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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
James de Lemos Abreu
Cultura e Política: O caso do Programa “VAI” em São Paulo – 2004-2008
São Paulo
2010
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James de Lemos Abreu
Cultura e Política: O caso do Programa “VAI” em São Paulo – 2004-2008
Tese apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Área de concentração: Políticas Culturais
Orientador: Miguel Wady Chaia
São Paulo
2010
3
São Paulo, ___/ ___ / ____
Banca examinadora
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SUMÁRIO Introdução 06
Capítulo 1 Da Cultura às Políticas Culturais 1.1. Questões e Problemas 17 1.2. A propósito do conceito de Cultura 34 1.3. Das Políticas Culturais 52
Capítulo 2 Relações entre Estado e Cultura no Brasil: uma análise histór ica 2.1. A Questão cultural no Brasil 65 2.2. Getúlio Vargas e o papel das Políticas Culturais na Construção
Do Moderno Estado Nacional (1930 a 1945) 77 2.3. Uma breve democracia. O ISEB e a experiência dos Centros
Populares de Cultura - CPCs (1946-1964) 84 2.4. Regime Militar: Cultura, Desenvolvimento e Integração Nacional
(1964-1985) 97 2.5. Políticas culturais sob governos democráticos recentes (1986-2008) 105
Capítulo 3 O caso do Programa para Valorização de Iniciativas Culturais – VAI na cidade de São Paulo 3.1 Algumas considerações teórico-metodológicas 127 3.2 Histórico do Programa 134 3.3 Processo de Institucionalização 145 3.4 Contexto político-institucional 155 3.5 Dinâmica de Funcionamento 162
Capítulo 4 Projetos contemplados pelo VAI 4.1 Projetos culturais e redes juvenis de cultura em São Paulo 201 4.2 Projeto Mascate Cineclube 206 4.3 Projeto Lixo Arte 218 4.4 Projeto Calo na Mão 232 Conclusões 241
Anexos 243 Bibliografia 254
5
“E quem se tornar senhor de uma cidade acostumada a ser livre,
e não a destruir, espere se destruído por ela. Pois a rebelião
nascerá em nome da liberdade e das tradições, que não são
esquecidas nem com o tempo nem com os benefícios. E
qualquer coisa que se faça, ou qualquer medida que se tome se
não se disseminar a desunião entre os habitantes, ou se não se
exterminá-los, e eles não se esquecerem da palavra liberdade e
das tradições, logo, em qualquer situação, apelarão a estes
ideais”. (Maquiavel, 1996, p. 30)
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“Era uma vez um rei, que se dizia todo poderoso e dono de
todos os tesouros da Terra, mas que, mesmo assim, não era
feliz e ficava cada vez mais triste, de ano para ano. Um dia
mandou chamar seu cozinheiro e lhe disse: ‘Tens me servido
fielmente todo esse tempo, e coberto minha mesa com as mais
apetitosas iguarias e, por isso, te tenho apreço. Mas agora
desejo uma última prova de tua arte. Prepara-me a omelete de
amoras, tal como a saboreei há cinqüenta anos, em minha
tenra mocidade. Naquela ocasião meu pai estava em guerra
com seu inimigo do Leste. Este venceu e nós precisamos fugir. E,
assim, fugimos dia e noite, meu pai e eu, até chegarmos a uma
floresta sombria. Nós erramos por ela, e estávamos prestes a
sucumbir de fome e cansaço quando, finalmente nos
deparamos com uma cabana. Lá morava uma velhinha, que
amavelmente nos convidou para descansar, pondo-se a
preparar alguma coisa no fogão. Pouco tempo depois lá estava
a omelete de amoras diante de nós. Porém mal eu tinha levado
à boca o primeiro pedaço e já me senti maravilhosamente
reconfortado, e com renovada esperança no coração. Naquela
ocasião eu ainda era muito jovem, e por muito tempo não
pensei mais nos benefícios daquela iguaria deliciosa. Mais
tarde, porém, quando mandei procurá-la por todo o reino, não
se encontrou nem a velha nem ninguém que soubesse preparar
a omelete de amoras. Se atenderes a este meu último desejo,
feri de ti meu genro e herdeiro do reino. Se porém não me
satisfizeres, deverás morrer.’ E o cozinheiro respondeu: ‘Senhor
chamai imediatamente o carrasco. Pois mesmo conhecendo o
segredo da omelete de amoras e todos os seus ingredientes, do
simples agrião ao nobre tomilho; mesmo sabendo o verso que
se deve dizer ao mexer a panela, e de que molho o molinilho de
madeira de buxo deve ser girado, sempre para a direita para
que a final não ponha a perder todo nosso esforço – mesmo
assim, ó Majestade, terei de morrer. Pois não obstante, minha
omelete não agradará Vosso paladar. Pois como poderia eu
temperá-la com tudo que Vós saboreastes naquela ocasião: o
perigo da batalha e a cautela do perseguido, o calor do fogo e o
aconchego do repouso, o presente desconhecido e o negro
futuro.’ Assim falou o cozinheiro. O rei, porém silenciou por um
instante e, ao que consta, pouco depois desobrigou-o de seus
serviços, regiamente carreado de presentes.” (Benjamin, 1986, p. 186)
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RESUMO A presente tese tem por objetivo discutir o papel desempenhado pelas políticas
culturais no mundo contemporâneo, em particular na cidade de São Paulo. A
ideia central reside na tentativa de entender em que medida estas políticas
podem contribuir para a emergência de novos valores pautados pela
participação política, empoderamento e respeito à diversidade cultural,
elementos importantes para a consolidação de uma cultura política de base
democrática. Num país de forte tradição autoritária como o Brasil, marcado por
uma realidade de apartheid cultural, essa questão adquire enorme significado,
abrindo perspectivas de democratização de acesso à cultura. A ideia é analisar
essas mudanças no contexto mais amplo da história das políticas de cultura do
país demonstrando como elas foram se constituindo no bojo de diferentes
projetos societários como integração nacional, populismo, desenvolvimento
nacional e inserção neoliberal. O presente trabalho identifica no conceito
antropológico de cultura um nítido sinalizador de mudanças operadas nas
políticas culturais recentemente criadas no Brasil no âmbito das três esferas de
governo e que se opõem às políticas culturais hegemônicas orientadas pelo
mercado, típicas dos anos 90, através de leis de incentivos fiscais. Como
exemplo paradigmático dessas políticas públicas este trabalho de pesquisa
privilegia a análise do Programa para Valorização de Iniciativas Culturais - VAI,
criado em 2003 na cidade de São Paulo. Trata-se de programa dirigido a
pessoas interessadas em desenvolver projetos culturais, principalmente jovens,
entre 18 e 29 anos, de baixa renda e moradores de áreas periféricas da capital
paulistana. Procurou-se investigar de forma crítica o processo de criação,
institucionalização e dinâmica de funcionamento deste programa municipal
trazendo à luz elementos importantes da relação entre Estado e Cultura e das
possibilidades e limites objetivos desta ação cultural. A pesquisa também
realiza exploração etnográfica de experiências trazidas pelos grupos atendidos
pelo programa a partir das quais são mobilizados valores e visões de mundo
que apontam para uma perspectiva transformadora tanto da comunidade local
onde se inserem quanto da sociedade mais ampla, aspectos que podem
contribuir para o aprimoramento da frágil democracia brasileira.
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ABSTRACT
The present thesis aims at discussing the role developed by cultural policies in
the contemporary world, particularly, in the city of São Paulo. The central idea
rests on the effort to comprehend in what way these policies can contribute to
the rising of new values based on political participation, empowerment and
respect to cultural diversity, significant elements for consolidating a political
culture on a democratic basis. In a strongly authoritarian tradition country, such
as Brazil, noticeable by a reality of cultural apartheid, this issue acquires an
enormous meaning, opening perspectives for democratizing a cultural
approach. The idea is to analyze these changes on the amplest context of
cultural policy in the country demonstrating how they were built in the middle of
different society projects, like national integration, populism, national
development and neo-liberal insertion. The present work identifies in the
anthropological concept of culture a clear sign of changes on the cultural policy
recently created in Brazil, considering the three spheres of the government, and
that go against the hegemonic cultural policy oriented by the market, typical of
the 90’s, through fiscal inducements. As a paradigmatic example of these public
policies, this research analyzes the Programa para Valorização de Iniciativas
Culturais – VAI, created in 2003 in the city of São Paulo. It’s a program focused
on people interested on developing cultural projects, especially young ones,
between the ages of 18 and 29 years old, underprivileged and residents of
peripheral regions of the city. The thesis seeks investigating in a critic manner
the process of creation, institutionalization and working dynamic of this
municipal program, revealing important elements about the relationship
between State and Culture and the possibilities and objective limits of this
cultural action. The research also involves ethnographic exploration of the
experience revealed by the groups benefited by the program, from where
values and worldviews point to a transforming perspective either in the local
community where they are or in the society in general, aspects that may
contribute to strengthen the fragile Brazilian democracy.
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Agradecimentos
Todo trabalho intelectual normalmente requer enorme esforço e férrea disciplina. Nesta jornada as pessoas mais caras que nos cercam são envolvidas num grande turbilhão. É a elas que dedico este trabalho. À minha querida esposa, Alessandra, que comigo partilhou os momentos mais difíceis neste processo de elaboração, e aos meus filhos André e Lucas, cujas estripulias e gracejos de alguma forma secreta ecoam neste trabalho. Aos meus pais e irmãos, sempre presentes e que torceram por mim a cada segundo. Especial gratidão a toda a equipe de programa VAI, pessoas que aprendi a admirar no labor do dia a dia: Maria do Rosário, Gil Marçal, Harika, Renata, Doroteia, Sarita, Ralf, Leonardo, Rosa Falzoni, além de Marisabel Lessi e Helena Wendel Abramo. Aos vários grupos de jovens com os quais convivi no decorrer do trabalho de acompanhamento dos projetos, com destaque para Thaís Scabio, (Projeto Mascate Cineclube) Luis Gustavo (Projeto Calo na Mão) e o simpático casal Leidiane e Daniel (Projeto Lixo-Arte). Agradecimentos à Faculdade Paulista de Serviço Social de São Caetano, FAPSS-SC no figura de seu diretor Danilo Vieiro, pela concessão de bolsa parcial de estudos; aos alunos desta Instituição que sempre me motivaram, com suas inquietações nas aulas de Teoria Sociológica e Teoria Política, e aos colegas professores, em especial, a professora Sônia Regina Ribeiro de Carvalho. Por fim, agradecimentos ao Professor Miguel Chaia por sua serena e sempre eficaz orientação, e aos professores José Guilherme Cantor Magnani e Silvia Borelli pelas observações oportunas e instigantes.
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Introdução
O tema da articulação entre política e cultura adquire no Brasil
contemporâneo uma importância decisiva. A cultura, há décadas lugar
imaginário da consagração de um projeto de identidade nacional, como
demonstrou Renato Ortiz – projeto construído sobre a tentativa de supressão e
do controle da cultura popular – e espaço por excelência de reprodução das
desigualdades materiais, passou nas últimas décadas a contemplar novas
possibilidades de transformação. Incipientes, porém significativas.
Em oposição às velhas ideologias de cunho nacionalista, e de recorte
exclusivamente nacional-popular percebe-se na atualidade a emergência de
práticas culturais inovadoras que confundem as fronteiras entre os domínios da
cultura de massa popular e erudita além de amalgamar atores de diversos
extratos sociais e que reivindicam maior abertura nos processos de criação e
produção culturais.
É no bojo desse cenário, sobretudo em sua paisagem urbana, que as
políticas culturais no Brasil ganham visibilidade enquanto domínio capaz de
contribuir significativamente para a formação de uma cultura política
democrática e fundada sob princípios como a autonomia, o pluralismo, e a
participação cidadã. Questão especialmente relevante quando se considera o
peso de nossa tradição autoritária que sob vários aspectos emperra os
avanços de nossa democracia, ao mesmo tempo em que as críticas à
democracia representativa em várias partes do mundo apontam para o
surgimento de novas formas de fazer política, resgatando seu caráter
normativo e de participação, para além das instituições políticas tradicionais.
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A cultura assim aparece como campo privilegiado onde despontam
práticas simbólicas constitutivas do cotidiano urbano na base de diferentes
modos de vida, de atitudes, de vivências, de formas de pensamento, de fazeres
e saberes que embaralham as noções tradicionais de cultura. Passa a vigorar
uma noção mais fluida, aberta e generosa de cultura, de caráter antropológico,
e que passa a influenciar as novas demandas de segmentos da sociedade
brasileira por participação não somente no consumo e fruição, mas sobretudo
em processos de criação e produção culturais.
Ainda que esteja longe de se constituir como hegemônico, esse conceito
antropológico de cultura numa cidade como São Paulo e em várias outras
cidades do Brasil já há algum tempo vem exigindo do Estado novas
modalidades de políticas públicas de cultura. Destacam-se assim, a contrapelo
das políticas culturais baseadas em renúncia fiscal como a Lei Rouanet,
programas culturais antenados com esse novo paradigma cultural. O programa
Cultura Viva, do governo federal, do Programa de Ação Cultural, PROAC, do
estado de São Paulo, e na cidade de São Paulo, o Programa VAI – Programa
para Valorização de Iniciativas Culturais são expressões deste novo modelo de
políticas públicas.
Em comum, estes programas apresentam a peculiaridade de permitir
significativa aproximação entre cultura e cidadania, propiciando condições para
que diferentes manifestações e práticas culturais, tradicionalmente sufocadas,
possam expressar-se livremente, de forma mais direta e com relativa
capilaridade. Enfim, como políticas públicas que garantam de forma efetiva o
exercício dos direitos culturais.
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Neste trabalho será tomado como objeto de análise empírica o
Programa para Valorização de Iniciativas Culturais - VAI, na cidade de São
Paulo, entre os anos de 2004 e 2008. Política pública conhecida no cenário
cultural paulistano desde 2004, este programa tem beneficiado milhares de
jovens entre 18 e 29 anos, iniciantes no cenário cultural e, em geral, moradores
de áreas periféricas e pouco servidas de serviços públicos na área de cultura
como teatros, cinemas, bibliotecas, etc. Sua existência, a exemplo dos
programas já citados no nível federal e estadual, revela a possibilidade
concreta de avanços na democratização cultural em oposição à situação de
apartheid cultural há décadas vivido no país.
O estudo da gênese do programa VAI a partir de demandas da própria
sociedade paulistana, sua assimilação por parte dos diferentes públicos
juvenis, os impactos causados na vida destes jovens em suas trajetórias
pessoais e coletivas são algumas das preocupações centrais desta
investigação. Numa palavra, a busca em entender uma política cultural
municipal enquanto totalidade indissociável dos cidadãos que dela fazem uso,
e com a qual interage.
Neste trabalho será utilizada farta documentação sobre o programa,
legislação específica, publicações institucionais, etc, além de entrevistas com
jovens beneficiados e com funcionários públicos responsáveis pelo seu
funcionamento no âmbito da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
No Capítulo 1, as análises buscarão identificar o papel assumido pela
cultura no cenário contemporâneo, constituindo dimensão envolvida na própria
forma de organização da sociedade sob o capitalismo tardio, cenário este
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marcado por profundas mudanças tecnológicas dos meios tradicionais de
acesso, transmissão e reprodução de conteúdos culturais, na era da
informação simultânea, da Internet, e do “Google”.
Como forma de apreender as novas concepções associadas ao conceito
de cultura busca-se apreendê-lo no contexto de vários de seus significados
formulados na tradição do pensamento filosófico e científico ocidental.
Especialmente a partir das contribuições de Raymond Williams, autor que
aponta para a convergência da perspectiva sociológica e antropológica e
centrada nos modos de vida e práticas culturais em efervescência nas grandes
cidades.
Como já assinalado esse fato propicia condições particularmente
interessantes para se discutir novos formatos das políticas culturais no Brasil,
sobretudo enquanto possibilidade de construção de políticas públicas de
cultura de caráter democrático, e capazes de exercer papel positivo sobre o
processo de consolidação de nossa ordem democrática. Isso através do
estabelecimento de uma cultura política que potencializa o papel de uma
cidadania ativa, que respeita as diferenças culturais, a autonomia individual e a
valorização do espaço público como espaço comum de convívio.
Uma visão panorâmica da trajetória das políticas culturais no Brasil,
entre 1930 e 2008, aparece como objeto de reflexão do Capítulo 2. Impõe-se
compreender a forma como essas políticas culturais foram se constituindo,
sobretudo em períodos autoritários, na esteira do que propõe Antonio Albino C.
Rubim, bem como abarcar as experiências históricas de valorização da cultura
popular desvendando o potencial transformador da cultura brasileira, nos anos
14
50 e 60, através da ação dos Centros Populares de Cultura, os CPCs, e nos
anos 80, no bojo do processo de democratização política, “quando novos
personagens entram em cena”, para usar expressão de Eder Sader (1988).
Sobre os anos mais recentes foi dado destaque a análises acerca do
alcance das iniciativas do Ministério da Cultura - MinC, a partir sobretudo da
gestão de Gilberto Gil, e continuada pelo atual ministro Juca Ferreira, visando
dotar aquele ministério de condições para a avançar no processo de
democratização cultural. Neste sentido a implantação do Sistema Nacional de
Cultural, do Plano Nacional de Cultura, e da proposta de construção de um
modelo participativo de gestão cultural, baseado nas conferências municipais,
estaduais e nacional de cultura parece ser uma proposta alvissareira.
No capítulo 3 as análises se voltam, como já apontado, para a
investigação do Programa VAI – Programa para Valorização de Iniciativas
Culturais, política pública de cultura, criada por lei municipal no final de 2003,
durante a gestão Marta Suplicy, mas fruto de intensas discussões no âmbito da
Comissão de Juventude da Câmara Municipal de São Paulo.
Este programa notabiliza-se pela sua notória atuação de valorização de
ações culturais que até então não eram reconhecidas pelo estado, sobretudo
pela capilaridade de seu alcance, chegando àqueles que residem em áreas
desprovidas de quaisquer programas e serviços culturais, as áreas periféricas
da cidade. A ideia subjacente nessas análises é entender o programa VAI no
bojo de várias outras políticas culturais gestadas nos últimos cinco anos pelo
Poder Público, na esfera federal, estadual e municipal que trazem como
pressuposto uma concepção de cultura mais complexa e que valoriza sua
15
dimensão antropológica, mais peregrina e “ordinária”, como queria Raymond
Williams.
Buscou-se pesquisar essa experiência de política pública em sua
totalidade o que implica em apontar seu potencial, mas também seus limites
institucionais. Para tanto foram utilizados dados estatísticos, legislação, além
de entrevistas com integrantes da equipe do programa.
Por fim, partindo da idéia que as políticas públicas são indissociáveis de
seu público, no capítulo 4, procura-se entender mais detidamente os valores,
visões de mundo e práticas culturais dos jovens atendidos pelo programa VAI
partindo-se da escolha de três diferentes projetos apoiados pelo programa e
localizados em diferentes regiões da cidade de São Paulo. A idéia é aprofundar
o conhecimento dos vários circuitos culturais ativados pelo programa, e o
sentido que essas ações culturais representam para a vida social da cidade.
Para isso, além dos conteúdos das entrevistas, serão analisados os projetos
desenvolvidos no âmbito do programa, notadamente das propostas
apresentadas e que podem apontar para mudanças não somente estéticas,
mas também, e, fundamentalmente, políticas.
16
“A morada do homem, o extraordinário” Fragmento 119 – Heráclito
17
Capítulo 1 1. Da Cultura às Políticas Culturais
1.1. Questões e problemas
No limiar deste século parece evidente o lugar de centralidade ocupado
pela cultura em praticamente todos os domínios da vida social. Fenômeno
resultante de mudanças profundas ocorridas na dinâmica das sociedades
contemporâneas, desde a última metade do século passado - esse “breve
século XX”, como chamou Eric Hobsbawn - a cultura passou a constituir-se em
dimensão fundamental do funcionamento das sociedades ocidentais.
É possível constatar densa literatura acerca do tema não somente no
âmbito das ciências sociais – formando inclusive verdadeira tradição teórica,
notadamente na antropologia – mas em diversas outras ciências humanas.
Importa assinalar nesse aspecto o fato de que nas últimas décadas a noção de
cultura passou a ser incessantemente problematizada, ora assumindo novos
significados e abordagens, ora diluindo-se em críticas corrosivas acerca de sua
própria legitimidade (pós-modernistas).
Forçoso reconhecer que sob este pano de fundo desponta um
panorama em que fenômenos de envergadura como globalização, relativo
enfraquecimento do estado-nação e preponderância dos meios eletrônicos de
difusão cultural, entre outros, parecem concorrer para considerável ruptura com
o passado, ainda que um passado relativamente recente, e até mesmo familiar.
Ancorada na clássica ideia de um “todo complexo” e unitário de normas
e valores, em seu velho sentido antropológico, quando não na posse de
18
conhecimentos em vários domínios do “espírito humano”, em sua vertente
sociológica o certo é que os sentidos associados à cultura sofreram sérios
abalos. Surgiram inclusive pensadores empenhados, como aponta o
antropólogo Marshall Sahlins, em decretar sua morte, alegando “supostas
associações históricas desse conceito com o racismo, o capitalismo ou o
imperialismo”, (Sahlins, 1997, p. 41) expressão do que ele denominou de
“pessimismo sentimental”.
Seja como for, em face da realidade contemporânea o próprio
distanciamento da esfera cultural, sua “autonomia relativa” em relação ao
mundo concreto, como sublinhavam várias correntes do pensamento marxista,
passou a sofrer sério abalo, minando também outras velhas dicotomias
teóricas, como cultura de massa e cultura erudita, o tradicional e o moderno,
cultura nacional e estrangeira etc. Longe de se configurar mudança de
superfície, no dizer de Stuart Hall, a cultura passou a adquirir, nas últimas
décadas, “importância sem igual no que diz respeito à estrutura e à
organização da sociedade moderna tardia, aos processos de desenvolvimento
do meio ambiente global e à disposição de seus recursos econômicos e
materiais” (Hall, 1997, p. 2).
Ao contrário do modo como era apreendida no passado exclusivamente
confinada a uma minoria do que Umberto Eco denomina de happy few, eternos
portadores de padrão erudito de consumo cultural, na atualidade a cultura
passou adquirir infindável espectro de nuances, formas e linguagens, cujos
impactos podem ser sentidos em diferentes direções no cotidiano dos
19
indivíduos, em seus padrões de sociabilidade, modos de vida e sensibilidades
que irrompem na paisagem contemporânea.
Alteram-se sobremaneira as formas de consumo cultural vigente que
passam a ser orientadas maciçamente não somente para o grande público
alcançado pelos conteúdos das indústrias culturais, ou para o circuito mais
restrito do universo artístico e intelectual, mas também, e fundamentalmente,
para um complexo e desordenado conjunto de práticas culturais que se
disseminam na tessitura da vida social. Especialmente nas metrópoles, práticas
coladas à realidade local, mas sintonizadas com o nacional e o “estrangeiro”.
O impacto desse processo é notável e de longo alcance. Nos capítulos
que se seguem veremos como inúmeros segmentos de jovens, no bojo de uma
política de cultura como o Programa para Valorização de Iniciativas Culturais -
VAI, na cidade de São Paulo, passam a conferir novos significados às
experiências coletivas vivenciadas no cotidiano urbano, sobretudo em áreas
periféricas, frequentemente esquecidas pelo Poder Público. Trata-se de raro
encontro entre experiências culturais que pipocam pelas ruas e praças da
cidade, como rap, capoeira, HQ, teatro, literatura dos fanzines etc, e as
políticas públicas ditas oficiais.
Na raiz dessas transformações culturais, como em parte já assinalado,
encontram-se ao menos três fenômenos convergentes e interligados: a
globalização, que acelerou as trocas culturais entre diferentes países e regiões
do planeta; o processo de intensa revolução tecnológica cuja disseminação tem
possibilitado formas inovadoras de comunicação e informação numa
20
velocidade até então jamais imaginada; e a afirmação da diversidade cultural
em face dos processos crescentes de homogeneização.
Cumpre analisar esses fenômenos mais atentamente. Ainda que se
possa remontar na história a períodos determinados de grande expansão da
economia mercantil as transformações operadas pela globalização,
especialmente no último quartel do século passado, traduziram-se em um
cipoal de complexas e profundas inovações societárias e com efeitos bastante
contraditórios. Sua emergência culminou, entre outras consequências, na
aceleração do tempo histórico e do predomínio de relações mercantis, que
passam a cobrir toda a superfície do planeta, desencadeando novos padrões
de consumo cultural e remodelando a relação entre o universo global e o local,
entre o público e o privado.
Assim a diluição das distâncias ocorrida por meio dos modernos meios
de transporte, sobretudo pela velocidade da informação disponível on-line,
deslocou milhões de pessoas de suas comunidades locais para comunidades
distantes, reais ou imaginárias, no bojo de um turbilhão de diferentes
realidades socioculturais, econômicas e políticas vividas nos mais diversos e
remotos cantos do planeta.
A diminuição do planeta, na forma da “aldeia global”, proposta por
Mcluhan, e as possibilidades abertas de acesso a culturas até há pouco tempo
vistas como exóticas (a partir, por exemplo, da indústria do turismo) caminham
pari passu com a contínua ameaça de hegemonia cultural – ou imperialismo
cultural, para muitos autores – realidade imposta a partir dos grandes centros
de poder global, sejam países desenvolvidos, blocos econômicos, ou grandes
21
conglomerados transnacionais. Sobretudo a partir desses centros de poder -
embora não exclusivamente, como atesta o fenômeno do reggae e da bossa-
nova, ou ainda do rap originado dos guetos de Nova York - se difundem, pelo
mundo afora a fast food, a tevê a cabo, revistas de moda, filmes de Hollywood,
Olimpíadas etc, alimentando o fantasma da homogeneização cultural, diante da
qual todas as diferenças culturais supostamente apagar-se-iam, fundidas (e
confundidas) num único cadinho do sistema capitalista mundial.
Participantes ativos no debate entre homogeneização e
heterogeneidade, entre o global e o local, colocam-se diferentes pensadores,
como Boaventura de Souza Santos, Stuart Hall (1997), Renato Ortiz (2006), o
antropólogo indiano Arjun Appadurai (1996), além de Marshall Sahlins (1997).
Em comum, a busca por um posicionamento crítico capaz de enxergar, entre
as formas de dominação global no campo econômico e tecnológico, novas
possibilidades de afirmação de identidades culturais e mesmo de resistência
cultural. Posicionando-se acerca destas questões, afirma Arjun Appadurai:
(...) a globalização é em si um processo profundamente histórico, desigual e mesmo localizador. Globalização não implica necessariamente ou sequer frequentemente homogeneização ou americanização e, na medida em que sociedades diferentes têm modos diferentes de apropriar os materiais da modernidade, é amplo o espaço para o estudo apropriado de geografias, histórias e línguas específicas. (Appadurai, 1996, p. 32)
Para o autor, um dos aspectos que melhor retratam a dinâmica cultural
sob a globalização está associado ao que denomina de desterritorialização.
Segundo ele:
Este termo aplica-se não só a exemplos óbvios, como as multinacionais e os mercados monetários, mas também a grupos étnicos, movimentos separatistas e formações políticas
22
que cada vez mais operam de uma maneira que transcende limites e identidades territoriais específicos (Appadurai, 1996, p. 35).
Nas palavras de Renato Ortiz o fenômeno também possibilita o
surgimento de imaginário coletivo mundial que mancha as fronteiras entre a
“comunidade de origem” e o “estrangeiro”:
Há uma desterritorialização de certos símbolos e signos, que perdem seu significado local e nacional e adquirem uma dimensão mundial. Por exemplo, Madona já não é mais americana, Pokemon japonês, e Pelé brasileiro. Todos têm uma origem geográfica qualquer, no entanto, enquanto símbolos eles integram um imaginário coletivo mundializado, que transcende seus países de origem. Transformam-se também nossa concepção de espaço, e principalmente as noções de autóctone e estrangeiro (Ortiz, 2006).
Tal estado de coisas é prenhe de consequências. Em oposição a certa
ideia que fixa de uma vez as identidades culturais o fenômeno da
desterritorialização joga luz para o fato de que as identidades que se formam
no mundo contemporâneo são atravessadas por experiência históricas
comuns, em vista das quais sofrem mudanças contínuas. Tais identidades
florescem a partir do compartilhamento de códigos culturais específicos
frequentemente gerados a partir de um sem-número de experiências coletivas.
Na esteira desse processo é possível notar significativa relativização das
coordenadas nacionais e subnacionais, pela formação de identidades reais ou
como “obra da imaginação” (como designa Arjun Appadurai), que permite a
livre expressão de diferentes manifestações de cunho cultural, esportivo,
político e religioso, ainda que esse mesmo processo, em sua ambiguidade,
possa associar-se a toda sorte de associações fundadas sobre o
23
fundamentalismo religioso, e ideologias permeadas por todo tipo de
preconceito racial e de origem geográfica.
Emblemáticos nesse aspecto os atentados terroristas de 11 de setembro
de 2001, em Nova York, e o medo que eles desencadearam em escala global
dão a dimensão clara do alcance do fenômeno na última década. No cinema, o
filme “Crash – no limite” (Haggis, 2004) expõem as situações cotidianas de
violência, intolerância étnica e preconceitos de gênero e de classe que
perpassam as relações entre vários habitantes da cidade de Los Angeles (e de
várias outras grandes cidades), desnudando o fosso existente entre diferentes
universos culturais no mundo pós-11 de setembro.
Porém, na visão de Nestor G. Canclini, tais transformações operadas
pela globalização alteraram profundamente as possibilidades e as formas de
exercício da cidadania – entendida para além do reconhecimento estatal dos
direitos – na medida em que o consumo e a fruição de bens culturais
possibilitam novas formas de integração e distinção na sociedade por meio de
práticas culturais que dão sentido de pertencimento aos agentes sociais.
Para o autor o consumo representa “espaço que serve para pensar e no
qual se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e
psicológica nas sociedades” (Canclini N. G., 1996, p. 14). O que produz
impactos significativos sobre novas formas de participação política, em
contraposição à eterna representação dominante, que vê na condição de
cidadão uma expressão de caráter estritamente jurídico-estatal. Segundo ele:
(...) quando se reconhece que ao consumir também se pensa, se escolhe e reelabora o sentido social, é preciso se analisar como esta área de apropriação de bens e signos intervém em formas mais ativas de participação do que aquelas que
24
habitualmente recebem o rótulo de consumo (...) Em outros termos devemos nos perguntar se ao consumir não estamos fazendo algo que sustenta, nutre e até certo ponto constitui uma nova maneira de ser cidadãos (Canclini N. G., 1996, p. 42).
Vale assinalar que essa realidade só se tornou possível em razão do
domínio crescente de formas eletrônicas de comunicação e de acesso à
informação, como televisão a cabo, telefone celular, aparelho de DVD, internet,
computador, tecnologias que, embora distribuídas de forma desigual,
notadamente em continentes como o latino-americano, e no Brasil, em
particular, vão aos poucos se espalhando, sobretudo nas áreas
metropolitanas1. Paisagem que levou Castells a falar em um capitalismo de
novo formato, um “capitalismo informacional”.
Refletindo a respeito dos impactos produzidos pela comunicação
eletrônica e as migrações sobre o mundo atual, Arjun Appadurai parece
descortinar espaços importantes de resistência.
A questão das migrações de massa (voluntárias ou forçadas) não é nada de novo na história humana. Mas se a colocarmos em justaposição com o rápido fluxo de imagens, textos e sensações mediatizados, temos uma nova ordem de instabilidade na moderna produção de subjetividades. Quando os turcos que trabalham na Alemanha veem filmes turcos nos seus apartamentos alemães, os coreanos de Filadélfia veem as Olimpíadas de Seul-1988 em transmissões satélites da Coreia, e em Chicago os taxistas paquistaneses ouvem cassetes de sermões gravados em mesquitas no Paquistão ou no Irã, vemos imagens que vão ter com espectadores desterritorializados. E esses criam esferas públicas de diáspora, fenômenos que invalidam as teorias ancoradas na hegemonia continuada do Estado-nação como principal árbitro de importantes transformações sociais. Em suma, a comunicação eletrônica e as migrações marcam o mundo do presente, não como forças tecnicamente novas, mas como aquelas que parecem impelir (e, por vezes, compelir) a obra da
1 De acordo com dados de 2008 do Comitê Gestor de Internet (CGI), 48% dos acessos à internet são feitos em lan houses. Há cerca de 100 mil destes pontos espalhados pelo País. Fonte: http://softwarelivre.org/portal. Acesso em 03/03/2010.
25
imaginação. (...) mostro que a obra da imaginação, vista neste contexto, nem é puramente emancipadora nem inteiramente disciplinada: é um espaço de contestação (grifo nosso) nos quais indivíduos e grupos procuram anexar o global às suas próprias práticas do moderno. (Appadurai, 1996, p. 15)
Fica claro nesta passagem que a dinâmica cultural no mundo atual
aponta para a invenção de novos espaços políticos de contestação e
participação política. Vide, a respeito, a afirmação política de identidades
anteriormente submergidas pela ordem estatal, como dos povos indígenas em
diversas partes do mundo, além dos distintos movimentos sociais urbanos.
Chamando a atenção para uso cada vez mais reflexivo da cultura, em uma
sociedade de caráter “translocal”, Sahlins (1997) retrata como o processo de
autoconsciência cultural de povos indígenas supostamente “condenados” pela
ordem capitalista global representara poderoso recurso no sentido das lutas por
autonomia e afirmação de sua identidade. Nas metrópoles mundiais, não
somente nos países centrais mas, principalmente, nos países anteriormente
chamados de “terceiro mundo”, fenômeno paralelo verificou-se com a luta pelos
direitos civis, e o enorme esforço pela construção de sociedades democráticas,
e plurais. Assim, desterritorialização, imaginação e participação política
compreendem novas balizas para se pensar a dimensão cultural como única
capaz de conferir significados a experiências locais, individuais ou coletivas.
Apesar de remeter a um processo ainda bastante incompleto e
contraditório o alargamento do consumo de bens culturais no Brasil e na
América Latina passou em anos mais recentes a incluir milhões de pessoas no
universo cultural, com várias repercussões na dinâmica cultural, inclusão
ocorrida no bojo das indústrias culturais contemporâneas, como a televisão e
26
seus novos desenvolvimentos técnicos, (tevê a cabo, digital), cinema, jornais,
revistas, livros etc2.
Todavia, ao contrário do que a diversidade de formas culturais poderia
supor, ainda imperam fortemente na sociedade brasileira traços de
massificação cultural sem qualquer tipo de controle social, ao sabor do
mercado cultural, das grandes corporações nacionais e transnacionais. Em
função desse fato a ampliação do acesso a bens culturais produzidos pelas
indústrias culturais coloca o impasse entre a massificação e a busca por
democratização da cultura.
Ganha força aí a ideia de políticas públicas de cultura capazes de, no
bojo dos meios contemporâneos de consumo, mas em boa medida se
contrapondo a eles, estabelecer cenário de democratização cultural entendida
como a criação de condições objetivas para a ampliação do acesso das
pessoas não somente ao consumo e fruição de bens culturais, mas também e,
sobretudo, de participação efetiva dos cidadãos de diferentes origens e modos
de vida, diferentes saberes e fazeres, no processo de criação e produção
culturais mais amplos.
O processo ganha especial relevo quando se pensa, além de novas
possibilidades de articulação entre política e cultura, nos processos perversos
que perpassam a realidade sociocultural contemporânea, redefinindo a noção
de participação política, ao menos como essa noção passou a ser pensada na
2 Em cidades latino-americanas como São Paulo é fácil encontrar-se, por exemplo, imensa quantidade de diferentes títulos de produtos culturais contrabandeados, como cds, - por vezes a obra inteira de um único cantor ou banda musical -, de DVDs “clássicos”, comerciais ou mesmo de filmes ainda não lançados oficialmente no País, todos vendidos por ambulantes, e que explicitam situação de total defasagem da legislação sobre os direitos de autor em face de tecnologias de armazenamento e reprodução de sons, imagens, textos etc, criadas em “alta velocidade”.
27
tradição ocidental, com o conceito clássico de cidadania tal como formulado por
T. Marshall (1964).
Um deles remete ao processo de contínua instrumentalização da vida.
Por esse termo entende-se, em acepção próxima do que Max Weber
denominou de processo de desencantamento, o predomínio do cálculo racional
- aquilo que Hamilton Faria e Pedro Garcia (2009, p. 28) denominam de
“monoteísmo da razão” - que permeia as relações nas sociedades modernas.
Na atualidade este processo pode ser atestado pelo considerável alargamento
da influência da ciência e da burocratização sobre a vida das pessoas.
Veja-se a crescente popularização do ideário empresarial fundado na
lógica das organizações e que procura condicionar o comportamento dos
indivíduos adequando-os à “realidade do mercado” por meio de categorias
como “gestão de carreiras” “networking”, “inovação competitiva”, liderança etc,
e que se apresenta, cada vez mais, como o “admirável mundo novo” do
capitalismo tardio. Tal ideário reforça a ética fundada na brutal competição de
mercado, no individualismo possessivo e na privatização de todas as relações
humanas. Resultado desse processo: niilismo e uso predatório dos recursos
naturais, colocando em risco as próprias condições de existência do homem
sobre a terra.
No campo científico o acentuado domínio dos especialistas em áreas
tão diversas como biotecnologia e neurociência, administração, pedagogia, e
ciência política parece invadir esferas há pouco protegidas como a religião, as
28
organizações sociais3 e a vida privada das pessoas, condicionando os
comportamentos como, por exemplo, a forma de cuidado com os filhos, as
relações afetivas, sexuais, a exigência na busca da felicidade. São fatos que
minam a própria concepção de liberdade, que sempre esteve associada à
noção de indivíduo, ao menos na tradição liberal clássica.
Processo igualmente perverso refere-se ao espaço conferido aos
modernos meios midiáticos de veiculação cultural naquilo que Guy Debord
(1992) chamou de “sociedade do espetáculo”, estimulando constantemente os
consumidores e não lhes oferecendo nada de novo senão bens culturais
elaborados sob medida para um “público médio” interessado em distração em
seus poucos momentos de “tempo livre”. O caráter alienante desse estado de
coisas é teorizado pelos representantes da escola de Frankfurt, notadamente
Adorno e Horkheimer (1986) na forma da clássica “indústria cultural”.
Fica evidente na passagem a enorme importância que passou a ter a
vida privada sobre a vida pública, esta fundamental para o estabelecimento de
uma ordem política democrática. Mais do que nunca se revela atual o que o
sociólogo americano Richard Sennett denominou de “as tiranias da intimidade”:
“Gradualmente, essa força perigosa, misteriosa, que era o eu, passou a definir
as relações sociais. Tornou-se um princípio social” (Sennett, 1988, p. 413). A
realidade pode ser facilmente constatada pelo gigantesco interesse coletivo
sobre a vida pessoal de celebridades, dos programas de reality shows, e da
tendência atual do consumo cultural privado, sobretudo pela televisão e formas
3 Basta verificar o modo como modelos oriundos de estruturas empresariais passaram a ser empregados na organização de inúmeras ONGs surgidas a partir de movimentos sociais como a captação as ideias de recursos, marketing social etc. O filme “Quanto vale ou é por quilo”, do diretor Sergio Bianchi, produção de 2005, retrata de forma acabada o modo como se esfuma a solidariedade de fachada por trás da indústria da exploração da miséria social no Brasil.
29
de reprodução audiovisuais em CDs, DVDs, videogames, computador, tudo
facilitado pela entrega de alimentos de todo tipo, o delivery.
Tal realidade está associada ao fenômeno de preponderância, na esfera
cultural, de gigantescas redes nacionais e internacionais de comunicação e
entretenimento que faturam bilhões de dólares a cada ano, com a oferta de
conteúdos culturais para todos os gostos e idades, chegando às residências no
mundo todo, independentemente da nacionalidade, credo ou regime político.
Há assim uma tendência à privatização do consumo cultural, restrita ao
universo familiar (e mesmo atomizado, na forma de aparelhos de tevê
espalhados pela casa) e em flagrante oposição à sociabilidade da esfera
pública.
Destaque-se, por outro lado, que o imenso aparato tecnológico propicia
impactos positivos em termos de acesso à informação e sobre as novas
modalidades de criação, invenção e inovação, além da difusão e transmissão
de bens culturais. Observam-se segmentos não mais interessados somente em
consumir bens culturais, mas em produzi-los, em vivenciá-los em todas as suas
dimensões.
Muitas tecnologias antes inacessíveis já se mostram mais ao alcance de
vários segmentos sociais, notadamente os jovens, que passam a produzir
trabalhos na área de audiovisual, música, hip-hop, fotografia, cultura digital etc.
São formas inovadoras de representação da realidade, algo a que Stuart Hall
refere-se como “revolução de atitudes em relação à linguagem” (Hall, 1997).
Segundo Du Gay (1994, apud Hall, 1997, p.9):
A suposição usual do senso comum é a de que os objetos existem “objetivamente”, como tal, “no mundo” e, assim,
30
seriam anteriores às descrições que deles fazemos. Em outras palavras, parece normal presumirmos que as “moléculas” e os “genes” precedam e sejam independentes dos seus modelos científicos; ou que a “sociedade” exista independentemente das descrições sociológicas que dela se fazem. O que estes exemplos salientam é o modo como a linguagem é presumivelmente subordinada e está a serviço do mundo do “fato”. Entretanto, nos últimos anos, a relação entre a linguagem e os objetos descritos por ela tem sido radicalmente revista. A linguagem passou a ter um papel mais importante. Teóricos de diversos campos — filosofia, literatura, feminismo, antropologia cultural, sociologia — têm declarado que a linguagem constitui os fatos e não apenas os relata.
Identidades brotam das formas inovadoras de apropriação da cultura. E
é possível observar consequências concretas na vida cotidiana dos indivíduos
pela via da afirmação de práticas culturais e novas identidades coletivas.
Práticas culturais que aparecem num contexto urbano marcado pela
vulnerabilidade social, daquilo que Caetano Veloso reconheceu em sua música
Sampa (1978) como a “força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Na
maioria das metrópoles mundiais, como São Paulo e Rio de Janeiro, é fácil
perceber na banalização da violência, no inchaço das periferias e nas
desigualdades sociais, fenômenos associados a processos econômicos
hegemônicos como a flexibilização das normas de regulação do mercado de
trabalho, exigência crescente de qualificação profissional, uso acentuado de
tecnologias poupadoras de mão de obra, diminuição de investimentos públicos.
Enfim, de processos que condenam quantidade inimaginável de indivíduos à
situação de desemprego e pobreza.
Essa realidade social, acentuada na última década pelo predomínio de
correntes neoliberais, revela os contornos de uma modernização conservadora
e concentradora de riqueza, cuja melhor tradução no plano cultural é o
predomínio de valores que abalam os próprios fundamentos da comunidade
31
política, do corpo político. Fato evidenciado diariamente, entre nós, pela
recorrente naturalização das situações de exclusão social, pelo declínio dos
espaços públicos, pela intolerância diante deste “outro próximo”, e pelo
individualismo obsessivo, manifesto no espaço urbano pelos condomínios
fechados, grades de proteção e carros recobertos por películas escuras.
Teixeira Coelho, ao refletir sobre o estado de crise, se atenta para o fato
de que, ao contrário do que ocorria em séculos anteriores, quando as guerras
eram motivadas por fatores de ordem econômica e religiosa, o século XX foi
marcado pelo que denomina de “guerras culturais”, intensas e diversificadas.
Segundo ele:
(...) a guerra cultural cotidiana opõe todos a todos e é travada (...) não raro, em nome de nada... e da erosão por dentro das normas de comportamento dos indivíduos, que os leva - que nos leva a todos, neste momento - a conviver com o inaceitável, a tolerar ou a fingir que se tolera aquilo que é totalmente inaceitável (...) nesta guerra civil urbana não há defesa porque o perigo vem de alguém "igualzinho a você", vem de todos os lados, e é exercido contra sua pessoa física, contra seus valores tanto quanto contra seus bens (...) uma guerra total (Coelho, 2002, p. 11).
Com o reparo de que nem sempre é possível distinguir tão claramente
as diversas motivações envolvidas nos conflitos sociais, ainda é bastante
elucidativo o fato de que cada vez mais a dimensão cultural - sobretudo na
forma de ações orientadas por valores que, a qualquer custo, procuram impor-
se pela força diante dos demais indivíduos - tende a apresentar-se como
elemento preponderante na compreensão dos fenômenos sociais na
contemporaneidade.
Contudo, ainda que os conflitos culturais presentes na paisagem atual
sejam muitas vezes iminentes, de alguma forma remetem à possibilidade da
32
contínua busca de consenso futuro, daquilo que Raymond Williams (1992)
denomina “cultura ordinária”, colada a manifestações cotidianas locais. Para
ele, a “cultura é ordinária porque está em toda sociedade e em toda mente”.
Antonio Albino C. Rubim relembra, na linha traçada por Teixeira Coelho,
que essas mudanças históricas resultaram de processo de recomposição do
ordenamento estatal em sua relação com a sociedade. Diz o autor:
O Estado-Nação moderno e seus governos têm uma legitimação secular e uma predisposição para uma atuação social laica. Com o declínio da religiosidade como eixo de legitimação da política, a cultura passa a ser uma fonte significativa dessa legitimidade. Tal dispositivo secular, inicialmente associado às elites e aos interesses dominantes, paulatinamente, através da luta de diferentes segmentos oprimidos, passa a ser conformado por expedientes democráticos, que implicam a construção de hegemonia e o colocam na cena política como condição vital para a direção da sociedade (Rubim, 2009)
Considerado este quadro seria enganoso supor que no cotidiano das
metrópoles não surjam espaços possíveis de recomposição da política no
sentido que lhe conferia Norberto Bobbio, (1982, p. 11), remetendo ao seu
significado grego de pólis, ou seja, de tudo que “se refere à cidade, tudo o que
é, portanto, citadino, civil, público, sociável e social”, base para o
estabelecimento de padrões de sociabilidade fundados em nova ordem ético-
normativa.
O campo cultural parece ser terreno fértil de mudanças. Notam-se
espaços para a emergência de novas e instigantes formas de inserção dos
indivíduos no universo cultural, especialmente pela presença de atores que, no
dizer de Hamilton Faria:
(...) reivindicam possibilidades e oportunidades culturais como estimuladores de integração e criação de novos modos de vida:
33
jovens dos bairros das metrópoles, movimentos socioculturais, redes de toda natureza passam a ser constituir como atores culturais e requerem novos instrumentos de acesso na participação democrática (Faria, 2009).
Neste cenário a cultura ganha relevância, pois, por meio das infinitas
formas de expressão do humano, de suas práticas significativas, das artes, das
manifestações populares, dos fazeres, saberes e tradições ancestrais resgata a
dimensão de gratuidade da existência humana, da abertura ao “outro possível”,
a descoberta de novas inventivas de ser, sentir e se relacionar com as demais
pessoas. Possibilita romper a dura hegemonia imposta pela racionalidade e
império do “sempre mais do mesmo”, que perpassa muitas vezes as relações
no mundo contemporâneo.
Se a política é a “arte do possível”, a dimensão cultural potencializa este
sentido ao possibilitar as trocas culturais, o respeito à diversidade, o
empoderamento dos sujeitos sociais e ênfase na criação de novos espaços de
participação cidadã, abrindo caminho para novas configurações societárias.
Mais concretamente esse conjunto de práticas e valores culturais pode
contribuir sensivelmente para o fortalecimento de uma cultura política de base
democrática. No caso de países de democracia frágil e herança autoritária,
como o Brasil, o fenômeno não é de pouca importância.
Acerca da noção de cultura política acima referida podemos utilizar o
conceito desenvolvido na ciência política e sistematizado por Ednaldo
Aparecido Ribeiro:
Podemos classificar como comunitarista [a corrente que] extrapola os limites dos valores ligados às instituições e focaliza sua atenção sobre àqueles ligados à vida comunitária cotidiana dos indivíduos. Valores, crenças e atitudes que fortalecem os compromissos sociais e a lealdade dos cidadãos
34
com a sua comunidade teriam mais poder explicativo sobre a democracia do que a confiança institucional (Ribeiro, 2007, p. 207).
Colocado nesses termos fica evidente as aproximações entre o domínio
das práticas culturais e da política em seu sentido mais cotidiano e original e
que remete à vida na polis, ou comunidade de cidadãos.
Todavia, para melhor precisar os termos da discussão, é preciso
assinalar os inúmeros significados da noção de cultura, haja vista que a opção
por certa definição delimita, mais do que campo semântico, um recorte de
possibilidades teóricas.
1.2. A propósito do conceito de Cultura
Como é notório, o conceito de cultura constitui longa tradição teórica no
âmbito das ciências humanas.
Na filosofia e nas novas ciências do homem, o conceito passou a ser
gradativamente problematizado e aprofundado tornando-se objeto por
excelência da antropologia, essa ciência surgida a partir do contato do europeu
com os povos “exóticos” do Novo Mundo no decorrer do processo de
exploração colonial.
No interior dessa ciência as reflexões em torno da cultura passariam a
ocupar lugar destacado no acervo intelectual do ocidente, equiparável às
grandes construções teóricas do pensamento filosófico e científico, como os
conceitos de evolução, democracia, estado, inconsciente, energia etc, o que de
per si comprova, mais do que o puro interesse acadêmico, a proeminência que
35
a esfera cultural passou a desempenhar concretamente sobre a dinâmica das
sociedades modernas. (Viveiro de Castro, E; e Velho, Gilberto, 1978)
Talvez este fato explique a enorme gama de definições que foram se
estabelecendo a partir de diferentes correntes filosóficas e domínios científicos
(além da antropologia, sociologia, história, psicologia, economia e semiótica)
abarcando subáreas, movimentos artísticos e literários, tão heterogêneos no
espaço e no tempo.
Mais do que o exaustivo inventário das concepções teóricas de cultura
formulados nos últimos séculos por tantos autores, escolas e tradições
diferentes, importa entender tais concepções à luz do contexto sócio-histórico
concreto em que se inscrevem e dos múltiplos campos de interesses a que se
associam e que lhes conferem inteligibilidade. O pressuposto é fundamental na
medida em que as concepções teóricas não são neutras, mas representam
expressões específicas das relações sociais presente em dada configuração
sócio-histórica.
Numa palavra, tal perspectiva busca entender a cultura no plano das
mediações que estabelece com a sociedade, a partir do que Raymond Williams
denominou de materialismo cultural, perspectiva que entendemos satisfatória
na abordagem das várias teorias que serão expostas. Por materialismo cultural
Williams concebe “una teoría de las especificidades del material propio de la
producción cultural y literaria dentro del materialismo histórico.” (Williams, 1980,
p. 16)
36
Na antropologia foi E. Tylor quem fixou pela primeira vez uma definição
de cultura que por muito tempo adquiriu valor paradigmático nas ciências
sociais. Segundo ele, cultura:
(...) em seu sentido etnográfico amplo é um todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, princípios morais, leis, costumes e quaisquer outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade (Tylor, 1998).
