Vilma, mas a conhecia e me sentia próxima e identificada com o sentido de integração que ela tecia em suas relações; foi esta

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a possibilidade de viver junto. Ela superava qualquer preconceito de classes sociais, de etnia, de gênero, de raça, de cor, de gosto, de estilo, e de qualquer marcador e diferenciador econômico, político, social e cultural. Ela é amada e admirada porque seu respeito ao diferente não era um discurso ou pregação verbal, ela vivia isso. Recebia todos e todas em sua casa. Olívia, sua neta, era afilhada dos primos de meu companheiro, José Mário Tomal e Marli Tomal. Por isso, pude ver a Olívia desde bebê nos almoços, na casa da matriarca Tia Maria Tomal. Olívia, já adolescente, sentou-se ao meu lado, em um desses almoços, e perguntou se eu conhecia sua avó. Eu respondi: claro! Ela olhou-me bem nos olhos e diagnosticou: “parece que você está triste hoje, se precisar de conselhos, vá até nossa casa, minha avó adivinha tudo!” Senti muita vontade de ir falar com Dona Vilma, pois Olívia acertou eu andava com um pouco de depressão... Imaginei que Olívia seria uma excelente psicóloga ou uma excelente líder espiritual, assim como sua avó.

Estou muito honrada em ler este livro em primeira mão, agradecida e admirada pela coragem dos organizadores: Maria Nilza da Silva e Jairo Queiroz Pacheco; e dos autores! Antes de completar um ano da tragédia de perda, buscaram energia para essa homenagem e registro das marcas vivas de nossas mulheres, especialmente, da líder Dona Vilma. As fotos e os textos demonstram quão abrangente era a influência dessa mulher no movimento de reconhecimento da cultura afro-brasileira.

Lendo o texto de Bernardo Pellegrini, desloquei-me para o Bar Zumbi nos anos de 1980, dos queridos amigos da Pastoral da Juventude, Idalto José de Almeida e Flávio Conceição. Esse Bar foi um local de grande movimentação em torno das questões dos negros no Brasil e no mundo. Frequentá-lo era algo mágico. Os “Fragmentos de um poema para Ya Mukumby” de Acácio Almeida conectou-me, imediatamente, com o texto de Amós Oz, já mencionado. Observe-se a semelhança: “ Foi assim, conversando sobre a morte, que conheci

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Yá Mukumby. A luz que emanava iluminava as coisas e os seres.” O depoimento de Kennedy Piau Ferreira, a retomada de dados sobre as mulheres negras de Teresinha Bernardo, a análise de Guilherme Costa sobre as reportagens e a negligência sobre o tema da intolerância religiosa; o desrespeito à lei identificado no texto de Paulo Cesar Vieira Tavares, tudo isso recebi e repasso aos leitores como um presente e um ato de coragem dos autores. Coragem de exorcizar a dor e fazer o luto, à maneira como nos ensinou nossa líder Dona Vilma!

Paz e Bem! Axé!

Ileizi Luciana Fiorelli SilvaLondrina, inverno de 2014.

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APRESENTAÇÃO

Uma Amiga em Londrina

Uma mulher negra! O pensar em Dona Vilma traz-nos, num primeiro momento, o sentimento de tristeza pela sua ausência, pela forma trágica como a perdemos. Porém, ao mesmo tempo que nos vem a emoção capaz de não só dificultar a escrita de um texto sobre ela mas também de provocar tristeza e até mesmo sentimentos de revolta, somos impulsionados a aclamar sua vida. É num esforço para não perder a essência de sua vida que escrevemos, pois a consciência da sua grandeza e da sua humanidade que acolhia a todos, sem exceção, e da doação que caracterizou a sua vida nos dá força para lembrar os aspectos que marcaram a sua trajetória.

Aqueles que tiveram a oportunidade de conhecê-la compartilham o sentimento de agradecimento pela experiência de ter sentido a sua forte presença e o olhar que perscrutava o íntimo e ao mesmo tempo acolhia a todos e a todos transmitia o amor pela vida, em especial o amor pelos mais sofridos e humilhados. Dona Vilma, a Yá Mukumby, defensora da religião afro-brasileira, adepta do Candomblé, soube amar também os não-religiosos e respeitou profundamente aqueles que dela se aproximaram sem jamais tentar convencer alguém a tornar-se membro da sua religião e opção de fé.

Quase um ano após a tragédia, estamos ainda enlutados e nos recompondo do sofrimento causado pela trágica perda de uma pessoa que dedicou toda sua vida à construção de um mundo mais justo. É com o objetivo de tornar mais conhecida a personalidade de Dona Vilma e de preservar a sua memória entre os grandes, no panteão dos heróis da população negra e da sociedade brasileira, que oferecemos aos leitores algumas reflexões sobre a vida de Yá Mukumby.

O livro mostra o resultado das discussões e dos trabalhos apresentados no evento Semana da Consciência Negra realizado nos dias 12 e 13 de

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novembro de 2013 cujo tema foi: Yá Mukumby: a cultura como expressão de luta e de vida. Neste trabalho, preferimos destacar a sua vida, e por isso não focamos detalhes da tragédia que a vitimou juntamente com a sua mãe, Dona Allial e sua neta Olívia, informações que poderão ser encontradas nos jornais da época e em outros estudos. Este livro é uma homenagem à nossa querida amiga, mãe, mulher, cantora, cozinheira, lutadora, Yalorixá, palestrante, liderança, à cidadã de Jacarezinho, de Londrina e do mundo.

O texto de Bernardo Pellegrini apresenta a experiência de vida e de amizade compartilhada ao longo dos anos de convivência profunda e profícua. Ele assinala os múltiplos e ricos aspectos da vida de Dona Vilma em seu cotidiano mas também a liderança política dos diferentes movimentos dos quais participou: do negro, da mulher, da saúde, e de tantas outras lutas. Vilma Santos de Oliveira foi profundamente ligada à cultura brasileira em sua elaboração, manifestação e difusão. Cidadã honorária de Londrina, ela foi cidadã do mundo. Ao ler o texto de Pellegrini temos a oportunidade de conhecer não somente a grande trajetória da maior liderança popular que a cidade já teve, mas também a luta de um povo, o povo negro, que quer ser reconhecido como humano e digno de direitos como todos os cidadãos.

Kennedy Piau Ferreira ressalta a importância de Dona Vilma para a cultura da cidade, como produtora, organizadora e difusora da cultura negra e do povo discriminado e deixado à margem. Uma das principais personagens do projeto Quizomba: o samba e outros batuques, ela, com o seu sorriso característico e a sua possante voz embalou a todos no samba de roda, aquele samba que faz parte da memória do povo negro e que encantou e encanta a muitos. Durante horas, muitos dançavam e cantavam ao som da sua voz e de sua capacidade de envolver a todos independente da idade, cor, raça, religião ou classe social. Ela tinha a incrível capacidade de acolher os diferentes; incluídos ou excluídos eram todos bem-vindos! O texto de Piau, como é conhecido o autor, revela o fascínio de muitos pela figura forte e ao mesmo tempo tão humana e próxima, de Yá Mukumby.

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O texto de Teresinha Bernardo apresenta uma reflexão sobre a mulher negra e africana visando mostrar sua luta cotidiana e igualmente seu envolvimento com a religiosidade. Analisa ainda aspectos da participação das mulheres na formação da sociedade brasileira.

Acácio Almeida analisa o sentido da morte numa comunidade da Costa do Marfim, país do oeste africano. Mostra o sentido da morte na vida cotidiana e como a ausência do ente querido é assimilada. Analisa também os rituais ligados aos funerais e o papel do culto aos ancestrais naquela sociedade.

Cabe conferir o artigo do Promotor de Justiça Paulo Tavares que mostra o posicionamento da Promotoria de Londrina nas questões políticas referentes à sua atuação, destacando as atividades desenvolvidas no combate ao racismo. Apresenta, ainda, as iniciativas daquele órgão no que se refere ao caso de Dona Vilma, incluindo aquelas que possibilitaram a caracterização do crime como intolerância religiosa.

Por último, o trabalho de Guilherme Souza Costa analisa a repercussão, nos jornais locais, da tragédia que aconteceu no dia 3 de agosto de 2013 e impactou não somente a cidade de Londrina, mas todo o país. Costa mostra o imediatismo dos meios de comunicação em encontrar, de forma apressada e superficial, uma resposta para a tragédia, tentando diminuir a dimensão do fato.

Ao final temos uma seção com fotos que registram a trajetória de Dona Vilma, na qual se vislumbra a diversidade dos papéis sociais por ela desempenhados. As fotos foram recolhidas de diferentes fontes, em especial de pessoas amigas e das páginas sociais da internet. Nossa gratidão especial a todos os fotógrafos que gentilmente autorizaram a publicação das fotografias que registram a riqueza e a diversidade da vida e da luta de Dona Vilma: Alma Brasil, Andreas Hofbauer, Câmara Municipal de Londrina, Carllos Bozelli, Devanir Parra, Eduardo Félix, Guilherme Faraco, Jorge Correa, José Lorenzo, José Roberto Pieretti, LEAFRO/UEL, Leonardo Okuyama, Márcia Lopes, Mariana Panta, Milton Dória, NEAA/UEL, Neusa Aparecida Silva, Sandra Mara Aguilera e Gislene Oliveira Rodrigues, filha de Dona Vilma, que cedeu as fotos do álbum de família.

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Foram muitos os que participaram do evento que resultou neste livro. Cabe, então, um agradecimento a todos os que participaram na sua organização e realização: Margarida Campos, Ivair Augusto dos Santos, Carla Delgado, Acácio Almeida, Teresinha Bernardo, Fábio Lanza, Edgard de Abreu, Zulu Araújo, Kennedy Piau Ferreira, Bernardo Pellegrini, Paulo Tavares, Maria José de Rezende, Dejair Dionísio, Maria de Fátima Beraldo, Nikolas Pallisser, Gilberto Godoi, Mariana Panta, Larissa Diniz, Luciane Santos, Mônica Ribeiro, Tamara Vieira, Lusinete Santos, Juarez Barbosa dos Santos, Dirce Menguelli Sá, Cláudio Galdino, Jamile Baptista e Márcia Cacilda. Agradecimento especial a Alexsandro Eleotério de Souza, Guilherme Souza Costa e a Maria Eugênia de Almeida pela leitura e observações feitas ao texto.

Assim, homenagear uma figura tão cativante e multifacetada como Dona Vilma acabou resultando na junção de reflexões sobre sua trajetória e sobre os vários caminhos por ela trilhado, em companhia de inúmeros companheiros, incontáveis caminhantes que dela se lembram como mãe, colega, companheira ou sacerdotisa. Nesse sentido, a mais profunda homenagem que podemos lhe prestar talvez seja tomar suas bandeiras e tremulá-las o mais alto possível, da forma mais vibrante, pelas trilhas que a vida nos leva a percorrer.

OBRIGADA AMIGA!Maria Nilza da Silva

Jairo Queiroz Pacheco

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Eu E A YÁ, A YÁ E Eu: nossa vida com Mukumby

Bernardo Pellegrini1

Bom dia amigas e amigos, é um momento de alegria estar aqui e poder partilhar com todos vocês um pouco de minha longa amizade com nossa Vilma de Todos os Santos, quase três décadas de convívio criativo e fecundo, amizade de aprendizados, trocas, descobertas, deslumbramentos, camaradagem. A vida de Yá Mukumby é uma vida de luta cotidiana e permanente – e como jornalista e também como músico pude acompanhar muito de sua trajetória. Fui seu parceiro no fazer cultural e nos enfrentamentos da política, a política como pudemos praticar: como mediadora de transformações, de mudanças no pensar e no fazer uma sociedade melhor, uma comunidade aberta. Fui seu cúmplice, a cumplicidade nessa dimensão em que se misturam amizade e amor, conhecimento e trabalho.

Ao longo de quase 50 anos da história de Londrina, todas as ações empreendidas pelo movimento negro se conectam à história de vida de dona Vilma. Das manifestações contra o racismo desde os anos 60 à afirmação da beleza negra e da diversidade cultural nos anos 70 e 80, das ações afirmativas nos 90 à política de cotas conquistada quase meio século depois com seu apoio decisivo, todas essas ações se misturam com o cotidiano de mulher pobre, mulher negra, iracunda e doce, mãe e guerreira, capaz do afeto e da ira, mas nunca o ódio.

No enfrentamento diário contra o preconceito, o discurso hegemônico do patriarcado e a ideologia do “sucesso”, a arma de Mukumby foi a generosidade do terreiro solidário e os valores da cooperação; ao invés do conformismo e da obediência conveniente e conivente, ela se expôs aos desafios das tribunas e dos fóruns onde

1 Bernardo Pellegrini é jornalista, músico, autor de O Almanaque do Amor (Editora Casa Amarela, 1986). Foi secretário de Cultura de Londrina no período 2001 – 2004. O texto foi revisado por Marco Pellegrini.

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se fustiga o racismo e a intolerância e onde se erguem as políticas públicas, as conquistas coletivas. No axé dos mitos e no culto dos ancestrais, na alegria do canto e da dança e da troca, na capacidade rara de guiar e ser guiada, aceitar e recusar, no negaceio, na mandinga, mas também de peito aberto e no enfrentamento – foi aí que Mukumby buscou a energia e a determinação que fizeram dela a maior liderança do movimento negro do Paraná entre os homens e as mulheres de sua geração.

1Preto no branco, branco no preto

Meu primeiro encontro com Vilma foi em 1988, tempos

de redemocratização do País. Os anos 80 foram muito ricos e o movimento negro em Londrina vivia um momento intenso, aglutinado em torno do Zumbi Bar, mistura de botequim brasileiro com centro cultural onde se reunia a turma dos movimentos sociais, estudantes de esquerda, militantes políticos. Vilma era assídua nas rodas de samba do Zumbi.

Era o ano do Centenário da Abolição, o tema negritude mobilizava paixões como a gente (que tinha crescido sob um Estado policial) nunca tinha visto – o Brasil estava se repensando depois de muito tempo no monorcórdio da ditadura e da resistência à ditadura. No jornal, preparávamos um caderno especial sobre o movimento negro em Londrina, e numa matéria sobre a comida no candomblé entrevistamos a Vilma.

Ela nos mostrou o elo entre comida, escravidão e liberdade: os cultos ocultos no meio da mata nas noites da senzala, consentidos pelos senhores, eram uma forma de alimentar os escravos fugidos das fazendas, os quilombolas. Para o escravocrata, era a “negrada na macumba”, mas para o escravo fugido e com fome, o som dos atabaques

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e a luz das velas indicavam o lugar onde haveria comida depois que todos se fossem – a comida do santo. Isso hoje pode parecer mera curiosidade antropológica. Na época, era informação transformadora: os negros tinham história, tinham ciência, tinham conhecimentos. Cem anos depois, o Brasil continuava com dificuldades para aceitar os negros como iguais.

Nessa época dona Vilma já estava se tornando referência na cidade: jornalistas, pesquisadores, políticos, gente do teatro e da dança, estudiosos da religião e da cultura negras, todos a procuravam em sua casa simples e de portas abertas no Vale do Rubi. Mukumby transformou esse atributo pessoal num canal de expressão pública. A cidade, multicultural mas preconceituosa, aprendeu a ouvir sua voz.

Dona Vilma era cheia de novas informações: música, culinária, história do negro, o universo do candomblé com sua profunda imersão no humano. Curiosa, aprendia rápido e tinha paixão por distribuir o conhecimento. Dona Vilma estava em todas.

Na criação do Movimento União e Consciência Negra, que chacoalhou a cidade quando quis trocar o nome da rua Domingos Jorge Velho (matador de negros e índios) por rua Zumbi dos Palmares (negro livre do quilombo). Na fundação do Movimento de Cultura Afro-Brasileira (o MECAB) e na retaguarda da Semana Zumbi dos Palmares (que passou a inventariar e curar a produção dos artistas e temas negros no Paraná e suas conexões no Brasil), nas atividades de Associação Afro-Brasileira de Londrina (a AABRA). Fui seu par no Conselho Comunitário da UEL e acompanhei as articulações de seu grupo pela criação do Conselho Municipal da Comunidade Negra, onde atuou enquanto viveu.

Dona Vilma coreografou e ensaiou grupos de teatro nos festivais e fora deles: com a sua dança dos orixás foi sensação para o diretor Eugenio Barba quando ele e o seu Odin Theatret realizaram no FILO o ISTA, o encontro mundial do Teatro Antropológico. Dona Vilma levou a cultura negra para dentro do canto coral em Londrina – ela

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e o grupo Unicanto do maestro Tomal tinham um número lindo, um batuque vocal misturando as vozes educadas no canto e o canto espontâneo e profundo de Yá. Com esse espetáculo, o Unicanto viajou por diversas cidades do Nordeste. Mukumby amava as viagens, era fazer as malas e ela virava criança.

2Estação primeira

Dona Vilma ajudou a construir o carnaval de Londrina, primeira

grande expressão da cultura negra na cidade. A menina Vilma tinha dez anos quando assistiu à criação da nossa primeira escola de samba, a Unidos da Vila Nova, fundada em 1960. Mas sua paixão foi a Quilombo, ou Grêmio Recreativo Quilombo dos Palmares, surgida em 1984 – e que de alguma maneira politizou os temas dos enredos; nos anos 80 o carnaval estava nas mãos de uma nova geração de jovens lideranças negras. Nosso querido Joaquim Braga, o Braguinha, alma da Quilombo, sempre lembra: por um bom tempo a casa de Vilma no jardim Hedy foi a sede informal da escola.

A Quilombo vivia em ligação direta com a Mangueira, no Rio de Janeiro. Quem esteve aqui certa vez trazendo o apoio ao carnaval de Londrina foi ninguém menos que dona Zica, viúva de Cartola, fundador da Estação Primeira. Dona Zica veio para ficar em hotel confortável, convidada da Quilombo. Mas bastou passar a tarde com Mukumby num ensaio da escola e no final do dia já tinha mandado buscar as malas no hotel.

– Quero ficar na casa dessa nega aqui... – ela disse, sorridente, feliz, abraçada a dona Vilma. A amizade entre as duas durou enquanto Zica viveu. Vilma esteve algumas vezes hospedada em sua casa no Rio acompanhando os desfiles das escolas.

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Em 2008 subimos ao palco com Vilma para comemorar os seus 40 anos de santo (que eu chamei 40 Anos de Sacerdócio, para horror e sob protestos de um ex-seminarista amigo meu). Em 1992, na gravação de meu primeiro CD, Dinamite Pura, eu tinha convidado Vilma para cantar uma composição minha, Axé Xangô (“Xangô encheu sua caixa toráxica // Xangô soprô axé na galáxia”); guardo lembrança vívida da noite de gravação, Mukumby comovendo a todos com sua performance, uma saudação aos orixás falada em dialeto africano – além de tudo, era poliglota. Por essa época, todas as vezes que eu fazia show em Londrina ela aparecia pra dar uma canja – e arrasava sempre, tomava a cena, se revelava. Nossa amizade se fortaleceu.

Agora, no show Vilma de Todos os Santos ela lidava com seu próprio repertório (Pixinguinha, Donga, Caymmi, Ari Barroso, Paulo Cesar Pinheiro, Martinho da Vila, Silas de Oliveira, João Bosco, Ataulfo) tinha um grupo de músicos da pesada na retaguarda e uma entourage de lascar, um séquito, amigas e amigos que a travavam como rainha africana de cinema, com abanador, bandeja de fruta e tudo mais – como ela adorava aquilo! Vilma trocava de roupa quatro vezes durante o show. Era a mulher mais feliz do mundo. O Braga sempre aparecia – e quando subia ao palco o bicho pegava de verdade, o show ganhava a dimensão do rito. Nosso plano era montar um novo espetáculo executando exclusivamente o repertório da Clementina de Jesus, unir duas vozes profundas, dois momentos da negritude: o Brasil atlântico de Clementina, a litorina – e o Brasil caboclo da sertaneja Mukumby. Levamos “Vilma de Todos os Santos” oito ou nove vezes, em shows sempre lotados, sempre nos emocionando e emocionando muito as pessoas. O último foi no pátio do Museu de Arte, antiga rodoviária, em 20 de novembro de 2009, dia de Zumbi – e ela estava magnífica. Tem trechos deste show no youtube.

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3Ultraje a rigor

Outra coisa que tem no youtube são os depoimentos de Vilma

para Valrides Brevilheri, fã de Mukumby, amigo que veio de Curitiba a Londrina só pra filmar o show, na base da brodagem, como dizem os meninos do hip hop – porque nunca sobrava dinheiro para documentar nossos eventos. Nesses depoimentos Mukumby fala das oficinas de panificação promovidas pelo PRO-RANTI, o Projeto de Resgate, Tradições e Identidade que ela criou e coordenou promovendo oficinas de geração de renda para as mulheres da periferia, a maioria negras como ela. Vilma era muito ativa nos movimentos da economia solidária, promovendo e coordenando oficinas de fabricação de sabão, culinária e costura. Uma das oficinas mais impactantes foi com um grupo de mulheres de uma favela carioca que veio ensinar nossas oficineiras a produzir bonecas de crianças negras. Procure o vídeo e veja. É dona Vilma falando:

– Quando eu era criança não existiam bonecas negras. Não tinha negras no teatrinho na escola, não tinha figura de negros nos livros, não havia santos negros nas igrejas quando a gente ia na missa. As meninas e os meninos nos chamavam de macaquinha, tição, coisa ruim. A gente crescia se sentindo inferior. Só quem viveu essa humilhação sabe como é importante oferecer novas referências para nossas crianças, cuidar da sua autoestima.

Desde 1990 Vilma vinha ampliando a sua militância e participando de encontros nacionais da luta negra, como a reunião do Centro Nacional de Africanidade e Resistência (CENARAB), em Floripa – ou o primeiro Encontro de Entidades Negras (ENEM), no Rio, em 91. A gente se divertia ouvindo as suas histórias de viagens, como num encontro em que um grupo propôs eliminar o sacrifício de animais nos ritos do candomblé – uma espécie de macumba politicamente correta para não escandalizar a audiência branca. Vilma pedia a palavra:

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– Isso é um ultraje!!!Nunca ví Mukumby cultivar nenhum tipo de condescendência

com certo jogo político de aparências e salamaleques. Quando era convidada para uma palestra, conferência, ato oficial, sempre começava a conversa assim:

– Boa noite. Meu nome é Vilma Oliveira dos Santos e eu sou macumbeira...

Por aquela época o movimento negro brasileiro colocou os terreiros de candomblé no centro das discussões sobre os espaços de resistência cultural, e Vilma estava em seu ambiente: desde o começo ela pensava as casas de santo como centros de cultura negra. Agora, nos anos 2000, com Lula presidente, Nedson prefeito e Lygia Puppato reitora, todos, como Vilma, petistas fundadores e com origem nos movimentos sociais. Agora ela estava juntando a fome com a vontade de comer.

4Iluminai os terreiros

A maior parte das oficinas articuladas e promovidas aconteciam

no Ilê Ashé Ogum Mêge, que chamávamos “a casinha”, o terreiro que Mukumby começou a erguer ainda nos anos 70, depois de fazer o santo. No começo, o ilê funcionava num quartinho na casa da família no Rubi. Depois, com as economias dela e da mãe, dona Allial, comprou um terreno pra lá do Novo Bandeirantes, já em Cambé, na divisa. Foi construindo aos poucos, o trabalho pesado sempre com o Flávio, o marido de Vilma, que chamamos Prefeito – mas sempre envolvendo mais e mais pessoas com o projeto, aquela mágica da cooperação como processo.

O Ilê Ashé Ogum Mêge é na aparência um típico terreiro do século XX brasileiro, o século da urbanização acelerada: uma casa

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pobre, tijolos de seis furos à vista, quase sempre sem pintura, quase sempre nos bairros de periferia, que é onde vivem também os seus frequentadores. Os terreiros do candomblé já nasceram assim, logo após a Abolição principalmente, quando se precisava recolher e apoiar crianças e velhos despejados como farrapos quando não serviam mais como mercadorias; foi como espaço de culto mas também como espaço de proteção que eles se firmaram, misto de templos e irmandades onde se eleva a autoestima do povo negro, onde o convidado se lambuza na fartura da comida que se sacrifica ao santo.

Mas, com Vilma, a “casinha” tinha alguma coisa de contemporânea, uma dimensão em que o sagrado e o cotidiano mutuam. Aquele espaço se tornou também um centro de estudos, local de reuniões, salão de oficinas, sala de ensaios para as danças e cantos e a capoeiragem.

E não só para seus frequentadores originais em busca da ajuda dos orixás para as questões da vida ordinária, pessoas em busca de equilíbrio através dos banhos de purificação, o contato com as ervas, o movimento do rito ou a boa palavra da mãe que joga os búzios e percorre com você (de mãos dadas, de olho no futuro) os caminhos que se abrem e os que se fecham. Esse embrião de terreiro utópico movimentava também uma legião de pessoas de diferentes idades e várias origens sociais que encontraram nesta usina de saberes uma chance de expressão, um ponto na rede da economia criativa, um ambiente para a reunião de ideias e de estratégias para ações de intervenção no senso comum, um espaço de permanente reflexão sobre a cultura – os modos de vida – e a atuação política através da cultura (“A revolução estará comprometida se acontecer pelas vias políticas”, já havia alertado nosso bom Proudhon, o pensador anarquista).

Fonte de celebração permanente do diverso, do transverso, do reverso, do avesso; o reconhecimento, no afeto, da legitimidade do outro, do diferente. A yalorishá Mukumby Alagângue movimentava essa sabedoria de saberes imemoriais do candomblé passo a passo com sua dança de atitudes, de interação com a vida pública: essa era a sua coreografia singular, sua contribuição arrojada, consistente, original.

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5Zulu dos Palmares

E acho que foi isso que conquistou o Zulu Araújo quando ele

veio pela primeira vez à Londrina como nosso convidado para a 1ª Conferência Municipal de Cultura. Estávamos acabando de construir e implantar o PROMIC, o Programa de Incentivo à Cultura londrinense reconhecido pelo Observatório de Políticas Culturais de Montevideo, da UNESCO, como modelo de gestão cultural. O Ministério da Cultura tinha interesse em tudo o que acontecia por aqui: Londrina era a primeira cidade brasileira a constituir um sistema municipal de cultura como política pública – e a coisa toda estava funcionando pra valer. Zulu, amigo do ministro Gilberto Gil, tinha na bagagem sua experiência como fundador e diretor do Olodum, em Salvador – momento luminoso na história do Brasil. Agora Zulu presidia a Fundação Palmares num momento de muita mobilização e energia, com avanços no reconhecimento da igualdade racial, na regularização de títulos dos quilombos remanescentes e o principal: na luta para levar a juventude afrodescendente para dentro das universidades.

Como quase todas as grandes lideranças negras do Brasil, Zulu tinha vasta vivência no movimento negro onde ele sempre foi melhor mapeado: Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo – e se surpreendeu com a organização e a história do movimento negro de Londrina. Não imaginava que encontraria no sul do País, numa cidade de médio porte, um movimento tão presente. E menos ainda que iria encontrar uma mãe de santo como aquela – porreta. Zulu um dia nos contou:

– Eu cresci naquele universo das yás baianas, e sempre senti falta de mães de santo mais atuantes no debate racial, no debate de gênero, mais presentes na vida política. Quando conheci Yá Mukumby me surpreendi com a naturalidade com que ela se movimentava cuidando do sagrado e do social, apontando caminhos para uma nova geração de mães de santo.

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Em 2004 a Fundação Palmares trouxe para Londrina os seminários que promovia para debater o sistema de cotas. Mukumby estava no centro da articulação do movimento negro com a Fundação, o Conselho Universitário da UEL e a Secretaria de Cultura. O sistema de cotas seria implantado logo depois e provocou debates acalorados.

Foi um período de muitas conquistas – um momento de sinergia. Dê uma olhada no youtube no vídeo Tudo o que você gostaria de saber sobre a macumba e nunca teve coragem de perguntar: dona Vilma surge radiante, andando de ônibus, cuidando da casa – uma anti-celebridade – respondendo às perguntas das crianças sobre a religião dos negros escravos. Por trabalhos como esse, levado para as crianças das escolas da rede de ensino, em 2009 Mukumby foi reconhecida como mestre em cultura popular pelo governo brasileiro. Mukumby, Mestre Griô, ela e outros 600 educadores populares espalhados entre os milhões de brasileiros.

Dona Vilma nunca parou de procurar saber, nunca parou de crescer. E de tudo o que Mukumby viveu nesses fecundos anos 2000 o mais marcante, do ponto de vista de sua realização pessoal, acredito que tenha sido a viagem que fez à Bahia em 2006 como participante da Conferência Internacional de Intelectuais da África e da Diáspora, que reuniu pensadores – os bambas – de todo o mundo em Salvador. Lá, ao lado do ministro Gil, foi recebida no Ilê Axé Opô Afonja, o mais tradicional do País, trocou figurinhas com Luís Melodia, tirou foto com Antonio Pitanga e quando um senhor de barbas brancas lhe pediu a benção, ela não acreditou: era Abdias do Nascimento. Mas a glória mesmo foi quando subiu ao palco para cantar no show de encerramento do encontro, levada pelas mãos de Roberto Mendes, ídolo da música baiana. Estavam no território sagrado do Pelourinho.

Dias depois, de volta a Londrina, toca o telefone na casa do Rubi, chamam a Vilma. Era o Gil querendo conversar com ela. É como diz o Zulu:

– Toca a zabumba que a terra é nossa!

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6Terra do branco mulato, terra do negro doutor

Não só a distância de 2328 quilômetros aproximam Salvador e Londrina, o Calçadão e o Pelourinho. Existe em nossa história comum um personagem muito caro ao movimento negro em Londrina. Quem nos conduz por essa história é Jorge Amado, ogã do Ilê Axé Opô Afonja, território de Stela de Oxossi, Mãe Ondina, Mãe Senhora.

No seu romance Tenda dos Milagres, escrito em 1969, Jorge Amado refaz a trajetória de Pedro Archanjo, intelectual do povo, livre docente da “Universidade do Taboão”, que foi como Jorge chamou aquele desarrazoado de saberes espalhados pelas ladeiras do Pelourinho, conhecimento sedimentado em séculos de fusões e mixagens que chamamos miscigenação: a música, os cantos, os afoxés, as casas de santo, os riscadores de milagres, o exotismo das iguarias, a plasticidade dos corpos, a originalidade da fala – tudo aquilo que constituiu no Brasil um povo novo, na definição criada por Darcy Ribeiro. Pedro Archanjo escreve livros no sistema “Às Próprias Custas S.A.” para saudar este parto da civilização, livros que celebram a beleza, a sabedoria, o sabor do país mestiço.

Estamos na virada da década de 1920 e a policia trava uma guerra racista contra as manifestações desse Brasil nascente – repressão cruel, ignomínia. E na Faculdade de Medicina da Bahia, primeira escola médica do Brasil (criada por Dom João VI quando atracou em Salvador fugindo de Napoleão em 1808) os guardiões das “verdades científicas”, os sábios doutores libidinam com as teorias de Comte Gobineau, ideólogo do racismo, autor do tristemente célebre “Debate Sobre a Desigualdade das Raças”, o livro de cabeceira tanto do Imperador Dom Pedro II como dos generais de Hitler, arianistas. Influenciado por Gobineau, o doutor Nilo Argolo, catedrático de Medicina Legal da Faculdade escreve “Degenerescência Psíquica e Mental dos Povos Mestiços – o Exemplo da Bahia”. E nas suas aulas da Faculdade ele

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doutrinava seus alunos: “os mestiços são uma sub-raça incapaz, fator do nosso atraso, de nossa inferioridade”. Era o que Gobineau vivia dizendo para Pedro II nas conversas que mantinham nos jardins do Palácio em São Cristovão – antes que o nosso último Imperador decidisse importar trabalhadores europeus e iniciasse experiências migratórias para “melhorar a raça”.

O embate entre Archanjo, bedel da faculdade, e o catedrático Argolo de fato existiu, movimentando os corredores da escola e contrapondo intelectuais baianos por aquela época. As teorias racistas só seriam desmascaradas como verdades com o flagelo do nazismo e a construção democrática – mas eram elas que impregnavam o ambiente da Faculdade. Archanjo e Argolo de fato existiram nas figuras que inspiraram Jorge Amado: o mulato Manoel Querino – autor de O colono preto como fator da civilização brasileira (1918) e A arte culinária na Bahia (1928), o primeiro livro sobre culinária afro-brasileira de que se tem noticia – e o médico Nina Rodrigues com suas teorias lombrosianas, conhecidas e estudadas.

O incrível da história – e agora estamos voltando a Londrina – é que entre os 95 formandos pela Faculdade de Medicina da Bahia na turma de 1933 havia uma única mulher e – pasmem! – um negro: Clímaco Justiniano da Silva, o doutor Clímaco. Ouviu falar?

7A menina mora ao lado

Quase um século depois, ainda hoje no Brasil a medicina é uma

profissão de brancos: apenas 1,5 por cento dos médicos brasileiros se declaram negros, segundo o IBGE. É só fazer as contas: numa classe de 100 alunos, não chega a dois o número de estudantes negros. Há muita luta e muito esforço para que a política de cotas um dia mude essa desoladora comprovação de nossa “democracia racial”. Agora,

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imagine o doutor Clímaco vestindo a beca, pegando o canudo, se despedindo de sua turma da faculdade – os seus 93 colegas brancos e de sua única colega branca mulher – e indo clinicar. Era 1933. Em 1938 ele estaria em Londrina.

Clímaco era neto de escravos e nasceu em Santo Amaro da Purificação em 1908: pelas contas de Jorge Amado, nessa época Pedro Archanjo contava então 40 anos de idade, e estaria vivo ainda quando Clímaco se formou em 33. Como os brasileiros pobres na época só tinham dois caminhos para estudar (o Exército ou a Igreja), foi fazer seminário em Salvador – saiu bacharel em Ciências e Letras e custeou o preparatório para a faculdade dando aulas no ginásio. Formado, ficou sabendo que no sertão do Paraná uma companhia inglesa estava facilitando a vida de médicos que quisessem se aventurar: havia uma epidemia de febre amarela e o surto de más notícias ameaçava atrapalhar a venda dos lotes de terra e a chegada de novos colonos pra tocar café, que é quem estava pagando todas as contas. O médico negro de Salvador embarcou na aventura.

Justiniano Clímaco da Silva viveu até os 93 anos, em 2000, e se tornaria um tipo de “vulto histórico” tão original como a cidade que ele ajudou a construir: o mítico Doutor Preto. Teve um papel estupendo na vida de Londrina, como muitos dos médicos que chegaram nos primeiros anos e construíram uma história de gente abnegada. Clímaco chegou em 1938 e dez anos depois já era eleito o primeiro deputado estadual por Londrina; em Curitiba, morava numa pensão e impressionava na Assembleia Legislativa falando grego, latim, francês, alemão. Era o tipo de coisa que mexia com a autoestima de todo o mundo. Era colega de quarto de pensão de Milton Menezes, antes de os dois se tornarem vizinhos de suas próprias casas e Menezes se tornar prefeito – Milton Menezes era advogado formado no Largo São Francisco, como Castro Alves, o poeta de Salvador. O doutor Clímaco era um herói.

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Popular como ele, só o Cypriano, que tinha chegado a Londrina em 36, dois anos antes de Clímaco. Era o motorista particular de Mister Thomas, ou Mister Arthur H. Miller Thomas, o manda chuva inglês da Companhia de Terras que mandava em tudo por aqui. Se chamava Cypriano Manoel, mas o povo chamava Manoel Cypriano. Vinha de Campinas, com aquele pendor que o povo negro do interior de São Paulo tinha de fazer seus grêmios recreativos, os “quadrados”, um terreirão de kizumba adaptado à nova vida urbana dos ex-escravos paulistas.

Foi dele a iniciativa de abrir a picada do movimento negro: promover eventos, criar associação, montar clube, existir na rede social. Seu braço direito era outro herói da resistência, até hoje na luta: o advogado Oscar Nascimento, que chegou a Londrina em 1948, com 20 anos incompletos, mas já envolvido até a alma com a Associação Princesa Isabel, organizada por Cypriano em 1952. A Associação foi uma escola de articulação política: promoveu concursos de beleza negra, organizou desfile contra o racismo, ganhou terreno da prefeitura para construir sede: virou o “Quadrado”, que era como a cidade chamava a Associação de Recreação Operária de Londrina, AROL – para contrapor ao clube de elite branca, o Country Club que o povo chamava “Redondo”.

O “Redondo” ficava na rua Sergipe, que começava no Country e terminava na Delegacia de Polícia, como notou algum engraçadinho na época. O “Quadrado” ficava na Vila Nova, na rua Araguaia, que era a Saul Elkind daquele tempo.

Para muitos o “Quadrado” foi o grande clube popular de Londrina de todos os tempos. Tinha festa direto (baile, carnaval, festa junina), dali saíram as três primeiras escolas de samba de Londrina, as mulheres mais lindas, vestidas lindamente (os primeiros bailes exigiam traje a rigor), gente bonita pra todo o lado. A Vila Nova tinha uma alma popular e o nascente movimento negro de Londrina fazia a lição de casa em relação à politica institucional, a luta pelos direitos civis: o

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movimento ocupava espaço. Manoel Cypriano e Oscar Nascimento tinham muitos companheiros ajudando na organização, na coleta de fundos, muitos negros já estavam atuando como profissionais liberais, empresários de pequenos negócios. Alguns estavam se dando bem na corretagem de terras, como Leodoro Almeida de Oliveira. No começo era assim: alemão comprava terra de alemão, japonês de japonês, italiano de italiano – depois foi misturando tudo e agora o mineiro Leodoro estava indo muito bem. Mas neste 1951 ele vive um drama em casa.

Sua irmã Allial, que veio com os pais de Minas para Jacarezinho trabalhar na colheita de cana, por que lá tinha usina, mal acabou de casar, perdeu o marido Antonio dos Santos, de 22 anos, que havia conhecido e namorado trabalhando no canavial. Situação difícil. Antonio deixou Allial viúva com uma filha de 15 dias no colo e, pior ainda, a mãe dona Georgina, paralítica, presa na cadeira de rodas. Leodoro foi a salvação: trouxe as três mulheres para Londrina, instalou numa casinha que ele tinha comprado na Vila Nova, na rua Jaú, perto da Araguaia. Comprou uma máquina de costura para a irmã.

A sobrinha cresceu ali, sem pai, mas com uma mãe coragem e o tio de olho. A menina tinha seis anos quando foi criada a AROL. Tinha dez anos quando a AROL levou para as ruas a primeira escola de samba da cidade, a Unidos da Vila Nova, que ensaiava ali na rua, em frente à sede da Associação, uma casa de tábuas na esquina da Jaú com Araguaia. Viu o Quadrado encher de gente nos finais de semana de festa, viu festa junina com sanfona e zabumba. Viu homens e mulheres negros orgulhosos organizando o desfile contra o racismo em plena avenida Paraná no 13 de Maio de 1960. Cresceu vendo mulheres negras de bem com sua beleza negra, com sua elegância colorida, mulheres altivas, na gala. A menina sabia tudo o que acontecia na AROL, ela morava ao lado. Era a Vilma.

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8Levanta sacode a poeira

Logo dona Allial conseguiria emprego de zeladora na Faculdade

de Direito, instalada então no prédio onde funciona o colégio Hugo Simas. Com suas economias, começou construir um cômodo do outro lado da cidade. Vilma viveu 18 anos na Vila Nova. Ainda era vizinha da AROL e tinha 15 anos quando conheceu o candomblé, e foi o destino que a levou ao primeiro terreiro – quantos terreiros de macumba haveria em Londrina, escondidos, então?

Dona Allial, a avô Georgina, Leodoro, a família toda era católica. Vilma fora batizada católica apostólica, adorava a missa, era fascinada pelos santos, mas cadê os santos negros? Aos 10, 12 anos Vilma sofreu convulsões, diagnosticadas como epilepsia. Os remédios não resolveram, dona Allial levou na umbanda. Não resolveu, levou no candomblé, e ajudou: a menina já mocinha se acalmou; ia nos trabalhos, gostou daquele mundo, das histórias africanas, da cantoria, das roupas, foi ficando, as crises sumiram – alí os santos eram negros. Em 1976, já casada com Flávio (na igreja, de véu e grinalda) ela era sagrada mãe de santo aos 27 anos. Nascia a yalorixá Mukumby Alagângue, filha de Ogum, santo guerreiro, herdeira da tradição da Nação Angola. Nascia Mãe Mukumby.

Vilma teve uma grande contrariedade no final da adolescência. Nessa época o movimento dos estudantes secundaristas era muito forte na área cultural, havia ainda muita liberdade na agitação dos festivais que a turma das faculdades organizava, me lembro que a meninada da União Londrinense de Estudantes Secundaristas (ULES) aparecia nos programas da TV Coroados (e era plena Ditadura). Mas na política já tinha gente sumindo e o tio de Vilma sabia disso. Leodoro proibiu que ela se envolvesse naquela confusão, era perigoso. Vilma batia o pé, mas não teve jeito.

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Acho que ficou um desejo irrealizado latejando ali: Vilma já intuía que o caminho para a igualdade era o saber, a apropriação e a instrumentalização do conhecimento, a escola, a profissão, a igualdade de fato. Nem existia UEL ainda, dona Allial trabalhando no prédio do Hugo Simas, que era onde funcionavam as faculdades, Vilma ia com ela, via aquela efervescência da juventude branca – queria participar, claro. Mas o tio estava errado?

Meu avô chegou em Londrina em 1941. Carpinteiro bom de catira e de conversa, José Pellegrini viu que o que dava dinheiro por aqui era vender fazenda; deixou os filhos cuidando das contas da casa e foi fazer a sua pequena América pelas estradas da terra vermelha. O financiamento da Caixa Econômica Federal para ele comprar a sua primeira casa de madeira quem conseguiu foi o doutor Clímaco, quando era deputado.

Agora, em 1968, o nono Pellegrini estava morando numa casa de alvenaria (“de material”) na rua Pará, bem pertinho da sede da ULES, na Duque de Caxias. Em 68 eu tinha 10 anos, meu irmão Clério e meu primo Domingos “fazendo” o movimento estudantil, eu adorava estar no meio deles. Nas férias eu não saia da ULES, e lembro: não havia negros no movimento. Mas o grupo de teatro da meninada que estava montando “Pic Nic no Front”, que tratava da guerra civil espanhola, chamava-se Grupo Senzala – e um nome, às vezes, explica muita coisa.

9Upa neguinho

Na época as esquerdas tinham só uma razão de ser: acabar com a ditadura militar; as outras ditaduras teriam que entrar na fila e esperar a vez. Por isso o pessoal via a luta dos negros como parte de uma luta geral, eram oprimidos logo eram aliados contra os opressores – como as outras “minorias”.

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O grupo da ULES terminou o colégio, foi para a Universidade, conquistou o DCE, virou o grupo Poeira, que deu grandes contribuições ao debate, à vida cultural e a formação de muitas lideranças em Londrina. Lembro que em 1974 trouxemos Clóvis Moura para a Semana de Atualidades. Ele veio fazer palestra e lançar Rebeliões da Senzala, seu clássico sobre a resistência dos quilombos, uma ousadia que o sociólogo negro jogava na cara da academia branca: os quilombolas eram tratados como o que de fato eram, guerreiros rebelados – e não os pretos fugidos, os marginais da versão oficial, que é como eram estudados até então.

Nosso grupo de teatro recebeu Clóvis Moura e abriu sua palestra com trechos de “Arena conta Zumbi”, o clássico do Teatro de Arena de São Paulo, musicado por Edu Lobo. Alex de Almeida e sua esposa Íris eram integrantes do Arena e quando mudaram para Londrina trouxeram o disco com a trilha do espetáculo. Protestávamos contra a escravidão, denunciávamos o racismo, abrigávamos nossos irmãos na nossa arca dos oprimidos – e cantávamos Upa Neguinho, que saiu da peça e virou sucesso nacional com Elias Regina. Mas os negros não estavam lá. Se não havia negros na Universidade, é claro: não haveria negros ali.

O movimento negro que surgiria com o fim da Ditadura eu conheci no nascedouro, coisa do acaso. Em 1978 eu era repórter da Folha de S. Paulo. Plínio Marcos era cronista, vinha todo o dia à redação escrever a crônica, sentava na mesa ao meu lado. Passava horas comentando as noticias, contando piadas, lembrando histórias – até cair num mutismo total e despejar o texto de uma só vez numa velha Olivetti Studio. Depois convidava pro cafezinho (grátis, na redação mesmo). Um dia ele falou pra roda: Abdias do Nascimento voltou do exilio, vai estar hoje numa manifestação no Municipal, vemos ver? Fui com a turma.

Nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo Abdias do Nascimento lançava o movimento nacional de consciência negra, que

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se multiplicaria depois em diversas regiões do País. Estava voltando de longa temporada de exilio nos Estados Unidos, tinha em mente os resultados das políticas afirmativas, conheceu o movimento negro norte americano, o Blackpower, referência que a esquerda branca tinha dificuldade de assimilar. Abdias vestia uma bata africana, falava como pastor no púlpito. Incomodou o Plínio ao meu lado. Ele disse “meshtre” – Plínio Marcos, com aquele sotaque de santista mastigando os esseagá começava assim a conversa quando ia dar um bote. Ele disse:

– Mas meshtre, preto pobre não é igual a branco pobre?Abdias encolerizou:– Não, senhor Plinio Marcos. Não. E sabe por quê? Porque se

lá em Santos, lá no porto de Santos, se um preto pobre e um branco pobre forem pedir emprego, sabe para quem eles vão dar a vaga? Para o branco pobre... O Brasil é um país racista.

Soou como novidade.

10Multiversidade

Informação não é conhecimento, conhecimento não é sabedoria.Vilma não viveu a universidade, inacessível para ela como para

tantas outras mulheres e homens negros de sua geração. Mas acho que a vida fez de Vilma uma fonte de saber – e de uma sabedoria que não se verbaliza, que transcende. Mukumby legatária, aluna de sua própria multiversidade.

Fico pensando nos atletas negros quenianos que são hoje os maiores fundistas do mundo, correm descalços e nunca precisam ir ao ortopedista, ao contrário de nós com nossos tênis com amortecedor, nossos nikes, nossos adidas. Fico pensando naquela negra esquálida da foto da Biafra amamentando o filho bebê no colo e o filhote está

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sugando o leite mais sofisticado da natureza – em 100 anos de pesquisas científicas a suissa Nestlé não conseguiu oferecer até o momento nada que se compare.

Fico pensando no que li certa vez o que escreveu Luiz Mott sobre os terreiros de Salvador: quando joga os búzios, uma mãe ou pai de santo, babalorixá ou yalorixá que conheça e respeite os fundamentos da religião, está lidando com a combinação de aproximadamente seis mil tipos humanos do universo do candomblé, a multidão de Olorum. Os computadores da Apple ainda estão nos devendo essa.

Muita gente acha que o maior perigo do mundo é o estado absolutista que George Orwell criou em 1984 – a vida das pessoas controlada pelo “Big Brother”. Eu não, me assusta mais o “Big Science” da compositora Laurie Anderson. A GRANDE CIÊNCIA. Dá medo.

Nestes tempos em que não se escravizam mais os corpos, se escravizam os desejos – penso que as tais verdades científicas continuam fazendo parte do serviço sujo quando justificam a competição humana como verdade, quando dizem que a vida é assim: tem ganhadores e perdedores. Pior: a superioridade é definida pela hereditariedade, pela genética (por um código!). Já não vimos esse filme?

Quando nasceu meu filho Antonio em 2007 batizamos no candomblé, ele e nossa sobrinha Marina – o ilê todo branco, Vilma e Scarlet lindas, filmei com meu celular (“O Mundo de Antonio” pode ser visto no youtube). Antonio nasceu com Síndrome de Down. Na primeira consulta com Zan Mustacchi, geneticista, o grande especialista em SD do País, perguntei o papel da genética na vida: 25 por cento, ele disse, tinha acabado de voltar de um congresso sobre o assunto. Era época do sequenciamento do DNA, os cientistas vendendo que iam desvendar o tal código genético; descobriram coisas maravilhosas, mas não desvendaram nada, aconteceu o que sempre acontece na ciência: um mundo novo de perguntas se abriu, Veja o que escreveu sobre o

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Projeto Genoma o doutor Helion Póvoa, o médico que introduziu a medicina ortomolecular no Brasil:

– Nada é tão simples quanto parecia. Para que nossas proteínas sejam formadas os genes são influenciados por outras proteínas e hormônios e ainda por alterações nutricionais e ambientais.

Quer dizer: comida, bebida, ambiente. Quer dizer: vida.O biólogo chileno Humberto Maturana, formulador da

“autopoiesis” – e da chamada “Escola de Santiago”, onde se desenvolvem hoje algumas das mais inquietantes formulações sobre a vida – é a grande referência mundial sobre o tema neste momento. Em 2008 eu andava louco pra saber um pouco mais sobre cognição, o Maturana trazendo a sua Biologia Cultural ao Brasil, fui fazer seminário de duas semanas com ele. Perguntei outra vez: e a genética na vida, quanto?

- Dois por cento, ele disse na minha frente, olhando prá mim, olho no olho.

E, curioso: 2%, a mesma diferença no número de genes que o ser humano possui em relação ao chipanzé.

Então, se não é a genética, o que é?A cultura, os modos de vida. Leia O Habitar Humano – Ensaios de

Biologia Cultural. Tá tudo lá.Bingo!

11Serenata do adeus

Antes de terminar, só mais um pouquinho de informação para

o legado dessa nossa imaginária “Multiversidade Yá Mukumby de Londrina”. Gregory Bateson, o cara que formulou a Cibernética, biólogo também, estudou a esquizofrenia não como disfunção química apenas, mas como uma doença decorrente de problemas na comunicação dos afetos na vida familiar – as chantagens emocionais,

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para ser simples. Aprendi com Roberto Freire e a sua Somaterapia: a pessoa chantageada sempre sofre por suas escolhas, porque sofre se não faz as coisas que quer fazer, e sofre se faz o que quer fazer mas com isso faz outras pessoas sofrerem – essa é a escravidão a que muitos estão submetidos.

Conto isso porque penso nos saberes humanos protegidos por modos de vida tradicionais, a nossa cultura popular do Brasil – e me espanta a escalada na desapropriação desses saberes, a desqualificação permanente do saber do povo como coisa de um “Brasil atrasado”, “coisa dos negros”, “coisa dos índios”, “coisas de imigrantes pobres”, coisa de um “Brasil arcaico” – Brasil moderno é o deles, o do mercado.

Penso nos ritos do candomblé e acho que é uma lição o modo como o povo do santo vive a intensidade de seus estados emocionais, seus surtos, seus transes. Eu acredito: em muitos aspectos o terreiro está muito adiante de nós na escala da civilização.

E o universo das plantas, então?Os sábios descobriram: existem 100 trilhões de micróbios

abrigados em nosso intestino, três vezes mais do que todas as células do corpo humano. São mais de mil tipos de espécies de bactérias. Descobriram também: o intestino tem três vezes mais tecido nervoso do que o cérebro. Pra quê? Pra manter as coisas por lá funcionando, certamente. E são as plantas, as ervas, alimentos que a humanidade vem utilizando há milênios que promovem as interações nesse mundo indevassado.

Como eu posso ler sobre isso sem lembrar a Vilma recolhendo as ervas que ela plantava ali no vale do Rubi, em frente à sua casa, e dizendo: isso é bom pra isso, isso é bom pra aquilo. Esses saberes a gente não deve deixar morrer.

Eu estou sempre pensando na Vilma, como amiga e como mestra.Alguém já disse que quando morrem os poetas, não são só os

poetas que morrem: são mundos que morrem com eles. Quando Mukumby morreu, morreu um mundo. Agenor Evangelista foi quem melhor resumiu:

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– Quebraram a nossas pernas.Em 2004 Londrina ganhou o primeiro livro escrito sobre os

negros na história da cidade, “Presença Negra em Londrina – História da Caminhada de um Povo”, de Idalto José de Almeida, dono do histórico Zumbi Bar, ativista da diversidade, meu irmãozinho em Xangô. Idalto pediu que eu escrevesse a apresentação do livro. Para encerrar nossa já longa conversa, gostaria de ler um trecho do texto:

“Durante muito tempo a história de Londrina foi contada sob a ótica do pioneiro. Nossos primeiros desbravadores eram gente simples, pessoas do povo, heróis populares que se agarravam a um mundo de novas oportunidades com fome de vida, mas o que ficou para a história oficial foi quase uma caricatura.

“O pioneiro caricatural é sempre macho (as mulheres quase nem existem em nossa história oficial) e é sempre branco. Foi sempre difícil para as nossas elites, de forte extração rural, reconhecer no negro um agente da história.

“Mas eles sempre estiveram lá: na derrubada da mata, na construção das pontes, nas plantações de café, na boleia dos caminhões. Sempre estiveram na afirmação de sua religião sofisticada, de seu pendor para a alegria, na construção da cultura e – hoje sabemos – de nosso maior patrimônio: a diversidade.

“Sempre estiveram lá os manoéis, os clímacos, os cyprianos, os ezídios, os nascimentos. Gente que fez história não com palavras, mas com vidas”.

Se Idalto um dia relançar o livro, não esqueça. Vamos ter que acrescentar:

- “Sempre estiveram lá as Olívias, as aliais, as mukumbys. Três gerações de mulheres que fizeram a história com palavras, com atitudes, com vidas”.

Muito obrigado.

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YÁ MuKuMBY: possibilidades de articulações entre o sagrado, o político e o poético

Kennedy Piau Ferreira2

Dona Vilma foi uma das primeiras pessoas que conheci quando cheguei em Londrina em 1991 para fazer o concurso na UEL. Uma amiga da Universidade Federal de Uberlândia sugeriu e articulou minha hospedagem na casa do professor Cristiano, do Departamento de História do CCH. Ele tinha uma relação muito intensa com a Mãe Mukumby e através dele a conheci. Nesse ano tivemos alguns encontros esporádicos.