Considerada clássica, nesta definição é possível notar o caráter unitário
que envolve a cultura, entendida como um todo integrado e estruturado,
concepção inovadora na época, especialmente quando contraposta à velha
“visão humanista convencional, imbuída de pedantismo e orgulho espiritual”
(Kuper, 2002) associada ao termo.
Elaborada nos marcos de uma perpectiva evolucionista tão comum no
século XIX tal concepção contribuiu para pensar a cultura como fenômeno
universal em face das particularidades regionais e nacionais - sobretudo na
modalidade das questões associadas à “raça” - além de compreender a cultura
como constitutiva da vida humana em sociedade.
O problema, entretanto residia justamente na abrangência de tremo que
passava a abarcar todo o sistema social, com exceção dos aspectos
relacionados à condição biológica do homem, fato que desencadeou inúmeros
debates no âmbito do pensamento antropológico. Refletia-se acerca de como
restringir o conceito de cultura precisando melhor os seus contornos e,
sobretudo, as relações entre cultura e sociedade.
37
Progressivamente o conceito de cultura passava a ser assimilado como
“questão de ideias e não de atos ou instituições”, e mais a partir de símbolos.
Segundo Kroeber e Kluckhon:
(...) houve a partir de 1951 um amplo reconhecimento entre filósofos, linguistas, antropólogos, psicólogos e sociólogos, de que a existência de cultura deve-se, essencialmente, ao desenvolvimento da faculdade de simbolizar, generalizar e fazer substituição imaginativa por parte do homem primitivo. Outra década, portanto, viria a testemunhar uma maior acentuação desse fator em nossa maneira de pensar sobre cultura (apud KUPER, 2002, p.85).
A associação entre cultura e sistema de significações reflete as
inúmeras concepções desenvolvidas pela sociologia clássica, e que passam a
entender a cultura sob a ótica de sistemas de representações4. As tentativas,
entretanto, de precisar as relações entre cultura e sociedade não poderiam
obscurecer outro conjunto de questões necessariamente implicadas pela
condição biológica do ser humano.
Também nesse terreno foi se estabelecendo a ideia fundamental de que
a cultura resulta da vida em sociedade e representa atividade intrinsecamente
humana, atributo que diferencia o homem de outros animais, notadamente pela
capacidade de criar um universo simbólico à sua volta. Segundo Clifford Geertz
(1966, p. 31):
O homem é o animal que fabrica instrumentos, que fala, que adota símbolos. Somente o homem ri; somente o homem sabe que morrerá; somente ele não mantém relações sexuais com sua mãe ou sua irmã; somente ele tem essas visões de uma vida em outros mundos, criando o que Santayana chama “religiões”, ou faz os “bolos de lamas mentais”, chamado por Cyril Connolly “arte”. Apenas o homem possui (...) não só
4 Tomem-se, a respeito, as pesquisas de Émile Durkheim acerca das formas primitivas de classificação. Tal ideia foi, gradativamente, ganhando força nas ciências sociais em geral, mas, sobretudo, na antropologia, cuja expressão mais acabada foi o estruturalismo de Lévi Strauss.
38
inteligência, como também consciência; não só necessidades como também valores; não só um passado, mas também uma história. Somente o homem, em suma, tem cultura.
Para Raymond Williams, o deslocamento no sentido da ideia de cultura,
associado à ideia original de processo sofre mudança substancial no século
XVIII na esteira das várias mudanças operadas na sociedade europeia, na
ordem política e na econômica. Segundo ele:
Hasta el siglo XVIII todavía eral el nombre de un proceso: la cultura de algo, de la tierra, de los animales, de la mente. Los cambios decisivos experimentados por la “sociedad” y la “economía” habían comenzado antes, en las postrimerías del siglo XVI y durante el siglo XVII; gran parte de su desarrollo esencial se completó antes de que la “cultura” incluyera sus nuevos y evasivos significados (Williams, 1980, p. 23)
A passagem de um significado de cultura ligado à ação humana de
cultivo do solo para um dos sentidos comumente aceitos, como o de “cultivo do
espírito humano” já reflete uma distinção fundamental, a saber, a separação
entre os produtos naturais e os produtos culturais, cujo desdobramento estará
presente na clássica oposição entre natureza e cultura, distinção utilizada por
vários pensadores e correntes teóricas.
Os resultados do processo cumulativo de transformações da natureza
realizada pelo homem - aquilo que o materialismo histórico denomina de forças
produtivas - passa a ser apreendida a partir de conceito próximo ao de cultura,
o de civilização.
Originalmente coube aos antigos romanos forjar o conceito de
civilização - civilitas, partindo da ideia de cidade, civitas, e que trazia como seu
oposto direto a barbárie. O termo foi utilizado na Europa até o século XVIII com
significados bastante próximos e intercambiáveis com o de cultura, denotando,
39
segundo Raymond Williams, “um estado realizado y de um estado del
desarrollo realizado” (Williams, 1980, p. 25).
Para este autor a ideia de civilização admitia em seu significado a noção
de processo e progresso histórico e de refinamento e ordem, que caracteriza
determinada formação social. Referia-se à noção de estágio de
desenvolvimento cultural alcançado por determinado povo num momento
específico de sua história.
Ao longo da história ocidental a noção de civilização encontrou sua mais
acabada justificativa ideológica no movimento Iluminista cujas ideias seculares
fundadas na Declaração dos Direitos Universais do Cidadão e no triunfo do
racionalismo burguês representariam crítica corrosiva ao ancien regime,
abrindo espaço para o gradual predomínio das relações capitalistas na Europa
e em escala mundial5. A civilização ganha adjetivo, na forma de uma civilização
capitalista.
Esse projeto civilizatório, no entanto, conhece vozes dissonantes. Jean
Jacques Rousseau vai ser responsável por uma linha de pensadores que
desde o final do século XVIII lançará profunda desconfiança a respeito dos tão
5 Longe, todavia, de se configurar como homogêneo, o Iluminismo também trazia em seu bojo vozes dissonantes. Jean Jacques Rousseau passaria a denunciar o caráter superficial e artificial que irremediavelmente acompanhava os supostos avanços alcançados pela civilização, sobretudo em seus aspectos “exteriores”, como a urbanidade e ostentação, em oposição às exigências da “vida interior” dos indivíduos. Elemento marcante dessa diferença, como indicador de civilização, talvez seja a representação do popular (camponeses, artesãos, etc), caracterizado como “rude” ou “grosseiro” ante o “refinamento”, a “sofisticação” e o apreço à arte, presentes em vários círculos da nobreza europeia, - e desde logo adotados, por tabela, pela incipiente burguesia em busca de sinais de distinção social - frequentadores de teatros e salões dos centros metropolitanos particularmente na França e Inglaterra. Para ele (1984, p. 67): “(...) a civilização é vista como responsável pela degeneração das exigências morais mais profundas da natureza humana e sua substituição pela cultura intelectual. A uniformidade artificial de comportamento, imposta pela sociedade às pessoas, leva-as a ignorar os deveres humanos e as necessidades naturais. Assim como a polidez e as demais regras da etiqueta podem esconder o mais vil e impiedoso egoísmo, as ciências e as artes, com todo o seu brilho exterior, frequentemente seriam somente máscaras da vaidade e do orgulho”. (1987, p.XIII)
40
decantados benefícios da civilização na forma do desenvolvimento material,
técnico e científico, assinalando seus efeitos deletérios sobre os imperativos
éticos e morais do ser humano.
Nessa perspectiva teórica o desenvolvimento intelectual e material
propiciado pelas ciências e pelas artes como expressões da vida civilizada não
acarretaria o desenvolvimento moral do ser humano em sua integralidade, mas
pelo contrário, seria responsável por sua degenerescência. Aqui, a valorização
do eu, o apego à imaginação, aos sentimentos, e o retorno à natureza, na
forma do mito do bom selvagem, delimitam um campo de preocupações que de
certa forma remontam à velha questão socrática do “conhece-te a ti mesmo”.6
Aprofundada pelo movimento romântico dominante no século XIX,
sobretudo como desdobramento do idealismo alemão esta crítica representaria
vigorosa reação ao Iluminismo, ao processo de secularização e ao crescente
domínio de um modo de vida cosmopolita que passava a compreender as
novas relações sociais capitalistas.
Tais contradições na esfera da cultura e civilização evidenciam as
complexas transformações históricas vividas no continente europeu a partir do
lento ocaso da ordem medieval e o nascimento do mundo capitalista moderno.
Opera-se uma distinção básica. O conceito de civilização na perspectiva
alemã irá designar o conjunto das realizações materiais de um povo traduzindo
as novas condições materiais inauguradas pelo capitalismo industrial e o
6 O conhecimento autêntico nasce da fuga do olhar de tudo que rodeia o homem, compelindo-o para dentro de si próprio. Conforme Novalis: “É para o interior que se dirige o caminho misterioso. Em nós, ou em parte nenhuma, estão a eternidade e os seus mundos, o futuro e o passado. O mundo exterior é o universo das sombras”.
41
consequente processo de expansão comercial de vastas porções do planeta
como o continente africano e o asiático. Sempre sob argumento da “missão
civilizadora”. Por outro lado, a esfera da cultura designaria os aspectos
espirituais de uma comunidade notadamente na forma de seus aspectos
distintivos, as realizações de um povo, de uma nação.
Segundo Max Weber cuja sociologia compreensiva reflete a importância
do ambiente cultural na interpretação dos sentidos presentes nas ações dos
indivíduos o inexorável processo de racionalização da vida bem como seu
corolário mais direto, a especialização do trabalho, serão os responsáveis pelo
que o autor identifica como a autonomização dos campos de atuação e
valoração humanas – arte, literatura, moral, ciência – em relação às
concepções metafísico-religiosas de mundo que anteriormente conferiam
amplo sentido à vida humana.
Max Weber “tenta demonstrar que os comportamentos econômicos da
classe dos empresários capitalistas são compreensíveis somente se levarmos
em consideração a sua concepção de mundo e seu sistema de valores” (apud.
CUCHE, 1999, p.161). Para ele o que comumente é reconhecido como
civilização compreende amplo e maciço processo de racionalização que vai
envolvendo diferentes domínios da vida social e encontra sua forma mais
acabada numa estrutura burocrática altamente reguladora. Em meio ao debate
acerca do peso conferido aos fatores socioeconômicos na explicação de dado
fenômeno social (tal como proposto pelos marxistas), Weber assinala que o
mesmo fenômeno é
(...) condicionado pela orientação do nosso interesse de conhecimento, e essa orientação define-se em conformidade
42
com o significado cultural que atribuímos ao evento em questão, em cada caso particular. “Portanto, são os processos da vida cultural que contêm o significado dos eventos socioeconômicos” (Weber, 1992, p.118).
Como consequência Weber antecipa concepção de cultura alicerçada
em significados e sistemas de valores que influenciam a conduta humana. Sua
melhor expressão talvez seja indicada por Clifford Geertz, tributário da
sociologia weberiana, ao assinalar “que o homem é um animal amarrado a
teias de significados que ele mesmo teceu” (Geertz, 1978, p.15).
A análise do processo de autonomização da cultura é problematizada
por Pierre Bourdieu (1974), em seus estudos sobre o campo cultural. Para ele,
na esteira das ideias de Jean Paulo Sartre, o universo da literatura, por
exemplo, conquistou sua autonomia no século XVIII por meio de escritores
burgueses (Voltaire) que reivindicavam espaço independente de ação em face
da sociedade aristocrática à qual então se subordinava.
Tal fato representaria momento importante da cultura ocidental na
medida em que os artistas e intelectuais desprendem-se das antigas
autoridades ao qual estavam subordinados como a Igreja, a aristocracia e o
Estado, opondo-se, portanto ao poder econômico, político e religioso.
Para Bourdieu, opera-se um processo em que o campo da cultura e
seus representantes diretos, os intelectuais, artistas, escritores, passam a ser
percebidos como esfera autônoma da vida social constituída por um corpo de
produtores especializados que competem no mercado de bens simbólicos por
reconhecimento. Para ele:
(...) o processo de autonomização da produção intelectual e artística é correlato à constituição de uma categoria
43
socialmente distinta de artistas ou de intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de partida ou um ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar a sua produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social, seja das censuras morais e programas estéticos de uma igreja empenhada em proselitismo, seja dos controladores acadêmicos e das encomendas de um poder político propenso a tomar arte com um instrumento de propaganda. (Bourdieu, 1974, p. 101)
O reconhecimento é propiciado pelo que denomina “instâncias de
consagração”, presentes no campo cultural, a saber, artistas, marchants,
curadores, produtores e críticos culturais. Bourdieu, entretanto aponta para o
fato essencial de que o acesso a posições de destaque no interior do campo
cultural mostra-se particularmente determinado por condições específicas
quanto à formação de seus pretendentes, nomeadamente nas esferas familiar
e educacional.
Interessado em elaborar uma teoria da ação social passível de explicar
os processos de reprodução cultural, Bourdieu encontra a mediação possível
dos agentes sociais no que designará por habitus. Segundo ele, este consiste:
Em sistemas de posições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, quer dizer, enquanto princípio de geração e de estruturação de práticas e de representações que podem ser objetivamente 'reguladas' e 'regulares', sem que, por isso, sejam o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor a visada consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-las e, por serem tudo isso, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação combinada de um maestro (Bourdieu, 1974).
Suas análises permitem compreender os meandros do processo de
reprodução das desigualdades culturais na medida em que assinala que
somente os indivíduos com determinado histórico familiar e melhores
44
oportunidades educacionais ao longo da vida terão condições de apreender os
mecanismos de decodificação intrínsecos à perfeita fruição de bens largamente
consagrados pela tradição cultural.
Esta perspectiva teórica explicita os limites que envolvem as condições
e possibilidades de socialização da cultura, negligenciando-se as barreiras
impostas pela divisão de classes sociais, especialmente sob a forma de certa
democratização cultural. O autor assinala limites inerentes a propostas
baseadas no ideal de levar “a cultura” ao povo, ou de determinadas ações
centradas na “formação de público”.
No contexto do marxismo a questão da cultura e sua relação com a
política adquirem abordagem particularmente importante. Ainda que apresente
inúmeras ramificações, essa corrente teórica opera profunda crítica das
concepções que encaram a cultura em sua forma meramente abstrata, como
“pura” realização do espírito humano, desligada das relações humanas e
concretas e isolada de outros domínios da vida social.
Nessa abordagem a cultura passa a ser apreendida como processo
resultante do movimento dialético de transformação da natureza pelo trabalho
humano, movimento que só pode ser devidamente analisado se considerado o
complexo de relações sociais que configuram a sociedade em dado momento
de seu processo histórico.
Esse pensamento conduz à clássica e ao mesmo tempo controversa
diferenciação proposta por Karl Marx entre infraestrutura e superestrutura. A
primeira designaria a base material da sociedade correspondente a período
determinado do desenvolvimento das forças produtivas, originada do processo
45
dialético de transformação da natureza, além das relações de produção
estabelecidas entre os homens. Já a superestrutura representaria a base
ideológica de determinado sistema de produção material, envolvendo o
conjunto das instituições jurídicas e políticas, e por determinadas formas de
consciência, como sistemas de crenças, valores, moral, religião, arte,
legitimada e ao mesmo tempo legitimadora do sistema de produção ao qual
daria sustentação.
Muito se tem debatido acerca desses conceitos e seus desdobramentos
teóricos - e mesmo práticos -, pois o marxismo defende, a partir da práxis, a
união indissociável entre teoria e prática, entre filosofia e política. Várias
correntes teóricas no interior do materialismo histórico (como o marxismo-
leninismo) passariam a reificar essas categorias analíticas, destituindo-as de
seu caráter processual, do movimento dialético que a orienta, imputando-se ao
pensamento de Karl Marx o que seria denominado de determinação, ou, mais
explicitamente, expressão de certo reducionismo ou determinismo econômico,
dada a suposta primazia conferida a esta variável na explicação dos
fenômenos sociais.
Frequentemente a utilização de tal modelo teórico aplicado de forma
mecânica repercutiu no plano da cultura pela consideração de que as várias
modalidades de produtos culturais, a filosofia, ciências, artes, literatura,
constituem meros reflexos imediatos das condições materiais de produção que
caracterizam determinada sociedade.
A leitura de passagem extraída do final da Introdução de “Para a crítica
da Economia Política” mostra que o pensamento de Marx estava longe de ser
46
monolítico para embaraço das interpretações formuladas pelas correntes mais
ortodoxas do pensamento marxista:
Com relação à arte sabemos que certas épocas de florescimento artístico não correspondem de modo algum à evolução geral da sociedade nem, por conseguinte, ao desenvolvimento da sua base material, que é, por assim dizer, a sua ossatura” (Marx, 1987, p.24).
Tal concepção serviu aos seus defensores como elemento de denúncia
dos inúmeros interesses de classe ocultos no processo de produção artística e
literária implicando muitas vezes na adjetivação dos produtos culturais sob o
rótulo de “arte burguesa”, “literatura pequeno-burguesa” etc, em oposição à
“verdadeira arte” de origem proletária ou popular. Outros, entretanto,
reivindicarão o caráter de universalidade e autonomia como condição essencial
da produção intelectual e artística tradição herdada do Renascimento europeu.
É inegável, entretanto que o pensamento marxista representou
momento fundamental de valorização da cultura operária de suas práticas
culturais, modos de vida, experiências num movimento fundamental de
reversão das perspectivas históricas que sempre se pautaram pela valorização
dos “grandes personagens”, além dos “grandes feitos” que sempre celebraram
a visão das classes dominantes. Com o pensamento marxista ocorre
estreitamento considerável das relações entre cultura e política, do papel da
cultura como elemento de transformação social, sobretudo como acesso a uma
consciência de classe.
Essa concepção teórica avança consideravelmente com o pensamento
do italiano Antonio Gramsci. Militante político, vítima do Estado fascista de
Mussolini, carreará para o pensamento marxista conceitos de enorme impacto
47
sobre suas correntes mais ortodoxas, em evidente confronto com posições
deterministas. A partir dos conceitos de hegemonia, intelectual orgânico e
Estado ampliado, Gramsci descortina perspectivas interessantes no
entendimento do papel da cultura no processo de transformação social e
política.
Longe do teatro da eterna dominação fundada na “falsa consciência”,
realizada de forma linear e monolítica entre as classes sociais, Antonio
Gramsci identifica por meio da categoria de hegemonia um processo ideológico
mais denso e dinâmico. Nesse aspecto a hegemonia representa a emolduração
de uma visão de mundo na base de valores, moral, senso comum, concepções
estéticas, enfim, da cultura dominante em dada configuração histórica, e que
perfaz o instante de legitimação da ordem social obtido pelo consenso.
Todavia, o terreno de construção da hegemonia ocorre concomitantemente à
outra esfera, a da dominação, exercida pelo Estado:
Podem-se fixar dois ‘planos’ superestruturais: o que pode ser chamado de ‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto dos elementos comumente chamados de ‘privados’) e o da ‘sociedade política ou Estado’, que correspondem à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’. Essas funções são precisamente organizativas e conectivas (Gramsci, 1979, p. 10).
Tal perspectiva, a do Estado ampliado desloca consideravelmente do
eixo a teoria política marxista que concebe o Estado como mero “comitê” dos
interesses da burguesia, abrindo a possibilidade de que a transformação social
e política ocorra pela construção de uma contra-hegemonia elaborada pelos
segmentos oprimidos da sociedade. Daí o caráter estratégico da cultura e do
papel desempenhado pelos intelectuais na sociedade.
48
Mais do que um indivíduo fechado em sua torre de marfim e alheio à
realidade que o cerca, para Gramsci:
Todo homem (...) desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um ‘filósofo’, um artista, uma homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção de mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar (Gramsci, 1979).
Ainda no campo marxista, o crítico Raymond Williams aparece,
juntamente com outros intelectuais, como Richard Hoggart e E.P. Thompson,
como referência obrigatória no cenário britânico na década de 50 do século
passado, no âmbito dos chamados “Estudos Culturais”.
Com trajetória de forte vínculo com as camadas populares de onde se
originam estes autores ingleses buscam construir um espaço de reflexão
teórica num ambiente dominado pela crise das esquerdas, crise em boa
medida oriunda nesse período pela divulgação das atrocidades cometidas pelo
Estado estalinista na então URSS, e no desenrolar do período da chamada
Guerra Fria.
Alinhados no movimento da Nova Esquerda, e da Revista New Left
Review, entre 1957-1961 esses intelectuais desenvolveriam várias reflexões no
sentido de entender a cultura a partir de seu significado no campo das lutas da
classe operária, frequentemente cooptada pelo consumo fácil de produtos
orientados para a “massa”. Os referidos autores reivindicavam a criação de um
sistema de comunicação massivo que atendesse aos anseios e valores das
culturas marginalizadas, em oposição às tradicionais distinções entre “baixa” e
“alta” cultura, tão comuns à tradição do pensamento britânico.
49
Partindo de extenso inventário do termo cultura ao longo da história, e,
sobretudo, reafirmando o seu caráter de processo, Raymond Williams tecerá
vigorosa crítica dirigida às duas posições antagônicas: de um lado a crítica à
ideia corrente de cultura percebida como “o melhor que já se produziu no
mundo” – termos em que era compreendida pela elite cultural britânica,
expressa na obra de Frank Leavis; de outro lado, à perspectiva marxista mais
ortodoxa que entendia a cultura como mero reflexo da infraestrutura, crítica,
como visto, formulada por Gramsci, uma das grandes influências desse autor.
Ao longo do levantamento histórico-crítico ele vai ressaltar a
convergência de algumas linhas de significado de cultura. Segundo ele:
A dificuldade do termo é, pois, óbvia, mas pode ser encarada de maneira mais proveitosa como resultado de formas precursoras de convergência de interesses. Podemos destacar duas formas principais: (a) ênfase no espírito formador de um modo de vida global, manifesto por todo o âmbito de atividades sociais, porém mais evidentes em atividades “especificamente culturais” – uma certa linguagem, estilos de arte, tipo de trabalho intelectual; e (b) ênfase em uma ordem social global no seio da qual uma cultura específica, quanto a estilos de arte e tipos de trabalho intelectual, é considerada produto direto ou indireto de uma ordem primordialmente constituída por outras atividades culturais. (...) Esta [convergência] possui muitos elementos em comum com (b), em sua ênfase numa ordem social global, mas dela difere em sua insistência em que a “prática cultural” e a “produção cultural” (seus termos mais conhecidos) não procedem apenas de uma ordem social diversamente constituída, mas são elementos importantes de sua constituição; por outro lado, ela participa de alguns elementos de (a), em sua ênfase em práticas culturais como constitutivas (se bem que hoje em dia, entre outras). Em vez, porém, do “espírito formador” que, afirmava-se, criava todas as demais atividades, ela encara a cultura como sistema de significações mediante a qual necessariamente (se bem que entre outros meios) uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada (Williams, 1992).
Desse modo, partindo-se da ideia de cultura como (a) espírito formador;
e (b) ordem social global, Raymond Williams estabelece uma série de
50
complexas relações de significados em que prepondera o caráter constitutivo
da cultura. Sua formulação concebe a cultura ao mesmo tempo como prática
cultural e produção cultural, inscritos no quadro do que denomina “sistemas de
significações”.
Como corolário do processo, Raymond Williams estabelece nova
distinção essencial no campo da cultura, a saber, de um lado, 1) o sentido
sociológico e antropológico de cultura; de outro, 2) seu sentido mais
especializado na forma de atividades artísticas e intelectuais. Pelo primeiro, o
autor entende como “’modo de vida global’ distinto, dentro do qual percebe-se,
hoje, um sistema de significações bem definido não só como essencial, mas
como essencialmente envolvido em todas as formas de atividade social”
(Williams, 1992, p. 13).
Na segunda acepção, “mais especializada”, referente às atividades
artísticas e intelectuais, o autor inclui “não apenas as artes e as formas de
produção intelectual, mas todas as ‘práticas significativas’ – desde a
linguagem, passando pelas artes e filosofia, até o jornalismo, moda e
publicidade – que agora constituem esse campo complexo e necessariamente
extenso” (Williams, 1992).
Tal referencial teórico é fundamental. Desde já fica evidente que para
Williams a cultura é encarada como indissociável da vida social, compondo sua
própria tessitura. Confrontado com a perspectiva que desnuda a dominação, o
autor busca aquilo que chama de “cultura ordinária, ou comum”. Esta remete
aos próprios significados e definições que os homens dão aos acontecimentos
e experiências de sua vida e à forma ampla como reagem em pensamento e
51
sentimento às mudanças na condição humana, criada e recriada pelos próprios
homens (Williams, 1980).
Ao afirmar que cultura é ordinária, o autor escapa à armadilha de tentar
fixar sentido definitivo, e resolve dar-lhe qualidade: é ordinária. Ressalta a sua
função mais peculiar, a que articula cultura à organização da sociedade a partir
de realidade peregrina, colada ao cotidiano e que todos experimentam mesmo
que não frequentem teatro ou cinema e não sejam leitores de jornais ou livros.
Na linha da concepção aberta por Raymond Williams e desenvolvida a
partir de categorização sugerida pelo sociólogo chileno José Joaquim Brunner,
Isaura Botelho explicita as duas concepções de cultura, a sociológica e a
antropológica. Pela primeira, a autora refere-se ao âmbito especializado das
artes:
É uma produção elaborada com a intenção de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através de meios específicos de expressão. Para que essa intenção se realize, ela depende de um conjunto de fatores que propiciem ao indivíduo condições de desenvolvimento e de aperfeiçoamento de seus talentos, da mesma forma que depende de canais que lhe permitam expressá-los (Botelho, 2001, p. 5).
Diferentemente da perspectiva sociológica, abre-se nova abordagem a
partir do reconhecimento do que Botelho (2001) designa como dimensão
antropológica da cultura, e que reflete do ponto de vista das políticas culturais
mais recentes, a abertura para novas demandas e manifestações oriundas de
vários segmentos da sociedade. Segundo ela:
Na dimensão antropológica, a cultura se produz através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, e constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas. Desta forma, cada indivíduo ergue à sua volta, e em função de
52
determinações de tipo diverso, pequenos mundos de sentido que lhe permitem uma relativa estabilidade. Desse modo, a cultura fornece aos indivíduos aquilo que é chamado por De Certeau de ‘equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e compromissos mais ou menos temporários’ (Botelho, 2001, p. 3).
Embora a distinção indique campos diferenciados de ação e de
orientação das políticas culturais é preciso não perder de vista que em grande
medida elas deverão, no atual cenário cultural, se complementar. Para isso, no
entanto, é necessário que a dimensão antropológica assuma papel cada vez
mais destacado.
1.3. Das políticas culturais
Pode-se considerar como etapa fundamental na história das complexas
relações entre Estado, cultura e sociedade, e como consequência do fenômeno
da centralidade da cultura, o gradual surgimento das políticas culturais no
século XX e o seu papel preponderante no concerto das demais políticas
públicas das sociedades contemporâneas.
Tais políticas têm se constituído em tema de interesse crescente no
Brasil e no cenário latino-americano. O fato pode ser atestado nas últimas
décadas pelo acentuado envolvimento não somente do Estado, do mercado e
do amplo espectro de organizações da sociedade civil, para ficar no âmbito da
realidade subnacional, mas a partir da atuação crescente de atores
supranacionais, como o sistema das Nações Unidas, organismos multilaterais,
comunidades e uniões de países.
53
No campo acadêmico verifica-se de forma correlata incremento
significativo na produção bibliográfica e de pesquisas acerca de fenômenos
culturais, em especial os estudos empíricos relativos às experiências de
políticas culturais em dados contextos sociais específicos. Mais adiante será
pormenorizadamente avaliado o caso do programa VAI - Programa para
Valorização de iniciativas Culturais e sua importância como política pública de
cultura em uma cidade como São Paulo.
O cenário de maior visibilidade em torno das políticas culturais tem
possibilitado que o chamado setor de atividades culturais seja encarado de
forma mais aprofundada por técnicos governamentais e especialistas que
passam a tomá-lo como fenômeno complexo e singular. Destaque-se a
crescente importância econômica que tal segmento tem assumido em diversos
países no mundo contemporâneo, fato evidenciado pelo aumento significativo
da participação do setor cultural no conjunto das riquezas produzidas pela
economia.
Tome-se como parâmetro, segundo dados de 2007, o caso de países
como Reino Unido, EUA e França, respectivamente com 3,9%, 2,8% e 2% do
Produto Interno Bruto (PIB). No caso do Brasil, o percentual chega a 1%,
segundo dados de 2004. Para Gabriel Alvarez, consultor do Ministério da
Cultura:
É um setor significativo que movimenta mais que outros setores que recebem fortes incentivos, como a indústria automobilística, a cana-de-açúcar. (...) Você tem cerca de 700 mil postos de trabalho formais. Se se somar a isso o trabalho informal, vai dar mais de 1 milhão de postos de trabalho nessa economia da cultura, sem contar o artesanato, que não aparece nessas estatísticas oficiais. (...) Estamos falando de um setor que movimenta 1% do PIB e que movimenta uma força de trabalho de aproximadamente 1 milhão de pessoas, e
54
dentro do Orçamento da União, o Ministério da Cultura tem 0,4% mais 50% contingenciados (Diário de Notícias, 2007).
Pode-se perceber nesta avaliação o descompasso entre o significado
material desse setor de atividades e sua visibilidade em termos do lugar
conferido às políticas públicas no Brasil. Daí a necessidade de ampliar os
debates e qualificar as ações na área.
Entretanto vale indagar sobre o significado teórico de políticas culturais,
o modo como elas se formaram ao longo da história ocidental, e, em que
medida essa ideia expressa nova forma de se conceber a cultura cada vez
mais inserida no campo dos direitos da cidadania, e pautada não pelo exercício
protocolar do voto, mas pela participação e empoderamento dos indivíduos em
um contexto de diversidade cultural.
Vale resgatar o contexto histórico de emergência das políticas culturais
e seus conceitos básicos. Segundo Antonio Albino C. Rubim (2009) e Lia
Calabre (2007), um dos marcos históricos do processo institucionalização da
cultura, seu “momento fundacional” se deu com a criação do Ministério de
Assuntos Culturais na França, sob a direção de André Malraux, no ano de
1959, iniciativa pioneira e que se tornou referência para diversos países. Para o
primeiro autor, “a missão de Malraux não foi apenas instituir o primeiro
ministério da cultura existente no mundo, mas conformar uma dimensão de
organização nunca antes pretendida para uma intervenção política na esfera
cultural” (Rubim, 2009, p. 95).
Citando Herman Lebovics, Antonio Albino C. Rubim expõe as
coordenadas sociopolíticas que balizaram o surgimento do ministério francês:
55
Cabe destacar um hecho de importancia: Malraux estabeleció el principio conforme al cual las autoridades públicas tienen una responsabilidad para con la vida cultural de sus ciudadanos, del mismo modo que la tiene – si bien no en La misma medida en lo que respecta a la financiación – para con su educación, salud y bienestar (RUBIM, 2009, apud. LEBOVICS, 2000, p. 292).
Na visão de Philippe Urfalino, expressa em sua obra l’invention de la
politique culturelle (2004), o que ocorre na França desse período é a própria
“invenção das políticas culturais”, ao menos como estas passam a ser
concebidas no mundo contemporâneo por agentes públicos e por especialistas
no assunto.
Essas políticas constituem-se a partir de espaços “de convergência e da
coerência entre as representações do papel do Estado na relação com a arte e a
cultura e a organização de uma intervenção pública que tenha subjacente um
mínimo de unidade de ação do poder político”. Sua gênese, portanto é resultado
da complexa somatória de ações administrativas dos organismos em geral e
dos meios artísticos além de estudos de políticas culturais que formam em
conjunto o que denominou de “história da ideologia cultural do Estado”
(Calabre, 2007).
Não se deve perder de vista, entretanto o referencial político subjacente
a esta concepção seminal e que se pauta pelo cânone do patrimônio cultural
ocidental notadamente expresso pela cultura francesa, cultura frequentemente
encarada como “a” cultura, tout court, e de recorte ainda iluminista.
A literatura sobre o tema já sublinhou os aspectos geopolíticos
envolvidos na questão em um momento em que tanto o poderio francês quanto
a própria noção de civilização sofriam profundo abalo após o horror da guerra.
56
De outro lado, as mudanças prenunciam nova “estrutura de sentimento”, como
ressalta Raymond Williams (1980), pelo surgimento, nos anos seguintes, de
movimentos de contracultura que abrem espaço para que se insurjam novas
formas de percepção e de crítica do universo cultural reinante na geração do
pós-guerra. Maio de 68 e o lema “É proibido proibir”, além do Festival
Woodstock expressam o novo espírito de renovação da época descortinando
novas demandas no campo cultural.
Contudo, nem tudo é ruptura com a geração anterior. É importante
lembrar também que no período do pós-guerra vários países europeus, em
especial a França, estabeleciam os fundamentos do denominado Estado de
Bem-Estar Social numa reformulação crítica das teorias liberais clássicas.
Proporcionando um guarda-chuva de proteção contra as intempéries da vida -
como doenças e desemprego - este modelo de Estado se incumbia de garantir
à população de forma universal, direitos sociais básicos como assistência
médica, transporte de qualidade, educação, auxílio-desemprego etc. Portanto,
longe de se firmarem como setor isolado as políticas culturais já se inserem
num amplo quadro de políticas públicas de governo, notadamente as políticas
de educação com as quais mantém relação bastante estreita.
O direito à cultura inscrevia-se nesse contexto de garantia dos direitos
básicos do cidadão de acordo com o que prescreve o artigo 27 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948:
1-Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. 2- Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.
57
Direitos referendados pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, de 1966 - posteriormente promulgado no Brasil em 1992 - e
que estabelece, em seu artigo 15:
Art. 15 - 1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b) Desfrutar o progresso científico e suas aplicações; c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor. 2. As medidas que os estados-partes no presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. 3. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criadora. 4. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura.
Ademais, no bojo das concepções de cidadania formulada por T.
Marshall (1964) está presente a do papel dos direitos civis, políticos e sociais,
como instância capaz de corrigir as graves distorções características das
sociedades de classes no século XX. Noutras palavras, a convicção do autor
era a de que, pela intervenção estatal, se estabelecesse determinado padrão
igualitário impossível de ser alcançado pela via do mercado.
Deve-se assinalar que, em termos mais amplos, e apesar de sua
singularidade, as políticas culturais pertencem ao amplo conjunto das políticas
públicas geridas do Estado - ainda que estas não se restrinjam inteiramente à
atuação estatal. Quando praticada diretamente por órgão estatal, apesar de
todos os aspectos técnico-administrativos envolvidos e frequentemente
ressaltados sua dimensão política é inegável. E o conceito de política nesse
58
sentido vai além daquele usado para denominar as chamadas políticas
setoriais de governo. Refletindo a respeito, afirma Antonio Sérgio Fernandes:
(...) normalmente costuma-se pensar o campo das políticas públicas unicamente caracterizado como administrativo ou técnico, e assim, livre, portanto, do aspecto “político” propriamente dito, que é mais evidenciado na atividade partidária e eleitoral. Esta é uma meia verdade, dado que apesar de se tratar de uma área técnico-administrativa, a esfera das políticas públicas também possui uma dimensão política, uma vez que está relacionada ao processo decisório (Fernandes, 1995).
O âmbito desse caráter político e, por extensão, transformador da
cultura aparece curiosamente diluído em várias ações governamentais e
mesmo de organizações da sociedade civil.
Desse modo a cultura é encarada como elemento chave não somente
nas políticas culturais estritamente consideradas, como, de forma mais difusa,
e transversal, no âmbito das várias políticas públicas e sociais. Por exemplo,
em ações de recuperação de adolescentes e jovens, “afastando-os do perigo
das drogas”, no efeito terapêutico proporcionado pelo contato com a arte, no
combate à violência urbana, na reintegração do egresso, entre outras tantas
supostas benesses.
Tomando-se como referência o momento de fundação das políticas
culturais nas sociedades ocidentais notadamente a partir da crescente
afirmação da cultura como direito é possível divisar outras conceituações
importantes, desta feita entre teóricos latino-americanos. De acordo com
Nestor G. Canclini, as políticas culturais se referem ao
(...) conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis e grupos comunitários organizados a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um
59
tipo de ordem ou de transformação social (Canclini N. G., 1987).
Na medida em que concebe a cultura como uma necessidade da
população e momento de construção do consenso, (conforme a ideia de
hegemonia proposta por Gramsci), Nestor Canclini coloca a cultura no terreno
das lutas populares o que é perceptível pela própria diversidade de interesses
em disputa na sociedade. Na mesma direção segue Teixeira Coelho (2004, p.
293), ao compreender as políticas culturais como o
(....) programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas.
Dir-se-ia, portanto, tratarem-se as políticas culturais de um campo de
atuação estatal - ainda que nesse campo o Estado não seja o único ator - em
torno do qual se estabelecem relações mais ou menos tensas. E isso
justamente na medida em que essas políticas expressam diferentes arranjos de
interesses oriundos de classes, grupos, associações, e que delimitam certo
padrão de intervenção de caráter positivo ou negativo por parte do Estado em
sua relação com a produção cultural.
A cultura nesse sentido aparece como terreno de disputas na tentativa
ora de cimentar determinada visão de mundo a partir da disseminação de
valores, ideias, crenças etc (hegemonia), ora pela reprodução de uma
concepção restritiva do universo cultural, como o domínio das artes
consagradas.
60
Em grande medida a atuação do Estado na esfera cultural significa
estabelecer alguma forma de regulação das atividades e o modelo desta
regulação é definido politicamente.
Falar em políticas culturais significa lidar com amplo conjunto de
possibilidades abertas na orientação das ações partindo-se de uma concepção
estritamente liberal de cultura, ou, no extremo oposto, na forma do dirigismo
estatal assumindo entre essas posições um sem-número de variantes
intermediárias.
Na história cultural de vários países nota-se a presença de amplo leque
de orientações políticas na forma do mecenato privado, mecenato estatal,
política liberal, dirigismo estatal, entre outras configurações possíveis. Tome-se
como exemplo o caso dos EUA, de tradição marcadamente liberal, ou de
países como a França, e principalmente dos regimes socialistas, como o da
antiga URSS, Cuba, China e Coreia do Norte, com acentuada tradição de
regulação estatal, para serem citados somente exemplos paradigmáticos.
Em diversos países essas políticas sofrem variações significativas em
função de determinadas condições sócio-históricas específicas. No caso
brasileiro, o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) adotou políticas
culturais marcadamente orientadas para o mercado, baseadas em mecanismos
de incentivo fiscal, como a mais conhecida delas, a Lei Rouanet. Nos governos
de Getúlio Vargas - período no qual se originaram as primeiras experiências de
intervenção na área –, no período militar, quando foram aprimoradas inúmeras
estruturas de gestão estatal da cultura, e, mais recentemente, sob o governo
Luiz Inácio Lula da Silva, com proposta embrionária de democratização
61
cultural, é possível perceber orientação de centralidade da gestão pública da
cultura com maior abertura às concepções e práticas locais e de caráter
comunitário em oposição à atual hegemonia do mercado cultural.
Embora em países democráticos haja certo consenso em relação à
autonomia do campo cultural - especialmente no que tange à liberdade de
criação e manifestação estética - ainda assim nem sempre são bem
compreendidas as linhas de orientação das políticas culturais, sobretudo pelos
partidários da regulação mercantil. Frequentemente muitas orientações
acabam sendo imputadas como “dirigismo estatal”.
Isso leva a pensarmos nos obstáculos na tentativa de construção de
políticas democráticas de cultura, políticas capazes de atender às
“necessidades da população”, e abrigar a enorme diversidade de grupos e
setores da sociedade. Longe, portanto de uma perspectiva populista, é
necessário levar em conta o caráter republicano inerente a políticas deste tipo,
com vistas à superação da situação de apartheid cultural existente no país. A
ideia contrasta sobremaneira com políticas de democratização pautadas quase
exclusivamente pela massificação operada por diferentes indústrias culturais,
sem quaisquer possibilidades por parte dos diferentes públicos, de discussão
de conteúdos, formas de acesso, limites quanto ao uso de materiais, enfim, do
mínimo controle exercido pelos cidadãos interessados.
Há de se considerar nesse ponto um elemento extremamente
importante relacionado às políticas públicas de cultura tomadas em seu sentido
mais amplo. Essa concepção implica pensar as políticas culturais para além da
mera emanação do aparato estatal, desligada, portanto, das demandas da
62
sociedade, mas, pelo contrário, como resultado de um processo de
participação dos inúmeros segmentos da sociedade, e sob a ótica do direito à
cultura como direito universal de todos os cidadãos, ainda que se possa e se
deva garantir o respeito à ampla diversidade de formas e setores culturais
envolvidos.
Daí a incompatibilidade das políticas públicas de cultura com interesses
exclusivamente orientados pelo mercado, ou pelo chamado mercado cultural.
Confrontam-se aqui duas posições: a daqueles que veem o Estado como
balcão para atendimento de necessidades culturais (quase sempre a partir do
registro do que muitos identificam como “alta cultura”) em campos específicos
de atuação e que assumem, muitas vezes, caráter privatista e bastante
organizado. Ou daqueles que se enquadram no cenário protagonizado por
atores anônimos ávidos de participar da produção cultural (como diz a letra da
música da banda de rock Titãs, de 1987, chamada “Comida”: “A gente não quer
só comida, a gente quer comida, diversão e arte...”), ainda que relativamente
desorganizados do ponto de vista político.
Todavia distantes dos gabinetes de secretários de Cultura, vereadores e
departamentos de marketing das empresas, várias manifestações urbanas,
sobretudo das áreas periféricas, passavam a reivindicar nas últimas décadas
espaços de manifestação de diferentes modos de vida, fazeres e saberes, em
oposição aos espaços consagrados de expressão artístico-cultural.
Diante de certo esgotamento no consumo e fruição de bens simbólicos
no universo da cultura de massa generaliza-se a noção de participação e
criação cultural, e a consequente busca por reconhecimento por espaço nas
63
políticas culturais vigentes. Exemplos dessa realidade pulsante são o rap, o
graffiti, a dança de rua, a produção local de audiovisual, os saraus em bairros
distantes, o teatro alternativo, a utilização de novas tecnologias, o resgate da
cultura popular, configurando novas perspectivas de ação cultural.
Nota-se de forma incipiente, porém concreta a emergência dessas
políticas no país, como o programa Cultura Viva, na esfera federal, o PROAC –
Programa de Ação Cultural, no estado de São Paulo e particularmente, o
programa VAI – Programa para Valorização de Iniciativas Culturais.
Verifica-se a emergência de uma perspectiva antropológica de cultura,
como assinalaram Raymond Williams e Isaura Botelho, convergindo, no
entanto, com a tradicional perspectiva sociológica. Acerca da convergência se
posiciona Teixeira Coelho. Segundo o autor, é preciso
Aceitar a ideia de que existe uma outra ponta do circuito cultural a considerar, a ponta do público, e planejar uma política condizente com essa aceitação é ampliar o leque da macropolítica cultural, sem deixar de atender aos circuitos clássicos da cultura que vem sendo objeto das sucessivas políticas (os bens da cultura erudita, o patrimônio cultural tangível etc). Como os territórios “duros” são de enorme extensão, como política “para o cinema” ou “para a música” ou “para o livro” são abstratas demais, como hoje a realidade primordial são os espaços móveis da configuração cultural alveolar manifestos nas atividades das micro e mesotribos culturais, uma saída a considerar seria criar condições para que as políticas culturais privilegiem antes a cidade do que op, pondo de lado, como ponto de partida, a tradicional abordagem por seu meio ou linguagem (cinema, teatro, música) e a não menos tradicional abordagem pelos produtores (Coelho, 2002, p. 131).
Essa posição de Teixeira Coelho revela os ingredientes de uma política
pública de cultura democrática, centrada no reconhecimento da diversidade
cultural presente nas cidades brasileiras. Nela estão garantidos espaços para
manifestações da cultura erudita, de massa, e antropológica ou comunitária.
64
“Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25 milhões exigem um processo cultural muito intenso e muito sofisticado. É preciso embrutecer esta sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento dos meios de comunicação, dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano que disfarça a favela, que esconde as coisas”.
Oduvaldo Vianna Filho, 1974
65
Capítulo 2 2. Relações entre Estado e Cultura no Brasil: uma a nálise
histórica
2.1. Questão cultural no Brasil
Há muito relegada à condição de uma das últimas reivindicações em
face do Estado a cultura no Brasil é comumente encarada pela população mais
pobre como perfumaria, ao menos na forma como tem sido apreendida ao
longo de nossa história.
Acostumada a ver seus direitos sistematicamente desrespeitados, até
bem recentemente a maioria da população não reconhecia na cultura direito
básico da cidadania. Como decorrência deste processo histórico, parece não
ter se consolidado na sociedade brasileira a percepção de que as diversas
manifestações populares do país são (ao lado de outras expressões)
patrimônio simbólico a merecer valorização, estímulo e acesso em múltiplos
fazeres e saberes.
Expressões da cultura popular como o samba, a capoeira, o futebol, o
candomblé, a religiosidade popular, brincadeiras, formas de comportamento,
ditados e “causos”, durante décadas mereceram de parte das elites formas
virulentas de reprovação seja pela invisibilidade que lhes foram conferidas seja
por sua associação à “malandragem”, ao “populacho”, à ociosidade, ao
misticismo, à indolência, ao sensualismo.
Tal realidade pode ser entendida se se voltar para o nosso passado e a
situação de quase abandono cultural que se verificou nos séculos que se
66
seguiram ao início da colonização, com a tentativa de supressão da cultura
negra e das inúmeras culturas indígenas no processo de constituição da
nacionalidade.
Temperada a ferro e fogo a percepção pouco clara associada à cultura,
foi, historicamente, nublada pela identificação “da” cultura como modalidade de
expressão da literatura, do conhecimento intelectual - este, em geral, de cunho
bacharelesco - e das belas artes em geral, quase sempre acessíveis, senão à
elite, às camadas médias da sociedade.
Vale sempre lembrar que a elite, masculina, e livre, representava
parcela ínfima da população com acesso franqueado não somente à educação,
mas à posse de bens e à participação política durante a maior parte da história
do país em oposição à esmagadora maioria de “iletrados”.
A incorporação da população brasileira no campo cultural ocorreria
tardia e contraditoriamente no bojo do projeto de construção de identidade
nacional para o qual as políticas culturais a partir dos anos 30 do século
passado, passarão a desempenhar papel importante, assim como o movimento
modernista. Segundo Renato Ortiz, “o que se assiste nesse momento é na
verdade uma transformação cultural profunda, pois se busca adequar as
mentalidades às novas exigências de um Brasil ‘moderno’” (Ortiz, 1986, p. 43).
Urgia legitimar a ordem social numa cultura genuinamente nacional.
Basta relembrar em lances rápidos a “Carta de Caminha”, a democracia racial
de Gilberto Freire, “A Hora do Brasil” nas transmissões radiofônicas sob o
governo Getúlio Vargas, os sambas de Ari Barroso (“Brasil, meu Brasil
67
brasileiro...”), Carmem Miranda, as vitórias da seleção nas Copas de 58, 62 e
70, para fixar desde já as marcas inconfundíveis da identidade nacional.
A situação de apartheid cultural (Faria, 2003) e da eterna representação
dos atributos míticos da nacionalidade a partir de expressões da cultura
popular finca raízes profundas na própria formação brasileira. De acordo com
pesquisas de opinião, realizadas em 1995 pelo Instituto Vox Populi e Centro de
Pesquisas e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, perguntados acerca
dos atributos de que sentem orgulho os entrevistados apresentaram as
seguintes respostas: “trabalhador/lutador, alegre/divertido, conformado/solidário
e sofrido”. (Chauí, 2001, p. 7)
Desde já fica evidente que as construções ideológicas dominantes, na
base da ideia de hegemonia proposta por Antonio Gramsci deixam entrever
uma sociedade profundamente cindida, hierarquizada e excludente por trás da
contínua afirmação da noção de harmonia social.
Basta recordar extensa literatura existente no campo das ciências
sociais (Sérgio Buarque de Holanda, Caio Pardo Jr, Florestan Fernandes,
Raymundo Faoro, entre outros) voltada à análise de nossa tradição autoritária,
em que as práticas clientelistas, o patrimonialismo e o chamado “jeitinho
brasileiro” (e dispositivos de poder frequentemente acionados em nossa vida
social, como o “você sabe com quem está falando?” pesquisado por Roberto
da Matta) parecem estar na raiz das desigualdades históricas, traços
marcantes de nossa cultura política.
Ao contrário do que parece o fenômeno não se restringe somente ao
sistema político brasileiro, mas em verdade perpassam toda a estrutura da
68
sociedade brasileira. O sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, do Núcleo de Estudos
da Violência (NEV), da USP, denomina de “autoritarismo socialmente
implantado” o elemento que está na base dos mais diversos tipos de violência
que campeiam na sociedade brasileira, em direta oposição à ideia de
“cordialidade”, de “povo ordeiro”, de “democracia racial”.
A partir de extensa matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo, de 04
de outubro de 2009, intitulada Retrato da ética no Brasil, é possível constatar o
quanto o padrão autoritário perpassa todas as relações sociais,
independentemente da condição social. Citando resultados de ampla pesquisa
realizada pelo DataFolha7, lê-se:
A pesquisa mostra que 31% dos entrevistados colaram em provas ou concursos (49% entre os jovens); 27% receberam troco a mais e não devolveram; 26% admitiram passar o sinal vermelho; 14% assumiram parar em fila dupla. Dos entrevistados, 68% compraram produtos piratas; 30% compraram contrabando; 27% baixaram música na internet sem pagar; 18% compraram de cambistas; 15% baixaram filme na internet sem pagar. São os mais ricos e mais estudiosos os que têm as maiores taxas de infrações (97% dos que ganham mais de dez mínimos assumem ter cometido infrações, e 93% daqueles que têm ensino superior também), sendo que 17% dos mais ricos assumem frequência pesada de irregularidades (11 ou mais atos). Entre os mais pobres, 76% assumem infrações; dos que têm só ensino fundamental, 74% assumem o mesmo (Folha de S. Paulo, 2009, p. 4).
Observa-se, a partir de inúmeras outras reportagens divulgadas pela
mídia, a existência de casos de intolerância em relação aos modos de vida que
parecem não se enquadrar na representação dominante do que se espera “ser
brasileiro”.