Em 1992 eu estava muito envolvido com a militância política, fazendo campanha para o candidato à prefeitura pelo PT. No agito da campanha recebi um recado da Dona Vilma, dizendo que eu estava muito visado e que precisava de proteção e que seria bom fazer um ritual de limpeza. Como havia, em uma semana, batido o carro duas vezes, além de outros contratempos, cheguei à conclusão de que não custava nada me proteger e resolvi fazer meu primeiro ebó, um ritual do candomblé de limpeza do espírito..

Foi meu primeiro contato efetivo com a dimensão sagrada de matriz africana. Antes minha relação era de uma curiosidade, digamos... artística/acadêmica. Neste processo fiquei sabendo que era filho de Xangô e que meu segundo Orixá era iansã. No dia do ritual me preparei com toda a ambiguidade de um professor universitário/cientista, mineiro, com formação marxista/leninista que resolve fazer um ebó para se proteger dos inimigos da classe operária.

Tentei me entregar ao ritual de corpo e alma. Mas meu cérebro analista traía minha sincera vontade. Minha porção artista buscava alçar

2 Professor adjunto da Universidade Estadual de Londrina, doutor em humanidades pela Universidade Autónoma de Barcelona. Pesquisa políticas públicas para as artes (incluindo as artes produzidas pelas comunidades tradicionais) e processos de criação em arte. E-mail: [email protected]

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voos, mas minha racionalidade cartesiana me reprimia, sussurrando ao meu ouvido: reflita sobre o que está acontecendo.

Em um determinado momento Escarlatt, ajudante e braço direito da Mãe Mukumby, assumiu o ritual. Não entendi na hora o porquê da mudança. Depois, Dona Vilma esclareceu que Iansã se dispôs a assumir o restante dos trabalhos. O processo terminou com um banho de ervas e com algumas informações e recomendações da Dona Vilma.

Ela disse que a participação de Iansã no ritual era uma demonstração de proteção, que deveria levar isso em consideração, me alertou sobre o que não deveria fazer por um determinado tempo e, por fim, me informou que eu sentiria muito cansaço. Minha mentalidade racionalista estranhou essa última afirmação. Imagina, sentir cansaço, não tinha feito esforço nenhum!

Na verdade, custei a chegar ao portão de tão esgotado. Parecia que de uma hora pra outra, em menos de dez minutos, eu havia absorvido um cansaço de cinco quilômetros nadando rio acima. Cheguei em casa me arrastando e nem me lembro de como fui parar na cama. Dormi dezoito horas sem parar.

Naquela época, a minha racionalidade sofreu um revés e minha dimensão artística ensaiou uns passinhos de samba de roda. Depois dessa primeira experiência ritualística, um ateu macumbeiro começou a se formar em mim.

Entre 1993 e 1996 tive vários contatos com Yá Mukumby. Eu era assessor da secretaria de cultura e ela militante incansável do movimento negro. Nesse período, devido à quantidade de trabalho, nossos encontros eram meio institucionais, quase sempre com a finalidade de resolver questões, por exemplo, sobre o dia da consciência negra e sobre o Carnaval.

Terminada a gestão do PT fui fazer o mestrado em Porto Alegre e nos afastamos um pouco. Porém, quando retornei a Londrina, em 2000, me envolvi novamente com a militância, naquele momento sindical. Foi um período rico, de fortes greves na UEL, saída de um

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reitor, acusado de corrupção e eleição da primeira reitora, militante de esquerda. Também nesse período o PT elegeu, pela segunda vez, o prefeito da cidade.

O Sistema de cotas na UEL

Lembro-me do pessoal do movimento negro reivindicando da reitora Lygia Pupatto a implantação do sistema de cotas para afrodescendentes na UEL, logo no inicio da gestão.

Um intenso debate tomou conta da Universidade e da cidade de Londrina. Nunca tinha visto um tema interno da UEL causar tanta polêmica. Naquele momento, a liderança e a disposição de luta da Dona Vilma foi decisiva. Passamos meses discutindo o tema por toda cidade. O assunto era discutido na padaria do bairro e na sede da ACIL (Associação Comercial e Industrial de Londrina). No bar do Jota e nas igrejas. Enxurradas de cartas inundavam as paginas dos jornais. No ápice das discussões a Câmara de Vereadores convocou uma audiência pública, proposta, se não me falha a memória por um vereador ligado aos interesses dos cursinhos da cidade. O espaço da câmara estava lotado, em sua grande maioria por estudantes de escolas particulares, contrários à implantação das cotas.

Duas imagens desse dia ficaram impregnadas na minha mente durante um bom tempo e hoje voltam com muita força. A primeira é de duas adolescentes, irmãs gêmeas, que cantavam no coro infanto-juvenil da UEL. Sempre as via na Casa de Cultura ensaiando ou em apresentações do coro. Eram delicadas, alegres, e passavam-me a impressão de certa inocência, ou melhor, de muita gentileza. Vê-las aquele dia nas galerias da Câmara de Vereadores com os rostos transtornados de cólera porque seus interesses de classe média estavam sendo contrariados me espantou bastante. Não pareciam as mesmas meninas cujo canto encantava. O olhar, os gestos e os gritos expressavam um ódio imensurável. A impressão era que o limite entre

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as agressões verbais e a agressão física era muito tênue. As meninas de cantos de anjo vociferavam.

A segunda imagem que volta à tona é a de outro adolescente que, quando a mãe Mukumby foi ao microfone, apontou para ela a mão imitando uma pistola. Simbolicamente atirava para matar, aniquilava o outro, querendo interromper, a força, qualquer possibilidade de escuta e, muito menos, de diálogo. Dona Vilma com calma, com voz potente e pausada, disse que há muito tempo apontavam para ela e para o povo negro, não só o dedo em forma de arma, mas armas em forma de medo. Armas de verdade, com balas de verdade, que matavam fisicamente de verdade. E, também, armas e balas que matavam a alma de um povo. Afirmou, com firmeza suave, que ela não tinha medo da mão do menino, porque ele ainda era menino. E era exatamente por ver, tantas vezes, tantas armas apontadas para tantas cabeças negras, que ela estava ali defendendo o sistema de cotas. Para evitar que os dedos nas armas e as armas de dedos continuassem sendo disparadas contra as cabeças de negros.

A voz e os gestos serenos daquela senhora podem, não ter alterado totalmente as convicções daqueles jovens que achavam que as cotas lhes tiravam o direito sagrado de perpetuar os privilégios das elites, todavia, incontáveis pontos de interrogação ficaram incrustados em suas cabeças. Os gritos e xingamentos cessaram e eles ouviram o que ela tinha a dizer. Falei logo depois da dona Vilma e a tarefa foi bem mais fácil.

A implantação do sistema de cotas deu uma levantada no movimento negro, talvez o maior avanço do movimento nos últimos trinta anos. A universidade se coloriu de Brasil.

Quizomba: Samba e outros Batuques

A partir daí minha relação com a Mãe Mukumby se estreitou. Em dois mil e quatro, salvo engano, conseguimos uma boa articulação para realizar a Semana da Consciência Negra.

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Nessa época eu era diretor da Casa de Cultura da UEL e havia, em parceria como Departamento de Arte Visual, um projeto de extensão que visava à formação de agentes culturais. Os estudantes envolvidos eram capacitados para, coletivamente, apresentarem ideias de atividades culturais, transformá-las em projetos e implantá-los em todas as suas etapas. Dentre as várias ideias apresentadas, escolhemos uma que visava propiciar o acesso às manifestações artísticas de matriz africana, não veiculadas na grande mídia, como também articular artistas e público que apreciavam este tipo de manifestação. Surgia o projeto Quizomba: o samba e outros batuques. Dona Vilma foi uma das articuladoras do pessoal de terreiro, para que houvesse participação deste segmento no projeto.

Na primeira edição, ela deu sua benção ao Quizomba e fez a primeira apresentação artística, com uma roda de Samba de Roda. A sua presença foi sempre marcante nas edições do projeto. O Quizomba – o Samba e outros Batuques foi, naquele momento, o evento de encerramento da Semana da Consciência Negra.

Mãe Mukumby entendia a importância do Quizomba como perspectiva de difusão e valorização da cultura negra. Mas não só. Para ela, o projeto, que já chegou a ter mais de mil pessoas participando em uma só edição, era importante do ponto de vista religioso, pois diminuía, através do prazer e da informação, o preconceito contra as religiões afro-brasileiras. Ela acreditava, corretamente, que, ao mostrar que o samba vinha dos terreiros, haveria diminuição da intolerância em relação às religiões de matriz africana. Quem viveu a experiência do Quizomba sabe que o samba e os outros batuques encantavam aqueles jovens que cantavam e dançavam horas a fio.

O clima vibrante e alegre, de certa forma, mostrava para muitos que o prazer podia ser sagrado e o sagrado do negro tendia ao prazeroso. Que a dimensão do sagrado não se resumia mais somente à tradição hebraico-cristã, que havia sim outras possibilidades. Naqueles momentos, a abertura à diversidade religiosa tinha uma suavidade

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de seda e gosto de manga madura. De certa maneira sentiam-se as perguntas sem se perceber o perguntamento: Como aquele som dos tambores poderia trazer algo de mal? Como aquela alegria poderia ser pecado? Em que medida aquela partilha de prazer não era abençoada?

Talvez, mais que mil discursos e que inúmeros panfletos, a arte e o encantamento desobstruíam o pensamento. Alargavam o fluxo e o corpo pensava a mente, suavemente.

Creio, por tudo isso, que Yá Mukumby entendia, do alto de sua sabedoria, a dimensão política do Quizomba. Gente de todas as idades, as pessoas dos terreiros, das escolas de Samba e das universidades. A cerveja gelada no bar das profissionais do sexo, o comumente chamadao bar das putas. As crianças, soltas, correndo e a terceira idade sambando. O Quizomba era uma ode à diversidade... Politicamente era o canto das três raças, tantas vezes belamente interpretado pelo Braga e pela Yá Mukumby. Ali, pelo menos naqueles momentos, o povo negro e sua cultura é que davam sentido aos sentidos da vida. E isso não é pouco.

O Doutorado

O doutorado, terceiro grande período de encontro com Yá Mukumby. Para falar desse período, gostaria de adentrar em um campo um pouco mais árido e teórico, abordando o envolvimento de jovens de classe média de Londrina, sobretudo universitários, com as manifestações artísticas de tradição oral de matriz africana.

Em 2007 fui para a Universidade Autônoma de Barcelona a fim de fazer o doutorado. O meu objeto de estudo era políticas públicas para manifestações artísticas de tradição oral no Brasil. Fui estudar pontos de cultura (Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura) que trabalhavam com arte de comunidades tradicionais. No processo de desenvolvimento do doutorado tive dificuldades para a realização do trabalho de campo no Brasil. Minha bolsa, financiada

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pela comunidade europeia, era suspensa quando eu saía da Europa. Como a previsão era ficar um ano no Brasil fazendo o trabalho de campo, teria, consequentemente, de ficar um ano sem direito a bolsa. A ideia do trabalho de campo era viajar de carro o Brasil de norte a sul, totalizando mais de vinte e quatro mil quilômetros e, nesse percurso, visitar nove pontos de cultura em todas as regiões do país.3 Na preparação do trabalho de campo, já no Brasil, resolvi ampliar minha pesquisa e tentar algum tipo de recurso que ajudasse a custear o caro projeto de doutorado. Surgiu assim a ideia de pesquisar como e por que jovens de classe média de Londrina usavam elementos da cultura nordestina nos processos de criação artística. Enviamos um projeto para alguns órgãos de financiamento. O projeto visava analisar as relação de jovens de classe média urbana de Londrina com as artes tradicionais do nordeste brasileiro. Mesmo antes de saber o resultado começamos4 a fazer entrevista com esses jovens. Como na primeira tentativa o projeto foi reprovado, guardamos o material coletado para usarmos em outro momento. No segundo semestre de 2009 a Funarte abriu um edital para bolsas para produções críticas sobre as interfaces dos conteúdos artísticos e culturas populares. Retomamos o material que havíamos coletado anteriormente, reformulamos o projeto e fomos selecionados. Ao analisar mais atentamente os dados e realizar novas entrevistas, percebi que a relação desses jovens com dona Vilma era muito recorrente. Inicialmente não havia atentado para esse fato. Eram outras questões que me intrigavam. Quais?

Tenho dividido minha vida profissional entre o mundo acadêmico e o trabalho como gestor em órgãos públicos de Cultura, (Secretaria de Cultura de Londrina e na Casa da Cultura da UEL). Fui também membro do Conselho Municipal de Cultura, compondo, por muitos anos comissões de seleção de projetos culturais a serem apoiados pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura – PROMIC de

3 Ver o livro “no caminho dos Encantantes: contaminações estéticas com a cultura tradicional”.4 O trabalho de campo foi realizado por uma equipe composta Kennedy Piau, Bruna Muriel Huertas Fuscaldo, Lucas Kiler e Camila Pierobon.

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Londrina. Tais atividades me colocaram diante de um fenômeno cultural interessante: o envolvimento crescente de jovens da classe média urbana com a arte tradicional. Refletir com um pouco mais de profundidade sobre tal fenômeno passou a me estimular. Em várias ocasiões ouvi críticas à aprovação de projetos apresentados por tais jovens. Questionavam o uso de recursos públicos com propostas, por exemplo, de organização de um grupo de bumba-meu-boi ou de maracatu. Porém, havia falta de fundamentação nos argumentos. Geralmente alegavam que essas manifestações não faziam parte da tradição cultural da cidade, que eram ações ingênuas, românticas e descontextualizadas. As críticas ressaltavam que a cultura nordestina não se encaixava bem numa cidade do sul do país e que estávamos impondo arbitrariamente uma cultura estranha à população de Londrina. Por isso indagava-me sobre o sentido da expressão “tradição cultural”, numa cidade de pouco mais de 60 anos, formada por etnias, vindas de várias partes. Indagava-me sobre o processo de formação das tradições, como se consolidam e ou desaparecem. Questionavam se não haveria mais espaços no mundo para determinados graus de ingenuidade e romantismo? O que pensam as pessoas quando se referem ao pensamento e a uma postura de vida “romântica”? Num mundo globalizado, o que significa estar dentro ou fora do contexto? Por que o movimento hip hop era afinado com a “tradição cultural” de uma cidade do sul do país? Por que esse movimento cultural de matriz afro-norte-americana, difundido e impactado fortemente pela indústria cultural, era menos questionado como “alienígena” do que algumas manifestações oriundas do nordeste do Brasil? Que concepções de arte, cultura e política cultural norteavam as críticas aos jovens interessados na cultura nordestina? Quais possíveis desejos e interesses inconfessos impulsionavam este tipo de crítica?

Tantas perguntas nos levaram a pesquisar como e por que jovens da classe média urbana de Londrina utilizam elementos das artes tradicionais nordestinas em seus processos de produção artística e a

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estudar as percepções de mestres da cultura popular do Maranhão e de Pernambuco sobre o uso de sua cultura na criação artística de artistas jovens de outras regiões e classes sociais. Tanto os jovens de Londrina como os mestres do nordeste estavam envolvidos com políticas públicas de cultura, no caso dos mestres com o Programa Cultura/Pontos de Cultura do Governo Federal, e, no caso dos jovens, com o PROMIC (Programa Municipal de Incentivo à Cultura de Londrina)

Mas o que uma mulher negra, nascida no norte do Paraná (dona Vilma) tem a ver com esses jovens de classe média urbana que gostam da cultura nordestina?

Na tentativa de responder a essa questão, buscarei algumas referências nos estudos que realizei para o doutorado.5 Inicialmente é importante abordar alguns aspectos relacionados à questão da qualidade das manifestações artísticas de tradição oral de matriz africana. Nos campos da arte erudita ocidental, a qualidade de uma obra de arte, geralmente se avalia do ponto de vista estético, que a maior parte das vezes se reduz aos aspectos formais ou perceptíveis. Como a arte afro-brasileira se desenvolve em outro contexto, com outra lógica e estrutura de funcionamento, é necessário outro enfoque na discussão da qualidade artística. Nesse sentido, é importante compreender as manifestações artísticas tradicionais a partir da observação do contexto em que surgem. Essa estratégia permite perceber a intrincada rede de significações que correlacionam tais manifestações com a organização social das comunidades a que pertencem. Kabengele Munanga, ao fazer referência aos dilemas metodológicos e às controvérsias sobre a dimensão estética da arte africana, afirma: A abordagem etnológica busca saber o que são os objetos de arte africana para esta sociedade e o que significam. Ou seja, determinar o que estes objetos representam, os símbolos que contêm e os mitos que evocam. Tal abordagem provoca um sério problema epistemológico. É possível capturar o significado

5 Ver FERREIRA, K.P. (2011). “En el camino de los encantantes: Políticas públicas y artes tradicionales en Brasil”.

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independentemente das formas e vice-versa, seria possível analisar a forma sem considerar o conteúdo? (MUNANGA, 2006, s/p).

Entendo que os parâmetros para avaliar a qualidade das manifestações como o Maracatu, o Coco ou o Samba de Roda, seja em seus contextos originais seja em suas reinvenções urbanas, devem estar relacionados com as múltiplas dimensões da vida nos grupos sociais nos quais se manifestam. Parece-me que a articulação de parâmetros relacionados com as ideias de celebração, prazer, ludicidade e imaginação são mais adequados para avaliar a qualidade deste tipo de produção do que o conceito de autenticidade ou o formalismo. Suponho que as perspectivas celebração, prazer, ludicidade e imaginação, parâmetros para a produção e fruição (e avaliação) de manifestações de matriz africana, são perspectivas que também atraem esses jovens para as manifestações da cultura nordestina, fortemente marcadas pela cultura africana. Dona Vilma me ajudou a perceber isso e contribuiu para minha compreensão através da sua prática e da sua prosa.

Outro aspecto importante para entender o fascínio que Yá Mukumby exercia (e ainda exerce) sobre os jovens que estudei está relacionado a um fenômeno que verifiquei nas relações de jovens de classe média urbana e outros mestres das culturas tradicionais: os processos de mediação. A ideia de mediação esteve presente em quase todo trabalho do doutorado. Ela está presente nos termos “pontes”, “embaixadores”, “tradutores”, frequentes nas entrevistas realizadas. Essa ideia possui, nesse caso, dimensões práticas que são distintas entre si e merecem algumas considerações.

No caso dos Pontos de Cultura que estudei, há pelo menos três tipos destacados de mediações. O primeiro está relacionado com a elaboração dos projetos. Quase todos os pontos de cultura contam com assessores na elaboração dos projetos, ou estes são elaborados por membros de ONGs. Nos dois casos, as pessoas que elaboram os projetos não são originárias das comunidades tradicionais. O segundo se refere à gestão mesma do Ponto. Aqui também a maioria dos responsáveis pela gestão não são das comunidades, possuem um

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bom nível de educação formal e vem das classes médias urbanas. Essas pessoas assumem e são, reconhecidas/legitimadas, como “Pontes/embaixadores/tradutores”, que ajudam as comunidades a se relacionarem com o universo da burocracia (Estado), tornando viável a capitação de recursos e a administração dos pontos de cultura. Os mediadores provêm dos centros urbanos, aportam um determinado capital cultural e usam esse capital para apoiar as comunidades tradicionais.

Outra forma de mediação é o caso do músico Tião Carvalho6 que faz o caminho inverso. Saiu de uma comunidade tradicional em direção aos grandes centros urbanos, adquire capital cultural e usa esse capital para difundir as manifestações artísticas tradicionais entre um público de classe média urbana. No primeiro caso, os mediadores são um tipo de “embaixadores” sem origem comunitária local, que se movem nos centros urbanos muitas vezes a fim de captar recursos para as comunidades tradicionais e também para difundir aspectos das culturas dessas comunidades, que os encantam. No segundo caso, é um embaixador de origem comunitária que leva algo aos centros urbanos, na perspectiva de fruir (na medida do possível) e divulgar a cultura tradicional.

A terceira mediação que gostaria de destacar é aquela exercida por jovens artistas urbanos que têm se apropriado de aspectos da arte tradicional; nesse caso específico estou me referindo a grupos de jovens artistas de Londrina. Aqui muitos atuam como embaixadores dos mestres junto a um público mais amplo. Encantados com a cultura tradicional (e mais especificamente com aspectos considerados artísticos da cultura tradicional), buscam encantar outras pessoas. Atuam como divulgadores dos trabalhos dos mestres e das atividades desenvolvidas nas comunidades tradicionais. Empenhados em legitimar os mestres, se legitimam como jovens sensíveis e preocupados

6 A UEL promoveu em 2000, um show com o artista maranhense - que vivia em São Paulo - Tião Carvalho. A partir desse evento, Tião Carvalho passa a ser uma das principais referências para os artistas londrinenses investigados.

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com os destinos das formas tradicionais de expressão artística e de seus grupos produtores. Penso, a partir da experiência compartilhada ao longo desses anos e pelo que os dados do estudo demonstram, que a sensibilidade é aguçada e a preocupação é real. Porém isso não elimina algumas ponderações sobre as relações entre esses jovens e os mestres/comunidades tradicionais.

Capital Cultural: Os Jovens e as Artes Tradicionais

A primeira ponderação está relacionada com a distribuição desigual do capital cultural entre mestres e jovens. O capital cultural aqui se entende o conjunto dos meios de apropriação de bens simbólicos, dos produtos intermediários e dos instrumentos necessários para a produção de um bem simbólico final. Entre outros coisas, as distintas origens sociais, histórias de vida e formação educativa dos jovens e dos mestres permitem aos primeiros (jovens) uma maior acumulação de capital cultural. Qualquer relação de troca, por mais bem intencionada que seja, tende a favorecer os jovens, pois possuem maior capacidade de apropriação do capital cultural disponível nesse processo de cambio.

A segunda ponderação se refere à capacidade de conversão dos capitais culturais específicos. O capital cultural dos mestres é reconhecido, valorizado, legitimado e apropriado pelos grupos de jovens. Tal capital apropriado pode ser convertido com certa facilidade em capital: a) político, junto, por exemplo, aos órgãos públicos de cultura; b) social, pois passam a ser reconhecidos e legitimados como consumidores culturais omnívoros7, gente “moderna”, aberta a novas experiências, cidadãos esclarecidos e comprometidos com os grupos sociais marginalizados e também comprometidos com a construção de outro tipo de sociedade, c) artístico, já que usam a experiência com os mestres e os conhecimentos adquiridos no processo de criação de suas próprias obras, e d) econômico, pois com suas obras assim criadas 7 Consumidores culturais que “devoram” ou fruem vários tipos de manifestações, da cultura popular à cultura erudita, da indústria cultural as manifestações de vanguarda.

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se apresentam no âmbito profissional e recebem recursos: muitos deles atuam profissionalmente como artistas.

A mesma sorte não têm os mestres. Ademais da desvantagem na sua capacidade de apropriação de capital no processo de intercâmbio de experiências com os jovens, o capital apropriado pelos mestres tem menos capacidade de conversão. Esse capital apropriado pelos mestres também pode ser convertido, todavia, creio em menor grau em capital: a) político, junto, por exemplo aos órgãos públicos de cultura; b) social, por passarem a ser considerados como pessoas da comunidade que tem seu trabalho reconhecido fora; c) artístico, já que os intercâmbios possibilitam ideais e disposições criativas, d) econômico, uma vez que recebem cachê e podem, em alguns casos, vender artefatos produzidos na comunidade. Porém sua legitimidade, conquistada por seu capital cultural “primitivo/originário” e pelo capital cultural adquirido nos processos de intercambio com os jovens, fica quase sempre circunscrita às relações dos mestres com os órgãos culturais, sua própria comunidade e os grupos de jovens artistas urbanos (e não raramente, aos círculos restritos de amizades dos artistas jovens). O que quero dizer é que a distribuição desigual do capital cultural (decorrente das origens sociais, das histórias de vida e da desigual formação educativa) atua como fator limitante na conversão do capital cultural dos mestres. Eles, por exemplo, não são reconhecidos e legitimados, fora de suas comunidades, como consumidores culturais omnívoros. Os jovens estudados também participam efetivamente do mundo da arte erudita e de vanguarda na cidade. O capital cultural dos mestres limita esta mobilidade no consumo cultural. O capital cultural adquirido pelos jovens permite mais mobilidade também no campo da produção artística, onde suas obras, derivadas de processos de fusão conseguem penetrar com mais facilidade tanto no campo da indústria cultural como em círculos da cultura erudita e de vanguarda.

As considerações anteriores levam à última ponderação. Aqui cabe um questionamento: Se a relação entre os grupos de jovens artistas

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urbanos (com maior capital) e os mestres da cultura tradicional (com menos capital) favorece os jovens, qual é a justificativa para o apoio a tal relação?

Primeiro, porque há, como vimos, vantagens mútuas. Sem essas relações os mestres também teriam menos capital político, social, artístico e econômico. Tenho claro que os mestres possuem consciência das vantagens que obtém nessas relações. Segundo, porque manter essas manifestações ilhadas é hoje praticamente impossível. E, se fosse possível, seria desejável o isolamento, sem que este fosse o desejo das comunidades em questão? É adequado manter essas formas artísticas e seus grupos produtores em guetos estigmatizados e marginalizados? Até que ponto não se relacionar com esses grupos de jovens urbanos ajuda na legitimação, na autoestima e na luta política dos grupos tradicionais marginalizados? A história de desvalorização e das dificuldades de relação das artes tradicionais com os jovens da cidade antes da década de 90 garantiu melhores condições de produção, circulação e consumo destas manifestações artísticas e melhores condições de vida para seus grupos produtores? Com relação aos grupos de jovens, que tipo de consumo cultural deve ser incentivado? A experiência de arte proposta por Gadamer8 para estes jovens não é incitante? Os valores vinculados às manifestações tradicionais (a ideia de compartilhar, o carácter lúdico, a solidariedade, a valorização da natureza, o respeito pelos mais velhos) não são importantes para a formação cidadã desses grupos de jovens? O que é melhor, numa perspectiva mais progressista, que estes jovens de classe média urbana sejam formados por tais valores ou que sejam deixados à mercê dos produtos e processos das industrias culturais convencionais de caráter cerceador, consumista, utilitarista, individualista, egoísta e alienante?

Por fim, creio que o mais importante é nos perguntarmos como é possível a construção de uma dimensão ética (que leve em conta garantir a dignidade humana) nesses processos de mediação (entre

8 Filósofo alemão que propõe pensar a arte com jogo, símbolo e festa.

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jovens da cidade e mestres) inseridos num contexto de globalização, condicionado pelo poder econômico e por outras estruturas de coerção.

Parece-me que a relação da Mãe Mukumby com os jovens de Londrina que se interessam e convivem com elementos da cultura tradicional foi (e continua sendo) balizada por essa dimensão ética. Entendo que a Dona Vilma ocupou o lugar de mestre da cultura tradicional em Londrina. Primeiro que, apesar de viver no meio urbano, ela realmente era - suas origens e sua trajetória de vida confirmam - depositária e difusora de conhecimentos e práticas ancestrais, vinculadas às religiões afro-brasileiras. Segundo, salvo engano, ela acabou personificando, para esses jovens, um ideal de mestre. Explicando melhor, a distância física entre Londrina e as comunidades tradicionais do Nordeste que encantam tais jovens dificulta uma relação mais estável e cotidiana com os mestres do Nordeste. De certa maneira, essa ausência de cotidianidade encontrava em dona Vilma um alento. Dona Vilma, creio, representa certa síntese (ideal e ou de fato) de mestre da cultura popular com a qual se poderia conviver no dia-a-dia aqui mesmo em Londrina. Uma mestra, uma Griô, aqui, à nossa disposição. Lembro-me de uma fala de Yá Mukumby na qual ela afirma que quando se deu conta era Mãe de uma garotada (jovens de classe média, principalmente universitária). Minha percepção é que esse processo se deu de uma forma muito orgânica e natural, do jeito dela: cativante, generosa, rigorosa (política e espiritualmente) e divertida.

Todavia, ela era uma mestra de cultura popular que não necessitava de mediadores, não carecia de embaixadores, ela mesma desempenhava tal papel. Seu engajamento político, sua liderança espiritual, sua força cultural e seu carisma pessoal possibilitavam a construção de pontes institucionais com o poder público municipal, com as universidades e com o movimento negro em nível nacional. O capital político, social e cultural acumulado na sua trajetória lhe garantiam certa capacidade de trânsito nos mais diferentes espaços. Podia transitar com desenvoltura

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na periferia da cidade de Cambé (onde se localiza o terreiro de candomblé que comandava) e no Conselho Universitário da UEL. Alinhavava com sabedoria os espaços dos jovens de classe média e os espaços dos jovens pobres das bordas da cidade. (en)cantava no chão do terreiro e nos teatros e Vilas Culturais. Foi inspiração e transpiração por uma causa (do povo negro) agregando aliados efetivos e afetivos de todas as cores e credos.

Nesse sentido, há também outro tema sobre o qual Yá Mukumby e outros mestres da cultura popular me levaram a refletir: a relação entre fé e prazer nas manifestações afro-brasileiras.

A religiosidade, a fé, está presente nas muitas conversas que tive com Dona Vilma. Não de maneira periférica, mas central. Tudo indica que a dimensão religiosa se coloca como um importante nó em meio a uma rede que articula e organiza também as dimensões de caráter político, social e econômico. Se considerarmos que o catolicismo português era, por assim dizer, algo profano, dado a festas e celebrações e que teve intercâmbios com manifestações religiosas indígenas e africanas, de aspecto ainda mais aclamativo, encontraremos formas de sincretismo em que a fé pode ser prazerosa e o prazer sagrado. À diferença do catolicismo mais dogmático e de outras formas de cristianismo, em que a culpa tem um papel destacado, as religiões afro-brasileiras e indígenas possuem um forte sentindo de celebração da vida.

Entendo que, para os mestres da cultura tradicional como a Dona Vilma, a conjunção de fé e prazer nas tradições religiosas com as quais estão envolvidos orienta as brincadeiras (jogos e manifestações artísticas) em que participam: são brincantes de fé.

No caso dos jovens artistas de Londrina, me parece que o prazer é o guia, ao menos a princípio. Quando questionava vários jovens sobre a razão de seu interesse pelas artes tradicionais afro-brasileiras, de alguma maneira todos citavam o prazer. Depois, muitos acabam se relacionando com as dimensões religiosas das manifestações artísticas,

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mas o impulso inicial é o prazer. São interesses por formas de lazer que jamais haviam conhecido. Porque existe, nessas manifestações, algo que seduz e encanta. Creio, neste caso, isso também pode ser entendido como um tipo de reação às restritas opções de ocupação do tempo livre oferecidas no mundo atual, que transformam o lazer em entretenimento.

A participação em movimentos de recriação da arte tradicional cria novos espaços de sociabilidade, ampliando as possibilidades de ocupação do tempo livre, criando condições de participação em atividades artísticas que provocam o questionamento, a reflexão, facultando a apropriação de um capital cultural para esses grupos. As artes tradicionais de matriz africana acabam, assim, cumprindo uma função libertária em relação à indústria cultural e de entretenimento, cujas opções são, na maioria das vezes, conformistas e alienantes. Segundo Maria Celeste Mira, muitos jovens de classe média urbana, a partir do envolvimento com a arte tradicional, passam a ter uma maior preocupação ambiental, a reavaliar seus padrões de consumo e a desenvolver modos de religiosidade diferentes dos de sua família, com destaque para aqueles vinculados ao candomblé.9 No caso dos jovens que estudei em Londrina, todos passam a ter uma relação com o candomblé. Em relação ao grupo LATA 10, em seu processo de transformação em Grupo de Maracatu Semente de Angola, há inclusive um ritual de batismo, no ilê da Mãe Mukumby que segue as tradições do candomblé com situações bem impactantes para os padrões dos jovens de classe média urbana. Todo esse processo sempre teve a Dona Vilma como referência.

Para concluir gostaria de contar uma breve história:Certa vez em Recife, uma mãe de santo me disse que não entendia

bem o pessoal da universidade. Ela percebia que nós estudávamos, estudávamos e continuávamos meio burrinhos. Perguntei por que

9 Ver Mira (2009, p. 592). 10 Grupo de percussão do projeto LATA – Laboratório Aberto de Trabalhos Artísticos – desenvolvido sob minha coordenação quando era diretor da Casa de Cultura da UEL.

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achava isso e ela disse que um moço pesquisador e entrevistador perguntou-lhe: Mãe, no Candomblé, onde acaba o sagrado e começa o profano? Onde acaba o religioso e começa o artístico? E ela já emendou de pronto: será que o moço depois de tanto estudar ainda não sabe que a arte é sagrada e que o sagrado tem boniteza.

A formação analítica ocidental, o racionalismo estreito, o excesso de especialização que separa e autonomiza a dimensão cultural, muitas vezes cria em nós dificuldades para compreender e lidar com as culturas tradicionais. Nessas culturas o ético, o estético, o social, o político, o econômico e o religioso é um emaranhado que dá gosto de vê. É difícil separar. Falar sobre a importância da Dona Vilma para a cultura de Londrina é certamente falar da cultura negra como expressão de luta e de vida. Não consigo pensar e falar das manifestações das artes afro-brasileiras, sem pensar e falar do sofrimento e da luta, sem pensar e falar da dominação, da violência e da resistência, sem pensar e falar da arte e do grito de guerra. Como me disse nosso amigo Prof. Jairo Pacheco, do Departamento de História da UEL: Dona Vilma parece uma entidade. Uma entidade síntese do sagrado, do político e do poético.

Referências bibliográficas:

FERREIRA, K.P. (2011). En el camino de los encantantes: Políticas públicas y artes tradicionales en Brasil. 305 p. Tese de doutorado. Universitat Autònoma de Barcelana. Tese defendida em Sardañola del Vallés, Barcelona, Espanha em 15/07/2011. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=gOVVP-IqExE&feature=player_embedded

FERREIRA, K.P. (2012) No caminho dos Encantantes: contaminações estéticas com a arte popular. Londrina: Eduel.

GADAMER, H. (1985) A atualidade do Belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Rio de de Janeiro: Tempo Brasileiro.

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MIRA, M. C. (2009) Sociabilidade juvenil e práticas culturais tradicionais na cidade de São Paulo. In:  Sociedade e Estado, Brasília, v. 24, n. 2, p. 563-597, maio/ago, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v24n2/09.pdf.> Acesso em: 10 de junho de 2010.

MUNANGA, Kabengele (2006). A Dimensão Estética na Arte Negro-Africana Tradicional. Disponível em: <http://www.macvirtual.usp.br/mac/arquivo/noticia/Kabengele/Kabengele.asp> Acesso em:  15 de dezembro de 2007.

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MuLHER, NEGRA, MÃE-DE-SANTO11

Teresinha Bernardo12

Na maioria das sociedades conhecidas é o homem que define o poder religioso. Somente ele tem o poder de ouvir e conversar com os deuses.

Assim torna-se possível imaginar o fascínio, a surpresa e o próprio estranhamento de encontrar uma religião que, no lugar do masculino, tem o feminino como o gênero que, na maioria das vezes, ocupa o ápice da hierarquia religiosa. Estou me referindo ao candomblé – religião afro-brasileira construída no Brasil com elementos africanos e brasileiros.

Para celebrar “Yá Mukumby” – mãe-de-santo de Londrina, faço uma análise da trajetória do feminino africano ioruba, desde suas terras de origem até sua chegada ao Brasil. É uma forma, ainda que tímida, de homenagear uma mulher guerreira que tanto representou para sua gente, para o povo-de-santo londrinense.

Aspectos importantes do feminino africano iorubá

Assim, torna-se importante reconstruir o cotidiano da mulher negra. Ainda na África, Pierre Verger, ao remontar à importância da feira, especialmente para os ioruba, mostrava a presença das mulheres como grandes negociantes; no mercado, comparadas aos homens, as mulheres são maioria.

A atividade de troca que ocorre nas feiras parece ser de importância inconteste para as mulheres ioruba, pois elas se submetem à separação

11 Texto baseado amplamente em livro da autora intitulado: Negras, mulheres e mães – Lembranças de Olga de Alaketu. São Paulo: EDUC; Rio de Janeiro: Pallas, 2003.12 Professora Livre Docente do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP.

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de suas famílias: quando jovens, deixam seus lares para ir comerciar em mercados distantes; quando idosas, mandam suas filhas para as feiras importantes e permanecem perto de suas casas com seus tabuleiros ou abrindo pequenas vendas. Evidencia-se que essas trocas, realizadas nas feiras, tanto podem ser para a subsistência como para alguma acumulação. Nesta última, é importante sublinhar, a mulher não está trabalhando para o seu cônjuge. Ela compra a colheita de seu marido, revende-a na feira e fica com o lucro. Nessa perspectiva, pode-se avaliar a autonomia da mulher ioruba: deixa a própria família, embrenha-se em caminhos distantes para chegar às feiras; compra a produção de seu próprio marido, revende e permanece com o lucro; é, enfim, uma ótima comerciante. Mas a sua importância parece ser mais abrangente na medida em que vai sendo conhecida:

(...) a feira como contrapeso da guerra. É onde as etnias que recusam qualquer mistura se encontram e sentem o quanto são complementares, numa interdependência de ordem econômica advinda da especialização do trabalho (VERGER, 1992, p. 138).

Mas a feira não possibilita somente aspectos econômicos, ela é o locus privilegiado de outras trocas, além de bens materiais. Nas feiras trocam-se também bens simbólicos: notícias, modas, receitas, músicas, danças. Estreitam-se relações sociais. Ali são realizadas alianças importantes; ali também ocorrem os namoros, acertam-se casamentos.

Percebe-se, assim, que o papel da mulher ioruba vai além do desempenhado nas atividades econômicas. Ela é mediadora, não só das trocas de bens econômicos, como também das de bens simbólicos. O lugar social ocupado pela mulher ioruba, sem sombra de dúvida, possibilita-lhe o exercício de um poder fundamental para a vida africana. Ao posicionar meu foco de análise na família, apoio-me em Verger, que trata do papel da mulher, ao dizer:

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(...) na organização da família ioruba, que é polígama, contrariamente ao conceito que pessoas mal-informadas fazem, as mulheres usufruem uma maior liberdade que a que se dá nas uniões monogâmicas. Na grande casa familiar do esposo, elas são aceitas como progenitoras dos filhos, destinadas a perpetuar a linhagem familiar do marido. Mas elas nunca aí são totalmente integradas, deixando-lhes esse fato uma certa independência. Após o casamento, elas continuam a praticar o culto de suas famílias de origem, embora seus filhos sejam consagrados ao deus do cônjuge (VERGER, 1986, p. 275).

Apesar de os dados contidos na afirmação de Verger atestarem a patrilinearidade em relação ao poder religioso (os filhos são consagrados ao deus do cônjuge), a mulher, ao praticar o culto de sua família de origem, está vinculada ao deus paterno: portanto, guarda uma certa autonomia em relação ao seu marido.

Se, para algumas interpretações, o casamento de um homem com várias mulheres indica a submissão feminina, pode-se interpretar esse fato preliminarmente como Verger, ao mostrar que a dominação masculina dilui-se entre as várias mulheres. Essa versão, aliada ao dado das “mulheres no mercado”, das “ótimas comerciantes” que conseguem amealhar fortunas consideráveis – o que as torna, muitas vezes, mais ricas do que seus próprios maridos, mesmo porque é da competência masculina a subsistência das mulheres e dos filhos –, faz com que a versão vergeriana sobre a poliginia e a autonomia feminina ganhe muito mais sentido. Ainda na África, outras situações vividas pela mulher merecem destaque:

Na organização dos reinos fons e nagôs-iorubas, as mulheres desempenharam um papel ativo, eram elas que administravam o palácio real, assumindo os postos de comando mais importantes, além de fiscalizarem o funcionamento do Estado (SILVEIRA, 2000, p.88).

Destaca-se, também, que os daomeanos eram guerreiros terríveis mas, sobretudo, mantinham uma tropa feminina de elite

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que amedrontava de longe o inimigo. No século XVIII, as feiras e os mercados iorubas isolados se articulavam em uma grande rede, ao mesmo tempo que ocorria o processo de urbanização. Data dessa mesma época a fundação de duas associações femininas importantes: as sociedades Ialodê Gueledé.

A Ialodê era uma associação feminina, cujo nome significa “senhora encarregada dos negócios públicos”. Sua dirigente tivera lugar no conselho supremo dos chefes urbanos e era considerada uma alta funcionária do Estado, responsável pelas questões femininas, representando, especialmente, os interesses das comerciantes. Enquanto a Ialodê se encarregava da troca de bens materiais, a sociedade Gueledé era uma associação mais próxima da troca de bens simbólicos. Sua visibilidade advinha dos rituais de propiciação à fecundidade, à fertilidade: aspectos importantes do poder especificamente feminino.

É interessante notar que essas duas associações femininas estão diretamente relacionadas às atividades desenvolvidas pelas mulheres nas feiras. Mais precisamente, à mulher do mercado, à mediadora da troca, tanto de bens materiais quanto de bens simbólicos, que vieram dar origem, respectivamente, à Ialodê e à Gueledé. Percebe-se, assim, que a mulher ioruba, além de deter o saber de usar a autonomia que a própria família poligínica lhe possibilitou, tornou-se a mediadora de bens materiais e simbólicos; e foi, ainda no século XVIII, fundadora de associações femininas importantes.

Não obstante os dados de outras etnias serem esparsos, há alguns fatos que indicam que em Angola, mais especificamente entre os mbundu, “(...) a mulher também ocupava posição de destaque social econômico” (Pantoja, 2000, p.81).

A poliginia parece ter sido a forma de família existente em grande parte da África negra. A interpretação dada por Verger às mulheres iorubas que viveram a família poligínica é válida para outros grupos africanos. Tanto isso é verdade que Pantoja afirma referindo-se à angola mbundu: “A poliginia permitia que a mulher tivesse um certo controle sobre os frutos do seu trabalho” (ibid., p.82).

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As mulheres de Angola, além do trabalho na terra, praticavam a economia de subsistência, participavam também das feiras, não só para troca de produtos, como obtinham lucro relativo a suas vendas para subsistência. Mas não eram somente boas comerciantes. Nas feiras angolanas, como nas iorubas, as mulheres eram também mediadoras de bens simbólicos. Além disso, destacavam-se no exercício do poder civil e na guerra, como é o caso de Nzinga Mbundu.

Essa volta ao passado africano não tem a pretensão de filiar este estudo às correntes afrocentristas. Esse retorno possibilita simplesmente alcançar uma profundidade histórica à medida que a África é percebida como fonte. Na realidade, o foco de minha análise centra-se na diáspora, movimento pensado, anteriormente, como de mão única, uma vez que o significado da escravidão que emerge no primeiro momento era o de uma viagem sem volta, com o massacre, o desmonte da diversidade cultural africana que aportava no Brasil com seus agentes.

Durante quase cem anos, os estudos que analisaram o negro no Brasil, se não o viam como destituído de tudo, viam-no como mercadoria que, no limite, é quase a mesma coisa. Em outras palavras, o olhar era externo, mais do que isso, era do colonizador, sobretudo do traficante e do senhor. O africano; ao contrário, continuou, tanto como criatura, quanto como criador. Dessa forma, durante a escravidão, na subterraneidade, o “movimento das feiras” ocorria em várias direções, iluminando uma outra visão da diáspora, anulando o caminho sem volta, de uma única direção. É nessa perspectiva que devem ser entendidos os seus significados: se percebo a diáspora como divisor de águas entre o passado e o presente, entendo também que o seu sentido não é estático; são fluxos, trocas entre o passado e o presente, entre os africanos que permaneceram em sua terra natal, os que vieram para o Brasil, os que chegaram às Antilhas e aos EUA. A diáspora significa necessidade de trânsito em várias direções, de transposições de fronteiras, especialmente das fronteiras de inúmeros grupos étnicos africanos que chegaram ao Brasil.

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Aspectos importantes do feminino negro no Brasil

Salienta-se também que uma das características fundamentais da diáspora é a criatividade, que permite, de forma às vezes desordenada, fecundações inesperadas. Essa desordem promove, sem dúvida alguma, uma possibilidade sincrética, que estará presente em todas as fecundações culturais, que, por sua vez, estão referidas também a fatores históricos e socioeconômicos. O sincretismo faz-se presente desde o momento em que o africano sai da sua terra natal; fazia parte das estratégias do sistema escravocrata a mistura de diferentes etnias para, assim, evitar rebeliões. Esse procedimento também ocorria na chegada dos africanos ao Brasil: evitava-se a preservação de um grupo étnico numa fazenda ou em suas proximidades.

Um outro fato concreto que aprofundou o sincretismo foi o tráfico interno, que ocorreu em terras brasileiras especialmente a partir de 1850, quando o tráfico internacional foi proibido por lei: escravos de regiões onde a atividade econômica encontrava-se decadente eram vendidos para outras regiões.

Essas possibilidades sincréticas ou fecundações inesperadas, fruto da diáspora, são, no limite, as ressignificações que ocorrem, das quais o sincretismo é um dos aspectos fundamentais que pode ser encontrado no cotidiano feminino negro no Brasil. Se, na África, as mulheres ganharam fama como grandes comerciantes, chegando mesmo a fundar a associação Ialodê, no Brasil essa organização parece ter tido menos importância. Silveira explica a ressignificação do cargo de Ialodê, que veio a ser usado como um título para mulheres importantes do candomblé. “Omonikê, Maria Julia Figueiredo, que sucedeu Marcelina Obatossi na direção do já intitulado Ilê Axé Iya Nassô Oka foi a última a ter os títulos africanos de Ialodê e Erelu” (SILVEIRA, 2000, p. 94).

No Brasil, o que era uma associação transformou-se em um título, cuja substância tinha a ver, tanto com o comércio, quanto com a religião.

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Essa mudança não impediu que surgissem as ganhadeiras-escravas ou forras, que permaneceram com o mesmo papel de mediadoras, não só de bens materiais, mas também de bens simbólicos. Tanto isso é verdade que no Maranhão, mais precisamente na cidade de São Luis, no século XIX, tem-se a presença de Adelina – a charuteira –, filha de uma escrava conhecida como Boca da Noite e de um rico senhor.

Adelina, a charuteira, ficou famosa e sua vida consta do Dicionário das mulheres do Brasil (Shumaker, 2000). No entanto, com certeza, as ganhadeiras-escravas ou forras anônimas, à medida que circulavam pela cidade, faziam circular também notícias, informações, músicas, orações... recriando, no Brasil, o papel feminino de mediadora de bens simbólicos; porém, mais do que isso, articulando escravos e libertos da alienação promovida pelo sistema escravagista.

A importância econômica da ganhadeira é atestada pela sua presença em várias cidades brasileiras. Na cidade de São Paulo, a presença das ganhadeiras é narrada por Maria Odila da Silva Dias:

Os observadores contemporâneos também descreveram negras de tabuleiros sentadas nas calçadas da rua da Quitanda Velha, durante o dia ou à noite, sob a iluminação fumacenta dos rolos de cera escura, pregados nos tabuleiros ou socados nos turbantes, quando caminhavam lentamente, jogando sombras pelo caminho (DIAS, 1984, p. 14).

Não só na São Paulo se encontravam as ganhadeiras trabalhando, vendendo seus produtos, especialmente gêneros de primeira necessidade para a população pobre da cidade. Em Minas Gerais, Luciano Figueiredo é o informante, ao dizer:

O destaque da presença feminina no comércio concentrava-se nas mulheres que eram chamadas de “negras de tabuleiro”. Elas infernizavam autoridades de aquém e de além-mar. Todos os rios de tinta despejados na legislação persecutória e punitiva não foram capazes de diminuir o seu ânimo em Minas e pelo Brasil afora (FIGUEIREDO, 1997, p.145).

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Há vários estudos que mostram a presença e a importância das mulheres de tabuleiro na Bahia, das comerciantes femininas, como os de Verger (1992); Landes (1967); Moreira Soares (1996); e, Ferreira Filho (1998) ). Pierre Verger, ao comparar a rede africana das feiras com as que ocorrem nas Américas, diz:

(...) aqui houve a sua supressão, mas existem feiras locais (diurnas) e os “tabuleiros” das vendedoras isoladas (diurnas e noturnas). A baiana de turbante, camisa rendada, saias de algodão colorido, sobrepostas e pano-da-costa, numa adaptação de vestimenta africana (ou melhor, das africanas muçulmanas) a um novo meio e novos “patterns” de vestuário, vai, com o tabuleiro sobre a cabeça, coberto, como em terra Nagô, por um pano que protege do sol e das moscas. Vai e se instala num canto da feira local, ou numa calçada, no ponto que lhe pertence de costume; ela senta num banquinho, põe ordem no tabuleiro e vende, aos apreciadores da comida africana, os acaçás, acarajés (...) Em alguns pontos da cidade, à noite, na luz vacilante dos lampiões, um grupo de baianas vende suas comidas ou pequenos objetos de perfumaria, recriando do outro lado do Atlântico a “feira noturna” dos vilarejos iorubas (VERGER, 1992, p.155).

A recriação da feira em Salvador é comentada também por Cecília Moreira Soares que, referindo-se às escravas ganhadeiras, diz: “escrava ganhadeira, devido ao sucesso que obtinha nas vendas, podia acumular o excedente em relação à parte paga ao senhor e, assim, comprar a sua própria alforria” (Ibid., p.68).

Chegaram a comprar a alforria de outros membros de sua família, inclusive a de seus companheiros (Bernardo, 1986, p. 32). É claro que o fato de parte das escravas ganhadeiras ter comprado sua alforria não é o único responsável pela situação de as mulheres negras serem alforriadas antes e em maiores proporções que os homens. Apesar da existência de poucos trabalhos sobre as relações de gênero durante a escravidão, Cunha demonstrou:

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(...) houve discriminações: beneficiava-se primeiro, em extraordinárias proporções, as mulheres. Os estudos até agora revelavam proporções de ordem de 66% de mulheres libertas para apenas 34% de homens em Parati, entre 1789 e 1822; 58,6% e 69,6% para Salvador e zona rural da Bahia, respectivamente, no período de 1684-1745; entre 53% e 57,6% em Salvador para o período de 1799-1850; 59,9% ainda em Salvador, se tomarmos o período 1817-1888; enfim, 64% na cidade do Rio de Janeiro, entre 1807 e 1831 (CUNHA, 1985, p.41).

E ainda:

(...) essas disparidades são maiores se for levado em conta que a proporção dos sexos na população escrava pendia fortemente para os homens, vistos como economicamente essenciais (Id.,ibid., p.41).

As escravas ganhadeiras podiam comprar a alforria. No entanto, só a partir de 1871, com a Lei do Ventre-Livre, foi permitido à escrava formar um pecúlio. Essa poupança parece estar diretamente referida à afirmação de Giacomini (1988, p.15), de que:

A expressão família escrava não aparece em nenhum momento nas fontes pesquisadas, nem mesmo na legislação referente aos escravos e sua prole. Pelo contrário, na legislação referente e nos projetos de lei sobre escravidão, nos momentos em que se faz referências à relação entre escravos, eram utilizadas expressões como filhos de escravos e mãe escrava.Parecer e Projeto de Lei (Lei do Ventre-Livre) de 1870 referiam-se à família.7º - Providências para manter s integridade da família, estabelecendo que, no caso da libertação das escravas, os filhos menores de oito anos acompanharão suas mães (art. 6º, § 6º) e ampliando-se a disposição do artigo 2º da Lei nº 1.695 de 15 de setembro de 1869, a qualquer caso de alienação ou transmissão (art. 6º, § 11). (Apud GIACOMINI, 1988, p.15)

Pelo projeto de lei, “(...) verificava-se que a legitimação da família negra se referia à mulher e seus filhos” (Bernardo, 1998, p. 61). Aqui

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se encontra a causa de se facultar à escrava ganhadeira o pecúlio, que deveria ser utilizado com os seus filhos. Na realidade, no momento em que passa a vigorar essa lei, as crianças nascidas a partir dessa data não são mais escravas, mas são filhas de escravos. A época dessa lei foi marcada pelo pânico. O medo se reflete em uma notícia do Diário do Rio de Janeiro, em 1871:

O que ficará sendo a escravidão? Qual será a autoridade, a posição do senhor, quando o escravo puder, perante ele, invocar os seus direitos em relação à propriedade, em relação à família, quando puder exigir dele a sua emancipação em nome da lei? (...). Não cogitou (o governo) que, se concede ao escravo o direito da sucessão ativa e passiva, é mister conferir-lhe o uso e o exercício ativo e passivo de todas as ações que nasceu do direito de família, que regulam as sucessões e a transmissão de herança? Concebe alguém que, sem completa anarquia, os escravos possam mover ações em juízo, como autores e como réus, que possam demandar legados e heranças que possam mover ações de filiação? (Apud id., ibid.).

As crianças nascidas no pós Ventre-Livre tornaram-se uma ameaça tão grande aos senhores que a possibilidade de pecúlio para a mãe escrava simplesmente suavizava o pânico e o prejuízo do senhor. Assim, se a reprodução escrava, anteriormente, era vista de maneira absolutamente positiva, a partir de 1871 a criança negra torna-se um peso difícil de se desvencilhar.

A Lei do Ventre-Livre, com o seu pecúlio, nada mais fez do que acentuar uma forma alternativa de família, que tem suas origens na diáspora e seus desdobramentos na escravidão e no pós-abolição. Se, na África, as mulheres viviam com seus respectivos filhos em casas conjugadas à grande casa do esposo, num sistema poligínico, no Brasil rompeu-se a relação da mulher com o homem, permanecendo a mãe com seus filhos, florescendo a matrifocalidade.

Essa forma alternativa de família está diretamente relacionada à autonomia feminina, que veio sendo conquistada desde a África, onde as mulheres foram as principais responsáveis pela rede de mercados que

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interligavam todo o território ioruba, com experiência de excelentes comerciantes, atribuída também às mulheres bantas. Essas atividades comerciais recriadas no Brasil, ainda na época da escravidão, fazem com que surjam as ganhadeiras, escravas ou livres, que em muitas regiões tornam-se as responsáveis pela distribuição dos principais gêneros alimentícios, chegando a comprar a própria alforria, numa forma de liberdade que, por sua vez, beneficiou muito mais as mulheres, que eram menos necessárias à produção sobre a qual o sistema escravocrata estava constituído. Assim, as mulheres negras, comparadas com seus parceiros, tiveram melhores oportunidades de trabalho, construindo brechas no mercado de trabalho livre em formação. Continuaram a ser ótimas comerciantes; foram também amas, lavadeiras, cozinheiras; chegaram a ser também operárias das primeiras fábricas no início do processo de industrialização em São Paulo.