7 Pesquisa realizada de 4 a 6 de agosto de 2009, em 150 cidades e 25 Estados, e que incluiu entrevista e questionário preenchido em sigilo pelo entrevistado.
69
Há casos relativamente recentes e emblemáticos do padrão autoritário
de relações sociais, como o do jogador de futebol Richarlyson, que ao
apresentar queixa-crime ao Poder Judiciário contra dirigente de um clube que
insinuou que o atleta era homossexual teve seu pedido arquivado através de
decisão proferida pelo juiz de Direito Manoel Maximiano Junqueira Filho, da 9ª
Vara Criminal de São Paulo, utilizando a seguinte fundamentação jurídica, peça
exemplar do pensamento conservador no Brasil:
Já que foi colocado, como lastro, esse juiz responde: futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. Há hinos que consagram essa condição: onde surge o amanhã, radioso de luz, varonil, segue sua senda de glórias...” (...) Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue querendo. Mas forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si. (...) O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal... (Folha on line, de 03/08/2007).
Mais do que expressar pensamento conservador e incapaz de conceber
a existência de um mundo plural onde as diferenças convivem e dialogam
democraticamente esse testemunho corrobora o fato de que tal visão de
mundo é reproduzida em grande medida pelo próprio aparato do Estado, na
figura de um representante do Poder Judiciário.
Outro caso emblemático de preconceito, desta vez racial refere-se à
morte pela Polícia Militar de Flávio Ferreira Sant´Ana, dentista, negro, ocorrida
em fevereiro de 2009. Segundo reportagem de época:
O dentista Flávio Ferreira Sant´Ana foi morto por policiais militares por engano, em São Paulo. O crime aconteceu no último dia 3 de fevereiro, depois que Antonio Alves dos Anjos, vítima de um assalto, apontou o rapaz, que é negro, a três policiais, como sendo o provável bandido. Os PMs abordaram o dentista, que estava desarmado, e o executaram com dois tiros no peito. Depois, forjaram uma prova do crime, colocando
70
uma pistola junto ao seu corpo. Mas Antonio Alves dos Anjos não reconheceu Flávio Santana como sendo o assaltante, e o fato teria sido omitido no boletim de ocorrência, onde consta que o dentista teria resistido à prisão e atirado contra os policiais. Segundo a família de Flávio, ele teria ido levar a namorada ao aeroporto, quando foi morto. A testemunha decidiu hoje contar a sua versão à Policia Civil e inocentar o dentista. Antonio dos Anjos, que presta depoimento neste momento, no 13º Distrito Policial da Casa Verde, não teria procurado a polícia antes por medo (O Estado de São Paulo, 07/02/2004).
Longe de ser um “caso isolado”, o brutal episódio ilumina aspectos
essenciais de nossa vida política em tempos pós-ditadura militar. A ocorrência
ainda reflete a persistência do preconceito racial que atinge a população negra
(os indicadores que associam a cor da pele a oportunidades educacionais e de
renda são fartamente conhecidos), em flagrante oposição ao mito da
democracia racial no Brasil. Ademais, comprova a continuidade no uso do
aparato repressivo herdado do regime militar pela instituição Polícia Militar8.
Trata-se, sem dúvida, de alguns dos enormes desafios à recente democracia
brasileira.
Os episódios de preconceito e violência, entre tantos outros que
campeiam no cotidiano das cidades brasileiras evidenciam os limites e fraturas
do projeto continuamente alimentado de construção e reconstrução, da “cultura
brasileira” numa sociedade que politicamente não incorporou valores
fundamentais de respeito às diferenças culturais. Daí a ideia de que a
dimensão cultural é aspecto essencial ao aperfeiçoamento democrático.
8 Em obras conhecidas, como Brasil Nunca Mais e Rota 66, é possível constatar a triste realidade de violência institucionalizada que acompanha a trajetória da Polícia Militar. Surpreende o fato de que essa instituição tenha sobrevivido de forma quase incólume ao processo de redemocratização.
71
Pode-se considerar como “definição mínima” de democracia aquela
utilizada por Norberto Bobbio. Segundo ele a democracia pode ser
“caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que
estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais
procedimentos (1986, p. 18). Pode-se assinalar que este conceito envolve
aqueles direitos relacionados às liberdades fundamentais (ir e vir, associação,
imprensa, consciência), mas também incorpora a luta por igualdade e justiça
social, incorporando a participação do maior número de cidadãos nos
processos de decisão coletiva. Seria correto dizer que tanto quanto uma forma
de governo, o regime democrático envolve valores, crenças e formas de
conduta.
Poderia caber às políticas culturais e à educação de qualidade papel
relevante no processo de desenvolvimento de uma cultura política democrática
capaz de reverter ainda que em longo prazo o padrão autoritário de relações
sociais. Cultura política capaz de dinamizar a participação política de um sem-
número de atores sociais que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária.
Ainda que sempre se objete que as políticas culturais não são
suficientes, sozinhas, para tão pesada tarefa é inegável, por outro lado, o
considerável potencial transformador, desde que sejam concebidas em sentido
mais amplo do que comumente ocorre, isoladas das demais políticas públicas e
decididas tão somente nos gabinetes ministeriais e departamentos de
marketing das empresas.
72
É importante registrar que por cultura política se entende, na acepção
proposta por Teixeira Coelho a “cultura que nos permite conviver em
sociedade, conviver na cidade, na polis” (Coelho, 2002).
A reversão do padrão autoritário que marca a sociedade brasileira
confrontada, de um lado por uma cultura nacional encobridora das diferenças,
conflitos e tensões, e de outro, pela cultura que se reproduz como privilégio de
poucos aparece como enorme passivo a ser liquidado pelos governos
democráticos recentes surgidos com o ocaso da ditadura militar, em 1985.
Atente-se para a enorme defasagem no acesso a equipamentos e
serviços culturais básicos existentes na maioria das cidades brasileiras.
Segundo pesquisa realizada pelo IPEA (CPC, vol.2, 2007, p.66), há baixíssima
cobertura para equipamentos culturais tradicionais, como teatro (18,7%),
cinema (7,5%), museus (17,2%), orquestras (5,5%) e internet (22%). Situação
particularmente agravada nas regiões Norte e Nordeste, haja vista que a maior
presença dos equipamentos está nas regiões Sul e Sudeste, particularmente
nas capitais.
Importa responder à questão de quais são as condições de possibilidade
de construção de políticas públicas de cultura no Brasil e sua contribuição
efetiva no processo de consolidação de uma sociedade democrática fundada
num espaço plural de discussão e decisões. Noutras palavras, significa
compreender o papel das políticas culturais como indutoras de uma cultura
política de base democrática em face de uma história marcada por relações
hierárquicas, tradicionais e fortemente autoritárias.
73
Ainda que não se exagere na influência da cultura sobre a constituição
de valores democráticos, pois não se trata de correlação mecânica nem direta,
é possível afirmar que o aprofundamento do acesso à cultura, à participação
efetiva das pessoas na dinâmica cultural pode representar enorme avanço
como modo de se colocarem no mundo, autoconsciência, fortalecimento da
autonomia individual, o desenvolvimento de um nós comum, como denomina
Teixeira Coelho (2002).
É preciso reconhecer no campo considerado das práticas culturais
terreno necessário à livre expressão do espírito humano em sua formidável
capacidade criativa. A liberdade aqui é tomada em sentido positivo, como
propôs Isaiah Berlin. Segundo ele, esta “provém do desejo que o indivíduo
nutre de ser o seu próprio senhor. Desejo que minha vida e minhas decisões
dependam de mim mesmo, e não de forças externas de qualquer tipo” (Berlin,
2002). Essa proposição, nas condições atuais, é pressuposto fundamental a
um modelo de participação consciente e emancipadora, em oposição direta a
todas as formas de dominação e de tutela dos cidadãos, tão comuns na
sociedade brasileira.
A tarefa de democratização cultural comumente envolve inúmeros
obstáculos. Muitos indagam sobre o fato de a população não “aproveitar” as
oportunidades oferecidas por diferentes programas subsidiados - shows,
apresentações de teatro, cinema, artes plásticas -, com acesso gratuito ou a
“preços populares”, frequentemente voltados à população de baixa renda,
aspecto tão comum em políticas centradas em eventos públicos.
74
A princípio a prática evidencia uma perspectiva democrática porém de
viés marcadamente populista na medida em que ignora aspectos básicos
relacionados às condições objetivas de participação da população no processo
cultural, notadamente do consumo cultural. Sobressaem dificuldades
relacionadas não somente à distância física, mas também à distância social.
A cidadania plena na esfera da cultura pode contribuir sensivelmente
para o estabelecimento de uma nova cultura política por meio de valores como
o pluralismo, na forma da convivência e diálogo com as diferenças; do senso
crítico, pela consciência mais ampla dos problemas sociais e humanos, e em
oposição ao provincianismo local e temporal; do protagonismo, que rompe as
distinções entre o fazer e o pensar; do empoderamento, pelo resgate da
autoestima e capacidade de intervir sobre a realidade; do exercício da utopia e
do outro possível, em oposição a formas cristalizadas de pensar e sentir; enfim,
valores capazes de impactar a cultura política dominante, base para uma
democracia substantiva, complementar ao modelo representativo, de recorte
exclusivamente liberal.
Na sequência deste capítulo buscar-se-á a partir da utilização do
método histórico-crítico, explorar alguns aspectos que envolvem as complexas
relações entre Estado, cultura e sociedade no Brasil abarcando o período
compreendido entre 1930 e 2007.
Longe da pretensão de aprofundar tão extenso período histórico,
empreitada reservada a historiadores profissionais, busca-se apenas levantar
panorama suficientemente coerente acerca do contexto sócio-histórico que
envolve a questão cultural no Brasil, à luz do qual sejam analisadas as políticas
75
culturais contemporâneas. Noutras palavras, quando tomamos por objeto
políticas públicas de cultura, como o Programa para Valorização de Iniciativas
Culturais - VAI, na cidade de São Paulo, ou da referência ao Programa Cultura
Viva, na esfera federal, é preciso considerar sua necessária vinculação à longa
tradição política, que perpassa as ações estatais, delimitando gama variada de
experiências, dilemas e ideologias que, sob várias formas, indicam limites e
possibilidades de mudanças no presente, no caso em tela, da democratização
da cultura.
Objetiva-se deslindar os modos de organização da cultura a partir de
arena dinâmica de interesses sociais conflituosos, que se digladiam e se
expressam, por exemplo, no modelo restrito de atuação estatal, no papel
seminal dos intelectuais, na influência corretiva exercida pelas forças liberais
de mercado, na luta dos segmentos populares urbanos, pela tradição fincada
em raízes do passado, pelas organizações não governamentais etc.
Em face da multiplicidade de orientações e arranjos possíveis, a ideia é
identificar o modo como, no âmbito da esfera estatal, foram se formando e se
articulando formas de intervenção, lacunas, ou mesmo programas de ações,
com diretrizes próprias, dirigidos ao setor cultural (ou considerado como tal no
período), configurando o que se pode reconhecer como determinada política
cultural.
Como essa política cultural não gira no vazio, mas se estabelece no
contato intenso do aparelho estatal com a produção cultural propriamente dita,
é útil recorrer, nesta análise, a algumas categorias sociológicas elaboradas por
Raymond Williams, no âmbito de sua proposta de uma sociologia da cultura, a
76
saber, a análise das instituições, formações e modos de produção, além do
estudo do que ele chama de identificação, o estudo “dos modos pelos quais,
dentro da vida social, a ‘cultura’ e a ‘produção cultural’ são socialmente
identificadas e discriminadas” (Williams, 1992, p. 30).
Em termos de periodização o recorte temporal proposto acima leva em
conta ao menos quatro momentos históricos que se tornaram consenso em
diferentes estudos sobre a questão cultural no Brasil. São eles: a) a era
Vargas, entre 1930 e 1945; b) o interregno democrático, entre 1946 e 1964; c)
o regime militar, entre 1964 e 1985; d) o recente período de governos
democráticos, entre 1985 e 2008.
Identifica-se nessa periodização um viés claramente político, em termos
conceituais, pois delimitam diferentes momentos de organização do Estado
brasileiro (Estado novo, redemocratização, regime militar), e essa intenção,
ainda que inconsciente, mostra-se proposital. Como argumento em defesa
dessa opção, não somente metodológica, pode-se afirmar, como Carlos
Guilherme Mota, que “cultura e política tornaram-se, mais do que nunca,
componentes indissolúveis do mesmo processo: dizer que constituem níveis
distintos de uma mesma realidade parece pouco mais que sonegar o essencial”
(Mota, 1977, p. 19).
A abordagem desses períodos não será evidentemente exaustiva, mas
tentará apreender momentos decisivos do processo de reflexão e dos modos
de construção e implantação das políticas culturais no país. Isso implica que
cada um deles não deve ser lido de forma estanque, mas profundamente
urdidos numa só tessitura.
77
2.2. Getúlio Vargas e o papel das políticas culturais na
construção do Estado nacional (1930 a 1945)
Período no qual são estabelecidas as bases de construção do moderno
Estado nacional o governo Getúlio Vargas de 1930 a 1945, é momento crucial
no processo de institucionalização da cultura no país.
O Estado é alçado à condição de grande demiurgo da nova ordem
cultural, fato expresso nas Constituições de 1934 e 1937, nas quais se lê que
caberá àquele defender monumentos naturais, artísticos e religiosos, “animar o
desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral”,
“prestar assistência ao trabalhador intelectual”, além de fomentar ou fundar
“instituições artísticas, científicas e de ensino”.
Segundo Antonio Albino C. Rubim, esse momento seminal de criação de
um conjunto relativamente homogêneo de práticas, legislação, formulações e
instituições culturais refletem um contexto político da época fortemente
marcado pela ditadura varguista, especialmente no período compreendido pelo
Estado Novo, de 1937 a 1945. Segundo o autor, estabelece-se na história do
Brasil republicano um padrão perverso de correlação entre autoritarismo e
políticas culturais, segundo o qual o desenvolvimento de políticas culturais
ganharia maior ênfase justamente em períodos autoritários, ao contrário do que
ocorreria em períodos democráticos. Além disso, o período getulista aponta
também para um padrão daquilo que José Álvaro Moisés chama de
“corporitivização da política e sociedade brasileiras (....), padrão de relação
entre Estado e sociedade [que] iria se refletir também sobre as novas
estruturas institucionais da cultura” (Moisés, 2001, p. 23), com impactos
78
consideráveis sobre as políticas culturais na atualidade.
O entendimento da Era Vargas, sobretudo de suas realizações no
campo cultural deve ser buscado em alguns aspectos sociais e políticos que
antecederam a chamada Revolução de 30. Desse modo, no contexto da velha
ordem liberal oligárquica dominante na República Velha, notadamente na
capital paulista, a cultura representava a oportunidade de apropriação de sinais
de distinção social numa sociedade fortemente hierarquizada e dominada pela
aristocracia cafeeira. Esta se mostrava ávida por absorver modelos culturais
importados das capitais europeias. Além disso, a vida intelectual pautava-se
por instituições tradicionais criadas ainda no Império, como o Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro (1838) e a Academia de Belas Artes, que estabelecia os
modelos vigentes nas artes plásticas.
Merecem destaque a instituição do mecenato então vigente na cidade
de São Paulo (especialmente por meio do Pensionato Artístico, sob a direção
do senador paulista Freitas Valle) e aquele que é um dos fatos mais marcantes
na cultura brasileira do século XX, a Semana de Arte Moderna de 1922.
Daniel Pécault (1990, p. 27) oferece visão bastante penetrante acerca
do caráter “fundador” desse acontecimento na história cultural do país:
Espécie de happening produzido por escritores e artistas, entre os quais Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e muitos outros, a Semana de Arte Moderna foi, sob vários aspectos, um momento fundador. Aspirando a renovar as formas de expressão da arte brasileira, definiu o conteúdo da modernidade cultural: contemporaneidade ao lado das vanguardas europeias futuristas e surrealistas, sensibilidade à descoberta psicanalítica e, simultaneamente, exploração dos alicerces da nacionalidade brasileira na busca de suas maneiras de ser, seus falares, sua diversidade étnica e cultural, e das indefinições que estão na raiz de sua inventividade (1990 apud Cândido, 1980:119-121; H. B. de Holanda, 1978).
79
Rompendo com os padrões estéticos até então dominantes nas artes
plásticas e literatura os modernistas antecipam vários temas que se tornarão
centrais nos anos 30 e não por acaso vários de seus integrantes, intelectuais
como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, entre outros,
desempenhem papel importante na vida política do período. Uma das vertentes
do movimento consistia em aprofundar questões relacionadas ao acesso à
verdadeira identidade do povo brasileiro e do elemento de universalidade
presente na condição de ser brasileiro, destacados na obra “Macunaíma”, de
Mário de Andrade.
Observam-se, contudo, mudanças profundas na estrutura da sociedade
brasileira, até então agrária e politicamente baseada em uma oligarquia rural, e
que, com a Revolução de 30 e o governo de Getúlio Vargas, passa a conhecer
significativo incremento econômico, aumento da população urbana e
expressiva presença de setores da burguesia que progressivamente passarão
a ditar novos padrões de consumo nas esferas econômica e cultural.
Nesse contexto de mudanças a ascensão de Getúlio Vargas acena para
as primeiras iniciativas no sentido de normalizar as atividades culturais, dentro
de seu projeto político de consolidação do Estado e desenvolvimento
econômico do país. Data do período a atuação destacada de Gustavo
Capanema, intelectual e político mineiro que, à frente do então Ministério dos
Negócios de Educação e Saúde Pública, criado em 1930, será responsável por
um conjunto de ações na área cultural, várias delas com impacto sobre as
políticas culturais ainda no presente.
80
Cercando-se de intelectuais como Carlos Drummond de Andrade, Villa
Lobos e Mário de Andrade, entre outros, Gustavo Capanema promoveu, de
1934 a 1945, importantes reformas no setor cultural, como a criação, em 1937,
do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), Instituto
Nacional do Livro, Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE) e fundação
da Universidade do Brasil; a reforma do ensino secundário e do sistema de
ensino profissional, a partir do chamado sistema “S”.
Lia Calabre (2007) lembra que a ação de Capanema ocorreu em áreas
culturais distintas como as consideradas clássicas (teatro, música erudita,
literatura) e as que estavam a merecer atenção internacional, como a questão
do patrimônio histórico e cultural, além das novas tecnologias, como cinema e
rádio.
É bem verdade que o amplo plano de ação do governo de Getúlio
Vargas obedecia a inúmeros interesses em jogo. Os avanços devem ser
considerados sob o pano de fundo de seu projeto político mais amplo, a
construção da nacionalidade. Deve ser ressaltada a preocupação do governo
no período com o papel da educação na formação da nacionalidade brasileira:
A constituição da nacionalidade deveria ser a culminação de toda a ação pedagógica do ministério, em seu sentido mais amplo. É possível distinguir pelo menos três aspectos neste esforço de nacionalidade. Primeiro haveria de dar um conteúdo nacional à educação transmitida nas escolas e por outros instrumentos formativos. (...) O segundo aspecto era, precisamente, a padronização. (...) O terceiro aspecto, finalmente, era a erradicação das minorias étnicas, linguísticas e culturais que se haviam constituído no Brasil nas últimas décadas, cuja assimilação se transformaria em questão de segurança nacional (Schwartzman, Bomeny, & M.R.Costa, 1884).
81
A importância da educação nas políticas culturais da época pode ser
avaliada, por exemplo, na influência política exercida pelo líder católico Alceu
de Amoroso Lima9 sobre a gestão de Gustavo Capanema, especialmente no
âmbito da política educacional, momento em que o movimento da Escola Nova
aglutinava inúmeros defensores em prol de uma escola pública, laica e gratuita.
No entanto, também as Forças Armadas possuíam um “projeto educativo”.
Segundo Schwartzman et al. (1884, p. 69), esse projeto estava fundado nos
conceitos fundamentais de disciplina, hierarquia, solidariedade, cooperação, intrepidez, aperfeiçoamento físico de par com a subordinação moral e com o culto do civismo; e sem a integração da mentalidade da escola civil no verdadeiro espírito da segurança nacional (1884 apud Aranha, Osvaldo, ao 39.04.18 FGV/CPDOC).
Esses posicionamentos ressaltam as possibilidades, mas, sobretudo, os
limites impostos à ação do governo Vargas para a construção ideológica da
nacionalidade, elemento essencial ao desenvolvimento do país e assentada em
bases conservadoras. Nesse contexto se insere a ação cultural:
Se a tarefa educativa visava, mais do que à transmissão de conhecimentos, à formação de mentalidades, era natural que as atividades do ministério se ramificassem por muitas outras esferas, além da simples reforma do sistema escolar. Era necessário desenvolver a alta cultura do país, sua arte, sua música, suas letras; era necessário ter uma ação sobre os jovens e sobre as mulheres, que garantisse o compromisso dos primeiros com os valores da nação que se construía, e o lugar das segundas na preservação de suas instituições básicas; era preciso, finalmente, impedir que a nacionalidade, ainda em fase tão incipiente de construção (grifo nosso) fosse ameaçada por agentes abertos ou ocultos de outras culturas, outras ideologias e nações. Como sempre, estas ações do Ministério da Educação não se dariam no vazio, mas encontrariam outros setores, movimentos e tendências com as quais seria
9 “Empossado no ministério, Capanema teria em Alceu do Amoroso Lima seu principal conselheiro, que indicaria nomes, vetaria outros, proporia leis e trataria de dar conteúdo às principais iniciativas do ministro. A lealdade de Capanema a seu mentor se manteria tanto quanto possível inalterada nos próximos onze anos do ministério”. (Schwartzman, Bomeny & M.R.Costa, 1884, p. 49)
82
necessário compor, transigir ou enfrentar (Schwartzman, Bomeny & M.R.Costa, 1884).
Embora vinculado por sua própria origem à intelectualidade, e por essa
via, à política regional, o ministro Gustavo Capanema encontraria dificuldades
em levar avante esse projeto político. A resistência surgia justamente de um
dos maiores representantes do modernismo, Mário de Andrade. Sua
preocupação com as raízes da nacionalidade brasileira, de cunho
marcadamente popular, e baseado na valorização das contribuições indígenas,
por exemplo, se opunha aos “artificialismos e formalismos da cultura erudita
superficial e empostada” (1884, p. 80). Segundo ele:
Enquanto o brasileiro não se abrasileirar é um selvagem. Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós em nossas casas de Belo Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há uma Civilização. Há civilizações (...). Nós, imitando ou repetindo a civilização francesa, ou a alemã, somos uns primitivos, porque estamos ainda na fase do mimetismo (Schwartzman, Bomeny & M.R.Costa, 1884).
Ainda que ocupasse posição pouco confortável no establishment
governamental – são conhecidas as dificuldades de colocação na máquina
ministerial e as necessidades materiais que enfrentou – a proposta de Mário de
Andrade foi relativamente exitosa em outro campo, que se tornaria
paradigmático em termos de políticas culturais até pelo menos o início dos
anos 70: do patrimônio histórico e artístico.
Isso, mesmo levando-se em conta o fato de que o projeto apresentado
por esse autor respondendo a demanda do Ministério da Educação e Saúde
Pública, em comparação com o decreto efetivo de criação do SPHAN10 em
10
Ainda que muitos autores utilizem a sigla IPHAN, cabe assinalar, contudo, que o SPHAN passa a denominar-se IPHAN somente em 1970.
83
1937, revelasse empobrecimento considerável, como demonstram as análises
de Joaquim Arruda Falcão (1984, p. 27):
Comparar o projeto de Mário de Andrade com o decreto-lei 25, e, mais ainda, com a prática preservacionista do IPHAN, ajuda a explicitar os limites que moldaram a atuação do novo órgão diante de tais desafios. Partilham projeto e decreto-lei de ponto comum importante, um avanço em relação à situação anterior a 1930: o direito de propriedade privada deixa de ser absoluto. É agora, em nome do interesse cultural público, limitável pelo tombamento. Este avanço legaliza e legitima também a interferência do Estado na preservação cultural. Daí em diante, porém, o decreto-lei não acompanha o projeto em toda a sua ousadia e riqueza. É quase que uma versão empobrecida. Forneço alguns exemplos. Mário de Andrade, ao especificar que seriam dignas de proteção tanto as artes eruditas quanto as ameríndias e populares, ilustrou cada um desses tipos com inúmeros exemplos de sua cultura aberta. (...) Mário de Andrade propôs preservar os bens, móveis e imóveis, e mais os usos, hábitos, fazeres, lendas, folclore, música e até as superstições populares. O decreto-lei se restringiu às coisas, isto é, bens móveis e imóveis.
Desde já, notam-se diferenças marcantes em termos de concepção de
cultura, com enormes implicações do ponto de vista político. Basta verificar
que, malgrado a enorme capacidade de organização do SPHAN,
posteriormente sob a direção de Aloísio Magalhães, numa atuação pouco
comum em termos de continuidade técnico-administrativa, a preocupação
central desse órgão voltou-se em grande medida à preservação arquitetônica
dos chamados “monumentos de pedra e cal”. Desse modo, se o objetivo
precípuo das políticas culturais sob o governo Vargas (e vários governos
seguintes) relacionava-se à construção das bases da nacionalidade do
brasileiro, esta, no plano da preservação, mirava para um tipo de monumento:
a)vinculado à experiência vitoriosa da etnia branca; b) monumento vinculado à experiência vitoriosa da religião católica; c) monumento vinculado à experiência vitoriosa do Estado (palácios, forte, fóruns etc) e na sociedade (sedes de grandes fazendas, sobrados urbanos etc) da elite política econômica do país (Miceli, 1984, p. 28).
84
Ou, em outros termos, a nacionalidade brasileira em construção
reproduzia o padrão dominante de cultura existente no país desde o período
colonial, em oposição a uma perspectiva cultural de Mário de Andrade, que
valorizava a diversidade cultural como elemento primordial na definição do ser
“brasileiro”.
Finalmente, o legado das políticas culturais nascidas durante o período
em tela, sua importância e limites, em termos da institucionalização da cultura,
podem ser ilustrados nesta passagem de Carlos Antonio Dória, denominada
“Cultura, Brasil e Estado Novo”:
(...) o legado de Getúlio foi, sobretudo, a construção de uma institucionalidade inédita para a cultura, ao mesmo tempo em que tratou da elaboração ideológica do patrimônio voltado para a identidade brasileira. Os brasileiros deixaram de ser soltos na história para estarem aderidos a uma matriz étnica na qual se procurou igualar o passado indígena, negro e ibérico. Um pluralismo desconexo foi substituído pelo ideal de miscigenação, do qual eram portadores os modernistas de repartição. A questão de hoje é saber se esse legado, que ficou anacrônico, pode ser superado pelas forças vivas da democracia pós-Estado Novo através da afirmação de um projeto alternativo de caráter democrático e popular. Tudo indica que a resposta é negativa. Assim, o getulismo ainda não é coisa do passado em matéria de administração cultural, e continua impossível para os trabalhadores da cultura julgá-lo com isenção (Dória, 2008).
2.3. Breve democracia: a experiência dos CPCs da UNE ( 1946-1964)
Nos anos seguintes, desde o fim da gestão Capanema, em 1945, ao
início do regime militar, em 1964, embora tenha ocorrido expressivo
desenvolvimento e reflexão sobre a cultura brasileira, não ocorreram mudanças
significativas no campo das políticas culturais no país.
85
Em razão desse fato, Antonio Albino C. Rubim (2009) caracteriza o
período como de “ausência” de políticas culturais no Brasil, justamente durante
a vigência de um período democrático, ainda que de feições populistas.
Frequentemente evocada como “anos dourados”, a época é
caracterizada por distintos autores como de enorme efervescência política e
cultural, fato presente no cenário internacional, marcado pelo início da guerra
fria, pela revolução cubana, o fenômeno do rock and roll, a corrida espacial,
entre outros fatos memoráveis. E no cenário nacional, com a chegada da
televisão que se populariza rapidamente, a conquista do primeiro Campeonato
Mundial de Futebol na Suécia, em 1958 (“A taça do mundo é nossa, com
brasileiro, não há quem possa...”); o surgimento da bossa nova; a construção
de Brasília; a instalação da indústria automobilística, entre outros
acontecimentos significativos.
Certo otimismo pairava no ar, apesar dos problemas sociais crônicos
enfrentados pela maioria da população brasileira, como registra Thomas E.
Skidmore:
A despeito do rápido crescimento das cidades, mais da metade de todos os brasileiros na década de 50 ainda vivia no campo, embora o Brasil rural estivesse longe de ser homogêneo. (...) A maioria dos habitantes rurais tinha pouco conhecimento sobre seu governo. Assistência médica e escolas eram geralmente inexistentes. As pessoas se comunicavam boca a boca. O único vínculo regular com o mundo exterior era o rádio. Entre 1945 e 1960, o número de estações de rádio no Brasil aumentou de menos de cem para oitocentos. A viagem à cidade mais próxima era feita a pé ou a cavalo. O acesso a ônibus, caminhão ou automóveis era difícil e caro (Skidmore, 1998, p. 199).
Nesse ambiente a democracia buscava se estabelecer, após a
derrocada do Estado Novo. Democracia que nascia bastante frágil, com a
86
Constituição de 1946, que avançava na extensão dos direitos civis e políticos,
mas, ao mesmo tempo, se defrontava com interesses cada vez mais
antagônicos em torno dos grandes temas nacionais, como a necessidade de
modernização econômica, política, social e cultural. Exemplo dessa fragilidade
democrática e de pressões externas sobre o sistema político foi a colocação do
PCB na ilegalidade, durante o governo Dutra, cassando os direitos políticos de
suas principais lideranças, como Luís Carlos Prestes.
Como enfatizado, o Estado não implementa neste período grandes
realizações em termos de políticas culturais, garantindo-se, em linhas gerais, a
continuidade da estrutura montada anteriormente.
O SPHAN novamente aparece como referência importante, tendo à
frente Rodrigo de Melo e Franco (dirigirá o órgão até 1967) e com notável
aumento dos bens tombados fato que persistirá até o início dos anos 70. A
atuação do SPHAN, ainda que marcada por cunho ideológico centrado em
certa concepção de preservação eminentemente “patrimonial”, notabiliza-se por
demarcar espaços institucionais técnicos de atuação cultural.
José Álvaro Moisés, contudo chama a atenção para os aspectos
contraditórios dessa trajetória, típica de órgãos públicos que se isolaram, em
seu “saber técnico”, da sociedade mais ampla. Para ele, o quadro configura o
que a literatura sobre o tema denomina de “insulamentos burocráticos”.
Segundo ele:
(...) ao isolarem-se de pressões políticas, e mesmo de outros órgãos da esfera pública, os ‘insulamentos burocráticos’, como o IPHAN, também se isolaram da sociedade; esse isolamento impediu, muitas vezes, que a difusão de políticas de preservação do patrimônio histórico e cultural, e até mesmo a sua justificação, chegassem até à população e,
87
particularmente, às lideranças políticas; isso fez com que uma questão estratégica da política cultural do país deixasse de tornar-se tema de debate público e se convertesse em prioridade da sociedade, gerando incompreensões e resistência à sua execução no período (Moisés, 2001, p. 29).
A crítica ao isolamento do SPHAN assume caráter particularmente
emblemático do engessamento das políticas culturais quando apartadas da
participação ampla da sociedade, frequentemente em nome de um “saber
competente”. Esta situação representa verdadeira tradição das políticas
culturais do Brasil, principalmente na área do Patrimônio Histórico e Cultural,
em detrimento de toda a crítica relacionada à necessidade de se incorporar a
enorme riqueza da diversidade cultural brasileira.
Com a criação do Ministério da Saúde e seu consequente
desmembramento dos assuntos relacionados à Educação, surge em 1953,
durante o segundo governo de Getúlio Vargas, (1951-1954), o Ministério da
Educação e Cultura – MEC. Na nova estrutura, os assuntos relacionados à
cultura passariam, durante vários anos, a ocupar posição secundária em
relação à educação.
Já em 1961, durante o governo Jânio Quadros foi recriado o Conselho
Nacional de Cultura. Segundo Lia Calabre, “subordinado à presidência da
República e composto por comissões das áreas artísticas e de alguns órgãos
do governo. A ideia era a instalação de um órgão responsável pela elaboração
de planos nacionais de cultura” (Calabre, 2007, p. 3). O projeto, no entanto,
não sairia do papel, e o Conselho volta a subordinar-se novamente ao MEC,
em 1962.
88
Na esfera privada destaca-se o surgimento num curto período de tempo
de importantes instituições culturais nas cidades do Rio de Janeiro e São
Paulo. Aproveitando o cenário pós-guerra favorável em que o Brasil passava a
dispor de divisas acumuladas para investimentos na economia e na cultura,
aliado à oferta de obras de arte a preços baixos numa Europa em
reconstrução, vários empresários passaram a fundar instituições privadas
ligadas não somente às artes plásticas, mas também a áreas como teatro e
cinema.
Ainda que remonte a um período histórico anterior aos anos 30, e
caracterizado por certo tipo de mecenato pessoal e “beneficente” exercido por
empresários e intelectuais “amantes das artes e da literatura”, as inovações
culturais atestam significativo processo de consolidação de um mercado de
bens simbólicos no país.
Em São Paulo são criadas a Cia. Cinematográfica Vera Cruz, em 1949;
o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1948; o Museu de Arte Moderna de
São Paulo (1948); a Bienal de Artes Plásticas (1951), sob o patrocínio de
Francisco de Matarazzo Sobrinho, além do Museu de Arte de São Paulo
(MASP), em 1947, patrocinado por Assis Chateaubriand. No Rio de Janeiro há
a criação do Museu de Arte Moderna (MAM), em 1948, sob o patrocínio da
Família Bittencourt. Segundo Lia Calabre (2007, p. 3), essas instituições
privadas “foram declaradas de utilidade pública e passaram a receber
subvenções do governo federal, porém sempre de maneira descontinuada,
nada que se possa chamar de política de financiamento ou de manutenção de
instituições culturais”.
89
Outro elemento primordial do período refere-se aos avanços no
processo de constituição de uma indústria cultural no Brasil. Segundo Renato
Ortiz embora seja possível situar o surgimento incipiente de uma cultura
popular de massa no decorrer dos anos 40 e 50 do século passado, através de
jornais, revistas em quadrinhos, rádio, livros etc, ainda se caracterizava por
empresas de organização débil e com baixa amplitude social.
Somente a partir do governo JK (1956-1961), com o início de um
processo de desenvolvimento industrial, denominado pelos economistas de
“industrialização pesada”, haverá condições para a consolidação da indústria
cultural, nas décadas de 60 e 70, dessa vez em bases empresariais sólidas e
com capacidade de produção e circulação em grande escala.
Todo o conjunto complexo de mudanças em curso instaura um cenário
de inúmeras discussões envolvendo cultura e política. Novamente Renato Ortiz
salienta a importância do período para a cultura nacional:
O historiador da cultura que um dia tiver a oportunidade de se debruçar sobre o período que vai de 1945 a 1964 decididamente não deixará de notar que se trata de um momento de grande efervescência e criatividade cultural. É como se a história concentrasse uma soma variada de expressões culturais. Paulo Emílio Salles Gomes percebe com clareza, quando analisa o Cinema Novo, que ele ”é parte de uma corrente mais larga e profunda que se exprimiu igualmente através da música, do teatro, das Ciências Sociais e de Literatura. (...) O Brasil desses anos realmente vive um processo de renovação cultural”. (Ortiz, 1989, p. 102)
Na visão de Renato Ortiz, as transformações resultam de três diferentes
fatores. O primeiro refere-se à formação de um público – ou na verdade,
diferentes públicos – que “sem se transformar em massa define
sociologicamente o potencial de expansão de atividades como o teatro, o
90
cinema, a música e mesmo a televisão”. (Ortiz, 1989, p. 102). Cita o que ocorre
com o teatro, embora a argumentação se aplique a outras linguagens na
época. Por isso, pode-se mencionar o caso do TBC, formado como “empresa”
de arte para atender a audiência específica, oriunda das camadas médias
urbanas, e por muitos diretores, visto como modelo de teatro “alienado”; o
Teatro de Arena, com proposta de um teatro “autêntico”, na busca por
abocanhar segmentos da classe média; e, por fim, o CPC da UNE, em busca
de uma forma teatral capaz de atingir as classes populares. O segundo fator
refere-se ao papel exercido pelo modernismo. Diz o autor:
No Brasil, como vimos, existiu uma correspondência histórica entre o desenvolvimento de uma cultura de mercado incipiente e a autonomização de uma esfera de cultura universal. Dois acontecimentos simbolizam bem essa simultaneidade: a fundação do Teatro Brasileiro de Comédia e o advento da televisão, eventos que se seguem no curto espaço de dois anos. Foi este fenômeno que permitiu um “livre trânsito”, uma aproximação de grupos inspirados pelas vanguardas artísticas, como os concretistas, aos movimentos de música popular, bossa nova e tropicalismo (Ortiz, 1989, p. 105).
O ambiente de inspiração propiciou a oportunidade de experimentação,
de busca de novas reflexões estéticas e políticas. Por fim, o autor chama
atenção para o que denomina “proximidade imaginativa da revolução social”,
pensada como
Efervescência política, que abria no horizonte a perspectiva de mudanças substanciais da sociedade brasileira, mesmo quando reivindicadas por grupos ideologicamente antagônicos. O período que consideramos é marcado por toda uma utopia nacionalista que busca concretizar a saída de uma sociedade de sua situação de estagnação (Ortiz, 1989, p. 108).
Numa visão de conjunto percebe-se facilmente que cultura e política se
fundem e se confundem na busca pelo novo, pela transformação social, e
91
remetem a uma experiência fundamental da época: o surgimento do Centro
Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes.
Expressão acabada de seu tempo - tempo de reflexões, tensões e
efervescência cultural e política -, o CPC (1962-1964) nasce da união de
estudantes, artistas e intelectuais comprometidos em transformar a realidade
brasileira a partir da conscientização da classe trabalhadora.
Para tal objetivo a ação cultural deveria desempenhar papel político
estratégico, a partir do resgate de uma cultura de base popular e engajada, na
linha do que propunham o PCB e o ISEB, ao qual se vinculavam
ideologicamente11.
Para Renato Ortiz a base ideológica do movimento fundava-se na
efervescência política no interior da qual se daria a “ação revolucionário-
reformista definida dentro de quadros artísticos e culturais”, e no caráter
nacionalista que perpassava a sociedade brasileira e “consolidava um bloco
nacional que congregava diferentes grupos e classes sociais” (Ortiz, 1986, p.
69). A ideia de bloco aproxima-se bastante da estratégia política do PCB no
período, fato realçado pela historiadora Miliandre Garcia:
Para o PCB, um dos mais expressivos partidos políticos de esquerda de então, a construção dessa ideologia nacionalista se traduziu, em linhas gerais, na articulação de uma “frente única”, isto é, na organização de uma unidade política a partir de segmentos sociais distintos, com o intuito de realizar no país uma revolução baseada nos princípios do antifeudalismo e do
11 O Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ISEB foi um órgão criado vinculado ao MEC com ampla autonomia administrativa e liberdade de pesquisa no âmbito das ciências sociais e que se voltava à elaboração de uma ideologia do nacional desenvolvimentismo. Este órgão funcionou como importante fomentador no período Juscelino Kubitschek de idéias de caráter nacionalista, abordando temas relacionados ao nacional-popular.
92
anti-imperialismo, com ênfase no caráter nacional e democrático (Garcia, 2004, p. 129).
Na discussão em torno do “caráter nacional”, o tema da cultura popular
ocupará lugar central.
Contrariamente aos vários teóricos que vinculam cultura popular ao
folclore associando-os à tradição e ao conservadorismo, lideranças importantes
do CPC, como o sociólogo do ISEB, Carlos Estevam Martins, verão na cultura
popular “uma forma particularíssima de consciência: a consciência política, a
consciência que imediatamente deságua na ação política. Ainda assim, não a
ação política em geral, mas a ação política do povo”. (Ortiz, 1986, p. 70)
Historicamente o CPC nasce de discussões ocorridas no Teatro de
Arena durante temporada das peças Eles Não Usam Black-Tie, de
Gianfrancesco Guarnieri, e Chapetuba FC, de Oduvaldo Vianna Filho. Estes e
alguns outros integrantes, inconformados com um teatro de “classe média”,
rompem com a Companhia que “acreditava pautar-se pelo sucesso de
bilheteria e não pela qualidade artística do espetáculo”. Vianinha resolve
produzir a peça A mais valia, vai acabar, Seu Edgar, em 1961, preocupado em
desvelar o processo de exploração capitalista, conhecimento essencial para a
conscientização das massas. Para ajudar nos debates sociológicos da
encenação é convidado Carlos Estevam Martins.
O projeto contará com a participação da UNE, a partir de debates
travados em sua sede no Rio de Janeiro, inspirando-se na experiência do
Movimento de Cultura Popular (MCP), no Recife e fundado por Ariano
Suassuna e Paulo Freire, entre outros.
93
A partir dessa concepção Vianinha propõe a montagem de peças em
locais como portas de fábricas, favelas, escolas, faculdades, clubes etc,
levando as artes cênicas às mais diferentes camadas populares. Segundo ele,
isso era impossível no Teatro de Arena, haja vista que “o Arena era porta-voz
das massas populares num teatro de cento e cinquenta lugares” (Garcia, 2004,
p. 132). Em torno dessa proposta artística, política e pedagógica se juntam
vários outros artistas, como Leon Hirszman, Francisco de Assis, Carlos Lyra,
Armando Costa, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, Paulo Afonso Grisolli, Carlos
Vereza, Joel Barcelos, Antônio Carlos Fontoura e, depois, Ferreira Gullar,
Thereza Aragão, João das Neves e Pechin Plá.
No Rio de Janeiro, o primeiro núcleo do CPC se instala em 1961 no
prédio da UNE. A produção cultural é rica e bastante ampla. Destacam-se
peças como Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, e A Vez da
Recusa, de Carlos Estevam Martins, o filme Cinco Vezes Favela, de Leon
Hirszman. Em 1962 é montada a primeira UNE volante, com apresentações
das peças Versão Brasileira, de Vianinha, e Miséria ao Alcance de Todos,
coletânea de textos de Augusto Boal, Chico de Assis, Carlos Lyra, Arnaldo
Jabor e Bertolt Brecht. Ao longo de 1963, o CPC apresenta Revolução na
América do Sul, de Augusto Boal, Filho da Besta Torta do Pajeú, de Vianinha, e
a remontagem do Auto dos 99%, pelo Grupo de Espetáculos Populares do
CPC (2008).
Importante assinalar na análise das experiências envolvendo o CPC os
debates relacionados à função social e transformadora da arte e os aspectos
estéticos envolvidos no processo de criação artística. Isso em razão do fato de
94
que toda e qualquer manifestação artística que se desvinculasse da militância
política era encarada com “alienante”, como, por exemplo, o rock dos Beatles.
Nesse sentido, arte e política se misturam. No “Anteprojeto do Manifesto
do CPC”12, Carlos Estevam Martins refere-se a três conceitos hierarquizados
de arte: a arte do povo, arte popular e a arte popular-revolucionária. As duas
primeiras ele as define nos seguintes termos:
(...) a arte do povo é predominantemente um produto das comunidades economicamente atrasadas e floresce de preferência no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram as formas de vida que acompanham a industrialização. O traço que melhor a define é que nela o artista não se distingue da massa consumidora. Artista e público vivem integrados no mesmo anonimato, e o nível de elaboração artística é tão primário que o ato de criar não vai além de um simples ordenar os dados mais patentes da consciência popular atrasada. A arte popular, por sua vez, se distingue desta não só pelo seu público, que é constituído pela população dos centros urbanos desenvolvidos, como também devido ao aparecimento de uma divisão de trabalho, que faz da massa a receptora improdutiva de obras que foram criadas por um grupo profissionalizado de especialistas. Os artistas se constituem assim num estrato social diferenciado de seu público, o qual se apresenta no mercado como mero consumidor de bens cuja elaboração e divulgação escapam ao seu controle (Martins, p. 130, apud Garcia, 2004, p. 139).
A arte popular revolucionária, produzida pelo CPC, distingue-se das
anteriores na medida em que se resume a um único enunciado: “a qualidade
essencial do artista brasileiro, em nosso tempo, é a de tomar consciência da
necessidade e da urgência da revolução brasileira, e tanto da necessidade
quanto da urgência” (Martins, p. 130, apud Garcia, 2004, p. 139).
A análise dessa forma de percepção das mediações entre arte e política,
a partir do uso de categorias hierarquizadas para se pensar a produção
12 MARTINS, C. E. Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, redigido em março de 1962. In: HOLLANDA, H. B. de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970. São Paulo: Brasiliense, 1980, p.121-44.
95
artística revela alguns impasses que acompanham a experiência do CPC,
durante os três anos de sua existência, de 1961 a 1963.
Inicialmente, como assinala Renato Ortiz (1986, p. 75), há, por parte dos
integrantes do movimento excessiva politização da atividade artística, ou, em
suas palavras, “uma proeminência do político em relação a outras dimensões
da vida social”, o que explica o fato de que para conferir legitimidade à arte
política deve-se necessariamente “negar a validade das próprias manifestações
populares”, o que evidencia significativa contradição.
Isso esclarece a desqualificação estética da arte do povo e da situação
que envolve a arte popular, “mero consumidor de bens”, como ressaltado
acima. Acerca do último aspecto, Renato Ortiz salienta a inexistência de
reflexões mais aprofundadas sobre a “cultura de massa”, dada a incipiência do
fenômeno, que somente se consolida, segundo ele, entre os anos 60 e 7013.
Seja como for, a equação entre arte popular-revolucionária e arte
autêntica ou “desalienada” revela outras questões. Tome-se, a respeito, o
papel exercido pelos intelectuais como portadores da “verdadeira” arte, a arte
popular-revolucionária. Contrariamente ao verificado em décadas anteriores,
quando estes assumiam postos chave no Estado influenciando o processo de
tomada de decisões, os representantes do CPC defendiam a ideia de que
caberia aos intelectuais posições de proximidade em relação ao povo,
assumindo a condição de verdadeiros porta-vozes na direção da revolução.
Longe de ignorar a distância com o povo, havia clara consciência de que se
13 “Há um relativo silêncio sobre a existência de uma ‘cultura de massa’, assim como sobre o relacionamento entre produção cultural e mercado (...) É somente em 1966 que vamos encontrar um primeiro artigo de Ferreira Gullar sobre a estética na sociedade de massa” (Ortiz, 1989, pp. 14-15).
96
tratava menos de adesão concreta à sua condição de vida e mais uma forma
de engajamento que, no dizer de Pécaut (Pécaut, 1990, p. 155), “tinha o seu
componente sartriano: implica a eliminação dos traços da classe social de
origem e a opção voluntária de alinhar-se com as massas populares”
Embora, à primeira vista, a posição esteja próxima da concepção
gramsciana de intelectual, na forma do chamado intelectual orgânico, Renato
Ortiz ressalta diferenças importantes entre esta concepção e a partilhada no
CPC. Segundo ele, enquanto Gramsci pensa o intelectual como expressão das
massas, vinculado organicamente aos interesses populares, no caso do CPC
a relação encontra-se invertida: são os intelectuais que levam cultura às massas. Fala-se sobre o povo e para o povo (grifos do autor), mas dentro de uma perspectiva que permanece sempre como exterioridade. Apesar das intenções, o distanciamento público-autor é uma constante; um exemplo patético disto são as produções artísticas realizadas pelo CPC. Devido à ênfase colocada na instrumentalização dos bens artísticos, resulta que o elemento estético seja praticamente banido. Basta analisar-se algumas peças teatrais para se convencer de que elas operam no fundo com estereótipos que banalizam a vida social: o estudante, o sacerdote, o operário, o burguês etc (Ortiz, 1986, p. 73).
Cumpre registrar que apesar das críticas pertinentes à atuação do CPC
e à sua política cultural, o fato é que a experiência ao ser revisitada revela
aspectos fundamentais da realidade cultural na atualidade. Pode-se afirmar
que, apesar de situada em contexto sociopolítico particular, o CPC acabou por
constituir ideologia ainda com certa presença no setor cultural, menos pelo
nacionalismo (embora também esteja presente), e mais pela ideia do
engajamento pela cultura, da transformação pela cultura.
97
Todavia, com o fim da guerra fria e a queda do Muro de Berlim, o boom
da indústria cultural e advento da revolução digital, as questões são
recolocadas em novos termos.
2.4. Regime militar: cultura, desenvolvimento e integração nacional (1964-1985)
O regime militar iniciado com o golpe de Estado em 1964 representará o
ocaso do breve, porém movimentado período democrático, lançando o país em
um período de forte repressão e censura, que atingirá lideranças políticas,
artistas e intelectuais, além de desmantelar inúmeros projetos culturais. Ao
mesmo tempo os sucessivos governos militares se empenharão no processo
de construção institucional na área cultural.
Especialmente os intelectuais de esquerda e os artistas mais envolvidos
na arte comprometida com a realidade do país, sofrerão com perseguições,
patrulhamento e frequentemente o exílio, sobretudo em 68, com a decretação
do AI-5.
Todavia, assim como a atuação de Gustavo Capanema durante o
Estado Novo, no decorrer do regime militar foi possível notar, em meio a um
“controle da política”, como assinala Evaldo Vieira (1995, p. 68), iniciativas que
representarão avanços significativos em termos de aparato político-institucional
no campo cultural. Desse modo, segundo Lia Calabre (2007), “o Estado foi
retomando o projeto de uma maior institucionalização da cultura do campo da
produção artístico-cultural”. E isso num contexto particularmente importante, de
98
consolidação da indústria cultural no país. Essas iniciativas enquadravam-se
num projeto mais amplo de desenvolvimento econômico.
A exemplo do que ocorreu nos anos 30, os avanços só se tornariam
possíveis graças ao concurso de artistas, intelectuais e políticos sensíveis às
demandas culturais, fato que revelava a tentativa de legitimação do regime
político, ao mesmo tempo que contribuía para se ampliar o campo do possível
num contexto político particularmente difícil de repressão política.
Gabriel Cohn (1984, p. 87), num esforço de periodização das ações do
Estado na área cultural identifica nos anos 70 duas fases distintas. A primeira,
que a rigor vai do final dos anos 60 a meados da década de 70, caracteriza-se
pela elaboração de “propostas programáticas mais abrangentes, mas com
efeitos escassos”, enquanto a segunda fase refere-se a um processo de
“diversificação e redefinição dos temas relevantes numa ótica mais operacional
e cada vez mais propriamente política”.
Partindo-se dessa caracterização, é possível analisar melhor as políticas
culturais durante a época. Na primeira fase parece prevalecer o que Roberto
Schwartz, em 1969, reconhecia como fato peculiar à realidade política: “apesar
de ditadura de direita, há relativa hegemonia cultural de esquerda no país”.