Desse modo, a matrifocalidade, como forma alternativa de família, parece fazer parte dos fluxos, das trocas constituídas na diáspora. Tanto para a mulher africana, quanto para a afro-brasileira, a matrifocalidade, aparentemente, não foi só uma imposição da escravidão e do pós-abolição – com a consequente marginalização do homem negro no mercado livre durante as primeiras décadas do século XX, que lhe impossibilitava assumir a chefia familiar.

A mulher negra parece viver a matrifocalidade de forma diferente das mulheres brancas. Em minhas pesquisas anteriores, assim como na atual, pude verificar que, para essas mulheres, a matrifocalidade não é encarada como sofrida, pesada; pelo contrário, acentua sua autonomia, traz satisfação. Não é só no Brasil que afloram dados positivos sobre a matrifocalidade. Kathryn Morgan conta, sobre a história de sua família:

Caddy (bisavó de Kathryn) casou-se com o Sr. Gordon. Casar-se naquele tempo não era como nos dias de hoje. Caddy nunca se preocupou em procurar um pastor ou qualquer outra coisa. Bastava que duas pessoas desejassem se casar. Seja como for, Caddy queria um sobrenome para

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os seis filhos e o Sr. Gordon tencionava dar-lhes o seu (...) Caddy logo separou-se. Trabalhou duro e economizou. Um dia ouviu dizer que o Sr. Gordon tinha se metido em alguma encrenca e seria levado para a prisão. Caddy foi ao banco. Foi diretamente para o tribunal. Parou diante do juiz, alcançou o dinheiro por baixo da saia e colocou-o sobre a mesa. Ela disse: “juiz, eu não quero nenhum preto, com nome dos meus filhos, indo pra cadeia, então vim pagar a sua fiança” (MORGAN, 2002, p. 41).

Os achados de Landes e os meus, no Brasil, os de Morgan nos EUA, sugerem elementos culturais na matrifocalidade vivenciada pelas mulheres negras que viveram a diáspora. Ainda sobre a vida familiar negra norte-americana acima relatada, Scruggs afirma: “A experiência cultural dos Gordons teve muito em comum com a de milhares de famílias negras” (2002, p. 113). Parry Scott, ao discutir como o homem e a mulher vivem a matrifocalidade, diz:

Esse termo identifica uma complexa teia de relações montadas a partir do grupo doméstico, onde, mesmo na presença do homem na casa, é favorecido o lado feminino do grupo. Isso se traduz em: relações mãe-filho mais solidárias que relações pai-filho, escolha de residência, identificação de parentes conhecidos, trocas de favores e bens, visitas, etc., todos mais fortes pelo lado feminino; e também na provável existência de manifestações culturais e religiosas que destacam o papel feminino (SCOTT, 1990, p. 39).

Na definição de matrifocalidade acima emergem elementos culturais que, no caso aqui estudado, foram criados durante a escravidão e mesmo no pós-abolição, além das ressignificações das experiências africanas. Lawal faz a seguinte afirmação sobre a situação feminina:

Desde que as mulheres no papel de mãe são idealizadas como amorosas, carinhosas e irrevogavelmente comprometidas com a proteção das vidas que elas trouxeram ao mundo, é irônico que essas mulheres sejam também acusadas de feitiçaria. De acordo com Peter Morton-Willians, a identificação de feitiçaria com as mulheres pode estar relacionada

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com a poligamia típica dos iorubanos, em que há rivalidades, ciúmes mútuos e suspeitas; de um lado, encontra-se a co-esposa e seus filhos e, de outro, co-esposas e os parentes de seu marido. Sob essa atmosfera as mulheres demoram para engravidar, abortam; as desgraças, os infortúnios surgem como atos engendrados pelas outras co-esposas ou parentes hostis do marido (...). Essas suspeitas desenvolvem-se em uma permanente ”guerra-fria” em que todos participam dos rituais de proteção ou de agressividade. Em uma situação como essa uma mulher pode ser compelida a desenvolver os poderes ocultos para proteger tanto seus filhos como a si mesma (LAWAL, 1996, p. 32).

A interpretação desses fatos ilumina o estreitamento das relações entre mães e filhos, em detrimento das relações paternas. Na verdade, o que transparece é que os filhos gravitam em torno da mãe em uma interdependência totalizadora; inclusive o conflito entre irmãos filhos do mesmo pai e de mães diferentes dá indicativos nessa direção. Mas sobretudo a existência de uma verdadeira “guerra-fria” entre parentes, em que a mãe encontra-se sempre ao lado de seus filhos para protegê-los, faz com que ela desenvolva poderes ocultos, transformando-se em feiticeira, o que indica que as situações de conflito vividas pela mãe com seus filhos possibilitam o desenvolvimento de sentimentos maternos de tal monta que se chega à feitiçaria como forma de proteção.

Na discussão entre instinto e sentimento, chamo Morin para fortalecer meus pensamentos, pois penetro em um território sagrado para o mundo ocidental, o do amor materno:

A cultura insere-se completamente na regressão dos instintos (programas genéticos) e na progressão das competências organizacionais, reforçada simultaneamente por essa regressão (juvenilizante) e por essa progressão (cerebralizante) necessária a esta e àquela. Ela constitui um “tape-recorder”, um capital organizacional, uma matriz informacional, apta a nutrir as competências cerebrais, a orientar estratégias heurísticas, a programar os comportamentos sociais (...). As aptidões substituem os programas estereotipados ou instintos, (...) mas elas só podem operacionalizar-se a partir da educação sociocultural e num meio social complexificado pela cultura. (1991, p. 85)

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É nessa perspectiva que entendo o desenvolvimento do sentimento materno entre as africanas. Em outras palavras, esse sentimento não é o instinto. No sapiens, tem-se a regressão instintual e a emergencial de aptidões que se desenvolverão mais ou menos de acordo com a cultura através do processo de socialização. Não há dúvida de que as diferentes formas de família, com suas normas, fazem parte da diversidade cultural. Assim, a poliginia parece possibilitar o desenvolvimento de sentimentos maternos diferenciados em relação à monogamia. Nesta última, a relação com o pai é mais próxima, pois existe a possibilidade de cuidados com a prole. Tanto é que a partir da prática psicanalítica desenvolvida em uma clínica neuropsiquiátrica na África Ocidental, no período de 1962 a 1986, Ortigues e Ortigues (1984) revelam que, na cultura africana, é a mãe que se relaciona corpo a corpo com a criança, sem intermediários.

Assim, no sapiens, tem-se a “(...) aptidão natural para a cultura e a aptidão cultural para desenvolver a natureza humana” (Morin, 1991, p. 85). Esse aspecto, o do sentimento materno, envolve uma proteção sem limites entre as africanas, fazendo com que se transformem em feiticeiras para salvaguardar a si mesmas e a seus filhos.

É claro que não são todas as mulheres africanas e suas descendentes que viveram a matrifocalidade. Robert Slenes encontrou relações monogâmicas entre escravos na região de Campinas, no estado de São Paulo. Percebe-se, assim, que a construção da família e os sentimentos que a envolvem têm a ver com as relações socioculturais, políticas e econômicas. “No entanto, ironicamente, sempre cada sistema de parentesco é visto no seu próprio contexto como natural ou sagrado” (Maynes, 1996, p. 3).

A sociedade brasileira, ou melhor, o Ocidente, sacralizou tanto a família monogâmica quanto o amor materno, que também é visto como instintivo e, portanto, natural. É nesse sentido que concordo com Badinter, quando diz:

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Ao percorrer a história das atitudes maternas, nasce a convicção de que o instinto materno é um mito. Não encontramos nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário, constatamos a extrema variabilidade de seus sentimentos, segundo sua cultura, ambições e frustrações. Como então não chegar à conclusão, mesmo que lhe pareça cruel, de que o amor materno é apenas um sentimento e, como tal, essencialmente contingente (BADINTER, 1985, p. 367).

As características de proteção e afeto maternos intensos, acrescidas à característica de provedora, que a mulher africana e afro-brasileira também detém, como foi discutido anteriormente, possibilitam a vivência da matrifocalidade na sociedade brasileira. No entanto, todos esses aspectos culturais, socioeconômicos e históricos listados não explicam somente a ocorrência de um tipo de família, mas dão indícios fundamentais para o entendimento do fato peculiar de a mulher surgir como detentora do poder religioso, a grande sacerdotisa do candomblé.

Assim, a definição de matrifocalidade discutida por Scott se completa. Em suas palavras: “(...) é também na provável existência de manifestações culturais e religiosas que se destaca o papel feminino” (1990, p. 38).

Para iluminar ainda melhor esse fato – o da chefia feminina –, torna-se importante destacar alguns fatores que foram incisivos para que a mulher viesse a ocupar o ápice da hierarquia religiosa, além dos outros, que foram listados no trajeto feminino da África para o Brasil.

As mulheres africanas pertencentes às etnias fons e ioruba exerceram em seus respectivos reinos um poder político importante. É claro que no presente da escravidão, esse poder teve de ser ressignificado. Na realidade, é totalmente contraditório com a situação de escravo o exercício de qualquer poder no plano real. Assim, pode ter ocorrido uma transformação: se não existiam condições de exercício do poder real, exercia-se no plano do imaginário, através da religião. No candomblé baiano há fatos que favorecem a minha interpretação:

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A ialorixá Omonikê, Maria Julia figueiredo, que sucedeu Marcelina Obatossi na direção do já então intitulado Ilê Axé Iya Narso Oka, foi a última a ter os títulos africanos de Ialodê e Erelu. Isto nos leva à representação das mulheres nagô-iorubas da Bahia. Omonikê era Provedora-Mor da devoção de Nossa Senhora da Boa Morte, fundada pela ala feminina da irmandade dos Martírios na década de 1820 e sincretizada com a sociedade Gueledés. Na Bahia, a ialorixá da Casa Branca, a Ialodê Erelu, a Ialodê de Gueledé e a Provedora-Mor chegaram a ser a mesma pessoa, isto é, a representante suprema das mulheres nagô-iorubas com direito a assento no Aremafá da casa de Oxossi (SILVEIRA, 2000, p. 93).

Desse modo, as informações de Renato da Silveira indicam que o poder feminino ressignificado no Brasil passou para o âmbito religioso. Na verdade, quem vai receber o título de Ialodê é a ialorixá Omonikê – Maria Julia Figueiredo. Além disso, ela concentrou em suas mãos o cargo de Provedora-Mor da Irmandade da Boa Morte, o da principal sacerdotisa do Terreiro da Casa Branca e, também, o de ialaxé das Gueledés. Essa concentração de poder desnuda, de um lado, o poder da mulher, pois todas essas organizações são femininas; de outro lado, mostra a interpenetração entre a Gueledé, a Irmandade da Boa Morte e o candomblé.

Outro aspecto que deve ser destacado para iluminar o fato de a mulher vir a ser a sacerdotisa-chefe do candomblé diz respeito à densidade do sentimento materno na africana. Esse sentimento, por sua vez, tem muito a ver com a noção de Terra-Mãe, comentada por Morin:

A Terra-Mãe como metáfora só virá a florescer em toda a sua extensão nas civilizações agrárias, já históricas, o trabalhador Anteu colhe sua força no contato com a terra, sua matriz e horizonte, simbolizada na Grande Deusa (...) onde jazem seus antepassados, onde ele se julga fixado desde sempre. Com esta fixação ao solo, virá impor-se a magia da terra natal; que nos faz renascer porque é nossa mãe (...) É bem conhecida a dor do banido grego ou romano que não terá ninguém que lhe continue o culto como ficará separado para sempre da Terra-Mãe (MORIN, 1988, p. 114).

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A África contém para os escravos do Brasil todas as características da Terra-Mãe de que fala Morin. Era dela que o africano retirava o alimento com os seus diferentes significados para a totalidade de sua vida, é nela que se encontram enterrados os seus antepassados e onde ele pensa em permanecer, pois é a sua terra natal (Bernardo, 1997, p. 108).

Mas, além de o africano não permanecer na sua terra de origem, defrontou-se com a escravidão. Assim, se no plano do real a situação não valia a pena ser vivida, devia existir compensação. É no plano do simbólico e do imaginário que se encontram as respostas para resistir. Nesse sentido, torna-se importante evidenciar a diferenciação feita por Jung entre Pátria e Terra: “A pátria supõe limites, isto é, localização determinada, mas o chão é solo materno em repouso e capaz de frutificar” (1993, p.39).

É no solo brasileiro que frutificará o candomblé, a terra-mãe como metáfora para os africanos e seus descendentes. Se o candomblé representa a terra-mãe, que, por sua vez, possui os seus significados ligados ao feminino, essa expressão religiosa, ao representá-la, ganha todas as suas significações. É nesse sentido que a grande sacerdotisa do candomblé e chamada de mãe-de-santo. Essa denominação não é casual, como Jung afirma:

É a mãe que providencia calor, proteção, alimento, é também a lareira, a caverna ou cabana protetora e a plantação em volta. A mãe é também a roça fértil e o seu filho é o grão divino, o irmão e amigo dos homens, a mãe é a vaca leiteira e o rebanho ( JUNG, 1993, p. 39).

Na verdade, Jung está ressaltando as características do arquétipo da mãe, no qual estão incluídos sentimentos que, nas africanas e suas descendentes, foram tão intensificados a ponto de levar essas mulheres a se tornarem feiticeiras para a proteção de seus filhos. A possível ampliação desses sentimentos foi uma das causas que tornou plausível à mulher viver a matrifocalidade, tanto na família consanguínea, como

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na de santo. Tanto isso é verdade que os primeiros terreiros de que se tem notícia, datando dos séculos XVIII e XIX, são os candomblés de origem ioruba, cuja chefia é feminina.

Mas não apenas os candomblés baianos foram fundados por mulheres. Em São Luiz (MA), tanto o Tambor de Mina, quanto a Casa de Nagô possuem nas suas origens o feminino. O primeiro foi fundado por Maria Jesuína, africana do Benin; Josefa e Joana, vindas de Abeokutta, fundaram a Casa de Nagô (Ferreti, 1996).

Na região sudeste o candomblé chegou mais tarde, tanto no estado de São Paulo quanto, na região sul, no estado do Paraná. Mas no século XX em Londrina já se ouvia falar em “Ya Mukumby” como mulher negra, mãe-de-santo, que preocupava-se com seu povo e cuja morte deixou um imenso vazio.

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FRAGMENTOS DE uM POEMA PARA YÁ MuKuMBY para Olívia Santos de Oliveira

Acácio S. Almeida Santos13

Quando Olorum procurava matéria apropriada para criar o ser humano (o homem), todos os ebora partiram em busca de tal matéria. Trouxeram

diferentes coisas: mas nenhuma era adequada. Eles foram buscar lama, mas ela chorou e derramou lágrimas. Nenhum ebora quis tomar da menor parcela. Mas Ikú, Òjègbé-Aláso-Òna, apareceu, apanhou um pouco de lama - eerúpé

- e não teve misericórdia de seu pranto. Levou-o a Olódumarè, que pediu a Òrìsàlá e a Olúgama que o modelaram e foi Ele mesmo quem lhe insuflou seu

hálito. Mas Olódúmarè determinou a Ikú que, por ter sido ele a apanhar a porção de lama, deveria recolocá-la em seu lugar a qualquer momento, e é por isso que lkú sempre nos leva de volta para a lama (SANTOS, 1986, p. 107).

Preste atenção, mais às coisas do que aos seres

Em nossa casa, na periferia da zona leste de São Paulo, criança sabia muito bem o que era morrer. Podia não saber o que era a morte, mas sabia sim o que era morrer. Aprendia frequentando os velórios, que naquele tempo não eram somente “lugar de adultos”. Assim nasceu o meu encanto pelos ritos funerários, coisa que só notei depois de grande, quando cheguei ao curso de Ciências Sociais; é isso que costumo dizer, quando alguém indaga sobre como fui parar na África, pois foi ali, nos velórios e nos sepultamentos, que tudo começou. Estranho? Hoje já não sei se foi bem assim. As minhas memórias, especialmente as poéticas, embaralham-se e confundem-se no tempo. Quando comecei a espreitar a África, a morte já estava em minha vida

13 Professor do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da FACAMP – Faculdades de Campinas. Presidente do Conselho Deliberativo da Casa das Áfricas.

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como um valor civilizatório e a noção de pessoa foi (e continua sendo) o fio condutor.

Passada a primeira fase da iniciação no Brasil, parti então para a Costa do Marfim. Foi lá que, na condição de aprendiz, pude realmente entender os sentidos da morte negro-africana. Kabran Kouakou Ambroise, hoje com 84 anos de idade, foi o meu tutor. Com ele ouvi inúmeras histórias da rica enciclopédia oral da civilização Akan. As mesmas usadas no processo de socialização das crianças da aldeia. E quando, oportunamente, o indaguei pela primeira vez sobre a morte, ele respondeu olhando-me fixamente, como fazem os verdadeiros educadores:

A morte? Um dia os homens, em grupo, foram procurar o bom Deus. Eles lhe disseram que estavam ali para pedir a supressão da morte para os homens velhos e, especialmente, para os jovens e para os bebês inocentes. Deus, sempre clemente, lhes disse o seguinte: ‘Quando vocês voltarem para casa deverão me enviar dois emissários: o primeiro deverá solicitar a supressão da morte para os homens na terra e o outro a sua permanência’. Contentes, os homens retornaram para suas localidades e se organizaram para o envio dos emissários. O primeiro emissário escolhido pelos homens foi o cachorro. Sua tarefa era solicitar ao bom Deus a supressão da morte para os homens sobre a terra. O segundo emissário, que tinha a tarefa de solicitar a permanência da morte foi o paciente e lento camaleão. No mesmo instante e na mesma linha de partida partiram os dois emissários: o cachorro como uma flecha e o camaleão lento e paciente. O cachorro, no meio do caminho, encontrou uma mulher que preparava a comida para seu bebê. O cachorro, acreditando que daquela refeição lhe sobrariam os ossos, se distraiu esperando. Quando a mulher terminou de preparar a comida, o cachorro percebeu que na verdade ela não estava cozinhando carne e que não existia o osso que ele desejava. Ele então retornou o caminho, agora ainda mais rápido, como um meteoro, mas já era tarde. O camaleão, lento e paciente, já tinha chegado ao bom Deus e a mensagem de continuidade da morte já havia sido apresentada. Assim aprenderam os homens que nada se faz na pressa e que implorar é a pior doença (KABRAN, 2002).

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Os animais, personagens principais ou coadjuvantes, em inúmeros mitos Akan, apareciam nas histórias narradas pelo meu tutor sobre a trama que envolve a morte como agentes executores do desejo humano. O cachorro, que por suas qualidades foi escolhido como emissário do desejo de imortalidade, é seduzido (e enganado) no caminho. O camaleão, embora mais lento, chega primeiro ao preexistente e decide o jogo: a morte triunfa.

O pesado pacto que nos liga à vida, a pesada lei que nos ata aos atos

Em grande parte das sociedades africanas, a morte permeia todas as etapas da existência. Desde o nascimento (biológico) até a morte (biológica), a pessoa passará por sucessivas mortes rituais e mudanças de status. O nascimento é uma morte em relação aos antepassados já que permite, por vezes, o renascimento; o surgimento dos dentes na criança marca a morte para a vida cósmica e sua entrada para a vida social, no momento em que recebe um nome; o casamento pode ser para a mulher a morte dos costumes e dos deuses de sua família; os ritos de iniciação (e nestes é justamente em que a morte real ou simbólica mais se revela) mata o antigo indivíduo e faz surgir um novo ser (THOMAS, 1983).

No entanto, embora permeie todas as etapas da existência, a morte muito raramente é aceita como um evento natural. A explicação para sua ocorrência quase sempre está ligada à intervenção de forças capazes de desorganizar os elementos vitais constitutivos da pessoa. Mas essa desorganização não leva ao fim absoluto do homem, já que alguns dos elementos vitais constitutivos serão manipulados pela sociedade, através de ritos funerários altamente especializados, e encaminhados às instâncias determinadas.

O antropólogo Louis-Vincent Thomas afirmava com grande convicção que a morte nas sociedades africanas não é a destruição de tudo, porque comporta elementos imperecíveis, mas implica

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na destruição do todo, separação e novo destino de cada elemento constitutivo. O segredo da morte está em apreender o mistério da vida e, muito especialmente, da pessoa (THOMAS, 1971, p. 401).

Entre os Agni Morofoé, Costa do Marfim, assim que o homem ultrapassa a soleira da morte, o homem tem o seu status de Sõnã (pessoa) modificado para o de Wõmi (morte-duplo). Durante sua existência na terra, o Sõnã reúne, numa interação dinâmica, três componentes principais: o Wõnã (o corpo), o Ekala (princípio vital que assegura o poder de vida e o destino particular do indivíduo), o Woa woe (o duplo). A vitalidade de cada um destes três elementos e sua integração harmoniosa assegura à pessoa sua maior ou menor prosperidade. A morte destrói a coerência interna deste conjunto orgânico sem, no entanto, destruir os seus vários componentes (ESCHLIMANN, 1985).

Os mortos não estão mortos, os que morreram jamais se foram

Estes três componentes principais da pessoa seguem destinos muito precisos no processo de desorganização. Enquanto o duplo invisível do corpo (Woa woe) prossegue sua existência transformando-se em Wõmĩ, o corpo ao se decompor restitui à terra os elementos dela retirados e o Ekala retorna à família através do nascimento de uma nova criança ou entra no país dos ancestrais.

Mas, mesmo com toda a ideologia funerária que propõe a imortalidade através do renascimento, por ser a morte um evento traumático e gerador de desordem, a sociedade age rapidamente com o objetivo de superá-la:

A morte (...), em primeiro lugar, propõe a desordem, pois que corresponde à negação da coesão vital que configura o homem natural, colocando a possibilidade de imperfeição do sistema. No plano da existência visível, a morte parece ser concebida como uma instância em que a desordem e a perturbação do equilíbrio, se caracterizam, dentro do sistema de

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explicação do mundo, talvez com a mesma importância que a guerra, a esterilidade, a epidemia e a escassez. É evidente que esse conjunto de fatores propõe uma dinâmica específica da morte, aquela em que esta se manifesta como elemento desequilibrador da explicação do mundo e mesmo das relações e instituições sociais, não se podendo ignorar essas instâncias da morte. Mas ela produz também consequências negativas particularmente difíceis em sociedades comunitárias. No caso de morte de crianças, há decréscimo do potencial idealizado da continuidade das linhagens, um dos pressupostos básicos para a configuração da família e das massas sucessoriais. No caso da morte de homens e mulheres, ocorre o decréscimo do potencial gerador e reprodutor da sociedade, como também dos contingentes ligados à produção, à divisão do trabalho e às práticas políticas. No caso da morte de pessoas idosas, ocorre decréscimo do potencial dos sistemas educativos superiores e iniciáticos, religiosos e políticos. Daí talvez que tais sociedades proponham a fertilidade humana como um bem superior – e temam sobremaneira a morte – considerando que um grande número de filhos, seus descendentes, é um fator básico para sua plena configuração e continuidade, podendo assim, como tem sido, resistir ao seu desaparecimento ao longo dos processos de dominação colonialista, oferecendo notável resistência à destruição de seus indivíduos e valores (LEITE, 1982, p.157-158).

O sociólogo Fábio Leite aponta para a existência de duas modalidades de morte nas sociedades por ele estudadas (Agni, Senufo e Yoruba). Cada uma destas modalidades, positiva ou negativa, parece estar diretamente ligada à forma pela qual a morte destrói o laço que une estes elementos constitutivos.

(...) a modalidade positiva, socialmente mais aceitável, parece envolver essencialmente a morte na velhice, no quadro abrangente do sacrifício ritual humano e a morte, real ou simbólica, que ocorre ao longo de certas fases cruciais dos processos de iniciação. (...) a segunda modalidade, que chamaremos de negativa, pois que se traduz como desordem por excelência, é composta, ao que parece, de todos os demais tipo de morte, com pequenas exceções, constituindo a tipologia negativa que, embora institucionalmente explicável, aparece como evento extraordinário (LEITE, 1982, p. 148).

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Muito embora as duas modalidades (positiva ou negativa) impliquem em desorganização, a morte boa ou positiva patenteia a harmonia vital daqueles que viveram satisfatoriamente dentro dos padrões estabelecidos pela comunidade. Esses mortos recebem ritos funerários especializados que podem durar dias ou meses e poderão, segundo a sociedade, ser incorporados ao grupo dos ancestrais e cultuados como tais, reforçando assim os laços antepassado-comunidade-pessoa-antepassado, ou ainda reencarnar:

É o caso da morte de um indivíduo idoso que falece após preencher critérios socialmente dados, como iniciação, formação de família numerosa permitindo descendência significativa e a existência de herdeiros legais, comportamento ético apropriado, dedicação ao trabalho, conhecimento respeitado na comunidade, posse de certos bens materiais etc. (LEITE, 1982, p. 148-149).

Por isso se tem dito que a boa morte é bela e doce, pois através dela concretiza-se o ideal de imortalidade do homem negro-africano. A segunda modalidade, a morte negativa, é uma morte anômala, estéril e desgraçada; nela é impossível a existência de qualquer projeto de configuração ancestral, o morto não recebe sacrifícios e por vezes nem mesmo ritos funerários ou sepultura. Inserem-se nesta modalidade as mortes ocasionadas pelo suicídio, doenças graves, acidentes com raio, afogamento, a morte de mulheres grávidas, o falecimento de gêmeos etc.

De qualquer forma, natural ou sobrenatural, positiva ou negativa, a morte atinge inexoravelmente todas as sociedades negro-africanas, seja por transgressões a regras interditas, seja por faltas, esquecimentos, pela ação de agentes maléficos, por epidemias ou ainda por uma falha do próprio preexistente. A tarefa da sociedade é restabelecer a ordem, afastando os efeitos negativos produzidos pela morte. Mas ela, como sabemos, não pode ser afastada definitivamente.

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Os mortos não estão sob a terraO funeral, conceito que se articula em torno de certas cerimônias

que ocorrem antes e depois do sepultamento do morto, reveste-se de uma grande complexidade e importância. Para os Agni Morofoé, ele constitui um meio não somente de honrar o morto, mas também de revelar à sociedade a riqueza que ele construiu e de preservar a honra da família. Através do funeral a comunidade, além de confirmar socialmente a morte biológica, inaugura o status ontológico espiritual do morto, ensinando e lembrando a todos os membros da sociedade o seu projeto de vida.

Os Akan acreditam que existe um mundo dos mortos, construído no mesmo modelo do dos vivos e que quando alguém morre esta pessoa parte para se reunir aos seus ancestrais. Eles acreditam que os mortos voltam para participar da vida sobre a terra, e que eles continuam sendo ligados a eles através da comunidade de clã, além da morte. É por isso que a comunidade sobre a terra tudo faz para manter boas relações com os mortos. Ela mantém viva a lembrança dos seus mortos através de sacrifícios, enviando e pedindo coisas (NKETIA, 1963:II).

Logo, os mortos ocupam um importante lugar na vida social negro-africana. Eles continuam a existir graças às oferendas de seus descendentes e graças à palavra memória que os faz reviver a cada dia. E, como existe uma profunda relação entre herança e funeral, aqueles que morrem sem haver contribuído com a sociedade dando-lhe novos homens, não terão direito ao funeral completo, condição para a formação do ancestral.

Os mortos com direito aos funerais completos são tratados como verdadeiros dignitários. Eles são vestidos com os mais caros panos tradicionais (Kita, Djimoi, Tômin) e têm seus corpos, depois de adornados com todo ouro que a família puder dispor, expostos na cama mortuária. Para os Agni, o morto é o mensageiro e o mediador entre os vivos e os mortos, devendo por isso se apresentar no país dos

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ancestrais com as riquezas que acumulou no mundo dos vivos. Mas ele não será, necessariamente, sepultado com todos estes símbolos de riqueza utilizados no funeral (as bijuterias, os medalhões de ouro e os panos Kita), já que eles são destinados mais à exposição pública do corpo e servirão, no futuro, a outros mortos importantes da mesma família.

No funeral Akan, os gestos, os símbolos visuais e sonoros, tudo concorre para a grandeza do teatro sagrado, fundindo elementos verbais e não-verbais: a palavra, o silêncio, o gesto, o choro, o grito, a dança, o tambor, os panos...

A importância de que se reveste o funeral pode ser percebida pelo número de pessoas que retornam à aldeia. Retornar à aldeia na ocorrência da morte de alguém da família é uma obrigação. Todos, exceto as mulheres grávidas e os doentes, devem comparecer e participar das cerimônias funerárias, inclusive ajudando nas despesas com a emissão de dons funerários. O envio de dinheiro, panos, alimentos, bebidas ou animais para os sacrifícios, para dar de comer à família enlutada e para os estrangeiros convidados estabelece um circuito de obrigações recíprocas entre as famílias e os aliados dentro da aldeia. Os dons funerários talvez sejam os mais importantes, visto que é através deles que os outros dons são possíveis. Os dons funerários estabelecem pactos entre as pessoas e a quebra do circuito pode ser penosa para qualquer um dos envolvidos. As dádivas presentes nos funerais seguem a lógica da reciprocidade e podem ser percebidas em outros momentos do cotidiano.

A relação de solidariedade entre os moradores da localidade, sobretudo os membros de uma mesma família, pode ser observada pela cerimônia intitulada N’Zie que se constitui um momento de contribuição financeira comunitária. Através do N’Zie, todas as pessoas, com mais de 18 anos, que tenham boa capacidade física e moral, são chamadas a contribuir com pequenas somas (100FCFA14

14 FCFA – Franco da Comunidade Financeira Africana.

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para os homens e 25FCFA para as mulheres). Esta é uma cerimônia pública que ocorre no mesmo local em que o corpo do morto se encontra exposto e onde todos aqueles que desejam contribuir o farão, sob os olhos atentos da comunidade presente. Após a coleta, o chefe de cerimônias tornará público o valor arrecadado e o repassará à família do morto que usará a doação para pagamento das volumosas despesas impostas pelo funeral, mas também para ajudar a esposa do falecido e seus filhos.

Existem ainda algumas outras obrigações funerárias na destruição de certos bens em razão da relação de proximidade que tem a pessoa com o morto. As obrigações, com certas exceções, podem ser assim organizadas:

• Irmãosdomorto:panosdegrandevalortradicional,bebidasecomidas;

•Irmãsdomorto:panos;•Filhos do morto: panos, bebidas, animais para sacrifício e

comidas;•Filhasdomorto:umpano;•Sobrinhosdomorto:panos,bebidasecomidas;•Maridosdasfilhasdomorto:panosdevalor tradicional,dois

carneiros, bebidas e comidas; •Viúvaouviúvo:umpano;•Outrosparentes:panos;•Amigosíntimos:bebidas.Os responsáveis pelos funerais deverão destruir todos os bens

recebidos naquela ocasião fazendo, inclusive, com que parte deles siga com o morto para a cova depois da exposição do corpo que, dependendo do status do falecido, pode ser de um ou de vários dias.

O status social de cada indivíduo será diferenciado no estabelecimento dos funerais entre os Agni. Por isso, no funeral dos velhos, a sociedade utiliza determinados aparatos como, por exemplo, o tambor de fala Kinniankplio, para revelar a sua grandiosidade e

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importância. Este tambor, cuja fala exotérica só é conhecida dos iniciados, têm um excepcional papel nas honras funerárias destinadas aos velhos, aos chefes, aos notáveis e aos reis.

O sopro dos ancestrais

Sendo a desorganização um dos traços primordiais da morte e, dada a necessidade de se reestabalecer a organização, sem a qual estaria comprometida a própria existência da sociedade, cabe à consciência subjetiva, através dos aparatos culturais reveladores da dimensão histórica do ser humano, essa árdua e quase impossível tarefa: superar a desordem.

Inserem-se neste contexto de reordenação do caos, como material encontrado pelo homem para tapar a brecha antropológica, a fenda existente entre a imortalidade desejada e a morte objetiva, vivenciada cotidianamente. Assim, os ritos funerários, como bem disse Morin:

exprimem, reabsorvem e exorcizam um traumatismo provocado pela idéia de redução ao nada. Os funerais, e isto em todas as sociedades sapientais que se conhecem, traduzem ao mesmo tempo uma crise e o ultrapassamento desta crise, por um lado, a dilaceração e a angústia e, por outro lado, a esperança e a consolação (MORIN, p.95).

As expressões de dor nos funerais, sejam elas teatralizadas ou não, buscam demonstrar ao morto a dor sentida pela sociedade com a sua partida e garantir que o morto, dotado agora de poderes sobre-humanos, não atinja destrutivamente a comunidade. Entretanto, a tristeza e a dor exageradas da perda devem ser mediadas, uma vez que em demasia tais sentimentos podem suscitar no morto o desejo de permanecer, para conforto daqueles “a quem tanto amou na vida”, o que colocaria os vivos em uma perigosa relação com a morte não domesticada.

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Perdidos na memória e no passado, lá se vão os tempos em que comia-se e bebia-se o morto. O dono do defunto dava de comer e de beber a todos, enquanto o corpo era lavado, trajado na melhor roupa, velado e as proezas do falecido contadas, com certo exagero. Agora, quando muito um cafezinho requentado, no velório mesmo do hospital. Corpo em casa, nem pensar, para não guardar uma má impressão, pois é melhor lembrar da pessoa viva, feliz e com saúde

Mas, mesmo tendo sido colocada para fora de casa, a morte se ergue cruel, majestosa e inexorável, atingindo-nos como uma catástrofe irremediável. Ela leva nossos seres amados, colocando-nos diante da carcaça, impregnando nossas narinas com o cheiro fétido da decomposição, colocando- nos diante do quase nada, diante do não ser, no anonimato onde quase sempre somos derrotados.

O pOema de BiragO diOp15 para Yá mukumBY

Foi assim, conversando sobre a morte, que conheci Yá Mukumby. A luz que dela emanava iluminava as coisas e os seres. A sua morte provoca uma grande desordem em nosso universo. Silencia, mas o silêncio é parte da palavra. Em silêncio a nossa consciência insiste e arquiteta a sua imortalidade, que pressupõe não a ignorância da morte, mas, pelo contrário, o reconhecimento do seu poder que é capaz de modificar a ordem normal da vida (MORIN, 1976, p. 26).

Agora a sociedade deve recriar a ordem e, através dos aparatos da luta, criar o ancestral. Não basta dizer que a Yá Mukumby vive em cada um de nós: é necessário que ela seja incorporada ao panteão dos ancestrais. A sua imortalidade depende de nós, que podemos manter viva a memória da sua luta em prol da vida. Os nomes Yá Mukumby (63 anos), Allial de Oliveira dos Santos (89 anos) e da pequena Olívia Santos de Oliveira (10 anos), todas assassinadas brutalmente no dia

15 Birago Diop nasceu no Senegal em 1906. Foi escritor, poeta e manteve estreita relação com o movimento da Negritude, apresentando importantes contribuições no universo dos contos da literatura oral africana.

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03 de agosto de 2013, devem estar nas ruas, nas praças, nas escolas, em todos os lugares públicos como símbolo da nossa luta, para que possamos pedagogicamente ensinar às nossas crianças porque elas não podem ser esquecidas.

SoproPreste atençãoMais às coisas que aos SeresÀ voz do Fogo, fique atento, Ouça a voz das Águas.Ouça através do VentoA Savana a soluçar É o Sopro dos ancestrais

Os que morreram jamais se foramEles estão na Sombra que se iluminaE na sombra que se enegrece.Os Mortos não estão sob a TerraEles estão na Árvore que balança,Estão na Madeira que geme,Estão na Água que dorme, Estão na casa, estão na multidãoOs mortos não estão mortos.

Preste atençãoMais às coisas do que aos SeresÀ voz do Fogo, fique atento, Ouça a voz das Águas.Ouça através do VentoA Savana a soluçar É o Sopro dos ancestraisQue jamais se foramQue não estão sob a TerraQue não estão mortos.

Os que morreram jamais se foram:Estão no Seio da Mulher,

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Estão na criança que choraE na brasa que inflama.Os Mortos não estão sob a TerraEles estão no Fogo que se apaga,Estão nas Ervas que choram,Estão na Rocha que range,Estão na Floresta, na Cabana, Os Mortos não estão mortos.

Preste atençãoMais às coisas do que aos SeresÀ voz do Fogo, fique atento, Ouça a voz das Águas.Ouça através do VentoA Savana a soluçar É o Sopro dos ancestrais

Todo dia ele refaz o PactoO grande Pacto que prende,Que prende à Lei nosso Destino,Aos Atos dos Sopros mais fortesO Destino de nossos Mortos que não estão mortos, O pesado pacto que nos liga à Vida,A pesada Lei que nos ata aos Atos, Dos Sopros que morremNo leito e às margens do Rio,Sopros que se movemNa Rocha que range e na Erva que choraSopros que permanecemNa sombra que ilumina e se enegrece,Na Árvore que balança, na Madeira que gemeE na Água que corre e na água que dorme,Sopros mais fortes que tomaram O Sopro dos Mortos que não estão mortos, Dos Mortos que não partiram,Dos Mortos que não estão mais sob a Terra.

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Referência bibliográfica

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OS CRIMES RACIAIS E A ATuAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICOuma experiência concreta de combate ao racismo

Paulo César Vieira Tavares16

Os crimes relacionados ao Racismo

A Constituição Federal de 1988 (Brasil, 2007, p. 3) definiu que a cidadania e a dignidade da pessoa humana são fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, incisos II e III), caracterizando-se como princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, e que um dos objetivos dessa República é a promoção do bem de todos, “sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, inciso IV).

Além disso, a Carta Magna (Brasil, 2007, p. 4) estabeleceu que o Brasil, nas suas relações internacionais, rege-se pelos princípios da prevalência dos Direitos Humanos e do repúdio ao terrorismo e ao racismo (art. 4º, incisos II e VII).

Como se não bastasse, o legislador constituinte (Brasil, 2007, p. 9) ofereceu proteção à igualdade entre todos os seres humanos ao definir “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, inciso XLI, CF).

Esse trato igualitário entre todos, base das democracias modernas, proíbe a prática de discriminações e preconceitos decorrentes de raça, cor, origem étnica, preferência religiosa e procedência nacional, o que constitui odiosa e histórica afronta ao princípio isonômico.

Para completar, a Constituição Federal estabelece em seu artigo 5º, inciso XLII (Brasil, 2007, p. 9): “a prática do racismo constitui

16 Promotor de Justiça da Promotoria de Justiça de Defesa de Direitos Humanos, Saúde Pública e Saúde do Trabalhador (Ministério Público do Estado do Paraná). Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

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crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da Lei”.

Sobre a promulgação da Constituição Federal de 1988, SANTOS (2013, p. 59 e 60) destaca:

Coincidiu com as comemorações do centenário da Abolição da Escravidão. Isto permitiu que o movimento negro se utilizasse da mobilização da celebração do centenário. Esta Constituição é considerada um marco jurídico do período de transição política. O texto da Constituição de 1988 apresenta uma ênfase e institucionalização nos Direitos Humanos, como nunca havia ocorrido nas Constituições brasileiras.

O referido autor (2013, p. 63) também esclarece:

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado brasileiro. É o valor-fonte a determinar a interpretação e a aplicação da Constituição, assim como a atuação de todos os poderes públicos que compõem a República Federativa do Brasil. Em síntese, o Estado existe para garantir e promover a dignidade de todas as pessoas. É nesse amplo alcance que está a universalidade do princípio da dignidade humana e dos Direitos Humanos.

Em 3 de julho de 1951, foi editada a Lei nº 1.390/1951 – conhecida como LEI AFONSO ARINOS; esse texto legal tem importantíssima relevância na história brasileira, não muito por suas penas, mas pelo simples reconhecimento da existência do racismo no Brasil, tão frequente na realidade e não reconhecido legalmente até então.

Segundo esse diploma legal, o racismo – em meados do século 20 – passou a ser reconhecido como uma contravenção penal, ou seja, passou-se a proibir a discriminação racial no Brasil, definindo-se como contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça e cor de pele. Essa Lei trazia 9 artigos e previa uma pena que variava de 15 dias a um ano de prisão simples para o contraventor, além de multa.

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Após muito debate e esforço do movimento negro, a Constituição Federal de 1988, como já mencionado, elevou o racismo à condição de crime, deixando de ser uma simples contravenção penal.

Alguns meses depois, exatamente em 5 de janeiro de 1989, foi promulgada a Lei nº 7.716/1989 (Brasil, 1989), de autoria do Deputado Federal Carlos Alberto de Oliveira – conhecido como “Caó” -, que veio definir os crimes resultantes do preconceito de raça ou de cor; inovou, então, visto haver caracterizado a prática de racismo como crime, em um cenário onde este era considerado apenas uma contravenção penal.

A referida Lei 7.716/89, além de condicionar a tipificação do crime a determinadas práticas do comportamento discriminatório, continuou a penalizar apenas as condutas preconceituosas por raça ou cor (exatamente como a legislação que a precedia), relegando ao esquecimento aquelas resultantes de preconceito por etnia, religião, procedência nacional, preferência sexual ou classe social.

A prática forense demonstrou que insignificante foi o número de processos penais iniciados com base nesse diploma legal, apesar da nova Lei trazer algumas normas incriminadoras comissivas e omissivas; era necessária, pois, a inclusão de novos tipos penais. Assim, fizeram-se necessárias alterações legislativas nesse sentido, e isto se deu principalmente por meio da Lei nº 9.459/97 (Brasil, 1997).

Esta última Lei modificadora deu nova redação ao artigo 1º da Lei Caó, passando este a ter como conduta criminosa não apenas os atos praticados por discriminação ou preconceito por raça ou cor, mas também aqueles advindos de discriminação ou preconceito por etnia, religião ou procedência nacional.

Outra importante alteração trazida pela Lei nº 9.459/97 foi a introdução do artigo 20 na Lei Anti-discriminação, qual seja:

“Art. 20 - Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.

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§ 1º - Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa. § 2º - Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

Destaca-se, pois, que essa Lei incluiu situações mais afinadas com a realidade, incriminando a indução ou incitamento à discriminação e ao preconceito, não importando o meio utilizado.

Além disso, o início das ações penais referentes aos crimes previstos na Lei nº 7.716/89 passou a não depender de representação (autorização) do ofendido; o que significa dizer que o Ministério Público, para oferecer denúncia criminal em razão de prática de crime de racismo, não depende de autorização do (s) ofendido (s) para fazê-lo.

Ademais, a Lei nº 9.459/97 ainda modificou o art. 140 do Código Penal (Brasil, 1940), acrescentando-lhe seu parágrafo 3º e previu a injúria qualificada pelos elementos de raça, cor, etnia, religião e origem, dando-lhe a mesma pena do crime do artigo 20, caput, da lei especial.

Por sua vez, o §3º do artigo 140 do Código Penal, recebeu nova alteração pela Lei nº 10.741/2003, acrescentando-lhe, ainda, além da injúria qualificada, também aquela por força de pessoa idosa ou portadora de deficiência. A partir da Lei 12.033/09, esse delito passou a ser perseguido em ação penal pública mediante representação do ofendido (art. 145, parágrafo único, do Código Penal). Ou seja, em se tratando de injúria racial, ao contrário do que ocorre em relação ao crime de racismo, o Ministério Público, para oferecer denúncia criminal, dependerá de autorização da vítima.

Frise-se que o artigo 140, § 3º  do Código Penal, trazido pela Lei nº 9.459/97, diz respeito à injúria preconceituosa, sendo esta modalidade de injúria qualificada.

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Com efeito, esta Lei acrescentou um tipo qualificado ao delito de injúria, impondo pena de reclusão, de 1 a 3 anos e multa. Tal dispositivo, que na prática muito se assemelha ao dispositivo referente ao crime de racismo disposto em Lei especial, visa à proteção da honra subjetiva da vítima, da sua dignidade ou decoro.

Destaca-se também que o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), no seu art. 96 (§ 1º), protege o idoso, porquanto pune – com pena de reclusão de 6 meses a 1 ano e multa – a pessoa que o discrimina por qualquer motivo (Brasil, 2003).

O Ministério Público na Atual Constituição Federal

A Assembléia Nacional Constituinte, de forma surpreendente, acolheu as principais propostas elencadas na Carta de Curitiba (1986), destinando ao Ministério Público 4 artigos na Constituição Federal (CF) de 1988, quais sejam: os arts. 127, 128, 129 e 13017.

O art.127 caput da Constituição Federal define o Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. O seu §1º estabelece que são princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Além disso, o § 2º do art. 127 da Carta Magna assegurou-se autonomia funcional e administrativa à instituição.

O art. 129 da Constituição Federal (BRASIL, 2007, p. 100), estabeleceu quais são as funções institucionais do Ministério Público, enfatizando os seus incisos I, II e III:

17 Com a Emenda Constitucional nº 45, de 8 dez 2004, foi acrescentado o art. 130-A.

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I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia;

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Conforme esclarece Salles (1999, p. 33):

[...] A Constituição de 1988, além de espelhar o significativo avanço que o Ministério Público vem conhecendo nos últimos anos, representou um grande crescimento do papel desse órgão na organização do Estado e na consolidação da democracia. O texto constitucional vigente deu ao Ministério Público novas funções e instrumentos que respondem a graves problemas emergentes da sociedade e da democracia contemporâneas.

O referido autor (1999, p. 40) também ensina:

[...] A definição constitucional, enfim alcançada, de forma a solucionar os problemas que acima apontamos, indica claramente a destinação democrática atribuída ao Ministério Público. [...] Presentemente, objetivos muito mais amplos são colocados sob sua tutela, cabendo-lhe responder por interesses de muito maior relevância e repercussão na sociedade. Essas novas tarefas a cargo do Ministério Público colocam em xeque a forma de atuação tradicional a partir de seus próprios pressupostos.

Nesse sentido adverte o autor (1999, p. 41):

[...] É preciso, nesse caso, que o Ministério Público apreenda a realidade em perspectiva, tendo por base não apenas como ela é, mas, dentro de certo horizonte de sentido, como ela deveria ser. Há de se incorporar à prática institucional a busca pela realização daqueles objetivos coletivos incorporados no sistema jurídico, como aqueles já referidos, relativos ao meio ambiente, ao consumo, ao mercado, à igualdade social e assim por

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diante. A utopia, concebida enquanto prática engendrada em resposta às novas atribuições que hoje lhe são colocadas, tem o significado de assumir a politização do Ministério Público, revendo seu papel em um sistema de aplicação neutra do direito e posicionando-lhe ativamente na construção da realidade social.

E conclui:

[...] Assim, o desenvolvimento do Ministério Público hoje é dependente de definição da maneira pela qual essa instituição encontrará um justo termo entre a razão e a utopia, conciliando um modo de produzir e aplicar um direito ainda não inteiramente superado e a necessidade de dar respostas a funções jurídicas e sociais inteiramente inovadoras. Com isso, exige-se um direcionamento institucional diverso daquele tradicionalmente colocado pelo direito e pela história do Ministério Público (SALLES, 1999, p. 41) (grifo do autor).

Portanto, a Constituição Federal de 1988, elevou o Ministério Público a uma posição de extrema relevância no sistema de Justiça e no cenário político brasileiro. Depreende-se que a instituição foi enriquecida em suas atribuições, transformando-se, como consequência, em ator público de primeira grandeza. A Carta Magna conferiu à instituição extensas obrigações, contemplando desde sua função mais tradicional – promoção da ação penal - até a defesa de variados direitos sociais.

Nesse sentido, Fachin (2006, p. 105) assevera:

[...] A Constituição atribui ao Ministério Público uma gama de poderes que ele jamais teve. Houve um significativo fortalecimento da instituição, a qual passou a atuar em diferentes campos e tratar de várias matérias, tais como patrimônio público, prerrogativas constitucionais, criança e adolescente, meio ambiente e consumidor.

Do mesmo modo, Sadek (2006, p. 15) afirma:

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[...] para a correta apreensão desse leque de competências, deve-se considerar o fato de que os direitos constitutivos da cidadania foram significativamente alargados. Aos clássicos direitos de natureza individual – os direitos civis e políticos -, foram incorporados os direitos supra-individuais ou sociais.

Sadek (2006, p. 15) explica “o Ministério Público é chamado a agir em novas áreas, cabendo-lhe salvaguardar e proteger interesses e direitos legalmente previstos, protegendo-os de abusos do poder, tanto por parte do Estado como de particulares”.

E conclui a autora:

[...] os textos legais, tanto a Constituição como legislações infraconstitucionais, propiciaram que o Ministério Público se convertesse em uma instituição fundamental do sistema de Justiça, cabendo-lhe papel relevante no controle das demais instituições e na defesa da cidadania. Em decorrência, a instituição tornou-se co-responsável por políticas públicas e agente de inclusão social (SADEK, 2006, p. 15).

A Constituição Federal de 1988 traçou, pois, o novo perfil do Ministério Público, exigindo dos seus membros nova postura funcional, os quais devem estar compromissados com a cidadania plena e agir mais como verdadeiros agentes de transformação social e menos como pareceristas, para que tenham mais chances de alterar a realidade social brasileira, extremamente injusta para grande parte de sua população.

Se o Ministério Público tem por atribuição constitucional primordial zelar pela efetiva implantação dos direitos pertinentes à ordem social assegurados na Constituição Federal, faz-se mister que seus agentes saiam mais de seus gabinetes e se aproximem mais da população excluída, a fim de que seja conhecida de perto a realidade na qual ela está inserida.

Nesse contexto, o Ministério Público deve realizar uma intervenção mais ativa na defesa de direitos e garantias constitucionais

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sistematicamente desrespeitados, principalmente pelo Poder Público. A rica gama de atribuições e prerrogativas constitucionais do Ministério Público não admite uma atitude passiva de seus membros em relação aos direitos fundamentais sociais contemplados na Carta Magna; não devem os seus membros atuar apenas quando provocados por entidades da sociedade civil ou pela imprensa.

Para Maior Neto (2008, p. 5):

[...] os agentes do Ministério Público devem ser impulsionados por um único e permanente sentimento de indignação contra as injustiças contidas na nossa realidade social, contribuindo para que o Ministério Público exerça seus predicados constitucionais de defensor do povo, capaz de internalizar no espaço da Justiça os interesses maiores da população, valorados prioritariamente pela ótica daqueles que se encontram hoje à margem dos benefícios produzidos na sociedade e afastados da possibilidade real de vida digna.

Desse modo, a atuação do Ministério Público deve interferir de forma incisiva na promoção dos direitos relacionados à cidadania. Isso não significa que, para isso, tenha de, necessariamente, utilizar-se da via judicial para exercitar a defesa desses direitos.

Para Torres-Fernandes (1999), a função de zelo no caso de direitos sociais, não se restringe à atuação perante a Justiça, porque exige mais, exige visão prospectiva voltada ao planejamento de atividades de promoção e prevenção.

Nesse sentido, afirmam Ferraz e Benjamin (1992, p. 77)

[...] que o Ministério Público passa a assumir a responsabilidade pela solução (não necessariamente processual, nem mesmo judicial) dos problemas e questões de sua alçada. Em outras palavras, assume a responsabilidade pela defesa direta e imediata dos interesses confiados à sua tutela (grifo dos autores).

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Com efeito, se a partir da Constituição Federal de 1988 o perfil do Ministério Público caracteriza-se pela independência e defesa dos interesses sociais e valores democráticos, conclui-se que o envolvimento do promotor de Justiça com causas populares deixou de ser um compromisso pessoal; dele se espera que proceda sempre como agente político transformador da realidade social, injusta para significativa parcela do povo brasileiro (TAVARES, 1999).

Não basta, portanto, que o Promotor de Justiça se conforme apenas com a observância burocrática de seus deveres; não há mais lugar para o simples burocrata de processos.

Certamente, se o Promotor de Justiça continuar se contentando, apenas, com a realização de suas atividades processuais rotineiras, as quais continuam tendo, sem dúvida, sua importância, pouco ou quase nada contribuirá para a melhoria da qualidade de vida daquelas pessoas que estão impedidas de exercer a cidadania plena (TAVARES, 1999).

Com efeito, o Ministério Público Social é aquele que não se contenta em ouvir compassivo e inerte o relato do indignado e perplexo cidadão. Não é uma mera “válvula de escape” de ressentimentos e críticas sociais, já que a eficiência da atuação do Ministério Público está diretamente ligada à máxima realização dos direitos fundamentais sociais e das promessas não cumpridas da Constituição Federal (CAMBI, 2009).

Segundo Cambi (2009), esse Ministério Público Social, além de buscar o efetivo cumprimento das políticas públicas, deve também atuar na própria formulação delas; pode essa instituição, antes de promover a judicialização das políticas públicas, mobilizar os agentes públicos e a sociedade civil organizada, por intermédio do inquérito civil ou procedimento administrativo, utilizando-se dos mecanismos dos compromissos de ajustamento de conduta, das recomendações e das audiências públicas.

Cambi (2009, p. 489), ensina:

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[...] a maior responsabilidade do Ministério Público não é formular a política pública, mas agregar as forças estatais e sociais na efetivação dos direitos fundamentais. A atuação do Ministério Público se legitima como verdadeiro canal de comunicação entre a sociedade e o Poder Judiciário. Judicializando o sentimento social (...), a pretensão judicial adquire força social necessária à configuração de políticas públicas socialmente necessárias (grifos do autor)

Outro não é o entendimento de Goulart (1998, p. 97), para quem:

[...] seus membros, os promotores de justiça, devem agir como trabalhadores sociais comprometidos com as lutas pelo resgate da cidadania e pelo aprofundamento da democracia. [...] Isso implica mudança de mentalidade e de postura dos membros do Ministério Público. A defesa da sociedade, na globalidade de seus interesses, faz emergir um promotor de justiça cuja atuação extrapola os limites do processo judicial e das atividades ligadas à persecução penal [...]. Do ângulo político, só poderemos entender o promotor de justiça como trabalhador social, vinculado à defesa da qualidade de vida das parcelas marginalizadas da sociedade, a partir do momento em que rompa as barreiras que historicamente o isolaram dos movimentos sociais, passando a articular sua ação com esses movimentos.