Uma das primeiras ações, ocorrida no governo Castelo Branco (1964-
1967), tendo à frente o ministro Moniz Aragão, foi a de criação do Conselho
Federal de Cultura (CFC), em 1966, a partir dos resultados do trabalho de uma
comissão instituída a fim de elaborar propostas de reformulação da política
cultural.
99
Segundo o que estabelecia o decreto-lei nº 74, regulamentado pelo
decreto nº 60.236, de fevereiro de 1967, o Conselho seria composto por 24
membros, em geral pessoas de grande projeção na cultura nacional, nomeadas
diretamente pelo presidente da República. O CFC teria quatro câmaras: artes,
letras, ciências humanas, patrimônio histórico e artístico nacional, além de uma
câmara de legislação e normas. Despontavam nomes importantes da
intelligentsia brasileira, (e outros nem tanto) como Afonso Arinos, Ariano
Suassuna, Cassiano Ricardo, Gilberto Freire, Josué Montelo, Raquel de
Queiróz, Raymundo Faoro e Burle Max. O presidente e o vice-presidente do
órgão seriam eleitos pelos conselheiros para mandato de dois anos, podendo
ser reconduzidos por igual período.
Entre suas principais atribuições legais constavam o de formular o Plano
Nacional de Cultura, articular-se com os órgãos estaduais e municipais,
estimular a criação dos Conselhos Estaduais de Cultura; reconhecer
instituições culturais; conceder auxílios e subvenções e promover campanhas
nacionais e intercâmbios internacionais.
Segundo Lia Calabre (2007, p. 6), após alguns anos de atuação, de
1969 a 1972, o Conselho Federal de Cultura já havia contabilizado 273
convênios firmados com os governos estaduais e municipais, contando em sua
maioria com contrapartida de 50% do valor total solicitado. Na Câmara de Artes
foram prestigiadas demandas de Orquestras, Conservatórios, Grupos Musicais
e teatrais; na Câmara de Patrimônio, por conservação e restauração de obras
de arte, edificações tombadas e Museus; na Câmara de Letras despontaram
demandas de academias de letras, centros culturais e bibliotecas; e por fim,
100
nas Câmaras de Ciências Humanas, os recursos solicitados dirigiam-se a
Institutos Históricos e Geográficos, Arquivos Públicos e Institutos de Estudos
Brasileiros. Segundo ela:
O quadro apresentado reflete uma realidade de grande carência de investimentos no campo da administração pública da cultura. Observa-se a falta de manutenção e preservação de prédios, acervos e equipamentos – que parece ser um problema crônico no Brasil. (...) podemos constatar que há uma predominância de solicitações originárias de setores públicos, em diferentes esferas de governo, e das atividades ligadas à arte erudita – como balés, óperas, orquestras de câmara e sinfônicas (Calabre, 2007, p. 10).
Lia Calabri também assinala que dentre os Estados mais atendidos, em
1971, com recursos do Conselho Federal de Cultura destaca-se o da
Guanabara (atual Estado do Rio de Janeiro), que, curiosamente, concentrava
boa parte da burocracia do governo federal, com 41,8% do total de recursos,
contra cerca de 40% distribuídos entre os cinco principais Estados - Pará,
Minas Gerais, São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Ou seja, ganha
força a tendência de concentração espacial dos recursos financeiros
destinados à cultura, sobretudo na região Sudeste, fenômeno que se acentuará
nas décadas seguintes.
A autora chama a atenção para o fato de que embora o Conselho
Federal de Cultura tomasse “decisões alicerçadas em bases fortemente
conservadoras”, entretanto não impediu que “muitas das propostas por ele
elaboradas fossem adaptadas e colocadas em prática por grupos muitas vezes
progressistas” (Calabre, 2006, p. 18).
O breve quadro ajuda a elucidar a conjuntura do setor cultural no Brasil
nos primeiros anos da década de 70. O funcionamento do Conselho Federal de
101
Cultura demonstrava que os escassos recursos públicos existentes na esfera
federal, e centralizados no MEC, eram distribuídos entre poucos Estados da
União, drenados principalmente para a antiga capital. Longe de desenvolver
atuação de incentivo a projetos inovadores, a canalização de recursos, como
assinalou Calabre, visava à “preservação e manutenção de prédios, acervos e
equipamentos” existentes nos Estados. Finalmente, as ações culturais
contempladas pelo Conselho Federal de Cultura se referiam, basicamente, a
expressões da chamada “cultura erudita” (principalmente academias de letras),
em oposição às manifestações da cultura popular, por vezes admitidas na
forma de certa visão empobrecida de “folclore”, aspectos emblemáticos do
conceito de cultura utilizado pelos conselheiros.
A realidade colocava em evidência ao menos dois aspectos cruciais:
necessidade de ampliação dos espaços institucionais do setor cultural no Brasil
e urgência na elaboração de uma Política Nacional de Cultura.
Durante o governo Médici, tendo à frente do MEC o coronel Jarbas
Passarinho, entre 1969 e 1974 ocorrem mudanças substanciais no aparato
governamental voltado à cultura. Em 1969 é criada a Empresa Brasileira de
Filmes – EMBRAFILME; em 1970, há alteração na estrutura do SPHAN, que
passa a denominar-se Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN - e, em 1972, há a criação, no MEC, do Departamento de Assuntos
Culturais – DAC. Segundo José Álvaro Moisés, a criação desse departamento
àquela altura foi fundamental, haja vista que
(...) os assuntos culturais e artísticos receberam, pela primeira vez na trajetória da administração republicana, um tratamento centralizado, isto é, foram contemplados com a criação do Departamento de Assuntos Culturais do MEC, o que aumentou
102
a sua importância e lhes deu novo reconhecimento no conjunto do governo (Moisés, 2001, p. 30).
A cultura passava a ganhar maior status e visibilidade dentre as
preocupações do governo em razão da busca de legitimidade por parte do
regime militar.
Em 1973, a estrutura recém-criada se fortalece a partir do lançamento
do Plano de Ação Cultural – PAC. Com recursos provenientes do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), o PAC abarcava um
amplo campo de ações envolvendo o setor de patrimônio e atividades artísticas
e culturais, além de também destinar recursos à capacitação de pessoal.
Segundo Lia Calabre (2007, p. 4), o PAC “tinha como meta a implementação
de um ativo calendário de eventos culturais patrocinados pelo Estado, com
espetáculos nas áreas de música, teatro, circo, folclore e cinema, com
circulação pelas diversas regiões do país”.
Depreende-se dessas intervenções culturais a preocupação do governo
de que as ações, mesmo dispersas, se configurassem cada vez mais como
uma política nacional de cultura, algo que se colocava entre os objetivos do
Conselho Federal de Cultura.
O contexto parecia favorável, e a Política Nacional de Cultura seria
finalmente aprovada em 1975, na gestão de Ney Braga, trazendo como escopo
“a reflexão sobre qual o teor da vida do brasileiro, passando à preservação do
patrimônio, ao incentivo à criatividade, à difusão da criação artística e à
integração, esta para permitir a fixação da personalidade cultural do Brasil, em
harmonia com seus elementos formadores regionais”.
103
Importa registrar que as concepções subjacentes no PAC e na Política
Nacional de Cultura sinalizavam para a exaltação da nacionalidade. Portanto, a
tentativa de formação de uma identidade brasileira revestia-se de interesse
estratégico para os militares.
Basta assinalar que entre 1969 e 1974 o Brasil atravessou o período de
chamado “milagre econômico” com elevadas taxas de crescimento do PIB ao
mesmo tempo em que o governo promovia no país o pensamento ufanista de
um “Brasil Potência”, por meio de músicas como “esse é um país que vai pra
frente...”, exploração política da conquista da Copa do Mundo de 1970 no
México e máximas do tipo: “Brasil: ame-o ou deixe-o”.
Mas por trás dessa realidade predominava uma situação em que se
acentuavam as desigualdades na distribuição de renda, êxodo rural e aumento
da pobreza, sobretudo nos grandes centros urbanos. Segundo Elio Gaspari,
são aspectos indissociáveis da mesma realidade histórica:
O Milagre Brasileiro e os Anos de Chumbo foram simultâneos. Ambos reais, coexistiam negando-se. Passados mais de trinta anos, continuam negando-se. Quem acha que houve um, não acredita (ou não gosta de admitir) que houve o outro (Gaspari, 2002).
Com o governo Ernesto Geisel (1974-1978), e sob a batuta do ministro
Ney Braga, o setor cultural conhece efetivo fortalecimento, com a criação de
vários órgãos estatais. Além da Política Nacional de Cultura, surgem o
Conselho Nacional de Direito Autoral - CNDA, a Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro e a Fundação Nacional de Artes – FUNARTE. De acordo
com Sergio Micelli, as mudanças tiveram impacto profundo sobre a estrutura
104
burocrática existente na área cultural, ressaltando seu alcance em termos das
políticas governamentais do período:
Inserir o domínio da cultura entre as metas da política de desenvolvimento social do governo Geisel. Foi a única vez na história republicana que o governo formulou um conjunto de diretrizes para orientar suas atividades na área da cultura, prevendo ainda modalidades de colaboração entre órgãos federais e de outros ministérios, como, por exemplo, o Arquivo Nacional do Ministério da Justiça e o Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, com secretarias estaduais e municipais de cultura, universidades, fundações culturais e instituições privadas (Miceli, 1984, p. 57).
Apesar da unidade de ação por parte do MEC, o cenário cultural dos
anos 70 sinaliza claramente para a diferenciação de duas linhas distintas de
desenvolvimento no ministério.
A primeira referia-se à velha vertente patrimonialista tributária da
tradição do SPAHN, criado nos anos 30 e que apresentou durante três décadas
notável consistência nas ações culturais. De outro lado, com a EMBRAFILME,
a criação do PAC e da FUNARTE, passa a ganhar maior força a vertente
denominada de “executiva”. Se para os primeiros as ações culturais deveriam
voltar-se para o tombamento de monumentos históricos e obras de arte, para a
última vertente tratava-se de promover eventos e espetáculos. Micelli (1984, p.
59) afirma que essas modalidades de intervenção cultural implicarão numa
“diferenciação organizacional, política e doutrinária da vertente ‘cultural’, quer
no âmbito do próprio MEC, quer ao nível dos governos estaduais e municipais
ou da iniciativa privada”.
Finalmente, o fortalecimento institucional do setor cultural, o controle da
política, o processo de desenvolvimento da indústria cultural (pelo crescimento
dos meios de comunicação de massa, como a televisão, em concessões
105
públicas) e o crescimento econômico intenso, ainda que extremamente
desigual, serão as marcas deste período.
2.5. Políticas culturais sob governos democráticos recentes (1985-2008)
Em 1985, com o início da chamada Nova República, o país finalmente
deixava para trás os anos de chumbo do regime militar, iniciando um período
democrático que se estende até hoje. Na última década, entre sinais de
fragilidade, o regime democrático busca se consolidar.
Nos primeiros anos de vida democrática, o governo do presidente eleito,
Tancredo Neves, último a ser eleito pelo Colégio Eleitoral, malgrado o
contagiante movimento das Diretas Já, conheceria sério revés, com sua morte
inesperada levando à posse o vice-presidente, José Sarney.
A mudança de regime acenava para mudanças significativas na
sociedade brasileira, o que ensejou inúmeras discussões para adaptar a
estrutura do Estado à nova configuração sociopolítica, iniciando processo que
ganhará impulso com a promulgação da Constituição de 1988.
É nesse contexto político que surge o Ministério da Cultura, em 1985,
abrindo perspectivas de que a cultura alcançasse novo patamar entre as
prioridades estatais apesar da crescente crise econômica marcada pela alta
inflacionária e deterioração das condições de vida, sobretudo nos centros
urbanos.
106
O novo ministério reunia sob sua alçada, vários institutos e fundações
muitos deles ainda vinculados ao MEC, além de abarcar atribuições e
competências da antiga Secretaria da Cultura da presidência da República, no
período Aloísio Magalhães. As expectativas em torno do ministério, no entanto,
foram frustradas logo nos primeiros anos do novo regime.
Segundo Lia Calabre, o recém-criado ministério padeceria de diversos
problemas, como “perda de autonomia, superposição de poderes, ausência de
linhas de atuação política, disputa de cargos, entre outros” (Calabre, 2005, p.6).
Diante de cenário de retração nos investimentos públicos na área
cultural, despontava duplo movimento de discussão por parte dos setores
ligados à cultura.
Por um lado multiplicavam-se os fóruns nacionais que lutavam por mais
verbas para a área, além da defesa de incentivos fiscais para que empresas e
pessoas físicas destinassem recursos do imposto de renda para atividades
artísticas.
De outro lado, ocorriam intensas discussões em torno da Constituinte de
1988 que, na parte relacionada à cultura, enfatizava os direitos culturais como
parte dos direitos do cidadão, além do reconhecimento da diversidade como
elemento constitutivo de nossa nacionalidade. A partir daí caberia ao Estado
desempenhar papel ativo na salvaguarda desses objetivos.
Na Constituição há definição significativamente mais aberta de cultura,
concebida em boa medida por Darcy Ribeiro, ele mesmo constituinte à época.
A definição valorizava o aspecto antropológico, englobando o amplo conjunto
dos modos de fazer, interagir e simbolizar adotados e desenvolvidos pelos
107
brasileiros ao longo da sua história como solução para os problemas da vida
em sociedade.
A Constituição de 1988 estabelecia:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Parágrafo 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros participantes do processo civilizatório nacional.
A definição, atualizada aos novos tempos contribuía de modo
significativo para que concomitantemente à democratização política se desse a
democratização cultural. Contudo, a exemplo do que ocorreria com a primeira,
marcada por toda sorte de avanços e recuos, a democratização cultural
tardaria a avançar e somente o faria de modo espasmódico, em anos mais
recentes.
José Álvaro Moisés lembra que a nova Constituição trouxe, no plano das
políticas culturais formas inovadoras de relacionamento entre União, Estados e
municípios:
(...) a Nova Constituição rebusteceu as receitas de Estados e municípios. Isso permitiu, pela primeira vez, que fossem aplicadas parcelas mais significativas de recursos em gastos com cultura nessas esferas administrativas, abrindo, a exemplo de outros países, uma rica experiência de descentralização das responsabilidades de Estado com a cultura. Com efeito, com a promulgação da nova Constituição, Estados e municípios aumentaram substancialmente seu potencial de arrecadação de receitas através de impostos, taxas e contribuições; em consequência disso, mas também como fruto de uma nova mentalidade sobre o papel do poder público em face da cultura, os gastos de Estados e de municípios das capitais de Estados somados, que entre 1985 e 1988 estiveram na faixa entre R$370 milhões e R$450 milhões, entre 1990 e 1995 cresceram
108
até chegar à média de R$550 milhões, atingindo picos de mais de R$700 milhões no período (Moisés, 2001, p. 34).
É particularmente relevante a importância crescente que passam a
assumir os municípios na nova ordem constitucional, em grande medida em
continuidade ao crescimento urbano dos anos 70, sobretudo o das capitais
metropolitanas, absolutamente desordenado. Com os ventos da abertura
política e da democracia nos anos 80 inúmeros movimentos sociais, além do
chamado “novo sindicalismo do ABC”, irrompem nas cidades reivindicando
direito à moradia, saúde, creches, configurando o que o sociólogo Eder Sader
chamará de novos personagens que “entram em cena” (Sader, 1988).
A Constituição também propiciava que os municípios tivessem maior
autonomia para atender às demandas, ainda que os recursos disponíveis
fossem bastante insuficientes e, apesar do novo pacto federativo, concentrados
na União Federal.
Justamente nesse período dos anos 80, da chamada “década perdida”,
muitos jovens tomam as ruas das grandes cidades para manifestar sua
indignação e revolta diante de um quadro social agravado pela crise
econômica. Marta Porto, a respeito, se refere ao cenário:
A efervescência do diferente começa a nascer em outros, em favelas, nos subúrbios, onde grupos de jovens se organizam para fazer música, dançar, grafitar, produzir fanzines, organizar ações solidárias. Por meio da apropriação de linguagens artístico-culturais – sem compromisso com a profissionalização ou até com a qualidade do que é produzido - em torno da dimensão cultural que estes grupos se organizam, se articulam, expressam as suas questões cotidianas, suas condições de vida, suas inquietações com o país. Alguns desses grupos se profissionalizam, sem perder, contudo, sua dimensão comunitária, passando a intervir no mercado cultural de forma consistente, como é o caso de grupos de hip hop de São
109
Paulo, de mangue beat no Nordeste brasileiro, de reggae na Bahia e no Rio de Janeiro (Porto, 2004).
Mais adiante se verá que as vivências juvenis nas grandes cidades
demandarão políticas culturais específicas, que surgem tardiamente, e de
forma ainda bastante fragmentária e incipiente, no final dos anos 90 e início
dos anos 200014.
Sob o governo Sarney, entretanto, as políticas culturais conheceram
novos desdobramentos. Assim, é criada a lei nº 7.505, de 2 de julho de 1986,
chamada “Lei Sarney”, primeira lei de incentivo à cultura e que concedia
isenção de impostos federais a empresas interessadas em desenvolver
atividades culturais. Segundo Alberto Freire Nascimento, a lei representou
“reconfiguração das políticas culturais no Brasil e teve reflexo significativo como
política de governo para a cultura na década seguinte” (Nascimento, 2007, p.
4).
Desenhavam-se no período e contrariamente ao ocorrido nas décadas
anteriores, os contornos de uma concepção liberal que passava a orientar de
forma cada vez mais hegemônica as políticas culturais no país. Buscava-se a
partir do mecenato privado estabelecer novo padrão de relacionamento do
Estado com a iniciativa privada e produtores culturais, procurando eximir o
primeiro de interferir no setor cultural, ou de restringir seu campo de atuação.
Como não acontecia até então o mercado passava a ditar os investimentos do
setor cultural.
14 O programa VAI será exemplo paradigmático de política paulistana que trabalhará basicamente com o público de jovens, fenômeno a ser estudado no próximo capítulo.
110
Cristiane Olivieri analisa o significado dessa política durante o governo
Sarney:
(...) a primeira lei de incentivos fiscais à cultura pecou pelo descontrole da aplicação efetiva das verbas. Todavia, parece razoável dizer que teve o mérito de semear entre os empresários a ideia de vinculação de sua marca a um bem cultural como forma de comunicação da empresa, bem como de apresentar aos governantes a possibilidade de viabilizar as produções culturais através das leis de incentivo (Olivieri, 2004, p.73).
Segundo a autora, a introdução do mecanismo de incentivo fiscal na
área cultural não representou elemento necessariamente ruim na gestão
cultural, envolvendo com maior profundidade as empresas no circuito cultural
pela vinculação de suas marcas e marketing cultural.
Em relação a essa posição pode-se contra-argumentar que mais do que
o uso do incentivo fiscal é cabível ponderar acerca do peso conferido a esse
tipo de política quando considerado o conjunto das políticas culturais vigentes
nos anos 80 e 90 no Brasil. E facilmente se constatará que passará a
desempenhar papel cada vez mais destacado em prejuízo de quem se situa à
margem do mercado.
Em acréscimo desse quadro, pode-se afirmar que as políticas culturais
não constituíram prioridade de um governo que padecia de legitimidade e
concentrava esforços em uma pauta basicamente ditada pela economia,
temática dominante num cenário de escalada inflacionária e aumento da
pobreza.
Em 1990 inicia-se o que seria o primeiro governo eleito finalmente pelo
voto direto, em 1989, após mais de vinte anos de autoritarismo. No entanto, o
111
governo Fernando Collor de Melo aprofundaria ao limite a política de restrição
do papel do Estado na área cultural, iniciada com Sarney, promovendo, em
seus primeiros atos, verdadeiro desmonte da estrutura governamental de
cultura. A decisão chocava por seu profundo caráter discricionário, realizada
por meio de medida provisória e equiparável aos piores anos do regime militar.
Foram extintos, além do Ministério da Cultura, vários órgãos federais, além da
própria lei Sarney, fato que traria consequências profundas sobre a vida
cultural do País, como atesta José Álvaro Moisés:
Essa transformação institucional radical foi acompanhada de drástica diminuição de recursos para a área, tendo o orçamento federal para a cultura se reduzido em mais de 50% em relação ao período anterior, fato ainda agravado pela desativação da lei Sarney que, acusada de favoritismo e de facilitar a corrupção (...) tinha carreado para o setor, segundo o seu autor, mais de R$ 100 milhões em quase três anos de funcionamento (Moisés, 2001, p. 39).
Para completar o quadro, Antonio Albino C. Rubim (2007, p. 9) lembra o
fato de que “naquele momento, o quadro de funcionários [do Ministério da
Cultura] foi reduzido de 4.371 para 2.796. Ou seja, em 1.575 funcionários”15.
O completo esvaziamento da atuação do Estado na esfera cultural,
porém, escancarava as portas da cultura para a desregulamentação - ou nova
regulamentação das atividades culturais promovidas pelas empresas, conforme
Moisés (2001) e Arruda (2003, p. 189) - e a livre atuação das forças de
mercado na área.
Em 1991, Collor, por meio de seu secretário da Cultura, o diplomata
Sérgio Paulo Rouanet, promulgou a lei nº 8.313, em 23 de dezembro de 1991,
que passaria a ser a principal lei federal de incentivo à cultura no país. No final
15
Cf. PONTES, Ipojuca. Cultura e modernidade. Brasília, Secretaria de Cultura, 1991.
112
de 1992, em meio a denúncias de corrupção, Fernando Collor sofreria o
processo de “impeachment” que o colocaria fora do cargo.
Ao assumir a presidência em 1992, Itamar Franco trata de reorganizar o
setor cultural, a partir do Ministério da Cultura e seus órgãos básicos de gestão,
como a FUNARTE, IPHAN e a Biblioteca Nacional. Em 1993, cria a Lei do
Audiovisual, reivindicada há anos pelo setor como condição para retomada de
atividades, sobretudo do cinema nacional.
Alberto Freire Nascimento lembra que ao completar dez anos (excluindo
o famigerado período Collor), o Ministério da Cultura “registrara a marca de
nove ministros à frente da pasta”. Dado que “demonstra a descontinuidade na
gestão do órgão e seus reflexos nas políticas públicas para cultura”
(Nascimento, 2007, p. 6).
A inconstância na sucessão de ministros, porém, terminaria no governo
do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, iniciado em 1995. Assume a pasta o
intelectual e acadêmico Francisco Weffort, com longa história ligada às
correntes políticas progressistas, alimentando expectativas de mudanças.
Qualquer dúvida, porém, em relação à orientação na condução do ministério se
dissiparia em seu discurso de posse, ao afirmar que “a parceria com o mercado
é o caminho”:
A relevância do mercado para a cultura e, de outro lado, a da cultura para o desenvolvimento econômico talvez sejam aí as mais significativas diferenças impostas pela época atual às concepções de cultura, no Brasil, desde Mário de Andrade e dos pensadores dos anos 20 e 30 (...) Diferentemente daquela época, porém, hoje é impossível deixar de reconhecer a relevância do mercado no campo da cultura, assim como da cultura na economia.
113
Impressiona o modo como na visão de Francisco Weffort o mercado se
impõe perante a cultura como força avassaladora, rompendo longa tradição de
políticas culturais nascidas nos anos 30. Trata-se, como se percebe, de
mecanismo ideológico que pretende trocar o acessório pelo principal.
Nos oito anos que durará sua gestão à frente do Ministério de Cultura
(período longo, em face de um cenário de instabilidade institucional), Francisco
Weffort segue ferreamente tal proposta, aumentando consideravelmente a
presença da iniciativa privada no financiamento de atividades culturais, por
meio de seu principal mecanismo, a Lei Rouanet. A tendência é seguida por
vários Estados e municípios que, ao longo dos anos 90, passam a criar leis de
incentivo similares, como o Estado de São Paulo, em 1994; Ceará, em 1995;
Distrito Federal, em 1991; e Curitiba, em 1997 (Moisés, 2001, p. 37) e várias
que surgiriam nos anos seguintes.
É essencial determo-nos sobre a lei Rouanet, atualmente em processo
de revisão, após dezoito anos de existência.
Basicamente trata-se de um dispositivo legal que favorece projetos
culturais de grande destaque a partir do patrocínio de empresas interessadas
em associar seu nome a obras e eventos culturais, utilizando vultosos recursos
públicos e frequentemente com baixíssimo acesso por parte da maioria da
população.
Esse modelo de “financiamento da cultura”, que na última década vem
ocupando espaço preponderante nas políticas culturais nos níveis municipal,
estadual e federal, mantém relação estreita com os interesses do mercado,
114
além de atender aos lobbies de vários segmentos do setor cultural. Suas
consequências foram permanentes sobre as políticas culturais.
Ela representou na prática uma oportunidade de troca para os
empresários interessados em conferir uma melhoria na imagem das empresas
utilizando recursos que seriam recolhidos na forma de impostos federais.
Cresce a força de atuação do chamado “marketing cultural” das empresas.
Alberto Freire Nascimento cita, a respeito, documento de “especialista da área”
que ensinava o caminho das pedras para financiamentos:
“Muitas empresas que tinham imagem horrível no meio de formadores de opinião, tão logo passaram a investir nesse tipo de marketing [cultural], verão perdoados seus ‘crimes’ cometidos no passado. Perdoados e esquecidos. E como crédito para o futuro. Marketing cultural funciona como sedativo e como vacina” (Nascimento, 2007, p. 8, apud Castro Neves, 2000, p.134, grifo do autor).
Bastante peculiar a visão de “negócio” que passa a revestir a atividade
de investimento cultural na medida em que se dirige à imagem das empresas,
servindo de “vacina e sedativo” a tudo o que de negativo eventualmente
causaram aos consumidores.
Outro dado importante refere-se à distribuição geográfica dos recursos
de financiamento. Embora a Lei Rouanet previsse a distribuição equânime dos
recursos entre as várias regiões do país, verificou-se com o tempo o
aprofundamento do processo de concentração do financiamento de projetos
culturais e artísticos no Sudeste, seguindo tendências iniciadas em períodos
115
anteriores. Em artigo denominado “Atenção à nova Lei Rouanet”, de 2010,
André Rabone16 apresenta o seguinte balanço da distribuição:
Para se ter uma ideia do nível de concentração dos financiamentos, mais de 18 anos depois da criação da Lei nº 8.313/1991 (lapso de tempo em que circularam cerca de R$ 8 bilhões), Estados do Sudeste ainda abocanham quase 80% do montante de recursos anuais – que, em sua grande maioria (95%), são provenientes de renúncia fiscal. Dados do Ministério da Cultura indicam que de cada R$ 10 investidos através da Lei, R$ 9,50 são públicos, e apenas R$ 0,50 são privados. E desses R$ 10, cerca de R$ 8 vão para o Sudeste, e o restante para as demais regiões.
No mapa abaixo, elaborado pelo Ministério da Cultura, tem-se visão
ampla da distribuição desigual.
Fonte: Ministério da Cultura
16
Disponível em http://acertodecontas.blog.br/cultura/atencao-a-nova-lei-rouanet. Artigo postado em 29/01/2010. Acesso em 05/03/2010
116
Constata-se, por esses dados, que há desequilíbrio gritante na
distribuição dos recursos, fazendo tabula rasa de toda a diversidade cultural
presente nas regiões.
O fenômeno configura uma situação em que a gestão cultural é
capturada pelo poder dos departamentos de marketing das grandes empresas,
que passam a gerir e direcionar os recursos para projetos artísticos e culturais
mais atrativos às “suas estratégias mercadológicas”, para usar jargão comum
aos apreciadores da lógica mercantil. Dentro dessa lógica, caberia perguntar,
por exemplo, sobre o interesse das empresas em projetos culturais focados na
defesa de comunidades quilombolas, na afirmação identitária de grupos
transexuais, na valorização da cultura hip-hop, do maracatu, da cultura caipira
no interior de São Paulo, enfim, manifestações culturais de caráter comunitário.
Ainda que autores como José Álvaro Moisés mostrem a importância
dessas políticas em termos de parceria entre Estado, produtores culturais e
empresas privadas (Moisés, 2001, p. 43), e de “modernização da área cultural”,
é indiscutível seu caráter anti-republicano. Na verdade, sua razão de ser e
justificativa ideológica parecem residir no ideário neoliberal que passou a
dominar boa parte das políticas públicas sob o governo Fernando Henrique
Cardoso, nos anos 90, na base da privatização das relações sociais como
medida de modernização da sociedade.
Tal quadro, incompatível com um Estado de direito e de universalização
do acesso à cultura, representa situação de altíssima concentração de recursos
financeiros provenientes de impostos pagos pelo conjunto da população e que,
117
ao final, acaba beneficiando parcela ínfima dessa população, em geral extratos
das classes altas e médias.
Situação bastante emblemática foi o episódio, em 2006, envolvendo o
grupo canadense Cirque du Soleil, que, sob patrocínio de um grande banco
brasileiro recebeu recursos de R$ 9,4 milhões do Ministério da Cultura para a
temporada de apresentações, e ingressos que variavam de R$50 a R$ 370.
Longe de posição de “horror ao mercado” a reflexão em torno das leis
de incentivo - políticas bastante disseminadas no país - exige análises lúcidas e
ponderadas. Apesar de todas as críticas é imprescindível avaliar em que
medida as experiências contribuíram para o estabelecimento de regras claras
de participação de instituições privadas (empresas, fundações) no conjunto das
políticas culturais, sem que o Estado abra mão de sua soberania na condução
dos assuntos relacionados à cultura.
O que somente se conseguirá imprimindo-se às políticas culturais seu
caráter republicano, fundado, entre outros quesitos, no acesso universal dos
cidadãos aos bens culturais e no controle público das políticas, alargando-se as
possibilidades de participação de amplos segmentos sociais, e não apenas dos
representantes de artistas e produtores culturais e de empresas interessadas.
Cabe insistir que as políticas de incentivo jamais poderiam compor toda
a política cultural de uma nação fato que se revelaria anacrônico se levar-se
em conta a nova concepção de cultura inscrita no texto constitucional, e que
abarca manifestações que não se resumem às chamadas artes consagradas,
mas envolve várias manifestações de caráter popular e comunitário.
118
Por tudo isso, o final da gestão Francisco Weffort, sob o governo
Fernando Henrique Cardoso foi lacônico, senão trágico. Antonio Albino C.
Rubim lembra que em 2002 foram destinados apenas 0,14% dos recursos da
União para a cultura, o que mostra a medida desse setor no quadro das demais
políticas públicas.
Em análise panorâmica da situação de instabilidade que envolveu (e em
grande medida ainda envolve) o processo de institucionalidade das políticas
culturais no Brasil, pelo menos desde 1985, Antonio Albino C. Rubim assinala:
(...) variáveis devem ser consideradas para a maior institucionalidade do ministério e, por conseguinte, para a superação da tradição de instabilidade. Dentre elas, podem ser lembradas: a quantidade e a distribuição espacial dos seus equipamentos culturais; as dimensões quantitativa e qualitativa de seu corpo funcional e a existência ou não de políticas públicas e/ou de Estado (e não apenas de governo) que permitam a continuidade das ações do ministério. O itinerário institucional da cultura não tem sido pródigo em nenhuma destas variáveis. A criação do ministério em 1985 não implicou descentralização e nacionalização dos equipamentos e, por conseguinte, da atuação do órgão. Ele continuou sendo um ministério que opera de modo muito localizado e desigual. As tentativas de reverter esta situação foram sempre ocasionais e não resultaram em sua efetiva descentralização e nacionalização. O ministério gira em torno do Rio de Janeiro, principalmente, e de São Paulo e Brasília. A quase totalidade de seus órgãos e instalações encontra-se nestas regiões. (...) A reduzida presença geográfica do ministério debilita sua atuação nacional e denuncia sua fragilidade institucional. O corpo funcional tem sido outro componente que colabora para esta tradição de instabilidade. Com exceção, novamente, do IPHAN e, em parte, da Funarte, o corpo de funcionários do ministério tem sido precário, deficiente e não profissionalizado. Na sua trajetória inexistiram concursos para novas vagas, apesar do envelhecimento dos funcionários e de algumas fortes pressões para aposentadoria, como ocorreu no governo Collor. (...) O “esquecimento” de políticas de atualização e qualificação têm sido uma triste marca de praticamente todos as políticas culturais implementadas pelos governos nacionais. Esta, sem dúvida, é uma das ausências mais gritantes e graves das políticas brasileiras e um dos fatores mais eminentes da tradição de instabilidade da atuação do Estado nacional na cultura. A existência de um corpo funcional suficiente e
119
qualificado é uma garantia de continuidade das políticas culturais implementadas
O governo Luiz Inácio Lula de Silva, iniciado em 2003, assume o poder
com enorme passivo na área cultural. Ex-torneiro mecânico, sua eleição após
várias tentativas frustradas indica mudanças substanciais na realidade
brasileira, pois viabilizava, enfim, a ascensão de um partido, o PT. Partido
historicamente associado às lutas populares desde o seu surgimento, em 1980,
em meio ao sindicalismo combativo no ABC, e de forte inserção em inúmeros
movimentos sociais.
Vale notar que o partido já havia governado até aquele momento,
diversos estados e municípios, com propostas políticas progressistas no campo
popular-democrático. Por exemplo, as experiências envolvendo o Orçamento
Participativo em Porto Alegre, Santo André e em outros municípios, além da
experiência pioneira na cidade de São Paulo, com a proposta de “inversão de
prioridades”, durante a gestão Luiza Erundina, em 1989.
Por tudo isso o governo Lula se apresentava como um governo de
mudanças, comparado ao seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.
Embora este último tenha sido responsável pelo controle da inflação e
estabilidade econômica na área social, porém, os avanços no sentido da
diminuição dos graves e históricas distorções sociais foram tímidos.
Nesse cenário, Lula empossa o cantor Gilberto Gil como ministro da
Cultura, cargo que ocupará de 2003 a 2008. Curiosamente a presença de um
artista consagrado como titular da pasta destoa sensivelmente dos seus
antecessores em geral intelectuais renomados, e outros nem tanto (Gustavo
120
Capanema, Aloísio Magalhães, Celso Furtado, Ipojuca Pontes, Francisco
Weffort).
No caso de Gilberto Gil é preciso reconhecer sua enorme contribuição
no universo da música popular brasileira, desde os anos 60, em especial sua
participação no tropicalismo17. A biografia, sem dúvida, representou elemento
importante no estilo que passaria a imprimir à frente do Ministério da Cultura,
haja vista que, longe de representar de forma imediata os interesses da classe
artística, demonstrou visão abrangente das necessidades culturais da
sociedade brasileira. Antonio Albino C. Rubim chama a atenção para esse
aspecto
Ele, [Gilberto Gil] várias vezes, afirmou que o público do ministério não eram apenas os criadores e produtores culturais, mas a sociedade brasileira. Deste modo, o diálogo com a sociedade deu substância ao caráter ativo, abrindo veredas para enfrentar outro desafio: o autoritarismo. Ou seja, o essencial desafio de formular e implementar políticas culturais em circunstâncias democráticas foi nitidamente colocado na agenda do ministério (Rubim A. C., 2008).
Com essa proposta, a ação do Ministério da Cultura assumia, de forma
explícita, a busca por avançar no processo de democratização cultural contra
um passado marcado por formulações autoritárias. A gestão Lula-Gil assumia o
17 Essa referência à própria biografia aparece no discurso de posse do ministro-artista: “É também nesse horizonte que entendo o desejo do presidente Lula de que eu assuma o Ministério da Cultura. Escolha prática, mas também simbólica, de um homem do povo como ele. De um homem que se engajou num sonho geracional de transformação do País, de um negromestiço empenhado nas movimentações de sua gente, de um artista que nasceu dos solos mais generosos de nossa cultura popular e que, como o seu povo, jamais abriu mão da aventura, do fascínio e do desafio do novo. E é por isso mesmo que assumo, como uma das minhas tarefas centrais aqui, tirar o Ministério da Cultura da distância em que ele se encontra, hoje, do dia a dia dos brasileiros”. (Gil, 2003)
121
compromisso de romper tendência ressaltada por José Álvaro Moisés a
respeito da tradição das políticas culturais no Brasil:
(...) o grande desafio da época contemporânea, na área da cultura, que é inverter a tendência histórica brasileira, segundo a qual os grandes avanços institucionais do setor fizeram-se em períodos autoritários (Moises, 2001, p.46).
Diante do desafio o artista-ministro deixava clara a nova orientação do
Ministério da Cultura ao enfatizar o que se tornaria prioridade em termos de
políticas de cultura: a abrangência. A ideia apareceria em vários discursos do
ministro, incluindo o de abertura da primeira reunião do Conselho Nacional de
Políticas Culturais, em dezembro de 2007: “Decidimos não escolher marcas,
nem privilegiar segmentos. Priorizamos a abrangência e incluímos setores
culturais do País que nunca haviam se relacionado com este ministério”. (Gil,
2007)
Em outro trecho do mesmo discurso, o ministro explicita o sentido da
palavra recorrente:
Afirmamos a necessidade de uma política cultural com caráter público, voltada para toda a sociedade brasileira, uma política maior que a soma de todas as suas partes. Uma política cultural com “P” maiúsculo, que enfrente questões referentes aos direitos culturais dos brasileiros e da produção cultural dos brasileiros. (...) Trata-se de formular um pensamento estratégico do Estado e da sociedade brasileira sobre a cultura, uma ação de longo prazo que reverta nossos indicadores culturais, que estão entre os mais baixos do mundo (Gil, 2007).
Na mesma passagem é possível discernir claramente o caráter público
presente na proposta do ministério, assim como a referência a bens culturais
da população brasileira. A postura busca contrapor-se às políticas da gestão
122
anterior dos anos Fernando Henrique Cardoso, predominantemente orientadas
pelo mercado, como expresso no discurso de posse, em janeiro de 2003:
Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural aos ventos, aos sabores e aos caprichos do deus-mercado. É claro que as leis e os mecanismos de incentivos fiscais são da maior importância. Mas o mercado não é tudo. Não será nunca. (Gil, 2003)
Entretanto, apesar da importância da figura do ministro é preciso afirmar
que as propostas obedecem a um projeto gestado pelo Partido dos
Trabalhadores e expresso no documento “A imaginação a serviço do Brasil”, de
2002. No documento aparecem ideias fundamentais que se mostram presentes
nas políticas culturais propostas, como o princípio recorrente da diversidade
cultural, referência tão crucial, que abre o documento:
Somos mestiços. Não apenas etnicamente mestiços. Somos culturalmente mestiços. Dançando o Aruanã sob a lua; rezando numa capela de Nossa Senhora Chestokova; curvadas sobre a almofada da renda de bilros; trocando objetos e valores no Moitará; depositando ex-votos aos pés dos nossos santos; sambando na avenida; contemplando a pedra barroca tocada pela eternidade do Aleijadinho; dobrando a gaita numa noite de frio, no sul; tocados pela décima corda da viola sertaneja; possuídos pelo frevo e o maracatu nas ladeiras de Olinda e Recife; atados à corda do Círio de Nazaré; o coração de tambores percutindo nas ruas do Pelourinho ou no sapateado do cateretê; girando a cor e a vertigem do Boi de Parintins e de São Luiz; digerindo antropofagicamente o hip hop no caldo da embolada ou do jongo. Somos irremediavelmente mestiços. A lógica da homogeneização nos oprime. Por isso gingamos o corpo, damos um passe e seguimos adiante como num drible de futebol ou numa roda de capoeira que, sem deixar de ser luta, tem alma de dança e de alegria. Como formular um projeto de Políticas Públicas de Cultura que contemple esse mosaico imperfeito? Como abrir janelas e portas e dizer: ”Brasil, mostra a tua cara!”, como na canção de Cazuza? (Partido dos Trabalhadores, 2003, p. 6).
Tão importante quanto esse princípio é a concepção da cultura como
“direito social básico”, e que deve compor a cesta básica do brasileiro “no
123
mesmo nível da saúde, da educação e assistência social” (Partido dos
Trabalhadores, 2003, p. 12). Essa visão articula-se com uma concepção mais
ampla de cultura, para além do domínio restrito das “letras e artes”. Trata-se da
adoção de abordagem antropológica de cultura, assim expresso no documento
citado como em registros oficiais do Ministério da Cultura:
O fato é que a noção de desenvolvimento tem sido hegemonicamente pensada e praticada como acúmulo de riquezas materiais. Trata-se de uma visão economicista de que na vida social tudo se resolve apenas com os recursos materiais. Esta concepção, na verdade, está na base dos conflitos. Como forma de oposição e resistência a essa tendência globalizadora e violenta do capital pelo viés da cultura, a UNESCO promoveu em 1982, no México, a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais, o Mondiacult. Nesse encontro, redefiniu-se a noção de políticas culturais, preconizando-se a adoção de abordagens políticas que enfatizassem um conceito amplo, antropológico, de cultura, que inclua não apenas as artes e as letras, mas também os modos de vida, os direitos humanos, os costumes e as crenças; a interdependência das políticas nos campos da cultura, da educação, das ciências e da comunicação; e a necessidade de levar em consideração a dimensão cultural do desenvolvimento (Partido dos Trabalhadores, 2003, p. 11).
Ou ainda, no discurso do ministro:
Cultura como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. Desta perspectiva, as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas como exercícios de antropologia aplicada (Gil, 2003).
Há nos discursos a utilização prática de um distinto referencial para as
políticas públicas inaugurando novo olhar sobre a forma tradicional de se ver a
cultura, seja sob o modo elitista das “belas artes” ou do congelamento das
culturas populares na forma da valorização do “folclore”. Essa concepção
124
aproxima-se do significado que Raymond Williams chama de “cultura
ordinária”. (Williams, 1992)
Na institucionalização dessas premissas de ação despontam duas
estratégias do Ministério da Cultura, a saber, a criação de um Plano Nacional
de Cultura e do desenvolvimento do Sistema Nacional de Cultura.
Peça primordial na implantação das novas diretrizes do Ministério da
Cultura foi a aprovação do Plano Nacional de Cultura, pelo Congresso
Nacional, em 2009.
Resultado de discussões ocorridas em vários âmbitos, inclusive em
duas Conferências Nacionais de Cultura (em 2005 e 2009) e de diagnóstico
relativamente aprofundado da situação de apartheid cultural vivido no país
(concentração de equipamentos culturais nos grandes centros, falta de
investimento em leitura, ampliação do acesso aos meios digitais de expressão),
o Plano estabelece como objetivos básicos:
1. fortalecimento institucional e definição de políticas públicas que assegurem o direito constitucional à cultura; 2. proteção e promoção do patrimônio e da diversidade étnica, artística e cultural; 3. ampliação do acesso à produção e fruição da cultura em todo o território; 4. inserção da cultura em modelos sustentáveis de desenvolvimento socioeconômico; 5. estabelecimento de um sistema público e participativo de gestão, acompanhamento e avaliação das políticas culturais (MinC, 2008).
Assim como o objetivo de transformar as políticas culturais em políticas
de estado na forma de um Plano Nacional votado pelo Congresso, a ideia
subjacente à criação de um Sistema Nacional de Cultura parece ser romper a
enorme fragmentação existente no tocante aos serviços culturais existentes no
país nas três esferas de governo. Tem como objetivo “formular e implantar
125
políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os
entes da federação e a sociedade civil, promovendo o desenvolvimento social,
com o pleno exercício dos direitos sociais e acesso aos bens e serviços
culturais” (MinC, 2008).
A respeito da criação do Sistema afirma Antonio C. Rubim:
A construção que vem sendo realizada pelo ministério, em parceria com Estados, municípios e sociedade civil, de um Sistema Nacional de Cultura, é vital para a consolidação de estruturas e de políticas, pactuadas e complementares, que viabilizem a existência e persistência de programas culturais de médios e longos prazos - logo não submetidas às intempéries conjunturais. Tal sistema deve estar associado e comportar outros (sub)sistemas que vêm se constituindo, como o Sistema Nacional de Museus (Rubim A. C., 2008, p. 196).
No plano da institucionalização da nova concepção de políticas públicas,
o Ministério da Cultura implementou diversos programas como Brasil
Patrimônio Cultural e Monumenta; Cultura, Identidade e Cidadania; Engenho
das Artes; Museu, Memória e Cidadania; Cinema, Som e Vídeo; Livro Aberto;
Cultura e Tradições: Memória Viva, e Cultura Afro-brasileira.
Merece destaque o Programa Cultura Viva que, a partir da seleção por
editais públicos, utilizando recursos diretos, subsidia projetos culturais nas mais
diversas linguagens e distantes pontos do País. São os chamados “pontos de
cultura”, em número de mais de 600, e mantidos mais recentemente por meio
de convênios com Estados e municípios. Trata-se da principal ação cultural do
atual governo. Segundo informações do documento “Políticas Sociais –
acompanhamento e análise”, publicado pelo IPEA (2006, 108):
Os Pontos de Cultura, além de cobrirem as regiões brasileiras, também abrangem os mais variados grupos sociais: jovens, mulheres, indígenas, comunidades camponesas e sem terra, comunidades afro-brasileiras, populações ribeirinhas e das
126
florestas. Abarcam diferentes formas de expressão, como o candomblé, teatro, dança, audiovisual, música, circo, cultura popular (mamulengo, folguedos, artesanatos, hip-hop, capoeira, artes, maracatu, congado, folia de reis, bumda-meu-boi etc). E organizam práticas e equipamentos culturais (cineclubismo, multimídia, mercados alternativos, centros de empreendedorismo, museus, bibliotecas, rádios, centros culturais, espaços culturais, preservação do patrimônio histórico, núcleos de memória, centros de cultura digital etc).
Por tudo isso, as mudanças operadas no Ministério da Cultura no
governo Luiz Inácio Lula da Silva (cujo segundo mandato se encerra em 2010)
avançaram consideravelmente no lançamento de bases sólidas para a
construção de políticas democráticas de cultura, ainda que seja muito cedo
para se afirmar se realmente as ações terão continuidade. Além disso, diversas
questões estruturais que acompanham a área cultural ainda estão presentes,
como a ausência de recursos e a vigência da Lei Rouanet, atualmente em
processo de revisão.
127
Capítulo 3 3. O caso do Programa para Valorização de Iniciativ as
Culturais – VAI, na cidade de São Paulo
3.1. Algumas considerações teórico-metodológicas
Neste capítulo pretende-se tomar como objeto de investigação empírica
o Programa para Valorização de Iniciativas Culturais - VAI, atualmente mantido
pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Trata-se de programa governamental que subsidia financeiramente
projetos culturais em diferentes linguagens artístico-culturais desenvolvidos por
pessoas de baixa renda, sobretudo jovens moradores de regiões periféricas da
cidade de São Paulo.
As análises tentarão aprofundar o conhecimento dessa política pública
de cultura tomada como expressão de um terreno de novas e promissoras
possibilidades de democratização cultural no cenário contemporâneo,
sobretudo em áreas metropolitanas como São Paulo.
Em termos de abordagem teórico-metodológica, buscar-se-á enfoque
histórico-crítico concebido como capaz de iluminar as políticas culturais em
suas múltiplas e complexas mediações, partindo-se do amplo e contraditório
conjunto de forças e interesses difusos em torno da questão cultural, seja no
âmbito do chamado setor cultural strictu sensu (constituído por artistas,
escritores, produtores, agentes culturais), ou em termos da população mais
ampla, sobretudo a mais pobre, historicamente alijada do processo de fruição e
produção de bens culturais e mesmo das discussões em torno do tema.
128
Além da investigação dessas políticas urge entender os modos como
são apropriadas pelos cidadãos que dela fazem uso a partir do questionamento
das formas como se inserem no processo cultural, que impactos produzem em
sua vida, a relação com o cotidiano e com valores políticos ligados à
participação, entre outros aspectos.
Tomar-se-á como recorte de pesquisa o exame do programa VAI em
seus primeiros cinco anos de existência, de 2004 a 2008. Serão considerados
ao menos dois percursos distintos, mas que, conjuntamente, podem conduzir a
visão abrangente e ao mesmo tempo matizada dessa política pública.18
O primeiro deles, a ser desenvolvido neste capítulo, permitirá apreender
o programa público em termos de sua dimensão mais estritamente político-
institucional. Para tal, será essencial fazer uso de técnicas de pesquisa, como
levantamento estatístico dos indicadores básicos do programa; levantamento
histórico; análise documental (estatuto legal, publicações, dados
orçamentários); entrevistas com membros que compõem a equipe técnica do
programa e pessoas que, direta ou indiretamente, participaram de sua
trajetória.
A ideia é que as técnicas de pesquisa sejam utilizadas de forma
conjugada, buscando apreender o programa VAI em sua totalidade, embora a
afirmação não deve ser entendida como tentativa de abarcar todos os aspectos
presentes no fenômeno, o que seria impossível, mas construir uma visão de
conjunto.
18 A partir daqui utilizaremos, como menção ao Programa para Valorização de Iniciativas Culturais, simplesmente “Programa VAI”.
129
Despontam questões candentes relacionadas ao conhecimento das
condições institucionais e políticas que tornaram possível o surgimento do
programa VAI, como composição e organização interna da equipe técnica
responsável, ambiente burocrático e modelo de gestão da Secretaria Municipal
de Cultura, espaços de articulação intersetorial e permeabilidade às demandas
da sociedade.
O segundo percurso, indissociável do primeiro, será desenvolvido no
capítulo seguinte. Refere-se primordialmente aos aspectos relacionados ao
público do programa, constituído majoritariamente por segmentos jovens,
moradores dos diversos bairros periféricos da cidade de São Paulo. Importará,
por essa via, pela análise qualitativa, identificar os modos de vida do público,
formas de relacionamento com o programa, concepções de cultura, significado
e impacto sobre a visão de mundo.
A ideia é conhecer essa realidade viva a partir de elo fundamental entre
o programa e o público jovem beneficiário, o projeto cultural, além dos produtos
culturais realizados ao final do mesmo. A análise do material, aliada aos
depoimentos da vivência dos projetos pode propiciar visão mais abrangente de
como se estabelece a dinâmica presente na relação dos jovens com o
programa, a partir de suas produções artísticas, práticas culturais e trajetórias
de vida.
Por ora, entretanto, é indispensável relacionar, ainda que brevemente,
alguns aspectos de ordem subjetiva e objetiva que orientaram a escolha do
objeto de pesquisa.
130
Inicialmente, o programa VAI passou a ser o local de trabalho deste
pesquisador no final de 2007, assumindo, como sociólogo de carreira, a função
de técnico responsável pelo acompanhamento de projetos culturais. Atuando
por mais de quinze anos na Secretaria de Assistência Social, em área
periférica da cidade, a região de São Mateus, zona leste paulistana19,
associado à atividade docente em Faculdades no ABC paulista, o contato com
o novo campo de trabalho parecia descortinar possibilidades instigantes de
trabalhar não mais na eterna mitigação das necessidades materiais, via
políticas sociais compensatórias, mas em terreno no qual talvez aflorassem
novas perspectivas de transformação social: a esfera cultural.