Para Lopes (2000, p. 224):

O Parquet integra o núcleo da institucionalidade demarcada na Constituição de 1988 e, como tal, é uma instituição essencial para a efetivação das potencialidades da “democracia associativa” no Brasil. As razões mais fortes para a projeção de tal consideração no futuro residem na referida receptividade do Ministério Público aos interesses coletivos, indicando uma efetiva inclinação da sociedade para esta instituição, valorizando-a conforme se depreende de sua crescente visibilidade na mídia e nos conflitos contemporâneos mais relevantes.

O atual Ministério Público, intensificando suas relações com a sociedade civil, poderá contribuir ainda mais para a integração dos

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segmentos sociais tradicionalmente excluídos na história brasileira (LOPES, 2000).

O fato do Ministério Público ser dotado de independência funcional lhe permite atuar em defesa da inclusão social daqueles brasileiros que estão impedidos de exercitar sua cidadania e de ter uma vida digna.

Uma Experiência de Tentativa de Aprimoramento das Instituições em Londrina

O RACISMO INSTITUCIONAL ocorre quando uma organização pública ou privada não consegue prover um serviço adequado a uma pessoa por causa de sua cor, cultura ou origem étnica; esse racismo acontece de forma inconsciente, a partir de estereótipos racistas que se mostram nas atitudes dos profissionais e permeiam as atividades da organização, sem que seus integrantes e dirigentes o percebam. Mas, nem por isso, o racismo institucional deixa de ser doloroso para quem sofre com os seus efeitos.

Sobre o racismo institucional, assevera SANTOS (2013, p. 27):

O racismo institucional é revelado através de mecanismos e estratégias presentes nas instituições públicas, explícitos ou não, que dificultam a presença dos negros nesses espaços. O acesso é dificultado, não por normas e regras escritas e visíveis, mas por obstáculos formais presentes nas relações sociais que se reproduzem nos espaços institucionais e públicos. A ação é sempre violenta, na medida em que atinge a dignidade humana. O conceito foi incorporado pelos movimentos negros na América Latina, em especial no Brasil, o que ajuda a explicar a permanência dos negros em uma situação de inferioridade por mecanismos não percebidos socialmente.

E prossegue o autor (2013, p. 27 e 28):

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Há racismo institucional quando um órgão, entidade, organização ou estrutura social cria um fato social hierárquico – estigma visível, espaços sociais reservados -, mas não reconhece as implicações raciais do processo. (...) A discriminação pode ser sistêmica em vez de pessoal e, por conseguinte, mais difícil de identificar e de compreender, quando está internalizada e naturalizada por discursos de que se vive em um país miscigenado. Algumas vítimas negam que estejam oprimidas ou então aceitam sua condição, como se fosse um destino que a vida lhes proporcionou. Outras reagem oprimindo aqueles que estão “abaixo” delas.

Finaliza o autor (2013, p. 28):

O racismo institucional gera hierarquias através de práticas profissionais rotineiras, ditas “neutras” e universalistas, dentro de instituições públicas ou privadas que controlam espaços públicos, serviços ou imagens (lojas, bancos, supermercados, shoppings, empresas de segurança privada).

Sobre a violência sofrida pelo negro no Brasil, matéria publicada na Folha de Londrina, em 18 de outubro de 2013 (Folha Geral, pág. 7), e na Gazeta do Povo, também na mesma data (pág. 4), expõe um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre racismo no Brasil, o qual divulgou que a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior que a de um branco. Segundo o estudo, existe racismo institucional no País, expresso principalmente nas ações da polícia, mas que reflete “o desvio comportamental em diversos outros grupos, inclusive aqueles de origem dos seus membros”.

Segundo a matéria, os pesquisadores Almir Oliveira Junior e Veronica Couto de Araujo Lima, autores do estudo, afirmam “ser negro corresponde a fazer parte de uma população de risco: a cada três assassinatos, dois são de negros”.

Ainda, o Diretor da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia - DIEST, do IPEA, Daniel Cerqueira, afirma que mais de 60 mil pessoas são assassinadas a cada ano no Brasil, e “há um forte viés de cor/raça nessas mortes”, pois “o negro

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é discriminado duas vezes: pela condição social e pela cor da pele”. Assim, ele questionou: “Como falar em preservação dos direitos fundamentais e democracia diante desta situação?”

Ademais, conforme a matéria, o diretor da DIEST, Daniel Cerqueira, apresentou estatísticas para comprovar suas afirmações, demonstrando que as maiores vítimas de homicídios no Brasil são homens jovens e negros, “numa proporção 135% maior que os não negros: enquanto a taxa de homicídios de negros é de 36,5 por 100 mil habitantes. No caso de brancos, a relação é de 15,5 por 100 mil habitantes”.

Segundo a pesquisa do IPEA, caso se levem em conta agressões praticadas por policiais, os negros também são as vítimas em potencial. Justamente por isso os negros buscam menos ajuda policial em caso de agressão do que os brancos – 61% contra 38,2%.

Com o objetivo de intensificar suas relações com a sociedade civil e agregar as forças estatais e sociais na efetivação dos direitos fundamentais, e considerando que o Ministério Público deve posicionar-se ativamente na construção de uma nova realidade social e na defesa da cidadania plena, intervindo mais na defesa de direitos e garantias constitucionais sistematicamente desrespeitados, a 24ª. Promotoria de Justiça da Comarca de Londrina, que atua nas áreas dos direitos humanos, saúde pública e saúde do trabalhador, em abril de 2012, instaurou o Procedimento Administrativo nº MPPR-0078.12.001500-9, criando o Grupo de Trabalho (GT) de Combate ao Racismo de Londrina, com o encargo de construir estratégias de enfrentamento ao racismo por meio de discussão, sensibilização e capacitação de servidores públicos que atuam especialmente nas áreas da educação, saúde e segurança pública, já que, como é sabido, é mais do que urgente a necessidade de investir nas instituições, que, voluntariamente, quase nada realizam no combate à discriminação racial dissimulada e na capacitação de seus integrantes.

Para isso, a Promotoria de Justiça convidou o Centro de Direitos Humanos (CDH), a Gestão Municipal de Políticas de Promoção da

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Igualdade Racial (GPPIR), a Universidade Estadual de Londrina (UEL), o Núcleo Regional de Ensino, a Secretaria Municipal de Educação, a Autarquia Municipal de Saúde, o Conselho Municipal de Promoção de Igualdade Racial, o Fórum das Entidades Negras de Londrinas (FENEL), o Conselho Municipal da Educação, o Sindicato dos Eletricitários de Londrina e a Câmara Municipal de Londrina, para integrarem esse GT Racismo e participarem da sua 1ª. reunião, que ocorreu no dia 17 de abril de 2012.

No ofício-convite encaminhado a essas instituições, assinalou-se que uma das principais metas desse GT será a implementação das Leis Federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08 no município de Londrina, e que as pretendidas mudanças nessa área apenas ocorrerão se houver efetiva interação entre Ministério Público, Gestores Públicos, Instituições Educacionais, Conselhos Municipais e entidades que militam no movimento social negro.

No total, entre os anos de 2012 e 2014, o GT de Combate ao RACISMO se reuniu mais de vinte vezes, sob a coordenação da 24ª. Promotoria de Justiça da Comarca de Londrina e com a participação das instituições e entidades acima descritas. As reuniões foram realizadas sempre na Central de Atendimento ao Cidadão do Ministério Público, situada na Av. Duque de Caxias, nº 620, em Londrina.

Dessas reuniões surgiram propostas e sugestões para que fossem realizados encontros e palestras voltados para o combate ao racismo institucional, tendo, como público-alvo, servidores que atuam nas áreas da saúde, educação e segurança pública, e como tema principal, a Lei Federal nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história da África e da história e cultura do negro no Brasil.

O primeiro desses encontros, intitulado “Estudos Afrobrasileiros e Africanos: experiências de implementação da Lei 10.639/03”, realizou-se no dia 18 de outubro de 2012, no Anfiteatro Maior do CLCH/UEL e teve como público alunos, professores e pessoas

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envolvidas com o movimento negro, e, como promotores, o LEAFRO/UEL (Laboratório de Cultura e Estudos Afro-brasileiros), GT de Combate ao Racismo, Núcleo Regional de Ensino de Londrina - NRE, Secretaria Municipal de Educação de Londrina - SME, GPPIR – Gestão Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, e o CMPIR – Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial.

O segundo – intitulado “10 anos da Lei 10.639/03: balanço e perspectivas” – foi promovido pelo LEAFRO, NRE, GPPIR e pelo NEAA/UEL – Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos, com apoio do GT de Combate ao Racismo e ocorreu no dia 21 de março de 2013, na UEL, tendo, como conferencista o Prof. Dr. Acácio Almeida Santos (PUC/SP), e, como público diretores e professores da rede pública de educação;

O terceiro encontro ocorreu no dia 4 de junho de 2013, na UEL, tendo como tema a Segurança Pública e o Racismo Institucional. A palestra intitulada “Tutela Penal da Igualdade Racial e da Diversidade Cultural e Religiosa”, dirigida a policiais militares e guardas municipais de Londrina, foi proferida pelo Prof. Dr. Hedio Silva Jr.

No dia 20 de setembro de 2013, realizou-se o quarto encontro, no auditório do HU/UEL, o tema foi “A Saúde Pública e o Racismo Institucional” e a conferencista a Prof. Dra. Maria Inês da Silva Barbosa, falou sobre o Racismo e a Saúde da População Negra para servidores municipais e estaduais da saúde. Este encontro foi uma realização da UEL, LEAFRO, NEAA, GT de Combate ao Racismo e Secretaria Municipal de Saúde (Prefeitura Municipal de Londrina).

O quinto encontro ocorreu na Faculdade Pitágoras, em Londrina, no dia 30 de outubro de 2013, ocasião em que foram ministradas duas palestras, uma pela professora Maria Nilza da Silva e a outra pelo promotor de Justiça Paulo César Vieira Tavares, durante o Curso de Formação da 2ª. Turma da Guarda Municipal de Londrina.

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Por fim, entre os dias 11 e 13 de novembro de 2013, ocorreu a “SEMANA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA - Yá Mukumby: A Cultura Negra como expressão de luta e de vida”, na UEL, como homenagem à Dona Vilma Santos de Oliveira, com promoção da Universidade Estadual de Londrina, do Laboratório de Cultura e Estudos Afro-Brasileiros - LEAFRO, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros - NEAB, do Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo e do Núcleo Regional de Educação de Londrina - NRE.

Esse evento, do dia 11 de novembro, contou com a conferência intitulada “A Lei 10.639/03, os Direitos Humanos e o Combate ao Racismo”, proferida pelo Prof. Dr. Ivair Augusto dos Santos, com a realização de oficinas e com a Mesa Redonda: “A Lei 10.639/03 nas escolas: os desafios para a efetiva implantação”.

No dia 12 de novembro, a Mesa Redonda versou sobre o tema: “Yá Mukumby, a cultura negra como expressão de luta e de vida. Em seguida foram apresentados filmes/documentários e proferidas conferências pelo promotor de Justiça Paulo César Vieira Tavares (Crimes de Racismo e o Racismo Institucional) e pela Prof. Dra. Maria José de Rezende, (A Lei 10639/03 nas escolas: os desafios para a efetiva implantação.

E, no dia 13 de novembro, foram realizadas a mesa redonda: A religião de matriz africana e a religião na África, as oficinas e a conferência de encerramento intitulada “As políticas governamentais e a Lei 10.639/03”, proferida pelo Dr. Zulu Araújo.

Desse modo, o GT de Combate ao Racismo, ao co-promover seminários, palestras, debates e reuniões, envolvendo os dirigentes e servidores de instituições públicas, além de representantes e membros de entidades e do movimento negro, está contribuindo para a desconstrução do racismo nas instituições e nas relações interpessoais.

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IMEDIATISMO VERSuS PRECISÃO: a cobertura do assassinato de Yá Mukumby na imprensa

Guilherme Souza COSTA18

Introdução

A triste história, uma tragédia ocasionada por uma discussão passional entre um casal, relatada a seguir, ganhou as páginas dos principais jornais da cidade na manhã seguinte ao acontecimento. Porém, as versões do fato ainda devem ser examinadas com mais investigações, devem também ser ouvidas testemunhas que levam a crer que o fim trágico de Yá Mukumby, a D. Vilma, tenha sido provocado por racismo e intolerância religiosa. Este artigo tem como objetivo mostrar como, em virtude do imediatismo, do tão procurado “furo jornalístico”, muitas vezes as páginas dos jornais não conseguem exprimir com precisão a verdadeira gravidade e o contexto dos fatos.

“A âncora ética do jornalismo, da qual deriva a responsabilidade moral de cada jornalista pelo seu fazer, é o direito individual e universal de investigar, receber e difundir informações e opiniões” (CHAPARRO, 1994, p.22)19. Não cabe aqui, portanto, acusar ou criticar a imprensa local, de omissa ou dissimulada, pois, como veremos adiante, o jornalista, de acordo com a lógica da rotina produtiva, acabaria alheio e inconsciente em relação ao trabalho que produz atendo-se a relatos fragmentados, manipulados e muitas vezes guiados por uma pragmática controversa.

18 Mestrando do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL), 2013. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação em jornalismo e especialização em Língua Inglesa pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).E-mail: [email protected] CHAPARRO, Manuel Carlos. Pragmática do Jornalismo: buscas práticas para uma teoria da ação jornalística. São Paulo. Summus, 1994.

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Para uma maior reflexão sobre aspectos que podem ter levado a uma cobertura parcial, levantamos algumas discussões teóricas a respeito do papel do jornalismo e de suas práticas produtivas. São apresentadas algumas perspectivas que procuram justificar a existência de trabalhos jornalísticos que, por imediatismo, sacrificam a precisão e a análise adequadas das informações e acabam fazendo um relato parcial ou fragmentado da realidade e sendo, muitas vezes, manipulados ou influenciados pelos meios de comunicação.

Temos também um problema do que realmente está em discussão aqui, a dificuldade da constatação dos crimes por intolerância a crenças, costumes e cor no Brasil. Veremos que, apesar do direito à crítica e à liberdade de expressão, não se reconhece a intolerância às diferenças religiosas como origem e motivação de atos de violência ou injúria à dignidade humana; todavia, a prática dessa intolerância ainda é corrente na sociedade brasileira.

Apresentamos a sequência lógica dos fatos utilizados para exemplificar as discussões aqui colocadas, com base nas próprias informações obtidas dos principais portais de notícia da cidade de Londrina, no norte do Paraná, onde a tragédia ocorreu: o Bondenews e o Jornal de Londrina. Levamos em consideração os portais online, pois são os que, devido à facilidade de transmissão, atingiram o público mais rapidamente e, portanto, são os que mais se prestam como subsídio ao que nos propomos analisar (velocidade na difusão das informações). Vale ressaltar que nos dias subseqüentes às reportagens comentadas, as edições impressas eram distribuídas na Folha de Londrina (parceira do Bondenews) e no próprio Jornal de Londrina com conteúdo equivalente.

Em seguida, fazemos um breve retrospecto da vida e importância da líder no Movimento Negro em Londrina, Yá Mukumby, morta na tragédia, buscando situar e justificar a repercussão dos fatos que puseram fim à vida de uma importante figura da luta pelos direitos das minorias no Brasil.

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Mais adiante, apresentamos uma descrição e análise da sequência de matérias que compõem a cobertura do caso pela “grande imprensa” londrinense, mostrando que, em um primeiro momento, as reportagens sempre se basearam em declarações oficiais e acabaram por “subestimar” o impacto da tragédia, que posteriormente viria a figurar como exemplo de crime por intolerância religiosa, de acordo com a denúncia feita pelo Ministério Público. Faltam testemunhas, detalhes, análises e pluralidade nos pontos de vista apresentados, os quais mostram que o reconhecimento do problema das práticas de intolerância e sua erradicação ainda constituem um desafio para os governantes, cidadãos, educadores e, por que não, para os meios de comunicação?

COBertura jOrnalístiCa: fragmentaçãO, pragmatismO e manipulaçãO

O jornalista Claudio Abramo entrevistado certa vez pela revista Imprensa disse que o enunciado impositivo “ouve-se as duas partes” não pode ser discutido, pois é o fundamento do jornalismo. Carlos Alberto Di Franco (1985), em suas discussões sobre ética no jornalismo explica melhor essa afirmação:

De fato, se a verdade fosse impossível de ser atingida, a apresentação das diversas versões de um fato representaria uma alternativa válida. Seria uma manifestação concreta do jornalismo imparcial, que procura ouvir o outro lado. No entanto, o bom repórter não pode ficar satisfeito com mero registro das diferentes versões. A informação de qualidade reclama um esforço adicional. O jornalista deve, na feliz expressão de Claudio Abramo, procurar a “verdade que está camuflada atrás da verdade aparente”. Ser imparcial não é difundir coisas a meio caminho entre a verdade e a mentira, sem o esforço de refletir a verdade objetiva (DI FRANCO, 1995, p. 26)20.

20 Di Franco, Carlos Alberto. Jornalismo, ética e qualidade. Petrópolis, RJ: Vozes.1995, p. 26.

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A urgência em transmitir a notícia, o mais rápido possível, pode levar à difusão parcial dos acontecimentos. A fragmentação da realidade, muitas vezes explicitada nas narrativas jornalísticas, é uma forma importante de manipulação. Sobre essa perspectiva, Ciro Marcondes Filho afirma:

A produção fragmentada de notícias assim, é uma técnica também mercadológica. Opera-se, nesse caso, a desvinculação da notícia de seu fundo histórico-social, e, como um dado solto, independente, ela é colocada no mercado da informação; são destacados aspectos determinados (o sensacional, a aparência de valor do uso) e outros permanecem em segundo plano. Como os demais produtos do mercado ela deixa de transmitir em seu corpo um processo de trabalho. Torna-se uma coisa jogada no mundo, um fato sem origem e sem vinculação com nada. A informação reificada é correspondente jornalístico do fetichismo geral da mercadoria no mundo da produção capitalista (MARCONDES,1986. p. 41)21.

Este autor compara a rotina de produção de uma redação de jornal com o modelo clássico das linhas de produção criticadas pela teoria marxista. Ele acredita que a fragmentação da realidade ocorrida nos relatos jornalísticos pode ser explicada com base no conceito de alienação de Karl Marx22. No modo capitalista de produção existe uma ruptura entre o homem e o produto de seu trabalho. Ao invés de reconhecer no produto, o homem se considera estranho a ele. Esse não-reconhecimento cria uma consciência dividida em razão da qual os produtos da atividade humana assumem estranhamente suas próprias características, gerando uma visão fragmentada da realidade, o que acaba repercutindo na produção de notícias. Segundo Marcondes Filho, a fragmentação do mundo é a forma da burguesia vê-lo e entendê-lo. A consequência disso, segundo o autor, é sua descontextualização na

21 MARCONDES Filho, Ciro.O Capital da Notícia – Jornalismo como produção social da segunda natureza. São Paulo. Ática, 1986. p. 41.22 “Alienação dos trabalhadores enquanto são integrados, através de tarefas puramente executivas e despersonalizadas, na estrutura técnico hierárquica da empresa individual, sem ter nenhum poder nas decisões fundamentais”. (BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicolas; PASQUINO, Giangranco. Dicionário de política. 11 ed. Brasília: UNB, 1998). Extraído do proposto teórico de Karl Marx.

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história e o esvaziamento dos seus responsáveis por impedir que se vejam as contradições e a complexidade da sociedade em que vivemos, o que dificulta o entendimento da realidade.

O jornalista Fábio Silveira (2004, p. 86 e 87)23 complementa essa ideia: “A fragmentação dos fatos evita a visão sobre o processo e facilita uma outra forma de manipulação da notícia: a personificação da história e dos fatos sociais”. Já Manuel Carlos Chaparro (1994, p. 17 e 18)24 encontra na multiplicidade de fatores a razão dessa fragmentação, já que as ações, os fazeres e seus contextos são de alta complexidade, pois se trata de um processo social e cultural de intermediação, com múltiplos emissores produtores e receptores usuários.

Ao falarmos de uma pragmática no jornalismo, levantamos uma discussão sobre os fazeres intencionados que conferem ao componente intenção o valor de atributo de equilíbrio de unidade do bom texto jornalístico, entendido como relato verdadeiro e compreensível da atualidade. (CHAPARRO, 1994, p. 13). Nas pesquisas sobre a intencionalidade no momento da reportagem, Manuel Carlos Chaparro acredita em uma tríade inseparável de ética, técnica e estética que deve guiar o campo jornalístico. De acordo com o autor, o trabalho jornalístico deve ater-se ao modo como se manifestam, se escondem ou se simulam os propósitos que motivam as intenções controladoras das mensagens jornalísticas. O jornalista deve saber como detectar os interesses que estão conectados a tais propósitos e que princípios éticos inspiram as intenções ordenadoras da ação jornalística. É necessário graduar a influência da explicitação ou não-explicitação das intenções e como elas atuam sobre a vontade no leitor, no que se refere à decisão de ler ou não ler, aceitar ou rejeitar a mensagem.

Em busca de respostas, de acordo com Chaparro, dois caminhos devem ser seguidos, simultâneos e convergentes: um caminho de observação para captar dados de indícios que permitam construir um

23 SILVEIRA, Fábio. Imprensa e política: o caso Belinati. Londrina: Edições Humanidades, 2004. 24 CHAPARRO, Manuel Carlos. Pragmática do Jornalismo: buscas práticas para uma teoria da ação jornalística. São Paulo. Summus, 1994.

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cenário significativo de práticas jornalísticas; e um caminho de busca de conexões teóricas para o entendimento e a explicação dos fenômenos observados e para a sustentação da proposta final (CHAPARRO, 1984, p.13 e 14).

Em estudos sobre padrões de manipulação no jornalismo, sobretudo na grande imprensa, Perseu Abramo distingue cinco momentos em que ocorre um desvio na lógica e nas práticas discursivas no fazer jornalístico: padrão de ocultação (no momento em que se decide que um fato não é jornalístico, ele está excluído da cobertura jornalística e, automaticamente, excluído da realidade); padrão de fragmentação (uma vez escolhido o fato jornalístico, ele será fragmentado em inúmeros fatos particularizados, muitas vezes desconectados entre si, ou reconectados e vinculados de forma arbitrária); padrão de inversão (reordenamento das partes, troca de lugares e de importâncias); padrão de indução (resultado das escolhas dentro do processo de produção jornalística enquanto empreendimento capitalista); e padrão global ou específico do jornalismo de radiodifusão – compreende três momentos distintos: a exposição do fato (apelo à emoção); a sociedade fala (queixas, propostas, dores, alegrias de personagens envolvidos); a autoridade resolve (providências, soluções no caso dos fatos naturais, condenar o mal/ enaltecer o bem no caso dos fatos sociais. Esse esquema visa desestimular a ação da sociedade. (ABRAMO, 2003)25.

As práticas de intolerância no Brasil

Em sua pesquisa sobre direitos humanos e práticas de racismo, Ivair Augusto Alves dos Santos (2013)26 afirma que o reconhecimento da existência de práticas discriminatórias por intolerância no Brasil ainda é um tema tabu por parte significativa

25 ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.26 SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. Direitos Humanos e as práticas de racismo. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2013.

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da sociedade. “Reconhecer que esse racismo resultar decorrente de práticas ou da omissão de instituições ainda não faz parte do conceito das agências do sistema de justiça, por exemplo”. (SANTOS, 2013, p.23).

A terminologia utilizada nos crimes raciais para designar o conjunto de comportamentos criminosos, descritos na Lei n°7.716, de 1989, e o rigor técnico recomendariam a expressão “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Recorrendo à Constituição Federal de 1988, poderia ser utilizada a expressão crimes raciais, uma vez que o artigo 5°, inciso XLII, preceitua que a prática do racismo constitui crime. (SANTOS, 2013, p.57)

Entretanto, o racismo recebe diversas interpretações e as dificuldades de mostrar como ele se manifesta persistiram, uma vez que o racismo não é simplesmente um incidente. Em cada momento da infração os atores têm consciência dos direitos de cada um, o que torna um eufemismo chamar a discriminação racial de disfarçada ou cordial, em um país em que hierarquia social é tão forte que acaba precedendo os direitos, e onde as ideias racistas convivem com essa hierarquia e a alimentam quotidianamente. (SANTOS, 2013, p.58)

Ivair dos Santos (2013, p.203) complementa dizendo que as mulheres negras desempenharam um papel fundamental na história da sociedade brasileira, lutando contra todas as adversidades, e por isso, construíram alternativas em busca de sua liberdade e independência. A solidariedade e o compromisso com a família representaram um diferencial que se refletiu na resposta aos atos de violência racial no cotidiano. Na visão do autor, mesmo apresentando os piores índices sociais, com enormes barreiras para ter acesso ao sistema de justiça, as mulheres negras ultrapassam as dificuldades e denunciam as injustiças sofridas (SANTOS, 2013, p.203).

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De acordo com o portal guiadedireitos.org, a intolerância religiosa é um conjunto de ideologias ou atitudes ofensivas a diferentes crenças e religiões. Em casos extremos, ela pode se converter em perseguição e crime de ódio que ferem a dignidade e atentam contra a vida humana (GUIADEDIREITOS.ORG, 2013)27.

Vale ressaltar que as liberdades de expressão e culto são asseguradas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal. De acordo com ambos os documentos, a religião e a crença de uma pessoa não devem constituir barreiras para o modo como alguém se comporta.

O Brasil é um país de Estado Laico, isso significa que não há uma religião oficial brasileira e que o Estado se mantém neutro e imparcial às diferentes religiões. Desta forma, há uma separação entre Estado e Igreja; o que, teoricamente, assegura uma governabilidade imune à influência de dogmas religiosos. Além de separar governo de religião, a Constituição Federal também garante o tratamento igualitário a todos os seres humanos,  quaisquer que sejam suas crenças (GUIADOSDIREITOS.ORG, 2013).

A apuração da jornalista Julina Steck (2013)28 ainda mostra que o agressor costuma usar palavras ofensivas contra o grupo religioso atacado e contra os elementos, deuses e hábitos da religião, desmoralizando símbolos religiosos, destruindo imagens, roupas e objetos ritualísticos. Em situações extremas, a intolerância religiosa pode incluir violência física e se tornar uma perseguição. A pesquisa da autora ainda lembra que crítica não é o mesmo que intolerância. “O direito de criticar encaminhamentos e dogmas de uma religião,

27 GUIADEDIREITOS.ORG. Intolerância Religiosa. Disponível em <http://www.guiadedireitos.org/index.php?option=com_content&view=article&id=1041&Itemid=263 > acesso em 20 de janeiro de 2014.28 STECK, Juliana. Intolerância religiosa é crime de ódio e fere a dignidade. Portal de Notícias do Senado. 16 de abril de 2013. Disponível em <http://www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/2013/04/16/intolerancia-religiosa-e-crime-de-odio-e-fere-a-dignidade > acesso em 20 de janeiro de 2014.

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desde que isso seja feito sem desrespeito ou ódio, é assegurado pelas liberdades de opinião e expressão” (STECK, 2013).

[...] é importante salientar que a crítica religiosa não é igual à intolerância religiosa. Os direitos de criticar dogmas e encaminhamentos de uma religião são assegurados pelas liberdades de opinião e expressão. [...] Essas críticas são essenciais ao exercício de debate democrático e devem ser respeitadas em seus devidos termos (GUIADOSDIREITOS.ORG, 2013).