É bem verdade que a experiência adquirida no âmbito das políticas
municipais de assistência havia mostrado, nos últimos anos, sinais bastante
interessantes na construção de um sistema público de assistência de base
democrática, fundada em fóruns e conselhos de representação paritária (como
por exemplo, o Conselho Municipal de Assistência Social, além do Conselho
Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente). Experiências
estranhamente truncadas, para não dizer de todo ausentes, no campo das
políticas municipais de cultura20. De qualquer modo, o fato de atuar agora na
sede administrativa da Secretaria Municipal de Cultura em oposição à atuação
local, também consistia mudança significativa em termos do alcance das
políticas públicas.
19 Período no qual resultaram vários trabalhos de pesquisa, como “Ociosidade de vagas de creches em São Mateus” (1992); “Mortes violentas de crianças e adolescentes na Zona Leste de São Paulo” (1993); e “Percursos infanto-juvenis na metrópole, sobre crianças em situação de rua na região de São Mateus” (2005), entre outros. 20 Por exemplo, a Secretaria Municipal de Cultura ainda não conseguiu instituir o Conselho Municipal de Cultura (apesar de esforços nesse sentido), o que parece evidenciar, como veremos, um movimento de interesses particulares (artistas, ONGs, poder público, empresas) que não consegue convergir na direção de um projeto cultural próprio para a cidade.
131
O trânsito entre diferentes setores da atividade estatal foi interessante,
embora colocasse problemas evidentes ao pesquisador quanto ao enfoque
conferido à análise. Ainda que a proximidade com o programa fosse aspecto
facilitador, possibilitando conhecimento mais amplo, vívido, e realizado a partir
do interior deste espaço institucional, os perigos no ambiente “mais familiar”
talvez encerrassem dificuldades relevantes, como, por exemplo, o risco de
reprodução de visão construída internamente na equipe de trabalho e que
redundaria em perspectiva unilateral, mesmo etnocêntrica, na abordagem do
objeto.
E. B. Viveiro de Castro e Gilberto Velho, ao relembrarem Roberto Da
Matta e sua reflexão acerca dos desafios que envolvem o ofício do antropólogo
no estudo das sociedades complexas, dizem:
Se, no caso da antropologia das sociedades não ocidentais, o movimento era o da transformação do exótico (dado previamente) em familiar (através da reflexão), o estudo das sociedades complexas supõe a transformação do familiar (dado, e dado pré-conceitualmente) em exótico - distanciamento antropológico (Viveiro de Castro, E; e Velho, Gilberto, 1978, p. 18).
Também Márcio Goldman, em seu trabalho Os tambores dos mortos e
os tambores dos vivos (2003), aborda com muita propriedade os perigos que
rondam o trabalho do antropólogo ao estudar fenômenos de sua própria
sociedade. Para ele
(...) uma das dificuldades da disciplina (antropologia), quando se volta para o estudo da sociedade do observador, parece ser sua incapacidade de manter simultaneamente o descentramento de perspectiva que sempre a caracterizou e a capacidade de dar conta das variáveis sociais efetivamente estruturantes. Assim, para ser fiel ao primeiro imperativo, buscam-se por vezes, na sociedade do analista, fenômenos que apresentem alguma distância ou alteridade em face das forças dominantes. Ou, ao contrário, tentando obedecer ao
132
segundo princípio, concentra-se a investigação nos centros de poder e esforça-se por reconduzir os fatos estudados a formas que a antropologia tradicionalmente privilegiou. No primeiro caso, o risco sempre à espreita é o do privilégio quase exclusivo de fenômenos ou dimensões ‘marginais’, ou seja, incapazes de conferir inteligibilidade aos processos de estruturação mais amplos. No segundo, pode-se acabar adotando uma perspectiva por demais afinada com os dominantes (provocando a perda da originalidade da abordagem antropológica) ou passar a tratar como exótico ou inessencial aquilo que é estruturante (Goldman, 2003, p. 466).
Portanto, a partir de olhar antropológico (o “descentramento”), aliado à
dimensão sociológica (“variáveis sociais estruturantes”), as análises
subsequentes tentarão apreender o programa VAI como um todo,
especialmente no que essa política representa na dinâmica cultural de uma
metrópole como São Paulo.
Quanto ao aspecto objetivo envolvido o interesse em torno do tema
nasceu de preocupação basilar, e anterior, acerca da questão democrática no
Brasil e dos empecilhos no processo de constituição de um Estado de Direito,
capaz de incluir milhões de pessoas afastadas do processo político e dos
direitos mais caros à cidadania. Havia, desde então, clara percepção de que os
avanços passam inevitavelmente pela construção de novos espaços públicos
de discussão e de mobilização política, e de que a cultura desempenha papel
bastante relevante, não como cimento de ordem social rígida, hierárquica, mas,
pelo contrário, espaço plural de ideias e livre manifestação por parte de amplos
setores da sociedade.
A problemática refere-se ao entendimento do impacto dinamizador da
cultura sobre o processo de nosso aperfeiçoamento democrático. Ou, em
outros termos, pensar o resgate da dimensão política da cultura como motor de
133
transformação social em uma democracia que não consegue avançar em
termos de superação dos grandes desafios nacionais, muito em função da
perda do caráter normativo da política, no cenário de aparente “crise das
utopias”, e da preponderância do chamado pensamento único ditado pelo
mercado.
No bojo dessas questões emerge a hipótese de que políticas culturais
como o programa VAI sinalizam o surgimento de padrões de articulação entre
cultura e sociedade na medida em que propiciam o reconhecimento de
identidades culturais, muitas delas há décadas sufocadas.21 Identidades que se
afirmam, se movem e se articulam em suas próprias diferenças, configurando
paisagem cultural múltipla e cambiante presente nas metrópoles brasileiras, a
maioria delas comumente marcada por mazelas persistentes, como a violência
diária, poluição, trafego intenso, falência dos sistemas públicos de transporte,
educação, que parecem com frequência minar o próprio sentido da esfera
pública, do convívio civil.
É possível que o enriquecimento do campo cultural dado pelo
reconhecimento estatal dos novos sujeitos sociais, pela via das políticas
públicas, produza impactos positivos no que tange à consolidação da
democracia brasileira, contribuindo para a afirmação de uma cidadania ativa, e
da construção de novos projetos societários, capazes de se sobrepor ao
imobilismo imposto pela ditadura do mercado, e das políticas culturais estreitas,
fragmentadas, que mudam ao sabor das conveniências dos governos.
21 Além de outras ações culturais no âmbito da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, ou de iniciativas como o Programa de Ação Cultural - PROAC, na esfera estadual, e o Programa Cultura Viva, na esfera federal, para ficar somente em ações públicas formuladas ao longo dos últimos cinco anos.
134
Portanto, parte-se aqui da hipótese que o programa VAI é representativo
de um modelo de política que, embora incipiente, desenvolve-se a contrapelo
da orientação hegemônica, em espaço indicador de mudanças.
3.2. Histórico do Programa
As origens do VAI remontam aos debates ocorridos na Comissão
Extraordinária Permanente da Juventude da Câmara de Vereadores do
Município de São Paulo, em 2001 e 2002.
Embora seu surgimento esteja associado a vários fatores conjunturais
da época foi no bojo das discussões daquela Comissão o programa emergiu
como proposta de política pública de cultura, em um período em que aflorava a
preocupação em torno da necessidade de se conhecer melhor o papel da
cultura na vida de jovens paulistanos.
A cidade de São Paulo vivia então sob a gestão da prefeita Marta
Suplicy (2001-2004), do Partido dos Trabalhadores, cuja plataforma política
acenava para a possibilidade concreta de renovação em várias políticas
públicas municipais, em comparação com governos imediatamente anteriores,
marcadamente conservadores, como as administrações Paulo Maluf (1993-
1996) e Celso Pitta (1997-2000) ambos do PP - Partido Progressista. A
expectativa de mudanças também se verificaria em 2003, em âmbito federal,
com a eleição histórica de Luiz Inácio Lula da Silva.
Vale lembrar a importância do programa político do Partido dos
Trabalhadores - PT em relação à cultura, expresso no documento “A
imaginação a serviço do Brasil - programa de políticas públicas de cultura”
135
(Partido dos Trabalhadores, 2002). Entre outros pontos, considera-se a cultura
direito social básico do cidadão e reafirma-se seu papel no combate à exclusão
social: “(....) o combate efetivo à exclusão social no Brasil passa
inevitavelmente pela abertura democrática dos espaços públicos aos nossos
criadores populares e pela ‘inclusão da cultura na cesta básica’ dos brasileiros”.
É inegável a influência do papel reservado à cultura no cenário de surgimento
do programa VAI.
Surgia assim na cidade de São Paulo um conjunto de novas propostas
no campo das políticas públicas. Poder-se-ia mencionar algumas mudanças
importantes implementadas pela nova administração da cidade como o
processo de implantação das subprefeituras - numa tentativa, ainda que só
parcialmente bem sucedida, de descentralização da gestão; a experiência de
criação do Orçamento Participativo como experiência de democratização do
processo decisório na cidade e valorização de demandas de caráter local. Data
também dessa gestão a criação da Coordenadoria da Juventude, responsável
por “promover o desenvolvimento e a implantação de políticas e programas
para a juventude na cidade de São Paulo” (lei 13.169 de Julho de 2001, art.
76), além da criação de vinte e um CEUs - Centros Educacionais Unificados,
proposta voltada para a melhoria na qualidade dos equipamentos públicos de
educação nas áreas periféricas, e da busca de integração entre as atividades
de cultura, lazer, esportes e educação.
Neste contexto político favorável, a Comissão - suprapartidária e
composta por parlamentares e lideranças de diversos e distintos movimentos
da sociedade civil - tinha como preocupação central a busca de maior
136
qualificação da discussão em torno da condição de juventude, mais do que
nunca encarada como tema de interesse das políticas públicas. Indagava-se,
na ocasião: que jovem é este? Quais são suas necessidades? E seus desejos?
Como as políticas podem alcançá-los?
Helena Wendel Abramo se refere ao momento político rico em
discussões:
A Comissão Extraordinária Permanente de Juventude da Câmara Municipal de São Paulo - instalada em fevereiro de 2001 - foi a primeira experiência de constituição de um espaço permanente para o debate específico sobre a juventude no Poder Legislativo no Brasil. O início de seu trabalho foi - como lembra seu primeiro presidente, o então vereador Nabil Bonduki - um processo de experimentação e aprendizado para todos os que estavam envolvidos. O principal norte perseguido pelos seus integrantes foi justamente trazer as demandas dos jovens para o debate parlamentar para, a partir delas, pensar projetos de lei e propostas que pudessem resultar em políticas significativas para esse segmento (Secretaria Municipal de Cultura, 2008, p. 18).
O conjunto de preocupações reforçava um movimento amplo em curso,
que conferia maior visibilidade política à juventude, no âmbito do governo do
Estado e no governo municipal com a criação de secretarias e coordenadorias
voltadas para o segmento. Podem ser citadas neste sentido a implantação no
município de São Paulo da Coordenadoria Especial da Juventude em 2001 (lei
13.169/2001), e a criação da Secretaria de Estado da Juventude, (lei
10.387/1999) durante a gestão do então governador Mário Covas, do PSDB –
Partido da Social Democracia Brasileira.
Mais do que uma discussão restrita à esfera estatal a temática da
juventude inseria-se em movimento societário mais amplo e que envolvia a
ação de uma multiplicidade de movimentos sociais e de ONGs comprometidas
137
com o segmento realidade já há algum tempo merecia a reflexão mais atenta
de diversos pesquisadores e intelectuais.
A agenda de questões associadas à condição juvenil, pensada como
“possibilidade de experimentação e vivência diferenciada”, como lembra
Helena Wendel Abramo, vinha sendo significativamente influenciada pela
divulgação dos resultados de importantes trabalhos sobre o tema. Por exemplo,
a “Pesquisa Juventude: cultura e cidadania”, de 2000, realizada pelo Núcleo de
Opinião Pública (NOP) da Fundação Perseu Abramo, e o “Mapa da Juventude
da cidade de São Paulo” (PMSP/CEDEC, 2003), elaborado pela Coordenadoria
da Juventude de São Paulo.
Estes e diversos outros trabalhos de pesquisa abriam caminho para
conhecimento mais profundo acerca do comportamento do jovem paulistano,
especialmente no tocante às atitudes e expectativas na esfera da cultura e da
política.
Utilizando novas abordagens de análise os estudos permitiam romper
representações comumente associadas à juventude - e reforçadas
insistentemente pela grande mídia -, como a falta de interesse pela cultura, a
relação estreita com a violência, drogas, e a rebeldia ‘sem causa’,
descortinando o perfil de um jovem curioso, preocupado com questões públicas
e ávido em produzir cultura e participar de iniciativas em sua própria
comunidade.
Juarez Daryell refere-se aos vários modelos de compreensão da
juventude como eterno vir-a-ser, a visão romântica que a envolve (modas,
adornos, locais de lazer), na forma de certa moratória temporal, ou ainda a
138
ideia da juventude como momento de crise, desencontros e rebeldia. Segundo
ele, a juventude envolve ao mesmo tempo “condição social e um tipo de
representação” (Dayrell, 2007, p. 43).
Considere-se, a respeito, a passagem do “Mapa da Juventude”, de
2003:
A associação entre manifestações artísticas e ação social ou crítica, reflexão e discussão política aparece como conjunção de motivações que expressam os interesses e as expectativas dos jovens. Talvez nessa fórmula que associa diversão à participação social e política, os jovens revelem as suas próprias estratégias de inserção e de inclusão social, na medida em que “(...) optar pela inclusão é optar por um patamar comum de identidade e pertencimento social, sobrepujando as diferenças”22. (PMSP/CEDEC, 2003, p. 56)
Para além de visão estereotipada da condição juvenil resgatava-se sua
condição de cidadão, de sujeito de direitos – como propugnava o Estatuto da
Criança e do Adolescente - ECA, lei 6189, de 1990, no tocante a crianças e
adolescentes - ainda que nesse caso a demanda fosse pela proteção; e no
caso dos jovens, por autonomia e valorização da identidade cultural.
Janaína Rocha (2004), no artigo “Juventude: uma política em ação”
sintetiza o clima de discussões na Câmara Municipal de São Paulo:
Na ambiência da Câmara Municipal, que foi o primeiro órgão legislativo do país a instalar uma comissão permanente para examinar o assunto, observa-se no decorrer de um ano de trabalho, no caso 2001, a extensão de temas durante as reuniões: desde a constituição de grêmios escolares, como modo de organização juvenil, passando pelos desafios de enfrentar o batente, até proposições agudas sobre o acesso à educação e cultura. Na reunião do dia 21 de junho de 2001, Suely Chan, na ocasião diretora do Departamento de Cultura de Diadema, afirmava que cultura deveria ser questionada não como um instrumento de salvação das situações de vulnerabilidade nas complexas malhas da sociedade.
22Op. cit. Zaluar, Alba: “Exclusão e políticas públicas: dilemas teóricos e alternativas políticas” Revista Brasileira de Ciências Sociais. v.12 n.35. São Paulo, 1997, p.2
139
Percebe-se na passagem a busca por se tentar entender concretamente
o papel da cultura na vida dos jovens como dimensão positiva de vivências e
experiências, e não elemento residual, coadjuvante. Não se trata, porém, de
perceber a cultura como única nem dimensão predominante na vida dos
jovens, mas dimensão que interage com outras dimensões igualmente
importantes em seu cotidiano como o trabalho, a família, a sexualidade,
condição de classe, étnica, e local de moradia, para destacar algumas.
Essa concepção mostra-se extremamente relevante em comparação
com a ideia restrita de cultura como espécie de “tábua de salvação”, concebida
a partir de ótica reativa ou instrumental, em face dos inúmeros problemas
sociais vividos no país, especialmente nos grandes centros urbanos.
Contra esta concepção e retomando as análises de Juarez Dayrell, é
preciso entender o jovem que produz cultura como sujeito social, ainda que
existam várias maneiras de se construir como sujeito. Para ele, o sujeito é:
Um ser singular que possui história, que interpreta o mundo e dá-lhe sentido, assim como dá sentido à posição que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história e singularidade. (...) é ativo e age no e sobre o mundo, e nessa ação se produz e, ao mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais no qual se insere (Dayrell, 2007, p. 43).
Em face dessas questões e do acúmulo teórico da Comissão
Extraordinária da Juventude, seus membros sentiram a necessidade de buscar
contato mais estreito com os jovens, e promoveram visitas às mais diferentes
regiões de São Paulo, com o objetivo de melhor retratar experiências, valores e
expectativas em relação às políticas públicas, particularmente as culturais.
140
Em vários depoimentos colhidos - e registrados no Relatório Final da
Comissão, de 2001 – nota-se a denúncia da falta de infraestrutura urbana e a
ausência de equipamentos e serviços públicos de qualidade que
caracterizavam muitas regiões e as dificuldades inerentes à prática cultural em
tal cenário. Na fala, por exemplo, de Valdeir dos Santos Pereira, morador do
Capão Redondo, 16 anos, fica patente o dilema enfrentado por muitos jovens
entre, de um lado, a falta de opções culturais locais e, de outro, o consumo de
conteúdos veiculados pela indústria cultural, notadamente a televisão, ao
mesmo tempo em que se revela o desejo de desenvolver talentos e
potencialidades:
(...) a maioria deles ou assiste televisão ou joga futebol nos pequenos campos ou até nas ruas asfaltadas, porque não tem muitas ruas asfaltadas, porque não tem muitas quadras, pelo que dá pra perceber (...) Mas eles não assistem televisão porque gostam; eles assistem televisão porque não têm outra coisa para fazer, não têm outras atividades... o que eles gostariam de fazer é que eles gostariam de estar num parque, num clube poliesportivo desenvolvendo suas atividades, num centro cultural, fomentando suas atividades, seus talentos (Rede de Observatórios de Direitos Humanos, 2001, p. 86)
Todavia, mais do que uma paisagem desoladora de desmobilização ou
resignação, pesquisas e escutas com os jovens revelavam a existência de
múltiplas atividades e projetos culturais que pipocavam pela cidade.
Preenchendo as lacunas deixadas pelo Estado, várias ONGs
acumulavam vasta experiência no trato com os jovens, conhecendo de perto o
perfil dos moradores e identificando distintas demandas. Ao fomentar formas
de sociabilidade e investindo no protagonismo juvenil, as ONGs contribuíam
decisivamente para a formação dos jovens no campo dos direitos da cidadania
141
e dos conhecimentos em várias áreas de atuação, revelando forte potencial
para o desenvolvimento de projetos coletivos.
Testemunho interessante é o de Robson Pardial, o Binho, ex-
beneficiário do Programa VAI e que mantém importante “centro cultural” na
zona sul, região de Campo Limpo, o popular “Sarau do Bar do Binho”. Em seu
depoimento, constata-se o papel fundamental desempenhado pelas ONGs
quanto à oferta de oportunidades culturais dirigidas aos jovens de áreas
periféricas de São Paulo, fenômeno que segundo ele foi ocorrendo de forma
progressiva nas últimas décadas:
“Acho que vamos falar assim, eu estou no Campo Limpo, moro no Campo Limpo, nasci no Campo Limpo, e com atividade com bar, no caso, faz 15 anos... Então tem uma trajetória, uma história aí... Nesse período muita coisa foi acontecendo, muitas ONGs se formaram na periferia, muita coisa, muita gente veio de ONGs, de cursos de artes, de cursos de teatro, curso de não sei o quê, não sei o quê... (...) essas pessoas estão formando cidadãos, né, acho que esse boom de ONGs aí ajudou pra que também tivesse essa massa crítica, digamos assim, na periferia, muita cosia que a escola não dava, por exemplo, mas que as ONGs conseguiam fazer, uma biblioteca.. Isso é um trabalho de base.. E dando os frutos assim após uns dez anos”.23
Entre os efeitos mais visíveis do processo, destaca-se o de contribuir
para explicitar as deficiências do Estado na área cultural pressionando o poder
público a fim de viabilizar políticas públicas mais eficazes no atendimento aos
direitos culturais da população, preferencialmente em locais próximos à
moradia e não em áreas centrais tradicionalmente privilegiadas e muito
distantes.
23 Entrevista realizada em 22/10/2008.
142
A partir das pressões na Comissão de Juventude surge a necessidade
de revisão da lei municipal de incentivo à cultura até então a principal fonte de
financiamento cultural no município. Reunindo pessoas da Secretaria de
Educação, do Orçamento Participativo, rede de ONGs, membros da
Coordenadoria da Juventude, técnicos dos programas sociais da Prefeitura,
além de representantes juvenis e de vereadores, o grupo encontrou apoio na
figura do vereador Nabil Bonduki (PT), fortalecendo o movimento de construção
de mecanismos de incentivo cultural.
Diante da visibilidade crescente das práticas culturais juvenis,
cristalizava-se a percepção de que as leis de incentivo não eram suficientes
para apoiar pequenos projetos culturais com existência capilarizada pelas
regiões da cidade, sobretudo na periferia, em que as vozes de vários coletivos
de jovens já se faziam ouvir com força em áreas como teatro, vídeo, grafite,
percussão, hip-hop, capoeira. Havia de se considerar a peculiaridade de os
jovens se agruparem informalmente, em redes de sociabilidade e sem qualquer
constituição jurídica, como grupo de amigos, vizinhança e lazer.
Curioso perceber que o programa VAI aparece como proposta de
superação ao esgotamento das políticas centradas na concessão de incentivos
fiscais, modelo consagrado pela gestão Francisco Weffort à frente do Ministério
de Cultura nos governos Fernando Henrique Cardoso, e duplicada por vários
estados e municípios, conforme exposto no capítulo anterior.
Em entrevista com a então coordenadora do Programa VAI (de 2005 a
início de 2009), Maria do Rosário Ramalho, a situação que remonta aos
primórdios do programa VAI é assim relatada:
143
“O VAI surgiu justamente no contexto dos anos 2000. Nos anos 90, tínhamos a Lei de Incentivo à Cultura no nível municipal, e no nível federal a Lei Rouanet. A Lei de Incentivo Estadual estava suspensa. E existiam demandas de mais recursos para a cultura. Enfim, começou a aumentar a pressão em relação ao Estado, para que outras coisas acontecessem, além da Lei de Incentivo que, na verdade, restringia muito o público atendido. O VAI vem em um momento em que há questionamento em relação a essa forma de lei de incentivo, em que as empresas decidem o que vai ser feito e abatem. No caso do município, a Lei Mendonça e depois a Lei Rouanet, que era referência nacional. Mas essa decisão, embora as pessoas digam que não envolve dinheiro público, à medida que o Estado isenta uma empresa de imposto e transfere a ela o direito de decidir o que apoiar ou não, restringe muito determinadas manifestações culturais, especialmente as manifestações populares. No caso de grupos de pesquisa, de linguagens artísticas, acabam prevalecendo as de interesse mais comercial. No início da década de 2000, muitos grupos começaram a se mobilizar em relação a esse assunto, questionar essa lei, e repercutiu na Câmara Municipal, então lá havia uma discussão em relação a rever a Lei de Incentivo e a quem ela beneficia“.24
O desafio que se apresentava na época era criar dispositivo legal que
ampliasse as condições de acesso à cultura e simplificasse as exigências para
participação em editais e processos seletivos, inacessíveis para milhares de
jovens.
Partindo dos debates foi se desenhando, no final de 2002, o projeto de
lei nº 681, que deu origem à lei de criação do Programa VAI, lei nº 13.540, de
24 de março de 2003, de autoria do vereador Nabil Bonduki.
O programa buscaria apoiar financeiramente projetos elaborados por
jovens - embora previsse apoio a pessoas jurídicas -, sobretudo nas camadas
de baixa renda, em seu processo de iniciação cultural, abarcando as mais
diversas linguagens e formas de manifestação coletiva.
24 Entrevista realizada em 04/09/2009.
144
Procurava-se atender o segmento juvenil mas desde logo se discutia,
para efeito do detalhamento do projeto de lei, qual seria a faixa de idade que
definiria tal condição. A Organização das Nações Unidas (ONU) atualmente
considera jovem a população entre 15 e 24 anos, e a União Europeia adota a
faixa entre 15 e 29 anos. Utilizou-se a última delimitação, mas, devido a
exigências contratuais optou-se por privilegiar as ações com jovens a partir dos
18 anos de idade. Ao final, foi definido como segmento prioritário jovens de 18
a 29 anos.
Mais importante que o tempo cronológico representado pela idade, o
novo programa deveria considerar outros aspectos envolvidos na condição
juvenil notadamente sua busca incessante por autonomia e reconhecimento de
identidade. De acordo com Luciana Guimarães, que integrou a Coordenadoria
da Juventude, e foi a primeira diretora do Centro Cultural da Juventude – CCJ:
(...) essa fase é a da construção das referências que determinam as escolhas dos/das jovens para entrar no mundo adulto; é também o momento em que se dá o desenvolvimento da autonomia. Por isso, as ações pensadas para esta população devem sempre se preocupar em, por um lado, estender o repertório dos jovens, garantindo assim que as escolhas possam ser feitas, e por outro, proporcionar experiências concretas de autonomia (PMSP/Cedec, 2003).
Ou ainda, segundo Helena Wendel Abramo, em relatório desenvolvido
pelo Núcleo de Estudos da Violência, da USP, sobre “Os jovens e os direitos
humanos”:
As atividades de lazer e cultura são meios através dos quais os jovens realizam coisas muito importantes para a sua vida, pelas quais podem descobrir quem são, o que gostam, onde podem se reunir com amigos para fazer algo interessante, para além das tarefas necessárias envolvidas no estudo e no trabalho (Rede de Observatórios de Direitos Humanos, 2001, p. 50).
145
Ficava patente nas passagens a existência de uma lacuna nas políticas
públicas que contemplassem a necessidade do jovem paulistano. Ausência que
havia algum tempo começava a adquirir feição política a partir da reivindicação
de vários setores organizados da sociedade.
O ano de 2003 é marco importante para a implantação do programa
VAI. Com o aval da Secretaria Municipal de Cultura, da Câmara Municipal, de
ONGs e inúmeros coletivos juvenis, a lei de criação foi sancionada em março, e
regulamentada em setembro pelo decreto nº 43.823 o que permitiu a
elaboração do primeiro edital de chamamento de grupos interessados,
publicado em outubro do mesmo ano.
3.3. Processo de institucionalização
O processo de institucionalização do programa na Secretaria Municipal
de Cultura ocorreu de forma lenta e repleta de reveses no período considerado,
de 2004 a 2008.
Após sanção e regulamentação da lei o programa VAI começa a
funcionar no final de 2003 com a incumbência de elaboração do primeiro edital,
para entrar em vigência no ano seguinte. É importante assinalar que são
anuais os editais para abertura de inscrição para os interessados.
A implantação do programa ocorre, inicialmente, no espaço do antigo
Departamento de Teatro, estrutura remanescente da época de criação da
146
Secretaria Municipal de Cultura ocorrida pela lei 8.204, de 1975, na gestão do
prefeito nomeado, Miguel Colasuonno.25
A estrutura seria parcialmente alterada pela lei 13.169, de julho de 2001,
durante a gestão de Marta Suplicy26.
É sintomático notar a inserção do programa VAI em departamento com
o qual não mantinha relação direta de atuação como o Departamento de Teatro
e ainda de forma bastante improvisada. Como se verá adiante o fato parece
dever-se mais à necessidade imediata de recrutar pessoal “disponível” a
assumir o programa do que a qualquer outro fator.
O desafio de estabelecer os procedimentos técnicos necessários à
institucionalização do programa deu-se em período particularmente difícil, em
razão do cenário de final de administração na cidade, quando tradicionalmente
verifica-se na máquina pública, pouco investimento em novos
empreendimentos e certa paralisia em razão da vigência do período político-
eleitoral.
Aspecto significativo no processo refere-se à composição da equipe
técnica do programa. Tomando-se os anos mais recentes, de 2007 e 2008, a
equipe do programa apresentou (com variações) a seguinte composição: um
25 A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo foi uma das primeiras a ser criadas no País, em 1975. No entanto, “o Ceará foi o primeiro Estado a criar uma secretaria de cultura. Coube ao governador Virgílio Távora, em 1966, a iniciativa de desmembrar as atividades artísticas e culturais da Secretaria de Educação. Com a Lei nº. 8.541, de 9 de agosto de 1966, Virgílio Távora criou a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará”. Fonte: site do Governo do Estado do Ceará. 26 Pela lei de criação da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, lei nº 8.204, de 13 de janeiro de 1975, o órgão era chamado Departamento de Teatros, e, apesar do nome, apresentava atribuições bastante amplas, como expresso em seu art. 14, inc.1: “Planejar, coordenar, executar e controlar as atividades artísticas, objetivando a difusão e o aperfeiçoamento da arte, especialmente da música, do canto, da dança e da arte dramática”. Com a lei 13.169, de 11 de julho de 2001, na gestão Marta Suplicy, a denominação passou a ser simplesmente Departamento de Teatro, local de instalação inicial do Programa VAI, em 2003.
147
coordenador, quatro técnicos, um funcionário administrativo e um estagiário.
Embora não existam indicadores capazes de mostrar a relação ideal de
projetos por técnico supervisor - algo que poderia ser objeto de pesquisa no
âmbito da própria Secretaria, a partir de um órgão técnico de planejamento -,
pode-se afirmar que essa composição ainda se mostra relativamente defasada,
a considerar-se o número de projetos atendidos pelo programa nos últimos
anos, superior a pouco mais de cem, como se verá.
Além disso, é fácil notar a enorme quantidade de procedimentos de
natureza burocrática que consome a equipe em prejuízo de atividades-fim, com
a supervisão aos projetos e a análise de seus resultados. A equipe também
conta, na atualidade, com instalações físicas próprias, e materiais e
equipamentos que gradativamente foram sendo adquiridos para a necessária
execução de suas atividades básicas.
Mas isso nem sempre foi assim. Nos primeiros anos, as dificuldades
para montagem da equipe eram evidentes. Em 2004, durante a primeira edição
do programa este contava com estrutura burocrática bastante insuficiente,
trabalhando em condições absolutamente precárias - ausência de espaço
próprio e de equipamentos básicos, como computadores e armários. Basta
constatar que em seu primeiro ano e meio de existência o programa tinha
apenas uma pessoa na qualidade de coordenadora, além de duas funcionárias
administrativas, que acumulavam inúmeras outras funções. Além das
atribuições inerentes ao recém-criado programa, respondiam ainda pelas
tarefas relacionadas ao funcionamento dos teatros distritais e Programa de
Fomento ao Teatro, ambos do Departamento de Teatro.
148
Considerando-se a enorme quantidade de procedimentos técnico-
administrativos necessários ao pleno funcionamento do programa, como
elaboração de edital, constituição de diferentes processos administrativos,
procedimentos de repasse de recursos, prestação de contas, acompanhamento
do andamento dos projetos, tem-se a dimensão do nível de precariedade que a
equipe responsável enfrentou, dada a existência de número tão reduzido de
pessoal. Isso num momento em que o programa recebia em sua primeira
edição 650 projetos inscritos, dos quais 67 foram selecionados. O quadro de
precariedade é assim relatado por ex-funcionária do programa:
“(...) a Secretaria não tinha nenhuma equipe para trabalhar com o Programa, embora ela tenha recebido o Programa de braços abertos, isso acarretou a sobrecarga de algumas pessoas que já trabalhavam com outras coisas na Secretaria. Na época, a pessoa que assumiu a coordenação era a mesma que cuidava dos teatros, que são equipamentos da própria Prefeitura, que são prédios com programação, com os funcionários. Já tinha absorvido o programa de Fomento ao Teatro e também assumiu a coordenação e implementação do VAI”.27
Deduz-se que nas duas primeiras edições do programa, em 2004 e
2005, o número reduzido de pessoal representou significativo gargalo na
expansão do atendimento, o que começou a mudar com aumento e gradativa
qualificação dos funcionários, particularmente técnicos, fato que se iniciou
somente em meados de 2005.28
O cenário começava a alterar-se. Data desse período a mudança na
coordenação da equipe do programa, que deixa de ser partilhada com outros
27 Entrevista realizada em 04/09/2009. 28 Na verdade, uma das consequências mais diretas desse quadro é medida pela não utilização integral dos recursos orçamentários disponíveis para o programa. De um total de R$ 1 milhão reservados para a primeira edição, foram utilizados R$ 888.127,28, ou seja, em torno de 89% dos recursos. Embora elevado, esse nível de utilização dos recursos foi o menor da história do programa.
149
setores e passa a ser exclusiva. Esta passa a ser ocupada por Maria do
Rosário Ramalho, funcionária de carreira da Secretaria Municipal de Cultura, e
que havia participado das discussões da Comissão da Câmara Municipal,
como assessora parlamentar do autor do projeto de lei. Gozando de
experiência anterior na Secretaria de Cultura, e tendo acompanhado de perto o
surgimento do VAI, sua presença parecia propiciar novas condições de
estruturação do programa.
Outro elemento que favoreceu este processo foi o recrutamento do
primeiro técnico do programa - entre 2005 e 2008 chegariam mais três
técnicos, com nível superior. Dada a dificuldade em conseguir funcionário para
a função a nova coordenadora recrutou pessoa com cargo comissionado
passando ambos a dividirem o acompanhamento dos quase 70 (setenta)
projetos aprovados em 2005, entre inúmeras outras atribuições burocráticas.
Jovem oriundo de movimentos culturais na Zona Sul da cidade de São
Paulo, Gil Marçal trazia para o programa trajetória de vivências tipicamente
relacionadas aos jovens que representavam o próprio público visado pelo
programa. O novo olhar tornava-se relevante, pois permitia compreensão mais
ampla do papel do programa e das experiências dos coletivos de jovens
beneficiados, por apresentar trajetória semelhante de vida, atestado neste
depoimento:
“Eu nasci em uma favela da Zona Sul, que tinha um trabalho de educação ligado à pedagogia Waldorf, e onde o desenvolvimento artístico e a arte são elementos fundamentais no desenvolvimento da educação, do cuidado com as crianças. Então, desde os programas sociais de creche, que também tinham convênio com o poder público. Era uma creche, um centro de juventude, que sempre trabalhou com a arte como ferramenta de aprendizagem, de convivência, de constituição, informação do ser humano, entendendo que a arte era a busca
150
da formação de um ser humano integral. Eu cresci com muitos jogos artísticos, trabalhando a história do lúdico, dos desenhos, dos contos de fada. Aí um pouco mais tarde, quando eu tinha 12 anos, fiz minha primeira apresentação de teatro, com um conjunto de pré-adolescentes, da mesma faixa etária, e que estavam se formando ali, orientados por um trabalho cultural de uma ONG, a ONG Monte Azul, e ali acho que teve essa trajetória. Eu tive a oportunidade de viver no bairro Monte Azul, onde em 91 começou a construção de um centro cultural, e eu fiz parte dessa história ajudando, era moleque, tinha uns 12 anos, mas fiz parte da história, ajudando nos mutirões de construção desse espaço. E desde o primeiro espetáculo, enfim, então, minha adolescência passei fazendo e aprendendo coisas ligadas às artes, e ao mesmo tempo acessando e assistindo muito espetáculo que nesse lugar acontecia. Peças dos mais diferentes grupos de São Paulo, como o Tata, o Vertigem, o teatro do Zé Celso, o Oficina, e aí tem outros nomes, como o Gianfrancesco Guarnieri, a Ester Góes. Enfim, tive muito acesso, assistir espetáculos de teatro, e tive formação nesse espaço. Então, fiz oficinas dos mais diferentes tipos: dramaturgia, que é a escrita do teatro, um pouco mais velho, teatro para educadores, máscara para teatro, iluminação cênica, fiz dança contemporânea, depois fui ter aula de música, estudei piano uns dois anos mais ou menos, cantei em coral, então tive uma adolescência em que meu tempo era muito preenchido por atividades artísticas”.29
As informações relacionadas à biografia dos primeiros componentes
fixos do programa ajudam a elucidar aspectos decisivos de sua evolução
histórica na burocracia estatal, pois, de certa forma, preencheram “vazios
institucionais” deixados pela estrutura relativamente precária da Secretaria
Municipal de Cultura.
A coordenadora e o único técnico estabeleceram, em conjunto, um
padrão significativo de atuação expresso pela necessidade de implantar
concretamente o programa para que este não se tornasse “letra morta”. Isso
implicava em agir de modo “comprometido” com aquilo que a lei visava
estabelecer, ao mesmo tempo em que se buscava legitimar a política cultural
junto aos jovens paulistanos.
29 Entrevista realizada em 12 de setembro de 2009.
151
Mais importante que sublinhar as virtudes de caráter individual dos
funcionários as decisões tomadas no período basearam-se em critérios bem
objetivos, pois, dado o clima de relativa incerteza institucional em que
atravessava o programa, estava em questão a construção de sua identidade
institucional, e, no limite, a própria “sobrevivência” na Secretaria de Cultura.
Segundo a ex-coordenadora, a preocupação referia-se às dificuldades
inerentes à criação de leis no país: “Na verdade, existe uma discussão sobre
lei: leis que pegam e leis que não pegam. O medo era esse: fazer uma lei que
não pegasse na prática”.
Momento importante no processo complexo de ajustamento do
programa VAI à estrutura da Secretaria Municipal de Cultura ocorre a partir de
reorganização administrativa do órgão, realizada pelo prefeito José Serra, do
PSDB, logo no final do primeiro ano de sua gestão (2005-2008), pelo decreto
46.434, de outubro de 2005.
Pouco antes houve a transferência da gestão do programa VAI do
Departamento de Teatro para o Departamento de Ação Cultural Regionalizada
(DACR). Ainda naquele ano, os dois departamentos, de Teatro e o DACR,
fundiram-se, dando origem ao Departamento de Expansão Cultural (DEC), no
qual o VAI está até hoje situado.
Registre-se que o DEC remonta ao período da gestão Mário de Andrade
à frente do pioneiro Departamento de Cultura de São Paulo, criado em 1935,
sob a administração do prefeito Fábio Prado, o que é um marco em termos de
experiências públicas de cultura no país. O próprio resgate da antiga
denominação de uma das divisões daquele departamento ocorreu em
152
homenagem aos 70 anos de criação daquele órgão seminal no campo das
políticas culturais no Brasil.
Ainda em 2005, durante o primeiro ano da gestão José Serra, o
programa enfrentou grave revés. Buscando fazer frente a uma crise financeira,
a Prefeitura de São Paulo determinou corte substancial, e linear, de 31% dos
recursos orçamentários da Secretaria Municipal de Cultura (VAI – 5 anos,
2009, p. 19). A decisão atingiu todos os projetos selecionados pelo programa
naquele ano, o que gerou grande revolta por parte dos coletivos.
Diante da redução proposta e dos impactos causados sobre o
desenvolvimento dos projetos, diversos grupos selecionados se mobilizaram
buscando apoio em setores do próprio poder público, rede de ONGs,
lideranças culturais e de parlamentares com o intuito de reverter tal situação.
Após muitas pressões e em negociação com o novo secretário de Cultura,
Carlos Augusto Calil, que assumia a pasta após a gestão de Celso Frateschi, a
situação foi finalmente revertida, descongelando a totalidade de recursos
destinados ao programa.
Merece também ser mencionado o papel desempenhado pela Comissão
de Avaliação de Propostas do VAI, colegiado instituído em 2003 e que possui,
como incumbência legal (art. 5º da lei 13.540/03), a seleção dos projetos
inscritos no programa e aprovação de suas contas no decorrer do tempo de
duração. É composta por 16 membros - oito titulares e oito suplentes -, com
representação paritária do governo e de organizações da sociedade civil para o
exercício de mandato de um ano, podendo ser renovado por igual período.
153
As primeiras comissões, durante a gestão Marta Suplicy, tiveram seus
integrantes da sociedade civil indicados pelo Conselho Municipal de Cultura,
então constituído, para o exercício 2003 e 2004. O fato representava aspecto
positivo, pois demonstrava preocupação da Administração em avançar na
constituição de um modelo participativo na gestão da cultura na cidade.
Entretanto, a experiência teve pouca duração, não deixando raízes. O fato
deve-se, entre outros fatores, à baixa mobilização do setor cultural, marcado
pela segmentação por linguagens (teatro, audiovisual, hip-hop, dança) e por
reivindicações específicas o que parece dificultar consideravelmente a luta em
torno de uma política cultural mais ampla para a cidade.
Ademais certa ética fundada no caráter individual do processo criativo (o
gênio criador do artista), algo muito presente no setor cultural aparece como
outro obstáculo no processo de construção de consensos mínimos quanto à
elaboração de uma Política Municipal de Cultura e de um Conselho Municipal
de cultura que sejam duradouros. Tais espaços acabam sendo ocupados
quase que integralmente pelas sucessivas administrações municipais.
A partir de 2005, com o início da gestão José Serra, a Secretaria
Municipal de Cultura simplesmente deixa de convocar o Conselho Municipal de
Cultura, e os membros da Comissão de Propostas do programa VAI passam a
ser escolhidos pelo secretário municipal de Cultura entre as entidades
cadastradas formalmente no Conselho, “de acordo com o previsto em lei”.
Cumpre ressaltar que, mesmo diante das vicissitudes, a Comissão de
Avaliação de Propostas exerceu papel importante no processo de
institucionalização do programa, ainda que funcionasse no período com o
154
objetivo básico de seleção dos projetos. Acrescente-se a isso o fato de que até
os dias atuais todas as renovações dos integrantes da Comissão foram
parciais, o que, segundo a atual equipe técnica do programa, é fator positivo,
pois possibilitou a manutenção da memória dos processos seletivos e debates
ocorridos no desenvolvimento dos projetos (“VAI – 5 anos”, 2009, p.18).
Em reuniões sistemáticas da Comissão, das quais participam membros
da equipe do programa - ainda que ocupem função de assessoria e suporte no
tocante às informações relevantes dos projetos –, é discutida extensa gama de
assuntos relacionados ao andamento dos projetos, a distribuição espacial pela
cidade, aprovação ou rejeição de contas, elaboração do edital, enfim, aspectos
da dinâmica de trabalho do programa que representam espaço de reflexão e
tomada de decisões.
155
3.4. Contexto político-institucional
Para entendimento mais preciso da posição ocupada pelo programa
VAI, na estrutura da Secretaria Municipal de Cultura deve-se observar o
organograma abaixo.
Secretaria Municipal de Cultura – 2009 Estrutura Básica e Posição do VAI
Eis uma visão panorâmica dos pilares da política municipal de cultura
paulistana que foi se delineando desde a década de 30, a saber:
Coordenadoria de Bibliotecas, Departamento da Biblioteca Mário de Andrade,
Theatro Municipal, Departamento do Patrimônio Histórico Cultural e Centro
Cultural São Paulo.
Observa-se aqui uma tríplice diferenciação das políticas culturais
municipais e que formam um sistema cultural mais amplo.
Nesta estrutura é possível destacar:
Gabinete do Secretário
Coord.
Sistema Mun. Bibliotecas
Dep. de
Expansão Cultural
Theatro
Municipal
Dep. Biblioteca Mário de Andrade
Centro Cultural
São Paulo
Dep. do
Patrimônio Histórico
PROGRAMA VAI
Núcleo Vocacional
Programa de Fomento ao Teatro
Programa de Fomento à Dança
Programa de Fomento ao Cinema
Chefia de Gabinete Asses. Juríd. Asses. Téc. Asses. Comunicação
Coord. Adm.
e Finanças
C
Conselho Municipal
de Cultura
Conselho Municipal Preservação do Patr. Hist. Cultural e Ambiental São Paulo
Conselho Mun. de Bibliote cas
Conselho de Orientação do Fundo Especial de Promoção de Atividades Culturais - FEPAC
Comissão de Averiguação e Avaliação de Projetos Culturais - CAAPC
Comis. de Fiscaliz.
Convênios Culturais –
CFCC
156
1) ações culturais baseadas por uma rede de equipamentos e serviços
culturais descentralizados, e de referência municipal como: a) Departamento do
Sistema Municipal de Bibliotecas; b) Biblioteca Mário de Andrade; c) Centro
Cultural São Paulo; e d) Theatro Municipal;
2) ação cultural focada na preservação do patrimônio histórico e cultural,
no caso do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH); por fim,
3) Departamento de Expansão Cultural, compreendendo um conjunto
relativamente heterogêneo de ações culturais centradas na promoção de
eventos, formação continuada e fomento às atividades culturais. Percebe-se
que, diferentemente das duas frentes anteriores - ainda que de forma
complementar quando se pensa a rede de equipamentos e serviços culturais -,
o DEC abarca vários programas públicos de estímulo à extensa gama de
atividades culturais.
No DEC, além do programa VAI, destacam-se o Núcleo Vocacional de
Teatro, Dança e Música e os Programas de Fomento de Teatro, Cinema e
Dança. Cabe registrar nova e significativa diferenciação. O programa Núcleo
Vocacional apresenta peculiaridades que o aproximam sobremaneira do
programa VAI, a saber: ambos atendem a público predominantemente jovem e
iniciante no universo cultural, além de manterem significativa capilaridade em
termos de presença em vários pontos da cidade, notadamente em áreas
periféricas. O programa na modalidade do Núcleo de Teatro, e conhecido como
“Teatro Vocacional”:
Visa dar orientação artística a grupos de teatro amador que atuam na cidade. Com a intervenção de um professor orientador, os participantes são estimulados à criação e ao desenvolvimento da atividade teatral nas diversas regiões –
157
bairros e periferia – da cidade, em salas improvisadas em espaços cênicos. (Secretaria Municipal de Cultura, 2009, p. 126)
Vale assinalar que muitos grupos teatrais que tiveram projetos
contemplados pelo programa VAI originaram-se do Programa Teatro
Vocacional representando rica experiência de articulação entre políticas
municipais de cultura. Ambos os programas apresentam características
similares como baixo orçamento e forte presença regional, em especial nas
Casas de Cultura e CEUs. Sob esse aspecto, ambos diferenciam-se
sobremaneira das ações culturais de programa de Fomento ao Teatro, à Dança
e ao Cinema, que atendem a demandas mais específicas de grupos
profissionais de artistas, como companhias de teatro e dança, por exemplo.
Outro aspecto relativo à ação estrutural da Secretaria Municipal de
Cultura, e que ajuda a compreender o ambiente institucional em que se insere
o programa VAI, refere-se aos gastos com cultura realizados pelo órgão e sua
distribuição entre os vários setores de atuação. Tomemos a TABELA 1 a
seguir:
158
TABELA 1 Evolução Orçamentária da Secretaria Municipal de Cultura entre os anos de
2005 e 2008
Ano Valor (milhões) % PMSP
2005 176 1,1%
2006 192 1,1%
2007 276 1,3%
2008 383 1,5%
Fonte: Relatório de Gestão 2005-2008 SMC
O orçamento da Secretaria, a partir de percentual de gastos em torno de
1,1% em relação à arrecadação da cidade, em 2005, manteve-se nesse
patamar em 2006, elevando-se sensivelmente nos anos seguintes, 2007 e
2008, respectivamente com gastos de 1,3% e 1,5% em relação ao total
arrecadado pela administração.
Entretanto, de acordo com o documento publicado pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, em 2004, denominado Políticas sociais –
acompanhamento e análise, “as capitais respondem por 32% dos recursos dos
municípios empregados na cultura, e, na média, aportam 1,5% da receita dos
impostos” (IPEA, 2006). Ou seja, somente em 2008 a cidade de São Paulo
alcançou o nível de gastos com cultura, em termos percentuais, verificado nas
principais capitais do país.
O fato de contar com percentual tão baixo de recursos
comparativamente a outras áreas, como educação (mínimo de 25%), saúde
(mínimo de 15%), e transportes, deixa entrever o “peso” conferido à cultura não
somente no âmbito municipal, mas nas três esferas do governo.
159
No entanto, tão importante quanto os recursos disponíveis são os dados
relativos à sua distribuição, conforme o GRÁFICO 1 abaixo.
A distribuição desses recursos é bastante desigual, sobressaindo os
gastos de alçada do gabinete do secretário em relação a outros gastos, o que
parece demonstrar acentuada centralização na distribuição de recursos em
relação às demais ações programáticas. Trata-se de enorme poder conferido
ao secretário quanto à possibilidade de alocar e realocar recursos, o que
sempre propicia a possibilidade de favorecer determinada área em prejuízo de
outras.
Fonte: Relatório de Gestão 2005-2008 SMC
Há também diferenças entre os valores previamente orçados (em azul) e
os valores efetivamente executados (em vermelho) ao longo de cada ano.
Verifica-se significativa defasagem nos gastos relativos às bibliotecas e
160
Departamento do Patrimônio Histórico da cidade. As causas podem ser as
mais variadas - de contingenciamento velado à incapacidade do órgão público
em efetuar os procedimentos administrativos concernentes aos gastos. De
qualquer modo, se pode imaginar o impacto que os “recursos disponíveis e não
utilizados” causam sobre a continuidade e qualidade das ações culturais sobre
a vida da cidade.
Ainda no tocante ao Orçamento da Secretaria Municipal de Cultura
podemos observar pelo GRÁFICO 2, o percentual de gastos realizados pelo
programa VAI em relação ao total de recursos do órgão.
Fonte: Relatório de Gestão 2005-2008 SMC
Os percentuais variaram em torno de 0,9%, em 2005, caindo para
0,73% em 2006, e atingindo em 2007 seu valor percentual mais elevado, em
torno de 1% do total de recursos da SMC, valor que voltou a apresentar queda
(0,9%) em 2008. Em termos proporcionais, o programa VAI apresenta custo
relativamente baixo, especialmente se se considerar seu alcance em termos de
161
atendimentos. Basta constatar, por exemplo, que no ano de 2007, ao custo de
aproximadamente 1,7 milhões, o programa VAI atendeu 100 beneficiários (90
pessoas físicas e 10 pessoas jurídicas). O programa Fomento ao Teatro, no
mesmo ano (10ª e 11ª edições), beneficiou 30 grupos profissionais de teatro
(companhias) ao custo de pouco mais de 7 milhões. (Secretaria Municipal de
Cultura, 2009, p. 55). Salta aos olhos inclusive, o fato de que apesar de contar
com editais públicos várias companhias teatrais consagradas se perpetuam
durante anos no recebimento de parte substancial destes recursos, o que
revela seu nível de concentração.
Em que pese peculiaridades de cada um dos programas culturais, ainda
assim fica evidente o lugar ocupado pelo programa VAI quando se considera
somente o número frio do orçamento público.
TABELA 2 Recursos disponíveis e utilizados pelo Programa VAI entre
2004 e 2008
Ano Total de recursos disponibilizados
Total de recursos utilizados pelos projetos desenvolvidos
Valor máximo por projeto
2004 1.000.000,00 888.127,28 15.000,00 2005 1.000.000,00 956.650,27 16.000,00 2006 1.000.000,00 941.214,72 17.000,00 2007 1.710.000,00 1.668.096,17 18.000,00 2008 2.000.000,00 1.961.864,03 18.600,00 Total 6.710.000,00 6.415.952,47
Fonte: Relatório de Gestão 2005-2008 SMC
Ao considerar-se a evolução dos valores financeiros disponibilizados
pelo programa no período 2004-2008, notamos duas fases distintas. Conforme
a TABELA 2 , observa-se que entre 2004 e 2006, período ainda de afirmação
do programa, os recursos anuais disponíveis foram de ordem de 1 milhão de
162
reais, passando para 1,7 milhões em 2007 e 2 milhões em 2008, em um
período de consolidação desta política pública. Constata-se também que
gradativamente passa a ocorrer um maior aproveitamento no gasto dos
recursos (valor disponível versus recurso utilizado), o que pode ser reflexo da
maior repercussão do programa, como sinalizado neste trabalho.
O fato repercutirá no aumento do número de grupos de jovens
atendidos, como se verá, e na garantia do reajuste anual dos valores
recebidos, conforme previsto em lei, que passaram de R$15.000,00 para
R$18.600,00 no período considerado.
3.5. Dinâmica de Funcionamento
Nesta parte busca-se expor o modo de funcionamento do programa VAI.
Impõe-se inicialmente a descrição de seus objetivos institucionais contidos em
sua lei de criação, lei 13.540, de 13 de março de 2003.
Cabe ao programa VAI “subsidiar financeiramente (...) atividades
artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda”, além de
organizações que desenvolvem atividades culturais, em “regiões do Município
desprovidas de recursos e equipamentos culturais”, conforme estabelece a lei
logo em seu art. 1º. O valor destinado pelo programa, para cada projeto
aprovado, é de até R$ 18.600,00, repassado em no máximo três parcelas, ao
163
longo de um período que não pode ser superior a oito meses e nem inferior a
quatro.30
O passo inicial para a participação dos interessados consiste na
inscrição aberta pelo prazo de um mês – geralmente em janeiro –, que
apresenta como exigência básica dos interessados o tempo de moradia na
cidade (dois anos), e encaixar-se no perfil enunciado: jovens de baixa renda
que queiram desenvolver iniciativas de caráter cultural.
Há anúncio de abertura das inscrições por meio da publicação de edital
divulgado em vários órgãos informativos, casas de cultura, e CEUs, além de
ONGs com atuação na área cultural. A divulgação, ainda que relativamente
restrita, é feita por cartazes, folhetos, livretos explicativos e na página do
programa na internet.
Pelo perfil dos projetos inscritos constata-se que muitos coletivos juvenis
que são o público do programa se formam no âmbito dos poucos equipamentos
públicos de cultura ou mesmo de organizações com atuação cultural
espalhados por todas as regiões da cidade.
Tomemos como exemplo o caso das casas de cultura, importante
equipamento cultural de inserção local, sobretudo nas áreas periféricas, e sob
a alçada das subprefeituras. Inúmeros grupos que gravitam em torno desse
equipamento cultural, participando de oficinas, eventos musicais, saraus,
encontram no programa VAI oportunidade concreta de viabilizar novas ações e
30 Valor tomado como referência para o ano de 2008, quinta edição do programa. O art. 8º da lei de 13.540/03, bem como o art. 2º § 2º do decreto 43.823/03, estabelecem que esse valor seja corrigido anualmente pelo IPCA – Índice de Preços ao Consumidor Amplo – do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou índice que vier a substituí-lo.
164
projetos. Prova do fato é a escolha das casas de cultura e de alguns CEUs
como locais de inscrição, evidenciando certa parceria com o programa.
Entretanto, mesmo considerando que a parceria revela articulação
importante entre serviços públicos de cultura, em esforço conjunto de ações
culturais, desponta o fato de que a lei de criação do programa indica que o
público do programa deve originar-se de “regiões do Município desprovidas de
recursos e equipamentos culturais”, o que não deixa de ser certa contradição.
Pode-se indagar da situação de muitas regiões distantes e que sequer conta
com uma casa de cultura ou mesmo CEU. E elas são muitas.
O que expõe a dificuldade do programa em perseguir seu objetivo de
ampliar as condições de acesso à cultura para públicos mais distantes dos que
frequentam os equipamentos. Contudo, deve-se observar que, de forma
paradoxal, a aquisição de hábitos e do interesse por práticas culturais mantém
estreita relação com a vivência nos espaços.
A oferta de um leque de oportunidades culturais representa um dos
pilares de uma política cultural genuinamente democrática. A respeito desse
fato diz Hamilton Faria:
É importante relembrar que a cidadania cultural não se refere apenas aos lugares e fazeres institucionais já existentes, mas à invenção permanente de novos lugares e significados culturais. Assim, estimular a autonomia dos grupos para que criem sua própria cultura e estimular a circulação de discursos e práticas plurais é fator decisivo nas políticas de acesso (Faria, 2003).
Resulta que programas públicos de cultura, como o VAI, dirigem as
ações a um público que se situa fora do chamado setor cultural, entendido
como o que congrega artistas, escritores, produtores, e que comumente
165
ocupam posição no campo cultural, submetidos a certas instâncias de
consagração, para utilizar o referencial teórico de Bourdieu (1974).
Considerem-se agora os procedimentos para participação no programa.
As inscrições consistem basicamente na apresentação de um projeto cultural,
em duas vias, contendo, entre outras informações, dados básicos, como nome
do projeto, nome do proponente, tempo de duração, plano de trabalho,
cronograma e orçamento, além de currículos e de ficha técnica detalhada.
Além disso, o responsável pelo projeto preenche uma ficha, a “ficha síntese”,
na qual há informações básicas sobre o projeto e seu responsável – importante
fonte para levantamentos estatísticos. Embora o programa beneficie, em sua
maioria, pessoas físicas, pessoas jurídicas com histórico de atuação na área da
cultura podem se inscrever.
Feitas as inscrições, os projetos são submetidos à apreciação da
Comissão de Avaliação de Propostas, composta legalmente para esse fim, e
que, após algumas reuniões, seleciona os projetos com base em critérios como
“mérito da proposta, clareza e coerência, interesse público, criatividade e
importância para a região ou bairro da cidade”, como estabelecem os editais.31
Uma vez selecionados os projetos, e após a formalização do processo
de contratação - há uma série de documentos e exigências burocráticas, como
a comprovação do tempo de moradia -, o proponente torna-se apto a receber a
31 Note-se que, sendo distribuído em duas vias, cada projeto é objeto de leitura e avaliação de, ao menos, dois membros da Comissão. Do confronto e ulterior deliberação em torno das diferentes avaliações, expressos por um sistema de notas, chega-se a determinado número de projetos selecionados, no tocante a pessoas físicas, a maioria, e pessoas jurídicas, minoria dos projetos. Os casos de “empate” são resolvidos a partir de ampla discussão dos membros da Comissão acerca dos vários aspectos envolvidos. Ao final da seleção é publicado, no Diário Oficial do Município, o resultado com os selecionados.
166
primeira parcela do subsídio, passando a desenvolver o projeto conforme o
estabelecido no plano de trabalho aprovado.
Além disso, o projeto passa também a contar com o acompanhamento
por parte de um técnico do programa, que se responsabiliza por verificar o
desenvolvimento das atividades propostas e a prestação de contas dos
recursos financeiros recebidos.
Esquematicamente, é possível identificar certa sazonalidade no trabalho
desenvolvido pela equipe técnica do programa em cada uma de suas edições:
janeiro: mês de recebimento das inscrições; fevereiro e março: processamento
das inscrições, processo de seleção dos projetos; março e abril: divulgação dos
projetos selecionados, contratação dos proponentes e encontros com os
grupos: de apresentação e sobre prestação de contas; maio: recebimento da
primeira parcela do projeto e início de desenvolvimento dos projetos com
acompanhamento técnico; julho e agosto: prestação de contas da primeira
parcela e, uma vez aprovada, recebimento da segunda parcela; setembro e
outubro: prestação de contas da segunda parcela e, uma vez aprovada,
recebimento da terceira parcela; novembro e dezembro: prestação de contas
final e reunião de avaliação final com os grupos, e divulgação do edital de
chamamento para o ano seguinte.
Ainda que bastante esquemática, a apresentação anterior (que
comporta inúmeras exceções) propicia visão panorâmica acerca das linhas
básicas de atuação da equipe do VAI. A partir desse quadro geral é
indispensável o detalhamento das ações, aprofundando inúmeras variáveis
167
qualitativas e quantitativas que o complementam, no esforço de compreensão
do programa.
No caso das pessoas físicas ou jurídicas, uma pessoa ocupa posição
chave na relação com o programa, o proponente do projeto. Essa pessoa é
frequentemente convidada a participar, diretamente, em idas ao programa
(esclarecimentos, prestação de contas, reuniões gerais com todos os
proponentes de outros projetos; ou indiretamente, por meio do contato
realizado no dia a dia, por telefone, troca de e-mails ou pelo acesso ao blog do
programa. No caso de pessoas físicas, a grande maioria é formada por jovens
e no de pessoas jurídicas pelo representante legal, ou mais corriqueiramente
pelo representante técnico do projeto.
De qualquer modo, vale assinalar que a escolha desse representante do
projeto muitas vezes se dá em função do nível de legitimidade que o jovem
conquistou em dado coletivo, de seu histórico e liderança. Entretanto, em
outros casos o critério é mais direto e ordinário, referindo-se à pessoa que não
possui problemas relativos à documentação exigida (por exemplo, restrição
para abertura de conta corrente, falta de documentos) ou mesmo com perfil
mais administrativo.
Como forma de apresentação geral dos grupos e possibilidade de
criação de um espaço em que interajam, conhecendo-se melhor, a equipe
técnica do programa VAI realiza, logo após a publicação dos resultados dos
projetos selecionados, um encontro com todos os proponentes. O espaço é
franqueado para que todos exponham as propostas e, em reuniões por
linguagem artístico-cultural e por região de origem (zonas Norte, Sul, Leste,
168
Oeste/Centro), avaliem possíveis trocas de experiências ou mesmo de ações
em parceria.
Os valores financeiros repassados para os coletivos são de
responsabilidade individual do proponente, com depósito em conta corrente em
seu nome. Ou seja, ele responde administrativamente por todos os valores
recebidos. Por vezes ocorrem situações de conflitos internos envolvendo os
membros de coletivos, frequentemente o proponente. São casos em que este é
acusado de concentrar demasiadamente recursos e decisões. O técnico
responsável é chamado a mediar o conflito. Na maioria das vezes estes
conflitos são resolvidos facilmente, mas há ocasiões em que, dada a
intensidade da ruptura, o projeto é encerrado em decorrência do
comprometimento quanto à sua execução.
Aspecto relevante do programa refere-se ao processo de prestação de
contas. Como observado, os recursos financeiros - em torno de R$ 18.500,00,
no ano de 2008 - são repassados aos projetos selecionados em até três
parcelas ao longo da execução, cuja duração varia de no mínimo quatro e no
máximo oito meses. Projetos de menor duração tendem a receber o benefício
em apenas duas parcelas, enquanto os de maior duração - a maioria dos
projetos - em três parcelas.
Os valores das parcelas podem ser iguais ou variar de acordo com as
necessidades de cada projeto, sobretudo do modo como está estruturado o
cronograma de atividades, haja vista que, em dado momento de execução,
pode haver maior ou menor necessidade de recursos. O acordo entre o
169
proponente selecionado e membros da equipe técnica do programa VAI é
estabelecido nos encontros com vistas à formalização da contratação.
Merece ser salientado que nessa fase a equipe técnica do VAI já
procedeu à divisão dos projetos selecionados para o acompanhamento.
Embora a divisão envolva certo caráter aleatório, procura-se levar em conta as
afinidades manifestadas pelos técnicos, em termos da linguagem dominante
presente nos projetos, como, por exemplo, na área da literatura, audiovisual,
teatro, etc, ou mesmo da região da cidade, aspectos que permitem melhor
qualidade no acompanhamento. Todavia, ocorrendo casos de proponentes que
mantêm relação de proximidade com algum membro da equipe, o fato é
imediatamente comunicado à coordenação, que atribui seu acompanhamento
por parte de técnico isento. A mesma dinâmica ocorre no interior da Comissão
de Avaliação de Propostas.
A liberação da primeira parcela, que dá o início às atividades, é
automática, geralmente no mês de maio de cada ano. As demais parcelas
ocorrem normalmente em julho e outubro, ainda que haja projetos com
repasses em meses diferentes. Com exceção da primeira parcela, as demais
são pagas somente após prestação de contas com o técnico responsável pelo
acompanhamento, devidamente aprovada pela Comissão de Avaliação de
Propostas.
A prestação de contas é etapa fundamental de todo o trabalho do
programa, instrumento fundamental de controle público de gastos. Por isso, a
equipe do programa promove, logo após a divulgação pública dos projetos
aprovados, a “Reunião de Prestação de Contas”, com a presença de todos os
170
proponentes visando esclarecer o modo como a prestação ocorrerá, além de
sanar dúvidas. Cada proponente recebe um exemplar do “Manual de Prestação
de Contas”, com todas as informações essenciais. Observa-se que essas
medidas, de caráter pedagógico, têm o objetivo de evitar problemas no tocante
ao gasto indevido dos recursos, casos em que o proponente deve ressarcir
com seus próprios recursos, ou do contrário torna-se inabilitado a contratar
com a administração pública por tempo determinado.
Mesmo diante das informações prestadas e do acompanhamento por
parte do técnico a cada ano, aproximadamente 10% dos projetos apresentam
problemas mais ou menos graves quanto à prestação de contas, ou mesmo em
relação ao correto desenvolvimento das atividades. Nos casos mais graves, as
contas são rejeitadas pela Comissão de Avaliação, e os recursos são
devolvidos aos cofres públicos.
Além da obrigação de demonstrar de forma cabal e clara a utilização
dos recursos recebidos na parcela anterior, o proponente, ou alguém do grupo
familiarizado com aspectos administrativos do projeto, deve apresentar
informações básicas sobre o seu desenvolvimento: adequação do cronograma
de trabalho, realização adequada das atividades propostas e relatório de
atividades. Além disso, durante a prestação de contas são exigidos
documentos comprobatórios de gastos: demonstrativo geral de gastos
organizados por itens de despesas, relação de notas fiscais, recibos e extratos
bancários.
Em comparação com a vivência proporcionada pelo projeto, o trato com
planilhas, notas fiscais, extratos bancários e relatórios de atividades, por parte
171
dos proponentes, nem sempre é muito tranquila. Enquanto para muitos grupos
a experiência é aprendizado essencial a uma futura profissionalização no
campo cultural, para outros, no entanto, o cumprimento das obrigações
burocráticas mostra-se quase insuportável, por causa da grandeza dos ideais
estéticos presentes no projeto.
É interessante verificar dentre os muitos projetos beneficiados pelo VAI
a existência de alguns tipos característicos de proponentes que revelam pelas
suas atitudes e visões de mundo elementos importantes da dinâmica cultural,
e de representações associadas ao fazer cultural. De um lado, é possível
constatar a presença de proponentes que mantêm relativo equilíbrio entre as
atividades-fim do projeto, por exemplo, determinada apresentação, oficinas de
teatro, capoeira, etc, e os seus meios, os procedimentos de comprovação de
execução do projeto e dos gastos realizados. Em geral são grupos que
apresentam documentação sempre bem organizada.
Contudo, para outros grupos, em número mais reduzido, há
desequilíbrio mais ou menos evidente entre os meios e os fins perseguidos, em
que os últimos mostram-se incomensuravelmente superiores aos primeiros.
Essa forma de conduzir o projeto pauta-se por uma atitude que envolve a ideia
de genialidade presente na atividade cultural desenvolvida. Em muitos casos, a
comunicação com a equipe técnica mostra-se difícil, e por vezes tensa, pois o
nível de liberdade invocada pelo jovem artista em seu processo de criação
suplanta, em sua visão, quaisquer formalidades de cunho “meramente
burocrático”. Já se pode imaginar o que isso representa quanto à necessidade
de adequação ao plano de trabalho. Há casos bastante emblemáticos de
172
proponentes que inesperadamente resolveram viajar para outro estado,
deixando todo o seu grupo em apuros, pois precisava “respirar outros ares”; ou
proponente que em nome de uma produção “genial” de audiovisual extrapolava
todos os prazos previstos de finalização, ou escritor que se ausentava de
vários encontros de prestação de contas, visivelmente contrariado com o fato
de que o programa era uma “obrigação do Estado”, e não deveria apresentar
“nenhum tipo de exigência”.
Ainda que esses casos sugiram a visão de uma arte descolada da
realidade, nada menos verdadeiro. Curiosamente, na quase totalidade dos
projetos os proponentes possuem considerável inserção social em movimentos
culturais existentes na periferia, exercendo expressivo papel de protagonismo
juvenil.
Cabe, por ora, compreender um pouco mais acerca do nível de
atendimento do programa. No GRÁFICO 3 se conhece a evolução no número
de projetos selecionados no período de 2004 a 2008, de pessoas físicas e
pessoas jurídicas.
Cabe, por ora, compreender um pouco mais acerca do nível de
atendimento realizado pelo programa. Através do GRÁFICO 3 pode-se
conhecer a evolução no número de projetos selecionados no período de 2004 a
2008, tanto de pessoas físicas quanto de pessoas jurídicas.
173
Fica patente acima o fato de o programa privilegiar os projetos
apresentados por coletivos de jovens na condição de pessoas físicas. Percebe-
se ainda que, enquanto o número de projetos contemplados de pessoas
jurídicas permanece constante ao longo do período, em média dez projetos a
cada ano, os projetos voltados a pessoas físicas apresentam trajetória
ascendente, passando de 65 projetos (em média), de 2004 a 2006, para 100
projetos em 2007, e 113 em 2008.
Já nos referimos a esta expansão como resultado da relativa
estabilidade alcançada pelo programa, passados os dois anos iniciais em que
ainda procurava se estruturar. Os dados expressos no gráfico parecem
confirmar o movimento.
Avançando na caracterização do público do programa, observa-se no
GRÁFICO 4 a distribuição dos proponentes segundo a faixa etária.
174
Como exposto, o VAI é política pública de cultura voltada à demanda
jovem, senão exclusivamente, mas principalmente orientada para esse
segmento etário. O problema reside possivelmente na interpretação dessa
palavra, incluída pelo legislador.
Constata-se no gráfico a concentração da demanda do programa
justamente na faixa etária de 18 a 29 anos. O processo, entretanto, não é linear
e parece ocorrer de forma gradativa ao longo dos últimos anos, o que sugere a
preocupação em concentrar-se de forma mais acentuada na faixa prevista em
lei.
O atendimento dessa faixa etária representa princípio basilar do
programa, mas no decorrer do processo de seleção é considerado à luz de
diversas outras variáveis citadas, como perfil socioeconômico, região de
moradia, além de peculiaridades do projeto, como clareza e originalidade,
175
estabelecidos no edital. Portanto, projetos de pessoas fora da idade
estabelecida, 18 a 29 anos, podem ser selecionados, ainda que em número
bem mais reduzido, desde que “compensem” este fator com outros elementos,
como projeto original ou grande alcance em relação à comunidade.
Ou seja, o projeto deve, nesses casos, apresentar características muito
peculiares quando comparado a projetos apresentados por jovens que se
enquadram na idade estabelecida. Na leitura do gráfico nota-se, por exemplo,
na faixa entre 30 e 34 anos, decréscimo notável no número de proponentes
selecionados, o mesmo ocorrendo, de forma mais intensa, naquele que não é o
público visado pelo programa, as pessoas com mais de 40 anos.
Trata-se obviamente de uma lacuna nas políticas públicas de cultura
que parecem não atender ao público mais velho, quando não confinando esse
segmento a “ações culturais” estereotipadas na forma de bailes da terceira
idade, cursos rápidos de artesanato, bordado, etc, não raramente com certo
viés assistencialista.
Seja como for, no dia a dia, a equipe técnica frequentemente tem
atendido número considerável de pessoas mais velhas e interessadas em
concorrer ao benefício do programa. Normalmente são informadas de que a
prioridade é dirigida ao público de 18 a 29 anos, o que desperta, não
raramente, forte sentimento de indignação.
Contudo, a situação não está isenta de frequentes ações exercidas por
essas pessoas na tentativa de suplantar o “funil” da idade. Há projetos em que
é possível identificar, por trás do proponente legal, “proponente oculto”, que diz
respeito, basicamente, à pessoa que, impossibilitada de participar do
176
programa, não somente em função da idade mais elevada, mas também em
razão de outros fatores impeditivos, como perfil profissional e já ter participado
duas vezes, faz inscrever pessoa mais jovem. Comumente conhecida, no
jargão popular, como “laranja”, sendo selecionada, passa a ocupar a posição
de proponente oficial.
Em face desses casos, os membros da equipe, especialmente a
coordenação, desenvolveram certo “olhar clínico” em relação aos projetos
inscritos e aos selecionados. Vários indícios são considerados e checados,
como uso de linguagem excessivamente acabada, pessoa sempre
acompanhada de outra mais velha, relação de proximidade com grupo já
contemplado, etc. É bem verdade que a formulação de um juízo por parte da
equipe técnica é sempre difícil e envolve não somente um indício, mas o
cruzamento de várias informações, elemento essencial para que a Comissão
de Avaliação de Propostas tome uma decisão.
Juntamente com a equipe técnica, a Comissão desempenha papel
crucial no funcionamento do programa, conferindo-lhe caráter democrático nas
deliberações sobre os projetos beneficiados.
Outro elemento significativo do programa VAI refere-se às possibilidades
de participação em mais de uma edição. O art. 8º da lei de criação do
programa prevê que a seleção de um projeto só é admitida por duas edições
do programa, “consecutivas ou não”. Noutros termos, nenhum proponente pode
concorrer ao benefício do programa por mais de duas vezes.32
32 “Art. 8º - O valor destinado a cada proposta será de até R$ 15.000,00 (quinze mil reais), corrigidos pelo IPCA ou índice que o vier a substituir, podendo haver nova solicitação,
177
Descortina-se princípio republicano que rege essa orientação, a saber, a
rotatividade no acesso ao programa. Do contrário, poderia tornar-se refém de
grupos que se beneficiaram indefinidamente, em prejuízo de novos grupos e
projetos, sobretudo das áreas da cidade pouco contempladas.
De qualquer modo, em face da existência de poucas oportunidades para
que os coletivos deem prosseguimento as suas atividades, há sempre número
significativo de pessoas já contempladas e que tentam participar pela terceira
vez, frequentemente compondo a ficha técnica de um novo projeto.
Normalmente a equipe técnica do programa procura informar os membros da
Comissão acerca desses casos, cabendo a ela a decisão final.
Contudo, mais do que um trabalho de sistematização de dados, a
equipe (e, sobretudo, os técnicos mais antigos) foi formando uma memória
coletiva acerca desses casos, memória continuamente acionada em conversas
e reuniões.
Revela-se aqui característica marcante, e comumente lembrada por
vários coletivos juvenis e que diz respeito ao vínculo pessoal que acaba se
estabelecendo entre estes e a equipe técnica, vínculo formado no cotidiano de
visitas a projetos, prestação de contas e encontros de avaliação. Basta que um
observador externo passe algumas horas na sala onde está instalada a equipe
técnica do programa, na Galeria Olido, centro da cidade, para notar o
burburinho de grupos que passam por lá pelos mais diversos motivos, às vezes
somente para conversar. Nasce daí, em certa medida, a popularidade auferida
pelo programa junto a vários segmentos juvenis de São Paulo.
consecutiva ou não, por apenas uma vez, de acordo com avaliação realizada pela Comissão de Avaliação”.
178
A ideia, implícita na lei, é a de que, como política pública de fomento,
cabe ao programa estimular que ex-participantes busquem novas formas de
inserção no cenário cultural, a partir da bagagem adquirida. É bastante comum
a fala de vários ex-participantes do programa de que “o VAI abriu as portas
para outras ações”. Todavia, há de se reconhecer as enormes dificuldades que
os grupos enfrentam para se inserir em novas políticas públicas em linha de
continuidade com o programa VAI.
Em relação ao nível de renovação de projetos, ou mais especificamente,
da proporção de projetos selecionados pela segunda vez, vale observar o
GRÁFICO 5. Constata-se que, entre 2004 e 2008, houve a média de 21% de
projetos renovados.
A renovação é oportunidade significativa para que os projetos que já
possuíram ótima avaliação em dada edição sejam novamente selecionados em
edição seguinte, consolidando-se como coletivo ou reforçando a ação cultural
em determinada região. Avaliação mais ampla do projeto formulada pelo
técnico supervisor é repassada para a Comissão de Avaliação de Propostas,
como elemento capaz de subsidiar a análise.
179
Na classificação das políticas culturais proposta por Teixeira Coelho, o
programa VAI poderia ser incluído no rol das “políticas relativas à cultura alheia
ao mercado cultural” haja vista o interesse praticamente inexistente do
mercado em apoiar tais ações, ao contrário, por exemplo, do que ocorre com
projetos beneficiados pelas leis de incentivo fiscal, cuja seleção é realizada
dentro dos departamentos de marketing cultural das empresas. Nas palavras
do autor, políticas públicas como Programa VAI:
Dizem respeito aos modos culturais que não se propõem em princípio entrar no circuito do mercado cultural tal como este é habitualmente caracterizado. São modos culturais, em outras palavras, não lubrificados pelo interesse econômico tanto na sua produção material quanto nos seus objetivos ou na recompensa de seus criadores. Grupos folclóricos, de cultura popular, de amadores (grifo nosso) constituem objeto por excelência destas políticas, que compreendem ainda os programas voltados para a defesa, conservação e difusão do patrimônio histórico. (Coelho, 2004, p. 297)
Como frisa o autor, as bases de formação desse campo cultural,
especialmente quando se pensa no campo da cultura erudita - o que exige o
domínio de linguagem cuja decodificação e fruição são bastante restritas –,
estão assentadas nas possibilidades de acesso à boa educação, entre outros
180
fatores, como o histórico familiar. Mas no contexto desta reflexão, o modelo
proposto por Bourdieu mereceria reparos quando pensados no contexto denso
das práticas culturais das metrópoles brasileiras.
No caso em estudo, menos do que a busca por “consagração”, o que os
milhares de jovens, e jovens adultos, que são a demanda do programa VAI,
buscam prioritariamente nas políticas públicas de cultura instâncias de
“legitimação” e “reconhecimento” de suas práticas culturais. Isso não elimina o
fato de que muitos jovens ao longo de sua trajetória possam integrar o setor
cultural passando a ser avaliadas por críticos especializados em determinada
manifestação cultural Como exemplo podem ser citados: os jovens grafiteiros
que alçam posição de destaque no universo das artes plásticas, DJs que
alcançam renome nacional, ou escritores da “literatura marginal” que atingem
sucesso na vendagem de livros, como “Capão Pecado”, de Ferréz, de 2005.
Deve-se assinalar que as políticas públicas que implicam linhas de
continuidade com o programa, são relativamente reduzidas.33 Destacando-se
políticas culturais que surgiram em anos mais recentes: o Programa de Ação
Cultural - PROAC34, mantido pelo governo do Estado de São Paulo, e o
33 Há discussão interessante no Departamento de Expansão Cultural a respeito de ações culturais que, de alguma forma, representassem um pós-VAI. Tal discussão está relacionada, ao que parece, à preocupação de que os jovens participantes do programa em duas ocasiões possam contar com políticas culturais complementares e que conduzam a uma situação de autonomia. 34 PROAC – Programa de Ação Cultural (antigo PAC), criado em 2006 pelo governo do Estado de São Paulo, pela lei 12.268 durante a gestão do governador Geraldo Alckmin, do PSDB. Trata-se de política bastante utilizada por vários grupos que já passaram pelo VAI e que beneficia pessoas físicas e jurídicas. A diferença reside no fato de que enquanto no VAI os projetos abarcam as mais diferentes áreas, no caso do Proac as linguagens culturais são previamente determinadas e com editais específicos lançados ao longo do ano. Outra diferença refere-se à própria concepção do Proac, que atende em duas modalidades distintas: com recursos orçamentários próprios da Secretaria Estadual e Cultura, e de recursos oriundos de isenção fiscal.
181
Programa Cultura Viva35 mantido, em associação com vários Estados e
municípios, pelo Ministério da Cultura. Curiosamente, ambas políticas criadas
nos últimos cinco anos e com propostas que se aproximam sobremaneira do
VAI.
Ainda dentro das alternativas ao programa, a equipe técnica e a direção
do DEC cogitam há vários anos a criação de ações “pós-VAI”, para oferecer
alternativas a jovens que já passaram por duas edições do programa e se
veem no dilema do que se poderia caracterizar como “avançar ou recuar”.
Em 2007 foi criado, no âmbito da própria SMC, mais especificamente do
Centro Cultural da Juventude (CCJ), a ação cultural denominada “Primeiras
Obras”. É um fundo para o copatrocínio de primeiras obras, destinado aos
profissionais iniciantes. Trata-se de ação ainda incipiente, e com escopo
reduzido, mas que pode ser ampliado no futuro. Em 2008 foram contemplados
somente seis projetos, em diferentes linguagens, como fotografia, criação de
sites, teatro, performances, instalações.
35 Programa Cultura Viva - Pontos de Cultura, criado em 2004 pelo Ministério de Cultura. É uma das principais bandeiras do governo Luiz Inácio Lula da Silva na área cultural para democratizar o acesso à cultura no País, em ação que busca opor-se à política cultural ainda dominante, centrada na lei Rouanet de incentivo fiscal. Em comum com o programa VAI e o PROAC, esse programa atua por meio de editais. Entretanto, o foco está direcionado à valorização das diversas manifestações culturais já existentes na sociedade civil, potencializando-as. No sítio do MinC é possível ler acerca do programa: “O programa estimula a criatividade, potencializando desejos e criando um ambiente propício ao resgate da cidadania pelo reconhecimento da importância da cultura produzida em cada localidade. O efeito desejado é o envolvimento intelectual e afetivo da comunidade, criando uma mágica motivadora na qual os cidadãos sentem-se, cada vez mais, estimulados a criar e participar. Nesse contexto, o papel da coordenação do programa é o de fomentar o processo de reinterpretação cultural, estimulando a aproximação entre diferentes formas de representação artística e visões de mundo”.
182
Outra característica distintiva do programa refere-se à atuação com
pessoas iniciantes no universo da produção cultural, notadamente com atuação
comunitária, na forma de iniciativas como bibliotecas, fanzines, grafitagem,
eventos musicais. Daí a ideia da “valorização de iniciativas culturais”, em
oposição a grupos estruturados, profissionais ou semiprofissionais.
Quando do surgimento do programa, a particularidade representava
característica bastante relevante, pois os programas culturais existentes na
SMC tradicionalmente beneficiavam, com exceções, grupos de alguma forma
estruturados, e, não raro, perfil profissional, na forma de pessoa jurídica36. O
que representava, (e na verdade, ainda representa), enorme empecilho à livre
participação de todos os jovens interessados em produzir cultura, pois se
burocratizava demasiadamente o acesso dos interessados, com exigências de
toda ordem, limitando a participação nos poucos editais disponíveis.
Novamente, a exemplo da questão da idade, as dificuldades enfrentadas
pelo programa são evidentes, em razão de que, por vezes, é extremamente
difícil distinguir uma ação cultural, proposta por iniciantes, de outra com
avanços maiores em termos de acúmulo de experiências, muito embora a
leitura de currículos e fichas técnicas do proponente e demais integrantes
forneça indicadores importantes, como, por exemplo, participação em
companhias de teatro e grupos de pesquisa estética em universidades.
36 A correlação entre uma atuação considerada profissional e formas de organização mais estruturadas por meio, por exemplo, da constituição de entidade com personalidade jurídica pode ser verificada no discurso de diversos grupos que participam – ou participaram - do Programa VAI, mas também de outros programas públicos, que, muito frequentemente, trazem tal exigência em seus editais. Todavia, noutros casos, a opção pela modalidade de pessoa física deriva do próprio crescimento e visibilidade das ações de determinado grupo ou coletivo, implicando segmentação interna inevitável entre a “área artística” e a “área burocrática”, inerente aos encargos e obrigações burocráticas que aquela nova condição inevitavelmente encerra. Trata-se, contudo, de barreira que nem todos os grupos mostram-se aptos a superar.
183
De qualquer modo, é linha divisória bastante tênue, comumente rompida
no âmbito do programa em razão da avaliação de todo o projeto, e que
considera inúmeras outras variáveis. Vale lembrar que a Comissão de
Avaliação de Propostas é soberana em sua avaliação, não cabendo ingerência
por parte da equipe técnica do VAI. Ainda assim, exemplo bastante ilustrativo
dessa zona cinzenta entre “iniciantes e profissionais” diz respeito à seleção de
coletivos de teatro com sofisticadas propostas de pesquisa teatral e que, ao
final do projeto, acabam sendo contemplados pelo programa Fomento ao
Teatro, voltado a grupos profissionais.
Fica assim a indagação de como compatibilizar a busca pela inclusão
cultural a uma visão mais aberta e menos sectária em relação às pessoas e
aos grupos que produzem cultura na cidade e que batem à porta do programa.
Talvez a questão pudesse ser encaminhada através da ampliação de políticas
culturais que oferecessem “cardápio variado” de oportunidades de acesso,
políticas capazes de abarcar múltiplos perfis de pessoas.
Ainda a respeito dos empecilhos burocráticos como obstáculos à plena
realização dos direitos culturais, e para minimizar tais situações, a lei de
criação do programa é taxativa, enunciando em seu art. 7º: “A inscrição para o
Programa VAI deve ser feita de forma simplificada, em locais de fácil acesso e
em todas as regiões do município”.
Nota-se dificuldade evidente: especialmente no caso do segmento
visado pela lei, a saber, jovens de baixa renda e moradores da periferia da
cidade - segmento social e culturalmente vulnerável -, a questão adquire
especial relevância, pois indiretamente são exigidas condições à participação
184
no programa, que normalmente envolvem o domínio de informações,
qualificação escolar mínima, tempo disponível. Condições nem sempre
presentes na vida de jovens que, mesmo em busca de lazer e cultura, se veem
premidos pela rotina de longas jornadas de trabalho. Deve-se reforçar que os
beneficiários do programa são, antes de tudo, jovens trabalhadores, e que, nas
condições que lhes são permitidas, desenvolvem projetos culturais em geral
nos fins de semana e no período noturno, durante a semana.
O esforço de simplificar o processo de inscrição e contratação dos
projetos selecionados enfrenta os limites impostos pela própria organização da
administração pública, pautada por normas rígidas (ato administrativo,
Constituição Federal), características do Estado de Direito. Mas para aqueles
que lutam contra todo tipo de dificuldade no cotidiano urbano exigências
burocráticas “mínimas” que sejam representam desgaste inimaginável.
Considere-se, a respeito, o caso emblemático do proponente de um projeto de
hip-hop no extremo sul da cidade, motoboy, que, na fase de contratação do
projeto, enfrentou graves dificuldades para conseguir comprovar a residência
por dois anos na cidade. A situação explicitou uma realidade marcada pela
ausência de endereço fixo, recibos precários de aluguel, locais de moradia em
que o correio não chegava e áreas de ocupação. Por fim, no limite do prazo
estabelecido, a dificuldade foi sanada. No entanto, o estresse e as viagens
para o centro foram estafantes e dispendiosas.
Outros casos, na mesma linha, envolvem dificuldades para a abertura
de conta corrente por parte do proponente. Em mais de uma ocasião a equipe
do programa foi obrigada a telefonar para determinada agência bancária que
185
impunha exigências desnecessárias ou simplesmente se recusava a abrir conta
para os jovens proponentes, mesmo mediante carta emitida pela própria
coordenação do programa. Eram comuns relatos de gerentes incrédulos em
relação a jovens da periferia “fazendo cultura”, “recebendo recursos públicos”.
Nos casos mais extremos, sob risco de perda de prazo, o proponente era
orientado a abrir a conta em determinada agência bancária, que mantinha
relação mais estreita com a equipe do programa.
Esses casos, de pessoas que são “perfil total do VAI”, para usar
expressão cunhada na equipe técnica, sinalizam ainda para os obstáculos no
atendimento a jovens excluídos do acesso à cultura, mas não somente da
cultura, como também educação, transporte e emprego formal. Em que medida
o programa VAI atende efetivamente a esse direito é questão primordial a ser
respondida, que diz respeito à eficácia do programa em garantir a inclusão
cultural dos jovens paulistanos de baixa renda. Talvez a análise da variável
escolaridade ofereça pistas.
No GRÁFICO 6 observa-se a distribuição dos dados relativos à
escolaridade dos proponentes de projetos desenvolvidos no programa.
Constata-se que entre 2004 e 2008 há forte incidência de pessoas com ensino
médio completo e superior completo, respectivamente com 33,5% e 15,3% do
total de casos, em oposição aos baixos percentuais de pessoas com ensino
fundamental. Mesmo sem formação superior completa, destaca-se o número
de proponentes que apresentam significativo trânsito no ensino superior: 29,1%
dentre eles cursando, e 10,6% com formação superior incompleta. Além do
186
número dos que apresentam formação em nível de pós-graduação - cerca de
6% do total -, dentre os quais 3,2% com estudos já concluídos.
A maioria dos jovens concentra-se no ensino médio e superior, o que
remete a questões importantes. Percebe-se que o público em tela apresenta
considerável vivência no sistema de ensino, notadamente público, o que
supostamente deve ser elemento facilitador no que tange ao interesse em torno
de atividades culturais.
Seria prematuro sugerir que a instituição escolar, no caso específico dos
ensinos fundamental e médio, represente fonte de estímulo às atividades
culturais, sobretudo nas áreas periféricas das grandes cidades, marcada por
realidade escolar caótica. Predomina, com exceções que apenas confirmam a
regra, o distanciamento entre o que é entendido como “cultura” e o que é visto
como “educação”. Quando muito, a primeira se expressa em visitas episódicas
187
ao teatro, jardim zoológico, promoção de festas juninas, aulas de educação
artística, restando difícil crer que nesse contexto a imaginação e a criatividade
encontrem meios adequados de expressão.
A experiência do contato permanente com os jovens beneficiados pelo
Programa VAI parece indicar outro caminho: o despertar para o interesse em
torno do consumo, e, sobretudo, do fazer cultural, percorre itinerários que
infelizmente não passam pela escola, mas pela pulsante vida comunitária,
notadamente de organizações não governamentais, de coletivos de expressão
local, associações de moradores, grupos de amigos, equipamentos culturais.
Ou seja, ocorre num ambiente em que o conhecimento e a cultura brotam de
experiência única, indissociável, vital, mais próxima da realidade vivida pelo
jovem, no qual ele se identifica e se reconhece.
Entretanto, se a iniciação cultural conduz a novos desafios, desafios
estes pautados pela curiosidade, autoconhecimento e busca de autonomia é
provável que o conhecimento formal adquirido na escola, assim como as
experiências anteriores sejam, de certa forma, reinterpretados, ganhando nova
dimensão.
De outro lado, o maior nível de escolaridade associado à busca por
inserção profissional – num período em que a demanda por mão de obra
qualificada é crescente –, apareça como elemento explicativo do considerável
número de jovens proponentes do programa com formação superior, completa
ou não. A dinâmica nessa modalidade de ensino, como é de se supor, obedece
a outra lógica quando comparada ao ensino médio e fundamental. Ainda que
especializados por áreas de conhecimento, os cursos propiciam aos
188
estudantes condições relativamente maiores de expressão, exercício de
autonomia e senso crítico.
Acrescente-se a isso a considerável expansão no ensino superior,
público e privado, ocorrida no país desde meados dos anos 90, especialmente
a partir de políticas públicas mais recentes, como o Programa Universidade
para Todos (Prouni), do governo federal, e iniciativas da sociedade civil, como
os cursos do Educafro – Educação e Cidadania de Afro-descendentes e
Carentes, rede de cursinhos pré-vestibulares comunitários - entre outras
organizações não governamentais, dirigidos ao acesso de jovens de baixa
renda às universidades.
Cabe indicar a importância da vinculação entre projeto cultural e
universidade, notadamente quando os cursos desenvolvidos dizem respeito à
área das ciências humanas ou mesmo de artes. Nesses casos, o próprio curso
escolhido, por exemplo, Ciências Sociais, História, Comunicação, Artes e
outros, reforça a busca orientada por práticas culturais anteriores. Ou ocorre o
contrário: o ambiente acadêmico passa a aguçar o interesse por temáticas
vinculadas à cultura brasileira ou à cultura popular, para citar projetos com
presença marcante no âmbito do programa. Interessante constatar que, nesses
casos, os projetos originam-se de certa concepção social, política, estética, não
raro de cunho transformador, compartilhada por determinado coletivo de
pessoas, podendo expandir-se para fora da comunidade acadêmica como
189
demonstrado por vários grupos juvenis beneficiados, com resultados
variados.37
Tem-se a impressão assim que o programa atinge, entre os segmentos
juvenis de baixa renda, aqueles que já possuem significativa vivência escolar,
com parcelas consideráveis de jovens com curso de nível superior, (e pós-
graduação) o que não deixa de representar recorte importante em comparação
com adolescentes e jovens de baixa renda que se evadem prematuramente
das salas de aula, em geral, em busca de trabalho.
A escolaridade aparece como um elemento delimitador nas condições
de acesso ao programa em especial quando se considera a necessidade do
domínio da linguagem na elaboração dos projetos escritos e submetidos à
avaliação do programa. Isso conduz à reflexão de alguns dos limites na
atuação do VAI e ao desafio de ampliar as possibilidades de participação de
jovens com menores oportunidades educacionais.
Em termos de abrangência, o VAI age no sentido de estimular amplo
espectro de propostas culturais. Anote-se, a esse respeito, o que diz o art. 4º
da lei de criação do programa, que este constitui política de fomento e estímulo
à atividade cultural na cidade, “vinculada a diversas linguagens artísticas,
consagradas ou não, relativas à arte, humanidades ou a temas relevantes para
37 Porém, nem sempre o encontro entre jovens universitários, com propostas “teoricamente claras”, e aqueles jovens com histórico de práticas culturais imersas na dinâmica concreta da cidade, dá bons resultados. Há pelo menos uma experiência emblemática no programa VAI, na qual um coletivo desse tipo, malgrado algumas tentativas de mediação realizada pela equipe técnica, não conseguiu sobreviver a cisões de toda ordem. Há, todavia, outras experiências em que o caráter “extremamente elaborado” do projeto apresentado, por vezes, no confronto com a realidade, sofre mudanças profundas. São casos em que se verifica, infelizmente, abissal distanciamento entre o universo acadêmico e o terreno vívido das relações sociais.
190
o desenvolvimento cultural e formação para a cidadania cultural no município”
(art. 4º).
Mostra-se claramente, pelo conceito de cidadania cultural, a intenção do
legislador, dentro dos limites de um programa público, de romper certo
confinamento da atividade artístico-cultural, ampliando (ou, mais corretamente,
restituindo) o potencial criativo a maior número de pessoas, e não somente a
determinada elite cultural.
Há outro aspecto fundamental: a tentativa de quebra dos monopólios da
criação e do fazer cultural. O pressuposto básico é o de que a arte, a
imaginação e a paixão pelo autoconhecimento, implícitos na atividade cultural,
não têm dono e nem preço, abrindo-se a todos aqueles que o buscam. Abre-se
por essa via a possibilidade concreta de desenvolvimento social e político não
só de uma cidade, mas do país, fato tão pouco considerado pelo sistema
político que, em geral, privilegia temas relacionados à economia.
Colocada nesses termos, a crítica não está dirigida evidentemente aos
representantes do setor cultural, formado por artistas, intelectuais, produtores,
o que configuraria situação de obscurantismo, mas ao próprio processo que
limita as possibilidades não somente de acesso, mas de participação no
processo de criação cultural. Nesse aspecto, frequentemente os cidadãos
comuns veem-se prensados entre a banalização dos conteúdos veiculados
pela indústria cultural ad infinitum e o acesso restrito a vários circuitos culturais,
não somente pela falta do acesso em si, mas pela falta das condições mais
amplas em que este ocorre.
191
No GRÁFICO 7 tem-se a distribuição dos projetos contemplados pelo
programa VAI com base da linguagem artística predominante. É importante
dizer que essa categorização envolve sempre elementos arbitrários, pois nem
sempre é possível identificar facilmente, em maio a várias referências
artísticas, aquela dominante. De qualquer modo, para os casos de maior
indefinição utilizar-se-á a categoria “artes integradas”.
Na leitura do gráfico constata-se o predomínio do teatro como linguagem
artística dominante. Há aspectos importantes a serem mencionados. O primeiro
diz respeito à tradição do teatro amador em São Paulo, associado ao fato de
que se trata de manifestação que exige, a princípio, poucos recursos,
ocorrendo geralmente em espaços como garagens e galpões, improvisados
como espaços cênicos.
192
Deve-se lembrar que o teatro é favorecido pela atuação do Programa
Teatro Vocacional, em relativa articulação com o VAI, conforme mencionado.
Na sequência aparecem as “artes integradas”, projetos que utilizam várias
linguagens e de difícil categorização. Talvez o exemplo mais paradigmático
seja o de projetos que desenvolvem oficinas variadas, com capoeira e música,
ou ainda propostas que fundem literatura e teatro.
Logo em seguida há a linguagem de audiovisual. Ao contrário do teatro,
essa linguagem exige muitos equipamentos e recursos técnicos relativamente
sofisticados. Ainda assim o número de projetos é significativo, e vem
aumentando consideravelmente, dada a ampliação do acesso a equipamentos
em função do barateamento, aliada à multiplicação de cursos promovidos por
ONGs que desenvolvem ações na área cultural, como a Ação Educativa, ou
mesmo no âmbito da SMC, pela atuação do Centro Cultural da Juventude, ou
mesmo o Centro Cultural São Paulo. É a linguagem que mais conseguiu
agregar coletivos beneficiados pela VAI. Assim, em 2009 nasce um movimento
de grupos ligados à cena do audiovisual paulistano, denominado Vídeo
Popular. Interessante conhecer a proposta e sua perspectiva comunitária de
cultura:
O Coletivo reúne cerca de 20 grupos. São produtores, formadores, exibidores e distribuidores que, de maneira colaborativa, buscam constituir uma rede de comunicação, fortalecendo a integração entre os grupos já atuantes e levantando o debate sobre as políticas públicas da área. (...) De acordo com (Evandro) Santos, o Coletivo é um grande grupo de trocas, de ajuda mútua. “Por exemplo, um grupo precisa de um projetor. Quem tem, pode emprestar. A reunião é um momento de discussão, desenvolvimento e troca. Cada um tem sua base, a sua comunidade. O que procuramos é fortalecer o trabalho dos coletivos que fazem parte desse Coletivo maior”, destaca. (Projeto Aprendiz, 2009)
193
Finalmente, embora as linguagens artístico-culturais e propostas de
trabalho adotadas pelos grupos atendidos pelo programa expressem ampla
diversidade cultural existente na cidade, comumente indaga-se acerca da
necessidade de ampliação do leque de propostas e linguagens pouco
exploradas ou mesmo “ausentes”, como o funk. Linguagem dotada de curiosa
“invisibilidade”, que necessitaria ser investigada mais atentamente, apesar da
existência de inúmeros relatos de bailes que se multiplicam pela periferia. E
ainda projetos mais acentuadamente vinculados a segmentos sociais
específicos, como transexuais, moradores de rua e migrantes ilegais.
O GRÁFICO 8 apresenta a distribuição dos projetos do VAI segundo as
macrorregiões de origem. Constata-se que as principais macrorregiões
beneficiadas pelo programa são as zonas Sul e Leste. Nas primeiras edições
do programa se verificava relativa homogeneidade entre as regiões, fato que foi
se alterando a partir da edição de 2006, quando as macrorregiões da zona Sul
e, sobretudo a Leste, despontam, em comparação as demais regiões.
Entretanto, o grande “salto” de projetos nessas regiões dá-se em 2007 e
2008, sobretudo na zona Sul. Em termos mais gerais, estas regiões são
bastante extensas e abarcam juntas porções consideráveis das áreas
periféricas da cidade, e, portanto seria natural que se sobressaíssem num
programa direcionado para jovens de baixa renda.
194
O fato de que isso tenha ocorrido de forma mais acentuada em anos
recentes remete a dois fatores: conhecimento mais amplo sobre o programa
VAI e maior capacidade de atendimento; e, como segundo fator, a maior
capacidade de organização e mobilização coletiva dos jovens e de
organizações sociais que atuam com a juventude a políticas culturais.
Basta citar, no caso da zona Sul, a existência de espaços comunitários
de cultura bastante emblemáticos, como os “Saraus do Bar do Binho”, no
Campo Limpo, e os “Saraus de Coperifa”, no Bar do Zé Batidão, na região do
Jardim São Luís. Na zona Leste o Sarau, Poesia na Brasa, entre outros. Na
sequência aparece a macrozona Norte, que também cresceu de forma
acentuada, em boa medida a partir de coletivos que passaram a receber o
incentivo do Centro Cultural da Juventude, na região de Vila Nova
Cachoeirinha.
195
Por fim, ainda que o programa VAI represente um caso bastante
emblemático de política pública de cultura que propicia condições interessantes
de acesso a segmentos jovens tradicionalmente excluídos da produção cultural
paulistana, é forçoso reconhecer alguns de seus possíveis limites.
Questão primordial refere-se à sua condição de política pública, se
governamental ou de Estado, diferenciação fundamental quando se pensa em
seu alcance e sua efetividade em termos de longo prazo. A questão, comum no
Brasil em várias outras políticas setoriais, reveste-se de considerável
importância, pois o Brasil possui tradição de políticas públicas fragmentadas,
paliativas e, não raramente, que mudam ao sabor dos diferentes governos, nas
esferas federal, estadual e municipal. Apenas muito recentemente o Ministério
da Cultura passou a buscar formas de articulação entre os serviços culturais a
partir da implantação em curso do Sistema Nacional de Cultura, e de um Plano
Nacional de Cultura, como visto no Capítulo 2.
Ainda que o programa VAI represente uma política com ampla
legitimidade junto aos jovens paulistanos e mesmo junto à burocracia da
Secretaria Municipal de Cultura, e esteja alicerçado numa lei - o que impede
tentativas de mudanças por parte das diferentes administrações municipais -, é
preciso reconhecer limitações para assentá-la em bases mais sólidas em
termos de política de Estado.