Mas Steck (2013) ressalta que, no acesso ao trabalho, à escola, à moradia, a órgãos públicos ou privados, não se admite tratamento diferente em razão de crença ou religião. Isso também se aplica a transporte público, estabelecimentos comerciais e lugares públicos, como bancos, hospitais e restaurantes.

A tragédia

Na noite de 03 de agosto de 2013, por volta das 21h30, o acusado, 30 anos, morador do Jardim Champgnat, zona oeste da cidade de Londrina, região norte do Paraná, teve uma discussão com a companheira, Patrícia Amorim Dias, de 19 anos, e na sequência esfaqueou e matou a própria mãe, Ariadne Benck dos Anjos, 48 anos, que tentava apartar a briga ao presenciar a agressão à moça. Nu e levado por ímpeto incontrolado, o rapaz foi até a casa vizinha e atacou a família que lá morava. Na residência, estavam a mãe de santo e líder do Movimento Negro de Londrina, Vilma Santos de Oliveira, conhecida como Yá Mukumby, de 63 anos, a mãe dela, Allial de Oliveira Santos, de 86 anos, e a neta, Olívia Santos de Oliveira, de 10 anos. Todas foram mortas a facadas. (ELORZA, FRAZÃO, 2013; REDAÇÃO BONDE; 2013)29.29 ELORZA, Thelma. FRAZÃO, Marcelo. Yá Mukumby e mais três pessoas são assassinadas a facadas na zona oeste. Jornal de Londrina, 04 de agosto de 2013. Disponível em < http://www.jornaldelondrina.com.br/cidades/conteudo.phtml?tl=1&id=1396591&tit=Ya-Mukumby-e-

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Yá Mukumby

Vilma Santos de Oliveira, a D. Vilma - ou Yá Mukumby, como é conhecida - nasceu em Jacarezinho, interior do Paraná em 17 de julho de 1950. Filha de Allial Oliveira dos Santos e Antonio dos Santos, D. Vilma passou os dezoito primeiros anos de vida em Londrina em uma casa cedida pelo tio, criada somente pela mãe que trabalhava como costureira, já que o pai falecera apenas onze dias após seu nascimento. Casou-se aos 24 de anos de idade, em 1974, com Flávio de Oliveira. Tiveram quatro filhos e adotaram mais dois.

Dona Vilma teve sua vida escolar marcada por diversos problemas em decorrência da discriminação racial que sofria na adolescência, o que lhe impedira de completar o ensino médio. Passou a participar de cultos umbandistas, conhecendo o Candomblé por intermédio de uma tia, Maria Almeida de Andrade. Foi quando ela se identificou com a religião. Após o processo de iniciação, cumpriu as primeiras obrigações (rituais que implicam a realização de tarefas) no Candomblé, passando a ser a Yá Mukumby, a Mãe de Santo filha de Ogum, o Orixá guerreiro.

Inicialmente, sua organização religiosa Ilê Ogum Mêge estava instalada num quarto e posteriormente num terreiro improvisado nos fundos da casa, localizada no Jardim Hedy, em Londrina. Depois foi transferida para a sede própria, localizada na divisa das cidades de Londrina e Cambé; suas atividades foram iniciadas na década de 1970. No local, foram realizados vários projetos socioeducacionais e culturais, cujo principal objetivo foi promover a cidadania e a preservação da cultura afro-brasileira, atingindo principalmente os grupos populacionais marginalizados e discriminados.

A luta pelas ações afirmativas, como as cotas nas universidades e projetos socioeducacionais destinados à população negra, estão

mais-tres-pessoas-sao-assassinadas-a-facadas-na-zona-oeste> acesso em 20 de janeiro de 2014. REDAÇÃO BONDE. Yá Mukumby e mais três morrem esfaqueados em Londrina. Bondenews, 04 de agosto de 2014. Disponível em < http://www.bonde.com.br/?id_bonde=1-3--111-20130804 > acesso em 20 de janeiro de 2014.

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presentes em sua trajetória de vida. Percebe-se também a perspectiva de afirmação e preservação da cultura de origem africana. Yá Mukumby levantou a questão da importância das Casas de Candomblé para a resistência da cultura afro-brasileira. A proposta era agregar o movimento negro e suas ações, a partir dessas Casas, reconhecendo a contribuição dessas organizações religiosas para reunir a população negra. A primeira ação de D. Vilma foi criar o projeto Resgate da Raça Negra, Tradições e Identidade (Pro-Ranti), que foi sediado na época no Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Londrina (IPAC).

Por meio de sua representação religiosa30, Yá Mukumby exerceu o papel de foco de resistência e preservação da cultura negra, reivindicando políticas públicas voltadas às famílias de santo e para o espaço dos Terreiros. No terreiro de Yá Mukumby se realizam os 18 subprojetos culturais e sociais do Pro-Ranti, incrementados por oficinas itinerantes: percussão, afoxé, dança afro, teatro, costura, fabricação de sabão, pães, pizza, culinária, cantos africanos e capoeira.

D. Vilma participou em vários projetos universitários, prestando assessoria a professores e alunos, ministrando cursos e fazendo parte de comissões universitárias, bem como junto à comunidade, contribuindo intensamente nos debates, inclusive para a instituição do sistema de cotas da Universidade Estadual de Londrina em 2004/2005.

Em 20 de novembro de 2002, Dia da Consciência Negra, recebeu, ao lado do Dr. Oscar do Nascimento, o prêmio Zumbi de Palmares, que objetiva homenagear militantes do Movimento Negro, concedido pela Câmara Municipal de Londrina. (LANZA et. all, 2013)31. “A vida de Dona Vilma é marcada por uma militância a favor daqueles

30 O mundo das representações é vasto e complexo. Sejam elas formais, estatísticas, gráficas, cartográficas, sociológicas, das narrativas históricas. Podemos falar, ainda, das representações religiosas, poéticas e das artes em geral. A representação figura a realidade, seja ela política, científica ou no campo da magia, dos rituais, da convivência humana. O sujeito penetra no tempo e no espaço, por meio de experiências fundadas em estruturas mentais, feitas de intuições, crenças, convicções, certezas, sonhos e expectativas (SOUZA NETO, João Clemente de; SCHRAMM, Y. A influência das representações religiosas no processo de aprendizagem do sujeito. IX Congresso Luso-Afro Brasileiro de Ciências Sociais. Universidade Agostinho Neto. Luanda - Angola, 2006, p.3).31 LANZA, Fabio. [et. Al.]. Yá Mukumby: a vida de Vilma Santos de Oliveira. 2. Ed.revisada e ampliada. Londrina. UEL, 2013.

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que estão em situação de maior sofrimento social, seja por causa das injustiças, especialmente o racismo e a discriminação racial, ou por causa dos sofrimentos inerentes à vida humana” (SILVA, 2010, p.13)32.

A imprensa

A difícil arte de informar faz do jornalismo uma profissão com enormes exigências capacitivas de seus exercitores, que requer diversas outras qualidades como uma moral ética irretocável e senso de responsabilidade para que a comunicação entre veículo e espectador seja feita de maneira correta, o mais imparcial e apropriada possível (ROSSI, 1980, p.17)33.

A tragédia que ocorreu com Yá Mukumby foi pela primeira vez noticiada no domingo dia 4 de agosto de 2013, logo na manhã seguinte ao fato, às 8h53 da manhã pelo portal de notícias online Bondenews, e às 12h53 pela página da internet do Jornal de Londrina. A matéria do Bonde se inicia com uma estrutura de lide clássica (onde se contam os principais momentos do evento – quem, quando, onde, como e por quê? (LAGE, 1987)34) e segue com um relato do comandante da Polícia Militar em Londrina, Samir Elias Geha, que descreveu a sequência de atos que levaria à morte da mãe do acusado e da família de Yá Mukumby. A reportagem ainda conta como testemunhas conseguiram deter o rapaz, preso em flagrante, e dá informações a respeito do sepultamento das vítimas35. A matéria termina com uma citação do coronel lamentando o ocorrido.

32 SILVA, Maria Nilza. Dona Vilma: uma mulher-referência. In. LANZA, Fabio. [et. Al.]. Yá Mukumby: a vida de Vilma Santos de Oliveira. 2. Ed.revisada e ampliada. Londrina. UEL, 2013. p.11-13.33 ROSSI, Clóvis. O que é jornalismo?. São Paulo. Brasiliense, 1980.34 LAGE, Nilson. Estrutura da notícia. Rio de Janeiro. Novos Tempos, 1987.35 Yá Mukumby seria velada no centro Ilê Axe Ogum Megê, na Rua Elis Regina, 23, no Jardim Ana Elisa 3, em Cambé. A mãe e a neta dela seriam veladas no mesmo local. O sepultamente deveria ocorrer às 9 horas da segunda-feira seguinte, no Cemitério Jardim da Saudade, em Londrina. Já a mãe do rapaz preso em flagrante pelos homicídios seria velada na Igreja Batista na Rua Serra da Tabatinga, 205, no Jardim Bandeirantes, na zona oeste de Londrina. Ela seria sepultada no domingo, também no Cemitério Jardim da Saudade.

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A reportagem do Jornal de Londrina, publicada pouco menos de quatro horas depois, já contextualiza o leitor sobre quem é Yá Mukumby, caracterizando-a como líder do Movimento Negro em Londrina. A matéria se sustenta inteiramente nos relatos do delegado de plantão Wilian Soares, que se preocupa em caracterizar o autor dos crimes como uma pessoa fora do estado psicológico normal. Os jornalistas também se preocuparam em dar informações sobre os sepultamentos das vítimas. Ao fim do texto, ele declara que, apesar da presença de muitas estátuas religiosas quebradas no local do crime, a hipótese de motivação religiosa para o crime estava descartada36.

Nas horas e dias que sucedem o caso do assassinato de D. Vilma, o a caso ganha repercussão nacional sob as seguintes manchetes: “Vítimas são veladas em Cambé e Londrina”, “Preso por assassinato passava por crise de abstinência, diz familiar”, “Médico será convocado para explicar quadro clínico de homem que matou 4”, “Morte de Yá Mukumby repercute nacionalmente”, “Para delegado, cena do crime foi a mais estarrecedora em 11 anos como policial”, “Corpo de Yá Mukumby é sepultado sob salva de palmas”, “Acusado de chacina tentou agredir amigo e falava em ‘fim dos tempos’”, “’Ele estava diferente’, diz avó”, “Delegado descarta motivação religiosa na morte de Yá Mukumby”, “Polícia descarta motivação religiosa em chacina”, “Acusado de chacina em Londrina é indiciado por cinco crimes”37.

Entretanto, em 22 de agosto de 2013, reportagem de Iara Vilela ao Jornal de Londrina, traz uma abordagem diferente no tratamento do fato quando noticia que o Ministério Público identifica intolerância religiosa nos crimes cometidos contra Yá Mukumby e sua família. Em entrevista à jornalista, o promotor de Justiça Thadeu de Goes Lima afirma que os atos se caracterizam como intolerância religiosa. Na 36 ELORZA, Thelma. FRAZÃO, Marcelo. Yá Mukumby e mais três pessoas são assassinadas a facadas na zona oeste. Jornal de Londrina, 04 de agosto de 2013. Disponível em < http://www.jornaldelondrina.com.br/cidades/conteudo.phtml?tl=1&id=1396591&tit=Ya-Mukumby-e-mais-tres-pessoas-sao-assassinadas-a-facadas-na-zona-oeste> acesso em 20 de janeiro de 2014.37 Jornal de Londrina. Disponível em <http://www.jornaldelondrina.com.br/busca/?q=y%E1+ mukumby&cx=partner-pub-0141764858669736%3Atfrua3-vif6&buscatermo=Procure+Not%EDcias&cof=FORID%3A11&ie=ISO-8859-1&pr=2173&ok=# > acesso em 20 de janeiro de 2014.

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sequência, a reportagem mostra que a decisão do promotor se deu após encontros com lideranças do Movimento Negro em Londrina, as quais lhe relataram que o autor do crime já vinha demonstrando um comportamento diferente e motivado por intolerância religiosa. A matéria ainda traz comentário do delegado Wilian Douglas Soares, até então responsável pelo caso, cuja opinião contradiz a do promotor. Mas Soares afirma na entrevista respeitar a opinião do MP38.

Imediatismo versus precisão Nilson Lage (2006, p.23)39 aponta para a existência de dois papéis

que o repórter assume em sua produção jornalística. O primeiro deles é como testemunha: além de traduzir, deve confrontar as diferentes perspectivas e selecionar fatos e versões que permitam ao leitor orientar-se diante da realidade. O segundo papel é como agente: ele tem que estar onde o espectador não está.

Em um campo marcado pela concorrência, a importância da agilidade na emissão da informação estabelece o que Nelson Traquina (2006, p.40)40 denomina lei do ganho no jornalismo. Ou seja, quem ganha é quem dá primeiro a notícia. Para o autor, a relação entre o tempo e o jornalista é tão fundamental que constitui em fator central na definição de competência profissional.

Percebe-se que, obedecendo às características intrínsecas do jornalismo, o relato da tragédia estava, em poucas horas, disponível para os leitores se informarem da situação. Entretanto, observa-se também que as notícias veiculadas mais próximas à data do evento, ou seja, as que obedeceram em maior grau à regra do imediatismo, são as que mais carecem de clareza, eficiência e precisão. Por exemplo, 38 VILELA, Iara. MP aponta intolerância religiosa como motivo para chacina em Londrina. Jornal de Londrina, 22 de agosto de 2013. Disponível em <http://www.jornaldelondrina.com.br/brasil/conteudo.phtml?id=1401987> acesso em 20 de janeiro de 2014. 39 LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2006.40 TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo Volume II. A tribo – uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Ed. Insular, 2006.

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a primeira matéria veiculada pelo portal Bondenews, que mostrou apenas o relato de um porta-voz oficial, não construiu uma sequência lógica dos fatos que facilitasse ao leitor acompanhar os fatos ou que lhe permitisse construir um cenário dos fatos ocorridos. Também apenas com o passar dos dias é que foram ouvidas outras testemunhas da ocorrência. Apenas no dia 22 de agosto, quase vinte dias após a tragédia, é que se levou em consideração a intolerância religiosa como a verdadeira motivação do crime segundo a promotoria. A obrigação ética do jornalista de ouvir os dois lados da história também demorou a ser cumprida, a defesa do acusado só chegou a ser ouvida pelos repórteres Bruna Quintanilha e Lucas Emanuel Andrade, do portal de notícias Bondenews, em dezembro de 2013. Resultado da entrevista: o advogado Fabrício Almeida Carraro também desacreditou a hipótese de crime por intolerância religiosa.

Considerações finais A triste história de vida de D. Vilma, a Yá Mukumby, mulher

guerreira e uma das principais figuras na luta contra as injustiças às minorias no nosso país, ganhou o conhecimento público em poucas horas devido ao trabalho dos jornalistas. Porém, como analisamos aqui, muitas vezes o imediatismo não trabalha a favor da precisão na prática jornalística. Os primeiros relatos mostram a chacina como resultado de um surto de um homem psicologicamente instável desencadeado por uma briga com a companheira. Porém, restritos a declarações oficiais, podemos perceber uma demora para que outra possível versão da história ganhasse as páginas dos jornais: a existência de um crime por intolerância religiosa.

Como podemos perceber ao longo deste texto, isso ocorreu devido a dois condicionantes presentes nas dinâmicas sociais que envolvem a sociedade e os meios de comunicação: a lógica das rotinas produtivas em detrimento da qualidade da informação e as dificuldades de

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tematização das injustiças cometidas contra as minorias, entravadas por tabus, posicionamentos baseados numa falsa harmonia nas relações sociais entre os indivíduos no Brasil.

Claro que não cabe aqui acusar um ou outro jornalista ou órgão de imprensa por falta de imparcialidade, competência ou ética. Estão todos envolvidos em um complexo processo em que os próprios dinamismos das instituições tomam conta da consciência individual, alienando o produtor de seu produto, que no caso do jornalismo, se constitui em relatos fragmentados ou mal contextualizados.

Também são inegáveis as dificuldades dos diversos setores de nossa sociedade em reconhecer a existência de práticas abusivas e ofensivas contra as minorias em nosso país - seja por crença, raça, orientação política, etc. Como diz o sociólogo Florestan Fernandes, a ausência de tensões abertas e de conflitos permanentes não pode, em si, ser considerada um índice de boa organização das relações raciais. Diz o autor: “a liberdade de preservar os antigos ajustamentos discriminatórios e preconceituosos, porém, é tida como intocável, desde que se mantenha o decoro e suas manifestações possam ser encobertas ou dissimuladas”. (FERNANDES, 1972, p.24)41. A possível condenação do acusado no caso da chacina aqui relatada como crime de intolerância religiosa seria, portanto, um grande avanço e exemplo para a sociedade brasileira no combate ao racismo e à intolerância religiosa.

Referências bibliográficas

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41 FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo. Ed. Difel, 1972.

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FOTOGRAFIAS

VILMA SANTOS DE OLIVEIRA

Yá Mukumby

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Lançamento da Biografia Yá Mukumby: A vida de Vilma Santos de Oliveira18/11/2010 - CESA/UELFoto: Leonardo Okuyama

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Lançamento da Biografi a Yá Mukumby: A vida de Vilma Santos de Oliveira18/11/2010 - CESA/UELFoto: Leonardo Okuyama

Foto: Leonardo Okuyama

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Lançamento do livro O negro na universidade: O direito à inclusão - 2006Dora Lucia Bertulio, Dona Vilma, Maria Nilza da Silva e Jairo Queiroz Pacheco Foto: Álbum de família

Lançamento do livro O negro na universidade: O direito à inclusão - 2006Foto: Álbum de família

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Evento realizado no anfiteatro do CCH/UELFoto: Cedida pelo Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos/NEAA

Foto: Maria Nilza da Silva

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Mesa de abertura do Encontro de Segurança Pública e Racismo Institucional 04/06/2013 – Prédio PDE/UEL. Maria Nilza da Silva (UEL), Samir Geha (Comandante do 5º Batalhão da Polícia Militar), Rubens Guimarães (Secretário Municipal de Defesa Social), Berenice Jordão (Vice-Reitora da UEL), Paulo Tavares (Promotor de Defesa dos Direitos Constitucionais, Saúde Pública e Saúde do Trabalhador), Hilberaldi Correia de Lima (Comandante da 4ª Companhia Independente da PM) e Dona Vilma. Foto: Jorge Correa

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Dona Vilma participou e contribuiu com inúmeros eventos

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COMuNIDADE NEGRA

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Maria de Fátima Beraldo, Anhamona (SEPPIR), Dona Vilma, Ministra Luiza Bairros (SEPPIR), Sandra Maria Aguilera e Larissa Diniz no aeroporto de Londrina – 29/04/2011Foto: Cedida por Sandra Mara Aguilera

Barbosa Neto (Prefeito de Londrina), Dona Vilma, Larissa Diniz, Ministra Luiza Bairros (SEPPIR) e Jamile Baptista – 29/04/2011Foto: Cedida por Sandra Mara Aguilera

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Reunião do Grupo de Combate ao Racismo, coordenado pelo Promotor Paulo Tavares, com o Prefeito Alexandre Kireff - 19/03/2013Foto: Álbum de família

Dona Vilma e Leci Brandão - 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial - Brasília/DF - 30/06/2005 a 2/07/2005Foto: Álbum de família

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II Conferência de Intelectuais da África e da diáspora - CIAD, Salvador (BA), 2006

Zélia Amador (UFPA), Dona Vilma, Ministro da Cultura e cantor Gilberto Gil e Maria Nilza da Silva – Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora – Salvador-BA – 07/2006Foto: Pires Laranjeira

Foto: Maria Nilza da Silva

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Dona Vilma com o ator Antonio Pitanga – Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora – Salvador-BA – 07/2006Foto: Maria Nilza da Silva

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Dona Vilma, Conceição Evaristo, Gilberto Gil e, ao centro, Mãe Stella de Oxossi - Ilê Axé Opô Afonjá – Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora – Salvador-BA – 07/2006Foto: Maria Nilza da Silva

Dona Vilma, Conceição Evaristo e Gilberto Gil – Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora – Salvador-BA – 07/2006Foto: Maria Nilza da Silva

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Dona Vilma acompanhada de Artur Arriscado, Pires Laranjeira e Maria Nilza no camarote de Roberto Mendes – Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora – Salvador-BA – 07/2006Foto: Álbum de família

Dona Vilma canta com Capinan e Roberto Mendes em Show no CIAD Cultural - Salvador-BA - 07/2006Foto: Maria Nilza da Silva

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“EM CASA”

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Formatura de Vilma - 28/01/1962Foto: Álbum de família

Vilma e o marido Flávio – julho de 1983Foto: Álbum de família

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Dona Vilma e a mãe, Dona Allial - 2010Foto: Leonardo Okuyama

Dona Vilma e o marido Flávio - 2010Foto: Leonardo Okuyama

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Dona Vilma e o filho Victor Santos Foto: Carllos Bozelli

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Dona Vilma e Scarlett, Filha de Santo com quem viveu por cerca de 30 anos - 2009Foto: Andreas Hofbauer

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RELIGIOSIDADE

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2010 - Foto: Milton Dória

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Figura de Ogum, no Ilê Ashé Ogum Mêge - Cambé/PR - 2010Foto: Leonardo Okuyama

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Ilê Ashé Ogum Mêge - Cambé/PR - 2010Foto: Leonardo Okuyama

Foto: Milton Dória

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155DONA VILMA: Cultura Negra Como Expressão de Luta e VidaCerimônia no Ilê Ashé Ogum MêgeFoto: Andreas Hofbauer

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Cerimônia no Ilê Ashé Ogum MêgeFoto: Andreas Hofbauer

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Foto: Kennedy Piau

Foto: Guilherme Faraco

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Foto: Alma Brasil – 04/2011

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MÚSICA

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Dona Vilma e Tião Carvalho em I Mostra de Cultura Popular - 2012 Foto: Alma Brasil

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Show Vilma de todos os Santos em comemoração aos 40 anos de iniciação no Candomblé - 2009Foto: Andreas Hofbauer

Encerramento do Londrix 2012 - Cemitério de AutomóveisFoto: Carlos Bozelli

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Joaquim Braga, compadre e grande amigo de Dona VilmaFoto: Carlos Bozelli

Dona Vilma e Braga no Show Vilma de todos os Santos em comemoração aos 40 anos de iniciação no Candomblé - 2009Foto: Carlos Bozelli

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Dona Vilma e Braga cantando samba de roda - Bar Bodega - Londrina- 30/12/2010Foto: José Lorenzo

Samba de Roda - Dia de Iemanjá - Restaurante Dona Menina - 02-02-2012Foto: Guilherme Faraco

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Foto: Maria Nilza da Silva

Foto: Maria Nilza da Silva

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Lançamento do livro O Doutor Preto Justiniano Clímaco da Silva: A presença negra pioneira em Londrina - 10/09/2010 - Museu Histórico de Londrina Foto: cedida por Mariana Panta

Foto: Andreas Hofbauer

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COTIDIANO

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Foto: José Lorenzo

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170 DONA VILMA: Cultura Negra Como Expressão de Luta e Vida2010 - Foto: Leonardo Okuyama

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171DONA VILMA: Cultura Negra Como Expressão de Luta e VidaMostra Afro-Brasileira Palmares - 16 a 30/11/2010Foto: José Roberto Pieretti

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Mostra Afro-Brasileira PalmaresFoto: Maria Nilza da Silva

Mostra Afro-Brasileira PalmaresJair Belluco ( Jajá), Agenor Evangelista, Maria Nilza da Silva, Dona Vilma e Luis Fernando PereiraFoto: Cedida por Maria Nilza da Silva

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Dona Vilma e Eduardo Félix Foto: Cedida por Eduardo Félix

Professor João Batista, presidente Lula e Dona VilmaFoto: Márcia Lopes

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Entrevista sobre as cotas da UEL – Maria Nilza e Dona Vilma – UNOPAR - 2006Foto: Álbum de Família

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Dona Vilma ao fundo, com turma da oficina Bloco do BaralhoFoto: Alma Brasil

Dona Vilma ao fundo , em oficina de fabricação de pão do Projeto de Extensão da UEL Pró-Ranti - Projeto de Resgate, Tradições e IdentidadeFoto: Álbum de família

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Foto: Alma Brasil

Foto: Alma Brasil

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Dona Vilma, em evento na Villa Cultural Alma Brasil, na condição de Griot, título recebido da Fundação Cultural Palmares em reconhecimento àqueles que se dedicam à transmissão da cultura e história afro-brasileira e africana.Foto: Alma Brasil

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Prêmio Zumbi dos PalmaresCâmara Municipal de Londrina – 20/11/2002

Dona Vilma recebendo o Prêmio Zumbi dos Palmares - Câmara Municipal de Londrina – 20/11/2002 Foto: Câmara Municipal de Londrina

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Dona Vilma recebendo o Prêmio Zumbi dos Palmares - Câmara Municipal de Londrina – 20/11/2002Foto: Câmara Municipal de Londrina

Dona Vilma recebendo o Prêmio Zumbi dos Palmares - Câmara Municipal de Londrina – 20/11/2002Foto: Câmara Municipal de Londrina

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Dona Vilma com Ângela Veregue e Lygia Lumina Pupatto quando recebeu o Prêmio Zumbi dos Palmares - Câmara Municipal de Londrina – 20/11/2002 Foto: Câmara Municipal de Londrina

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Dona Vilma por ocasião do Prêmio Zumbi dos Palmares - Câmara Municipal de Londrina – 20/11/2002Foto: Câmara Municipal de Londrina

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Reportagem sobre o Prêmio Zumbi - Folha Norte

Imprensa

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Participação na mesa sobre cotas raciais no vestibular

Fonte: Folha de Londrina, Folha 2, 20 nov. 2004

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Folha de Londrina, Cidades, 16 nov. 2006.

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HOMENAGENS IN MEMORIAM

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Prefeito Alexandre Kireef sanciona a Lei Municipal 11.935/2013 que conferiu o título de Cidadã Honorária de Londrina, post mortem, a Vilma Santos de Oliveira – 31/10/2013. Fonte: N. com. - site da Prefeitura de Londrina

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Gislene Santos de Oliveira, filha de Dona Vilma com vereadora Elza Correia ao receber o diploma referente ao Título de Cidadã Honorária de Londrina, post mortem - Câmara Municipal de Londrina - 2/12/2013

Foto: CML/Imprensa/Devanir Parra

Solana, ítalo, Iori e Adanna (netos de Dona Vilma), vereadora Elza Correia, Gislene (filha), Flávio (marido) e Célio (genro) por ocasião da entrega do Título de Cidadã Honorária de Londrina, post mortem - Câmara Municipal de Londrina - 02/12/2013. Foto: CML/Imprensa/Devanir Parra

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Manifestação no Dia da Consciência Negra em Londrina - 20/11/2013Foto: Maria Nilza da Silva

José Mendes em mesa de abertura do evento Saúde pública e racismo institucional: Racismo e saúde da população negra - Anfiteatro do Hospital Universitário da UEL - 20/09/2013Foto: LEAFRO/UEL

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A ÚLTIMA FOTO

Dona Vilma e vereadora Elza Correia na etapa regional da III Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial – Londrina – 03/08/2013Foto: Neusa Aparecida Silva