Como exemplos, os constantes cortes nos recursos disponíveis à cultura
ou pressões nessa direção, exercidas por distintos setores dos governos
municipais. Experiência recente mostrou que o programa VAI acaba sendo
sempre área sensível, dado seu orçamento, já bastante reduzido, em relação a
196
todo o orçamento da Secretaria Municipal de Cultura. Outro elemento refere-se
à composição de seu quadro de funcionários. Apesar de possuir um quadro
relativamente adequado e ainda bastante qualificado (três funcionários com
formação acadêmica em nível de mestrado), o processo de sua constituição
deve-se mais a fatores conjunturais e relacionados à gestão interna do
Departamento de Expansão Cultural - DEC do que propriamente a uma ação
política deliberada em relação ao fortalecimento institucional do programa. É
preciso, no entanto, registrar, que essa é uma deficiência comum a vários
programas públicos. Ainda assim seus efeitos sobre as políticas culturais são
perversos comprometendo a contratação de profissionais, cancelamento de
eventos, cursos, etc.
Há, entretanto, outro fator que dificulta tomar o VAI como política de
Estado. Ele se refere ao fato de que no âmbito da Secretaria Municipal de
Cultura praticamente não há setor técnico relacionado ao planejamento das
ações da Secretaria, sobretudo na criação de indicadores quantitativos e
qualitativos de avaliação e acompanhamento. E falar em setor técnico implica
supor certa autonomia em relação aos gestores públicos, expressa nos postos
de comando como coordenação e chefias de equipe. Por exemplo, é bastante
difícil apontar, a partir de critérios estritamente objetivos, a defasagem de
pessoal no programa, o alcance das ações culturais, as possibilidades de
incremento em seu atendimento, questões ligadas ao orçamento, demanda por
serviços entre outras informações vitais na orientação das políticas culturais.
Na mesma linha, há ausência de formação continuada dos profissionais
envolvidos na área cultural, elemento que restringe sobremaneira o
197
aperfeiçoamento das políticas culturais, profissionalizando os funcionários do
setor.
Por fim, mas não menos importante, é preciso avançar na reflexão
relacionada à abrangência do programa, pois ele, como assinalado, realiza
recorte bastante claro em relação ao público visado: jovens de 18 a 29 anos de
baixa renda e moradores de áreas periféricas. Ainda que seja bastante
compreensível tal orientação, em face de uma realidade cultural que concentra
demasiadamente o acesso a bens culturais não somente em São Paulo, mas
no país de maneira geral, é preciso reconhecer no programa VAI uma política
pública compensatória, em oposição a políticas de acesso universal.
Esta deficiência, no entanto, somente pode ser plenamente sanada com
políticas mais amplas que deem conta não somente da desigualdade no
acesso à cultura, mas também da sua diversidade, o que só é possível com
políticas estruturantes e globais, que superem a fragmentação de programas e
serviços. Uma política cultural efetivamente inclusiva não deve pautar-se
somente em programas e serviços, mas no impacto qualitativo e dinamizador
exercido sobre o conjunto da sociedade. Ainda que essas políticas cumpram -
e de fato cumprem - papel importantíssimo no concerto das políticas públicas, é
fundamental que se amplie o seu escopo, sobretudo no que tange ao
atendimento das mais diversas formas possíveis de manifestação cultural.
Essas problemáticas conduzem a um ponto-chave: políticas públicas de
Estado, de acesso universal, exigem, para a sua concretização, a adoção de
um sistema participativo de gestão, sob o risco de emanarem de “doutos” e
“ilustrados”. Trata-se da construção de um canal permanente de discussão com
198
os mais diferentes setores da sociedade civil (inclusive não organizados), e não
somente os segmentos culturais mais organizados e que praticam a política do
“balcão de negócios”, em sua incessante busca por verbas públicas.
No caso do programa VAI, a criação de canais desse tipo teria enorme
significado em termos do aperfeiçoamento do programa, ainda que sob a forma
de propostas de revisão da lei em vários de seus itens. Encontros de avaliação
com os grupos revelam-se insuficientes, pelo fato de abarcarem somente
grupos atendidos pelo programa e não uma demanda potencial não atendida.
Aliás, tão importante quanto conhecer os públicos atendidos pelo VAI são as
estratégias para conhecimento dos públicos que não conseguem atender às
exigências para participação no programa. A realização de reuniões
promovidas pelo programa com proponentes de projetos não aprovados e com
a presença de representantes da Comissão de Avaliação de Propostas pode
parecer uma ação pedagógica neste sentido.
Ainda em termos da ampliação da participação no desenho das políticas
culturais, a criação de um Conselho Municipal de Cultura teria papel importante
no preenchimento de uma lacuna no programa VAI: a indicação de
representantes da sociedade civil no Conselho de Avaliação de Propostas do
programa.
Ainda nesse aspecto, o do aperfeiçoamento, é imprescindível ressaltar
duas outras questões. A primeira refere-se ao fato de que, apesar de privilegiar
jovens da periferia de São Paulo, a estrutura do programa se situa no centro da
cidade, na Galeria Olido. Especialmente se levarmos em conta que esse
público também se caracteriza por sua condição de trabalho, pode-se ter uma
199
noção da dificuldade em comparecer ao programa nos momentos de prestação
de contas, por exemplo. O problema tem sido solucionado pela equipe em
arranjos quanto ao agendamento de reuniões, embora exigisse resposta de
caráter mais estrutural, pois o perfil dos funcionários pode sofrer modificações
no futuro. A descentralização do programa, atendendo jovens oriundos das
várias regiões da cidade melhoraria esta relação, proposta que mereceria
estudos mais profundos.
A segunda questão se relaciona à diversidade de públicos atingidos pelo
programa e representados por muitas linguagens, todas tratadas de forma
relativamente homogênea. Basta verificar o caso de projetos na área de
audiovisual. Frequentemente têm custos elevados de equipamentos, com
duração que tende a superar os oito meses, como demonstram vários projetos
desenvolvidos. Em artigo na Revista Vídeo Popular – movimento que agrega
vários grupos ou ex-grupos de audiovisual beneficiados pelo programa - Wilq
Vicente assim se refere ao VAI:
“O VAI ainda disponibiliza pouca verba, além disso, outros editais apresentam barreiras para participação dos Coletivos alternativos, entre essas barreiras está à exigência do CNPJ.” (....) “Os coletivos de Vídeo Popular demandam verbas e editais específicos para pessoas físicas”.
Trata-se por certo de um problema que talvez futuramente seja resolvido
com a publicação de editais específicos que atendam a necessidades
igualmente específicas, estratégia seguida pelo Programa de Ação Cultural –
PROAC, do governo de São Paulo.
São, enfim, questões que remetem à incompletude das políticas
públicas, e passíveis de serem equacionadas somente com a ampliação dos
200
canais de participação capazes de envolver os públicos mais diretos do
programa. Nas palavras de um ex-beneficiário do programa:
“O VAI atinge, contempla, ele agracia as pessoas da periferia, de gente que está produzindo aqui e que tem um olhar pra cá também, e isso é legal, porque as pessoas acabam fazendo circular a produção digamos assim, de você se situar e saber que estão acontecendo coisas (...) é um projeto que tem assim, que pelo menos que eu sei de São Paulo, que chega com pouca verba... que não é uma verba absurda... é tipo 15 mil, 18 mil, por aí... E que acaba congregando às vezes várias pessoas trabalhando com um mínimo de dinheiro, mas várias pessoas se envolvendo naquilo”.38
Trata-se de um testemunho que reflete bem o alcance e os efeitos
produzidos pelo programa VAI na vida de milhares de jovens na cidade. Resta
analisar um pouco melhor essas experiências, objeto a ser investigado no
último capítulo.
38 Entrevista realizada com em 22/10/2008.
201
Capítulo 4
4. Experiências de projetos contemplados pelo Progr ama
4.1. Projetos culturais e redes juvenis de cultura em São P aulo
Sarau do bar do Binho. Parque Santo Antonio, região de Campo Limpo,
zona Sul da cidade de São Paulo. O local há vários anos tornou-se conhecido
ponto de encontro de jovens atuantes na chamada cena cultural alternativa em
sua maioria moradores da periferia paulistana. No reduzido espaço, localizado
numa esquina e com várias portas voltadas para a rua, logo se destaca, em
seu interior, estantes com vários livros à disposição. O burburinho é intenso. E
entre a fumaça dos cigarros, as mesas lotadas e tomadas por cervejas, pastéis
e porções, boa parte dos presentes vai assumindo ora o papel de público, ora
de artistas que, nas noites de segunda-feira, vão se sucedendo no pequeno
palco de madeira com apresentações de música, teatro, literatura - ou o que
mais vier, pois não parece haver formato prévio às diferentes manifestações.
Tudo mais ou menos “coordenado” pelo proprietário do local, Binho, que,
precariamente, tenta organizar a ordem das apresentações - sob os inevitáveis
protestos de quem aguarda ansioso seu momento. O ambiente é bastante
amistoso, com conversas animadas dos presentes, risos e descontração,
deixando transparecer sociabilidade fluida e pulsante.
Parte significativa dos grupos beneficiados pelo programa VAI surge desse
cenário sociocultural existente em diversas áreas periféricas da cidade de São
Paulo, áreas em geral caracterizadas por péssimas condições de infraestrutura
urbana e acesso a serviços públicos, particularmente no que toca à cobertura
202
de equipamentos culturais, como bibliotecas, teatros, cinemas, concentrados
em sua grande maioria nos bairros mais centrais da metrópole.
As casas de cultura, os CEUs, além das ONGs e espaços alternativos
criados pelos próprios jovens, ou reapropriados por eles, como bares, praças e
ruas, configuram os locais utilizados para a expressão de diversas formas de
manifestação cultural. Pode-se dizer mesmo que estes locais formam
determinados circuitos culturais por onde circulam os grupos juvenis que são
atendidos (foram ou ainda serão) pelo programa VAI. No dizer de José
Guilherme Cantor Magnani esses circuitos perfazem determinadas “manchas”.
Para ele:
Manchas são áreas contíguas do espaço urbano, dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, competindo ou complementando – uma atividade ou prática predominantes. (.....) acolhe um número maior e mais diversificado de usuários, e oferece a eles não um acolhimento de pertencimento, mas a partir da oferta de determinado bem ou serviço, uma possibilidade de encontro, acenando, em vez da certeza, com o imprevisto: não se sabe ao certo o que ou quem vai encontrar na mancha, ainda que se tenha uma ideia do tipo do bem ou serviço que lá é oferecido e do padrão de gosto ou pauta de consumo dos freqüentadores. (Magnani, 2005, p.178)
Assim, nesta mancha não é raro haver encontros de coletivos nas
andanças pela cidade momento em que as ideias fervilham, em que há troca
de informações sobre editais, novos projetos, intervenções urbanas, entre
outras formas de sociabilidade.
Em pesquisas, nos últimos anos, e levantamentos sistemáticos
desenvolvidos pelo programa é possível constatar que, em geral, os
integrantes desses coletivos são pessoas jovens, com baixa e média
escolaridade, além de apresentar amplas e variadas formas de inserção no
203
mundo do trabalho urbano: ocupações como auxiliares administrativos, office-
boys, atendentes de telemarketing, professores de educação infantil.
Some-se a isso o fato de essas pessoas trazerem consigo rica trajetória,
marcada por vivências anteriores no campo cultural, quase sempre de caráter
local, desenvolvidas no âmbito do bairro ou região de moradia, em associação
com amigos e colegas mais próximos, com os quais se estabelecem afinidades
quanto ao modo de vida e certa visão de mundo.
É na tríplice condição de jovem, trabalhador e cidadão que se
estabelecem os limites e possibilidades de emergência de novos padrões de
sociabilidade e de consumo cultural, como, por exemplo, o gosto pelo graffiti,
dança de rua, fanzines, funk, capoeira, audiovisual, saraus, enfim, elementos
que passam a povoar o imaginário, mas também a dar corpo a formas de
expressão coletivas.
Muitas dessas experiências originam-se de uma significativa rede de
ONGs com forte capilaridade na cidade, ou mesmo nos poucos serviços
públicos existentes na periferia como as casas de cultura, - ou o Centro
Cultural da Juventude, na zona norte - instituições que, de algum modo
passaram a se constituir em referência na vida desses segmentos, mostrando
que é possível fazer cultura, mesmo apesar das inúmeras dificuldades.
Essas organizações desempenham visível na formação cultural dos
jovens. Pode-se inclusive notar a existência de certa matriz discursiva que
permeia os projetos inscritos no programa VAI fundado na valorização da
cultura popular, da importância da cultura como elemento de transformação do
indivíduo e da comunidade, a arte como autoconhecimento, entre outras idéias.
204
Como elemento muito presente, a ideia de emancipação e de protagonismo.
Tal universo de valores permeia muito do imaginário juvenil de coletivos que
constituem o público do programa ganhando outros espaços como a rede de
equipamentos públicos de cultura. Enganoso, entretanto supor que este
movimento é monolítico. Muitas ONGs a pretexto de desenvolverem ações
culturais atuam de forma assistencialista e com claro viés religioso.
Por vezes o contato com o campo cultural ocorre em oficina ou curso de
determinada área cultural (o teatro, por exemplo), ministrado por algumas
organizações. Ou também o contato com a cultura ocorre a partir do papel
desempenhado pela pessoa que se apresenta como referência no campo
artístico, como um professor de capoeira.
Na socialização nos espaços culturais, as sucessivas experiências
partilhadas nas relações de trabalho e, sobretudo, no local de moradia, muitos
jovens encontram nas iniciativas locais espaços para construção de novas
identidades, ao mesmo tempo em que se descortinam os meios de interferir de
forma mais ativa (e, por que não dizer, altiva) nos processos de produção
cultural.
Deve-se assinalar, entretanto, que a multiplicidade destas pequenas
iniciativas representam claro posicionamento em relação à esfera cultural pois
parecem ocorrer a contrapelo das principais políticas públicas de cultura.
Políticas que há décadas priorizam demandas tradicionais de segmentos
organizados do campo cultural, invariavelmente com perfil mais profissional.
A identificação de vários coletivos urbanos com manifestações estéticas,
como o hip-hop, a cultura tradicional, ou mesmo audiovisual, literatura e teatro,
205
revela frequentemente a busca por linguagens mais apropriadas no sentido de
expressar uma visão crítica das formas de opressão presentes no cotidiano
urbano, particularmente difícil, vivido nas áreas mais periféricas da cidade.
Contudo, longe de uma crítica meramente teórica, está-se diante da
insurgência de práticas culturais alternativas à cultura hegemônica, seja sob a
forma de uma cultura erudita, inacessível, ou uma cultura massificada e
reconhecida como alienante. No primeiro caso, em contraposição à ideia de
uma cultura intrinsecamente “burguesa” - tão comum a concepções presentes
em movimentos sociais do passado -, a crítica procura se contrapor à sua
forma de apropriação restrita e utilizada como elemento de distinção, ou, mais
concretamente, como elemento de discriminação e que submete milhões de
pessoas não somente à violência material, mas também, e, sobretudo, à
violência simbólica.
É nesse ambiente que florescem coletivos preocupados não somente
em fruir, mas em produzir cultura entendida esta como possibilidade concreta
de dar expressão a valores que foram sendo compartilhados, e reforçados no
decorrer de dado percurso. Nesse verdadeiro caldo de cultura é visível a
presença de valores estéticos e éticos fundados em preocupações com forte
ressonância democrática como a valorização de manifestações populares, a
denúncia da exclusão social, a luta por justiça por meio da participação política.
No âmbito desse fenômeno se procurará explorar etnograficamente o
universo cultural representado pelos grupos atendidos pelo programa VAI de
2007 a 2009. Tomaremos como objetivo de análise a experiência de três
diferentes projetos contemplados pelo programa VAI: o projeto Mascate
206
Cineclube, na região de Cidade Ademar, zona Sul; o projeto Lixo Arte, na
região do Morro Doce, zona Norte, e o projeto Calo na Mão, sediado numa
escola pública da zona Oeste da cidade de São Paulo.
4.2. Projeto Mascate Cineclube
Projeto radicado na região de Cidade Ademar, zona Sul de São Paulo,
divisa com o município de Diadema, o “Mascate Cineclube” foi selecionado em
2007, o que se repetiu na edição de 2008, destacando-se pela intensa atuação
na área de audiovisual naquela região.
O relato da trajetória deste grupo será feito a partir da análise dos
escritos apresentados no programa e de entrevista fornecida pela proponente,
Thaís Scabio, para a elaboração da publicação VAI – 5 anos, concedida no
final de 2008.
A leitura do projeto “Mascate Cineclube”, apresentado em 2007, deixa
evidente, desde a primeira página, o contexto socioeconômico e político em
que se insere a região de Cidade Ademar:
“A subprefeitura de Cidade Ademar, que comporta os dois distritos, Cidade Ademar e Pedreira, que, somados, representam 30,7 km², é habitada por mais de 370 mil pessoas, das quais mais de 80 mil vivem em favelas. Uma análise das condições de vida de seus habitantes mostra que os responsáveis pelos domicílios auferiam, em média, R$ 710, sendo que 52,7% ganhavam no máximo três salários mínimos. Estes responsáveis tinham, em média, 6,2 anos de estudo, 39,2% deles completaram o ensino fundamental, e 9,3% eram analfabetos. (...) Conforme reportagem de Isis Brum, Diário de São Paulo, de 25/11/2007, a Cidade Ademar é o segundo bairro entre os dez com mais jovens internos na Fundação Casa, antiga Febem. Para o promotor da Infância e Juventude, Wilson Tafner, que pediu o levantamento à Fundação Casa, ‘em geral, essas regiões sofrem com a falta ou escassez de equipamentos públicos em saúde, educação, cultura e lazer.
207
Comparando, são áreas antagônicas ao centro, onde está concentrado o capital financeiro, parques, salas de cinema e teatro, além de shows e exibições artísticas gratuitas’”.
Mais do que a mera descrição de dados estatísticos da região de
origem, item tão comum a centenas de projetos e reproduzidos de forma quase
mecânica, o texto acima parece indicar, ainda que de maneira condensada,
uma visão crítica acerca das reais condições de vida da população daquela
área urbana, com especial ênfase à violência que se impõe na vida dos jovens,
alimentada pela falta de oportunidades de cultura, lazer e educação,
concentradas nas áreas centrais da cidade. Curiosamente, o texto é
complementado com “indicadores” relacionados à cultura e esportes, que
evidenciam a ausência total dos seguintes equipamentos públicos de cultura:
bibliotecas, casas de cultura, museus e teatros. A relação, entretanto, omite o
CEU Alvarenga, inaugurado em 2003, único existente em toda a região.
A partir das preocupações com a realidade local, cotidiano marcado pela
violência e ausência de espaços de lazer e cultura, surge a ideia de um grupo
de moradores formado por jovens e pessoas mais velhas interessados em
produzir cinema.
Na descrição do “histórico do Grupo”, constante no projeto de 2007,
apreende-se parte da trajetória desse coletivo, denominado Núcleo de Cinema
e Vídeo COM-OLHAR. De acordo com o texto, trata-se de
“(...) um grupo de estudo, produção e difusão, que possibilita aos seus membros realizar seus sonhos em imagem e movimento. Criado em 2000, ele é formado por ex-alunos de oficinas básicas de cinema e vídeo do projeto “Um certo olhar” realizadas em 1999 na cidade de Diadema e de pessoas das comunidades vizinhas (inclusive da Cidade Ademar), interessadas em participar desse processo permanente de criação e produção”
208
Percebe-se neste trecho a importância conferida às raras oportunidades
culturais que se apresentam à população, no caso, oficinas de cinema e vídeo
ministradas na cidade vizinha de Diadema, e que servem como elo à
constituição de um grupo de pessoas e, mais do que isso, à possibilidade de
intervenções na realidade ao redor.
No blog produzido pelo coletivo, destaca-se a figura do coordenador do
grupo, o cineasta e cineclubista Diogo Gomes dos Santos, experiente na área
do audiovisual, que passa a desempenhar papel importante: transmitir
conhecimentos e vivências aos mais jovens. A marca da heterogeneidade é
ressaltada como elemento importante na formação do grupo:
Um ponto interessante do grupo está na sua estrutura, que mantém a heterogeneidade como qualidade, tanto como formação, faixa etária e poder aquisitivo. São integrantes: pedagoga, pedreiro, jornalista, motorista de caminhão, fotógrafos, estudantes, radialistas, autodidatas, cineclubista, cineasta, jovens que só tiveram a experiência do primeiro emprego e salário, por meio do Núcleo, que encontraram nesta atividade uma profissão39.
Na sequência do texto fica mais evidente quando se apresenta a
proposta de atuação:
“O Núcleo COM-OLHAR acredita e investe nos valores artísticos locais, como forma da construção da identidade local, por meio do estudo, da produção e da difusão desta linguagem, inclusive como meio de formação e inclusão social”.
Deve-se observar que, mais do que a preocupação com o domínio
técnico de criação e produção artística propiciado pelas oficinas citadas, na
base de uma especialização profissional, a tônica da proposta apresentada
39 Disponível em http://nucleocomolhar.blogspot.com/2009/06/nucleo-cinema-e-video-com-olhar.html. Acessado em 26 de fevereiro de 2010.
209
remete a questões mais fundamentais. Por exemplo, a utilização da arte como
ferramenta de transformação da realidade social, e em sentido muito específico
e direto. Não se trata de transformar o país ou o mundo, na forma de certo
metadiscurso já pronto, mas, antes de tudo, operar mudanças a partir da
própria comunidade, na “construção da identidade local”, da “formação e
inclusão social”, como elementos catalisadores da participação e mobilização
políticas.
Aspecto notável nesta trajetória e que revela a afinidade com concepção
comunitária de cultura refere-se à produção, em 2005, do videoclipe “Brother
de Gueto” (disponível no youtube), protagonizado por um artista local, e que
tem como cenário várias ruas, becos e vielas das favelas do Pantanal, Pedra
sobre Pedra e Cidade Júlia, na região de Cidade Ademar.
No videoclipe o artista e banda cantam um reggae (à maneira do grupo
Cidade Negra), denunciando de forma crítica, mas com várias tiradas de bom
humor, muitas mazelas sociais vividas pela população, com imagens que
mostram crianças brincando junto ao esgoto a céu aberto, filas em frente ao
posto de saúde e repartições públicas. Imagens contrapostas a cenas de
corrupção e manifestações populares.
O trabalho, feito em troca de uma caixa de som, possibilitou experiência
única para o grupo, assim expressa no Plano de Trabalho:
“Foi um momento privilegiado de socialização e integração entre as pessoas, no qual o protagonismo foi a população, que participou da construção do projeto. A participação da comunidade como atores e sujeitos desta ação, abriu um diálogo entre o grupo e a comunidade, que gerou uma apropriação dos bens culturais locais e universais de forma concreta e única”.
210
Verifica-se nessa experiência, que a princípio deveria ser fortuita, a
possibilidade real de o coletivo colocar em prática muitas concepções sobre o
caráter transformador da atividade artística. A percepção da comunidade,
reconhecendo-se como “protagonista” do videoclipe, somente reforçou a
convicção.
Data do período a experiência da primeira exibição cinematográfica e,
com ela, inúmeras dificuldades que se mostrariam presentes:
A primeira exibição do projeto foi em 2004, na escola de um dos participantes do grupo, e o vídeo mostrado foi produzido pelo próprio núcleo. A partir de então o grupo não parou mais. As dificuldades de realizar as atividades, no entanto, não eram poucas. A tela era um lençol improvisado, a aparelhagem emprestada, e o dinheiro da gasolina e transporte vinham do bolso das pessoas da equipe. “Exibimos um filme em uma rua em Santos e, bem na hora de começar, a luz do poste queimou”, lembra Gilberto Caetano, editor do grupo. (VAI – 5 anos, 2008, p.26)
Em 2006, o grupo começa a articular-se com outras organizações.
Vários membros foram convidados pela ONG “Associação Centro Cineclubista
de São Paulo” a participar do projeto “São Paulo é uma escola”, mantido pela
Secretaria Municipal de Educação na região de Cidade Ademar. O Núcleo
COM-OLHAR passa a desenvolver diversas oficinas de cinema e vídeo nas
escolas e no CEU Alvarenga, trabalho que resultou em alguns vídeos e curtas-
metragens produzidos por crianças e adolescentes da comunidade.
As exibições que contemplam curtas-metragens de produções locais
passam a contar com número cada vez maior de pessoas, dos mais diferentes
locais, como “escolas, paredes de rua e vielas, associações, bares, em cima de
caminhões, enfim, onde houver espaço acontece. Nasce o ‘Mascate
Cineclube’, o cineclube ambulante”.
211
Com o acúmulo de ações culturais na região que, em 2007, e após três
tentativas anteriores, o projeto “Mascate Cineclube” é finalmente selecionado
pelo programa VAI. A proposta de trabalho é descrita nos seguintes termos:
“O Mascate Cineclube é uma atividade cineclubista que atende à comunidade em suas mais diversas formas. Ele leva a várias partes cinema, vídeo, diversão, debate e conhecimento. O Mascate Cineclube já foi para a Baixada Santista, Diadema, Rio Claro, Zona Leste e na região de Cidade Ademar, e até participou, em São Paulo, da 24ª Jornada Nacional de Cineclubes, sendo parte ativa da Mostra desse evento. Toda produção conta com produtores locais, equipe de exibição e, é claro, debate dos filmes exibidos e do processo de produção da linguagem”.
Destacam-se aspectos que são a própria medula do projeto: valorização
do cineclube40 como instituição basilar na difusão de produções audiovisuais,
no caráter itinerante da difusão, e o impacto transformador da linguagem
artística sobre a comunidade. O objetivo geral do projeto é assim formulado:
Proporcionar a democratização da cultura cinematográfica, com acesso aos meios de exibição, produção e formação de público, priorizando o cinema nacional e curtas metragens de produção periférica.
A análise da proposta explicita a inquietação com a democratização
cultural – no caso da cultura cinematográfica –, democratização entendida
como o acesso da população não somente ao consumo, mas também à
participação ativa no processo de produção das obras, elementos que
repercutem diretamente no processo de “formação do público”.
Mais adiante o coletivo apresenta as obras que merecerão prioridade
nas exibições: produções do cinema nacional e curtas-metragens de produção
40 No projeto, o conceito de cineclube é assim definido: “são (...) espaços democráticos e alternativos de exibição cinematográfica, são peças fundamentais para organizar, discutir, formar e, acima de tudo, proporcionar lazer com qualidade e responsabilidade sociocultural”.
212
periférica. Evidencia-se a busca em valorizar o cinema nacional em nível mais
amplo, e possivelmente como expressão daquilo que é a realidade vivida pelos
brasileiros, e, de forma mais concreta, a produção periférica.
No primeiro caso aparece implícita a oposição entre nacional e
estrangeiro, e no outro, a oposição entre centro e periferia, ao que tudo indica
como balizamentos significativos para se pensar os temas da participação e
protagonismo, sempre presentes no discurso:
O Mascate Cineclube desperta na comunidade o desejo de se descobrir enquanto sujeito ativo, agindo, reformulando sua visão de espectador e reconquistando o direito de transformar o cotidiano.
Ou ainda, conforme exposto nos objetivos específicos:
Utilizar-se do audiovisual para criar um espaço de convívio, de troca entre a comunidade e do exercício da cidadania.
Em termos de metodologia de trabalho, a proposta selecionada em 2007
previa a exibição em 13 locais, nos distritos de Cidade Ademar e Pedreira,
como os bairros de Cidade Júlia, Pantanal, Pedreira (beira de represa Billings),
Vila Missionária, Sacolão do Jardim Miriam, entre outros.
As atividades ocorreriam aos domingos, “pois acreditamos que seja
nesse dia que as famílias estejam mais presentes na comunidade”, e duas
vezes ao mês, na forma de rodízio. A proposta é que cada exibição seja
precedida de apresentação do filme e, quando possível, “acompanhada de pelo
menos uma pessoa que participou da produção”. A proposta também envolvia
o registro videográfico das exibições.
213
Público atento às exibições do Mascate Cineclube.
No projeto do ano seguinte, 2008, o coletivo optou por fixar as ações do
projeto em dois pontos determinados: Mata Virgem, no Lar Maria Sininha; e
União dos Moradores da Cidade Júlia, na comunidade Pedra sobre Pedra.
Segundo a proponente, “a escolha pelos pontos fixos foi difícil, se priorizaram
locais de maior carência de lazer e cultura, locais com opção de exibição
interna e externa (garantindo a exibição mesmo em dias chuvosos) e locais em
que a comunidade foi mais participativa”.
Além disso, houve mudança quanto ao dia da semana, passando para
os domingos, pois as exibições frequentemente “terminavam em horário
avançado e as pessoas, principalmente os jovens, se retiravam, sem participar
de toda a programação, pois tinham que trabalhar no outro dia”.
214
Outro elemento adicional do projeto foi a previsão de “reportagens
mensais com moradores e personalidades que contribuíram ou contribuem
para a formação histórica da região”, aspecto que parece refletir preocupação
do grupo em reforçar a identidade cultural do “pedaço”, sua história, além do
protagonismo dos personagens. Foram previstas, além dos filmes nacionais,
várias produções locais, e era bastante comum o reconhecimento, por parte
das pessoas: “Ai, meu cabelo como estava!”, “Ah, eu conheço aquele!” ou
“Vixe! Olha o Barbará!”
Ao longo de 2007 o projeto transcorreu, em linhas gerais, conforme o
plano inicial, ainda que tenham surgido problemas recorrentes. Um deles
relacionado ao apoio da subprefeitura para viabilizar várias exibições.
Conforme Relatório de Atividades:
“A subprefeitura disse que podíamos contar com o [seu] apoio para o fechamento de rua e segurança com a guarda civil, os quais não ocorreram em nenhum dos dias, mesmo quando enviamos memorandos”. Em outro relatório: “Ainda não temos o apoio da subprefeitura para organizar o fechamento das ruas”.
Vale registrar, a partir do relato de uma exibição aberta, algumas
intempéries enfrentadas pelo grupo executor (chuvas, ventos, frio), além de
problemas que exigiam resolução rápida, e mesmo a busca de sintonia em
relação ao gosto do público presente, pois a proposta inicial era apresentar
produções locais e do cinema brasileiro. Eis o relato do andamento do projeto:
“Dia 12 de agosto, na Quadra 7 Campos/Pantanal, foi bem complicado. Estava ventando muito, e os tripés da tela quebraram com o vento, caindo tudo no chão. A tela ficou um pouco riscada. A comunidade ajudou muito com a questão do vento e da tela. Um dos integrantes do projeto (Miguel) teve que ficar o tempo todo segurando a tela para que não caísse novamente. Exibimos o curta-metragem “Num fechar de olhos”,
215
as pessoas gostaram muito. Dia 12 de agosto foi um dia muito frio, e Dia dos Pais. Havia muitos adultos e jovens no início. Mas com toda a confusão o pessoal acabou indo embora, pois demorou muito para iniciar. O filme “O invasor” não agradou às pessoas. No meio do filme começaram a chegar muitas crianças. Os adultos reclamaram dizendo que era um filme muito forte, não só pelas cenas de sexo. Apesar do filme não ter agradado às pessoas, foi uma discussão interessante no final. As pessoas disseram que não gostaram do filme porque mostra coisa que eles já são obrigados a ver todos os dias: pessoas se drogando, matando, enganando. Muitos disseram que os filmes deveriam mostrar coisas bonitas, sonhos, e não coisas do dia a dia. Por causa do não contentamento do filme, combinamos com a comunidade de realizar uma sessão extra no dia 12 de outubro, onde iremos exibir para as crianças “O grilo feliz”. Acreditamos que não foi uma boa escolha exibir o filme “O Invasor”, mesmo com o aval dos líderes comunitários, que já haviam assistido ao filme e acharam que seria uma boa ideia”.
O relato mostra o quanto o projeto procurava atender ao gosto do
público, alterando a programação dos filmes. Foi uma tônica nos dois anos do
projeto. Produções nacionais, como “O invasor”, “Narradores de Javé”, “Tapete
Vermelho”, “O homem que virou suco” eram substituídos ou, mais
freqüentemente, intercalados, com filmes como “A Casa Monstro”, “A noiva
cadáver”, “Kiriku”, “Tempos Modernos” ou ”Dois filhos de Francisco”.
Verificou-se certa “adaptação” da programação de filmes tal como
proposta pelo público espectador passando de produções mais elaboradas em
termos de “retratar a realidade brasileira” ou “valorização da cultura nacional”,
para obras mais “comerciais”, “lúdicas” e “divertidas”, demanda apresentada
pelas pessoas durante as sessões. Como exemplo, antes de uma das
apresentações do filme “Saneamento básico”, uma das mulheres presentes
dizia “tem ator da Globo?” A aparente contradição na seleção dos filmes
aparece num dos relatórios:
216
A princípio pedíamos o nome dos filmes, mas só vinha “Homem Aranha”, “Fique rico ou morra tentando” e daí em diante; por isso decidimos que as pessoas escolheriam o tema do mês, o que melhorou a qualidade, e as pessoas puderam assistir muitas vezes a filmes que nunca viram, na maioria nacionais”.
Deve-se considerar evidentemente que o projeto trabalha em uma
perspectiva de formação do público, e há a busca em compatibilizar a
aceitação do que é solicitado pela população em termos de seleção dos filmes,
com a introdução de novas obras, interferindo no processo de formação do
gosto, da disposição estética dos participantes. As discussões que se sucedem
às exibições reforçam o processo.
Os filmes eram precedidos por produções periféricas, locais ou não,
entre as quais se incluem produções de projetos audiovisuais contemplados
pelo programa VAI, como “O velho bola murcha” (2008)..
Episódio bastante marcante ocorrido em 2008 revela a inserção do
coletivo com a comunidade local, dividindo prazeres e dissabores:
Na Cidade Júlia, no mês de novembro, aconteceu um episódio com policiais que perseguiam um ladrão em pleno sábado à tarde, no meio da comunidade. Nesse dia, diversas pessoas, principalmente crianças e idosos, foram atingidos com bala perdida dos policiais. Sem saber o que fazer, alguns moradores nos ligaram e pediram que o pessoal do cinema fosse filmar as pessoas sobre o que aconteceu. Foi um desabafo coletivo diante da câmera. Diversas pessoas falaram sobre seus direitos violados e sobre sua revolta diante de tudo aquilo. Não divulgamos as imagens, não exibimos na tela nem colocamos no DVD por pedidos e por questão de segurança do grupo. Foi apenas um desabafo da comunidade para pessoas que eles confiavam. Tudo isso nos trouxe uma reflexão muito importante, que, além de criarmos raízes neste lugar, criamos confiança, as pessoas sabem que podem falar nas exibições e na frente da câmera, confiam em nosso trabalho. Essa confiança é muito importante para a comunidade e para o grupo, composto pela maioria de jovens e moradores da região.
217
A situação de risco expressa, por um lado, a triste realidade de violência
existente na região, e, de outro, o grau de legitimidade alcançado pelo coletivo,
referência importante no momento do desabafo e da denúncia dos moradores,
em oposição às instituições tradicionais como polícia e subprefeitura.
Por fim, o projeto Mascate Cineclube revela experiência bastante
emblemática de projetos que investem em um fazer cultural que se desenvolve
em contato direto com a população periférica, no caso a Cidade Ademar,
utilizando o audiovisual como instrumento capaz de promover a participação e
o protagonismo social e político, inclusive no processo de criação artística.
A proposta, contudo, privilegia a cultura como possibilidade de lazer,
entretenimento e espaço de sociabilidade (em oposição ao consumo privado
das tevê). Parece não haver, ao contrário de outros projetos, preocupação
acentuada na diferenciação entre arte-educador e educando, relação meio
desfeita em favor de vivências comuns, comunitárias.
218
4.3. O projeto Lixo Arte
Projeto selecionado em 2008 e 2009, o “Lixo Arte” foi idealizado por um
casal de jovens, Leidiane Machado, a proponente e Daniel Martins, ambos
moradores na região do extremo noroeste da cidade de São Paulo, bairro do
Morro Doce, distrito do Anhanguera.
As análises que se seguem se baseiam na leitura dos projetos
apresentados, relatórios de avaliação, entrevistas abertas com os dois jovens e
material disponível em blogs.41
Curiosamente a leitura do projeto inscrito no ano de 2008 praticamente
não traz referências diretas ao bairro do Morro Doce, algo que ocorre somente
no segundo relatório de atividades do projeto, como veremos. Já na edição de
2009, a referência àquela região é mais explícita uma vez que se trata de um
dos locais de execução do projeto. Observa-se a princípio que mesmo diante
desse “aparente lapso” essa região está profundamente presente nos anseios
e preocupações daqueles jovens.
Seja como for, é importante situar um pouco da realidade vivida nesta
que é uma das áreas com menos projetos subsidiados pelo programa VAI, o
distrito do Anhanguera, conforme levantamentos técnicos já realizados.
Trata-se basicamente de uma região que possui extensa área verde e
tida como um lugar relativamente calmo. São áreas distantes do centro da
cidade e precariamente integradas à malha urbana, daí serem consideradas
predominantemente “rurais” (19% da população do Anhanguera destaca a falta
41 As entrevistas com Leidiane e Daniel ocorreram nos dias 5 e 12 de fevereiro de 2010, no “Bar Brahminha” (ao lado do tradicional Bar Brahma), na av. São João, centro da cidade de São Paulo..
219
de poluição), ainda que em franco processo de ocupação populacional fato que
fez com que a população passasse de pouco mais 5.000 pessoas em 1980,
para 34.000 em 2000, conforme dados do Censo Demográfico do IBGE. Para
isso têm concorrido, mais recentemente, as obras realizadas nas proximidades
da rodovia Anhanguera, como o Rodoanel.42
Em reportagem publicada pela Folha de S. Paulo, em 14 de setembro
de 2008, denominada “DNA Paulistano – Região Noroeste” pode-se ter ideia da
realidade vivida naquela área urbana, especialmente do âmbito cultural:
A região Noroeste ficou pior do que a média da cidade em todos os quesitos citados acima. Somam-se ainda aos problemas a falta de atividades culturais, que levou nota 2,9 dos moradores e a ausência de ações para jovens (2,6) e idosos (2,3) - na cidade, os três itens tiveram média de 3,7, 3,2 e 3,2, respectivamente. "No final de semana, a gente vai à igreja e à tarde ficamos sentadas na porta de casa conversando porque não tem para onde ir", conta a dona de casa Adriana Aparecida Cândido Lima, 19. Na região, existem poucas opções culturais: há apenas 11 bibliotecas públicas, de acordo com dados de 2006 da Sempla (Secretaria Municipal de Planejamento) - nenhum nos distritos de Anhanguera, Casa Verde e Cachoeirinha.
Esta breve caracterização da região onde se localiza o Morro Doce
ajuda a entender o local no qual Leidiane passou a infância e adolescência, e a
preocupação que norteia o projeto Lixo Arte - a preocupação ambiental,
elemento presente em vários depoimentos.
Entretanto outro fator bastante relevante nas coordenadas que levarão
ao projeto refere-se às vivências culturais que Leidiane experimentou desde o
ano 2000. Adolescente inquieta e curiosa começou a frequentar o Espaço
42 O Censo de 2000 registrou um total de 33.973 habitantes, sendo que 18.497 em áreas ainda consideradas rurais. Frequentemente esse acaba sendo um indicador para as péssimas condições de infraestrutura urbana, como falta de saneamento básico, asfaltamensto de ruas,etc.
220
Cultural Tendal da Lapa, na zona Norte, participando de distintas oficinas
culturais nas áreas de música, teatro e dança, dança do ventre, fotografia e
graffiti.
De modo emblemático e como reflexo das vivências, a utilização de
diferentes linguagens artísticas será a tônica do Lixo Arte. Em 2007, a proposta
será basicamente de realização de oficinas de graffiti, xilogravura e desenho,
oferecidas no Espaço do Tendal da Lapa, local onde os jovens já tinham como
espécie de “segunda casa”. A presença do hip-hop assume papel bastante
significativo a partir da vivência de Daniel, com longo histórico de experiências
na forma de andanças e intervenções urbanas, sobretudo grafitagens, pelos
muros da cidade.
Ambos se conheceram em 2006 nas oficinas do Tendal da Lapa. Um
ano depois começaram a namorar, além de parceria cultural intensa. Leidiane,
recordando o período, assinala a importância da parceria com Daniel, ainda
que de forma meio conturbada. Universo juvenil, relações afetivas e de gênero,
a prática do graffiti, a vida urbana pelas ruas da Lapa, tudo isso compõe enredo
quase cinematográfico:
Ele [Daniel] já trabalhava com isso antes, já tinha atuado no Colégio Amorim [zona Oeste de São Paulo] e tinha trabalhado com Rui Amaral [conhecido artista plástico e grafiteiro da cidade], e eu queria fazer parte disso. No caso dele ter contado que saia à noite para grafitar eu queria estar junto... Ele não queria, não sei se pelo fato de os amigos dele... (...) eu comecei a participar no dia que eu fiquei com raiva, porque todo dia eu ia pra casa dele, todo final de semana, e todo dia que eu ia não encontrava ele em casa porque ele tinha ido pintar com os amigos. (...) Aí a mãe dele disse: ‘sabe o que você faz Leide, vai pra casa e deixa ele te procurar...’ (...) eu peguei e fui, fui com raiva... No dia eu fiz um trampo lá na estação da Lapa que eu já tinha conhecido o Rui [Amaral], a gente tinha feito um painel lá, aí eu fui e fiz um trevo de quatro folhas saindo lágrimas assim, que era o que eu estava
221
sentindo... (...) aí eu fui pra casa mesmo. E aí ele me ligou no Morro Doce, era no domingo, pra pintar lá debaixo da ponte ali do Tendal, com os meninos... (...) Eu acabei saindo assim tipo, fui e ai a gente começou a trabalhar com coisas mesmo... eu pintei, foi legal pintar com os amigos dele também... (...) e aí foi que começou a acontecer mesmo as coisas na parte cultural. A gente começou a ter ideias juntos assim... elaborar um projeto com as coisas que eu tinha feito e as coisas que ele já tinha feito com o graffiti.
O “momento inaugural” no trabalho conjunto dos jovens, como descrito
acima, revela o terreno relativamente movediço em que ocorrem as primeiras
iniciativas culturais de muitos adolescentes e jovens, marcado por
inseguranças de toda ordem, problemas familiares, desemprego e busca de
aventura. Como a mistura das tintas usadas nas saídas para grafitar, parece
haver aqui a saborosa mistura entre vida e o que se considera “cultura”.
Depois do fato o casal de jovens viveria sua primeira participação em
um projeto cultural, nas proximidades do Morro Doce, mais especificamente
bairro do Jardim Jaraguá. A experiência, vivida em 2007, antecede a primeira
inscrição no programa VAI, que ocorre no ano seguinte, e ao que parece ajuda
a sedimentar várias convicções dos jovens. Seu ponto de partida, contudo, foi
um workshop de um dia, em uma escola no bairro, a Escola Zoraide de
Campos. Eis depoimento de ambos:
“A gente foi convidado por uma amigo que tinha solicitado... uma professora de uma escola. A gente foi lá e fez um workshop no final de 2006, no Dia das Crianças. A gente foi lá fez um workshop, ficamos o dia inteiro na escola... Que escola? Escola Zoraide de Campos, km 22 da rodovia Anhanguera, no Jardim Jaraguá. (Daniel) Enfim, era a única escola que tinha nesse bairro também, porque lá no Morro Doce e nesse km 22 é quase o mesmo lugar... (...) Fiquei pintando a galera inteira durante o dia inteiro... Fiquei até com o braço doendo de tanto pintar eles assim (risos). Depois fiz apresentação de dança do ventre junto com outro grupo de dança na ápoca. Foi uma coisa prazerosa pra gente assim... Foi aí que a gente viu que o caminho é esse, e já tinha um projeto na cabeça estruturado”.
222
Em outro momento da entrevista, Leidiane reforça a importância do
evento a partir do interesse manifestado pelas crianças da escola:
“Eu vi a galera que se interessava mesmo. O pessoal lá precisava disso, sentia isso na pele e queria, né, a criançada queria mesmo”.
Em função do trabalho os dois foram chamados “pela comunidade” a
desenvolver um projeto de forma mais sistemática, no Jardim Jaraguá. Ambos
se interessaram por essa ação cultural, dada a necessidade que a população
enfrentava em relação à falta de equipamentos de lazer e cultura, como lembra
Leidiane, revelando sensibilidade para transformações que ocorriam na região:
“Porque ali no Jardim Jaraguá, no km 22, antes, quando eu mudei para o Morro Doce, eu passava por lá direto, porque era colado com a [rodovia] Anhanguera, e tinha antes um campo enorme, um campo de futebol, o pessoal do bairro que morava ali jogava futebol e era uma área de lazer legal. Eu passava e pensava: ‘meu, que legal, uma quadra enorme de futebol para jogar’, eu gostava de futebol nessa época. Aí, depois de um tempo aquilo lá foi devastado, tiraram as árvores que tinha do lado, tiraram aquela quadra. (...) tiraram todo o morro que tinha, aplanaram e fizeram o Rodoanel. E a parte que ficou de área livre, como tinha o Rodoanel ali mesmo, ia valorizar mais o Anhanguera, e então chegaram muitas favelas. Em um ano assim cresceu assim de favela, que eu disse, nossa, nem parece mais o bairro”.
Logo a participação no que seria o primeiro projeto se revelaria
problemática. A exemplo de número considerável de ações culturais de caráter
local, essas traziam a marca da precariedade, falta de planejamento e
perspectiva nitidamente caritativa, vinculada a uma igreja evangélica, apesar
da boa intenção de diversos participantes. Leidiane lembra como nasceu a
ideia do projeto:
Meses depois [do workshop na Escola Zoraide Campos], a gente foi chamado para atuar no bairro com o projeto, só que o
223
pessoal não sabia nem desenvolver um projeto. Tinha esse “JC”, apelidado de “JC Correria”, que era um ex-presidiário que tinha seis meses que tava na rua, que queria fazer o bem, salvar vidas. Eu não estava com o pé atrás ainda, e até acreditava na força que ele dizia... era uma pessoa muito comunicativa... parecia ser verdade o que ele falava. Aí eu falei ‘Então tá, vamos! Demorou’. Fomos eu e o Daniel, participamos de algumas reuniões para afinar os horários, de como ia ser... íamos começar a utilizar os sábados...”
Sintomático o modo como se entrelaçam as dificuldades pessoais do
casal de jovens com as dificuldades inerentes à iniciativa de projeto cultural em
uma região precarizada, o que aos poucos revela as contradições e limites no
tipo de ação.
Apesar de tudo, as dificuldades faziam aumentar o valor atribuído à
cultura por parte dos jovens e o reconhecimento de sua importância para a
população da região:
“Era um trabalho extremamente voluntário, eu tava desempregada, eu não conseguira arrumar emprego, a minha tia, como eu estava na casa dela nos finais de semana, pra voltar pra casa ela me dava R$10, pra eu gastar assim de condução. Com esses R$10 eu tirava desse dinheiro pra poder dar aula junto com o Daniel. Eu saía do Madalena, da rua Bica de Pedra, e o Daniel vinha do Tatuapé, a gente acabava se encontrando, ia pro Morro Doce, e do Morro Doce ia pra lá, que era mais... Se ia dar aula no sábado de manhã, sexta-feira a gente se encontrava na Lapa, e de lá ia pra minha casa. Aí a gente acordava às 7h da manhã pra chegar lá às 8h. Foi bacana, mas só que assim... a necessidade do bairro era outra, a gente ia lá dar aula de graffiti só, só que não foi isso que aconteceu. Porque a gente ia dar aula de graffiti e não tinha material de graffiti, ia atuar no bairro só que não tinha projeto, Eu falei: ‘como assim? Você não tem um projeto?’
Apesar de todo o esforço, em boa medida relacionado às dificuldades de
locomoção nas periferias, as relações da iniciativa com uma igreja evangélica
se revelariam cada vez mais complicadas. Na ótica de Leidiane e Daniel, o
caráter assistencial implícito na ação gradativamente se chocava com uma
224
perspectica que valorizava a autonomia e o protagonismo (elementos que os
jovens retiram de sua história de vida), e, sobretudo, da ideia de uma cidadania
combativa, desveladora das desigualdades sociais. Na entrevista, as ideias
aparecem claramente no relato abaixo:
A gente não ia fazer oficina porque a gente teve sempre essa ideia que oficina vem de mecânica, e no caso a gente não vai pra consertar algo, a gente vai ali tentar mesmo passar para a cabeça das pessoas, que a forma que elas fazem ou se julgam faz parte delas, isso então não adianta a gente querer consertar alguém se ela não quer se consertar. Então a gente colocava as ferramentas, vamos dizer, pras pessoas, introduzir na cabeça para tirarem suas próprias conclusões. Porque eu sempre fui muito determinada nas coisas, eu sempre me perguntei e às vezes as coisas que me afetaram a minha adolescência e minha infância foram coisas que me fizeram crescer, e eu nunca disse pra Deus ‘olha, eu fui castigada sabe, o Senhor fez mal de mim’, sabe, sempre agradeci a Deus porque eu sempre tive forças, tenho duas pernas e dois braços pra poder seguir adiante assim. E pra chegar na aula e passar isso para aquelas crianças lá que precisavam disso, tipo tinha criança lá que não tinha condições, a mãe não tinha condições de comprar uma roupa de marca, mas tinha que se matar pra comprar uma roupa de marca pra essa criança, porque ela via no pé de um outro amiguinho um tênis da Reebok ou da Puma, e ela queria ter igual, então a gente tinha que chegar na sala e dizer: ‘não, você não precisa disso, você não precisa de dinheiro pra fazer isso’. Então era uma coisa mais social, então o pessoal chegava e jogava o lixo no chão a gente falava ‘lá na sua casa você não coloca tudo num lugarzinho?, aqui você tem que fazer a mesma coisa’, então a gente começou a dar aula de cidadania”.
Finalmente, as contradições tornam-se agudas em dois episódios. O
primeiro relativo à interferência da igreja no trabalho das oficinas de música, o
que representou, na visão de Leidiane, o fim da divisão que vinha ocorrendo
entre as ações religiosas e culturais. A situação evidenciou as verdadeiras
intenções da instituição, mais preocupada em catequizar do que oferecer visão
mais ampla do mundo.
Era até interessante essa divisão no começo, a gente entrava e vinha a irmã, que cantava na igreja e fazia uma oração, depois
225
a gente vinha com o projeto trabalhando com a parte social mesmo, e a gente achava até interessante, e as crianças compreendiam isso. Mas então eles começaram a cobrar a gente pra querer dar culto. Então eu disse: ‘não, a gente não tem conhecimento de culto’, e a gente via pelos desenhos que as crianças desenhavam a igreginha lá tipo ‘Deus é amor’, elas absorviam isso nos desenhos (...) de uma forma que achava até interessante, só que eles queriam aprofundar mais... (...) Não, eu fiquei chateada no dia em que eu fui fazer musicalização com os alunos, e a gente sempre fez isso no projeto mesmo, de os alunos fecharem os olhos, escutarem as músicas, e dessa base onde a gente escutava a música a gente via a criatividade, o que eles achavam, depois disso a proposta é que eles fizessem um desenho do que eles tinham imaginado da música que eles imaginaram Quando eu coloquei o mantra que era só instrumental, a mulher disse que era coisa do demônio. Eu disse: ‘Mas como assim?!’ E aí eu vi que ela estava chateada e começou ter interferência no nosso curso”.
A perda completa da autonomia do projeto desenvolvido no Jardim
Jaraguá junto ao público infantil se acentua no momento em que o casal passa
a organizar aquele que seria o 1º Festival de Hip-hop da região.
“E ainda teve o Festival que a gente estava trabalhando que era o primeiro Festival de Hip Hop do Jardim Jaraguá que a gente estava coordenando junto com o cara [JC]. Ele fez o flyer, fez o poster lá e o Daniel ainda foi tirar na gráfica porque eu não sei quantas xerox, até era difícil para ele ser mandado embora, também por causa disso, porque não podia, ele levou, não sei quantas vezes lá. Ele deixou uma quantidade na lan house. (....) Só que ele [JC] fez um vídeo do Festival, a gente ficou trabalhando o ano inteiro, falando do Hip Hop que salva, que é uma parte cultural, que as crianças estavam ali dançando, outras estavam no nosso curso de graffiti lá atuando na oficina. (....) Mas ele chegou no dia, chamou um Mc que era evangélico e falou no primeiro dia do Festival disse que o Hip Hop não salvava, a cultura não salvava e o que salvava era a igreja. Eu falei: ‘Pô, a gente passa o ano inteiro trabalhando com as crianças e vem um cara em um dia falar que o Hip Hop não salva e que a cultura não salva, e diz que a igreja é que salva. Pra mim eu não vou participar mais disso’, eu fiquei furiosa, o cara me chamou de criança, eu não quero trabalhar mais com você, se o Daniel quiser trabalhar ele trabalha. Eu fiquei chateada mais pelas crianças, eu não tinha como trabalhar num lugar que a igreja interferia...”
226
Ficava evidente a ruptura entre o universo religioso e o cultural. Ainda
assim a cultura é vista como dimensão essencial da vida humana, o que
transparece na indignação frente à ideia de que a “cultura e o hip-hop não
salvam”. Não seria descabido entender a cultura neste sentido como espécie
de autoconsciência, ou mais precisamente, como uma forma de vocação, de
uma atitude em relação ao mundo. A expressão a “cultura salva” aparece em
outras passagens da entrevista com Leidiane e Daniel.
Essas experiências ao que parece, contribuíram sobremaneira para que
os jovens elaborassem o projeto “Lixo-Arte” e se inscrevessem no programa
VAI, no final de 2007. Segundo relato de ambos o contato inicial com o
programa deu-se no ambiente da casa de cultura Tendal da Lapa. Leidiane
assim se refere às circunstâncias que envolveram o primeiro contato com
programa:
Pergunta: Como vocês conheceram o VAI? “Então o VAI foi quando a gente fazia ensaios de fotografia no Tendal (....) no curso de fotografia o professor ele não conseguia ganhar pelo Tendal então eu falei pra ele tentar pelo outros meios [editais]. Aí ele falou ‘Tem o VAI mas nem adianta mandar projetos] porque ninguém consegue. É difícil é só pra quem já tem dinheiro..’(....) e aí no tempo que eu já estava lá dando aulas de fotografia eu falei eu vou mandar”.
É interessante notar o ceticismo em torno das possibilidades de ser
selecionado no programa e que aparece na fala de oficineiros num período que
o programa já gozava de certa notoriedade, sobretudo nas casas de cultura. Ao
mesmo tempo pode-se notar as dificuldades de sobrevivência material dos
oficineiros daquele equipamento, bem como a cumplicidade existente entre
alunos e oficineiros. Seja como for, as dificuldades pelos colegas não impediu
227
que os jovens se inscrevessem no VAI e o projeto fosse aprovado na edição de
2008, com o nome de “Lixo Arte”.
Em razão da existência de imensas porções de área verde no Morro
Doce, ocupadas de forma predatória, o projeto buscará uma forma de
articulação interessante entre meio ambiente e arte urbana, ideia essa presente
logo na apresentação do projeto de 2007 (p. 1):
LIXOARTE é formado por um grupo de artistas de rua com a intenção de transformar lixo em arte, porque tudo é arte, de uma forma bruta ou num contexto tão difícil que não conseguimos entender, às vezes. Através da arte, principalmente urbana (graffiti), estamos em contato direto com as pessoas no seu dia-a-dia, expressando a relação humana com o universo por meio de figuras, formas, palavras, sons, gestos e outros signos estruturados mais ou menos livremente (ou seja, “criados”) de um modo a produzir beleza, prazer ou “emoção estática”.
A arte em seu sentido mais amplo, - artes visuais, plásticas, música e
dança - aparece nesta proposta como elemento primordial de contato com a
cidade (“contato direto com as pessoas no seu dia-a-dia”), condição necessária
para a produção da beleza, da fruição estética. São elencados como objetivos
básicos do projeto: “Mostrar aos alunos a importância de se ter uma visão de
cultura, ecologia, arte e cidadania, fazendo discussões e saídas culturais,
mostrando alguns aprendizados não tão técnicos, de forma dinâmica e, através
de experimentos e desenhos em sala de aula”.
O projeto previa a realização de oficinas às quartas-feiras entre 19:00 h.
e 22:00 h. na casa de cultura Tendal da Lapa, com duração total de 6 (seis)
meses abordando diversos temas como “diálogos, leitura, música, desenho,
pintura em geral, estêncil, gravura, estamparia, fotografia, elaboração de
painéis de graffiti, trabalho em conjunto e saídas culturais”. As turmas
228
contavam em média com dez a quinze pessoas. Estas saídas culturais
permitiram que muitos jovens tomassem contato pela primeira vez com lugares
diversificados e desconhecidos como cachoeiras existentes na região do Morro
Doce, a Pinacoteca do Estado de São Paulo, espetáculos de dança, teatro,
além de visitas a outros projetos do VAI atuantes na região de Perus. Abaixo
um breve relato de uma destas atividades ocorridas entre julho e outubro de
2009:
No sábado passado dia 04 de outubro fomos a convite do Quilombaque [projeto subsidiado pelo programa VAI] fazer um workshop de xilogravura em Perus e levamos os alunos para ver como funciona um festival, fomos todos juntos com a condução deles paga, o Yan e Yuri passaram em casa e fizeram um lanche básico para agüentar, saímos do Morro Doce 17:00 chegamos lá as 18:00 e começamos a preparar o material os meninos ficaram fascinados pelo evento de Rap e os estilos do pessoal bem diferente do que eles costuma ver. Produziram as xilogravuras em menos de meia hora. Fizeram à impressão e ficou para o Grupo Quilombaque de recordação. Levamos todos para suas casas.
Outra passagem bastante ilustrativa da experiência proporcionada pelas
saídas culturais foi a ida à cachoeira do Morro Doce. Nesse relato pode-se
perceber a busca de uma vivência intensa com a natureza, embora para isso
fosse necessário um esforço considerável por parte dos participantes.
Cachoeira do Morro Doce. Esta saída foi importantíssima para a formação ecológica e ambiental, principalmente das crianças. Eles estavam com o celular tocando som alto, queriam ir embora por que tinha o jogo do Corinthians no dia e tinham que escutar o jogo pelo celular para comentar depois na escola. Pedimos para que eles desligassem o celular e explicamos a todos sobre a importância da natureza, pedíamos para que eles fechassem os olhos e dissermos a eles que assistiriam depois o resultado, mas a importância de eles estarem aqui hoje curtindo o dia retirando o lixo da cachoeira é única, são coisas que vocês levaram para aula na segunda-feira e discutirão que entraram e nadaram na represa e salvaram a natureza de pessoas que vão lá só para sujar. Então ao desligar o celular aconteceu algo muito mágico: veio uma brisa e as arvores se movimentaram e com elas cantos dos
229
pássaros, e as crianças ficaram impressionadas e perceberam a força e a importância da natureza. Muitos nunca tinham saído da favela, e refletiram como as pessoas prejudicam o lugar onde moram. Eles viram as conseqüências negativas do lixo jogado em locais impróprios. Foi um dia muito ensolarado, e depois de fazermos algumas trilhas, registrarmos o local e nadarmos um pouco, fomos trabalhar: retiramos mais de 30 quilos de lixo, desde garrafas Pet a pratos de comida. Todos se envolveram. Através da parceria fundamental com a empresa que administra o local, algo que ninguém nunca tinha conseguido, tivemos acesso a toda a reserva, que tem mais de 720 hectares, uma pequena queda d’água e uma grande represa. A empresa nos deu muita credibilidade, principalmente depois de ver o vídeo que produzimos lá no ano passado, deixando nossa entrada livre para quando quiséssemos. Ficamos depois emocionados em saber que essas mesmas crianças que estavam levando o estresse de música alta sem perceber para cachoeira compreenderam nossa idéia e estão desenvolvendo no seu bairro conscientização com os mais velhos retirando lixo ao redor da favela e ao redor da sua escola.
Nota-se que entre as duas versões do projeto houve apenas uma
mudança substancial, a saber, a proposta de atuar em 2009 não apenas na
casa de cultura Tendal da Lapa, mas também no próprio bairro do Morro Doce,
promovendo inclusive trocas culturais entre os grupos. Como aquele bairro não
possuísse nenhum equipamento público de cultura optou-se por desenvolver o
trabalho junto à escola municipal Marili Dias. No Relatório de Atividades pode-
se ler:
Durante os oito meses os alunos aprenderão Dança de Rua (Poppin), uma forma de despertar as crianças e jovens para a essência que a cultura lhes traz e despertando neles os talentos adormecidos.Passando por 7 módulos práticos e teóricos (Graffiti, Estêncil, Xilogravura, Estamparia, Fotografia, Dança de rua e Exposição) que só serão realizadas todos os sábados juntos com os outros módulos em andamento na EMEF Prof. Marili Dias, no Jd. Monte Belo.
Contudo logo após ter iniciado as atividades naquela escola, a diretora
da mesma passou a criar uma série de obstáculos à execução do projeto,
limitando a entrada dos participantes, não reconhecendo sua importância, além
230
de criar várias situações de desrespeito para com os executores como deixar
esperando em reunião previamente marcada. A gravidade da situação exigiu a
mediação do programa que após reunião com a direção tentou encontrar uma
solução. Em vão. A situação, porém tornou-se crítica após episódio em que a
diretora mandou apagar um graffiti pintado no muro da escola (com
autorização) e que retratava uma mulher nua em posição similar ao Cristo
crucificado na cruz. A pintura (foto na próxima página) fazia clara referência à
opressão sobre a mulher, mas a polêmica parece ter girado em torno do
suposto caráter ofensivo à religião.
Essa situação colocava às claras de um lado a estreiteza do olhar
burocrático presente numa instituição escolar localizada justamente na periferia
da cidade e a aventura de uma olhar atento e aberto à novidade. Mesmo após
a censura declarada da diretora, o jovem criador, participante das oficinas do
Lixo Arte, conseguiu reproduzir sua obra que veio a ser exposta em outubro de
2009 na Exposição “Vertigens Urbanas” realizada no Espaço da Galeria Olido,
no centro de São Paulo, juntamente com várias outras produções de projetos
apoiados pelo programa VAI.
Por tudo isso o Projeto Lixo Arte parece representar uma experiência
bastante significativa de um fazer cultural comprometido com uma arte urbana
transformadora, - no caso por meio do graffiti, mas também de várias outras
experiências estéticas - fundada numa visão de meio ambiente, de valorização
da comunidade local, e de construção de novas formas de relacionamento
entre arte e educação. A cidade como escola e escola como cidade.
231
Projeto Lixo-Arte: Foto de graffiti realizado no muro da EMEF Marili Dias
232
4.4. O projeto Calo na Mão
Como já apontado anteriormente embora o programa VAI possua
critérios claros de seleção (jovens de baixa renda, moradores da periferia)
estes não são absolutos, mas ponderados pela Comissão de Avaliação de
Propostas com outras variáveis também importantes.
É possível que o Projeto Calo na Mão seja exemplo de um destes casos
que fogem à regra mais geral. Trata-se de um projeto contemplado pelo
programa nos anos de 2007 e 2008 e que desenvolve ações relacionadas à
cultura popular, no caso, o Maracatu, em sua modalidade de baque virado ou
Nação, expressão cultural derivada de nossa herança trazida pelos escravos
africanos.
De acordo com a Fundação Joaquim Nabuco:
“(....) o Maracatu de Baque Virado ou Nação, tem como seguidores os devotos dos Cultos Afro-brasileiro da linha Nagô. A boneca usada nos cortejos chama-se Calunga, ela encarna a divindade dos orixás, recebendo em sua cabeça os axés e a veneração do grupo. A música vocal denomina-se toadas e inclui versos com procedência africana. Seu início e fim são determinados pelo som de um apito. O tirador de loas é o cantador das toadas, que os integrantes respondem ou repetem ao seu comando. O instrumental, cuja execução se denomina toque, é constituído pelo gonguê, tarol, caixa de guerra e zabumbas”.43
O projeto realiza oficinas de percussão e também oficinas de construção
de instrumentos, basicamente alfaias, e está sediado em uma escola estadual,
a Escola Estadual Professor Antonio Alves Cruz, na região oeste da cidade,
mais precisamente no Jardim das Bandeiras, distrito de Pinheiros, e próximo à
Vila Madalena e avenida Heitor Penteado.
43 Conforme informação colhida no site: http://www.fundaj.gov.br. Acesso em 01/03/2010.
233
Pode-se constatar facilmente que esta região apresenta indicadores que
absolutamente contrastam com indicadores de áreas periféricas como das
regiões de Perue e de Cidade Ademar. Assim, de acordo com dados do
Movimento Nossa São Paulo enquanto Perus e Cidade Ademar não possuem
cinemas nem teatros, a região de Pinheiros possui, respectivamente, 35
cinemas e 18 teatros.44
É interessante observar que esse projeto representa a continuidade de
um histórico de projetos culturais anteriores e que já envolviam jovens daquela
escola, desde pelo menos o final dos anos 90. Trata-se de um grupo cuja
marca desde o início é a organização e o estabelecimento de parcerias. Vide o
fato de que logo em seus primeiros anos de vida, por meio da ONG Projeto
Fênix obteve o patrocínio da Petrobrás. Luis Gustavo Silviano, ou
simplesmente Guga, proponente do projeto relembra os primeiros tempos de
atuação do coletivo que daria origem ao Calo na Mão:
“Bom nosso projeto começou da iniciativa de ex-alunos da escola estadual Antonio Alves Cruz que é onde nós estamos localizados, sediados...” Pergunta: É onde vocês estudavam? “Não, eu não, algumas pessoas que iniciaram esse projeto sim, mas é engraçado que meus irmãos estudaram nesse colégio bom... mas eu sou ali da região eu sempre tive uma região e sempre ouvi falar bem desta escola estadual que mesmo com o declínio da qualidade do ensino público (....) aquela escola ela sempre se manteve firme e forte como referência.. é uma escola de ensino médio apenas, e que no final dos anos 90 estava decaindo ela estava depredada com falta de alunos.. havia um interesse acho de outras partes na aquisição do prédio para contemplar outro órgão público estadual. E aí um grupo de ex-alunos mas já formados com carreira e numa media de 40 a 50 anos de idade formaram uma ONG chamada Projeto Fênix e essa ONG tinha e ainda tem a intenção de revitalizar essa escola. Ela já cumpriu boa parte dos seus objetivos pois hoje o Osvaldo Cruz está funcionando muito bem mas ela continua lá atuante. Então ela promoveu várias
44 Dados disponíveis: http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/files/CadernoIndicadores2009.pdf Acesso em 01/03/2010.
234
atividades no período ocioso da escola, durante a tarde que não tem aula nos dias de semana e nos finais de semana promoveu festas, encontros de ex-alunos, encontros de professores, coisa do tipo.. Numa dessas festas a ONG promoveu uma oficina de percussão e convidou uma pessoa chamada Bia Whitaker que inclusive é uma figura que fundou vários grupos percussivos aqui de São Paulo já, e ela foi lá dar uma aula, os alunos gostaram os alunos que participaram pediram pra repetir e aí começou todo sábado ter uma aula de percussão essa aula de percussão depois passou a ser ministrada por um outro professor chamado Vinícius Pereira, mas foi ela que deu origem ao que é hoje o Projeto Calo na Mão, então isso foi em 2001”.
Com ocorre em vários outros projetos pode-se perceber que a ação
cultural em tela é oriunda de um percurso anterior e que, neste caso, está
associado a um movimento da população local no sentido da recuperação da
qualidade de ensino em uma escola, bem como ao trabalho de ONG´s na
região de Vila Madalena, o que motivou a ocupação de seu espaço aos
sábados nos períodos considerados “ociosos”. A rotina escolar acaba sendo
tomada por ações prazerosas dos jovens. Percebe-se nesse movimento um
caso certamente emblemático do potencial das atividades culturais quando
inseridas no ambiente educacional, ainda que num contexto bastante particular,
visto tratar-se de um bairro de classe média.
Curiosamente na mesma região oeste, no distrito do Butantã existe
outro caso semelhante, desta vez na Escola Desembargador Amorim Lima,
que nos últimos anos também foi sede de projetos do VAI e mesmo de ações
culturais inscritas no Programa Pontos de Cultura, do Ministério da Cultura.
Vale ressaltar que as escolas em ambos os casos acabam tornando-se
verdadeiros pólos culturais, alcançando, inclusive relativa notoriedade entre os
jovens que atuam com projetos culturais na cidade.
235
Ademais, de certo modo chama a atenção o interesse em torno do
Maracatu despertado pelas oficinas de percussão. Aqui entram em jogo desde
fatores como o fascínio exercido por manifestações da cultura popular na forma
da busca das raízes da nacionalidade, a sinergia criada pelo rufar dos
tambores, mas também a aspectos mais prosaicos - conforme trecho da
Justificativa do projeto (2007, p. 14) – como o de atender à “demanda criada
pela explosão dessa manifestação musical, moda entre os jovens da cidade de
São Paulo”. Neste sentido a adesão a essa manifestação parece ser uma
resposta a uma corrente social mais ampla, ao apelo que a moda do momento
exerce sobre os jovens.
Todavia, essa idéia de um apelo fácil cai por terra quando o coletivo
expõe o conceito de Maracatu compreendido pelo grupo:
“O maracatu é um movimento político e social onde a alavanca à arte empresta para impulsionar a luta de um povo por seu espaço porque a luta de um povo por seu espaço também se dá pela arte. É a manifestação individual que, tornada coletiva, transforma”.
Nota-se na leitura desse trecho que a opção pelo trabalho com o
Maracatu prende-se a uma dada concepção política implícita neste movimento,
expresso por seu potencial transformador, representado pela “luta de um povo”.
Pode-se interpretar que essa luta se estabelece pela consciência dos valores e
práticas comuns a esse povo, como é o caso do maracatu. Ademais, fica desde
logo claro pela citação que se trata de um potencial associado mais
amplamente à própria arte.
236
Contudo mais do que uma opção consciente e instantânea, o que o
relato de Guga revela é que a escolha do Maracatu por parte do coletivo
resultou de um processo gradual. Assim, segundo ele:
“Foi aí que a oficina de percussão se transformou no Projeto Calo na Mão onde a gente dava aula de construção de alfaias, de tambores e aula de percussão que passou a ser segmentada ao maracatu de baque virado”. Pergunta: É então é nesse momento que o maracatu aparece como uma expressão?”É porque antes os instrumentos que existiam antes eram os instrumentos doados pelo Aprendiz aquela ong que atua na Vila Madalena, do Gilberto Dimenstein, que é ali perto inclusive, eram tambores de samba eram tambores de zinco, instrumentos de samba, mesmo tamborim, repenique tudo mais então nessa época nós não tocávamos o maracatu, nós tocávamos outros ritmos como o funk, o afoxé, baião...até isso era inclusive por conta do Vinícius que dava aulas na época lá...mas a demanda e a procura pelo maracatu era muito grande e a nossa vontade era essa também então a gente começou a construção dos tambores que era viável porque dá pra construir na mão e aí a gente começou a ir cada vez mais pra esse lado do maracatu até que em determinado momento a gente se tornou exclusivo pra esse segmento”.
Mais do que a definição de uma dada manifestação cultural ou
propriamente musical, o que se observa é um processo de constituição de
identidade grupal. Assim, se no início da utilização dos instrumentos
disponibilizados pela ONG os ritmos giravam em torno do samba, funk, afoxé e
baião, entre outros, aos poucos o gosto dos participantes foi recaindo sobre o
maracatu. Novamente o tema da “demanda”, mas também da vontade coletiva,
é mencionada. Na parte da Metodologia (p. 22) do projeto de 2007 essa idéia
da identidade aparece num dos eixos de atuação:
“Desenvolvimento da Identidade Musical: nessa fase o aluno desenvolve a identidade musical do bloco de percussão. Aqui são desenvolvidas toadas própria bem como a evolução musical e preparação dos espetáculos”.
237
Ensaios do Projeto Calo na Mão
Mais do que uma abstração, essa identidade é reforçada pela existência
do grupo musical Viralatisse, de 2002, e posteriormente denominado Maracatu
Bloco de Pedra, criado em 2005, grupo que agrega todos os participantes das
oficinas e que se apresentam em diversos eventos na cidade, promovendo
cortejos nos CEU´s, rede SESC, prefeituras da grande São Paulo, Virada
Cultural, escolas, sindicatos, etc. Em relatório final de avaliação essa idéia de
uma ação coletiva que permeia todos os participante aparece de forma
bastante acentuada:
“A criação do grupo promove o maior envolvimento dos alunos, uma vez que eles passam a defender uma bandeira, e, vestindo a camisa do grupo, eles passam a compreender que são parte integral do projeto e não meros alunos, isso promove a assiduidade e o envolvimento, o aluno deixa de ser expectador e passa a ser protagonista da história”.
Basicamente o projeto contempla, além das aulas de percussão o que
envolve o tocar e o cantar, as preocupações relacionadas à pesquisa em torno
do maracatu, (“o participante aprende as peculiaridades de cada nação de
maracatu de baque virado: seus diferentes toques, todas, evoluções,
238
percussivas e busca e reprodução fiel”) e à confecção de instrumentos ligado à
técnica de luthieria. Neste caso as oficinas desenvolvem conhecimentos
teóricos e práticos sobre preparo da matéria-prima, corte da madeira,
montagem e acabamento dos instrumentos, além da montagem e afinação. Ao
final destas oficinas foram previstos oito tambores finalizados.
O tempo de duração do projeto em 2007 foi de oito meses. Esses
eventos ocorridos nas dependências da escola, geralmente em sua quadra e
espaços próximos, reuniam aos sábados, entre 12:00 e 17:00 h., cerca de 250
pessoas, e atingindo um total de 350. Nestes encontros o som ecoado
simultaneamente pelos tambores e também pelas toadas é tão intenso quanto
a participação dos envolvidos. No primeiro relatório de atividades o público do
projeto foi assim caracterizado:
“Público jovem, na faixa entre 16 e 30 anos na grande maioria. Entretanto há a presença de crianças e pessoas com mais de 40 anos. Aproximadamente 60% do público é do sexo masculino e 40% feminino. Público oriundo de diversas localidades, conforme mapeamento no projeto, temos pessoas de todas as regiões da grande São Paulo”.
Nessa breve descrição do público pode-se ter uma idéia da
heterogeneidade e da diversidade de procedência dos participantes, o que “dá
o tom” da notoriedade apontada anteriormente.
Esses dados permitem ver no Calo na Mão um projeto que ultrapassa as
fronteiras da zona oeste atraindo pessoas inclusive de fora da cidade de São
Paulo. De acordo com informações constantes do projeto de 2007 são
apresentados os seguintes dados quanto à procedência de seu público: 44,5%,
zona oeste, 20,1% do centro, 11,9% da zona leste, 13,4% da zona norte e
239
4,1% da zona sul. Pessoas de fora de cidade respondem por 6,0% do público
do projeto.
A percepção da diversidade que caracteriza os participantes, em termos
de faixa etária e procedência é uma das características desta ação cultural,
fenômeno incorporado ao próprio discurso dos seus organizadores. Assim, lê-
se no segundo relatório de atividades apresentado no final de setembro de
2007:
“A sociabilidade e a multiplicação do conhecimento são constantes nas atividades. Independentemente de condições socioeconômicas, raças ou credos, todos os alunos do projeto Calo na Mão desenvolvem suas atividades no coletivo, percebendo e respeitando os valores alheios, entendendo que uma sociedade é formada por pessoas diferentes mais equânimes”.
Ao longo de 2007 o projeto transcorreu de acordo com o planejamento,
solvo com pequenos problemas relacionados à confecção dos instrumentos em
número um pouco menor do que o previsto, o aumento no preço dos materiais,
etc, e com aumento significativo do público que lotava as dependências da
escola nos encontros de sábado.
Já em 2008 o projeto aprovado apresentava pouquíssimas alterações
em relação ao ano anterior. Notou-se apenas uma ampliação no horário dos
eventos que passaram a iniciar-se às 10:00 h, e não mais às 12:00 h. A
estrutura dos encontros passou a ser a seguinte: Oficina de construção de
instrumentos e Manutenção dos instrumentos, das 10:00h às 12:00h;
Introdução ao Maracatu, das 14:00 h às 15:00 h; e Oficina de percussão: das
15:00 h às 17:00 h.
240
Finalmente, cabe assinalar a importância do trabalho desse projeto cujo
coletivo já desenvolvia há algum tempo trabalho consistente na área da cultura
popular, tornando-se, inclusive, referência para vários outros grupos da área de
percussão atendidos ou não pelo VAI. Pelo histórico de atuação e parcerias já
realizadas verifica-se um considerável nível de organização, o que levava o
grupo a iniciar em 2008 um movimento interno no sentido de transformar-se em
pessoa jurídica de modo a ampliar as possibilidades de concorrências em
editais. Mais do que um incremento em sua organização, este movimento
revela um caminho de profissionalização do grupo. Emblemático nesse sentido
foi a aprovação do projeto no PROAC, programa de fomento mantido pelo
governo do estado de São Paulo, no ano de 2009.
Já o fato de ser um projeto localizado numa “área nobre”, indica um
aspecto importante do programa, na verdade, da Comissão de Avaliação de
Propostas, a saber, sua abertura a projetos com enorme alcance social, como
é o caso do Calo na Mão. Ademais esse fato revela, apesar dos critérios
estabelecidos pelo programa, uma visão plural do universo cultural reforçando
a idéia de que uma cultura de participação somente se reforça com a
diversidade de visões de mundo e de propostas de trabalho.
241
Conclusões
O exercício de elaboração deste trabalho revelou a importância
crescente que ocupam as políticas culturais no Brasil contemporâneo. Mais do
que nunca foi possível comprovar o papel essencial desempenhado pela
cultura no processo de nosso aperfeiçoamento político, na base da qual podem
florescer uma pluralidade de manifestações e modos de vida capazes de
conviver e dialogar no seio de uma sociedade multicultural. As políticas
culturais atualmente em construção pelo Ministério da Cultura, além de várias
iniciativas de programas públicos nas esferas estadual e federal parecem
atestar o declínio de políticas preponderantemente orientadas pelo mercado e
a ascensão de uma perspectiva colada na cidadania cultural.
Na base de uma concepção de cultura de caráter antropológico, e
comunitário podemos perceber de modo mais acentuado novas possibilidades
de articulação entre política e cultura que ultrapassam tanto o velho enfoque
nacionalista quanto o “moderno” recurso ao mercado. Na verdade essa
abordagem supera ambas as posições propiciando uma correlação positiva
entre políticas culturais e o desenvolvimento de uma cultura política centrada
no protagonismo, na busca de autonomia e na participação cidadã.
Mais do que nunca se consolida uma sociedade pluralista ao mesmo
tempo em que se coloca, na ordem do dia, a necessidade de sociedade mais
justa e igualitária. E a cultura ocupa nesse cenário uma posição cada vez mais
importante.
O programa VAI é tomado assim como expressão dessas novas
configurações. A pesquisa desta experiência na cidade de São Paulo ajudou a
entender as relações entre Poder Público e sociedade, - através de seus vários
242
segmentos representativos – na condução da gestão cultural, no caso, de uma
política cultural dirigida principalmente aos jovens de baixa renda interessados
em produzir cultura e em participar da vida pública da cidade.
As análises sobre este programa evidenciaram os impasses que
cercam estas políticas no sentido de atender a demandas de públicos
específicos ao mesmo tempo em que se coloca como direito universal; de
consolidar-se como política de Estado apesar das constantes mudanças nas
orientações governamentais, e de fundamentar-se através de uma modelo
participativo de gestão pública. Os resultados demonstram que o caminho é
tortuoso, mas possível de ser alcançado.
243
Anexos
Legislação básica sobre o Programa VAI
LEI Nº 13.540, DE 24 DE MARÇO DE 2003 (Projeto de Lei nº 681/02, do Vereador Nabil Bonduki - PT) Institui o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais - VAI - no âmbito da Secretaria Municipal de Cultura e dá outras providências. MARTA SUPLICY, Prefeita do Município de São Paulo, no uso das atribuições que lhe são conferidas por lei, faz saber que a Câmara Municipal, em sessão de 19 de fevereiro de 2003, decretou e eu promulgo a seguinte lei: Art. 1º - Fica instituído o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais - VAI - no âmbito da Secretaria Municipal de Cultura, com a finalidade de apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda e de regiões do Município desprovidas de recursos e equipamentos culturais. Art. 2º - O Programa VAI tem por objetivos: I - estimular a criação, o acesso, a formação e a participação do pequeno produtor e criador no desenvolvimento cultural da cidade; II - promover a inclusão cultural; III - estimular dinâmicas culturais locais e a criação artística. Art. 3º - Poderão ser destinados ao Programa VAI recursos provenientes de convênios, contratos e acordos no âmbito cultural celebrados entre instituições públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras e a Secretaria Municipal de Cultura. Art. 4º - Os recursos destinados ao Programa VAI deverão ser aplicados em atividades que visem fomentar e estimular a produção cultural no Município de São Paulo vinculada a diversas linguagens artísticas, consagradas ou não, relativas a artes e humanidades ou a temas relevantes para o desenvolvimento cultural e formação para a cidadania cultural no Município. Parágrafo único - É vedada a aplicação de recursos do Programa VAI em projetos de construção ou conservação de bens imóveis ou em projetos originários dos poderes públicos municipal, estadual ou federal. Art. 5º - Fica criada a Comissão de Avaliação de Propostas do Programa VAI, com a finalidade de selecionar as propostas e avaliar o resultado daquelas aprovadas. § 1º - A comissão será composta por 08 (oito) membros, sendo 04 (quatro)
244
representantes do Executivo e 04 (quatro) representantes de entidades do setor cultural da sociedade civil. § 2º - Os representantes do Executivo deverão ser designados pelo Secretário Municipal de Cultura e os representantes da sociedade civil, pelo Conselho Municipal de Cultura, dentre as entidades nele cadastradas. § 3º - Os membros da Comissão de Avaliação terão mandato de 01 (um) ano, podendo ser reconduzidos uma vez por igual período. § 4º - A Comissão de Avaliação será presidida por um dos representantes do Executivo, designado pelo Secretário Municipal de Cultura. § 5º - O presidente da Comissão de Avaliação terá direito a um segundo voto em casos de empate. § 6º - Enquanto o Conselho Municipal de Cultura não estiver em funcionamento, os representantes da sociedade civil poderão ser indicados pela Secretaria Municipal de Cultura dentre as entidades cadastradas no Conselho. Art. 6º - Poderá concorrer a recursos do Programa VAI toda pessoa física ou jurídica sem fins lucrativos, com domicílio ou sede comprovados no Município de São Paulo há no mínimo 02 (dois) anos, que apresentar propostas artístico-culturais de acordo com os requisitos previstos nesta lei. Parágrafo único - Não poderão concorrer aos recursos do Programa VAI funcionários públicos municipais, membros da Comissão de Avaliação, seus parentes em primeiro grau e cônjuges. Art. 7º - A inscrição para o Programa VAI deverá ser feita de forma simplificada, em locais de fácil acesso e em todas as regiões do Município. Art. 8º - O valor destinado a cada proposta será de até R$ 15.000,00 (quinze mil reais), corrigidos pelo IPCA ou índice que o vier a substituir, podendo haver nova solicitação, consecutiva ou não, por apenas uma vez, de acordo com avaliação realizada pela Comissão de Avaliação. Parágrafo único - O valor será repassado em até 03 (três) parcelas, a critério da Comissão de Avaliação e de acordo com o cronograma de atividades. Art. 9º - Quando a proposta aprovada não resultar em evento gratuito, deverá destinar no mínimo 10% (dez por cento) de seus produtos ou ações como devolução pública, sob forma de ingressos, doação para escolas e bibliotecas, entre outros. Art. 10 - A Comissão de Avaliação selecionará os beneficiários analisando o mérito das propostas segundo critérios de clareza e coerência, interesse
245
público, custos, criatividade, importância para a região ou bairro e para a cidade. § 1º - A seleção de propostas realizar-se-á anualmente. § 2º - Serão consideradas preferenciais as propostas culturais de caráter coletivo que estejam em curso e necessitem de recursos para o seu desenvolvimento e consolidação. Art. 11 - Os programas beneficiados pelo Programa VAI deverão prestar contas durante sua execução e ao final dela para a Secretaria Municipal de Cultura, na forma que ela regulamentar. Art. 12 - A avaliação do Programa VAI comparará os resultados previstos e efetivamente alcançados, os custos estimados e reais e a repercussão da iniciativa na comunidade ou localidade. Parágrafo único - É necessária a aprovação da prestação de contas para que o beneficiário do programa possa candidatar-se novamente. Art. 13 - Ao final de cada ano o Conselho Municipal de Cultura realizará uma avaliação coletiva do Programa VAI com a presença dos beneficiários. Art. 14 - O Executivo deverá regulamentar esta lei no prazo de 60 (sessenta) dias. Art. 15 - O Programa VAI instituído por esta lei deverá ter dotação orçamentária própria, suplementada se necessário. Art. 16 - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, aos 24 de março de 2003, 450º da fundação de São Paulo. MARTA SUPLICY, PREFEITA LUIZ TARCISIO TEIXEIRA FERREIRA, Secretário dos Negócios Jurídicos JOÃO SAYAD, Secretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico CELSO FRATESCHI, Secretário Municipal de Cultura Publicada na Secretaria do Governo Municipal, em 24 de março de 2003. RUI GOETHE DA COSTA FALCÃO, Secretário do Governo Municipal
246
DECRETO Nº 43.823, DE 18 DE SETEMBRO DE 2003 - DOM de 19/09/03 Regulamenta a Lei nº 13.540, de 24 de março de 2003, que institui o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais - VAI no âmbito da Secretaria Municipal de Cultura. MARTA SUPLICY, Prefeita do Município de São Paulo, no uso das atribuições que lhes são conferidas por lei, D E C R E T A: Art. 1º. A Lei nº 13.540, de 24 de março de 2003, que institui o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais - VAI no âmbito da Secretaria Municipal de Cultura fica regulamentada nos termos deste decreto. Art. 2º. O Programa VAI é destinado a apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda e de regiões do Município desprovidas de recursos e equipamentos culturais, e objetiva estimular a criação, o acesso, a formação e a participação do pequeno produtor e criador no desenvolvimento cultural da cidade, promover a inclusão cultural e estimular dinâmicas culturais locais e a criação artística em geral. § 1º. O subsídio mencionado no "caput" deste artigo não será superior a R$ 15.000,00 (quinze mil reais) por projeto. § 2º. O valor mencionado no § 1º deste artigo será corrigido, anualmente, pelo IPCA/IBGE - Índice de Preços ao Consumidor Amplo, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou outro índice que vier a substituí-lo. Art. 3º. O Programa VAI terá dotação orçamentária própria no orçamento da Secretaria Municipal de Cultura. Art. 4º. Sem prejuízo do disposto no artigo 3º deste decreto, o Programa VAI poderá receber recursos provenientes de convênios, contratos e acordos no âmbito cultural, celebrados pela Secretaria Municipal de Cultura com instituições públicas e privadas, nacionais e estrangeiras. Art. 5º. O Programa VAI buscará contemplar projetos de todas as regiões do Município, desde que estejam de acordo com os critérios definidos por este decreto, respeitado o valor total dos recursos orçamentários a ele destinado. Parágrafo único. As propostas que não resultarem em evento gratuito deverão prever, obrigatoriamente, a destinação de, no mínimo, 10% (dez por cento) de seus produtos ou ações como devolução pública, sob forma de ingressos, doação para escolas, bibliotecas e outros. Art. 6º. A Secretaria Municipal de Cultura divulgará, anualmente, pelo Diário Oficial do Município, em todos os equipamentos da Secretaria e das Subprefeituras, bem como por outros meios possíveis, o período, os locais de inscrição e a descrição do Programa VAI. § 1º. A inscrição para o Programa VAI deverá ser feita de forma simplificada, em locais de fácil acesso e em todas as regiões do Município.
247
§ 2º. Excepcionalmente, no exercício de 2003, a divulgação prevista no "caput" deste artigo ocorrerá em até 15 (quinze) dias da data da publicação deste decreto. § 3º. A inscrição para o Programa será gratuita e deverá ser feita pessoalmente, encerrando-se, no mínimo, 30 (trinta) dias após sua abertura. Art. 7º. Poderão ser beneficiados pelo Programa VAI projetos culturais empreendidos por pessoas físicas ou jurídicas, sem fins lucrativos, que tenham domicílio ou sede no Município de São Paulo há no mínimo 2 (dois) anos, com o objetivo de fomentar e estimular a produção cultural vinculada a diversas linguagens artísticas, consagradas ou não, relativas a artes e humanidades ou a temas relevantes para o desenvolvimento cultural e a formação para a cidadania cultural no Município. § 1º. Não poderão concorrer aos recursos do Programa VAI os órgãos públicos da Administração Direta ou Indireta federal, estadual ou municipal, bem como funcionários públicos municipais, membros da Comissão de Avaliação, seus parentes em primeiro grau e cônjuges. § 2º. Fica vedada a seleção de mais de um projeto, por ano, de um mesmo proponente. Art. 8º. Os projetos serão selecionados pela Comissão de Avaliação de Propostas do Programa VAI, criada pelo artigo 5º da Lei nº 13.540, de 2003. § 1º. A Comissão será composta por 8 (oito) membros, sendo 4 (quatro) representantes do Executivo, designados pelo Secretário Municipal de Cultura, e 4 (quatro) representantes da sociedade civil, indicados pelo Conselho Municipal de Cultura, dentre as entidades nele cadastradas. § 2º. Cada membro da Comissão terá um suplente, designado ou indicado na forma do § 1º, que o substituirá em seus impedimentos. § 3º. Compete ao Secretário Municipal de Cultura nomear, anualmente, os membros da Comissão e seus suplentes, devendo o respectivo ato ser publicado pela Secretaria Municipal de Cultura em até 3 (três) dias após o encerramento do prazo de inscrições dos projetos no Programa. § 4º. O mandato dos membros da Comissão será de 1 (um) ano, admitida a recondução por uma única vez, por igual período. § 5º. A Comissão será presidida por um dos representantes do Executivo, escolhido pelo Secretário Municipal de Cultura, com a função de coordenar os trabalhos. § 6º . Incumbe à Secretaria Municipal de Cultura prestar à Comissão o necessário apoio técnico e administrativo.
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Art. 9º. A Comissão, em decisão fundamentada, atendidos os critérios fixados no artigo 10 da Lei nº 13.540, de 2003, selecionará os projetos a serem beneficiados pelo Programa, indicando o valor do subsídio que deverá ser concedido a cada um. § 1º. Os projetos serão escolhidos pela maioria simples dos membros da Comissão. § 2º. O presidente da Comissão terá direito a voto, nas mesmas condições dos demais membros, cabendo-lhe, em caso de empate, direito a um segundo voto. § 3º. A Comissão encaminhará ao Secretário Municipal de Cultura o resultado de seus trabalhos no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o encerramento das inscrições. Art. 10. As inscrições e a escolha dos projetos que poderão integrar o Programa VAI ocorrerão independentemente da liberação dos recursos financeiros pela Secretaria Municipal de Cultura. Art. 11. Compete ao Secretário Municipal de Cultura convocar, pelo Diário Oficial do Município, designando data, horário e local, a primeira reunião da Comissão, que deverá se realizar no prazo de até 10 (dez) dias úteis da formalização da nomeação de seus membros. Parágrafo único. As demais reuniões serão convocadas pelo Presidente da Comissão. Art. 12. Os projetos submetidos à avaliação da Comissão deverão ser apresentados em 2 (duas) vias, de igual teor e conteúdo, contendo as seguintes informações: I - dados cadastrais do proponente: a) nome da pessoa física ou jurídica; b) número do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ e do Cadastro de Contribuintes Mobiliários - CCM, se pessoa jurídica; c) número do documento de identificação e do Cadastro de Pessoa Física - CPF do proponente, se pessoa física; d) endereço e telefone do proponente; e) nome do representante legal da pessoa jurídica; f) número do documento de identificação e do Cadastro de Pessoa Física - CPF do representante legal; g) endereço e telefone do representante legal; h) nome, endereço e telefone de uma pessoa para contato ou do responsável técnico pelo projeto; i) declaração, sob as penas da lei, de que tem domicílio ou sede na cidade de São Paulo há mais de 2 (dois) anos; II - dados do projeto:
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a) nome do projeto; b) data e local da realização; c) tempo de duração; d) custo total do projeto; e)objetivos a serem alcançados; f) plano de trabalho explicitando seu desenvolvimento e duração; g) currículo completo do proponente; h) ficha técnica do projeto, relacionando as funções a serem exercidas e o nome de artistas e técnicos já confirmados até a data da inscrição; i) informações complementares que o proponente julgar necessárias para a avaliação do projeto; j) quando o projeto envolver produção de espetáculo, exposições, filme, edição de livros, revista, publicações em geral, apresentar também: 1. argumento, roteiro ou texto; 2. autorização do detentor dos direitos autorais; 3. proposta de encenação; 4. concepções de cenários, figurinos, iluminação, música etc., quando prontas na data da inscrição; 5. compromisso de realização a preços populares, discriminando o período das apresentações e o preço dos ingressos, quando não resultarem em evento gratuito, além da contrapartida exigida no § 3º do artigo 2º deste decreto. l) orçamento total do projeto, em que poderão ser incluídas, entre outras, as seguintes despesas: 1. recursos humanos e materiais necessários; 2. material de consumo; 3. locação de espaço e equipamentos; 4. custos de manutenção e administração de espaço; 5. custo de produção; 6. material gráfico e publicações; 7. divulgação; 8. pesquisa e documentação; 9. despesas diversas; 10. impostos; 11. encargos sociais. Parágrafo único. A Comissão de Avaliação poderá solicitar outras informações, se entender necessário. Art. 13. Para a formalização da concessão do subsídio, os responsáveis pelos projetos selecionados deverão apresentar os seguintes documentos: I - proponente pessoa jurídica:a) cópia do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ; b) cópia da inscrição no Cadastro de Contribuintes Mobiliários - CCM; c) Certidão Negativa de Débitos - CND/INSS;
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d) contrato social ou estatuto social atualizado; e) ata de eleição da diretoria; f) cópias do Cadastro de Pessoa Física e documento de identificação do responsável legal da empresa; g) Certidão de Regularidade de Situação - CRS/FGTS; h) cópia de Certidão Negativa de Tributos Municipais; i) declaração do proponente de que conhece e aceita incondicionalmente as regras do Programa VAI e que se responsabiliza por todas as informações contidas no projeto e pelo cumprimento do respectivo plano de trabalho; j) comprovante de sede na cidade de São Paulo há, no mínimo, 2 (dois) anos; l) autorização para crédito em conta corrente bancária aberta pelo proponente especialmente para os fins do Programa; II - proponente pessoa física: a) cópias do Cadastro de Pessoa Física e documento de identificação; b) declaração de que não possui débitos com a Prefeitura do Município de São Paulo; c) declaração do proponente de que conhece e aceita incondicionalmente as regras do Programa VAI e que se responsabiliza por todas as informações contidas no projeto e pelo cumprimento do respectivo plano de trabalho; d) comprovante de domicílio na cidade de São Paulo há, no mínimo, 2 (dois) anos; e) autorização para crédito em conta corrente bancária aberta pelo proponente especialmente para os fins do Programa. Art. 14. A Secretaria Municipal de Cultura não imporá formulários, modelos, tabelas ou semelhantes para a apresentação dos projetos, exceto as declarações previstas no artigo 13, cujos termos serão definidos em portaria do Secretário Municipal de Cultura em até 15 (quinze) dias após a publicação deste decreto. Art. 15. A Comissão Julgadora avaliará os projetos que integrarão o Programa VAI e o montante de recursos que cada um deve receber de apoio financeiro, observados os seguintes critérios: I - atendimento aos objetivos estabelecidos na Lei nº 13.540, de 2003; II - mérito das propostas; III - clareza e coerência; IV - interesse público; V - custos; VI - criatividade; VII - importância para a região ou bairro da cidade; VIII - proposta de devolução pública, nos termos do parágrafo único do artigo 5º deste decreto. Parágrafo único. Serão beneficiadas pelo Programa VAI, preferencialmente, as propostas culturais de caráter coletivo que estejam em andamento e necessitem de recursos para seu desenvolvimento e consolidação.
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Art. 16. A Comissão poderá deixar de utilizar todos os recursos previstos para o Programa se julgar que os projetos apresentados não atendem aos objetivos da Lei nº 13.540, de 2003. Art. 17. Poderá haver nova inscrição de um mesmo projeto, por apenas uma vez, consecutiva ou não, de acordo com a avaliação realizada pela Comissão, nos termos do artigo 8º da Lei nº 13.540, de 2003. Art. 18. A Comissão poderá solicitar à Secretaria Municipal de Cultura apoio técnico para a análise dos projetos e dos respectivos orçamentos. Art. 19. A Comissão de Avaliação decidirá, no âmbito de sua competência e nos termos da Lei nº 13.540, de 2003, sobre casos não previstos nesta regulamentação. Art. 20. A Comissão de Avaliação é soberana, não cabendo recurso hierárquico de suas decisões. Art. 21. Em até 5 (cinco) dias após a Comissão dar conhecimento ao Secretário Municipal de Cultura da avaliação realizada, os inscritos serão notificados de seu resultado pelo Diário Oficial do Município e terão o prazo de 5 (cinco) dias, contados da publicação, para manifestar, por escrito, se aceitam ou desistem de participar do Programa. § 1º. A falta de manifestação por parte do interessado será considerada como desistência do Programa. § 2º. Em caso de desistência, a Comissão de Avaliação terá o prazo de 5 (cinco) dias para escolher novos projetos, repetindo-se o estabelecido no "caput" deste artigo, sem prejuízo dos prazos determinados para os demais selecionados. § 3º. A Comissão, a seu critério, poderá não selecionar novos projetos em substituição aos desistentes. Art. 22. O Secretário Municipal de Cultura homologará a decisão da Comissão de Avaliação e determinará a publicação do resultado no Diário Oficial do Município, em até 2 (dois) dias após a manifestação dos interessados, nos termos do "caput" do artigo 21. Art. 23. No prazo de 20 (vinte) dias após a publicação prevista no artigo 21, a Secretaria Municipal de Cultura providenciará a formalização da concessão do subsídio a cada projeto selecionado. § 1º. Para a formalização do subsídio, o proponente entregará à Secretaria Municipal de Cultura certidões de regularidade de débitos com o Poder Público Municipal. § 2º. Cada projeto selecionado terá um processo administrativo próprio para a
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formalização do subsídio, de modo que eventual impedimento de um não prejudique o andamento dos demais. § 3º. O subsídio a cada projeto deverá ser expressamente consignado no respectivo instrumento. § 4º. A critério da Comissão de Avaliação, o subsídio poderá ser repassado ao projeto em até 3 (três) parcelas, de acordo com o cronograma de atividades. Art. 24. O beneficiário do Programa VAI prestará contas sobre a utilização dos recursos e os aspectos culturais do projeto. § 1º. Compete ao Secretário Municipal de Cultura, ou a quem ele delegar, aprovar a prestação de contas, após ouvir a Comissão de Avaliação a respeito. § 2º. O beneficiário do Programa VAI encaminhará à Comissão de Avaliação, a cada 4 (quatro) meses, relatórios sobre as atividades desenvolvidas. Art. 25. A não aprovação da prestação de contas do projeto na forma estabelecida no artigo 24 deste decreto sujeitará o proponente a devolver o total das importâncias recebidas, acrescidas da respectiva atualização monetária, em até 30 (trinta) dias da publicação do despacho que as rejeitou. § 1º. Na hipótese prevista no "caput" deste artigo, a não devolução da importância no prazo e forma assinalados caracterizará a inadimplência do proponente, que fica impedido de encaminhar novos projetos ao Programa VAI, firmar contratos com a Municipalidade ou receber qualquer apoio dos órgãos municipais, até quitação total do débito. § 2º. Cabe à Secretaria Municipal de Cultura tomar as medidas necessárias para o cumprimento do disposto no § 1º deste artigo. Art. 26. O beneficiário do Programa VAI deverá fazer constar em todo o material de divulgação do projeto aprovado os seguintes dizeres: "Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais do Município de São Paulo - VAI". Art. 27. A Secretaria Municipal de Cultura fará acompanhamento e avaliação sistemáticos do Programa, especialmente quanto a resultados previstos e efetivamente alcançados, custos estimados e reais, e a repercussão da iniciativa na comunidade ou localidade. Art. 28. Anualmente, o Conselho Municipal de Cultura realizará uma avaliação coletiva do Programa, em sessão aberta, com a presença dos beneficiários. Art. 29. As despesas decorrentes da execução deste decreto correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário. Art. 30. Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação.
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PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, aos 18 de setembro de 2003, 450º da fundação de São Paulo. MARTA SUPLICY, PREFEITA LUIZ TARCÍSIO TEIXEIRA FERREIRA, Secretário Municipal dos Negócios Jurídicos LUIS CARLOS FERNANDES AFONSO, Secretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico CELSO FRATESCHI, Secretário Municipal de Cultura Publicado na Secretaria do Governo Municipal, em 18 de setembro de 2003. RUI GOETHE DA COSTA FALCÃO, Secretário do Governo Municipal
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